A produção historiográfica em tempos de crise
A produção historiográfica
em tempos de crise
IV Encontro Discente de História da UFRGS
Organizadores
Bárbara Darski
Bianca Lopes Brites
Carolina Suriz dos Santos
David da Silva Carvalho
Gabriel José Brandão de Souza
Juliana Carolina da Silva
João Camilo Grazziotin Portal
Kauê Junior Neckel
Renata Coutinho Ferreira
Tairane Ribeiro da Silva
Tatiane Bartmann
Vanessa Ames Schommer
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
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cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
DARSKI, Bárbara et al. (Orgs.)
A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS [recurso eletrônico] / Bárbara
Darski et al. (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.
521 p.
ISBN - 978-65-5917-318-1
DOI - 10.22350/9786559173181
Disponível em: http://www.editorafi.org
1. Historiografia; 2. Pandemia; 3. Discentes; 4. UFRGS; 5. Brasil; I. Título.
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História
900
Sumário
Prefácio
13
Juliana Carolina da Silva
Tatiane Bartmann
Introdução
22
João Camilo Grazziotin Portal
História Social do Trabalho
Capítulo I
33
Processos trabalhistas e processos criminais como fonte histórica: um balanço
historiográfico dos últimos anos
Tatiane Bartmann
Bárbara Beatriz Silveira Darski
Capítulo II
51
Fábrica Rheingantz: disciplina fabril, divisão sexual do trabalho e a resistência
cotidiana das operárias (Rio Grande, 1910 a 1968)
Caroline Duarte Matoso
Capítulo III
66
Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de territórios urbanos da Primeira
República (Santa Maria, RS)
Felipe Farret Brunhauser
História Indígena da América
Capítulo IV
Mães e pais indígenas: narrativas e práticas ao longo do século XVIII
Laura Oeste
83
Capítulo V
98
As Cartas Ânuas como fontes etnográficas: possibilidades e desafios. Uma análise de
caso da Ânua de 1735-43, de Pedro Lozano S.J, e as reduções austrais da pampapatagônia
Thaís Macena de Oliveira
História Oral e Memória
Capítulo VI
119
Pandemia, fronteiras regionais e estudos da memória: conexões e virtualidades a
partir do IV Encontro Discente de História da UFRGS
João Camilo Grazziotin Portal
Lúcio Geller Junior
Pedro Henrique Batistella
Capítulo VII
136
Sob o olhar quilombola: narrativas, memórias, tradições e oralidades
José Luiz Xavier Filho
Capítulo VIII
155
Entre a lembrança e a compra do silêncio: a Comissão de Indenização aos Ex-Presos
Políticos e a construção da memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina
Juliano Cabral Pereira
Mundo Rural na América
Capítulo IX
173
Uma freguesia na fronteira e outra na estrada: dinâmicas de ocupação territorial pela
população imigrante açoriana e seus descendentes
Sandra Michele Roth Eckhardt
Vanessa Ames Schommer
Capítulo X
186
Agriculturas do capitalismo periférico: fumicultura em São Lourenço do Sul, RS (cc.
1950 – 1980)
Ângelo Belletti
Capítulo XI
201
“Sábado é dia de feira”: representações de um signo entre o urbano e o rural na
cidade de Cajazeiras-PB
Mirian Jossette de Sousa Oliveira
Tatiana de Sousa Lins
Encruzilhadas Epistemológicas
Capítulo XII
219
A Amefricanidade como Filosofia Política Contra-colonial
Jonas Silveira da Silva
Matheus Menezes Marçal
Capítulo XIII
232
Racializando o branco: as implicações da noção de branquitude nos estudos da
História Social do Racismo
Marina Albugeri da Silva
Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V ao XV
Capítulo XIV
251
Estudar a Idade Média em espaços não-europeus: apresentando um panorama dos
Estudos Medievais no Brasil em nível discente
Kauê J. Neckel
Vinicius Silveira Cerentini
Capítulo XV
266
As crônicas arthurianas como espelho de príncipe para o Rei Ricardo Coração-deLeão da Inglaterra
Ana Luiza Mendes
Roberta Bentes
Capítulo XVI
282
A literatura pastoral e sua relação ao estudo da cultura e religiosidade popular na
Alta Idade Média
Marcos Pedrazzi Chacon
Edmar Checon de Freitas
O Brasil Republicano
Capítulo XVII
301
Emergências da branquitude na historiografia brasileira: possibilidades de análise
Gabriel Ribeiro da Silva
Capítulo XVIII
317
A mais velha e justa inspiração: Uma análise das relações raciais no Vale do Rio Pardo
a partir dos clubes negros
Helen da Silva Silveira
Capítulo XIX
332
Os antecedentes do “milagre econômico”: a reestruturação do sistema financeiro
(1964 – 1966)
Werbeth Serejo Belo
África e africanidades
Capítulo XX
349
Narrativas de mulheres negras em Florianópolis sobre Áfricas: oralidades, corpos e
movimentos
Carol Lima de Carvalho
Capítulo XXI
365
Biblioteca Virtual do AYA Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais:
pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos plurais
Helena Fediuk Gohl
Luiza Ferreira da Silva
Capítulo XXII
379
Ensino de História das Áfricas e a Literatura: a produção de um e-book ilustrado em
diálogo com a obra Efuru de Flora Nwapa (Nigéria, 1960)
Tathiana Cristina S. A. Cassiano
História do tempo presente
Capítulo XXIII
395
As obras de Héctor Oesterheld: um projeto cultural de resistências políticas na
Argentina
Leonardo Pires Nascimento
Capítulo XXIV
410
Encarceramento político, violência de gênero e redefinição das práticas repressivas
na ditadura civil-militar brasileira em Porto Alegre (1970-1971)
Maria Eduarda Magro
Ensino de História
Capítulo XXV
431
Ensino de História da África: o problema da disciplina no Século XXI
Bianca Lopes Brites
Domingos Mula Cá Júnior
Juliana Carolina da Silva
Capítulo XXVI
444
“Quem sou eu na História?”: O papel histórico feminino no imaginário de uma turma
de estudantes do Ensino Fundamental
Alice Schmitz Toldo
Capítulo XXVII
457
A experiência de estágio no espaço não formal de educação: possibilidades de usos
das fontes documentais para o ensino de História
Liziane Acordi Rocha
Ariel Alves Medeiros
História e cinema
Capítulo XXVIII
475
A memória cultural do cemitério indígena na narrativa cinematográfica e o trauma
da expropriação colonial
Carolina Suriz dos Santos
Capítulo XXIX
492
A segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim dos cinemas da Praça Saens
pena entre 1970 e 1999 e seu impacto para a vida social dos tijucanos
Danielle Lima Rodrigues
Capítulo XXX
O conceito de cinema no ensino de história em investigações na pós-graduação
Luiz Paulo da Silva Soares
506
Prefácio
Juliana Carolina da Silva
Tatiane Bartmann
O IV Encontro Discente de História da UFRGS - “A produção
historiográfica em tempos de crise”, é uma iniciativa que surgiu do corpo
discente do Programa de Pós-Graduação em História, como uma tentativa
de reunir diferentes pesquisadores de variados campos e enfoques
disciplinares, para que mesmo em tempos difíceis, pudéssemos pensar
caminhos, diálogos e contribuições à nossa área e à sociedade.
Na edição de 2020, com inscrições gratuitas e em formato virtual, o
encontro alcançou pleno sucesso ao se propor como um espaço acadêmico
interdisciplinar para que os temas que envolvem os variados âmbitos da
História e de seu ensino, fossem discutidos durante a realização do evento,
com as palestras, as mesas-redondas, os minicursos e as apresentações de
trabalho nos simpósios temáticos.
Os textos que compõem o presente e-book são resultados da seleção
de comunicações de pesquisa realizadas nos onze simpósios temáticos do
evento. Em cada simpósio os coordenadores foram convidados a
selecionar textos para esta publicação, obedecendo critérios de relevância
e contribuições sobre os temas. A partir da seleção, convidamos os autores
dos trabalhos selecionados para a composição desta obra.
Podemos agrupar os textos desta publicação, genericamente, em
onze eixos temáticos envolvendo diversas abordagens, metodologias e
contextos como: História Social do Trabalho; História Indígena da
América; História Oral e Memória; Mundo Rural na América;
Encruzilhadas Epistemológicas; Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V
14 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ao XV; O Brasil Republicano; África e africanidades; História do tempo
presente; Ensino de História e História e cinema.
No primeiro agrupamento, temos um trabalho cujo foco são análises
acerca da História Social do Trabalho, iniciando o eixo por um balanço
historiográfico acerca de pesquisas que utilizam como fontes os processos
trabalhistas e os processos criminais, das autoras Bárbara Beatriz Silveira
Darski e Tatiane Bartmann. O segundo texto, de Caroline Duarte Matoso,
traz um instigante estudo sobre a disciplina fabril, divisão sexual do
trabalho e analisa através dessas chaves, a resistência cotidiana das
operárias da Fábrica Rheingantz, de Rio Grande/RS, entre 1910 e 1968. O
texto seguinte, “Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de
territórios urbanos da Primeira República (Santa Maria, RS)”, de Felipe
Farret Brunhauser, se debruça sobre os avanços no uso de Sistemas de
Informações Geográficos para pesquisas históricas. Dialogando com
tecnologia, estudos históricos e análises sociais, Brunhauser nos conduz
pelo estudo de cartografias da cidade de Santa Maria, produzidos durante
a Primeira República. A observação tecida ao longo do texto mostra
aspectos acerca da importância dos mapas como fontes para a
compreensão da sociedade da qual representam.
O segundo conjunto de textos, é formado por dois trabalhos que
envolvem o tema da História Indígena da América, tentando entender os
limites, possibilidades e caminhos relativos ao uso das fontes. O trabalho
desenvolvido por Laura Oeste, observa variadas fontes do século XVIII,
buscando analisar as diferentes práticas e concepções acerca das mães e
pais indígenas. Com um recorte temporal próximo, o texto seguinte, de
Thaís Macena de Oliveira, traz perspectivas acerca das possibilidades e
limitações do gênero epistolar para o conhecimento sobre as missões
austrais da pampa-patagônia e das populações indígenas. Para tanto, a
Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 15
autora analisa a Carta Ânua, do jesuíta Pedro Lozano, utilizando como
recorte temporal a produção da epístola, que remonta de 1735 a 1743.
No terceiro eixo temático encontramos estudos que versam sobre
Memória e História Oral. O texto inicial, de João Camilo Grazziotin Portal,
Lúcio Geller Junior e Pedro Henrique Batistella, reflete sobre as conexões
e virtualidades que se tornaram possíveis com o IV Encontro Discente de
História da UFRGS, atentando para questões regionais, históricas e
contextuais que permearam o ST3 e o evento. O texto seguinte, “Sob o
olhar quilombola: narrativas, memórias, tradições e oralidades”, de José
Luiz Xavier Filho, traz uma profícua discussão sobre a contribuição das
memórias das comunidades remanescentes quilombolas para a História
do Brasil, dialogando conceitos como identidade e territorialidade. A partir
dessa discussão, o autor reflete sobre as memórias e as tradições presentes
no quilombo Sambaquim, no município de Cupira/PE, através de
entrevistas coletadas utilizando a metodologia da História Oral e das
intersecções destas memórias com a espacialidade e com o território dessa
comunidade. Ainda no interior do terceiro conjunto de textos, o estudo de
Juliano Cabral Pereira, “Entre a lembrança e a compra do silêncio: a
Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos e a construção da
memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina”, é uma instigante
análise que contribui para os estudos acerca da Justiça de Transição no
nosso país. O texto observa a Comissão de Indenização dos Ex-Presos
Políticos e a postura da sociedade em relação à memória do período
ditatorial, para refletir sobre a reparação oferecida às vítimas da ditadura
militar em Santa Catarina.
O fio condutor do quarto agrupamento de textos é a temática é
Mundo Rural na América, sendo iniciado pelo trabalho intitulado “Uma
freguesia na fronteira e outra na estrada: dinâmicas de ocupação
territorial pela população imigrante açoriana e seus descendentes” de
16 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Sandra Michele Roth Eckhardt e Vanessa Ames Schommer. O capítulo
observa a interação, as semelhanças e divergências da ocupação espacial
da freguesia de São José do Taquari e da freguesia de Santo Antônio da
Patrulha, ambas de ocupação portuguesa, na segunda metade do século
XVIII. Seguindo, a pesquisa de Ângelo Belletti traz uma instigante leitura
sobre agriculturas do capitalismo periférico, entendendo como as relações
do sistema econômico mundial com as práticas agrícolas de pequenos
agricultores. Para tanto, Belletti analisa o cultivo do tabaco em São
Lourenço do Sul/RS, pesquisando a dinâmica dos fumicultores nesse
município e usando como recorte temporal o período de 1950 a 1980. O
terceiro capítulo dessa temática traz um estudo sobre a constituição, as
permanências, as mudanças e as ressignificação da feira livre como um
signo. As autoras Mirian Jossette de Sousa Oliveira e Tatiana de Sousa Lins
entenderam a feira livre de Cajazeiras/PB, como um signo que articula
uma itinerância entre os espaços urbanos e rurais dessa cidade. Ao longo
do artigo somos conduzidas pela análise sobre as transformações e
conflitos entre o campo e a cidade, utilizando chaves de interpretação que
conjugam conceitos como tradição e modernização, urbano e rural, cultura
e política, para compreendermos as mudanças e permanências sobre a
comercialização entre periferia, centro, zonas vizinhas e zonas rurais.
O quinto tema abordado nessa obra é Encruzilhadas Epistemológicas,
que será agregado por três capítulos. Os autores Jonas Silveira da Silva e
Matheus Menezes Marçal apresentam o texto “A Amefricanidade Como
Filosofia Política Contra-colonial”, que busca pensar e questionar as
abordagens das humanidades a partir das categorias “decoloniais”. O
capítulo seguinte, “Racializando o branco: as implicações da noção de
branquitude nos estudos da História Social do Racismo”, de Marina
Albugeri da Silva, parte de reflexões acerca da noção de branquitude e da
Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 17
constituição da noção de raça para buscar entender os modos de operação
e reprodução do racismo e a estruturação de relações de poder.
O sexto eixo temático aborda o contexto da Idade Média (séculos V ao
XV), mostrando as variadas possibilidades de pesquisas nessa área. O
primeiro capítulo, dos autores Kauê J. Neckel e Vinícius Silveira Cerentini
apresentam um panorama dos estudos Medievais no Brasil a partir da
análise das abordagens feitas pelas pesquisas inscritas no IV Encontro
Discente de História da UFRGS. Na sequência, o segundo artigo de Ana
Luiza Mendes e Roberta Bentes se refere às crônicas arthurianas e a
proximidade entre realidade e ficção na concepção da existência no
medievo. O terceiro artigo de Marcos Pedrazzi Chacon e Edmar Checon de
Freitas trata sobre a literatura pastoral e sua relação com a cultura e
religiosidade popular no contexto da Alta Idade Média.
O sétimo simpósio temático analisa diversas perspectivas temáticas e
discussões teórico-metodológicas com viés político no Brasil Republicano.
O primeiro capítulo apresentado trata-se de uma revisão sobre a temática
da branquitude na historiografia brasileira, escrito por Gabriel Ribeiro da
Silva. Esse estudo pretende apontar os principais trabalhos que utilizam a
branquitude como campo de pesquisa, além disso, propõe ferramentas
analíticas para os estudos nessa área. O segundo texto desse eixo temático,
escrito por Helen da Silva Silveira, traz reflexões de uma pesquisa em
andamento sobre o associativismo negro e projetos de liberdade no
período pós-abolição no contexto do Vale do Rio Pardo, interior do Estado
do Rio Grande do Sul. O objetivo principal desse estudo é compreender as
relações entre negros e teuto-brasileiros em cidades definidas pela
imigração alemã. Fechando esse eixo temático, temos o texto de Werbeth
Serejo Belo, doutorando da Universidade de Coimbra, o qual apresentou
sua pesquisa intitulada “Os antecedentes do “milagre econômico”: a
reestruturação do sistema financeiro (1964 – 1966)”. O autor faz um
18 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
importante debate envolvendo os variados interesses e discursos sobre o
golpe “classista Empresarial-Militar”.
No oitavo conjunto de textos, a temática priorizada foi “África e
Africanidades” abordando a historiografia, teoria crítica e ensino de
História a fim de criar espaço para debates políticos suscitados pelas
investigações. Nesse sentido, o primeiro capítulo trouxe para a discussão
questões vinculadas às narrativas sobre África a partir de mulheres negras
em Florianópolis, SC, da autora Carol Lima de Carvalho. A partir da análise
de entrevistas, o texto possui uma perspectiva decolonial ao apresentar a
trajetória de sete mulheres negras em suas dinâmicas de resistência,
observando os universos culturais em que estiveram inseridas. O segundo
artigo elaborado por Helena Fediuk Gohl e Luiza Ferreira da Silva discorre
sobre o projeto intitulado “Biblioteca Virtual Estudos Africanos e
Indígenas” desenvolvido como uma ação de extensão voltada à produção
de materiais que contribuem para qualificar as práticas na educação,
promovida pelo AYA Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais.
O terceiro artigo, de Tathiana Cristina S. A. Cassiano também trata sobre
o ensino de História da África, mas dentro do debate literário em diálogo
com a obra Ufuru de Flora Nwapa (autora nigeriana, 1960) e descreve a
produção de um e-book ilustrado para divulgação do conhecimento.
O simpósio temático número nove, intitula-se “História do Tempo
Presente: desafios da América Latina” e contribui com um espaço de
discussão de temáticas diversificadas. No primeiro texto, vem a tona
discussões sobre as obras de Hector Oesterheld, um militante e roteirista
de quadrinhos argentino que através de suas produções e seu trabalho
editorial promovia denúncias e críticas ao imperialismo, bem como,
incentivava produções locais de artistas argentinos, na primeira década do
século XX. Oesterheld atuando na guerrilha armada em defesa da
liberdade política e social na Argentina, década de 1970, está entre os
Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 19
milhares de desaparecidos das ditaduras latinas. Dito isso, o autor
Leonardo Pires Nascimento, através de levantamentos biográficos,
objetiva compreender como a memória é apropriada e percebida na
política e cultura contemporânea. O segundo capítulo que compõe o eixo,
intitula-se “Encarceramento político, violência de gênero e redefinição das
práticas repressivas na ditadura civil-militar brasileira em Porto Alegre
(1970-1971)”, escrito por Maria Eduarda Magro, parte da trajetória de três
mulheres envolvidas no enfrentamento à ditadura civil-militar brasileira.
O décimo eixo temático, abriu espaço para a discussão sobre os “Usos
do Passado no Ensino de História e Aprendizagem no Brasil
Contemporâneo”, enunciando experiências diversas no processo de ensino
e aprendizagem. No primeiro texto, de autoria de Bianca Lopes Brites,
Domingos Mula Cá Junior, Juliana Carolina da Silva, é apresentado um
conjunto de discussões teóricas que problematizam o papel do ensino de
História da África, no século XXI. Na sequência, o artigo de Alice Schmitz
Toldo traz no título o seguinte questionamento: “Quem sou eu na
História?”. Essa provocação introduz uma proposta de atividade realizada
com alunos do Ensino Fundamental que mobiliza toda uma discussão
sobre o imaginário, a imaginação e os símbolos relacionados a papéis de
gênero presentes no imaginário da sociedade ocidental. O terceiro artigo,
de Liziane Acordi Rocha e Ariel Alves Medeiros, intitula-se “A experiência
de estágio no espaço não formal de educação: possibilidades de usos das
fontes documentais para o ensino de História” e demonstra a importância
da articulação entre a educação formal e não formal, bem como, os
impactos dessa prática no processo educativo.
O décimo primeiro eixo temático vem encerrar as sessões com
debates sobre as narrativas cinematográficas enquanto fontes históricas.
No primeiro artigo desse grupo, Carolina Suriz dos Santos considera o
cinema como agente criador de memórias e veículo de rememoração,
20 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
nesse sentido, é problematizada a memória cultural do cemitério indígena
como espaço maldito, apresentada na narrativa cinematográfica do gênero
de horror. Sua pesquisa convida a refletir sobre o trauma da expropriação
colonial. O segundo texto, de Danielle Lima Rodrigues, intitulado “A
segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim dos cinemas da Praça
Saens Pena entre 1970 e 1999 e seu impacto para a vida social dos
tijucanos” discorre sobre a transformação pela qual passou a Praça Saens
Pena, na Tijuca, Rio de Janeiro, que antigamente possuía salas de exibição
de filmes se constituindo em espaço de sociabilidade para os moradores e
atualmente abriga lojas de departamento e farmácias. Finalizando o
debate, Luiz Paulo da Silva Soares, autor do terceiro texto, trata sobre o
conceito de cinema e da utilização de filmes no ensino de História,
desenvolvendo um mapeamento de pesquisas de pós-graduação sobre
essas temáticas, no Brasil entre 2017 e 2019.
Os textos, em conjunto, contribuem no sentido de oferecerem
variadas perspectivas de análises, justamente em razão das reflexões
teóricas e metodológicas específicas para cada estudo. As temáticas e as
abordagens apontam leituras sobre aspectos sociais relevantes para a
compreensão do tempo e das sociedades em diferentes contextos, em
diversas conjunturas e utilizando recursos de fontes variadas. Portanto,
conforme o leitor vai perceber a partir da sua própria leitura, as temáticas
desenvolvidas e problematizadas ao longo do livro são de grande
diversidade temática e regional. Além de que contemplam diferentes
conjunturas e usos de fontes, oferecendo um valioso quadro das produções
acadêmicas nesse período de crise. Vivemos tempos em que o
negacionismo da ciência e a insistência em remédios que são
comprovadamente ineficazes para o combate a COVID-19 são o imperativo
do cotidiano que convive com a desinformação. Pensando sobre as
consequências da falta de acesso, de informação e da atuação dos
Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 21
mecanismos de criação de mentiras, na contramão, esperamos que essa
obra seja uma iniciativa de acesso há pesquisas acadêmicas. Desejamos
que seja um motim para trocas de experiências, de informação e que possa
ser um canal de acesso há pesquisas de diferentes campos da produção de
História. Desejamos boa leitura à todes!
Introdução
João Camilo Grazziotin Portal
No exato momento em que escrevo esta página, mais de quatrocentas
e sessenta mil pessoas foram a óbito no território brasileiro em
decorrência da atual pandemia do Corona Vírus. Não poderia ser possível
começar uma introdução sem a devida menção ao absoluto caos que reina
em nosso triste tempo. O número de quatrocentas mil mortes (e ainda
contando!), antes inimaginável, representa a própria crise do nosso país
em seus valores democráticos e institucionais. E os números apenas
sobem, vertiginosamente, a cada dia que se passa.
Diante disso, o que podemos pensar? Tal realidade nunca havia
passado pela cabeça daqueles cerca de quinze estudantes de pós-graduação
que, na metade de 2019, se reuniram em frente a Faculdade de Educação
da UFRGS para realizar o primeiro encontro do nosso evento. A realidade,
àquele momento, não era tão dura assim. Os cortes das bolsas de pósgraduação estavam começando a ser mais sólidos, e sentíamos que algo
ruim se aproximava. Diante daqueles quadros, decidimos que a temática
do evento seria a produção historiográfica em tempos de crise. Nunca
pensávamos que a crise se acentuaria de tal forma, claramente em
ascensão, em todas as direções possíveis – e que teríamos um ser
absolutamente mentecapto, com uma mente singular em sua
asquerosidade masculina na presidência deste país.
Enquanto
historiadores e historiadoras, pensamentos que o evento teve também a
proposta de aprender o nosso tempo em sua própria marcha, haja vista a
eterna necessidade que a disciplina tem de dialogar com a sua
temporalidade. Todavia, não desejamos construir uma narrativa
João Camilo Grazziotin Portal | 23
derrotista, ou mesmo pessimista, sobre a atual crise, que são sempre as
duas maneiras mais fáceis de pensar as coisas. Em vez disso, desejamos
compreender nosso tempo de forma afirmativa e construtiva, propondo
caminhos, alternativas e esperanças, e não reforçando mais uma vez um
discurso que nos deixa, além de imóveis, sem projetos. Nós quisemos,
antes e apesar de tudo, propor caminhos.
Bem, muita coisa mudou desde aquele primeiro encontro no meio de
2019. Mobilizamos uma rede de esforços, montamos grupos, planejamos
as tarefas de cada um, montamos simpósios temáticos concernentes a
diversas áreas do conhecimento historiográfico. Entramos em contato com
ao Programa de Pós-graduação em História, e propomos a ideia de realizar
mais uma edição do Encontro Discente. Desde o início, o PPGH/UFRGS
acolheu a ideia e incentivou nossos esforços, o que foi fundamental para a
realização do evento.
O evento se caracterizou por ser planejado, organizado e feito
totalmente pelo corpo discente do PPGH/UFRGS, que decidiram pelas
inscrições serem totalmente gratuitas, de modo a possibilitar um diálogo
democrático entre as mais diversas pesquisas. Somamos nosso esforços,
criamos uma disposição digital para um site, hospedado na página do
PPGH/UFRGS, e abrimos inscrições. Nós nunca pensávamos que teríamos
mais de trezentos inscritos, de diferentes países da América, com uma
amplitude de trabalhos tão diversos e ricos. Ocorrido entre os dias 01 e 04
de setembro de 2021, o evento teve onze simpósios temáticos, que
abrangeram desde perspectivas decoloniais até estudos audiovisuais sobre
o cinema. O propósito foi promover diálogos de pesquisa entre discentes
do PPGH/UFRGS e de programas de outras instituições de ensino
superior, além de acolher também graduandos/as e pesquisadores/as
independentes. Pensamos ser fundamental proporcionar um evento o
mais abrangente possível, sem barreiras de titulação ou grau, com o
24 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
propósito de ter a maior livre circulação do pensamento historiográfico
possível, entre seus mais diversos níveis de formação. O evento ocorreu de
maneira totalmente virtual, motivo pelo qual agradecemos imensamente
ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, principalmente à professora
Claudia Wasserman e ao Manoel do Núcleo de Comunicação, por ter
gentilmente cedido suas redes sociais para a transmissão tanto da mesa de
abertura quanto da mesa de encerramento.
A palestra de abertura teve como proposta temática o seguinte verbo:
“Racializando a historiografia”. Nela, tivemos diferentes propostas e
caminhos em relação ao caráter racial que a historiografia tem, em sua
branquitude originária oitocentista e também nas atuais atualizações em
seu sentido. Na mesa, estiveram presentes os debatedores Marcus Vinícius
de Freitas Rosa (UFRGS), Fritznel Alphonse (UFRGS) e Melina Kleinert
Perussatto (Unisinos). A mediação ficou por conta de Vanessa Ames e João
Camilo Portal, ambos do corpo discente da UFRGS. A mesa, disponível
online no canal do youtube do IFCH – UFRGS1, possibilitou uma grande
reflexão sobre o processo de produção de significados da disciplina, que
incide diretamente sobre o corpo. Racializar a disciplina histórica, assim,
significa ir ao encontro de uma modificação de sua estrutura
epistemológica,
tradicionalmente
perpetuadora
de
desigualdades
epistêmicas e teóricas. Pudemos perceber como a pretensa crítica à maior
presença de negros e negras no campo historiográfico, que teria levado à
racialização de uma disciplina originalmente não racializada, na verdade
mostra-se como uma falácia. Por meio da brilhante fala de Marcus Vinícius
Rosa, foi possível compreendermos que o enegrecimento da disciplina
surge como uma crítica racial dentro da epistemologia da história. Na
verdade, a historiografia tradicionalmente fora absolutamente racializada
1 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=u-Cs-X8BTcg>. Acesso em 25 de abril de 2021.
João Camilo Grazziotin Portal | 25
por meio da branquitude, que produziu seu discurso historiográfica por
meio de um lugar que também foi e é racializado. Não podemos dar
seguimento à perpetuação da “diferença dentro da igualdade”, na medida
em que uma historiografia crítica deve se propor a questionar suas bases
anteriores e modificar estruturas que estão em constante movimento.
Racializar a disciplina, assim como a ciência, não é apenas compreendêlas a partir do enegrecimento, mas também por estarem pautadas pela
raça branca em suas origens. Esse é o motivo pelo qual os estudos a
respeito da branquitude e da hegemonia branca estão em voga, na medida
em que racializam um lugar de fala que se pretende universal. A
historiografia foi, desde seu início, racializada e generificada, e a mesa
possibilitou um grande momento de aprendizado sobre esse processo.
Dessa forma, investigar o caráter racial da epistemologia histórica
também significa repensar as formas pelas quais a ideia racial se manifesta
na produção desse discurso, constantemente produzido, reproduzido,
circulado e repensado. Com efeito, o lugar discursivo dos historiadores e
historiadoras cede espaço para descermos de nosso pedestal branco, a fim
de inserir, compreender e reconhecer narrativas acadêmicas e não
acadêmicas de sujeitos negros ao longo da história. Ao longo da mesa,
também pudemos compreender como a história negra não significa
relegá-la à história da escravidão, na medida em que hoje também
ressalta-se o lugar dos negros enquanto sujeitos ativos de produção de
significados, vivências e liberdades. Tanto durante a escravidão quanto no
período da pós-abolição, pudemos perceber as experiências reais,
concretas e autênticas de reapropriação da noção de raça, criada
originalmente para segregar, diminuir, hierarquizar e subjugar. Assim,
foram ressaltados os usos próprios e coletivos a respeito da raça pelos
negros escravizados e libertos, que se apropriaram desse lugar a partir de
seus próprios interesses, projetos e resistências.
26 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Marcus Rosa ainda trouxe em sua fala a problematização a respeito
da ilusória ideia de que não há autores negros ao longo dos séculos XIX e
XX. O que acontece, ressaltou Marcus, foi a pouca valorização de
intelectualidades negras pela cultura científica e editorial. Assim, esse
lugar de presença tem sido fortemente requisitado nos cursos de
graduação em história, obrigando os professores de ensino superior a
buscarem bibliografias pertinentes a respeito do tema, que já é de longa
data. Racializar a historiografia, disseram os debatedores, também
significa questionar a pouca circulação extra-acadêmica que a
historiografia branca produziu fora da academia, buscando narrativas
endógenas produzidas pelos movimentos negros ao longo da história.
Assim, foram ressaltadas as consequências epistemológicas da produção
do racismo no conhecimento histórico, prestando atenção à relação entre
a autoria histórica e sua racialização. Questionar o lugar de presença na
produção historiográfica, assim, também implica refletirmos sobre a
provincialização de um espaço-tempo europeu, uma cidadania que
também exclui outras corporeidades, uma historiografia que nem sempre
é verdadeiramente verdadeira. Em termos brasileiros, isso significa
incorporar as experiências negras e indígenas como centrais no processo
de construção do Estado nacional, e não apenas meras “contribuições”.
Parte de um processo muito mais amplo, não basta apenas questionarmos
as estruturas do conhecimento histórico, mas sobretudo atentarmos sobre
o combate do racismo nas atitudes cotidianas da realidade.
O pesquisador haitiano Fritznel Alphonse trouxe sua experiência
para o debate, ressaltando as graves consequências que a racialização e o
racismo têm no mundo cotidiano. Fritznel reforçou o argumento de
Marcus a respeito da branquitude que constitui a historiografia, assim
como os mais amplos níveis de presença que a branquitude
tradicionalmente possuiu e ainda possui na academia. Fritznel trouxe seu
João Camilo Grazziotin Portal | 27
desejo de trabalhar com um autor negro durante sua dissertação de
mestrado, ao que um dos examinadores da qualificação aconselhou não
usá-lo, por ser um “autor ativista”. Ora, pudemos perceber como a
representatividade e um engajamento racial crítico infelizmente ainda são,
muitas vezes, pormenorizados nos debates acadêmicos, negando à
epistemologia histórica seu caráter racial originário. Fritznel ainda trouxe
para o debate a incompletude que o racismo possui no Brasil atualmente,
na medida em que ele ainda se manifesta absolutamente presente na
realidade socioeconômica do país. Assim, foi ressaltada a produção do
racismo na qualidade de vida e no reconhecimento social dos corpos.
Fritznel trouxe as manifestações existenciais que a ideia de raça,
historicamente construída, traz para a realidade, distribuída de maneira
desigual entre seus diferentes participantes. A universidade, assim,
dificilmente possibilita condições de reconhecimento da negritude em seu
interior, haja vista a imensa maioria branca em seu corpo docente. A
universidade, ressalta Fritznel, é um “lugar branco”, que também
reproduz essa desigualdade epistêmica. Ele ainda trouxe uma experiência
que teve num processo seletivo na cidade de Porto Alegre. Muito embora
tivesse mestrado, a pessoa o colocou para uma vaga que não havia
necessidade de leitura alguma. Quanto Fritznel questionou o motivo pelo
qual ele seria adequado para aquela vaga de trabalho, o recrutador
respondeu: “precisamos de braço”. Assim, a constituição de lugares negros
e lugares brancos encontra eco na própria estrutura de trabalho brasileira
e imigrante, e inclusive nos diferentes efeitos que a formação de nível
superior proporciona dependendo da cor dos corpos e de suas origens
territoriais. Em termos de poder, foi possível ver como a raça produz um
lugar de subelternidade. A fala da debatedora Melina Perussatto também
trouxe essa dimensão da racialização na historiografia brasileira, que
reproduz uma desigualdade também entre a tradição oral e a tradição
28 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
escrita. Melina, a partir das relações étnico-raciais, ressaltou importantes
caminhos para a resolução desses problemáticas na sociedade brasileira.
Já a mesa de encerramento2, ocorrida a 04 de setembro de 2020, teve
como tema “Escrever e viver a tragédia: mídia e democracia”. Os
convidados foram Luiz Alberto Grijó (UFRGS), Luis Carlos Martins
(PUCRS) e Irinéia Franco (UFAL). O debatedor foi Douglas Souza Angeli
(UEMG), e os membros da comissão organizadora responsáveis pela
abertura dos trabalhos foram Gabriel Brandão e Tatiane Bartmann, ambos
discentes do PPGH/UFRGS.
O tema abordado na mesa foi a sociedade brasileira contemporânea,
a partir de suas atuais expressões midiáticas, religiosas e políticas.
Consegui perceber como o tema central foi tentar perceber como a mídia
brasileira, principalmente após a redemocratização, construiu certa
hegemonia, agregando certos elementos cruciais para nossa história. O
professor Grijó trouxe à tona a articulação política proposta pela mídia
brasileira, sobretudo a ascensão da direita a partir de 2016. A criação de
um espaço de crise também fora fomentado a partir dos veículos de
comunicação, nos dizem os palestrantes. Irinéia, enquanto pesquisadora
pertencente à história das religiões, trouxe à tona como a religião e a mídia
atualmente estão interligadas no espaço sociodemográfico brasileiro, na
medida em que as religiões nutrem-se também das redes sociais e grupos
particulares de informação. Já o professor Luis Martins atentou para o
fenômeno da chamada “pós-verdade” na realidade brasileira. Considerado
por Martins como curioso, o fenômeno faz com que o valor de verdade
dado a um discurso não seja estabelecido pelo grau empírico de
conhecimento agregado, mas sim pela proximidade e pelo afeto que
residem no interlocutor daquele discurso. Não podemos desvincular tal
2 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bd-UTgBrqu4>. Acesso em 20 de maio de 2021.
João Camilo Grazziotin Portal | 29
discurso da forte onde anti-intelectualista no espaço brasileiro, onde reina
uma grande desconfiança em relação aos cientistas e estudiosos.
Grijó chamou bastante atenção para a comunicação pública na
atualidade, e deu o exemplo que mais nos concerne: a comunicação
acadêmica. Mesmo que as lives tenham possibilitado um espaço diferente,
Grijó ressalta que, na maioria das lives acadêmicas, somos nós, falando o
que nós queremos ouvir, e aplaudindo a nós mesmos. Há muito mais a
que se pensar a respeito de uma maior abrangência da universidade no
cotidiano dos cidadãos brasileiros, assim como do entendimento que
temos de uma história pública. Trabalhar, criar e produzir uma história
extramuros da academia também é levar a cabo o uso público da história,
e não apenas sua circulação em eventos virtuais. O professor Martins ainda
chamou atenção para o uso peculiar que o termo “narrativa” possui
atualmente na mídia, que o usa sempre associada à mentira. Assim, a mesa
de encerramento seguiu um formato bem livre, apontando caminhos para
os usos da história atualmente, assim como uma análise sobre nosso
tempo, politicamente difícil e em crise.
Da parte da comissão organizadora, ficamos muito contentes com a
realização do evento. Conseguimos perceber pesquisas de excelente
qualidade, fundamentadas, desenvolvidas, ricas em suas análises.
Pudemos perceber desde estudos sobre a Semana Santa no interior de
Minas Gerais até a memória urbana de Fortaleza.
Por incentivo do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tivemos a ideia de
organizar um livro com os melhores trabalhos apresentados no evento. O
que o leitor tem à sua disposição, aqui neste livro, é uma coletânea com
esses trabalhos selecionados, três capítulos por cada eixo temático.
O que antes fora visto como um problema – o evento virtual, e não
presencial – acabou demonstrando uma face muito positiva e diversa da
30 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
historiografia brasileira. Não vimos apenas pesquisas da região sul – o que
o evento presencial provavelmente teria produzido –, mas de todo o Brasil.
Vimos a historiografia contemporânea brasileira em seus diferentes
sotaques, cores e temperaturas. O frio gaúcho dos organizadores do evento
e coordenadores de ST’s, com suas toucas, blusões de lã e cachecóis, foi
contrastado com participantes nordestinos de manga curta, que
pesquisavam temas de sua cultura local. Nesse sentido, a virtualização do
evento também significou a sua nacionalização; e a gratuidade, sua
popularização. Desse modo, não podemos deixar de parabenizar a todos
os apresentadores de trabalho pelos seus aprendizados, além de a todas as
instituições que ajudaram a divulgar o IV Encontro Discente de História
da UFRGS. Nós nunca teríamos tido o alcance que tivemos sem a imensa
gentileza de diversos Departamentos de História ao longo do Brasil inteiro.
A todos esses, nossos mais sinceros agradecimentos.
Por fim, agradecemos imensamente ao Programa de Pós-Graduação
em História da UFRGS, principalmente ao seu coordenador Fábio Kühn,
por todo o apoio necessário para a realização do evento, assim como o
incentivo financeiro para a publicação deste livro. Também, nosso
agradecimento ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS,
pela disponibilização de seus canais de divulgação e transmissão. Ficamos
extremamente felizes com tudo aquilo que fora produzido, pensado e
discutido ao longo do evento. Um evento feito de pessoas e para pessoas,
na tentativa de construir um verbo compartilhado entre seus
participantes. Que o leitor, aqui, possa minimamente desfrutar desse
espaço de experiência. Boa leitura a todos e todas!
Porto Alegre, junho de 2021
História Social do Trabalho
Capítulo I
Processos trabalhistas e processos criminais como fonte
histórica: um balanço historiográfico dos últimos anos
Tatiane Bartmann 1
Bárbara Beatriz Silveira Darski 2
Introdução
O presente artigo possui o objetivo de fazer um balanço
historiográfico sobre as últimas pesquisas desenvolvidas na área da
História Social do Trabalho e que utilizam os processos judiciais como
fonte histórica, especialmente, os processos trabalhistas e os processos
criminais. A intenção é compreender as temáticas abordadas, os períodos
históricos privilegiados, bem como, os recortes teórico-metodológicos nas
últimas pesquisas de doutorado desenvolvidas nas diversas regiões do
Brasil que utilizaram, entre outras, as fontes processuais. O objetivo
principal é constatar as possibilidades e os caminhos de pesquisa que estão
se abrindo a partir dessas análises documentais, contribuindo assim, com
os pesquisadores que se interessam pela temática do trabalho e pretendem
se situar brevemente na historiografia produzida mais recentemente.
Foram, então, selecionadas as teses defendidas a partir do ano de
2010 até 2019, que estavam disponíveis no catálogo de teses e dissertações
da Capes, plataforma sucupira. Em uma busca inicial, se pode perceber a
grande quantidade de trabalhos desenvolvidos a partir dos processos
trabalhistas e processos criminais, nos últimos anos. Por esse motivo,
optou-se pelo recorte que abordaria apenas o conjunto de teses defendidas
1
Doutoranda – UFRGS; tati_bartmann@hotmail.com
2
Mestranda – UFRGS; darski.barbara@gmail.com
34 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
nos programas de pós-graduação em História, mais especificamente,
aquelas que dialogavam com a temática dos mundos do trabalho.
Enquanto era feito esse recorte, optava-se por abranger as teses de todos
os programas de pós-graduação do Brasil a fim de se ter também uma
ideia geral das regiões que mais se dedicam a essa temática.
A busca ocorreu através de palavras-chaves, como: “processos
trabalhistas”, “ações trabalhistas”, “Justiça do Trabalho”, “processos
crime”, “processos criminais”, “crime trabalho”, “autos criminais” e
“fontes judiciais”. Tendo em vista a grande quantidade numérica de
trabalhos, alguns filtros foram aplicados e verificou-se um a um se
correspondiam aos recortes previamente estipulados. Ao final do
levantamento de teses, chegou-se ao número de vinte e uma teses.
Ao longo do texto, esses trabalhos serão tratados em dois momentos
distintos, primeiro serão analisadas as teses que utilizam os processos
trabalhistas e, posteriormente, aquelas que utilizam os processos
criminais como fonte histórica. Ao final, serão feitas algumas
considerações comparativas sobre as temáticas e abordagens das obras.
Abordagens e perspectivas a partir dos processos trabalhistas
A partir das teses levantadas, se quer compreender a utilização dos
processos trabalhistas como fonte histórica, a fim de perceber as
contribuições dos historiadores nos últimos anos e as possibilidades de
pesquisas para uma melhor compreensão sobre o trabalho e das/os
trabalhadoras/es. Através de pesquisa realizada na base de dados da
Capes, com a utilização das palavras chaves “processos trabalhistas”,
“ações trabalhistas” e “Justiça do Trabalho”, foi possível encontrar doze
teses de doutorado defendidas nos últimos 10 anos, ou seja, desde 2010 até
2019, incluindo estes. Os trabalhos foram defendidos em diferentes
instituições do Brasil, como: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 35
(UFRGS), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade
de São Paulo (USP), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Fundação
Getúlio Vargas (FGV), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).
O ponto em comum entre esses trabalhos é o fato de todos utilizarem
os processos trabalhistas como fonte histórica, apesar de não ser a única
fonte consultada. Nessas pesquisas, são feitos cruzamentos de fontes, além
dos processos trabalhistas, são utilizados jornais, decretos, entrevistas,
entre outros. As teses selecionadas para essa breve análise da
historiografia recente sobre os mundos do trabalho, são:
Tabela 1. Teses - processos trabalhistas como fonte histórica (2010-2019)
Ano
Autor
Título
Instituição
2012
SPERANZA, Clarice
Cavando direitos : as leis trabalhistas e os conflitos
UFRGS
Gontarski
entre trabalhadores e patrões nas minas do Rio
REZENDE, Vinicius
Tempo, trabalho e conflito social no complexo
Donizete de.
coureiro-calçadista de Franca- SP (1950-1980)
Grande do Sul nos anos 40 e 50'
2012
2012
2014
SILVA, Maria Sângela de
A Justiça do Trabalho e os Trabalhadores em
Sousa Santos
Fortaleza (1946-1964)
COSTA, Francisco Pereira
Para a chuva não beber o leite. Soldados da
da
borracha: imigração, trabalho e justiças na
SILVA, Nauber Gavski da
O "mínimo" em disputa : salário mínimo, política,
UNICAMP
UNICAMP
USP
Amazônia, 1940-1945
2014
UFRGS
alimentação e gênero na cidade de Porto Alegre
(1940 - 1968)
2015
2015
SOUZA, Edinaldo Antônio
Trabalho, Política e Cidadania: Trabalhadores,
Oliveira
Sindicatos e Luta por Direiros (Bahia, 1945-1950)
SILVA, Claudiane Torres
O Tribunal Regional do Trabalho na cidade do Rio
da
de Janeiro durante da ditadura civil-militar (1964-
DROPPA, Alisson
Direitos Trabalhistas: Legislação, Justiça do
UFBA
FGV
1979)
2015
UNICAMP
Trabalho e Trabalhadores no Rio Grande do Sul
(1958-1964)
2015
LIMA, Cleidimar
Trabalho, Direitos Coletivos e os Princípios da
Rodrigues de Souza
Liberdade e da Autonomia Sindicais: Entre o "Justo
e o Injusto" nas Políticas, nas Leis e nos Tribunais
Trabalhistas
UFMG
36 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
2016
TAVARES, Marcelo Goes
Do Tecer da Memória ao Tecido da História:
UFPE
Operários, trabalho e política na indústria têxtil em
Fernão Velho (Maceió, AL, 1943-1961)
2016
SIMOES, Julia da Rosa
Na pauta da lei: trabalho, organização sindical e
UFRGS
luta por direitos entre músicos porto-alegrenses
(1934-1963)
2017
MEDEIROS, Adriana de
Histórias de Trabalhadores Nortistas no
Carvalho
Norte/Noroeste do Paraná (1940-1970)
UFU
Como já foi dito, todas essas teses utilizam os processos trabalhistas,
tanto individuais quanto coletivos, para compreender as disputas entre
trabalhadoras/es e seus respectivos patrões. Nesse sentido, todas as
pesquisas acima apontam para o importante papel desempenhado pela
Justiça do Trabalho como mediadora dessas relações. Encontramos assim,
alguns pontos comuns na abordagem feita pelos autores, entre eles, a
interpretação das/os trabalhadoras/es como sujeitos dotados de certa
autonomia e capacidade de reivindicar suas demandas na Justiça do
Trabalho seja através de mobilizações coletivas sindicais, seja iniciando
reclamações individuais nas Juntas de Conciliação e Julgamento, primeira
instância da JT. Assim, o chamado “mito da outorga” parece distante das
interpretações sobre os mundos do trabalho, pelo menos, nas teses
levantadas nos últimos dez anos.
Por sua vez, o enfoque de pesquisa difere nas teses apontadas e podese dividir em dois grupos temáticos de acordo com a problemática de
pesquisa. O primeiro grupo temático, parte da análise de certas categorias
de trabalhadoras/es ou setores produtivos, entre esses estão: Speranza
(mineiros de carvão/RS); Rezende (setor coureiro-calçadista/SP); Costa
(seringueiros/AM); Tavares (têxteis/AL); Simões (músicos/RS); Medeiros
(trabalhadores nortistas/PR). O segundo grupo temático de teses
centraliza a análise de pesquisa na atuação da Justiça do Trabalho e nas
disputas em torno de alguns pontos específicos da legislação trabalhista,
dialogando também com a teoria do direito. Diferentemente do primeiro
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 37
grupo, essas teses abordam a classe dos trabalhadores/as de maneira mais
ampla, sem definir e focar em uma única categoria. Cito: Mari Sângela
Silva (utilização da JT pelos trabalhadores/CE); Nauber Silva (disputas em
torno do salário mínimo/RS); Souza (questão da cidadania operária/BA);
Claudiane Silva (principais questões trabalhistas nos processos
coletivos/RJ); Droppa (funcionamento do poder normativo/RS); Lima
(trabalhadores e proteção sindical/CE).
Como se pode perceber, a análise do trabalho urbano prevalece entre
as temáticas desenvolvidas nos últimos anos. Entre as doze teses
levantadas, apenas duas tratam sobre o trabalho rural. São elas: a pesquisa
de Francisco Pereira da Costa intitulada “Para a chuva não beber o leite.
Soldados da borracha: imigração, trabalho e justiças na Amazônia, 19401945” onde o autor analisa principalmente as dificuldades de acesso dos
seringueiros à Justiça do Trabalho. Sua pesquisa denuncia as péssimas
situações às quais os seringueiros estavam expostos, sem leis reguladoras
e com apenas um contrato de fachada que na prática não garantia nenhum
tipo de direito ou benefício aos seringueiros, suas condições de trabalho se
aproximavam a semi-escravidão, conforme o autor.
A outra tese que também aborda questões sobre o trabalho rural é de
Adriana de Carvalho Medeiros e intitula-se “Histórias de Trabalhadores
Nortistas no Norte/Noroeste do Paraná (1940-1970)”. Em sua análise, a
autora busca reconstruir as histórias e experiências dos trabalhadores
migrantes, vindos de outras regiões do Brasil, como o nordeste, os quais
chegaram na região norte/noroeste do Paraná e fizeram o trabalho
pesado, os piores serviços de menor remuneração. Um ponto em comum
presente nesses dois trabalhos, é o forte envolvimento pessoal dos
pesquisadores com a história da região, apesar das dificuldades de acesso
às fontes escritas, entre elas os processos trabalhistas, fica claro que
reconstruir a história desses sujeitos é também visibilizar e compreender
38 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
o seu passado, as suas histórias. É interessante atentar que essas duas
pesquisas foram desenvolvidas em instituições da região sudeste, Costa
estava vinculado à Universidade de São Paulo (USP) e Medeiros à
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), contrariando, possivelmente,
as expectativas. Com isso, se pode inferir que o trabalho rural está
ganhando novos olhares e compartilhando resultados com pesquisas
voltadas ao trabalho urbano industrial, as quais ainda são maioria quando
se trata da utilização dos processos trabalhistas como fonte histórica.
Sobre o recorte temporal, entre as teses analisadas, sete partem da
década de 1940 e, de modo geral, seus esforços chegam até a década de
1980. O fato de iniciarem na década de 1940 está relacionado ao período
de instalação da Justiça do Trabalho no Brasil. Embora a JT já estivesse
prevista na carta constitucional de 1934, a qual teve pouco tempo de
duração, a proposta não saiu do papel. Debates eram travados em torno
dos fundamentos e regulamentações da JT, um dos mais significativos
debates envolveu Oliveira Viana e Waldemar Ferreira, na década de 1930.
Com a outorga da Constituição de 10 de novembro de 1937, a Polaca, a
criação da JT era novamente prevista. Mas sua efetiva instalação ocorreu
somente no ano de 1941, vinculada ao poder executivo.
Outra consideração relevante sobre o recorte temporal priorizado
nessas pesquisas, é o fato de que apenas duas obras abordam
especificamente os períodos ditatoriais da história do Brasil. Uma delas é do
autor, já citado, Costa que trata sobre as dificuldades que os seringueiros da
Amazônia tinham para acessar a Justiça do Trabalho no contexto do Estado
Novo de Getúlio Vargas. A outra pesquisa é de Claudiane Torres da Silva que
analisou as ações trabalhistas impetradas pelos sindicatos na cidade do Rio
de Janeiro no período da ditadura civil-militar.
Outras quatro teses acima levantadas, tratam sobre as questões
trabalhistas em períodos ditos democráticos da história do nosso país, são
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 39
contextos que se estendem desde 1945 até 1964 e 1980 até 2003. No
entanto, a maioria das pesquisas, isto é, seis teses possuem abordagens
sobre os mundos do trabalho em períodos históricos que transitam entre
contextos autoritários e democráticos, o que contribui para a compreensão
das possíveis lutas das/os trabalhadoras/es em situações de extrema
repressão e dos entraves enfrentados por elas/es mesmo nos períodos
ditos democráticos.
Clarice Gontaski Speranza, buscando compreender o processo de
disputas no campo jurídico entre trabalhadores e patrões das minas de
carvão do Rio Grande do Sul, nos anos 40 e 50, percebeu uma mudança
na forma de reivindicar direitos entre o período ditatorial varguista e o
momento de reabertura no Governo Dutra. Com o fim do Estado Novo, a
organização de greves voltou a cena diante de um certo descrédito, uma
descrença dos trabalhadores sobre a atuação da JT em benefício dos seus
interesses. Conforme Speranza, “parecia claro aos mineiros em 1946 o
caráter ‘infrutífero’ das reclamatórias trabalhistas” (SPERANZA, 2012, p.
255). E nesse sentido, os processos trabalhistas diminuíram e as greves
aumentaram.
Dessa forma, foram brevemente apresentadas as teses defendidas
nos últimos anos, suas temáticas e abordagens sobre o trabalho e os
trabalhadores a partir da análise dos processos trabalhistas, entre outras
fontes utilizadas. Na sequência, serão feitas algumas considerações sobre
as pesquisas baseadas nos processos criminais como fonte da história
social do trabalho.
Abordagens e perspectivas a partir dos processos criminais
Dentro do campo que denominamos História Social do Trabalho,
muitas são as pesquisas que utilizam como fontes os processos criminais
ou os vastos documentos que compõem os fundos policiais e judiciários,
40 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
documentos esses que se espalham pelos mais diversos arquivos dos
estados brasileiros e internacionais. Articular pesquisas de história do
trabalho com história do crime, não é uma novidade. Desde a década de
1980, trabalhos como os de Fausto (1984), Chalhoub (1986) e Machado
(1987) começam a utilizar como fontes de pesquisa os processos criminais
articulando temáticas que acabariam por ser incorporadas pelo campo.
Apesar desta metodologia ter sido bem acolhida e aceita dentro da
área, sempre é importante fazermos um balanço do que é produzido.
Questões como: como as pesquisas mais recentes estão se articulando para
análise desse corpus documental? e mais ainda, como esse corpus está
sendo utilizado dentro do campo da história do trabalho? acabaram por
surgir e compreendemos que revisitar estas pesquisas é importante para
articularmos pesquisas futuras.
Pensando em colaborar com as respostas para estas dúvidas,
objetiva-se fazer um levantamento das teses produzidas no Brasil nos
últimos dez anos e que estejam alocadas dentro do campo que
denominamos História Social do Trabalho, como já citado anteriormente,
mas que utilizem, fundamentalmente, documentos provenientes dos
fundos criminais, policiais e judiciários, analisando brevemente como tais
pesquisas se articulam ou não, em esfera global.
Foi acessado, então, o repositório virtual denominado “plataforma
sucupira” hospedado dentro do sítio da CAPES e que possui o acervo de
todas as teses e dissertações produzidas no país nos últimos anos. No
campo de busca, procurou-se por palavras-chave como “processos crime”,
“processos criminais”, “crime trabalho”, “autos criminais” e “fontes
judiciais”. O volume numérico dos resultados foi extremo, no entanto,
utilizando um filtro mais específico ao que foi proposto analisar neste
artigo, destacou-se apenas as teses produzidas nos últimos dez anos nos
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 41
Programas de Pós- Graduação em História e com sua ênfase voltada para
a História Social.
Se em um primeiro momento nos chamou a atenção o volume de
pesquisas que apareceram ao digitarmos as palavras-chave na busca
ampla, na segunda fase do levantamento das teses, nos chamou a atenção
a pouca quantidade de produção atual que se encaixavam nos moldes do
recorte proposto. Apenas nove teses foram selecionadas ao final da busca,
os números preliminares dão conta de que a grande parte da produção
acadêmica sobre a temática, hoje, se concentra dentro das dissertações
produzidas e não das teses. A partir deste levantamento, é possível
observar também que existe uma predominância do eixo Sudeste e Sul do
país na produção de trabalhos com estas características. Dentro do eixo
Sudeste e Sul, se destacam universidades como: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade
Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Apesar do destaque da região sudeste, a região nordeste também
aparece com trabalhos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
Universidade Federal do Ceará (UFC).
É interessante mencionar, que as regiões sudeste e sul desde os anos
1980 se destacam na produção de pesquisas sobre História do Crime e
História do Trabalho, esta tendência parece não ter sido superada, no
entanto, podemos constatar que existe um alargamento sobre os locais
pesquisados além de um alargamento das pesquisas feitas sobre as
relações de trabalho e os sujeitos inseridos no contexto do trabalho no
campo. Se, anteriormente as pesquisas voltavam seus esforços para os
trabalhadores urbanos e suas organizações, atualmente, muitas são as
pesquisas que envolvem as dinâmicas dos mundos do trabalho rural.
42 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Quando analisamos o recorte temporal das teses desenvolvidas no
último decênio com a temática anteriormente citada, percebemos que
existe um alargamento temporal, onde os sujeitos escravizados também
são levados em consideração enquanto trabalhadores. Apesar da lógica ser
diferente da dos trabalhadores livres, as dinâmicas sócio-históricas são
muito parecidas, seguindo uma tendência de revisitar os recortes
temporais que anteriormente eram consenso nos mundos do trabalho,
este esforço se deve sobretudo pelos trabalhos desempenhados por
pesquisadores do pós-abolição.
Tabela 2. Teses – fontes criminais, policiais ou judiciárias (2010-2019)
Ano
Autor
Título
Instituição
2014
JUNIOR, Darlan De
Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra,
UFC
Oliveira Reis
trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX
SILVA, Roger Costa da
Os Crimes e os Direitos: lutas escravas em Pelotas/RS
2014
UFRGS
(1845-1880)
2014
SANTOS, Maria Emilia
Os significados do 13 de maio: a abolição e o imediato
Vasconcelos dos
pós-abolição para os trabalhadores dos engenhos da
UNICAMP
zona da mata sul de Pernambuco (1884-1893)
2015
2015
CARVALHO, Philipe
Trabalhadores, associativismo e política no sul da
Murillo Santana de
Bahia (Ilhéus e Itabuna, 1918-1934)
PANTOJA, Leticia Souto
Trilhos, veios e caminhos da cotidianeidade das
UFBA
PUC/SP
camadas populares de Belém: 1918-1939
2015
SANTOS, Carlos Meneses
Trabalhadores em movimento: horizontes abertos em
de Sousa
Marechal Cândido Rondon-PR Segunda metade do
LEITE, Valeria de Jesus
Estado, movimentos sociais e as teias históricas da
UFU
século XX e início do século XXI
2016
UFU
sustentabilidade no desenvolvimento do norte de
Minas nos anos 1990
2016
2017
MIYASAKA, Cristiane
Os trabalhadores e a Cidade: A Experiência dos
Regina
Suburbanos Cariocas (1890-1920)
SOUZA, Flavia Fernandes
CRIADOS, ESCRAVOS E EMPREGADOS: O serviço
de
doméstico e seus trabalhadores na construção da
UNICAMP
UFF
modernidade brasileira (cidade do Rio de Janeiro,
1850-1920)
Além das linhas gerais tratadas até aqui, sobre o conteúdo específico
destas teses, podemos observar que múltiplos são os assuntos e as formas
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 43
de abordagem, mesmo que todos pertençam a uma grande área, a da
história social do trabalho. No intuito de enriquecer o debate, falaremos
brevemente sobre o conteúdo de cada uma delas, agrupadas por
proximidade temporal.
Entre os trabalhos desenvolvidos sobre o período anterior a abolição
e nos anos que imediatamente se seguem, destacam-se as pesquisas de
Junior (2014), que trata sobre as relações estabelecidas entre senhores de
escravos e trabalhadores ainda cativos na segunda metade do século XIX,
seu recorte espacial é a então Província do Ceará, com foco na região do
Cariri, local predominantemente rural. O autor aponta que seus principais
objetivos são: analisar as contradições resultantes da desigualdade social
do período, bem como as práticas de controle, os conflitos que essas
práticas geravam e as resistências geradas nesse processo. O trabalho de
Junior (2014), se assemelha quanto ao seu recorte temporal ao trabalho de
Silva (2014). Apesar de Silva (2014) tratar sobre um recorte espacial um
tanto quanto distante, já que sua pesquisa se desenvolve sobre a cidade de
Pelotas (RS), ele também analisa a segunda metade do século XIX,
colocando os cativos enquanto trabalhadores e investiga sobre como os
assassinatos de capatazes nas charqueadas3 tinham relação com a luta
pelos direitos dos cativos, numa perspectiva de resistência a opressão
contra os castigos físicos sofridos.
Pensando também nas linhas sociais, suas continuidades e
permanências no contexto do pós-abolição, Santos (2014), investiga quais
eram as experiências sociais que trabalhadores dos engenhos da Zona da
Mata Sul de Pernambuco sofreram ao longo do processo de abolição,
principalmente no que diz respeito aos conflitos e permanências ocorridas
entre senhores de engenho e os novos trabalhadores livres. Assim, os
3 Fazendas produtoras de charque. Foi o primeiro grande produto de exportação produzido pelo estado do Rio
Grande do Sul.
44 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
trabalhos até aqui explorados se assemelham principalmente pelos seus
recortes temporais e por serem desenvolvidos em localidades onde o
trabalho no campo era predominante. Sobre o mesmo período temporal,
mas com enfoque nas regiões urbanas, destacamos os trabalhos de Souza
(2017) e Miyasaka (2016). Chama a atenção que ambas as autoras
analisam a cidade do Rio de Janeiro e tem seu ano final delimitado como
os anos 1920. A primeira analisa as dinâmicas sociais que envolvem a
categoria dos criados domésticos e a segunda analisa a formação dos
subúrbios cariocas, focando seu estudo nos primeiros sujeitos que
habitaram essas localidades. Apesar de não poder afirmar, acredita-se que
os sujeitos estudados por Souza (2017) e por Miyasaka (2016) deveriam se
cruzar em algum momento, sendo quem sabe, até os mesmos.
Pensando em um segundo grupo de trabalhos, citamos as teses de
Pantoja (2015) e Carvalho (2015), ambas analisam o período da primeira
metade do século XX. A primeira, foca seus esforços em discutir sobre as
sociabilidades de trabalhadores urbanos pobres, em um período em que a
capital do Pará, Belém, estava se tornando uma metrópole por conta da
expansão da exploração da borracha, produto exportado e altamente
lucrativo. Carvalho (2015), por sua vez, analisou o associativismo operário
e suas tentativas de inserção política nas cidades de Ilhéus e Itabuna, na
Bahia.
O terceiro e último grupo de teses, é o que trata do período do final
do século XX e início do XXI. Nos trabalhos de Santos (2015) e Leite (2016),
vemos a tentativa de análise das dinâmicas sociais dos trabalhadores
urbanos de duas regiões diferentes. O primeiro foca suas análises na
cidade de Marechal Cândido Rondon, Paraná, enquanto a segunda autora
amplia seu enfoque para toda a região do norte de Minas Gerais. Ambos
se inserem no período final da Ditadura Militar, passando pelos primeiros
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 45
anos da redemocratização do país, períodos esses, sabidamente
turbulentos.
Conclusão
O balanço de teses, brevemente apresentado, nos possibilitou
analisar como as dinâmicas dos mundos do trabalho vem sendo discutidas
e compreendidas dentro do campo historiográfico no qual se inserem.
Dessa forma, pudemos perceber que os recortes temporais foram
ampliados, abrindo margem para questionamentos de antigos
paradigmas, já parcialmente superados. É o caso do “paradigma da
ausência”, segundo o qual se compreendia que a escravidão havia legado
ausência de cultura política ao povo brasileiro. Autores como Chalhoub e
Silva (2009) e Nascimento (2016), além de críticos a essa ideia, colocaram
em pauta a divisão existente entre os pesquisadores cujos objetos de
pesquisas eram as lutas de trabalhadores/as pobres e aqueles que
pesquisavam a escravidão. Reconhecendo o muro de Berlim
historiográfico e o ainda pequeno (embora crescente) número de trabalhos
que abordam as experiências de trabalhadores/as negros/as, suas
instituições e movimentos, se quer apontar novas possibilidades de
pesquisas e leituras das fontes processuais.
Essa separação entre temáticas sobre o trabalho livre e o trabalho
escravo vem sendo superada, em parte, a partir de questionamentos sobre
os significados da liberdade para os trabalhadores ditos “livres”, mas
superexplorados,
tanto
no
período
escravista
onde
conviviam
trabalhadores livres e escravizados, quanto no contexto do pós-abolição.
Pesquisas que fazem esse tipo de diálogo entre o trabalho livre e o escravo,
utilizam fontes como os processos criminais. É possível observar que as
fontes criminais, em contraponto às fontes da Justiça do Trabalho,
possibilitam a abordagem de um período temporal muito mais longo. A
46 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
recente criação da JT, em comparação com a Justiça Comum, levou os
pesquisadores a análises que se iniciam em período muito mais recente, a
partir da década de 1930.
Outro ponto importante que costuma distinguir as pesquisas nos
processos crimes e trabalhistas, é que os primeiros apresentam
explicitamente a cor dos sujeitos envolvidos. Já, os processos trabalhistas
não trazem esse tipo de informação. No entanto, acreditamos que a
ausência dessa informação, não deve impedir a compreensão das
opressões com relação a raça, pelo contrário, o questionamento pode
partir dessa ocultação e buscar entender “porque a cor não consta entre as
informações nas ações trabalhistas”.
Conceitos importantes como do “trabalho escravo contemporâneo”
são utilizados para caracterizar as péssimas condições de alguns sujeitos,
os quais, como vimos, não tinham acesso a Justiça do Trabalho, conforme
Costa (2014). Nesse sentido, é interessante compreender e problematizar
sobre “quais trabalhadores/as tiveram acesso e reclamaram na JT”. As
diferentes formas de opressões, entre elas a de raça, pode e deve ser
problematizada nas pesquisas que utilizam fontes processuais fruto da JT.
Se os recortes temporais estão sendo ampliados e novos paradigmas
aos poucos ressignificados, percebemos também, que é crescente o
número de pesquisas que analisam os mundos do trabalho com foco nas
lutas e nos sujeitos que habitam o trabalho rural. Apesar de os
trabalhadores urbanos continuarem com destaque na cena historiográfica,
é notável o movimento de avanço em direção aos trabalhadores rurais.
Contudo, este artigo teve como objetivo principal fazer um balanço
das produções mais recentes sobre a História Social do Trabalho, que
tivessem como base fontes criminais e trabalhistas, não necessariamente
juntas, apesar de compreendermos o grande potencial de pesquisas que se
utilizam desses dois tipos documentais, tendo em vista, as riquezas das
Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 47
fontes. Acreditamos que para além das problematizações até aqui
explicitadas, este trabalho pode contribuir de forma geral com jovens
pesquisadores de modo a criar uma intersecção entre o que já foi
produzido e o que ainda está sendo gestado dentro dos programas de pósgraduação em História das diversas universidades do país.
Referências
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50 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
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Capítulo II
Fábrica Rheingantz: disciplina fabril, divisão
sexual do trabalho e a resistência cotidiana
das operárias (Rio Grande, 1910 a 1968)
Caroline Duarte Matoso 1
[...] a mulher mesmo é que eu acho que mais se adapta para esse tipo de
serviço. É muito minucioso, é muito cansativo e o homem não tem essa
capacidade de absorção do trabalho como a mulher tem. Fazer sempre
exatamente a mesma coisa, de modo repetitivo. Acredito que a mulher tem...
é mais bem armada para isso (ALMEIDA, 1987, p. 8).
O relato descrito acima sobre o trabalho têxtil não representa apenas
a opinião individual do operário Aureo Almeida Nunes, mas corresponde
aos sensos culturais e morais da época por mim estudada: 1910 a 1968. A
compreensão de que o trabalho têxtil é naturalmente uma atividade
feminina tem como resultado os elevados números de trabalhadoras que
compunham a mão de obra desse setor, que, como nos apontam Perrot
(2008) e Saffioti (2013), ocorreu de forma internacional.
Neste capítulo, irei realizar uma discussão sobre como a divisão
sexual do trabalho se expressou no interior da Fábrica Rheingantz e como
a disciplina fabril estava ligada aos sensos de feminilidade da época. Para
isso, utilizarei como fonte os cadernos do setor administrativo da empresa
e entrevistas orais realizadas a partir da metodologia da História Oral. Essa
é uma tentativa de aproximação entre os estudos de gênero e a história
social do trabalho, acreditando que o encontro entre esses campos de
1
Doutoranda - PPGH/UFRGS; historiamatoso@gmail.com
52 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
estudos tem proporcionado um olhar mais atento e complexo sobre as
experiências da classe trabalhadora e sua história.
Em 1873, instalou-se na cidade de Rio Grande (RS) a primeira
empresa têxtil do estado, sob o nome de Fábrica Rheingantz Nacional de
Tecidos e Panos de Rheingantz e Vater. Os proprietários, Carlo Guilherme
Rheingantz, Miguel Tito de Sá e Hermann Vater, ao observarem as
transformações que estavam ocorrendo na Alemanha e Inglaterra,
resolveram importar para o Brasil a indústria têxtil, colaborando com a
industrialização e urbanização de Rio Grande (RS) (FERREIRA, 2013).
Em 1879, a Fábrica Rheingantz contava com um número de 900
funcionárias e 100 costureiras que trabalhavam em suas residências,
constituindo-se como uma das principais indústrias têxteis do estado
(LONER, 1999). De Acordo com Britto (2011), em 1907, a empresa
compunha as 100 maiores indústrias têxteis do país, contabilizando capital
de 5.000 contos de réis, 1.008 trabalhadoras(es) e valor de produção em
1710 contos de réis.
Após a Fábrica Rheingantz dar início ao processo de industrialização
da localidade, outras empresas se instalaram na região, como Leal, Santos
& Companhia, empresa de conservas alimentícias, Fábrica Pook & Cia, de
charutos e a Companhia de Fiação e Tecelagem, fundada em 1906
(MARTINS; PIMENTA, 2004). As indústrias que se estabeleceram no
município de Rio Grande eram de grande porte, de expressivo capital
financeiro internacional e nacional e de ramos produtivos pouco
diversificados. Esse cenário se diferencia de Porto Alegre, pois nesta se
estabeleceram indústrias de menor porte e ramos produtivos
diversificados (LONER, 1999).
Compreendendo o único porto marítimo do estado, Rio Grande foi
um importante polo industrial do Brasil e palco de intensas lutas operárias,
ficando conhecida como “a cidade vermelha” (SEGUNDO, 2012). A
Caroline Duarte Matoso | 53
primeira
greve
realizada
no
município
foi
orquestrada
por
trabalhadoras(es) da fábrica Rheingantz, indicando seu pioneirismo não
só no processo industrial, mas também da sua mão de obra na luta por
melhores condições de trabalho. Conforme Loner escreveu sobre a greve,
“o movimento na Rheingantz parou totalmente a fábrica, incluindo
mulheres e crianças, durante uma semana” (2001, p. 303).
Em 1884, construíram-se residências para o operariado, ao lado das
instalações fabris, formando, assim, a vila operária Rheingantz, localizada
hoje na atual avenida Rheingantz da cidade de Rio Grande (RS). Além das
casas de moradia, havia na vila operária creche e escola infantil, salão de
festas, biblioteca, corpo de bombeiros e um clube social.
O município de Rio Grande foi polo de atração para imigrantes de
diferentes nacionalidades da Europa, que viam na região uma
oportunidade de desenvolver suas vidas laborais. O empresário da fábrica
Rheingantz, Carlos Guilherme Rheingantz, de origem alemã, procurava
empregar como mão de obra especializada estrangeiros europeus, de
preferência alemães.
Havia uma segregação ocupacional baseada na nacionalidade e sexo
do(a) trabalhador(a). Os cargos de mestre e contramestre eram ocupados,
sobretudo, por trabalhadores imigrantes. Essa foi uma prática recorrente
nas indústrias brasileiras, expressa na política de incentivos a Europeus
para virem trabalhar no Brasil, no início da industrialização do País.
Se pensarmos em termos de divisão sexual do trabalho, as operárias
estavam em maior número na tecelagem, ocupação de menor prestígio
social e remuneração. Conforme os cadernos do setor administrativo
apontam, os trabalhos de preparação da lã bruta eram exercidos,
exclusivamente, por trabalhadores homens. Importante ressaltar que esta
é uma atividade que requer força muscular, sendo próxima aos trabalhos
realizados no meio rural. Já as atividades de fiação e tecelagem eram
54 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
desempenhadas por trabalhadoras e trabalhadores menores de idade. Os
cargos de administração e supervisão eram ocupados, sobretudo, por
trabalhadores do sexo masculino.
Esse é um fenômeno que ficou presente na memória das(os)
operárias(os) da Fábrica Rheingantz, na qual, para estes, “para trabalhar
em máquinas era só mulher”. Percebe-se que o senso moral de que as
mulheres executam trabalhos mecânicos, repetitivos e monótonos esteve
presente no imaginário operário e dos empresários da Rheingantz, em um
processo de internalização da cultura dominante (MATOSO, 2018).
Conforme o operário Dario Camposilvan:
Eu entrei para a União Fabril em 11 de 1949. A minha atividade consistia em
manutenção e consertos das máquinas da tecelagem. Vim da Itália. Vim direto
para trabalhar na Fábrica Rheingantz. Já tinha um cargo como contramestre
[...]. Tinha 20 contramestres. Cada contramestre assumia 22 máquinas. Quem
trabalhava nas máquinas era só mulher. Os homens eram só para a
manutenção das máquinas, entendeu? Só o contramestre tinha 22 máquinas
com... responsabilidade! Mas, quem trabalhava na tecelagem eram as
mulheres. Neste ramo a mulher tem mais habilidade que o homem
(CAMPOSILVAN, 1981, p. 9/10).
Alguns apontamentos teóricos nos ajudam a compreender esse
fenômeno. Como aponta Kergoat (2009), a divisão sexual do trabalho é
decorrente das relações sociais do sexo, sendo historicamente adaptada
conforme a sociedade e o tempo histórico. Esta tem por característica a
destinação e separação das atividades que serão desempenhadas por
homens e mulheres na sociedade: aos homens seriam destinadas as tarefas
produtivas e às mulheres as tarefas reprodutivas. A aplicação dessa
distinção é legitimada pela ideologia naturalista. Conforme Kehl, a
sociedade moderna criou discursos que orientaram as mulheres para um
destino universal: o do lar e da maternidade.
Caroline Duarte Matoso | 55
No Brasil, de acordo com os estudos de Rago (1997), esses discursos
eram fomentados e construídos por cientistas, médicos sanitaristas,
imprensa comercial e operária, contribuindo, assim, para a naturalização
e legitimação da divisão sexual do trabalho. Como aponta Kergoat (2009),
a ideologia naturalista reduziu as práticas sociais a um destino biológico
da espécie, que seria universal. Esse processo gerou uma dicotomia a
partir do gênero entre a esfera pública e esfera privada, sendo a última
vista enquanto pertencente ao sujeito feminino e a primeira enquanto
masculina.
Biroli (2018) comenta sobre o conceito de domesticidade. Para a
pesquisadora, a dicotomia entre a esfera privada e a esfera pública a partir
dos sexos tem como consequência a compreensão de que as tarefas
domésticas e reprodutivas devem ser exercidas prioritariamente pelo
sujeito feminino. Kergoat (2009) ressalta que a divisão sexual do trabalho
tem dois princípios organizativos, o primeiro seria a separação, como já
mencionamos. O segundo seria o prestígio social. É aplicado maior
prestígio social aos trabalhos vistos enquanto masculinos. Esse
movimento criou hierarquias de poder entre homens e mulheres na
sociedade. Para além de possuírem menor prestígio social que o trabalho
produtivo, as atividades domésticas, como bem nos lembra Davis, são
“Invisíveis, repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas – esses
são os adjetivos que melhor capturam a natureza das tarefas domésticas”
(DAVIS, 2016, p. 240).
Todavia, como bem nos lembra as feministas e pesquisadoras negras,
as mulheres negras e brancas empobrecidas nunca puderam ocupar
apenas o ambiente privado, necessitando trabalhar fora de casa para a sua
subsistência e de suas famílias (DAVIS, 2016). Logo, o pertencimento
feminino apenas na esfera privada foi uma vivência de poucas mulheres.
56 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Conforme Fraccaro (2016), em fins do século XIX e início do século
XX, as mulheres e crianças compunham aproximadamente 70% da mão
de obra no Brasil. De acordo com Saffioti (2013), a inserção de mulheres e
crianças em fábrica permitiu o aumento do lucro dos empresários, que
pagavam salários inferiores a esses segmentos da sociedade. Aravanis
comentando sobre a industrialização de Porto Alegre relata que o salário
destinado aos operários Cia. Fiação e Tecidos Porto-Alegretense e da Cia.
Fabril era de 7 mil réis aos homens e 4 mil réis às mulheres.
O número de mulheres trabalhando no setor da indústria também
era considerável. Conforme Loner (1999), discorrendo sobre os
municípios de Pelotas e Rio Grande, as empresas que mais contratavam
mulheres eram dos setores de vestuário, têxtil e alimentícias. Essa é uma
constatação importante. Percebe-se que a divisão sexual do trabalho estava
presente nos ramos de produção e na distribuição de cargos no interior de
uma mesma empresa. O trabalho nos setores de força pública e
extrativista, interditados para as mulheres, recorre à imagem simbólica da
masculinidade, no qual coragem e sacrifício estão presentes. Sabe-se, por
meio da literatura sobre gênero, que força física e brutalidade são
atribuídas aos homens e que a educação formal e informal os condiciona
a exercê-las, modelando, assim, seus papéis sociais (BILHÃO, 2005). A
construção social que remete ao sexo masculino a força e à mulher a
fragilidade está presente no mundo do trabalho.
No setor industrial, as fábricas têxteis, de vestuário e alimentícias
foram as que mais empregaram as mulheres nas cidades de Pelotas e Rio
Grande do Sul, como já exposto. Nesses setores, há a demanda, por ser um
trabalho minucioso, do perfil da mão de obra ser paciente, possuir
perseverança e ter habilidades manuais, como dedos ágeis.
Notou-se que a sociedade moderna criou discursos e práticas que
direcionam a mulher a adquirir essas habilidades ao longo da sua
Caroline Duarte Matoso | 57
trajetória de vida, na associação do papel feminino à atividade reprodutiva
(KEHL, 2001). As atividades de mãe, esposa, preocupada com o cuidado ao
outro e, consequentemente, a reprodução da vida são estendidas ao
trabalho fora do ambiente doméstico, como é o caso da divisão sexual por
ramos de produção. Como Souza-Lobo comenta: “Assim, os dedos ágeis, a
paciência, a resistência à monotonia são consideradas próprios da mão de
obra feminina” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 149).
Trabalho industrial e disciplina laboral
No Rio Grande do Sul, de acordo com o recenseamento do IBGE
(Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico), em 1950, havia 1.421.98
sujeitos urbanos e 2.742.841 sujeitos rurais. Isso significa que a maior
parte da população ainda se encontrava no meio rural, exercendo
trabalhos ligados ao campo. A industrialização iniciada no século XIX não
havia revertido a maioria de camponesas e camponeses do Brasil.
Os industriais precisaram incumbir novos hábitos nas(os)
camponesas(es) que deixavam os campos para trabalhar nos centros
urbanos. Distintamente do trabalho industrial, o trabalho no meio rural
estava ligado à natureza, com as estações e o horário solar, o que
Thompson (2016) descreveu como orientação do tempo pelas tarefas.
Desvincular a mão de obra desses hábitos foi um dos percursos trilhados
pelos empresários de indústrias.
Ao pesquisar os cadernos administrativos da empresa Rheingantz,
constatou-se que a disciplina fabril estava relacionada aos sensos de
feminilidade da época, correspondendo a um processo de incumbir novos
hábitos às(aos) operárias(os). O trabalho industrial demandava um outro
trabalhador, obediente que realizasse tarefas repetitivas. O processo de
incumbir novos hábitos aos trabalhadores se realizou a partir de
penalização de comportamentos vistos como “desviantes”.
58 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
O trabalho industrial requeria trabalhadores mecânicos, que se
sentassem em frente às máquinas de tear e produzissem ao máximo.
Atitudes e comportamentos que pudessem desviar o foco da produção e
baixar o nível de produtividade não eram tolerados, sendo passíveis de
punição. Em uma sala de vidro, localizada acima da tecelagem, o mestre
de sessão observava o ritmo de trabalho das operárias. Conforme a fala da
tecelã Soeli Botelho:
Gaiola era uma… A gente chamava de gaiola porque ela ficava ao alto. [...]
Aquela peça [...] A sala dele. [...] Com uma escada, então era tudo envidraçado.
Então nós chamávamos de gaiola aquilo ali, e dali ele via toda a seção. [...]
Controlava tudo lá de cima (BOTELHO, 1981, p. 29).
O sentimento de monitoramento era constante entre as operárias. As
penalidades variavam conforme a infração cometida: redução salarial ou
demissão. Nos cadernos do setor administrativo da empresa,
averiguaram-se quais os motivos dessas punições. No caderno referente a
agosto e dezembro de 1910, encontram-se diferentes motivos de
penalidades, tais como “falta de respeito ao superior”; “multadas por
serviço mal feito”; “dispensado por ter agredido/maltratado seu
companheiro”; “multada por grande preguiça”; “multadas por
brincadeiras”; “multadas por abandonar seguidamente seus lugares”;
“negligência”; “conversar durante o serviço”; “multadas por desligar a
máquina antes do apito tocar” ; “sair da repartição antes do apito tocar”;
dar falsas informações; “quebra de máquinas e/ou estragar fio”; “por ter
faltado ao ensaio de bombeiros”; “dispensado por estar aos gritos no
serviço”; “dispensados até 2º ordem por mau comportamento”; “multadas
por falta de atenção ao serviço”.
No caderno referente a novembro e dezembro de 1923, encontramse os seguintes motivos de penalidades: “dispensada por não cumprir
Caroline Duarte Matoso | 59
ordem”; “despedido por briga”; “despedido por estar fumando no serviço”;
“despedido por ter agredido o mestre”.
Os apontamentos teóricos do autor E. P. Thompson (2016) nos
ajudam a compreender esse fenômeno. Discorrendo sobre a Revolução
Industrial na Inglaterra e na Alemanha durante os séculos XVIII e XIX,
Thompson comenta que as(os) trabalhadoras(es) estavam sofrendo uma
pressão de cima para baixo para reformular a sua cultura. A urbanização,
as longas horas laborais nas fábricas e as novas condições de trabalho
demandavam um novo ser social: disciplinado e rígido. A inclusão de uma
nova tecnologia decorrente da industrialização requeria funcionários
mecânicos, que realizassem as suas tarefas de forma repetitiva e
monótona. Era necessário regular o tempo, na tentativa de eliminar a
ociosidade.
As multas endereçadas aos homens eram em sua maioria por motivo
de briga, agressão e fumar no ambiente de trabalho. As infrações
endereçadas às mulheres eram por conversar demais, rir alto, sair muitas
vezes da máquina, levantar-se antes do apito tocar, desobedecer ao
superior, por preguiça, entre outras. Essas constatações demonstram que
a masculinidade hegemônica e a feminilidade estavam presentes no
ambiente fabril Rheingantz. Entendo enquanto feminilidade um conjunto
de discursos que pretendem criar um modelo de mulher dócil, passiva e
obediente. Todavia, a existência de infratoras aponta que as mulheres não
aceitavam os sensos de feminilidade a elas esperado.
O sistema rígido de penalidades e de monitoramento do trabalho das
operárias da Fábrica Rheingantz esteve presente durante todo o período
de funcionamento da empresa com o objetivo de disciplinar os corpos
operários. A narrativa do desenhista técnico Aureo Almeida nos ajuda a
compreender essa dinâmica:
60 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
E sem que elas percebessem lá da minha mesa... estava aqui o cronômetro,
não é? Funcionando e contando as carreiras que elas faziam e vendo a
quantidade de nós produzidos. E reparei que a produção caía e ia das 10:30 às
11:15, que era a hora que saía as menores de idade. De tarde entravam à 1 hora.
Quando era mais ou menos 3 horas estavam com outro pique de produção e
dali a coisa ia declinando. Declinando até que às 16:30 até às 17 horas não
faziam mais nada. Um pouco era cansaço, porque é difícil um trabalho físico.
Tem que dar nó por nó a mão e abrir com os dedos da mão esquerda os... ah,
o urdume. E aqueles fios que vêm no tear de tapetes eles são dispostos
verticalmente. Então, com os dedos da mão direita se entrelaçava o fio da lã e
puxa (tosse). Esse é o nó. Então, esse trabalho é muito cansativo e aí eu troquei
o outro pique. Eu determinei, mas não sem antes falar com a direção da
companhia, e das 9 horas às 9:15 eu determinei que todo mundo parasse de
trabalhar. Não queria ninguém trabalhando. Todo mundo tomando café com
aquelas “tracanases” de pão e mais. Sem preocupação nenhuma.
Tranquilidade tomando o seu café. Isto é, descasando. E às 9:15 pegavam outra
vez no serviço. Com isso eu provoquei um outro pique e a produção
simplesmente aumentou de 5 mil para 7 mil e 500 nós. 50% da produção é
uma coisa, é um milagre, porque qualquer empresa para aumentar 10% da
produção gasta fortunas. Nós conseguimos aumentar lá 50% da produção.
Todos os livros de produção lá, de documentação, devem ter sido guardados,
que comprovam isso. E dependendo até tapetes lisos elas faziam. Até bastante
mais. Até 8 mil nós (ALMEIDA, 1987, p. 9).
Conforme a fala do desenhista técnico Aureo Almeida aponta, o
tempo é uma questão crucial no trabalho fabril. Como aponta Thompson
(2016), a regulação dos novos ritmos do trabalho industrial era uma
demanda urgente dentre as necessidades do trabalho industrial, no qual
“o empregador deve usar o tempo de sua mão de obra e cuidar para que
não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do
tempo quando reduzido a dinheiro” (THOMPSON, 2016, p. 272). Nesse
sentido, o tempo passa a ser uma moeda.
Caroline Duarte Matoso | 61
Todavia, a imposição da reformulação da cultura encontrou
resistência dos de baixo, que buscaram a partir de disputas e negociações
manter as suas concepções de trabalho e de mundo. A existência de
infratoras da Fábrica Rheingantz indica que as operárias resistiram às
pressões vindas de cima para baixo, buscando manter os seus ritmos de
trabalho. As operárias que foram penalizadas por rirem, conversar,
levantar da máquina repetitivamente, entre outros motivos, foram sujeitas
ativas de suas histórias, afirmando que o trabalho humano não é
mecânico, resistindo às novas relações de trabalho que os industriais
buscavam incumbir a elas.
Como E. P. Thompson aponta: “[...] o registro histórico não acusa
simplesmente uma mudança tecnológica neutra e inevitável, mas também
a exploração e a resistência à exploração; e que os valores resistem a ser
perdidos, bem como a ser ganhos” (THOMPSON, 2016, p. 301). A narrativa
do desenhista técnico Aureo Almeida Nunes, quando comenta sobre a
criação de um intervalo na Fábrica Rheingantz, indica-nos que os tempos
do trabalho industrial também tiveram que ser adaptados ao tempo
humano, em um processo de disciplinamento, insubordinação, conflitos e
negociações.
Considerações finais
Conforme analisado neste capítulo, a divisão sexual do trabalho
esteve presente no processo de industrialização do Rio Grande do Sul, no
qual as mulheres estiveram em maior número nas indústrias do vestuário,
têxtil e alimentícias. Como já se discutiu, as qualidades atribuídas ao
sujeito feminino que o orientaram a um destino dito natural e universal,
do lar e da maternidade, foram estendidas para fora do domicílio. As
qualidades de ser dócil, possuir maior resistência ao trabalho monótono,
repetitivo e atenção foram as que justificaram a divisão sexual do trabalho
62 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
nas indústrias. Esse senso está presente nas memórias dos operários
entrevistados, que ao falar de haver maior número de trabalhadoras
mulheres na tecelagem, evocam essas habilidades às tecelãs.
A introdução das mulheres no trabalho assalariado fora do lar e longe
de libertá-las representou uma continuação da exploração da sua mão de
obra. Os sensos de feminilidade seguiram presentes no trabalho industrial,
que buscou incumbir novos hábitos ao operariado, buscando o forjar
enquanto obediente, dócil e mecânico. Qualidades essas que já eram vistas
enquanto femininas.
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Caroline Duarte Matoso | 65
Acervos consultados:
Centro de Documentação Histórica Professor Hugo Alberto Pereira Neves (CDH), Fundação
Universidade Federal do Rio Grande.
Entrevistas:
BOTELHO, Soeli. Depoimento concedido em: 1981. Acervo Fábrica Rheingantz, Centro de
Documentação Histórica Professor Hugo Alberto Pereira Neves, Fundação
Universidade do Rio Grande, Rio Grande).
CAMPOLSILVAN, Dario. Depoimento concedido em: 1981. Acervo Fábrica Rheingantz,
Centro de Documentação Histórica Professor Hugo Alberto Pereira Neves, Fundação
Universidade do Rio Grande, Rio Grande).
ALMEIRA, Aureo Nunes. Depoimento concedido em: 1987. Acervo Fábrica Rheingantz,
Centro de Documentação Histórica Professor Hugo Alberto Pereira Neves, Fundação
Universidade do Rio Grande, Rio Grande).
Capítulo III
Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de
territórios urbanos da Primeira República (Santa Maria, RS)
Felipe Farret Brunhauser 1
O objetivo deste texto é expor alguns avanços no uso de Sistema de
Informações Geográficas para pesquisas históricas. Mais especificamente,
demonstro algumas possibilidades do seu uso ao estudar temas como
cidades e desigualdade social, bem como pesquisas ancoradas no campo
da História Social do Trabalho. Para isso, exponho alguns resultados
adquiridos em pesquisa de Mestrado ainda em andamento, onde investigo
a relação do espaço e a desigualdade social no desenvolvimento urbano da
cidade de Santa Maria, localizada no centro do estado do Rio Grande do
Sul, durante a Primeira República. Ao definir este tema de pesquisa, optei
por focar na análise dos territórios populares da cidade e nas lutas por
moradia que eram travadas em meio ao desenvolvimento urbano local. A
escolha deste tema fez com que eu buscasse no uso de geotecnologias,
aliadas à análise de plantas e mapas históricos da cidade, uma importante
ferramenta e metodologia para o estudo deste processo. Os caminhos para
este empreendimento e alguns de seus resultados serão expostos nas
páginas que seguem.
Quando falo em Sistema de Informações Geográficas – ou “SIG”,
como será chamado daqui pra frente -, refiro-me à recursos e meios
tecnológicos, como os softwares de geoprocessamento, que auxiliam na
coleta, manipulação e análise de informações espaciais. Os bancos de
1
Mestrando – UFRGS; felipefarret.b@gmail.com
Felipe Farret Brunhauser | 67
dados baseados em SIG são amplamente utilizados no Urbanismo,
Geografia e Sociologia, como forma de trabalhar com o “espaço” de
maneira complexa, permitindo com que pesquisadores/as analisem uma
determinada localidade ou fenômeno social de forma a considerar a
espacialidade que está imbricada neste objeto de análise. No campo dos
estudos históricos, seja por historiadores/as ou pela geografia histórica e
urbanismo, o uso dessas tecnologias vem servindo para aprimorar a
análise de fontes e elementos espaciais do passado. Neste caso, tem-se
utilizado o termo “SIG Histórico”, cunhado pelo historiador britânico Yan
Gregory (GREGORY, 2003). Este movimento vem trazendo grandes
avanços em pesquisas realizadas na Europa e América do Norte, e aos
poucos tem reunido interessados no Brasil, mostrando os limites e
possibilidades do SIG Histórico em diversas abordagens e recortes espaçotemporais da historiografia brasileira (VILLA; GIL, 2016).
Porém, antes de começarmos, é importante trazer algumas ressalvas.
Este texto não pretende explicar densamente as etapas necessárias para
trabalhar com plantas e mapas históricos nos softwares de SIG, tema que
pode ser consultado em texto recente de Carlos E. Valência Villa (VILLA,
2015); tampouco será meu objetivo central explicar noções básicas no uso
de SIG, ou dos conceitos necessários para o seu uso na pesquisa histórica,
questões que foram abordadas em texto recente, de Thiago Luís Gil (GIL,
2013). Pretendo, na verdade, somar elementos a este debate, trazendo
resultados que foram alcançados através deste empreendimento, e que me
permitiram avançar na análise da desigualdade social em um contexto
urbano da Primeira República. Paralelo a isso, apresento as
potencialidades do SIG Histórico ao analisar qualitativamente os
territórios de uma cidade, e como trabalhadores/as experienciaram a
urbanização.
68 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A História Social do Trabalho tem desenvolvido importantes estudos
acerca da experiência de trabalhadores/as na Primeira República.
Interessados em entender o lugar do operariado em meio a emergência do
capitalismo
e
dos
espaços
urbano-industriais,
esses
estudos
desenvolveram importantes reflexões acerca do mundo do trabalho nas
grandes cidades brasileiras, partindo de abordagens bastante diversas.
Seja através da relação de trabalhadores/as com o crime e a justiça, as
relações e conflitos interétnicos entre populares, seus conflitos e
constituições familiares no âmbito da moradia popular, entre outros temas
(MAUCH, 1992; AREND, 2001; CHALHOUB, 2001; PESAVENTO, 2001).
Muitos desses trabalhos, e de outros que vieram a somar no debate,
buscaram evidenciar o momento de transformações sociais que o Brasil, e
suas cidades, passavam naquele momento. A abolição da escravidão, a
instauração da República e as políticas de imigração europeia foram alguns
dos processos que marcaram o aumento demográfico nas cidades
brasileiras e a constituição do capitalismo. Dentro deste panorama, os
estudos citados demonstraram como elites urbanas buscavam
implementar um novo modelo político-administrativo da recém
inaugurada republica brasileira, que se traduziam em medidas de
modernização e higienização das cidades, na tentativa de impor uma
ordem burguesa às camadas populares que cresciam nos espaços urbanos.
Boa parte da historiografia que referencio, esteve concentrada em
analisar este processo através das grandes capitais brasileiras. Talvez pelo
fato dos principais centros de estudo se concentrarem nessas cidades, ou
mesmo por que na Primeira Republica foram essas cidades o foco central
da modernização e higienização urbana brasileira. O resultado disso é que,
por muitos anos, criou-se uma lacuna de estudos que se preocupassem em
entender como este processo operou no interior do Brasil, nas cidades de
porte reduzido e longe das capitais. Apenas nos últimos anos, um
Felipe Farret Brunhauser | 69
movimento mais significativo de pesquisadores se interessou em analisar
como a urbanização e seus desdobramentos na vida dos/as
trabalhadores/as ocorreu no interior do Brasil.
Em dissertação de Mestrado (ainda em andamento), tenho me
inserido neste movimento, realizando um estudo sobre as lutas e o acesso
à moradia em meio a urbanização da cidade de Santa Maria, localizada no
centro do estado do Rio Grande do Sul. Emancipada na década de 1870,
Santa Maria atingiu um crescimento demográfico significativo após a
expansão da malha ferroviária para o interior do estado, em 1885. A
posição central da cidade no território do Rio Grande do Sul fez com que
o município fosse o principal entroncamento ferroviário do estado na
Primeira República. Em outras palavras, a circulação de mercadorias e
pessoas através da ferrovia, que deslocavam-se desde a costa do Atlântico
(seja por Porto Alegre, Pelotas ou pelo porto de Rio Grande), até a fronteira
oeste do estado, com Uruguai e Argentina; tinha em Santa Maria seu ponto
de passagem e descanso na longa viagem.2
Estes fatores fizeram da cidade um espaço marcado por intensa e
variada vida operária. A chegada da ferrovia ampliou o espaço urbano e
transformou Santa Maria em local de constante chegada de
trabalhadores/as das mais diversas origens, buscando oportunidades de
sobrevivência: italianos, alemães, portugueses, russos, belgas, libaneses,
austríacos, entre outros (CARVALHO, 2005). Os estudos direcionados ao
pós-abolição tem demonstrado a intensa vida associativa da população
negra local, que se articulavam na criação de clubes sociais, blocos de
carnaval, irmandades religiosas, imprensa negra, e etc. (OLIVEIRA, 2017;
GRIGIO, 2018). Um indício desta afirmação pode ser visto em livro
recente, publicado por mim e outros/as colegas do Grupo de Estudos sobre
2 Este debate vem sendo desenvolvido em Dissertação de mestrado, ainda não publicada.
70 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
o pós-abolição (GEPA), onde catalogamos a partir de fontes primárias a
existência de, pelo menos, 19 organizações negras em Santa Maria na
Primeira República (BRUNHAUSER et al., 2020).3
Contudo, alguns desafios se fazem presentes para quem decide
investigar cidades que fogem dos exemplos das grandes urbes e capitais,
sobretudo quando se trata de uma “história vista de baixo”. Em primeiro
lugar, o historiador ou historiadora estará dependente da quantidade e
diversidade de fontes que aquela cidade produziu no passado, e o quanto
desses registros foram preservados em seus arquivos municipais, públicos
e privados, até a atualidade. Santa Maria conta com instituições de grande
qualidade, o que tem sido um alívio para as pesquisas que desenvolvo. Mas
é importante considerar que nem sempre outros pesquisadores terão a
mesma sorte em cidades interioranas. Em segundo lugar, destaca-se o
pouco conhecimento que existe acerca do espaço urbano de Santa Maria
no período estudado, tampouco dos seus territórios populares. Muitas das
pesquisas citadas até aqui, que investigaram aspectos da vida e cotidiano
de populares em Santa Maria, pouco desenvolveram respostas sobre como
a cidade e seus territórios populares se desenvolveram nesse processo.
Assim, qualquer problema de pesquisa que necessite de uma
representação espacial da cidade (ou seja, compreender como eram suas
ruas, a distribuição dos bairros, o seu ritmo de desenvolvimento, quais
eram seus espaços de pobreza e riqueza, e etc.), estará sujeito a
pouquíssimos registros documentais que possibilitem este tipo de análise.
Nesse sentido, para investigar a urbanização de Santa Maria, e como
as lutas por moradia popular se inseriam nesse processo, optei por partir
da construção de uma cartografia dos territórios urbanos na formação do
3 O livro foi publicado em formato E-Book, com distribuição online e gratuita. Intitulado “Organizações negras de
Santa Maria: primeiras associações negras dos séculos XIX e XX”, o livro reúne documentações de 30 organizações
negras locais, entre 1873 e 1965. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/19900. Acesso em: 20 de
novembro, 2020.
Felipe Farret Brunhauser | 71
município, com o objetivo de entender onde se localizavam seus subúrbios
e bairros populares. Analisando fontes diversas como plantas da cidade,
relatos de viajantes e acervos iconográficos – aliado ao uso diversificado
de SIG Histórico - foi possível romper invisibilidades e silenciamentos que
as fontes citadas exerciam em relação à presença popular na cidade,
sobretudo da população negra e indígena, além de ampliar
significativamente as possibilidades de análises.
Os usos de SIG na pesquisa histórica podem ser diversos. Um
caminho comum é a possibilidade de aprimorar análises em fontes já
consolidadas na historiografia. Cristiane R. Miyasaka, analisando a
experiência de trabalhadores/as no subúrbio carioca através de processos
criminais e outras fontes, utilizou SIG para dispor em um mapa da cidade
a localização das ocorrências dos crimes e dos locais de moradia de réus e
vítimas, cruzando essas informações com fontes variadas. Este esforço
possibilitou um olhar para a espacialidade das relações entre
trabalhadores, e como ocorria a relações de populares com a justiça e o
controle social no espaço urbano (MIYASAKA, 2016). Carlos E. Valência
Villa, utilizando anúncios de trabalho de negros/as livres publicados em
jornais do Rio de Janeiro e Richmond, realizou uma análise
georreferenciada das aglomerações de moradias da população negra livre,
nas duas cidades, no século XIX (VILLA, 2013). Os dois casos ilustram
muito bem como o SIG permite abrir novas abordagens em fontes já
bastante conhecidas pela historiografia.
Outro uso interessante é a possibilidade de analisarmos mapas e
plantas históricas de uma determinada região ou cidade, de forma que
possamos literalmente desconstruir seus elementos, agregar outras
informações e construir novos mapas sobre aquele passado, partindo do que
chamamos de Cartografia Digital. A geógrafa Daniele Vieira realizou um
trabalho semelhante, ao construir uma cartografia dos territórios negros em
72 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Porto Alegre. Utilizando mapas e plantas da cidade, desde o século XVIII e
adentrando o século XX, a autora realizou um levantamento de fontes
diversas, que possibilitavam a localização de territórios negros urbanos
durante este longo período, construindo assim representação cartográfica
de Porto Alegre que permitiu um estudo exemplar sobre o processo de
segregação da população negra em perspectiva histórica (VIEIRA, 2017).
Os exemplos citados sintetizam alguns usos possíveis de SIG para
História Social, e serviram de influências para o trabalho que venho
realizando. Para estudar o desenvolvimento urbano de Santa Maria, parto
da análise de uma planta da cidade, datada de 1902. A escolha deste
documento ocorreu pela riqueza de informações que ele possui. Um olhar
atento sobre ele, nos permite perceber como o agrimensor da planta teve
cuidado especial ao registrar como era o mundo urbano de Santa Maria no
início do séc. XX: além das ruas, praças e prédios públicos – elementos
comuns em plantas urbanas deste período -, a planta possui descrições do
sistema fluvial da cidade, da localização de diversas moradias e o nome de
seus/as proprietários/as, locais de comércios, farmácias, hotéis, etc. Através
deste documento, é possível localizar desde templos maçônicos até escolas
que faziam parte da paisagem urbana de Santa Maria na Primeira República.
Mas para além de uma representação da cidade, a cartografia também
é um discurso. Se é impossível representar a realidade em um documento
cartográfico, sua confecção demanda escolhas e preferências que vão
delimitar o que merece, ou não, ser registrado no documento. Neste ponto,
uma análise densa e minuciosa desses documentos, cruzando com outras
fontes, nos permite entender padrões e valores morais de quem produziu
esta planta e do período histórico ao qual pertenceu. Um exemplo desta
reflexão está na invisibilidade de territórios e grupos populares na planta de
Santa Maria, utilizada neste estudo. Se o centro da cidade é visualmente
poluído pelo esforço do agrimensor em registrar aspectos da vida cotidiana
Felipe Farret Brunhauser | 73
da elite urbana e de seus espaços de moradia; ao localizar através de outras
fontes onde ficavam os bairros populares, me deparei com o extremo
oposto: as ruas que eram marcadas pela presença popular na cidade, são
representadas na planta como lotes vazios.
Figura 1: Detalhes da planta da cidade de Santa Maria, de 1902
Fonte: montagem realizada a partir de planta da cidade, disponível em: (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997, p. 84)
A imagem anterior se trata de uma montagem criada para
demonstrar como diferentes espaços da cidade receberam atenções
distintas. Do lado direito, temos a Praça Saldanha Marinho, que conectava
as ruas centrais da cidade, onde o agrimensor se preocupou em
cartografar as moradias e comércios (inclusive demarcando o sobrenome
dos seus moradores). Do lado esquerdo, trata-se da rua “24 de Mayo”, o
núcleo fundador do bairro Vila Rica. Este local era marcado por intensa
vida operária e associativa em Santa Maria durante a Primeira República.
Ali existiam organizações diversas, como Irmandade Religiosa, blocos de
carnaval, clubes sociais e imprensa negra. Mas na representação
cartográfica de 1902, a vida cotidiana de trabalhadores/as da cidade não
importava a ponto de merecer espaço na planta da cidade. Pelo contrário,
74 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
a imagem que o agrimensor construiu sobre Santa Maria, coloca este
território como uma série de ruas e lotes vazios, com apenas algumas
moradias esparsas e sem nomes de seus moradores e moradoras.
Figura 2: desconstruindo uma planta histórica utilizando SIG
Fonte: montagem produzida pelo autor.
Mas como ir além da constatação lógica de que as fontes deste período
carregam em si valores morais de quem às produziu? Neste ponto, o SIG
Histórico permite alguns avanços interessantes. Através dos softwares de
SIG, podemos criar uma versão digitalizada desta fonte e literalmente
desconstruir os elementos que foram cartografados nela. Ruas, moradias,
comércios, ferrovia, entre outros, podem ser separados digitalmente em
camadas de informações, de modo que possamos utilizar apenas as
camadas que nos interessam para produzir novos mapas da cidade, como
tentei ilustrar na Figura 2, disposta ao lado. E considerando ainda o meu
interesse em demarcar os territórios populares, dando visibilidade aos
Felipe Farret Brunhauser | 75
elementos que a cartografia da época invisibilizou, é possível ainda cruzar
com outras fontes que possuem a localização destes territórios, e incluir
novas camadas de informações neste mapa.
Este empreendimento vem sendo realizado a partir da Planta de
Santa Maria de 1902. Partindo de um extenso levantamento de relatos de
viajantes, memórias documentadas, almanaques, fotografias e outras
fontes diversas. A partir disso, identifiquei a existência e localização dos
bairros suburbanos que eram mencionados em diversas fontes, mas ainda
pouco explorados na historiografia local. Isso possibilitou a criação de
mapas que auxiliam diretamente na análise do desenvolvimento urbano
de Santa Maria na virada do século XX, e como se distribuíam espaços de
pobreza e riqueza em um tecido urbano reduzido, no interior do Brasil. O
resultado desta análise poderá ser visualizado na imagem a seguir:
Figura 2: SIG Histórico da cidade de Santa Maria, em 1902
Fonte: Mapa construído pelo autor no software “QuantumGIS”, a partir de fontes diversas. As principais são:
relatos de viajantes e Planta da cidade de Santa Maria, em 1902, presentes em (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997);
historiografia sobre Santa Maria; registros fotográficos e Almanaques locais.
76 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
O mapa anterior (Figura 3), foi produzido a partir de SIG Histórico,
e permite uma visualização muito mais precisa e complexa acerca dos
territórios urbanos de Santa Maria em 1902, bem como a forma que a
desigualdade social operava nesta cidade na Primeira República. As ruas,
praças, ferrovia e cursos d’água que o/a leitor/a visualiza neste mapa,
estavam presentes na planta de 1902, porém poluídos em meio a diversas
outras informações. O “centro” de Santa Maria, frequentemente citado em
diversas fontes, resumia-se às três ruas marcadas em amarelo, chamadas
Rua do Comércio, Rua do Acampamento e Avenida Progresso, conectadas
pela Praça Saldanha Marinho, no centro do mapa. Por fim, a Avenida
Progresso conectava o centro da cidade com a ferrovia, que cruzava ao
norte. A análise em SIG desta planta, aliado ao cruzamento com outras
fontes permitiu compreender que as ruas centrais concentravam a elite
urbana da cidade e os imóveis mais caros, além de que eram as únicas ruas
na cidade, neste momento, que possuíam luz elétrica.
Ao redor das ruas centrais, localizavam-se os bairros populares. A
localização desses territórios partiu de fontes diversas, como relatos de
viajantes e memórias documentadas que descreviam a paisagem urbana e
os bairros chamados de subúrbios: Itararé, Alto da Eira, Vila Rica e Aldeia
(MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997). Em especial os dois últimos – Aldeia e
Vila Rica – frequentemente são relacionados nas fontes como os dois
principais territórios populares da cidade, marcados pela presença negra
neste imediato pós-abolição.
A Aldeia possuía origem ainda nos primeiros anos do século XIX, com
o aldeamento de famílias guaranis missioneiras, que se estabeleceram no
vilarejo de Santa Maria, vindas da fronteira oeste do estado. Este território
permaneceu na paisagem urbana da cidade por todo o século XIX,
despontando na Primeira República como um dos principais territórios
populares, concentrando moradias de famílias negras, indígenas e uma
Felipe Farret Brunhauser | 77
variedade de imigrantes pobres com origens diversas. A Vila Rica, citada
anteriormente, era marcada por características semelhantes, além de
concentrar diversas organizações negras de segmentos variados. Além dos
dois bairros citados, o Itararé foi um território que se constituiu nesse final
do século XIX, com raízes na identidade ferroviária pela sua proximidade
com os trilhos do trem.
Para além de identificar a existência dos bairros populares e suas
características, o uso dos mapas permite a análise minuciosa sobre a
morfologia urbana de uma cidade. É a partir dele que podemos analisar
como elementos do relevo e do sistema fluvial, hoje encobertos pelos
prédios do centro da cidade, eram importantes no desenvolvimento e na
distribuição da desigualdade social neste núcleo urbano. As sangas que são
vistas no mapa e que existiam por toda a parte em Santa Maria, são
desconhecidas nos dias atuais, onde a cidade foi literalmente construída
por cima de seus cursos. Contudo, no início do século XX, foram essenciais
para entendermos o desenvolvimento urbano, e serviam em certa medida
como fronteiras naturais entre espaços de pobreza e riqueza, separando
os bairros populares das ruas centrais. O relevo da cidade,4 analisado em
conjunto com o mapa, nos demonstra também como o centro de Santa
Maria estava na região mais alta, e suas ruas estavam nos terrenos mais
nivelados da cidade, desviando dos cursos d’água. Ao contrario dos bairros
populares, estabelecidos em terrenos acidentados, cortados pelas sangas e
em regiões de baixada.
Elementos como esses não estão disponíveis de forma direta e literal
nas documentações históricas, e podem ser de grande importância na
4 Os dados de elevação do solo tratam-se de levantamentos atuais. Utilizou-se imagens produzidas pelo satélite Alos
Palsar, colocado em órbita na década de 2010 e que disponibiliza gratuitamente uma base de dados do relevo da
Terra, disponível para download e de fácil acesso. Ao contrário de cidades maiores, como Porto Alegre e Rio de
Janeiro, não há registros de grandes aterramentos, planificações e demais intervenções em grande escala em Santa
Maria. Assim, considero que o cruzamento desses dados pode ser realizado sem grandes prejuízos ao estudo. A base
de dados utilizada está disponível em: https://search.asf.alaska.edu/#/.
78 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
análise do espaço social de uma cidade, bem como nas formas com que
trabalhadores/as se relacionam com o espaço urbano. Outro aspecto
igualmente importante, é que os mapas tem me ajudado a observar
elementos nas fontes que muitas vezes passaram despercebidos. As
descrições de ruas acidentadas com moradias precárias, ou o cotidiano das
lavadeiras nos subúrbios da cidade, assumem novos significados na
análise qualitativa dessas experiências depois da produção de mapas como
esse. No caso de Santa Maria, essas reflexões são possíveis apenas com o
uso de SIG Histórico. O seu uso tem se mostrado um aliado essencial nesse
processo, e um método poderoso para refletir sobre a forma que
trabalhadores e trabalhadoras experienciaram a urbanização de Santa
Maria, durante a Primeira República.
Para além de meras ilustrações e recursos narrativos, os mapas são
fontes poderosas para o estudo das sociedades que eles buscaram
representar. Assim como qualquer documento, os mapas são produtos da
ação humana, da necessidade de representar a realidade em que seus
criadores viveram. Um olhar atento a eles pode revelar, para além das
informações superficiais que possuem, uma série de valores morais e
hierarquias introjetadas em quem os produziu e ao momento histórico ao
qual pertenceu. A planta utilizada neste texto data do início do século XX,
momento onde a prática da cartografia era privilégio de poucos, e
produzidas para grupos sociais igualmente privilegiados: setores do poder
público, das elites locais e etc. Como vimos, estas características se
introjetam na produção final desses documentos. Com o avanço da
tecnologia dos microcomputadores nas últimas décadas, a prática
cartográfica se tornou acessível por meio de softwares de SIG, onde um
historiador, com um conhecimento básico de geografia e informática, pode
inclusive produzir seus próprios mapas. Isso abre caminhos interessantes
para as ciências humanas, seja por criar representações cartográficas que
Felipe Farret Brunhauser | 79
busquem tornar didáticos elementos que seriam difíceis de expor em texto,
ou mesmo pela possibilidade de construir novos problemas de
investigação, que considerem o espaço em seus questionamentos, e abram
novas possibilidades em fontes já bastante conhecidas.
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História Indígena da América
Capítulo IV
Mães e pais indígenas: narrativas e
práticas ao longo do século XVIII
Laura Oeste 1
Na documentação do período do Setecentos, quando nos detemos a
entender a participação da mulher indígena na sociedade, “mulheres e
seus filhos” são uma referência relativamente numerosa em variadas
situações. Devido a isso, surge a importância em compreender como essas
duas categorias se relacionam entre si e com os demais sujeitos coloniais.
Nisso também se apresenta a necessidade de abordar como os pais estão
presentes nessas fontes como uma forma de enriquecer a nossa análise.
Portanto, a proposta deste texto é apresentar alguns apontamentos e
reflexões sobre as diferentes concepções e práticas acerca das mães e país
indígenas, estas encontradas na documentação produzida por variados
sujeitos durante o século XVIII. Nosso trabalho se detém nas localidades e
reduções situadas na região da Bacia do Prata, utilizando tanto fontes da
burocracia hispânica como eclesiásticas publicadas em coleções.
Em linhas gerais, podemos dizer que a documentação consultada tem
como característica uma visão com base em modelos ocidentais de
feminino, família e infância, esses em muitas ocasiões diferentes dos
praticados pelas populações indígenas. Quanto ao nosso apoio teórico,
buscamos amparo em diferentes autores como Ariès (1986), Sciortino
(2017), Fleck (2006) e Vitar (2015). Desses trabalhos mencionados
destacamos algumas colocações, como as de Ariès, quanto ao lugar social
1
Mestre-UFSC; lauraoeste@gmail.com
84 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
dos pais e das crianças nas famílias ocidentais do século XVIII, bastante
úteis para trabalhar com as concepções dos religiosos e funcionários
coloniais acerca desses sujeitos. Como forma de contraponto para a
análise, consultamos o trabalho da antropóloga Sciortino (2017), que traz
noções de maternidade e paternidade presentes em sociedades indígenas
da
Argentina
contemporânea,
esses
pautados
em
uma
complementariedade entre mães e pais. Já as autoras Fleck (2006) e Vitar
(2015) se dedicam a analisar as mulheres indígenas nas reduções, a
primeira com foco nas representações dos jesuítas acerca das indígenas e
a segunda sobre o trabalho feminino nas missões.
Podemos começar por alguns questionamentos tais como: quais
narrativas em relação às mulheres e homens indígenas foram veiculadas
nesses
contextos?
Conseguimos
perceber
quais
adaptações
e
reformulações foram possíveis nos espaços missioneiros? Dessa forma,
organizamos a escrita em dois momentos: primeiro apresentamos como e
em quais momentos as mães indígenas são descritas na documentação,
após são realizadas algumas comparações entre as narrativas sobre as
mulheres mencionadas como mães e homens indígenas, procuramos
também compreender como a figura do pai indígena esteve presente em
alguns discursos, direta ou indiretamente, tanto eclesiásticos como dos
próprios indígenas.
Mulheres, homens e crianças
Ao consultar a documentação do século XVIII para a região do Prata,
nos deparamos com um considerável número de referências que
relacionam a mulher indígena com crianças em variadas situações,
principalmente, em relatos relativos às reduções. Fazendo algumas
observações iniciais, percebemos que muitos dessas fontes quando
voltadas para as mulheres, trazem uma narrativa com viés um tanto
Laura Oeste | 85
estereotipado, apresentando muitos adjetivos quando falam de aspectos
considerados negativos pelo narrador, em especial no momento de relatar
comportamentos entendidos como inadequados conforme veremos
adiante. Também percebemos que esses relatos, em muitos casos, trazem
poucas informações efetivas sobre essas mulheres, ou seja, há uma certa
contradição em que muito se fala sobre “indígenas e seus filhos”, mas ao
mesmo tempo pouco. Quanto aos homens indígenas, as narrativas são um
pouco mais positivas, sendo apresentados como bons exemplos frente ao
comportamento feminino e destacados como provedores essenciais do
grupo familiar.
No caso específico de algumas reduções, em comum observamos nas
falas de alguns jesuítas analisadas, a utilização de justificativas pautadas
em ideias que remontam a uma “salvação” das indígenas e seus filhos dos
seus próprios povos. Muitas dessas narrativas eram voltadas para
indígenas considerados “infiéis” pelos poderes coloniais. Como na fala dos
inacianos De Zea e Sanchez (1702), em que discorrem sobre as tensões
com os indígenas próximos das missões localizadas entre os rios Uruguai
e Paraná, entre eles yaros e pampas. Segundo eles, esses povos teriam se
aliado aos portugueses da Colônia de Sacramento e promoviam ataques
aos pueblos próximos. Quando comentam sobre as mulheres e jovens
desses indígenas, se destaca a argumentação utilizada, na qual sustentam
que a única forma de as redimir do seu mau comportamento, seria por
meio da separação, necessária para salvar as mulheres e crianças do
“escândalo da idolatria e feitiçaria”. Na visão dos padres, os homens nesse
caso não teriam salvação, já que não se converteram em tentativas
anteriores e são intermediários de portugueses, desertores e malfeitores
(DE ZEA; SANCHEZ, 1702, p. 129).
Em outra situação, as mulheres e crianças indígenas também são
mencionadas como necessitadas de salvaguarda, tendo sua simplicidade
86 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
destacada em um depoimento da década de 1760. Nele o jesuíta o Cardial
menciona a debilidade e humildade das mulheres e de suas crianças que
“por sus cortos pensamientos no aspiran â fausto, pompas y variedades”
(CARDIAL, 1766, p. 36). Em outros momentos, ele enfatiza a fragilidade de
maneira um tanto contraditória, em que elas trabalham muito nas mais
diversas tarefas, mas por ser de uma natureza “débil” adoecem facilmente
devido ao excesso de labor. Cabe comentar que a intenção da carta do
padre era convencer seus interlocutores do não pagamento de tributos,
alegando que as missões não tinham condições financeiras, portanto ele
pode ter carregado um pouco na pobreza e humildade da população local.
Interessante notar que ele foca a sua justificativa nas mulheres e nas
crianças como uma forma de comoção da pouca possibilidade de
contribuição monetária.
Contudo, nem sempre as mulheres eram apresentadas a partir de
uma pretensa fragilidade, nesses casos elas também deveriam ser
afastadas dos mais jovens. Como no relatado pelo jesuíta Rojas (1708) em
Yapeyú, onde as mulheres e crianças Yaro e Mbohas foram separadas e
encaminhadas à força para diferentes pueblos para serem batizadas. O
padre explica ser necessário mais paciência e mais tempo para catequizar
as indígenas adultas, ao contrário das crianças que receberiam tratamento
diferente (ROJAS, 1708, p. 242). Ao que parece se as mulheres não fossem
tão frágeis como esperado, elas deveriam ser distanciadas dos jovens para
não atrapalhar o seu “resgate”4.
Após a expulsão dos jesuítas ainda encontramos algumas narrativas
bastante estereotipadas sobre as mães indígenas. Como em uma carta
escrita pelo franciscano Mendez (1772) sobre os costumes dos indígenas é
mencionado o descuido das mães com os filhos que ficam “presos” por
nove meses “[...] Nace el Mbayà, cuando su cruel madre lo dexa salir con
vida de la carcel en que ha estado encerrado nuebe meses, y lo acoge un
Laura Oeste | 87
toldo desabrigado de esteras, que apenas le defiende del sol, sin mas cama
ni ajuar que un cuero de Vaca, o de cualquier otro animal[...]” (MENDEZ,
1772, p. 53). Na fala do religioso se destaca a forma de apresentar a
gravidez como uma maneira de maltratar a criança.
Na documentação consultada, encontramos poucas referências à
gravidez, em outra ocasião há algumas questões em torno das mães, do
batismo e o parto. Também no contexto da expulsão dos inacianos, um
bispo ao visitar as reduções realizou uma série de críticas e comentários
sobre as indígenas. Em suas colocações ele associa o comportamento das
indígenas a uma série de estereótipos femininos, como um excesso de
fragilidade e futilidade como, por exemplo, ao chorar a morte de um
simples frango e uma tendência a se levar pelas influências alheias (LA
TORRE, 1767, p. 30-36). Esses aspectos inconstantes, segundo o padre, são
característicos das mães indígenas, principalmente das parturientes, que
insistiriam em batismos desnecessários e convenceriam os padres a fazêlos. Particularmente, os comentários do bispo sobre os jesuítas serem
influenciados pelas “veleidades” das indígenas, incomodou sendo
respondido de maneira ríspida: “[...] irían los Padres preguntando si la
india es robusta ó delicada ó enfermiza [...]” (LA TORRE, 1768, p. 469).
Ao que parece, o parto era um assunto de interesse apenas das
mulheres, já o batizado dos infantes era matéria de preocupação
comunitária visto que no mesmo documento, La Torre explica a
importância em nomear especificamente um padrinho para os meninos e
madrinhas para meninas (LA TORRE, 1768, p. 463). Observamos que em
nenhum momento, o bispo sugere que os homens teriam algum tipo de
influência no comportamento dos padres, se destacando nesse trecho, o
fato das indígenas terem uma certa autonomia e forte influência nas
decisões envolvendo os recém-nascidos e o seu próprio parto, aspecto visto
como ruim pelo bispo.
88 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Considerando as fontes organizadas até o momento, notamos que as
mulheres indígenas têm seus comportamentos narrados de maneira
divergente, partindo da passividade à agressividade, de serem
manipuláveis e, ao mesmo tempo, tendo facilidade em influenciar.
Aspectos semelhantes são mencionados por Fleck (2006) para as
primeiras reduções ainda no século XVII, nos quais os relatos sobre as
mulheres oscilavam entre narrativas contraditórias que iam de auxiliares
do demônio a devotas exemplares. Segundo a historiadora, esses
estereótipos foram mudando de forma gradual conforme o projeto
colonial avançava, dando espaço aos exemplos de conversão valorizados
pelos padres. Já as crianças são sempre apresentadas como frágeis e
necessitadas de resgate, inclusive as afastando dos adultos de seus povos.
A estratégia de separar pessoas, sejam elas adultos ou crianças não era
incomum.
Especificamente os relatos com um viés negativo sobre as mães
indígenas, alguns pesquisadores apontam como eles foram veiculados com
frequência ao longo da história. Destacamos as colocações da antropóloga
Segato (2012), em que associa esse comportamento como uma forma de
legitimação da intromissão por parte dos agentes coloniais nos modos de
viver dos povos indígenas. Esses relatos se valeram da utilização dessas
narrativas de salvação de crianças de seus próprios povos ou de suas
próprias mães, nos quais comportamentos fora de um padrão de
referência deveriam ser neutralizados e combatidos (SEGATO, 2012, p.
122). A reflexão da autora é pertinente para compreender algumas das
argumentações utilizadas pelos narradores apresentados e que,
infelizmente, ainda encontramos em discursos veiculados atualmente.
Sobre como nossas fontes apresentam as mulheres indígenas,
destacar alguns aspectos estereotipados não é uma novidade. Outros
trabalhos argumentam a relação dessas falas aos interesses próprios de
Laura Oeste | 89
seus narradores. No caso para os religiosos, a preocupação com a
conversão religiosa e o controle da população indígena, trazia elementos
específicos para as indígenas pautados em exemplos de conduta que
tinham a mulher cristã ocidental como parâmetro (GÓMEZ, 2012, p. 29).
Outra pesquisadora apresenta algumas considerações semelhantes que
mostram diálogos com representações femininas em geral, nos quais
associa a descrição das mulheres na documentação a poucas informações
e sempre imaginada, relatada e descrita por outro. Nisso, as
representações tendem a um modelo de conduta e personalidade que
preza características como pureza, honra, submissão, entre outras
(GUARDIA, 2002, p. 369). Essa última colocação explica um pouco a
observação realizada no início dessa sessão, sobre a ocorrência de várias
citações nas fontes sobre as indígenas, mas com poucas informações
relevantes para sua contextualização.
Comparando
como
nossas
fontes
mencionam
alguns
comportamentos dos indígenas quando elas descrevem mulheres e
homens no mesmo documento, percebemos uma valorização dos últimos
e uma certa depreciação do feminino. Em um relato na redução de San
Javier, as mulheres indígenas são representadas como tendo um
comportamento excessivo enquanto os homens seriam ponderados. Em
uma parte da carta ele destaca a calma dos maridos frente a agitação das
mulheres “[...] Las Yndias son mui inquietas y chismosas. Por no nada
vienen á las manos. Mas, aunque ellas se den de paios, no se alteran sus
maridos. Antes, tendidos de barriga, miran mui sosegados la pelea [...]”
(ANÔNIMO, 1750, p. 18). Ao longo desse mesmo documento, seu narrador
relaciona a poligamia ao mau comportamento das mães indígenas em
relação aos seus filhos, enquanto para os homens, o narrador enaltece suas
condutas de zelo e exemplo quando mencionam o mesmo costume.
90 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Já especificamente para os homens encontramos questões com
aspectos
mais
brandos,
quando
comparados
às
indígenas.
Frequentemente nas fontes os indígenas são apresentados como os
principais e únicos provedores das famílias e, sem eles, as mulheres e
crianças estariam totalmente desamparadas. Cabe ressaltar que não
estamos argumentando que os indígenas não foram importantes para a
manutenção das suas famílias, e que a sua ausência não teve um impacto
significativo em seu sustento. Mas destacamos alguns relatos nos quais os
homens são tratados como os únicos responsáveis pela sobrevivência do
grupo familiar ou como nas falas dos padres de suas “pobres” mulheres e
filhos, sendo que as mulheres tiveram um papel fundamental e foram
responsáveis pela grande quantidade do trabalho e manutenção das
reduções como bem relatado por outros autores (VITAR, 2015).
Em meados do Setecentos, observamos essa argumentação com
frequência quando os homens se ausentavam para trabalhos externos
como, por exemplo, nas vacarias, ervais, entre outros. Segundo um jesuíta,
as “pobres mulheres e filhos”, com seus maridos ausentes dos pueblos,
morreriam de fome pois não teriam ninguém para semear os campos com
os grãos e raízes necessários. Essa desordem levaria a miséria corporal e
espiritual, pois devido à falta de sustento as mulheres precisavam sair “em
busca dele” por vários lugares colocando em risco suas vidas (ANÔNIMO,
1710, p. 152). No informe já mencionado dos jesuítas De Zea e Sanchez,
eles desenvolvem uma argumentação semelhante sobre a importância do
acesso às vacarias para os indígenas e suas mulheres e filhos (DE ZEA;
SANCHEZ, 1702, p. 125).
Os indígenas também recorriam a esse imaginário quando
precisavam defender seus posicionamentos. Observamos isso no seguinte
caso:
Laura Oeste | 91
Sr. Desde el 3 de abril del año 1771 salimos de nuestras tierras y pueblos
destinados a estas reales obras y nosotros como leales vasallos de su magd
nosignamos obedientes dejando a nuestras mujeres e hijos en puestos y mil
hambres y miserias y padeciendo nosotros en tan largo viaje por caminos con
esperos y ríos qe a nado pasamos inmenso trabajo con perdidas de nuestro
vesticario llegando quasi desnudos a estas fatigados de aver andado a pie los
mas de nuestros hijos todo el camino y desde el año de 1771 al de 1773 ha que
nos damos trabajando con el maior empeño [...] (AGNA, 1773, p. 4).
Nessa carta elaborada por alguns capitães e caciques missioneiros ao
Governador Geral, eles argumentam como a ausência e distância das suas
famílias são prejudiciais para as mulheres. Esses indígenas construíram
em seu texto, argumentos bastante semelhantes aos apresentados
anteriormente pelos jesuítas. No caso, eles estavam auxiliando na
construção da Fortaleza de Santa Teresa há mais de dois anos, desde 1771
(AGNA, 1773).
Na documentação consultada os homens indígenas são raramente
nomeados como pais, vale apontar que também observamos isso para as
mulheres, elas são dificilmente chamadas de mães, mas quando
mencionadas como tais em nossa documentação, os relatos tendem a ser
pejorativos, como alguns dos já apresentados.
Em algumas fontes, de produção não religiosa, encontramos
referências que dialogam com as falas dos inacianos. Quando da expulsão
dos jesuítas da América espanhola, diversas instruções foram
apresentadas para organizar a manutenção das reduções. Entre elas, se
destacam as orientações referentes às mulheres e seus filhos e como eles
seriam representados nos censos. Os filhos e as indígenas casadas
pertenceriam à redução do pai, enquanto que os filhos de mulheres
solteiras à da mãe. Quando viúva ela seria livre para se mudar, mas deveria
deixar os filhos no pueblo do pai. O interesse do funcionário estava
92 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
relacionado a preocupação em tributar os moradores das missões, no
mesmo documento ele também menciona o controle em saber quais são
casados, solteiros e solicita uma relação individual dos indígenas
(BUCARELI Y URSUA, 1770, p. 322).
Importante mencionar que essas tentativas de organização não
foram apenas para as reduções. Ao longo da década de 1770, na
documentação presente no Cabildo de Buenos Aires, observamos várias
tentativas de organizar a vida dos cônjuges. As fontes mostram algumas
tentativas em determinar quais casados realmente tinham “vida
Maridable” com suas esposas. O material, nesse caso, não especificou para
quem essas instruções eram voltadas e foram justificadas como um auxílio
na organização dos censos que seriam realizados (AECBA, cabildo del 25
de octubre de 1774, p. 158). A proposta não foi bem recebida e vista como
uma intromissão pelos moradores locais (AECBA, cabildo del 24 de abril
de 1775, p. 343).
Considerações Finais
Realizando algumas ponderações finais: a documentação mostra
uma variedade de tensões, contradições e concepções dos sujeitos coloniais
sobre a mulher indígena e seu lugar social, que em alguns momentos
dialogava com ideias que estabeleciam características e papéis femininos e
masculinos nos moldes da sociedade ocidental do período, em contraponto
aos dos povos indígenas. Sobre essa última colocação, não encontramos
referências que sustentassem uma maternidade e paternidade mais
colaborativas, talvez pela característica de nossas fontes que tendiam a
falar muito mais sobre as suas próprias percepções. Mas nesses mesmos
documentos notamos que as indígenas em determinados momentos,
faziam valer os seus interesses, nesses casos sendo acusadas de serem má
influência tanto para seus filhos como para os padres.
Laura Oeste | 93
Também percebemos que as indígenas têm seus comportamentos
frequentemente comparados e medidos em relação ao dos homens, o que
reforça a importância de uma análise com base nas relações de gênero.
Pontuamos que esses escritos trazem muitos adjetivos e aspectos
negativos quando relatavam comportamentos compreendidos como
inadequados pelos agentes coloniais distintos. Para as mães as narrativas
trazem um julgamento um tanto negativo quanto à gravidez e cuidados
com os filhos. Especificamente sobre os pais, os indígenas são
apresentados nos escritos como provedores das famílias e bons exemplos
de conduta.
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Laura Oeste | 97
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1970.
Capítulo V
As Cartas Ânuas como fontes etnográficas:
possibilidades e desafios. Uma análise de
caso da Ânua de 1735-43, de Pedro Lozano S.J,
e as reduções austrais da pampa-patagônia
Thaís Macena de Oliveira 1
Introdução: Cartas Ânuas e o gênero epistolar
O presente trabalho buscará realizar uma análise inicial de um estilo
de documentação bastante clássico, já utilizado por gerações de
historiadores. Buscaremos verificar as possibilidades e limitações desta
fonte para o conhecimento das missões austrais da pampa bonaerense e
das populações indígenas que habitavam este espaço2, no século XVIII.
Neste sentido, a Carta Ânua de “autoria”3 do jesuíta Pedro Lozano4 [1735-
1
Mestranda – Universidade do Vale do Rio dos Sinos; tmacena@gmail.com
2 Nesse território, até meados do XVII, contatos entre “brancos” e indígenas eram escassos. Assim, grupos indígenas
viviam com relativa independência do poder colonial, ainda no XVIII, e, na prática, exerciam o controle sobre este
território. A partir do avanço de pueblos e haciendas coloniais e da dinamização das etnias indígenas, ocorreu o
incremento dos contatos interétnicos na região. Tais relações adquiriram uma tonalidade violenta sobretudo na
década de 1730, pressionando as autoridades a pensarem em estratégias de apaziguamento da fronteira com a tierra
adentro (território ocupado pelas populações indígenas independentes). O historiador Raul Mandrini (2004) via esta
intensificação de contatos como o resultado de uma disputa pelo gado, que havia sido introduzido pelos europeus na
região no XVI, mas que, no XVIII, o avanço das haciendas de criação deste animal inaugurou um período de maior
conflitividade nesta “zona de contato” (PRATT, 1999). Nesse sentido, as três reduções jesuíticas (Nuestra Señora de
la Purisima Concepción de los Pampas [1740], Madre del Pilar del Volcon [1746] e Nuestra Señora de los
Desamparados [1750]) que duraram entre 1740 e 1753, enquadram-se dentro dessa iniciativa, e são espaços
privilegiados para estudos de relações interétnicas, tendo em vista que dinamizaram ainda mais os contatos neste
espaço. Nas últimas décadas, a historiografia sobre esse tema tem buscado renovar as interpretações acerca dessas
relações, ver em: Bechis (2008); Mandrini (2004); Martins (2017); Nacuzzi (2008); Silva (2016) e Silva (2018).
3 Sobre a autoria das cartas ex comissione: “[...] quem é o autor destes documentos? Muitos são os estudiosos da
Companhia que recorrem à análise grafológica e/ou morfológica dos textos na tentativa de diferenciar os estilos próprios
do escritor material e do “escritor moral”, procurando uma resposta para os casos específicos. O que se pode com certeza
afirmar é que existe uma simbiose entre o escritor material de uma carta, por exemplo, e o ditador da mesma, onde a
minuta entregue é fielmente reproduzida pelo escritor, muito embora com expressões e estilo próprio. A questão fica
aberta, chamando a atenção dos pesquisadores para mais pesquisas” (RODRIGUES, 2011, p. 15).
4 Para a compreensão da prática de escrita de Pedro Lozano S.J e de sua trajetória, indicamos o trabalho de MOURA,
2019.
Thaís Macena de Oliveira | 99
1743] foi lida e examinada, tendo como foco a análise do que este religioso
nos descreve sobre a fundação da redução de Nuestra Señora de la
Concepción de los Pampas5, e dos indígenas que estavam em contato com
os missionários e com a sociedade hispanocriolla como um todo.
As Cartas Ânuas eram documentos de orientação oficial dos jesuítas.
Desde o princípio, a prática epistolar foi incentivada por seus fundadores,
sobretudo a partir da figura de Inácio de Loyola. Não apenas a produção
desta escrita, mas a conservação dessa documentação, sempre foi, e,
continua sendo um aspecto fundamental para a Companhia. Neste
sentido, Paulo Rogério Melo de Oliveira nos esclarece:
Desde a fundação de sua ordem, os jesuítas dedicaram-se à conservação dos
registros escritos relacionados à sua instituição e às suas atividades
missionárias pelo mundo. A produção de documentos da instituição é
monumental, tanto no aspecto da colossal emissão de papéis escritos, quanto
na intencionalidade do que foi produzido. Desde os tempos de Loyola, sempre
houve o cuidado de cultivar um legado exemplar a ser transmitido às futuras
gerações. Os próprios jesuítas, a começar pelo fundador da ordem,
espelharam- -se nos escritos dos santos e padres da igreja conservados através
dos séculos. Os exemplos do passado e a memória escrita da igreja
estimularam o desejo de deixar algo edificante, digno de ser lembrado no
futuro. (OLIVEIRA, 2011, p. 267).
Onde estão localizadas estas Cartas Ânuas? A coleção mais completa de
originais está no Arquivo Geral da Companhia de Jesus, em Roma, incluindo
a Paraguay Liit. Annue / Vol. III / 1735-43. Apesar do título, essa fonte é na
verdade uma única carta que abrange um longo período. O acesso a ela é
5 Esta Carta Ânua do Padre Pedro Lozano [1735-43] abrange informações de um curto período da primeira redução
construída na região, Nuestra Señora de la Purisima Concepción de los Pampas [1740]. Dessa forma, a partir das
informações que coletou, o religioso também escreveu sobre uma parte do período que antecede a construção da
missão e descreveu de forma breve as populações indígenas. Não temos conhecimento de outra Carta Ânua que traga
informações sobre estas reduções.
100 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
possível, por exemplo, através do Instituto Anchietano de Pesquisas
(Unisinos), que, a partir de uma coleção de réplicas fotográficas dos originais
presentes no Arquivo Geral da Ordem6, produziu microfilmes.
Estas Cartas eram informes que o Superior da Província remetia
periodicamente7 ao Geral da Companhia de Jesus, em Roma. Elas eram
produzidas a partir das “ânuas parciais”, ou seja, das informações
provenientes das missões ou reduções, e dos Colégios. Também poderiam
conter informações colhidas pelos Superiores em suas viagens de visita,
ou, ainda, aquelas contidas em cartas particulares (FLECK; FRANZEN;
MARTINS, 2008).
A regulação das Ânuas era rígida, de forma que elas atendessem a
funções múltiplas da ação jesuítica na Europa e nos outros continentes. As
Constituições da Ordem8 designavam “responsabilidades para a geração
das informações e destinatários destas. Foram fixados prazos,
determinada a produção de cópias, definida a circulação destas,
consideradas as línguas e apontados os temas a serem tratados nas cartas.
” (LONDOÑO, 2002, p. 15). O Padre Polanco, secretário de Inácio de
Loyola, foi quem sistematizou as orientações para a escrita das Cartas. A
motivação para o empreendimento das Ânuas pode ser visualizada em
uma carta de Polanco ao Padre Manuel de Nóbrega, datada do ano de 1553,
na qual ele afirma que as informações sobre as Províncias eram
imperfeitas (NÓBREGA, 1955, pp. 511-512 apud FLECK; FRANZEN;
MARTINS, 2008, p. 10).
6 O Arquivo Geral da Ordem está localizado no “Colégio del Salvador” em Buenos Aires (FLECK; FRANZEN;
MARTINS, 2008, p. 13).
7 Não existia uma periodicidade “correta” para a redação destas Cartas. Ao contrário do que possa parecer devido ao
nome, elas não eram “anuais”, poderiam abranger um longo período de tempo, como no caso da Ânua de Pedro
Lozano.
8 “As Constituições da Companhia abrangem, no detalhe, todos os aspectos da vida do jesuíta. Através dos seus
decretos, Inácio de Loyola fez o máximo esforço para dar conselhos, úteis e necessários, aos jesuítas. Mas também
era seu desejo conhecer quanto estes faziam nas suas missões” (RODRIGUES, 2010, p. 2).
Thaís Macena de Oliveira | 101
As Cartas Ânuas deveriam receber a assinatura dos Provinciais,
entretanto, eram escritas “por seus secretários ou por algum Irmão de
reconhecido talento para escrever” (FLECK, FRANZEN; MARTINS, 2008,
p. 11). O relator, que classificava e ordenava o material, excluía o que não
era tido como importante ou conveniente. Ele também poderia transcrever
os informes individuais, fazendo, ou não, menção aos seus autores. Depois
de redigidas, as Ânuas eram submetidas a um “censor de estilo”, e, após
isso, à avaliação dos Consultores de Província. Em seguida, eram
traduzidas ao latim.
Após essas “camadas” de filtros, as Cartas, várias cópias e por meios
diferentes, eram enviadas até Roma para o Padre Geral da Companhia. Os
Gerais da Companhia9 estimulavam seus companheiros a escreverem sobre
seus testemunhos na “divulgação da palavra de Cristo e na conquista
espiritual dos gentios e infiéis” (FLECK; FRANZEN; MARTINS, 2008, p. 11).
As Ânuas alcançavam um público maior do que os religiosos jesuítas,
circulavam entre a população europeia com o intento de conquistar novas
vocações. Por isso, define-se as Ânuas como um gênero de escrita
“edificante”. A circulação e leitura pretendida na Europa buscava estimular
“[...] a boa-vontade das autoridades, as doações por parte dos bem-feitores
da Companhia e as vocações de novos irmãos”, além disso, as informações
sobre os indígenas “[...] convertidos a partir do apostolado jesuítico eram
exemplos de vida e fé a serem seguidos”, e portanto, “[...] as Cartas seriam
mais um diálogo espiritual com os leitores, do que um registro fiel de uma
realidade observada e descrita” (FRANZEN, FLECK, MARTINS, 2008, pp. 1112). Aqui, chamamos a atenção novamente para a questão do propósito de
escrita destas Ânuas, que indicam algumas possibilidades e limites de sua
9 Havia também um estilo de documentação que percorria o caminho inverso trilhado pelas Ânuas. Estas, são as
cartas dos Gerais da Companhia, enviadas aos Provinciais. É possível o contato com esse tipo de fonte através do
trabalho de Martín María Morales (2005), por exemplo.
102 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
utilização. Ou seja, a escrita das Cartas não tinha a intenção de ser um relato
da verdade vivida e observada, mas, de ser um testemunho edificante.
As Cartas também testemunham a solidão do sacerdócio, as
dificuldades enfrentadas – sobretudo em localidades fronteiriças -, e
demonstram que os jesuítas deveriam estar “prontos para o sacrifício do
martírio como testemunho extremo de vida” (FLECK, FRANZEN, MARTINS,
2008, p. 12). Nesse sentido, um possível objeto de pesquisa para quem optar
por utilizar as Cartas Ânuas é o estudo da subjetividade destes missionários,
que estavam em contato com um mundo completamente adverso do seu.
Um exemplo contundente de estudo neste sentido é o livro de Ivonne Del
Valle, Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuitas en el siglo
XVIII (2009), no qual a autora investiga a epistemologia dos missionários
em contato com populações indígenas na fronteira norte do império
espanhol, a partir de noções como corpo e subjetividade.10
Outras possibilidades de pesquisa com o uso das Cartas Ânuas dizem
respeito ao estudo das relações mantidas entre estes missionários, o
trabalho que eles exerciam nas cidades e nos Colégios, e nas chamadas
missões populares11. Esta documentação também pode servir ao estudo
sobre os indígenas, sobretudo, no caso das sociedades que eram ágrafas.
Para isso, contudo, é necessário ter em claridade a questão do
etnocentrismo, perceber que o olhar do jesuíta é o de um evangelizador e
civilizador, que vê o indígena como um ser humano que precisa ser
transformado. Nesse sentido, estas fontes podem ser instrumentos
importantes para estudos etnográficos, mas precisam ser decodificadas
através de um exame crítico – possível, sobretudo, a partir das
10 “...muitos missionários, por causa da solidão e do desgaste físico e psicológico do excesso de atividade apostólica,
sentem a necessidade de receberem conforto e a ajuda de conselhos sobre o melhor modo de proceder. Daí que a
troca de notícias por via epistolar traz consigo novo ânimo e recíproca consolação” (RODRIGUES, 2011, p. 4).
11 Há o trabalho de Beatriz Franzen (2005), no qual a autora investiga as missões populares a partir, justamente, da
Carta Ânua de Pedro Lozano.
Thaís Macena de Oliveira | 103
contribuições da antropologia. Este exame crítico não tem a intenção de
deslegitimar os sujeitos históricos construtores dos discursos. Não se trata
de exercer um julgamento moral a posteriori sobre o que os missionários
relataram, mas, de relativizar as informações a fim de evitar a reprodução
das generalizações, por exemplo.
A grande “virada” foi passar a tratar as Ânuas realizando uma crítica
interna delas. Ou seja, não mais ler estas Cartas com uma intenção
positivista de que elas sejam o reflexo do que ocorreu nas missões. Assim,
um documento muito clássico e tradicional como as Cartas Ânuas, vem
sendo reutilizado por historiadores que tem renovado a produção
historiográfica sobre os jesuítas, sobre as missões, a partir da crítica
interna das fontes, buscando decodificar as intencionalidades, os aspectos
subjetivos. É necessário abandonar a ilusão de uma historiografia que via
essa documentação uma janela para o passado.
Dito isto, o presente texto buscará evidenciar as informações
relatadas sobre a redução de Pampas e as populações indígenas da região,
a partir da Ânua de Pedro Lozano S.J, sempre que possível,
contextualizando com trabalhos recentes sobre este espaço e estas
populações.
A Carta Ânua de Pedro Lozano S.J e as reduções austrais
A estrutura característica de uma Carta Ânua é iniciada com uma
saudação protocolar e uma introdução, seguida da descrição da situação
específica de cada Colégio. No caso da Carta Ânua escrita por Pedro Lozano
S.J, nos deparamos com a seguinte estrutura:
[...] lo repartiré en varios capítulos, tratando primero lo perteniciente a los
colegios, y los ministerios acostumbrados, en ellos ejercitados;
2º las continuas predicaciones apostólicas habídas en cada uno de los colegios
al pueblo, con un éxito extraordinario;
104 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
3º las excursiones que se han hecho, desde estos colegios a los pueblos
circunvecinos en cada año;
4º la vuelta a nuestro colegio de la Asunción, y la recién fundada residencia en
el puerto de Buenos Aires;
5º los trabajos de los nuestros en las misiones del Paraná y Uruguay;
6º los trabajos de los mismos en la misión de los chiquitos;
7º las antiguas y nuevas estaciones misionales entre infieles;
8 º al fin nuestros hermanos en religión, difuntos en esta Provincia (LOZANO,
[1735-1743] 1994, pp. 2-3) [grifo nosso].
Aqui, nos interessará, especificamente, a parte sétima desta fonte, em
que o religioso descreve sobre uma série de projetos missionais entre
infiéis, entre estes, os de pampas e serranos. Descrever a estrutura da
Carta teve a intenção de apresentar a enormidade de possibilidades de
objetos de estudo que há com essas fontes. Esta Ânua contém mais de 600
páginas. O presente trabalho focou na análise das páginas 579 a 603, uma
vez que são nestas que se encontram as informações sobre a redução de
Pampas. Passaremos agora para a exposição das informações contidas
nesta carta, realizando uma crítica interna do conteúdo a partir de
trabalhos da historiografia e da antropologia, que nos ajudam a entender
a complexidade destas relações e desta região.
Lozano S.J inicia seu relato intitulado La misión y redución de los
Pampas fundada el año de 1740, afirmando que os pampas eram uma
“nação”12 numerosa que a princípio resistiu ferozmente a dominação
espanhola, retardando-a muito. Mas, que a esta altura, acabaram sendo
obrigados a fazer as pazes e reconhecer a superioridade dos espanhóis.
Podemos, e, devemos relativizar esta informação, uma vez que existem
inúmeros trabalhos nas últimas décadas que demonstraram que os
12 Para o exame da questão das classificações étnicas como não definidoras das identidades indígenas, ver: Boccara,
2001 e Weber, 2007.
Thaís Macena de Oliveira | 105
indígenas da região, suas ações e estratégias políticas, continuaram a
impor uma série de dificuldades aos intentos espanhóis durante o
desenrolar do século XVIII (ARIAS, 2007; MARTINS, 2017; SILVA, 2016).
Sobre o trato familiar com os espanhóis, Lozano afirma que isto levou
ao arraigamento de seu principal vício, a ebriedade. “Dizimados” pela
varíola e pela bebida, esses indígenas se reduziriam à três “parcialidades”
de número “insignificante”. Além de utilizar trabalhos da historiografia e
da antropologia recente, outro meio pelo qual o/a pesquisador/a pode
realizar uma crítica interna da fonte é através do cruzamento desta, com
uma documentação de outra origem, em que os sujeitos viam os
acontecimentos por outra ótica.
Nesse sentido, para um estudo que tenha como objeto a questão da
demografia das populações indígenas desta região, as atas dos Acuerdos
do Cabildo de Buenos podem ser valiosas no intento de relativizar tal
“dizimação”, por exemplo. Assim, podemos colocar este número
“insignificante” que Lozano afirma, dentro de um contexto. As atas do
Cabildo de Buenos Aires, sobretudo as que são referentes às décadas de
1730 e 1740, apresentam de forma contundente a preocupação das
autoridades com os inúmeros ataques às estancias – conhecidos como malones – e às carretas de comerciantes que andavam pelos caminhos,
colocados em prática por grupos indígenas da região. Nestas atas, seguidas
vezes, nos deparamos com as autoridades implorando aos superiores –
governador e/ou rei – ajuda financeira para empreender a “guerra” contra
os infiéis, em uma situação que transparece até mesmo uma
“inferioridade” militar destes colonos em relação aos nativos. Tal situação
revela que o número “insignificante” de indígenas naquele período, não
era tão insignificante assim, pelo menos, não em relação à demografia da
região.
106 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A Carta Ânua, por si só, já é uma fonte que transparece a ação dos
jesuítas. Ela também acaba revelando as ações de outros sujeitos. Ou seja,
há uma infinidade de movimentações sociais, políticas, econômicas, e
militares, que são possíveis de vislumbrar através da leitura desse
documento. Nesse sentido, Lozano relata alguns acontecimentos
essenciais da década de 1730 – especificamente, a série de ataques e roubos
– que irão gerar inúmeras consequências, inclusive, relacionadas ao
progresso da redução de Concepción de los Pampas.
No ano de 1734 ocorreram vários delitos, como o roubo de gados dos
povoadores das aldeias próximas de Buenos Aires, perpetrados por alguns
grupos de índios pampas. Como castigo, o governador mandou cativar
alguns pampas (não se tem ideia se são os mesmos pampas que efetuaram
os delitos). Como não havia provas suficientes, eles foram soltos e
julgaram o acontecido como uma injustiça, se juntaram em número muito
grande e atacaram a todos na estância de Don Francisco Cubas Diaz,
levando todo o seu gado. Como resposta a este ataque, se decidiu “castigar
os atrevimentos” do cacique Calelían, o Velho, e da sua parcialidade. Essa
entrada punitiva levada a cabo pelo Mestre de Campo Juan de San Martin,
acaba por tomar a parcialidade indígena de surpresa e dizimar a todos do
grupo (FARIAS, 2017). Entretanto, não havia nenhuma prova de que teria
sido Calelían, o Velho, o autor dos saques à estancia. Seu filho, Manuel
Calelían, estava ausente quando o ataque aconteceu, e, tendo notícia do
fato, voltou após a retirada dos espanhóis. Ao ver seu pai, parentes e
amigos degolados, resolveu se vingar, então reuniu cerca de 300 homens,
foi à vila de Lujan, matou grande número de espanhóis, tomou alguns
cativos, e roubou alguns “milhares” de cabeça de gado.
De acordo com o relato de Lozano, depois do ataque sobre Lujan, há
uma outra expedição punitiva orquestrada por Juan de San Martin. Uma
das frentes desta, acaba atacando um grupo de pampas serranos liderados
Thaís Macena de Oliveira | 107
pelo cacique Don Maximiliano, que detinha uma licença para habitar a ilha
de Carbón, e mantinha um trato amigável com os espanhóis. Mataram o
cacique e sessenta de seus vassalos, e cativaram mulheres e crianças, como
se eles tivessem sido cumplices dos delitos cometidos por outros pampas.
O sobrinho de Maximiliano, o cacique Cangapol, o Bravo, liderou inúmeros
momentos de instabilidade na região, nos anos seguintes.
Há, com esses relatos, embora não possam ser vistos como a
apreensão da “verdade” sobre os acontecimentos, uma boa ideia da
complexidade das relações estabelecidas entre estes grupos indígenas –
sociedades
extremamente
segmentadas,
como
vimos
–
e
os
hispanocriollos.
A própria existência da redução dos Pampas foi afetada por estes
acontecimentos. Segundo Lozano, os pampas puelches e carayhetes, com
esta sorte de tragédias, ficaram preocupados com os seus destinos. Assim,
segundo o Padre, esses caciques teriam considerado que seria mais
acertado nestas circunstâncias, se entregarem à administração dos
espanhóis. E assim, foi oferecido a eles que vivessem em redução, pois
teriam paz e o favor de proteção do monarca católico.
Foi o governador quem logo decidiu, de acordo com Lozano, que seria
a Companhia quem deveria tomar a direção desse projeto, devido aos seus
“bons frutos”13. Rogou ao Provincial que proporcionasse as pessoas mais
idôneas, em que pudessem instruir os pampas “formando de ellos templos
vivos de Dios” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 590). Ele também teria
“agenciado” o projeto com o “empenho de um missionário”. Falou com o
reitor do Colégio para convencê-lo e afirmou que esta seria “una ocasión
13 “Outro “motivo-vantagem” do escrever é a humildade, produzida e alimentada pela
consideração de que quanto trabalho o jesuíta passa e faz na missão, e que Deus se serve destes co-irmãos
missionários. Disto decorre o crescimento do “bom odor” da Companhia, muito almejado para os fins a que ela se
propõe” (RODRIGUES, 2011, p. 4).
108 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
excelente para los Padres, en lo qual pudiesen comprobar que no buscaban
otra cosa, sino servir a Dios y al rey” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 591).
Para Lozano, até mesmo o “cielo pareció favorer esta empresa” [...]
pois os superiores tinham destinado “unos sujectos excelentes, varones
verdaderamente apostólicos, y ya muy experimentados entre los
guaraníes” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 592). Estes padres eram
Manuel Querini e Matías Strobel.
Os missionários tinham uma preocupação muito grande: que a
admissão da fé cristã deveria ser algo completamente livre, que os índios
não se atravessem a pedir o batismo por medo. Os caciques – Don Lorenzo
Manchado, Don José Acazuzo, Don Lorenzo Manuel e Don Pedro Milán –,
segundo relata Pedro Lozano, foram encaminhados ao Colégio, para que
fossem questionados várias vezes sobre o assunto.
O Padre Provincial recebeu as cartas do Governador e do Cabildo
Secular, resolvendo admitir a redução dos Pampas. O Cabildo Secular
nomeou alguns cavalheiros distintos para recolher as esmolas de casa em
casa. Em pouco tempo, conseguiram cerca de 700 pesos de prata, mil
ovelhas e outras tantas vacas. Esse sucesso no recolhimento de esmolas
para o empreendimento, se deve ao fato de que, não apenas para as
autoridades, mas, também para todos os criollos da região, a redução
significava a esperança de que esta “zona de contato” (PRATT, 1999) seria
apaziguada14.
Enquanto isso, o Padre Matías Strobel se dirigiu com os caciques e
uma escolta militar para localizar o terreno mais adequado para a
fundação da redução. Neste momento, Lozano relata que os missionários
tiveram algumas dificuldades, uma vez que os catecúmenos queriam se
14 “Había esperanza de que se aumentaria de un día al otro su número, juntándose con ellos otros pampas, que
vagaban por los montes; hasta otros infieles más, tan pronto que supiesen algo de la redución, y hubieron visto, cuán
comodamente se vivía en ella” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 598).
Thaís Macena de Oliveira | 109
“establecer demasiado cerca de la ciudad, parte para alejarse más de sus
enemigos, los pampas serranos, parte para poder comunicarse con más
facilidad con los españoles, circunstancia que a todo trance se empeñaron
los padres a eliminar...” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 595). Assim, foi
necessário que o Governador interferisse:
Para allanar esta dificultad, llamó el gobernador de provincia a su presencia
los caciques, y los encargo, interponiendo su autoridad, que, ante todo,
guardasen una total obediencia y reverencia para con los Padres [...] y por lo
tanto, quedasen solo las tierras al otro lado del rio Salado, las mismas que
había escogido el Padre Matías, como muy a proposito para la redución
(LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 595).
Ao relatar esta dificuldade, Lozano nos conta que o governador
precisou agir e ser firme ao esclarecer a autoridade dos padres para os
indígenas. Não é possível afirmar em que ponto chegou tal
“desobediência”, ou insistência dos pampas, sobre a questão da localidade
da redução. Mas, podemos conjecturar que este foi um desafio que já
antecipava como as relações nas reduções austrais seriam mediadas15.
As Cartas Ânuas são repletas de exemplos de conversões que
possuem como intento a edificação dos seus leitores. Assim, na Ânua de
Lozano, especificamente, também há um relato deste tipo. Trata-se da
conversão da esposa do cacique Manchado16, que
Se había enfermado gravemente, y pidió aqui ardientemente el bautismo.
Habiendose ella preparado con gran para este acto, recebió este sacramento
com también poco después él de la Extrema unción, y al fin, entre firvientes
15 Este trecho chama a atenção para a questão da agência indígena, tema de estudo nos últimos anos por alguns
historiadores. No caso da região em questão, temos, por exemplo, o trabalho de Silva (2016), que buscou investigar
a agência destes nativos no manejo da fronteira bonaerense e das relações nas missões.
16 O nome da indígena não é mencionado, questão que nos chama atenção para os desafios de uma história de gênero
indígena, haja vista um “duplo” silenciamento sofrido. São muito raras as menções aos nomes das mulheres nas
fontes dessa região e período, não apenas para o caso das indígenas.
110 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
actos de virtud, y durante la recomendación de su alma, se fue al cielo, como
feliz primicia de esta futura misión” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 597).
Depois deste relato edificante de conversão de uma indígena
enferma, Lozano conta que os Padres, os pampas e alguns guaranis
artesãos, chegaram ao local da fundação da redução e iniciaram as obras.
Após assegurar, por ora, o sustento temporal da redução, era chegado o
momento de iniciar a principal tarefa dos missionários, “que consistia en
formar de estos troncos primero seres racionales, y despues buenos
cristianos” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 599). Lozano dá detalhes de
como era feito isto. Se reuniam aos catecúmenos pela manhã e à tarde “les
explicaban la doctrina cristiana; y para que les entrase ella con más
facilidad, la hacían rezar en alta voz” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 599).
As crianças foram todas batizadas, e assim também os adultos que
desejavam receber o sacramento e que se empenhavam em aprender a
doutrina. À noite, nas suas casas, eles deveriam repetir a lição dada pelos
padres, e as vezes, relata Lozano, vinham pedir explicações aos
missionários sobre o que não entendiam.
Com isso, os Padres estavam, segundo Lozano, maravilhados “de tan
buenos resultados, y estó, con gente que por dos siglos habían quedado
mas dura que rocas, así que parecia haber llegado el momento,
determinado por el cielo, para su conversión” (LOZANO, [1735-1743]
1994, p. 600). Ainda, o que teria animado mais aos Padres foi “la
prohibición absoluta de la ebriedade, cosa, que hasta ahora era muy
deseable para esta nación, pero tenida por irrealizable”17 (LOZANO, [17351743] 1994, p. 600).
17 O período que a Carta Ânua de Lozano [1735-43] abrange diz respeito aos primeiros momentos de
desenvolvimento da redução de Pampas [1740-1752]. Assim, não podemos arriscar uma explicação sobre diferença
entre este relato e as cartas e crônicas dos próximos jesuítas missionários que atuaram na região. Nesse sentido, uma
potencialidade de estudo seria a investigação, a partir de documentações de vários jesuítas, das circunstâncias que
Thaís Macena de Oliveira | 111
A Carta é finalizada com o jesuíta trazendo à tona que o “espírito do
mal” não aguentou “este feliz progreso de la misión, y para destruirla,
quiso encender las antorchas de la guerra, instigando los pampas a
asaltarla, o, a lo menos, procurando que los catecúmenos la abandonasen
por miedo del español” (LOZANO, [1735-1743] 1994, pp. 600-601). Lozano
está se referindo às ameaças de ataques que o referido cacique Bravo e
seus aliados estavam exercendo pela região. Um dos alvos deste grupo
seria a nova redução, que se viu livre deste perigo, de acordo com Lozano,
devido que “ali había una trinchera muy alta, defendida por dos cânones...”
(LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602).
Entretanto, os pampas reduzidos não se viram livres das acusações
de que eles seriam cúmplices da parcialidade do cacique Bravo. Relata o
padre Lozano, “surgió la sospecha contra estos inocentes, como si ellos
hubiesen atraído al inimigo ifo (sic) infiel” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p.
602). Os “vecinos” passaram a tratar “como enemigos encarnizados a
todos nuestros catecúmenos” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602), e
complementa com a defesa dos catecúmenos:
Sucedió por entonces, que dos pampas fueran tratados pessimamente por los
vecinos de Buenos Aires, contanto ellos, al volver a la redución, los
maltratamientos, sufridos por los españoles. Al oi resto el cacique catecúmeno
Don Felipe Yahati, se transtorno de tal manera, que ya no se tenía por seguro,
en caso de que no volviera con sua vassalos a sus serranos; y lo puso a la obra,
sin que los nuestros le hubieran podido quitar de la cabeza este arbitrio
disparado. [...] Pero Dios quiso conservar allí a los demás, para comprobar su
inocencia [...] Estaba además, comprobada su inocencia por el outro hecho,
testificado por los Padres, que sus pampas, en tiempo de la invasión, todos
estabam presentes en su pueblecito (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602-603).
causaram a falência do projeto reducional na pampa bonaerense, ou, ainda, verificar o porquê das fontes posteriores
a esta Ânua apontarem o caráter borracho e quase “inconvertível” desses indígenas.
112 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Considerações finais
A realização deste trabalho revelou algumas potencialidades e
desafios do uso das Cartas Ânuas como fontes etnográficas, para o
entendimento das relações vivenciadas nas missões e nos seus arredores,
por indígenas, criollos e jesuítas.
Foi possível perceber que vários objetos de investigação podem ser
trabalhos a partir de uma crítica interna do documento histórico – que
deve ser tido como uma versão que é sempre limitada e incompleta sobre
os fatos – aliada ao cruzamento de fontes, quando possível e necessário.
No caso de inúmeros grupos indígenas, não temos acesso à uma
versão escrita do passado sob as suas óticas. Dessa maneira, uma análise
das fontes “tradicionais”, como o caso da Carta Ânua, através de uma
perspectiva que considere as contribuições da antropologia, sobretudo,
podem nos auxiliar a formular possíveis interpretações que considerem a
visão dos nativos sobre o passado, e a agência desenvolvida por eles nas
relações, por exemplo.
Um dos principais questionamentos que a análise desta Ânua de
Lozano levantou, foi a questão do que teria motivado os indígenas pampas
a solicitarem a construção de um Pueblo sob à proteção dos espanhóis, e
aceitarem formar uma redução. A fonte, lida por si só, indica para duas
motivações. O medo dos ataques de outras populações indígenas da região,
e, um verdadeiro intento de salvação da alma. Entretanto, lida nas
entrelinhas, com as contribuições já citadas, e, tendo em conhecimento
outras fontes produzidas nos anos seguintes, é essencial levantar a
hipótese das relações sócio-políticas e comerciais-econômicas, que seriam
aproximadas e intensificadas a partir da vivência em um Pueblo, como
Thaís Macena de Oliveira | 113
uma importante motivação desses indígenas terem procurado e aceitado
viver reduzidos18.
Fonte
LOZANO, Pedro. Carta Ânua de la Provincia del Paraguay año 1735 – 1743 Traducción
de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Transcrición 1994 Instituto Anchietano
de Pesquisa, UNISINOS.
Referências
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administradores borbónicos en los territorios rioplatenses: la jurisdicción de Buenos
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Ciudad en la punta y en todas partes”: Manuel Calelian e o processo de 1945. In:
Criminalidade, violência e justiça: reflexões e novas possibilidades.
Organizadores: Caroline von Mühlen, Maíra Ines Vendrame e Caiuá Cardoso AlAlam.
– São Leopoldo: Oikos, 2017. p. 56-64
18 Podemos ver, nos anos seguintes, tanto nas fontes produzidas pelos missionários, como nas documentações de
origem civil, que a redução, para os pampas, foi “reinterpretada” conforme as suas próprias intenções, conforme o
seu agenciamento das relações. Havia uma queixa frequente de que esses catecúmenos abandonavam e voltavam
para redução como se estivessem em uma de suas tolderias, ou seja, seus acampamentos estacionais.
114 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
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Thaís Macena de Oliveira | 115
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WEBER, David. Bárbaros. Los españoles y sus salvajes en la era de la Ilustración.
Barcelona: Crítica, 2007.
História Oral e Memória
Capítulo VI
Pandemia, fronteiras regionais e estudos
da memória: conexões e virtualidades a partir
do IV Encontro Discente de História da UFRGS
João Camilo Grazziotin Portal 1
Lúcio Geller Junior 2
Pedro Henrique Batistella 3
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada um barco que veleje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque, para abastecer
Gilberto Gil, Pela Internet
A década de 1990 foi decisiva para a consolidação dos computadores
como itens de consumo doméstico destinados ao trabalho e ao lazer no
Brasil. Você poderia ler textos ou ver fotos em monitores similares aos
televisores da época. Conectar-se à internet não era tão comum, fazer um
1
Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; joaocamilooo@gmail.com
2
Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; lucio.geller@gmail.com
3
Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; pedrohbatistella@gmail.com
120 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
download podia levar algumas horas, e transmissões de vídeo em tempo
real eram raras. Contudo, em 14 de dezembro de 1996, Gilberto Gil, um
cantor que “anda com fé”, lançou Pela Internet, que, fazendo justiça ao
nome, foi a primeira música inédita que se pode ouvir na frente de um
computador, em casa, no país, entrando nas frequências do rádio no dia
seguinte. Com uma boa dose de otimismo, Gil cantou as promessas e
potencialidades da informação e da cultura e as fez velejar ao redor do
planeta pelo “infomar”, de Taipé até Helsinque.
De lá pra cá, o que se pode dizer é que as transformações tecnológicas
ao longo do novo século alteraram profundamente a nossa sociedade,
gerando novos meios de sociabilidade, novas formas de difusão e produção
de conhecimento e conteúdo, sob novos meios e formatos. No mundo
digital, seja através das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram) ou
das plataformas colaborativas (YouTube, Wikipédia), todos os sujeitos
conectados podem produzir e divulgar conteúdos, inclusive históricos
(CARVALHO, 2018, p. 171-172). Com efeito, os saberes, de modo geral,
configuram-se hoje muito mais como uma rede de conexões do que como
“a construção científica e disciplinar que evidenciou e dirigiu a formação
dos campos tradicionais de saber, como no nosso caso a História”
(PEREIRA, 2016, p. 9).
Outro aspecto importante desse cenário diz respeito ao fato de que,
por mais inovadora que tenha sido a letra e a divulgação da música de Gil
em 1996, a tecnologia não cessou de sofisticar-se. Palavras que antes eram
novidade, como “disquete”, já foram pelos ares, ou melhor, para as
“nuvens”, fazendo parte do fenômeno que Valdei Araujo e Mateus Pereira
(2019) convencionaram chamar de “atualismo”. Tal conceito pode ser
vivamente exemplificado por uma iniciativa do mesmo Gil, que, em 2018,
resolveu “atualizar” aquela canção, lançando Pela Internet 2. Agora, é
“cada dia nova invenção” e “5 gigabytes” já são suficientes para velejar; e,
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 121
porque falar em “giga”, se agora é “terabyte”, “que não acaba mais por
mais que se deseje”. Ao invés de um “disquete” para um “micro” em Taipé,
o “monge no convento, aguarda o advento de deus pelo iPhone”. Como
bem canta Gil, há uma contínua dilatação do que é estar “atualizado”, que,
ao mesmo tempo, também cria aquilo que corre o risco de “ficar para trás”,
isto é, “desatualizado”. Essa pressão, dizem Araújo e Pereira (2019, p. 180),
“ganha os contornos de uma ideologia, na medida em que parece dar
sentido a uma visão conjunta da realidade”.
Em março de 2020, a emergência abrupta da pandemia de
coronavírus (COVID-19), declarada pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), imprimiu uma necessidade violenta e sem precedentes de
“atualização” de quase todas as esferas da vida das pessoas. Nessa situação,
apartar-se do mundo pandêmico não era uma opção. No caso dos
acadêmicos, principalmente de mestrandos e doutorandos, se por um lado
suas atividades já tinham traços individualizantes e por vezes solitários,
não por menos foram afetadas e modificadas pela pandemia. Eventos
como congressos, seminários, colóquios, muitas vezes momentos de
grande interação e confraternização entre estudantes e pesquisadores,
foram “atualizados” para a realidade virtual pandêmica. Foi esse o caso do
IV Encontro Discente de História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), programado para ocorrer em setembro de 2020, mas que
acabou “transferido” das dependências do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas no Campus do Vale, em Porto Alegre, para as salas da
plataforma online Google Meet.
Diferentes reflexões podem ser motivadas a partir da “atualização”
que essa situação implicou para as atividades acadêmicas. Assim, dois de
nós, João e Pedro, como os dois proponentes do Eixo Temático 3: “História
Oral e Memória”, recebemos com surpresa a inscrição de trabalhos de
pesquisadores vinculados a distintos programas de pós-graduação do país.
122 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Os três autores aqui -
os dois coordenadores do simpósio e um
apresentador de trabalho assíduo em todas as mesas - estavam
acostumados a dialogar com mestrandos e doutorandos majoritariamente
de universidades da região Sul e, eventualmente, da região sudeste.
Passamos a perceber que o nosso evento havia sido “atualizado” da sua
dimensão regional para “nacional”. Nesse sentido, a virtualização do
evento, ocorrido de maneira totalmente gratuita para não gerar exclusões,
nos proporcionou um diálogo com pesquisadores e trabalhos que
dificilmente teríamos contato caso o evento fosse nas dependências da
UFRGS. A adaptação à nova realidade do espaço, agora vista em sua forma
virtual, foi ao encontro de vozes compartilhadas e de uma historiografia
nacional absolutamente abundante, a ponto de inclusive nos
questionarmos sobre o que significa falar em termos de uma historiografia
brasileira no singular.
A partir dessa experiência, nos deparamos com uma historiografia
diversa, lançando um contraponto à uma memória disciplinar unificada e
territorialmente circunscrita ao eixo Rio-São Paulo. Certamente, à
maneira de Gil, tal modificação valeu-se dessa “vazante da infomaré”, isto
é, da virtualização do evento, ou da sua absoluta “desespacialização” - ao
menos física, como veremos adiante - para fluir por correntes territoriais
diversas. Tal mudança nos serviu para entrarmos em contato com outros
territórios, outros sujeitos e outras epistemologias através da interlocução
com pesquisadores de estados como Paraíba, Pernambuco e Goiás, para
citar alguns exemplos. Fomos de testemunhos de acontecimentos
catastróficos do século XX a narrativas sobre práticas e rituais que
compõem as representações do espaço urbano no interior de Minas Gerais.
Por isso, como organizadores do Eixo Temático Memória e História Oral,
acreditamos que essa experiência nos permite esboçar algumas reflexões
sobre o papel da tecnologia nas pesquisas, encontros e demais atividades
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 123
que compõem o nosso campo de estudos, assim como sobre a diversidade
temática e teórico-metodológica das pesquisas sobre o mesmo a memória
no Brasil. Desse modo, o texto está organizado em dois movimentos:
primeiro, refletimos brevemente sobre algumas implicações na vida dos
pesquisadores/as e na dinâmica acadêmica imposta pela atual conjuntura;
em seguida, apresentamos considerações a respeito das mobilizações
teóricas francesas por parte dos estudos da memória no Brasil, a partir de
uma perspectiva atenta às relações geopolíticas do conhecimento.
§
Da delimitação de um problema de pesquisa ao acesso e à gestão das
fontes, da escrita até à comunicação da história - como neste capítulo,
redigido à três mãos, em que cada autor está em uma cidade diferente do
Rio Grande do Sul compartilhando um mesmo arquivo no Google Docs percebemos que cada vez mais as problemáticas tradicionais da história
passam pela tela de um computador ou por uma conexão de Internet. É
assim latente o imbricamento entre a história e o desenvolvimento
tecnológico, manifesto já em etapas mais “analógicas”, como foi o caso, por
exemplo, da própria metodologia da história oral, ligada ao aparecimento
de aparelhos de gravação portáteis. Contudo, tais percepções limitam-se à
esfera instrumental da tecnologia, que não necessariamente implicam em
uma reflexão sobre o seu papel em nossa profissão, assim como o seu
potencial de ressignificação das tradições e de reinvenção da própria
disciplina histórica (CARVALHO, 2018, p. 173; LAITANO, 2020, p. 176).
Por outro lado, convém sublinhar, ainda que brevemente, o momento
em que estamos pensando tais questões. O olhar sobre a crise
desencadeada pela pandemia, para além das necessárias soluções home
office, não pode arredar-se da dimensão assombrosa das perdas de vidas
humanas que fazem, uma vez mais, a disciplina histórica repensar o seu
lugar no mundo. As considerações e alternativas àquela perspectiva
124 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
instrumental apresentam-se, e isso não se pode ignorar, nesse estado de
medo e sofrimento em que vivemos. Estamos em mais um momento cujo
centro, parafraseando Walter Benjamin (1987, p. 114), encontra-se sob o
“frágil e minúsculo corpo humano”. É o corpo em risco, o corpo isolado e
o corpo no ciberespaço frente ao princípio tácito que aqui
problematizamos, dos encontros corporais dentro de um mesmo espaço
físico, dos professores com suas turmas, dos pesquisadores com seus
pares, do historiador oral com seus entrevistados, enfim, das trocas dentro
e fora dos ambientes escolares e universitários, do “olho no olho” e do
aperto de mão, espacialmente delimitados.
Como dissemos, não é de hoje que novas dinâmicas e trocas sócioculturais, através de interconexões dadas pela tecnologia, “reconfiguram”
a nossa “forma de enxergar o mundo”, compelindo, inclusive, os espaços
tradicionais de produção e circulação de conhecimento (PEREIRA, 2016, p.
15). Uma possível palavra-chave para estes problemas talvez seja
justamente essa: reconfiguração. Ao desenvolverem tecnologias, segundo
Ricardo Santhiago e Valéria Barbosa de Magalhães (2020, p. 4-5), os
humanos também são “recriados” e, sobretudo, “ampliados” por elas; seus
“corpos não são desmaterializados, mas reconfigurados virtualmente”;
seus hábitos, costumes e práticas medulares são reorientados; e, “novas
modalidades de comunicação transfiguram gêneros do discurso, seus
conteúdos e modos de dizê-lo”. Por isso, acreditamos ser necessário ir
além do instrumental, pois a tecnologia é mais um “exoesqueleto”,
justaposto ao olho humano, do que um “autômato”, ou, no limite, um
Terminator de seres humanos “obsoletos” (NICODEMO; CARDOSO, 2019,
p. 22-33)
Em nossa experiência, os corpos de jovens pesquisadores foram
reconfigurados para auditórios inteiramente virtuais, assim como o
Encontro como um todo, que contou, inclusive, com transmissões de
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 125
palestras ao vivo no YouTube e no Facebook. As mesas do nosso Eixo
ocorreram em dois turnos, vespertino e noturno, ao longo de dois dias.
Recebemos trinta e dois resumos de inscrição, distribuindo-os em três
mesas de debate conforme suas temáticas: Mesa 1 – Autoritarismos e
memórias sensíveis: trauma e violência no século XX; Mesa 2 – Memórias
em circulação: identidades, patrimônios e lugares de memória; Mesa 3 –
Corporeidades, repressões e escritas de si. Diferentes regionalidades,
memórias quilombolas em Pernambuco, relações afetivas comunitárias
com seus lugares de memória no Ceará, estudos sobre religiosidades
regionais no interior de Minas Gerais vieram nos desestabilizar enquanto
pesquisadores e pensadores do Rio Grande do Sul. Acreditamos que tenha
sido justamente essa a proposta de troca do evento, proporcionando
diálogos não apenas epistemologicamente diversos, mas sobretudo
territorialmente diferentes. Nos vimos verdadeiramente conectados.
Os meios de comunicação e divulgação, em conformidade com as
próprias circunstâncias do evento, deram-se sobretudo através das redes
sociais Facebook e Instagram. Este último, além da própria página do
Encontro, contou com a divulgação da página Eventos Acadêmicos de
História, criada em 2019 pela historiadora Thaís Turial (UnB), cujo
objetivo é “centralizar” em um mesmo ambiente chamadas de publicações
acadêmicas e eventos de história. Nas apresentações, além dos
convencionais agradecimentos pelo espaço de diálogo ofertado, muitos
comunicadores não deixaram de registar de qual cidade e Estado estavam
falando e a forma pela qual ficaram sabendo do evento, momento em que
repetidas vezes ouvíamos o nome da dita página do Instagram. Em
conversa com suas administradoras, em 03 de novembro de 2020, sobre
o alcance que ela veio adquirindo entre o público daquela rede social, elas
nos contaram que, em junho de 2020, tinham não mais do que 3 mil
126 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
seguidores, mas “em setembro já eram 10 mil” - número que não cansa de
se atualizar, pois enquanto escrevemos ela já passa dos 13 mil.
A menção ao lugar de onde falavam, acompanhada pelo potencial de
divulgação da Eventos Acadêmicos de História, buscava expressar, em
especial, o potencial de circulação do conhecimento no ambiente digital e
a oportunidade que se abre de fazer “conexões” de longo alcance, no
sentido dos espaços de apresentação e discussão de pesquisas. Nosso
Encontro, vale destacar, não foi o único que se “virtualizou” ao longo de
2020. Do XV Encontro Nacional de História Oral, passando pelo Encontro
Nacional de História Pública, até os diversos encontros das seções
estaduais da Associação Nacional de História (ANPUH), diversos outros
ocorreram através de serviços de comunicação por vídeo (Google Meet,
Zoom) e transmissões ao vivo em redes sociais e plataformas de
compartilhamento. Nesse sentido, não se pode ignorar a tecnologia,
sobretudo em situações nas quais consistem em uma das poucas maneiras
de viabilização das nossas atividades. No entanto, a discussão não pode se
encerrar por aqui, isto é, na já referida conveniência instrumental.
Para nós, enquanto organizadores, e em consonância com as vozes
acima, a experiência de “virtualização” do corpo pode ser frutífera e até
mesmo necessária. Entendida enquanto um elemento que nos
“reconfigura”, o impacto da tecnologia, bem como os “passos” que damos
junto a ela em nossas pesquisas e atividades, devem ser discutidos teórico
e metodologicamente ao lado de todas as nossas escolhas conceituais,
teóricas, narrativas, sociais e comunicativas. E é a partir deste ponto de
vista que aqui compreendemos que essa “diversidade” e “aproximação” de
pesquisas e pesquisadores nacionais, que nos saltaram aos olhos, pode ser
discutida. É a historiografia e/com tecnologia que, nas páginas seguintes,
nos permitiu refletir sobre temas e textos, lugares e linguagens, escritas e
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 127
epistemologias, reapropriações e ressignificados que encontraram-se no
nas mesas de debate de Memória e História Oral.
§
Uma análise panorâmica da tematização das pesquisas permite
observar a grande diversidade de temas e objetos trabalhados a partir da
metodologia da história oral e do arcabouço teórico dos estudos da memória,
ligados em especial à historiografia francesa. Referências aos conceitos de
“memória
coletiva”,
“enquadramento
da
memória”,
“memória
subterrâneas”, “lugares de memória” indicam a vitalidade da tradição do
pensamento de acadêmicos franceses, como Maurice Halbwachs, Michael
Pollak, Pierre Nora, para os estudos da memória no Brasil. Conforme
salientam Alexandre Avelar e Mateus Pereira (2018), o início dos estudos da
memória teve como grande influência a problemática dos “Lugares de
Memória” vinculada ao projeto historiográfico de Nora. O texto de
introdução do projeto escrito em 1984 foi traduzido pela revista Projeto
História em 1993, possibilitando a expansão de tal referência para os estudos
no Brasil. Muito embora possamos observar uma grande presença dessa
matriz teórica no contexto nacional, nos surpreendemos também com suas
ressignificações. Tal diversidade temática revela a grande capilaridade dos
estudos da memória na historiografia brasileira. Na avaliação de Avelar e
Pereira (2018), de modo geral, seis grandes áreas ou subdisciplinas são
abarcadas pelos estudos da memória no Brasil: os estudos da escravidão e
da diáspora africana, a história oral, o ensino de história e patrimônio, a
ditadura militar e a teoria da história/história da historiografia.
Não cabe aqui traçar a trajetória de apropriação que os historiadores
apontam, mas somente destacar que uma das particularidades que
caracterizou a introdução do campo de estudos da memória no Brasil
constitui-se na sua relação articulada com a emergência da metodologia
da História Oral. Desse modo, segundo Avelar e Pereira (2018), essa
128 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
característica foi expressada na postura crítica à perspectiva de Nora e, por
conseguinte, da tradição sociológica de Halbwachs. Todavia, esse processo
não implicou na marginalização de um sobre o outro, mas na
complementação de suas perspectivas através da apropriação de variadas
referências europeias, destacadamente dos trabalhos de Michael Pollak e
de Alessandro Portelli (AVELAR; PEREIRA, 2018). O primeiro autor foi
citado sobretudo através de dois textos, também publicados na revista
Estudos Históricos: Memória, esquecimento e silêncio (1989) e Memória e
identidade social (1992) - este último fruto de uma conferência no Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC). Pollak serviu não só como uma revisão do pensamento de
Halbwachs, herdeiro da tradição sociológica de Émile Durkheim, mas
também abriu novas problemáticas no campo, as quais estão sendo
desenvolvidas, a saber: os conflitos de memórias; a relação entre a
“memória coletiva” e a “memória individual”; as “memórias
subterrâneas”; a dimensão traumática dos testemunhos (POLLAK, 1989;
1992). Na sequência, com Portelli, a partir de sua análise do massacre dos
italianos em Civitella Val di Chiana pelos alemães em 1944, foi sublinhado
o caráter “fragmentado” e “idiossincrático” da memória e o papel
mediador da cultura (PORTELLI, 1996).
Ademais, cabe observar a inserção de autores como Paul Ricoeur, Jan
e Aleida Assmann, Andreas Huyssen, Beatriz Sarlo, Sigmund Freud,
Walter Benjamin, Henri Bergson ao longo das últimas décadas,
reafirmando a característica de constante investimento teórico do campo
brasileiro (PEREIRA; AVELAR, 2018). Contudo, Avelar e Pereira (2018)
consideram que, se por um lado os estudos da memória no Brasil
demonstram esse esforço teórico, há de ser levado em conta também as
dificuldades de sua inovação teórica. Nesse sentido, os autores destacam o
valor paradigmático dos dois artigos de Pollak como parte do conjunto de
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 129
referências mais citadas no campo. Em vista disso, enfatizam os usos e
abusos da noção de “enquadramento” como desdobramento desse lugar
paradigmático assumido por Pollak, de modo que, por vezes, a categoria
pode tornar-se subserviente e perder sua eficiência explicativa (AVELAR;
PEREIRA, 2018). Não obstante, o lugar social dos historiadores, segundo
Ana Carolina Barbosa Pereira (2018), não pode ser desvinculado de seus
usos epistêmicos. Neste caso, consideramos que, em relação aos estudos
da memória no Brasil, há certo a priori vinculado à historiografia francesa,
o que demonstra uma grande correlação estrutural no plano das pesquisas
dadas a nível nacional. Identificamos, portanto, uma expressiva presença
de referências franceses, o que corrobora a análise de Barbosa Pereira a
respeito de uma certa dependência epistêmica. Assim, é necessário
lembrar dos pretensos ideais universais do discurso científico europeu,
que foram tanto produtores quanto aliados dos processos de colonização
a nível mundial ao longo da modernidade.
Como interpretar então o “locus enunciativo desse conhecimento
hegemônico” (PEREIRA; 2018, p. 97)? Ao que nos parece, tal tradição
historiografia mantém-se mais ou menos estável a nível nacional desde a
sua introdução no final do século passado. Logo, não seria demais afirmar
que, ao mesmo passo em que tais estudos condicionaram as bases
fundamentais para a área da memória no Brasil, as atuais produções são
descendentes diretos de tais categorias de análise. Muito embora
reconheçamos o provincialismo que se inscreve em tais autores,
fundacionais e estruturalmente estáveis para a área no Brasil, não
podemos deixar de ressaltar as diferentes (re)apropriações que se pode
fazer desses mesmos autores.
A partir da compreensão de que a dinâmica centro-periferia na
produção do conhecimento histórico possui a ideologia de dominação
europeia como base epistemológica, Pedro Afonso dos Santos, Thiago
130 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Nicodemo e Mateus Pereira (2017, p. 177) questionam: “existem meios de
aproveitar as tensões produzidas por essa dualidade para pensarmos
criticamente? Ou estaríamos aprisionando o pensamento em um horizonte
inevitavelmente etnocêntrico?”. Considerando a pertinência de tais
indagações, ao longo do simpósio percebemos que diversos trabalhos
seguiam uma linha tangente à teoria crítica e aos estudos decoloniais, ou
seja, tais trabalhos não estavam reproduzindo acriticamente a bibliografia
francesa, ou utilizando-a como justificativa científica do domínio colonial;
antes, vimos como certo autor, por exemplo, utilizou de maneira positiva os
conceitos de Halbwachs e Pollak enquanto instrumentais de análise para
compreender uma comunidade quilombola no interior de Pernambuco,
numa exposição engajada na afirmação de sua negritude territorial.
Por isso, cabe retomar a dimensão ético-política da trajetória dos
estudos da memória e sua articulação com a metodologia da História Oral
no Brasil. Desse modo, cumpre ressaltar que esses dois campos se
articulam no contexto dos primeiros anos da Nova República, o que
implica considerar que a experiência da redemocratização redefiniu os
pressupostos ético-políticos da historiografia brasileira a partir da década
de 1980. Para Francisco Gouvea de Sousa (2018), tais mudanças se
expressaram a partir do interesse em abordar “novos personagens”
historicamente excluídos da história oficial. É considerando tal horizonte
democrático, que constitui a identidade da historiografia contemporânea
brasileira, que podemos entender as mobilizações do arcabouço teóricometodológico, majoritariamente francês, pelos estudos da memória no
Brasil, e principalmente seus efeitos políticos e éticos para o debate
historiográfico e público brasileiro.
Segundo Francisco Santiago Júnior (2015), as categorias da
historiografia
francesa,
como
“lugar
de
memória”,
foram
instrumentalizadas pelos historiadores da história do tempo presente no
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 131
Brasil para articular tal anseio por “dar voz” aos “excluídos da história”.
Desse modo, a articulação dos estudos da memória com a metodologia da
História Oral no Brasil viabilizou a produção do conhecimento
historiográfico alinhado com os debates públicos democráticos da Nova
República. Na avaliação do historiador,
O interesse da historiografia parece ter sido transformar a memória em fonte
histórica, apreciando o fenômeno mais pelo aspecto dos métodos e limites
desta “nova” fonte (discussão fundamental da história oral, metodologia de
investigação por excelência), e menos por sua dimensão processual. Por meio
do testemunho oral, os subalternos poderiam ter ‘o direito à memória’ e os
historiadores poderiam se aproximar do presente. Este ‘direito’ consolidou
uma nova perspectiva das ciências humanas, as quais se aproximaram das
questões da memória por meio de um princípio ético-epistemológico de fazer
dela a matéria prima por meio da qual os subalternos poderiam adquirir
visibilidade social, participando inclusive do reforço de uma cultura cidadã
(SANTIAGO JÚNIOR, 2015, p. 246) .
Assim como Gouvea Sousa (2018), entendemos que o princípio do
“direito à memória” ainda compõe o horizonte democrático da escrita da
história no Brasil do século XXI, e foi fortemente expresso nos trabalhos
apresentados no evento em questão. Observamos autores engajados em
suas pesquisas, social e epistemologicamente, realizando um grande
reconhecimento a respeito de grupos tradicionalmente vistos como
periféricos ao longo da história da historiografia. Estaríamos em pé de
evidenciar mais uma reprodução provincial? Acreditamos que não, mas
também em certo sentido que sim, pois é também no interior da própria
universidade, e da própria epistemologia disciplinar, que torna-se possível
questionar suas bases e fundamentos por dentro, produzindo novas
configurações estruturais geopoliticamente diversas que não atentem
apenas ao Norte global.
132 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Nesse sentido, não seria necessário afirmar mais uma vez ao leitor a
dependência francesa em relação aos estudos sobre a memória.
Entretanto, acreditamos haver sempre certa diferença de significado entre
os conceitos e as formas pelas quais eles são utilizados e reapropriados por
seus diversos atores ao longo do tempo. O que pudemos ver, além de uma
epistemologia meramente europeia, foi também um uso crítico dessas
referências.
§
A partir da nossa experiência conjunta de realização do Eixo Temático
Memória e História Oral no IV Encontro Discente de História da UFRGS,
buscamos apresentar reflexões historiográficas sobre os estudos da
memória no Brasil, sem desconsiderar os efeitos da pandemia do COVID-19
nas condições de possibilidade do evento, bem como na vida dos
pesquisadores. Enquanto mestrandos que trabalham em torno dos campos
da História Oral, dos estudos da memória e dos usos do passado, nossa
intenção consistiu em estabelecer apontamentos com base na diversidade
de temas e objetos inscritos. Embora conscientes da impossibilidade de
apresentar apontamentos gerais a partir de um reduzido espaço de
apresentações de trabalho sobre história oral e memória, procuramos nesse
breve texto registrar nossas reações e impressões desencadeadas pela
ampliação do horizonte teórico-metodológico e temático, suscitado pela
abrangência nacional que o evento adquiriu.
Não caminhamos, entretanto, em direção a uma frieza objetivista que
almeja dizer que há então algo de “favorável” proporcionado pelas
horrendas circunstâncias em que nos encontramos, nem tão-pouco
referendar a propalada vulgata do “novo normal”, naturalizando
processos destrutivos e de dissociação das relações de trabalho (SEGATA,
2020). Por certo, acreditamos em ver essa abrupta emergência do virtual
a partir de março de 2020 muito mais como um problema do que como
João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 133
uma simples resposta para a nossa disciplina. O que nos parece é que há
uma dimensão frutífera e latente de reflexão sobre os espaços virtuais, que
não deve se limitar às situações nas quais consistem na única forma de
viabilização das nossas atividades, nem à mera conveniência instrumental.
Poderíamos falar, nesse sentido, numa espécie de pequeno futuro
imaginado por nós durante o evento? Retomando a ideia da historiadora
polonesa Ewa Domanska, acreditamos que a incorporação de uma
estrutura digital não é apenas o sintoma da “atualização” da área, mas faz
parte da própria performatividade da área atualmente. Enquanto ação
localizada, acreditamos que a conexão ocorrida pela virtualização do
evento pode servir de inspiração para “conectar e criar, e não dividir e
governar”, tal como provocado por Domanska (2018) a respeito das
humanidades atualmente. Não obstante, acreditamos que a desobediência
epistêmica pode inclusive existir a partir do uso crítico de determinadas
correntes de pensamento, na medida em que são reapropriadas enquanto
preenchimentos particulares como incentivadoras de racionalidades
outras por meio de epistemologias sustentáveis. Muito embora a ideia de
Humanidades afirmativas (DOMANSKA, 2018) seja ampla para tratarmos
aqui, enquanto esboço conclusivo consideramos que a possibilidade de
cenários que vão além da mera representação da catástrofe tornam-se
concretos quando acreditamos em sua resolução futura. Não vimos,
durante o simpósio, a discussão de catástrofes estanques e traumas
inconclusos, como uma eterna condenação pessimista da derrota que
assola, antes da humanidade, boa parte da historiografia. Antes,
percebemos como diversos autores a nível nacional discutiram as
possibilidades futuras para a história. Talvez a união, ou a amizade,
enquanto método esteja em voga aqui, como um aprendizado
compartilhado de discussão. Nesse sentido, tendo consciência dos
dolorosos tempos de hoje, acreditamos que a esperança nesse momento é
134 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
de extrema necessidade para nós enquanto criadora de redes
compartilhadas, coisa que, em última instância, constitui o próprio viver
coletivo no tempo.
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digital? In: SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane; MAUAD, Ana Maria (Org.).
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Capítulo VII
Sob o olhar quilombola:
narrativas, memórias, tradições e oralidades
José Luiz Xavier Filho
É inexplicável pra mim, eu não sei se é de mim mesma, mas eu considero
muito ser do quilombo [...] é muito histórico. Você pode é... assim... pode ver,
eu não sou tão nova, chega por aí e fala assim: “Solange do Sambaquim”, todo
mundo já me conhece, porque onde eu chego, na cidade, na rua em Cupira, lá
fora onde for, falou mal de Sambaquim: Epa! Peraí, eu sou de Sambaquim. Eu
já entro com tudo, tô nem aí ó, tenho nem medo de nada. Eu pra defender
minha comunidade enfrento todo o perigo. (Solônia Josefa da Silva, 34 anos)
Quando falamos em “quilombo”, a visão que ainda predomina no
pensamento da maioria dos brasileiros é a de um local de escravos rebeldes
e refugiados, e a principal referência é a do Quilombo de Palmares,
destacando-o somente como uma experiência militar difícil de ser
destruída. Mas desconhecem quase que completamente os processos de
espacialidades, territorialidades, identidades negras e suas heranças
africanas.
Eram sociedades político-militares, que nasceram de movimentos de
insurreições, levantes, revoltas armadas, proclamando a queda do sistema
escravocrata. Frequentemente aqueles movimentos tomavam a forma de
quilombos à semelhança de Palmares. Os quilombos existiram em
múltiplos pontos do país em decorrência das lutas ocorridas em diferentes
lugares onde houvesse negação de liberdade, dominação, desrespeito a
direitos, acrescidas de preconceitos, desigualdades e racismo. Segundo
Rafael Sanzio dos Anjos:
José Luiz Xavier Filho | 137
É no território étnico, um espaço político, físico e social, que estão gravadas as
referências culturais e simbólicas da população, um espaço construído,
materializado a partir das referências de identidade e pertencimento territorial
e, geralmente, dotado de uma população com traço de origem comum. A terra
tem grande importância na temática da pluralidade cultural brasileira, no
processo de ensino, planejamento e gestão, principalmente no que diz respeito
ás características territoriais dos diferentes grupos étnicos que convivem no
espaço nacional (ANJOS, 2006, p. 15).
O território é uma condição essencial porque define o grupo humano
que o ocupa e justifica sua localização em determinado espaço. A terra e o
terreiro, não significam apenas uma dimensão física, mas antes de tudo
um espaço comum, ancestral, de todos que têm registros da história, da
experiência pessoal e coletiva do seu povo, enfim, uma instância do
trabalho concreto e das vivências do passado e do presente (ANJOS, 2006).
Hoje os quilombos estão localizados em quase todo o território
nacional, principalmente nas áreas rurais. Incorporados às áreas urbanas
e periféricas das cidades, essas comunidades tradicionais caracterizam-se
por apresentar diferentes níveis de inserção na sociedade.
O conceito de comunidade quilombola, portanto, tem origem no campesinato
negro, povos de matriz africana que conseguiram ocupar uma terra e obter
autonomia política e econômica. Ao quilombo contemporâneo está associada
uma interpretação mais ampla, mas que perpetua a ideia de resistência do
território étnico capaz de se organizar e reproduzir no espaço geográfico de
condições adversas, ao longo do tempo, sua forma particular de viver. [...] As
comunidades quilombolas emergiram e apresentam visibilidade no
movimento do campesinato brasileiro, em se tratando das políticas
afirmativas e de reparação social (Idem, 2006, p. 52).
É nesse contexto contemporâneo de quilombos, que se movem no
decorrer do tempo, que se insere o município de Cupira, localizado na
138 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Região Agreste de Pernambuco. Preservando ainda uma região de
descendentes de quilombolas, o Quilombo Sambaquim dista quatro
quilômetros da cidade. Hoje, essa comunidade constitui um quilombo
contemporâneo, que não representam mais um espaço de fuga,
estrategicamente isolado.
É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica
stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como
uma camisa de força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e
imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que
tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão
das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente
coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes
sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como
quilombo (ALMEIDA, A. W. B., 2002, p. 63).
Sob o viés historiográfico é possível perceber, hoje, que as
comunidades remanescentes quilombolas não permaneceram estáveis
com o passar do tempo. Elas mudaram conforme a dinâmica da história,
isto é, não são apenas terras de negros fugidos dos tempos coloniais. Logo,
nossa pesquisa não se limita a tratar e definir o Quilombo Sambaquim se
baseando apenas em conceitos e definições, e sim, procurando questionar
e entender como foi construída a ideia de quilombo e de ser quilombola
através de seus aspectos culturais, na medida em que formam sua
identidade como comunidade remanescente.
É preciso pensar nesses grupos como possuidores de articulações
sociopolíticas e econômicas próprias e não de forma teatralizada, como se
fosse possível criar um estereótipo daquilo que se espera que sejam, como se
estivessem emolduradas em um tempo e espaço que não se modificaram desde
a escravidão. A existência de comunidades quilombolas, na acepção
contemporânea do termo, está indissociavelmente ligada ao processo de
José Luiz Xavier Filho | 139
integração social desses sujeitos. Ela rompe com a possibilidade de
manutenção da percepção estática tradicional na qual os quilombolas
continuariam sendo considerados como grupos de ex-escravos que se
refugiavam e se organizavam no sentido de reagirem e se rebelarem contra o
regime ao qual estavam submetidos (SANTOS; DOULA, 2008, p. 73).
As comunidades remanescentes quilombolas guardam memórias
específicas que ajudam a contar outra história do Brasil, uma história na
qual as ditas “minorias” ocupam o lugar de sujeitos protagonistas e não de
meros colaboradores. Nesse processo, a identidade é peça chave no resgate
da história e memória dessas comunidades. Ao mesmo tempo, servem de
meio para uma politização em busca de direitos sociais que foram
historicamente negados a esses grupos. Para maior compreensão dos
estudos sobre comunidades quilombolas contemporâneas, é necessário
desvincular-se da ideia do passado, abrindo uma nova concepção de
comunidade e de suas relações sociais.
Esses espaços são formados a partir de uma questão de identidade e
territorialidade, os quais remetem à valorização de suas tradições e
histórias relevantes para a consolidação da comunidade negra ali
estabelecida. Nas palavras de Anjos, pensar:
Em um conceito de quilombo mais amplo na atualidade, como um segmento
da sociedade brasileira excluído secular e historicamente, que tem direitos e
garantias territoriais reconhecidos, porém ignorados. Negar a importância da
população de ascendência africana é, na verdade, negar a verdadeira
identidade brasileira (ANJOS, 2006, p. 75).
No quilombo Sambaquim é através das manifestações e expressões
culturais (festas e ritos religiosos, músicas e danças) que os quilombolas
lutam por um espaço e resistem à tentativa de ter a sua cultura
considerada subalterna e periférica. A partir dessas manifestações, os
140 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
indivíduos passam a se identificar com suas tradições, valorizando suas
origens. As identidades são contestadas a partir de um novo olhar, não
confirmando o caráter de subalternidade, de modo construtivo no
processo de formação dessa identidade.
As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado
histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência.
Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da
história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós
somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as
questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as
questões “quem nós podemos nos tornar”. “como nós temos sido
representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos
representar a nós próprios” (HALL, 2003, p. 109).
Ao pensarmos sobre o processo da formação da identidade
quilombola, levamos em consideração que existem esferas individuais e
sociais conectadas, que se constroem no cotidiano da comunidade. Sendo
assim, a história, a tradição, a oralidade, a cultura e o sentimento de
pertencimento a um determinado grupo social fazem parte da construção
identitária de cada membro da comunidade.
Significa pensar em grupos sociais cuja identidade se constrói em um processo
dinâmico, na união de fatores diversos: história cultura e relações de poder. É
pensar em atores sociais detentores de discursos múltiplos que se constroem
como sujeitos em suas relações com seus pares e com o universo externo às
comunidades em que vivem. Ignorar as diferenças e peculiaridades desses
sujeitos, certamente apresenta-se com um fator negativo para a construção de
sua identidade (SANTOS; DOULA, 2008, p. 82).
A partir disso, podemos refletir a respeito da importância do processo
de construção da identidade negra nas comunidades quilombolas. O
José Luiz Xavier Filho | 141
estudo do cotidiano, das memórias e das tradições orais da comunidade
nos possibilita estudar as mais diversas relações sociais do quilombo e nas
formas como as questões culturais se moldaram através do tempo até os
dias atuais.
Memória e tradição do quilombo Sambaquim na contemporaneidade
O Quilombo Sambaquim, foi inserido no município de Cupira em
1959, data da emancipação política da cidade. Até então, Cupira era uma
vila pertencente ao munícipio vizinho, Panelas. Nesse mesmo ano, com as
novas limitações geográficas, o sítio ao qual leva o mesmo nome da
comunidade quilombola, foi anexado aos limites territoriais de Cupira.
Dentro da comunidade remanescente é de fundamental importância,
a construção de sua história, visto que a oralidade em Sambaquim é a fonte
que faz perpetuar o conhecimento, através das gerações. Conforme Matos
e Castro, em comunidades quilombolas, “os aspectos simbólicos da
memória familiar da escravidão” (MATTOS; CASTRO, 2006, p. 109) são
comumente destacados nas narrativas, principalmente dos mais velhos.
As histórias são construídas de acordo com a produção da memória
coletiva. As narrativas são “elaboradas e reelaboradas em função de
relações tecidas no tempo presente” (MATTOS; CASTRO, 2006, p. 109).
A priori, quando começamos a pesquisa em Sambaquim, na busca
sobre sua historicidade, investigamos sua ancestralidade e descobrimos
que o nome do quilombo foi dado pelos “antigos” - palavra
constantemente presente na fala dos quilombolas quando se referem aos
seus antepassados, como podemos ver no trecho abaixo:
Ói, a origem, segundo os mais antigos, tinha uma árvore com um nome
Sambaquim e por isso ficou chamado comunidade Sambaquim.
Pesquisador: Nos casos os mais antigos são teus avós?
É bisavós, eram esses... (Quitéria Josefa da Silva, 43 anos).
142 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Outras definições dadas pelos moradores confirmam a descrição feita
por Quitéria Josefa da Silva, como no caso a fala de Otávio Miguel da Silva:
A origem do Sambaquim? Quer dizer que a origem aqui... O nome de
Sambaquim vem, eu vou falar pra você. Eu não conheci o pau [árvore], mas
ainda conheci umas raizeras de pau atravessado no barranco da água. Olhe, a
origem de Sambaquim vou lhe mostrar. Você tá vendo aquela casa, por cima
dessas duas que tem essa branca ali, naquele terreno de lavoura, lá no pé da
serra a casa, apois o Sambaquim é daquela casa pra cá na baixa era um olho
d’água antigo que se chamava Sambaquim (Otávio Miguel da Silva, 76 anos).
A árvore se encontra na entrada da comunidade e, segundo os
moradores, é nesse ponto que os antigos se encontravam ou se
orientavam. Supõe-se que a árvore podia ser o marco referencial para os
negros fugitivos onde identificavam a entrada do quilombo. Além da
função simbólica para a comunidade, ela é um ponto de referência para os
limites territoriais. É comum na comunidade apontarem onde começa ou
termina o quilombo, uma forma de demarcar o local e as fronteiras interétnicas1, que, segundo eles, são pelos aspectos físicos da geografia local. As
referências dos limites de Sambaquim, historicamente, são a árvore, da
qual deriva o nome da comunidade até a Serra do Bode, depois da serra se
encontra outra comunidade quilombola.
1 Nos apropriamos desse termo porque a comunidade faz fronteira com outra comunidade quilombola e com outros
sítios, aos quais eles chamam de terra de brancos.
José Luiz Xavier Filho | 143
Figura 01 – Árvore Sambaquim
Fonte: Arquivo do autor, 2020
Figura 02 – Serra do Bode
Fonte: Arquivo do autor, 2020.
O nome da serra é derivado de um conto que a comunidade conhece
bem, João Miguel filho compartilhou conosco:
144 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Ali onde você tava era a Serra do Bode, não sei se lhe contaram a história da
Serra do Bode pra você. Aqui ali, antigamente, era que nem o sertão, ninguém
tinha um metro de terra, criava solto, né. Aí a finada mãe, falou, disse que, o
cara vinha correndo dentro do mato atrás de um bode, aí chegou naquela
pedra lá, você viu a pedra? Naquela pedra ali o bode pulou e ele pulou junto,
não sabia a altura, porque dá uns 60 metros pra lá. Ele pulou junto e ficou
enganchado numa calça de arrurado, o bode morreu embaixo, mas ele ficou
enganchado e tiraram ele, o arrurado era um pano azul, bem azulzin, o caba
ficou enganchado no toco e depois tiraram ele, aí botaram o nome Serra do
Bode (João Miguel Filho, 71 anos).
A Serra do Bode também é referência a um “esconderijo” que existe
nela. No topo, existe uma gruta chamada Pedra da Lua, local onde os
antepassados se escondiam. Informalmente, durante as andanças pelo
quilombo, conversávamos com os moradores sobre esse local, e diziam
que era ali que os antigos se escondiam. Não podemos provar com
exatidão esse fato, fica apenas as falas de uma história movida pela
tradição oral.
A vida em Sambaquim não é fácil, mas já foi mais difícil que nos dias
atuais. De acordo com os moradores, a comunidade já passou por
situações muito precárias, mas, hoje em dia, já se aspiram dias melhores
na comunidade.
A minha vida foi muito sofredora, comecei a trabalhar desde os 8 anos, até
hoje não tive estudo, que meu pai não podia dá estudo pra nói, quando a gente
queria estudar ele: “não, vai trabalhar”. Plantar uma mandioca, uma
macaxeirinha, plantar uma batata. A gente tinha que fazer tudo isso. Despois,
quando tava com 17 ano, fugi, que não aguentei, fugi fui morar em Alagoas,
fazer sabe o que? Cortar cana (Josefa Estelina da Silva, 60 anos).
Solônia Josefa da Silva complementa, em seu diálogo, problemas com
a infraestrutura do local, segundo ela:
José Luiz Xavier Filho | 145
Antes pra começar, fiquei ajudando meus pais desde cedo, com 9 anos de
idade. A gente morava numa casinha de taipa. Sabe o que é casinha de taipa
né. Uma casinha tão pequenininha, que quando eu cresci, cresci demais como
você vê, pra entrar em casa eu tinha que me abaixar. Daí por diante a gente
tinha que trabalhar, a gente sofria porque não tinha energia, água muito
menos. Trabalhava no roçado, a vida da gente foi muito dura, muito sofrida
mesmo. Mas graças a Deus depois que chegou esse negócio da energia, aí veio
aparecendo mais recurso, a gente foi crescendo, fomos trabalhando sem parar,
sempre no roçado. Só largava de meio-dia porque tinha a escola, a gente
precisava estudar. Estudava, mas vivemos até hoje da agricultura. Hoje em
dia, eu me considero uma pessoa rica, é o que eu repasso para meus filhos,
porque antes, era aquela coisa, como Seu José falou pra você, mãe ia pra feira,
e ia pra cidade de a pés, ia e voltava, a feira vinha assim, num saquinho, a
gente não tinha tanto recurso, a gente não tinha dinheiro pra comprar comida,
nem pra comprar comida a gente tinha dinheiro, então... (Solônia Josefa da
Silva, 38 anos).
Apesar de todas as dificuldades que foram relatadas, foi demonstrado
através da narrativa de Maria Sileide, que viver em Sambaquim é motivo
de orgulho para ela, de modo à sua fala soa como uma satisfação pessoal.
Ela diz:
Eu gosto muito, eu amo essa comunidade, desde quando eu nasci, a questão
assim de sofrer, eu não sofri muito não, meu pai já andava por São Paulo. O
custo de vida assim, não tive sofrimento. Eu adoro essa comunidade, eu amo
morar aqui (Maria Sileide da Silva, 34 anos, grifos nossos).
Por sua vez, os moradores que saíram da comunidade em busca de
melhores condições de vida para arriscarem novas oportunidades em
cidades grandes, e retornaram para o quilombo, não se adaptaram ao
ritmo frenético dos grandes centros urbanos.
146 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Saí daqui com 16 anos pra São Paulo, cheguei lá de menor. “O que é que vou
fazer meu Deus?”. Mas eu tinha muitos primo lá, tinha muitos primo lá, tinha fí
lá. Voga por um ponto, mai família voga muito mai tempo, mai num voga porque
a pessoa é de menor. Mas podia voltar, né. Quando arrumar um emprego vai
ganhar, e eu cheguei lá não faltou serviço não, porque era trabalhador aqui e lá
enfrentei tudo a vida, só não roubar, mas todo trabalho em São Paulo eu fiz,
todos os trabalhos lá, cortar cana, e caipir mato, arrumei uma coisa no pomar,
no pomar passei 6 meses, era banana, pêssego, figo, laranja, abacate, abacaxi,
uva, todo tipo de verdura tinha lá. Comecei mesmo, com 6 meses eu saí, aí
arrumei um serviço na pedreira, e fui quebrar pedra de marreta, bater, furar
buraco, o dia todim batendo marreta. [...]Todo ano eu vinha de São Paulo,
passava 2, 3 mês e ia mim bora, passava lá e a família aqui. Meu pai e minha
mãe, meu pai morreu, meus filhos ficaram já de maiorzin. Entreguei la e vim
mim bora. Tô por aqui ainda (José Joaquim da Silva, 74 anos).
É perceptível entre os quilombolas um sentimento comunitário
mútuo e uma ligação forte à terra, local onde a maioria nasceu, “se criou”
e fincaram suas raízes. O trabalho se resume a agricultura e, dessa forma,
se torna escasso para a parcela que não quer trabalhar no cultivo e
procuram trabalho “na rua”2. Sobre a história do quilombo, João Miguel
Filho foi apontado pelos moradores entrevistados como um referencial na
comunidade para falar a respeito, enquanto autoridade. Ele narra a origem
de Sambaquim através dos “negros fugidos de Palmares”:
E então... também chegou, uns... acho que negros era refugiado da família dos
quirinos, acho que foi na época que eles vinheram de Palmares, acho que quem
acabou com esse negócio foi... o nome dele, esqueci o nome dele... Zumbi do
Palmares, num foi ele que organizou uma associação por lá. Sei que esse
negros, certamente vinheram de lá, que eles eram bem pretim, pretim mas
pretim mesmo (João Miguel Filho, 71 anos).
2 Palavra utilizada para se referirem a cidade de Cupira.
José Luiz Xavier Filho | 147
Percebemos em seus relatos que sua memória individual não está
isolada e fechada, sua fala é contextualizada, coerente com os outros
relatos dos moradores. No momento memorial impulsionado pela nossa
visita ao quilombo, pudemos perceber as conversas constantes por parte
dos moradores, que evocavam lembranças antes esquecidas. Como bem
disse Halbwachs:
Nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida. Por
história, devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas,
mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros do qual os livros
e as narrativas em geral nos apresenta apenas um quadro muito esquemático
e incompleto (HALBWACHS, 2003, p. 79).
Quando o questionamos se João Miguel Filho sabia algo sobre a
participação dos seus antepassados em movimentos ligados ao quilombo
ele nos fornece o seguinte:
Pesquisador: Os seus pais e avós (antepassados) já participaram de
algum movimento ligado a quilombos?
O que eu sei dizer mesmo, é que minha finada mãe dizia, que ela pertencia a
esse povo. A avó dela foi pegada e mãe dela foi pegada a dente de cachorro,
que nem índio, caboclo brabo, você sabe, ela veio pro mato, e... refugiada, com
certeza, já né. Diz que pegaram ela assim, diz que ela era bem pretinha, cabelo
escorrido, e a finada mãe era desse mesmo jeito. Eu tenho um retrato dela aqui
(João Miguel Filho, 71 anos).
Não pretendemos comprovar e descrever a origem exata do
quilombo, porém observá-la por meio dos diálogos, que foram
estabelecidos com os moradores da comunidade. O fato de usarmos as
entrevistas e a história oral em Sambaquim potencializa nossa pesquisa
porque nos dá acesso a pluralidade da memória e inúmeras perspectivas
de um passado em comum. Ao mesmo tempo, a utilização da memória e a
148 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ênfase na tradição oral, facilita o contato numa comunidade onde esses
aspectos fazem parte do cotidiano e da história dessas pessoas.
São os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão que mais se
destacam nas narrativas, elaboradas e reelaboradas em função de relações
tecidas no tempo presente, como em todo trabalho de produção de memória
coletiva (MATTOS; CASTRO, H. M. M, 2006, p. 169).
A comunidade quilombola Sambaquim hoje reconhece a sua
importância não só para a cidade, mas para a história. Solônia Josefa da
Silva, 38 anos, em nossa última conversa revelou que estava com medo do
que queríamos, mas que agora não se sente mais com medo. Relatou que
já tinham chegado a se reunir na Associação Comunitária de
Remanescente de Quilombo Sambaquim de Cupira (ACORQ) e não
responder mais nenhum “entrevistador” que fosse até eles, porque todos
que iam, conseguiam o que queriam e não traziam nada de volta a
comunidade. Compartilhou que em nenhum momento desanimou o povo,
e que, se passaram por situações bem piores no passado, enfrentariam
qualquer uma que surgisse.
As identidades estabelecem uma conexão entre o presente na
comunidade e dão origem de um passado histórico em comum com o qual
elas continuariam a manter uma certa correspondência. Isso ficou
evidente durante nossas entrevistas e nas relações sociais cotidianas da
comunidade. Em contrapartida, a autoatribuição em se dizer quilombola,
nos pareceu serem atribuídas e construídas por mediadores, pois as
respostas adquiridas, quando questionamos “o que é quilombo?”, eram
quase as mesmas, uma repetição do conceito e alguns não sabiam
responder.
Pesquisador: O que é quilombo?
José Luiz Xavier Filho | 149
Ói, não sei se vou responder no pé da letra, mas... Quilombo é o seguinte,
quilombo acho que é aquele povo refugiado no tempo do cativeiro, né, que
correram daquele mundo que não sei da onde, e saíram se refugiando (João
Miguel Filho, 71 anos, grifos nossos).
Pesquisador: O que é quilombo?
Sei não.
Pesquisador: Mas o senhor sabe que mora em um quilombo, né?
É... os negros trabalhava apulso. Cativeiro né... o tempo do cativeiro (José
Joaquim da Silva, 74 anos, grifos nossos).
Pesquisador: O que é quilombo?
O que eu conheço aqui... pra mim é... o que é quilombo, é aquela história que
você, não sou quilombo, me considero descendente de quilombo, porque a
gente já vive aqui numa terra sofrida, que vem dos escravos, acho que
quilombo é essa coisa, viver da agricultura, não sei nem explicar, já peguei essa
história caminhada, um pouco difícil pra mim ainda (Solônia Josefa da Silva,
38 anos, grifos nossos).
Através das falas dos nossos entrevistados, entendemos que os
mediadores, possivelmente, foram os que trabalharam na comunidade
durante o processo de titulação em 2005, pois esses, segundo os
moradores, esclareceram para eles o que era quilombo. Nessa ótica, não
podemos afirmar com exatidão quando começou especificamente a
discussão no quilombo, mas, através dos diálogos, o termo “ser
quilombola” começa a ser usado após a fundação da ACORQ,
estabelecendo uma relação com um dos papeis assumidos pela Associação:
representar a comunidade nas questões sociais relativas ao quilombo e as
atividades culturais e do campo.
Esses posicionamentos foram discutidos com todos os entrevistados:
queríamos saber o que eles entendiam por quilombo e perguntamos se eles
se consideram quilombolas e o que isso influenciava na vida deles. Nosso
interesse não é definir o conceito de quilombo, mas saber até aonde eles
sabem o que é, o que torna mais relevante, portanto, são as memórias do
150 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
grupo em relação ao que seus moradores sabem sobre eles mesmos e o que
foi apreendido com seus antepassados sobre os conceitos deixados por eles.
Os membros da comunidade assumem serem quilombolas, pois
associam o termo com a associação da comunidade e as melhorias que
trouxe ao quilombo. Todos os nossos entrevistados alegaram de modo
consensual que Sambaquim mudou depois que “virou quilombo”. Tais
mudanças vão desde os benefícios e recursos recebidos pelo grupo, até o
modo como são vistos pela sociedade cupirense. Segundo o relato de
Quitéria Josefa da Silva, e confirmado por outros moradores, durantes as
feiras de rua semanais no centro de Cupira, antes do processo de
titularização da comunidade, os quilombolas eram tratados com
preconceito.
O resultado das nossas entrevistas evidencia uma construção
identitária recente sobre ser quilombola. Esse discurso é novo na
comunidade, ganhando força a partir da certificação. Mesmo assim, existe
uma consciência e um conhecimento sobre sua origem histórica, fato
comprovado na fala dos moradores que é justificada por uma
ancestralidade comum: descendentes de escravos. A mediação se torna
perceptível porque os entrevistados tomam como referência a titulação.
Em outras palavras, eles sabem que são quilombolas desde que nasceram,
mas só se sentiram quilombolas depois de um documento oficial.
Com base nos testemunhos orais do grupo construímos essa análise
sobre a identidade negra em Sambaquim e como eles atualizaram esse
conceito. A revalorização da cor passou a ser o símbolo da luta e tem
evocado uma nova percepção sobre eles mesmo e nos processos
identitários. Hoje, após a certificação, a comunidade começou a se politizar
e a buscar melhorias para quilombo.
A identidade negra no quilombo Sambaquim de hoje, como foi
brevemente discutida, se tornou essa realidade da qual se fala tanto, mas
José Luiz Xavier Filho | 151
sem definir no fundo o que ela é ou em que ela consiste. A identidade
objetiva apresentada através das características culturais, linguísticas é
confundida com a identidade subjetiva, que é a maneira como o próprio
grupo se define ou é definido pela sociedade.
Tomar consciência histórica da resistência cultural e da importância de sua
participação na cultura brasileira atual é o que importa e deveria fazer parte
do processo de busca da identidade negra por parte da elite politizada. Mas
basear busca e construção de sua identidade na “atualmente” dita cultura
negra é problemático, pois em nível vivido outros segmentos da população
brasileira poderiam lançar mão da mesma cultura e nem todos os negros que
no plano da retórica “cantam” a cultura negra a vivem exclusiva e
separadamente dentro do contexto brasileiro, assim como não existem
brancos vivendo exclusiva e separadamente a cultura dita branca (MUNANGA,
2012, p. 17).
Essa breve discussão evidencia não só os conceitos e a
ressemantização do termo quilombo dentro da comunidade através das
lutas e conquistas históricas, por parte de um povo que há muito esteve
excluído das políticas públicas. Sambaquim, como comunidade
remanescente de quilombo, permanece nas mesmas terras de origem
ganhando visibilidade não apenas como terra de descendentes de escravos,
mas principalmente como protagonistas da sua própria história.
A identidade está diretamente vinculada à percepção que cada grupo
ou indivíduo tem de si próprio. O quilombola que foi ou é alvo de
preconceito ou que foi discriminado não só pela cor da pele, mas também
por seu local de origem, tenta se tornar um “igual” e a aceitar uma
condição falsa dos outros sobre a construção do seu próprio eu, utilizando
o argumento do agressor para sua transformação sobre si. Compactuamos
com Nilma Gomes quando afirma:
152 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Entendo a identidade negra como uma construção social, histórica e cultural
repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do
olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo
grupo étnico/raciais sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um
olhar que, quando confrontado com o outro, volta-se sobre si mesmo, pois só
outro interpela a nossa própria identidade. A identidade negra é também uma
construção política. Por isso, ela não pode ser vista de forma idealizada ou
romantizada. Significa que, no contexto das relações de poder e dominação
vividas historicamente pelos negros, no Brasil e na [diáspora], a construção
de elos simbólicos vinculados à matriz cultural africana tornou-se um
imperativo na trajetória de vida e política dos/as negros/as brasileiros/as
(GOMES, 2004, p. 9).
Assim, os valores culturais herdados dos seus descendentes passam
a ter menos aceitação pelos jovens da comunidade, porque se tornou
motivo de constrangimento, buscando uma identidade que não pertence a
si e nem ao quilombo. Uma consequência do preconceito ao qual o
quilombola se tornou vítima, ressaltando como é confirmado na fala da
neta de Ulisses Francisco da Silva, “se algo de errado acontecer na cidade,
foi Sambaquim”. Porém, mesmo diante das atitudes discriminatórias, ela
como membro da comunidade, não se tornou vulnerável e ainda afirma:
“é um orgulho pra comunidade de Sambaquim ser parte dos quilombolas.
Eu me sinto. Se alguém me perguntar eu digo que sou de Sambaquim com
muito orgulho”.
Referências
ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. C. Quilombos:
identidade étnica e territorialidade. São Paulo: ABA/FGV, 2002, p. 13-42.
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo. Quilombolas. Tradições e cultura da resistência. São Paulo:
Aori Comunicação, 2006.
José Luiz Xavier Filho | 153
GOMES, N. L. Educação e identidade negra. In: BRITO et al (Orgs.). Kulé kulé: educação e
identidade negra. Maceió: EDUFAL, 2004, p. 83-96.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,
2003.
MATTOS, Hebe; CASTRO, H. M. M. Políticas de reparação e identidade coletiva no mundo
rural: Antônio Nascimento Fernandes e o Quilombo São José. In: Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v.1, n. 37, 2006, p. 167-189.
MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebeldia negra. São Paulo, Brasiliense, 1981.
MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do Quilombo na África. In: Revista USP, n. 28,
São Paulo, 1996, p. 56-63.
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1980.
SANTOS, Alexandre; DOULA, Sheila Maria. Políticas públicas e quilombolas: questões para
debate e desafio à prática extensionista. In: Revista Extensão Rural, DEAER/PGExR
– CCR – UFSM, ano XV, n. 16, jul./dez. 2008, p. 67-83.
Fontes orais
FILHO, João Miguel. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a
José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista
completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
FILHO, Otávio Miguel. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida
a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista
completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
SILVA, José Joaquim da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida
a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista
completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
154 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
SILVA, Josefa Estelina da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista
concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019.
Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
SILVA, José Joaquim da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida
a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista
completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
SILVA, Maria Sileide. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim,
28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do
autor em áudio e transcrita.
SILVA, Otávio Miguel da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo
Sambaquim, 29 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo
pessoal do autor em áudio e transcrita.
SILVA, Quitéria Josefa da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista
concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 29 de novembro de 2019.
Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita.
SILVA, Solônia Josefa da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo
Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo
pessoal do autor em áudio e transcrita.
Capítulo VIII
Entre a lembrança e a compra do silêncio: a Comissão
de Indenização aos Ex-Presos Políticos e a construção
da memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina
Juliano Cabral Pereira 1
Introdução
Em 13 de janeiro de 1998 era promulgada a Lei Estadual nº 10.719, a
qual instituía a Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos de Santa
Catarina – uma comissão especial cuja função era analisar pedidos de
indenização das vítimas da repressão da ditadura militar no estado
catarinense. Seu estabelecimento era não apenas uma maneira de
compensar financeiramente aqueles que sofreram com a violência de
Estado, mas também de reconhecer que as instituições de SC participaram
de forma ativa em ações repressivas ao longo do período ditatorial. Assim,
o grupo fazia parte daquilo que se entende por justiça de transição, a qual
possui como alguns de seus objetivos a reforma das instituições para
consolidar a democracia, o reparo às vítimas, o estabelecimento do direito
à memória e à verdade, a investigação das violações praticadas em
contextos autoritários e o julgamento dos perpetradores da violência
(SCHINCARIOL, 2014; THIESEN, 2019).
Entretanto, a noção de justiça transicional também recebe críticas. A
principal consiste no fato de que comumente é aplicada de modo
generalizante a qualquer Estado que carregue traços de um passado
violento, sem grandes distinções entre os contextos que possibilitaram a
1
Mestrando em História – UDESC; juliaanoc@gmail.com
156 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ocorrência do mesmo (SCHINCARIOL, 2014). Ora, um país que possui
histórico de guerra com outra nação, por exemplo, está inserido em
circunstâncias bastante divergentes de casos onde o próprio Estado
perpetrou o terror contra sua população. Sendo assim, analisar o caso
brasileiro a partir de uma concepção de conflito pode implicar em políticas
de reparação baseadas em um sentido de igualdade, voltadas a resolver a
contenda atendendo a demandas de ambas as partes. Esse foco na
resolução das divergências e não na garantia de justiça às vítimas contribui
para a fundamentação de sociedades amnésicas (SILVA FILHO, 2009, p. 9)
– em que determinados fatos são esquecidos em prol da conciliação.
Contudo, pensar em maneiras de promover o esquecimento é
também fomentar discussões sobre memória. Ou seja, “falar de reparação
é, principalmente, apontar para o combate que se trava hoje em torno de
determinadas memórias, em especial nos países que passaram por
recentes ditaduras” (COIMBRA, 2008, p. 6). Nesse sentido, o foco do
presente trabalho é refletir brevemente acerca da reparação oferecida às
vítimas da ditadura militar em Santa Catarina, a partir da Comissão de
Indenização dos Ex-Presos Políticos, em contraste com a postura da
sociedade em relação à memória do período ditatorial no referido estado.
Ao fim do texto, há ainda exemplos de políticas de reparação2 bem
sucedidas em outras localidades, as quais poderiam inspirar as
autoridades catarinenses.
Comissão de Indenização: Santa Catarina entre o reparo e o esquecimento
A Lei 10.719/1998 diz que “Somente terão direito à indenização os
que,
comprovadamente,
sofreram
sevícias
que
deixaram
comprometimento físico ou psicológico” (SANTA CATARINA, 1998,
2 O sentido de políticas de reparação adotado nesta produção engloba também políticas de memória e de verdade.
Juliano Cabral Pereira | 157
online). Para atender a esse requisito, os solicitantes deveriam entrar com
um processo na comissão, o qual continha o relato por escrito das violações
sofridas e um conjunto de provas que atestavam os fatos narrados. Eram
anexadas páginas de Inquéritos Policiais Militares (IPM’s), matérias de
jornal sobre a repressão nas quais os requerentes eram citados,
transcrições dos interrogatórios a que foram submetidos, alegações de
testemunhas, entre outros materiais que formavam um acervo
documental bastante amplo.
Para além da diversidade, a documentação comprobatória continha
nomes de agentes da repressão, de órgãos responsáveis e de instituições
utilizadas como prisão de perseguidos políticos; são os casos, por
demonstração, de João Rath de Oliveira e de Geni Oliveira Ramos. O
primeiro fez uso de um IPM para atestar sua narrativa e, ao final do
inquérito, há a assinatura do capitão encarregado de produzi-lo, bem como
menciona determinado coronel “a quem incumbe solucionar o mesmo e
remetê-lo a autoridade competente” (OLIVEIRA, 1998, n. p.), citando os
nomes completos de ambos. Já o segundo traz a argumentação do
advogado da solicitante, em que é relatado que seu marido ficara preso no
Sindicato dos Trabalhadores Portuários de Itajaí, “sob o comando do
Tenente da Marinha Brasileira José Pinheiro Dantas” (RAMOS, 1998, n.p.)
– identificando assim o local utilizado como cárcere e o militar responsável
pela sua administração.
Chama atenção o fato de que a comissão era composta, entre outros
membros, por representantes do Ministério Público e da Assembleia
Legislativa, somados a quatro pessoas indicadas diretamente pelo
governador do estado (SANTA CATARINA, 1998). Ou seja, havia ocupantes
de cargos que poderiam fazer uso das muitas informações trazidas no
conteúdo dos processos, direcionando esforços para iniciativas de
reparação às vítimas que fossem além do aspecto financeiro. A reparação
158 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
de caráter indenizatório é necessária e justa; porém, sua utilização solitária
passa longe de ser suficiente. Faz-se necessária a existência de políticas
reparadoras em relação à memória da ditadura militar, que possuam a
finalidade de evitar a permanência de traços autoritários na sociedade
brasileira. De acordo com o artigo 8 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais
competentes remédio efetivo [grifo meu] para os atos que violem os
direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou
pela lei” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2018,
online).
A eficácia desse remédio, no caso das ações posteriores à referida
comissão, pode ser questionada quando posta em contraste com a situação
presente de Santa Catarina em relação à memória do regime.
Primeiramente, apenas em 2013 o governo catarinense se envolveu de
forma direta com outra medida que tratava do assunto – a Lei nº 16.186,
de 5 de dezembro de 2013, instituiu a Comissão Estadual da Verdade Paulo
Stuart Wright (CEV-SC), tendo por função auxiliar a Comissão Nacional
da Verdade a examinar violações de direitos humanos com motivações
exclusivamente políticas (SANTA CATARINA, 2013). Entre as duas
comissões (a de indenização e a CEV), os trabalhos realizados em sentido
reparatório e que tratavam da memória sobre a ditadura foram iniciativas
de caráter nacional (como as Clínicas do Testemunho e as Caravanas da
Anistia) ou de grupos independentes, como o Coletivo Memória, Verdade
e Justiça – mas nada que tenha partido diretamente do governo estadual.
Obviamente, a intenção não é criticar de forma leviana ou condenar as
instituições catarinenses por omissão no trato de questões referentes à
ditadura no estado – longe disso – e sim atentar para o fato de que é
possível fazer mais do que já foi feito, havendo ferramentas para tanto.
Juliano Cabral Pereira | 159
Em segundo lugar, a necessidade de políticas de reparação e do
trabalho de memória é intensificada pelo caráter bastante conservador de
Santa Catarina. Ao longo do século XX, a política local fora amplamente
dominada por grandes famílias que compunham os grupos hegemônicos
do estado (DUWE, 2016; LOHN, 2018), ligadas a partidos mais próximos
ao lado direito do espectro político. Mais do que isso, essa tendência se
mantém quando observados, respectivamente, os partidos dos
governadores eleitos desde a redemocratização e dos prefeitos de algumas
das maiores cidades catarinenses escolhidos nas eleições de 2016.
Governadores: Pedro Ivo Campos (PMDB), Vilson Kleinünbing (PFL),
Paulo Afonso Vieira (PMDB), Espiridião Amin (PPB), Luiz Henrique da
Silveira (PMDB), Raimundo Colombo (DEM/PSD), Carlos Moisés (PSL).
Prefeitos: Florianópolis (Jean Loureiro-MDB), São José (Adeliana Dal PontPSD), Balneário Camboriú (Fabrício Oliveira-PSD), Joinville (Udo DöhlerMDB), Criciúma (Clésio Salvaro-PSDB), Lages (Antônio Ceron-PSD),
Chapecó (Luciano J. Buligon-PSD), Blumenau (Napoleão B. Neto-PSDB),
Laguna (Mauro Candemil-MDB).
Diante disso, é possível levantar a hipótese – confirmá-la demandaria
espaço maior do que o limite da presente produção – de que a sociedade
catarinense, em termos políticos, seria pouco afeita a ideias reformistas,
mantendo certa tendência eleitoral ao longo do tempo3. Soma-se a isso o
fato de que uma suposta identidade europeia caracterizaria as raízes do
estado, calcada em valores como a ordem e o apreço pelo trabalho. O ponto
a que se quer chegar com essa pequena discussão é o seguinte: a escassez
de políticas de reparação e do amplo trabalho de memória em um contexto
conservador, tanto no sentido identitário quanto político, com forte apego
3 Tal fato não caracteriza julgamento sobre o trabalho desses políticos ou suas posições ante a ditadura militar. O
que se pretende é demonstrar como aparentemente o eleitorado de Santa Catarina não promoveu grande
rotatividade de seus representantes em termos de posicionamento político.
160 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ao civismo e à ordem (termos constantemente atrelados à ditadura
militar), pode contribuir para o estabelecimento de permanências do
regime autoritário em período democrático, não atendendo assim aos
objetivos da justiça transicional e minando a eficácia do trabalho da
comissão. Alguns exemplos podem ajudar a compreender tal tese.
Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República em 2018 fazendo
uso, dentre outros fatores, de retórica saudosista em relação à ditadura
militar, ressaltando ter sido um período ordeiro, de honestidade e de
segurança. Pois bem: o estado em que mais recebeu votos foi justamente
Santa Catarina, onde mais de 75% dos eleitores teriam apoiado o então
candidato (PORTAL, 2018). Dentro desse contexto, houve exaltação ao
aspecto identitário europeu em algumas cidades, como nos casos de Treze
de Maio e Blumenau. Naquela, grupos bolsonaristas viviam fortemente
armados à época das eleições, clamando pelo reconhecimento da
ascendência italiana da região (CANZIAN, 2018); nesta, um entrevistado
na tradicional festa alemã Oktoberfest, cuja edição daquele ano teria sido
recheada de exaltações a Bolsonaro, afirmava que gente honesta e
trabalhadora não precisaria ter medo dele (SAYURI, 2018).
Um último exemplo a ser citado remete a Joinville, cidade industrial
de colonização alemã. No ano de 2014, antes de passeatas pedindo
intervenção militar virarem moda em 2020, parte da população da cidade
reeditou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (SEGUINDO...,
2014), evento que apoiou o golpe civil-militar de 1964 e o comemorou em
várias partes do país nos dias seguintes a sua execução. Na reedição da
passeata, o grupo marchou em direção ao prédio do 62º Batalhão de
Infantaria – uma das entidades mais atuantes durante a ditadura em SC.
Como se não bastasse, em 2018, o batalhão foi homenageado na
Assembleia Legislativa pelos seus cem anos, onde houve solenidade
agradecendo pelos serviços prestados ao longo desse século de existência,
Juliano Cabral Pereira | 161
bem como afirmações sobre terem defendido as maiores bandeiras da
cidade e serem a instituição a que o povo dedica maior apoio (COSTA,
2018).
Diante de fatos dessa natureza, evidencia-se a necessidade de trazer
para a população catarinense o debate sobre o que foi a ditadura militar
no estado. É a noção de justiça que dá à memória o sentido de dever e, ao
extrair valor exemplar das lembranças traumatizantes, a memória é
colocada enquanto projeto e atribui a esse dever a forma do futuro; “pagar
a dívida, diremos, mas também submeter a herança ao inventário”
(RICOUER, 2007, p. 101). Ou seja, é mister que se pense nos resultados a
longo prazo das políticas de reparação e aonde se quer efetivamente
chegar com sua implementação. Ações reparadoras que garantam a não
repetição das ocorrências do período autoritário e o direito à memória que
respeite o sofrimento das vítimas são urgentes em contextos como o de
Santa Catarina, onde os exemplos supracitados constituem novas
violações, ainda que veladas, aos que sofreram com a repressão no estado.
Experiências de reparação que obtiveram sucesso: exemplos a serem
seguidos
Algumas experiências de políticas de reparação bem sucedidas
poderiam servir de exemplo para o estado de Santa Catarina. Peço licença
ao leitor e a leitora para me desviar brevemente do espaço catarinense,
com a finalidade de elaborar algumas sugestões que poderiam ser
efetivadas para levar o reparo além do aspecto financeiro e dar o passo
adiante em relação ao trabalho da Comissão de Indenização. Vale pontuar
que não se tratam de iniciativas puramente ilustrativas ou que objetivam
apenas homenagear as vítimas do autoritarismo, sem efetivamente
promover a reflexão do corpo social; são ações de cunho prático,
didaticamente elaboradas para que a população tenha condições de refletir
e compreender do que se trata esse passado tão sensível. Além disso, foram
162 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
escolhidas também por caracterizarem medidas regionais, para que se
pudesse estabelecer uma comparação mais ajustada com Santa Catarina
em termos de recorte espacial. Dito isso, sem mais delongas, vamos a elas.
Entre as décadas de 1960 e 1990, a América do Sul sofreu com uma
onda autoritária que se evidenciou violentamente através de ditaduras
militares instauradas em diversos países do continente; as ocorrências em
território argentino entre 1976 e 1983 podem ser consideradas algumas
das mais graves violações de direitos humanos efetuadas no período.
Torturas, mortes e desaparecimentos foram executados a partir de
diferentes mecanismos, tais quais os campos de concentração – entre 1976
e 1982, funcionaram no país “340 campos de concentración-extermínio,
distribuídos en todo el território nacional (...) se estima que por ellos
pasaron entre 15 y 20 mil personas, de las cuales aproximadamente el 90
por ciento fueron asesinadas” (CALVERO, 2006, p. 29) – e os chamados
“voos da morte”, em que aviões carregados de prisioneiros políticos
sedados sobrevoavam rios, em cujas águas eram atirados os cativos ainda
com vida. Contando somente os presos nas instalações da Escuela de
Mecánica de la Armada (ESMA), cerca de 1.500 a 2.000 pessoas teriam sido
vítimas desta aterradora prática (SOCA, 2016, p. 95).
Ao fim do período ditatorial e ao longo das décadas que o sucederam
a luta do povo argentino por justiça ainda vigora com muitas barreiras e
dificuldades, mas importantes avanços em termos de reparação também
foram conquistados. De acordo com o estudo produzido pelas
pesquisadoras Francisca Garretón, Marianne González e Silvana Lauzón,
do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Chile, cerca de 50
políticas públicas de busca pela memória e pela verdade foram registradas
na Argentina entre 1983 e 2009 (GARRETÓN, GONZÁLEZ e LAUZÓN,
2011, p. 27). Dentre elas, primeiramente destaca-se uma medida que visa
trazer para as novas gerações a magnitude do que foi (e do que é, no
Juliano Cabral Pereira | 163
presente, a partir de seus desdobramentos) a ditadura militar, em diálogo
direto com o âmbito educacional. Trata-se da Lei 11.782/1996 da província
de Buenos Aires, que determina a realização de atividades em instituições
de ensino que contribuam para aprofundar o conhecimento dos jovens
acerca da ditadura iniciada em 1976. Nos próprios termos da legislação:
El presente proyecto apunta a sistematizar la transmisión de las duras
experiencias de los años de la última dictadura militar a las jóvenes
generaciones que por fortuna ignoran lo que es vivir bajo el imperio del
autoritarismo y la violencia de Estado sistemática. El afianzamiento en la
juventud de la cultura de la democracia, la libertad y el respeto por la dignidad
de sus semejantes, abonado por el conocimiento de los trágicos efectos que
conlleva el abandono de esos valores, cualquiera sea la causa en la que se
inspire, es una tarea que debe concitar el empeño de todas las instituciones
republicanas. En el marco de este instrumento legal y sobre la base de los
contenidos mínimos en él prescriptos puede desplegarse una vasta gama de
iniciativas que permitan poner en acción la creatividad de docentes y alumnos.
Estas acciones, diversas en sus formas, contribuirán a mantener viva la
memoria y a consolidar el compromiso democrático de toda la ciudadanía
bonaerense (BUENOS AIRES, 1996, online).
Estreitar relações com instituições de ensino é um passo fundamental
para a completude do processo de retorno à democracia e, principalmente,
para a efetivação do direito à memória das vítimas da repressão. Afinal, tal
qual aponta Dominique Juliá (2001, p. 10), não se pode olhar a educação
(e a cultura escolar) de modo a restringi-la aos muros da escola; assim
como os estudantes trazem consigo experiências externas ao ambiente
escolar para dentro das classes, também levam para seus círculos sociais
aquilo que é apresentado nas aulas que lhes são ministradas. Sendo assim,
utilizar os espaços de educação com a finalidade de aprofundar o
conhecimento acerca de feridas ainda abertas, causadas por passados
autoritários bastante recentes, é não somente garantir que memórias
164 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
sensíveis sejam devidamente respeitadas, como também colocar em
prática o processo gradual de conscientização popular para evitar que
sigam ocorrendo violações diárias, tais quais as supracitadas em relação
ao contexto catarinense.
Ainda em referência a Argentina, cabe ressaltar um último exemplo:
a criação do Museo de la Memoria de la Municipalidad de Rosario, na
província de Santa Fe. Estabelecido no imóvel em que funcionou durante
a ditadura El Comando del Segundo Cuerpo del Ejército, o museu retrata
elementos do período autoritário à nível local. Além de marcar aquele
território enquanto palco de violações de direitos humanos à época do
regime, utilizar as instalações de um antigo órgão repressor é também
uma iniciativa de ressignificação de espaços (GARRETÓN, GONZÁLES e
LAUZÓN, 2011, p. 27), tornando palpável e sólido o fato de que a província
foi atingida violentamente pela repressão. Ademais, a ideia de um lugar de
memória que privilegia a região em que está inserido e que torna vívidas
para a população local as ocorrências de um passado traumático não é
exclusiva do contexto argentino; semelhante exemplo pode ser encontrado
no Brasil, na figura do Memorial da Resistência.
O Memorial da Resistência do Estado de São Paulo foi elaborado na
mesma lógica de ressignificação de localidades marcadas por um passado
de horror, tendo sido instituído no prédio do antigo Departamento
Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) – um dos órgãos mais
temidos da ditadura militar brasileira, onde dezenas de opositores do
regime foram torturados e mortos. Elaborado em 2007, o Memorial não
se trata de apenas um espaço de amostragem de objetos estáticos,
distantes da realidade de seus frequentadores; foi projetado a partir de
diálogos interdisciplinares entre museólogos, historiadores e educadores
da Pinacoteca do Estado, objetivando trazer experiências que instiguem a
reflexão daqueles que o visitam. É composto por seis linhas de ação:
Juliano Cabral Pereira | 165
Centro de Referência, Coleta Regular de Testemunhos, Lugares de
Memória, Exposição, Ação Educativa e Ação Cultural. Além disso, conta
ainda com quatro módulos: Edifício e suas Memórias; Controle, ação e
resistência; Construção da memória: o cotidiano nas celas do DEOPS-SP e
Da carceragem ao centro de resistência (GUMIERI, 2012).
O interessante acerca de seu funcionamento é a articulação dos
diferentes mecanismos de diálogo com o público. Os visitantes podem, por
exemplo, conhecer quatro celas remanescentes, cada uma com uma forma
de interação diferente. De acordo com Julia Gumieri (2012, p. 4), a Cela 1
apresenta um vídeo que expõe documentos sobre quatro presos mortos
em decorrência das torturas sofridas no DEOPS-SP, além de prestar
homenagem aos demais perseguidos pela repressão; a Cela 2 foi
reconstituída através das memórias de antigos presos do local; a Cela 3
expõe um áudio com testemunhos acerca do cotidiano e da resistência
dentro do cárcere; por fim, a Cela 4 oferece leituras sobre a convivência
entre os prisioneiros. Além disso, e ainda de acordo com a autora, há
terminais de consulta em outras regiões do prédio, onde podem ser
acessados sites, dados referenciais e testemunhos de ex-presos políticos,
havendo ainda uma vitrine expondo objetos e documentos originais do
DEOPS-SP. Por fim, merecem destaque as ações culturais: seminários
acadêmicos, peças de teatro, mostras de filmes, rodas de conversa, visitas
educativas e projetos como o Encontro com professores. Detalhe: segundo
a coordenação do Memorial, a iniciativa partiu do governo do estado de
São Paulo, através da parceria de sua Secretaria de Cultura com
organismos de defesa dos direitos humanos.
Diante do que foi exposto, fica evidente ser possível avançar em
políticas reparadoras que vão além da compensação financeira.
Obviamente, cada localidade (seja estado ou país) possui suas próprias leis,
contextos e limitações; entretanto, com planejamento e organização,
166 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
medidas como estas aqui exemplificadas podem ser postas em prática. Em
Santa Catarina, um importante passo inicial – simples, ainda que
trabalhoso – poderia ser o recolhimento da documentação oficial dos
órgãos da ditadura militar que atuaram em Santa Catarina, os quais se
encontram espalhados por diferentes arquivos do território nacional. Isto
possibilitaria que, juntamente com materiais como aqueles do acervo da
Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos, mais pesquisas
acadêmicas fossem realizadas e gerassem embasamento para a elaboração
de novas iniciativas por parte do governo estadual.
Ainda neste sentido, seria imprescindível buscar o estreitamento
com instituições de ensino – seja com a educação básica, para aprofundar
o conhecimento de crianças e adolescentes, seja com as universidades,
para dialogar com estudiosos da temática. Mais do que isso, grupos como
o Coletivo Memória, Verdade e Justiça e o Instituto Memória e Direitos
Humanos (IMDH) realizam trabalhos com documentação, testemunhos e
produção de eventos voltados à temática em Santa Catarina; sua
experiência e know-how certamente seriam úteis para iniciativas em
parceria com o governo do estado. Por meio de tais ações talvez fosse
possível a criação de museus interativos e de projetos de capacitação de
professores, bem como a realização de ações culturais que aproximassem
a população do assunto. O desafio é grande, o caminho é longo, mas estas
são medidas que comprovadamente obtiveram relativo sucesso em outros
lugares; a tentativa valeria a pena não só para os que foram vítimas da
repressão, como também para a saúde da democracia no estado
catarinense.
Considerações finais
A Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos de Santa Catarina
foi fundamental para reconhecer as violações perpetradas pelas
Juliano Cabral Pereira | 167
instituições catarinenses contra sua própria população. Assim sendo, o
problema não é a comissão em si, mas não ir além dela – indenizar as
vítimas sem considerar as reminiscências da ditadura no tempo presente
pode soar como a compra do silêncio dessas testemunhas sobre os
horrores praticados ao longo do regime. Com a existência de rico acervo
documental gerado a partir de seus processos (reunido pelo excelente
Coletivo Memória, Verdade e Justiça, é importante dar os créditos),
poderia ser realizado o investimento em políticas de reparação que vão
além da compensação financeira, consequentemente contribuindo para a
formação de uma memória da ditadura em Santa Catarina que faça jus às
ocorrências do período. A necessidade de ações que caminhem nessa
direção se evidencia quando expostas as circunstâncias atuais do estado
em relação a esse passado recente, ao qual parte da sociedade local dedica
certo saudosismo. Eventos abertos para a população, divulgação de filmes
e peças de teatro na grande mídia, criação de museus, adaptação do
currículo escolar, entre outros elementos, são alternativas cabíveis –
contudo, é preciso apoio do governo com políticas de memória e não
esquecimento em prol da conciliação.
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Mundo Rural na América
Capítulo IX
Uma freguesia na fronteira e outra na estrada:
dinâmicas de ocupação territorial pela população
imigrante açoriana e seus descendentes
Sandra Michele Roth Eckhardt 1
Vanessa Ames Schommer 2
Introdução: a ocupação espacial do Continente
Nesse artigo abordaremos a interação de um grupo populacional
imigrante com um espaço geográfico específico. Através de análises
comparadas, buscamos apontar as semelhanças e divergências no
processo de ocupação espacial de duas freguesias do Rio Grande de São
Pedro, na segunda metade do século XVIII.
A freguesia de São José do Taquari, criada em 1765, no extremo oeste
da ocupação portuguesa, compunha o projeto de ocupação e exploração
colonial de Portugal numa região em disputa com os domínios espanhóis da
América. Enquanto isso, em 1763, Santo Antônio da Patrulha se constituiu
como freguesia em meio ao contexto de abertura dos caminhos das tropas e
instalação do Registro, que levavam o gado à Sorocaba, e a fixação da
população de origem europeia na região dos Campos de Viamão.
Porém, antes de tratarmos especificamente do perfil das freguesias
cabe relembrar o processo de inserção colonial da região que atualmente
compreende o estado do Rio Grande do Sul e parte do estado de Santa
Catarina. Esse espaço geográfico foi disputado entre as Coroas ibéricas na
América, através de acordos e tratados e também investidas bélicas.
1
Mestre em História; sandrahh13@hotmail.com
2
Mestranda em História – PPGH/UFRGS; vaschommer@gmail.com
174 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
As primeiras investidas no sul da América Portuguesa tiveram início
na segunda metade do século XVII quando, partindo de terras paulistas,
avança-se para o sul. Entre os anos de 1676 e 1737, Laguna permaneceu
como povoação portuguesa mais austral3, até a fundação do presídio de
Rio Grande que recebe um governo militar específico. Dessa forma,
constituindo uma descontinuidade na organização administrativa da
região, sendo os Campos de Viamão dependentes de São Paulo, Rio Grande
e Sacramento, do Rio de Janeiro (OSÓRIO, 2015, p. 71-71).
Dois anos após a fundação do presídio, é estabelecida a Guarda de
Viamão (1739), a partir dessa guarda, é instituído o registro e suas lojas, e
uma povoação. Em 1747 é fundada a freguesia de Viamão, em 1756, a de
Triunfo. Osório, ao analisar cronologicamente a fundação das freguesias
no espaço rio grandinho, percebe que a intensificação do povoamento e a
ordenamento do espaço em freguesias deu-se entre as décadas de 1760 e
1770 (OSÓRIO, 2015, p. 75). São, dessa forma, sete freguesias criadas antes
da invasão de Rio Grande (1763-1776), e é nesse primeiro movimento que
se inserem as freguesias de São José do Taquari e Santo Antônio da
Patrulha
Assim, ambas freguesias foram criadas ainda no período que
antecede a demarcação territorial entre as coroas ibéricas no extremo sul
americano, pois essa somente se resolveu em 1777, com o Tratado de Santo
Ildefonso que incorporou definitivamente a Colônia de Sacramento aos
domínios do Vice-reino do Rio da Prata, devolveu o território da ilha de
Santa Catarina aos portugueses, que havia sido tomada no mesmo ano
pelas tropas espanholas, e estabeleceu uma região neutra nos domínios
ibéricos, conhecida como “campos neutrais”. Contudo, a expedição
demarcatória portuguesa, iniciada em 1751-1752, encabeçada pelo
3 No território contíguo, já que em 1680 funda-se a Colônia de Sacramento.
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 175
governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade, pretendia
encaminhar, de modo sistemático, a apropriação das terras que naquele
momento pertenciam aos domínios portugueses e isso impulsionou uma
série de mudanças demográficas e sociais no Continente do Rio Grande de
São Pedro.
A presença do governador do Rio de Janeiro no Continente acelerou
as concessões de terras denominadas sesmarias, comuns nos domínios
portugueses, já que cabia a esse conceder ou não o aval aos requerentes da
mercê. Osório (2017, p. 71) mostrou que as primeiras concessões de
sesmarias feitas pelo governador ocorreram na região do rio Jacuí em
1754, caminho para as missões jesuíticas, territórios que posteriormente
formaram as freguesias de Rio Pardo e Santo Amaro, e caracterizam o
ponto extremo da ocupação portuguesa no Oeste, na década de 1750.
Em 1764, foi criada, nas margens do rio Taquari, a freguesia de São
José do Taquari. A região já abrigava assentamentos populacionais desde
1750, entre eles estavam antigos posseiros, contingentes militares e
famílias de origem ou ascendência açoriana. Os últimos eram oriundos de
Viamão, Rio Pardo e Rio Grande e buscavam inserção no Continente
americano enquanto pequenos produtores e foi justamente a presença
dessas famílias que levou o governador Coronel José Custódio de Faria e
Sá a cumprir o requerimento do vice-rei Conde da Cunha que ordenava a
acomodação das populações açorianas “onde melhor lhe parecer, ainda
que seja em sesmarias das mais apotentadas pessoas” (apud OSÓRIO,
2017. p. 86).
Em 1768, o vice-rei recebeu a resposta do governador sobre a criação
da freguesia de São José do Taquari, primeira do Rio Grande de São Pedro
especificamente destinada a acomodar imigrantes açorianos e seus
descendentes na América. Essa população foi assentada em pequenos lotes
de terras conhecidos como datas de terra. As datas eram concedidas pelo
176 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
governador, possuíam tamanho muito inferior às sesmarias, podendo
alcançar a extensão máxima de 272 hectares e eram concedidas para os
“casais” de origem açoriana, migrados do arquipélago português no norte
atlântico à América.
Já a Freguesia de Santo Antônio da Patrulha é criada a partir da
construção de uma Capela dedicada ao santo homônimo por Ignácio José
de Mendonça e sua esposa entre os anos de 1756 e 1760. Essa capela foi
erigida ao lado do Registro e da Guarda (ou Patrulha) do Caminho dos
Tropeiros, instalação que buscava cobrar as taxas e controlar a passagem
de homens e animais em direção ao norte do Continente.
Lembramos que o processo de abertura do Caminho dos Tropeiros
teve início em 1720, como uma alternativa ao Caminho da Praia, que ligava
a Colônia do Sacramento, assim como as vacarias do mar e dos pinhais à
Sorocaba. Este novo caminho foi concluído entre os anos 1730 e 1740, e
cruzava por entre os Campos de Viamão. Ao atravessar esses campos em
direção ao território de Cima da Serra, impulsionou o povoamento dos
campos de seu entorno. Entre as povoações que foram estimuladas por
essa estrada está a de Santo Antônio da Patrulha, que foi elevada à
categoria de freguesia 3 anos após a construção da capela, em 1763.
São, portanto, duas freguesias que embora sejam criadas na mesma
década e no mesmo momento de retração e defesa do Continente, após a
ocupação de Rio Grande pelas tropas de Ceballos, se deram por formas
diferentes, São José de Taquari criada para receber os imigrantes
açorianos e seus descendentes, e Santo Antônio surgida a partir do
Registro e elevada à categoria de freguesia por conta da construção de sua
Capela através da iniciativa privada. Mas, a década de surgimento não é o
único elo que une essas localidades, assim como Taquari, em Santo
Antônio também foram distribuídas as datas de terra aos casais açorianos,
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 177
em 1770-1772. E é a inserção desse contingente migrante, e as diferenças
no seu assentamento e acesso à terra que buscamos discutir nesse artigo.
Cartas de datas: perfil
A presença da população açoriana ao Sul da América portuguesa
compunha o projeto português de traslado e instalação de súditos das ilhas
açorianas para a região da fronteira, sendo incentivada pela publicação de
um Edital de 1747. Por ordem do rei D. João V, esse Edital foi divulgado
nas ilhas do arquipélago dos Açores e incitou a população a se matricular
no dito projeto e posteriormente migrar para o Brasil.
Para Marta Hameister (2006) essa era uma medida benéfica para
ambos os domínios portugueses, pois se o extremo sul e a região norte da
América necessitavam de povoadores e as ilhas sofriam com o excedente
populacional, dificuldades de acesso à terra e desastres ambientais. A
conjuntura política, social e econômica encontrada pelos imigrantes e seus
descendentes na América foi de conflitos bélicos com os espanhóis e
dificuldades de acesso à terra. Assim, formas estratégicas de associação e
reciprocidade familiar compunham a realidade desse conjunto
populacional, desde a sua chegada ao continente do Rio Grande de São
Pedro até a sua inserção no mercado interno colonial enquanto pequenos
produtores de alimentos.
O acesso à terra na primeira freguesia de população açoriana
(Taquari) se deu, majoritariamente, pelas concessões de datas de terras
pelo governador, na década de 1760. Essas originaram unidades
produtivas que se especializaram no plantio e cultivo de lavouras e através
do mercado interno se inseriram economicamente na sociedade colonial,
enquanto lavradores. Em Santo Antônio da Patrulha, ocorreu maior
diversificação nas formas de acesso à terra, pois como essa era uma
freguesia de mais antiga ocupação, no entanto, as concessões de data
178 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
também compunham a sua estrutura agrária, ainda que em dimensões
muito inferiores às de Taquari.
A partir das análises das Cartas de datas de terra que se dão aos casais
açorianos4 gostaríamos de apontar alguns elementos sobre as duas
freguesias. Essa documentação consiste em títulos de terra, concedidos a
partir da década de 1760, pelo governador do Continente do Rio Grande
de São Pedro. Em seu conteúdo encontramos informações sobre os
beneficiários da concessão, o que possibilita conhecer o perfil demográfico
e social desses indivíduos e suas famílias, e algumas características da
propriedade de terra.
Essas concessões de datas de terra não seguiam um único padrão
social e econômico e poderiam variar bastante de uma freguesia para
outra, principalmente nas extensões dos terrenos concedidos. Para
conhecermos algumas semelhanças e diferenças entre as freguesias de
Taquari e Santo Antônio da Patrulha analisamos todos os registros de
concessão de datas de terras, localizados para as duas freguesias, e seus
dados estão representados na tabela a seguir.
Tabela 1: Perfil da concessão de datas de terras em duas freguesias riograndenses
Freguesia
Taquari
St. Antônio da
Patrulha
Ano do
Nº de
registro
registros
1770
54
1770-1772
19
Beneficiários
Extensão da
propriedade
casais açorianos (44,5%) e
562.000 braças
filhos de açorianos (51,5%)
quadradas
casais açorianos (30%) e
entre 33.600 e 585
filhos de açorianos (70%)
braças quadradas
Fonte: Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770. AHRS. Códice F 1229.
4 Esses documentos estão compilados no Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770 e
salvaguardados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Códice F 1229. Encontram-se transcritos em: BARROSO,
Vera Lúcia Maciel (org.). Açorianos no Brasil: história, memória, genealogia e historiografia. Porto Alegre, EST,
2002.
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 179
Podemos, dessa forma, comparar essas concessões a partir de seus
registros. Uma primeira análise pode ser feita quanto ao perfil
matrimonial dos casais que receberam datas. Em Taquari, onde as terras
foram distribuídas na década anterior, Eckhardt (2019) constatou que 46,5
% eram casais onde pelo menos um dos cônjuges era emigrados das ilhas,
e 53% filhos ou cônjuges dos filhos. Percentual maior ao encontrado em
Santo Antônio (cerca de 39%), o que possivelmente se deve ao fato de ter
sido em Taquari que as datas foram primeiro distribuídas.
Seguindo a comparação entre as freguesias, podemos observar a
precariedade com que foram assentados os açorianos em Santo Antônio,
diferente do padrão de distribuição dos lotes no restante da Capitania. Em
Taquari e Viamão as datas de terra distribuídas tiveram a extensão média
de 560.000 braças quadradas; em Porto Alegre possuíam a metade do
tamanho, 280.000 (GOMES, 2018, p. 95). Observamos, portanto, em todas
essas freguesias uma certa regularidade no tamanho das distribuições das
datas, o que não ocorreu em Santo Antônio, uma vez que encontramos a
menor concessão com 585 braças e a maior com 33.600, tamanhos
bastante inferiores quando comparados às demais freguesias. Mas, é
importante frisar que mesmo onde houveram as maiores concessões de
terras, elas ainda eram bastante inferiores ao previsto no edital, e
representavam somente ¼ do que fora prometido aos migrantes.
Essa precariedade de assentamento pode significar que foram
somente medidas e concedidas terras aos sujeitos que já se encontravam
em Santo Antônio no momento da distribuição das datas, e essa variação
de tamanhos, portanto, representaria as diferentes condições em que se
encontravam os açorianos na dita freguesia. Neis e Osório (1975, p. 33;
2017, p. 79) afirmam que uma década depois, vários casais já haviam
migrado para outras freguesias, buscando condições melhores de acesso à
terra e, consequentemente, de vida.
180 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Mas, para além das cartas de datas, temos outra fonte muito
interessante para observar o perfil de distribuição de terras, e o que
representavam os casais para as freguesias. Estamos falando da Relação
de moradores de 1785, a qual consiste em um minucioso levantamento
sobre a ocupação da terra do Continente do Rio Grande de São Pedro,
tanto por proprietários com títulos legais, quanto posseiros e agregados.
Relação de Moradores
Em 1784, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza ordena que o
provedor da Fazenda Real do Rio Grande realizasse um levantamento
sobre a estrutura agrária das freguesias do Continente, com o objetivo de
conhecer as formas de ocupação da terra e as principais atividades
ocupacionais desenvolvidas no extremo sul da América.
Esse levantamento deu origem a Relação de Moradores que têm
campos e animais, que é um compilado de páginas organizadas para cada
freguesia do Rio Grande de São Pedro, da década de 1780. A coleta dos
dados foi realizada pelos capitães auxiliares que visitavam as freguesias e
coletavam os dados, gerando um compilado de documentos conhecidos
como rascunhos da Relação de Moradores5. A versão encaminhada ao vicerei no Rio de Janeiro6 se baseou nesses rascunhos dos capitães e organizou
as informações referentes às freguesias. Para Taquari foram localizadas as
duas documentações e o grau de compatibilidade é bastante alta, já para
Santo Antônio da Patrulha, encontramos somente os borradores, a versão
oficial não foi enviada ao Vice-Rei.
Os rascunhos e a versão oficial da Relação de Moradores são as fontes
por excelência utilizadas pela historiografia do Rio Grande do Sul no que
5 Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. E Relações de
moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198.
6 Relação de moradores que têm campos e animais no Continente (versão oficial de 1784). ANRJ. Códice 104, v.6, 7
e 8.
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 181
diz respeito ao estudo da estrutura agrária, pois apresentam um conjunto
de informações muito pertinentes ao tema. Entre essas informações estão
o nome de cada produtor, cada ocupante de lotes de terra, os títulos de
propriedade, quando o possuem, a atividade ocupacional que se
empregava nos domicílios arrolados e o número de animais possuídos por
cada freguês, explicitando gênero e espécie desses.
Helen Osório foi a primeira pesquisadora a abordar as principais
questões contidas na Relação de Moradores, para todas as freguesias do
Continente. Suas análises trouxeram importantes e sólidas contribuições
sobre a apropriação de terras ocorridas no Rio Grande de São Pedro,
durante o século XVIII. Utilizando-se do repertório de todos os registros
dos moradores declarados nessa listagem, Osório (2007, p.88) identificou
seis formas de apropriações primárias da terra ocorridas no Continente do
Rio Grande de São Pedro, o que ela categorizou como datas, não
informadas, despachos do governador, posse, sesmaria e arrematação. A
pode observar que em maior número prevaleciam as datas. Como
demonstramos anteriormente, essas eram as pequenas propriedades de
terras concedidas, comumente, aos imigrados açorianos e seus
descendentes, durante a década de 1760 e 1770, pelo governador da
Capitania do Rio Grande, e ostentavam uma dimensão máxima de 272
hectares.
Desse modo, o repertório de informações contidas nesta
documentação nos ajuda a entender as dinâmicas de ocupação e
estruturação do cenário agrário em duas freguesias com presença de
imigrantes açorianos e seus descendentes, uma década após a concessão
das datas de terra. Sendo possível avaliar as proporções de propriedades
que mantiveram sua forma original, as possíveis partilhas, vendas e
ampliações, fosse pela compra ou simples apropriação.
182 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Quadro 2: Principais formas de ocupação da terra constantes na Relação de Moradores (1784-1785)
Freguesia
Datas de terra
à favor
Sesmarias
Posse
Compras
Outras
Taquari
35,7%
31,2%
0,9%
19,2%
-
13%
Snt. Antônio da
13%
23%
2%
21%
25%
16%
18,3%
8,6%
2,3%
10,4%
32,4%
28%
Patrulha
Rio Grande de São
Pedro*
Fontes: Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198; Relações de
moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. * Os dados sobre o
Continente do Rio Grande de São Pedro foram extraídos de OSÓRIO, 2007, p. 93 e transformados em percentuais.
Antes de seguirmos com as comparações, cabe aqui esclarecer que as
categorias de análise (formas de acesso à terra) aqui expostas foram
adotadas exclusivamente para a reflexão proposta nesse artigo. A categoria
“outras”, não existe nos trabalhos originais, e é bastante complexa,
agrupando no mesmo lugar terras acessadas por meio de despachos do
governador, arrematações sítios, chácaras, arrendamentos, heranças,
doações, trocas e sem identificação7. Também é importante frisar que não
necessariamente eram encontradas todas essas formas de acesso à terra
em todas as freguesias. Desse modo, queremos reafirmar que a paisagem
agrária do Rio Grande de São Pedro foi formada a partir de um variado
repertório das formas de acesso ao principal recurso produtivo, a terra, e
ao deslocar a escala para analisa-lo por freguesias, é possível observar que
esse processo foi marcado por especificidades regionais, que
complexificam a narrativa de conquista e formação do espaço agrário do
Rio Grande do Sul mediante comparações e cruzamentos.
Outra informação, contida na Relação de Moradores, é a ocupação
declarada por cada representante de domicílio, algo que podemos
compreender como a atividade econômica predominante. Em todo o Rio
7 Para mais detalhes, consultar o trabalho de Osório (2007, p. 87- 100).
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 183
Grande de São Pedro a atividade ocupacional mais representativa foi a de
“lavrador”, conforme demonstrou (OSÓRIO, 2007, p. 98). Essa categoria
somada com a “mais lavoura”, categoria que mesclava agricultura com
criação de animais, ultrapassam os 65% das atividades declaradas na
Relação de Moradores.
A atividade ocupacional, predominante, em Taquari e Santo Antônio
da Patrulha foi a de “lavrador” e assim se assemelham com o perfil geral
do Continente. Existe uma relação intrínseca, já conhecida, entre a forma
de acesso à terra e a atividade ocupacional e ambas as freguesias
comparadas reforçam essa relação. Primeiramente, pela presença da
população migrante e seus descendentes, beneficiários das concessões de
datas de terra, os quais engrossaram a camada de lavradores do Rio
Grande de São Pedro, a partir da segunda metade do século XVIII. Em
segundo lugar, pelas poucas sesmarias concedidas nessas regiões, onde de
forma unânime se instalaram pequenas unidades produtivas.
De modo geral, as paisagens agrárias se assemelham em diversos
pontos, porém diferem, percentualmente, nas formas de acesso à terra.
Santo Antônio da Patrulha, muito mais inserida nas rotas comerciais, e,
sendo uma ocupação mais antiga apresenta maior dinâmica do mercado
de terras, em relação à Taquari, que por mais que tenha apontado algumas
compras, essas puderam ser identificadas como a ampliação de lotes
originados por outros meios.
A presença de famílias e sujeitos “a favor”, em ambas as freguesias, é
significativa e sinaliza para a ideia de que, por mais que algumas regiões
do Rio Grande de São Pedro ainda não possuíam fronteiras fechadas, nem
todos os sujeitos ou famílias vissem a migração como a única e/ou melhor
possibilidade de se inserir social e economicamente na sociedade colonial.
Em Taquari, aqueles que declararam viver “a favor” eram aparentados em
primeiro grau com o proprietário da terra e essa relação ocorreu,
184 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
majoritariamente, entre os beneficiários das concessões de data, que
poderiam abrigar até 3 famílias. Por outro lado, em Santo Antônio da
Patrulha, o fator familiar não foi majoritário, mas ainda assim, metade dos
sujeitos que viviam à favor, estavam instalados em terras de seus pais ou
sogros.
Considerações finais
Ser açoriano, descendente desses e beneficiário das concessões de
data não foi sinônimo de igualdade de condições no acesso e administração
dos recursos. Mediante as observações e comparações realizadas entre as
freguesias de Taquari e Santo Antônio as diferenças são evidentes, em
especial discrepância na dimensão dos lotes de terras destinados a essa
população, em cada freguesia.
Assim, entendemos que a ideia de uma identidade e estratégias de
acesso aos recursos, instalação e formação de redes ação, não podem ser
entendidas como parte de uma suposta “açorianeidade”, pois essa
população não se inseriu em estruturas sociais e econômicas idênticas. As
condições, conflituosas, encontradas no novo Continente além de atrasar
o cumprimento das promessas do Edital de imigração, também foi
responsável por espalhar os imigrados e seus descendentes por diferenças
freguesias do Rio Grande, nas quais já haviam formações, embrionárias
ou consolidadas, socio-econômicas pré-existentes, as quais interferiram na
distribuição das datas de terra.
Fontes
Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770. AHRS. Códice F 1229.
Relação de moradores que têm campos e animais no Continente (versão oficial de 1784).
ANRJ. Códice 104, v.6, 7 e 8.
Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 185
Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F1198.
Relações de moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874,
Códice F-1198.
Referências
ECKHARDT, Sandra Michele. Lavouras de sustento: demografia e estrutura agrária de
São José do Taquari, 1765-1811. 2019. 187 f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.
GOMES, Luciano Costa. Camponeses e pequenos escravistas: estrutura econômica,
reprodução social e vínculos extradomiciliares de produtores rurais em Porto Alegre
e Viamão, décadas finais do século XVIII. 2018. Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2018.
HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares
na formação da Vila de Rio Grande dos Registros Batismais (c. 1738- c. 1763).
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2006.
NEIS, Rubem. Guarda Velha de Viamão: no Rio Grande miscigenado surge Santo Antônio
da Patrulha. Porto Alegre: Sulina, 1975.
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e
comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
OSÓRIO, Helen. A organização territorial em um espaço de fronteira com o império
espanhol e seu vocabulário. Notas de pesquisa. Claves: Revista de história. Nº 1,
Montevideo, diciembre, 2015.
OSÓRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do
espaço platino. São Leopoldo: ÓIKOS, 2017.
Capítulo X
Agriculturas do capitalismo periférico: fumicultura
em São Lourenço do Sul, RS (cc. 1950 – 1980)
Ângelo Belletti 1
Cerca de duas horas em estrada de chão separavam a propriedade da
faixa urbana de entrada do município de São Lourenço do Sul, RS. Na
mesma, uma casa antiga e idilicamente rural – com uma varanda
comprida na frente onde dois senhores de idade tomavam um mate –, e
dois galpões compunham a paisagem predominantemente composta por
tons de marrom e verde.
Na porta de um dos galpões, uma grande placa azul indicava um
misto de propaganda com instruções de manuseio adequado do fumo:
“UNIVERSAL LEAF TOBACCOS LTDA.: COMO CURAR SEU TABACO”.
Considerando que a sede da Universal Leaf Tobacco está localizada em
Virgínia, EUA, há cerca de oito mil quilômetros de distância, quais fatores
levavam esta a ter interesse em produzir no interior de uma pequena
cidade no Sul do Brasil? É movido por esta dúvida que o presente trabalho
se estrutura, em tentar entender quais as relações do sistema econômico
mundial e como estes afetaram e afetam a formação das práticas agrícolas
de pequenos agricultores.
Para tal, o trabalho foi construído sobre duas bases. A primeira é
voltada para entender quais as dinâmicas envolvidas na economia
mundial, vinculando-se principalmente com o proposto pela teoria dos
sistemas mundo e de longas trajetórias históricas – com destaque para
1
Mestrando em Desenvolvimento Rural – PGDR/UFRGS; angelo.belletti@hotmail.com
Ângelo Belletti | 187
Wallerstein, Arrighi e Fiori. O objetivo é entender como a posição do Brasil
no sistema mundial pautou as possibilidades históricas internas. Já a
segunda base, é direcionada a dinâmicas específicas do meio rural e como
estas podem ser fruto das macroestruturas levantadas na primeira base.
Assim, utilizando o espaço geográfico a ser apresentado, dentro da
temporalidade escolhida – década de 1950 até 1980 – o objetivo é entender
como a fumicultura emerge enquanto uma possibilidade específica para
agricultores inseridos em uma realidade macroeconômica periférica. Aqui
o foco será a utilização de dados primários levantados pelos Censos
Agropecuários de diversas datas realizados pelo IBGE, e de dados
qualitativos obtidos através de entrevistas semi estruturadas com
fumicultores de São Lourenço do Sul, RS, no ano de 2018. Estes temas
serão analisados a partir, também, de teorias que estudem as dinâmicas
de trabalho na periferia do capitalismo.
Como espaço geográfico, utilizar-se-á o município de São Lourenço
do Sul, Rio Grande do Sul, e a dinâmica dos fumicultores nesse espaço.
Esta escolha dá-se pela importância econômica e cultural do plantio de
tabaco para a manutenção da cidade, bem como pela vasta trajetória
histórica que a mesma apresenta (sendo espaço de formação de quilombos
ao longo dos séculos XVII, e também de imigrações alemãs/pomeranas ao
longo do século XVIII)
Economias, Sistema Mundo e agriculturas
Inspirados por correntes marxistas dependentistas, pós coloniais
(AMADEO; ROJAS, 2011), sistêmicas e de longos ciclos históricos
(BRAUDEL, 1987), diversos teóricos construíram, no final do século XX, a
noção de sistema mundo. Nesta, o objetivo é entender as dinâmicas
socioeconômicas dos países não desde uma perspectiva exclusivamente
local e restrita aos seus processos internos, mas evidenciar que, em um
188 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
sistema, as linhas são tão importantes como os pontos conectados e, da
mesma maneira, a disposição destes também é essencial de ser
compreendida (ARRIGHI, 1994; WALLERSTEIN, 2004; FIORI, 2014).
Como resultado do sistema mundo, de acordo com Wallerstein
(2004), teríamos três níveis majoritários de enquadramentos entre as
economias capitalistas: (a) aquelas que habitam o centro dos processos,
usufruindo do nível tecnológico tido como desenvolvido e que pautariam
as dinâmicas da economia como um todo, principalmente através das
instituições; (b) a semi periferia que serviria de um meio termo entre os
centros tecnológicos e econômicos e o restante dos países, englobando
algumas tecnologias, mas sendo deficitária em outras dinâmicas; (c) e, por
fim, a periferia do sistema, na qual estariam os países de maior deficit
econômico, profundas desigualdades sociais e com barreiras institucionais
(CHANG, 2003) para qualquer ascensão. Conforme ilustrado na Figura 1.
É interessante perceber, também, que a própria posição do país
dentro do estrato que ocupa pode sofrer hierarquias e diferentes relações
com as outras realidades ao seu entorno.
As dinâmicas dessa economia mundial capitalista seriam pautadas
em três eixos: (i) ocorrem em um espaço demarcado (na maior parte dos
períodos, por mais que levem a alcunha de mundial, estão circunscritas a
espaços); (ii) apresentam um centro de poder dentro deste espaço; (iii) ao
entorno do centro de poder, diferentes níveis de relação com este formam
zonas intermediárias e periféricas. Além disso, a movimentação deste
arquétipo ocorreria pela constante disputa de poder quanto a quem
controlaria o centro desta articulação. Essa disputa evidencia o papel do
Estado como um agente da economia global, afinal é através dele que ações
expansivas (sejam militares ou políticas) tomam força e se estruturam
(FIORI, 2014).
Ângelo Belletti | 189
Figura 1 – Estrutura do Sistema Mundo
Fonte: elaborado pelo autor a partir de informações em Wallerstein (2004).
O local ocupado por estes países na economia global determinaria
diversas dinâmicas internas dos mesmos. O predomínio tecnológico das
economias centrais possibilitaria um incremento no valor dos itens
produzidos e comercializados por estas – aumentando a rentabilidade. Já
no caso dos países periféricos, a baixa disponibilidade de tecnologia, as
produções de baixo valor agregado, acrescido à alta disponibilidade de mão
de obra, estimularia outras dinâmicas exploratórias dos trabalhadores por
parte das elites locais (FIORI, 2014).
Assim, as práticas cotidianas dos indivíduos seriam pautados pelo
ambiente cultural no qual se inserem; e esse, por sua vez, formado por
motivações próprias locais mas também por reflexos das dinâmicas
geopolíticas desenvolvidas globalmente (WALLERSTEIN, 2004).
Neste conforme, as estruturas agrícolas brasileiras poderiam ser
interpretadas como resultado de dinâmicas internas e externas formadas
190 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
através de décadas de interação sistêmica do Estado Nação Brasil com o
sistema mundo econômico no qual se insere.
As alterações promovidas no meio rural brasileiro ao longo do século
XX evidenciam massivamente essa conexão. É através da propagação de
“pacotes tecnológicos modernizantes” para o meio agrário que o bloco
capitalista pós Segunda Guerra inicia a promoção de novas práticas
agrícolas, as quais, teoricamente, possibilitariam um incremento massivo
no índice de produtividade global e solucionariam a questão agrária em
diferentes países (ANDRADES; GAMINI, 2011). Estas inovações foram
batizadas, no seu coletivo, como Revolução Verde e, na prática,
propunham alterações em quatro eixos centrais promovidos através da
ação estatal: (i) fomento ao uso de maquinários agrícolas; (ii) massificação
do uso de agroquímicos no manejo; (iii) aumento do controle sobre
produção de sementes; e (iv) destinação de crédito agrícola para
produtores diretamente vinculados aos tópicos anteriores (DELGADO,
2013).
Em especial em relação à disponibilidade de crédito, cabe salientar a
alta entrada de capital estrangeiro no contexto brasileiro no período. Como
salienta Delgado (2013):
Há, necessariamente, uma seleção na clientela que demanda crédito, com a
emergência de clientes preferenciais representados por empresários rurais
ligados a atividades econômicas integradas com a indústria, comércio exterior,
serviços, etc. Esses, constituindo-se num grupo restrito de operadores,
contando com massas de lucros apreciáveis a negociar com os bancos, podem
eventualmente gozar dos benefícios financeiros da reciprocidade, obtendo
taxas diferenciadas de juros, prazos e condições outras que não são acessíveis
ao pequeno produtor. (DELGADO, 2013, p. 30)
Assim, os pacotes tecnológicos, além de terem limitações aquisitivas
por seus custos de implementação, contavam com diretrizes
Ângelo Belletti | 191
orçamentárias que facilitavam e estimulavam a grande propriedade
agrícola. E, em especial, a integração ao mercado internacional. Formando
assim uma composição que era lucrativa tanto para o latifundiário como
para o capitalismo financeiro cada vez mais conectado a esta produção. O
único agente isolado nesta composição era, novamente, o pequeno
agricultor.
Por mais que tenha ocorrido uma ampliação da produtividade de
alguns setores agrícolas, as práticas promovidas pela modernização
conservadora ampliaram as necessidades de interação com o mercado
capitalista, gerando barreiras de capital e de tecnologia para inserção
produtiva dos pequenos agricultores (BRUM, 1988). Ou seja, para
manterem-se a par do mercado competitivo, os agricultores, em geral,
precisariam adquirir uma quantidade elevada de insumos mínimos para
perseverarem suas produções, o que encarecia a produção e gerava uma
série de empecilhos ao longo do mercado, inclusive impossibilitando a
manutenção econômica de alguns produtores enquanto tais.
O resultado desta composição foi o de que diversos agricultores não
dispunham do capital necessário para sua inserção nesta nova lógica
mercadológica e, assim, acabaram marginalizados dentro do sistema
produtivo agrícola brasileiro (SILVA, 1981). Além do próprio êxodo rural,
outras práticas emergiram como consequência desta marginalização,
desde inserções alternativas – como a agroecologia (ALTIERI, 1979) –, até
o caso focalizado aqui da fumicultura.
A Figura 2 ilustra a tendência dessas diferentes culturas ao longo do
período 1920-1985 para o município de São Lourenço do Sul.
192 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Figura 2: Relação de crescimento de culturas agrícolas para São Lourenço do Sul
Fonte: elaborado pelo autor a partir de dados dos Censos Agropecuários, IBGE, diversos anos.
Destaque para como culturas de alta inserção no mercado
internacional (commodities), como a soja, apresentam um massivo
crescimento na produção total – no caso da sojicultura, o incremento é de
mais de dez mil vezes sua quantidade total produzida. Ao mesmo tempo,
outras culturas – como o feijão – apresentam uma estabilização, ou até
mesmo retração em relação a si mesmas.
Com este processo da Modernização Conservadora, a introdução de
instrumentos de produção e processamento agrícola geraram barreiras
econômicas, técnicas e fitossanitárias, limitando as possibilidades de
inserção dos pequenos agricultores nos mercados cada vez mais
internacionalizados (DELGADO, 2013). Como alternativa, diversas
empresas surgiram neste espaço de intermediação entre o pequeno
produtor e uma comercialização de maior envergadura. Essas empresas
seriam responsáveis, em teoria, por facilitar e estimular o acesso tecnológico
destes agricultores, oferecendo apoio técnico e vias simplificadas de
aquisição de maquinários e materiais. Em troca, os agricultores firmariam
contratos de produção com as primeiras, nos quais garantiriam a venda final
Ângelo Belletti | 193
do seu produto para as mesmas, bem como a prevalência dos parâmetros
de qualidade que esta desejasse (WATTS, 1990).
Por mais que estas empresas tenham surgido como solução ao
problema de isolamento produtivo enfrentado por alguns agricultores,
faz-se necessária a adesão de três elementos relativos às dinâmicas dos
processos de integração.
O primeiro destes elementos (i) é a situação socioeconômica que se
apresentava para os agricultores antes de ingressarem em sistemas de
integração vertical. O contexto agrícola promovido pela chamada
Revolução Verde gerou, em linhas gerais, dois grandes processos: de um
lado, agricultores que já dispunham de algum capital mínimo e que
conseguem abarcar as inovações tecnológicas propostas pelo referido
movimento, ampliando suas produções e produtividades, frequentemente
contando com ampliação de seus mercados e com economia de escala; do
outro lado, o agricultor (ou a agricultora) que não dispunha de capital
excedente e, quando o sistema agrário como um todo direciona-se numa
ampliação tecnológica, vê-se cada vez mais ultrapassado e isolado nos seus
modos de produção, resultando num distanciamento do mesmo de
qualquer possível inserção mercadológica capitalista (SILVA, 1981). Ao que
indicam
diferentes
estudos
(WATTS,
1990;
SILVEIRA,
2010;
CONTERATO, 2014), a maior parte dos agricultores que aderiram (e
aderem) aos sistemas de integração vertical o fazem desde uma situação
socioeconômica de poucas alternativas. Como destaca um dos agricultores
entrevistados, seu último cultivo majoritário antes de aderir ao SIPT foram
batatas, e, em sua derradeira comercialização, o valor total adquirido não
era suficiente nem mesmo para cobrir o investimento realizado no início
da produção. Assim, o primeiro elemento é a criação de um ambiente de
baixas alternativas produtivas que tivessem um retorno mercadológico
mínimo para manutenção da unidade familiar agrícola.
194 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Já inseridos nos contratos verticais, o segundo elemento ocorre pela
dinâmica como essas relações produtivas tomam forma. (ii) A cada ano,
antes da respectiva safra, cada unidade agrícola estabelece um acordo com
uma empresa pela venda futura do produto a ser cultivado. Em especial
no cultivo de tabaco, ficam firmadas a área que será plantada, qual espécie
de semente utilizada e qual a temporalidade de aplicação dos venenos e
fertilizantes necessários – prescritos e fornecidos pela própria empresa
contratante. Percebamos que, dentre os fatores que são acordados, o valor
pago pelo produto não é um deles, visto que este será decidido de forma
unilateral pela empresa no momento de entrega do cultivo. Este valor é
diferenciado entre diversas avaliações aplicadas sobre o produto colhido,
que consideram espessura da folha, coloração, tamanho e afins
(HILSINGER, 2016). Entre os valores superiores e inferiores pagos pelas
empresas pode haver variação de até 100%. E, como existe um regime de
oligopsônio, os valores entre diferentes empresas têm uma baixíssima
alteração, limitando as possibilidades de negociação por parte dos
agricultores. Diversos foram os agricultores entrevistados que
reclamaram da falta de controle sobre o valor recebido final e, mesmo
aprendendo como os critérios das empresas eram estabelecidos (por anos
de experiência lidando com esse processo), as estimativas sempre eram
errôneas – e, curiosamente, sempre em benefício da empresa contratante.
Aqui retomemos o ponto da introdução em que, por mais que seja dono
da propriedade, a prática produtiva dos fumicultores integrados torna-se
uma busca por atingir os melhores patamares de avaliação, seguindo ao
máximo as instruções das empresas e, mesmo assim, frequentemente
sendo surpreendidos negativamente.
Por fim, cabe aqui o terceiro elemento de destaque. Enquanto o
primeiro referia-se ao pré-contratos, e o segundo às dinâmicas durante o
mesmo, o derradeiro nos coloca o debate sobre quais as possibilidades dos
Ângelo Belletti | 195
agricultores de saírem do regime de contratos de integração vertical. (iii)
Podemos nos ater a explicação crua e entender que, por ser um contrato
firmado entre partes, basta que os agricultores não firmem este para
estarem fora do sistema referido – visto que são livres e donos do meio de
produção. Esta afirmativa é, em partes, evidentemente assertiva. Há,
entretanto, algumas ressalvas que são necessárias. A primeira destas é a
formação dos mercados para estes agricultores. Historicamente o espaço
de São Lourenço do Sul identificou-se (ou foi identificado?) enquanto um
produtor tabagista e, portanto, as instituições sociais funcionam
direcionadas para este cultivo. Há tentativas alternativas, como turismo
rural, promoção de feiras de produtos coloniais e produções
agroecológicas, porém é marcante a predominância do tabaco como
produção na região. A própria formação cultural do espaço, após décadas
de cultivo de tabaco, é profundamente marcada por esta planta
(HILSINGER, 2016). Da mesma forma que nas pessoas e no espaço
ocupado, o monocultivo por décadas deixa diversas cicatrizes no solo sobre
o qual se opera. Assim, a perda da agrobiodiversidade também é resultado
das práticas supracitadas (SANTILLI, 2005), ampliando o cuidado
necessário com o solo caso fossem estimuladas alterações produtivas.
Após agregar estes três elementos, podemos retomar no conceito
original dos contratos de integração vertical como um acordo entre
agricultores dispersos e uma empresa que administra e processa a
produção de forma centralizada. Porém entendendo que estes agricultores
aderem desde uma posição específica, que o contrato não é firmado em
uma relação equitativa, e que as alternativas à adesão não são vastas.
Durante as entrevistas realizadas, os agricultores relataram sua
entrada na fumicultura ao longo das décadas de 60 e 70 quando o preço
dos outros produtos que cultivavam adquirira um nível aquém do mínimo
para manutenção do próprio plantio – principalmente culturas de batata,
196 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
cebola e pêssego. E, reforçando o caráter teórico apresentado
anteriormente, estes agricultores repetidamente afirmaram que o fumo
apareceu, no período, como a única alternativa possível para sua
manutenção econômica no meio rural – ou se veriam obrigados ao êxodo
rural.
Já frente as suas práticas produtivas, por mais que não exerçam
contratos trabalhistas com as empresas fumageiras contratantes, os
agricultores relataram uma percepção de serem subordinados aos
interesses das empresas com quem negociam. E, ao serem questionados
sobre a possibilidade de negociação com as mesmas, afirmaram não haver
nenhum espaço para tal, visto que, caso tentassem se impor, seriam
excluídos das relações de contrato e isolados enquanto produtores. É
interessante constatarmos que ocorrem estratégias de ação por parte dos
pequenos agricultores envolvidos nestes contratos – como, por exemplo,
exigirem acompanhar a entrega e precificação dos produtos para terem
certeza da avaliação correta – porém práticas ainda limitadas frente ao
poder das empresas.
Quando inferidos sobre suas jornadas, a maioria dos produtores
afirmou trabalhar mais de dez horas diárias e, em períodos de ápice
produtivo – como durante a colheita –, chegar até dezoito horas de
trabalho diárias. Acrescido do tempo de trabalho, as condições mostramse bastante danosas para a saúde dos envolvidos. Os prejuízos vão desde o
contato direto e constante com agrotóxicos, até a exposição contínua ao
sol – o período de colheita coincide com o ápice do verão.
Estes relatos reforçam uma caracterização de sistema produtivo
periférico de alta exploração da mão de obra disponível (WALLERSTEIN,
2004; FIORI, 2014).
Assim, na superexploração, o valor recebido por este trabalhador
seria aquém do valor de energia dispendido, ou insuficiente para sua
Ângelo Belletti | 197
reprodução social (ou ambos) (MARINI, 1973; LUCE, 2013). Por exemplo,
é um trabalhador que exerce uma jornada de oito horas diárias, porém
que ao longo deste tempo é obrigado a manter um ritmo produtivo muito
além do padrão socialmente construído de desgaste muscular em trabalho
no respectivo período de tempo. Mesmo se considerada a possibilidade de
horas extras, em algum momento o valor recebido seria sempre
insuficiente para a manutenção mínima deste trabalhador – já que sempre
precisaria de horas de descanso e reestabelecimento. Como aponta Marx,
é a “compressão do salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de
trabalho” (2013, p. 388 – 389).
Por mais que seja o possuidor da terra, o agricultor vê-se, cada vez
mais, subordinado às diretrizes impostas pela empresa, fator agravado
quando considerado o caráter de oligopsônio da cadeia. Ou seja, a
dinâmica dos processos históricos em um Sistema Mundo e, mais
especificamente, em uma economia periférica desenvolveu, para a
realidade dos fumicultores de São Lourenço do Sul uma estrutura sócia
específica. Nesta, por mais que detentor dos meios de produção, estes
agricultores são subordinados e dependentes frente interesses e práticas
externas.
Considerações finais
Analisando a conjuntura, percebemos que as práticas fomentadas
pelo bloco capitalista ao longo do século XX como modernizadoras do meio
agrícola, de fato trouxeram um incremento dos índices produtivos. Porém,
ao mesmo tempo, criou uma barreira tecnológica e de capital para que
agricultores já desprovidos de uma inserção mercadológica maior
pudessem realizar esta entrada. Ao longo das décadas, esta baixa
disponibilidade de oportunidades produtivas gerou consequências como a
subordinação destes agricultores a dinâmicas exploratórias desenvolvidas
198 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
por algumas empresas. E é neste eixo que a análise específica sobre a
fumicultura encontra espaço.
As empresas que trabalham com tabaco estabelecem relações
contratuais com pequenos agricultores, contratos estes que colocam, sob
tutela do empresariado, as diretrizes a serem desenvolvidas durante o
cultivo do produto. Assim, por mais que sejam proprietários dos meios de
produção – a terra –, estes agricultores encontram-se progressivamente
numa posição subordinada aos interesses externos – os da empresa –,
gerando uma condição de proletarização destes agricultores situados em
periferias do capitalismo global.
Obviamente que é essencial destacarmos a agência destes
agricultores e que os mesmos têm plena capacidade de distinguirem sua
realidade e de buscarem vias para agir sobre a mesma, porém é
interessante percebermos, também, a formação do contexto e das
possibilidades que se apresentam.
É importante adicionar, também, a baixa quantidade de estudos que
abordem os contratos de integração vertical do ponto de vista trabalhista,
visto a própria complexidade do tema do ponto de vista de considerar
relação trabalhista uma prática no meio rural. Assim, é interessante fazer
a ressalva de que o tema deste próprio artigo pode, e deve, ser mais
profundamente desenvolvido, visando construir um arcabouço de
entrevistados mais amplo para uma análise mais abrangente do tema.
Por mais que aqui tratam-se de relações agrícolas específicas, a
profusão das mesmas se insere num ambiente de surgimento de uma série
de novas relações trabalhistas apresentadas na fase contemporânea do
capitalismo, assim como outros processos como a retirada de direitos
trabalhistas, a uberização e a terceirização.
Ângelo Belletti | 199
Referências
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Capítulo XI
“Sábado é dia de feira”: representações de um signo
entre o urbano e o rural na cidade de Cajazeiras-PB
Mirian Jossette de Sousa Oliveira 1
Tatiana de Sousa Lins 2
Quando pensamos a constituição da feira livre dentro da cidade de
Cajazeiras, nos deparamos com diversos pontos que estão diretamente
alinhados à sua própria construção enquanto espaço urbano.
Primeiramente devemos elucidar que Cajazeiras, como uma cidade
pequena pertencente ao alto sertão paraibano, na região Nordeste, não se
caracteriza por uma urbanização metropolitana, pois suas raízes são rurais
e esses sentidos ainda atravessam parte dos moradores que mantêm
traços da vida no campo, principalmente na relação com a agricultura
semeando a terra dentro e aos arredores da cidade e com a pecuária.
A feira livre nos chamou atenção por seu caráter temporário e por
ser produzida pelos próprios indivíduos que lhe atribuem os sentidos.
Nossa ideia inicial consistia em perambular pelas ruas centrais aos
sábados, para compreender como essa manifestação popular ocorre. À
primeira vista fomos tomadas por um “balaio” de simbologias aleatórias,
mas pela frequência assídua foi possível perceber que neste ambiente está
tudo no seu devido lugar. Sendo assim, para termos uma maior dimensão
de como esse espaço funciona, entrevistamos alguns feirantes e,
estabelecendo uma relação ética, explicamos nosso propósito, buscando
respeitar a disposição e concepção dos entrevistados, enquanto
1
Graduanda – (UFCG/CFP); mirian.mjso@gmail.com
2
Graduanda – (UFCG/CFP); linstatiana1@gmail.com
202 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
tentávamos, como menciona Portelli (1997), “aprender um pouquinho”
com essas pessoas. Partindo disso, observamos que a feira de rua em
constante movimento torna o centro da cidade mais democrático, colorido
e inquieto, no qual zonas rurais, periferias, centro e cidades circunvizinhas
se misturam em torno das trocas, compras, vendas e pelo direito de ocupar
as ruas.
Tomando isso como base da nossa análise, nos propomos a discutir
a feira a partir do “mosaico de signos” construído por aqueles que dela
participam, o que nos confere através da memória um amplo debate em
torno de permanências, mudanças e ressignificações em contrapartida à
modernização das cidades; assim como, nos faz refletir a feira como um
signo de interligação entre o espaço urbano e aspectos rurais. Dessa forma,
levando em consideração que signo é algo que representa algo para
alguém (PEIRCE apud. FERRARA, 1988, p.8) e partindo da premissa que
os termos “urbano” e “rural” são tidos como uma dicotomia, a presente
pesquisa busca traçar uma análise em torno das feiras livres da cidade de
Cajazeiras-PB, principalmente, aquelas situadas na rua Pe. Manoel
Mariano, Av. Cel. Matos e na Praça Coração de Jesus. As feiras em questão,
respectivamente, referem-se a uma produção específica de origem
agropecuária, como frutas, legumes e carnes; enquanto as outras possuem
uma maior variedade de mercadorias contendo produtos alimentícios,
artesanais e industrializados.
As transformações e conflitos entre o campo e a cidade
A partir das delimitações espaciais entre o campo e a cidade, foi
construído um imaginário que deu origem a diversas concepções
cristalizando uma noção dicotômica que os associa, respectivamente, ao
atraso em contraposição ao progresso. Essas classificações decorrem da
ideia de que esses espaços pertencem a uma linha evolutiva na qual a zona
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 203
rural é o “ponto de partida”, por estar relacionada ao natural e “primitivo”;
e o urbano é a “consequência” da proximidade com o “moderno”.
Portanto, relacionar o campo e seu modo de vida rural ao atraso foi uma forma
de construir uma ideologia que solidificasse o novo modo de vida: o das
cidades (urbano). A ruralidade seria substituída pela urbanidade. A
urbanização expandiria as condições do novo modo de produção, estenderia a
“civilidade” a todos. Destarte, com o objetivo de “civilizar o campo”, justificouse o desmatamento, a expropriação, a expulsão e a apropriação de recursos
naturais. (BAGLI, s/d, p.2).
Desse modo, o ideal de progresso das cidades é atrelado a uma
perspectiva mais ampla, a “civilidade”, utilizada para validar a arquitetura
que se ergue em torno dos sentidos que compõem a vida moderna. Diante
disso, “estagnada” a natureza torna-se apenas um recurso à serviço desses
interesses e as expansões urbanas caracterizam um constante movimento.
Entretanto, esses espaços não estão em uma construção linear e a
delimitação entre o âmbito rural e urbano não ocorre a partir de uma
ruptura tão brusca. Utilizando como exemplo nossa delimitação espacial,
Cajazeiras é caracterizada como uma cidade média, considerando sua
extensão territorial e contingente populacional entre as demais localidades
do alto sertão paraibano. Os projetos de urbanização que prometem
“modernizar” e impermeabilizar o município se misturam com a terra
batida pelas andanças dos habitantes. É possível experimentar
movimentações e trânsitos caóticos, assim como os silêncios que regem
alguns horários e ritos da população. Percebemos esses “pontos de
intersecção” no cotidiano das pessoas, assim como no uso do espaço.
Quanto à vivência nas zonas rurais dos arredores, mesmo que os modos
de habitar caracterizem experiências diferentes, parte da população do
campo possui acesso à algumas tecnologias e serviços concebidos como
aspectos da cidade.
204 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Portanto, algumas transformações que ocorrem no meio urbano
também são uma possibilidade para o campo, bem como os costumes do
mundo rural também podem estar inseridos na cidade. Isso não quer dizer
que sejam experiências iguais, mas que perpassam possibilidades comuns
e sofrem constantes mudanças a partir de suas realidades. Assim,
A relação campo-cidade está em constante produção, visto que não se tratam
de dois espaços distintos e estáticos, mas são alterados de acordo com as
relações sociais no decorrer do tempo histórico, evidenciando em suas
paisagens as transformações que ocorrem num processo contínuo. (LIMA, s/d,
p.4).
Por meio da construção desse imaginário em torno dos âmbitos
urbano e rural é criada uma oposição como uma forma de demarcar e
divergir espaços que se comunicam e, por vezes, se interligam pelas
intervenções dos habitantes. Consequentemente, os conceitos de campo
como lugar estático e atrasado, e de cidade como sinônimo de civilidade e
progresso, não se sustentam tendo em vista que, como citado acima, “eles
estão em constante produção” e mudança, no qual esses “pontos de
intersecção” são características fluídas podendo existir em ambos os
espaços sem descaracterizá-los. Dito isto, encontramos na feira livre um
espaço fronteiriço em que a produção entre essas experiências de habitar
tomam a cidade trazendo signos e interações que desmistificam essas
concepções.
Tradição x modernização
A feira surge na Fazenda Cajazeiras, por volta de 1848, com o intuito
de possibilitar o comércio de alimentos e outros produtos sem a
necessidade de grandes deslocamentos. Por conseguinte, ocorrem um
aumento da população e expansão do território, passando para a condição
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 205
de vila em 1863 e para cidade em 1876. O início do século XX e o ideal de
progresso e modernização trazem para Cajazeiras o teleférico, a usina de
algodão, a estrada de ferro, o cinema e uma maior circulação de
automóveis. Dessa forma, a feira vai se desenvolvendo como um reflexo
da urbanização da própria cidade, que necessita de um comércio que dê
vazão aos consumidores que aumentam com o seu desenvolvimento.
(SANTANA, 2017). Partindo dessa visão de “urbanização” e embora a
“história oficial” reserve às famílias oligárquicas a construção da cidade, a
feira foi organizada junto aos primeiros indícios de expansão do território
e deu margem para que Cajazeiras se tornasse um polo de trocas e
comercializações entre periferia, centro, zonas rurais e cidades
circunvizinhas. Portanto, todos esses sujeitos foram diretamente
responsáveis por esse processo.
Durante o desenvolvimento da urbanização da cidade, a feira livre
ocorria nas principais ruas do centro compondo inúmeras categorias de
produtos desse comércio em proximidade. Porém, com o passar do tempo,
essa manifestação foi se fragmentando, inicialmente pela construção de
uma avenida, correspondente a atual rua Padre José Tomás, e,
posteriormente, pela ampliação dos estabelecimentos comerciais que
seguem outras lógicas, marcando a concorrência com ela.
Buscando observar e compreender essas mudanças, assim como, as
permanências marcadas pelos signos que se constroem em torno disso, no
sábado, por volta das 07h, fomos à feira de Cajazeiras para conversar com
alguns feirantes e consumidores, especificamente, onde se concentra um
maior fluxo de produtores/vendedores, artesãos, agricultores, bancas de
roupas, etc.
Nessas caminhadas, encontramos com seu Antônio (74 anos) e sua
banca de chinelas de couro, que há mais de 50 anos ocupa um lugar nesta
feira. Bastante acolhedor e comunicativo, nos envolveu em uma conversa
206 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
sobre sua trajetória, “eu gosto de trabalhar na arte e gosto da feira”, em
um tom incisivo, reforçando que nem mesmo a aposentadoria o fez largar
o ofício de coureiro e essa forma de expor e comercializar sua arte. Quando
questionado sobre as mudanças e permanências vivenciadas através da
sua experiência como feirante, nos resumiu poeticamente que “a feira é
assim, como a maré, né”. Essa comparação carrega muitos sentidos sobre
sua percepção deste espaço, trazendo-o como uma certeza a cada sábado,
assim como, a natureza da maré que não se pode adiar, mas fluída como
a água e influenciada por inúmeras condições, tem um caráter mutável.
Assim, seu temperamento é cíclico, resistente e se transforma, muda, mas
também é “regular”, como ele disse.
Diante disso, sistematizamos algumas narrativas de pessoas que
constroem esse espaço, buscando compreender a organização da feira sob
os aspectos autônomo e institucional, e os processos que a caracterizam
como fluída. Percebemos que é comum entre os vendedores que estão na
feira há um maior tempo, expor essas transformações mais significativas,
como seu Joaquim Pereira, revendedor de grãos e conhecido como o
feirante “mais antigo” da cidade. Ele nos relatou “trabaio na feira faz uns
53 anos... os mais antigo, nois agora fica aqui (referenciando a rua Pe.
Manoel Mariano), os novato é pra lá (na direção da praça “Coração de
Jesus”), antes a feira pegava isso aqui tudin”, nos apresentando um pouco
da configuração dessa demarcação antes e depois das transformações
urbanas que contextualizamos acima.
Voltando à fala de seu Antônio, ele ainda nos explicou que
“Antigamente se pagava uma taxazinha, né, no tempo de Vituriano,
quando Vituriano entrou foi que ele tirou, mas antes pagava”, apontando
as intervenções da prefeitura na regulamentação dos feirantes.
Atualmente, a prefeitura ainda delimita os espaços a serem ocupados pela
feira, porém não impõe mais uma taxação para essa ocupação. Diante
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 207
disso, compreendemos a feira do sábado um espaço mais democrático,
pois, apesar das adversidades nas condições do trabalho autônomo,
qualquer pessoa que deseje tem o direito se estabelecer e comercializar
dentro dessa manifestação popular.
Para
termos
maior
dimensão
sobre
as
regularidades
e
transformações que constroem esse lugar, também buscamos as
experiências dos fregueses que o vivenciam a partir de outras perspectivas.
Tivemos a oportunidade de conversar um pouco com dona Maria (60
anos), frequentadora assídua da feira desde os 15 anos, que dentre a
contação de histórias sobre casos que vivenciou com sua família neste
espaço, nos contou que as mercadorias “antigamente eram provindas da
feira e das bodegas”, trazendo outros sentidos para a cultura alimentar.
Não era supermercado não, antes tinha era as budegas de Jaime Daniel,
Budega de São Fasto, de Seu Alcides, não tô bem alembrada do nome das
outras...nelas vendiam feijão, arroz, farinha, cachaça, a granel, o café...o café a
gente comprava o caroço para chegar em casa, lavar e butar o caco de barro
no fogo, pra quando o caco tivesse quente, aí torrava o café, aí quando esfriava
ia colocar no pilão [...].
As relações entre as diferentes formas de comercialização se iniciam
entre a feira livre e as bodegas, por meio de pequenos armazéns que
vendiam esses artigos citados acima. A convergência entre esses espaços
não se configurava de maneira tão clara, isso se dá ao fato que as bodegas
e feiras se complementavam no fornecimento de mercadorias. Prevalecia
o comércio em natura ou pouco processado, em que parte da população
precisava conhecer o manejo no preparo de alguns alimentos e o acesso a
eles, muitas vezes, era regido pela estação e o local.
Eu acho que mudou, porque di primeiro não comprava maracujá, tomate... é
mais agora, hoje tem mais diversidade...di primeiro na feira era mais feijão,
208 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
arroz, rapadura...di primeiro era difici ver uma roupa feita pra vender, era
mais o ticido, não tinha essas banca de roupa, a gente comprava nas lojas de
ticido para mandar fazer um vestido, uma saía...hoje já compra feita.
Além dessa “diversidade” nos produtos alimentícios, dona Maria
também ressalta uma modificação na confecção do vestuário, implicando
em uma nova forma de comércio dentro da feira, as “bancas de roupas”
advindas de fábricas. Essas transições ainda são perceptíveis,
principalmente ao observar os homens mais velhos que a frequentam, seja
os feirantes, passantes ou consumidores. Eles geralmente estão trajados
com calça de linho, camisa social de botão e chapéu, fazendo um contraste
com os tecidos e modelos das vestimentas dos ocupantes mais recentes.
Figura 01 – As bancas de roupa
Fonte: Acervo pessoal (2020)
A partir disso, notamos alguns deslocamentos da feira para atender
às novas necessidades do consumo popular, assim como, o surgimento de
outros formatos de vendas em espaços restritos e higienizados que
caracterizam escolhas sociais da “vida moderna”. Os supermercados e
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 209
hortifrútis iniciam a substituição às bodegas e marcam uma relação mais
forte quanto à concorrência com as feiras livres. Esses estabelecimentos
mantêm uma sistemática totalmente diferente do funcionamento da feira,
porém, o objetivo de mercantilizar constitui uma disputa em que ambos
precisam traçar estratégias para legitimar a sobrevivência de suas
práticas. A feira, como representante de uma tradição no ato de
comercializar, desafia os parâmetros da modernização ao se reinventar e
estabelecer relações que estão além do sentido mercadológico, criando
suas formas de persistência dentro dela.
Ao indagar os feirantes sobre essa relação de contraposição entre os
supermercados/hortifrútis e a feira, ela nos foi demarcada a partir de
algumas questões, como a qualidade e a origem dos produtos
comercializados. Como exemplo, trouxemos os relatos de seu Augusto que
nos disse que trabalha na feira, há cerca de quinze anos, vendendo frutas,
hortaliças e grãos, e que não percebe tantas complicações nessa relação:
não, eu não acho não, porque nossa mercadoria é mercadoria fresca que nois
traiz do sítio, a maioria é nois que produz...muitas coisas aqui, então o pessoal
sempre procura mais a gente...nossa mercadoria é melhor que a do mercado,
porque mercado é coisa que vem de fora, vem do CEASA que tem muito
veneno e as nossas não, as mercadorias tudo saudável aqui, do sítio mesmo,
pode olhar aqui.
Apesar de alguns feirantes não demonstrarem muitas preocupações
em torno da “rivalidade” com essas outras formas de comercialização pela
qualidade dos seus produtos, constatamos, através das entrevistas e das
transformações da cidade, uma consequente redução do espaço e do
horário que a feira ocupava, à medida que houve a ampliação da influência
dos supermercados, que se fixam numa sistemática diária e buscam
contemplar os mais variados produtos, caracterizando assim um “embate”
210 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
entre eles. Diante disso, percebemos os conflitos que demarcam essas
relações, pois, “aos olhos do mundo moderno, o comércio impessoal dos
supermercados parece mais compatível. No entanto, os consumidores que
privilegiam a qualidade dos produtos não abandonam a feira” (NAGEL;
GONÇALVES; RANGEL; PEÇANHA, 2007, p.53).
Sendo assim, a feira vivenciou todos esses processos observando as
mudanças sociais e conseguiu se reinventar e adaptar-se às novas
realidades, mantendo alguns de seus sentidos. Diante disso e através das
narrativas dos feirantes assim como de consumidores, percebemos as
transformações que a feira sofreu quanto às medidas do poder público na
delimitação espacial e na tentativa de institucionalização da sistemática da
feira, nos produtos comercializados e nas outras formas de
comercialização que surgiram trabalhando em conjunto ou estabelecendo
a concorrência com ela.
A feira enquanto signo
A construção da feira enquanto signo atua mediante as significações
atribuídas pelos produtores, comerciantes, consumidores e transeuntes
que compõem esse espaço. Em um dia, o próprio povo organiza uma zona
temporária e acessível dentro de uma política de subsistência que marca
um espaço fronteiriço entre o rural e o urbano.
É importante destacar que o sentido da feira ultrapassa os limites
físicos. Ela, apesar de se apropriar de um espaço urbano, é constituída por
mercadorias provindas (em boa parte) do cenário rural e permeada por
pessoas que constroem uma prática que interliga essas duas experiências
habitacionais, a cidade e o campo. Ademais, Cajazeiras por ter essa noção
peculiar de urbanização, como já mencionado, não tem limites tão claros
entre a zona urbana e rural, caracterizando a feira como o momento e
espaço no qual essa relação se sobressaí.
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 211
O espaço produzido na feira se apresenta como multiplicidade conectiva,
encruzilhada de trajetórias e, ao mesmo tempo, pode ser articulado a essa
atratividade, à função magnética, pois coisas e gentes, atraídas pelo
movimento das manhãs de sábado, circulam intensamente por entre os
corredores que se improvisam no meio da rua. (BARBOSA, 2011, p. 4).
Essas
construções
simbólicas
produzidas
dentro
da
feira
caracterizam o que chamamos de “mosaico de signos”, que são esses
sentidos que colocam a feira como um espaço sensorial de sons, cheiros,
cores, trocas afetivas, culturais dentre alguns dos fatores que garantem a
sua permanência em meio à concorrência. À primeira vista, a feira impacta
com um emaranhado de pessoas, produtos e ofertas, porém, ao longo da
nossa pesquisa se tornou cada vez mais nítido como toda essa estética é
propositalmente construída pelos feirantes e a disposição dos produtos é
pensada de forma a chamar a atenção do cliente. Além disso, como foi dito
anteriormente na fala do seu Joaquim, há uma lógica em que o tempo é
primordial à delimitação desse espaço.
Essa forma de organização visual da feira foi o primeiro signo que
reconhecemos, mas, além dele, podemos listar: as relações entre feirantes
e clientes; a linguagem utilizada nas propagandas ou a “musicalidade” da
feira; as estratégias de venda (maior e menor preço); a hereditariedade; a
coletividade entre os vendedores; etc.
Pelas práticas e a frequência em que ocorrem, as feiras constroem
uma relação para além do cunho comercial, estabelecendo uma ligação
intimista entre o comerciante e seus clientes, atuando também como ponto
de encontro entre as pessoas que a frequentam. As relações construídas
entre os vendedores e consumidores proporcionam também outro tipo de
contato com o produto, ou seja, aprendemos a utilizar todos os sentidos.
Portanto, consumimos provando, pegando, cheirando, ouvindo, lendo,
conversando, recitando e tudo que a feira permitir que façamos. Podemos
212 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
entender, principalmente em relação à comida e aos produtos artesanais,
como ocorre a produção destes fortalecendo a agricultura familiar e os
trabalhos manuais.
Pelo interior das barracas, carregadores passam com caixas nos
ombros, feirantes se alimentam, conversam sobre política, comentam
sobre as condições do tempo – o quanto está “bonito para chover” ou a
“quentura” que rege o dia –, partilham dos seus conhecimentos e fazem
contações de histórias ao passo em que realizam as vendas. Passantes
chegam dispostos a estabelecer diálogos, trazem notícias e alimentam
alguns ritos presentes na feira. Consumidores caminham pelo labirinto
que se forma entre os arranjos dos feirantes, arrastando suas sacolas e de
olhos atentos às cores, aos preços e à qualidade dos alimentos. Quando as
disposições são atrativas, param para tocá-las, enquanto os vendedores
rapidamente abrem as sacolas que desejam encher, atestando a qualidade
dos seus produtos. Feita a negociação, podem voltar aos anúncios, às
conversações ou observá-las, compondo com agencia o fluxo das
linguagens de sociabilidade nesse espaço.
Ao convocar os clientes, a maneira de agir, falar, comercializar,
produzir sentidos e aquilo que trazem, refletem diretamente essas
experiências. A propaganda consagrou aos gritos “é só 3 por 10 reais” e
“corre que já tá acabando” como uma linguagem específica desse lugar.
Dentro dessa estratégia de vendas, nos deparamos também com o que os
feirantes chamam de “maior e menor preço”, prática que se faz nas formas
de negociação dos produtores diretamente com seus clientes. Por exemplo,
dona Lourdes não coloca o preço exposto nas suas louças de barro, mas
negocia seus produtos de acordo com as condições, como: quando já são
fregueses, os clientes ganham uma promoção; quando a feira não está tão
boa tem um desconto, pois é necessário tirar o sustento da semana, porém,
se o fluxo de vendas aumenta, é possível negociar sua produção a um preço
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 213
mais justo. Mas, sempre ao final, existe a xepa, em que os últimos produtos
que restaram nas barracas possuem um “precinho mais em conta. ”
Além dos diálogos e relações de negociação, pelas entrevistas,
percebemos questões que estão atreladas à hereditariedade na feira que,
embora não seja um consenso, ocorre com grande parte dos feirantes,
como Edivan, vendedor de temperos, que nos relatou: “Era meu pai quem
trabalhava aqui, ele ficou 40 anos... eu cheguei com 10 ano, estou aqui faz
30 anos. ” Ele continua a trabalhar na feira como um negócio deixado pelo
seu pai, que conquistou o ponto que ele ocupa atualmente, reforçando essa
legitimidade na forma da organização.
Baseado na questão da hereditariedade, tornou-se ainda mais
perceptível a constante presença de crianças ajudando os familiares na
comercialização de produtos na feira, como parte dessa sistemática de
herança. Essa questão, embora seja corriqueira entre alguns feirantes,
caracteriza a prática do trabalho infantil e envolve as condições de
subsistência dentro do capitalismo, no qual as demandas excessivas
muitas vezes precisam integrar toda a família. A intenção nessa discussão
não é estigmatizar as práticas dos feirantes que acompanhamos e que as
julgam necessárias ou dignas, mas atentar para as condições de trabalho
que os inserem dentro desse sistema econômico, político e social. Nesse
sentido, Costa (2010) afirma que inúmeros processos históricos ligados
aos interesses estatais e privados sobre a economia do país influenciaram
as normas de institucionalização do trabalho e, nessas circunstâncias, a
“informalidade” foi sendo definida como um contraponto à “formalidade”
que é regulamentada pelo emprego assalariado. Portanto, essa conjuntura
contribuiu para a situação de instabilidade dos trabalhadores autônomos
e, em algumas conjunturas, favoreceu o trabalho infantil.
Em contrapartida, embora essas condições tornem o trabalho árduo,
os feirantes desenvolveram entre si uma relação de coletividade que os
214 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
auxilia nas adversidades do dia a dia. Seu Edifram e sua companheira,
comerciantes de plantas, debulham o feijão verde da barraca do seu
Augusto para lhe ajudar nas vendas. Mais tarde, o vendedor de goma de
mandioca precisou se ausentar e seu Augusto lhe substitui nas
negociações. Gradativamente, fomos percebendo uma rede de apoio entre
os feirantes que lhes trazem o sentido de comunidade dentro dessas
vivências do comércio de um dia só. Diante disso, nos trouxeram relatos
que desmitificam a questão da concorrência entre eles, pois, dentro do
espaço, todos precisam se ajudar e desenvolvem boas relações nesse
convívio e fora dele.
Figura 02 – Edifram e sua companheira debulhando feijão
Fonte: Acervo pessoal (2020)
Portanto, toda essa análise em torno da feira livre como um signo que
aos sábados dispõe de alguns lugares da cidade, atravessando questões
históricas e, consequentemente, elementos culturais e políticos, interações
e
ressignificações
em
construção
contínua,
nos
proporcionou
compreender as relações estabelecidas entre o urbano e o rural enquanto
Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 215
espaços que se entrelaçam e que dão corpo a uma tradição em movimento,
que produz diversos sentidos, problemáticas e peculiaridades.
Referências
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Ponto Urbe, [s. l.], v. 8, p.1-15, 2011. DOI: 10.4000/pontourbe.1766. Disponível em:
http://journals.openedition.org/pontourbe/1766. Acesso em: 07 nov. 2020.
COSTA, Márcia da Silva. Trabalho informal: Um problema estrutural básico no
entendimento das desigualdades na sociedade brasileira. CADERNO CRH, Salvador,
v. 23, n. 58, p. 171-190, jan./abr. 2010.
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Eclética, [s. l.], p. 52-56, jan./jun. 2007.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética
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SANTANA, Andressa Martins. No sábado eu vou pra feira: Memórias e resistência
cultural em Cajazeiras (1970-2016). 2017. 101 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura em História) – Universidade Federal de Campina Grande, Cajazeiras,
2017.
Encruzilhadas Epistemológicas
Capítulo XII
A Amefricanidade como
Filosofia Política Contra-colonial
Jonas Silveira da Silva 1
Matheus Menezes Marçal 2
Nossa proposta é apresentar um contraponto aos recentes discursos
acerca das propostas, por parte de teóricos latino-americanos, de pensar
uma nova abordagem das humanidades a partir das categorias
“decoloniais”. Com base no conceito de contra-colonialismo, de Antônio
Bispo, e de agência e localidade, de Assante, argumentamos que, para
pensarmos uma filosofia política de emancipação, não podemos adotar
categorias construídas com base em uma historiografia eurocêntrica que,
à margem da teoria crítica produzida por pensadoras negras e negros,
busca “inaugurar” uma ruptura com o eurocentrismo. Para demonstrar a
existência do contra-colonialismo e da agência como categorias que
pautam a construção dos saberes das comunidades negras, apresentamos
a Amefricanidade, de Lélia Gonzalez, como uma “categoria política-social”
que demonstra que, na trajetória de intelectuais negros, aspectos como
universalidade, agência e resistência ao colonialismo já vinham sendo
pautas da diáspora negra no Brasil.
Contra-colonialismo e intelectuais negros
Pela proposta que foi pedida para essa pesquisa nos debruçamos para
buscar outras epistemologias, e não conceitos ou categorias exógenas às
1
Licenciando – UFRGS; jonaslichistoria@hotmail.com
2
Licenciando – UFRGS; matheus.menezes.m@gmail.com
220 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
comunidades negras do Brasil. Para poder pensar a subjetividade do ser
em questão, brasileiro não branco, nos debruçamos em categorias ou
conceitos endógenos. Usamos um termo que Nego Bispo cunhou, mas ele
explica que esse termo não um conceito ou teoria, e sim um modo de luta,
um modo de viver, mas nos remetemos em chamar “prática-teoria” para
facilitar a compreensão da proposta: contra-colonização. O termo práticateórica contra-colonização se refere aos processos de enfrentamento entre
povos, raças e etnias em confronto direto no mesmo espaço geográfico
físico (SANTOS, 2015, p. 20). Essa prática-teórica é usado para enfrentar
as epistemologias eurocidentais que até hoje estão entranhadas em todos
campos mentais e materiais da comunidade brasileira. Epistemologias
essas que não dão conta da subjetividade do sujeito não branco, tal qual
Fanon demonstra em seu “Peles Negras Máscaras Brancas”. Nego Bispo
afirma que:
[Vamos] compreender por colonização todos os processos etnocêntricos de
invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma
cultura pela outra, independentemente do território físico geográfico em que
essa cultura se encontra. E vamos compreender por contra colonização todos
os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra
colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados
nesses territórios. Assim sendo, vamos tratar os povos que vieram da África e
os povos originários das Américas nas mesmas condições, isto é,
independentemente das suas especificidades e particularidades no processo de
escravização, os chamaremos de contra colonizadores. O mesmo faremos com
os povos que vieram da Europa, independentemente de serem senhores ou
colonos, os trataremos como colonizadores. (BISPO, 2015, p. 47-48).
As colocações de Nego Bispo são bem "escuras" ao demonstrar que
todo e qualquer processo que partiu do homem branco colonizador ao
homem negro e os povos originários foi gerador do epistemicídio, ou seja,
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 221
ele foi um modo operante da colonização eurocêntrica. E quando ele trata
os povos africanos e povos originários na mesma condição ele entende a
conexão que faz, com que os africanos sequestrados e trazidos para a
América, novo mundo, e os povos já posto nela, povos originários, já se
debruçaram em uma luta contra a colonização.
Consideramos que o conceito prática-teórica de contra-colonialismo
conduzido por Nego Bispo, garante a existência de dois processos
fundamentais para a produção de uma epistemologia que garanta o livre
pensar e viver das comunidades negras: agência e localização. Buscamos a
base para esses conceitos em Asante e sua teoria da afrocentricidade
(ASANTE, 2007). Nesse processo, a agência visa à emancipação da
população negra, recuperando sua história, seu direito de governar a si
mesma e, também, um enfrentamento direito ao racismo anti-negro. A
localização é usada para o ser negro na abordagem afrocêntrica, em que
os parâmetros e as construções de sentido serão baseadas em relações em
que os conhecimentos de matriz africana serão as narrativas centrais,
distanciando-nos da relação “Eu-Outro” eurocêntrica que aprisiona outras
epistemologias em conceitos como “margem” e/ou “periferia”.
No contexto brasileiro, usamos o conceito da afroperspectiva, de
Renato Nogueira, em que para afrocentrar fenômenos da nossa realidade,
precisamos de uma visão com base em nossa realidade de diáspora
africana no Brasil, espacialidade sócio-política com particularidades que a
diferenciam das realidades diaspóricas em outras comunidades negras.
Recorremos ao conceito de Renato Nogueira por entender que o conceito
afrocêntrico de Asante e da filosofia africana não dialogam diretamente
com as experiências negras com os povos originários do continente que
hoje chamamos América.
O conceito prática-teórica de contra-colonialismo, em nosso
contexto, coloca-se contrário às categorias decolonial /descolonização
222 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
apresentadas por intelectuais pertencentes à branquitude, tais como
Aníbal Quijano, Boaventura de Souza Santos e Walter Mignolo. Não
centramos nossa crítica, no entanto, na superficial abordagem do “lugar
de fala” desses autores, mas, em essência, na historicidade que é
estabelecida por eles no momento em que, com base em suas abordagens
decoloniais, procuram inaugurar uma abordagem do campo das ciências
humanas ainda dentro da perspectiva eurocêntrica.
Nego Bispo afirma que para um pensamento decolonial você precisa
ter uma herança colonial. Então, entende-se que os pensadores brancos
decoloniais que trabalham com esse conceito estão certos, mas ele explica
que esse conceito tem que ser trabalhado no seu local de origem. O
professor Renato Nogueira, entrevista Nego Bispo (2020) em uma live,
nela ele comenta que os decoloniais precisam, eles e seus pares,
trabalharem como decoloniais no seu território, para que impeça que seus
outros pares tentem novamente colonizar os povos não brancos. Não que
isso não esteja acontecendo.
Em olhar crítico na teoria decolonial, ela pode ser uma armadilha
teórica que, talvez, sem perceber, pratique um neocolonialismo ao campo
das humanas, simplesmente pelo fato de sua herança ser eurocêntrica,
como diz mestre Jairo Pereira: “mesmo a sua fala sendo contra todos os
processos colonizadores, a sua subjetividade acaba sendo colonizadora”,
dentro disso atitudes como a forma de escrita e o modo de viver acabam
sendo feitos de modo colonizador, mesmo partindo de um conceito que
visa dar voz aos povos ditos subalternos/periféricos.
Outro ponto é entender que antes mesmo de estes intelectuais
decoloniais sugerirem com suas compressões da arquitetura dos países
colonizados, na subjetividade, na economia, arquitetura material, na
forma como a cidade se distribui, da forma como espaço. Mas antes, a
gente já tinha, autoras e autores negros trabalhando nesse contexto
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 223
histórico e teórico. Lélia Gonzalez, Abdias e Beatriz Nascimento e outros
já vinham produzindo trabalhos com esse entendimento do processo
histórico brasileiro e partindo da centralidade negra. No livro “Beatriz
Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da
destruição”, organizado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas onde
possuem uma demanda maior das obras da autora, o texto “Por uma
história do homem negro” (NASCIMENTO, 2018), percebe-se que ela
busca o centro da experiência vivida por negras e negros e não a
“margem”, a “periférica” ou “subalternidade”, como pontua o campo
decolonial.
Beatriz busca o reexame da história do negro, mas pelos olhares e
sentires do próprio negro, diante disso ela se dedica em estudar a
historiografia e o processo histórico dos quilombos, retirando todos os
estereótipos racistas produzidos ao longo da história pela hegemonia
branca para explicar o que são os quilombos. Debruçando-nos mais sobre
os estudos de Beatriz, que mesmo diferentemente de Nego Bispo, que
trabalha com o Quilombo na forma prática-teórica, ela busca entender o
quilombo no seu processo de continuação histórica ao longo do século XX.
Beatriz diz,
O quilombo não é, como historiografia tem tentando traduzir, simplesmente
um reduto de negros fugidos, simplesmente a fuga pelo fato dos castigos
corporais, pelo fato de os negros existirem dentro de uma sociedade opressora,
mas também a tentativa de independência, quer dizer, a independência de
homens que procuram por si só estabelecer uma vida para si, uma organização
social para si . Então fundamentalmente, o quilombo é uma organização social
de negros, que foi só os negros que empreenderam essa organização social e
que foi paralela durante todo o período da escravização. E mais importante
ainda, sendo essa uma organização social, ela se projetou no século XX como
uma forma de vida do negro e perdura até hoje. Então, basicamente, meu
estudo do quilombo se prende a essa perspectiva de organização social do
224 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
quilombo uma organização social que tinha uma economia própria, que tinha
relações próprias e que fundamentalmente era não só uma necessidade de
resistência cultural, mas também de resistência racial do negro.
(NASCIMENTO, 2018, p. 129).
Apesar de que o quilombo sofra alterações no decorrer da história, a
característica principal é a de uma organização social desenvolvida pelos
negros, sem interrupções no decorrer do período do escravismo. No século
XXI, o quilombo é um “instrumento ideológico de luta para o negro
diferente do passado, que a luta era mais física. Beatriz acredita que “o
quilombo é uma coisa tão própria do povo negro, tão explícito que
transcorre a ser visto como fortalecimento psíquico”. Analisando os
estudos de Beatriz Nascimento, ela inaugurava nos 1970 e 1980 o que hoje
chamamos de agência e localização negra, hoje com bases nas teorias da
afrocentricidade e com a afropespecitiva, facilita o entendimento dos
processos e a complexidade que o quilombo se deu e as formas que ele se
estruturou. É perceptível que os estudos de Beatriz, foram simplesmente
magníficos ao entender o quilombo, diferentemente de outros autores que
erroneamente compreendiam o quilombo como um a lugar de negros
fugitivos.
Acima de tudo, Nego Bispo com sua prática-teórica e Beatriz
Nascimento partindo mais da teoria, até por que ela era uma professora
de história, entendem que os quilombos nos propiciam uma oportunidade
de fazer uma leitura da luta quilombola à contrapelo de algumas obras
clássicas do Pensamento Social, centralizando a luta quilombola contra
todos os processos de colonização. Tal processo, pensado a partir do
Quilombo e do Contra-colonialismo de Nego Bispo e de Beatriz
Nascimento, é confirmado pelo conceito de “Amefricanidade” criado por
Lélia Gonzalez, na medida em que, em seu conceito, a intelectual visava
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 225
elucidar a filosofia política presente nas manifestações culturais negras
pelas Américas.
Amefricanidade como filosofia política
Dentro de sua longa trajetória política e acadêmica como cientista
social e militante do Movimento Negro Unificado, Lélia Gonzalez
demonstrou a importância da produção de saberes escritos sobre as
experiências negras na diáspora que estivessem conectados com
epistemologias relacionadas à produção de organizações políticas e de
conhecimentos que, não se pautando no Ocidente, buscassem demonstrar
a agência de africanas e africanos em diáspora durante a história da
população negra.
Em entrevista para Carlos Alberto Pereira, ao ser perguntada da
relação do movimento negro com o marxismo, a pensadora negra já
demonstrava sua ruptura com a lógica colonial:
[...] o que eu estou querendo colocar é o seguinte: me parece que a gente tem
que ver a questão, nós, do terceiro mundo, os chamados povos de cor, temos
que ver é o seguinte: é que nos parece que os discursos mais avançados, mais
progressistas do ocidente, com relação a nós, não chegam perto, não
conseguem tocar uma outra forma discursiva que caracterizou a resistência
desses povos. (GONZALEZ, 2018, p. 88).
Ao utilizar a expressão “outra forma discursiva”, é preciso pontuar
que a pensadora não estava propondo uma reformulação de aspectos
previamente apresentados pelo eurocentrismo, ela está a afirmar que, a
partir das experiências sociais dos povos racializados, é preciso pensar
uma outra filosofia política que dê conta das experiências sociais e dos
problemas que se apresentaram e continuam a se apresentar para as
comunidades.
226 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Tais reflexões de Lélia Gonzalez não podem ser descontextualizadas,
no entanto, do contexto histórico no qual ela estava promovendo suas
reflexões, como Raquel Barreto bem contextualizada em sua dissertação:
No caso da amefricanidade, a mesma deve ser pensada dentro das ideologias
de libertação africanas e afro-diásporicas. Especialmente ligada ao movimento
de pensadores negros terceiro-mundistas que a partir da década de 1950,
preocupados em construir um conhecimento na periferia do capitalismo
avançado. Elaborando uma filosofia própria, enraizada em seu contexto
histórico e social que sofria transformações profundas com o processo de
descolonização pelo qual passavam vários povos africanos. A categoria de Lélia
deve ser pensada nesse quadro. (BARRETO, 2005, p. 48 - 49).
Não é de se estranhar que, em conformidade com o paralelo que
estabelecemos com os conceitos de agência e de localização sugeridos por
Molefi K. Assante, Lélia Gonzalez já era uma leitora dele quando produziu
seu texto “A categoria político-cultural da Amefricanidade”, como
podemos observar na passagem em que apresenta os significados políticos
e culturais da Amefricanidade:
As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade
(“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio
termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico
e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais
profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como
um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente
geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo
histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação
e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos
como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos
yorubá, banto, ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da
construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 227
da Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas do Pan-africanismo,
“Negritude”, “Afrocentricity”, etc. (GONZALEZ, 2018, p. 329 - 330).
A Amefricanidade de Lélia Gonzalez, nesse sentido, encaminha para
uma proposta de identidade coletiva negra que, ainda que centrada na
experiência negra nas Américas, não perde de vista um olhar de
continuidade de uma ontologia africana que, em contato com as
sociedades indígenas, garantiu e garante formas da agência das
populações negras.
A narrativa que afirma que, após a diáspora, inicia-se um período
histórico novo na vida das comunidades negras em diáspora é, ao menos
em termos gerais, racista. Essa perspectiva age como se, ao atravessar o
Atlântico e lidar com um outro sistema de sentidos estabelecidos pelas
sociedade ocidental, africanas e africanos e seus descendentes não
pudessem utilizar referenciais africanos na sua forma de constituir o
mundo e, também, aliar esses conhecimentos aos novos aprendidos para,
desta forma, reconfigurar a sua existência. Essa reconfiguração, localizada
na experiência africana nas Américas, é que constitui a amefricanidade,
não podendo, nós, sermos tratados como “contribuições” ou “infeções” ao
sistema colonial branco, mas, na verdade, nós devendo ser vistos como
continuidade de um processo da agência africana no mundo.
Contextualizamos, na contemporaneidade, o conceito dessa
intelectual negra com o que José Carlos dos Anjos chama de uma “filosofia
política afro-brasileira”, em seu texto “A Filosofia Política Da Religiosidade
Afro-brasileira Como Patrimônio Cultural Africano”, pensando que a
perspectiva filosófica imanente às comunidades negras permitem que os
sujeitos históricos vivam uma epistemologia diversa daquela oferecida
pelos valores ocidentais, escreve o autor:
228 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Cada filho de xangô tem o seu xangô singular, e mesmo que dois filhos de
santo sejam filhos deste xangô especificado como xangô abomi, ou xangô
aganjú trata-se para cada um de uma intensidade diferente. Criança, adulto
ou velho, cada “passagem” não é apenas uma fase de uma linearidade
mitológica. É o orixá singularizado num momento. Um mesmo nome – xangô
– percorrendo diversas “passagens”, se singularizando numa multiplicidade
de momentos. O eu torna-se residual e múltiplo, desterritorializando todas as
identidades precariamente constituídas numa multiplicidade de passagens. É
nesse sentido que o ritual afro-brasileiro não é apenas uma prática, mas
também uma filosofia da identidade. (ANJOS, 2008, p.85).
Tendo como base a reflexão sobre o indivíduo e sua multiplicidade,
dentro das religiões de matriz africana, o intelectual está demonstrando
que a dinâmica de constituição do ser constrói-se através de uma relação
entre a unidade (Xangô) e sua multiplicidade (xangô abomi, xangô aganjú,
os diferentes filhos do mesmo Orixá). Essa perspectiva filosófica como
construtora de identidade permite que pensemos as diferentes formas de
produção do “ser” sem a definição de um “único ser” que definiria a todos,
diferindo totalmente da abordagem ocidental da identidade, que elenca
apenas os corpos brancos como identidades únicas.
A filosofia política afro-brasileira oferece noções próprias para pensar
as relações entre os sujeitos históricos e as suas formas de compreender o
mundo. Na medida em que a modernidade ocidental criou uma série de
sentidos pré-estabelecidos para a produção das ciências, para os corpos
das diferentes pessoas, para as formas legítimas de relações afetivosexuais (com a exclusividade heterossexual).
A Amefricanidade permite que a partir da busca pelas semelhanças
culturais entre as comunidades negras, possamos pensar quais são os
sentidos próprios produzidos em nossas comunidades. José Carlos dos
Anjos, em texto já citado, apresenta uma reflexão sobre como as
religiosidades
afro-brasileiras
constroem
relações
políticas
e
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 229
epistemológicas próprias aos corpos e sujeitos históricos que participam
de suas comunidades, o fazer diário da religiosidade afro-brasileira
constrói, desta forma, uma perspectiva política diversa da oferecida pelo
ocidente.
Sueli Carneiro e Cristiane Cury, em seu texto “O Poder Feminino no
Culto aos Orixás”, produzem uma pesquisa filosófica e antropológica,
através de entrevistas, sobre a forma como a relação de mulheres negras
com seus Orixás, dentro do candomblé, possibilitam que suas vivências
transbordem os papéis de gênero estabelecidos pela sociedade patriarcal
e, dentro da filosofia política afro-brasileira, essas mulheres se entendam
como produtoras de potência e de vida.
Essas duas pesquisas citadas, de José Carlos dos Anjos e de Sueli
Carneiro e Cristiane Cury, são exemplos do dado de unidade e agência que
Lélia Gonzáles anunciava: a configuração de uma prática teórica e política
com base na experiência de mundo das comunidades negras da diáspora
nas Américas. Era com olhares a estas vivências que Lélia Gonzalez
propunha sua Amefricanidade, enxergando nas comunidades negras os
potenciais
de
insurgência,
auto-organização
e
continuidade
temporalidades de matriz africana.
Conclusão
Neste breve ensaio, esperamos ter demonstrado como a produção de
uma teoria crítica ao Ocidente já era produzida por intelectuais negras
como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, tomando o conceito de
“Amefricanidade” proposto como uma proposta epistemológica de
abordagem das existências negras. Em diálogo com o contemporâneo
mestre quilombola, Nego Bispo, e seu conceito de contra-colonialismo,
entendemos que a produção de uma abordagem teórica autodeterminada
passa pela compreensão de que, para as comunidades negras, o fazer
230 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
prático cotidiano é, também, fazer crítico, científico e reflexivo, ou seja, é
também produtor teórico.
As múltiplas experiências negras, demonstradas em nosso texto pelo
quilombo, sugerem, portanto, não um fazer que proponha a
“descolonização” de saberes hegemônicos, mas a compreensão de que,
frente ao colonialismo, pessoas negras estiveram sempre produzindo e
dando continuidade a perspectivas culturais distintas das ocidentais e
estabelecendo padrões próprios de racionalidade, de abordagens frente ao
mundo e de estratégias de vida, muito para além das questões impostas
pelo Ocidente.
Referências
ANJOS, José Carlos dos. A Filosofia Política Da Religiosidade Afro-brasileira Como
Patrimônio Cultural Africano. In: Debates NER, v. 1, n. 13 (2008).
ASANTE, Molefi Kete. Um manifesto afrocêntrico: Rumo a um renascimento africano.
Polity, 2007.
BARRETO, Raquel. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas
de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles. Dissertação de Mestrado
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Departamento de História). Rio
de Janeiro, 2005.
CARNEIRO, S. Cury, C. O poder feminino no culto aos orixás. In: NASCIMENTO, Elisa.
Guerreiras da Natureza mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo
Negro, 2008, 117 – 147.
GONZALEZ, Lélia. Lélia Gonzalez Primavera para Rosas Negras. Diáspora Africana:
UCPA, 2018.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da
destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos d. África,
2018. p. 129.
Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 231
SANTOS, Antonio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília:
Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, 2015.
_____. In: Negro Bispo e Renato Nogueira. 2020. (12m à 13m30s). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=OehRhw3Dp_U>. Acesso em 21. nov. 2020.
Capítulo XIII
Racializando o branco: as implicações da noção de
branquitude nos estudos da História Social do Racismo
Marina Albugeri da Silva 1
Este texto é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Curso2,
apresentado no segundo semestre de 2019 e das reflexões que venho
desenrolando desde então. Aquele percurso de pesquisa foi instigado pelas
proposições dos estudos da História Social do Racismo, em especial, pelas
provocações dos Estudos Críticos da Branquitude. Este campo tem como
eixo deslocar o objeto de análise dos estudos das relações raciais,
grandemente centrados no negro e nos efeitos que o racismo tem sobre
essa população3. Assim, questiona-se que implicações tem em voltar o
olhar para o branco, grupo até então ausente na maior parte das pesquisas
sobre questões e relações raciais no Brasil. Em outras palavras, o que a
noção de branquitude pode nos informar sobre a constituição da noção de
raça, os modos de operação e reprodução do racismo e a estruturação de
relações de poder.
1
Licenciada – UFRGS; marina_albugeri@hotmail.com
2 SILVA, Marina Albugeri da. Racializando o branco ou desvelando a branquitude: a política de imigração e
colonização no Rio Grande do Sul (1875-1889). Porto Alegre: UFRGS, 2019. (Trabalho de Conclusão de Curso).
3 Guerreiro Ramos, nos anos 1950, caracterizou os estudos sociológicos como Sociologia do negro e foi um dos
primeiros pesquisadores a abordar o branco enquanto tema nos estudos das relações raciais no Brasil, cf. RAMOS,
Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. Para uma breve
noção de como a Escola de Sociologia Paulista, sintetizada na figura de Florestan Fernandes, tratou do tema, cf. MAIO,
Marcos Chor. O Projeto Unesco: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. Revista USP, São Paulo, n. 46, jun-ago
2000. E, ainda, sobre como o campo da historiografia trata sobre o tema do racismo, cf. LARA, Silvia Hunold.
Introdução: a história social e o racismo. História Social, n. 19, 2º semestre 2010.
Marina Albugeri da Silva | 233
O Pós Abolição e os sonhos brancos4
Naquele trabalho, analisei as políticas imigrantistas no Rio Grande do
Sul, da segunda metade do século XIX, a partir dos Relatórios e Falas dos
Presidentes de Província5. Tendo em vista que essas políticas foram
construídas num período conturbado de intensas confrontações sociais e
raciais. Célia Azevedo (1987) caracterizou esse momento histórico como
envolto de medo. A elite política brasileira, diante das pressões pela
abolição e possíveis insurgências de escravizados, temiam uma “inversão
da ordem política e social” (AZEVEDO, 1987, p. 36). Marcus Vinicius Rosa
(2014) também argumenta nesse sentido. Diante do descumprimento dos
contratos de serviço e da liberdade condicionada por parte dos libertos, o
presidente da província gaúcha, Rodrigo de Azambuja Villanova, defendia
que a extensão da liberdade aos escravos, sem qualquer restrição, poderia
representar um caos social e uma ameaça à propriedade privada.
À vista disso, as políticas de imigração se configuraram como uma
possível resposta a esse momento vivido enquanto uma crise social, que
envolvia disputas em torno da ampliação da liberdade. É importante
ressaltar que diante desse período de transformações, o projeto
imigrantista não foi o único pautado. Ele estava em discussão e em disputa
com outros projetos que se punham a pensar e elaborar caminhos para o
Brasil. Figura entre esses projetos propostas de integração dos nacionais
livres e libertos pobres como trabalhadores livres e se discutia a
possibilidade de educar e disciplinar esses sujeitos para que
desenvolvessem prazer e amor pelo trabalho6. Com isso, pretende-se
4 Tomo de empréstimo a expressão usada por Celia Azevedo ao se referir aos projetos imigrantistas discutidos pela
elite política e intelectual brasileira. Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no
imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
5 Os relatórios e falas examinados correspondem aos anos de 1875, 1878, 1881, 1885, 1888 e 1889 e podem ser
acessados em: http://www2.al.rs.gov.br/memorial/.
6 Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia: reação do parlamento brasileiro à
234 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
evidenciar que as políticas imigrantistas não estavam colocadas como o
único destino possível para o Brasil ou para o Rio Grande do Sul. Ela foi
uma escolha dos administradores públicos e do estado que se deu em meio
a conflitos num momento histórico percebido como de profundas
transformações.
Partimos do entendimento que as políticas de imigração se
configuraram enquanto uma política racial, pois estava estritamente
alinhada e informada pelas teorias do racismo científico do século XIX. Os
teóricos racistas compreendiam tipo racial e destino da nação
conjuntamente, então, a raça determinava o progresso ou não da nação,
por isso a importância de estudar os tipos raciais. Giralda Seyferth (1996),
ao se debruçar sobre as discussões em torno das políticas imigrantistas,
argumenta que havia uma preferência por determinados imigrantes
europeus brancos – preferiam os estrangeiros que fossem agricultores
eficientes. E se considerava atrasadas, imorais e inaptas ao trabalho livre
as correntes imigratórias africanas e asiáticas. Assim,
o significado imediato de “trabalho livre” é a desqualificação dos negros e
mestiços para o trabalho independente, então, se omite a questão posta pelo
fim da escravidão: é como se os descendentes de africanos simplesmente
tivessem destinados ao desaparecimento. (SEYFERTH, 1996, p. 46).
Ainda, as políticas imigrantistas estavam sendo elaboradas em
consonância com a formação da identidade nacional. Pois, se o tipo racial
determina a nação, era preciso pensar qual o tipo ideal para a nação que
se desejava. Para a maior parte da elite política alinhada com essa política,
o tipo ideal era o imigrante europeu branco. Em alguns casos, a política de
política de colonização e imigração (1850-1875). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Importante
apontar que aqui (e nos trabalhos indicados) estamos tratando dos projetos da elite, que certamente são diferenciados
e estavam em disputas com projetos de outros grupos sociais.
Marina Albugeri da Silva | 235
imigração estava sendo construída como uma via para o branqueamento,
a partir da miscigenação ou não7. Ademais, ao deter-se sobre as obras de
dois políticos republicanos gaúchos no final do oitocentos, Rosa (2014)
demonstra a “construção da invisibilidade dos negros no Rio Grande do
Sul” conjunta ao “processo de invenção da província gaúcha como um
“lugar de europeus” (ROSA, 2014, p. 30).
Destacamos, mais uma vez, que o projeto imigrantista foi elaborado
concomitantemente com o processo emancipacionista e as pressões pela
abolição, que colocavam em pauta questões sobre a cidadania de boa parte
da população. Desse modo, a política de imigração, que pretendeu
introduzir sistematicamente o trabalho livre, elaborou diversos artifícios
para justificar a vinda de imigrantes europeus brancos baseados no
estabelecimento de comparações, classificações, nomeações, diferenças e
oposições entre supostos tipos raciais. Buscou influir nas relações,
orientada por um entendimento racial, e reforçando categorias que já
circulavam acirrando o processo de racialização da população. Assim,
engendrou distribuições desiguais de acesso à terra e ao estado, por
exemplo. Diante disso, as políticas que favoreceram a vinda de
trabalhadores europeus brancos, parecem chave para compreender como
a identidade racial branca e, por conseguinte, branquitude, se gestou e foi
mobilizada na segunda metade do século XIX, nos anos finais da
escravidão.
7 Sobre como a miscigenação é entendida e formulada por alguns teóricos racialistas como uma via para o
embranquecimento da população. Cf. CONCEIÇÃO, William. Brancura e Branquitude: ausências, presenças e
emergências de campo em debates. Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social). SCHAWRCZ, Lilia
Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
236 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Mas branco tem raça8?
A partir de Sueli Carneiro (2005), compreendemos raça enquanto
um dispositivo de poder, instaurado no marco do colonialismo, que
instituiu um campo de poder em que se entrelaçam e se articulam saberes
e práticas que dão a autoridade de classificar, nomear e renomear. E, por
sua vez, produz “privilégios simbólicos e ou materiais” (CARNEIRO, 2005,
p. 29). Portanto, raça é uma categoria fundamental para entendermos a
estruturação das relações sociais e de poder nas sociedades colonizadas e
a definição de lugares sociais. Como já indicamos anteriormente, a
construção do estado brasileiro está profundamente orientada na noção
de raça. Willian Conceição (2017) afirma que a racialização da população
passa a ser um instrumento de controle social e de controle da própria vida
de forma coletiva.
Ainda, embora estejamos nos ocupando sobre como a raça foi
construída e mobilizada pela elite política e como incidiu nas relações
sociais, é pertinente destacar que a raça também foi construída pelos “de
baixo”. Como bem demonstra Rosa (2014), ao se debruçar sobre as
relações entre a população negra e os imigrantes brancos na virada do
século XIX em Porto Alegre, em especial, na Colônia Africana. Raça surge
aí como um construto histórico-social que organiza as interações e
identidades de diferentes grupos sociais, constantemente sujeita a
mudança, portanto, precisa ser compreendida dentro dessas interações,
como é significada e instrumentalizada.
Branquitude é um conceito histórico ainda em definição, nos parece,
visto que os estudos que o mobilizam são esparsos e bastante recentes no
8 Importante ressaltar, mais uma vez, que compreendemos e fazemos uso de raça enquanto uma categoria históricosocial, não é uma categoria biológica, ainda que, em algumas circunstâncias, seja informada nesse sentido.
Marina Albugeri da Silva | 237
Brasil9. Cabe apontar brevemente o contexto de emergência das discussões
sobre a identidade branca e a estruturação de um campo de estudo voltado
para isso. Os “Estudos Críticos da Branquitude” emergem nos Estados
Unidos, nos anos 1990, vinculado às lutas travadas pelo Movimento dos
Direitos Civis10. Logo, os questionamentos sobre a racialidade do branco
emergem num momento de tensionamento das relações raciais e
reconfiguração das identidades negras estadunidenses. No Brasil, pelo
menos desde os anos 2000, quando a branquitude aparece como tema em
pesquisas, ocorria uma explosão do debate racial proporcionado pelo
protagonismo do movimento negro e suas pressões sobre o estado e as
universidades e as discussões sobre cotas raciais11.
Maria Aparecida Bento (2002), uma das primeiras pesquisadoras
brasileiras a se debruçar sobre essa noção, define branquitude como os
traços da identidade do branco construída sob um imaginário de
superioridade racial e da ideologia do branqueamento. Essa construção é
relacional, o branco constrói um imaginário de superioridade para si, ao
mesmo tempo em que constrói um imaginário extremamente negativo
sobre o outro, não-branco. Outro aspecto atribuído a branquitude,
apontado por Bento, é o privilégio material e simbólico. Tal privilégio pode
ter diferentes facetas a depender do atravessamento e entrelaçamento de
outras categorias sociais e, também, pode estar relacionado a uma
9 Apesar dos poucos trabalhos no Brasil que analisam a branquitude, Lourenço Cardoso argumenta que esse é um
tema emergente na produção acadêmica. Cf. CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a
emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007). Coimbra: Universidade de
Coimbra, 2008. (Mestrado em Sociologia).
10 Cf. WARE, Vron. O poder duradouro da branquitude: “um problema a solucionar”. In. WARE, Vron (org.).
Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
11 Antes da estruturação desse campo e estudos mais sistemáticos sobre o tema, havia pesquisadores retratando os
aspectos da brancura para compreender as desigualdades raciais, como W. E. B. Du Bois, James Baldwin e Theodore
W. Allen. Cf. CONCEIÇÃO, W. Brancura e Branquitude: ausências, presenças e emergências de campo em debates.
Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social). E, no Brasil, Guerreiro Ramos (1957) é um dos
primeiros pesquisadores a tratar do branco enquanto tema, ainda que não se trate de estudos sobre a branquitude.
Cf. CARDOSO, Lourenço. O branco “inivísel”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre
as relações raciais no Brasil (1957-2007). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. (Mestrado em Sociologia).
238 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
solidariedade ou um pacto entre brancos. Ademais, é importante destacar
que a branquitude nem sempre se apresenta como racializada, pois
entende-se como universal, logo, nas discussões sobre a política
imigrantista e nos relatórios dos presidentes de província a raça não estava
explicitada, necessariamente. Bento (2002) e Lourenço Cardoso (2014)
propõem um método para investigar e compreender os sentidos da
branquitude: entender como essa se projeta sobre o outro, o não-branco.
Nesse sentido, Priscila Elisabete da Silva (2015) compreende o
conceito de branquitude enquanto um dispositivo analítico, pois pesquisas
nesse campo têm identificado certas características recorrentes ao
conceito. Portanto, o conceito de branquitude, segundo a autora, tem o
potencial de análise de evidenciar a atuação de noções raciais como
orientadoras das ações de indivíduos e grupos. Além das definições que
referimos, Silva traça outras. A branquitude é um ‘ponto de vista’, um
lugar no qual o branco se vê e elabora práticas e identidades culturais, um
lugar no qual vê o outro e o classifica. A branquitude se apresenta como
padrão normativo e, dificilmente, como racializada e se desloca dentro de
denominações étnicas ou de classe e também nacionais. A branquitude é
uma categoria relacional, seus significados se dão nas relações sociais. Por
fim, a branquitude vê raça não apenas como diferença, mas, sobretudo,
como hierarquia.
Os imigrantes brancos e os outros na política de imigração
As políticas de imigração da segunda metade do século XIX foram
construídas num âmbito nacional, porém ela foi atravessada por
peculiaridades regionais. No Rio Grande do Sul a política foi formulada em
conjunto com a colonização. Ou seja, os imigrantes que aqui chegavam
eram encaminhados para as colônias com a intenção de introduzir o
trabalho livre, formar um campesinato médio e ocupar o território gaúcho.
Marina Albugeri da Silva | 239
Os relatórios dos presidentes de província nos possibilitaram averiguar o
desejo e expectativas dos administradores públicos com a vinda dos
imigrantes12. Assim, as diferentes classificações e significados atribuídos
aos sujeitos e grupos pelos estadistas, presentes nesta documentação, dão
algumas indicações sobre como se conforma o processo de racialização dos
diferentes grupos sociais, como se gestou e os sentidos da branquitude e
para que fins ela foi mobilizada.
Ao relatar algumas situações de tumulto e alteração na tranquilidade
das colônias, os presidentes pouco detalham os acontecidos, as motivações
e os envolvidos. Parece óbvio de quem se falava, o que se esperava desses
e como lidar com tal situação, não precisando minuciar os ocorridos13. Em
maio de 1888, na colônia São Feliciano, a presença de intrusos devastando
as matas, causou prejuízos para a Província, ao que o governo recorreu a
força policial para que não tolerassem tal ato14. Em novembro do mesmo
ano, novamente denuncia-se a presença de intrusos, na colônia São
Feliciano, “que lhe exploram os mattos para extrahir cascas e outros
productos naturaes”. O encaminhamento da assembleia provincial é que
se povoe com imigrantes aquelas terras e que o governo ofereça condições
de progresso à colônia e comodidades aos imigrantes15.
12 Essa documentação foi produzida nos momentos de instalação da Assembleia Provincial ou na transmissão do
cargo de presidente da provincial para seu sucessor. Quem ocupava o cargo de presidente no momento da sessão de
instalação da Assembleia teria que relatar o “estado dos negócios públicos e as providências, que a mesma Província
mais precisava para o seu melhoramento” (IOTTI, 2010: 146). Além disso, o espaço que a imigração e colonização
ocupa nessa documentação é variável, a depender também do tempo em que o presidente ocupou o cargo e sua
apropriação das questões e demandas das colônias.
13 Além dos documentos detalhados a seguir, encontramos mais um entre os relatórios analisados que menciona um
ocorrido na colônia de Caxias que vai em sentido semelhante aos apontados. Cf. Relatório com que o Exm. Sr. Dr.
Joaquim Pedro Soares, Vice-Presidente, passou a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao
Exm. Sr. Dr. Francisco de Carvalho Soares Bandão no dia 19 de Meio de 1881.
14 Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova passaou a presidência da província de S. Pedro
do Rio Grande do Sul a Ex. o Snr. Barão de Santa Thecla, 1º Vice-Presidente, no dia 9 de agosto de 1888.
15 Fala que a Assembleia Legislativa Provincial de S. Pedro do Rio Grande do Sul dirigiu o Exm. Sr. Barão de Santa
Thecla, Vice-Presidente da Província, ao instalar-se a 2ª sessão da 22ª legislatura, em 27 de novembro de 1888
240 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Em janeiro naquele mesmo ano de 1888, na localidade de Faria
Lemos, o presidente Joaquim Jacintho Mendonça, deliberou que se
removessem os obstáculos que impediam a concessão dos lotes de terras
e garantissem aos colonos a posse pacífica das terras16. Aí, não se nomeia
nenhum grupo, entretanto, a menção à necessidade de garantir a posse
pacífica do território denota que havia conflitos naquela região pela posse
e uso da terra, assim como nos episódios mencionados na colônia de São
Feliciano.
Quem eram esses indesejados – intrusos e empecilhos – nas regiões
coloniais? Os sentidos dessas classificações empenhadas pelos presidentes
de Província nos dão alguns indícios, além do estudo de Soraia Dornelles
(2011) sobre as relações dos imigrantes com as populações indígenas que
já estavam nessa província antes de sua vinda. A qualificação dos indígenas
como selvagens ou mansos, juntamente com a construção dos vazios
territoriais são usados pelo Estado para legitimar o processo de
expropriação dos territórios tradicionais indígenas (DORNELES, 2011). Ou
seja, as ditas terras devolutas destinadas para os imigrantes para a
colonização eram de ocupação tradicional indígena. O que os estadistas
que elaboraram e defenderam as políticas de imigração e colonização
desconsideraram, já que esse são vistos como intrusos, que devastam a
mata e causam prejuízo à província. Afinal, a ocupação e posse dessas
regiões por essas populações nativas não eram tidas como lucrativas, logo,
não eram de interesse das elites políticas.
Outras situações de tumulto nas regiões coloniais são mencionadas
nos relatórios. No entanto, o modo como foi descrito os acontecidos, como
foram nomeados os envolvidos e como se mediou e solucionou os conflitos
é bem diferente dos anteriormente apresentados. Em março de 1878, o
16 Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacintho de Mendonça, 3º Vice-Presidente, passou a administração da
Província do Rio Grande do Sul ao Presidente Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, 27 de janeiro de 1888.
Marina Albugeri da Silva | 241
diretor da colônia Dona Isabel reclamou ao presidente que a ordem pública
se achava alterada naquela localidade, por falta de pagamento aos colonos,
pedindo, por isso, reforço policial para conter os imigrantes. Ao que o
presidente João Chaves Campello respondeu:
[...] se deve aguardar a abertura do necessario credito, já solicitado por esta
Presidencia para occorrer a taes pagamentos: e quanto à requisição de força,
que era preferível recommendar àquele Diretor, como anteriormente se fizera
ao de Conde d’Eu, que aconselhe os colonos a prodencia, scientificando-os de
que serão brevemente pagos17.
Ainda que a colônia D. Isabel estivesse tumultuada, colocando em
risco o bom andamento dos serviços, não era necessário a intervenção da
força policial, já que o pagamento haveria de ser feito logo e os colonos
voltariam as suas atividades. Em outro caso, ocorrido no mesmo ano em
fevereiro, o presidente Francisco Faria Lemos recorreu a força policial,
mas recomendou aos oficiais, que deveriam ser de confiança, “toda a
possivel prudencia no desempenho de qualquer diligencia a que tivessem
de proceder” 18.
O presidente Francisco Faria Lemos diante de “alguns distúrbios por
parte dos colonos” que prejudicavam os serviços na colônia relatou que
providências deveriam ser tomadas para evitar “questões e reclamações”.
Os colonos instão por trabalho e prompto pagamento. Desde que, pela boa
direção que vai tomando o serviço se conseguir atender a tão razoaveis desejos
e autorizarem-se os directores a, em casos extremos e de força maior, auxiliar,
com conveniente discrição, os colonos que se vejão reduzidos à miseria, ou
incapazes do trabalho [...].
17 Fala com que o Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello abriu a segunda sessão da 17ª legislatura, no dia 12 de Março
de 1878.
18 Relatório com que o Exm. Sr. Desembargador Francisco de Faria Lemos passou a administração desta província
ao Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello, 2º Vice-Presidente, no dia 10 de Fevereiro de 1878.
242 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
As seccas, as enchentes, os insectos destruidores de plantações, as molestias
graves dos chefes de familia e algumas vezes sua morte, reduzem os colonos
aperecer de fome, si não forem subsidiados pelo Governo. O serviço de
estradas e caminhos, como está sendo feito, não pode remediar o mal.
Além da providencia do subsidio para casos extraordinarios, convêm
multiplicar os trabalhos de estrada, das quaes aliás depende o futuro dos
estabelecimentos coloniaes19
Em março de 1881, o presidente Henrique D’ Ávila também reclamou
da situação de abandono dos imigrantes brancos. Essa situação se devia à
falta de investimentos nas colônias, à nomeação de maus funcionários e a
falta de preparo para receber os imigrantes. Aqui, o apontamento do
presidente não é apenas no sentido de haver estrutura material para o
estabelecimento dos imigrantes, seriam necessárias mudanças nos
costumes, nas instituições, entre outros aspectos. Tal situação afastava os
trabalhadores europeus brancos, fazia com que não quisessem para essa
província migrar e nem se fixar no solo. O presidente ainda enfatizou que
a solução desse problema “depende essencialmente a grandeza, riqueza e
poder de nossa pátria” 20.
Diante da diferenciação no tratamento para um e outro grupo, alguns
questionamentos podem ser levantados. O fato dos protestos dos
trabalhadores imigrantes causarem perdas aos serviços coloniais
ocasionaria numa maior brecha para negociações entre os estrangeiros
brancos e os governantes e administradores? Em outros termos, a
diferença no tratamento dos governantes se deve à importância que se
dava aos serviços dos imigrantes brancos, ou seja, aos significados
atribuídos ao trabalho dos estrangeiros brancos?
19 Relatório com que o Exm. Sr. Desembargador Francisco de Faria Lemos passou a administração desta província
ao Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello, 2º Vice-Presidente, no dia 10 de Fevereiro de 1878.
20 Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul Henrique D’Ávila, 4 de Março de 1881.
Marina Albugeri da Silva | 243
Frequentemente, os governadores exaltam e idealizam o trabalho dos
imigrantes brancos, esse é tido como um valor cultural desses grupos e,
por vezes, como uma capacidade específica dos estrangeiros europeus.
Si pela adiantada civilisação, naturesa da indústria pastoril ainda
predominante, systema ja adoptado de cultura interior em areas limitadas e
servidas quasi exclusivamente por braços livres, corrente de immigração que
a amenidade do clima, a vastidão e uberdade do solo, as riquezas naturaes, a
hospitalidade e o caracter do povo, a attração dos nucleos coloniaes,
engrossam de anno em anno; é esta parte do Império que menos deve
arrecear-se de crise por essa transformação, mormente com as providencias
tomadas para evitar o ocio e a mendicidade o abandono e a paralysação das
industrias actuam todavia motivos poderesos para que ella não ceda a
nenhuma outra a precedencia no acolhimento e agasalho dos estrangeiros o
trabalho livre tem seus requisitos peculiares: é a intelligencia e a moralidade
que nelle substituem vantajosamente a coacção constitutiva do systema
condemnado; e posto não sejam essas qualidades, privilégios de nenhuma
raça, fora demasiado exigir ao oppresso do cativeiro, ahi deserdados do ensino
e dos mais nobres estímulos do dever, o grão de aptidão necessario para as
industrias que requerem perfeição [...]21
O fragmento do relatório de 19 de setembro de 1885 dá alguns
apontamentos sobre os sentidos dado ao trabalho. O trabalho livre não
pode ser empregado por qualquer um, há de ser por quem tenha
inteligência e moralidade, qualidades essas que não são privilégios de
nenhuma raça, segundo o relato do presidente José Julio Barros. Mas
certamente não poderia se esperar dos escravizados recém-libertos,
deserdados do ensino e dos mais nobres deveres. Ainda que o trabalho
21 Relatorio apresentado a S. Exc. o Sr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos, 2º vice-presidente da Provincia do Rio Grande
do Sul, pelo Exm. Sr. Conselheiro José Julio de Albuquerque Barros, ao passar-lhe a Presidencia da mesma Provincia
no dia 19 de Setembro de 1885.
244 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
livre não fosse atributo de qualquer estrangeiro, parece, que certamente
não era um atributo da população negra livre e liberta.
O trabalho como categoria racializada
Nos documentos anteriormente mencionados nos salta um aspecto
que parece ser chave para compreender o processo de racialização de
diferentes grupos e os significados da identidade racial branca: os sentidos
dados ao trabalho dos estrangeiros europeus brancos. Primeiro, o trabalho
desses trabalhadores brancos seria capaz de garantir o progresso da
província gaúcha. Ao contrário dos “intrusos” que causam prejuízos.
Portanto, o sentido dado ao trabalho aí está orientado por uma lógica
específica de ocupação da terra e de produção que, por sua vez, é tido como
atributo específico dos trabalhadores europeus brancos. Esses inteligentes,
morais e disciplinados para empreender um trabalho nessa lógica.
A exaltação do trabalho como um atributo de distinção também
aparece nas elaborações sobre si e o grupo a qual pertencem os próprios
imigrantes, alemães e italianos, especificamente. Ambos mobilizam o
trabalho como uma qualidade diferencial, uma “virtude étnica”, nos
termos de Maria Zanini e Miriam Santos (2009, p. 192) (SEYFERTH, 1982;
ZANINI e SANTOS, 2009). De modo geral, nos parece que o trabalho é
mobilizado pelos governantes enquanto uma qualidade racial dos
trabalhadores estrangeiros europeus, intrínseca a sua biologia e ou
cultura, e justifica o investimento numa política que busca facilitar sua
vinda e permanência no território nacional. Bento (2002) argumenta que
no momento de mudança do trabalho escravo para o trabalho livre, houve
uma europeização da concepção de trabalho. Seguindo nessa perspectiva,
Cardoso (2008; 2014) afirma que o progresso desejado pelas elites
brasileiras não admitia o negro como trabalhador, esse era sinônimo do
Marina Albugeri da Silva | 245
atraso, dado seu passado escravista. Assim, o trabalhador branco era o
único capaz de romper o progresso e civilização na província.
Salientamos a coincidência entre os significados atribuídos pelos
presidentes de província aos imigrantes brancos e as atribuições e
qualidades que esses dão a si mesmos. Para ambos o trabalho é uma
qualidade diferencial dos estrangeiros europeus brancos. A partir disso,
sugerimos algumas problemáticas ainda em aberto, as quais podem ser
exploradas em futuras investigações. Como os imigrantes europeus
brancos interagiram com os desejos e expectativas das elites políticas
gaúchas que elaboraram um lugar diferenciado para esses trabalhadores?
Ou, no sentido proposto por Marcus V. Rosa (2014), como os “de baixo”,
no nosso caso os imigrantes europeus brancos, construíram categorias
raciais? Que sentidos e usos esses trabalhadores brancos atribuíram a
essas categorias já circulantes por aqui? Em que medida isso constituiu,
nas palavras de Bento, “um pacto entre brancos” (2002, p. 36) ou uma
identidade racial compartilhada entre classes? Ou, ainda, na chave de
Cardoso, como podemos pensar a branquitude como um “valor em
espécie” (2008, p. 183), podendo ser mobilizada, por quem a reivindica,
para negociar e garantir o acesso a bens materiais e ou bens simbólicos?
O fato de compartilharem uma identidade racial comum tornava os
desejos dos imigrantes mais razoáveis? Conforme relatado pelo presidente
de província Francisco Faria Lemos, no documento anteriormente citado.
E, mais razoáveis em que situações?
Referências
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das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
246 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
BENTO, Maria Aparecida. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In. BENTO, Maria
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branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
__________. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In. BENTO, Maria
Aparecida; CARONE, Iray. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre
branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da
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Brasil. Araraquara: UNESP, 2014. (Doutorado em Ciências Sociais).
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São
Paulo: USP, 2005. (Doutorado em Filosofia da Educação).
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campo em debates. Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social).
DORNELLES, Soraia. Dos Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos indígenas
no contexto de imigração alemão e italiana no Rio Grande do Sul do século XIX e
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LARA, Silvia Hunold. Introdução: a história social e o racismo. História Social, n. 19, 2º
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Sul, 1980.
Marina Albugeri da Silva | 247
RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1995
ROSA, Marcus V. F. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre
durantes o pós-abolição (1884-1918). Campinas: UNICAMP, 2014. (Doutorado em
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SCHAWRCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial
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SEYFERTH, Giralda. A representação do “trabalho alemão” na ideologia étnica teutobrasileira. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional, Antropologia, n. 37, 17 p.,
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imigração e colonização. In. MAIO, Marco Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (org.).
Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editira Fiocrz/CCBB, 1996.
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projeto da Universidade de São Paulo (1900-1940). São Paulo, USP, 2015. (Doutorado
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ZANINI, Maria Catarina; SANTOS, Miriam de Oliveira. O trabalho como “categoria étnica”:
um estudo comparativo da ascensão social de imigrantes italianos e seus
descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1975). Revista Interdisciplinar de
Mobilidade Humana. Brasília, ano XVII, n. 33, p. 175-196, jul./dez. 2009.
Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V ao XV
Capítulo XIV
Estudar a Idade Média em espaços não-europeus:
apresentando um panorama dos
Estudos Medievais no Brasil em nível discente
Kauê J. Neckel 1
Vinicius Silveira Cerentini 2
Quando o IV Encontro Discente de História da UFRGS começou a ser
organizado, ainda em 2019, procurávamos criar um espaço plural de
pesquisas em História. No Simpósio Temático 06 – Possibilidades de
pesquisa em História entre os séculos V e XV: do Oriente ao Ocidente – que
aconteceu entre os dias 1 e 4 de setembro de 2020 construímos um local
de discussão em História Medieval em nível discente. Nossa proposta de
Simpósio Temático era simples, mas desafiadora: quais as possibilidades
de trabalhar com Idade Média de forma descentralizada? Realizamos uma
conferência online que possibilitou a participação de pesquisadores
oriundos de diversas regiões do Brasil com trinta e oito apresentações e
onze mesas. Assim, o objetivo deste capítulo é traçar um breve panorama
das pesquisas em Idade Média realizadas por alunos de graduação e pósgraduação do Brasil, baseado no que foi proposto neste Simpósio
Temático. Tomando como parâmetro os trabalhos apresentados neste
simpósio, encaminhamos algumas reflexões sobre a pesquisa em Idade
Média em um espaço não-europeu, o Brasil. Além disso, refletimos sobre
os temas que apresentaram maior interesse pelos estudantes da área e
pensamos em como eles estão sendo trabalhados.
1
Mestrando – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; neckel.kaue@gmail.com
2
Mestrando – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; vinicerentini@gmail.com
252 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A primeira mesa, Estudos de Gênero no Medievo, contou com quatro
trabalhos. A comunicação inaugural do Simpósio Temático foi proferida
por Wendell dos Reis Veloso. O historiador, em sua tese de doutoramento,
discutiu o tema da sexualidade divina. Nas palavras de Carolina Coelho
Fortes, “Veloso se ocupa em discutir aspectos pertinentes […] ao refletir
sobre o conceito de sexualidade, informado sobretudo pela Teoria Queer,
por sua vez derivada, em grande medida, dos Estudos de Gênero e
associada a estes” (FORTES, 2019, p. 17). Em sua apresentação, ao usar da
metodologia da Análise do Discurso, Veloso tratou sobre a virilidade
romana a partir das Confissões de Agostinho de Hipona (século IV). O
objetivo de Veloso foi refletir sobre como o discurso agostiniano associa
determinados comportamentos a específicas performatividades de gênero,
ao passo que constroem outras em seu vazio. Seguindo as apresentações,
Gabrielle Marques Neves analisou o feminino e a demonização em Castela
(século XIV). Analisando a figura de Dona Maria Padilla, Neves
demonstrou a ambiguidade que existe em torno de sua imagem, a partir
da Crónica del Rey Don Pedro escrita por Pedro Lopes de Ayala nos séculos
XIV e XV e dos Romanceros da cultura popular ibérica. Já Guilherme Avila
Teixeira também voltou-se para Agostinho de Hipona. Teixeira, em sua
pesquisa em fase inicial, apresentou uma série de intenções de gênero nas
cartas de Agostinho à Proba e à Juliana. O epistolário de Agostinho também
foi objeto de Admara Titonelli Ferreira Gouvêa. A partir das cartas, a
historiadora investigou de que forma a mulher era vista e o lugar que era
concebido para ela dentro da religião católica. Com estes quatro trabalhos,
foi perceptível como as possibilidades de gênero na Idade Média são um
campo de estudo importante e em ascensão no Brasil. Esse campo tem se
mostrado objeto de interesse ativo de pesquisadores, tanto de discentes
em fase inicial, quanto de docentes com extensa carreira nos Estudos
Medievais no Brasil.
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 253
A segunda mesa, Alteridade e Etnicidade na Idade Média, trocou a
chave de análise das formas de identidade do gênero para a etnia. No
Brasil, os estudos de etnicidade na Idade Média tem sido um campo que
ainda consta com relativa exploração. Para Isabela Albuquerque, “a
referência a identidades étnicas é largamente utilizada por pesquisadores
de diversas áreas, mesmo que para servir de contraponto”
(ALBUQUERQUE, 2017, p. 15). É por este contraponto citado que analisar
a identidade étnica, principalmente aquela formada a partir do Outro, tem
se tornado uma alternativa pertinente para escapar aos subjetivismos que
o conceito emprega. É uma contribuição bastante peculiar dos Estudos
Medievais não-europeus, especificamente na perspectiva Latinoamericana (CÂNDIDO DA SILVA, 2018). Uma perspectiva compartilhada
pela historiografia, que evita um essencialismo comum expresso nas
fontes medievais e por vezes reproduzidos por historiadores europeus em
perspectivas escorregadias como pensar o Medievo como o berço dos
Estados-nação.
Nesta mesa, o primeiro trabalho foi de Geraldo Rosolen Junior que
procurou definir seu horizonte metodológico de estudo entre a etnogênese
e a etnicidade no Reino Vândalo. Rosolen Jr questionou acerca da
possibilidade de se acessar as identidades de povos através de uma
historiografia não-nativa/estrangeira. Para responder ao questionamento,
o autor evocou as três correntes do estudo da etnicidade nas
historiografias dos Estados Unidos, Reino Unido e Áustria. O trabalho a
seguir foi de Kauê J. Neckel que identificou as características de alteridade
na história dos Pictos. Para a Ecclesiastica Historia Gentis Anglorum de
Beda (731), Neckel questionou: o que sua narrativa implica para a
compreensão dos Pictos a partir da fortuna escrita? Ao analisar de que
forma o discurso de Beda ressoa nas fontes escritas que tratam os Pictos
na Idade Média inicial, o historiador elencou a hipótese de que a
254 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
compreensão dos Pictos a partir das fontes escritas não pode ser
desvinculada da alteridade. Já Augusto Machado da Rocha demonstrou o
diferente valor da viagem para a cristandade e para o mundo muçulmano,
ampliando análises relativas ao Outro. A partir disso, Rocha abordou o
modo com que a busca por conhecimento fazia parte da prática da viagem
para os muçulmanos para além das práticas religiosas na Baixa Idade
Média. Gabriel Giacomazzi e Kelvin da Silva analisaram o imaginário
maravilhoso em obras de Ibn-Battuta e Marco Polo. Sob a metodologia da
alteridade comparada, Silva e Giacomazzi investigaram elementos sobre a
maneira pela qual cada viajante construiu sua narrativa a respeito do
Outro. Por fim, Felipe Augusto Ribeiro analisou a Historia Langobardorum
Beneventanorum, de Erchemperto (século IX). A proposta de Ribeiro
questionou a forma com que o cronista retratou bizantinos e sarracenos,
objetivando identificar os traços com os quais Erchemperto caracterizou
esses sujeitos. Ribeiro defendeu a hipótese de que embora algumas
passagens descrevam esses “Outros” como cruéis e rapaces, o cronista não
nega que eles foram atores decisivos nos jogos políticos regionais. As
narrativas sobre o Outro apresentadas nessa mesa nos faz perceber que
analisar a alteridade pode ser um ponto profícuo para a compreensão da
etnicidade na Idade Média.
A terceira mesa versou sobre as possibilidades de estudo acerca da
administração e do direito no Medievo. Um tema em renovação nos
Estudos Medievais no Brasil, como se vê no dossiê organizado por Carolina
Gual Silva (2020). Refletindo sobre o direito na Idade Média, a autora
indica que “procurou-se cada vez mais incorporar uma abordagem que ia
além do interesse pelo contexto normativo e institucional no interior do
qual as relações sociais se estabelecem” (GUAL SILVA, 2020, p. 6). É nesta
superação do contexto normativo que justifica a conjunção desta mesa
com os estudos sobre a administração medieval. O uso da norma e sua
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 255
aplicação para o entendimento dos poderes são temas em pleno
crescimento nos estudos medievais brasileiros. Seguindo esta linha, a
inauguração desta mesa foi de Paula dos Santos Flores que discutiu a
existência e o espaço da expressão de opiniões dos escrivães do Parlamento
de Paris em seus registros. Flores apresentou as manifestações do escrivão
acerca dos conflitos políticos do período, discutindo o espaço da opinião
em um período para o qual a historiografia questiona o uso das noções de
indivíduo e de sujeito. A análise do espaço do julgamento também foi um
tema pertinente. Maiara dos Santos Soares analisou o julgamento dos
membros da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de
Salomão (1113-1312) e o perdão concedido aos membros através do
pergaminho de Chinon. Sem dúvida, com os trabalhos apresentados,
percebemos que o campo da administração e do direito na Idade Média
tem se tornado um tema bastante produtivo para a interpretação da
norma no período medieval. Nos conflitos políticos em espaços de opinião
ou julgamento dos membros de ordens, percebe-se a multiplicidade de
possibilidades de análise sobre o contexto normativo e institucional, como
exposto por Gual Silva.
A quarta mesa investigou o papado e o poder entre os séculos V e XV.
A expressão das formas de poder na Idade Média tem se tornado um tema
em ascensão na medievalística brasileira, principalmente no tocante a seus
vínculos com a História Política. Recentemente Almeida e Silva chamam
atenção para este tópico ao lê-lo de maneira subjetiva aos diferentes locais
de atuação deste poder no medievo. De acordo com os autores, as leituras
sobre o poder na Idade Média “distancia-se dos estereótipos niveladores [...]
em relação ao modelo da dominação de natureza institucional, clerical e
feudal” (ALMEIDA e CÂNDIDO DA SILVA, 2011, p. 12). É com base nesta
versatilidade do conceito de poder na Idade Média que o papado se torna um
instituto a ser revisitado. Mesmo que o espaço clerical não seja uma forma
256 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
de poder soberana e singular durante o medievo, nesta mesa vimos algumas
maneiras com que o poder papal foi alcançado e/ou aplicado. Neste sentido
Gustavo da Silva Gonçalves analisou a validade do conceito de “política
dialógica” aplicado ao pontificado de Gregório IX (1227-1241). Construído a
partir de reflexões de diferentes áreas, o pesquisador defendeu que a
proposta auxilia a compreender os posicionamentos da Cúria Papal frente
ao imperador Frederico II (1194-1250). A hipótese central de Gonçalves foi
de que a política dialógica é um instrumento analítico para identificar as
tentativas de manutenção do dominium da Igreja, em um momento de
crescentes questionamentos à autoridade eclesiástica. Já Lucas Cunha Nunes
traçou uma breve reflexão sobre o uso do conceito de propaganda para
análises sobre o Baixo Medievo. Nunes mostrou o valor e as possibilidades
de uso da propaganda para investigar disputas por poder entre Igreja e
autoridades seculares. Já Jordana Eccel Schio examinou como o nepotismo
e mecenato foram centrais para a construção da reputação dos papas Della
Rovere durante o Renascimento. Schio exemplificou estes dois conceitos a
partir da análise do papado de Sisto IV (1471-1484) e como suas decisões
como pontífice fizeram com que o conclave que elegeu Júlio II (1503-1513)
fosse decidido em poucas horas. Estudar o papado e seus desdobramentos
na Idade Média é um tema já tradicional, mas que tem se renovado em
termos de perspectivas historiográficas. A depender do contexto trabalhado,
é possível entender o poder como uma construção contextual, volátil e
situacional. O papado se torna uma – das muitas – formas de poder, lido de
modo cada vez mais descentralizado no medievo.
Uma temática recorrente de estudos é a recepção do medievo, tratada
na mesa V. Conforme as mídias vão se popularizando, pensar a recepção
da Idade Média nestas mídias tem se tornado um instrumento profícuo de
análise. De acordo com Silva e Albuquerque, quando se pensa em Idade
Média, “é necessário pensar sua recepção, suas reivindicações, seu caráter
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 257
ideológico, a construção das personagens e valores ético/morais ali
representados, enfim, toda a relação que a obra estabelece entre o passado
e o tempo presente” (SILVA E ALBUQUERQUE, 2016, p. 256). É por esta
aproximação entre passado e presente que seguiram-se os trabalhos desta
mesa. Léo Araújo Lacerda, por exemplo, teceu considerações sobre a
cultura histórica a partir da sitcom The Simpsons. A partir da noção de
cultura histórica, Lacerda analisou episódios fundamentados na releitura
do presente a partir de cenários, eventos e personagens vinculados a um
mundo medieval. Lana Letícia Barbosa de Souza, por outro lado, realizou
uma análise histórico-cultural através da adaptação em quadrinhos da
ópera O Anel dos Nibelungos, do compositor alemão Richard Wagner, por
P. Craig Russel. Uma análise concebida através da relação entre as fontes
medievais A Canção dos Nibelungos e a Saga dos Volsungos que datam dos
séculos XII e XIII. Barbosa de Souza realizou uma discussão em torno da
dissociação do significado de ‘medievo’ ao trabalhar com os conceitos de
medievalidade e neomedievalidade. Já Paulo Christian Martins Marques da
Cruz investigou a representação da Conquista Normanda da Inglaterra no
jogo Age of Empires: Definitive Edition. Ao abordar o jogo como um
documento histórico, Marques da Cruz o compreendeu como um lugar de
memória enquanto produto de múltiplas memórias possíveis, o que lhe
permitiu falar em uma sobreposição de culturas históricas. Barbara Denise
Xavier da Costa partiu do questionamento: como mídias dos séculos XV e
XVI contribuem para a construção de um videogame inspirado no
Medievo? Costa defendeu que através de retrolugares determinados,
elementos do passado são por vezes “descolados” de sua temporalidade e
se consubstanciam com o que os desenvolvedores estão criando. Com os
trabalhos destes pesquisadores foi possível perceber a Idade Média não
como um tempo passado inacessível à contemporaneidade, mas como um
tempo passível de ser vivido e revivido em elementos atuais.
258 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Já na mesa VI pensou-se a Idade Média em seu impacto na educação.
Todos os professores de História passam por questões relacionadas ao
ensino do medievo em algum período de sua vida profissional, o que torna
o ensino da Idade Média e na Idade Média um tema relevante para
pesquisas discentes. A Idade Média e suas representações no ensino de
História tem sido um tema que aproxima pesquisadores em nível docente
e discente já há considerável tempo, como, por exemplo, na publicação do
livro Possíveis Passados por Nilton Mullet Pereira e Marcello Paniz
Giacomoni (2008). Na mesa vimos resultados desta aproximação. Em
termos de ensino na Idade Média, Andrei Roberto da Silva, a exemplo
disso, identificou as implicações do carisma de Pedro Abelardo (1079 –
1142) nas relações entre mestre e estudante. Ao compreender as práticas
de ensino utilizadas pelos professores nas escolas catedrais no século XII,
Andrei da Silva refletiu acerca da mudança dos métodos de ensino, a
construção das experiências pedagógicas, bem como as relações entre
Abelardo e seus seguidores. Sobre os impactos da Idade Média na
educação, Yuri Gallindo Borges analisou seus mitos. Com questões
voltadas à memória coletiva, Borges analisou livros didáticos de nível
fundamental e médio para perceber a mitificação e desmitificação da Idade
Média nestes materiais. Lucas Mizael Lopes Pacheco, por outro lado,
especificou sua análise para a representação do Islã nos livros didáticos.
Pacheco analisou o Islã utilizando-se do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) entre 1997 e 2017, por meio de uma análise teóricometodológica qualitativa, valendo-se de ferramentas conceituais como o
Orientalismo e o Medievalismo. Borges, Silva e Pacheco nos elucidaram
um ponto relevante: a Idade Média não está exclusivamente no ambiente
acadêmico, mas impacta no cotidiano escolar dos professores de História.
Sem dúvida, é um desafio do professor e do pesquisador repensar o ensino
das diversas Histórias Medievais e suas possibilidades em sala de aula.
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 259
A iconografia e a representação da Idade Média também estiveram
em protagonismo, contando com a mesa VII. De acordo com a historiadora
Maria Cristina Leandro Pereira, “o objetivo principal da ciência histórica é
compreender
as
sociedades
humanas
em
suas
produções
e
representações” (PEREIRA, 2016, p. 672). É justamente pensando nestas
produções discursivas e em como a ciência histórica visualiza a
representação que os trabalhos desta mesa foram encaminhados. Karolina
dos Santos Rocha fez uma detalhada análise dos modelos iconográficos do
manuscrito Codex Purpureus Rossanensis (Σ 042). A partir de uma
abordagem serial, que insere a imagem em um contexto mais amplo de
uma tradição bizantina, Rocha considerou suportes como a pintura mural
para analisar o Codex usando a materialidade do manuscrito para
investigar os diferentes usos do suporte iconográfico. Uma forma diferente
de representação da de Felipe Mello Veiga, que analisou a representações
dos Saxões na obra Vita Karoli Magni (Vida de Carlos Magno) de Einhard.
Veiga analisou o discurso como representação para entender os Saxões no
recorte de 613 até 793 da obra selecionada. As reflexões destes acadêmicos
nos faz pensar em como o conceito de representação pode ser
multifacetado, contando com uma amplitude metodológica ativa e
profusa. É da análise de um discurso biográfico até os modelos
iconográficos de um manuscrito que compreendemos esta amplificação
conceitual do que se refere como ‘representação’, também em objetos de
distintas origens do período medieval.
Ao analisarmos um período amplo, também foi possível verificar
como a participação de certos personagens foi ativa e controversa. Um
destes personagens é Ricardo I, rei da Inglaterra entre 1189 e 1199. Um rei
de muitas faces, Ricardo I também foi uma figura que concentrou muitas
expressões de poder, frequentemente com sua figura determinando
também a “construção e manutenção de determinados imaginários
260 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
sociais” (ALMEIDA E CÂNDIDO DA SILVA, 2011, p. 14). A mesa VIII, desta
forma, foi dedicada à análise dos desdobramentos dos imaginários de uma
figura em específico que representa, em certo nível, uma imagem do poder
monárquico. O trabalho de Ana Luiza Mendes e Roberta Bentes utilizouse das representações de Ricardo I em fontes como a Historia Regum
Britanniae, de Geoffrey de Monmouth (1095-1155) e a Geste de Bretons, de
Wace (1110-1174). As pesquisadoras analisaram as crônicas arturianas
como um espelho do príncipe para Ricardo I amparadas no conceito de
cultura intermediária como hipótese central. Já Alexandre Fernandes Alves
analisou a imagem de Ricardo como rei-cavaleiro. Considerando os Anais
de Roger de Hoveden (1174 – 1201), Alves procurou compreender a
construção da narrativa histórica do Reino da Inglaterra. Por outro lado, a
face de Ricardo I analisada por Mauricio da Cunha Albuquerque foi a que
dá voz às noções de heroísmo e anti-heroísmo no romance métrico Coer
de Lyon (século XV). À luz dos conceitos de imaginário, mito político e da
mito-crítica, Albuquerque buscou o sentido de Ricardo I na literatura e seu
papel na monarquia inglesa. A análise de um personagem em específico
faz entender, enfim, como os estudos sobre monarquia inglesa estão em
crescimento e solidificação na historiografia brasileira discente. Além
disso, nos apresentou as possibilidades de análise sobre a construção do
imaginário em uma figura específica, de modo a repensar as construções
em torno de indivíduos que representam um tempo ou uma instituição.
A Idade Média como produto discursivo foi tema da mesa IX. Esta
noção, usada por Vinicius Silveira Cerentini, serviu para mostrar como a
Idade Média foi, em primeiro lugar, discursivamente colonizada e,
posteriormente, utilizada por um discurso colonizador, a partir do século
XVI, para impedir que sujeitos colonizados acessassem o Tempo
metropolitano, permanecendo, dessa forma, como Outros “primitivos” do
Europeu moderno/contemporâneo. O discurso da poesia foi também uma
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 261
ferramenta de análise de Marcos Jorge dos Santos Pinheiro. Pinheiro
analisou os aconselhamentos de Ramon Llull (1232-1316) e a sua relação
com papa, clero e nobreza a partir do poema O Concílio. O discurso sobre
a violência na Idade Média foi objeto de Leandro Ribeiro Brito.
Questionando as práticas de opressão e a polissemia do conceito de
violência, o historiador partiu do discurso associado ao poder para ler as
determinações sobre o que é ou não é violento. O discurso, desta forma, se
torna um aporte metodológico muito rico para lançar um olhar a
determinados contextos e documentações do período medieval.
Outro tema quase inevitável para se investigar a Idade Média são as
religiosidades e as heresias. Neste campo de estudos, com a mesa X,
Marcos Pedrazzi Chacon destacou a literatura pastoral para estudar a
cultura e a religiosidade popular. O objetivo do autor foi avaliar
problemáticas e tecer considerações metodológicas sobre a relação entre
os dois campos. Já Ana Carolina Martinez interessou-se pela heresia,
especificamente no seu papel para a transformação e união de conceitos
na bula papal Quod super nonnullis de Alexandre IV (1258). Investigando
os conceitos de feitiçaria, magia e heresia, Martinez analisou como esses
conceitos são unidos e aplicados nesta bula papal. Eduardo Jorge de
Rezende também analisou a heresia, mas em um espaço em específico,
como ela é representada nos Concílios Lateranenses. Em sua proposta
inicial de pesquisa, Rezende investigou os pormenores da Igreja no século
XII, apresentando considerações historiográficas sob a perspectiva da
História das Religiões. A Igreja, as heresias e o sentimento de religiosidade,
assim, são temas que dividem protagonismo com as mesas anteriores.
Dessa forma, apresentam larga profusão de análise, tornando-se campos
que frequentemente estão entrelaçados, o que possibilita enormemente o
diálogo entre os pesquisadores.
262 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Por fim, a mesa que concluiu o Simpósio Temático foi a de estudos
sobre a Península Ibérica no Medievo. Nathalia de Ornelas Nunes de Lima
analisou os ideais de morte dos reis de Avis nas Crônicas de Rui de Pina.
Lima discutiu mecanismos de poder régio em Portugal, buscando
compreender os ritos fúnebres como um destes processos. Ainda na
Dinastia de Avis, Beatriz Nogueira de Sousa analisou o reinado de Dom
Duarte (1391 – 1438) na Carta de El Rey D. Duarte e sua obra O Leal
Conselheiro. Sousa usou este arcabouço para cunhar a chave interpretativa
de ideário fúnebre para análise dos reinados da Dinastia de Avis. Ainda na
Península Ibérica, Êmily Stephane Rodrigues da Silva dividiu a análise de
Portugal com a de Castela, investigando o perfil dos conselheiros na
literatura de aconselhamento. Sob a metodologia comparativa, Rodrigues
da Silva estudou os vícios e as virtudes de um conselheiro em O Leal
Conselheiro, no lado português, e no Libro del Consejo, no lado castelhano.
A organização urbana de Portugal foi tema de Flavia Vianna do
Nascimento, que analisou o papel dos marginais na economia, ação estatal
e legislação durante o século XIV. Voltando-se para a Espanha, Marcos
Souza Rodrigues investigou a General Estoria, do rei Afonso X (1221 –
1284). O foco de análise de Rodrigues foram os capítulos que tratam sobre
o norte da África. Utilizando-se do arcabouço da História Global, o autor
procurou entender a compreensão de alteridades pelas ideias de
encantamento e distanciamento em relação ao chamado ‘Nilo profundo’.
Finalizando a mesa, Elby Aguiar Marinho investigou a obra As Décadas de
Ásia de autoria de Diogo do Couto (1542 – 1616) e João de Barros (1496 –
1570). Marinho debruçou-se especialmente na mudança da narrativa nas
fontes durante as diferentes décadas de colonização portuguesa da Índia.
Estes autores, assim, destacaram como os estudos sobre Península Ibérica,
algo já tradicional na historiografia brasileira sobre Idade Média, tem se
tornado um ponto de constante mudança em relação as formas que se
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 263
leem as fontes. Mesmo que estas fontes continuem as mesmas, imutáveis
ao longo do tempo, as perspectivas sobre o território tem constantemente
se modificado e se renovado.
Apontamentos finais
Escrever sobre um passado que não “nos pertence” pode ser um
desafio: os manuscritos estão, em geral, em bibliotecas e museus distantes
assim como outros vestígios materiais desse momento histórico. Produzir
história sobre o Medievo na América, sobretudo na América Latina, como
disse Cândido da Silva (2018) e complementou Rust (2019) ainda era, até há
pouco, questionado (e ainda é em muitos cenários). Portanto, consideramos
as pesquisas apresentadas nesse Simpósio Temático – elencadas
brevemente neste capítulo – como o fruto de uma resistência desses
profissionais em relação ao sentimento de posse de uma parte minoritária
da intelectualidade europeia (e norte-americana) com a história medieval e
mesmo de uma resistência à proibição do discurso dos sujeitos coloniais
sobre uma história não-raramente considerada metropolitana.
Evidentemente os trinta e oito trabalhos apresentados são apenas uma
concisa amostra de um universo que, pelo exposto até o momento, parecem
se espraiar pelas mais diversas áreas relacionadas ao Medievo. Nisso
incluímos a matriz teórico-metodológica, que abarca uma diversidade de
abordagens e objetos, como evidenciado no corpo desse escrito. É por esta
pluralidade de perspectivas que entendemos as perspectivas sobre Idade
Média produzidas no Brasil como algo em plena renovação.
Além desse Simpósio Temático poder ser considerado como uma
breve amostra desta diversidade temática e teórico-metodológica,
ressaltamos a presença de autores dos mais diversos graus acadêmicos –
graduandos, mestrandos, doutorandos – o que tornou o debate profícuo
tanto para aqueles já formados quanto para aqueles em formação. O
264 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
diálogo dentro da academia, de forma horizontal e não vertical – como é
de praxe – possivelmente vem fortalecer os laços desse círculo de
profissionais que estudam o Medievo. Não temos dúvida de que os
participantes puderam fazer proveitosas reflexões acerca do seu próprio
trabalho e sobre as pesquisas dos colegas.
Dessa forma, malgrado o tempo de isolamento social que vivemos em
2020 e da impossibilidade de acessar locais como bibliotecas e museus, a
pesquisa em Idade Média avança. A internet nos permitiu reunir trabalhos
de partes distantes do Brasil em um evento no qual todos tiveram voz ativa.
Logo, não é exagero afirmar o saldo positivo desse Simpósio. E, nesse saldo,
podemos incluir a reflexão mesmo acerca dos meios de divulgação da
pesquisa em História Medieval, que pôde ser debatida e repensada: eventos
online – desde congressos até defesas – podem, e devem, estar à disposição
das comunidades (não apenas da acadêmica) para democratizar e pluralizar
o debate sobre um momento histórico, o Medievo, que ainda tem uma
abundância de documentos e perspectivas não-exploradas.
Por fim, ansiamos por outros eventos como o que resumimos até
aqui. A troca de experiência e o debate acadêmico saem fortalecidos após
esse multifacetado simpósio acerca de um momento histórico muitas vezes
pouco considerado no âmbito escolar e universitário. A comunidade de
pesquisadores do Medievo só tem a ganhar com reuniões plurais – na
temática e na teoria – que debatam o Medievo sem perder de vista a
situação política e social em que estamos imersos enquanto cidadãos e
cidadãs do Brasil e da América Latina.
Referencial
ALBUQUERQUE, Isabela Dias de. As relações identitárias entre Anglo-Saxões e
Escandinavos: uma comparação do reino de Wessex com a região da Danelaw
(séculos IX-X). Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em História
Comparada. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2017.
Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 265
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FORTES, Carolina Coelho. Estudos de Gênero, História e a Idade Média: relações e
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(séculos IV e V). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Seropédica, 2019.
Capítulo XV
As crônicas arthurianas como espelho de príncipe para
o Rei Ricardo Coração-de-Leão da Inglaterra
Ana Luiza Mendes 1
Roberta Bentes 2
Na Alta Idade Média francesa, Geoffrey I, conde de Anjou (938-987)
se encantou por uma mulher misteriosa: Adele of Meaux (950-980). Eles
se casaram e tiveram vários filhos, mas o Conde ficava preocupado pois
sua mulher sempre saía da Igreja antes que a hóstia fosse levantada. Um
dia ele comanda que um de seus cavaleiros a pare, mas ela se desvencilha
soltando sua capa e voa para fora da janela com um grito. A condessa de
Anjou nunca mais foi vista (BARBER, 1996, p. 9-10). De acordo com essa
lenda todos os Plantagenetas que reinaram a Inglaterra são descendentes
da Condessa demoníaca de Anjou. Seu sangue corre em suas veias e ao
longo dos séculos isso serviu de justificativa para o temperamento
temerário e a sede de sangue que a família carregava, assim como a sua
brutalidade (BARBER, 1996, p. 9-10). Ricardo Coração de Leão (1157-1199)
utilizou-se da lenda ao proclamar que “do diabo nós surgimos, e para o
diabo nós voltaremos” (CHURCHILL, 1956, p.394).
A referência à lenda demonstra como a concepção da existência no
medievo situava-se numa linha muito tênue entre a realidade e a ficção.
Podemos conceber essa ambivalência a partir do conceito de cultura
intermediária definida por Hilário Franco Júnior como aquela praticada,
em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma dada
1
Doutora - Universidade Federal do Paraná; analuizam982@gmail.com
2
Mestra - Universidade Federal do Paraná; roberta.bentes@gmail.com
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 267
sociedade, constituindo-se como um fator comum, um conjunto de
crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecidos e aceitos
pela maioria dos indivíduos (FRANCO JÚNIOR, 2009). É a partir dessa
perspectiva que podemos compreender a utilização que a dinastia
Plantageneta faz dos recursos literários e lendários a fim de legitimar o seu
poder. Levando em consideração que ela rivalizava com o poder régio
francês, que fundamentava seu poder em Carlos Magno (742-814), era
necessário, portanto, amparar a dinastia inglesa em um fundador de
prestígio igual ou superior ao rei dos francos.
A necessidade da legitimação se dá pelo fato de que a ascensão de
Henrique II Plantageneta (1133-1189) ao trono inglês ocorreu em meio a
uma crise sucessória e uma guerra derivada dela. Esse período ficou
conhecido como Anarquia (1139-1153), no qual o território peninsular
entrou em conflito com a Normandia. Com a morte de Guilherme Adelino
(1103-1120), filho e sucessor de Henrique I da Inglaterra (1068-1135), este se
vê motivado a instituir sua filha Matilde (1102-1167), imperatriz consorte do
Sacro Império Romano-germânico, como sua sucessora. Sua sucessão não
foi efetivada e o trono inglês ficou com Estevão (1092/96-1154), cujo início
de reinado foi marcado por tensões entre barões ingleses, rebeldes galeses e
escoceses que viam na instabilidade política uma oportunidade de dominar
o território inglês. Matilde e seu filho, o futuro Henrique II, não ficaram
satisfeitos com a situação e enfrentaram Estevão a fim de conquistar o trono.
Porém, o conflito se encerrou com um acordo de paz firmado pelo Tratado
de Wallingford (1153), no qual ficava determinado que Estevão
permaneceria rei e Henrique Plantageneta seria seu herdeiro e sucessor.
Estevão I morre um ano depois e Henrique assume o trono com a missão de
reconstruir o reino ainda marcado pelo conflito.
Com sentido político apurado, Henrique casa-se com Leonor
d’Aquitânia (1122-1204), expandido o território inglês, constituindo-se
268 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
como o mais poderoso e rico governante do período (GILLINGHAM;
GRIFFITHS, 2000, p. 24) e tornando a Inglaterra em um importante rival
do reino francês. Casando-se com Leonor, Henrique não apenas somava
ao reino inglês domínios extra insulares, como também inseria a cultura
do sul da França que dominará por muito tempo a produção cultural
inglesa.
O jacente de Leonor d'Aquitânia, com a fronte altiva circundada pela coroa
real, olhos fechados pela eternidade, tendo em suas mãos um livro aberto,
ainda hoje é testemunha na necrópole da abadia de Fontevraud da riqueza da
história política e cultural do século XII especialmente nos domínios
Plantagenetas. (CHAUOU, 2001, p. 9) 3
Contudo, ela não estava sozinha. Henrique II era até assumir o trono,
o príncipe mais bem educado do ocidente (GILLINGHAM, 2006, p. 25) e,
como rei, dará continuidade ao florescimento da cultura no reino inglês, o
que pode ser notado com o surgimento de um grande número de
“intelectuais” e escritores a partir da segunda metade do século XII,
coincidindo com a sua ascensão ao trono. O reconhecimento do fomento
cultural promovido pela corte de Henrique também pode ser atestado a
partir de produções que indicam essa característica do rei, como o poema
provençal Les Auzels cassadors de Daude de Pradas (1214-1282), no qual
há uma referência de um livro de falcoaria do rei Henrique da Inglaterra4,
indicando a produção cultural fomentada por ele e demonstrando que,
3 No original: “Le gisant d'Aliénor d'Aquitaine, le front altier ceint de la couronne royale, les yeux fermés pour
l'éternité, tenant dans ses mains un livre ouvert, témoigne encore aujourd'hui dans la nécropole de l'abbatiale de
Fontevraud de la richesse de l'histoire politique et culturelle du XIIe siècle notamment dans les domaines
Plantagenêts”. Tradução das autoras.
4 En um libre del rei Enric d’Anglaterra, lo pros e-l ric/que amet plus ausels e cas/que nos fes anc nuill crestias/
trobei d’azautz esperimens [...]. “Em um livro do rei Henrique da Inglaterra, o bom e excelente, que ama os pássaros
e a caça, que nunca fez/agiu como falso devoto, cantei de espírito elevado.” Tradução das autoras em conjunto com
Marcella Lopes Guimarães.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 269
o poder de Henrique e o glamour de sua esposa provaram ser uma perigosa
combinação, difícil de resistir. Em consequência, praticamente todo escritor
que viveu e trabalhou em algum lugar da Inglaterra ou da França na segunda
metade do século XII foi em algum ponto incorporado na órbita de Henrique
e Leonor, “riche dame de riche rei” [rica dama de rico rei] (GILLINGHAM,
2006, p. 26). 5
É sintomático que o reconhecimento de Henrique como um grande
rei e fomentar da cultura se desenvolva no período em que podemos
verificar o surgimento de um novo ideal de comportamento e de rei que
une e beligerância e a cortesia. A partir do século XII pode-se identificar
um novo modelo de rei e do “ofício régio, pautado na cultura que aos
poucos vai se laicizando e se materializando por meio da escrita que
elabora um novo poder” (MENDES, 2018, p. 54).
Esse novo poder diz respeito a um dirigismo cultural, no qual a
produção artística é fomentada e utilizada pelo rei como um elemento
integrante de um projeto político. Inserida no novo molde de
comportamentos sociais, a produção cultural desse período, enquadrada
no movimento de sua laicização, se desenvolve a partir da expressão de
sentimentos de ordem pessoal, social e política que convergem nas
definições de uma identidade necessária para governar um reino tão
heterogêneo, como apontam alguns estudiosos sobre a tática políticocultural de Henrique II. Bernard Guenée (1980) diz que no século XII, os
Plantagenetas usaram massivamente a História para fundamentar as
origens de sua linhagem e justificar seu domínio inglês. Na mesma
perspectiva, Diana Tyson (1979) já afirmava que, por meio da ação de
Henrique II, a historiografia da Inglaterra perdeu sua característica
5 No original: “Henry’s power and his wife’s glamour have proved to be a perilous combination, hard to resist. In
consequence, virtually every writer who lived and worked somewhere in Britain or France in the later twelfth century
has at some stage been drawn into the orbit of Henry and Eleanor, “riche dame de riche rei” [the powerful wife of a
powerful king].” Tradução das autoras.
270 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
monástica para se tornar um instrumento de propaganda régia.6
Gillingham (2006), entretanto, não considera que tenham sido escritas
muitas obras históricas com o patrocínio direto de Henrique, sendo apenas
a partir de 1190 que a produção historiográfica ganha impulso,
transformando Ricardo I no primeiro rei desde Alfred (849-899) que
pensa sistematicamente como as palavras podem ser utilizadas para
moldar a opinião pública.
No que diz respeito às produções literárias é importante destacar o
papel da produção do Roman de Brut, de 1155, de Wace (1110-1174),
também conhecido como Geste des Bretons.
Tal roman correspondeu à adaptação poética da Historia regum Britanniae, de
Geoffrey de Monmouth, por solicitação de Henrique II, que desejava uma
epopeia versificada para consagrar uma narrativa de laude à Dinastia
Plantageneta, apta a suplantar a celebridade da Chanson de Roland, de que os
Capetos se valiam para exaltar suas glórias e, assim, legitimar seu poder
político, vinculando sua linhagem, diretamente, a Carlos Magno (BACCEGA,
2011, p. 64).
Na obra de Monmouth (~1100-1155), Arthur7 é apresentado como um
dos ancestrais dos reis britânicos e como um remanescente dos troianos
(VARANDAS, 2012, p. 306-307). Por sua vez, no Roman de Brut, Arthur
foi transformado em um personagem mais cortês e piedoso. Todavia, na
tradição Anglo-normanda ele ainda era considerado como um poderoso
inimigo. Essas características, portanto, serviam para a legitimação do
poder de Henrique, pois fundamenta sua imagem e seu reinado na figura
6 No original: “It was through Henry's encouragement that historiography in England lost its purely monastic
character to become an instrument of propaganda for the king”. Tradução das autoras.
7 O primeiro registro em latim de Arthur se dá no manuscrito Historia Brittonum de Nennius produzida no Norte
de Gales, provavelmente perto de 829-830, no qual Arthur é visto como um dux bellorum (chefe militar) que liderou
12 batalhas contra os anglo-saxões. E esta fonte é usada abertamente por Geoffrey of Moumonth para elaboração do
Historia Regum Britanniae.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 271
proveniente de uma mitologia imperial que se equiparava a Carlos Magno
dos Capetos (GILLINGHAM, 2006, p. 36), demonstrando que “nenhuma
dinastia, de fato, pode viver sem ancestrais ilustres, panegíricos pomposos
e símbolos falantes” (MARTIN, 2001, p. 3).8
Isso demonstra que Arthur é uma figura extremamente plástica, isto
é, suas características se moldam ao contexto e aos objetivos dos seus
autores. Por isso a obra de Geoffrey of Monmouth foi tão popular, de
acordo com Judith Weiss (2006), pois ao se apropriar de lendas celtas e
modelos pagãos, permitiu aos autores posteriores inserir elementos que
incrementam a lenda de Arthur e moldam sua personalidade ambígua,
navegando entre a cortesia e a arrogância9, características que também
poderão ser observadas nos relatos sobre Ricardo I, os quais orbitam entre
a admiração e a intrepidez, como podemos ver na crônica Itinerarium
Peregrinorum et Gesta Regis Ricardi (~1220), de Geoffrey of Vinsauf10 (?1200) quando o jovem rei é tem suas qualidades descritas como:
Sua generosidade, e seus dotes virtuosos, o governante do mundo deveria ter
dado a ele nos tempos antigos; pois neste período do mundo, à medida que
envelhece, tais sentimentos raramente se manifestam e, quando o fazem, são
objetos de admiração e espanto. Ele tinha a valentia de Heitor, a magnanimidade
de Aquiles, estava no mesmo patamar que Alexandre e não inferior a Rolando
em prestígio; Ou seja, ele ofuscou muitas personagens ilustres de nossos tempos.
A liberalidade de um Tito era dele, tão raramente encontrada em um soldado, e
era dotado da eloquência de Nestor e da prudência de Ulisses; ele se mostrava
preeminente na transação e fechamento de negócios, cujo conhecimento não
8 No original: “Aucune dynastie, en effet, ne peut se passer des ancêtres illustres, de panégyriques ronflants et
desymboles parlants”. Tradução das autoras.
9 Nas produções galeses O sonho de Rhonabwy, Owain ou A Dama da Fonte e Geraint, Filho de Erbin, assim como
acontece nos romances Lancelot, Yvain e Perceval de Chrétien de Troyes, Arthur parece encarnar o extremo de um
rei imperial, esperado dos romances de cavalaria desenvolvidos na França, mostrando-se como rei passivo, arrogante
e satírico que se deleita dos prazeres mundanos da corte do que se aventurar com seus cavaleiros.
10 Nesta crônica a autoria é dada a Vinsauf, e sua compilação é realizada por Ricardo do Templo nos meados de 1220
em Londres.
272 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
carecia de boa vontade para fazê-lo, nem sua boa vontade faltante em
desenvoltura. Quem, se Ricardo fosse acusado de presunção, não o desculparia
prontamente, conhecendo-o como um homem que nunca viveu a derrota,
impaciente por uma injuria e impelido irresistivelmente a reivindicar seus
direitos, embora tudo o que ele fizesse fosse caracterizado por uma nobreza
mental inata. (VINSAUF, 2001, p. 95-95)11
Assim, o Arthur da corte Plantageneta é um personagem
extremamente maleável, uma vez que sua figura histórica, baseada em um
guerreiro do século VI, transcende os limites da realidade e é moldado em
prol da defesa da dinastia e dos seus reis. Dessa forma, o Arthur de
Henrique II não é o mesmo de Ricardo I. No reinado do primeiro, Arthur
é moldado conforme as características de Henrique, contribuindo para
disseminar uma propaganda do rei inglês e legitimando sua ação
conquistadora, assim como das histórias sobre Arthur que agora se
estabelecia como um fundador dos Plantagenetas.
Nesse contexto, surge a visão messiânica de Arthur, expressada na
“esperança bretã” do seu regresso. No entanto, essa não era uma visão
homogênea verificada em todas as obras de temática arthuriana do
período. Muitos autores representavam essa ideia como chacota,
demonstrando que existia uma dialética de perspectivas de como Arthur
deveria ser visto (BERARD, 2015, p.16). Se, por um lado, no reinado de
Henrique II, Arthur foi construído como um modelo para os reis ingleses,
sobretudo sob a pena de Geoffrey of Monmouth que o concebe como um
11 Tradução da fonte em inglês modern pelas autoras: “His generosity, and his virtuous endowments, the ruler of
the world should have given to the ancient times; for in this period of the world, as it waxes old, such feelings rarely
exhibit themselves, and when they do, they are subjects of wonder and astonishment. He had the valour of Hector,
the magnanimity of Achilles, and was equal to Alexander, and not inferior to Roland in valour; nay, he outshone
many illustrious characters of our own times. The liberality of a Titus was his, and, which is so rarely found in a
soldier, he was gifted with the eloquence of Nestor and the prudence of Ulysses; and he shewed himself pre-eminent
in the conclusion and transaction of business, as one whose knowledge was not without active good-will to aid it,
nor his good-will wanting in Itinerary knowledge. Who, if Richard were accused of presumption, would not readily
excuse him, knowing him for a man who never knew defeat, impatient of an injury, and impelled irresistibly to
vindicate his rights, though all he did was characterized by innate nobleness of mind”.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 273
campeão socialmente relevante para a autoridade monárquica (BERARD,
2015, p.12), no reinado de Ricardo não há uma identificação direta entre
os dois reis, uma vez que há a necessidade de mudar o discurso sobre
Arthur já que seus restos mortais, assim como os de Guinevere e Mordred
foram “encontrados” em Glastonbury em 1191. Nesse contexto, esta
“oficina de falsificações” engendra a relação entre Glastonbury e a lenda
de Arthur, propiciando a difusão das narrativas arthurianas pelos
diferentes estratos sociais (BACCEGA, 2011, p. 64).
Essa “descoberta” minava a ideia de que Arthur retornaria. Ao findar
com a “esperança bretã” Arthur é moldado sob uma perspectiva distinta,
dada em parte pela nomeação do sobrinho de Ricardo como Arthur da
Britânia (1187-1203), definindo que, de fato, Arthur era Plantageneta e seu
retorno se efetivou com o nascimento desse novo Arthur e, em parte pelas
ações desenvolvidas por Ricardo que, mesmo não relacionando sua
imagem com a de Arthur diretamente, toma determinadas decisões que se
assemelham às do rei lendário.
Uma dessas ações é relacionada com o sobrinho Arthur a quem
Ricardo alça à condição de seu herdeiro e sucessor em detrimento de seu
irmão João Sem-terra (1166-1216). Essa ação é interessante de ser pensada
no contexto do imaginário arthuriano, uma vez que Arthur, assim como
Ricardo, não teve filhos legítimos12, definindo, então, seu sobrinho
Mordred como seu herdeiro. Não à toa, portanto, que seus restos mortais
foram “encontrados” juntos aos de Arthur e sua rainha. Outra ação
emblemática da relação entre os dois reis é o fato de que Ricardo teria
levado consigo a espada de Arthur para a Cruzada, dando-a para Tancredo
da Sicília (1189-1194).
12 De acordo com os contos galeses Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy encontramos a tradição de que Arthur
teria um filho chamado Llachau, e em Geraint, filho de Erbin, Arthur tem um filho chamado Amr, diferentemente do
que aparece nos registros de Geoffrey of Monmouth e também nas crônicas de Chrétien de Troyes.
274 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Nessa conjuntura, pode-se compreender que no reinado de Ricardo a
“angevização” de Arthur já está consolidada, processo desenvolvido no
reinado de Henrique II, no qual existia uma “ideologia Plantageneta”
(BERARD, 2015, p. 42), constituída por meio dos escritos de Wace e
Geoffrey of Monmouth que não eram escritores oficiais da corte, mas
foram os responsáveis pela separação entre historicidade e fantasia de
Arthur para defini-lo como um antepassado de Henrique II. (BERARD,
2015, p. 42) Assim, há a construção de Henrique como uma versão
idealizada de Arthur e provendo a dinastia com elementos para eternizar
esse rei como Plantageneta. Importante observar também que nesse
processo de fabulação de Arthur, há a simbiose entre o elemento guerreiro
e cavaleiresco, corroborando o fato de que essas obras eram escritas em
conformidade com as demandas do período.
Como já mencionado, a cultura cortês não deveria estar em segundo
plano na corte inglesa e, portanto, nesse contexto pode-se pensar que
surge um novo modelo de rei, o qual alia sua faceta beligerante à cortês. A
importância desse novo tipo de rei, relativamente instruído, é atestada por
contemporâneos de Henrique, como Guilherme de Malmesbury (10801143) que diz que “um rei iletrado é apenas um asno coroado” (LE GOFF,
2017, p. 456). Segundo Jacques Le Goff, “esse novo ideal de rei letrado,
culto e mesmo erudito, caminha paralelamente à transformação das
realezas em Estado administrativo e burocrático, e é igualmente acentuado
pela reabilitação de Salomão como modelo de rei” (LE GOFF, 2017, p. 456).
No tocante a Ricardo, sua faceta cortês pode ser atestada por meio de
sua produção trovadoresca: a tensó13 “Dalfin je’us voill deresnier” e a
13 Tensó é uma subclassificação dentro do gênero poético lírico provençal em que dois trovadores realizam uma
disputa poética.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 275
rotrouenge14 “Ja nuls òms pres no dirá as razon”. O registro da sua
disputatio poética com Dalfins d’Auvergne (1150-1234) pode ser
encontrado em três cancioneiros occitanos: o Cancioneiro I, o Cancioneiro
K e o Cancioneiro A. Neste último, há a representação de Ricardo como um
rei-trovador, aparecendo coroado e tocando uma harpa.
A referência a Ricardo como um rei cortês em consonância com sua
faceta guerreira também é vista na personagem de Arthur do conto galês
Culhwch ac Olwen presente no Mabinogion, coletânea de manuscritos
medievais em prosa escritos em galês medieval.15 Nele, Arthur aparece já
como um rei com uma vasta corte de nobres ao seu redor e mostra a
transição para o cristianismo16, trazendo em seu diálogo com seu primo
Culhwch, que ansiava por encontrar Olwen, as características de um rei
cortês, largo que apreciava boas armas de combate:
Ainda que não queiras ficar entre nós, terás aquilo que desejas, seja aquilo que
for, mesmo que se encontre muito longe. Só não te darei o meu barco; o meu
manto; a minha espada Caledvwlch; a minha lança Rhongomynyad;
Wynebgwrtbucher, o meu escudo; Carnwennan, o meu punhal; ou a minha
esposa Gwenhwyvar. (VARANDAS, 2012, p.117-118).
A espada Caledvwlch está presente na crônica de Roger de Hoveden
(1174–1201), que acompanhou o rei inglês na Terceira Cruzada (1189-1192)
e pode descrever o momento que Ricardo a entrega para Tancredo:
14 Rotrouenge é uma cantiga parecida com uma cansó que arremata cada estrofe com um refrão fixo de uma única
palavra.
15 Ainda que parte de sua escrita seja tardia do século XIV, os contos remetem aos costumes e lendas orais anteriores
ao século X. De acordo com Angelica Varandas (2012, p. 136), a história de Culhwch e Olwen teria sido produzida
cerca de 1080-1100, data anterior à obra de Geoffrey of Monmouth. O estudo de T.M. Charles-Edwards e Patrick
Sims-Williams apontam que a linguagem da obra teria vestígios do século XI e XII. Vide: SIMS-WILLIAMS, Patrick.
“The Early Welsh Arthurian Poems”. In: BROMWICH, Rachel; EVANS, D. Simon. Culhwch and Olwen: An Edition
and Study of the Oldest Arthurian Tale. Cardiff: University of Wales Press, 1992.; CHARLES-EDWARDS, T.M. "The
Date of the Four Branches of the Mabinogi". Transactions of the Honourable Society of Cymmrodorion (1970-1972),
1971, pp. 263–298.
16 Quando Arthur nomeia seus 136 guerreiros, ao final da lista vemos Kethcrwn, o Padre e Bedwini, o Bispo (que
abençoava a comida e bebida de Arthur. (VARANDAS, 2012, p. 120).
276 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
O rei da Sicília concedeu ao rei da Inglaterra presentes, que eram tanto
numerosos quanto ótimos, sendo [na forma de] vasos de ouro e prata, em
cavalos e roupas de seda, mas Ricardo, que não carecia de coisas desse tipo,
não queria levar nenhum desses itens, exceto um certo pequeno anel, que ele
recebeu como um símbolo de seu afeto mútuo. O rei da Inglaterra, porém, deu
a Tancredo a melhor espada de Arthur, que já foi nobre rei dos bretões. Os
bretões chamam esta espada de "Caliburn". Além disso, Tancredo deu ao rei
da Inglaterra quatro grandes navios, que eles chamam de "Ufsers" [Huissiers],
e quinze gales (HOVEDEN , 1870, p. 97-98)17
Outro diálogo que pode ser visto entre Ricardo e Arthur ocorre em
Cligés, de Chrétien de Troyes (1130-1191), no qual Arthur é apresentado
como um líder militar. Ele se encontrava na região da Britânia,
presumidamente realizando expansões territoriais, deixando a cidade de
Londres sob a regência do Earl de Windsor que toma o controle da cidade.
Ao ter conhecimento da traição, Arthur reúne um exército e a retoma. Com
a captura do nobre, Arthur demonstra ser cortês ao ter misericórdia do
traidor e seus cúmplices (DIVERRES, 1994, p. 61). Caso semelhante
aconteceu com Ricardo quando estava ausente do reino por causa da
Terceira Cruzada (1189-1192). Aproveitando sua ausência, João sem Terra
(1166-1216) se revoltou com ajuda do rei Capeto, deixando o território da
Normandia para Felipe Augusto (1165-1223). Após retornar de seu
cativeiro, Ricardo perdoou João e buscou a reconquista da região
normanda que permanece como possessão inglesa até 1204.
17 No original: “rex Siciliæ dona multa et magna, in vasis aureis et argenteis, in equis et pannis sericis obtulit regi
Angliæ: at hujusmodi non indigens, nihil eorum capere voluit præter annulum parvulum quendam, quem in signum
mutuæ dilectionis accepit. Rex autem Angliæ dedit ei gladium optimum Arcturi, nobilis quondam regis Britonum,
quem Britones vocaverunt Caliburnum. Præterea Tancredus dedit regi Angliæ quatour magnas naves quas vocant
Ufsers, et quindecim galeas.” Cf. DE HOUEDEN, Roger; STUBBS, William (org.). Chronica magistri Rogeri de
Houedene. Londres: Longman &Co., and Trübner &Co, Paternoster row, 1870, p. 97-98. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=IkY7AQAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
Acesso em 07/12/ 2020.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 277
Nesse contexto, pode-se inserir Arthur dentro de um projeto político
que alia cultura e poder de forma que as histórias referentes a ele
possibilitam serem pensadas como espelhos de príncipe, uma vez que
estas obras se fundamentam em princípios político-morais com a
finalidade de edificar a educação e o caráter do monarca através de
modelos teóricos conforme os conjuntos de ideais políticos, morais e éticos
(RICÓN apud SANTANA, 2017, p.80). Tais princípios podem ser
identificados tanto nas ações de Arthur quanto nas de Ricardo que,
entretanto, já inicia seu reinado com o imaginário arthuriano estabelecido
que, contudo, precisa ser modificado conforme interesses específicos do
seu contexto. O Coração de Leão não precisava ser relacionado
diretamente a Arthur porque já tinha um arsenal próprio de lendas
(Quadro 1). No entanto, suas ações demonstram que seu imaginário
também estava impregnado de Arthur, cujas histórias não eram restritas
a Inglaterra, local em que pouco ficou. A faceta bélica de Arthur pode ser
pensada como um ideal a ser atingido pelo rei, como o foi por Ricardo que
encarnava importantes virtudes régias: cortesia cavaleiresca, conquistas
militares e ardor cruzadístico. O que comprova que a visão do Rei Arthur
que Goeffrey of Monmouth trouxe para Wace e, consequentemente
Ricardo, seria não só um modelo de conquista e consolidação, mas sim um
modelo de reinado cristão em simbiose com uma sociedade cortês.
Quadro 1- Mitologia Ricardiana
Lendas e Topos Míticos Medievais
Lendas e Topos Míticos Modernos
Rei Guerreiro
Robin Hood
Excalibur/Caliburn18/Machado Mágico
Culto a São Jorge
Choque de Civilizações
Rei Ausente
Justa contra Saladino
Fanático – Genocida – Brutal
Luta contra o Leão
Unificador Apaziguador
Cativeiro – romance com filha do Imperador
Herói do povo – justiça
18 Os itens que se apresentam em negrito nesta tabela são itens adicionados pelas autoras para complementar o
raciocínio da mitologia ricardiana.
278 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Resgate com Blondel
Herói Nacional
O retorno do Rei
Homossexual
Revolta contra o pai
Ascendência demoníaca
Canibalismo
Morte
Fonte: ALBUQUERQUE, Maurício. Coração de Leão – O Retorno do Rei. Sobre o ressurgimento de Ricardo I na
Cultura Britânica Oitocentista (1784-1850). In: I Simpósio de História Antiga e Medieval - UNIPAMPA, 2020,
Jaraguão. Comunicação.
O quadro acima demonstra que o imaginário acerca de Ricardo era
extremamente fértil, desenvolvendo-se desde a sua própria época até o
período contemporâneo, criando um arsenal próprio de lendas e
contribuindo, assim, para a mitificação do rei inglês.
Desse modo, tanto Arthur quanto Ricardo estão rodeados de aspectos
históricos, como batalhas e campanhas militares, e tópicos de natureza
mítica, como lutas sobrenaturais, tornando-os reis que inspiravam a moral
de seus seguidores, perpetuando uma fama temerária entre seus rivais,
como pode ser atestado pela frase que teria sido proferida por Saladino a
seu respeito: “o rei tem muita valentia e muita audácia, mas se lança tão
loucamente! Se eu fosse qualquer alto príncipe, preferiria mais ter
liberalidade e julgamento comedido que audácia desmedida” (LE GOFF,
2013, p. 203).
Assim, da mesma forma que Arthur, as narrativas sobre Ricardo
promovem um modelo de conquistas e consolidação que liga o reinado de
um rei cristão inserido em uma sociedade cortês que presa por uma
cultura na qual seu rei pode ser concebido como um herói das novelas de
cavalaria, colocando, assim, a dinastia Plantageneta nas brumas que fazem
da Inglaterra a lendária Avalon.
Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 279
Referências
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Capítulo XVI
A literatura pastoral e sua relação ao estudo da cultura
e religiosidade popular na Alta Idade Média 1
Marcos Pedrazzi Chacon 2
Edmar Checon de Freitas 3
Introdução
Com o advento da Escola dos Annales e de sua história cultural, um
novo ímpeto foi alçado em relação ao estudo das crenças e práticas que
marcam os modos de vida e a consciência do homem e da mulher medieval,
assim como as formas com que estes interagem entre si e com a natureza à
sua volta. Tal complexo de práticas e crenças integra o âmago da cultura e
da religiosidade popular, constituindo elementos compartilhados pela maior
parte da população em uma dada temporalidade. Em se tratando da Idade
Média, as fontes que compõem a literatura pastoral constituem uma forma
privilegiada de se perscrutar a visão de mundo e os diferentes modos de
interação do homem medieval com a realidade à sua volta. Todavia, sua
utilização também propõe ao historiador uma série de desafios e
problemáticas, visto que, por mais que tais fontes se ocupem das práticas,
crenças, ritos devocionais e festividades observadas pelo homem comum,
elas não são capazes de fornecer acesso direto à cultura religiosa das massas,
visto que os elementos registrados passam pelo filtro das mentes e da escrita
dos que integravam o mundo clerical.
1 O presente estudo foi originado de pesquisas realizadas no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC), através do projeto intitulado “As artes da cura: a doença e os agentes da cura na Gália Merovíngia”,
sob a orientação e revisão do Professor Doutor Edmar Checon de Freitas.
2
Graduando - Agios/PIBIC/UFF; marcpchacon@gmail.com
3
Doutor - Scriptorium/Agios/PPGH/IHT/UFF; edmarcfreitas@gmail.com
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 283
Desse modo, sob a luz da bibliografia especializada, pretende-se: (i)
expor e analisar as principais correntes historiográficas que se
propuseram a examinar e conceituar o que constituiria a cultura e
religiosidade popular; (ii) apresentar uma breve síntese do processo de
conversão e cristianização no Ocidente alto medieval, adotando-se a
perspectiva favorável ao dinamismo deste processo, sobretudo, marcado
por trocas e influências mútuas; (iii) elucidar a natureza das fontes que
compõem a literatura pastoral; (iv) tecer breves considerações sobre as
principais vantagens e problemáticas de sua utilização no estudo de
crenças e práticas relacionadas à cultura e religiosidade popular e; (v) ao
fim, apresentar uma metodologia apta à utilização de tais fontes, cuja
aplicação demandará pesquisa ulterior.
Cultura e religiosidade popular
A afirmação da história cultural por volta de 1970, uma das filhas da
Escola dos Annales, marca a contestação de um modelo de História apenas
preocupado com fatos singulares de natureza política, diplomática e
militar e com as grandes personalidades, reis, generais e outros líderes.
Pelo
contrário,
objetivou-se
a
construção
de
uma
história
problematizadora do fenômeno social, que fosse voltada para as massas
anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar (VAINFAS, 1997). No
campo dos estudos medievais, essa discussão abarca o estudo do processo
de conversão e cristianização do Ocidente na Alta Idade Média,
engendrando diversos debates na historiografia acerca do que constituiria
a cultura e religiosidade popular.
Assim, no que tange ao debate sobre a cultura e a religiosidade
popular, destacam-se três correntes principais. A primeira, também
conhecida como corrente dualista, é composta por autores como Raoul
284 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Manselli, Etienne Delaruelle4 e Oronzo Giordano (1983). Tais autores se
apoiam na noção de que a religiosidade popular constitui uma expressão
espontânea dos anseios e necessidades das massas e se encontra em
posição diametralmente oposta em relação à cultura clerical, oficial e de
elite (GIORDANO, 1983). Além disso, tal dualidade é evidenciada através
da utilização de certas expressões (que, muitas vezes, encerram em si
conotações negativas), tais como: religion populaire e religion savante;
religião dos intelectuais e religião das massas; religião não oficial e oficial;
grande e pequena tradição; letrados e iletrados (JOLLY, 1996, p.13). Apesar
de frisarem tal oposição entre a cultura e a religiosidade popular e a de
elite, ainda se admite a possibilidade de uma interação dinâmica entre
ambas as formas de religiosidade, estando também tal interação
acompanhada de uma incompreensão mútua (GIORDANO, 1983, p.24).
De tal corrente, surgiu uma vertente que radicaliza uma postura de
“descristianização” do processo de conversão do Ocidente europeu,
destacando o vigor com que a cultura germânica se impôs à cristianização.
Desta forma, segundo autores como Valerie Flint (1991), James Russell
(1994) e Joyce Salisbury (1981), teria ocorrido uma verdadeira
“contaminação” do cristianismo por parte das culturas germânicas, de modo
que a Igreja teria perdido seus traços distintivos e originais, e vinculando-se
a valores que representavam anseios terrenos (BASTOS, 2013, p.33).
Assim, conforme expõe Flint (1991, p.8-9), durante o processo de
conversão, o cristianismo teria adotado elementos mágicos estranhos a
ele, sujeitando-se verdadeiramente à magia de origem pagã. Isso poderia
ser observado no fato de que não só os membros do clero acreditavam em
certos tipos de magia, mas deles necessitavam no esforço empreendido
para impor sua hegemonia no campo do sagrado. Assim, a Igreja teria
4 DELARUELLE, Etienne. La piété populaire au Moyen Âge. Torino: Bottega d’Erasmo, 1975.
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 285
atuado de forma vigorosa, por um lado, na seleção e no resgate de
modalidades mágicas não cristãs capazes de auxiliá-la neste embate e, por
outro, na veemente rejeição de práticas mágicas incompatíveis. O
resultado desse processo, conforme defende a autora, culminaria na
existência de fronteiras incertas e borradas entre a magia e a religião.
Já, para Russell (1994, p.3-4), o encontro dos povos germânicos com
o cristianismo teria resultado em sua transformação ou, mais
propriamente dito, em sua germanização. Isso se deveu à necessidade da
adaptação do cristianismo para que fosse aceito no seio da sociedade
germânica, visto que:
Uma religião que não aparentasse estar preocupada com questões
fundamentais militares, agrícolas e pessoais não poderia esperar ganhar
aceitação entre os povos germânicos, uma vez que a religiosidade germânica
pré-cristã já providenciava respostas adequadas a tais questões (RUSSELL,
1994, p.4, tradução nossa)5.
Assim, através da ação missionária, os anseios e preocupações dos
povos germânicos foram acomodados no cristianismo, integrando sua
ética, doutrina e promovendo sua germanização (RUSSELL, 1994, p.4). A
seu turno, Salisbury6 (1981 apud BASTOS, 2013, p.34) salienta que o
triunfo do cristianismo, através da imposição de sua hegemonia religiosa,
em fins do século VII, só foi possível uma vez que ele obteve sucesso em se
adaptar, equilibrando a preservação da ortodoxia religiosa aos anseios das
populações campesinas pela ritualização de suas relações sociais e controle
da natureza.
5 Texto original: “A religion which did not appear to be concerned with fundamental military, agricultural, and
personal matters could not hope to gain acceptance among the Germanic peoples, since the pre-Christian Germanic
religiosity already provided adequate responses to these matters”.
6 SALISBURY, Joyce E. Lay Piety and Village Culture in Spanish Galicia during the Visigothic Reign. New
Brunswick: Rutgers University, 1981.
286 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Tal corrente foi alvo de severas críticas pelo estabelecimento de
fronteiras extremamente rígidas entre o cristão e o pagão, entre a religião
e a magia. Dessa forma, irromperam análises que buscaram observar a
cristianização como um processo marcado pela “interação dialética entre
conflito e mútua assimilação” (BASTOS, 2013, p.34). A partir destas
análises, forma-se uma segunda corrente que, consubstanciada por
autores como Karen Jolly (1996), Aron Gurevich (1993) e Lucy Grig (2018),
pretende analisar a religiosidade popular como um espaço de trocas e
influências mútuas entre a cultura folclórica e a de elite. Assim, segundo
Jolly (1996, p.9-12), o processo de conversão foi sobretudo dinâmico, não
havendo uma parte passiva, de modo que nem o cristianismo nem a
cultura folclórica germânica atuaram como meros recebedores inertes de
valores e crenças estranhas a eles. Pelo contrário, tal processo foi marcado
por trocas mútuas, assim como conflitos, in verbis:
De modo a compreender as práticas religiosas populares neste período,
devemos inserí-las no contexto deste gradual processo de conversão cultural,
no qual o folclore germânico e a crença cristã tanto se imiscuíram, quanto
buscaram se destruir mutuamente (JOLLY, 1996, p.10, tradução nossa)7.
Além disso, julga-se relevante destacar o entendimento de Aron
Gurevich (1993), segundo o qual a cultura popular estava enraizada na
mentalidade medieval, perpassando todos os setores e grupos da
sociedade, aí incluindo a elite eclesiástica. De forma mais específica, esse
fenômeno pode ser evidenciado ao se analisar a produção literária da Alta
Idade Média. Nestas obras, compostas especialmente por sermões,
hagiografias e penitenciais, os autores eclesiásticos se esforçaram para
7 Texto original: “In order to understand popular religious practices in this period, we need to place them in the
context of this gradual process of cultural conversion, in which Germanic folklore and Christian belief bled into each
other as much or more than they sought to destroy each other”.
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 287
adaptar e adequar os ensinamentos e valores cristãos em uma linguagem
que fosse inteligível aos fiéis, que muitas vezes dispunham de um
conhecimento muito precário do latim. Com tal finalidade em mente, tais
autores, dentre os quais pode-se citar os bispos Cesário de Arles (469/470542) e Martinho de Braga (520-579), fizeram uso de certas imagens e
noções familiares, que apelavam ao horizonte mental de suas
congregações. Isso culminou com a introdução no cristianismo de crenças
e ideias que lhe eram originariamente estranhas (GUREVICH, 1993, p.15). Um exemplo mais preciso nos traz Bastos (2013, p.42), descrevendo
um conjunto de orações e rituais presentes no Liber Ordinum, que eram
voltados para garantir a fertilidade dos campos. Tal prática seria um
verdadeiro exemplo da mencionada assimilação entre a religião formal e
a popular, voltada à satisfação de um anseio popular.
Em consonância, Lucy Grig (2018, p.67) leciona que a cultura popular
constitui um fenômeno verdadeiramente abrangente, não se restringindo
a um grupo particular da população. Nesse sentido, ela não se origina de
“baixo pra cima”, o que a levaria a se identificar com a cultura do povo,
dos membros subalternos da sociedade (como argumentam os membros
da primeira corrente). Pelo contrário, a cultura e a religiosidade popular
era compartilhada pelos vários subgrupos sociais, fato este que pode ser
verificado pelo temor que as elites locais, assim como os clérigos,
participassem de atividades e ritos devocionais proscritos8. Ademais,
salienta a autora, a religiosidade e cultura popular estabelece diversas
relações com a elite e cultura oficial, estando ainda intimamente
relacionada às esferas mais amplas da sociedade, da economia e da
ideologia.
8 Exemplo disso pode ser visto no cânone LXI do Segundo Concílio de Braga de 572, que proscreve aos clérigos a
prática de encantamentos e a confecção de ligaduras: “De eo quod non liceat sacerdotibus vel clericis incantaturas et
contrarias ligaturas facere.”
288 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Em relação à terceira corrente, conforme enuncia Bastos (2020), esta
é mormente minoritária, sendo integrada por autores, tais como Carlo
Ginzburg9 (2006), Steven Sangren10 (1984) e o próprio Bastos (2013). Para
tais autores, a religiosidade popular não chegou a integrar um todo
partilhado pelo conjunto ou maior parte da sociedade (tal como entende a
segunda corrente), mas, antes, é vista como um espaço de conflitos e de
criação, exprimindo as relações de dominação e resistência que se dão no
seio de tal sociedade. Nesse sentido, a religiosidade popular é aquela ligada
aos setores subalternos da sociedade, especialmente os camponeses. Tal
religiosidade, pode-se colocar, incorpora certos elementos da religiosidade
oficial, eclesiástica e de elite, ressignificando-os de acordo com sua própria
experiência, e forma, com isso, uma base de formulação que é alheia à
Igreja, nunca sendo completamente controlada por ela.
O processo de cristianização e o advento da literatura pastoral
Dando seguimento, busca-se estabelecer um panorama geral do
Ocidente europeu durante os primeiros séculos da Alta Idade Média. Nesse
sentido, Bastos (2009, p.49) observa que o cristianismo, por volta dos
séculos V e VI, havia se expandido de forma restrita, limitando-se quase
que completamente aos meios urbanos, ao passo que os vastos
contingentes da população rural campesina permaneciam como pagãos,
arraigados a antigos costumes e práticas. De forma mais abrangente,
Filotas (2005, p.38-42) assevera que, neste período, o cristianismo já
estava alicerçado nas grandes regiões pertencentes ao antigo Império
Romano, tais como a Gália, a Ibéria e a Bretanha. Todavia, com o deslinde
9 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
10 SANGREN, P. Steven. Great Tradition and Little Traditions Reconsidered: The Question of Cultural Integration
in China, Journal of Chinese Studies, 1. 1, 1984, 1- 24.
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 289
das ondas migratórias germânicas, houve uma verdadeira reemergência
de um paganismo popular, sobretudo nas áreas rurais.
Esse processo, como salienta Le Goff (1979, p.211), foi marcado por
uma regressão, que se deu na forma da ressurgência de técnicas,
mentalidades e crenças tradicionais. Além do mais, tendo em vista que
muitos dos reinos germânicos tais se converteram ao cristianismo, mas à
vertente ariana, tida pela Igreja como herética (caso dos visigodos), foi
necessário, segundo Filotas (2005) que a Igreja realizasse uma verdadeira
“reconversão da europa”, trazendo os pagãos e hereges arianos ao seio do
cristianismo ortodoxo.
Assim, deparando-se com esse universo de práticas e crenças
estranhas ao cristianismo, muitas vezes designadas como sobrevivências
pagãs, ou seja, vestígios de um passado remoto que remontam à
Antiguidade Clássica, mas incompatíveis com a nova religião. Diante disso,
a Igreja, sobretudo pela ação dos bispos e párocos, se lança a um processo
de conversão e cristianização, buscando hegemonizar tanto a crença,
quanto a consciência dos crentes (BASTOS, 2013).
Dessa forma, segundo Filotas (2005), a cristianização se desenvolveu
em duas fases distintas: a primeira diz respeito à “fase missionária”,
efetivada pela ação de missionários frente aos reis tribais, não às massas,
adotando-se o princípio de que a conversão do rei implicaria na conversão
da população. Essa ação afetou sobretudo as formas exteriores da vida
religiosa, através do batismo da população, da supressão dos cultos pagãos
públicos, destruição de seus templos, altares e ídolos, ação que era seguida
da instituição, em seu lugar, das estruturas e rituais da Igreja. Todavia, as
atitudes e crenças que davam sustento aos cultos privados e à religião
doméstica persistiram. Já, a segunda fase, conhecida como “fase pastoral”,
seguiu-se através da implantação de uma rede de paróquias e monastérios
nas áreas rurais, que ficavam sob a administração de um bispo, sendo
290 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
periodicamente visitados por ele. O objetivo principal de tal fase dizia era
o de inculcar valores cristãos nos fiéis, educando-os a assumirem atitudes
em conformidade com os preceitos previstos pela Igreja, o que se dava
através do desenvolvimento de uma liturgia, da utilização da pregação e
do uso da confissão (FILOTAS, 2008, p.42).
Nesse ínterim, difunde-se pela Alta Idade Média uma série de
documentos, que cumpriam a função de educar, repreender e admoestar
os fiéis recalcitrantes nas inúmeras práticas consideradas supersticiosas e
pagãs: a literatura pastoral. Aprofundando essa temática, Filotas (2005,
p.42) conceitua a literatura pastoral simplesmente como o conjunto de
fontes que tratam do cuidado pastoral, isto é, da formação doutrinária dos
fiéis e seu bem-estar moral, espiritual e físico, buscando evitar os possíveis
desvios da ortodoxia e a retomada de práticas associadas ao paganismo e
superstições. Assim, contidos em tal gênero literário, encontram-se os
sermões, certas fontes legislativas (abarcando tanto leis eclesiásticas
quanto seculares que tratem de assuntos ligados à religião) e penitenciais,
documentos estes que, em diferentes escalas, ocupam-se das ações e
crenças dos fiéis. Incidentalmente, as hagiografias podem ser utilizadas,
mesmo que não façam parte da literatura pastoral, visto que, em sua
narrativa, as virtudes e proezas do santo são, muitas vezes, demonstradas
na forma com que este lidava com os pagãos e outros desviantes da fé
(FILOTAS, 2005).
Dito isso, pode-se arguir que o principal valor do uso de tais fontes
corresponderia ao fato das informações sobre as crenças e práticas
registradas terem sido obtidas a partir da observação direta, por parte dos
clérigos, em relação ao comportamento e costumes de suas congregações.
Todavia, até mesmo essa assertiva é questionada por alguns autores e,
quando somada a outros questionamentos, põe em xeque a viabilidade e a
significância de tais documentos como fontes para o estudo da cultura e
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 291
religiosidade popular. Destarte, um primeiro questionamento levantado
diz respeito à nítida hostilidade dos autores eclesiásticos às práticas e
crenças registradas. Estas eram associadas diretamente ao paganismo ou
a meras tolices supersticiosas, devendo ser prontamente erradicadas. No
que tange a seus praticantes, a estes eram atribuídos muitos nomes, tais
como como mulierculae, rustici e idiotae, denotando o escárnio e a
depreciação por eles sentidos. Assim, pode-se dizer que a religiosidade
contida em tais fontes é a religiosidade combatida, conhecida
indiretamente através de textos produzidos por clérigos que ressaltam seu
caráter aberrante e desviante do modelo de piedade oficial cristão
(GIORDANO, 1983, p.10-11).
Um segundo ponto, e possivelmente o mais polêmico, diz respeito à
repetida utilização, não só de certas temáticas, mas de fórmulas e
expressões padronizadas para designar práticas similares que se deram
em localidades e temporalidades diferentes, o que põe em dúvida se a
informação registrada foi proveniente da observação direta da realidade
do autor, ou se constitui meramente a reprodução de uma tradição
literária eclesiástica (FILOTAS, 2005). Um exemplo disso diz respeito à
prática recorrente em vários textos de se realizar votos a árvores, que é
expressa na fórmula vota ad arbores. A questão é que tal fórmula não
indica as diferenças que poderiam ter existido de acordo com o tempo e o
lugar - quais tipos de árvores eram cultuadas? Quais tipos votos e rituais
eram feitos? Conforme aponta Filotas (2005, p.50), um grave problema é
que essa reiteração de palavras e frases cria a aparência enganosa de um
paganismo popular homogêneo que se estenderia por toda a Europa,
desconsiderando variações locais e regionais na natureza dos atos
devocionais e dos próprios objetos de devoção.
Junto a essa questão, tem-se a problemática da falta de uma descrição
detalhada das práticas alistadas, o que poderia significar que o fato
292 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
registrado era de conhecimento comum, não sendo necessária sua
descrição nos pormenores; ou um desprezo pelo o que era considerado
pagão; ou mesmo um conhecimento inadequado, pelo autor, da linguagem
ou costumes de sua congregação (FILOTAS, 2005, p.49).
Uma última questão que merece ser citada tem relação com a
utilização intercambiável e generalizante de termos latinos (além de suas
múltiplas grafias), que acarretam o obscurecimento da natureza de certas
práticas e de seus praticantes. Um exemplo disso diz respeito aos
praticantes de artes divinatórias, conhecidos por nomes como sortilegi,
divini, arioli, haruspices, auguri, caragii. Ora, se no latim clássico, tais
termos designavam praticantes de formas específicas de adivinhação, no
período medieval eles já se encontram esvaziados de seus sentidos
originais, sendo utilizados por vezes em conjunto, mas sem que se
estabeleça a distinção entre eles. Qual o perfil dos praticantes, seu status
social e grau de formação? Qual sua área ou técnica de especialização?
(FILOTAS, 2005, p. 219).
Ante o exposto, deve-se indagar: em que medida se pode utilizar a
literatura pastoral no estudo dos fenômenos da cultura e religiosidade
popular, especialmente tendo em conta a questão da extrema repetição de
temas e fórmulas? Nesse ponto, a historiografia apresenta grande
divergência. Por um lado, Filotas (2005, p.46) cita autores como Wilhelm
Boudriot11 (1964) e Dieter Harmening12 (1997), que advogam pela
impossibilidade da utilização de tais fontes. Segundo eles, em virtude das
repetições (e cópias feitas de obras anteriores), tais textos só provam a
persistência de uma tradição literária eclesiástica e fornecem pouca
11 HARMENING, Dieter. Superstitio: Überlieferungs und theoriegeschichtliche Untersuchungen zur kirchlichtheologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters. Berlin, 1979.
12 BOUDRIOT, Wilhelm. Die altgermanische Religion in der amtlichen kirchlichen Literatur des Abendlandes
vom 5, bis 11. Jahrhundert. Darmstadt, 1964.
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 293
credibilidade aos costumes das pessoas no tempo e lugar em que foram
escritos.
Já, no ponto de vista de Yitzhak Hen (2001, p.45-46), a repetição
sistemática da proibição de certas práticas, classificadas como pagãs ou
supersticiosas, na literatura pastoral, por mais que resulte da adoção de
uma convenção literária preestabelecida, acaba por refletir uma realidade,
só que uma realidade mental ao invés de prática. Assim, o conjunto textual
que compõe a literatura pastoral pode ser utilizado como evidência para o
que seus autores pensavam que deveria ser proibido, e não como indícios
para os fatos em si, visto que não espelham a realidade empírica.
Em posição diametralmente oposta, Jean Gaudemet13 (1985 apud
FILOTAS, 2005, p.46) defende a possibilidade de utilização de tais fontes,
argumentando que a repetição frequente de temas constitui, na verdade,
prova do descumprimento sistemática dos cânones, demonstrando, com
isso, a persistência e o vigor das práticas registradas.
Por sua vez, os autores Aron Gurevich (1993), William Klingshirn
(1994) e Jean-Claude Schmitt14 (1988 apud FILOTAS, 2005, p.46-47) vêem
a repetição de temas como a “prova da estabilidade do fenômeno vital”, ou
seja, que tais práticas e crenças permaneceram constantes na consciência
do homem medieval, tendo, assim, conexão com a realidade que eles
foram compostos e podendo ser utilizadas para o estudo da cultura e
religiosidade popular. Demonstrando grande simpatia por esta corrente,
Filotas (2005, p.47) argumenta a favor da relevância desta documentação
para o estudo da cultura e religiosidade popular, visto, especialmente, o
caráter prático das informações registradas, ligado à resolução de questões
concretas. Assim, mesmo que se possa verificar o empréstimo, ou mesmo
13 GAUDEMET, Jean. Les sources du droit de l’Église en Occident du IIe au VIIe siècle. Paris, 1985.
14 SCHMITT, Jean-Claude. Les superstitions. In: LE GOFF, Jacques; RÉMOND, René (ed.). Histoire de la France
religieuse. Paris, 1988;
294 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
a cópia, de passagens de textos anteriores, tal cópia nunca é feita de forma
indiscriminada, mas, sim, seletiva, tendo relevância para o enfrentamento
de uma situação atual aos autores. Todavia, faz-se necessário que se adote
uma perspectiva cautelosa, empregando-se estratégias e metodologias que
sejam propícias à análise crítica dos registros contidos na literatura
pastoral.
Uma proposta metodológica
Tendo em mente essa problemática, Bernadette Filotas (2005, p.48)
adotou a proposta metodológica de Rudi Künzel (1992)15 e a adaptou. Tal
metodologia baseada na análise comparativa dos documentos se presta a
auxiliar o historiador a melhor identificar quais registros têm maior
probabilidade de serem baseados na observação direta da realidade e não
na tradição literária. Expressa em dez critérios a serem levados em
consideração durante o exame das fontes, tal metodologia, a grosso modo,
procura observar se há a repetição de certas práticas em outros textos o
grau de conformidade de determinada prática registrada em relação a um
paradigma ou estereótipo, dando grande atenção aos termos utilizados
para designar tais práticas e suas qualificações.
Assim, tal método pode ser resumido em: (i) observar se há a
descrição de práticas similares em textos de outros gêneros literários; (ii)
examinar se há o uso de um termo novo, não estereotipado, para designar
uma prática em que poderia ser empregado um termo padronizado; (iii)
atentar se há a descrição da mesma prática em dois textos independentes,
escritos em períodos de tempo distantes, mas que se referem à mesma
localidade. (iv) verificar se nos textos há interpretações diferentes da
mesma prática; (v) observar se um novo elemento foi adicionado à prática
15 KÜNZEL, Rudi. Paganisme, syncrétisme et culture religieuse au haut moyen âge: Réflexions de méthode.
Annales ESC 4-5, 1992.
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 295
de um ritual antigo (levando em consideração o contexto histórico); (vi)
atentar para o uso de um termo da língua vernácula em um texto latino;
(vii) considerar a finalidade do texto (e também podemos adicionar, todo
seu contexto de produção); (viii) apurar o grau de conformidade da prática
descrita com um estereótipo estabelecido; (ix) observar se há a existência
de um elemento a qual é dado uma interpretação incongruente com o
cristianismo; (x) investigar se há a omissão de um elemento importante
dentro de uma lista de termos estereotipados para determinada prática.
No que cabe à aplicação dessa metodologia no tratamento de fontes
alto medievais e posterior apresentação dos resultados, isso demandará
um trabalho ulterior, de maior extensão e aprofundamento, excedendo aos
objetivos e ao imperativo de brevidade do presente estudo.
Conclusão
Portanto, diante do que foi trabalhado, pode-se, primeiramente,
analisar as divergências historiográficas acerca do conceito e das
implicações relativas à cultura e religiosidade popular. Assim, a primeira
corrente apresenta um caráter dualista, defendendo que a cultura e
religiosidade popular está ligada aos setores subalternos da sociedade,
principalmente às populações campesinas, opondo-se veementemente à
sua contraparte clerical, ligada às elites sociais. Desta, irrompeu uma
vertente que mantém o caráter dualista, mas insiste na perspectiva de uma
“contaminação” ou “germanização” do cristianismo mediante seu contato
com as populações germânicas.
Por sua vez, a segunda corrente observa a cultura e a religiosidade
popular como um “ponto de encontro”, no qual se desenvolvem trocas e
influências entre a cultura folclórica e a de elite. Assim, quando se fala em
cultura e a religiosidade popular, deve-se ter em mente que esta atravessa
todos os setores e estamentos sociais, moldando a mentalidade do homem
296 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
medieval. Já, a terceira corrente, tendo uma natureza minoritária, analisa
a cultura e religiosidade popular como um espaço de conflitos, que
exprime as relações de dominação e resistência que se desenvolvem no
interior da sociedade, estando relacionada principalmente à população
campesina.
Ainda, foi possível, aliando-se à perspectiva da segunda corrente,
observar o processo de conversão e cristianização como um processo
dinâmico em que a Igreja buscou alicerçar sua hegemonia e centralidade
no campo das relações humanas com a esfera do sagrado. Para isso, junto
à ação de bispos e párocos, desenvolveram-se gêneros literários que
buscaram não só traduzir os preceitos fundamentais do cristianismo em
uma linguagem inteligível pelas congregações de fiéis, mas repreendê-los
por sua recalcitração em práticas e crenças de origem pagã ou de caráter
supersticioso. Assim, intentou-se discutir as principais vantagens e
problemáticas oferecidas no estudo da literatura pastoral, apresentando os
argumentos dos principais estudiosos. No que tange às vantagens, estas
dizem respeito ao fato de que os registros adviriam da observação direta
da realidade por parte dos autores eclesiásticos, e sua reiteração em
documentos posteriores seria decorrente do descumprimento sistemático
das proscrições ou constituiria uma verdadeira prova que tais práticas e
crenças eram constantes na mentalidade medieval. Todavia, tal noção é
posta em dúvida, visto a hostilidade dos autores eclesiásticos às práticas e
crenças registradas, a repetição de termos e expressões padronizadas, a
falta de uma descrição detalhada das práticas alistadas e a utilização
intercambiável e generalizante de termos latinos.
Por fim, apresentou-se brevemente a metodologia proposta por Rudi
Künzel (1992) e adaptada por Bernadette Filotas (2005), que se propõe a
analisar crítica e comparativamente o universo de práticas e crenças
Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 297
presente em tais fontes, indicando-se, ainda, a necessidade de pesquisa
posterior.
Referências
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VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de Teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
O Brasil Republicano
Capítulo XVII
Emergências da branquitude na historiografia
brasileira: possibilidades de análise
Gabriel Ribeiro da Silva 1
A jornada de ir atrás de documentos que possam acalmar a
inquietude de pessoas alarmadas pelas questões do passado, sempre me
fazem desdobrar diversos questionamentos sobre as decorrências
científicas da História e suas metodologias. Mas, principalmente, fico
indagado pelas preocupações e questionamentos que historiadores e
historiadoras fazem em seu tempo para esses documentos. É por essa
razão que as revisões bibliográficas se tornam importantes, pois
desvendam emergências historiográficas e abrem possibilidades de
análises para as pesquisas.
Em uma dessas jornadas, um inquérito criminal do Arquivo Público
do Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre, me fez questionamentos
que eram dispersos das possibilidades que ele aparentava me mostrar. O
caso desvendou apontamentos cruciais em questões de raça, gênero e
classe, por mostrar um conflito em um grande centro urbano. Porém, ao
mesmo tempo, o inquérito parecia incompleto, apenas com as descrições
das ações, exames de delito e a sentença final do réu. A partir dessa
característica, consegui deduzir que não se tratava apenas de uma análise
de raça, gênero e classe a partir da opressão ocorrida no conflito, mas
também desses três elementos de análise na elaboração da documentação
do inquérito.
1
Doutorando – UFRGS; gabrielisribeiro@yahoo.com.br
302 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Ou seja, tratava-se de um caso de racismo, sexismo e classismo
também na forma que foi conduzida a investigação criminal, assim como,
nas ações das pessoas envolvidas no caso. Percebi que interpretar a
opressão iria limitar a complexidade do documento e do caso, pois ambas
características me alertavam para uma possibilidade de análise de uma
emergência historiográfica. O acontecimento tratava de questões sobre
opressões sociais e, fundamentalmente, indagava a presença de privilégios
raciais e simbólicos.
Por conta disso a branquitude se tornou uma emergência da
historiografia brasileira. A branquitude é o estudo da identidade racial das
pessoas brancas a partir da ideia do branqueamento, buscando investigar
quais são, como um grupo racial, suas táticas de organização para
preservar suas superioridades raciais, sociais e econômicas na sociedade
(BENTO, 2002, p. 27). A branquitude compreende a existência de uma
hierarquia racial, onde pessoas brancas estão no local mais elevado, tanto
pela positividade de suas atribuições físicas que são construídas como o
ideal, quanto pelas suas posições de escolha nos espaços, que as fazem
obter vantagens econômicas, jurídicas e territoriais em diversos lugares
do mundo (CARDOSO, 2020, p. 12).
Esse ensaio tem o objetivo de explicitar os principais trabalhos que
utilizam a branquitude como um campo de pesquisa, e que de alguma
forma, transformam esse campo em metodologia de pesquisa. Procurarei
expor as variáveis da branquitude, estipular algumas ferramentas
analíticas para o estudo histórico sobre a branquitude, e em seguida, expor
as especificidades do caso que encontrei no Arquivo Público do Rio Grande
do Sul, que pode auxiliar na identificação de documentos onde esse grupo
racial atua de forma literal ou simbólica. A branquitude é uma emergência
de pesquisa no momento que continua no silêncio estático de sua formação
social. Ou seja, assim como pessoas brancas não se veem como pessoas
Gabriel Ribeiro da Silva | 303
racializadas e tomam a decisão de não falar sobre raça, o campo de estudos
sobre a branquitude acaba se encontrando nesse mesmo local de
"ninguéndade",2
de
desconhecimento
e
principalmente
de
desimportância. Portanto, esse ensaio pretende contribuir para algumas
diretrizes do campo de estudo e sobretudo salientar a racialização de
brancos e brancas.
O campo da branquitude
A
branquitude
como
campo
de pesquisa
foi idealizada,
primordialmente, por pessoas que não são consideradas cientistas: negros
e negras. Lourenço Cardoso, em uma investigação específica sobre a
afirmação acima, salienta que ao pesquisar com pessoas brancas que
pesquisam pessoas negras, enfrentou problemas estruturais, onde parecia
improvável o estudo centrado nas pessoas brancas como um problema das
relações raciais. Ele afirma: "no ambiente acadêmico, ser branco significa
ser cientista, o cérebro, aquele que produz o conhecimento" (CARDOSO,
2020, p. 17). Cardoso, como um pesquisador negro, seria uma "ameba
revoltada", desencadeando a "revolta do micróbio", porque estaria
revertendo a ordem dos estudos das relações raciais no Brasil: o estudado
estudando o estudioso (ou seja, o negro estudando o branco).
A ousadia de reverter o objeto, ocorreu primeiramente com o
sociólogo estadunidense W. E. B. Du Bois. Em alguns ensaios e
principalmente em duas obras principais entre 1920 e 1935, ele
compreendeu que trabalhadores brancos dos Estados Unidos, mesmo
exercendo a mesma função de trabalhadores negros e recebendo salários
tão baixo quanto o deles, detinham de melhores condições de trabalho,
2 Conceito travado por Lourenço Cardoso como resposta à questão: “existe branco no Brasil?”, e a resposta ser “não”
é atribuir isso a uma “ninguendade” que apenas pessoas racialmente brancas podem se colocar. Ver mais: CARDOSO,
2020, p.42-43.
304 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
sendo direcionados para esferas públicas bem localizadas e urbanizadas, o
que Du Bois chamou de "salário psicológico" (DU BOIS, 1995, p. 700–701).
Assim como os esforços não-ficcionais de James Baldwin, em 1963, ao
localizar
os
problemas
de
humanidade
das
pessoas
brancas
estadunidenses, que praticaram durante século ações de terrorismo contra
a população negra através da escravidão, assassinatos, estupros e políticas
de permanência sub-humana de pessoas racializadas (BALDWIN, 1963, p.
22).
Academicamente, o campo Whiteness studies, em contexto
estadunidense, começou a reverberar entre cientistas brancos e brancas,
onde se destaca as obras de Ruth Frankenberg e David Roediger.
Em meados dos anos 1990, nas universidades americanas, fortalecem-se as
tendências de investigação em que o branco é tomado como objeto de estudo.
Esses trabalhos ficaram conhecidos como estudos críticos da branquitude. A
formulação e a aplicação do conceito branquitude alterou o modo como se
pesquisava a categoria raça na sociedade estadunidense. Antes se presumia
que a abordagem sobre as relações raciais deveria se restringir aos grupos
classificados como negros, e/ou grupos não-brancos, contudo, as pesquisas
acerca da identidade racial branca evidenciaram que, como com qualquer
outro grupo étnico e racial, o estudo sobre as relações raciais se beneficia com
a pesquisa sobre o branco (CARDOSO, 2008, p. 174).
No Brasil, embora tenhamos a compreensão das influências dos
Whiteness studies e incorporarmos as críticas e reflexões nas análises, as
contribuições também são anteriores aos anos 1990. A obra “Patologia
social do ‘branco’ brasileiro” do sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro
Ramos, em 1957, se torna pioneira por dois pontos. O primeiro, seria que
o artigo trazia uma análise completamente diferenciada sobre a presença
das pessoas brancas na sociedade brasileira. Além do caráter econômico,
como colaborado por Du Bois, Guerreiro pauta a questão da dominação
Gabriel Ribeiro da Silva | 305
social por pessoas brancas a partir de elementos fixados em violência e um
sistema de pseudojustificações que causaria os estereótipos da sociedade
brasileira. Tudo isso seria fruto de uma patologia social que levaria
brancos/brancas a negarem sua descendência negra, sendo o "pardo" se
classificando como branco, o negro sendo classificado como pardo e toda
a população negra brasileira desaparecendo por conta de um
embranquecimento patológico (RAMOS, 1995, p. 215-240). Em segundo,
por conta do impacto social que o artigo teve no meio acadêmico brasileiro,
sendo fruto de uma luta do movimento negro, do qual, no momento,
Ramos fazia parte. A teoria influenciou o movimento negro a estimular o
estudo da presença do branco nos problemas das relações raciais nos anos
posteriores, principalmente na área da Sociologia (CARDOSO, 2008, p.
188).
Os esforços de Guerreiro Ramos desencadearam obras importantes
para a formação do campo da branquitude no Brasil. A tese de 2002 da
psicóloga e integrante do movimento negro Maria Aparecida da Silva
Bento, foi a primeira pesquisa de fôlego sobre a temática e permaneceu
com essa posição durante anos na academia brasileira. Bento investigou
como funcionários públicos brancos da área de Recursos Humanos de dois
municípios, discursam e versam suas escolhas para o mercado de trabalho
a partir do pertencimento racial. A escolha desses trabalhadores fica a
cargo de um pacto narciso que pessoas brancas têm em empregar outras
pessoas brancas por conta da confiança e cumplicidade que o branco lhe
transmite (BENTO, 2002, p. 70-120). Essa ação, para Bento, é balizadora
para a manutenção da hierarquia racial que sobrepõe as pessoas brancas
em um sistema de privilégios raciais, materiais e simbólicos palpáveis. As
pessoas brancas seriam, portanto, as únicas pessoas possíveis de conseguir
esses empregos, sendo assim, produzindo a manutenção de suas posições
sociais e econômicas de poder (CARDOSO, 2008, p. 198-199).
306 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Após a publicação da tese, Bento colaborou em alguns trabalhos
juntamente com Iray Carone, explorando em alguns pontos as reflexões
anteriores no livro “Psicologia social do racismo”, principalmente sobre
sua atuação como coordenadora no Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades (CEERT). Na comunicação social, é importante
salientar as visões críticas de Liv Sovik entre 2002 e 2004 sobre a
influência da mídia na manutenção de estereótipos e padrões sociais, bem
como sua defesa pela branquitude como um campo de pesquisa
(CARDOSO, 2008, p. 189).
Os anos 2010, para o campo da branquitude, se mostrou mais fértil e
promissor para revisões teóricas e aumento da produção bibliográfica. Em
2012, Lia Vainer Schucman se torna a primeira pesquisadora branca a
defender uma tese de doutorado sobre branquitude na Psicologia Social. A
premissa de sua pesquisa foi entender as diferenciações que
representações de corporeidade que traz a noção de raça e classe social
podem formular uma hierarquia racial entre pessoas brancas na cidade de
São Paulo. Além dos resultados, Schucman trouxe elementos importantes
para o processo de pesquisa na temática, como por ser branca (o mesmo
foi sinalizado por Edith Piza), ter facilidades na hora de acessar pessoas
brancas, aplicar os questionários ou manter diálogo com interlocutores/as
(CARDOSO, 2020, p. 151). Um ano depois, mais uma pesquisadora branca
defende uma tese no Serviço Social. Ana Helena Ithamar Passos salienta a
importância de uma nova forma de racialização para a compreensão das
relações raciais, e para isso, ela fez um trabalho de reflexão sobre a
identidade racial branca com estudantes brancos/as que se viram
confrontados com as teorias da branquitude, trazendo negação, autocrítica
e uma interpretação da racialização brasileira de pessoas brancas mesclada
com classe. Depois de Passos, alguns trabalhos estavam sendo
desenvolvidos.
Gabriel Ribeiro da Silva | 307
Em 2014, o sociólogo Lourenço Cardoso defende e publica sua tese,
depois lançada em livro com o título “O branco ante a rebeldia do desejo:
um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto
científico tradicional”, em 2020. O objetivo da pesquisa foi entrevistar uma
gama de pesquisadores/as brancos/as que consequentemente investigam
"o negro brasileiro" e questionar o porquê eles/elas esquecem de si.
Lourenço tensiona as motivações de pessoas brancas cientistas em
debruçar-se sobre as pessoas negras como um tema de pesquisa,
articulando isso com a teoria crítica da branquitude. Sugiro que esse tenha
sido o estudo de maior impacto no quesito de extrapolar as possibilidades
teóricas do campo da branquitude. Somando sua formação de historiador,
Lourenço utilizou da literatura acadêmica sobre a construção da sociedade
brasileira e conseguiu traçar a formação histórica da população branca,
utilizando da teoria dos "degredados" que formaram as colônias após a
invasão de Portugal no, hoje em dia, chamado Brasil (CARDOSO, 2020, p.
25-68). Esse ponto histórico de pessoas brancas é crucial para uma
possibilidade de pesquisa histórica com investigação em documentações e
outras fontes. Por ser um ponto importante, retomarei de forma detalhada
no próximo subtítulo abaixo.
As produções que utilizaram o campo da branquitude como temática
ou teoria crítica, cresceram de forma contundente a partir de 2014. Em
uma pesquisa no portal Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, com
a palavra-chave "Branquitude", foram encontrados 71 trabalhos entre
dissertações ou teses sobre o tema entre 2000 e 2019. Entre 2000 e 2013,
foram registradas a produção de uma ou duas investigações do tema por
ano, sendo em 2001, 2004, 2006 e 2008 sem registro algum no portal.
Como afirmado acima, depois de 2014, as pesquisas cresceram de forma
notável, tendo o recorde de 23 teses ou dissertações apenas em 2018. Em
relação às áreas, se destaca em primeiro lugar a Educação, e logo em
308 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
seguida, disputam a Psicologia e a Sociologia. Sobre teses e dissertações na
área da História, encontra-se apenas 5. Para lisura, apontarei as
contribuições desses trabalhos.3
A primeira obra da área de História de 2016, escrita por Beatriz Floôr
Quadrado, investiga o concurso de beleza “Miss Mulata” na cidade de
Arroio Grande, interior do Rio Grande do Sul. Essa terminologia "mulata",
ao se referir a mulheres negras, seria uma maneira de ser negra e "menos
preta", ou seja, mais perto do que a autora denomina "branquitude
normativa" por ter a estética branca como representante de humanidade
(QUADRADO, 2016, p. 45-92). Em 2017, Aline Dias dos Santos investigou
a forma que mulheres negras são representadas em livros didáticos de
História do ensino médio como pessoas subalternizadas. Por ser em
pequeno número a referência a mulheres negras, Santos faz uma relação
com a permanência da branquitude e da colonialidade para tal feito
(SANTOS, 2017, p 71-140). No mesmo ano, Rafael Filter Santos da Silva
apresentou uma investigação sobre a construção da branquitude e da
negritude nos Estados Unidos a partir das noções religiosas da Nação do
Islã (SILVA, 2017, p. 31-43). Já em 2019, Kerollainy Rosa Schütz investigou
sobre o ensino da história indígena em cursos de ensino superior em
História, e o impacto na vida de estudantes brancos através do estudo
crítico da branquitude (SCHÜTZ, 2019, p. 65-73). E a última dissertação
sobre o tema na História, também de 2019, investigada por Fábio Dantas
Rocha, conseguiu sinalizar conflitos raciais entre brancos pobres e pessoas
negras descendentes de escravizados no final do século XIX e metade do
XX (ROCHA, 2019, p. 153-203).
Essas obras salientam que a área da História, enquanto ciência, está
de forma inicial, incorporando as teorias dos estudos críticos da
3 Dados recolhidos do site Catálogo de Teses & Dissertações - CAPES.<catalogodeteses.capes.gov.br>. Acesso em: 24
de novembro de 2020.
Gabriel Ribeiro da Silva | 309
branquitude em suas reflexões. Porém, todas as cinco obras citadas acima
não usam as pessoas brancas como ponto principal de análise. Ou seja, não
fazem uma plena interpretação histórica sobre a composição dessas
pessoas enquanto grupo privilegiado de forma racial, material e simbólica.
Os cinco trabalhos utilizam o "outro", que seria as pessoas negras ou
indígenas, como contraponto para compreender as atitudes racistas ou
racialistas da branquitude. A análise é digna e necessária, mas não
consegue incorporar as preocupações do campo da branquitude, que está
nas vias de investigar a fundo a construção social e histórica de um grupo
racial ainda em plena análise: a população branca.
Construção histórica de pessoas brancas brasileiras
Consigo perceber que compreender as formas históricas que foram
constituídos todos os atributos sociais de pessoas brancas brasileiras em
nosso contexto, é necessário para uma ampla discussão e debate sobre o
campo da branquitude de forma científica. Como percebemos acima, as
pesquisas históricas que utilizam os estudos críticos da branquitude ainda
não se encontram em plena problemática sobre desvendar a historicidade
da população branca. Tal fato é compreensível, se analisarmos a rota do
caminho percorrido pela temática na academia brasileira, iniciado de
forma contundente após os anos 2000 no âmbito da Psicologia Social.
Internacionalmente, temos alguns trabalhos que auxiliam na
“história das pessoas brancas”, de alguma forma. A obra The History of
White People, da historiadora estadunidense Nell Irvin Painter, de 2010,
acompanha a trajetória de pessoas que hoje em dia são racialmente
conhecidas como brancas desde os primórdios da Grécia antiga, onde não
existia a ideia de raça social, apenas de classe e etnia, e até a constituição
do “homem branco livre”, que surgiu nos Estados Unidos no fim do século
XVIII e reverbera até hoje (PAINTER, 2010). Já no Brasil, não existe um
310 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
livro que se debruce sobre essas especificidades, mas há uma incansável
literatura científica que indica os primórdios da chegada de pessoas
brancas no Brasil, antes mesmo do início da colonização com a invasão
portuguesa. Resgatar, unir e dar uma nova interpretação a essas obras é
um trabalho necessário para uma mudança metodológica que insira os
estudos críticos da branquitude enquanto elemento chave na
historiografia brasileira.
O início para a compreensão histórica dessa população a partir dos
estudos críticos da branquitude, foi organizada no livro “O branco ante a
rebeldia do desejo”, do sociólogo Lourenço Cardoso, já citado
anteriormente. Na pesquisa, ele reúne literários brasileiros que
escreveram livros considerados “canônicos” sobre a história do Brasil,
como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e elabora características pontuais que
esses autores escreveram e traça um panorama histórico do que ele chama
de “A construção histórica do branco não branco” (CARDOSO, 2020, p.
27). Sua principal teoria é que, segundo esses autores, o "branco
brasileiro" é miscigenado, e não por conta apenas dos processos históricos
do Brasil, mas pela sua história no "Velho Mundo". Uma parcela das
pessoas
brancas
brasileiras,
seriam
descendentes
diretas
de
portugueses/as que vieram de forma "degradada" para o Brasil. Em
Portugal, essas pessoas, de certa forma europeias também, eram vistas
pelas grandes potências brancas como "os negros", pois tinham uma
"mistura" cultural e biológica com mouros, asiáticos e africanos. Ou seja,
no outro lado do oceano, descendentes das pessoas brancas brasileiras
eram vistos politicamente como "brancos-não brancos". Cardoso afirma
que as pessoas ibéricas só se transformaram brancas em sua plenitude, ao
entrarem em contato com pessoas não-brancas na América, especialmente
no Brasil, a partir do contato com indígenas e do sequestro de pessoas
africanas.
Gabriel Ribeiro da Silva | 311
De forma geral, o branco não-branco, ou “branco-Aqui”, que colonizou,
“civilizou,” terra e gente, no futuro, seus descendentes tornar-se-ão brancos
brasileiros, quando o fenótipo permitir, principalmente. Os brancos não se
tornarão identidades “hifenizadas”, como é o caso
dos afro-brasileiros,
quando se refere somente aos negros, tornar-se-ão apenas brancos, “brancosAqui”. Porém, em outros espaços territoriais podem ser considerados nãobrancos, como é o caso da Inglaterra, em que o branco-Aqui (Brasil), pode ser
considerado um não-branco-Lá (Inglaterra) (CARDOSO, 2020, p. 30).
Essas afirmações e teorias são inspiradas na vasta produção
sociológica e historiográfica sobre a "composição do povo brasileiro".
Embora se entenda a posição "não-branca" do "branco brasileiro",
principalmente em contexto internacional, a discussão se torna complexa
quando mesmo com essa afirmação, essas pessoas continuam com um
aparato estático de privilégios raciais materiais e simbólicos. Esse tipo de
discurso pode criar uma complexidade de auto-afirmação que por um
longo período, tem sido uma reivindicação constante do movimento negro
brasileiro e de outras pessoas que não detém os privilégios raciais da
branquitude. Conforme afirmado, essas investigações sobre a construção
histórica da população branca brasileira precisam ser levadas como um
ponto essencial para a engrenada dos estudos críticos da branquitude na
historiografia brasileira.
O documento e as possibilidades
Encontrei esse documento no Arquivo Público do Rio Grande do Sul,
na época da investigação do meu Mestrado em História. Eu procurava por
casos que mostrassem conflitos raciais entre os anos de 1964 e 1985. Achei
esse. O inquérito criminal foi aberto contra um homem de cor “preto” em
sua ficha, que ao entrar em um bar, do qual era frequentador assíduo,
esfaqueou a atendente. No momento, estavam mais cinco homens no local,
312 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
e após a facada, o homem foi linchado e espancado até a chegada da polícia.
O motivo do esfaqueamento foi passional, pois a atendente era sua
companheira e não queria mais relacionamento, e além do mais, a
atendente era branca. Por certo, localizei o caso como feminicídio, pois a
mulher acabou falecendo, como relata o documento. E assim como
racismo, pela forma como um homem “preto” foi tratado e principalmente
pelo fato de o documento não fazer menção aos cinco homens que estavam
presentes, lincharam o réu e poderiam constar como testemunha do caso.
A partir de então, o caso começou a ficar complexo, principalmente
pela sua composição. Ao analisá-lo, de início, percebi que ele poderia estar
incompleto, pois os dados que constam são apenas: relatório do caso,
constando detalhamento dos acontecimentos, porém, uma ocultação de
quem prestou as informações; o exame de corpo de delito da atendente
esfaqueada; a ficha do homem que esfaqueou e sua sentença de prisão. As
alegações da Delegacia de Polícia de Porto Alegre, é que não encontrou os
homens que proferiram o linchamento.
Essa documentação, além de trazer pontos essenciais para o
entendimento do feminicídio passional e do racismo, também traz uma
possibilidade para analisar a fundamentação da documentação e
possivelmente a composição racial dos homens que proferiram o
linchamento. O estabelecimento se encontrava no Centro Histórico da
cidade de Porto Alegre, na Rua da Praia, no ano de 1965, que segundo
relatos, localizava o reduto da intelectualidade portoalegrense (FRANCO,
2006, p. 29-31). Cardoso nos lembra que a intelectualidade e a posição
científica sempre é somada a pessoas brancas (CARDOSO, 2020, p. 17).
Por conta da branquitude ser uma racialização complexa, é necessário que
tenhamos a possibilidade de investigar sua historicidade através de uma
subjetividade da sua sociabilidade. A pesquisadora Priscila Elisabete da
Silva afirma que a branquitude é um dispositivo analítico, e por conta
Gabriel Ribeiro da Silva | 313
disso, a “subjetividade do branco” se torna essencial especialmente em
contextos aparentemente não racializados, (SILVA, 2017, p. 20) mas que
tragam indícios onde possa reverberar as principais característica do
grupo no meio social: o privilégio. Um homem de cor “preta”, sendo
linchado por cinco homens desconhecidos após esfaquear uma mulher de
cor branca em um local marcado por um perfil social “intelectual”, nos traz
subjetividades necessárias para contestar uma documentação que se
mostrou neutra na sua judicialização. Assim como o serviço público
compactua com um “pacto narciso”, como pontua Maria Aparecida Bento,
(BENTO, 2002, p. 70-120) esses elementos também refletem na busca
histórica pela “subjetividade do branco” na vida cotidiana. O ponto de o
caso ter um relatório expondo os “fatos” do caso, mostram que algumas
pessoas, sem ser o réu e a vítima, estavam prestando informações para a
judicialização. A versão e a análise do réu sobre o caso – homem de cor
“preta” que esfaqueou uma mulher branca – consta apenas em sua ficha
de indiciado. E a mulher de cor branca que foi esfaqueada, estava
impossibilitada de prestar depoimento. Por conta disso, é importante
análises profundas, que podem ser locais onde a racialização, quando não
for “negra”, escracham privilégios raciais simbólicos e materiais,
influenciando decisões extremas, pois ser branco na sociedade brasileira
“significa obter vantagens econômicas, jurídicas, e se apropriar de
territórios dos Outros” (CARDOSO, 2020, p. 12).
Considerações finais
Há possibilidades de encontrarmos, em contextos históricos, a
presença da população branca com interpretações pautadas a partir dos
estudos críticos da branquitude. Defendo que essa seja a possibilidade mais
latente para uma amplificação dos estudos das relações raciais no Brasil,
que deveria ser um pilar metodológico para as interpretações
314 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
historiográficas em todos os âmbitos e contextos históricos de nossa
História.
Assim como todos, o campo de estudo da branquitude não é
consolidado e tão pouco há um acordo mútuo sobre suas possibilidades e
interpretações. O que conseguimos perceber nesse ensaio, é que os estudos
críticos tem uma presença inicial quando usado como teoria crítica,
principalmente no que concerne as mazelas que a branquitude causa na
vida e sociabilização de pessoas que não são brancas. Porém, há uma
menor análise no que se refere às vias abertas das críticas e pesquisas
feitas. A primeira diz respeito à historicidade desse grupo racial em
contexto brasileiro, pois no que foi elencado acima, apenas uma das
produções conseguiu abrir perspectiva sobre o quesito até então. Em
segundo, a carência de circunstância para admitir o campo de estudo da
branquitude como um dispositivo analítico próprio, com metodologias e
epistemologias, como sugere apenas um dos estudos também expostos
acima.
O que foi elucidado como exemplificação com o documento, mostra
que há passos analíticos essenciais para conseguir perceber a presença de
pessoas brancas em contexto de cotidiano, tendo em vista que essas
pessoas não são racializadas de forma expositiva, pois não enfrentam um
fenômeno extremo que pessoas não-brancas vivenciam: o racismo.
Portanto, é necessário o entendimento das subjetividades e dos contextos
sociais que agentes históricos estão inseridos, pois na realidade brasileira,
o “lugar natural”, pensado por Lélia González, funciona de forma
contundente. O lugar do “dominador”, sempre são locais requintados dos
centros urbanos ou grandes redutos rurais cheio de “serviçais”, já o lugar
do “dominado” sempre são lugares de subalternidade e periferia, seja em
grandes centros urbanos ou em âmbitos rurais. O que precisamos
compreender é que, na sociedade brasileira, existe a divisão racial do
Gabriel Ribeiro da Silva | 315
espaço, e ela é fundamental de ser levada em consideração para
conseguirmos localizar as pessoas brancas e racializá-las (GONZALEZ,
1982, p. 15).
Referências
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316 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
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(2006-2018): reflexões e perspectivas. Dissertação (Mestrado), Universidade
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divinos e negros fragmentados. 155 f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de PósGraduação em História, Porto Alegre, BR-RS, 2017.
Capítulo XVIII
A mais velha e justa inspiração: Uma análise das relações
raciais no Vale do Rio Pardo a partir dos clubes negros
Helen da Silva Silveira 1
O presente artigo aborda as reflexões e resultados parciais de uma
pesquisa sobre associativismo negro e projetos de liberdade no pósabolição no Vale do Rio Pardo, interior do Rio Grande do Sul. Nesta
pesquisa são abordados os clubes sociais negros Négo Foot Ball Club
fundado em 1935 na cidade de Venâncio Aires e Sociedade Cultural
Beneficente União criada em 1923 na cidade de Santa Cruz do Sul. O
objetivo é analisar algumas nuances da relação entre negros e teutobrasileiros no contexto pós-abolição nestas cidades marcadas pela
imigração alemã.
Em 22 de abril de 1922, três amigos estavam conversando sobre as
preocupações com as brigas e desavenças existentes entre a sociedade 15
de novembro e a sociedade Rio Branco duas sociedades que eram a “forssa
viva da cor preta” de Santa Cruz do Sul. Conversa vai, conversa vem estes
três amigos, os cidadãos João Lopes, Jovenal Bibiano e Romualdo Ferreira
tiveram uma ideia luminosa. E se a gente propusesse a que estas duas
sociedades se juntassem para criar uma só e mais forte e colocar “fim às
entrigas existentes em nossa classe” convidando os dois presidentes para
se unir nesta nova sociedade.
A ideia pareceu muito interessante, então os três amigos decidiram
leva-la adiante e fizeram uma reunião na casa do sr. Romualdo, na rua
1
Mestranda- UFRGS; E-mail:helen.dasilvasilveira@gmail.com
318 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Thomaz Flores e Deus que “ vigia os ricos, mas ama os que vem do gueto”
estava ao lado deles e com a ajuda do seu João Garibaldi um cidadão que
possuía alguns recursos se prontificou a fazer uma sede para o clube, na
rua Carlos Trein que a princípio que se chamaria Progresso e União, mas
o que prevaleceu foi a união, portanto o nome que prevaleceu foi Club
União. Depois de alguns meses de preparação que devem ter envolvido
convites e chamamentos chegou o tão esperado dia 1º julho de 1923, o dia
da fundação e posse da 1º diretoria do então Sport Club União. A primeira
diretoria foi composta de: João Garibaldi (Presidente), João Antônio Lopes
(Vice-Presidente), Olmiro Bastos (1º secretario), Manuel Flores (Fiscal
Geral), França Garibaldi (1º capitão), Agenor Garibaldi (2º capitão), Ari do
Prado, Jorge Antônio Machado, João Generso, Otacilio da Silva e Graciano
Benevite de Oliveira.
Anos mais tarde, no início da década de 1930, Ataliba Rodrigues um
atleta jogador do time futebol Guarani de Venâncio Aires foi alvo de
racismo durante um jogo no qual atuava como goleiro. Na situação o time
estava perdendo para o time adversário e a torcida entendeu aquilo como
culpa do goleiro e começo a ofende-lo com chigamentos racistas. Como
disse o seu sobrinho Leobaldo Rodrigues: “ele era um homem de sangue
nas veias” que tirou a camiseta do time e saiu de campo. Como forma de
apoio, a ala negra da torcida se retirou do estádio.
Este evento, somado à restrição de muitos clubes que proibiam a
entrada de negros e a vontade destes de ter um espaço seu, culminou na
fundação da Sociedade Négo Foot Ball Club São Sebastião Mártir em 1935,
na casa do casal João Generoso e Maria Generosa dos Santos, sendo este
senhor o presidente. Ataliba Rodrigues também estava nesta fundação,
assim como sua esposa Maria Francisca Rodrigues, assim como Amaro da
Luz e José de Sá. Muito provavelmente também por João Francisco, Chim
de Amorim, Amaro P. da Silva, Ambrósio P. da Costa, Martin Adelino,
Helen da Silva Silveira | 319
Frontino M. Crispim, Joao Argenor da Rosa, Simão M. Crispim, João da
Silva, Hermínio A. de Borba, Theodoro J. da Silva, Adelino P. da Costa e
Juvelino Dias. Este são os nomes que constam no registro mais antigo do
livro de atas do clube, na data de 26 de julho de 1936. Segundo o estatuto
da sociedade, datado de 17 de dezembro de 1936, os seus propósitos eram
recreativos e desportivos aliados à cultura física e intelectual.
Os dois clubes, apesar de serem de cidades vizinhas, foram fundados
em dois momentos radicalmente diferentes entre si. Com arranjos
políticos e ideológicos muito diferentes. Na década de 1920 a política do
Café com Leite direcionava os rumos dos governos central e estaduais do
país. Em 1930, a chamada Revolução de 1930 instituiu o início da Era
Vargas. Ideologicamente anos de 1920, assim como as décadas anteriores
desde a Abolição foi marcada pela ideologia do branqueamento que visava
branquear a população a partir da importação de imigrantes europeus. Em
contrapartida, nos anos de 1930 surge a Democracia Racial que colocava
que no Brasil não haveria mais preconceito de cor e que as três raças,
branca, negra e indígena, teriam se misturado espontaneamente e dado
origem a raça brasileira.
A sua forma e seu jeito as duas entidades procuraram fazer de sua
fundação um ato político, como uma ideia luminosa de cidadãos que
estavam procurando coletivizar a liberdade a partir de um lugar que
pudesse abrigar seus projetos de educação, sociabilidade, esporte e etc.
Porém, as relações étnico-raciais são mais complexas do que parecem à
primeira vista, pois não se pode interpreta-las como estanques e
rigidamente delimitadas. Como dois senhores de oitentas anos de
existência estes clubes possuem momentos e fatos de sobra para
refletirmos sobre um ponto muito sensível sobre clubes negros em regiões
de imigração alemã, a relação entre negros e teuto-brasileiros. Como
podemos ver no relato sobre a fundação da Sociedade Négo, um dos
320 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
aspectos desta relação bastante evidente é o conflito. Um conflito que podia
se expressar de forma explicita como na situação envolvendo o jogador
Ataliba ou um conflito mais velado. Em uma de suas entrevistas, Maria
Thereza da Silva, avó desta autora, diz que “A gente não podia
frequentar... O motivo que eles diziam era sobre a raça né a raça negra.
Tanto que o Clube não deixava ninguém entrar.” (Entrevista concedida
em 08 de fevereiro de 2016).
O Clube ao qual Maria Thereza se refere é a Sociedade de Leituras,
criada em 30 de abril de 1887, por homens com sobrenome de origem
alemã, que chegou a funcionar na então rua principal da cidade, 28 de
setembro, e já em 1920 possuía uma sede própria. Esta sociedade
sempre se configurou como um clube de elite e aqueles que desejavam
se associar passavam por uma seleção que não permitia a entrada de
negros e negras em suas festividades. A proibição de pessoas negras
frequentarem outros clubes não é novidade, esta forma de conflito
permeia a criação de praticamente todos as entidades negras e já foi
amplamente discutida, mas nesse caso, o ingrediente a mais é conflito com
imigrantes e/ou seus descendentes. Neste caso não se trata apenas de
brancos e negros, mas sim de brancos estrangeiros e negros, ou seja, há
uma diferenciação de cor, mas também de nacionalidade. Ao pensar a
cidade de Novo Hamburgo, que é uma cidade do Rio Grande do Sul que
também possui também forte presença da imigração, Magna
Magalhães coloca que cidade construiu a sua memória selecionando
quem seriam seus habitantes.
A retórica do desenvolvimento relacionava-se a um “povo laborioso” [...]
Negava-se a visibilidade aos luso brasileiros, aos indígenas e aos negros
escravos. Assim, a constituição histórica da cidade de Novo Hamburgo não
difere do restante da região do Vale do Rio dos Sinos, que, a partir de uma
Helen da Silva Silveira | 321
memória oficializada, nega a visibilidade de diferentes sujeitos históricos, os
quais antecedem a chegada dos imigrantes alemães, ou que atuaram no
mesmo cenário. (MAGALHÃES, 2010, p. 73).
É como se a constituição social destas cidades estivesse calcada em
outros elementos que destoam daqueles no quais estão calcados o restante
do país. Esta é uma das consequências da imigração que serviu também
para demarcar melhor as noções de raça que seria hierarquizada tendo
estes imigrantes brancos no topo da pirâmide. Isto é o denominamos
racialização um processo fundamental para entender pós-abolição, haja
vista que, é essa hierarquização que baliza as noções de superioridade
branca e inferioridade negra presentes no racismo e também presentes
nestes conflitos acima mencionados.
Todavia, elas não representam o todo das relações inter-raciais e
étnicas, dado que o formato do racismo no Brasil não permite conflitos
abertos o tempo todo. É o que Lélia González chama de Racismo por
Denegação, um racismo mais disfarçado e implícito característico dos
países latino-americanos nos quais prevalecem as teorias de miscigenação
e assimilação. Este tipo de racismo tem um aspecto interessante, a
negociação que no caso dos clubes aqui estudados pode ser vista a partir
uma questão, a construção de suas sedes.
Se levarmos em conta a precariedade que estava sujeita esta
população, onde os recursos financeiros não eram abundantes, como
eles conseguiam adquirir uma sede própria? Bem, em muitos casos nos
primeiros anos a sede social não era própria, haja vista que isso envolve
custos, mas sim alugada. Muitas entidades recorriam ao aluguel de
salões de festas para promover seus eventos. Em Novo Hamburgo, por
exemplo, o clube Cruzeiro do Sul se utilizava deste recurso para poder
funcionar:
322 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
O salão de propriedade de Lúcio Rodrigues configurou um espaço acolhedor
não só do bloco Os Leões e das festividades voltadas para o carnaval, mas
também para as diferentes festas promovidas pela Sociedade Cruzeiro do Sul.
Como mencionamos anteriormente, o salão era alugado para a promoção dos
eventos. (MAGALHÃES, 2017, p.117).
Desta forma, os clubes recorriam a espaços da cidade que já eram
conhecidos por sediar atividades culturais. Mas isso não significava uma
condição permanente, pois haviam mobilizações importantes para que
conseguissem ter seus próprios espaços. Ao pesquisar os clubes uruguaios
que faziam fronteira com o Brasil, Fernanda Silva, coloca que um dos
meios utilizados para angariar fundos era a criação de jornais: é
importante não perder de vista que o periódico Acción tinha um objetivo
bastante específico: “ser porta-voz do comitê em prol da construção da
sede própria do clube.” (SILVA, 2017, p. 114).
Em Venâncio Aires, a sociedade Négo teve como sua primeira sede a
casa de João Generoso e Maria Generosa dos Santos, que tinham o direito
de usá-lo com outras finalidades quando o clube não estivesse realizando
atividade. Anos mais tarde, o clube conseguiria adquirir seu espaço, que se
localizaria na rua Emiliano de Macedo, e ali permaneceria por alguns anos.
Já na década de 1970, os administradores da entidade fariam um acordo
com a prefeitura que estava interessada no terreno atual do clube. Em
troca deste, o município daria um outro terreno e a mão de obra para que
fosse erguida a terceira e definitiva sede social do clube. Este projeto teve
envolvimento inclusive do avô desta autora. Luiz da Silva, que era
funcionário público da cidade, foi designado como mestre de obras e
chefiou a construção nos anos de 1970. No mapa a seguir é possível
visualizar os endereços do clube ao longo do tempo:
Helen da Silva Silveira | 323
Mapa 1: Localização das sedes da Sociedade Négo Foot Bal Club na cidade de Venâncio Aires, RS
Fonte: Feito por Felipe F. Brunhauser, gerado a partir das mapa produzido a partir do programa Quantum GIS,
dados coletados da plataforma Open Street Map.
Já no caso do seu vizinho co-irmão União, a primeira sede foi
construída por um dos sócios fundadores, o senhor João Garibaldi. Mas a
atual sede foi erguida a partir do angariamento de fundos, o que pode ser
constatado no Livro Ouro da entidade.
Indo ao encontro da mais velha e justa aspiração desta Sociedade a Deretoria
que neste anno dirige os destinos desta collectividade, resolve empreender
aconstrução de sua sede própria apelando para o concursso de seus associados
e bem assim a todos os admiradores
Organiza livro de contribuições foram ellas levadas a todos aquelles a quem
esta Sociedade sabia possuir um socio fervoroso, ou um admirador sincero e
enthusiata. Coroada tal iniciativa do maior socio e resolveu a Directoria criar
o presente “livro de Ouro” onde ficarão consignados os nomes de todos
aqueles que concorreram para tão altruísta iniciativa, bem como o quantuim
da contribuição feita. (Termo de Abertura do Livro Ouro da Sociedade Cultural
Beneficente União, 1940).
324 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Este livro contém informações valiosas, que ajudam a entender
melhor como um clube social consegue adquirir espaço próprio. Nele
constam doações de sócios e de estabelecimentos comerciais da cidade.
Entre os muitos nomes de estabelecimento, alguns me chamaram atenção
por terem nomes alemães. Levando em conta o contexto explicitado em
que ocorria a fundação das organizações negras, é interessante refletir
sobre por que estabelecimentos comerciais de imigrantes ou ainda de
teuto-brasileiros fizeram contribuições para a construção de uma sede
social de um clube negro. Principalmente se levarmos em conta que alguns
destes empresários faziam parte da elite burguesa local2 e a cidade de
Santa Cruz do Sul abrigou células do Partido Nazista e do Partido
Integralista na década de 1930.
Esta é uma questão que me custou horas e muitas xícaras de chá e
ainda assim não foi suficiente. Confesso que não acharia ruim se fossem
adicionadas nas fontes algumas linhas explicando o porquê de algumas
coisas. O que me coube foi dividir minhas dúvidas com as colegas
pesquisadoras que possuem mais experiência de pesquisa do que eu, o que
de fato foi produtivo. Ao mostrar minhas fontes pera as colegas Franciele
Oliveira e Fernanda da Silva em momentos distintos, as duas me
ofereceram a mesma hipótese: Será que não havia sócios do clube que
fossem funcionários nestes estabelecimentos, por isso transformavam
uma parte do salário destes trabalhadores em contribuição a pedido dos
mesmos? Além disso, que os patrões fizessem contribuições para manter
relações paternalistas com os empregados negros?
Se tratava de uma hipótese plausível. E me ajudou inclusive a ler a
fonte com outros olhos e entender que o que eu gostaria que tivesse sido
2 Cf; NORONHA, Andrius Estevam. Beneméritos Empresários: história social de uma elite de origem imigrante do
sul do Brasil (Santa Cruz do Sul, 1905-1966). Tese (Doutorado em História). Universidade de Santa Cruz do Sul.
Santa Cruz do Sul, 2012.
Helen da Silva Silveira | 325
escrito de fato foi, mas não como eu estava procurando. No termo de
abertura citado acima consta: “Organiza livro de contribuições foram ellas
levadas a todos aquelles a quem esta Sociedade sabia possuir um socio
fervoroso”, ou seja, é possível que os donos dos estabelecimentos Hoppe e
Cia, Frederico Rech, Samuel Kremermam, entre os de nomes germânicos
pudessem ter funcionários negros que eram sócios do clube. Mas como
coloca o documento era preciso ter um administrador sincero e entusiasta,
ou seja, além de ter funcionários negros tinha que se dispor, e talvez entre
os muitos motivos de tal simpatia tenha esteja uma possível vantagem em
converter parte dos salários em doações para o clube. Outra possibilidade,
é que os valores sejam referentes a algum material doado, não sendo
necessariamente dinheiro em espécie.
Neste caso temos um elemento que considero importante nas
relações inter-étnicas de sociedade que se desenvolveram sob o signo da
escravidão, o paternalismo. Os estudos sobre o período escravista,
mostraram que as relações entre senhores e escravizados tendiam a
envolver este componente. Segundo Chiga:
O paternalismo foi uma forma de dominação pessoal que reconhece em
atitudes supostamente beneficiadoras para o escravo, mas apenas na ótica do
senhor, e que busca, com uma enganosa benevolência, expandir seu campo
com maior eficácia, dentro de relações sociais, o já desgastado poder de
atuação senhorial no mando de trabalho aos escravos. (Chiga, 2009,p. 10).
Desta forma o paternalismo passava uma falsa ideia de benevolência
senhorial, mas na verdade trazia muitas vantagens ao mesmo, já que
contribuiu na criação de um vínculo e dever do escravo com o seu senhor.
No entanto, os mesmos estudos da escravidão mostraram que não
podemos tomar os escravizados como ingênuos, em razão de que eles
sabiam como tais situações poderiam ser vantajosas. No pós-abolição em
326 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
que o status jurídico iguala a todos, mas a raça diferencia socialmente o
paternalismo é possível a medida que há um desnível entre os grupos
sociais, assim quando um comerciante e ou patrão faz uma possível doação
para a construção de um clube negro este dificilmente não o faz porque é
benevolente, mas porque vê nesta situação uma contrapartida que neste
caso pode ser uma vinculo de dever de seu funcionário negro para com ele
e o fato de que aquele lugar concentrará os negros e negras que passam a
ter e ficar no seu espaço.
Como coloca Barbara Fields (1990), o racismo não explica, deve ser
explicado. Já Kabengele Munanga (2017) diz que o racismo no Brasil é um
crime perfeito. Por muitos anos a historiografia sobre imigração defendeu
que as colônias e os imigrantes viviam de forma isolada do restante da
população:
A hipótese do fortalecimento étnico a partir do isolamento e da passividade
dos imigrantes, difundida na historiografia da imigração alemã, sobretudo por
Aurélio Porto (1996) e Jean Roche (1969), perdeu força a partir de uma série
de novos estudos. Marcos Antônio Witt (2008), descontrói essa visão ao
demonstrar em estudo empírico as relações entre famílias de diferentes
colônias e destas com indivíduos nacionais no megaespaço São LeopoldoLitoral Norte do Rio Grande, assim, rompendo com a tese do isolamento, tanto
entre as colônias quanto entre os colonos alemães e seus descendentes com os
nacionais. (PIASSINI, 2017, p. 41).
Conforme Piassini coloca, outros pesquisadores já comprovaram que
o isolamento não foi parte da vida dos imigrantes e seus descendentes no
estado. Algo que é reforçado pelo Livro Ouro do União, em que é possível
ver as relações entre negros e teuto-brasileiros ou imigrantes acontecendo,
sem a mediação do Estado e seus órgãos, principalmente os de repressão,
e de uma forma em que não há conflitos aparentes. É neste sentido, que
os argumentos de Fields e Munanga tem substância, pois aparentemente
Helen da Silva Silveira | 327
é difícil explicar a partir do racismo situações em que não existe segregação
ou discriminação explícita. E que relações cordiais entre negros e teutos
não eliminam o racismo, pelo contrário caracterizam o tipo de Racismo de
Denegação que é sutil e insidioso e paternalista que foi se desenvolvendo
no Brasil. Haja vista que, aqui, vemos a cordialidade das relações sócioraciais se desenrolar, um comerciante branco fazendo doações ou
contribuições para um projeto encabeçado por negros.
Todavia, é bom não perder de vista que a contribuição feita era para
a construção de um clube social negro, ou seja, era interessante para os
brancos que os negros tivessem um lugar próprio, pois eles poderiam se
negar a fazer tal acordo, pagar uma parte do salário como contribuição
para o clube. No mapa abaixo se pode ver os deslocamentos das sedes do
clube União ao longo do tempo:
Mapa 2: Localização das sedes da Sociedade Cultural Beneficente União na cidade de Santa Cruz do Sul, RS
Fonte: Feito por Felipe F. Brunhauser, gerado a partir das mapa produzido a partir do programa Quantum GIS,
dados coletados da plataforma Open Street Map.
Voltando ao propósito principal do documento, a construção da sede
foi possível perceber que os valores doados não eram uniformes, podendo
variar de sócio para sócio, de estabelecimento para estabelecimento ou
328 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ainda de ano para ano. Alguns sócios ao invés de doar em dinheiro doaram
sua mão de obra, como é o caso de José Protasiano, Júlio Carvalho e Manoel
Abel Silveira e assim a tão sonhada sede própria se concretizou.
Neste sentido, se pode entender que as maneiras para se conseguir a
tão sonhada sede social própria foram muitas, desde negociações com o
poder público local, até negociações com indivíduos que poderiam ser
pequenos ou grandes burgueses da cidade, passando pela criação de
periódicos para arrecadar fundos. Em todos os casos, e aqui
principalmente no Vale do Rio Pardo, se teve sucesso. Para isso contou-se
com o envolvimento dos sócios tanto em termos monetários quanto em
termos de mão de obra. Até hoje quem cruzar pelas ruas Júlio de Castilhos,
em Santa Cruz do Sul, ou Henrique Vila Nova em Venâncio Aires poderá
conferir o resultado dos trabalhos dos cidadãos José Protasiano, Júlio
Carvalho, Manoel Abel Silveira e Luiz da Silva. Como forma de ajudar o
leitor neste reconhecimento, coloco abaixo as fotos das atuais fachadas. Se
tiver a oportunidade de entrar, por favor, limpe os pés e não deixe o
respeito na porta.
Imagem 4: Fachada atual da sede da Sociedade Négo Football Clube de Venâncio Aires, RS
Fonte: Retirado de Escobar (2010).
Helen da Silva Silveira | 329
Imagem 5: Fachada da Sociedade Cultural Beneficente União de Santa Cruz do Sul, RS, 2018
Fonte: Página da Sociedade Cultural Beneficente União no Facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1538628126243056&set=pb.100002876497064.
207520000..&type=3&theater Acesso em: 06/06/2020
Todos estes aspectos abordados até aqui, referentes aos fatos
ocorridos depois do 13 de maio de 1888, dizem respeito uma abordagem,
o pós-abolição enquanto problema histórico (MATTOS; RIOS, 2004). Mais
do que um período, o pós-abolição diz respeito à reorganização sofrida
pela sociedade após o fim da escravidão. Leva-se em conta os projetos de
liberdade dos negros e negras e como se pode perceber todos eles giravam
em torno de uma questão, cidadania em todas as suas dimensões, social,
civil e política.
Por último, é importante pontuar que a negociação e o conflito
costumam andar juntos a mesma relação pode ser negociada e conflituosa,
depende da situação. Portanto, ainda que pesem questões históricas e
estruturais da sociedade não há como dizer que existe uma linha rígida
que delimita até onde cada vai, ela costuma ser movida conforme a
necessidade e interesse dos envolvidos.
330 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Referências
CHIGA, Mauricio. Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (18401870). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo, 2009.
DANTAS, Sylvia; FERREIRA, Ligia; VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Um intérprete africano
do Brasil: Kabengele Munanga. Revista USP. São Paulo. n. 114, p. 31-44,
julho/agosto/setembro 2017. Disponivel em: www.revistas.usp.br › revusp › article
› download. Acesso em: 20/05/2020.
FIELDS, Barbara J. Slavery, race and ideology in the United States of America. New Left
Review, v. 181, 95-118, May- June, 1990.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, n.
92/93, p. 69-82, 1988.
MAGALHÃES, Magna Lima. Entre a preteza e a brancura brilha o Cruzeiro do Sul:
Associativismo e identidade negra em uma localidade teuto-brasileira (Novo
Hamburgo/RS). 2010. Tese (Doutorado em História). Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. São Leopoldo, 2010.
NORONHA, Andrius Estevam. Beneméritos Empresários: história social de uma elite de
origem imigrante do sul do Brasil (Santa Cruz do Sul, 1905-1966). Tese (Doutorado
em História). Universidade de Santa Cruz do Sul. Santa Cruz do Sul, 2012.
PIASSINI, Carlos Eduardo. Imigração Alemã e Política: Os deputados provinciais
Koseritz, Kahlden, Hansel, Brüggen e Bartolomay. Porto Alegre: Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul, 2017.
RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe Maria. O pós-abolição como problema histórico:
balanços e perspectivas. TOPOI. Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, jan.-jun, 2004.
SILVA, Fernanda Oliveira. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras,
racialização e cidadania na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960).
Helen da Silva Silveira | 331
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 2017.
Entrevistas – fontes orais
SILVA, Maria Thereza da. Depoimento [Fev. 2016]. Entrevistadora: Helen da Silva Silveira.
Venâncio Aires: Residência de Maria Thereza da Silva, 2016. Entrevista concedida
para a pesquisa.
Lista de fontes escritas
Ata da Sociedade Cultural e Beneficente União nº01 (1923). Acervo Sociedade Cultural e
Beneficente União
Ata da Sociedade Négo Foot-Ball Club (1936-1957). Acervo da Sociedade Négo Foot-Ball
Club
Estatuto da Sociedade Négo Foot-Ball Club de 29 de junho de 1936. Acervo da Sociedade
Négo Foot-Ball Club
Livro Ouro (1940-1957). Acervo Sociedade Cultural e Beneficente União
Ata da Sociedade Cultural e Beneficente União nº01 (1923). Acervo Sociedade Cultural e
Beneficente União
Capítulo XIX
Os antecedentes do “milagre econômico”:
a reestruturação do sistema financeiro (1964 – 1966)
Werbeth Serejo Belo 1
Introdução
A partir de 1964, com o golpe classista Empresarial-Militar2, uma
nova fração burguesa passa a conduzir as diretrizes estatais em
consonância com um grupo heterogêneo de militares que ditam novas
formas de acumulação de capital baseado em planejamento econômico,
isto é, não seria mais adotado um posicionamento imediatista frente às
proposições econômicas a partir dali. Enquanto no contexto internacional
tinha-se uma consolidação do pensamento neoliberal, no Brasil toma-se
uma postura de planejar em prol de um desenvolvimento econômico,
mesmo que muitas vezes essas diretrizes estivessem alinhadas, em parte,
com a ideologia neoliberal3, como a recessão necessária à (re)organização
1
Doutorando – Universidade de Coimbra; werbethsbelo@hotmail.com
2 Há um vasto debate sobre a orquestração do golpe e a condução do regime que se instaurou no Brasil em 1964 com
vertentes interpretativas díspares a respeito do tema. Para maiores esclarecimentos a respeito deste debate conferir:
MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político
brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Cascavel, ano XIII, nº27, 2º sem, p.39-53,
2012.
3 A ideologia neoliberal surge durante a década de 1940, mais exatamente pós II Guerra Mundial, fazendo oposição
ao socialismo e ao modelo econômico Keynesianista – também conhecido como Welfare State (Estado de Bem Estar
Social) tendo este como base, segundo Fernando Ribeiro em “Friedman, monetarismo e Keynesianismo: um
itinerário pela história do pensamento econômico em meados do século XX”, “uma curiosa contradição”: a) uma
economia de empreendedores; b) um papel de grande importância desempenhado pela moeda; c) a moeda com
funções clássicas de ser meio de troca e unidade de conta; d) a moeda desempenha a função de reserva de valor.
Então, fazendo frente a essas bases surge o pensamento neoliberal que tinha como dois dos grandes teóricos Milton
Friedman e Friedrich Hayek. Hayek critica a ideia de que o “planejamento econômico pelo Estado é o caminho para
combater as crises do capitalismo e inclusive salvá-lo dos regimes autoritários extremos, como o nazismo, à direita,
e o socialismo, à esquerda”. (SPÍNOLA, 2004, p. 105). Portanto, a atuação estatal direta na economia não seria o real
caminho ao combate às crises do capitalismo, ao contrário, deveria haver uma redução da atuação do Estado no
âmbito econômico. Em 1947, como forma de organização do pensamento neoliberal, surge a sociedade de Mont
Pelerin que tem como presidente o próprio Friedrich Hayek e como membro Milton Fridman. Este é o início do
processo de consolidação do pensamento neoliberal em níveis mundiais, obviamente que esta consolidação se dá em
Werbeth Serejo Belo | 333
e a utilização da política monetária4 como um viés de solução à crise
econômica.
Segundo Tomas Skidmore (1988) havia dois sérios problemas
econômicos no Brasil no início da década de 1960: a) déficit crônico na
balança de pagamentos por vários fatores: receita das exportações
dependia de um único produto, o café; o nível das exportações estava
estreitamente ligado ao crescimento industrial; outros níveis negativos:
remessas de lucros, amortização de empréstimos e repartição de capitais.
b) a inflação que de 1949 a 1959 variou de 12% a 26%.
Ao longo da década de 1960 outros problemas se agregaram e se
tornaram intoleráveis: o plano de estabilização de 1963 foi engavetado; a
defesa por Goulart das reformas de base (SKIDMORE, 1988, p. 36-37).
Haja vista o desequilibro econômico que se atingiu em fins de 1963,
a articulação golpista de longo prazo estava com o campo livre para a
atuação da tomada do Estado através da Guerra de Movimento que
deporia Goulart em abril de 1964. A modernização conservadora se
iniciava no período do regime Empresarial-Militar com a escolha dos
novos dirigentes para as pastas da Fazenda e do Planejamento.
O governo de Castelo Branco: a reestruturação do sistema financeiro
O general Castelo Branco5 assume a presidência da República em
1964 e começa o processo de reestruturação administrativa, que seria a
períodos diferentes em cada localidade do Globo: Chile – década de 1970, Brasil – década de 1990, por exemplo. No
entanto, desde o acordo de Bretton Woods realizado em setembro de 1946, isto é, em fins da II Guerra Mundial já se
pensava “a forma que deveria ser dada para o novo Sistema Monetário Internacional” (RIBEIRO, 2013, p. 61). Por
fim, Friedman determina quais os papeis reservados ao Estado, proposições estas que se tornariam as base do
pensamento liberal que tomariam proporções internacionais a partir da década de 1970: a) fornecer uma estrutura
jurídica; b) proteger as liberdades individuais e a propriedade privada; c) garantir a execução de contratos livremente
estabelecidos; d) fornecer uma estrutura monetária (RICHTER, 2009).
4 Segundo Vera Spínola política monetária seria um “conjunto de medidas adotadas pelo governo visando adequar
os meios de pagamento disponíveis às necessidades da economia do país” (SPÍNOLA, 2004, p. 110).
5 Segundo Thomas Skidmore (1988), o general Castelo Branco era líder do grupo da Sorbonne que tinha “oficiais
estritamente ligados à Escola Superior de Guerra”, sendo este um “interessante produto de influências brasileiras e
estrangeiras pois frequentou escolas de guerra na França e nos Estados Unidos” (SKIDMORE, 1988, p. 50).
334 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
característica principal de seu governo, tanto no âmbito político quanto no
âmbito econômico. Para ministro da Fazenda foi escolhido Octávio
Gouveia de Bulhões e na pasta do Planejamento e Coordenação
Econômica, Roberto Oliveira Campos6, ambos envolvidos diretamente na
elaboração do Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG, grande
responsável pela reestruturação do Sistema Financeiro Nacional.
No processo de elaboração de políticas econômicas travestidas em
planos de atuação, o fator primeiro de análise diz respeito ao diagnóstico
inflacionário que tem como formas de análise três correntes principais: a)
a ortodoxa, b) a heterodoxa e, c) estruturalista. A corrente ortodoxa
6 Monica Piccolo em sua tese de doutorado intitulada “Reformas Neoliberais no Brasil: A privatização nos Governos
Collor e Fernando Henrique Cardoso” (2010) faz o levantamento – a partir do dicionário histórico biográfico
brasileiro – das atuações dos diversos agentes político-econômicos brasileiros, apresentando as informações em cinco
blocos a fim de que se possa localizar estes agentes por meio de sua formação e relações com a sociedade civil e a
sociedade política, a saber: formação acadêmica, atuação nas agências estatais, atuação nos Aparelhos Privados de
Hegemonia, atividades profissionais e atuação político partidária. Dentre eles os condutores da política econômica de
1964 a 1967. Octávio Gouveia de Bulhões: Formação acadêmica: Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais
(Faculdade de Direito do RJ); Doutorado (Faculdade de Direito do RJ); Especialização em Economia em Washington;
Doutor Honoris Causa (EPGE-FGV). Atuação nas agências estatais: Diretoria Geral do Imposto de Renda do
Ministério da Fazenda (1926); Chefe da Seção de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda (1939);
Assessor Técnico do órgão Coordenação da Mobilização Econômica (1943); Membro da Comissão de Investimentos
do Ministério da Fazenda (1945-1948); Chefe dos técnicos brasileiros na Missão Abbink (1948); Membro do Conselho
Técnico do Departamento Nacional de Previdência Social (1946); Superintendente da SUMOC (1954-1955 / 1961final de 1962); Membro do CNE e do CMN (1950-54; 1956-60); Membro do Conselho Fiscal da Caixa Econômica
Federal (1967); Presidente do Conselho de Administração da Ericson do Brasil; Presidente do Conselho de Diretoria
do Unibanco; Presidente do Conselho Técnico de Administração do Banco de Investimento Credibanco; Membro do
Conselho Consultivo do Banco Itaú; Membro do Conselho de Administração do Comind – Banco de Investimento, da
Caemi e da Bayer do Brasil. Atuação nos Aparelhos Privados de Hegemonia: Membro do Conselho Técnico da
Confederação Nacional do Comércio; Instituto Brasileiro de Executivos Financeiros; CONSULTEC (1958); IPES.
Atividades profissionais: Professor Emérito da UFRJ; Presidente COPEG (1971 a 1973); Presidente BEG (1971 a
1974); Presidente IBRE-FGV; Presidente do IBMC (1971- 1974); Presidente da Mercedes-Benz do Brasil; Diretor da
Wilkinson Fiat Lux, Administração e Participação. Roberto de Oliveira Campos: Formação acadêmica: Teologia e
Filosofia; Economia (EUA); Pós-Graduação (EUA). Atuação nas Agências Estatais: Itamaraty (1939); Assessor
Econômico de Vargas (1951); Direção econômica do BNDE (1952-1953); Cônsul em Los Angeles (1953); Diretorsuperintendente do BNDE (1955); Membro do Conselho de Desenvolvimento (1956-60); Presidente do BNDE (1958);
Embaixador Washington (1961);Embaixador em Londres (1974). Atuação nos Aparelhos Privados de Hegemonia:
Membro do conselho técnico da Confederação Nacional do Comércio (1967-69). Atividades Profissionais:
Presidente do Invest Banco (1968-72); Presidente da Olivetti do Brasil; Membro do conselho de administração da
Mercedes-Benz (1972); Membro das juntas de governadores do Instituto Internacional de Planejamento e Educação,
sediado em Paris (1972-75) e do Instituto Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento, com sede em Ottawa
(1973-76); Membro da Resources for the Future (1974/76). Atuação Política Partidária: Filiação ao PDS (1980);
Senador (1982); Deputado Federal (1990); Filiação ao PPR (1993); Filiação ao PPB (1995). (PICCOLO, Monica.
Reformas Neoliberais no Brasil: A privatização nos Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. 2010. 427 p.
Tese (doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal Fluminense, Niteroi,
2010).
Werbeth Serejo Belo | 335
enfatiza “o papel do desequilíbrio fiscal nos processos de inflação crônica7”
e para pôr fim à inflação seria necessário “eliminar os déficits fiscais e
produzir um arrocho monetário” (CARDOSO, 2007, p. 115). A corrente
heterodoxa enfatiza “o papel da inercia inflacionária criada por
mecanismos de indexação endêmicos em economias que sofrem de
inflação crônica” e para pôr fim à inflação seria necessário “eliminar a
memória inflacionária a partir de um congelamento de preços, por
exemplo” (CARDOSO, 2007, p.115). A corrente estruturalista foi elaborada
por membros da CEPAL8 e aponta que
[...] estruturas inadequadas como a agrária, por exemplo, tornavam inelástica
a oferta de alimentos e matérias-primas, o que significava elevação de preços
nos centros urbanos. A deterioração das relações de troca provocaria déficits
comerciais e do balanço de pagamentos, obrigando tais países a
desvalorizações cambiais constantes, sendo estas outro alimentador do
processo inflacionário (SANDRONI, 1999, p. 225).
Como subterfúgio à inflação com diagnóstico estrutural tem-se que
deveria haver uma reestruturação de todo o sistema governamental em
prol da resolução do problema inflacionário. A opção adotada por Roberto
Campos e Octavio Bulhões tinha como base os preceitos da ortodoxia,
portanto, as diretrizes econômicas adotadas pelo PAEG caminhariam de
forma a atingir a estabilização econômica9.
7 Gera mecanismos de indexação que perpetuam a inflação passada (CARDOSO, 2007, p.115).
8 “Comissão Econômica para a América Latina. Órgão regional das Nações Unidas, ligado ao Conselho Econômico
e Social; foi criado em 1948 com o objetivo de elaborar estudos e alternativas para o desenvolvimento dos países
latino-americanos. É integrado por representantes de todos os países do hemisfério e conta com a participação
especial dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Holanda. Tem sede em Santiago do Chile e promove uma
conferência a cada dois anos para debater seus projetos e analisar a situação dos países-membros.” (SANDRONI,
1999, p. 90)
9 “Geralmente, o termo vem associado a políticas monetárias efetuadas por bancos centrais, para reduzir ou limitar
as flutuações de uma moeda nacional nos mercados financeiros internacionais, comprando ou vendendo reservas
de, ou para, outros bancos centrais” (SANDRONI, 1999, p. 220).
336 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Segundo Eliana Cardoso (2007) o PAEG tinha dois objetivos
principais: acelerar o crescimento e baixar a inflação. Para que tais
objetivos fossem alcançados seria necessária a utilização da correção
monetária10 que, segundo Pastore e Pinotti, tinha atrelada a si algumas
determinações: a) reformar o Sistema Financeiro Nacional; b) retomar os
financiamentos de habitação; c) criação do F.G.T.S11, PIS, PASEP12; d)
reajustes salariais; e) controle de preços; f) aperfeiçoamento do imposto
de renda13; g) reforma tributária de 1965: Imposto sobre o consumo (IC),
Imposto sobre produtos industrializados (IPI), Imposto de vendas e
consignações (IVC), Imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) –
que levariam ao crescimento da arrecadação; h) criação do Banco Central;
10 A correção monetária foi criada em 1964 no governo de Castelo Branco e, segundo Paulo Sandroni em “Novíssimo
dicionário de economia” (1999) , “Consiste na aplicação de um índice oficialpara o reajustamento periódico do valor
nominal de títulos de dívida pública (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) e privados (letras de câmbio,
depósitos a prazo fixo e depósitos de poupança), ativos financeiros institucionais (FGTS, PIS, Pasep), créditos fiscais
e ativos patrimoniais das empresas. Os índices de correção monetária são calculados de acordo com a taxa oficial de
inflação, tendo por objetivo compensar a desvalorização da moeda” (SANDRONI, 1999, p. 135).
11 “Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Fundo formado, no Brasil, por depósitos bancários feitos em nome
dos empregados, para prover indenizações trabalhistas. Criado pelo governo federal em 13/9/1966,obrigou as
empresas sujeitas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a depositarem até o dia 30 de cada mês, em conta
bancária vinculada, 8% do salário de cada funcionário que renunciasse ao sistema de indenização até então vigente
e optasse pelo fundo.” (SANDRONI, 1999, p. 238).
12 “Fundo contábil de natureza financeira criado em 11/9/1975. Resultou da unificação do Fundo de Participação do
Programa de Integração Social (PIS) e do Fundo Único do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público
(Pasep), ambos criados em 1970. Propõe-se a integrar o trabalhador à vida da empresa, garantindo-lhe participação
nos lucros, criar um pecúlio para sua aposentadoria e arrecadar recursos para investimentos privados, sobretudo
nas médias e pequenas empresas. É gerido por um conselho formado por quatro membros efetivos e quatro suplentes
indicados pelo Ministério da Fazenda, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No PIS são cadastrados os trabalhadores empregados sob o regime
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os trabalhadores avulsos sem vínculo empregatício e os temporários.
Não participam do PIS, mesmo com registro em carteira, os empregados domésticos e os trabalhadores rurais. Os
empregados em repartições da administração pública federal, estadual e municipal (autarquias, empresas públicas,
sociedades de economia mista) são cadastrados no Pasep. Essa diferenciação dos beneficiados permaneceu até
mesmo com a unificação dos referidos fundos. Os recursos do PIS são provenientes de contribuições mensais pagas
pelas empresas (...)” (SANDRONI, 1999, p. 460-161).
13 “Tributo cobrado das pessoas físicas e jurídicas sobre os rendimentos auferidos no exercício de suas atividades
profissionais ou comerciais, ou ainda sobre os rendimentos resultantes da aplicação de seus capitais. O Imposto de
Renda no Brasil foi criado pelo presidente Artur Bernardes, em 1922, sendo a primeira cobrança feita sobre o
exercício financeiro de 1924. O Imposto de Renda é direto e progressivo, isto é, incide diretamente sobre uma pessoa
física ou jurídica, e a taxação é progressivamente proporcional ao valor do rendimento. Por isso, é considerado o
imposto mais justo. O sistema de arrecadação, apesar das constantes mudanças feitas, sustenta-se em duas bases: o
imposto arrecadado na fonte e o imposto lançado. O imposto arrecadado na fonte é retido e recolhido pelas fontes
pagadoras do rendimento, enquanto o lançado baseia-se na declaração do contribuinte” (SANDRONI, 1999, p. 292).
Werbeth Serejo Belo | 337
i) criação do Conselho Monetário Nacional (CMN) para fixar os tetos para
a expansão do crédito; j) alteração da política econômica com relação ao
setor externo e, k) criação do sistema de subsídio às exportações.
(PASTORE; PINOTTI, 2007, p. 30-31).
As determinações econômicas acima expostas contribuíram para o
quadro de acumulação de divisas nos caixas governamentais, mas não
seriam suficientes para a tão almejada estabilização econômica e
reordenação de todo o Sistema Financeiro Nacional que seria a ferramenta
fundamental para que a nova fração burguesa empresarial de base
principalmente financeira se articulasse no Estado Restrito brasileiro a
partir de 1969.
No que tange à reestruturação do Sistema Financeiro Nacional temos
a criação do Banco Central que “constituir-se-ia em um órgão deliberativo
da política monetária em função do orçamento monetário através do qual
eram fixados tetos para as operações ativas, cuja soma determinaria a
expansão da base monetária” (PICCOLO, 2010, p. 129).
Foi criado o Sistema Financeiro de Habitação tendo como agência
principal o Banco Nacional de Habitação que utilizaria o FGTS como forma
de depósito compulsório e forma de financiamento à moradia popular que
daria ao governo todo o mérito das construções, no entanto sairia do bolso
dos trabalhadores grande parte do custeamento das obras. Além disso,
foram criados novos programas de seguro social - os já mencionados PISPASEP. Portanto o Sistema Financeiro Nacional passa a se organizar da
seguinte forma:
338 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Organograma 1 - Sistema Financeiro Nacional
É perceptível no organograma acima que há uma consolidação dos
conglomerados de financeiras, sobretudo privadas. Isso se dá pela
reestruturação do sistema capitalista em nível mundial14. É importante
ressaltar que o Brasil não se insere – neste período – no ideário neoliberal,
mas se apresenta participante da lógica capital-imperialista de forma
subsidiada, isto é, o domínio do capital multinacional e associado se
expande e atinge países da América Latina e o Brasil não estaria de fora.
14 Werbeth Belo (2017), em trabalho intitulado “Estado Capitalista Contemporâneo: análise teórico-conceitual para
o caso do Brasil sob a ditadura Empresarial-Militar”, apresenta um debate acerca do imperialismo recente destacando
que “várias interpretações acerca do capitalismo contemporâneo podem ser incorporadas aos trabalhos acadêmicos
que permitam uma análise mais profunda da sociedade contemporânea. É muito comum, no entanto, que se encontre
em trabalhos acadêmicos, e fora da academia, uma generalização a respeito da forma contemporânea do Estado
capitalista. Essa generalização perpassa por algumas formas de análise deste Estado, tais como: adoção da simples
forma do capitalismo como Estado burguês, sem sequer tentar perceber qual fração burguesa detém a hegemonia
do projeto estatal vigente; frequente análise da hegemonia norte-americana sem apresentar o contexto em que esta
nação se apresenta como nação hegemônica da nova forma capitalista; análise do Estado contemporâneo de forma
que este seja fruto de uma simples sequência de acontecimentos que tem a ver de forma mínima com a esfera
econômica em que este está inserido e; análise que apresenta esfera econômica completamente externa ao Estado, e
externa à política, de forma que durante a análise este Estado seja apresentado ora como Estado sujeito, ora como
Estado coisa [...].”. (BELO, 2017, p. 307). Alguns autores, no âmbito do marxismo, podem ser destacados: Marx,
Lenin, Poulantzas, François Chesnais, David Harvey e Virginia fontes.
Werbeth Serejo Belo | 339
Segundo Francisco de Oliveira em “A Economia da dependência
imperfeita” (1977) o PAEG “não muda o padrão de acumulação sustentado
na expansão do Departamento III15” e o remédio seria a contenção salarial.
O fato de o padrão de acumulação estar baseado no departamento III
demonstra que a produção estava voltada - sobretudo - para uma classe
média empresarial possuidora do poder de compra de carros e outros
produtos de difícil acesso à classe trabalhadora.
O capital financeiro, articulado aos oligopólios das multinacionais e
transnacionais, passa a ser o modelo de capital que conduz a economia
brasileira, entretanto, aliado ao capital industrial. Formam-se, assim, dois
blocos capitalistas no Brasil: “um sólido bloco capitalista gerando lucros
numa etapa de forte concentração de capital e o segundo bloco formado por
empresas nacionais de capital privado nacional” (OLIVEIRA, 1977, p. 95).
Neste período já há, além da abertura maior a empresas de capital
multinacional e associado, “a entrada de capitais sob a forma de
empréstimo” (OLIVEIRA, 1977, p.97) que caracterizaria este período como
“uma fase de preparação institucional da economia para o desempenho dos
oligopólios” (OLIVEIRA, 1977, p.97) que potencializariam a acumulação de
capital que poderá ser percebida entre 1969 e 1973 no Brasil.
Enquanto temos a interpretação de Francisco de Oliveira que prima
pela análise de luta entre classes, Roberto Campos (1994) aponta que entre
1964 e 1967 houve no Brasil uma “austeridade fiscal e monetária, realismo
cambial, taxas de juros positivas, abertura para o investimento estrangeiro
e integração na comunidade financeira internacional” (CAMPOS, 1994, p.
58) e assume que alguns princípios adotados pelo PAEG são princípios
adotados também por “países bem sucedidos” (CAMPOS, 1994, p. 58), isto
15 “Departamento I, produtor de bens de capital ou, em sentido lato, de bens de produção, pois inclui os chamados
bens intermediários, que são também capital constante; Departamento II, produtor de bens de consumo aos
trabalhadores (...) bens de consumo não duráveis; Departamento III, produtor de bens de consumo para os
capitalistas, (...) bens de consumo duráveis” (OLIVEIRA, 1977, p.77).
340 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
é, estes países: “mantiveram a estabilidade de preços através de políticas
monetárias e fiscais austeras; procuraram preservar estabilidade na
macroeconomia e competição na microeconomia; investiram pesadamente
em capital humano e em abertura internacional” (CAMPOS, 1994, p.58).
O argumento de Campos é perfeitamente válido para quem não
pretende fazer a reflexão a respeito de quem é o verdadeiro favorecido com
tais medidas, o que não é o caso do nosso trabalho. Procura-se aqui
perceber os meandros relacionais utilizados pela fração burguesa
financeira em prol da consolidação de seu projeto de condução do Estado
Restrito. Os argumentos de Roberto Campos, portanto, são válidos tão
somente para explicar a forma encontrada pela burguesia financeira para
a organização dos aparelhos da Sociedade Política.
O primeiro governo Empresarial-Militar buscou ‘preparar o terreno’
para as medidas desenvolvimentistas que seriam tomadas no “milagre
econômico”16. Para tanto, este período se utiliza de uma nova política
salarial e trabalhista que tinha três objetivos principais, segundo Sonia
Mendonça e Virginia Fontes (2001): a) a sujeição dos trabalhadores a um
verdadeiro programa de poupança forçada; b) a criação de um “novo”
sindicato, com funções mais assistencialistas que impedisse uma
organização efetiva da classe trabalhadora e; c) fortalecimento da
estrutura sindical e corporativa enquanto alicerce da coesão social.
(MENDONÇA; FONTES, 2001, p.22).
Portanto, o chamado “milagre econômico” tem suas bases na
reestruturação do Sistema Financeiro Nacional e nas novas diretrizes
16 Em artigo publicado intitulado “Entre o ‘milagre econômico’ e o ‘quinquênio de ouro’: análise introdutória dos
planos econômicos brasileiro e português (1968-1973)” Monica Piccolo e Werbeth Belo analisam em uma perspectiva
comparada os planos econômicos brasileiro e português em períodos de alto crescimento econômico nos dois países.
No caso brasileiro é analisado o I Plano Nacional de Desenvolvimento e no caso português o III Plano de Fomento.
Para maiores informações, conferir: PICCOLO, Monica; BELO, Werbeth Serejo. Entre o “milagre econômico” e o
“quinquênio de ouro”: análise introdutória dos planos econômicos brasileiro e português (1968-1973). Revista
Maracanan, Rio de Janeiro, n. 23, p. 248-267, jan.-abr. 2020.
Werbeth Serejo Belo | 341
econômicas adotadas pelo PAEG que visavam à estabilidade econômica
necessária ao posterior desenvolvimento. Para o financiamento deste
projeto, inúmeros think tanks17 são utilizados ao longo das décadas de 1960
e 1970 a fim de que pudesse garantir a hegemonia do projeto de condução
estatal tão almejado pela fração burguesa financeira aliada à fração
industrial.
Considerações finais
Em 1964, com o golpe, os militares e a fração civil que estava inserida
em todo o Estado Restrito postulavam a Doutrina de Segurança18 Nacional
no que diz respeito à política e defendiam, na esfera econômica, o dito
desenvolvimento do país. No entanto, só se obteria o desenvolvimento a
partir de uma reforma de toda a estrutura econômica do país, inicialmente
articulada por Octavio Gouveia de Bulhões (ministro da fazenda) e Roberto
Campos (ministro do planejamento), responsáveis pela opção adotada
pelo país no que diz respeito à condução da economia, a partir da
implementação do PAEG em 1964.
Para que as reformas fossem concretizadas e a fração da classe
dominante – que havia tomado o poder juntamente com os militares –
permanecesse no poder e para que o dito desenvolvimento se
concretizasse, abrindo caminho para o imperialismo19 e o CapitalImperialismo20 seriam necessários instrumentos de coerção e de
17 Segundo Denise Barbosa Gros (2008) think tanks são institutos privados de pesquisa que estão presentes no
processo de formulação de políticas públicas que são financiados por doações de grandes empresas.
18Segundo Maria Helena Moreira Alves, “A ideologia de segurança nacional contida na doutrina de segurança
nacional e desenvolvimento foi um instrumento importante para a perpetuação das estruturas de Estado destinadas
a facilitar o desenvolvimento capitalista associado-dependente” (ALVES, 1984, p. 26)
19 Segundo Lenin o Imperialismo é uma fase superior do capitalismo. Nesta fase há uma concentração da produção
que leva aos monopólios que são a lei fundamental desta fase do capitalismo. Há, ainda, nesta fase, segundo Lenin,
a consolidação do capital financeiro o qual é o somatório do capital industrial com o bancário, isto é, os bancos atuam
de forma que financiam as indústrias (LENIN, 2008).
20 Segundo Virgínia Fontes, o capitalismo contemporâneo está em sua fase imperialista, mas apresenta algumas
particularidades que, no contexto de escrita de Lenin ainda não poderiam ser percebidas. Segundo a autora, “falar
em capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a
342 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
construção de consenso21 por parte da Sociedade Política no dito período
aqui estudado.
A coerção era exercida, sobretudo, com a promulgação dos Atos
Institucionais e pela utilização da polícia política, enquanto o consenso era
construído a partir da utilização da Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento, sobretudo este último como forma de legitimar a
tomada do poder ocorrida em 1964.
Este consenso era construído por meio da utilização de alguns
Aparelhos Privados de Hegemonia22 como os jornais, rádio, TV, além de
empresas e instituições em geral inseridas no âmbito da Sociedade Civil,
mas que tinham como dirigentes os próprios membros da fração da classe
dominante que estava inserida no Estado Restrito. Dreifuss (1987) cita
algumas instituições como sendo esses aparelhos privados de hegemonia:
o complexo IPES-IBAD23 e o CAMDE24.
Referências
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis:
Editora Vozes, 1984.
Guerra Fria que exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente consorciando-os. Derivada
do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação interna do capital necessita e se complementa por sua
expansão externa, não apenas de forma mercantil, ou através da exportação de bens ou de capitais, mas também
impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção (terras), de direitos e de suas
próprias condições de existência ambiental e biológica” (FONTES, 2010, p. 149).
21 Coerção e Consenso, segundo Gramsci, são uma forma dual de estabelecer relações dentro da sociedade em prol
da manutenção da hegemonia de certo projeto (GRAMSCI, 2012)
22 São considerados aparelhos privados de hegemonia as instituições localizadas na sociedade civil como a imprensa,
por exemplo, utilizadas para garantirem a hegemonia de determinado projeto, ou mesmo, garantirem que um novo
projeto se torne hegemônico (GRAMSCI. 2012)
23Segundo Dreifuss (1987), o IPES, depois de abril de 1964, “foi transformado em um eficaz ‘órgão intermediário’
para a elaboração de diretrizes políticas. Operava como um mediador entre o Estado, onde tinha seus homens-chave
em cargos vitais, e os grandes interesses privados, dos quais seus ativistas eram figuras de destaque” (DREIFUSS,
1987, p. 449).
24 A CAMDE, segundo Dreifuss (1987), “organizava reuniões de protesto, escrevia milhares de cartas aos deputados
e da mesma forma que o IBAD, pressionava firmas comerciais para retirarem seus anúncios dos jornais pró João
Goulart ou orientados pela esquerda e o trabalhismo” (DREIFUSS, 1987, p. 297).
Werbeth Serejo Belo | 343
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África e africanidades
Capítulo XX
Narrativas de mulheres negras em Florianópolis
sobre Áfricas: oralidades, corpos e movimentos
Carol Lima de Carvalho 1
Considerações iniciais
O presente trabalho tem como intuito apresentar reflexões sobre a
pesquisa que venho desenvolvendo a respeito da história de mulheres
negras em Florianópolis. O objetivo foi identificar em seus universos
culturais
as
suas
narrativas
sobre
Áfricas,
considerando
os
atravessamentos das dinâmicas sociais, culturais e políticas em suas
trajetórias de vida e que de algum modo perpassam os conceitos de
oralidade, tradição oral, ancestralidade, corporeidade e movimentos.
Elementos importantes para pensarmos as memórias afrodiaspóricas
ancoradas em corpos negros.
Este trabalho emergiu através da necessidade de evidenciar
epistemologias e narrativas plurais sobre mulheres negras catarinenses,
em que a sua condição de mulher, negra e majoritariamente vindas de
situações sociais excludentes, as impedem de disfrutar formas de bem
viver. As inquietações que também configuraram esta pesquisa são frutos
da minha trajetória de vida, enquanto mulher negra buscando destacar o
movimento de mulheres negras e sua relação intensa com a educação e
com laços culturais vitais de nossas culturas de ancestrais matrizes orais.
Embora minha trajetória tenha fortes laços com formação
antirracista, inserida em contexto familiar baseado em matrizes culturais
1
Doutoranda – Universidade do Estado de Santa Catarina; carolimac18@gmail.com
350 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
afro-brasileiras, num determinado momento algumas lacunas surgiram,
principalmente no que se refere às especificidades das mulheres negras,
tornando ainda mais forte o anseio de buscar suas/nossas histórias em
Florianópolis.
Ao me aproximar dos estudos sobre as mulheres negras me vinculei
a Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB umas das
primeiras organizações que se intitulam ser formadas por mulheres
negras, além das quatro principais fundadoras serem reconhecidas na
cidade de Florianópolis por seus trabalhos envolvendo educação, cultura e
saúde da população afro-brasileira, em prol de uma sociedade catarinense
livre de racismo e discriminações.
A trajetória da organização é baseada na intenção de lutar contra o
racismo, contra as violências, pela equidade e bem viver. Caminhos
iniciam na década de 1980, elas se organizaram como grupo intitulado
Mulheres Negras Nós, já na década de 1990 o grupo passou a se reconhecer
como Grupo de Mulheres Negras Cor de Nação, e Grupo de Mulheres
Negras Antonieta de Barros, e em 2001, diante de uma necessidade de
caráter jurídico elas fundam a Associação de Mulheres Negras Antonieta
de Barros (AMAB), presente até os dias atuais, enquanto uma sociedade
sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria.
Ademais, enfatizando os percursos de minha pesquisa, após encontro
com AMAB e também alguns diálogos com orientação sobre minha
trajetória de vida, resolvemos que a discussão da pesquisa a discussão
iniciaria pelas mulheres negras de minha família. Pois sou bisneta, neta e
filha de mulheres negras matriarcas de suas famílias, educadoras e
protagonistas de grandes histórias na cidade de Florianópolis. Estas
protagonistas que me inspiraram a fortalecer e dar visibilidade a história
das mulheres negras catarinenses, me antecederam e projetaram um
mundo que hoje eu usufruo.
Carol Lima de Carvalho | 351
Diante da apresentação das concepções fundamentais para esta
pesquisa, a ideia do texto é, portanto, apresentar um breve recorte desta
pesquisa que venho desenvolvendo sobre histórias de mulheres negras em
Florianópolis, focando nas construções de narrativas sobre Áfricas em suas
trajetórias de vida, além de proporcionar uma reflexão sobre a
importância de visibilizar histórias e memórias afro-diaspóricas.
As protagonistas: presença e protagonismo neste enredo
As protagonistas deste enredo são minha bisavó, Gesuína Adelaide
dos Santos, mais conhecida como Dona Geninha nascida no ano de 1920,
no bairro da Freguesia do Ribeirão da Ilha, na cidade de Florianópolis. Ela
fundou e presidiu durante dezoito anos uma escola de samba chamada
Império do Samba (1971 a 1989), esse processo era intenso, a ponto da
escola se confundir com a sua vida, o nome era Império do samba, mas
era conhecida como “escola da dona Geninha”.
O último desfile foi em 1989 e a Dona Geninha faleceu aos oitenta e
cinco anos, em 2005, deixando um legado aos seus filhos, netos e bisnetos.
Na sua trajetória foi possível perceber que o seu “corpo vivo, com seus
gestos, movimentos e interações simbólicas configuraram-se em arquivo
de memória” (ANTONACCI, 2017, p. 160). Nesse sentido, seu corpo
reverberava aspectos das memórias afro-diaspóricas e a possiblidade de
construção a respeito das narrativas sobre Áfricas em Florianópolis,
permeadas de oralidade, ancestralidades, tradições orais, corporeidades e
movimentos.
Assim como dona Geninha, sua filha, dona Ada Jesuína dos Santos,
minha avó materna, nascida em 1940, na costeira do Ribeirão da Ilha,
inicia, dentro do que lhe era possível, trabalhou na Universidade. Ela fez
um concurso para agente administrativa, ela ficava na portaria, abria as
salas, fazia o café, entregava materiais para professores. Começou a
352 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
trabalhar no Departamento de Matemática, depois foi pro Centro de
Filosofia e Ciências Humanas – CFH. Dona Ada frequentava espaços
culturais que marcaram sua trajetória. A praça XV no centro da cidade, os
desfiles de escola de samba, as festas de Cosme e Damião, festas do Boi de
mamão e, principalmente, os Bailes Municipais de Florianópolis e o bloco
Zé Pereira. Todos espaços marcados por dinâmicas orais, identidades e
identificações negras.
Considerando o debate sobre as identidades, os pensamentos desta
pesquisa convergem com concepções de Nilma Lino Gomes, a autora
acredita que a “construção de uma identidade negra positiva em uma
sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que
para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado
pelos negros e pelas negras brasileiras(os)” (GOMES, 2012, p. 43).
Nesse sentido, na medida em que busco nestes escritos evidenciar os
universos culturais de mulheres negras em Florianópolis e suas narrativas
sobre Áfricas, é um movimento desafiador, porém, o intuito de viabilizar
histórias e memórias da população negra na cidade transcendem,
perspectivando assim uma sociedade mais plural e democrática, além de
contribuir para construção de identidades e identificações negras na
capital catarinense.
Neste viés, pensando na importância em romper com cenário
hegemônico na escrita da história da cidade, a minha avó paterna, Zenair
Maria de Carvalho, nascida em 1935, na cidade de Florianópolis, nos
apresenta uma trajetória de vida permeada pelo anseio de ser professora
normalista e alfabetizadora, diante dos desafios do racismo e machismo,
ela seguiu esta carreira, a qual se dedicou integralmente. Assim como a
dedicação na criação do seu único filho João, em que conseguimos observar
uma forte presença da tradição oral e ancestralidade em sua relação. Dona
Zenair transmitiu conhecimento que adquiriu com meus pais para o seu
Carol Lima de Carvalho | 353
filho.
Muitas
vezes,
conhecimentos
ancorados
em
memórias
afrodiaspóricas. Dona Zenair faleceu aos sessenta e três anos.
Além das três protagonistas da pesquisa vinculadas a minha família,
dialoguei com as quatro fundadoras da Associação de Mulheres Negras
Antonieta de Barros (AMAB), cabe ressaltar que suas histórias se cruzam,
a primeira é dona Valdeonira Silva dos Anjos, nasceu na cidade de
Florianópolis em 1935, no Morro da Caixa d’água, estudou junto com
minha avó Zenair, acompanhou crescimentos, desafios e conquistas uma
da outra. Dona Valdeonira é formada em magistério e aderiu como
profissão. Algo que chama atenção em sua trajetória é a luta pela
visibilidade das histórias das populações negras catarinenses, em seu
corpo há anseio de justiça e reconhecimento, compreendendo a
importância de evidenciar as lutas por sobrevivência.
Diante disso, ela decide cursar história, ela me relata que seu
“objetivo no curso de História era eminentemente estudar sobre o negro,
sempre queria fazer trabalho sobre o negro” (ANJOS, 2016)2. Através da
educação ela reverbera narrativas negras por onde percorre. Por fim, algo
a se destacar sobre dona Valdeonira é uma participação na Companhia de
Fuxico, produção que está firmemente atrelada as dinâmicas das
concepções de conhecimentos ancestrais, uma vez que elas produzem,
também cantam ou contam uma história, muitas delas relacionadas as
populações africanas ou afro-brasileiras. Compreendem a importância da
oralidade e dos elementos que compõem os seus corpos negros.
No mesmo bairro de dona Valdeonira tem outra protagonista deste
enredo, a dona Maria de Lourdes da Costa Gonzaga, conhecida por dona
Uda, nascida em 1938 na cidade de Florianópolis, durante sua trajetória
2 Trecho retirado da entrevista realizada no ano de 2016 para elaboração do trabalho de conclusão de curso em
História intitulado “Negras em movimento: Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros” defendido no ano
de 2016 na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
354 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
foi professora de uma escola no morro e tem como luta a educação para
todos e todas. Ela presidiu a escola durante dois anos após o falecimento
de seu marido. Atualmente ela abre sua casa para organizar a ala das
crianças e das baianas da escola de samba Embaixada Copa Lord, assim
como para as aulas de catequese. Suas portas estão sempre abertas, algo
significativo para pensarmos comunitariamente e coletivamente
considerando um dos valores civilizatórios africanos.
Nesta caminhada de luta, dona Uda também encontra dona Altair
Alves Lucio, também protagonista desta pesquisa, ela nasceu na cidade de
Tubarão no ano de 1944, formada em Magistério, exercendo na Profissão
por muitos anos. Ao finalizar o magistério iniciou o curso superior em
licenciatura em Pedagogia. Importa destacar em sua trajetória a referência
que ela se tornou na cidade, mulher negra em movimento, lutou pelos
estudos da Educação das Relações Étnico Raciais (ERER), uma educação
para todas as pessoas e a Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Rede
Municipal de Ensino de Florianópolis. Atuou também na Universidade
sendo uma das fundadoras do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da
Universidade do Estado de Santa Catarina.
Por fim, ao pensarmos no ambiente da Universidade, destaco a
trajetória de vida de dona Neli Góes Ribeiro nascida em 1948 na cidade de
Florianópolis, passou infância e adolescência no bairro Estreito, na região
continental da cidade. Ela é formada em Pedagogia e mestre em Educação.
Dona Neli é referência dentro da UDESC, instituição em que dedicou
longos anos, ocupou diversos cargos como por exemplo, chefia de
Departamento da Pedagogia, Diretora de Extensão de centro e também
Pró Reitora de Extensão, além de ser uma das fundadoras
Núcleo de
Estudos Afro- Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina.
A dona Neli ocupando este lugar possibilitou, também em conjunto
com a AMAB, a proposição de programas e projetos que possibilitaram o
Carol Lima de Carvalho | 355
acesso e permanência de homens e mulheres negras na Universidade,
garantiu a discussão sobre Educação das Relações Étnico Raciais (ERER)
deixando um legado de luta e resistência no ambiente acadêmico, uma
mulher negra em movimento.
As Áfricas em suas narrativas: mulheres negras e seus universos culturais
afrodiaspóricos em Florianópolis.
A pesquisa teve como universo espacial a cidade de Florianópolis,
mais precisamente nos bairros: Freguesia do Ribeirão da Ilha, Estreito,
Balneário do Estreito e Morro da Caixa d’água. A escolha por estes locais
está imbricada ao espaço circulado pelas protagonistas desta pesquisa.
Além de considerarmos relevante o período dos anos de 1950 a 1980, pois
neste momento as protagonistas estavam atuando na cidade, imersas às
conjunturas políticas, sociais e culturais marcadas pela ditadura militar e
a emergência dos movimentos sociais no Brasil.
Por meio de alguns documentos retirados dos acervos particulares e
familiares, da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros –
AMAB, da Casa da Memória, do Instituto de Documentação e Investigação
em Ciências Humanas- IDCH e da Biblioteca Pública do Estado de Santa
Catarina, assim como entrevistas com protagonistas ou representantes
delas para aquelas que já fizeram a passagem, a ideia foi identificar seus
universos culturais na cidade, considerando as dinâmicas de oralidades e
letramentos que envolviam suas trajetórias de vida.
Dito isso, importa destacar a maneira como os conceitos são
compreendidos nesta pesquisa, a concepção de oralidade versa a partir das
ideias de Antonacci (2009) destacando que sociedades africanas em
regime de oralidade, “em seu elenco de gêneros de linguagens orais,
ampliou percepções de práticas culturais de comunicação inerentes a
corpos e memórias de africanos, que transportaram suas heranças para o
Brasil” (ANTONACCI, 2009, p, 54). Isto é, a oralidade possibilitou
356 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
interlocuções Áfricas/Brasil através do corpo e da fala, reverberando nos
“significados políticos e estéticos de festas, danças, ritmos que, ética e
liminarmente, vêm configurando corpos e ritos africanos como
comunitários monumentos históricos na guarda e transmissão de culturas
sob regime de oralidade” (ANTONACCI, 2009, p, 54).
Além disso, Dumas (2012) destaca que muitas vezes o conceito de
oralidade fica subjugado à percepção humana de expressar e perceber
através do falar e do ouvir, sugerindo corpos reduzidos à boca e ao ouvido
(DUMAS, 2012, p. 152). No entanto, ao trazer concepções de Paul Gilroy
sobre a oralidade que “parte de um corpo amplo, com os sentidos abertos
à percepção e captação de conhecimentos e não apenas como o que fica
sugerido no étimo oral” (DUMAS, 2012, p. 152). Este corpo amplo também
é evidenciado nos estudos de Antonacci e que é possível refletir sobre
corporeidades, a autora destaca que são “expressivas possibilidades de
apreensão de corpos negros e tradições orais africanas, em circuitos
África/Brasil/África” (ANTONACCI, 2009, p. 52). E assim, é preciso
considerar os “tempos, gestos, danças, narrativas e performances
desprezadas pela avalanche da civilização euroocidental” (ANTONACCI,
2009, p. 52).
Para esta pesquisa, o corpo também está vinculado ao conceito de
resistir que é entendido através do “corpo como instrumento de
resistência sociocultural e como agente emancipador da escravidão. Seja
pela religiosidade, pela dança, pela luta, pela expressão, pois a via corporal
foi o percurso adotado para o combate, resistência e construção da
identidade” (KABENGELE; GOMES,2006, p.152). Isto é, “o corpo negro
pode ser entendido ainda como existência natural e simbólica dos negros
em nossa sociedade e também como corpo político” (GOMES, 2017, p. 98).
Estava presente na pesquisa também a ideia de decolonialidade de
corpos e pedagogia decolonial, a partir de Glissant (2005); Antonacci
Carol Lima de Carvalho | 357
(2009;2013); Irobi (2012); Mbembe (2014); Quijano (2005); Walsh (2009)
na intenção de proporcionar uma mudança de postura política,
epistemológica e acadêmica diante da historiografia catarinense e
sobretudo de mulheres negras no sul do Brasil. Neste sentido, compõem a
pesquisa as produções por e sobre mulheres negras brasileiras e africanas
para potencializar os diálogos proporcionados pela pesquisa, nos
debruçamos nos escritos de Truth (1797); Reis (1859); Jesus (1960);
Nascimento (1970); Gonzalez (1982); Davis (1980); Carneiro (2003);
Evaristo (2008); Werneck (2009); Collins (2015).
Ademais, atrelada a esta concepção de oralidade, memórias
ancoradas em corpos negros, corpos políticos e decolonialidade, está a
ideia de tradição oral, entendida como costumes, saberes e narrativas que
passam de geração em geração por séculos, isto é, de acordo com ideias de
Hampaté Bâ focadas na memória viva, a qual os “conhecimentos de toda
espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a
discípulo, ao longo dos séculos” (1982, p.167). Além disso, de acordo com
Damasceno (2019),
Esta forma envolve uma visão particular do mundo, ou melhor, uma presença
particular no mundo. Desta forma, no seio das famílias, a tradição oral conta
com a participação dos mais velhos, que ministram ensinamentos ligados às
circunstancias da vida (experiências vividas), mas também por meio de
histórias, fábulas, lendas, em que evocam os grandes feitos dos seus ancestrais
(DAMASCENO, 2019, p. 2).
Algo importante para a concepção de tradição oral é a ancestralidade,
nesta pesquisa este conceito está compreendido a partir de um tempo
relacional, ou seja, um tempo da natureza, não é linear e nem circular,
significa que está diretamente relacionada ao fato de aprenderem com
aquelas que as antecederam. Desse modo, é importante evidenciar a
358 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
ancestralidade como aspecto fundamental no “processo de formação
identitária e de libertação, especialmente das pessoas inseridas nos
contextos sociais desprivilegiados, pois implica em conhecer e reconhecerse na construção de sua história e missão de vida” (MACHADO; ABIB, 2011,
p. 6). A ancestralidade nos permite pensar os corpos em movimentos,
nesta pesquisa, são mulheres negras se movimentando. A ideia é
evidenciar as suas experiências de vida atravessadas pelo racismo, sexismo
e machismo, além das resistências e pluralidades que as levam a aderir às
práticas antirracistas na perspectiva de (re)existirem na sociedade.
Desse modo, todas estas concepções analisadas numa perspectiva
interseccional, pois seus percursos são atravessados pelo racismo,
sexismo, machismo, classicismo. Para isso, o diálogo foi em torno das
concepções de Crenshaw (2002); Davis (1981); Ribeiro (2017); Akotirene
(2019); Kyrillos (2020) considerando que esta concepção esteve presente
há muito tempo nas experiências e articulações de mulheres negras,
potencializando o conceito e evidenciando ser muito além de uma
categoria e sim uma postura de sentir e pensar o mundo.
Portanto, segundo Djamila Ribeiro, “a combinação de opressões
coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade
permite uma verdadeira prática que não negue identidades em detrimento
de outras” (RIBEIRO, 2017, p. 3). Além disso, Kiimberlé Crenshaw (2002)
ao propor uma discussão sobre a perspectiva interseccional destaca que o
“racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições
relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002,
p. 177).
A autora Gabriela Kyrillos (2020) ao realizar uma análise crítica
sobre os antecedentes da interseccionalidade aponta para os cuidados de
não esvaziamento do conceito, em relação a isso, Kyrillos destaca que o
Carol Lima de Carvalho | 359
“apagamento se torna especialmente grava quando se observa que a
origem da interseccionalidade está relacionada com as luta sociais e as
elaborações teóricas de mulheres negras” (KYRILLOS, 2020, p.2). Além
disso, a autora complementa “a ideia basilar da interseccionalidade é uma
preocupação que já existia dos movimentos sociais e de textos teóricos
desde muito antes do surgimento do termo e a apropriação no meio
acadêmico” (KYRILLOS, 2020, p. 2). Isto é antes da academia passar a
reconhecer o conceito, as dinâmicas dos movimentos de mulheres negras
e movimentos feministas negros tinham como dinâmica uma perspectiva
interseccional.
Cabe ressaltar também que a autora Carla Akotirene (2019) também
traz reflexões sobre interseccionalidade, pois para as mulheres negras e
feministas negras ele é muito mais que um conceito, é uma teoria e uma
ferramenta de luta política que emerge das ações cotidianas. Através das
experiências de enfrentamentos e desafios políticos das mulheres negras é
que se constitui os pensamentos feministas. Nesse sentido, para a autora,
“a interseccionalidade instrumentaliza os movimentos antirracistas,
feministas e instâncias protetivas dos direitos humanos a liderarem com
as pautas das mulheres negras” (AKOTIRENE, 2019, p. 62) Akotirene
destaca portanto que a interseccionalidade é uma ferramenta teórica e
metodológica usada para pensar a estrutura do racismo, capitalismo e
cisheteropatriarcado. Desse modo, as trajetórias de vida de mulheres
negras, sejam elas articuladas em movimentos sociais ou não, devem ser
reconhecidas a partir da interseccionalidade, principalmente por
compreendê-las como sujeitos plurais.
Dito isso, os conceitos, categorias e autores/as evidenciadas acima
compõem a analise desta pesquisa. Importa destacar que as mulheres
negras apontam a relevância daquelas que as antecederam, pois lutaram
por direitos, cidadania, educação e melhores condições de vida, fazendo
360 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
com que elas pudessem dar continuidade a estas dinâmicas de
(re)existências. E este movimento possibilitou identificarmos aspectos
interessantes dentro de seus universos culturais, como por exemplo, a
tradição oral, oralidade, corporeidade, movimentos e decolonialidade
presentes nos espaços aos quais elas frequentaram e construíram na
cidade.
Um dos espaços que evidencio são as escolas de samba e também a
produção do fuxico, que para elas eram momentos de sociabilidades e que
permitiam visualizarmos as dinâmicas orais, corporais e de movimentos.
Algo interessante para destacar neste sentido é a relação entre o dia a dia
das mulheres negras em Florianópolis, autora Brignol (2003) em seus
escritos evidenciou o cotidiano das mulheres afrodescendentes entre o
século XIX e início do XX, destacando elementos dos universos femininos
negros. Resultado de suas análises foram as relações entre corpos e os
conhecimentos
ancestrais
transmitidos
através
da
oralidade,
possibilitando construção de identidades e identificações negras em
Florianópolis.
Atrelado a essa perspectiva de corpos negros e conhecimentos
ancestrais, existe a musicalidade, um dos valores civilizatórios africanos
que está presente tanto nos carnavais de escola de samba, blocos de rua e
cotidiano dos universos culturais negros. Neste sentido, cabe destacar o
bloco de carnaval Zé Pereira, festa que emergiu na Freguesia do Ribeirão
da Ilha. O bloco proporcionava uma articulação e sociabilidade entre as
mulheres e homens negros da cidade. Além de ter sido enredo de muitas
escolas de samba da cidade.
Outros espaços que evidenciavam uma ideia de comunitarismo e
comunidade eram as praças, a primeira Praça da Freguesia e a Praça XV
de Novembro (no centro da cidade) locais em que a movimentação entre
a população negra era intensa, na qual utilizavam da oralidade para se
Carol Lima de Carvalho | 361
comunicarem, transmitir e produzir conhecimentos. Assim como os Bailes
Municipais e Clubes Negros, locais que evidenciam as corporeidades,
movimentos e as formas de estar e ser no mundo. O Boi de mamão no
Estreito, movimentava toda população. Por fim, a ancestralidade e
espiritualidade presentes nas suas religiões Umbanda, Candomblé,
Católica e Espírita.
Todos estes universos culturais identificamos os conceitos
apresentados, assim como uma mobilidade social que proporcionou um
protagonismo destas mulheres na cidade e que contribuem para
deslocarmos nossos pensamentos e evidenciarmos narrativas outras sobre
a construção da cidade de Florianópolis.
Considerações finais
Diante de tudo que foi apresentado até aqui, convido você pra leitura
da pesquisa intitulada “Trajetórias de mulheres negras em Florianópolis:
transmitindo entre oralidades e letramentos” a qual estou dialogando com
mais detalhes sobre as histórias e memórias das protagonistas, dissertação
foi orientada pela Profa. Dra. Maria Antonieta Antonacci e defendida em
março de 2019.
Nós consideramos este trabalho um indicativo para estudos
referentes às mulheres negras catarinenses. Além de possibilitar a
ampliação dos pensamentos referentes aos universos culturais da
educação, dos espaços culturais e sociais, e mulheres negras em
movimento, assim buscando uma perspectiva decolonial para discussões.
E por fim, buscando uma alteração do cenário hegemônico a respeito
da história de Santa Catarina, viabilizando a presença da população negra,
sobretudo das mulheres, assim como cooperar com implementação da Lei
Federal 10.639/03 em todos âmbitos escolares.
362 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Referencias
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364 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
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Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. Educação intercultural na América Latina:
entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro, v. 7, p. 12-43, 2009, p. 23.
Capítulo XXI
Biblioteca Virtual do AYA Laboratório de
Estudos Pós-coloniais e Decoloniais: pesquisa,
produção e divulgação de conhecimentos plurais
Helena Fediuk Gohl 1
Luiza Ferreira da Silva 2
O projeto “Biblioteca Virtual Estudos Africanos e Indígenas” é uma
ação de extensão do Programa “Histórias Africanas e Indígenas: olhares e
práticas na educação”, desenvolvido no Laboratório de Estudos Póscoloniais e Decoloniais - AYA (UDESC/FAED)3. O Programa de Extensão
tem como objetivo contribuir para a implementação das Leis Federais
10.639/03 e 11.645/08 e suas diretrizes correspondentes, que tornam
obrigatório o ensino de cultura e história africana, afro-brasileira e
indígena no ensino fundamental, médio e superior, público e privado. O
escopo do projeto é a criação e divulgação de materiais que contribuem
para a qualificação profissional dos professores da rede de ensino e de
acadêmicos de graduação e pós-graduação do campo das Ciências
Humanas, embora o alcance extrapole os muros da universidade e as
fronteiras do Brasil. O Laboratório AYA tem como base a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão, articulados em uma relação dialógica
com a sociedade (MORTARI; WITTMANN, 2018, p.161), desta forma
desenvolve a teoria e a prática de forma conjunta na formulação e
divulgação do conhecimento, visando contribuir para a luta e educação
1
Graduada - Universidade Estadual do Estado de Santa Catarina; helenagohl18@gmail.com
2
Graduanda - Universidade Estadual do Estado de Santa Catarina; lu.ferreiradasilva1109@gmail.com
3 Participantes desta ação: Adriano da Silva Denovac; Cadídja Assis Pinto; Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da
Silva; Emílio Ranieri Migliorini; Rodrigo Ferreira dos Reis. Orientado por Profª Drª Claudia Mortari e Profª Drª
Luísa Tombini Wittmann.
366 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
antirracista. Paulin Hountondji (2010, p.133) nos questiona: “quão
africanos são os chamados estudos africanos?” Este apontamento levanta
questões sobre o discurso histórico e a invisibilização de populações
africanas, onde a produção historiográfica legitimada é sobre África,
porém não no diálogo com e a partir de África, o que serve para pensar
também as histórias indígenas comumente contadas.
O epistemicídio consiste em um processo colonial constante de
deslegitimação de pessoas racializadas e de suas capacidades como sujeitos
cognoscentes, produtores e portadores de conhecimento, assim como a
inferiorização de suas produções em um sequestro duplo: a negação de sua
racionalidade e a imposição de uma assimilação cultural (CARNEIRO, 2005,
p.97). A história do Brasil é constituída no silenciamento das realidades de
populações afro-brasileiras, africanas e indígenas4. Considerando este
contexto, esta ação de extensão trabalha a partir da pesquisa, análise,
produção e divulgação de materiais (audiovisuais, escritos, sonoros,
imagéticos e pedagógicos) produzidos em diferentes espaços de memória,
sobretudo por africanos/as, indígenas e afro-brasileiros/as. O site da
Biblioteca Virtual AYA intenciona disponibilizar produções diversas sem
hierarquizar o saber e o sentir, compreendendo que o conhecimento
ultrapassa as barreiras da universidade, procurando “um movimento contra
as fronteiras e para além delas” (HOOKS, 2017, p. 24). Permeando todas as
vivências e suas especificidades, desta forma, promovendo reflexões críticas
sobre a sociedade e compartilhando o sensível.
Este trabalho objetiva apresentar três eixos do site5, analisando suas
características e intencionalidades, assim como o processo de pesquisa
4 Discussão abordada no texto “Histórias compartilhadas: propostas universitárias de construção de conhecimentos
decolonizados” da Profa. Dra. Claudia Mortari e Profa. Dra. Luisa Tombini Wittmann.
5 O site também possui o eixo “Ver e Ouvir”, voltado para produções sonoras e audiovisuais, ao qual abordaremos
brevemente.
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 367
realizado pelos/as bolsistas na organização dos materiais para a biblioteca.
São eles: “Experiências Sonoras”, espaço de sentipensar na articulação
entre músicos africanos e indígenas; “Sala de Aula”, voltado para a
divulgação de materiais didáticos nas temáticas afro-brasileiras, africanas
e indígenas e “Para Ler”, onde realizamos a divulgação de textos
acadêmicos do campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais, e de
intelectuais indígenas, africanos e afro-diaspóricos. Este trabalho foi
inscrito no eixo temático de África e Africanidades por isso, focalizaremos
nos materiais relacionados a esta temática. Contudo, ressaltamos que os
materiais indígenas possuem igual protagonismo e importância para esta
ação de extensão.
O projeto “Experiências Sonoras” nasceu como uma nova estratégia
de postagens para o site, incentivando as produções próprias do
laboratório com o objetivo de qualificar as pesquisas a partir de materiais
pós e decoloniais. A princípio, o interesse do grupo voltou-se para o campo
artístico, decidindo por trabalhar com músicos africanos, africanas e
indígenas. Tentamos alguns formatos e com o decorrer das orientações
das professoras fomos instruídas a fazer um levantamento mais
aprofundado de artistas, focando em, como nos disse Profa. Dr. Claudia
Mortari, “ouvir aos mais velhos”. O processo de levantamento foi
engrandecedor, expandido nossa visão sobre a riqueza e multiplicidade de
músicos e suas diferentes abordagens. Porém, logo fomos alertados pelo
integrante do grupo Ms. Adriano Denovac do caráter colonial de
encaixarmos estes artistas em “caixas”6, algo que foi constatado ao longo
do processo, onde notamos que as intencionalidades permeiam os mais
diferentes aspectos contextuais e culturais, impossibilitando definições
simplórias.
6 Refere-se ao modelo de levantamento dos artistas, nos quais a tabela focava em “artistas”, “gênero musical” e
“intencionalidade”
368 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Aprofundamos o debate com a leitura da entrevista de Rolando
Vázquez (2016), “Aiesthesis decolonial y los tiempos relacionales” e o texto
“Aesthesis Decolonial” de Walter Mignolo (2014), re-elaborando a proposta,
decidindo na “construção de um espaço de diálogos múltiplos a partir do
compartilhamento de músicas de artistas indígenas e africanas/os, para um
exercício de escuta profunda. Além de ouvir, buscamos sentir essas
composições instigando a aesthesis, aqui entendida como o processo de
liberação dos sentidos7 (VÁZQUEZ, 2016, p.6). Ao iniciarmos a escrita, nos
deparamos com a dificuldade de deslocamento das percepções coloniais que
embaçam o olhar, e fomos instruídas ao giro epistêmico e estético
(MALDONADO, 2018, p.46), partido dos artistas e suas produções para a
reflexão, evitando focar nas faltas e silenciamentos impostos pela
colonialidade. Atualmente, já realizamos a análise de questões como música
e tradição; música e corpo-memória; movimentos sociais e sonsresistências; educação, resistência e territorialidades. Sempre no diálogo
com e a partir dos artistas8 e textos de intelectuais africanos e afrodiaspóricos, articulando suas aproximações, sensações e contextos9.
Como produções próprias do laboratório, assinalamos o lançamento
do primeiro episódio do AYAcast10 no dia 04 de novembro de 2020. Na
série inicial, intitulada Narrativas e Histórias Plurais, os episódios são
resultantes dos férteis diálogos desenvolvidos no I Encontro Pós-Colonial
7 Para saber mais sobre a proposta, aesthesis e acessar os textos produzidos: https://ayalaboratorio.com/
2020/06/26/projeto-musica/
8 Artistas africanos já abordados: Amadou & Mariam, Fela Kuti, Orlando Owoh e as bandas Tinariwen e Atri
N’Assouf. Sempre presente nas postagens no mínimo um artista africano e um indígena para a promoção conjunta
do sentir-pensar. As referências de cada texto estão disponíveis nas respectivas publicações.
9 O primeiro texto intitulado “Convidamos você a um momento de escuta”, pontua algumas questões que
transcorrem os textos: “O que é possível aprender com esses artistas? Quais deslocamentos essas músicas provocam?
Quais ideias novas e modos de ação no mundo elas instigam? O que eu vejo e o que me olha? Entre as duas coisas
estamos nós”.
10 Produção e Concepção: Profa. Dra. Claudia Mortari e Profa. Dra. Luisa Tombini Wittmann. Roteiro: Siméia de
Mello Araújo, Maria Cristina Martins Calixto Coelho Cardoso, Isabel Idiarte Dargélio. Narrador e editor: Vinicíus
Pinto Gomes. Voz de Chimamanda Adiche: Siméia de Mello Araújo. Disponível em:
<https://ayalaboratorio.com/2020/11/04/lancamento-do-ayacast-podcast-do-aya-episodio-01-sobre-historias/>
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 369
e Decolonial (I EPD), ocorrido em outubro de 2019, organizado pelo
Laboratório AYA na UDESC, e buscam, a partir da interlocução com
pesquisadores/as, docentes, intelectuais e militantes sociais, difundir
histórias e culturas de populações africanas e indígenas. A ação é vinculada
ao projeto de extensão “Fazer e Contar Histórias: audiovisuais sobre
temáticas indígenas e africanas”, portanto, encontra-se no suporte oral e
audiovisual um caminho de diálogo com histórias outras, heterogêneas e
intrincadas em diversas teias de conhecimento, desta forma focalizando a
agência dos próprios sujeitos e suas formas de fazer e narrar.
No primeiro episódio, intitulado Sobre Histórias, estabelecemos
interlocução com palestrantes do I Encontro Pós-Colonial e Decolonial (I
EPD), valorizando para além da existência de narrativas históricas plurais,
suas formas de contá-las em atenção ao que a autora nigeriana
Chimamanda Adichie alerta em seu célebre discurso sobre os “Perigos de
uma única História”, encadeando reflexões acerca do imaginário social e
das narrativas que permeiam a sociedade. Contemplando sobre quem
organiza, controla e seleciona quais histórias serão contadas, assinalando
a conexão entre poder e narrativa. Chimamanda nos diz:
Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, não com a chegada
dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece uma
história com o fracasso do estado africano, não com a criação colonial do estado
africano, e você tem uma história totalmente diferente. (ADICHIE, 2009)
Com o estabelecimento do positivismo no século XIX, e da
colonialidade dentro da academia e dos mais diversos setores, tornam-se
necessárias ponderações acerca da validação do conhecimento. A
metodologia acadêmica ocidental faz parte da estrutura triangular da
colonialidade sobre o ser, o poder e o saber, ordenando toda experiência
corporal enquanto empecilho epistemológico, desconsiderando os
370 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
diversos laços visíveis e invisíveis entre as relações humanas e as histórias
de populações indígenas e africanas, tendo a Europa enquanto hybris del
punto cero11, constituindo o continente enquanto o ponto neutro de
observação para todas as experiências humanas por meio de violências
físicas e simbólicas (CASTRO-GÓMEZ, 2007).
Portanto, o eixo “Sala de Aula” centraliza a divulgação e produção de
materiais didáticos e dissertações que contribuem para a atuação na
carreira docente nas temáticas de Estudos Africanos, História Indígena e
História e Cultura Afro-Brasileiras. Incentivando a desconstrução de
noções hierarquizadas e estereotipadas sobre vivências outras e modos de
ser e estar no mundo por meio da escuta e do diálogo com histórias
invisibilizadas pela colonialidade/modernidade.
O material “Narrativas sobre a Diáspora Africana” é resultado da
dissertação de mestrado da professora Carolina Corbellini Rovaris (2018)
no PROFHistória da UDESC/FAED, orientado pela Professora Dr. Claudia
Mortari, intitulada “Narrativas sobre a diáspora africana no ensino de
história: trajetórias de africanos em Desterro/SC no século XIX”. O site foi
elaborado como resultado final da pesquisa, partindo de um rico acervo de
fontes sobre a vida de quatro homens que viveram na Ilha de Santa
Catarina, no século XIX. Uma atividade que pode ser realizada
coletivamente ou individualmente por professores e estudantes ao seguir
o caminhar de Augusto pela cidade, descobrindo conexões e trajetórias de
livres e libertos no sul do Brasil12.
11 “A ciência moderna pretende estar no ponto zero de observação para ser como Deus, mas não pode observar como
Deus. É por isso que falamos de arrogância, do pecado dos excessos. Quando os mortais querem ser como os deuses,
mas sem ter a capacidade de sê-los, eles incorrem no pecado da arrogância, e é o que acontece com a ciência ocidental
moderna. Na verdade, a arrogância é o grande pecado do Ocidente: fingir ter um ponto de vista sobre todos os outros
pontos de vista, mas sem que esse ponto de vista possa ter um ponto de vista" (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p.83)
(tradução nossa).
12 Acesso ao material e dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2018/12/13/narrativas-sobre-a-diasporaafricana/>
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 371
O material didático “Memórias e Histórias de vida das populações de
origem africana em territórios do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis”
é resultado da dissertação de mestrado13 da professora Karla Andrezza
Vieira (2016) e volta-se para as memórias e histórias da população de
origem africana no território, refletindo sobre a História Local a partir da
memória de sujeitos vistos como subalternizados, procurando quebrar
com as concepções eurocêntricas que perpetuam práticas coloniais no
ensino de História14.
O trabalho do professor Bruno Ziliotto, “Provocações Crônicas”15, é
resultado da Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em Ensino
de História - Profhistória na UDESC-FAED, intitulada “Provocações
Crônicas: a construção de um site educativo para repensar a escola, a
disciplina de história e as Áfricas” (2016). Volta-se tanto para o professor
quanto para o estudante que estiver interessado em investigar a escola, a
construção da história, a história das Áfricas e o racismo. Disponibilizamos
na biblioteca a dissertação que serviu de base para o site onde encontramse quatro crônicas e diversos links para vídeos, textos, fotos, charges e
músicas que encaminham ao aprofundamento na temática. Pontuamos
também a disponibilização do material História e Cultura Guarani na
biblioteca, organizado pelo professor André Meyer, como resultado do
Mestrado Profissional em Ensino de História, PROFHISTÓRIA (UDESC),
partindo das reivindicações dos povos Guarani, principalmente Guarani
Mbya, organizando as histórias a partir de três temas e de sua importância
para o mbya reko (modo de ser Guarani Mbya): territorialidade,
artesanato e educação Guarani.
13 Vozes, corpos e saberes do maciço: memórias e histórias de vida das populações de origem africana em territórios
do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis. Orientado pela Prof.ª Drª. Nucia Alexandra Silva de Oliveira.
14 Acesso ao material e a dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2017/07/27/material-didatico-vozes-corpos-esaberes-do-macico/>
15 Acesso ao material e a dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2017/10/01/provocacoes-cronicas/>
372 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Com estes materiais, e lançamentos futuros de outros materiais
didáticos, busca-se o que o escritor africano de nacionalidade nigeriana
Chinua Achebe (2007) propôs como “equilíbrio das histórias”, rompendo
com uma compreensão única sobre a realidade (MORTARI; WITTMANN,
2018, p.159). O giro histórico é indispensável no repensar dos materiais
didáticos, um processo que escancara o quão brancas e coloniais são as
referências pré-estabelecidas pelos cânones ocidentais, regrados pela
separação entre sujeito e objeto, homem e natureza, razão e emoção. Esta
concepção de mundo é invariavelmente questionável diante de existências
e narrativas outras, partidas de lócus de enunciação, permeados por
diferentes experiências em relação à raça, ao tempo, ao viver e o sentir em
múltiplos espaços geopolíticos (GROSFÓGUEL, 2008). Portanto, no eixo
“Para Ler” são focalizados escritas que fomentem este questionar.
Selecionamos alguns materiais e iremos abordá-los brevemente.16
“A invenção das mulheres”, livro de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2017), é de
suma importância para o estabelecimento do contato com um pensamento
africano. Levantando o debate acerca da teoria feminista nos estudos pós
e decoloniais, abordando a realidade e percepções de mulheres africanas,
discutindo sobre a categoria gênero e sua base de organização colonial. O
livro “Cartografias em Construção: Algumas escritoras de Moçambique”
da autora Ana Rita Santiago (2019) procura dar a conhecer escritoras
moçambicanas, questionando quem elas são, suas identidades, tradições e
cotidianos, refletindo sobre seus sonhos e representações de memória,
partindo também para pensar a realidade de escritoras afro-brasileiras,
ressaltando a relevância de suas produções.
Já a coleção “Educação para as relações étnico-raciais” (2016) tratase de uma parceria entre UFFS, UDESC e financiada pelo FNDE e
16 Todos podem ser acessados pela aba Leituras - Para Ler no site. Pontuamos que o acervo disponibilizado na
biblioteca é maior que a seleção realizada para este trabalho.
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 373
MEC/SECADI e é resultado de pesquisas nas áreas da História, da
Educação e da Cultura de sujeitos africanos, afro-brasileiros e indígenas.
O principal foco da coleção, dividida em quatro volumes (Estudos
Africanos, Histórias Africanas e Afro-Brasileiras, As relações étnico-raciais
na sala de aula e Protagonismo indígena na História) é contribuir para a
qualificação docente e para a implementação das leis federais nº 10.639/03
e nº 11.645/08. Disponibilizado também o artigo de Paulin J. Hountondji
sobre o conhecimento de África e conhecimento Africanos, indagando
sobre as tradições intelectuais e projeto abrangente de acumulação
epistemológica iniciada e controlada pelo Ocidente. Expondo o caminho
das pesquisas sobre o tema, massivamente direcionados e alinhados com
os aportes e abordagens teóricas do Norte, e incentivando novas
orientações e ambições para pesquisadores africanos em África.
O livro “O Pensamento Africano Subsaariano”, escrito por Eduardo
Devés-Valdés, contempla o crescimento de expoentes intelectuais ao longo
do último terço do século XX. Considerando o período entre 1850 e 2000,
abordando questões políticas como construções nacionais e econômicas, o
desenvolvimento e a dependência. Sociais, como as étnicas e de gênero.
Culturais, como a educação, a criação de um saber africano e a disputa pela
hegemonia da compreensão da África, e internacionais, como o
colonialismo, o neocolonialismo, a globalização.
A entrevista e o artigo disponibilizados de Mahfouz Ag Adnane: “Arte
e história: raízes coloniais do movimento cultural tamacheque Ichúmar
(1893/4 à 1963)”, abordam a região do Saara central, atentando-se para
os movimentos de resistência cultural dos povos Kel Tamasheq.
Discutindo um movimento musical, político e com ramificações culturais
amplas, criado e conduzido pela juventude Tamacheque para a denúncia
dos desdobramentos da colonização francesa. Diversos tópicos mostramse relevantes, o mundo nômade, o estabelecimento de fronteiras
374 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
alienantes no território, assim como as diversas influências musicais e o
envolvimento com a música rock and roll.
No dia 16 de outubro de 2020 foi realizado o lançamento online do
livro em formato de Ebook gratuito: “Diálogos Sensíveis: produção e
circulação de saberes diversos”17, resultante dos debates empreendidos nos
simpósios temáticos do I Encontro Pós-colonial e Decolonial, um sonho
coletivo dos/as integrantes do Laboratório de Estudos Pós-coloniais e
Decoloniais (AYA-UDESC) e de outros grupos envolvidos na rede de
pesquisadores e da luta antirracista. Assim como o evento, o livro é
permeado pela problemática central elaborada coletivamente ao longo da
construção da proposta do evento: “Como, a partir de lugares diversos e
saberes plurais, construímos diálogos e projetos alternativos?”.
Os tópicos centrais trabalhados no evento foram: “Educação: Saberes
e Interseccionalidade”, “Mundos do Trabalho e Redes de Sociabilidades”,
“Territorialidades
e
Mobilidades”,
“Performances
Decoloniais”,
“Narrativas históricas” e “Descolonizar a Universidade”. Para tanto, foram
selecionados autores que abordam variados temas de seus respectivos
lócus e espaços geopolíticos. Temas como educação, ciência, feminismo e
gênero, antropologia, teatro, arte, e muitos outros. Desta forma debatendo
sobre
questões
pertinentes
as
pessoas
e
populações
plurais,
impulsionando a troca de saberes de forma igualitária e as novas
interconexões necessárias para um repensar de nosso mundo. Para além
desta produção, está previsto para o final de 2020 o lançamento e a
disponibilização gratuita de outro livro incluído da Coleção AYA, contando
com textos dos palestrantes e mediadores presentes no I EPD, realizando
movimentos potentes de desobediência epistêmica.
17 E-book disponível em: <https://ayalaboratorio.com/2020/10/16/dialogos-sensiveis-producao-e-circulacao-desaberes-diversos-livro-aya/>.
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 375
O site também possui o eixo “Ver e Ouvir” de equivalente importância
para a divulgação de materiais audiovisuais circunscritos as temáticas
selecionadas. Devido ao contexto de pandemia do (COVID-19) nota-se um
crescimento expressivo do uso de formatos virtuais como as lives, portanto
atualmente divulgamos as realizadas por integrantes do Laboratório AYA
sobre diversos temas como sexualidade, literatura, história das Áfricas e
racismo científico.
Em produções fílmicas ressaltamos exemplos como “Na dobra da
capulana”, um documentário realizado pela MOCIK – Cineastas
Moçambicanos
Associados
por
meio
de relatos
de mulheres
moçambicanas sobre as simbologia e as implicações sociais, culturais e
econômicas da capulana no universo feminino, interligadas pelos traços,
cores, padrões, desenhos, dizeres e nomes de cada capulana, onde se
encontram histórias singulares.
“La Noire de…”, é um filme de Ousmane Sembène, um dos grandes
expoentes do cinema africano, engajado em lutas e denúncias contra o
colonialismo e o racismo. Nele uma jovem senegalesa vai trabalhar na casa
de um casal francês na Riviera Francesa. Esta mudança demonstra as
contradições presentes em uma romantização narrativa sobre a Europa,
pois lá se vê em choque com a estrutura do racismo que a mantém presa
na casa da família, trabalhando como doméstica. Evidenciando um
discurso sobre os processos de marginalização e inferiorização das
populações africanas no continente europeu. Nesta aba do site pode-se
encontrar diversos outros filmes e produções audiovisuais, universos e
perspectivas outras que fomentam a expansão da realidade, de referenciais
visuais e representativos.
O arrolamento do material ocorre por meio das variadas pesquisas
empreendidas pelos integrantes do laboratório, sendo responsabilidade
dos atuantes no projeto em questão realizar o contato e organização dos
376 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
materiais para a biblioteca. Processo que inclui: pesquisa sobre os direitos
autorais da obra; seleção da imagem; escrita do resumo; postagem e
divulgação nas redes sociais. O Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e
Decoloniais desenvolve dois programas de extensão com três ações em
cada18, portanto para materiais de produção própria, como o AYAcast,
integrantes das diferentes ações se encarregam do processo de elaboração
da proposta, pesquisa, escrita, gravação e edição, realizado coletivamente
e com a orientação das professoras coordenadoras e, posteriormente
repassado aos responsáveis pela Biblioteca AYA.
Atualmente o site possui 75 postagens e, acumula desde seu início,
108 mil visualizações e 37 mil visitantes. Sendo as categorias mais
visualizadas “Para ler” e “Ver e Ouvir”. Concluímos pontuando o caráter
permanente da ação de extensão “Biblioteca Virtual Estudos Africanos e
Indígenas” no Laboratório AYA, atualmente passando pelo processo de
profissionalização do site, atuando com produções próprias do laboratório,
assim como na divulgação de outros materiais diversificados nas
temáticas, procurando atender aos mais diversos públicos, oferecendo um
rico acervo de produções relevantes de artistas, intelectuais e pensadores
afro-brasileiros, africanos e indígenas.
Referências
ADICHE, Chimamanda. O Perigo de uma História Única. TEDTalks, jul. 2009. Disponível
em:<https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_si
ngle_story?language=pt-br>. Acesso em: 25 novembro 2020.
18 O programa “Histórias Africanas e Indígenas: Olhares e Práticas na Educação” conta com as ações: Narrativas
africanas e indígenas e o ensino de história; Histórias africanas e indígenas: epistemologias e saberes em diálogo e
Curso de Formação Continuada: Histórias e narrativas africanas e indígenas. O segundo programa “Olhares, Vozes
e Memórias: Saberes Africanos e Indígenas” abrange as ações: I Encontro de Estudos Africanos; Fazer e Contar
Histórias: Audiovisuais Sobre as Temáticas Africanas e Indígenas e Biblioteca Virtual Estudos Africanos e Indígenas.
O Laboratório possui também com dois projetos de pesquisa: A Revolta do Olhar: Concepções de História na
Narrativa Audiovisual Guarani, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Luisa Tombini Wittmann; e Modos de Ser, Ver e Viver:
O Mundo Ibo a partir da Escrita de Chinua Achebe (África Ocidental Séc. XX), coordenado pela Prof.ª Dr.ª Claudia
Mortari.
Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 377
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento
do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p.96 - 124.
CASTRO-GOMES, Santiago. Decolonizar la universidad: la hybris del punto cero y el
diálogo de saberes. In: CASTRO-GOMES, Santiago y Grosfoguel, Ramón (Org.). El
giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios
Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007,
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GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
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MORTARI, Cláudia; WITTMANN, Luisa Tombini. Histórias compartilhadas: propostas
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378 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
VÁZQUEZ, R.; BARRERA CONTRERAS, M. Aiesthesis decolonial y los tiempos relacionales.
Entrevista a Rolando Vázquez. Calle 14 revista de investigación en el campo del
arte, v. 11, n. 18, p. 76-93, 4 oct. 2016. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=5687728>. Acesso em 16 de junho de 2020.
Capítulo XXII
Ensino de História das Áfricas e a Literatura:
a produção de um e-book ilustrado em diálogo
com a obra Efuru de Flora Nwapa (Nigéria, 1960)
Tathiana Cristina S. A. Cassiano 1
Introdução
As discussões apresentadas neste capítulo são decorrentes da
pesquisa que desenvolvi no Mestrado em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA) da Universidade do Estado de Santa Catarina, na qual
explorei as possibilidades da Literatura enquanto instrumento na
produção do conhecimento histórico acerca das Áfricas2. Em consonância
com os pressupostos contidos na Lei 10.639/2003, mais tarde alterada
pela Lei 11.645/2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, e nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro Brasileira (2004), desenvolvi um material didático
na forma de e-book ilustrado a partir da literatura da escritora nigeriana
Flora Nwapa e em diálogo com intelectuais africanos e com os campos de
estudo pós colonial e decolonial, evidenciado pela intencionalidade de
romper com a visão eurocêntrica e essencializada das experiências
africanas e, acima de tudo, destacar o protagonismo das mulheres
1
Mestra – PROFHISTORIA/UDESC; tathi.leandro@gmail.com
2 Utilizo o termo “Áfricas” no sentido de que este evidencia a multiplicidade de povos, culturas, organizações sociais
e política do continente africano (MORTARI, 2016, p.15)
380 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
africanas, particularmente as mulheres igbos3, diante do contexto do
colonialismo e pós independência na Nigéria
A Literatura de Flora, suas entrevistas e escritos são considerados
aqui formas de enunciação, carregadas da visão de mundo de sua autora,
de suas experiências e perspectivas, portanto, testemunho histórico a
partir do qual encontramos evidências do contexto e dos processos
históricos
relativos
à
Nigéria
(MORTARI,2016).
Neste
espaço
compartilharei a trajetória de como a pesquisa se constituiu e resultou na
produção do e-book.
Começo este capítulo com as reflexões acerca da importância do
ensino da História das Áfricas na disciplina de História e as múltiplas
perspectivas de aprendizagem oriundas da articulação entre História e
Literatura, particularmente a Literatura Africana. Na segunda parte faço
uma breve apresentação da autora, Flora Nwapa, do seu lócus e da obra
Efuru (1966). E, por fim, descrevo a construção do e-book ilustrado,
material didático desenvolvido a partir de todas essas ponderações.
As Áfricas e o Ensino de História:
A História do Ensino de História no Brasil evidencia que a constituição
deste campo sempre assentou-se em base eurocêntrica, com um currículo
inspirado no modelo clássico francês e a permanência da centralidade nos
processos históricos europeus, enquanto que os eventos relativos à História
nacional ou latino-americana apareciam enquanto complementos
(BITENCOURT, 2007). A partir da segunda metade do século XX, há uma
ampliação de conteúdos sobre Brasil e América em geral, porém o modelo
europeu civilizatório se mantém, organizado em uma ordem cronológica
linear ainda presente nos materiais didáticos da atualidade.
3 Igbos são um dos inúmeros povos que ocupam o território nigeriano, particularmente na região Sudeste em cidades
como Enugu, Aba, Ugwuta, Onisha e Port Harcour.
Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 381
Neste modelo, salta aos olhos como a História de povos originários,
africanos e afrodescendentes é invisibilizada e os indivíduos representados
em uma condição de subalternidade e sempre a partir do olhar do outro.
Essa exclusão fundamentou uma percepção errônea da identidade
nacional que, construída sob a égide da colonialidade4, apagou a presença
indígena e africana. O preconceito e a ignorância sobre esses povos, raiz
do ocultamento de suas Histórias, relaciona-se com a necessidade de
domínio dos grupos dominantes cujas sociedades serviram de espelho
para a construção dos saberes oficiais sobre o Brasil (LIMA, 2004). No caso
de História das Áfricas o ocultamento é ainda mais emblemático.
Coisificados e tratados como vítimas passivas e sem protagonismo de suas
Histórias, as populações africanas são contempladas nas discussões do
Ensino de História somente no contexto da escravização e do
neocolonialismo.
Foi pensando sobre a necessidade de promover um rompimento com
esse apagamento e com a perspectiva eurocêntrica e colonial na produção
de conhecimento histórico das Áfricas e da presença africana no Brasil,
aliado à luta antirracista, que diversos setores do movimento negro do
Brasil mobilizaram-se por políticas públicas mais assertivas e que
culminaram no processo de elaboração da Lei 10.639/2003 e nas
Diretrizes de 2004. Esses dispositivos legais foram passos importantes
para se pensar um ensino construído fora das inúmeras simplificações
acercas das Áfricas e de visões estereotipadas das experiências das
populações africanas, tanto no passado quanto no presente. Pensando que
a negação da contribuição africana e de seus descendentes é um “fator de
exclusão e produção de desigualdade”, a implementação da Lei e das
4 Colonialidade aqui é entendida como “um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder
capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular
do referido padrão de poder” (QUIJANO, 2010, p. 73)
382 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Diretrizes “colabora sobremaneira para o combate ao racismo e à
discriminação” (MORTARI, 2016, p. 43).
Malgrado os esforços de pesquisadores e educadores na última
década em fazer valer um ensino de História em consonância com a
legislação e as Diretrizes, identifica-se nos livros didáticos uma
permanência na abordagem unilateral dos processos históricos no
continente africano e a insistência de usos de expressões eurocêntricas
para estudos de eventos específicos do contexto africano além de
relacioná-los com a História europeia, tirando-lhes a centralidade (SILVA,
2018). Nesse sentido, os conteúdos de História das Áfricas devem
contribuir para a construção de um olhar ampliado sobre as experiências
e eventos históricos do continente, destacando a complexidade, a
diversidade e o protagonismo de suas populações.
A partir dos pressupostos evidenciados nas Diretrizes, que é o de
“ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial,
social e econômica brasileira”, e que sejam abordadas nos estudos em sala
de aula as “contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos
descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia” (BRASIL,
2004, p. 17) e, eu acrescento, fugindo da armadilha de considerar as
culturas como algo “fixo” ou “imutável”, é preciso uma epistemologia
outra que reconheça e valorize as pluralidades e diversidades de
experiências dos sujeitos, sem hierarquizá-las. Ou seja, pensando
especificamente em uma proposta de ensino sobre as experiências de
mulheres africanas igbos durante o contexto da colonização britânica no
território do atual Estado da Nigéria, é necessária uma proposta de prática
de ensino que desloque o lócus de enunciação para as próprias mulheres
africanas igbos. Considero que a Literatura é o instrumento adequado para
tal intento.
Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 383
Flora Nwapa: a vida e a obra
Florence Nwanzuruahu Nwapa (1931-1993), mais conhecida pelo
pseudônimo Flora Nwapa, foi professora, escritora e editora de origem
igbo, nasceu e cresceu em Ugwtua5, cidade do Estado de Imo na região
sudeste da Nigéria. Ao contrário da maior parte das mulheres em sua
época, Flora frequentou escolas missionárias de educação primária e
escolas de educação superior na Nigéria (Universidade de Ibadan) e na
Escócia (Universidade de Edimburgo) (CHUKU, 2013).
Ela é reconhecida como a primeira escritora africana a publicar uma
obra em inglês e obter reconhecimento internacional e também por ser a
primeira mulher em África a comandar uma editora. Flora também atuou
na administração do serviço público e ocupou cargos nos Ministérios da
Saúde e Previdência Social e no das Terras, Pesquisa e Desenvolvimento
Urbano (ibid.). O diálogo com a autora se deu inicialmente a partir do
entendimento de suas experiências e vivências na conjuntura dos eventos
relacionados à sociedade igbo para, em seguida, identificar como essas
características se refletem nas intencionalidades de sua escrita.
Flora escreveu cinco obras literárias, sendo Efuru (NWAPA, 1996) a
sua obra de estreia. Além disso publicou livros de contos e livros infantis.
Efuru foi um marco na literatura nigeriana não só por ter sido pioneiro no
reconhecimento internacional da escrita literária de mulheres africanas,
mas também por evidenciar uma perspectiva feminina que, de acordo com
Flora, era negligenciada pela escrita masculina de seus colegas africanos
(UMEH, 1995). O livro é o número 26 de uma série intitulada “African
Writers Series” da Editora Heinemann, com sede em Londres, é escrito no
idioma inglês falado pelo povo igbo da Nigéria, uma variação do inglês
5 De acordo com a Nnaemeka (1995, p. 103), Ugwuta é o nome dado pelo povo igbo a cidade de Oguta. Os europeus
a renomearam por sua incapacidade em pronunciar “gw”. No texto optei pelo uso do nome original, dado pelo povo
que ali vivia e ainda vive.
384 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
nigeriano com elementos da cultura e idioma igbo e que podem ser
percebidos no esforço de recuperar a atmosfera e sabedoria da oralidade
por meio de provérbios (OLIVIA, 2013), e por estratégias de
intencionalmente se distanciar da língua colonial e transmitir a visão de
mundo igbo, naquilo que foi chamado por Herbert Igboanusi de
“africanização” deliberada da língua inglesa (2001, p. 376).
Efuru é a personagem principal que dá título à obra. Todas as
histórias das outras personagens estão conectadas com a dela. Flora a
descreve como uma mulher respeitada, independente e responsável por
suas escolhas e que enfrenta dilemas inerentes ao casamento e
maternidade, elementos considerados fundamentais no papel social da
mulher igbo, mesmo naquelas com maior poder econômico. É a busca por
negociar esse papel que se desenvolve toda a trama de Efuru, destacandose a divindade igbo, Uhamiri, como a personagem central no papel de
legitimar a liberdade e a independência feminina articuladas com a vida
em comunidade.
A leitura e a tradução da literatura foram acompanhadas da busca de
elementos que evidenciam o olhar de Flora sobre as transformações que as
mulheres igbos tiveram em seus papéis dentro da comunidade. Defendo que
a trajetória de Flora e das suas personagens, bem como as personalidades a
elas atribuídas, nos permitem estabelecer conexões com o contexto histórico
no qual estão inseridas (colonialismo e pós independência) e entender a
visão de mundo e sentidos da história, pois autora e obra estão atreladas a
um tempo e a um lugar (MORTARI, 2016). Em suas entrevistas, Flora nunca
escondeu o propósito de personificar em suas personagens a assertividade e
independência femininas, no sentido de projetar uma imagem mais
equilibrada da feminilidade africana e de como as mudanças sociais,
econômicas e políticas a partir da metade do século XX na Nigéria afetaram
as experiências das mulheres (NWAPA, 2007).
Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 385
O interesse da autora está nas rotinas e rituais da vida cotidiana, nas
experiências individuais e coletivas, nas organizações, na cosmogonia e
nas estratégias de sobrevivência (CHUKU, 2013) e por meio das histórias
de Efuru elenquei temas construídos a partir de categorias centrais
presentes ao longo de toda a narrativa: cosmogonia e ancestralidade,
colonialismo, trabalho, educação e relações sociais.
Levando em conta uma episteme decolonial que emancipa os sujeitos,
considerando-os como produtores de conhecimento e não como objetos de
estudo (HOUNTONDJI, 2008), os temas elencados foram compreendidos
a partir de uma agenda de investigação em diálogo preferencialmente com
intelectuais africanos e com o cuidado de não incorrer em uma leitura de
vitimização que reduz a experiência histórica do continente a meros
fenômenos que são sujeitos a um conjunto de forças maiores que
escondem as singularidades locais.
Desse modo, como nos propõe Mortari (2016, p. 51) em uma questão
para problematizarmos por intermédio da literatura, “o que o autor e sua
escrita nos permitem desvendar do processo histórico?”. No tema
“colonialismo”6, evento que M’Bokolo (2009) descreve como ruptura no
processo histórico das Áfricas, a violência colonial bem como o impacto
desta no modo de vida igbo e em particular no status social da mulher,
aparecem na descrição do passado do pai de Efuru, que enriqueceu graças
ao comércio transatlântico de escravizados, na presença do discurso
civilizatório dos missionários cristãos, nas restrições impostas à produção
local de bebidas, evidenciando como as atividades econômicas voltavamse para os interesses do comércio internacional britânico (FALOLA;
HEATON, 2008), nas estratégias que as mulheres usaram para contornar
6 Colonialismo: “estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de
produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais
estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial” (QUIJANO, 2010, p. 73).
386 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
essas proibições e continuar produzindo, por exemplo, o “gin” caseiro, e
no papel das mulheres mais velhas, como a personagem Ajanupu, de
guardiãs e transmissoras dos costumes que promoviam o equilíbrio da
comunidade, equilíbrio esse ameaçado pelas gerações de “frequentadores
de igreja” (NWAPA, 1966, p. 223).
Temas como “trabalho” e “cosmogonia” aparecem de forma
articulada na escrita de Flora. A prática agrícola historicamente
relacionava-se a varias esferas da vida igbo, principalmente o cultivo do
inhame, considerado um conhecimento adquirido pelos ancestrais através
das divindades. A terra é a fonte de morada, sustento e principal espaço de
passagem dos ancestrais para o mundo dos espíritos (UZUKWO, 1982). A
personagem principal, Efuru, é uma mulher que enriqueceu graças ao
comércio de inhame, lagostim e outros produtos agrícolas. Com o
colonialismo e o direcionamento forçado da mão de obra masculina para
as atividades econômicas imposta pelo colonizador, muitas mulheres
assumiram o papel na produção de alimentos (FALOLA; HEATON, 2008),
alterando
a
relação
da
sociedade
igbo
com
o
trabalho
e,
consequentemente, o espaço social da mulher. Essa problemática aparece
nas narrativas de Flora referentes a Nwabata, Ogea e Efuru.
Essas informações resultaram na proposta de material didático. Um
material que traz a narrativa de um processo histórico sob a perspectiva
de uma autora africana/nigeriana/igbo, por meio de suas personagens,
mulheres igbos. Ele tem o propósito de promover uma aprendizagem
histórica das Áfricas tal qual bell hooks7 (2013) sugere, que cria a
consciência da diversidade de experiências, em particular das experiências
das mulheres igbos africanas, sempre no sentido de positivação destas.
7 bell hooks é o pseudônimo da intelectual afro americana Gloria Jean Watkins inspirado em sua avó materna. A
escolha da grafia em minúsculo, de acordo com a autora, serve para enfatizar o conteúdo de sua obra e não a sua
pessoa.
Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 387
O E-book ilustrado
O material didático intitulado “Efuru: a história das mulheres igbo na
literatura de Flora Nwapa” foi pensado a partir de reflexões teóricas e
metodológicas que se pautam no argumento de que as narrativas
literárias, articuladas com o entendimento do lócus de seu autor, são
instrumentos de produção de conhecimento histórico e que também
possibilitam uma prática pedagógica que contempla as Áfricas em sua
diversidade e especificidades e dentro dos parâmetros estabelecidos pelas
Diretrizes de 2004.
Tendo em vista este objetivo, selecionei seis personagens, Efuru,
Ajanupu, Ossai, Nwabata, Ogea, Uhamiri (a deusa do lago), a partir das
quais desenvolvi textos narrativos inspirados na literatura acerca de cada
uma delas de modo que o leitor conhece suas características, as relações
entre cada uma delas e com o contexto. As narrativas estão acompanhadas
de ilustrações dessas mesmas personagens em diálogo com as histórias
descritas e que permitem um processo amplo de leitura para além do
textual. Para evidenciar a articulação dessas narrativas com a literatura de
Flora, trechos traduzidos da obra que contextualizam a informações
colocadas em destaque no texto, foram inseridos ao longo das páginas.
388 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Figura 1 – Imagem do material didático - Efuru
Fonte: Material didático, 2020, p. 13
As narrativas não possuem um fim em si mesmas, são ferramentas
de aprendizagem para o compreender o passado e ativar o pensamento
(SCHMIDT, 2008), portanto estão vinculadas com os temas selecionados
ao longo da leitura. O objetivo é que as narrativas, articuladas com o
contexto no qual se inserem, possibilitem a apreensão de conceitos
presentes nestes temas. Para isso, foram produzidos textos didáticos sobre
cada um desses temas em interlocução com intelectuais africanos do
campo da História, Literatura, Linguística, Antropologia, entre outros.
O material está em formato e-book, um livro digital, em extensão
.PDF, cujo acesso é disponibilizado gratuitamente por meio do site do AYA
- Laboratório de Pesquisa Pós Colonial e Decolonial8, grupo do qual sou
integrante. O formato digital facilita a circulação do material e o acesso dos
leitores por computador, tablet ou celular, e amplia as possibilidades
pedagógicas em sua utilização.
8 Disponível em <https://ayalaboratorio.com/>
Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 389
Além das narrativas e textos citados anteriormente, há uma breve
biografia de Flora Nwapa, contextualização histórica do povo igbo,
apresentação da obra Efuru e as fontes de pesquisa, ou seja, trechos da
obra por mim traduzidos e organizados em categorias e relacionados aos
eventos narrados na literatura. A estrutura do material o divide em partes
independentes entre si, conforme demonstrado na Figura 2, dando ao
leitor autonomia na forma de utilização.
Figura 2 – Sumário do material didático
Fonte: Material didático, 2020
Conclusão
O desafio a que me propus foi o de desenvolver estratégias outras
para um ensino de História em diálogo com essas narrativas presentes na
literatura de Flora Nwapa. Como essa literatura se encontra em língua
inglesa e, dada a importância da vida e obra de Flora para compreender a
perspectiva desta sobre a mulher dentro contexto da Nigéria no período
do colonialismo e no pós-independência, era preciso que essa estratégia
incluísse a produção de um material para uso didático no qual não só fosse
390 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
possível conhecer a autora e a obra, mas também articular as histórias
dessas com o contexto e, assim, possibilitar a construção do conhecimento
histórico acerca da Nigéria destacando as especificidades e complexidades
dos seus processos históricos.
Os caminhos percorridos por meio das ponderações brevemente
apresentadas neste capítulo, resultaram no desenvolvimento de um
material didático que contemple os objetivos propostos e se coloque como
uma ferramenta na construção de “práticas educativas que colaborem com
um equilíbrio de histórias, ao aprender com conhecimentos indígenas e
africanos, por meio da discussão de materiais diversos produzidos por eles
mesmos.” (MORTARI, WITTMANN, 2019, p 23). Creio que uma prática
pedagógica que nos permite o descortinar de mundos outros por meio da
Literatura, atende às determinações da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes
de 2004 e, principalmente, promove uma educação emancipadora, com o
compromisso antirracista, de combate à violência e que garante o direito
à diferença.
Referências
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História do tempo presente
Capítulo XXIII
As obras de Héctor Oesterheld: um projeto
cultural de resistências políticas na Argentina
Leonardo Pires Nascimento 1
Introdução
Héctor Gérman Oesterheld foi um roteirista de quadrinhos
argentino. Ao longo de sua carreira, atuou em diferentes campos sociais –
seja político, editorial ou artístico. Percorreu a divulgação científica, a
editoração e a carreira política, todas, de forma latente e subversiva. Nos
diferentes locais de ofício, contextualizou o posicionamento e interesses
nacionais, divulgou a soberania e a qualidade da cultura local, criticou e
expurgou o imperialismo (cultural e político) norte-americano sobre
contextos específicos da história da Argentina.
Durante o período de Guerra Fria na América Latina, Oesterheld
desenvolveu planos de intervenção nos meios comunicacionais em
direcionamento ao público infanto-juvenil durante os anos cinquenta. Esta
perspectiva se baseia ao estímulo à produção de artistas nacionais
mediadas pelos esquemas de prensa localizada na distribuição de
impressos no país. As revistas de baixo custo, sobretudo as historietas
(Histórias em Quadrinhos [HQs] na Argentina), circulavam em bancas de
jornais localizadas em rotas comerciais, servindo a um público amplo e
concreto sintetizado pelo urbanismo de Buenos Aires. Ao formalizar seu
projeto pela criação da editora Frontera em 1955, o editor e roteirista
1 Mestrando pelo programa de pós-graduação em História pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em História
pela mesma universidade. Desenvolve pesquisa sobre os quadrinhos argentinos na década de 50, com orientação da
História do Impresso e História Cultural. lpires@discente.ufg.br
396 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
organiza um campo artístico a fim de destacar a produção local e
incentivar o comércio do patrimônio nacional por meio de revistas baratas
e de fácil acesso econômico (SOARES, 2007, p. 46). Assim, tiragens
expressivas de noventa mil exemplares chegavam para realizar ao leitor a
força dos artistas argentinos durante a primeira metade do século XX.
Assim, Oesterheld se faz personagem importante para a história
argentina em diferentes níveis de profundidades. Pois, realizado como
autor fundamental para o aprimoramento editorial e narrativo dos
quadrinhos nacionais, também participou da guerrilha armada em defesa
da liberdade política e social na Argentina durante a década de 1970. Viveu
pela arte, morreu pela política. Oesterheld é um dos milhares de
desaparecidos políticos durante as ditaduras latinas; entretanto, o seu
projeto de identidade cultural e defesa do patrimônio nacional permanece
inalienável até o tempo presente. Desta forma, este artigo tem como,
fundamentalmente, suscitar o debate em torno da iconografia realizada
por Oesterheld como militante e roteirista. Levantando pontos chaves para
a história biográfica, penso em como esta memória é apropriada ao longo
das décadas e como, apesar de distante, as narrativas tornam-se tão
perceptíveis na política e cultura contemporânea.
Manifesto pró-historieta nacional
Ao realizar-se como editor e autor, Héctor Oesterheld decide ser,
então, empresário no ramo editorial. Preocupado com as necessidades
narrativas e a elaboração de um projeto editorial a fim de proteger os
sentidos editoriais nacionais, Oesterheld cria a editora Frontera. O
editorial tem como intenção a formalização do campo cultural artístico e
impresso da Argentina na década de 50 com prerrogativas que circulavam
ao redor das historietas. Assim, de forma dinâmica, as revistas divulgadas
pelo editorial Frontera tinha como necessidade básica a consolidação de
Leonardo Pires Nascimento | 397
métodos e estratégias narrativas para a codificação da cultura argentina.
Ainda, Laura Vazquez (2010, p. 37) sugere que esta organização e nova
dinâmica de publicação e leitura das historietas é, de fato, uma forma de
apresentação de um produto distinto: as narrativas de qualidade,
moderna, adultas e argentinas é uma maneira de constituição do cenário
cultural em diversos níveis – tanto ao leitor quanto aos autores.
Desta forma, o manifesto publicado na contracapa da revista Hora
Cero Suplemento Semanal (1957), brada em caixa alta: “defendemos la
historieta”. O uso do manifesto em publicação sugere, por decisões
editoriais, alguns posicionamentos enfrentados pelo grupo Frontera em
atuação profissional decisiva na atual conjuntura do mercado: a
valorização das Histórias em Quadrinhos e o ataque deliberado contra o
bloco americanista instalado no país. Em primeiro lugar, as HQs cerceados
pela cultura popular estadunidense por conta do vínculo entre juventude
e delinquência, de sobremaneira, orientados pela publicação Seduction of
the Innocent (1954) de Frederic Wertham, sofreu duras críticas tanto dos
órgãos institucionais, quanto das camadas populares. Em avanço deste
pensamento retrógrado e sem fundamento, por conta da falta de base
metodológica do trabalho de Wertham, afetou a distribuição de
quadrinhos por toda a área de influência dos Estados Unidos e nos países
sublocados em sequência. As declarações de cunho político tiveram tom
decisivo na opinião pública e comercialização dos quadrinhos, sobretudo,
vinculados ao leitor infantil. A primeira expressão deste manifesto
completa o significado básico da distribuição dos quadrinhos: “os
quadrinhos são maus quando os fazem mal” (OESTERHELD, 1957, p. 16).
Oesterheld toma parte do discurso amplo que circula entre as massas e
recebe a crítica como uma forma de localizar a sua produção editorial
dentro de um espectro mais amplo e decisivo para a cultura do impresso;
a defesa pela historieta parte da necessidade de recobrar os sentidos
398 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
qualitativos das narrativas em quadros e suscitar o retorno ao consumo
deliberado do produto. O manifesto tende a orientação de sentido com
base na necessidade cultural dos quadrinhos, a proposta da revista em
questão elenca pontos de discussão moral e ética, ampliando os sentidos
narrativos da arte e tocando no sentimento latino-americano de
reconhecimento do indivíduo socialmente marginalizado. O que leva ao
segundo ponto do manifesto.
O sentimento anti-americano torna-se saliente desde a primeira
edição da revista. Em tom claro e direto, o editor diz: “Apresentamos [a
revista] com legítimo orgulho de editores, sabendo que com Hora Cero
Semenal fazemos um novo aporte de valor ao grupo de revistas que, dando
as costas ao material estrangeiro, mais barato mas quase sempre de
qualidade inferior, preferem abrir suas páginas ao material argentino”
(OESTERHELD, 1957, p. 16). O tom político de expurgar a publicação
estrangeira no país se localiza na necessidade de reforçar o patrimônio
nacional, mas, essencialmente, direcionar o debate público em tom crítico
contra o imperialismo cultural em ascensão. Alan McPherson (2003, p. 6)
assume que o anti-americanismo se origina em diferentes formas de
representação nos países da América Latina. Assim, considerando o
posicionamento subversivo de tom reacionário das políticas de
intervenção cultural dos produtos de influência estadunidense, Oesterheld
configura o campo em sentido cultural para expropriar a influência norteamericana no país e realizar a força das narrativas intelectuais nacionais.
Este fato se baseia na necessidade de procurar uma identidade artística
fruto da ruptura intelectual no período peronista e durante o governo
militar da Revolução Libertadora (1955). Com a redemocratização pela
eleição de Arturo Frondizi, o produto estrangeiro agrega ainda mais valor.
Assim, buscando uma necessidade de reafirmar a soberania cultural do
povo argentino, a editora Fontera parte da busca de isolamento crítico do
Leonardo Pires Nascimento | 399
produto importado – como localizado na citação anterior – e agregar
status ao artista nacional com a especialização do traço autoral.
Esta colocação parte não apenas da defesa dos quadrinhos enquanto
produto cultural de massa e de alta penetração nas camadas populares,
mas também localizar a produção cultural nacional em sentido de
renovação. Ainda sobre este documento, há a divulgação das histórias
argentinas, caracterizadas pela qualidade de produção elencados pelos
artistas competentes e, o mais importante, latinos. A partir desta defesa, a
editora compreende-se como uma instituição divulgadora e incentivadora
das funções qualitativas dos quadrinhos, não censurando ou inibindo: ao
contrário, as historietas tomam forma e identidade na Argentina dos anos
50.
Os primeiros caminhos da luta política
Além da concretização do projeto editorial de Oesterheld na
Argentina, a mesma década sofre os conflitos políticos latino-americanos
em profundas crises: com maior destaque, a Revolução Cubana (1959)
orienta novos sentidos de guerrilha contra o imperialismo norteamericano, sugerindo a via de autonomia e soberania política como um
meio de resistência e vida para os países sobrepujados na marginalidade
do globo político. Cuba localiza a luta anti-imperialista em novos sentidos
de reação e decisão contra o poder imperialista estadunidense. Como
sugeriu McPherson anteriormente, a luta pela autonomia latinoamericana sempre existiu em diferentes vertentes, entretanto, com a
entrada dos revolucionários castristas e a autarquia de um governo
nacionalista e hegemônico em suas decisões, orientou e motivou parte
considerável da luta guerrilheira nos países do centro-sul da América. A
divulgação de ideias revolucionárias incentivadas por Cuba tornam-se
emergentes no pensamento comum dos latino-americanos. Esta
400 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
divulgação orientada pelo governo cubano ganha sobrevida característica
na Argentina: realizando Che Guevara como ícone não apenas de Cuba,
mas recobrando a sua nacionalidade argentina, doa influência aos
movimentos estudantis de tomada pelos direitos cívicos e políticos.
Héctor Oesterheld, inicialmente, não toma parte desta luta. Apesar
de seus trabalhos dialogarem com intensidade competente contra o
avanço imperialista, sua orientação política residia no movimento antiperonista. Entretanto, ao passo que suas jovens filhas (Estela, Beatriz,
Marina e Diana) tomam contato com estas ideias revolucionárias tomadas
pela ânsia libertadora, Oesterheld se filia ao movimento de esquerda ao
qual participou ativamente durante as décadas de 60 e 70. Contudo, sua
militância armada vinculada ao partido de esquerda Montoneros, não
anula sua produção cultural. Ao contrário, com maior intensidade, suas
obras recobraram valores políticos mais incisivos e críticos. Sobretudo
após a morte de Che em 1967, Oesterheld desenvolveu o trabalho político
com mais clareza. Em 1968 publica Che: Os últimos dias de um herói. Este
movimento se trata de aliar as perspectivas da prensa revolucionária com
a iconografia argentina. Ainda, o projeto se restituiu em uma coleção que
elencou os ícones da resistência política nacional: iniciada por Che, o
segundo volume contaria a história de Evita Péron. Entretanto, a repressão
do governo militar argentino fez com que a coleção fosse censurada e
impossibilitada de reprodução.
A construção da narrativa em torno de Che Guevara tem como
fundamento a canonização do símbolo revolucionário argentino. A jornada
intensa nas veias abertas da América Latina, a fome, a miséria e a desgraça
inerente ao descaso do poder público e intensificado pela atuação
intervencionista dos países capitalizados é o ponto de partida da
construção de um ser indignado. A HQ inicia-se na emboscada final de Che
e recobra todas as passagens marcantes de Guevara. Ao final, a produção
Leonardo Pires Nascimento | 401
de curta duração conclui os sentidos específicos de alienação política e
flerte contra os interesses do imperialismo: “O sangue de Che já é mais
uma gota no Rio Sangue derramado contra a fome e o grilhão. Seu nome
inspira amor e ação. Faz as juventudes do mundo se levantarem e
andarem” (OESTERHELD, 2008, p. 88). Como sugere Martín-Barbero
(2015, p. 232), os meios de comunicação na América Latina fizeram ouvir
os anseios populares e a estratificação das camadas subalternas; o uso
recreativo que Oesterheld faz da prensa argentina sobre a divulgação das
ideias revolucionárias e subversivas orientadas pela revolução cubana
segue o espírito impregnado de Che: as historietas continuam inspirando
jovens por toda a comunidade latino-americana e, por causa da sua
fragilidade material, tem maior inserção nas classes populares – como
comentado anteriormente.
Ainda, as ideias políticas de Oesterheld são divulgadas, com maior
viabilização, no jornal montonero El Descamisado (1973). Sugerido por
Laura Vazquez (2010, p. 178), Oesterheld assume um discurso político
enviesado e direcionado às instituições políticas e estruturas de poder na
Argentina da década de 70. O roteirista assume a luta social como condição
do contexto sociopolítico argentino na presente década, e a derivação das
narrativas embarcam na problematização do descaso público bem como
na ação reativa da militância armada montonera. Os quadrinhos
abertamente de esquerda, “que dão conta de uma ‘guerrilha sempre ativa,
buscam destacar a entrega absoluta a causa como condição do sujeito
revolucionário, mas funciona também como a representação do herói”
(VAZQUEZ, 2010, p. 178).
Vinculado ao movimento de guerrilha da frente armada peronista,
Héctor Oesterheld é personagem de destaque das lutas progressistas na
Argentina. Entretanto, o destaque saliente enquanto produtor cultural e
roteirista, exige o preço da clandestinidade. Ainda trabalhando para o
402 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
editorial Record na década de 1970, Oesterheld passa a atuar sem
localização fixa: os roteiros são enviados a partir de cartas sem remetentes,
os encontros são feitos durante a calada da noite em lugares remotos e
afins. O editorial, anteriormente prestigiado pela presença e divulgação da
imagem de Oesterheld, passa a escondê-lo das instituições militares
argentinas.
Esta eterna batalha entre o órgão repressivo de conduta autoritária,
ainda, é palco de críticas nas obras de Oesterheld. Apesar da atuação
reclusa, o constante medo contra a segurança e qualidade de vida funciona
como gatilho reflexivo para as obras seguintes do autor: idealizado,
principalmente, na historieta La Guerra de los Antartes (1974) –
desenhada por Gustavo Trigo – sugere uma invasão alienígena ao planeta
Terra. Entretanto, para assegurar o livre conduto do hemisfério norte, as
elites do mundo politizado entregam o hemisfério sul como garantia de
sobrevivência. A alusão metafórica da obra em questão se divide na
necessidade de ampliar o sentido imperialista nas instituições e
financiamento de ditaduras militares ao longo dos países latinoamericanos.
Ainda, o movimento de Oesterheld está vinculado diretamente ao
grupo dos Montoneros. Beatriz Sarlo comenta sobre a via vingativa dos
Montoneros frente a improbidade do governo militar argentino na década
de 1970, a autora diz sobre esta ação depende de “onde inexiste uma
administração da justiça que funcione de maneira plena e universal, mas
também pode ser o de sociedades onde essa administração existe porém
não cumpre com certas condições” (SARLO, 2005, p. 278). Assim, esta
vingança tem, em sentido único, o “poder de salvação moral” (SARLO,
2005, p. 279) por realizar a supressão moral de um Estado falido e/ou
decadente. Os anseios do grupo político argentino tomaram a via armada
e revolucionária, lutaram em busca de um peronismo de esquerda (quase)
Leonardo Pires Nascimento | 403
utópico; a ação medida da atitude violenta do grupo Montonero provocou
a censura e perseguição aos seus membros.
As obras artísticas aliadas ao posicionamento político de Oesterheld
é decisivo: junto a suas quatro filhas, em 1977 é desaparecido pelos braços
autoritários da ditadura. Até o presente momento, o governo argentino
não concluiu o que foi feito da vida do autor. Não se sabe quando morreu,
como morreu ou se morreu. O que fica aos cidadãos argentinos e a massa
artística estimulada por Oesterheld é apenas uma pergunta: ¿Donde esta
Oesterheld?
Consolidação de Oesterheld na iconografia argentina
Idealizado como um ícone revolucionário e um autor ativo no meio
político e cultural, Oesterheld atinge novos significados no imaginário
coletivo argentino. Em alguns sentidos – a morte trágica do autor e o
impacto fundamental de sua obra –, as historietas de Oesterheld
permaneceram em constante divulgação sob os diferentes contextos
políticos e sociais argentinos. Por conta desta elaboração, as obras foram
reinterpretadas a partir do contexto corrente, ganhando novos sentidos e
guias de leituras para dar sentidos ao presentismo (FERNÁNDEZ. GAGO,
2012, p. 65). É, a partir deste momento, que são valorizadas certas etapas
e qualidades da obra de Oesterheld: inicialmente pelas historietas
adquirindo tom profético discorridos pelas narrativas em torno das
questões do imperialismo cultural e político durante os anos de 50 e 60;
em segundo, o reconhecimento da luta de Oesterheld frente ao movimento
armado em defesa da soberania argentina, bem como a extensa crítica aos
modelos militares de governo.
Inicialmente, o valor histórico agregado aos roteiros de Oesterheld
simboliza um avanço narrativo não apenas dos quadrinhos argentinos,
bem como a construção de uma sociedade progressista que mira ao futuro
404 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
do desenvolvimento individual e coletivo. Pois, a essência básica das
historietas discorridas por Héctor potencializa a ação do heroísmo coletivo
em um tom de união e comunhão com a fraternidade do povo
marginalizado. Assim, subvertendo a constatação do indivíduo liberal
como centralidade do desenvolvimento único e pessoal, a projeção de
Oesterheld se localiza na força do coletivismo e do desenvolvimento social
em grupo, recobrando os valores do moralismo social baseado na justiça
não-eletiva. Isto pois, os governos posteriores de esquerda, sobretudo,
orientados por uma lógica peronista, recobram a obra de Oesterheld como
uma forma de reafirmar a solidariedade e o assistencialismo como fonte
básica das políticas de governo. Passando deste pressuposto, a reedição do
trabalho original do roteirista assume um tom qualitativo da história do
tempo presente, em que, utilizando o conceito de Koselleck, as obras de
Héctor Oesterheld elaboram um campo de experiência como raízes para o
horizonte de expectativas.
Adiante, a qualidade do movimento armado reencarna a encenação
do mito libertador e da figura revolucionária orientada por certo
parâmetro ideológico e histórico inerente a um contexto específico. Em
rima narrativa, a diatônica entre Che e Oesterheld recobra novos
significados: ainda nos 60, o roteirista traz a biografia do revolucionário
como forma de impulsionar a causa social, a luta pela libertação das
políticas autônomas da Argentina em período de Guerra Fria e,
fundamentalmente, o estímulo do sentimento de indignação suplantada
pela corrente dos jovens latino-americanos. Assim, destinado ao fim
trágico semelhante ao ídolo social argentino, Oesterheld assume esta
posição de idealização da iconografia de frente progressista, por maioria
das vezes, orientada pela esquerda. A ação de Oesterheld influenciou novos
roteiristas que buscam a valorização da causa política e da insatisfação
frente a mediocridade institucional de sucateamento público; assim, o
Leonardo Pires Nascimento | 405
projeto editorial de Oesterheld sobre a unificação da qualidade do produto
nacional permanece vivo e constante nas obras de artistas como Carlos
Trillo, Carlos Sampayo, Juan Sasturain e outros.
Por outro lado, a apropriação do poder Estatal frente às obras de
Oesterheld simbolizam o uso da iconografia do autor e seus personagens
como uma forma de sintetizar os valores e princípios do governo em
questão. O escritor foi responsável pela ruptura imediata dos parâmetros
editoriais argentinos na década de 50; apesar da existência de editoras que
buscassem a valorização do artista local, Oesterheld dinamizou esta luta
pelos direitos dos artistas localizando o desenvolvimento do traço artístico
e autoral com uma ótica de procurar a expressividade dos desenhistas
argentinos. Em conseguinte, a Argentina se destaca como principal polo
de publicação de HQs, tornando-se um mercado idealizado e de autonomia
plena. A empreitada da editora Frontera é reconhecida por conta da cisão
entre a prioridade estrangeira e a valorização e proteção da expressividade
nacionalista. A história de Oesterheld sugere a ampliação dos sentidos
nacionais, e o uso da iconografia do roteirista simboliza o protecionismo,
agora por parte do Estado, das qualificações da Argentina soberana. Assim,
aprimorando o uso latente das obras em quadrinhos em republicações
extensivas e o uso pedagógico/educativo por meio das historietas da
editora Frontera elaboram o significado concreto intermediado entre
Estado e leitor: a Argentina se faz grande.
A iconografia de Héctor Oesterheld enquanto militante e roteirista se
perpetuou nas diferentes camadas políticas da sociedade argentina. A mais
clara e direta se legitima no posicionamento de Néstor Kirchner em utilizar
o principal personagem de Oesterheld, El Eternauta (1957), como
divulgação política de sua própria imagem. Nesta aliança entre ficção e
realidade, Kirchner adotou a alcunha de Nestornauta e estampou o centro
urbano de Buenos Aires, ilustrado através de grafites ou decalques.
406 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Este envolvimento entre a imagem da criação autoral de Oesterheld
e o movimento político argentino já no século XXI se restitui em recuperar
esta imagem do militante idealizado. Kirchner, então, se posiciona como
defensor dos interesses nacionais em defesa extensa da invasão
estrangeira. Em entrelaçamento constante, a narrativa de tornar-se um
político um personagem de quadrinhos é, de certa forma, reorganizar as
orientações políticas da história do tempo presente e direcionar novos
sentidos sobre o período Kirchner (PALACIOS, 2020, p. 186).
A apropriação de Nestor Kirchner frente a obra de Oesterheld tende
a recuperar o paralelismo político lacônico das duas figuras da Argentina.
Assim, recuperar a imagem do personagem de Oesterheld e a inserção do
então presidente argentino com a epígrafe “resiste”, baseia-se na extensão
dos valores inerentes a Oesterheld como coadunação das políticas
kirchnerista; apesar da latência e distensão temporal entre as duas
atuações históricas, o uso da iconografia do roteirista militante pretende a
generosidade e motivação da juventude política, relacionando-se de forma
amigável e concisa com o governo defensor dos valores populares
(FERNÁNDEZ. GAGO, 2012, p. 68). Recuperando a menção de MartínBarbero feita anteriormente, a estratificação dos valores midiáticos da
América Latina recupera os anseios da população como uma forma de
unificar os desejos internos do país em uma única voz; sugere então que a
representação do Nestornauta é uma forma de recuperar “os sentidos e a
imagem desta narrativa [que] formam uma paisagem ideológica, que
inclui o messianismo e o paternalismo, culto à personalidade [...]; apelação
a redenção, ao sacrifício patriota e militante, a resistência ao inimigo
poderoso” (FERNÁNDEZ. GAGO, 2012, p. 71) e outros.
A reinterpretação constante das obras de Oesterheld e a difusão em
diferentes instâncias de sua imagem, em qualidades culturais e políticas,
torna o roteirista argentino um ícone de resistência latina e um eterno
Leonardo Pires Nascimento | 407
militante contra as injustiças do mundo colonizado (seja pelo imperialismo
cultural ou o intervencionismo político).
Conclusão
Recuperar a memória de Oesterheld é, de forma ampla, comum à
cultura popular argentina. Sua presença como roteirista, militante e
criador cultural é eterna e presente na vida do cidadão médio argentino.
Seja pela museificação de sua casa, que funcionava como base para a
editora Frontera, ou pela locação de seu personagem no Museo del Humor,
é uma forma de apropriar-se da imagem de Oesterheld em sentido
qualitativo. Assim, percebemos que o uso ostensivo da imagem de Héctor
tem, como fundamento básico, o uso metodológico idealizado para
elaboração de um projeto político de resistência. Este projeto, iniciado na
década de 1950, permanece preponderante e ativo ainda no tempo
presente.
Ainda, os valores agregados ao trabalho de Oesterheld servem como
disputa política entre os partidos políticos de esquerda e direita. Como
comentado no tópico anterior sobre o uso político da obra de Oesterheld
pelo governo de Nestor e Cristina Kirchner, por outro lado a memória do
autor sofre rupturas abusivas do governo de direita de Maurício Macri.
Observando a popularidade do movimento em defesa do Nestornauta,
Macri subverte a lógica básica do liberalismo em constante defesa ao longo
de seu governo, ao usar dos braços burocráticos do Estado para realização
da censura da obra de Oesterheld. Sugerindo que o problema estava no
kirchnerismo, Macri bane a obra de Oesterheld dos colégios e cria
mecanismos de denúncia contra a divulgação das obras do roteirista
argentino. Como uma forma de suplantar a memória artística e política de
Oesterheld alinhada em sintonia com o governo de esquerda dos
Kirchners, a figura de Oesterheld volta aos calabouços do autoritarismo
408 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
político e do projeto de esquecimento dos valores nacionais. A abertura da
Argentina para uma economia internacional, torna novamente o objeto
estrangeiro como uma cobiça social e de qualidade superior ao produto
nacional. Em amplos e múltiplos sentidos, a obra de organização do campo
artístico e (possivelmente) político da Argentina segue ao relento nos anos
de Macri frente ao poder máximo das estruturas argentinas.
Entre ficção e realidade, a figura icônica de Oesterheld segue
enfrentando o imperialismo e autoritarismo político ao longo do período.
Assim, as obras permaneceram como uma forma de recuperar a essência
da arte argentina e, além, dinamizar os valores de resistência política e
social. O movimento em pró da memória de Oesterheld tornou-se forte
novamente com a apropriação das narrativas em todo o mundo: reedições
de suas obras passaram a habitar o mercado europeu, norte americano e,
com maior força nos últimos anos, Brasil. Apesar da proximidade
geográfica, o processo de esquecimento das obras e história de Oesterheld
tenha surtido com maior força em solo brasileiro, visto a escassa
possibilidade de leitura do público tupiniquim das obras do hermano.
Entretanto, desde 2018, editoras brasileiras reforçaram a busca da
valorização política das narrativas de Oesterheld e procuraram recuperar
suas Histórias em Quadrinhos para o Brasil redescobrir a ruptura
argentina dos anos 50.
Ainda, com o fim do governo Macri e a ascensão dos movimentos e
governo de esquerda centralizada pela figura de Alberto Fernández, a
imagem de Oesterheld restitui novamente um lugar de privilégio na
iconografia argentina. Recuperado pela força histórica de sua figura, as
obras de Oesterheld continuam valorizando a defesa do produto nacional,
a expugnação do imperialismo cultural e político, a luta interminável dos
direitos civis e, essencialmente, a soberania cultural argentina, em que
permanece com a marca icônica do eterno viajante entre eras.
Leonardo Pires Nascimento | 409
Referências
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ponga: la (re)construcción del relato político peronista a partir de El Eternauta. In:
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política em Argentina, de la transición democrática al kirchnerismo. Córdoba:
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Tradução: Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
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VÁZQUEZ, Laura. El oficio de las viñetas: la industria de la historieta argentina. Buenos
Aires: Paidós, 2010.
Capítulo XXIV
Encarceramento político, violência de gênero e
redefinição das práticas repressivas na ditadura civilmilitar brasileira em Porto Alegre (1970-1971)
Maria Eduarda Magro 1
Este é um trabalho que parte de três trajetórias, mas cujas linhas se
espalham para além das vidas aqui enfocadas. Mirando nas experiências de
detenção de Helena Lucia, Ignez Maria e Vera Lucia, de algum modo
também se fala aqui de todas as mulheres que, envolvidas politicamente no
enfrentamento à ditadura civil-militar brasileira, tiveram suas liberdades
cerceadas e integridades violadas em instituições prisionais. Mais do que
isso, são apresentados sintomas que ainda compõem os moldes de
encarceramento de nossos tempos presentes, cada vez mais massificados, e
sempre pautados numa constituição seletiva e, por que não, política.
Sendo o encarceramento político o mote central desse texto, é a partir
dessa noção que iniciamos. Inscrevendo-se nos anos da ditadura civil-militar
brasileira, a detenção é aqui entendida como conceituada pela Comissão
Nacional da Verdade: “qualquer forma de privação da liberdade dos
indivíduos, mesmo que por um breve período de tempo”, sem englobar,
necessariamente, as “etapas distintas de restrição da liberdade (detenção,
prisão e reclusão)” (BRASIL, 2014, p. 280). Essa perspectiva aponta que
presos e presas são tanto aqueles que foram brevemente detidos em locais
variados, improvisados ou oficiais, quanto os que cumpriram pena de prisão
em instituições penitenciárias durante períodos alargados.
1
Mestranda – UFRGS; dudamagro@hotmail.com
Maria Eduarda Magro | 411
Soma-se a essa definição a compreensão dessas detenções enquanto
ilegais e arbitrárias. Enquanto a ilegalidade decorre do descumprimento
de normas constitucionais e de medidas legislativas dos estados, assim
como da realização da prisão sem ordem de autoridade em situação que
não seja de flagrante delito, a arbitrariedade se dá quando direitos e
garantias legais são violados por meio da utilização de procedimentos
ilegais, desproporcionais ou desnecessários, ainda que exista previsão legal
da detenção (BRASIL, 2014, p. 302). Tal previsão legal, no que tange ao
período abordado neste artigo, consiste no Decreto-Lei n. 989/69, também
conhecido como Lei de Segurança Nacional (LSN).
Nos anos da ditadura civil-militar, cinco diferentes versões dessa lei
foram promulgadas. A LSN foi mobilizada enquanto dispositivo legal
responsável por assentar as medidas coercitivas do Estado frente às ditas
“ameaças” contra a segurança nacional e a ordem política e social. Para
tanto, foram incorporados os preceitos da Doutrina de Segurança
Nacional, convocando toda a sociedade para a vigilância e combate aos
“inimigos internos”, de modo a criminalizar diretamente a oposição
política. A edição mais recrudescida dessa lei é justamente a que perpassa
o recorte cronológico aqui abordado. A versão de 1969 (DEL 898/69) deu
a sustentação legal para as arbitrariedades do governo em perseguir os
opositores políticos, estabelecendo a aplicação prática de toda a base
doutrinária que norteava o regime e, com isso, constituindo-se enquanto
o principal instrumento formal de repressão política (ALVES, 1984, pp.
158,159). Sob o manto desse instrumento legal executavam-se práticas
excessivas de violações dos direitos humanos.
A lei não tipificava, em termos diretos, o “crime político”, com essa
identificação que aqui se apresenta. No entanto, ao criminalizar uma ampla
gama de manifestações opostas ao governo, prevendo penas como a prisão
perpétua, a morte e o banimento, o que se fazia era criminalizar a ação
412 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
política, criando-se assim uma noção de crime político. Não eram, no entanto,
somente os chamados “presos políticos” que figuravam enquanto
enquadrados na LSN. Ao definir que crimes como assaltos, roubos ou
depredação de estabelecimentos de crédito ou financiamento, quaisquer que
fossem suas motivações, seriam punidos com até 24 anos de prisão, ou até
mesmo com prisão perpétua ou pena de morte em casos mais graves (art.
27), abriu-se margem para que pessoas sem vínculos a organizações políticas
fossem também enquadradas na Lei de Segurança Nacional. Com isso, surge
a figura dos chamados “presos da Lei de Segurança Nacional”, ou somente
“os LSN”: assaltantes de banco que eram destinados às mesmas instituições
prisionais onde ficariam todos aqueles que, por ações de enfrentamento ao
governo, eram considerados ameaçadores à segurança nacional. A geração
de presos enquadrados no DEL 898/69 encabeçou uma ampla mobilização
pelo reconhecimento público da existência da prisão política no Brasil,
denunciando as condições de confinamento dos presos políticos (FARIA,
2005, p. 47). Os presos da LSN, por sua vez, eram solapados dessa audiência,
que se concentrava nas experiências de militantes.
Como visto, a concepção de prisão política aqui apresentada se
restringe ao contexto da Doutrina de Segurança Nacional, com ênfase para
as pessoas que foram encarceradas por, deliberadamente, realizarem
ações diversas de oposição à ditadura. No entanto, tomar essa perspectiva
não significa que se ignore uma outra interpretação dada à expressão
prisão política, também de fundamental importância.
Trata-se de uma crítica encabeçada pelo Movimento Negro Unificado
(MNU), ao observar a seletividade no tratamento exigido aos presos, desde
a distinção entre aqueles que seriam identificados como “políticos”, em
oposição aos “comuns”. Desde a máxima “todo preso é um preso político”,
apontam como todos processos de aprisionamento são constituídos por
fatores notadamente políticos (SANTOS, 2015, pp. 48-49), que, como
Maria Eduarda Magro | 413
colocado por Juliana Borges, são classistas e racistas (BORGES, 2019).
Pensando essa asserção, a historiadora Suzane Jardim destaca que todos
os presos, sejam atribuídos como comuns ou políticos, inseriram-se “em
um sistema econômico que causava as incidências criminais, ao mesmo
tempo em que colocava meios também politicamente localizados de
selecionar quais corpos cairiam ou não na malha do sistema prisional”
(JARDIM, 2018, p. 146). Tomando essas contribuições, aqui não há a
proposta de inscrever hierarquização da importância política e social entre
os corpos aprisionados; por isso, se refuta o uso do termo presos ou presas
comuns. A prisão política, por sua vez, é considerada sob o escopo das
formulações já colocadas, sem, no entanto, desprezar a constituição
política que atravessa o sistema de encarceramento de um modo geral.
Breves ou extensas, repetidamente ilegais e arbitrárias, as detenções
por motivações políticas não podem ser compreendidas desde um mesmo
padrão explicativo generalizado, uma vez que poderiam tomar rumos
distintos, que nem sempre envolviam os mesmos percursos e, muito
menos, os mesmos destinos. No entanto, os estudos historiográficos de
testemunhos e trajetórias nos fornecem algumas categorias classificativas
que são úteis para entendermos os meandros desses processos, sobretudo
no que tange às fases de aprisionamento e aos espaços de detenção.
O Projeto Brasil: Nunca Mais identifica diferentes estágios para a
detenção política. O primeiro deles compreenderia a “fase policial”,
quando o inquérito policial-militar (IPM) era elaborado em uma lógica
marcada por práticas excessivas e clandestinas (ARNS, 1985, p. 173).
Avança-se então para a “fase judicial”, quando a prisão era comunicada, a
denúncia oficializada e os trâmites judiciais prosseguidos, incluindo desde
a prisão preventiva até o deferimento da sentença e cumprimento de pena,
em caso de condenação (ARNS, 1985, p. 176). Quanto aos espaços em que
ocorriam cada uma dessas fases, Jacob Gorender propõe a distinção entre
414 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
“instituições de interrogatório e formalização dos processos da fase
policial”, correspondendo à primeira etapa da detenção e abarcando locais
como os DOPS e DOI-CODIs, e “instituições de reclusão”, de cumprimento
de prisão preventiva ou pena-prisão, correspondendo às instituições
prisionais destinadas especificamente para encarceramento (1987, p. 220).
Na mesma perspectiva, Jocyane Baretta identifica os “lugares de tortura”,
“lugares de prisão” e “lugares de prisão e tortura” (2015, p. 66), em
classificação que leva em conta as principais finalidades às quais serviam
os espaços utilizados pelos órgãos de repressão.
Os estágios da detenção e os espaços de cárcere foram fundamentais
para ditar e definir as experiências de encarceramento político. Estar
confinado em um lugar de prisão e tortura configurava uma experiência
distinta do aprisionamento em um lugar de prisão, tanto em níveis
subjetivos, quanto em termos políticos. Para cada fase e instituição,
engendrava-se um regime de encarceramento específico, tendo seus
parâmetros inscritos desde aquilo que mirava a repressão: a destruição
dos opositores desde a violência física e a aniquilação moral, ou a punição
continuada com a adoção de formas alargadas e indiretas de violações.
Enquanto as experiências de detenção em locais como os DOPS são
bastante contempladas pela historiografia, haja em vista se tratar de uma
experiência traumática com violação dos corpos, os outros modos de
punição em instituições penitenciárias ainda não são suficientemente
discutidos. É a este deslocamento das atenções que nos propomos aqui.
*
No ano 1970, a perseguição às esquerdas se fez recrudescida no Rio
Grande do Sul2. Segundo Taiara Souto Alves, neste ano os processos na
2 Especialmente três eventos marcaram a intensificação da perseguição às esquerdas no RS: a descoberta do “esquema
de fronteiras”, em 1969; a expropriação de uma agência do Banco do Brasil, na cidade de Viamão, em março de 1970; e a
tentativa de sequestro do cônsul estadunidense, em abril de 1970. Cf. FERNANDES, 2009; BETTO, 1986.
Maria Eduarda Magro | 415
Auditoria Militar de Porto Alegre estiveram no auge: foram 33 processos,
com 215 pessoas denunciadas, o que corresponde a 40% do total de
pessoas denunciadas na capital por ações políticas ao longo de todos os 21
anos da ditadura (SOUTO ALVES, 2009, p. 66). O mesmo se percebe na
Penitenciária Feminina Madre Pelletier, nosso objeto de análise, que neste
mesmo ano atingiu o ápice do número de mulheres aprisionadas por
motivações políticas.
Durante o período que operou como cárcere de presas políticas – ou
“presas do DOPS”, como queriam as administradoras da instituição – a
Penitenciária Feminina Madre Pelletier foi o local de detenção de, ao
menos, 18 mulheres aprisionadas sob essas condições3. A investigação
realizada até o momento, com base nos processos de indenização movidos
sob âmbito da Lei Estadual n. 11.042/1997, assim como os testemunhos
orais concedidos no âmbito dessa pesquisa, permite demarcar o período
de encarceramento de presas na política PFMP, que corresponde aos anos
de 1969 e 1979; podendo-se ainda, dentre desse largo período, situar fluxos
específicos do regime de encarceramento. Nesse sentido, conduz-se à
identificação de diferentes estágios da dinâmica do cárcere, sendo o ano de
1970 o mais representativo da primeira fase de encarceramento, quando
as restrições impostas sobre as presas eram mais severas e se inseriram
em um mesmo projeto de confinamento e isolamento.
Ignez Serpa, Helena Rudolphi e Vera Durão foram três das sete
mulheres que estiveram aprisionadas na PFMP em 1970. Ainda que suas
3 Este número foi determinado a partir de pesquisa nos processos de indenização movidos por ex-presas políticas,
que estão disponíveis para consulta no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Tal fundo
documental, oriundo dos trabalhos da Comissão Especial de Indenização, estruturada a partir da Lei Estadual n.
11.042/97, apresenta limitações, uma vez que os processos foram autonomamente movidos por pessoas que se
entendiam enquanto vítimas das arbitrariedades das forças policiais do estado e optaram por requerer reparação.
Portanto, o número total de requerentes não corresponde ao número total de pessoas atingidas, mas sim àquelas
que tomaram conhecimento da legislação e escolheram se expor a este trâmite. A análise dessa documentação
apontou 13 requerentes que citaram o aprisionamento na PFMP, número que foi alargado para 18 a partir de menções
a companheiros de prisão.
416 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
trajetórias apresentassem confluências, seus caminhos se interseccionam
somente no cárcere. Todas foram detidas por vinculação à mesma
organização
clandestina
de
esquerda:
a
Vanguarda
Armada
Revolucionária Palmares, ou somente VAR-Palmares. No entanto, seus
vínculos e participações eram diferentes: Helena se enxergava apenas
como uma “simpatizante”, que teve aproximações pontuais em grupos de
discussão e trabalho de base com operários, mas sem ingressar nos
quadros oficiais da militância (RODOLPHI, 2019); Ignez foi a única mulher
a ser parte do Comando de Operações regional da organização,
participando do planejamento e execução de ações, dentre elas ações
armadas (DURÃO, 2019); e Vera, por sua vez, era atuante no Setor de
Imprensa, sendo responsável pela produção de materiais informativos e
de denúncia (DURÃO, 2019).
As especificidades de suas relações com a organização não se fizeram
sentir no momento da detenção: todas foram igualmente sequestradas,
enviadas para o DOPS/RS, mantidas incomunicáveis, constantemente
vigiadas e violadas em torturas físicas e psicológicas. Viveram, neste
período, o que Caroline Bauer identifica como uma “fase de terror”
(BAUER, 2006, p. 97), passando por experiências que balizaram os
parâmetros do excessivo, do violador e do traumático. A permanência no
DOPS/RS indicava a constante exposição a arbitrariedades e violências,
imergindo-as em uma realidade de medo e vulnerabilidade ou, em termos
mais diretos, destruição.
A instabilidade vivida dentro do DOPS só poderia ser superada com
a transferência para outro espaço de detenção, que as salvaguardasse dos
constantes desmandos. O translado para uma instituição prisional era
tomado como um processo de retirada do reino do arbítrio, uma vez que
o reconhecimento da detenção e a instalação em um espaço próprio para
isso poderia assegurar visibilidade e algumas garantias mínimas, como a
Maria Eduarda Magro | 417
visita de familiares, o contato com advogados e o prosseguimento jurídico
do processo. A saída do DOPS chegaria como um alívio, não pela simples
retirada desse espaço, mas em muito pelas expectativas criadas sobre o
novo local de detenção. É o que compartilha Vera Durão em seu
testemunho oral:
De uma certa maneira, quando eles nos tiraram do DOPS, disseram “vocês vão
pro presídio feminino”, é... Pra nós [...] foi um alívio. Porque a gente ficava ali
à disposição daqueles policiais [...] A gente vivia nesse embate. Então, quando
a gente foi pro Madre Pelletier, pra mim foi um alívio. [...] Porque eles tiravam
a gente da sala de noite, nos vendavam, ficavam rodando o DOPS com a gente,
e falando assim, agora você vai pra uma sala aí que os cara vão te estuprar,
não sei o que, coisa assim, pra nos apavorar né… Então, agora, eu levei um
choque quando eu cheguei ali naquele lugar, porque eu achei que era um
presídio, por pior que fosse, era um presídio. Mas aquilo ali parecia mais um
bunkerzinho, uma coisa... (DURÃO, 2019)
Como se pode inferir a partir dos relatos das ex-presas, as projeções
positivas sobre o novo espaço de encarceramento logo foram interpeladas
pelas condições reais com as quais se depararam. A expectativa de
encontrar salvaguarda nas novas instalações, buscando a possibilidade de
recuperação pessoal após tão intensamente viverem a fase de terror,
imediatamente se frustrou com a chegada ao Madre Pelletier. É também o
que percebemos no testemunho de Ignez Serpa, que passou por situação
traumática tão logo ingressou na instituição: a revista vexatória. Em suas
palavras, “Magina, eu saio do DOPS, isso é tipo pra te humilhar, sabe? Aí
vem a mulher meter os dedos na minha vagina, no meu ânus, pra ver se
eu tinha alguma coisa dentro. (...) E ela fez aquilo, te machucava, porque
fazia pra doer mesmo, de pessoa com maldosa assim, sabe, e ele se
achando poderosa ali” (SERPA, 2019).
418 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Seja por meio de violações mais diretas, como é o caso da violência
sexual sofrida por Ignez e compartilhada no relato acima, quanto por
outras formas mais sutis e imbricadas no cotidiano prisional, o que se
coloca é a redefinição das práticas repressivas, consoantes com o ambiente
penitenciário, que exigia outros modos de se fazer incidir as violações.
Conforme apontado por Erving Goffman, as instituições totais – tais como
as prisões, conventos e hospitais psiquiátricos – operam no sentido de
provocar o que identifica como “mutilações do eu”. Manejam-se uma série
de
“rebaixamentos,
degradações,
humilhações”
que
visam
a
desqualificação e a dissolução das constituições próprias das pessoas
apenadas, mortificando-as e incutindo um alvo nível de tensão psicológica
(GOFFMAN, 2015, pp. 24, 49). Também a Penitenciária Feminina Madre
Pelletier se conformou com essa operação, desde um emaranhado de
elementos que constituíram o regime de encarceramento político na
instituição, tendo por fim a mobilização de formas variadas de mutilações
e mortificações psíquicas e subjetivas. Apresentamos aqui alguns indícios
que apontam nesse sentido, sem a intenção de dissociá-los de uma ordem
coesa, colocando-os separadamente apenas à título de ilustração.
Em um plano mais amplo, denotam-se os usos da especialidade e de
seus implícitos para manutenção de constantes violações. No recorte
temporal aqui tratado, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier era
administrada por freiras da Congregação de Nossa Senhora da Caridade
do Bom Pastor de Angers. Criada na França no ano de 1835, essa
Congregação rapidamente alastrou-se por outros países e continentes,
pautando-se na missão de “salvação das almas” e “cura moral” de moças
desamparadas (ANGOTTI, 2011, p. 198). Sob a premissa de acolhimento
de mulheres em situação de risco e marginalidade social (KARPOWICZ,
2017, pp. 66-67), a proposta central a era a reabilitação para o convívio em
sociedade, a partir da reconversão pautada em dogmas católicos. Em
Maria Eduarda Magro | 419
acordo firmado com o governo do Rio Grande do Sul no ano de 1936
(KARPOWCIZ, 2017, p. 82), as irmãs iniciaram as suas atuações no estado,
abrindo aquela que seria a primeira casa prisional destinada
exclusivamente a mulheres no Brasil. A gerência durou até 1981, quando a
Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) assumiu
definitivamente a administração, após anos de gradual penetração na
instituição (KARPOWICZ, 2017, pp. 287-301). Entre 1969 e 1979, eram as
freiras católicas que se dedicavam aos cuidados das apenadas, que eram
alocadas em um amplo prédio ao estilo “casa-convento” (ANGOTTI, 2011,
p. 261). As presas políticas, no entanto, foram enviadas para um anexo
situado nos fundos do terreno.
Nos relatos orais, assim como nos relatos de prisão anexados aos
processos de indenização que foram analisados para essa pesquisa, a
descrição do espaço de confinamento é unânime. Narra-se nos
testemunhos que o espaço de cárcere das presas políticas se tratava de
quatro celas isoladas e minúsculas, onde havia espaço somente para uma
cama e banheiro do tipo “turco”, com abertura cimentada no chão, por
cima do qual havia um chuveiro de água fria onde deveriam se banhar.
Para além das celas individuais, um pequeno pátio dentro dos muros
permitia que pudessem respirar a céu aberto e ter alguns momentos de
convívio.
Essa estrutura foi amplamente apropriada para a definição de novas
violações. Em primeiro lugar, destaca-se o que é mais visível: o
confinamento e o isolamento. Alojadas nesse ambiente precário e inóspito,
as presas políticas eram segregadas da ordem carcerária que compunha a
instituição no momento. Para além da impossibilidade de convívio com as
outras presas, eram apartadas da rotina existente no “prédio central”,
forjando-se ali no anexo um novo regime de encarceramento,
completamente dissonante do projeto de reconversão moral pautado pelas
420 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
freiras, e que orientava o cárcere “no lado de lá”. Esse isolamento seletivo
e intencional pode ser entendido como uma tentativa de anulação das
inserções sociais das mulheres aprisionadas por motivos políticos,
punindo-as por terem ousado adentrar essa esfera que não lhes pertencia
por princípio. E a elas essa percepção chegava diretamente:
Sabíamos que era um presídio que era administrado por freiras. Por isso que
a nossa expectativa era outra, não que a gente fosse ficar enfurnada numa
solitária, num ambiente totalmente, que você tava ali, isolada de tudo e de
todos, era uma coisa muito estranha, era dentro do presídio, era um pátio
enorme que o presídio tinha, que eles criaram esse bunkerzinho pra gente ficar
ali dentro. [...] O que me entristecia muito no Madre Pelletier [..] era o fato de
que a gente ficava ali como um ser estranho, uma coisa estranha ali... [...] A
gente se sentia de uma certa maneira meio rejeitada ali. (DURÃO, 2019)
Situadas em regime de encarceramento específico, pautado não na
salvação moral e religiosa, mas sim na punição incorpórea, as presas
políticas inseriram-se em uma complexa trama de relações de poder
tensas e paradoxais. Tomadas como “presas do DOPS” para as
administradoras do presídio (KARPOWICZ, 2017, p. 219), ocupavam o
ponto de interseção entre as duas esferas institucionais que ali operavam,
quais sejam, o presídio e a polícia. Por isso, circulavam entre um amplo
conjunto de sujeitos: por um lado, representando o “quadro permanente”
da penitenciária, as freiras (representações do poder central da
instituição), as presas do prédio central (cujo convívio era oportunizado
somente quando estas eram enviadas para castigo no anexo) e as agentes
penitenciárias (responsáveis pela vigilância nos momentos de convivência
no pátio); e o “quadro transitório”, correspondente às presenças da polícia,
ali representadas pelos delegados do DOPS (enquanto seus custodiadores)
e os policiais militares (responsáveis por vigilância contínua).
Maria Eduarda Magro | 421
Para pensarmos essas relações entre sujeitos tão diversos, tomamos
aqui a concepção foucaultiana que entende o poder desde uma perspectiva
relacional, e nunca dada a priori: o poder não possui existência primária,
localizada em um ponto central, nem pode ser detido e situado em um único
indivíduo ou instituição, mas sim analisado à luz das relações por onde
circula e se exerce onipresentemente (FOUCAULT, 2019a, p. 101). Sendo
para Foucault o cárcere entendido como a manifestação mais pura do poder
(FOUCAULT, 2019b, p. 134) - por coercitivamente furtar os indivíduos de
suas liberdades individuais, submetendo-os a um regime de constante
vigilância e controle dos corpos -, a experiência de aprisionamento deve ser
analisada à luz dessas relações contínuas, que não partiam de único foco
irradiador, sendo exercidas em rede. Nessa esteira, entende-se que os
indivíduos imersos nessas relações, são, “com suas características, sua[s]
identidade[s], fixado[s] a si mesmo, [...] produto[s] de uma relação de
poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos,
forças” (FOUCAULT, 2019b, p. 257), o que demarca a impossibilidade de
situá-los em posições fixas e rígidas, antagônicas e isoladas, sendo
necessário voltar o olhar às sutilezas, ambiguidades e contradições. Afinal,
como já apontaram Gianordoli-Nascimento et al., “durante o período [da
ditadura civil-militar], as relações com o sistema foram vividas como
repletas de antagonismos e contradições, nem sempre inteligíveis, ou
congruentes com as posturas ideológicas que tentavam preservar”
(GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 319).
Os modos de convivência deste emaranhado de sujeitos não
obedeceram a lógicas coerentes de comportamento. As brechas e variações
ocuparam espaço central, como se depreende a partir das relações
estabelecidas entre presas políticas e os policiais militares responsáveis por
sua guarda e vigilância constantes. Segundo os testemunhos de Ignez,
Helena e Vera, alguns dos “brigadianos” se mantinham distanciados,
422 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
enquanto outros se aproximavam reticentes, demonstrando curiosidade em
conhecê-las ou até mesmo compartilhando um chimarrão. No extremo da
lógica irruptiva, houveram aqueles que auxiliaram a tecer uma rede de
colaboração com as presas do Madre Pelletier e os militantes detidos na Ilha
do Presídio, possibilitando a troca de cartas sem que passassem pela censura
da penitenciária. No entanto, o padrão comportamental esperado também
se manifestou, preponderando-se às práticas alternativas de convivência.
No espaço do cárcere, os brigadianos atuaram presencial e
tangivelmente na redefinição das práticas repressivas. Instituíram uma
rotina de humilhações, como compartilhado por Ignez: “à noite eles
entravam nesse corredor pra vir nos olhar. E tinha alguns deles que eram
nojentos, que vinham falar barbaridades pra gente. Chamar de puta, não
sei mais o que, aquelas coisa, baixaria, sabe. Vim nos xingar...”. (SERPA,
2019). Para além das agressões verbais, outros modos de humilhações
foram mobilizados: “Tu ia no banheiro, tu tinha que chamar o guarda, pra
pedir pro guarda dar descarga. Então tudo é feito pra te humilhar, até tu
fazer xixi e cocô, as tuas necessidades fisiológicas, entendeu, tu tinha que
pedir o cara, pro cara vir, é pra te humilhar” (SERPA, 2019). Como assinala
Jocyane Baretta, é possível assinalar como propósito dessas ações o
objetivo de “quebrar qualquer tentativa de privacidade ou individualidade,
deixando claro que havia controle até sobre as necessidades fisiológicas”
(BARETTA, 2015, p. 82).
Estes exemplos servem para apontar como as violações foram
atualizadas em outros formatos e incidências, não mais necessariamente
diretas contra o corpo, mas ainda assim mirando-o difusamente. Pode-se
entender que essas violências configuraram violência de gênero, tomando
a conceituação proposta pela Comissão Nacional de Verdade que entende
que as violações de gênero “nem sempre se manifestam sob a forma de
violência sexual”, podendo “incluir ataques não sexuais a qualquer
Maria Eduarda Magro | 423
indivíduo, motivados por seu gênero” (BRASIL, 2014, p. 420). As agressões
voltadas ao intangível, e tecidas desde inscrições de gênero, que visavam à
despersonalização,
subjugação
e
desqualificação
das
mulheres
aprisionadas, tal como os processos de privação e isolamento, assim como
as agressões verbais e as ameaças, podem ser tomadas desde esse escopo.
Afinal, eram atacadas desde seus papéis enquanto mulheres que se
insurgiram politicamente, o que resultava em ações duplamente
repressivas, alvejando-as por ambas esferas – política e de gênero -, como
apontado por Joffily (JOFFILY, 2005, p. 124).
Para além desses aspectos aqui abordados, que tocam os usos da
espacialidade do cárcere e a violência de gênero, cabe ainda mencionarmos
um terceiro eixo que se desenha a partir desses. Trata-se da violência
psicológica, que se fez enquanto uma constante no período de
encarceramento político na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, por
meio da combinação de formas difusas, indefinidas e paradoxais das
violações, conduzindo à fragilidade e instabilidade psíquica das mulheres ali
detidas. A violência psicológica não pode ser compreendida externamente às
outras punições às quais foram submetidas; ao contrário, o que há é uma
ação combinada de mecanismos que, direta ou indiretamente, sempre
tratam de alvejar o incorpóreo. Para além dos fatores já elencados,
destacam-se outros que notadamente operaram nesse sentido.
Conforme vimos, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier foi palco
de meticulosa redefinição dos modos de punir as presas políticas, com
muitas congruências ao que se espera de um ambiente prisional de um
modo geral, mas também forjando um regime de encarceramento
especialmente severo. Para além dessas condições internas, as presas
políticas também seguiram, neste espaço de cárcere, expostas aos
acontecimentos dos extramuros. Novas ações das organizações de
esquerda, assim como detenções de militantes, definiam diretamente suas
424 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
condições de aprisionamento, resultando em alterações na rotina que
acentuavam as privações, como a proibição de “banho de sol” no pátio, da
convivência entre as presas e de visitas de familiares, conforme relatado
por Ignez Serpa (2019). A vulnerabilidade a situações que escapavam de
suas responsabilidades ou poder de decisão, como estes eventos que
aconteciam externamente e tinham ressonâncias nas suas condições de
encarceramento,
acarretavam em
sentimentos
de instabilidade,
insegurança e impotência. Isso porque, para além de terem algumas
prerrogativas retiradas de sua rotina, também podiam correr o risco de
serem levadas novamente para interrogatórios nas instalações do
DOPS/RS, como aconteceu com Helena e Ignez, que lá passaram por novas
sessões de tortura física.
Sem qualquer garantia de proteção, às mulheres que foram presas
políticas na PFMP viam suas integridades físicas constantemente
ameaçadas. A permanência desse risco em muito decorria do estágio de
seus processos judiciais: o período de alocamento na instituição
compreendia ainda a prisão preventiva, antes que o trâmite dos processos
tivesse seguimento na Justiça Militar, de modo que ainda passavam pela
fase de elaboração do inquérito ou, em outras palavras, ainda continuavam
expostas à possibilidade de interrogatórios à base de torturas. Às prisões
de companheiros da organização ou à menção de seus nomes em outros
interrogatórios, eram coercitivamente transferidas de volta ao espaço que
associavam ao terror, gerando assim um sentimento permanente de
insegurança. O medo constante da repetição da tortura física, combinado
à ausência de qualquer prerrogativa de proteção que pudesse lhes
defender desses maus-tratos, as inseriam em incessante condição de
terror psicológico.
Aqui nos propomos a mirar o encarceramento político em uma
instituição prisional destinada a mulheres criminosas desde um olhar
Maria Eduarda Magro | 425
preocupado com as manifestações do Terrorismo de Estado, pensando
também os modos específicos pelos quais as mulheres foram visadas e
atingidas enquanto presas políticas, desde orientações calcadas no gênero.
Com observações em torno dos usos da espacialidade, da violência de
gênero e da violência psicológica, percebe-se como esses fatores se
coadunaram para, mais do que operar dentro dos moldes de punição de
um estabelecimento carcerário, estabelecer um novo regime de
encarceramento tecido para punir mulheres que se insurgiram ao tomar
a luta contra o governo, desde variadas articulações e tomadas de posição,
mas sempre inseridas na mesma lógica punitiva. As redefinições das
violações aqui apresentadas, que miravam o corporal e o incorpóreo
conjuntamente, direta ou implicitamente, são tomadas enquanto graves
violações de direitos humanos, perpetradas difusa e irregularmente, mas
nem por isso menos intensas ou severas. Lançamos mão de algumas
possibilidades analíticas para se investigar o encarceramento político em
instituições prisionais, pretendendo contribuir de alguma forma com os
estudos historiográficos deste campo que, crescentes mas em ritmo lento,
urgem continuar se solidificando para que possamos pautar as
manifestações repressivas para além dos locais de tortura, questionando
também à ênfase dada a alguns modos de se torturar em detrimento de
outros.
Fontes
DURÃO, Vera Ligia Huebra Neto Saavedra. Entrevista concedida a Maria Eduarda
Magro. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2019. 1h42min26s.
RUDOLPHI, Helena Lucia. Entrevista concedida a Maria Eduarda Magro. Porto Alegre,
26 de agosto de 2019. 2h03min26s
SERPA, Ignez. Entrevista concedida a Maria Eduarda Magro. Porto Alegre, 20 de
setembro de 2019. 1h57min56s.
426 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
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2009. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em
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Maria Eduarda Magro | 427
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro/São
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de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos
referentes às Leis de Segurança Nacional (1964-1978). 2009. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2009.
Ensino de História
Capítulo XXV
Ensino de História da África:
o problema da disciplina no Século XXI
Bianca Lopes Brites 1
Domingos Mula Cá Júnior 2
Juliana Carolina da Silva 3
Introdução
O objetivo deste pequeno texto que apresenta um conjunto de
discussões teórica sobre o papel da disciplina na contemporaneidade,
sobretudo no campo da teoria da história e historiográfico que é do nosso
interesse. Por assuntos relativos à aplicação de um ensino voltado a
produção de conhecimento endógeno4 (local).
A nossa discussão parte de um ponto de vista que visa problematizar
o lugar da disciplina no século XXI em África, pensando conceitos-chave
como modernidade e cânone. Os materiais para a realização desse
pequeno texto foram resultados das leituras dos autores que se preocupam
em não responder o ocidente, mas contribuir nas produções não eurofônos
“não ocidentais”.
Sobre a Modernidade e a História
O princípio epistêmico desse debate parte de questões básicas do
pensamento intelectual na área de humanidades acerca da crítica ao
1
Mestranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
2
Mestranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
3
Doutoranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
4 É um conceito desenvolvido por pesquisadores africanos, que estudam o continente a partir de uma visão africana
e de uma produção voltada para a África. Entre eles citaremos alguns como Mudimbé, Hountondji, Osman Oumar
Kane e Oyewùmí, Oyèronké.
432 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
eurocentrismo do conhecimento e seus percalços histórico-políticos,
especificamente para o campo disciplinar da história tendo em vista sua
articulação com outros campos disciplinares das “humanas”. Busca-se
refletir sobre alguns problemas a partir do se configura enquanto
“Modernidade”5 tanto como uma temporalidade histórica quanto como
parte de um projeto político específico do local da qual parte, quanto uma
temporalidade que agrega formações discursivas detentoras de uma certa
especificidade no que tange o Ocidente. Problemáticas que se referem à
imposição por meio de regimes de verdade6 como partes do projeto
colonialista cuja dimensão territorial é bastante específica e diminuta que,
no entanto, acabou por auto afirmar-se como a “essência de todas as
coisas”, formaram bases para um questionamento epistemológico
profundo.
Nesse sentido, a partir dessa duplicidade processual busca-se
compreender o colonialismo moderno europeu, tendo em vista o seu
caráter diferencial de outras formas de processos de colonização da
antiguidade e de povos não europeus, adquire contornos globais de alcance
por meio formas de imposição múltiplas. Importante ressaltar essas
formas que terão percalços em processos subsequentes do próprio
colonialismo e que impactam profundamente o presente mediante as
continuidades de seu legado nos sentidos supracitados. Como parte do
contexto histórico ocidental-europeu medieval a preponderância do
imaginário cristão é um absoluto para essas sociedades. Desse modo,
pode-se inferir genericamente que a partir da expansão e conquista por
5 Busca-se um entendimento com a contribuição de Chakrabarty (2008) sobre a dimensão fundamentalmente
política do conceito supracitado, importante para compreender a amplitude de seu alcance e constituição uma vez
que:“[...] o fenômeno da “modernidade política” – em concreto , do domínio exercido pelas instituições modernas do
Estado, a burocracia e as empresas capitalistas – não podem conceber-se de nenhuma maneira a escola mundial sem
ter em conta certos conceitos e categorias, cujas genealogias têm suas raízes nas tradições intelectuais, até
teleológicas, da Europa [...]”(CHAKRABARTY, 2008, p.30)
6 SHOHAT, Ella. Crítica da Imagem Eurocêntrica: Multiculturalismo e Representação, Cosaic Naify, 2006, p. 44.
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 433
parte das monarquias nacionais, sobretudo ibéricas, sobre os territórios
americanos, e do processo de tráfico transatlântico de africanos a retórica
cristã é acionada enquanto mecanismo civilizador e justificativo para as
atividades econômicas de extração e ocupação mediante uso da força. Tal
retórica ostenta uma base teleológica que discerne cristãos e não cristãos
segundo status de humanidade e diferenciação hierarquizante. Logo, as
populações indígenas e das américas e africanas traficadas de África
passam a ser representadas sob esses mecanismos de diferenciações.
Paralelamente, para além dos escritos literários e relatos
informativos, os discursos científicos-formais do Iluminismo já
reproduzem uma noção racializada dos “outros” não europeus, cunhando
classificações pejorativas para esses. Entre as tendências de pensamento
no final do século XVIII a partir da sistematização da natureza cria-se um
novo tipo de projeto de alcance planetário, associado à exploração
marítima de construção do conhecimento. O campo da história também
se agrega a tal intento em que a História passa a ser um processo do vir a
ser no tempo, onde toda a História da humanidade é uma pura História da
Natureza e suas forças. (KOSELLECK, p. 171, 2013). Intelectuais como
Buffon, Kant, Voltaire, Montesquieu, entre tantos outros são exemplos
dessa tendência supracitada. Teorias como a associação do clima em
autores como Buffon e Kant enquanto elemento pseudojustificativo para a
escravização dos africanos, inferiorização física e intelectual dos Negros,
em Montesquieu e Voltaire, entre formulações que trazem uma teleologia
com base nos Estados-Nacionais europeus modernos idealizados pósRevolução Francesa e princípios da ideologia liberal como a expressão
humana genuína.
As ideologias vigentes no século XIX que passam a conceber a
categoria “raça” como uma categoria de estatuto científico, já não
associada a elementos como clima e natureza. Entre essas teorias, o
434 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
racismo científico, que tem como premissa o determinismo racial cujo
argumento assenta-se na concepção da existência de diferentes raças
humanas , tendo como idealizador Arthur Gobineau e o darwinismo social,
que se associa a aplicação da teoria de “seleção natural” de Charles Darwin
às dinâmicas sociais e da classificação de diferentes povos como
“civilizados” e “selvagens”, defendendo uma possibilidade de “progresso”
a partir de um processo de “evolução” dos últimos para ser como os
primeiros7.
Como
tendências
teóricas
das
ciências
humanas,
especialmente a história, tanto o positivismo quanto o historicismo, e até
mesmo o marxismo, como uma tendência teórica que se opõe ao
capitalismo, mas que reproduz uma expressão evolucionista consoante o
pensamento da época. A primeira associa-se ao movimento com relação a
afirmação do estatuto da História como ciência, à semelhança das ciências
naturais, e que se pode presumir leis que determinam o movimento
histórico, a segunda o historicismo que parte de um modelo idealizado
com base no conceito de “consciência” para definição da história e sua
temporalidade progressiva, sendo alvo de críticas por essa “consciência”
ser associada a dinâmica política dos Estados-Nação europeus e seus
respectivos nacionalismos.
Entrementes, consoante a definição de “Modernidade”, virou
consenso por parte de várias tendências teóricas, e particularmente
apresentado como alternativa mais sensata, associá-la ao que se denomina
eurocentrismo nos seus sentidos semântico-político e epistemológico. O
Eurocentrismo, como parte integrante da Modernidade, corrobora uma
tendência que busca o autocentramento das regiões do Ocidente europeu
nos sentidos supracitados. Estruturou-se mediante a “expansão do legado”
em um destino histórico a partir do silenciamento de outras culturas e
7 PRATT, Mary Louise, 1999, p. 25.
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 435
práticas genocidas como justificativa para alcançar o “progresso da
humanidade”. Tal legado articula-se às formações de discurso colonialista,
expressos, por exemplo no princípio do conhecimento como estando
associado uma Grécia enquanto personificação da civilização ocidental,
Esse Ocidente, nesse sentido, é colocado como um potentado homogêneo
que reafirma as “virtudes” desse território a partir de dimensões
ontológicas e morais constituintes do período em que esse estrutura-se
como episteme, sobretudo a partir do Iluminismo e reforçado no
cientificismo do século XIX.
Ademais, o próprio Ocidente é compreendido como uma herança
coletiva em que seus subprodutos discursivos como as nomeações
“Oriente”, “África”, “América”, entre outros não passam de criações
imaginárias impelidas no seu ímpeto de conquista e diferenciação
assimétrica. Em outras palavras, o que convenciona a determinar como
“Ocidente”, na verdade é constituído por múltiplas culturas uma vez que,
por exemplo:
[...] o “mito do Ocidente” e o “mito do Oriente” formam duas faces do mesmo
signo colonial. Se Edward Said, em Orientalismo, chama atenção para a
construção eurocêntrica do Oriente, outros, como Martin Bernal em Black
Athena, apontam para o processo complementar de construção eurocêntrica
do Ocidente a través da omissão do “Oriente” e da África. [...] (SHOHAT, p.
40, 2006).
Desse modo, na verdade o Ocidente cunhou tais classificações após
um movimento bem específico de sua temporalidade histórica tendo como
ponto de inflexão as cruzadas e queda da hegemonia muçulmana e a área
em seu mundo conhecido. De tal modo, passa a obter cada vez mais
domínio geopolítico sobre os territórios, agregando elementos culturais
dessas e outras tantas culturas para formar seu discurso unificador e acaba
436 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
por manifestar suas ambições políticas de expansionismo e dominação em
consonância com as atividades intelectuais do “Século das Luzes”.
As ciências humanas como campo de conhecimento implicado mais
diretamente nas questões políticas e sociais do mundo refletem em grande
medida as preocupações de nosso período contemporâneo. Não somente
reflete como propositalmente engaja-se a elas com vistas ao intento de
promover mudanças concretas na realidade. Ao menos é o que se tem
procurado pensar e que particularmente venho a defender na presente
abordagem. Contudo, esse importante passo não é fruto de uma simplória
intenção pessoal descontínua de movimentos anteriores, tanto políticos
quanto epistemológicos. Em termos de disciplina de história faz-se
necessário recordar que a prática historiográfica convencional, decorrente
das matrizes teóricas de pelo menos três séculos atrás, sofreu uma série
de modificações dando margem ao questionamento das temporalidades,
categorias analíticas, concepções de sujeito e agência históricas, além da
própria finalidade de sua existência, a partir da segunda metade do século
XX.
As humanidades adquiriram uma maior autonomia institucional
frente às ingerências externas uma vez que essas disciplinas se viram
confrontadas com o desafio de elaborar, ao mesmo tempo, uma crítica de
suas marcas de origem e uma nova orientação normativa e de legitimação.
(TURIN, 2017, p. 196) A história abre-se a outras metodologias, conceitos
e problemáticas de outros campos disciplinares, como antropologia,
sociologia, além das possibilidades de uso de fontes até então
desconsideradas para um fazer do ofício convencional, passando por
modificações internas bastante profundas que suscitam um período de
“crise” por historiadoras e historiadores por volta de 1970.
Tendo em vista os esforços e iniciativas de intelectuais, pensadores e
militantes negros em reverter a analítica colonial sobre a África, povos
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 437
africanos e o sujeito africano, há um percurso realizado de estudos que vão
contrapor as narrativas do não humano e não histórico. Brevemente,
pode-se pontuar as discussões que visam trazer uma abordagem oposta
ao caráter de desumanização e inferiorização sob a retórica civilizacional,
da raça e do progresso perpetradas pela episteme ocidental trazendo como
exemplo o trabalho de Cheikh Anta Diop e a disputa narrativa/política
envolvendo a racialização do Egito Antigo.8 É consensual que o Egito
antigo bem como a civilização e suas múltiplas criações tem agência de
indivíduos, grupos, povos africanos que lá habitaram, sendo a discussão
epidérmica uma alegação de que sim, os habitantes daquela região seriam
portadores de características fenotípicas ao que hoje se convenciona a
identificar enquanto “Negro”. Outros estudiosos negros como Theophile
Obenga, contemporâneo de Diop e o afro norte americano Ivan Van
Sertima, de uma geração posterior, entre outros tantos valem-se desta tese
e preocupam-se em reconstituir em torno desta problemática com o
Antigo Egito ou Kemet para contrapor o racismo científico sobre a
incapacidade intelectual, cognitiva, cultural e política de indivíduos
racializados enquanto Negros.
Outrossim, historiografias, estudos e pesquisas que vem a abordar
culturas autóctones não cristãs e não islâmicas de diferentes partes do
continente já descoladas de uma analítica racializante ou do exotismo que
reafirma um caráter de inferioridade de sua ontologia, em grande medida
8 A obra “ A Origem Africana da Civilização: Mito ou Realidade?” é um exemplo que encarrega-se de articular a ideia
da origem da humanidade na África, especificamente no Egito como a primeira civilização complexa bem como a
anterioridade com relação à Grécia Antiga. De forma significativa, agrega elementos que visam estabelecer as relações
do Egito ou Kemet com as outras sociedades e povos africanos ao defender a partilha de aspectos tecnológicos,
culturais, espirituais. O centro da defesa empreendida por este trabalho afirma que os habitantes do Egito eram
Negros a partir de argumentos que são fundamentos a partir de textos antigos dos gregos, posteriormente de
intelectuais do século XVIII, análises de melanina a partir das epidermes das múmias antigas, comparações a partir
de aspectos fenotípicos das iconografias e estatuária, rotas migratórias, entre outros aportes metodológicos cuja
interpretação não cabe a este trabalho aprofundar.
438 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
associadas aos esforços de militantes e intelectuais negros9. Associando
tanto as contra narrativas negras sobre o Egito Antigo e esses esforços ao
tratar culturas autóctones com simetria a expressões ocidentais há tanto
intelectuais negros que vem a criticar uma espécie de essencialista ou
romantização dessas práticas, não a fim de esvaziar as suas premissas
inicias de combate ao racismo científico e reinvenção dos próprios saberes
relativos à África, mas no sentido de uma crítica epistêmica que vem a
afirmar a existência de uma metafísica racial ou endossar aspectos da
filosofia teleológica do progresso.
Problemáticas sobre o ensino de História da África
Quando se trata da teoria da história e historiografia da história em
relação a ciências modernas, sobretudo no que se refere às disciplinas das
ciências sociais que são sustentados pelas múltiplas teorias consumista em
todo o aparato do diferente campo de aprendizagem, sejam elas informal
e formal sendo essa última a nossa prioridade. Universidades, Faculdades,
formações profissionais e técnicos de várias áreas de saber. Nesse sentido,
propomos pensar as seguintes questões: Mas que teoria atenta o nosso
ramo de saber em África concretamente? Qual o lugar da historiografia
africana em relação às disciplinas da história ofertadas nas universidades
estrangeiras? O que se trata nessas disciplinas sobre a África na diáspora?
Mudimbe, ao falar sobre a “invenção da África”, em substituição à sua
gnose (conhecimento), argumenta que não precisamos simplesmente
criar ideologias que respondem ao ocidente, mas devemos descolonizar o
pensamento acadêmico africano, e que por mais que esses estudos ainda
9 Kwasi Wiredu, Kwame Gyekye e Odera Okura são exemplos de pensadores africanos que partem das chamadas
filosofias tradicionais das culturas autóctones para pensar formas de transformação social na África e romper com
a ideia negativa sobre as expressões supracitadas. (VALDÉS, Eduardo Devés, p. 155-156, 2008)
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 439
estejam vinculados ao ocidente10. Os africanos devem criar e
responsabilizar-se da produção dos seus saberes voltadas para o
continente, olhando a partir de dentro os documentos produzidos de uma
forma endógena (local). O que vai além das questões clássicas em torno da
Antropologia e da história da África.
Para descolonizar o pensamento acadêmico africano precisamos
reestruturar os nossos currículos e disciplinas vinculadas ainda às teorias
ocidentais. Por exemplo, na Guiné-Bissau um país colonizado por
Portugal, ainda contém no seu currículo escolar a obrigatoriedade de
aprender o Hino nacional português em algumas escolas privadas do país
“escola portuguesa”. As nossas matérias ainda contém a decoreba dos
alunos em aprender os nomes dos primeiros reis e infantes da era colonial
metropolitana. Nas universidades no curso de direito, as leis jurídicas
ainda estão consagradas com o do colonizador.
De um pensamento crítico em repensar as humanidades na África é
preciso desapropriar do passado e recondiciona-lo. Segundo Falola (2007)
11
demarcar fronteiras delimitadas pelo ocidente e reorganizar a produção
de conhecimento, romper com o passado romantizado sobre o continente
assim como reestruturar o conhecimento ocidental. Porque as nossas
universidades não podem criar economias diversificada, mas podemos
criar e nutrir as humanidades, que vão desconstruir o conhecimento
ocidental atrelado aos nossos de uma forma equivocado.
De um modo geral, precisamos romper com esse apego das teorias
do passado internamente, antes de usar da fala e escrita para criticar as
disciplinas que são ministradas na diáspora sobre á África. Assim
10 MUDIMBE, Valentim Yves. A Invenção da África: gnose: filosofia e a ordem de conhecimento. Ana Medeiros
(trad.), Portugal, Edições pedagogo, 2013.
11 TOYN Falola, Nacionalizar á África, Culturalizar o Ocidente e Reformular AS Humanidades na África. Afro-Ásia,
36 (2007), 9-38pp
440 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
poderemos responder as perguntas do tipo: Essas disciplinas falam de que
África? Será que o conteúdo dado é compatível ao programa? Quem são
os especialistas a ministrar essas cadeiras? São essas e mais perguntas que
parecem simples ou complexas, mas, que precisam ser respondidas,
todavia, para isso precisamos repensar o nosso modo consumista das
teorias coloniais.
A extensão dessa prática consumista das teorias verifica-se em outros
lugares que detém recursos e meio de ensino e construção de
conhecimento consagrada a exemplo do Brasil, que possuí um arcabouço
das produções de conhecimento cientifico e pesquisa, mas com uma
grande dependência teórica ocidental.
A minha posição é a do reconhecimento de que o modo como ensinamos e
desenvolvemos pesquisa em teoria da História, no Brasil, nos coloca em
posição de consumidores (as) de referenciais importados, especialmente de
países como Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos da América e, em
menor escala, Holanda e Itália. Não se trata de assumir uma postura de recusa
imprudente, ou de rejeição irrefletida de um cânone, mas de perguntar como
se construiu, por que e de que modo se perpetua esse cânone. O que está em
questão, portanto, é a urgência em extrapolar a categoria de lugar social dos
(as) historiadores (as) e de considerar a existência de um a priori epistêmico
que o antecede, regula e condiciona. (PEREIRA, 2018, P.90)12
Entretanto, essa não transgressão que não rompe com o passado
colonial, vai além da academia brasileira. As pessoas estão sendo formados
pelas instituições universitárias brasileiras num modelo de aquisição de
conhecimento voltada num campo teórico que não é decolonial. O uso do
termo “decolonial” dentro dessas instituições virou uma permanência é
um hábito obrigatório para os docentes e discentes, mas de que
12 PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018.
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 441
decolonialidade estamos falando se ainda mantemos, repetimos e vivemos
da mesma prática de ensino?
Um dos possíveis caminhos para esse empasse talvez seja valorizar
as produções locais, e pensar sobre a teoria da história e sua praxidade.
Rever o modo de uso dessas teorias e quebrar com o senso comum que
aplaude quem vive dessa consumação. Porque não adianta ler os clássicos
a partir das mesmas perguntas que fazem esses clássicos, porque os
tempos mudaram, a forma de ver e de dar respostas desses clássicos
mudou, pois, transgredimos e evoluímos em termos de produção e das
normas que regem essas produções. Quando falamos da evolução não
queremos dizer que somos melhores ou piores que os clássicos, mas a
nossa forma de ver e pensar a sociedade tem se alterado ao longo do
tempo.
Conclusão
Quando se trata dos problemas da disciplina no século XXI, da forma
como ela é selecionada, preparada e aplicada. Em todos esses processos ela
é sujeita a modificação, pois, essa modificação não é um problema. O
problema está na forma como iremos dialogar com as ementas
disciplinares, que na maioria das vezes foi idealizado com teorias
estrangeiras. Outro problema é que seguimos a risca os mesmos modelos
de desenvolvimento dessas teorias canônicas. Lembrando que muitas
dessas narrativas históricas em África, assim como seus pesquisadores,
sofreram influência da colonização. Em adição, herdamos as velhas
praticas do nosso colonizador.
Essas heranças acabam eximindo qualquer possibilidade das relações
intercambiais que foram desenvolvidas de uma forma endógena com
outros ramos do saber, a exemplo do Brasil que formou e vem formando
inteletuais africanos que retornam para os seus países após a formação.
442 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Não conseguem aplicar na pratica os ensinamentos adquiridos por causa
dessa intransigência de ensino e aprendizagem. Aqui queremos ressalvar
que esses profissionais por hora acabam reproduzindo as mesmas praticas
obtidas, mesmo que almejam a mudança, mas o próprio sistema de ensino
os impede dessa inovação.
Pensar as próprias dinâmicas de transformação no campo da História
e Ensino de História instituído enquanto tal e as interligações com o campo
de estudos africanos ou de África são fundamentais à medida que as
discussões epistêmicas supracitadas permeiam partes significativas dessas
transformações do primeiro e da ampliação do segundo. É importante
reforçar que a própria consolidação das discussões sobre história do
continente africano, atualmente, vale-se da diáspora e da série de
problemáticas que surgem a partir deste enquanto empreendimento
político ancorado no âmbito discursivo. Além de práticas de pensamento,
a busca por políticas públicas de valorização da oralidade, de práticas não
consumistas, a própria luta contra a precarização das vidas e pelo respeito
às complexas e diversificadas confluências humanas e de ambientes, são
essenciais para trazermos para a prática, a realidade das discussões.
Valendo-se de chaves lançadas por Mudimbe (2013), Appiah (2014) e
Mbembe (2017) com relação ao continente africano, as práticas
epistêmicas e as implicações políticas associadas ao racismo e racialização,
pensar em diferentes temporalidades, seja no período do que
tradicionalmente concebe-se como Antiguidade, seja as civilizações e
impérios africanos medievais, as confluências de povos africanos na
modernidade e do próprio contexto contemporâneo pós-colonial, é
eticamente necessário validar as múltiplas maneiras de habitar o mundo.
Seja dentro de expressões culturais singulares de povos autóctones, seja
de expressões culturais islâmicas e cristãs, as possibilidades de
Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 443
coexistência em igualdade política com os múltiplos povos constituem as
múltiplas regiões de África.
Referências
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
CHAKRABARTY, Dipesh. Al Margen De Europa – Pensamiento Poscolonial e Diferencia
Histórica. Barcelona: Tusquets Editores, 2008.
KOSELLECK, Reinhart. O conceito de História. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.
MBEMBE, Achille. A Crítica da Razão Negra. Ed. Antígona, Lisboa, 2017.
MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa:
Mangualde: Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Autêntica, 2009.
PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO,
Luiz Eugênio; SANTOS, Pedro Brum. (Org.). Literatura e História: Perspectivas e
Convergências. Bauru: EDUSC, 1999.
SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica - Multiculturalismo e
Representação. Cosac Naify, 2006.
TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do
historiador na crise das humanidades. In: Revista Tempo, vol. 24, n. 2,
maio/agosto, 2018. p. 187-205.
VALDÉS, Eduardo Devés. O Pensamento Africano Sul-Saariano: Conexões e paralelos
com o pensamento Latino-Americano e o Asiático. Rio de Janeiro: EDUCAM , 2008.
Capítulo XXVI
“Quem sou eu na História?”:
O papel histórico feminino no imaginário de
uma turma de estudantes do Ensino Fundamental
Alice Schmitz Toldo 1
Introdução
Este trabalho é parte de uma pesquisa cujo objetivo é compreender o
que pode a imaginação para a aprendizagem histórica, da qual participei no
segundo semestre de 2019 em parceria com os professores Nilton Mullet
Pereira (UFRGS), Marcello Paniz Giacomoni (UFRGS), e os bolsistas de
iniciação científica Leonardo Amorim (UFRGS) e Jean Nunes (UFRGS).
Elaborado para ser desenvolvido em escolas de educação básica, no período
em questão ele foi executado no Colégio de Aplicação da UFRGS em uma
oficina do Projeto “Amora", da qual fizeram parte alunos do sexto e sétimo
ano do Ensino Fundamental. O Projeto Amora é um espaço em que docentes
desenvolvem oficinas sobre o conhecimento escolar a partir de uma
perspectiva multifacetada e interdisciplinar. Entre variadas alternativas, os
estudantes participam das oficinas que mais atendam aos seus interesses, as
atividades ocorrem na parte da tarde ao longo de um semestre escolar.
Para a realização do estudo, partimos das elaborações teóricas de
Bergson (2010), Deleuze (1996) e Blanchot (1987) sobre o que é a
imaginação enquanto conceito, concebendo então que ela é um não-lugar
do corpo, não diretamente relacionado a racionalidade e ontologicamente
criadora. Nesse sentido, acreditamos na potência da imaginação para a
1
Graduada – UFRGS; alicestoldo@gmail.com
Alice Schmitz Toldo | 445
aprendizagem histórica a partir do fato em que ela intrinsicamente prevê
o deslocamento do Eu que imagina a um Outro, que é imaginado; isto não
se dá somente no próprio fato em que, em uma aula de história somos
convidados a imaginar temporalidades das quais não fizemos parte, como
também no modo em que a aprendizagem conceitual prevê a articulação
dessa imaginação.
Sobre esta aprendizagem de conceitos, Giacomoni e Pereira
escrevem:
Quando se aprende história, afinal? Não se trata simplesmente de definir
conceitos, mas de estar inserido num tempo no qual o conceito pode ser
criado. Logo, não se trata de o professor preocupar-se em apresentar
definições ou interpretações de conceitos ou acontecimentos históricos, mas o
de ensejar um lugar onde os conceitos podem aparecer como criação.
(GIACOMONI; PEREIRA, 2013, p. 14)
Assim, o exercício da imaginação na aula de história está para a
elaboração conceitual pelo modo em que, criando um passado possível, o
estudante articula seu entendimento de “o que aconteceu” e “o que poderia
ter acontecido” a partir de como ele próprio compreende o passado.
Gabriel Torelly em seu trabalho Memória e fabulação em Henri Bergson:
considerações sobre a experiência do tempo no ensino de história (2014)
descreve a relação da aprendizagem conceitual e fabulação da seguinte
forma: “A combinação entre emoção criadora e capacidade representativa
que preside o processo de elaboração de um conceito não é apenas um
prodígio da abstração analítica, mas o envolvimento na trama inventiva
da “literalização” (TORELLY, 2014, p.98). Isto é, ao imaginarmos, nos
relacionamos, e ao nos relacionarmos, entendemos.
Foi a partir desse contexto que se originou o exercício Quem Sou Eu
na História? cujo objetivo era convidar os alunos a criarem um
446 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
personagem (existente nos documentos históricos ou não) que voltasse em
qualquer momento do passado e tomasse alguma atitude que alterasse o
mundo presente. Com efeito, uma das possibilidades que a tarefa oferecia
era que os estudantes refletissem sobre as relações de causa e
consequência no processo histórico, porém, esta não foi a única
decorrência da atividade. A partir da produção dos alunos, entre diversas
possíveis análises, pudemos observar questões de gênero produto do seu
imaginário.
É preciso situar aqui concepções sobre imaginário e sua diferenciação
do que é a imaginação. Os estudos da história do imaginário estão
preocupados em entender as representações criadas em determinado
tempo e por certo grupo a partir de imagens verbais, visuais, corporais,
sonoras, entre outras. Estes signos, dentro do campo em questão, são
compreendidos como produto de uma relação entre a sociedade e o
indivíduo que se criam ao mesmo tempo em que são criados. Será também
o campo do imaginário pelo qual entenderemos os trabalhos produzidos
pelos alunos refletindo que tipo de trabalho produziram, então, partimos
agora para a explanação metodológica mais detalhada tanto do exercício
quanto de minha investigação.
Assim, tendo a estrutura do exercício apresentada, cabe então
apresentar os objetivos que pretendo alcançar com a realização deste
trabalho. Ao analisar os produtos dos alunos, pude identificar símbolos
relacionados a papéis de gênero presentes no imaginário da sociedade
ocidental. Meu intuito, então, é ensaiar hipóteses sobre o modo em que
estes signos se apresentam e o porquê. Da mesma forma, na divulgação
desta proposta está também a defesa de sua potencialidade e a finalidade
de que outros educadores possam desenvolvê-la com seus alunos do modo
que acharem mais apropriado. Dito isto, podemos passar para a
compreensão metodológica da realização e análise do exercício.
Alice Schmitz Toldo | 447
Metodologia
O exercício Quem Sou Eu na História? foi um entre diversos outros
que realizamos ao longo da oficina. Intitulamos essas atividades “ateliês”,
com o objetivo de que mais do que tarefas comuns, cada ateliê fosse uma
suspensão da narrativa histórica para que a imaginação dos alunos fosse
articulada com o passado, criando ficções a partir de algumas regras
estabelecidas. Estas regras eram organizadas a partir do propósito de cada
ateliê e tinham o intuito de pensar diversos modos em que os alunos
trabalhariam – seja por escrita, desenho, fala, etc.
No caso do exercício Quem Sou Eu... fazíamos a proposta de trabalho
aos estudantes, que escreveriam sobre seu personagem e o que ele faria
para alterar o curso da História. Após esse momento, os alunos deveriam
apresentar sua criação aos colegas, para que acontecesse uma discussão
coletiva sobre o que fizeram.
Terminada a aula, recolhemos os trabalhos para que nós, enquanto
grupo de pesquisa, analisássemos a produção dos estudantes e de que
modo a imaginação aparecia ali como potência para a aprendizagem. De
minha parte, relacionei a quantidade de trabalhos produzidos com alguns
eixos que julguei relevantes para compreender as representações
reproduzidas pelo imaginário dos alunos, sendo estes: período histórico
escolhido pelo aluno; “raça” do personagem criado; gênero do personagem
criado; tipo de trabalho exercido pelos personagens masculinos; tipo de
trabalho exercido pelas personagens femininas; quantidade de meninos
que produziram personagens masculinas; quantidade de meninos que
produziram personagens femininas; quantidade de meninas que
produziram personagens femininas; quantidade de meninas que
produziram personagens masculinos.
448 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Ao analisar quantitativamente a produção dos estudantes durante o
ateliê Quem Sou Eu na História?, percebi alguns padrões em relações ao
gênero. Dos catorze trabalhos no total, nove eram personagens
masculinos, sendo oito destes criados por meninos e um destes criado por
uma menina. Quatro destes exerciam algum trabalho que envolvia a
guerra, e todos estes que praticavam essa função foram criados por
meninos. Todos os personagens masculinos eram os protagonistas da
narrativa criada, isto é, atores de suas ações no passado que previam a
alteração do futuro. As personagens femininas eram cinco, sendo quatro
destas criadas por meninas e uma destas criada por um menino. A única
personagem que exercia uma função guerreira foi criada por um menino.
Duas das outras quatro personagens eram subordinadas do rei no período
romano, as outras duas eram deidades do Egito Antigo.
Por certo, estes números são insuficientes para que se possa chegar
em alguma conclusão aprofundada sobre as representações masculinas e
femininas na sociedade contemporânea. Ainda assim, são resultados
interessantes para se elaborar hipóteses sobre os significados
representados no imaginário dos alunos da oficina ligados a relações de
gênero, a partir de teorias sobre identidade cultural, gênero e sexualidade
e o espaço reservado para mulheres e homens nas pesquisas e aulas de
história.
Feminilidades e Masculinidades
A formulação de identidades de gênero é uma questão historicamente
determinada. Como formula Foucault (FOUCAULT apud SEFFNER, 2003,
p.99), a sociedade ocidental se baseia na estrutura binária, feminino e
masculino, para a definição de cada indivíduo a partir de seu órgão sexual.
É papel de cada um, portanto, exercer papéis e corresponder a códigos
culturalmente designados a cada sexo, de modo a ser reconhecido como tal.
Alice Schmitz Toldo | 449
Cabe a este trabalho designar alguns desses símbolos culturais que
legitimam o sexo. Simone de Beauvoir já destacava os mitos que compõem
o que se espera de uma mulher na sociedade patriarcal. Em O Segundo
Sexo, a autora defende que a mulher é entendida como O Outro
(BEAUVOIR, 1970, p.173) no contexto cultural; um outro secundário
misterioso que encerra o bem e o mal como é a própria natureza, distante
da razão masculina. Nessa lógica, assim como a natureza está para servir
à exploração do homem, também está a mulher, cujo papel é se entregar
ao cuidado dos filhos, do marido, do pai, da casa e de sua aparência física.
Ainda que o desenvolvimento do pensamento sobre as relações de
gênero esteja em desenvolvimento contínuo e críticas ao pensamento de
Beauvoir tenham aparecido nas últimas décadas, ressalto a existência um
certo consenso sobre o imaginário patriarcal sobre a feminilidade como
um traço agregador da fragilidade e do cuidado. Isto é defendido por Ana
Colling em seu capítulo A Construção Histórica do Feminino e do
Masculino (2004), que comenta a existência dessa mulher mãe, esposa
dedicada, “rainha do lar”, pertencente portanto ao âmbito privado.
Quando a mulher não se comporta dessa forma, ela é uma “Eva,
debochada, sensual, constituindo a vergonha da sociedade” (COLLING,
2004:15). Isto, claro, não se dá com o papel masculino, ao qual pertence a
vida pública, a força e a autonomia de ser sujeito de sua própria história.
“Ser homem”, portanto, é ser alheio a diversas características, como a
delicadeza, a higiene, a vaidade estética, entre outras.
Estas representações, devo frisar, não são alheias a atravessamentos
de raça e classe. Angela Davis (2016) ao defender a indissociabilidade
desses elementos em seu livro Mulheres, Raça e Classe demonstra que as
mulheres negras não pertencem ao imaginário de mães bondosas e
recatadas, já mencionado; ao contrário, são entendidas como promíscuas,
resistentes, independentes e indisciplinadas.
450 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Discutidos alguns elementos do imaginário representativo da
masculinidade e feminilidade, retomo a discussão sobre a historicidade e,
portanto, mobilidade desses símbolos. Sobre isto, Fernando Seffner
apresenta:
“[...] de toda forma [o indivíduo] não está submetido a forças naturais cegas,
como a carga genética, o tamanho do hipotálamo ou qualquer outro atributo
biológico, genético ou de origem, que o moldariam de forma quase sempre
independente de sua vontade. [...] É na tensão entre a agência e as
representações socialmente construídas que cada indivíduo vai fabricando sua
identidade, entre limites e possibilidades, negociações e imposições.”
(SEFFNER, 2003, pp. 105-106)
Nesse sentido, o ambiente escolar se mostra um espaço potencial em
que a agência e a representação se relacionam, podendo isto, aparecer nos
múltiplos espaços da escola, em nosso caso, em um exercício em uma
oficina sobre história. É certo que as narrativas históricas, tanto as da sala
de aula quanto as que conhecemos fora dela, são pautadas pela cultura em
que estão inseridas. Isto é, elas também apresentam papéis de gênero
atribuídas ao sexo, questão que discutiremos adiante.
As Excluídas da História
A narrativa histórica está diretamente relacionada a quem a constrói,
de que perspectiva o faz e quais seus objetivos com esta tarefa. Assim, a
sociedade ocidental, essencialmente patriarcal, é responsável por séculos
de criação de discursos nas mais diversas áreas de estudo que corroboram
com as noções supostamente biológicas entre homens e mulheres, e seus
respectivos papéis sociais (TEDESCHI, 2012, p.15).
Como aponta Losandro Antônio Tedeschi (2012), esta perspectiva
pode ser identificada desde os gregos na Antiguidade, que assumiam que
a mulher seria um ser imperfeito e, naturalmente, deveria estar
Alice Schmitz Toldo | 451
subordinada ao homem. Nesta mesma lógica, na Idade Média a Virgem
Maria vai ao centro do discurso clerical para identificar o feminino com a
natureza maternal (IBID, p.17). No mundo contemporâneo, com novas
formas de estruturação do trabalho e da família a partir da II Revolução
Industrial, a reestruturação social aparece como uma refinação da divisão
sexual do trabalho em que a mulher deve assumir o espaço de sua
natureza, o lar (IBID, p. 121). Com o avanço das décadas, essas noções
foram complexificadas, de modo que colaboram ainda hoje para a ideia da
fragilidade feminina e de seu pertencimento ao espaço doméstico,
presente na narrativa histórica. Como propõe Michelle Perrot:
[...] não existiram para o espaço público [...] As mulheres agricultoras ou de
artesãos, cujo papel econômico era considerável, não são recenseadas, e seu
trabalho, confundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torna-se assim
invisível. Em suma, as mulheres “não contam”. E existe aí muito mais do que
uma simples advertência”. (PERROT, apud TEDESCHI, 2012, p.25)
Nesse sentido, a história das mulheres torna-se uma sombra da
história masculina, aquela de “grandes feitos”, importantes políticas e
guerras. Estudar o sexo feminino no passado, assim, torna-se quase uma
incongruência, não fossem os avanços na pesquisa histórica que
problematizam estas questões (DUBY, Georges; PERROT, Michelle, apud
TEDESCHI, 2012, p.26).
A autora Joan Scott avança sobre isso em seu texto Gênero: uma
categoria útil para análise histórica (1995). Ela argumenta que, ao
tratarmos da história das mulheres no mundo ocidental sobre a
perspectiva da dominação masculina, sem entender essa relação como
uma construção situada no tempo e no espaço, acabamos por reproduzila como um dado biológico e a mulher como um ser passivo no processo
histórico. Mais do que isso, ela propõe que o gênero seja um modo de
452 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
compreensão das relações de poder presentes no passado e da maneira
que se dá a desigualdade entre sexos. Desse modo, homens e mulheres
deixam de ser analisados como elementos separados e para serem
entendidos de modo relacional.
O uso do gênero como categoria de análise histórica surgiu e se
consolidou a partir de esforços de grupos feministas ao longo do tempo,
contudo, é preciso frisar que nem sempre esta concepção histórica aparece
em narrativas sobre o passado. Ainda que se espere que historiadores e
professores de história trabalhem este tipo de concepção em seus espaços
de atuação, a fim de problematizar papéis de gênero consolidados pela
sociedade patriarcal, estes atores não detêm total poder sobre a narrativa
histórica. Desse modo, retomando nossa discussão sobre estudantes de
educação básica, deve-se frisar que suas noções de história não podem ser
restringidas ao que vivenciam em sala de aula. Por senso comum,
podemos apontar que filmes, séries, livros, músicas, peças de teatro, entre
diversos elementos culturais, também trazem narrativas históricas, que
nem sempre são atravessadas por estudos de gênero e que permeiam
nossas noções sobre o passado. Assim, partindo para analisar possíveis
significados dos trabalhos apresentados pelos alunos, os entenderemos
como parte da concepção patriarcal de papéis sociais, e não apenas
resultados objetivos do que supostamente aprendem na escola.
Analisando os Exercícios
Nos últimos parágrafos, nos dedicamos a observar alguns elementos
da sociedade patriarcal que penso estarem diretamente relacionados ao
imaginário que temos sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”
na nossa sociedade. Mais além, analisando simbolicamente os trabalhos
dos estudantes, podemos ensaiar como este conjunto de imagens criadas
se relaciona com a imaginação, para não só dizer o que cada sexo é, mas
Alice Schmitz Toldo | 453
também o que pode ser dentro do universo de possibilidades que é a
fabulação.
Início comentando os trabalhos das alunas que criaram deusas como
personagens. Relacionando estes com as narrativas sobre mulheres na
antiguidade como seres incompletos e, portanto, desempoderados, é
possível ensaiar que as estudantes em questão não encontraram uma
forma de exercer poder como mulheres no espaço mundano e precisaram
transcendê-lo para alcançar seus objetivos. Ou ainda, pode-se pensar que
elas estavam justamente seguindo o imaginário patriarcal sobre o
feminino como um universo místico e misterioso se tornando criaturas
não terrenas. Não se pode deixar de comentar que, de todo o modo, a
função de uma deidade é também cuidar daqueles que creem nela, assim,
isto também é associado ao papel da mulher como cuidadora.
Já as personagens com função de subordinação ao rei no período
romano seguiam a representação que o espaço pertencente a mulher é o
espaço privado, doméstico. Como serviçais, as ações escolhidas que
alterariam o curso da história eram pensadas por elas, mas eram
executadas pelos homens a quem serviam, o que está de acordo com a
concepção de que o sexo feminino é incompleto e está subordinado ao
masculino.
Cabe notar que a única aluna que decidiu criar um papel que não
tivesse nenhuma função de cuidado e fosse protagonista de suas próprias
ações foi a que inventou um protagonista masculino. Ela optou por
retornar ao passado como Cristóvão Colombo, um dos primeiros europeus
chegados ao Brasil2, e pessoalmente impedir o uso de mão de obra
escravizada no Brasil. Quanto às criações de heróis (e uma heroína)
2 Pelo trabalho da aluna se referir ao Brasil, acreditamos enquanto grupo de pesquisa que ela tenha tido a intenção
de se referir a Pedro Álvares Cabral, ainda que, por se tratar de sua imaginação, referir-se a ele ou a Cristóvão
Colombo não acarrete nenhum problema para a realização do exercício.
454 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
guerreiros, com a função de estar presente em alguma guerra que se
passou ao longo da história e vencê-la, é notável que todos tenham sido
produzidos por estudantes do sexo masculino. Isto não se distancia do
imaginário do que é a masculinidade, isto é, forte, independente e violenta.
Estas representações, devo frisar, não são alheias a atravessamentos
de raça e classe. Angela Davis (2016) ao defender a indissociabilidade
desses elementos em seu livro Mulheres, Raça e Classe demonstra que as
mulheres negras não pertencem ao imaginário de mães bondosas e
recatadas já mencionado; ao contrário, são entendidas como promíscuas,
resistentes, independentes e indisciplinadas. Contudo, isto não se refletiu
nas personagens femininas construídas por meninas. Assim, pode-se
depreender que o imaginário sobre o feminino explicitados nas sessões
anteriores é relativo à mulher branca, a mesma que aparece nos trabalhos
das estudantes.
Conclusão
Relacionamos, então, as produções dos alunos no exercício Quem Sou
Eu na História? com o imaginário ocidental, discutido pela literatura sobre
história das mulheres e estudos de gênero contemporâneos. Por certo,
dado o pequeno número de trabalhos realizados no total, bem como o fato
de que o projeto nomeado não teve continuidade em discutir relações de
gênero, ressalto que meu objetivo foi ensaiar hipóteses e não chegar a
conclusões do que significavam as personagens criadas. Contudo, é
importante notar a consonância entre as elaborações dos estudantes e o
que é discutido pelas teóricas das relações de gênero apresentadas. Podese constatar que a subjetivação patriarcal opera entre esses adolescentes,
ainda que não possamos avançar em sobre como e por quais meios isto
ocorre.
Alice Schmitz Toldo | 455
O ateliê Quem Sou Eu Na História? mostrou também um aspecto
interessante sobre o que pode a imaginação na aprendizagem histórica.
Tornando o passado um lugar de possibilidades, os alunos têm a
oportunidade de criar e se encontrarem com o próprio imaginário,
podendo refletir sobre ele ao compreenderem que o que constrói a história
são as pessoas a partir de suas próprias invenções. Trazer a imaginação
para a aula de história, é portanto, propor um modo de aprendizagem em
que os alunos têm poder sobre o processo histórico. Nesse sentido, reitero
a possibilidade de que se aplique a proposta na escola, a fim de dar
continuidade a discussões sobre relações de gênero em sala de aula ou
qualquer outro tema apresentado pela imaginação dos alunos.
Referências
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BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo:
Ed. UNESP, 2010
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987
COLLING, Ana. A Construção Histórica do Masculino e do Feminino. In: STREY, Marlene;
CABEDA, Sônia; PREHN, Denise (Orgs.). Gênero e Cultura: questões
contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2013
DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: ALLIEZ, E. Deleuze Filosofia Virtual. São Paulo:
Editora 34, 1996
GIACOMONI, Marcelo; PEREIRA, Nilton (orgs.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre:
Evangraf, 2013
456 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
PEREIRA, Nilton. O que pode a imaginação na aprendizagem histórica?. Revista Clio
(Recife) v. 38, n. 1, pp.48-67, 2020
PEREIRA, Nilton. O que se faz em uma aula de História? pensar sobre a colonialidade do
tempo. Revista Pedagógica (Chapecó) v. 20, n. 45, p. 16-35, set./dez, 2018
PEREIRA, Nilton.; TORELLY, Gabriel. O Jogo e o conceito: sobre o ato criativo na aula de
História. OPSIS, v. 15, n. 1, (Goiás) p. 88-100, abr. 2015
SCOTT, Joan. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade (Porto
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SEFFNER, Fernando. Derivas da Masculinidade: representação, identidade e diferença
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Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2003.
TEDESCHI, Losandro Antônio. As Mulheres e a História: uma introdução teórico
metodológica. Dourados: Editora UFGD, 2012.
TORELLY, Gabriel. Memória e fabulação em Henri Bergson: considerações sobre a
experiência do tempo no ensino de história. 2014. 124 f. Dissertação (Mestrado em
Educação). Faculdade de Educação, UFRGS, 2014
Capítulo XXVII
A experiência de estágio no espaço não formal
de educação: possibilidades de usos das fontes
documentais para o ensino de História
Liziane Acordi Rocha 1
Ariel Alves Medeiros 2
Durante o processo de formação acadêmica na área de ensino em
História, enquanto gerenciadores de ensino e aprendizagem a
Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, vem possibilitando
um caminho para novos/as educadores/as com ensino de qualidade. É
papel primordial garantir a formação de professores/as qualificados/as
para atuarem na educação, não somente como transmissores de
informações, mas, também para propiciar uma educação crítica, coletiva e
que preze pela inclusão das mais diferentes formas de agir, pensar e crer.
Nesse sentido, entre as disciplinas do curso de Licenciatura em História da
UNESC está o Estagio Obrigatório em espaços não formais de atuação
(Estágio IV). Particularmente, para o ensino de História, multiplicam-se
espaços não formais que muitas vezes são usados para atividades
educativas. Exemplos desses espaços são os museus, centros de memória
e arquivos, que além das mediações, tendo como público-alvo as escolas,
também se dedicam a criar setores voltados a promoção de ações
educativas. Esses/as educadores/as, de diversas áreas de atuação,
incentivam o público participante dessas atividades a promoverem suas
reflexões a partir de seus acervos. O objetivo não é o repasse simples de
1
Pós-graduanda - Universidade do Extremo Sul Catarinense; lizi@unesc.net
2
Mestranda – Universidade do Extremo Sul Catarinense; ariel-medeiros@hotmail.com
458 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
informações, mas sim, um diálogo entre o acervo (incluindo seu processo
formativo), e suas múltiplas possibilidades de pesquisa. Mesmo os espaços
não formais podem se subdividir em duas categorias, as que são
instituições e as que não são instituições.
Na categoria Instituições, podem ser incluídos os espaços que são
regulamentados e que possuem equipe técnica responsável pelas atividades
executadas, sendo o caso dos Museus, Centros de Ciências, Parques Ecológicos,
Parques Zoobotânicos, Jardins Botânicos, Planetários, Institutos de Pesquisa
Aquários, Zoológicos, dentre outros. Já os ambientes naturais ou urbanos que
não dispõem de estruturação institucional, mas onde é possível adotar práticas
educativas, englobam a categoria Não-Instituições. Nessa categoria podem ser
incluídos teatro, parque, casa, rua, praça, terreno, cinema, praia, caverna, rio,
lagoa, campo de futebol, dentre outros inúmeros espaços. (JACOBUCCI, 2008,
p. 56-57).
O espaço não formal pode ser compreendido como local “fora” da
escola, no contra sentido de espaço formal, nesse caso a escola enquanto
instituição que gerencia o ensino e possui espaços destinados a tal
demanda. Reconhecendo que o papel da escola é essencial na formação de
cidadãos e cidadãs conscientes, bem como, manter uma educação que
prime pelos Direitos Humanos. Por compreendermos que a educação
pública, gratuita, laica e obrigatória, são primazias para que tenhamos
pessoas que lutem cada vez mais para manter um Estado democrático de
direito a todos/as. É nesse sentido que os espaços não formais entram em
conjunto para anexar junto ao ensino e a aprendizagem um caminho
primordial na formação dos indivíduos.
Durante o primeiro semestre de 2018, tivemos a disciplina de Estágio
IV (Estágio Obrigatório em espaços não formais), ministrada pelos/as
professores/as Michele Gonçalves Cardoso e Ismael Gonçalves Alves. Nos
primeiros encontros tivemos discussões referentes a atuação de
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 459
profissionais da área de História em outros locais que não sejam somente
a sala de aula, como os espaços não formais de educação. Além da parte
teórica, entre leituras e debates, um dos pré-requisitos da disciplina,
visava-se ao planejamento, observação, pesquisa e a aplicação de uma ação
educativa que conciliasse um espaço não formal e a participação de
educandos/as na execução da atividade. Nesse processo de mediação entre
a nossa aprendizagem como alunas do curso e a articulação de projetos
com ensino formal optamos em realizar nossa atuação no Centro de
Memória e Documentação da Unesc-CEDOC. Este local faz parte de um
conjunto de setores que a UNESC dispõe como laboratório para o ensino e
aprendizagem, e que possuem atividades tanto para o público acadêmico
quanto a comunidade externa. O CEDOC/UNESC é um espaço destinado
a salvaguardar as memórias por meio da conservação, restauro e
disseminação da informação por meio dos seus fundos e coleções, bem
como da gestão documental. As informações contidas nos mais diferentes
suportes só têm valor se por meio delas somos capazes de produzir
conhecimento. Para os/as historiadores/as a importância de preservar as
fontes de pesquisa é essencial para o desempenho de suas atribuições
enquanto pesquisador/a e/ou professor/a. Para tal a consolidação de
espaços não formais como arquivos, bibliotecas, museus e centros de
memórias, para a preservação das memórias da sociedade e como espaços
de ações educativas, podem e devem ser lugares “vivos” e dinâmicos.
Se adentrarmos na produção do conhecimento fora dos muros da
escola, se ampliaria os múltiplos saberes e locais possíveis. O
conhecimento “serve para adquirirmos as habilidades e as competências
do mundo do trabalho; serve para tomar parte nas decisões da vida em
geral, social, política, econômica.” (GADOTTI, 2005, p. 4). O/a educador/a
atua como mediador/a desse conhecimento, mas também esse processo é
de via dupla: ensinando e aprendendo, essa metodologia engloba a
460 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
essência da educação “[...] o educador já não é o apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa (FREIRE, 1987, p. 39). Nesse sentido,
compreendermos que o processo educativo pode ser almejado em espaços
não formais e essa articulação entre a educação formal e não formal
coopera para uma amplitude do conhecimento.
Elaboração e desenvolvimento da ação educativa: construindo um olhar
sobre o rio.
Os documentos selecionados para proposta da ação educativa em
grande parte foram fontes do proprio acervo do CEDOC/UNESC e outros
foram levantados durante a pesquisa. O primeiro documento foi um
mandado de segurança de 1975, que faz parte do acervo doado pelo Fórum
de Criciúma no ano de 2000 para o CEDOC/UNESC. No referido proceso
alguns proprietários entraram com uma o medida contra a Prefeitura
Municipal e o Secretário de Finanças do Município de Criciúma. Entre os
motivos do pedido estava o questionamento de valores requeridos por
parte da prefeitura aos proprietários no movimento de canalização e de
retificação do rio Criciúma. Alguns proprietários tinham suas casas
próximas as margens e/ou sobre o rio, bem como outros que tiveram seus
nomes anexados na lista de custeio que não tinha casas próximas. No
referido processo, alguns recortes de jornais, fotografias e mapas estavam
anexados, demonstrando e existência e o discurso sobre o rio Criciúma.
O segundo material levantado, também acervo do CEDOC, foi uma
exposição feita pelo centro no ano de 2010, a partir do processo do
documento mencionado acima. Esse material gerou novos olhares e novas
intepretações sobre a temática do rio Criciúma. O mesmo material foi
convergido então, em uma exposição apresentada em maio de 2010 na “8ª
SEMANA NACIONAL DE MUSEUS NA UNESC”, com o tema “AS
MARGENS: A CIDADE E O RIO”, que circulou por outros espaços como em
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 461
novembro de 2010 pelo E. E. B. Sebastião Toledo dos Santos, com
acadêmicos/as da 6ª fase do curso de História da Unesc. Entre os materiais
utilizado na exposição estão recortes de jornais com enchentes dos anos
de 1974 e 2010, charges e reportagens; fotografias da cidade de Araranguá
e Tubarão (ambos possuem o um rio que corta a cidade), mapas e algumas
fotografias retiradas do processo de mandado de segurança fazendo um
comparativo de antes e depois.
Ao selecionar essas fontes sem ignorar que por “trás” de cada uma
há representações e uma interpretação que são definidos por aqueles/as
que fazem as leituras. De acordo com Jenkins (2007), essas construções
sobre os documentos são resultadas da própria leitura e/ou releitura, o/a
historiador/a que interpretam e reinterpretam as fontes, e que são
ilimitadas. Com isso fizermos a nossa leitura discursiva sobre os
documentos e readaptamos aos nossos objetivos. Para a ação educativa
buscamos analisar a paisagem em torno do espaço configurado como
Criciúma/SC e tendo o rio Criciúma como núcleo central. Permitindo que
os/as educandos/as compreendessem que no processo de construção da
cidade o rio sofreu ressignificações no seu significado e na representação
da paisagem.
É no final do século XIX e início do Século XX que a conjuntura
nacional se voltava para a criação de colônias de povoamento e a história
da criação da cidade de Criciúma/SC se insere nesse mecanismo. Para a
ocupação dos espaços os rios serviram de demarcadores de fronteiras “as
aguas [...] são abundantes. Não há lote colonial que não seja atravessado
por um rio, um córrego, um regato” (DALL’ALBA, 1983, p. 151). Deste
modo Criciúma não fugiu à regra, sua ocupação com a chegada de
imigrantes italianos que foram destacados de Urussanga para ocuparem
lotes demarcados pela Comissão de Colonização (ADAMI, 2015) que se deu
de acordo com Belolli (2011, p. 335) “quando arreiaram as bagagens junto
462 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
a um velho barracão erguido e abandonado por algum sertanista à
margem do riacho Criciúma, estada fundado o então núcleo colonial “São
José de Cresciúma”. Era o dia 6 de janeiro de 1880.”
É possível perceber que o espaço era ocupado anterior a chegada dos
imigrantes italianos bem como a relevância de manter-se próximo ao rio
para subsistência. A trajetória do rio Criciúma se interlaça com a própria
história da cidade, mesmo anterior a própria formação, [...] os sujeitos
sociais consideravam o rio Criciúma como um elemento de referência da
paisagem, que participava ativamente do cotidiano individual e coletivo da
sociedade.” (ADAMI, 2015, p. 47). Com a intensificação das atividades
carboníferas já no século XX e com o advento da Segunda Guerra Mundial
a cidade passou por um grande “salto” no seu desenvolvimento econômico
e social com as atividades carboniferas, nesse interim o rio passou a
coadjuvante, e novos rumos foram sendo construidos e [...] a ideologia do
progresso induziu a população a acreditar que o “carvão mineral” era o
nosso “ouro negro” e que a poluição dos rios era o custo necessário desse
progresso” (CAROLA, DASSI, 2014, p. 25). Criciúma se desenvolvia sendo
que “a maior parte dessa produção concentrava-se em Criciúma, o que
gerava um impacto populacional e econômica muito grande sobre a
pequena cidade[...]” (NASCIMENTO, 2012, p. 19-21).
Novas construções foram sendo constuidas as margens do rio e/ou
sobre o rio, como foi possivel observar no mandado de segurança
salvaguardado pelo CEDOC/UNESC, por meio os documentos do processo
pudemos compreender a dinâmica na cidade e na paisagem que conforme
Meneses aponta, “[...] considerando homem e paisagem como
indissociáveis, podemos afirmar que a paisagem tem história, que ela pode
ser objeto de conhecimento histórico e que essa história pode ser narrada.”
(2002, p. 36).
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 463
Desde modo, foi possível analisar o caráter histórico do rio Criciúma,
por meio da paisagem e das modificações e transformações da urbe, bem
como, compreender o percurso de construção da cidade que (in)visibilizou
o rio para que a mesma se desenvolvesse. Observando esses percursos
históricos do rio e da formação da cidade, foi possível construir um projeto
que convergisse em uma ação educativa. Para essa ação educativa, tivemos
por objetivos, compreender por meio de relatos e imagens a dinâmica da
cidade em torno do rio, anterior e após as atividades carboníferas;
identificar por meio das imagens o impacto ambiental que as atividades
carboníferas acarretaram ao rio Criciúma e identificar por meio de mapas
os locais por onde o Rio Criciúma circula e sua relação com a cidade no
tempo presente. Com esses objetivos e delimitando nosso espaço
principalmente no centro urbano da cidade pudemos fazer a nossa
releitura e narrativa sobre as fontes.
Além do acervo do CEDOC/UNESC, outros materiais foram reunidos
durante a pesquisa para a que se concretizasse a ação educativa, sempre
procurando problematizar as fontes e que as mesmas construissem uma
narrativa que fosse de fácil compreensão e que pudessem atingir nossos
objetivos. Ainda no processo de levantamento de material para montagem
da ação educativa, foi selecionado o livro escrito pela Prof. Dra. Rose Maria
Adami, Rio Criciúma: o rio que a cidade escondeu: significados e
representações na paisagem. A propria autora nos cedeu algumas imagens
e entrevistas que estão em seu livro para serem utilizadas no planejamento
e durante a mediação da ação educatica. Um mapa sonoro cedido pela
professora do Curso de Artes Visuais na UNESC Daniele Zacarão, também
serviu de fonte e recurso, esse material foi produziu 2015 para um
interveção no centro da cidade que teve por título Rio Criciúma: instruções
para escuta.
464 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A ação educativa na prática e sua construção para um ensino História.
Os/as alunos/as convidados para virem até o CEDOC para
participarem das atividades da ação educativa foram do Centro de
Educação Profissional “Abílio Paulo” (CEDUP), da cidade de Criciúma/SC.
A escola fica ao lado da Universidade o que facilitou a deslocação dos/as
educandos/as até o setor. Conversamos com o assessor administrativo
(CEDUP), que nos apresentou a professora de História Cristine Santiago
Crispim, e que prontamente aceitaram a proposta e disponibilizou suas
turmas do 2° ano. Durante a ação educativa apresentamos brevemente o
CEDOC/UNESC, os seus laboratórios, o memorial UNESC, e explicamos
nossos objetivos com a ação educativa e que na prática tantos eles/as como
nós estávamos ensinando e aprendendo. Buscamos também incentivar a
presença dos/as educandos/as em outros locais além da instituição de
educação formal e que esses espaços também geram conhecimento. Nesse
primeiro acolhimento possibilitou um vínculo entre nós e eles/as, o
processo de adaptação (mesmo que breve), é essencial para o andamento
da ação educativa.
A atividade foi dividida em dois momentos, para o primeiro,
montamos um slide a partir das fontes pesquisadas e selecionadas com:
imagens e relatos cedidos pela Prof. Dra. Rose Maria Adami que
gentilmente nos enviou imagens visuais do próprio acervo do
CEDOC/UNESC do período colonial de Criciúma, passando pelo período
de intensificação das atividades carboníferas na região (década de 1940 a
1980), imagens de enchentes que foram retratadas nos jornais da cidade
em forma de notícias e charges. Buscamos mostrar a construção do espaço
e das transformações da paisagem em torno do rio e como as atividades
carboníferas e os discursos de progresso vão auxiliando na sua
in(visibilidade), para isso construímos uma linha do tempo do próprio rio.
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 465
O uso das “linhas do tempo” ou “frisas cronológicas” tem sido um meio
eficiente de concretizar e visualizar períodos longos para apreender uma
representação da dimensão temporal da história. O uso das linhas do tempo
merece também cuidados quando se pretende que os alunos dominem
efetivamente a noção de tempo histórico. (BITTENCOUR, 2008. p. 212).
Outro recurso utilizado foi o mapa sonoro da passagem do rio pela
rua Anita Garibaldi, centro da Criciúma, o que possibilitou “ouvir” o rio e
os ruídos que fazem parte do próprio contexto em que este está inserido.
Por meio das imagens e sons foi possível visualizar as transformações na
paisagem da cidade ao longo do tempo e com isso perceber a existência do
rio e à medida que ele vai sendo “apagado” da cidade em meio a prédios e
asfalto.
O rio Criciúma diferentemente de outros rios da região tinha por
característica ser de pequeno porte com vários afluentes ao longo do seu
percurso, não sendo esta uma justificativa para o seu apagamento da
paisagem. Em 1931 o então prefeito municipal Cincinato Naspolini
começou a canalizar as águas das nascentes do rio no morro Cechinel, e
trazendo para Praça Nereu Ramos, centro da cidade e para que os
comerciantes pudessem manter alguns estabelecimentos abertos
(serrarias, tafonas, olarias e outros). (ADAMI, 2015). Pelas imagens foi
possível não só problematizar os usos hídricos das águas, mas a ligação
entre a cidade e o rio. E que o processo de canalização ainda é visível na
paisagem da cidade. Entre os anos de 1960 e 1970 o processo de
canalização adquiriu outros objetivos. Com o rio já tomado pelo lixo e
principalmente por rejeitos do carvão, a canalização teve por objetivo
esconder e/ou “doma-lo” com concreto. Entre as imagens utilizadas estão
a construção em 1979 do canal auxiliar nas Ruas Getúlio Vargas, Marcos
Rovaris (Imagem 1) e Rua Araranguá, em meio a ferro e lajes de concreto,
o rio vai ganhando outros rumos.
466 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Imagem 1 – Construção de canais auxiliares para conter as cheias do rio na rua Marcos Rovaris em 1979.
Fonte: Rose Maria Adami, 2015.
Também apresentamos imagens de algumas enchentes de 1974 e de
2010, ocorridas no centro da cidade, local onde o rio faz o seu trajeto, essas
enchentes representam a falta e a falha de uma atitude inversa sobre rio.
Nos recortes de jornais também de 1974 e 2010 foi visível apresentar aos
educandos/as o discurso negativo sobre o rio, a mídia cobrava dos poderes
públicos uma atitude sobre o rio e que acabasse com as enchentes na
cidade.
Em janeiro de 2010 com os veículos de comunicação mais difusos,
jornais como A Tribuna, Diário de Criciúma, Jornal da Manhã, trouxeram
em suas páginas reportagens sobre a enchente, entre imagens e textos
escritos, as charges também discursavam sobre o rio (Imagem 2). As
narrativas midiáticas são fontes de analises, carregadas de símbolos,
auxiliam na construção da cultura e formar identidade, que são expressões
de um determinado tempo e podem expressar o cotidiano.
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 467
Imagem 2 – Charge retratando a enchente na cidade de Criciúma em 2010.
Fonte: A Tribuna, 2010.
A construção da imagem do rio nas charges pôde ser compreendida
e analisada na representação de uma realidade em um determinado
tempo. As charges criavam a imagem de que o rio era o grande causador
das perdas materiais e a tristeza do povo criciumense acerca da enchente.
A escrita jornalista tenta “prender” quem lê e não foge de uma construção
discursiva.
Os títulos de jornais estão sempre se transformando, tentando adaptar-se aos
critérios de noticiabilidade do momento, às mudanças estéticas de paginação
e aos avanços tecnológicos. Além disso, os títulos também têm que
acompanhar o modo de vida de muitos leitores, que não dispõem de tempo
suficiente para ler um jornal, mas têm interesse em se informar sobre os
principais assuntos e dos argumentos que os envolvem. (FERNANDES, 2007,
p. 1)
No segundo momento os/as alunos/as desempenharam uma
atividade de pesquisa e análise. Anexado aos autos do processo de
mandado de segurança, existem 5 (cinco) mapas que trazem a retificação
468 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
e canalização do rio Criciúma e afluentes, nestes é possível visualizar o
traçado do rio na cidade.
Em meio aos documentos visuais disponíveis, podemos considerar os mapas
como testemunhos concretos de mentalidades, enfeixando elementos
referentes ao imaginário e a cultura de uma época em seu caráter
administrativo, político, estratégico e científico. Enquanto uma construção
social, ou seja, um documento elaborado com determinado objetivo, os mapas
históricos estão permeados por interesses econômicos e políticos. (MOLINA,
2005, p. 2).
Os cinco mapas foram xerocados em tamanho original e com o
recurso do celular os/as alunos/as tinham por objetivos identificar alguns
pontos na cidade. Para isso eles puderam utilizar os celular por meio do
Google Maps e do Google Earth, Neu, destaca que é possível fazer uso
desses recursos, pois, “o uso do Google Maps e do Google Earth, com o
foco de atender as necessidades do aluno em seu cotidiano, afinal, induz o
mesmo, a estudar o ambiente em que vive e a contextualizar o presente
com o passado.” (2014, p. 5). Com isso os/as educandos/as conseguiram
se identificar, reconhecendo locais já visitados e visualizando o rio
Criciúma nesse cenário. Mudanças e permanências nos mapas foram
percebidos. Pelo recurso Google Street View do Google Maps e Google
Earth foi possível visualizar alguns locais onde o rio passa quase
despercebido entre edificações (como exemplo na rua Anita Garibaldi,
centro de Criciúma).
A maioria dos/as educandos/as são da região de Criciúma,
conhecendo o centro da cidade e circulando por espaços onde o rio
percorre. Além de discutir a cartografia na construção do espaço, mas
também de maneira visual acrescentamos questões sociais e políticas, bem
como problematizando esse tipo de fonte como qualquer outro
Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 469
documento. A construção do mapa tinha por finalidade jurídica e podendo
o mapa ser um dos elementos que legitima e/ou silencia e a partir dos
questionamentos e da ação do/a historiador/a sua utilização pode suscitar
o debate e a crítica. No nosso objetivo o rio Criciúma foi visto nos mapas
como elementos central, a as intervenções humanas que ali são
representadas, inferem numa construção social. Os mapas puderam
representar um fragmento no tempo e um momento na História, um olhar
sobre mundo, que passa por filtros de escolhas de quem o produz e a sua
finalidade.
Conclusão
Nessa ação educativa, compartilhamos e produzimos conhecimento
sobre a cidade de Criciúma com destaque para o rio. Nessa via de mão dupla
selecionamos documentos e produzimos uma narrativa histórica que para o
nosso tempo representa o nosso olhar sobre rio e como as dinâmicas da
cidade vão sendo construídas até o presente. Percebendo as transformações
como uma espécie de “janela” na trajetória da pesquisa, por
compreendemos que ao olharmos através desta, passamos por um
enquadramento para visualizar a paisagem (JENKINS, 2007), sendo que por
meio de outras “janelas” outras analises podem ser feitas. Da nossa sala de
aula para sala de aula do CEDUP, procuramos ligar ambos os espaços e
construir uma ligação entre espaços tanto formais quanto não formais.
Horas de planejamentos e de leituras para em uma manhã ser colocada em
prática e a dádiva e aflição de ser responsável pelo processo educativo.
Cada fonte seleciona necessitou de uma abordagem diferente, os
mapas (cartográfico e sonoro), as fotografias, entrevistas orais, jornais,
enfim, todos reunidos em um único processo (a ação educativa). Não
almejamos o todo nem a veracidade dos fatos, mas demonstram que na
História as fontes podem se cruzar em um único objetivo.
470 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Sensibilizar os/as educandos/as quanto a uma mudança de olhar
sobre rio Criciúma é uma ação política que age na esfera social e cultural.
Relacionar as mudanças e permanências na representação e no significado
que as pessoas deram e dão acerca de uma questão e que não são somente
ambientais, e de responsabilidade da prefeitura e demais órgãos públicos,
mas de todos/as os indivíduos. Criciúma não é um caso isolado no mundo,
o forte discurso de progresso provocou consequências visíveis e caras na
contemporaneidade.
Referências
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representações na paisagem. Criciúma: UNESC, 2015.
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Santa Cruz do Sul-RS, n. 6, v.1, ago. / dez. 2014.
História e cinema
Capítulo XXVIII
A memória cultural do cemitério indígena na narrativa
cinematográfica e o trauma da expropriação colonial
Carolina Suriz dos Santos 1
O cinema, além de nos proporcionar o entretenimento, e
eventualmente a reflexão, também estabelece narrativas que acabam
indexando estereótipos e possibilitando visões sobre um determinado
objeto, lugar, cultura ou passado. O cliché do cemitério indígena como um
espaço maldito, que é responsável pelos infortúnios da família branca de
classe média norte-americana, é um dos arquétipos que a narrativa
cinematográfica gentrificou na memória coletiva, utilizando-se do gênero
mais propício a dialogar com o âmago humano, o horror. Considerando o
cinema como um agente criador de memórias, um veículo para a
rememoração e, consequentemente, um meio para elaborar e manifestar
traumas passados – históricos ou não -, o presente capítulo investiga a
formulação de uma narrativa histórica traumática inserida dentro do
gênero cinematográfico mencionado. O objetivo aqui é apresentar como a
constituição do lugar “cemitério indígena” se desenvolveu como modelo e
sinônimo de perigo, vingança e morte para a comunidade branca,
privilegiada e economicamente ascendente nas décadas de 1970-1980 dos
Estados Unidos; e como podemos encarar isso como uma rememoração
traumática do passado colonial em relação aos povos nativos. Para isso, tal
reflexão se dividirá em três momentos: primeiro defendo a ideia do cinema
como um produto da modernidade e um dos responsáveis pelo choque que
1
Mestranda em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; carolinasuriz@gmail.com
476 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
marca a sociedade moderna, principalmente do século XX, pensando no
choque análogo ao trauma, típico do gênero de horror. Após este primeiro
tópico, alio-me ao estudo da memória a partir da análise da obra Espaços
de Recordação: formas e transformações da memória cultural de Aleida
Assmann, a fim de identificar as manifestações de um trauma histórico
utilizando sua metáfora de evocações de espíritos, que dialoga com a
construção de uma recordação que ressurge de um passado impacificado,
neste caso, do cemitério indígena como esta memória fantasmagórica que
surge do trauma colonial . Por fim, apresento então o cerne deste estudo,
a memória cultural de um passado histórico presente no lugar cemitério
indígena inserida na narrativa cinematográfica estadunidense de horror
das décadas de 1970 e 1980. Para isso, além de apresentar vários exemplos
dentro do cinema como transmissores dessa memória, tenho como fonte
principal o filme Horror em Amityville de 1979, dirigido por Stuart
Rosenberg, encarando esta produção como precursora e responsável pela
rememoração do trauma colonial na memória cultural estadunidense.
Da modernidade veio choque, do choque o horror
A Modernidade, essa temporalidade tão polêmica e assombrosa, tem
para além da constituição da disciplina histórica, a mudança de
perspectiva da obra de arte. O grande historiador Walter Benjamin
disserta sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte no século XX
afirmando que, com o advento da sociedade moderna, nossa sensibilidade
e percepção – que são históricas- transformam-se junto com a ruptura de
uma autoridade em relação a imagem. Um tempo acelerado, técnico e
barulhento, produz uma sociedade que paradoxalmente está mais
sensitiva às formas culturais que a cercam e a compõem. É dentro desse
espectro temporal latente que o cinema nasce com um berro estrondoso e
fugaz, jogando-se como uma locomotiva em direção ao maravilhoso olhar
Carolina Suriz dos Santos | 477
de seu espectador em choque. A historiadora Johanna Gondar
Hildenbrand disserta sobre os efeitos de choque que a modernidade trouxe
ao indivíduo e como o cinema se entrelaça nessa relação. Refletindo a
partir de Benjamin, afirma que “tanto as obras literárias quanto as obras
em telas tinham uma recepção semelhante “[ao] choque físico embalado
no choque moral’ assegurando assim uma ‘distração intensa,
transformando a obra de arte no centro de um escândalo”
(HILDENBRAND, 2015, p. 25). Enquanto as obras cinematográficas
traziam consigo uma recepção cada vez mais instantânea, causando um
baque, ou melhor, um choque pela sequência de imagens que
proporcionavam, sendo assim, “é um dos mais nítidos exemplos de um
objeto visível que se torna sentido por todo o corpo” (HILDENBRAND,
2015, p. 26-27), tornando a arte cinematográfica mais corpórea em relação
às demais.
Sendo a forma artística que mais tem potencial de causar uma colisão
e reação imediata em seu espectador, o cinema acaba então por se fundir
como um dos principais meios culturais da sociedade moderna, não sendo
apenas fruto dela, mas também uma peça chave para o seu
funcionamento. Robert Rosenstone, sem meias palavras, define o cinema
não como uma alegoria para se estudar ou representar o passado, mas sim
como um discurso histórico próprio:
[...] o mundo familiar e sólido da história nas páginas impressas e a
igualmente familiar, porém mais efêmera, história mundial na tela são
semelhantes em pelo menos dois aspectos: referem-se a acontecimentos,
momentos e movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham
do irreal e do ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de
convenções que desenvolvemos para falar de onde nós, seres humanos,
viemos ( e também de onde estamos e para onde achamos que estamos indo,
embora a maioria das pessoas preocupadas com o passado nem sempre
admitem isso) (ROSENSTONE, 2010, p. 14).
478 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Encarando o cinema através dos estudos de Rosenstone, é possível
afirmar que toda e qualquer película, seja ela uma representação do
passado, uma narração fantástica ou de horror, tem em sua produção algo
que sempre corresponderá e dialogará com o grupo social que a absorve,
realizando de alguma forma uma narrativa histórica.
Apoiada então nas reflexões desenvolvidas acima, é possível encarar
a sociedade contemporânea como produto desse choque da modernidade,
que permeia a cultura e acaba levando ao nascimento da sétima arte. De
acordo com Hildebrand, “o efeito de choque é próprio da arte
cinematográfica, dentre todas as formas de representação, em nenhum
outro gênero isso fica tão claro como no gênero de horror”
(HILDENBRAND, 2015, p. 27). De todos os gêneros cinematográficos, o
horror - além de compor o panteão dos primeiros gêneros desenvolvidos
para a tela prateada - é aquele que propõe expor de forma mais profunda
as significações sociais e culturais de suas películas. Stephen Prince,
historiador estadunidense, argumenta que o gênero de horror é o único
capaz de atingir o âmago mais profundo da existência humana, e porque
o faz, acaba correspondendo mais profundamente com a nossa noção de
mundo do que qualquer outro gênero. No cinema, desde seus primórdios,
o horror foi o responsável por desenvolver narrativas temáticas que se
encontravam com tópicos vigentes de seu público: do impecável e
revolucionário Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene -onde a
psiquê
se
encontra
pela
primeira
vez
como
metanarrativa
cinematográfica- ao monstro da Universal A Múmia (1932) de Karl Freund
– que é um dos grandes representantes do cinema clássico para se debater
alteridade entre oriente e ocidente. O gênero sempre se reinventou e se
manteve como um dos carros-chefes da indústria cinematográfica. O
filósofo Noel Carrol, dentro de seu fascínio pelo tópico, argumenta que o
Carolina Suriz dos Santos | 479
o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas
contemporâneas, populares ou não, gerando em quantidades vampiros,
duendes, diabretes, zumbis, lobisomens, crianças possuídas pelo demônio,
monstros espaciais de todos os tamanhos, fantasmas e outros preparados,
num ritmo que fez os últimos dez anos[ da década de 1980], mais ou menos
parecem uma longa noite de dia das bruxas (CARROL, 1999, p. 08-09).
Portanto, encontrando o horror como este propagador de sensações,
percepções, memórias e passados, é possível afirmar o gênero como um
veículo que revela traumas históricos dentro de sua narrativa fantástica e
sobrenatural. Adam Lowenstein, em sua obra Shocking Representation:
historical trauma, national cinema, and the modern horror film desenvolve
sua análise a partir daquilo que chama de "allegorical moment”,
argumentando que “o momento alegórico é como uma colisão chocante
entre o filme, o espectador e a história, onde os registros do espaço
corporal e do tempo histórico são interrompidos, confrontados e
entrelaçados” (CARROL, 1999, p. 3-4). O autor trabalha então com o
conceito de trauma formulado por Sigmund Freud, onde o criador da
psicanálise define trauma como “uma experiência que traz à mente, num
período curto de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser
absorvido” (FREUD apud HILDENBRAND, 2015, p. 12-13) logo, o choque
da modernidade também se reflete como um trauma histórico para a
existência humana, que em si, é responsável e perpetuado pelo gênero de
horror cinematográfico. Este, sendo um dos gêneros de maior apelo da
indústria fílmica, é também um aglutinador e recriador de memórias
traumáticas, que vêem na ficção sobrenatural o seu condutor.
480 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A memória cultural de um esquecer não pacificado
A memória vai para além de uma categoria de análise histórica, pois
não pode ser monopolizada por nenhum discurso ou conhecimento; os
estudos sobre as diversas faces da memória “transcende as costumeiras
fases de ‘temas da moda’ na ciência” pois permite que diversas questões e
interesses se cruzem(ASSMANN, 2016, p. 19). Quando Pierre Nora afirma
que “fala-se tanto de memória porque ela já não existe mais”(NORA, 1993,
p. 07) ao apresentar sua tese sobre o lieu de mémoire, o autor entende por
memória algo muito mais atrelado a uma tradição cultural, de um laço
criado entre um indivíduo e uma nação ou comunidade específica, ou seja,
uma memória formativa. Ele aponta que aquilo que chama de crise de
memória é um desacoplamento entre passado e presente. A historiadora
alemã Aleida Assmann argumenta a partir dos apontamentos de Nora que
“essa lógica condiz com o caráter retrospectivo da lembrança, acionado
somente quando a experiência na qual a lembrança se baseia já estiver
consolidada no passado” (ASSMANN, 2016, p. 15) e hoje em dia, afirma
que não precisamos mais lidar com uma interrupção do recordar a partir
de uma memória experiencial de testemunhos, para então trazermos à
superfície o lembrar. A autora defende que esta memória é uma memória
viva que se traduz em uma memória cultural da posterioridade, e que
“enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no
indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível
coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política de
recordação e esquecimento.”(ASSMANN, 2016, p. 19)
Em sua fantástica obra Espaços da recordação: formas e
transformações da memória cultural, a historiadora tem como proposta
refletir sobre diversos pontos de vista a respeito daquilo que chama de
“complexo fenômeno da memória”, dividindo sua análise em tradições mnemotécnica e discurso de identidade-, perspectivas – memória cultural,
Carolina Suriz dos Santos | 481
coletiva e individual-, e mídias – textos, imagens, lugares, bem como
discursos (literatura, história, arte, psicologia, etc.). Para este presente
ensaio, procurei focar naquilo que a autora identifica como Meios de
Memória, desenvolvendo a metáfora que chama de evocação de espíritos.
Encarando a metáfora como um meio para recordar, Assmann a
define “não como uma linguagem que se parafraseia, mas uma linguagem
que primeiro desvela o objeto e o constrói”(ASSMANN, 2016, p. 162);
mostrando ao leitor que quando fala em metáfora, está a encarando como
o único meio para falar em recordação. A metáfora se entrelaça com as
imagens e modelos de memória, se dividindo entre aquelas que são
espaciais e temporais. Enquanto a metáfora espacial desenvolve os códigos
de conteúdos da memória em “fórmulas imagéticas impactantes” que por
si são destinadas a locais específicos, se tornando então espaços
mnemônicos, a metáfora temporal trabalha com a ideia de um despertar
memorativo, de uma revivificação, de um combate ao esquecimento.
Ambas se complementam. Para falar em evocação de espíritos é preciso
inicialmente compreender onde essa metáfora se encaixa dentro das
qualidades temporais que a constitui. Para isso, Assmann introduz a ideia
de uma forma memorial regenerativa que nasce a partir de uma concepção
antiga sobre o fogo. O fogo é um símbolo da recordação, pois ele tanto
evidencia aquilo que estava nas sombras e devastado pelo tempo como
também renova uma memória perdida. “A faísca, que faz clarear a
memória esquecida, significa aqui uma energia que é tão subjetiva quanto
repentina, tão pontual quanto precária” (ASSMANN, 2016, p.186). Esta
magia da recordação ocorre enquanto este passado continua de alguma
forma “soltando faíscas”, fixando uma fascinação em torno dele, que é
renovada a partir de novos conjuntos de metáforas, que se desenvolvem
com novas consciências históricas. Aby Warburg, importante historiador
da arte e um dos pensadores que influenciaram a construção da teoria da
482 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
memória cultural, declara em sua noção de magia anteica que, a memória
sofre descargas latentes quando se encontra pressionada pelo o que chama
de tangenciamentos diretos, ou seja, esse fascínio, que permite uma
regeneração de uma memória cultural, é causado por uma demanda que
tanto pode ser institucional quanto sociocultural.
[…] quanto mais longo o caminho através do tempo histórico, mais intenso o
interesse imaginativo pela abreviação, por tangenciamentos imediatos e
contatos diretos. O simbolismo do fogo para significar a recordação ganha
nova virulência no horizonte do historicismo (ASSMANN, 2016, p. 187).
Então esta memória que está momentaneamente inativa até ser
resgatada do limbo do esquecimento, contém um potencial de afeto que
a desperta de sua inércia; porém quando este afeto é substituído pelo
recalcamento, a potencialidade dessa memória se transforma em um
acontecimento demoníaco.
Nesse caso suspende-se o controle voluntário da consciência, e o processo da
recordação passa a seguir os ritmos de uma energia imanente. A imagem dos
fantasmas
presta-se
a
significar
essa
estrutura
procedimental
involuntariamente coerciva das recordações (ASSMANN, 2016, p. 187).
Pode-se entender por recalcamento a metáfora da memória que
pulsa à procura da tocha que a revelará da escuridão, e que quando não
ressurge por meio do afeto, ou seja, quando é silenciada, e não promovida
à recordação, vê como caminho para a luz a evocação mágica e
demoníaca. É a memória que assombra e que intimida, é o passado
sangrento e impacificado que resiste ao tempo e se vê preso cada vez
mais ao presente. Este esquecer não pacificado são seus mortos
que não descansam por terem sidos assassinados ou ficarem insepultos
[corretamente], eles retornam como aparições, como fantasmas. (...) Um
Carolina Suriz dos Santos | 483
passado impacificado ressurge de forma inesperada e assombra o presente
como um vampiro (ASSMANN, 2016, p. 188-189).
O uso do cemitério indígena como um espaço maldito que causa o
sofrimento à família branca de classe média norte americana, é um dos
exemplos mais notórios que o cinema nos traz para falar sobre um passado
“irresolvido e inconcluso que sobrevive tácito e interdito de geração a
geração”. Esta memória que é evocada, a partir da metáfora de Assmann,
é fruto de um passado traumático, que vive preso em um pesadelo, é um
“trauma coletivo, a culpa recalcada pela sociedade, que, em suas peças,
reconduz violentamente à consciência a partir de um presente que
negligencia a memória do passado e dos antepassados”(ASSMANN, 2016,
p. 189). Este trauma que é ignorado conscientemente e que regressa
violentamente é o resultado de uma memória que anseia pelo reparo, mas
que pela falta do afeto pela sociedade que a desperta, é vista como uma
tentativa de vendeta aos colonizadores. A imagem que se constrói na tela
do cinema, a ideia que ela vende e manipula para o público é a forma de
recordação de um trauma coletivo colonial que não conseguiu o
esquecimento, mas que apenas chegou à luz por meio da assombração.
Pais brancos, filhos vermelhos
Na madrugada de 13 de novembro de 1974, na casa de número 112
situada na Ocean Avenue, subúrbio de Amityville, Ronald DeFeo Jr.
assassinou a tiros seis membros de sua família, cometendo um dos crimes
mais hediondos da história da ilha de Long Island em Nova York. Em
dezembro de 1975, George e Kathy Lutz compram a residência a baixo
custo e mudam-se com seus três filhos: Daniel, Christopher e Melissa.
Vinte e oito dias depois, os Lutz fogem no meio da noite, alegando que
fenômenos estranhos e violentos vindos da casa estavam colocando em
perigo o bem- estar mental e físico da família. Em paralelo a esses eventos,
484 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Ronnie DeFeo Jr alega no tribunal que vozes demoníacas o fizeram
cometer o ato brutal contra seus entes familiares. Assim, se estabelece uma
das histórias urbanas sobrenaturais mais famosas da cultura norteamericana. Atraindo jornalistas em busca de um sensacionalismo ligado
aos assassinatos DeFeo, os Lutz concedem o direito a especialistas em
paranormalidade para examinar a casa, afirmando que durante sua
permanência foram até a Amityville Historical Society que os informou da
hipótese da existência de uma espécie de sanatório da tribo Shinnecock no
mesmo terreno onde a casa agora se situava, onde os doentes, loucos e
moribundos eram abandonados. Ethel Johnson-Meyers, uma das médiuns
que visitou a casa, afirmou na época ter invocado o espírito de um chefe
Shinnecock que disse a ela que o local fora construído em cima de um
cemitério indígena. O romancista Jay Anson munido então deste material
que variava entre artigos de jornais, depoimentos de médiuns,
reportagens sobre os assassinatos de 74 e uma fita de cerca de 45 horas de
testemunho gravada pelos Lutz, desenvolve o quadro para criar seu mais
famoso romance, intitulado “Horror em Amityville”, lançado em 1977.
Anson constrói uma narrativa que define o cemitério indígena como este
grande antagonista e responsável pelo terror e trauma de duas inocentes
famílias brancas e ordinárias do subúrbio nova-iorquino, os DeFeo e os
Lutz. Em 1978 os direitos do best-seller são garantidos pela American
Internacional Pictures (AIP), que lança sua adaptação em 1979. Dirigido
por Stuart Rosenberg e estrelado por James Brolin e Margot Kidder como
o casal George e Kathy Lutz, o filme foca de forma mais incisiva numa
possível ligação entre os assassinatos de 1974 e os eventos sobrenaturais
de 1975/76 como consequência dessa assombração Shinnecock que
permeia o local da casa, reconstituindo os vinte e oito dias da família como
um longo e violento pesadelo. A película fez um imenso sucesso nas
bilheterias estadunidenses, alcançando sucesso também nas salas de
Carolina Suriz dos Santos | 485
cinema ao redor do globo. Essa é a premissa que inaugura uma onda
avassaladora de produções cinematográficas de pequeno à grande alcance
inseridas dentro do gênero de horror. Do final dos anos 1970 à toda década
de 1980, o cliché do cemitério indígena como um lugar amaldiçoado,
vingativo e desumano se constitui como uma memória cultural
estadunidense de forma tão intensa e veloz, que acaba se transformando
em sátira nos anos 1990 e problematizada no início do século XXI.
Após o lançamento e sucesso comercial concretizado, “Horror em
Amityville” foi o responsável pelo renascimento de um subgênero dentro
do horror cinematográfico, a casa mal-assombrada. Introduzido ao grande
público a partir dos anos 1960 com os filmes “The Innocents” (1961) de
Jack Clayton e “The Haunting” (1963) de Robert Wise, adaptações dos
romances Turn of the the screw de Henry James e The haunting of Hill
house de Shirley Jackson, respectivamente, o subgênero da casa malassombrada flertava com aspectos da psiquê de seus personagens
principais, sendo uma alegoria para um trauma passado. Com
“Amityville”, este trauma, que anteriormente estava relacionado com
aspectos de um individualismo e uma neurose freudiana, agora encontrase como um trauma histórico, algo que perturba diretamente o american
way of life dos protagonistas ali postos. Em 1980 chega a tela prateada “O
Iluminado” de Stanley Kubrick, uma das grandes obras primas do gênero
na história do cinema, adaptado do livro homônimo de Stephen King. O
longa-metragem envolve mais uma vez a ideia do despertar de uma
violência patriarcal como uma “memória do conflito subjacente da
expropriação colonial e a profanação de túmulos nativos que não podem
ser narrados nem esquecidos” (MACKENTHUN, 1998, p. 93). Dois anos
depois, “Poltergeist”, de Tobe Hooper, é lançado; produzido por Steven
Spielberg, o filme torna-se um dos blockbusters do ano de 1982,
confirmando esta memória do cemitério indígena como lugar maldito, e
486 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
aparentemente lucrativo. O curioso sobre este longa em particular, é que
o cemitério que aparece na narrativa é especificamente indicado como um
território que não é nem antigo nem tribal, porém a memória que estava
em construção sobre o famoso indian burial ground2era tão forte que é um
erro comum, até os dias atuais, confundir a entidade maligna deste filme
como uma entidade nativo-americana. Em 1983, com a demanda
comercial para histórias que “antagonizassem” a figura do índio norte
americano, Stephen King lança sua obra literária Pet Sematary, que chega
às telas em 1989. A narrativa nos conta sobre uma família que ao se mudar
para uma zona afastada da cidade, acaba descobrindo um antigo cemitério
indígena da tribo Micmacs, vinculada a lenda Wendigo3, que é capaz de
ressuscitar os mortos ali enterrados. A história de King ocorre
simultaneamente ao processo legal do estado do Maine contra as tribos
Maliseet, Penobscot e Passamaqueoddy, membros da Confederação
Wabanaki4 , que iniciou em 1972. Essas tribos processaram o estado do
Maine pelas terras das quais eram suas por direito de acordo com a lei
federal; terras essas que somavam 60% da área do estado. Há muito
tempo habitada por americanos não-nativos, a terra em disputa era o lar
de mais de 350.000 pessoas que teriam precisado de reassentamento se as
tribos tivessem tido sucesso (DICKEY, 2016). Toda essa história serve
como background para o romance de King. Os filmes mencionados acima
são alguns exemplos mainstream de produções que a partir de
2 Forma como os estadunidenses se referem ao que aqui chamamos de cemitério indígena.
3 Figura mitológica nativo-americana. O Wendigo seria uma espécie de espirito canibal que traz a neve e a fome. A
memória estabelecida sobre o Wendigo e todos seus representantes assombra o inconsciente coletivo da América,
uma lembrança voraz da expropriação colonial. (EFLIN, Jackson. Incursion Into Wendigo Territory. In: Digital
Literature Review- Historical Haounting and Modern-Day Manifestations, Vol. 01, p.09, 2014, Ball State
University.)
4 A Confederação Wabanaki representa a união das primeiras nações nativo-americanas, sendo composta pelas cinco
principais nações-tribos.
Carolina Suriz dos Santos | 487
“Amityville” ganharam espaço e promoveram o apelo público sobre o
tema.
A pesquisadora Gesa Mackenthun, em seu ensaio Haunted Real
Estate: the occlucion of colonial dispossession and Signatures of cultural
survival in U.S. Horror Fiction argumenta que a prática política colonial
de expropriação foi traçada historicamente como uma profanação
inevitável de túmulos nativos. A imagem sentimental da civilização
americana sendo erguida sobre os túmulos dos desaparecidos e
exterminados nativos-americanos, prosperou na era de expansão
imperial- em particular na retórica de Andrew Jackson, cuja presidência
foi responsável pela remoção de todas tribos do leste para o território
indígena a oeste do Mississippi-, milhares de pessoas morreram durante
este êxodo (MACKENTHUN, 1998, p. 96). Jackson foi o responsável
também por tentar criar um diálogo com os nativos durante a expansão
do oeste, porém quando a Suprema Corte dos Estados Unidos legou o
status de nações domésticas dependentes aos Cherokees e outras tribos,
tornando-as independentes do estado da Georgia, o governo federal se viu
em um conflito com o governo local, que acaba sendo privilegiado pelo
governo de Jackson, contrariando a Suprema Corte. A atitude
da
presidência parte de um diálogo político e, teoricamente, pacífico para a
conclusão de que os nativos americanos só poderiam ser removidos pelo
uso da força; Jackson acaba colocando a si mesmo como o ‘pai branco’ com
seus “filhos vermelhos” que seriam transferidos e retirados de sua terra.
O exemplo mais amplo da linguagem do ‘pai branco’ e dos ‘filhos
vermelhos’ veio com a batalha legal entre a nação Cherokee e o estado da
Georgia mencionados acima, sustentando a ideia de uma dependência da
tribo ao Estado. A preocupação simbólica e científica com os túmulos e
restos mortais dos nativos “sugere que o êxodo indígena produziu uma
maior instabilidade psicológica dentro da sociedade americana do que se
488 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
supõe geralmente.”(MACKENTHUN, 1998, p.97). A política jacksoniana
indígena representou um escândalo e peso moral até mesmo para seus
contemporâneos, que não conseguiram evitar o evidente genocídio
cultural do período. Com isso, o tópico “expropriação indígena” torna-se
uma presença constante na literatura e posteriormente, no cinema norteamericanos, especialmente na ficção de horror do fim dos anos 1970 e
durante os 1980. O mistério da emancipação da memória colonial é, que
ele se desenvolve no lar da família tradicional colonizadora, onde liberta
uma memória cultural e coletiva conflitantes sobre a propriedade privada,
que ao mesmo tempo é presa novamente ao ser traduzida como um drama
familiar evocado pelo sobrenatural maléfico do lugar.
Essa memória cultural que é estabelecida sobre o cemitério indígena
se desenvolve em uma memória traumática do processo de expropriação
nativa-americana a partir do uso da metáfora de evocação de espíritos de
Aleida Assmann. Porém o trauma que vínculo aqui às produções
cinematográficas é um evento traumático para a cultura anglo-americana,
pois como Mackenthun discorre, o evento daquilo que a autora chama de
“colonial dispossession” é moralmente indigesto, e não pode ser
expressado em nenhuma narrativa nacional. O filme “Horror em
Amityville”, portanto, pode ser considerado esta válvula de escape que
tensionou uma questão histórica que lutava contra o esquecimento. Como
Assmann afirma, este passado impacificado e violento que não é
investigado pelo afeto e sim negado à luz da rememoração, surge como
um fantasma, uma entidade maligna vingativa, que irrompe o angloamericano e contesta seu direito a terra, a posse, a propriedade; que o
expulsa.
Carolina Suriz dos Santos | 489
Considerações finais
Em 2005 a produtora Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) adquire os
direitos de uma refilmagem, do já considerado clássico, “Horror em
Amityville” de 1979. Ainda se sustentando sobre uma narrativa sangrenta
e sobrenatural que possibilitou o primeiro longa, e provando que a história
da casa mal-assombrada mais famosa dos EUA ainda não tinha cansado
os espectadores, o filme surpreende pelo giro narrativo que desenvolve
sobre seu antagonista. Enquanto no original de 1979 – que provocou uma
série de filmes posteriores, contando 21 películas até o momentoapresentava uma memória cultural do cemitério indígena como fonte do
mal que aterrava o local da casa; na sua revisitação de 2005 essa memória
é subvertida e coloca os nativos-americanos como vítimas de um sádico
padre que utilizava do subterrâneo da casa para exercer seus crimes.
Produção com nível de gore muito mais explícita em sua narrativacaracterística do gênero de horror do início do século XXI-, “Horror em
Amityville” de 2005 procura então exercer esta mea culpa branca em
relação ao seu predecessor, alertando aos mais atentos a uma mudança
dessa memória cultural constituída na narrativa cinematográfica no final
dos anos de 1970.
O que este capítulo buscou investigar foi a construção de uma
memória cultural relativa a concepção do lugar cemitério indígena
inserida na narrativa cinematográfica de horror estadunidense dos anos
1970 e 1980. Levantando primeiro o gênero como um condutor de traumas
passados ou históricos -que foram possibilitados através da Modernidade
– além de, é claro, ser um veículo de rememoração único. Baseando-me
nessa premissa, pude perceber a viabilidade de uma memória cultural,
instrumentalizada através da metáfora de evocação de espíritos de Aleida
Assmann, somada então a uma demanda sociocultural pelo tema, que é
490 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
produto daquilo que aqui chamo de trauma colonial da expropriação
nativo-americana.
Referências
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In: Espaços de Recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad.
Paulo Soethe (org.). Campinas: Ed. Unicamp, 2016, p. 15-30/161-184.
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de: Francisco de Ambrois Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012.
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Review - Historical Hauntings and Modern-Day Manifestations. Ball State
University, Vol.01, 2014.
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horror do século XXI. Novas Edições Academicas, 2015.
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Trad. Yara Aun Khoury. São Paulo, vol. 10, dez, 1993.
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University, 2004.
ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na História. Tradução de Marcello
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Carolina Suriz dos Santos | 491
Sites consultados
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Filmes
Cemitério Maldito (1989) – de Mary Lambert. Produtora: Paramount Pictures. Estados
Unidos. Ficção.
Horror em Amityville (1979) – de Stuart Rosemberg. Produtora: American International
Pictures (AIP). Estados Unidos. Ficção.
Horror em Amityville (2005) - de Andrew Douglas. Produtora: Metro Goldwyn Meyer
(MGM). Estados Unidos. Ficção.
O Iluminado (1980) – de Stanley Kubrick. Produtora: Warner Bros. Estados Unidos e
Reino Unido. Ficção.
Poltergeist (1982) – de Tobe Hooper. Produtora: Metro Goldwyn Meyer (MGM). Estados
Unidos. Ficção.
The Real Amityville Horror (2005) – de Craig Collinson e Nick Freand Jones. Produtora:
Nobles Gate Scotland. Estados Unidos. Documentário.
Capítulo XXIX
A segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim
dos cinemas da Praça Saens pena entre 1970 e 1999
e seu impacto para a vida social dos tijucanos
Danielle Lima Rodrigues 1
Hoje, quem anda na rua Conde de Bonfim e no entorno da Praça
Saens Pena, não imagina que a maioria dos estabelecimentos que estão lá,
como as farmácias e lojas de departamento, foram salas de exibição que
atraiam muitas pessoas todos os dias. Um olhar mais atento poderá notar
que alguns lugares guardam ‘’resquícios’’ dessas salas, como a própria
estrutura física, fotos ou cartazes de filmes antigos.
Em linhas gerais, analisaremos como o fim dos cinemas de rua
impactaram na vida social dos moradores, pois a Praça Saens Pena não
concentrava apenas várias salas, mas também era um espaço de encontro
e sociabilidade. Considerando que o processo de fechamento das salas
começou a acontecer em 1970 e tendo a última fechada em 1999, isso
aconteceu de forma gradual, entretanto, os cinemas foram dando espaço
para outros estabelecimentos. Dessa forma, busca-se identificar como foi
a transição dos cinemas de rua para o Shopping Tijuca, que hoje abriga o
único complexo de salas do bairro. A partir dos relatos dos antigos
frequentadores das salas de cinema e a minha observação como
entrevistadora e moradora do bairro, que tenta descrever um pouco das
memórias dessas pessoas e deixar transparecer os sentimentos que são
evocados a pesquisa tem como hipótese central que o público de cinema
1
Graduanda – UFRJ; daniellelimaro@hotmail.com
Danielle Lima Rodrigues | 493
local não se adaptou ao fenômeno da nova “Era dos cinemas de shopping
centers” devido, entre as principais razões, a falta de variedade dos filmes
em exibição, que atualmente reduziram-se aos filmes blockbusters
hollywoodianos, a perda da identidade do espaço de socialidade no
convívio da experiência cinematográfica, já que o público frequentador dos
cinemas de shopping é bastante heterogêneo e principalmente a
especulação imobiliária, que foi atendendo a um novo momento.
A História Cultural é de fundamental importância para a pesquisa,
visto que trata-se de uma investigação sobre a cultura de um bairro do Rio
de Janeiro onde seus moradores carregam um grande sentimento de
pertencimento ao lugar que moram. Assim, deve-se elencar alguns
conceitos como hábito, costumes, cultura e identidade. Desse modo, uso
principalmente Michel de Certeau e Stuart Hall, que ajudam a elucidar
esses conceitos que se cruzam durante todo o processo. Segundo Certeau:
“O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior”
(CERTEAU, 1996, p. 31). Essa rápida explicação já nos adianta que o antigo
costume de ir ao cinema de rua da Praça Saens Pena é algo que significa
muito para seus antigos frequentadores. Além disso, Stuart Hall aponta:
A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e
“culturas populares’’ das sociedades, como ela tende a se tornar em certos
tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui
a soma do inter-relacionamento das mesmas (HALL, 2003, p. 136)
Assim, dentro da História Cultural, o presente trabalho se agrupa na
memória e historiografia por concentrar-se em evocar memórias que
pertencem a um local hoje quase irreconhecível. Da mesma forma, a
História Oral também tem grande valor para essa pesquisa. Assim, a
metodologia fica por conta de alguns autores como Leandro Alonso e
Marieta Ferreira que enfatizam como a História Oral é indispensável para
494 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
a historiografia e ensinam como utilizar essa prática nos estudos. De
acordo com Leandro Alonso:
O que torna a história oral possível é a intrincada experiência de campo. Um
trabalho de história oral, portanto, justifica-se por meio da armação de um
projeto característico – o que nos faz conceber que a história oral não é
sinônima da prática essencial e impreterível da realização de entrevistas, mas
que as entrevistas fazem parte da história oral – são “colunas cervicais.”
(ALONSO, 2017, p. 214)
Certamente, a realização de entrevistas foram peças chaves para
discutir a problemática, porém como Leandro afirma, a pesquisa de
campo, o “circular’’ pelo local garantiram que fosse ouvido o que muitas
vezes não foi falado, apenas percebido. Entretanto, como é afirmado na
obra Usos e abusos da história oral (1998, p. 16): “a história oral, como
todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de
trabalho [...] e é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar, questões;
formula as perguntas, porém não pode oferecer as respostas”. Dito isso,
ao longo do trabalho pretendo cruzar a história oral com a teoria da
história e discutir os conceitos, perpassando pelos relatos que expressam
a subjetividade que eu pretendo trazer com o tema. Ao olhar para trás,
verifica-se que a história do cinema já vem sendo estudada no Brasil de
forma muito eficiente, entretanto, com o advento da História Oral e sua
recente renovação, percebo que os autores que se ocuparam dos cinemas
deixaram escapar a importância da mesma para a história do cinema. Há
poucos trabalhos que abordam sob a perspectiva da História Oral no
período por mim recortado. Grande parte desses trabalhos, desenvolvem
a questão da era dos cinemas de rua recorrendo a outros estudiosos da
historiografia cinematográfica, jornais e arquivos públicos. Desse modo,
destacarei dois importantes trabalhos sobre os cinemas de rua.
Danielle Lima Rodrigues | 495
Sheila Schvarzman é historiadora e em seu artigo: “Ir ao cinema em
São Paulo nos anos 20’’ (2005) disserta um pouco sobre o papel das salas
de cinema para a sociedade paulista, abarcando desde as classes mais
baixas até a elite. Para isso, a autora recorre às críticas feitas por Octávio
Gabus Mendes e publicadas na década de 1920 em Cinearte, revista carioca
dedicada ao cinema. O artigo aponta que ir ao cinema era além de assistir
a produção cinematográfica, por isso se investiu tanto em estrutura,
sinalizada no luxo dos cinemas do centro de São Paulo:
Nos anos 20 se consolida a ideia do cinema como o espetáculo da evasão
popular. Grandes salas — a média é de quinhentos lugares ou mais — são
construídas ou reconstruídas para criar ‘atmosferas’ de surpresa e emoção. Da
fachada ao lobby a arquitetura da “evasão e desmesura” — nunca identificada
com um desenho contemporâneo — se encarrega de lançar o espectador para
fora de seu cotidiano: o exotismo é certamente a característica marcante.
(SCHVARZMAN, 2005, p. 161-162)
Desse modo, mesmo falando de um lugar e tempos diferentes, o
trabalho de Sheila é um bom representativo de como estudar o cinema de
uma determinada localidade, envolvendo também o seu público, a
localidade das salas, seus usos e não apenas a exibição dos filmes.
Por outro lado, temos Talitha Ferraz, formada em jornalismo e
atuante em estudos sobre as salas de cinemas, exibição cinematográfica,
memória e nostalgia. A jornalista trouxe importantes contribuições com a
sua obra ‘’A Segunda Cinelândia Carioca’’ (2012), na qual investiga sobre
toda a época áurea dos cinemas na Praça Saens Pena, desde o inicio do
século XX até o fechamento da última sala. Diferentemente de Sheila, que
aborda as salas de cinemas paulistanas, Talitha escreve justamente sobre
o local que busco estudar, porém, dando um recorte temporal maior
abarcando desde a inauguração das primeiras salas, ápice e declínio. De
496 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
qualquer forma, a jornalista foi o pontapé para que meu trabalho pudesse
ser realizado, estando seu conceito presente no título.
Um breve histórico dos cinemas
O auge dos cinemas na Praça Saens Pena foi entre as décadas de 1940
e 1960, sendo considerada por muitos como a “Segunda Cinelândia
Carioca’’ (FERRAZ, 2012). A “primeira’’ se localiza no centro do Rio de
Janeiro, a Praça Marechal Floriano Peixoto, que ficou conhecida nos anos
30 como Cinelândia por concentrar em um mesmo espaço várias salas de
cinemas. É interessante perceber as semelhanças e diferenças entre os dois
locais. Em comum, podemos apontar que os dois serviram como grandes
polos de exibição cinematográfica no Rio de Janeiro e ambos são praças.
Assim, diante desse espaço ‘’plano e retangular, com extremidades bem
próximas, a praça permitiu o estabelecimento de uma gama de
equipamentos ao seu redor, os quais poderiam ser facilmente acessados’’
(FERRAZ, 2012, p. 51). Entretanto, a Cinelândia e a Praça Saens Pena se
diferenciam, pois indubitavelmente na Cinelândia existiram mais cinemas
e além disso, a Cinelândia foi construída com a intenção de ser um
complexo destinado ao entretenimento e a Saens Pena não.
Desde o início do século XX, em 1907, a Tijuca já abrigava salas de
exibição. O primeiro cinema na grande Tijuca se chamava Pathé
Cinematográfico na Rua Hadocck Lobo. Já na Praça Saens pena, construída
em 1910, o primeiro cinema a ser inaugurado foi o Cinema Olinda, onde
hoje funciona o Shopping 45. Após este, muitos outros surgiram, como o
Cine América, onde hoje é uma farmácia e o Cine Metro, que hoje é uma
loja de departamento. Esse cinema localizado bem no centro da praça, era
a principal referência em filmes americanos, foi considerado o mais
luxuoso, tinha enormes tapetes vermelhos, poltronas muito confortáveis e
era administrado pela Metro-Goldwyn-Mayer. Além disso, existiam os
Danielle Lima Rodrigues | 497
cinemas conhecidos como “poeirinhas’’, que eram menos confortáveis,
sem ar condicionado e acústica não muito boa. As salas exibiam filmes já
não eram lançamentos ou produções menores, no entanto, atraiam muitas
pessoas. Ao longo do século XX a praça Saens Pena, incluindo ruas ao
redor, como Desembargador Isidro, Haddock Lobo e Mariz e Barros,
abrigaram mais de 40 salas de cinema, que fizeram o local ficar conhecido
e frequentado pelos amantes do cinema. O processo de decadência
começou em 1970 e foi gradual, sendo o último cinema fechado em 1999 –
o Cine Art-Palácio – para dar lugar a uma loja de departamento. As razões
para esse processo são muitas e atravessam vários campos, nos quais
tentaremos tratar neste trabalho. Assim começa a ascensão das salas do
tipo multiplex, como o Shopping Tijuca, que passou a concentrar as únicas
salas de cinema da Tijuca.
O cotidiano: as maneiras de fazer
Mesmo depois de alguns anos, foi incrível perceber como os antigos
frequentadores dos cinemas lembram com detalhes do que faziam, as
roupas que usavam, os dias que frequentaram, entre outras coisas. A praça
era uma grande referência para o cinema carioca, mas além disso, o lugar
permitia o convívio, a troca de experiências, o afeto e o sentimento de
pertencimento àquele local.
A praça era o point do final de semana. A gente ia no cinema, depois ia para o
Bob’s da Rua General Roca ficar conversando e paquerando. Era muito
frequentado pelas moças e pelos tremendões tipo o Erasmo Carlos, que iam
para paquerar (...) Os cinemas menores chamados poeirinhas, eram mais
baratos porém tinham um cheiro estranho, as poltronas eram duras, telas
ruins sem qualidade e os filmes também não eram muito legais (Dona Angela).
“Para que haja cultura, não basta ser ator das práticas sociais; é
preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as
498 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
realiza’’ (CERTEAU, 1996, p.142). Assim, a ida ao cinema significava muito
mais do que assistir o filme do momento. As pessoas iam para lanchar nas
bombonieres, algumas inclusive se localizavam até dentro dos cinemas e
ao redor como por exemplo o tradicional Café Palheta. Além disso,
também havia movimentação de pessoas conversando na porta das salas
antes e após os filmes e no centro da praça, o tradicional footing que vem
do inglês “ir a pé’’. Essa caminhada no centro da praça funcionava como
uma forma de “flerte’’, assim, os rapazes e as moças seriam notadas e é
exatamente isso que Dona Angela nos conta. “Os dias mais frequentados
eram sábado e domingo. A gente ia no cinema com a namorada, fazia um
lanche e depois ia namorar um pouco na praça’’ (Seu Luiz).
Segundo Certeau: “O cotidiano é aquilo que nos prende
intimamente, a partir do interior” (CERTEAU, 1996, p. 31). O conceito do
autor se faz importante no trabalho, pois só dessa forma poderemos sentir
um pouco do porquê os moradores entrevistados exprimem tanto
sentimento e riqueza de detalhes ao lembrar desse momento da vida deles.
O que Certeau quer dizer com o termo ‘’prisão’’: a repetição das ações
torna-as cotidianas, fazendo despertar sentimentos. Em conjunto isso
ainda fica mais forte, visto que chegando ao fim, a quebra de convívio e a
sensação de que os sentimentos vividos não voltarão leva a um vazio. A
“prisão’’ daquela rotina desaparece.
De acordo com essa concepção, Jesus Martin Barbero, tal como
Certeau, trabalha com a ideia de que os cinemas também contribuem para
que as pessoas sigam um padrão e assim:
Cultura popular fala então não de algo estranho, mas de um resto e um estilo.
Um resto: memória da experiência sem discurso, que resiste ao discurso e se
deixa dizer só no relato. Resto feito de saberes inúteis à colonização
tecnológica, que assim marginalizados carregam simbolicamente a
cotidianidade e a convertem em espaço de uma criação muda e coletiva. E um
Danielle Lima Rodrigues | 499
estilo, esquema de operações, modo de caminhar pela cidade, habitar a casa,
de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de inventividade técnica e
resistência moral (BARBERO, 1997, p. 126).
Portanto, é de fato possível perceber entre os relatos a repetição de
ações de pessoas que não se conhecem, mas que por morarem em um
mesmo bairro e frequentarem o mesmo lazer, tem histórias e costumes
em comum. Certeau e Barbero colocam como isso influencia na questão
da sociabilidade e na formação de identificação própria do lugar.
O fim dos cinemas e a transição para o shopping
O último cinema fechou as portas em 1999, mas desde 1970 os
cinemas da Praça Saens Pena já passaram por uma crise e vinham
gradualmente fechando suas portas. Algumas das razões para isso foi a
especulação imobiliária, que passou a querer fazer novos usos do terreno
dos cinemas, sendo sua maioria para o comércio, a chegada da fita VHS e
posteriormente o DVD, assim as pessoas não precisavam mais sair de casa
e ficavam no conforto dos seus sofás assistindo os filmes do momento e a
violência, apontada por muitas pessoas como principal motivo, pois os
números de assaltos vinham crescendo e os frequentadores do cinema
começaram a ficar com medo de sair de uma sessão e serem
surpreendidos. Além disso, nos anos 80, sob o governo do Presidente
Fernando Collor, o cinema brasileiro passou por uma grave crise, sendo o
período chamado de ‘’a nossa idade das trevas’’ pelo cineasta José Roberto
Torero. Nessa época, Collor deu fim a EMBRAFILME e o CONCINE –
principais órgãos de cinema no Brasil, em nome da austeridade de gastos
do Estado e exaltação do livre mercado. Assim, com a diminuição da
produção de filmes, muitas salas de exibição também foram entrando em
instabilidade.
500 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Isso tudo impactou no cotidiano da praça, que era um lugar de
convívio, de conversa e a partir dos fatores citados, esse costume só foi
desaparecendo.
Pra mim, os cinemas acabaram porque o comércio começou a dar mais lucro
e a fita e o DVD contribuíram. Esse foi um fator demolidor. Agora a praça é
apenas um meio de passagem, cheia de pivetes. Foi deteriorada totalmente
(Seu Henrique).
Ao conversar com os moradores e perguntar o que eles achavam que
seria a causa principal para o fim dos cinemas, pude perceber que eram
apenas especulações, mas ninguém na época esclareceu de verdade.
Inclusive, pude constatar isso com clareza quando ouvi frases como: ‘’Eu
não entendi porque acabou, as pessoas continuavam frequentando e os
cinemas não incomodavam ninguém’’ e ‘’Ninguém falou porque acabou, a
gente só via eles (cinemas) fechando as portas.’’ Portanto, é o suficiente
para evidenciar que a partir desse momento já começa a despertar um
sentimento de tristeza e representa o fim de um período muito rico em
cultura e convívio da Tijuca. Ligado ao fim dos cinemas de rua, está a
construção do Shopping Tijuca, inaugurado em 1996, porém desde 2006
o cinema Kinoplex Tijuca, localizado no ultimo piso do shopping, passa a
abrigar 6 salas de exibição – que são o total de salas de cinema que agora
a região da Praça Saens Pena tem. Os moradores mais antigos, que
frequentaram a Segunda Cinelândia Carioca, se queixam que hoje a única
opção de ir ao cinema é o shopping e alguns não se acostumaram até hoje.
‘’Os mais velhos que ainda frequentam o cinema no shopping vão porque
não tem outra opção’’ (Seu Henrique). ‘’As velharias raramente vão no
cinema de shopping, elas não gostam e nem eu. É difícil ir com as minhas
amigas.’’ (Dona Angela). ‘’Nunca fui a cinema no Shopping Tijuca, não
Danielle Lima Rodrigues | 501
gosto, mas acho bom porque leva as crianças para o cinema... ainda mais
hoje com a violência.’’ (Seu Luiz)
Assim, pode-se notar que os entrevistados têm até hoje certa
resistência ao cinema Kinoplex. O cinema no centro comercial veio para
ter um novo significado, em um novo momento do bairro. Dito isso, é
notável entre os entrevistados que essa transição do cinema para o
shopping diminuiu a frequência deles nas salas, o que provavelmente se
repete entre as pessoas mais velhas. O que é perceptível é que eles falam
com muito pesar dessa mudança, por exemplo: “Agora não vou mais ao
cinema, compro DVD, dá preguiça de subir todas aquelas escadas...’’ (Dona
Angela).
Indivíduo como testemunha
Sem dúvida, a transferência das salas de cinema para o complexo
comercial mudou a frequência nos cinemas e a vida social na praça. Agora
quem passa por lá não imagina que um dia ela foi um grande centro
cinematográfico que exibia os maiores lançamentos do momento.
“Lamento que a vida moderna não seja tão bonita como antigamente, era
mais saudável, mais leve’’ (Dona Angela). Hoje, os mais velhos dizem que
a juventude passada vivia muito mais plenamente do que a de agora
devido principalmente a violência. Quando perguntados sobre a impressão
atual da Praça Saens Pena, todos disseram em resumo a mesma coisa:
‘’Agora é só um meio de passagem com pivetes. A Tijuca foi deteriorada’’.
“O fim dos cinemas foi a decadência social do bairro, o tijucano perdeu o
lazer.’’
Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo, deu grande contribuição a
história cultural e nesse momento nos apoiaremos a um dos seus
apontamentos sobre cultura:
502 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e
‘’culturas populares’’ das sociedades, como ela tende a se tornar em certos
tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui
a soma do inter-relacionamento das mesmas (HALL, 2003, p. 136).
Nos moradores é nítido como essa cultura perpassa por todas as
práticas sociais como vimos em relatos anteriores e se tornaram uma
forma de encontrar os amigos, namorar, ter uma programação para o
lanche do final de semana, enfim, se tornou a ‘’cultura dos cinemas’’, que
envolvia o espaço-físico e ia além dele – os relacionamentos
proporcionados por esse espaço de lazer.
Enquanto iam evocando suas memórias, foi notável que o misto de
sentimentos e emoções que eram trazidos ao presente e que eram
manifestados na mudança de semblante, nos gestos e na intensidade do
gesticular. Quanto a esse aspecto, Eclea Bosi nos ajuda a compreender com
os seus apontamentos sobre memória coletiva e individual:
Há fatos que não tiveram ressonância coletiva e se imprimiram apenas em
nossa subjetividade. E há fatos que, embora testemunhados por outros, só
repercutiram profundamente em nós; e dizemos: ‘’Só eu senti, só eu
compreendi’’ (BOSI, 1994, p. 408).
Isso se torna evidente em alguns trechos da conversa como: ‘’Era
outra vida, uma coisa que jamais vai voltar em século algum’’ (Seu Luiz).
‘’A vida de antigamente era muito diferente.’’ (Dona Angela). Hoje na
praça, ainda é possível encontrar certas memórias de que um dia tal
espaço foi um cinema, por exemplo no Centro Comercial Iskye, onde
funcionavam os cinemas Tijuca 1 e 2, foi preservado uma parede com
vários pôsteres de filmes que podiam ser assistidos naquelas salas e os
famosos ícones de crítica de filmes do Jornal O globo. Diante disso, o
saudosismo presente durante as conversas e a consciência de que esses
Danielle Lima Rodrigues | 503
momentos não se repetirão, são perpetuados por esses espaços que ainda
foram um pouco mantidos e que são símbolo de orgulho.
Considerações finais
Durante as entrevistas foi possível notar como os entrevistados falam
com carinho e saudade dos momentos em que viveram, o prazer em poder
contar com detalhes a rotina deles e o modo pelo qual eles se socializavam
através do cinema. Quando era perguntado algo mais específico, eles
ficavam orgulhosos de lembrar e poder compartilhar essas lembranças,
dessa forma, “a recordação é tão viva, tão presente, que se transforma no
desejo de repetir o gesto e ensinar a arte a quem o escuta’’ (BOSI, 1994, p.
474). Entre as pessoas foi comum começar a conversa dizendo: “Olha, eu
não lembro de muita coisa’’ ou se não: “Eu lembro de tudo!’’, independente
do caso, a riqueza de detalhes era impressionante e dava pra perceber que
conforme iam trazendo à tona essas recordações, as sensações: alegria,
empolgação, euforia, eram despertadas e os mais velhos se sentiam mais
jovens novamente.
Além dessa afetividade com o cotidiano nos cinemas, foi possível ver
como eles amam o bairro no qual vivem e chegam a ter um certo
sentimento “regionalista’’, se identificando como tijucanos antes de
qualquer outra denominação. Inevitavelmente em vários momentos, o
hoje e o ontem foram comparados. A Praça Saens Pena hoje é apenas um
lugar de passagem, onde a violência tomou conta e a cada dia a Tijuca vem
sendo mostrada nos jornais como palco de ações de violência como roubos
e assaltos - um fator de suma importância para a transformação do uso do
lugar. Antigamente era o lugar onde eles poderiam sentar no banco em
volta do coreto e ficar horas e horas conversando despreocupados. Nesse
momento, a tristeza toma conta em ver a “depredação’’ na qual a praça se
encontra.
504 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Retomando as palavras de Certeau: “O cotidiano é aquilo que nos
prende intimamente, a partir do interior” (CERTEAU, 1996, p. 31), creio
que essa citação seja necessária para explicar o porquê de tanto sentimento
ao recorrer a essas lembranças. Mesmo tendo passado algum tempo, esses
moradores ainda sentem aqueles dias vivos em sua memória e sentem
falta da sociabilidade que a Praça Saens Pena proporcionou aos tijucanos.
Além de recordar os lugares, eles recordam as sensações, o que gera mais
emoção no relato.
Hoje, não é possível encontrar muitas referências por assim dizer,
estruturais, a “Segunda Cinelândia Carioca’’ na Praça Saens Pena, porém
o que restou é tratado com muito orgulho e carinho pelos moradores. Já
na memória, o que restou foi a saudade. Os maiores cinemas como o
Metro, Olinda e América deram lugar para pontos de comércio e agora os
tijucanos só tem o Kinoplex Tijuca como opção. Os mais jovens não
sentiram muito essa mudança, mas para os mais velhos, essa adaptação
não foi bem desenvolvida e diminuiu a ida do público do cinema de rua ao
Shopping. Assim, torna-se claro como o trabalho procurou ir além do que
o simples relato descritivo, a intenção era tentar passar um pouco do que
os entrevistados sentiam e viviam rotineiramente nos cinemas e como o
fim desses espaços causou um vazio na vida social e memória dos
tijucanos, que não foi preenchido por nenhum outro lugar de convívio.
Referências
ALONSO, Leandro. Entrevistar é transitar: uma passagem por histórias de vida, de
religiosos, de resistentes e de apoiadores da ditadura militar brasileira – seis
entrevistas. In: Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº 7, pp. 214-219,
Jan.-Jun. 2017
BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
Danielle Lima Rodrigues | 505
BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1997.
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In: Revista Famecos/ PUCRS, Porto Alegre, Nº 20, Dezembro 2008.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1, artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
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de Pós-graduação em Comunicação / UFJF. Vol. 3. nº2. Dezembro, 2009.
HALL, Stuart. Da diáspora identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,
2003.
Capítulo XXX
O conceito de cinema no ensino de história
em investigações na pós-graduação
Luiz Paulo da Silva Soares 1
Primeiras palavras...
[...] o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores
mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte.
(NAPOLITANO, 2005, p. 11).
Ao ponderarmos, na epígrafe acima, que o cinema conglomera
valores distintos, compartilhamos o sentimento de Marcos Napolitano
(2005) sobre as características universais e essenciais, pautados pela
estética, ética, lazer e ideologias que são veiculados nas obras
cinematográficas e que possuem como endereçamento públicos
específicos ao redor do mundo. Tornando-se, muitas vezes, em uma
pedagogia cultural, que produz, e que está carregada de significados
discursivos, gestuais e visuais partilhados pelos sujeitos que o assistem a
fim de instrumentalizá-los a desenvolver uma competência para ver
(DUARTE, 2012). Nesse sentido, o presente manuscrito de pesquisa,
buscou realizar o mapeamento de pesquisas em nível de pós-graduação
(mestrado e/ou doutorado) que foram desenvolvidas em território
brasileiro, sobre a utilização de filmes no ensino de História, no período
compreendido entre 2017 a 2019, tendo como problemática: quais os
conceitos sobre cinema no ensino de História são utilizados pelos autores
1
Professor Mestre em Educação – EEEM. Dr. Augusto Duprat; luizsoaresrg@gmail.com
Luiz Paulo da Silva Soares | 507
para fundamentar a pesquisa? Esse questionamento serviu para sulear2 o
processo de desenvolvimento da investigação em questão.
Esse recorte faz parte do Projeto de Pesquisa titulado: Ensino de
História & Cinema: mapeamento e análise de pesquisas desenvolvidas na
pós-graduação (2000-2020). O mesmo está sendo desenvolvido junto ao
Grupo de Pesquisa e Extensão Educação e Memória – EDUCAMEMÓRIA
(FURG/CNPq), na linha de pesquisa Redes de Cultura, Estética e Formação
na/da cidade – RECIDADE, do Instituto de Educação, da Universidade
Federal do Rio Grande – FURG. Cabe mencionar, que tanto este trabalho
quanto a pesquisa são desdobramentos da dissertação de mestrado
intitulada Cartografando Experiências no Ensino de História: A Mídia
Cinemática como Fonte Educativa em Sala de Aula, desenvolvida na FURG
de 2015 a 2017.
Percursos teórico-metodológicos e descobertas sobre conceitos atribuídos
ao cinema no ensino de História
A utilização do cinema no ensino de História não é algo novo, em se
tratando de educação, mas ganha, atualmente, proporções muito
particulares que precisam ser esmiuçadas.
Pois vivemos em um mundo pautado pela exacerbada circulação de
imagens. Um mundo paradoxalmente visual, com estruturas imagéticas
articuladas e concebidas e (re)ssignificadas diferentemente por cada um
dos daqueles que acabam por serem interpelados constantemente pelos
meios visuais, aqui expressos especificamente pelo cinema.
O cinema na educação se pauta em uma ordem global que
compreende novas formas de problematizar o conhecimento, provocando
2 O termo sulear aqui empregado, refere-se a expressão utilizada por Paulo Freire em A Pedagogia da Esperança
(1992), onde o autor realiza uma problematização e contraposição sobre o caráter ideológico do termo nortear (norte:
acima, superior; sul: abaixo, inferior), dando visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica
eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal.
508 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
discussões sobre processos históricos distintos. Principalmente devido à
experiência triunfante da imagem em movimento em nossa sociedade que
configura não apenas um modo contemporâneo de registrar o mundo e as
diferentes culturas, mas também de criar mecanismos que possam
simultaneamente representar nas telas de cinema estratos de um passado
remoto, presenteando a sociedade através de detalhes valiosos sobre a
História de um povo, de uma região, de um país.
Nesse ínterim, para desenvolver a pesquisa, foram analisados
dezenove trabalhos de pós-graduação defendidos e disponibilizados na
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD no período
compreendido entre 2017 e 2019. Embora a ênfase dada durante o
recolhimento do material empírico, tenha recaído ao período
anteriormente mencionado, os trabalhos foram catalogados desde os anos
2000 e aqui foi realizado um recorte temporal para buscar compreender
o fenômeno conceitual atribuído ao cinema pelos autores de pesquisas de
pós-graduação á nível de mestrado e doutorado.
No que se refere aos procedimentos metodológicos adotados para a
realização deste trabalho, estes são de caráter exploratório e centram-se
em um estudo qualitativo (FLICK, 2004), cujo levantamento do material
empírico pautou-se na busca através do site da BDTD, utilizando como
descritores “Filmes no Ensino de História” e “Cinema no Ensino de
História”. Ao realizar a busca na referida base, foram encontrados
dezenove resultados na fase preliminar de coleta de dados. Cada trabalho
passou pelo mesmo processo de tratamento das fontes, por meio do
método de análise de conteúdo proposto por Laurence Bardin (2012),
classificando, quantificando, visibilizando os objetos de análise das
pesquisas que compõem o arcabouço empírico desta investigação para
poder inferir e refletir sobre os processos de conceituação do cinema no
ensino de História. Os trabalhos, após serem encontrados na base BDTD,
Luiz Paulo da Silva Soares | 509
foram divididos em categorias amplas que continham o título do trabalho,
autor, orientador, resumo, programa de pós-graduação, nível,
universidade, ano de defesa e repositório institucional. Na sequência, os
trabalhos passaram por uma reclassificação, visando restringir os dados
de forma objetiva e ao mesmo tempo amplificando as possibilidades de
análise do estudo.
Durante o processo de análise da segunda fase de tratamento da
empiria, realizamos a exploração desses documentos, dividindo-os em
categorias específicas para refinar os resultados. A categorização nessa
fase pautou-se na explanação através do título, problema, objetivo, objeto
e/ou sujeito de pesquisa, metodologia, referencial teórico empregado e
conceito preliminar atribuído ao cinema no ensino de História.
Essa
categorização,
acima
mencionada,
proporcionou
o
desenvolvimento do processo de análise, compreensão e reflexão dos
materiais encontrados com vistas a realizar o mapeamento dos dados
obtidos por meio de quadros que denotam especificidades em cada estudo
analisado no percurso da investigação. Foram construídos quadros com a
síntese dessas informações, o que favoreceu o processo de análise. Antes
de trabalhar com a conceituação do cinema que os autores empregam para
fundamentar seus estudos, cabe mencionar os perfis de estudos
delimitados nos trabalhos catalogados para esta pesquisa, foi possível
inferir que 52,63% dos trabalhos pautam-se em estudos investigativos,
tendo como sujeitos da pesquisa professores e/ou estudantes da educação
básica ou do ensino superior. Percebe-se ainda, que 26,31% dos trabalhos
analisados, apresentam um perfil misto em sua abordagem, enquanto
15,79% possuem uma feição prescritiva de como utilizar o cinema em sala
de aula, e apenas 5,27% não foi possível identificar nenhum dos perfis
elencados, conforme podemos perceber no quadro a seguir:
510 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Quadro 1: Tipo de Estudo preliminar dos trabalhos analisados
PERFIL DE ESTUDO
Nº. DE TRABALHOS
QUANTIDADE EM %
Investigativos
10
52,63
Mistos
5
26,31
Prescritivos
3
15,79
Não identificado
1
5,27
Fonte: Quadro organizado pelos pesquisadores de acordo com as pesquisas disponíveis na plataforma BDTD.
Os dados que compõem o quadro acima, demonstram que os estudos
são predominantemente referente a investigações exploratórias que
buscam compreender o jogo existente entre educação e cinema no âmbito
escolar, em perspectivas múltiplas, como, por exemplo, do professorado
ou alunado, buscando ouvir o que esses sujeitos têm a dizer sobre a
utilização do cinema na escola e sua função pedagógica na construção
cidadã e compreensiva de conteúdos e/ou temas concernentes a História.
Os referidos perfis podem ser assim compreendidos:
Os materiais analisados e que configuram o perfil investigativo,
apresentam temáticas complementares, isso significa que as pesquisas
tecidas possuem centralidade na contribuição qualitativa, buscando por
meio de metodologias distintas, como pesquisa-ação, história oral, história
de vida, diário de campo, construir um arcabouço que possa tornar
compreensivo a relação estreita do cinema e ensino na vida de professores
e estudantes.
Em se tratando do perfil misto, este configura aqueles trabalhos que
possuem as características investigativas, científicas e ao mesmo tempo
aponta um caráter prescritivo metodológico da utilização do cinema em
sala de aula. Esses estudos abordam, em sua maioria, análises semióticas,
visando perscrutar de que maneira o cinema pode ser válido no uso para
o ensino de História, utilizando para isso, uma análise fílmica e estudos
bibliográficos que juntos delineiam um estudo que possa indicar a
Luiz Paulo da Silva Soares | 511
viabilidade de forma positiva e prescritiva para o professor utilizar em suas
aulas. Cabe ressaltar, também, que o número de trabalhos de pósgraduação, referente a esse perfil de estudo, e que compreende um total
de cinco (05) trabalhos, pautam-se numa análise histórica, por meio de
metodologias que visam corroborar a eficácia do uso desse artefato
didático-pedagógico em sala de aula, priorizando em alguns casos, por
exemplo, investigação bibliográfica e documental de projetos que tenham
sido colocados em prática na escola.
No que tange aos materiais que possuem um perfil prescritivo,
podemos constatar através das análises realizadas, que os mesmos
possuem o caráter de prescrever o modo e/ou sequência didática que o
professor pode valer-se ao se disponibilizar a utilizar esse artefato em suas
aulas. Ademais, esse caráter prescritivo, só corrobora com o fato de buscar
“facilitar” o trabalho do professor, indicando quais filmes e de como fazer
uso desses “produtos culturais” (CARMO, 2012, FONSECA, 2012 & FERRO,
2010), em sala de aula de maneira dinâmica. Nesses trabalhos, aparece um
planejamento de como se valer das imagens em movimento, bem como do
figurino, do contexto de produção, prescrevendo maneiras corretas de
apreciar e utilizar os aspectos descritos no filme, como mote para se
ensinar História.
Por fim, cabe destacar que apenas um trabalho não foi possível
enquadrar em nenhum dos perfis anteriores. Este, que ficou sob na
categoria de análise não identificada, não possuía características
prescritivas nem investigativas. O mesmo atenta-se em realizar uma
análise de materiais teóricos e outros artefatos didático pedagógicos, na
compreensão do uso do filme na escola, como por exemplo, a análise de
filmes utilizando a semiologia como aporte metodológico ou ainda de
trabalhos que vislumbre as possibilidade de utilização do cinema no âmago
escolar.
512 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
No que tange aos resultados encontrados no processo de análise do
material empírico, estes dizem respeito ao conceito atribuído ao cinema
no ensino de História e constatamos múltiplas significações. Dentre elas o
cinema visto como prática pedagógica, ferramenta didática, recurso, fonte
histórica, representação social o que denota uma amplitude de significados
que os autores atribuem a utilização desse “produto cultural” no ensino de
História (CARMO, 2012, FERRO, 2012, FONSECA, 2010), conforme
podemos perceber no quadro a seguir:
Quadro 1: Categorias de dimensões conceituais atribuídas ao cinema
DIMENSÃO
N. DE VEZES
Linguagem pedagógica
1
Prática pedagógica
4
Ferramenta, recurso ou suporte didático
6
Memória
1
Prática e/ou representação social.
7
Criticidade
5
Fonte: Organizado pelo pesquisador, de acordo com as pesquisas encontradas na plataforma BDTD.
Podemos vislumbrar seis dimensões conceituais distintas que são
atribuídas pelos pesquisadores quando os mesmos se propõem a trabalhar
com a questão do cinema na História e no ensino. A seguir vamos analisálas para compreendermos as concepções elencadas nos estudos
catalogados.
Comecemos por considerar a dimensão linguagem pedagógica,
caracterizada em apenas um trabalho, na qual o pesquisador considera o
cinema como um importante material que potencializa a prática docente,
renovando metodologicamente o modo de trabalhar os temas em sala de
aula. De acordo com Christian Metz, o cinema é a própria linguagem, pois
Luiz Paulo da Silva Soares | 513
possui um conjunto de fenômenos que possibilitam a transmissão das
mensagens veiculadas na sequência de imagens dos filmes. Para o autor,
O cinema, [...] pode ser considerado como uma linguagem, na medida em que
ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, diferentes
daquelas praticadas pelos nossos idiomas, e que tampouco decalcam os
conjuntos perceptivos oferecidos pela realidade (esta última não conta estórias
contínuas). A manipulação fílmica transforma num discurso o que poderia não
ter sido senão o decalque visual da realidade. Partindo de uma significação
puramente analógica e contínua – a fotografia animada, o cinematógrafo –, o
cinema elaborou aos poucos, no decorrer de seu amadurecimento diacrônico,
alguns elementos de uma semiótica própria, que ficam dispersos e
fragmentários no meio das camadas amorfas da simples duplicação visual
(METZ, 1972, p. 126-127).
O excerto acima exemplifica a dimensionalidade do cinema como
linguagem, ponderada em um dos trabalhos analisados e único a abarcar
o conceito. Uma vez que essa concepção constitui elementos próprios da
obra fílmica que possuem significância quando debatidos em sala de aula.
Então, o cinema como linguagem pedagógica, conforme foi apontado
(quadro 2), favorece uma maneira de abordar os conteúdos históricos
através do poder que a linguagem fílmica oferece. Não estamos aqui nos
referindo apenas à linguagem verbal, mas sim a todo um conjunto de
planos, ângulos, movimentos, recursos, cenários, figurinos, enredo,
diálogos entre os personagens como constituintes do universo da
produção fílmica. A linguagem do cinema é tida assim, como uma
linguagem plural, pois envolve diversos aspectos que podem ser
analisados separadamente ou em conjunto. Todos esses aspectos
mencionados anteriormente constituem a linguagem do cinema, e como
toda linguagem pressupõe como objetivo a comunicação e, sendo uma
comunicação, possibilita debates entre os sujeitos.
514 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
Seguindo essa concepção do cinema como linguagem pedagógica,
identificada nas análises dos trabalhos, temos que considerar uma
definição teórica sobre a linguagem do cinema no âmbito escolar, posto
que
[...] é certo que a linguagem da arte só poderá ser compreendida nas suas
relações mais profundas com a teoria dos signos. Sem esta, qualquer filosofia
da linguagem permanece fragmentária, porque a relação entre linguagem e
signo vem das origens e é fundamental. (BENJAMIN, 1994, p. 195).
Ao refletir sobre as palavras de Benjamin sobre a linguagem do
cinema e suas relações existentes com os signos, ao nos disponibilizarmos
a utilizar as mídias cinemáticas no ensino, precisamos pensar sobre os
significados de todo esse processo de construção de um filme e que pode
ser explorado de forma comunicacional no âmago escolar, levando os
estudantes a refletirem sobre o que acontece na trama atrás da tela. De
modo análogo, também assim não ocorre na própria história, cujos
bastidores são parte do que ocorre no palco e é o (in)visível. Constata-se
assim, que essa definição de linguagem do cinema tem por intuito
expandir os horizontes e as possibilidades de análise da obra fílmica. Ainda
assim, o autor eleva o cinema a uma forma de arte contemporânea que
nos sensibiliza, que nos toca, que nos emociona. De acordo com Benjamin,
O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas
por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana.
Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações
humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu
verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1987, p. 174).
Ao analisarmos as palavras do autor, constatamos que Benjamin
considerava o caráter sensível do cinema sendo eleito por ele como a arte
Luiz Paulo da Silva Soares | 515
primeira, no que tange a percepção, as significações que a arte
cinematográfica exerce nos atores sociais na contemporaneidade,
divertindo, mas também alargando a percepção humana. Ainda de acordo
com ele,
[...] a recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos
os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas
estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado. E aqui, onde
a coletividade procura distração, não falta de modo algum a dominante tátil,
que rege a reestruturação do sistema perceptivo (BENJAMIN, 1987, p. 194).
Ainda que relevante, a observação de Benjamin sobre a percepção
construída no momento de “distração”, como ele diz, a relação de
sucessões de imagens também pode permitir aos receptores da mídia
cinemática refletir sobre a arte cinematográfica; não apenas assistir aos
filmes para passar o tempo, como muitos pensam, mas, sim, contemplar,
fruir e analisar o conteúdo que está sendo veiculado nos filmes.
Já o cinema visto como prática pedagógica é pontuada em quatro
(04) estudos, onde vislumbram que o cinema em sala de aula está muito
além de um simples artefato didático pedagógico. O mesmo é visto como
a própria prática pedagógica do professor, buscando em sua figura,
desenvolver a educação do olhar do estudante, conforme nos ensinou
Duarte (2002) sobre a competência para ver. Nesse sentido, o cinema
engloba uma interface constituída como documento histórico, produto
cultural e criação artística a ser desenvolvidas junto às competências e
habilidades dos estudantes, mas constitui, por essência, uma prática
pedagógica do docente.
A aprendizagem decorre de um conjunto de interações e no caso do
cinema pressupõe também uma formação cultural. Conforme Duarte, “ver
filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação
516 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
cultural e educacional das pessoas, quanto à leitura de obras literárias,
filosóficas, sociológicas e tantas mais” (DUARTE, 2002, p. 17). Nesse
sentido, o cinema acaba por impactar o telespectador ao abordar, por
exemplo, a estética, valores sociais, enfim, possibilidades no
desenvolvimento cultural através da reflexão fílmica. Ainda de acordo com
a autora,
[...] determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de
ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças
e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior
interesse que o cinema tem para o campo educacional – sua natureza
eminentemente pedagógica (DUARTE, 2002, p. 19).
A História sendo a ciência dos seres humanos no tempo e no espaço
cabe-lhe analisar o passado a partir do tempo presente e avaliar o presente
à luz desse passado. Nesta direção, a História contribui para o
desenvolvimento e a formação da cidadania investindo em estímulos
didático-pedagógicos e debates que viabilizem a reflexão dos atores sociais
da história, atuando ativamente na sociedade.
Na dimensão do cinema como ferramenta, recurso ou suporte
didático que constituiu seis (06) dos trabalhos explorados, os
pesquisadores pressupõem que o cinema é considerado como um
instrumento de auxílio para o professor, evidenciando uma estratégia
pautada em um veículo de comunicação de massa, instrumento
educacional, objeto de entretenimento. Nesse cenário, Duarte (2002, p. 87)
assevera que muitos professores fazem uso do cinema apenas como
recurso, suporte ou ferramenta didática de “segunda ordem”, como forma
lúdica e atraente.
Se recorrermos ao dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009)
o tripé formado pelas palavras anteriormente mencionadas referem-se ao
Luiz Paulo da Silva Soares | 517
ato ou efeito de recorrer a um auxílio que possa trazer ou ser benéfico no
processo de ensinar os estudantes. Nesse sentido, esse instrumento que é
o próprio filme, auxiliaria no desenvolvimento do trabalho pedagógico do
professor, gerando aprendizagens aos estudantes em sala de aula.
Entretanto, cabe refletir que se os autores das pesquisas catalogadas
concebem o filme como um recurso didático, devemos ponderar em que
sentido é abstraído e fomentado em sala de aula pelos professores. Essa
conotação em relação a mídia cinematográfica como ferramenta, ou seja
um recurso didático pode ser empregada de diversas maneira, como, por
exemplo, a possibilidade de ilustrar os conteúdos/temas que estão sendo
debatidos pelos professores em sala de aula.
O filme como poética, os diálogos como versos, as imagens como arte
e o cinema enquanto memória, assim são os filmes, testemunhos do
passado, de existências distintas, de lugares possíveis que são cristalizados
pela memória vivida, pela dualidade da lembrança e do esquecimento
(NORA, 1993). Diante disso, o filme é a memória materializada da História,
do discurso que mobiliza experiências ativadas pelo rememorar para
experimentar o ato de desfrutar de outros lugares, objetos, sensações,
imaginários. E o cinema tem a mais robusta capacidade de tratar com
esplêndida magnificência o tema da memória e da história. De acordo com
Cristiane Freitas Gutfreind, a memória assume uma noção de “memória
coletiva”, ou seja, uma “lembrança não é constituída apenas pelo
indivíduo, mas também pela lembrança de outros, mesmo por uma
simples conversa. O resultado é uma troca de memórias. Além disso, as
transformações na lembrança são produzidas pela transformação dos
meios coletivos” (GUTFREIND, 1997, p. 17). De acordo com a autora,
O cinema é, por excelência, um meio de socialização que tem como função
produzir uma memória social compartilhada por um grande número de
indivíduos. É também um fenômeno de memorização de fatos, de
518 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
personagens, de idéias e, por essa importância, impõe-se a necessidade de
conservação de todos os filmes. (...) [Assim,] o encontro entre o cinema e a
história permite estabelecer um laço com a memória passada, que pode se
tornar uma ação no presente e se constituir em uma maneira de tentar
confortar antigas dívidas (GUTFREIND, 1997, p. 17-18).
Assim, a memória histórica é vislumbrada nas telas do cinema, como
uma maneira de expressar temas tão caros a sociedade humana, como,
por exemplo, as ditaduras militares na América Latina, os massacres
ocorridos ao longo da História sendo admitidos por nações europeias são
alguns dos diversos exemplos em que o cinema busca rememorar,
ressignificar períodos tão sombrios da História da humanidade, com vistas
a não cair no esquecimento as atrocidades que marcaram a subjugação de
povos ao longo do tempo.
Os estudos em que o cinema é concebido como prática e/ou
representação social, que representa a maioria dos trabalhos analisados,
proporciona
como
característica
a
construção
de
imaginários
representativos do passado mediados pelo cinema sobre o passado.
Ademais, o cinema como prática social, pode ser visto como uma forma
narrativa histórica, construída para promover a potencialização dos fatos
ocorridos no passado e rememorados nas telas do cinema e amplificados
na História e no ensino, sendo, por vezes, uma representação social,
produzida por determinados grupos como forma de manutenção de poder.
De certa forma não teria como não sê-lo, tendo em vista o caráter social,
cultural, ideológico etc., de quem o produz.
Ferro aponta que
[...] desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir
na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde a sua origem,
sob a aparência da representação, doutrinam e glorificam. Na Inglaterra
mostram essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França,
Luiz Paulo da Silva Soares | 519
preferiram filmar as criações da burguesia ascendente: um trem, uma
exposição, as instituições republicanas (FERRO, 2010, p. 13).
Sob a ótica de Ferro (2010), o cinema apresenta-se como um
instrumento de legitimação de uma cultura, de uma sociedade. Vejamos
como exemplo, o caso da Alemanha nazista, onde alguns filmes foram
utilizados com o intento de propagar em larga escala uma ideia de “raça
pura”, da “raça” ariana, e todos que não pertencessem a ela deveriam ser
exterminados. O teor das mensagens que eram veiculadas nesses filmes
sobre o governo de Hitler servia unicamente para difundir uma campanha
de ódio e preconceito, impondo os valores que o próprio general possuía
como verdade.
Já os trabalhos que visualizam os filmes como forma de criticidade,
estes possuem a concepção de que a utilização do cinema em sala de aula,
"seria o responsável por modelar mentalidades, sentimentos e emoções e
que é possível por meio dele construir saber histórico e aprimorar a
capacidade crítica.
Ao analisarmos cada uma das categorias dimensionais acima
descritas (quadro 1), podemos vislumbrar que tais características que
foram apontadas nos respectivos trabalhos, apresentam conjecturas
diferenciadas e estabelecem uma relação profícua no que tange a este
“produto cultural” e seus diversos significados de acordo com categorias
históricas, epistemológicas, culturais referenciadas.
(In)conclusões
Ao longo da História, diversos artefatos culturais passaram a
condição principal de manutenção, evolução e disseminação em massa da
cultura, da sociedade, de políticas, das relações tecidas e obras realizadas
ao longo do tempo. Neste aspecto, o cinema é um desses “produtos
culturais” (FERRO, 2010; CARMO, 2012; FONSECA, 2012) que possui essa
520 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS
incumbência de manter a memória, a história viva e presente nos dias
atuais, não apenas no ensino, mas de maneira geral e não pode ser
concebido como mero entretenimento ou lazer.
O trabalho aqui exposto, em fase inicial de análise, apresenta algumas
características que denotam a utilização deste “produto cultural” (FERRO,
2010; FONSECA, 2012; CARMO, 2012) como forma de amplificar e
mobilizar as aprendizagens dos estudantes.
Ademais, cabe frisar que as análises dos estudos apresentam uma
maneira diferenciada de conceber o cinema no ensino de História. Existe
no material empírico uma multiplicidade de conceitos, conforme
apresentados no quadro 2, que denotam a compreensão por parte dos
autores sobre não apenas as potencialidade desse produto, mas, também,
da sua enorme capacidade de desenvolver um espaço propício para
reflexão, imaginação, integração e crítica sobre o que está sendo veiculado
nas imagens em movimento.
Desta forma, o cinema se torna um importante mobilizador de
aprendizagens significativas, propiciando a reflexão, a curiosidade e a
criticidade daqueles que com ele interagem. Ratifica, portanto, que sua
empregabilidade é mais do que uma ferramenta didática de cunho
instrumental, pois envolve questões subjetivas, históricas, políticas que
exigem que o professor a conheça bem sua apresentação em sala de aula.
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