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A produção historiográfica em tempos de crise A produção historiográfica em tempos de crise IV Encontro Discente de História da UFRGS Organizadores Bárbara Darski Bianca Lopes Brites Carolina Suriz dos Santos David da Silva Carvalho Gabriel José Brandão de Souza Juliana Carolina da Silva João Camilo Grazziotin Portal Kauê Junior Neckel Renata Coutinho Ferreira Tairane Ribeiro da Silva Tatiane Bartmann Vanessa Ames Schommer Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) DARSKI, Bárbara et al. (Orgs.) A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS [recurso eletrônico] / Bárbara Darski et al. (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022. 521 p. ISBN - 978-65-5917-318-1 DOI - 10.22350/9786559173181 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Historiografia; 2. Pandemia; 3. Discentes; 4. UFRGS; 5. Brasil; I. Título. CDD: 900 Índices para catálogo sistemático: 1. História 900 Sumário Prefácio 13 Juliana Carolina da Silva Tatiane Bartmann Introdução 22 João Camilo Grazziotin Portal História Social do Trabalho Capítulo I 33 Processos trabalhistas e processos criminais como fonte histórica: um balanço historiográfico dos últimos anos Tatiane Bartmann Bárbara Beatriz Silveira Darski Capítulo II 51 Fábrica Rheingantz: disciplina fabril, divisão sexual do trabalho e a resistência cotidiana das operárias (Rio Grande, 1910 a 1968) Caroline Duarte Matoso Capítulo III 66 Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de territórios urbanos da Primeira República (Santa Maria, RS) Felipe Farret Brunhauser História Indígena da América Capítulo IV Mães e pais indígenas: narrativas e práticas ao longo do século XVIII Laura Oeste 83 Capítulo V 98 As Cartas Ânuas como fontes etnográficas: possibilidades e desafios. Uma análise de caso da Ânua de 1735-43, de Pedro Lozano S.J, e as reduções austrais da pampapatagônia Thaís Macena de Oliveira História Oral e Memória Capítulo VI 119 Pandemia, fronteiras regionais e estudos da memória: conexões e virtualidades a partir do IV Encontro Discente de História da UFRGS João Camilo Grazziotin Portal Lúcio Geller Junior Pedro Henrique Batistella Capítulo VII 136 Sob o olhar quilombola: narrativas, memórias, tradições e oralidades José Luiz Xavier Filho Capítulo VIII 155 Entre a lembrança e a compra do silêncio: a Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos e a construção da memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina Juliano Cabral Pereira Mundo Rural na América Capítulo IX 173 Uma freguesia na fronteira e outra na estrada: dinâmicas de ocupação territorial pela população imigrante açoriana e seus descendentes Sandra Michele Roth Eckhardt Vanessa Ames Schommer Capítulo X 186 Agriculturas do capitalismo periférico: fumicultura em São Lourenço do Sul, RS (cc. 1950 – 1980) Ângelo Belletti Capítulo XI 201 “Sábado é dia de feira”: representações de um signo entre o urbano e o rural na cidade de Cajazeiras-PB Mirian Jossette de Sousa Oliveira Tatiana de Sousa Lins Encruzilhadas Epistemológicas Capítulo XII 219 A Amefricanidade como Filosofia Política Contra-colonial Jonas Silveira da Silva Matheus Menezes Marçal Capítulo XIII 232 Racializando o branco: as implicações da noção de branquitude nos estudos da História Social do Racismo Marina Albugeri da Silva Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V ao XV Capítulo XIV 251 Estudar a Idade Média em espaços não-europeus: apresentando um panorama dos Estudos Medievais no Brasil em nível discente Kauê J. Neckel Vinicius Silveira Cerentini Capítulo XV 266 As crônicas arthurianas como espelho de príncipe para o Rei Ricardo Coração-deLeão da Inglaterra Ana Luiza Mendes Roberta Bentes Capítulo XVI 282 A literatura pastoral e sua relação ao estudo da cultura e religiosidade popular na Alta Idade Média Marcos Pedrazzi Chacon Edmar Checon de Freitas O Brasil Republicano Capítulo XVII 301 Emergências da branquitude na historiografia brasileira: possibilidades de análise Gabriel Ribeiro da Silva Capítulo XVIII 317 A mais velha e justa inspiração: Uma análise das relações raciais no Vale do Rio Pardo a partir dos clubes negros Helen da Silva Silveira Capítulo XIX 332 Os antecedentes do “milagre econômico”: a reestruturação do sistema financeiro (1964 – 1966) Werbeth Serejo Belo África e africanidades Capítulo XX 349 Narrativas de mulheres negras em Florianópolis sobre Áfricas: oralidades, corpos e movimentos Carol Lima de Carvalho Capítulo XXI 365 Biblioteca Virtual do AYA Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais: pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos plurais Helena Fediuk Gohl Luiza Ferreira da Silva Capítulo XXII 379 Ensino de História das Áfricas e a Literatura: a produção de um e-book ilustrado em diálogo com a obra Efuru de Flora Nwapa (Nigéria, 1960) Tathiana Cristina S. A. Cassiano História do tempo presente Capítulo XXIII 395 As obras de Héctor Oesterheld: um projeto cultural de resistências políticas na Argentina Leonardo Pires Nascimento Capítulo XXIV 410 Encarceramento político, violência de gênero e redefinição das práticas repressivas na ditadura civil-militar brasileira em Porto Alegre (1970-1971) Maria Eduarda Magro Ensino de História Capítulo XXV 431 Ensino de História da África: o problema da disciplina no Século XXI Bianca Lopes Brites Domingos Mula Cá Júnior Juliana Carolina da Silva Capítulo XXVI 444 “Quem sou eu na História?”: O papel histórico feminino no imaginário de uma turma de estudantes do Ensino Fundamental Alice Schmitz Toldo Capítulo XXVII 457 A experiência de estágio no espaço não formal de educação: possibilidades de usos das fontes documentais para o ensino de História Liziane Acordi Rocha Ariel Alves Medeiros História e cinema Capítulo XXVIII 475 A memória cultural do cemitério indígena na narrativa cinematográfica e o trauma da expropriação colonial Carolina Suriz dos Santos Capítulo XXIX 492 A segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim dos cinemas da Praça Saens pena entre 1970 e 1999 e seu impacto para a vida social dos tijucanos Danielle Lima Rodrigues Capítulo XXX O conceito de cinema no ensino de história em investigações na pós-graduação Luiz Paulo da Silva Soares 506 Prefácio Juliana Carolina da Silva Tatiane Bartmann O IV Encontro Discente de História da UFRGS - “A produção historiográfica em tempos de crise”, é uma iniciativa que surgiu do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História, como uma tentativa de reunir diferentes pesquisadores de variados campos e enfoques disciplinares, para que mesmo em tempos difíceis, pudéssemos pensar caminhos, diálogos e contribuições à nossa área e à sociedade. Na edição de 2020, com inscrições gratuitas e em formato virtual, o encontro alcançou pleno sucesso ao se propor como um espaço acadêmico interdisciplinar para que os temas que envolvem os variados âmbitos da História e de seu ensino, fossem discutidos durante a realização do evento, com as palestras, as mesas-redondas, os minicursos e as apresentações de trabalho nos simpósios temáticos. Os textos que compõem o presente e-book são resultados da seleção de comunicações de pesquisa realizadas nos onze simpósios temáticos do evento. Em cada simpósio os coordenadores foram convidados a selecionar textos para esta publicação, obedecendo critérios de relevância e contribuições sobre os temas. A partir da seleção, convidamos os autores dos trabalhos selecionados para a composição desta obra. Podemos agrupar os textos desta publicação, genericamente, em onze eixos temáticos envolvendo diversas abordagens, metodologias e contextos como: História Social do Trabalho; História Indígena da América; História Oral e Memória; Mundo Rural na América; Encruzilhadas Epistemológicas; Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V 14 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ao XV; O Brasil Republicano; África e africanidades; História do tempo presente; Ensino de História e História e cinema. No primeiro agrupamento, temos um trabalho cujo foco são análises acerca da História Social do Trabalho, iniciando o eixo por um balanço historiográfico acerca de pesquisas que utilizam como fontes os processos trabalhistas e os processos criminais, das autoras Bárbara Beatriz Silveira Darski e Tatiane Bartmann. O segundo texto, de Caroline Duarte Matoso, traz um instigante estudo sobre a disciplina fabril, divisão sexual do trabalho e analisa através dessas chaves, a resistência cotidiana das operárias da Fábrica Rheingantz, de Rio Grande/RS, entre 1910 e 1968. O texto seguinte, “Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de territórios urbanos da Primeira República (Santa Maria, RS)”, de Felipe Farret Brunhauser, se debruça sobre os avanços no uso de Sistemas de Informações Geográficos para pesquisas históricas. Dialogando com tecnologia, estudos históricos e análises sociais, Brunhauser nos conduz pelo estudo de cartografias da cidade de Santa Maria, produzidos durante a Primeira República. A observação tecida ao longo do texto mostra aspectos acerca da importância dos mapas como fontes para a compreensão da sociedade da qual representam. O segundo conjunto de textos, é formado por dois trabalhos que envolvem o tema da História Indígena da América, tentando entender os limites, possibilidades e caminhos relativos ao uso das fontes. O trabalho desenvolvido por Laura Oeste, observa variadas fontes do século XVIII, buscando analisar as diferentes práticas e concepções acerca das mães e pais indígenas. Com um recorte temporal próximo, o texto seguinte, de Thaís Macena de Oliveira, traz perspectivas acerca das possibilidades e limitações do gênero epistolar para o conhecimento sobre as missões austrais da pampa-patagônia e das populações indígenas. Para tanto, a Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 15 autora analisa a Carta Ânua, do jesuíta Pedro Lozano, utilizando como recorte temporal a produção da epístola, que remonta de 1735 a 1743. No terceiro eixo temático encontramos estudos que versam sobre Memória e História Oral. O texto inicial, de João Camilo Grazziotin Portal, Lúcio Geller Junior e Pedro Henrique Batistella, reflete sobre as conexões e virtualidades que se tornaram possíveis com o IV Encontro Discente de História da UFRGS, atentando para questões regionais, históricas e contextuais que permearam o ST3 e o evento. O texto seguinte, “Sob o olhar quilombola: narrativas, memórias, tradições e oralidades”, de José Luiz Xavier Filho, traz uma profícua discussão sobre a contribuição das memórias das comunidades remanescentes quilombolas para a História do Brasil, dialogando conceitos como identidade e territorialidade. A partir dessa discussão, o autor reflete sobre as memórias e as tradições presentes no quilombo Sambaquim, no município de Cupira/PE, através de entrevistas coletadas utilizando a metodologia da História Oral e das intersecções destas memórias com a espacialidade e com o território dessa comunidade. Ainda no interior do terceiro conjunto de textos, o estudo de Juliano Cabral Pereira, “Entre a lembrança e a compra do silêncio: a Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos e a construção da memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina”, é uma instigante análise que contribui para os estudos acerca da Justiça de Transição no nosso país. O texto observa a Comissão de Indenização dos Ex-Presos Políticos e a postura da sociedade em relação à memória do período ditatorial, para refletir sobre a reparação oferecida às vítimas da ditadura militar em Santa Catarina. O fio condutor do quarto agrupamento de textos é a temática é Mundo Rural na América, sendo iniciado pelo trabalho intitulado “Uma freguesia na fronteira e outra na estrada: dinâmicas de ocupação territorial pela população imigrante açoriana e seus descendentes” de 16 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Sandra Michele Roth Eckhardt e Vanessa Ames Schommer. O capítulo observa a interação, as semelhanças e divergências da ocupação espacial da freguesia de São José do Taquari e da freguesia de Santo Antônio da Patrulha, ambas de ocupação portuguesa, na segunda metade do século XVIII. Seguindo, a pesquisa de Ângelo Belletti traz uma instigante leitura sobre agriculturas do capitalismo periférico, entendendo como as relações do sistema econômico mundial com as práticas agrícolas de pequenos agricultores. Para tanto, Belletti analisa o cultivo do tabaco em São Lourenço do Sul/RS, pesquisando a dinâmica dos fumicultores nesse município e usando como recorte temporal o período de 1950 a 1980. O terceiro capítulo dessa temática traz um estudo sobre a constituição, as permanências, as mudanças e as ressignificação da feira livre como um signo. As autoras Mirian Jossette de Sousa Oliveira e Tatiana de Sousa Lins entenderam a feira livre de Cajazeiras/PB, como um signo que articula uma itinerância entre os espaços urbanos e rurais dessa cidade. Ao longo do artigo somos conduzidas pela análise sobre as transformações e conflitos entre o campo e a cidade, utilizando chaves de interpretação que conjugam conceitos como tradição e modernização, urbano e rural, cultura e política, para compreendermos as mudanças e permanências sobre a comercialização entre periferia, centro, zonas vizinhas e zonas rurais. O quinto tema abordado nessa obra é Encruzilhadas Epistemológicas, que será agregado por três capítulos. Os autores Jonas Silveira da Silva e Matheus Menezes Marçal apresentam o texto “A Amefricanidade Como Filosofia Política Contra-colonial”, que busca pensar e questionar as abordagens das humanidades a partir das categorias “decoloniais”. O capítulo seguinte, “Racializando o branco: as implicações da noção de branquitude nos estudos da História Social do Racismo”, de Marina Albugeri da Silva, parte de reflexões acerca da noção de branquitude e da Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 17 constituição da noção de raça para buscar entender os modos de operação e reprodução do racismo e a estruturação de relações de poder. O sexto eixo temático aborda o contexto da Idade Média (séculos V ao XV), mostrando as variadas possibilidades de pesquisas nessa área. O primeiro capítulo, dos autores Kauê J. Neckel e Vinícius Silveira Cerentini apresentam um panorama dos estudos Medievais no Brasil a partir da análise das abordagens feitas pelas pesquisas inscritas no IV Encontro Discente de História da UFRGS. Na sequência, o segundo artigo de Ana Luiza Mendes e Roberta Bentes se refere às crônicas arthurianas e a proximidade entre realidade e ficção na concepção da existência no medievo. O terceiro artigo de Marcos Pedrazzi Chacon e Edmar Checon de Freitas trata sobre a literatura pastoral e sua relação com a cultura e religiosidade popular no contexto da Alta Idade Média. O sétimo simpósio temático analisa diversas perspectivas temáticas e discussões teórico-metodológicas com viés político no Brasil Republicano. O primeiro capítulo apresentado trata-se de uma revisão sobre a temática da branquitude na historiografia brasileira, escrito por Gabriel Ribeiro da Silva. Esse estudo pretende apontar os principais trabalhos que utilizam a branquitude como campo de pesquisa, além disso, propõe ferramentas analíticas para os estudos nessa área. O segundo texto desse eixo temático, escrito por Helen da Silva Silveira, traz reflexões de uma pesquisa em andamento sobre o associativismo negro e projetos de liberdade no período pós-abolição no contexto do Vale do Rio Pardo, interior do Estado do Rio Grande do Sul. O objetivo principal desse estudo é compreender as relações entre negros e teuto-brasileiros em cidades definidas pela imigração alemã. Fechando esse eixo temático, temos o texto de Werbeth Serejo Belo, doutorando da Universidade de Coimbra, o qual apresentou sua pesquisa intitulada “Os antecedentes do “milagre econômico”: a reestruturação do sistema financeiro (1964 – 1966)”. O autor faz um 18 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS importante debate envolvendo os variados interesses e discursos sobre o golpe “classista Empresarial-Militar”. No oitavo conjunto de textos, a temática priorizada foi “África e Africanidades” abordando a historiografia, teoria crítica e ensino de História a fim de criar espaço para debates políticos suscitados pelas investigações. Nesse sentido, o primeiro capítulo trouxe para a discussão questões vinculadas às narrativas sobre África a partir de mulheres negras em Florianópolis, SC, da autora Carol Lima de Carvalho. A partir da análise de entrevistas, o texto possui uma perspectiva decolonial ao apresentar a trajetória de sete mulheres negras em suas dinâmicas de resistência, observando os universos culturais em que estiveram inseridas. O segundo artigo elaborado por Helena Fediuk Gohl e Luiza Ferreira da Silva discorre sobre o projeto intitulado “Biblioteca Virtual Estudos Africanos e Indígenas” desenvolvido como uma ação de extensão voltada à produção de materiais que contribuem para qualificar as práticas na educação, promovida pelo AYA Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais. O terceiro artigo, de Tathiana Cristina S. A. Cassiano também trata sobre o ensino de História da África, mas dentro do debate literário em diálogo com a obra Ufuru de Flora Nwapa (autora nigeriana, 1960) e descreve a produção de um e-book ilustrado para divulgação do conhecimento. O simpósio temático número nove, intitula-se “História do Tempo Presente: desafios da América Latina” e contribui com um espaço de discussão de temáticas diversificadas. No primeiro texto, vem a tona discussões sobre as obras de Hector Oesterheld, um militante e roteirista de quadrinhos argentino que através de suas produções e seu trabalho editorial promovia denúncias e críticas ao imperialismo, bem como, incentivava produções locais de artistas argentinos, na primeira década do século XX. Oesterheld atuando na guerrilha armada em defesa da liberdade política e social na Argentina, década de 1970, está entre os Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 19 milhares de desaparecidos das ditaduras latinas. Dito isso, o autor Leonardo Pires Nascimento, através de levantamentos biográficos, objetiva compreender como a memória é apropriada e percebida na política e cultura contemporânea. O segundo capítulo que compõe o eixo, intitula-se “Encarceramento político, violência de gênero e redefinição das práticas repressivas na ditadura civil-militar brasileira em Porto Alegre (1970-1971)”, escrito por Maria Eduarda Magro, parte da trajetória de três mulheres envolvidas no enfrentamento à ditadura civil-militar brasileira. O décimo eixo temático, abriu espaço para a discussão sobre os “Usos do Passado no Ensino de História e Aprendizagem no Brasil Contemporâneo”, enunciando experiências diversas no processo de ensino e aprendizagem. No primeiro texto, de autoria de Bianca Lopes Brites, Domingos Mula Cá Junior, Juliana Carolina da Silva, é apresentado um conjunto de discussões teóricas que problematizam o papel do ensino de História da África, no século XXI. Na sequência, o artigo de Alice Schmitz Toldo traz no título o seguinte questionamento: “Quem sou eu na História?”. Essa provocação introduz uma proposta de atividade realizada com alunos do Ensino Fundamental que mobiliza toda uma discussão sobre o imaginário, a imaginação e os símbolos relacionados a papéis de gênero presentes no imaginário da sociedade ocidental. O terceiro artigo, de Liziane Acordi Rocha e Ariel Alves Medeiros, intitula-se “A experiência de estágio no espaço não formal de educação: possibilidades de usos das fontes documentais para o ensino de História” e demonstra a importância da articulação entre a educação formal e não formal, bem como, os impactos dessa prática no processo educativo. O décimo primeiro eixo temático vem encerrar as sessões com debates sobre as narrativas cinematográficas enquanto fontes históricas. No primeiro artigo desse grupo, Carolina Suriz dos Santos considera o cinema como agente criador de memórias e veículo de rememoração, 20 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS nesse sentido, é problematizada a memória cultural do cemitério indígena como espaço maldito, apresentada na narrativa cinematográfica do gênero de horror. Sua pesquisa convida a refletir sobre o trauma da expropriação colonial. O segundo texto, de Danielle Lima Rodrigues, intitulado “A segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim dos cinemas da Praça Saens Pena entre 1970 e 1999 e seu impacto para a vida social dos tijucanos” discorre sobre a transformação pela qual passou a Praça Saens Pena, na Tijuca, Rio de Janeiro, que antigamente possuía salas de exibição de filmes se constituindo em espaço de sociabilidade para os moradores e atualmente abriga lojas de departamento e farmácias. Finalizando o debate, Luiz Paulo da Silva Soares, autor do terceiro texto, trata sobre o conceito de cinema e da utilização de filmes no ensino de História, desenvolvendo um mapeamento de pesquisas de pós-graduação sobre essas temáticas, no Brasil entre 2017 e 2019. Os textos, em conjunto, contribuem no sentido de oferecerem variadas perspectivas de análises, justamente em razão das reflexões teóricas e metodológicas específicas para cada estudo. As temáticas e as abordagens apontam leituras sobre aspectos sociais relevantes para a compreensão do tempo e das sociedades em diferentes contextos, em diversas conjunturas e utilizando recursos de fontes variadas. Portanto, conforme o leitor vai perceber a partir da sua própria leitura, as temáticas desenvolvidas e problematizadas ao longo do livro são de grande diversidade temática e regional. Além de que contemplam diferentes conjunturas e usos de fontes, oferecendo um valioso quadro das produções acadêmicas nesse período de crise. Vivemos tempos em que o negacionismo da ciência e a insistência em remédios que são comprovadamente ineficazes para o combate a COVID-19 são o imperativo do cotidiano que convive com a desinformação. Pensando sobre as consequências da falta de acesso, de informação e da atuação dos Juliana Carolina da Silva; Tatiane Bartmann | 21 mecanismos de criação de mentiras, na contramão, esperamos que essa obra seja uma iniciativa de acesso há pesquisas acadêmicas. Desejamos que seja um motim para trocas de experiências, de informação e que possa ser um canal de acesso há pesquisas de diferentes campos da produção de História. Desejamos boa leitura à todes! Introdução João Camilo Grazziotin Portal No exato momento em que escrevo esta página, mais de quatrocentas e sessenta mil pessoas foram a óbito no território brasileiro em decorrência da atual pandemia do Corona Vírus. Não poderia ser possível começar uma introdução sem a devida menção ao absoluto caos que reina em nosso triste tempo. O número de quatrocentas mil mortes (e ainda contando!), antes inimaginável, representa a própria crise do nosso país em seus valores democráticos e institucionais. E os números apenas sobem, vertiginosamente, a cada dia que se passa. Diante disso, o que podemos pensar? Tal realidade nunca havia passado pela cabeça daqueles cerca de quinze estudantes de pós-graduação que, na metade de 2019, se reuniram em frente a Faculdade de Educação da UFRGS para realizar o primeiro encontro do nosso evento. A realidade, àquele momento, não era tão dura assim. Os cortes das bolsas de pósgraduação estavam começando a ser mais sólidos, e sentíamos que algo ruim se aproximava. Diante daqueles quadros, decidimos que a temática do evento seria a produção historiográfica em tempos de crise. Nunca pensávamos que a crise se acentuaria de tal forma, claramente em ascensão, em todas as direções possíveis – e que teríamos um ser absolutamente mentecapto, com uma mente singular em sua asquerosidade masculina na presidência deste país. Enquanto historiadores e historiadoras, pensamentos que o evento teve também a proposta de aprender o nosso tempo em sua própria marcha, haja vista a eterna necessidade que a disciplina tem de dialogar com a sua temporalidade. Todavia, não desejamos construir uma narrativa João Camilo Grazziotin Portal | 23 derrotista, ou mesmo pessimista, sobre a atual crise, que são sempre as duas maneiras mais fáceis de pensar as coisas. Em vez disso, desejamos compreender nosso tempo de forma afirmativa e construtiva, propondo caminhos, alternativas e esperanças, e não reforçando mais uma vez um discurso que nos deixa, além de imóveis, sem projetos. Nós quisemos, antes e apesar de tudo, propor caminhos. Bem, muita coisa mudou desde aquele primeiro encontro no meio de 2019. Mobilizamos uma rede de esforços, montamos grupos, planejamos as tarefas de cada um, montamos simpósios temáticos concernentes a diversas áreas do conhecimento historiográfico. Entramos em contato com ao Programa de Pós-graduação em História, e propomos a ideia de realizar mais uma edição do Encontro Discente. Desde o início, o PPGH/UFRGS acolheu a ideia e incentivou nossos esforços, o que foi fundamental para a realização do evento. O evento se caracterizou por ser planejado, organizado e feito totalmente pelo corpo discente do PPGH/UFRGS, que decidiram pelas inscrições serem totalmente gratuitas, de modo a possibilitar um diálogo democrático entre as mais diversas pesquisas. Somamos nosso esforços, criamos uma disposição digital para um site, hospedado na página do PPGH/UFRGS, e abrimos inscrições. Nós nunca pensávamos que teríamos mais de trezentos inscritos, de diferentes países da América, com uma amplitude de trabalhos tão diversos e ricos. Ocorrido entre os dias 01 e 04 de setembro de 2021, o evento teve onze simpósios temáticos, que abrangeram desde perspectivas decoloniais até estudos audiovisuais sobre o cinema. O propósito foi promover diálogos de pesquisa entre discentes do PPGH/UFRGS e de programas de outras instituições de ensino superior, além de acolher também graduandos/as e pesquisadores/as independentes. Pensamos ser fundamental proporcionar um evento o mais abrangente possível, sem barreiras de titulação ou grau, com o 24 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS propósito de ter a maior livre circulação do pensamento historiográfico possível, entre seus mais diversos níveis de formação. O evento ocorreu de maneira totalmente virtual, motivo pelo qual agradecemos imensamente ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, principalmente à professora Claudia Wasserman e ao Manoel do Núcleo de Comunicação, por ter gentilmente cedido suas redes sociais para a transmissão tanto da mesa de abertura quanto da mesa de encerramento. A palestra de abertura teve como proposta temática o seguinte verbo: “Racializando a historiografia”. Nela, tivemos diferentes propostas e caminhos em relação ao caráter racial que a historiografia tem, em sua branquitude originária oitocentista e também nas atuais atualizações em seu sentido. Na mesa, estiveram presentes os debatedores Marcus Vinícius de Freitas Rosa (UFRGS), Fritznel Alphonse (UFRGS) e Melina Kleinert Perussatto (Unisinos). A mediação ficou por conta de Vanessa Ames e João Camilo Portal, ambos do corpo discente da UFRGS. A mesa, disponível online no canal do youtube do IFCH – UFRGS1, possibilitou uma grande reflexão sobre o processo de produção de significados da disciplina, que incide diretamente sobre o corpo. Racializar a disciplina histórica, assim, significa ir ao encontro de uma modificação de sua estrutura epistemológica, tradicionalmente perpetuadora de desigualdades epistêmicas e teóricas. Pudemos perceber como a pretensa crítica à maior presença de negros e negras no campo historiográfico, que teria levado à racialização de uma disciplina originalmente não racializada, na verdade mostra-se como uma falácia. Por meio da brilhante fala de Marcus Vinícius Rosa, foi possível compreendermos que o enegrecimento da disciplina surge como uma crítica racial dentro da epistemologia da história. Na verdade, a historiografia tradicionalmente fora absolutamente racializada 1 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=u-Cs-X8BTcg>. Acesso em 25 de abril de 2021. João Camilo Grazziotin Portal | 25 por meio da branquitude, que produziu seu discurso historiográfica por meio de um lugar que também foi e é racializado. Não podemos dar seguimento à perpetuação da “diferença dentro da igualdade”, na medida em que uma historiografia crítica deve se propor a questionar suas bases anteriores e modificar estruturas que estão em constante movimento. Racializar a disciplina, assim como a ciência, não é apenas compreendêlas a partir do enegrecimento, mas também por estarem pautadas pela raça branca em suas origens. Esse é o motivo pelo qual os estudos a respeito da branquitude e da hegemonia branca estão em voga, na medida em que racializam um lugar de fala que se pretende universal. A historiografia foi, desde seu início, racializada e generificada, e a mesa possibilitou um grande momento de aprendizado sobre esse processo. Dessa forma, investigar o caráter racial da epistemologia histórica também significa repensar as formas pelas quais a ideia racial se manifesta na produção desse discurso, constantemente produzido, reproduzido, circulado e repensado. Com efeito, o lugar discursivo dos historiadores e historiadoras cede espaço para descermos de nosso pedestal branco, a fim de inserir, compreender e reconhecer narrativas acadêmicas e não acadêmicas de sujeitos negros ao longo da história. Ao longo da mesa, também pudemos compreender como a história negra não significa relegá-la à história da escravidão, na medida em que hoje também ressalta-se o lugar dos negros enquanto sujeitos ativos de produção de significados, vivências e liberdades. Tanto durante a escravidão quanto no período da pós-abolição, pudemos perceber as experiências reais, concretas e autênticas de reapropriação da noção de raça, criada originalmente para segregar, diminuir, hierarquizar e subjugar. Assim, foram ressaltados os usos próprios e coletivos a respeito da raça pelos negros escravizados e libertos, que se apropriaram desse lugar a partir de seus próprios interesses, projetos e resistências. 26 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Marcus Rosa ainda trouxe em sua fala a problematização a respeito da ilusória ideia de que não há autores negros ao longo dos séculos XIX e XX. O que acontece, ressaltou Marcus, foi a pouca valorização de intelectualidades negras pela cultura científica e editorial. Assim, esse lugar de presença tem sido fortemente requisitado nos cursos de graduação em história, obrigando os professores de ensino superior a buscarem bibliografias pertinentes a respeito do tema, que já é de longa data. Racializar a historiografia, disseram os debatedores, também significa questionar a pouca circulação extra-acadêmica que a historiografia branca produziu fora da academia, buscando narrativas endógenas produzidas pelos movimentos negros ao longo da história. Assim, foram ressaltadas as consequências epistemológicas da produção do racismo no conhecimento histórico, prestando atenção à relação entre a autoria histórica e sua racialização. Questionar o lugar de presença na produção historiográfica, assim, também implica refletirmos sobre a provincialização de um espaço-tempo europeu, uma cidadania que também exclui outras corporeidades, uma historiografia que nem sempre é verdadeiramente verdadeira. Em termos brasileiros, isso significa incorporar as experiências negras e indígenas como centrais no processo de construção do Estado nacional, e não apenas meras “contribuições”. Parte de um processo muito mais amplo, não basta apenas questionarmos as estruturas do conhecimento histórico, mas sobretudo atentarmos sobre o combate do racismo nas atitudes cotidianas da realidade. O pesquisador haitiano Fritznel Alphonse trouxe sua experiência para o debate, ressaltando as graves consequências que a racialização e o racismo têm no mundo cotidiano. Fritznel reforçou o argumento de Marcus a respeito da branquitude que constitui a historiografia, assim como os mais amplos níveis de presença que a branquitude tradicionalmente possuiu e ainda possui na academia. Fritznel trouxe seu João Camilo Grazziotin Portal | 27 desejo de trabalhar com um autor negro durante sua dissertação de mestrado, ao que um dos examinadores da qualificação aconselhou não usá-lo, por ser um “autor ativista”. Ora, pudemos perceber como a representatividade e um engajamento racial crítico infelizmente ainda são, muitas vezes, pormenorizados nos debates acadêmicos, negando à epistemologia histórica seu caráter racial originário. Fritznel ainda trouxe para o debate a incompletude que o racismo possui no Brasil atualmente, na medida em que ele ainda se manifesta absolutamente presente na realidade socioeconômica do país. Assim, foi ressaltada a produção do racismo na qualidade de vida e no reconhecimento social dos corpos. Fritznel trouxe as manifestações existenciais que a ideia de raça, historicamente construída, traz para a realidade, distribuída de maneira desigual entre seus diferentes participantes. A universidade, assim, dificilmente possibilita condições de reconhecimento da negritude em seu interior, haja vista a imensa maioria branca em seu corpo docente. A universidade, ressalta Fritznel, é um “lugar branco”, que também reproduz essa desigualdade epistêmica. Ele ainda trouxe uma experiência que teve num processo seletivo na cidade de Porto Alegre. Muito embora tivesse mestrado, a pessoa o colocou para uma vaga que não havia necessidade de leitura alguma. Quanto Fritznel questionou o motivo pelo qual ele seria adequado para aquela vaga de trabalho, o recrutador respondeu: “precisamos de braço”. Assim, a constituição de lugares negros e lugares brancos encontra eco na própria estrutura de trabalho brasileira e imigrante, e inclusive nos diferentes efeitos que a formação de nível superior proporciona dependendo da cor dos corpos e de suas origens territoriais. Em termos de poder, foi possível ver como a raça produz um lugar de subelternidade. A fala da debatedora Melina Perussatto também trouxe essa dimensão da racialização na historiografia brasileira, que reproduz uma desigualdade também entre a tradição oral e a tradição 28 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS escrita. Melina, a partir das relações étnico-raciais, ressaltou importantes caminhos para a resolução desses problemáticas na sociedade brasileira. Já a mesa de encerramento2, ocorrida a 04 de setembro de 2020, teve como tema “Escrever e viver a tragédia: mídia e democracia”. Os convidados foram Luiz Alberto Grijó (UFRGS), Luis Carlos Martins (PUCRS) e Irinéia Franco (UFAL). O debatedor foi Douglas Souza Angeli (UEMG), e os membros da comissão organizadora responsáveis pela abertura dos trabalhos foram Gabriel Brandão e Tatiane Bartmann, ambos discentes do PPGH/UFRGS. O tema abordado na mesa foi a sociedade brasileira contemporânea, a partir de suas atuais expressões midiáticas, religiosas e políticas. Consegui perceber como o tema central foi tentar perceber como a mídia brasileira, principalmente após a redemocratização, construiu certa hegemonia, agregando certos elementos cruciais para nossa história. O professor Grijó trouxe à tona a articulação política proposta pela mídia brasileira, sobretudo a ascensão da direita a partir de 2016. A criação de um espaço de crise também fora fomentado a partir dos veículos de comunicação, nos dizem os palestrantes. Irinéia, enquanto pesquisadora pertencente à história das religiões, trouxe à tona como a religião e a mídia atualmente estão interligadas no espaço sociodemográfico brasileiro, na medida em que as religiões nutrem-se também das redes sociais e grupos particulares de informação. Já o professor Luis Martins atentou para o fenômeno da chamada “pós-verdade” na realidade brasileira. Considerado por Martins como curioso, o fenômeno faz com que o valor de verdade dado a um discurso não seja estabelecido pelo grau empírico de conhecimento agregado, mas sim pela proximidade e pelo afeto que residem no interlocutor daquele discurso. Não podemos desvincular tal 2 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bd-UTgBrqu4>. Acesso em 20 de maio de 2021. João Camilo Grazziotin Portal | 29 discurso da forte onde anti-intelectualista no espaço brasileiro, onde reina uma grande desconfiança em relação aos cientistas e estudiosos. Grijó chamou bastante atenção para a comunicação pública na atualidade, e deu o exemplo que mais nos concerne: a comunicação acadêmica. Mesmo que as lives tenham possibilitado um espaço diferente, Grijó ressalta que, na maioria das lives acadêmicas, somos nós, falando o que nós queremos ouvir, e aplaudindo a nós mesmos. Há muito mais a que se pensar a respeito de uma maior abrangência da universidade no cotidiano dos cidadãos brasileiros, assim como do entendimento que temos de uma história pública. Trabalhar, criar e produzir uma história extramuros da academia também é levar a cabo o uso público da história, e não apenas sua circulação em eventos virtuais. O professor Martins ainda chamou atenção para o uso peculiar que o termo “narrativa” possui atualmente na mídia, que o usa sempre associada à mentira. Assim, a mesa de encerramento seguiu um formato bem livre, apontando caminhos para os usos da história atualmente, assim como uma análise sobre nosso tempo, politicamente difícil e em crise. Da parte da comissão organizadora, ficamos muito contentes com a realização do evento. Conseguimos perceber pesquisas de excelente qualidade, fundamentadas, desenvolvidas, ricas em suas análises. Pudemos perceber desde estudos sobre a Semana Santa no interior de Minas Gerais até a memória urbana de Fortaleza. Por incentivo do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tivemos a ideia de organizar um livro com os melhores trabalhos apresentados no evento. O que o leitor tem à sua disposição, aqui neste livro, é uma coletânea com esses trabalhos selecionados, três capítulos por cada eixo temático. O que antes fora visto como um problema – o evento virtual, e não presencial – acabou demonstrando uma face muito positiva e diversa da 30 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS historiografia brasileira. Não vimos apenas pesquisas da região sul – o que o evento presencial provavelmente teria produzido –, mas de todo o Brasil. Vimos a historiografia contemporânea brasileira em seus diferentes sotaques, cores e temperaturas. O frio gaúcho dos organizadores do evento e coordenadores de ST’s, com suas toucas, blusões de lã e cachecóis, foi contrastado com participantes nordestinos de manga curta, que pesquisavam temas de sua cultura local. Nesse sentido, a virtualização do evento também significou a sua nacionalização; e a gratuidade, sua popularização. Desse modo, não podemos deixar de parabenizar a todos os apresentadores de trabalho pelos seus aprendizados, além de a todas as instituições que ajudaram a divulgar o IV Encontro Discente de História da UFRGS. Nós nunca teríamos tido o alcance que tivemos sem a imensa gentileza de diversos Departamentos de História ao longo do Brasil inteiro. A todos esses, nossos mais sinceros agradecimentos. Por fim, agradecemos imensamente ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, principalmente ao seu coordenador Fábio Kühn, por todo o apoio necessário para a realização do evento, assim como o incentivo financeiro para a publicação deste livro. Também, nosso agradecimento ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, pela disponibilização de seus canais de divulgação e transmissão. Ficamos extremamente felizes com tudo aquilo que fora produzido, pensado e discutido ao longo do evento. Um evento feito de pessoas e para pessoas, na tentativa de construir um verbo compartilhado entre seus participantes. Que o leitor, aqui, possa minimamente desfrutar desse espaço de experiência. Boa leitura a todos e todas! Porto Alegre, junho de 2021 História Social do Trabalho Capítulo I Processos trabalhistas e processos criminais como fonte histórica: um balanço historiográfico dos últimos anos Tatiane Bartmann 1 Bárbara Beatriz Silveira Darski 2 Introdução O presente artigo possui o objetivo de fazer um balanço historiográfico sobre as últimas pesquisas desenvolvidas na área da História Social do Trabalho e que utilizam os processos judiciais como fonte histórica, especialmente, os processos trabalhistas e os processos criminais. A intenção é compreender as temáticas abordadas, os períodos históricos privilegiados, bem como, os recortes teórico-metodológicos nas últimas pesquisas de doutorado desenvolvidas nas diversas regiões do Brasil que utilizaram, entre outras, as fontes processuais. O objetivo principal é constatar as possibilidades e os caminhos de pesquisa que estão se abrindo a partir dessas análises documentais, contribuindo assim, com os pesquisadores que se interessam pela temática do trabalho e pretendem se situar brevemente na historiografia produzida mais recentemente. Foram, então, selecionadas as teses defendidas a partir do ano de 2010 até 2019, que estavam disponíveis no catálogo de teses e dissertações da Capes, plataforma sucupira. Em uma busca inicial, se pode perceber a grande quantidade de trabalhos desenvolvidos a partir dos processos trabalhistas e processos criminais, nos últimos anos. Por esse motivo, optou-se pelo recorte que abordaria apenas o conjunto de teses defendidas 1 Doutoranda – UFRGS; tati_bartmann@hotmail.com 2 Mestranda – UFRGS; darski.barbara@gmail.com 34 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS nos programas de pós-graduação em História, mais especificamente, aquelas que dialogavam com a temática dos mundos do trabalho. Enquanto era feito esse recorte, optava-se por abranger as teses de todos os programas de pós-graduação do Brasil a fim de se ter também uma ideia geral das regiões que mais se dedicam a essa temática. A busca ocorreu através de palavras-chaves, como: “processos trabalhistas”, “ações trabalhistas”, “Justiça do Trabalho”, “processos crime”, “processos criminais”, “crime trabalho”, “autos criminais” e “fontes judiciais”. Tendo em vista a grande quantidade numérica de trabalhos, alguns filtros foram aplicados e verificou-se um a um se correspondiam aos recortes previamente estipulados. Ao final do levantamento de teses, chegou-se ao número de vinte e uma teses. Ao longo do texto, esses trabalhos serão tratados em dois momentos distintos, primeiro serão analisadas as teses que utilizam os processos trabalhistas e, posteriormente, aquelas que utilizam os processos criminais como fonte histórica. Ao final, serão feitas algumas considerações comparativas sobre as temáticas e abordagens das obras. Abordagens e perspectivas a partir dos processos trabalhistas A partir das teses levantadas, se quer compreender a utilização dos processos trabalhistas como fonte histórica, a fim de perceber as contribuições dos historiadores nos últimos anos e as possibilidades de pesquisas para uma melhor compreensão sobre o trabalho e das/os trabalhadoras/es. Através de pesquisa realizada na base de dados da Capes, com a utilização das palavras chaves “processos trabalhistas”, “ações trabalhistas” e “Justiça do Trabalho”, foi possível encontrar doze teses de doutorado defendidas nos últimos 10 anos, ou seja, desde 2010 até 2019, incluindo estes. Os trabalhos foram defendidos em diferentes instituições do Brasil, como: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 35 (UFRGS), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O ponto em comum entre esses trabalhos é o fato de todos utilizarem os processos trabalhistas como fonte histórica, apesar de não ser a única fonte consultada. Nessas pesquisas, são feitos cruzamentos de fontes, além dos processos trabalhistas, são utilizados jornais, decretos, entrevistas, entre outros. As teses selecionadas para essa breve análise da historiografia recente sobre os mundos do trabalho, são: Tabela 1. Teses - processos trabalhistas como fonte histórica (2010-2019) Ano Autor Título Instituição 2012 SPERANZA, Clarice Cavando direitos : as leis trabalhistas e os conflitos UFRGS Gontarski entre trabalhadores e patrões nas minas do Rio REZENDE, Vinicius Tempo, trabalho e conflito social no complexo Donizete de. coureiro-calçadista de Franca- SP (1950-1980) Grande do Sul nos anos 40 e 50' 2012 2012 2014 SILVA, Maria Sângela de A Justiça do Trabalho e os Trabalhadores em Sousa Santos Fortaleza (1946-1964) COSTA, Francisco Pereira Para a chuva não beber o leite. Soldados da da borracha: imigração, trabalho e justiças na SILVA, Nauber Gavski da O "mínimo" em disputa : salário mínimo, política, UNICAMP UNICAMP USP Amazônia, 1940-1945 2014 UFRGS alimentação e gênero na cidade de Porto Alegre (1940 - 1968) 2015 2015 SOUZA, Edinaldo Antônio Trabalho, Política e Cidadania: Trabalhadores, Oliveira Sindicatos e Luta por Direiros (Bahia, 1945-1950) SILVA, Claudiane Torres O Tribunal Regional do Trabalho na cidade do Rio da de Janeiro durante da ditadura civil-militar (1964- DROPPA, Alisson Direitos Trabalhistas: Legislação, Justiça do UFBA FGV 1979) 2015 UNICAMP Trabalho e Trabalhadores no Rio Grande do Sul (1958-1964) 2015 LIMA, Cleidimar Trabalho, Direitos Coletivos e os Princípios da Rodrigues de Souza Liberdade e da Autonomia Sindicais: Entre o "Justo e o Injusto" nas Políticas, nas Leis e nos Tribunais Trabalhistas UFMG 36 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS 2016 TAVARES, Marcelo Goes Do Tecer da Memória ao Tecido da História: UFPE Operários, trabalho e política na indústria têxtil em Fernão Velho (Maceió, AL, 1943-1961) 2016 SIMOES, Julia da Rosa Na pauta da lei: trabalho, organização sindical e UFRGS luta por direitos entre músicos porto-alegrenses (1934-1963) 2017 MEDEIROS, Adriana de Histórias de Trabalhadores Nortistas no Carvalho Norte/Noroeste do Paraná (1940-1970) UFU Como já foi dito, todas essas teses utilizam os processos trabalhistas, tanto individuais quanto coletivos, para compreender as disputas entre trabalhadoras/es e seus respectivos patrões. Nesse sentido, todas as pesquisas acima apontam para o importante papel desempenhado pela Justiça do Trabalho como mediadora dessas relações. Encontramos assim, alguns pontos comuns na abordagem feita pelos autores, entre eles, a interpretação das/os trabalhadoras/es como sujeitos dotados de certa autonomia e capacidade de reivindicar suas demandas na Justiça do Trabalho seja através de mobilizações coletivas sindicais, seja iniciando reclamações individuais nas Juntas de Conciliação e Julgamento, primeira instância da JT. Assim, o chamado “mito da outorga” parece distante das interpretações sobre os mundos do trabalho, pelo menos, nas teses levantadas nos últimos dez anos. Por sua vez, o enfoque de pesquisa difere nas teses apontadas e podese dividir em dois grupos temáticos de acordo com a problemática de pesquisa. O primeiro grupo temático, parte da análise de certas categorias de trabalhadoras/es ou setores produtivos, entre esses estão: Speranza (mineiros de carvão/RS); Rezende (setor coureiro-calçadista/SP); Costa (seringueiros/AM); Tavares (têxteis/AL); Simões (músicos/RS); Medeiros (trabalhadores nortistas/PR). O segundo grupo temático de teses centraliza a análise de pesquisa na atuação da Justiça do Trabalho e nas disputas em torno de alguns pontos específicos da legislação trabalhista, dialogando também com a teoria do direito. Diferentemente do primeiro Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 37 grupo, essas teses abordam a classe dos trabalhadores/as de maneira mais ampla, sem definir e focar em uma única categoria. Cito: Mari Sângela Silva (utilização da JT pelos trabalhadores/CE); Nauber Silva (disputas em torno do salário mínimo/RS); Souza (questão da cidadania operária/BA); Claudiane Silva (principais questões trabalhistas nos processos coletivos/RJ); Droppa (funcionamento do poder normativo/RS); Lima (trabalhadores e proteção sindical/CE). Como se pode perceber, a análise do trabalho urbano prevalece entre as temáticas desenvolvidas nos últimos anos. Entre as doze teses levantadas, apenas duas tratam sobre o trabalho rural. São elas: a pesquisa de Francisco Pereira da Costa intitulada “Para a chuva não beber o leite. Soldados da borracha: imigração, trabalho e justiças na Amazônia, 19401945” onde o autor analisa principalmente as dificuldades de acesso dos seringueiros à Justiça do Trabalho. Sua pesquisa denuncia as péssimas situações às quais os seringueiros estavam expostos, sem leis reguladoras e com apenas um contrato de fachada que na prática não garantia nenhum tipo de direito ou benefício aos seringueiros, suas condições de trabalho se aproximavam a semi-escravidão, conforme o autor. A outra tese que também aborda questões sobre o trabalho rural é de Adriana de Carvalho Medeiros e intitula-se “Histórias de Trabalhadores Nortistas no Norte/Noroeste do Paraná (1940-1970)”. Em sua análise, a autora busca reconstruir as histórias e experiências dos trabalhadores migrantes, vindos de outras regiões do Brasil, como o nordeste, os quais chegaram na região norte/noroeste do Paraná e fizeram o trabalho pesado, os piores serviços de menor remuneração. Um ponto em comum presente nesses dois trabalhos, é o forte envolvimento pessoal dos pesquisadores com a história da região, apesar das dificuldades de acesso às fontes escritas, entre elas os processos trabalhistas, fica claro que reconstruir a história desses sujeitos é também visibilizar e compreender 38 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS o seu passado, as suas histórias. É interessante atentar que essas duas pesquisas foram desenvolvidas em instituições da região sudeste, Costa estava vinculado à Universidade de São Paulo (USP) e Medeiros à Universidade Federal de Uberlândia (UFU), contrariando, possivelmente, as expectativas. Com isso, se pode inferir que o trabalho rural está ganhando novos olhares e compartilhando resultados com pesquisas voltadas ao trabalho urbano industrial, as quais ainda são maioria quando se trata da utilização dos processos trabalhistas como fonte histórica. Sobre o recorte temporal, entre as teses analisadas, sete partem da década de 1940 e, de modo geral, seus esforços chegam até a década de 1980. O fato de iniciarem na década de 1940 está relacionado ao período de instalação da Justiça do Trabalho no Brasil. Embora a JT já estivesse prevista na carta constitucional de 1934, a qual teve pouco tempo de duração, a proposta não saiu do papel. Debates eram travados em torno dos fundamentos e regulamentações da JT, um dos mais significativos debates envolveu Oliveira Viana e Waldemar Ferreira, na década de 1930. Com a outorga da Constituição de 10 de novembro de 1937, a Polaca, a criação da JT era novamente prevista. Mas sua efetiva instalação ocorreu somente no ano de 1941, vinculada ao poder executivo. Outra consideração relevante sobre o recorte temporal priorizado nessas pesquisas, é o fato de que apenas duas obras abordam especificamente os períodos ditatoriais da história do Brasil. Uma delas é do autor, já citado, Costa que trata sobre as dificuldades que os seringueiros da Amazônia tinham para acessar a Justiça do Trabalho no contexto do Estado Novo de Getúlio Vargas. A outra pesquisa é de Claudiane Torres da Silva que analisou as ações trabalhistas impetradas pelos sindicatos na cidade do Rio de Janeiro no período da ditadura civil-militar. Outras quatro teses acima levantadas, tratam sobre as questões trabalhistas em períodos ditos democráticos da história do nosso país, são Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 39 contextos que se estendem desde 1945 até 1964 e 1980 até 2003. No entanto, a maioria das pesquisas, isto é, seis teses possuem abordagens sobre os mundos do trabalho em períodos históricos que transitam entre contextos autoritários e democráticos, o que contribui para a compreensão das possíveis lutas das/os trabalhadoras/es em situações de extrema repressão e dos entraves enfrentados por elas/es mesmo nos períodos ditos democráticos. Clarice Gontaski Speranza, buscando compreender o processo de disputas no campo jurídico entre trabalhadores e patrões das minas de carvão do Rio Grande do Sul, nos anos 40 e 50, percebeu uma mudança na forma de reivindicar direitos entre o período ditatorial varguista e o momento de reabertura no Governo Dutra. Com o fim do Estado Novo, a organização de greves voltou a cena diante de um certo descrédito, uma descrença dos trabalhadores sobre a atuação da JT em benefício dos seus interesses. Conforme Speranza, “parecia claro aos mineiros em 1946 o caráter ‘infrutífero’ das reclamatórias trabalhistas” (SPERANZA, 2012, p. 255). E nesse sentido, os processos trabalhistas diminuíram e as greves aumentaram. Dessa forma, foram brevemente apresentadas as teses defendidas nos últimos anos, suas temáticas e abordagens sobre o trabalho e os trabalhadores a partir da análise dos processos trabalhistas, entre outras fontes utilizadas. Na sequência, serão feitas algumas considerações sobre as pesquisas baseadas nos processos criminais como fonte da história social do trabalho. Abordagens e perspectivas a partir dos processos criminais Dentro do campo que denominamos História Social do Trabalho, muitas são as pesquisas que utilizam como fontes os processos criminais ou os vastos documentos que compõem os fundos policiais e judiciários, 40 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS documentos esses que se espalham pelos mais diversos arquivos dos estados brasileiros e internacionais. Articular pesquisas de história do trabalho com história do crime, não é uma novidade. Desde a década de 1980, trabalhos como os de Fausto (1984), Chalhoub (1986) e Machado (1987) começam a utilizar como fontes de pesquisa os processos criminais articulando temáticas que acabariam por ser incorporadas pelo campo. Apesar desta metodologia ter sido bem acolhida e aceita dentro da área, sempre é importante fazermos um balanço do que é produzido. Questões como: como as pesquisas mais recentes estão se articulando para análise desse corpus documental? e mais ainda, como esse corpus está sendo utilizado dentro do campo da história do trabalho? acabaram por surgir e compreendemos que revisitar estas pesquisas é importante para articularmos pesquisas futuras. Pensando em colaborar com as respostas para estas dúvidas, objetiva-se fazer um levantamento das teses produzidas no Brasil nos últimos dez anos e que estejam alocadas dentro do campo que denominamos História Social do Trabalho, como já citado anteriormente, mas que utilizem, fundamentalmente, documentos provenientes dos fundos criminais, policiais e judiciários, analisando brevemente como tais pesquisas se articulam ou não, em esfera global. Foi acessado, então, o repositório virtual denominado “plataforma sucupira” hospedado dentro do sítio da CAPES e que possui o acervo de todas as teses e dissertações produzidas no país nos últimos anos. No campo de busca, procurou-se por palavras-chave como “processos crime”, “processos criminais”, “crime trabalho”, “autos criminais” e “fontes judiciais”. O volume numérico dos resultados foi extremo, no entanto, utilizando um filtro mais específico ao que foi proposto analisar neste artigo, destacou-se apenas as teses produzidas nos últimos dez anos nos Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 41 Programas de Pós- Graduação em História e com sua ênfase voltada para a História Social. Se em um primeiro momento nos chamou a atenção o volume de pesquisas que apareceram ao digitarmos as palavras-chave na busca ampla, na segunda fase do levantamento das teses, nos chamou a atenção a pouca quantidade de produção atual que se encaixavam nos moldes do recorte proposto. Apenas nove teses foram selecionadas ao final da busca, os números preliminares dão conta de que a grande parte da produção acadêmica sobre a temática, hoje, se concentra dentro das dissertações produzidas e não das teses. A partir deste levantamento, é possível observar também que existe uma predominância do eixo Sudeste e Sul do país na produção de trabalhos com estas características. Dentro do eixo Sudeste e Sul, se destacam universidades como: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Apesar do destaque da região sudeste, a região nordeste também aparece com trabalhos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal do Ceará (UFC). É interessante mencionar, que as regiões sudeste e sul desde os anos 1980 se destacam na produção de pesquisas sobre História do Crime e História do Trabalho, esta tendência parece não ter sido superada, no entanto, podemos constatar que existe um alargamento sobre os locais pesquisados além de um alargamento das pesquisas feitas sobre as relações de trabalho e os sujeitos inseridos no contexto do trabalho no campo. Se, anteriormente as pesquisas voltavam seus esforços para os trabalhadores urbanos e suas organizações, atualmente, muitas são as pesquisas que envolvem as dinâmicas dos mundos do trabalho rural. 42 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Quando analisamos o recorte temporal das teses desenvolvidas no último decênio com a temática anteriormente citada, percebemos que existe um alargamento temporal, onde os sujeitos escravizados também são levados em consideração enquanto trabalhadores. Apesar da lógica ser diferente da dos trabalhadores livres, as dinâmicas sócio-históricas são muito parecidas, seguindo uma tendência de revisitar os recortes temporais que anteriormente eram consenso nos mundos do trabalho, este esforço se deve sobretudo pelos trabalhos desempenhados por pesquisadores do pós-abolição. Tabela 2. Teses – fontes criminais, policiais ou judiciárias (2010-2019) Ano Autor Título Instituição 2014 JUNIOR, Darlan De Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, UFC Oliveira Reis trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX SILVA, Roger Costa da Os Crimes e os Direitos: lutas escravas em Pelotas/RS 2014 UFRGS (1845-1880) 2014 SANTOS, Maria Emilia Os significados do 13 de maio: a abolição e o imediato Vasconcelos dos pós-abolição para os trabalhadores dos engenhos da UNICAMP zona da mata sul de Pernambuco (1884-1893) 2015 2015 CARVALHO, Philipe Trabalhadores, associativismo e política no sul da Murillo Santana de Bahia (Ilhéus e Itabuna, 1918-1934) PANTOJA, Leticia Souto Trilhos, veios e caminhos da cotidianeidade das UFBA PUC/SP camadas populares de Belém: 1918-1939 2015 SANTOS, Carlos Meneses Trabalhadores em movimento: horizontes abertos em de Sousa Marechal Cândido Rondon-PR Segunda metade do LEITE, Valeria de Jesus Estado, movimentos sociais e as teias históricas da UFU século XX e início do século XXI 2016 UFU sustentabilidade no desenvolvimento do norte de Minas nos anos 1990 2016 2017 MIYASAKA, Cristiane Os trabalhadores e a Cidade: A Experiência dos Regina Suburbanos Cariocas (1890-1920) SOUZA, Flavia Fernandes CRIADOS, ESCRAVOS E EMPREGADOS: O serviço de doméstico e seus trabalhadores na construção da UNICAMP UFF modernidade brasileira (cidade do Rio de Janeiro, 1850-1920) Além das linhas gerais tratadas até aqui, sobre o conteúdo específico destas teses, podemos observar que múltiplos são os assuntos e as formas Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 43 de abordagem, mesmo que todos pertençam a uma grande área, a da história social do trabalho. No intuito de enriquecer o debate, falaremos brevemente sobre o conteúdo de cada uma delas, agrupadas por proximidade temporal. Entre os trabalhos desenvolvidos sobre o período anterior a abolição e nos anos que imediatamente se seguem, destacam-se as pesquisas de Junior (2014), que trata sobre as relações estabelecidas entre senhores de escravos e trabalhadores ainda cativos na segunda metade do século XIX, seu recorte espacial é a então Província do Ceará, com foco na região do Cariri, local predominantemente rural. O autor aponta que seus principais objetivos são: analisar as contradições resultantes da desigualdade social do período, bem como as práticas de controle, os conflitos que essas práticas geravam e as resistências geradas nesse processo. O trabalho de Junior (2014), se assemelha quanto ao seu recorte temporal ao trabalho de Silva (2014). Apesar de Silva (2014) tratar sobre um recorte espacial um tanto quanto distante, já que sua pesquisa se desenvolve sobre a cidade de Pelotas (RS), ele também analisa a segunda metade do século XIX, colocando os cativos enquanto trabalhadores e investiga sobre como os assassinatos de capatazes nas charqueadas3 tinham relação com a luta pelos direitos dos cativos, numa perspectiva de resistência a opressão contra os castigos físicos sofridos. Pensando também nas linhas sociais, suas continuidades e permanências no contexto do pós-abolição, Santos (2014), investiga quais eram as experiências sociais que trabalhadores dos engenhos da Zona da Mata Sul de Pernambuco sofreram ao longo do processo de abolição, principalmente no que diz respeito aos conflitos e permanências ocorridas entre senhores de engenho e os novos trabalhadores livres. Assim, os 3 Fazendas produtoras de charque. Foi o primeiro grande produto de exportação produzido pelo estado do Rio Grande do Sul. 44 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS trabalhos até aqui explorados se assemelham principalmente pelos seus recortes temporais e por serem desenvolvidos em localidades onde o trabalho no campo era predominante. Sobre o mesmo período temporal, mas com enfoque nas regiões urbanas, destacamos os trabalhos de Souza (2017) e Miyasaka (2016). Chama a atenção que ambas as autoras analisam a cidade do Rio de Janeiro e tem seu ano final delimitado como os anos 1920. A primeira analisa as dinâmicas sociais que envolvem a categoria dos criados domésticos e a segunda analisa a formação dos subúrbios cariocas, focando seu estudo nos primeiros sujeitos que habitaram essas localidades. Apesar de não poder afirmar, acredita-se que os sujeitos estudados por Souza (2017) e por Miyasaka (2016) deveriam se cruzar em algum momento, sendo quem sabe, até os mesmos. Pensando em um segundo grupo de trabalhos, citamos as teses de Pantoja (2015) e Carvalho (2015), ambas analisam o período da primeira metade do século XX. A primeira, foca seus esforços em discutir sobre as sociabilidades de trabalhadores urbanos pobres, em um período em que a capital do Pará, Belém, estava se tornando uma metrópole por conta da expansão da exploração da borracha, produto exportado e altamente lucrativo. Carvalho (2015), por sua vez, analisou o associativismo operário e suas tentativas de inserção política nas cidades de Ilhéus e Itabuna, na Bahia. O terceiro e último grupo de teses, é o que trata do período do final do século XX e início do XXI. Nos trabalhos de Santos (2015) e Leite (2016), vemos a tentativa de análise das dinâmicas sociais dos trabalhadores urbanos de duas regiões diferentes. O primeiro foca suas análises na cidade de Marechal Cândido Rondon, Paraná, enquanto a segunda autora amplia seu enfoque para toda a região do norte de Minas Gerais. Ambos se inserem no período final da Ditadura Militar, passando pelos primeiros Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 45 anos da redemocratização do país, períodos esses, sabidamente turbulentos. Conclusão O balanço de teses, brevemente apresentado, nos possibilitou analisar como as dinâmicas dos mundos do trabalho vem sendo discutidas e compreendidas dentro do campo historiográfico no qual se inserem. Dessa forma, pudemos perceber que os recortes temporais foram ampliados, abrindo margem para questionamentos de antigos paradigmas, já parcialmente superados. É o caso do “paradigma da ausência”, segundo o qual se compreendia que a escravidão havia legado ausência de cultura política ao povo brasileiro. Autores como Chalhoub e Silva (2009) e Nascimento (2016), além de críticos a essa ideia, colocaram em pauta a divisão existente entre os pesquisadores cujos objetos de pesquisas eram as lutas de trabalhadores/as pobres e aqueles que pesquisavam a escravidão. Reconhecendo o muro de Berlim historiográfico e o ainda pequeno (embora crescente) número de trabalhos que abordam as experiências de trabalhadores/as negros/as, suas instituições e movimentos, se quer apontar novas possibilidades de pesquisas e leituras das fontes processuais. Essa separação entre temáticas sobre o trabalho livre e o trabalho escravo vem sendo superada, em parte, a partir de questionamentos sobre os significados da liberdade para os trabalhadores ditos “livres”, mas superexplorados, tanto no período escravista onde conviviam trabalhadores livres e escravizados, quanto no contexto do pós-abolição. Pesquisas que fazem esse tipo de diálogo entre o trabalho livre e o escravo, utilizam fontes como os processos criminais. É possível observar que as fontes criminais, em contraponto às fontes da Justiça do Trabalho, possibilitam a abordagem de um período temporal muito mais longo. A 46 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS recente criação da JT, em comparação com a Justiça Comum, levou os pesquisadores a análises que se iniciam em período muito mais recente, a partir da década de 1930. Outro ponto importante que costuma distinguir as pesquisas nos processos crimes e trabalhistas, é que os primeiros apresentam explicitamente a cor dos sujeitos envolvidos. Já, os processos trabalhistas não trazem esse tipo de informação. No entanto, acreditamos que a ausência dessa informação, não deve impedir a compreensão das opressões com relação a raça, pelo contrário, o questionamento pode partir dessa ocultação e buscar entender “porque a cor não consta entre as informações nas ações trabalhistas”. Conceitos importantes como do “trabalho escravo contemporâneo” são utilizados para caracterizar as péssimas condições de alguns sujeitos, os quais, como vimos, não tinham acesso a Justiça do Trabalho, conforme Costa (2014). Nesse sentido, é interessante compreender e problematizar sobre “quais trabalhadores/as tiveram acesso e reclamaram na JT”. As diferentes formas de opressões, entre elas a de raça, pode e deve ser problematizada nas pesquisas que utilizam fontes processuais fruto da JT. Se os recortes temporais estão sendo ampliados e novos paradigmas aos poucos ressignificados, percebemos também, que é crescente o número de pesquisas que analisam os mundos do trabalho com foco nas lutas e nos sujeitos que habitam o trabalho rural. Apesar de os trabalhadores urbanos continuarem com destaque na cena historiográfica, é notável o movimento de avanço em direção aos trabalhadores rurais. Contudo, este artigo teve como objetivo principal fazer um balanço das produções mais recentes sobre a História Social do Trabalho, que tivessem como base fontes criminais e trabalhistas, não necessariamente juntas, apesar de compreendermos o grande potencial de pesquisas que se utilizam desses dois tipos documentais, tendo em vista, as riquezas das Tatiane Bartmann; Bárbara Beatriz Silveira Darski | 47 fontes. Acreditamos que para além das problematizações até aqui explicitadas, este trabalho pode contribuir de forma geral com jovens pesquisadores de modo a criar uma intersecção entre o que já foi produzido e o que ainda está sendo gestado dentro dos programas de pósgraduação em História das diversas universidades do país. Referências CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. Trabalhadores, associativismo e política no sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna, 1918-1934). 2015. 297f. 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É muito minucioso, é muito cansativo e o homem não tem essa capacidade de absorção do trabalho como a mulher tem. Fazer sempre exatamente a mesma coisa, de modo repetitivo. Acredito que a mulher tem... é mais bem armada para isso (ALMEIDA, 1987, p. 8). O relato descrito acima sobre o trabalho têxtil não representa apenas a opinião individual do operário Aureo Almeida Nunes, mas corresponde aos sensos culturais e morais da época por mim estudada: 1910 a 1968. A compreensão de que o trabalho têxtil é naturalmente uma atividade feminina tem como resultado os elevados números de trabalhadoras que compunham a mão de obra desse setor, que, como nos apontam Perrot (2008) e Saffioti (2013), ocorreu de forma internacional. Neste capítulo, irei realizar uma discussão sobre como a divisão sexual do trabalho se expressou no interior da Fábrica Rheingantz e como a disciplina fabril estava ligada aos sensos de feminilidade da época. Para isso, utilizarei como fonte os cadernos do setor administrativo da empresa e entrevistas orais realizadas a partir da metodologia da História Oral. Essa é uma tentativa de aproximação entre os estudos de gênero e a história social do trabalho, acreditando que o encontro entre esses campos de 1 Doutoranda - PPGH/UFRGS; historiamatoso@gmail.com 52 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS estudos tem proporcionado um olhar mais atento e complexo sobre as experiências da classe trabalhadora e sua história. Em 1873, instalou-se na cidade de Rio Grande (RS) a primeira empresa têxtil do estado, sob o nome de Fábrica Rheingantz Nacional de Tecidos e Panos de Rheingantz e Vater. Os proprietários, Carlo Guilherme Rheingantz, Miguel Tito de Sá e Hermann Vater, ao observarem as transformações que estavam ocorrendo na Alemanha e Inglaterra, resolveram importar para o Brasil a indústria têxtil, colaborando com a industrialização e urbanização de Rio Grande (RS) (FERREIRA, 2013). Em 1879, a Fábrica Rheingantz contava com um número de 900 funcionárias e 100 costureiras que trabalhavam em suas residências, constituindo-se como uma das principais indústrias têxteis do estado (LONER, 1999). De Acordo com Britto (2011), em 1907, a empresa compunha as 100 maiores indústrias têxteis do país, contabilizando capital de 5.000 contos de réis, 1.008 trabalhadoras(es) e valor de produção em 1710 contos de réis. Após a Fábrica Rheingantz dar início ao processo de industrialização da localidade, outras empresas se instalaram na região, como Leal, Santos & Companhia, empresa de conservas alimentícias, Fábrica Pook & Cia, de charutos e a Companhia de Fiação e Tecelagem, fundada em 1906 (MARTINS; PIMENTA, 2004). As indústrias que se estabeleceram no município de Rio Grande eram de grande porte, de expressivo capital financeiro internacional e nacional e de ramos produtivos pouco diversificados. Esse cenário se diferencia de Porto Alegre, pois nesta se estabeleceram indústrias de menor porte e ramos produtivos diversificados (LONER, 1999). Compreendendo o único porto marítimo do estado, Rio Grande foi um importante polo industrial do Brasil e palco de intensas lutas operárias, ficando conhecida como “a cidade vermelha” (SEGUNDO, 2012). A Caroline Duarte Matoso | 53 primeira greve realizada no município foi orquestrada por trabalhadoras(es) da fábrica Rheingantz, indicando seu pioneirismo não só no processo industrial, mas também da sua mão de obra na luta por melhores condições de trabalho. Conforme Loner escreveu sobre a greve, “o movimento na Rheingantz parou totalmente a fábrica, incluindo mulheres e crianças, durante uma semana” (2001, p. 303). Em 1884, construíram-se residências para o operariado, ao lado das instalações fabris, formando, assim, a vila operária Rheingantz, localizada hoje na atual avenida Rheingantz da cidade de Rio Grande (RS). Além das casas de moradia, havia na vila operária creche e escola infantil, salão de festas, biblioteca, corpo de bombeiros e um clube social. O município de Rio Grande foi polo de atração para imigrantes de diferentes nacionalidades da Europa, que viam na região uma oportunidade de desenvolver suas vidas laborais. O empresário da fábrica Rheingantz, Carlos Guilherme Rheingantz, de origem alemã, procurava empregar como mão de obra especializada estrangeiros europeus, de preferência alemães. Havia uma segregação ocupacional baseada na nacionalidade e sexo do(a) trabalhador(a). Os cargos de mestre e contramestre eram ocupados, sobretudo, por trabalhadores imigrantes. Essa foi uma prática recorrente nas indústrias brasileiras, expressa na política de incentivos a Europeus para virem trabalhar no Brasil, no início da industrialização do País. Se pensarmos em termos de divisão sexual do trabalho, as operárias estavam em maior número na tecelagem, ocupação de menor prestígio social e remuneração. Conforme os cadernos do setor administrativo apontam, os trabalhos de preparação da lã bruta eram exercidos, exclusivamente, por trabalhadores homens. Importante ressaltar que esta é uma atividade que requer força muscular, sendo próxima aos trabalhos realizados no meio rural. Já as atividades de fiação e tecelagem eram 54 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS desempenhadas por trabalhadoras e trabalhadores menores de idade. Os cargos de administração e supervisão eram ocupados, sobretudo, por trabalhadores do sexo masculino. Esse é um fenômeno que ficou presente na memória das(os) operárias(os) da Fábrica Rheingantz, na qual, para estes, “para trabalhar em máquinas era só mulher”. Percebe-se que o senso moral de que as mulheres executam trabalhos mecânicos, repetitivos e monótonos esteve presente no imaginário operário e dos empresários da Rheingantz, em um processo de internalização da cultura dominante (MATOSO, 2018). Conforme o operário Dario Camposilvan: Eu entrei para a União Fabril em 11 de 1949. A minha atividade consistia em manutenção e consertos das máquinas da tecelagem. Vim da Itália. Vim direto para trabalhar na Fábrica Rheingantz. Já tinha um cargo como contramestre [...]. Tinha 20 contramestres. Cada contramestre assumia 22 máquinas. Quem trabalhava nas máquinas era só mulher. Os homens eram só para a manutenção das máquinas, entendeu? Só o contramestre tinha 22 máquinas com... responsabilidade! Mas, quem trabalhava na tecelagem eram as mulheres. Neste ramo a mulher tem mais habilidade que o homem (CAMPOSILVAN, 1981, p. 9/10). Alguns apontamentos teóricos nos ajudam a compreender esse fenômeno. Como aponta Kergoat (2009), a divisão sexual do trabalho é decorrente das relações sociais do sexo, sendo historicamente adaptada conforme a sociedade e o tempo histórico. Esta tem por característica a destinação e separação das atividades que serão desempenhadas por homens e mulheres na sociedade: aos homens seriam destinadas as tarefas produtivas e às mulheres as tarefas reprodutivas. A aplicação dessa distinção é legitimada pela ideologia naturalista. Conforme Kehl, a sociedade moderna criou discursos que orientaram as mulheres para um destino universal: o do lar e da maternidade. Caroline Duarte Matoso | 55 No Brasil, de acordo com os estudos de Rago (1997), esses discursos eram fomentados e construídos por cientistas, médicos sanitaristas, imprensa comercial e operária, contribuindo, assim, para a naturalização e legitimação da divisão sexual do trabalho. Como aponta Kergoat (2009), a ideologia naturalista reduziu as práticas sociais a um destino biológico da espécie, que seria universal. Esse processo gerou uma dicotomia a partir do gênero entre a esfera pública e esfera privada, sendo a última vista enquanto pertencente ao sujeito feminino e a primeira enquanto masculina. Biroli (2018) comenta sobre o conceito de domesticidade. Para a pesquisadora, a dicotomia entre a esfera privada e a esfera pública a partir dos sexos tem como consequência a compreensão de que as tarefas domésticas e reprodutivas devem ser exercidas prioritariamente pelo sujeito feminino. Kergoat (2009) ressalta que a divisão sexual do trabalho tem dois princípios organizativos, o primeiro seria a separação, como já mencionamos. O segundo seria o prestígio social. É aplicado maior prestígio social aos trabalhos vistos enquanto masculinos. Esse movimento criou hierarquias de poder entre homens e mulheres na sociedade. Para além de possuírem menor prestígio social que o trabalho produtivo, as atividades domésticas, como bem nos lembra Davis, são “Invisíveis, repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas – esses são os adjetivos que melhor capturam a natureza das tarefas domésticas” (DAVIS, 2016, p. 240). Todavia, como bem nos lembra as feministas e pesquisadoras negras, as mulheres negras e brancas empobrecidas nunca puderam ocupar apenas o ambiente privado, necessitando trabalhar fora de casa para a sua subsistência e de suas famílias (DAVIS, 2016). Logo, o pertencimento feminino apenas na esfera privada foi uma vivência de poucas mulheres. 56 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Conforme Fraccaro (2016), em fins do século XIX e início do século XX, as mulheres e crianças compunham aproximadamente 70% da mão de obra no Brasil. De acordo com Saffioti (2013), a inserção de mulheres e crianças em fábrica permitiu o aumento do lucro dos empresários, que pagavam salários inferiores a esses segmentos da sociedade. Aravanis comentando sobre a industrialização de Porto Alegre relata que o salário destinado aos operários Cia. Fiação e Tecidos Porto-Alegretense e da Cia. Fabril era de 7 mil réis aos homens e 4 mil réis às mulheres. O número de mulheres trabalhando no setor da indústria também era considerável. Conforme Loner (1999), discorrendo sobre os municípios de Pelotas e Rio Grande, as empresas que mais contratavam mulheres eram dos setores de vestuário, têxtil e alimentícias. Essa é uma constatação importante. Percebe-se que a divisão sexual do trabalho estava presente nos ramos de produção e na distribuição de cargos no interior de uma mesma empresa. O trabalho nos setores de força pública e extrativista, interditados para as mulheres, recorre à imagem simbólica da masculinidade, no qual coragem e sacrifício estão presentes. Sabe-se, por meio da literatura sobre gênero, que força física e brutalidade são atribuídas aos homens e que a educação formal e informal os condiciona a exercê-las, modelando, assim, seus papéis sociais (BILHÃO, 2005). A construção social que remete ao sexo masculino a força e à mulher a fragilidade está presente no mundo do trabalho. No setor industrial, as fábricas têxteis, de vestuário e alimentícias foram as que mais empregaram as mulheres nas cidades de Pelotas e Rio Grande do Sul, como já exposto. Nesses setores, há a demanda, por ser um trabalho minucioso, do perfil da mão de obra ser paciente, possuir perseverança e ter habilidades manuais, como dedos ágeis. Notou-se que a sociedade moderna criou discursos e práticas que direcionam a mulher a adquirir essas habilidades ao longo da sua Caroline Duarte Matoso | 57 trajetória de vida, na associação do papel feminino à atividade reprodutiva (KEHL, 2001). As atividades de mãe, esposa, preocupada com o cuidado ao outro e, consequentemente, a reprodução da vida são estendidas ao trabalho fora do ambiente doméstico, como é o caso da divisão sexual por ramos de produção. Como Souza-Lobo comenta: “Assim, os dedos ágeis, a paciência, a resistência à monotonia são consideradas próprios da mão de obra feminina” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 149). Trabalho industrial e disciplina laboral No Rio Grande do Sul, de acordo com o recenseamento do IBGE (Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico), em 1950, havia 1.421.98 sujeitos urbanos e 2.742.841 sujeitos rurais. Isso significa que a maior parte da população ainda se encontrava no meio rural, exercendo trabalhos ligados ao campo. A industrialização iniciada no século XIX não havia revertido a maioria de camponesas e camponeses do Brasil. Os industriais precisaram incumbir novos hábitos nas(os) camponesas(es) que deixavam os campos para trabalhar nos centros urbanos. Distintamente do trabalho industrial, o trabalho no meio rural estava ligado à natureza, com as estações e o horário solar, o que Thompson (2016) descreveu como orientação do tempo pelas tarefas. Desvincular a mão de obra desses hábitos foi um dos percursos trilhados pelos empresários de indústrias. Ao pesquisar os cadernos administrativos da empresa Rheingantz, constatou-se que a disciplina fabril estava relacionada aos sensos de feminilidade da época, correspondendo a um processo de incumbir novos hábitos às(aos) operárias(os). O trabalho industrial demandava um outro trabalhador, obediente que realizasse tarefas repetitivas. O processo de incumbir novos hábitos aos trabalhadores se realizou a partir de penalização de comportamentos vistos como “desviantes”. 58 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS O trabalho industrial requeria trabalhadores mecânicos, que se sentassem em frente às máquinas de tear e produzissem ao máximo. Atitudes e comportamentos que pudessem desviar o foco da produção e baixar o nível de produtividade não eram tolerados, sendo passíveis de punição. Em uma sala de vidro, localizada acima da tecelagem, o mestre de sessão observava o ritmo de trabalho das operárias. Conforme a fala da tecelã Soeli Botelho: Gaiola era uma… A gente chamava de gaiola porque ela ficava ao alto. [...] Aquela peça [...] A sala dele. [...] Com uma escada, então era tudo envidraçado. Então nós chamávamos de gaiola aquilo ali, e dali ele via toda a seção. [...] Controlava tudo lá de cima (BOTELHO, 1981, p. 29). O sentimento de monitoramento era constante entre as operárias. As penalidades variavam conforme a infração cometida: redução salarial ou demissão. Nos cadernos do setor administrativo da empresa, averiguaram-se quais os motivos dessas punições. No caderno referente a agosto e dezembro de 1910, encontram-se diferentes motivos de penalidades, tais como “falta de respeito ao superior”; “multadas por serviço mal feito”; “dispensado por ter agredido/maltratado seu companheiro”; “multada por grande preguiça”; “multadas por brincadeiras”; “multadas por abandonar seguidamente seus lugares”; “negligência”; “conversar durante o serviço”; “multadas por desligar a máquina antes do apito tocar” ; “sair da repartição antes do apito tocar”; dar falsas informações; “quebra de máquinas e/ou estragar fio”; “por ter faltado ao ensaio de bombeiros”; “dispensado por estar aos gritos no serviço”; “dispensados até 2º ordem por mau comportamento”; “multadas por falta de atenção ao serviço”. No caderno referente a novembro e dezembro de 1923, encontramse os seguintes motivos de penalidades: “dispensada por não cumprir Caroline Duarte Matoso | 59 ordem”; “despedido por briga”; “despedido por estar fumando no serviço”; “despedido por ter agredido o mestre”. Os apontamentos teóricos do autor E. P. Thompson (2016) nos ajudam a compreender esse fenômeno. Discorrendo sobre a Revolução Industrial na Inglaterra e na Alemanha durante os séculos XVIII e XIX, Thompson comenta que as(os) trabalhadoras(es) estavam sofrendo uma pressão de cima para baixo para reformular a sua cultura. A urbanização, as longas horas laborais nas fábricas e as novas condições de trabalho demandavam um novo ser social: disciplinado e rígido. A inclusão de uma nova tecnologia decorrente da industrialização requeria funcionários mecânicos, que realizassem as suas tarefas de forma repetitiva e monótona. Era necessário regular o tempo, na tentativa de eliminar a ociosidade. As multas endereçadas aos homens eram em sua maioria por motivo de briga, agressão e fumar no ambiente de trabalho. As infrações endereçadas às mulheres eram por conversar demais, rir alto, sair muitas vezes da máquina, levantar-se antes do apito tocar, desobedecer ao superior, por preguiça, entre outras. Essas constatações demonstram que a masculinidade hegemônica e a feminilidade estavam presentes no ambiente fabril Rheingantz. Entendo enquanto feminilidade um conjunto de discursos que pretendem criar um modelo de mulher dócil, passiva e obediente. Todavia, a existência de infratoras aponta que as mulheres não aceitavam os sensos de feminilidade a elas esperado. O sistema rígido de penalidades e de monitoramento do trabalho das operárias da Fábrica Rheingantz esteve presente durante todo o período de funcionamento da empresa com o objetivo de disciplinar os corpos operários. A narrativa do desenhista técnico Aureo Almeida nos ajuda a compreender essa dinâmica: 60 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS E sem que elas percebessem lá da minha mesa... estava aqui o cronômetro, não é? Funcionando e contando as carreiras que elas faziam e vendo a quantidade de nós produzidos. E reparei que a produção caía e ia das 10:30 às 11:15, que era a hora que saía as menores de idade. De tarde entravam à 1 hora. Quando era mais ou menos 3 horas estavam com outro pique de produção e dali a coisa ia declinando. Declinando até que às 16:30 até às 17 horas não faziam mais nada. Um pouco era cansaço, porque é difícil um trabalho físico. Tem que dar nó por nó a mão e abrir com os dedos da mão esquerda os... ah, o urdume. E aqueles fios que vêm no tear de tapetes eles são dispostos verticalmente. Então, com os dedos da mão direita se entrelaçava o fio da lã e puxa (tosse). Esse é o nó. Então, esse trabalho é muito cansativo e aí eu troquei o outro pique. Eu determinei, mas não sem antes falar com a direção da companhia, e das 9 horas às 9:15 eu determinei que todo mundo parasse de trabalhar. Não queria ninguém trabalhando. Todo mundo tomando café com aquelas “tracanases” de pão e mais. Sem preocupação nenhuma. Tranquilidade tomando o seu café. Isto é, descasando. E às 9:15 pegavam outra vez no serviço. Com isso eu provoquei um outro pique e a produção simplesmente aumentou de 5 mil para 7 mil e 500 nós. 50% da produção é uma coisa, é um milagre, porque qualquer empresa para aumentar 10% da produção gasta fortunas. Nós conseguimos aumentar lá 50% da produção. Todos os livros de produção lá, de documentação, devem ter sido guardados, que comprovam isso. E dependendo até tapetes lisos elas faziam. Até bastante mais. Até 8 mil nós (ALMEIDA, 1987, p. 9). Conforme a fala do desenhista técnico Aureo Almeida aponta, o tempo é uma questão crucial no trabalho fabril. Como aponta Thompson (2016), a regulação dos novos ritmos do trabalho industrial era uma demanda urgente dentre as necessidades do trabalho industrial, no qual “o empregador deve usar o tempo de sua mão de obra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido a dinheiro” (THOMPSON, 2016, p. 272). Nesse sentido, o tempo passa a ser uma moeda. Caroline Duarte Matoso | 61 Todavia, a imposição da reformulação da cultura encontrou resistência dos de baixo, que buscaram a partir de disputas e negociações manter as suas concepções de trabalho e de mundo. A existência de infratoras da Fábrica Rheingantz indica que as operárias resistiram às pressões vindas de cima para baixo, buscando manter os seus ritmos de trabalho. As operárias que foram penalizadas por rirem, conversar, levantar da máquina repetitivamente, entre outros motivos, foram sujeitas ativas de suas histórias, afirmando que o trabalho humano não é mecânico, resistindo às novas relações de trabalho que os industriais buscavam incumbir a elas. Como E. P. Thompson aponta: “[...] o registro histórico não acusa simplesmente uma mudança tecnológica neutra e inevitável, mas também a exploração e a resistência à exploração; e que os valores resistem a ser perdidos, bem como a ser ganhos” (THOMPSON, 2016, p. 301). A narrativa do desenhista técnico Aureo Almeida Nunes, quando comenta sobre a criação de um intervalo na Fábrica Rheingantz, indica-nos que os tempos do trabalho industrial também tiveram que ser adaptados ao tempo humano, em um processo de disciplinamento, insubordinação, conflitos e negociações. Considerações finais Conforme analisado neste capítulo, a divisão sexual do trabalho esteve presente no processo de industrialização do Rio Grande do Sul, no qual as mulheres estiveram em maior número nas indústrias do vestuário, têxtil e alimentícias. Como já se discutiu, as qualidades atribuídas ao sujeito feminino que o orientaram a um destino dito natural e universal, do lar e da maternidade, foram estendidas para fora do domicílio. As qualidades de ser dócil, possuir maior resistência ao trabalho monótono, repetitivo e atenção foram as que justificaram a divisão sexual do trabalho 62 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS nas indústrias. Esse senso está presente nas memórias dos operários entrevistados, que ao falar de haver maior número de trabalhadoras mulheres na tecelagem, evocam essas habilidades às tecelãs. A introdução das mulheres no trabalho assalariado fora do lar e longe de libertá-las representou uma continuação da exploração da sua mão de obra. Os sensos de feminilidade seguiram presentes no trabalho industrial, que buscou incumbir novos hábitos ao operariado, buscando o forjar enquanto obediente, dócil e mecânico. Qualidades essas que já eram vistas enquanto femininas. Referências ARAVANIS, Evangelia. A industrialização no Rio Grande do Sul nas primeiras décadas da República: a organização da produção e as condições de trabalho (1889-1920). Revista Mundos do Trabalho, n. 3, v. 2, p. 148-180, 2010. BILHÃO, Isabel Aparecida. Identidade e trabalho: análise da construção dos operários porto-alegrense (1896 a 1920). 280 f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. BRITTO, Natalia Soares de Sá. 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Capítulo III Notas sobre o uso de SIG Histórico na cartografia de territórios urbanos da Primeira República (Santa Maria, RS) Felipe Farret Brunhauser 1 O objetivo deste texto é expor alguns avanços no uso de Sistema de Informações Geográficas para pesquisas históricas. Mais especificamente, demonstro algumas possibilidades do seu uso ao estudar temas como cidades e desigualdade social, bem como pesquisas ancoradas no campo da História Social do Trabalho. Para isso, exponho alguns resultados adquiridos em pesquisa de Mestrado ainda em andamento, onde investigo a relação do espaço e a desigualdade social no desenvolvimento urbano da cidade de Santa Maria, localizada no centro do estado do Rio Grande do Sul, durante a Primeira República. Ao definir este tema de pesquisa, optei por focar na análise dos territórios populares da cidade e nas lutas por moradia que eram travadas em meio ao desenvolvimento urbano local. A escolha deste tema fez com que eu buscasse no uso de geotecnologias, aliadas à análise de plantas e mapas históricos da cidade, uma importante ferramenta e metodologia para o estudo deste processo. Os caminhos para este empreendimento e alguns de seus resultados serão expostos nas páginas que seguem. Quando falo em Sistema de Informações Geográficas – ou “SIG”, como será chamado daqui pra frente -, refiro-me à recursos e meios tecnológicos, como os softwares de geoprocessamento, que auxiliam na coleta, manipulação e análise de informações espaciais. Os bancos de 1 Mestrando – UFRGS; felipefarret.b@gmail.com Felipe Farret Brunhauser | 67 dados baseados em SIG são amplamente utilizados no Urbanismo, Geografia e Sociologia, como forma de trabalhar com o “espaço” de maneira complexa, permitindo com que pesquisadores/as analisem uma determinada localidade ou fenômeno social de forma a considerar a espacialidade que está imbricada neste objeto de análise. No campo dos estudos históricos, seja por historiadores/as ou pela geografia histórica e urbanismo, o uso dessas tecnologias vem servindo para aprimorar a análise de fontes e elementos espaciais do passado. Neste caso, tem-se utilizado o termo “SIG Histórico”, cunhado pelo historiador britânico Yan Gregory (GREGORY, 2003). Este movimento vem trazendo grandes avanços em pesquisas realizadas na Europa e América do Norte, e aos poucos tem reunido interessados no Brasil, mostrando os limites e possibilidades do SIG Histórico em diversas abordagens e recortes espaçotemporais da historiografia brasileira (VILLA; GIL, 2016). Porém, antes de começarmos, é importante trazer algumas ressalvas. Este texto não pretende explicar densamente as etapas necessárias para trabalhar com plantas e mapas históricos nos softwares de SIG, tema que pode ser consultado em texto recente de Carlos E. Valência Villa (VILLA, 2015); tampouco será meu objetivo central explicar noções básicas no uso de SIG, ou dos conceitos necessários para o seu uso na pesquisa histórica, questões que foram abordadas em texto recente, de Thiago Luís Gil (GIL, 2013). Pretendo, na verdade, somar elementos a este debate, trazendo resultados que foram alcançados através deste empreendimento, e que me permitiram avançar na análise da desigualdade social em um contexto urbano da Primeira República. Paralelo a isso, apresento as potencialidades do SIG Histórico ao analisar qualitativamente os territórios de uma cidade, e como trabalhadores/as experienciaram a urbanização. 68 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A História Social do Trabalho tem desenvolvido importantes estudos acerca da experiência de trabalhadores/as na Primeira República. Interessados em entender o lugar do operariado em meio a emergência do capitalismo e dos espaços urbano-industriais, esses estudos desenvolveram importantes reflexões acerca do mundo do trabalho nas grandes cidades brasileiras, partindo de abordagens bastante diversas. Seja através da relação de trabalhadores/as com o crime e a justiça, as relações e conflitos interétnicos entre populares, seus conflitos e constituições familiares no âmbito da moradia popular, entre outros temas (MAUCH, 1992; AREND, 2001; CHALHOUB, 2001; PESAVENTO, 2001). Muitos desses trabalhos, e de outros que vieram a somar no debate, buscaram evidenciar o momento de transformações sociais que o Brasil, e suas cidades, passavam naquele momento. A abolição da escravidão, a instauração da República e as políticas de imigração europeia foram alguns dos processos que marcaram o aumento demográfico nas cidades brasileiras e a constituição do capitalismo. Dentro deste panorama, os estudos citados demonstraram como elites urbanas buscavam implementar um novo modelo político-administrativo da recém inaugurada republica brasileira, que se traduziam em medidas de modernização e higienização das cidades, na tentativa de impor uma ordem burguesa às camadas populares que cresciam nos espaços urbanos. Boa parte da historiografia que referencio, esteve concentrada em analisar este processo através das grandes capitais brasileiras. Talvez pelo fato dos principais centros de estudo se concentrarem nessas cidades, ou mesmo por que na Primeira Republica foram essas cidades o foco central da modernização e higienização urbana brasileira. O resultado disso é que, por muitos anos, criou-se uma lacuna de estudos que se preocupassem em entender como este processo operou no interior do Brasil, nas cidades de porte reduzido e longe das capitais. Apenas nos últimos anos, um Felipe Farret Brunhauser | 69 movimento mais significativo de pesquisadores se interessou em analisar como a urbanização e seus desdobramentos na vida dos/as trabalhadores/as ocorreu no interior do Brasil. Em dissertação de Mestrado (ainda em andamento), tenho me inserido neste movimento, realizando um estudo sobre as lutas e o acesso à moradia em meio a urbanização da cidade de Santa Maria, localizada no centro do estado do Rio Grande do Sul. Emancipada na década de 1870, Santa Maria atingiu um crescimento demográfico significativo após a expansão da malha ferroviária para o interior do estado, em 1885. A posição central da cidade no território do Rio Grande do Sul fez com que o município fosse o principal entroncamento ferroviário do estado na Primeira República. Em outras palavras, a circulação de mercadorias e pessoas através da ferrovia, que deslocavam-se desde a costa do Atlântico (seja por Porto Alegre, Pelotas ou pelo porto de Rio Grande), até a fronteira oeste do estado, com Uruguai e Argentina; tinha em Santa Maria seu ponto de passagem e descanso na longa viagem.2 Estes fatores fizeram da cidade um espaço marcado por intensa e variada vida operária. A chegada da ferrovia ampliou o espaço urbano e transformou Santa Maria em local de constante chegada de trabalhadores/as das mais diversas origens, buscando oportunidades de sobrevivência: italianos, alemães, portugueses, russos, belgas, libaneses, austríacos, entre outros (CARVALHO, 2005). Os estudos direcionados ao pós-abolição tem demonstrado a intensa vida associativa da população negra local, que se articulavam na criação de clubes sociais, blocos de carnaval, irmandades religiosas, imprensa negra, e etc. (OLIVEIRA, 2017; GRIGIO, 2018). Um indício desta afirmação pode ser visto em livro recente, publicado por mim e outros/as colegas do Grupo de Estudos sobre 2 Este debate vem sendo desenvolvido em Dissertação de mestrado, ainda não publicada. 70 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS o pós-abolição (GEPA), onde catalogamos a partir de fontes primárias a existência de, pelo menos, 19 organizações negras em Santa Maria na Primeira República (BRUNHAUSER et al., 2020).3 Contudo, alguns desafios se fazem presentes para quem decide investigar cidades que fogem dos exemplos das grandes urbes e capitais, sobretudo quando se trata de uma “história vista de baixo”. Em primeiro lugar, o historiador ou historiadora estará dependente da quantidade e diversidade de fontes que aquela cidade produziu no passado, e o quanto desses registros foram preservados em seus arquivos municipais, públicos e privados, até a atualidade. Santa Maria conta com instituições de grande qualidade, o que tem sido um alívio para as pesquisas que desenvolvo. Mas é importante considerar que nem sempre outros pesquisadores terão a mesma sorte em cidades interioranas. Em segundo lugar, destaca-se o pouco conhecimento que existe acerca do espaço urbano de Santa Maria no período estudado, tampouco dos seus territórios populares. Muitas das pesquisas citadas até aqui, que investigaram aspectos da vida e cotidiano de populares em Santa Maria, pouco desenvolveram respostas sobre como a cidade e seus territórios populares se desenvolveram nesse processo. Assim, qualquer problema de pesquisa que necessite de uma representação espacial da cidade (ou seja, compreender como eram suas ruas, a distribuição dos bairros, o seu ritmo de desenvolvimento, quais eram seus espaços de pobreza e riqueza, e etc.), estará sujeito a pouquíssimos registros documentais que possibilitem este tipo de análise. Nesse sentido, para investigar a urbanização de Santa Maria, e como as lutas por moradia popular se inseriam nesse processo, optei por partir da construção de uma cartografia dos territórios urbanos na formação do 3 O livro foi publicado em formato E-Book, com distribuição online e gratuita. Intitulado “Organizações negras de Santa Maria: primeiras associações negras dos séculos XIX e XX”, o livro reúne documentações de 30 organizações negras locais, entre 1873 e 1965. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/19900. Acesso em: 20 de novembro, 2020. Felipe Farret Brunhauser | 71 município, com o objetivo de entender onde se localizavam seus subúrbios e bairros populares. Analisando fontes diversas como plantas da cidade, relatos de viajantes e acervos iconográficos – aliado ao uso diversificado de SIG Histórico - foi possível romper invisibilidades e silenciamentos que as fontes citadas exerciam em relação à presença popular na cidade, sobretudo da população negra e indígena, além de ampliar significativamente as possibilidades de análises. Os usos de SIG na pesquisa histórica podem ser diversos. Um caminho comum é a possibilidade de aprimorar análises em fontes já consolidadas na historiografia. Cristiane R. Miyasaka, analisando a experiência de trabalhadores/as no subúrbio carioca através de processos criminais e outras fontes, utilizou SIG para dispor em um mapa da cidade a localização das ocorrências dos crimes e dos locais de moradia de réus e vítimas, cruzando essas informações com fontes variadas. Este esforço possibilitou um olhar para a espacialidade das relações entre trabalhadores, e como ocorria a relações de populares com a justiça e o controle social no espaço urbano (MIYASAKA, 2016). Carlos E. Valência Villa, utilizando anúncios de trabalho de negros/as livres publicados em jornais do Rio de Janeiro e Richmond, realizou uma análise georreferenciada das aglomerações de moradias da população negra livre, nas duas cidades, no século XIX (VILLA, 2013). Os dois casos ilustram muito bem como o SIG permite abrir novas abordagens em fontes já bastante conhecidas pela historiografia. Outro uso interessante é a possibilidade de analisarmos mapas e plantas históricas de uma determinada região ou cidade, de forma que possamos literalmente desconstruir seus elementos, agregar outras informações e construir novos mapas sobre aquele passado, partindo do que chamamos de Cartografia Digital. A geógrafa Daniele Vieira realizou um trabalho semelhante, ao construir uma cartografia dos territórios negros em 72 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Porto Alegre. Utilizando mapas e plantas da cidade, desde o século XVIII e adentrando o século XX, a autora realizou um levantamento de fontes diversas, que possibilitavam a localização de territórios negros urbanos durante este longo período, construindo assim representação cartográfica de Porto Alegre que permitiu um estudo exemplar sobre o processo de segregação da população negra em perspectiva histórica (VIEIRA, 2017). Os exemplos citados sintetizam alguns usos possíveis de SIG para História Social, e serviram de influências para o trabalho que venho realizando. Para estudar o desenvolvimento urbano de Santa Maria, parto da análise de uma planta da cidade, datada de 1902. A escolha deste documento ocorreu pela riqueza de informações que ele possui. Um olhar atento sobre ele, nos permite perceber como o agrimensor da planta teve cuidado especial ao registrar como era o mundo urbano de Santa Maria no início do séc. XX: além das ruas, praças e prédios públicos – elementos comuns em plantas urbanas deste período -, a planta possui descrições do sistema fluvial da cidade, da localização de diversas moradias e o nome de seus/as proprietários/as, locais de comércios, farmácias, hotéis, etc. Através deste documento, é possível localizar desde templos maçônicos até escolas que faziam parte da paisagem urbana de Santa Maria na Primeira República. Mas para além de uma representação da cidade, a cartografia também é um discurso. Se é impossível representar a realidade em um documento cartográfico, sua confecção demanda escolhas e preferências que vão delimitar o que merece, ou não, ser registrado no documento. Neste ponto, uma análise densa e minuciosa desses documentos, cruzando com outras fontes, nos permite entender padrões e valores morais de quem produziu esta planta e do período histórico ao qual pertenceu. Um exemplo desta reflexão está na invisibilidade de territórios e grupos populares na planta de Santa Maria, utilizada neste estudo. Se o centro da cidade é visualmente poluído pelo esforço do agrimensor em registrar aspectos da vida cotidiana Felipe Farret Brunhauser | 73 da elite urbana e de seus espaços de moradia; ao localizar através de outras fontes onde ficavam os bairros populares, me deparei com o extremo oposto: as ruas que eram marcadas pela presença popular na cidade, são representadas na planta como lotes vazios. Figura 1: Detalhes da planta da cidade de Santa Maria, de 1902 Fonte: montagem realizada a partir de planta da cidade, disponível em: (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997, p. 84) A imagem anterior se trata de uma montagem criada para demonstrar como diferentes espaços da cidade receberam atenções distintas. Do lado direito, temos a Praça Saldanha Marinho, que conectava as ruas centrais da cidade, onde o agrimensor se preocupou em cartografar as moradias e comércios (inclusive demarcando o sobrenome dos seus moradores). Do lado esquerdo, trata-se da rua “24 de Mayo”, o núcleo fundador do bairro Vila Rica. Este local era marcado por intensa vida operária e associativa em Santa Maria durante a Primeira República. Ali existiam organizações diversas, como Irmandade Religiosa, blocos de carnaval, clubes sociais e imprensa negra. Mas na representação cartográfica de 1902, a vida cotidiana de trabalhadores/as da cidade não importava a ponto de merecer espaço na planta da cidade. Pelo contrário, 74 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS a imagem que o agrimensor construiu sobre Santa Maria, coloca este território como uma série de ruas e lotes vazios, com apenas algumas moradias esparsas e sem nomes de seus moradores e moradoras. Figura 2: desconstruindo uma planta histórica utilizando SIG Fonte: montagem produzida pelo autor. Mas como ir além da constatação lógica de que as fontes deste período carregam em si valores morais de quem às produziu? Neste ponto, o SIG Histórico permite alguns avanços interessantes. Através dos softwares de SIG, podemos criar uma versão digitalizada desta fonte e literalmente desconstruir os elementos que foram cartografados nela. Ruas, moradias, comércios, ferrovia, entre outros, podem ser separados digitalmente em camadas de informações, de modo que possamos utilizar apenas as camadas que nos interessam para produzir novos mapas da cidade, como tentei ilustrar na Figura 2, disposta ao lado. E considerando ainda o meu interesse em demarcar os territórios populares, dando visibilidade aos Felipe Farret Brunhauser | 75 elementos que a cartografia da época invisibilizou, é possível ainda cruzar com outras fontes que possuem a localização destes territórios, e incluir novas camadas de informações neste mapa. Este empreendimento vem sendo realizado a partir da Planta de Santa Maria de 1902. Partindo de um extenso levantamento de relatos de viajantes, memórias documentadas, almanaques, fotografias e outras fontes diversas. A partir disso, identifiquei a existência e localização dos bairros suburbanos que eram mencionados em diversas fontes, mas ainda pouco explorados na historiografia local. Isso possibilitou a criação de mapas que auxiliam diretamente na análise do desenvolvimento urbano de Santa Maria na virada do século XX, e como se distribuíam espaços de pobreza e riqueza em um tecido urbano reduzido, no interior do Brasil. O resultado desta análise poderá ser visualizado na imagem a seguir: Figura 2: SIG Histórico da cidade de Santa Maria, em 1902 Fonte: Mapa construído pelo autor no software “QuantumGIS”, a partir de fontes diversas. As principais são: relatos de viajantes e Planta da cidade de Santa Maria, em 1902, presentes em (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997); historiografia sobre Santa Maria; registros fotográficos e Almanaques locais. 76 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS O mapa anterior (Figura 3), foi produzido a partir de SIG Histórico, e permite uma visualização muito mais precisa e complexa acerca dos territórios urbanos de Santa Maria em 1902, bem como a forma que a desigualdade social operava nesta cidade na Primeira República. As ruas, praças, ferrovia e cursos d’água que o/a leitor/a visualiza neste mapa, estavam presentes na planta de 1902, porém poluídos em meio a diversas outras informações. O “centro” de Santa Maria, frequentemente citado em diversas fontes, resumia-se às três ruas marcadas em amarelo, chamadas Rua do Comércio, Rua do Acampamento e Avenida Progresso, conectadas pela Praça Saldanha Marinho, no centro do mapa. Por fim, a Avenida Progresso conectava o centro da cidade com a ferrovia, que cruzava ao norte. A análise em SIG desta planta, aliado ao cruzamento com outras fontes permitiu compreender que as ruas centrais concentravam a elite urbana da cidade e os imóveis mais caros, além de que eram as únicas ruas na cidade, neste momento, que possuíam luz elétrica. Ao redor das ruas centrais, localizavam-se os bairros populares. A localização desses territórios partiu de fontes diversas, como relatos de viajantes e memórias documentadas que descreviam a paisagem urbana e os bairros chamados de subúrbios: Itararé, Alto da Eira, Vila Rica e Aldeia (MARCHIORI; NOAL FILHO, 1997). Em especial os dois últimos – Aldeia e Vila Rica – frequentemente são relacionados nas fontes como os dois principais territórios populares da cidade, marcados pela presença negra neste imediato pós-abolição. A Aldeia possuía origem ainda nos primeiros anos do século XIX, com o aldeamento de famílias guaranis missioneiras, que se estabeleceram no vilarejo de Santa Maria, vindas da fronteira oeste do estado. Este território permaneceu na paisagem urbana da cidade por todo o século XIX, despontando na Primeira República como um dos principais territórios populares, concentrando moradias de famílias negras, indígenas e uma Felipe Farret Brunhauser | 77 variedade de imigrantes pobres com origens diversas. A Vila Rica, citada anteriormente, era marcada por características semelhantes, além de concentrar diversas organizações negras de segmentos variados. Além dos dois bairros citados, o Itararé foi um território que se constituiu nesse final do século XIX, com raízes na identidade ferroviária pela sua proximidade com os trilhos do trem. Para além de identificar a existência dos bairros populares e suas características, o uso dos mapas permite a análise minuciosa sobre a morfologia urbana de uma cidade. É a partir dele que podemos analisar como elementos do relevo e do sistema fluvial, hoje encobertos pelos prédios do centro da cidade, eram importantes no desenvolvimento e na distribuição da desigualdade social neste núcleo urbano. As sangas que são vistas no mapa e que existiam por toda a parte em Santa Maria, são desconhecidas nos dias atuais, onde a cidade foi literalmente construída por cima de seus cursos. Contudo, no início do século XX, foram essenciais para entendermos o desenvolvimento urbano, e serviam em certa medida como fronteiras naturais entre espaços de pobreza e riqueza, separando os bairros populares das ruas centrais. O relevo da cidade,4 analisado em conjunto com o mapa, nos demonstra também como o centro de Santa Maria estava na região mais alta, e suas ruas estavam nos terrenos mais nivelados da cidade, desviando dos cursos d’água. Ao contrario dos bairros populares, estabelecidos em terrenos acidentados, cortados pelas sangas e em regiões de baixada. Elementos como esses não estão disponíveis de forma direta e literal nas documentações históricas, e podem ser de grande importância na 4 Os dados de elevação do solo tratam-se de levantamentos atuais. Utilizou-se imagens produzidas pelo satélite Alos Palsar, colocado em órbita na década de 2010 e que disponibiliza gratuitamente uma base de dados do relevo da Terra, disponível para download e de fácil acesso. Ao contrário de cidades maiores, como Porto Alegre e Rio de Janeiro, não há registros de grandes aterramentos, planificações e demais intervenções em grande escala em Santa Maria. Assim, considero que o cruzamento desses dados pode ser realizado sem grandes prejuízos ao estudo. A base de dados utilizada está disponível em: https://search.asf.alaska.edu/#/. 78 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS análise do espaço social de uma cidade, bem como nas formas com que trabalhadores/as se relacionam com o espaço urbano. Outro aspecto igualmente importante, é que os mapas tem me ajudado a observar elementos nas fontes que muitas vezes passaram despercebidos. As descrições de ruas acidentadas com moradias precárias, ou o cotidiano das lavadeiras nos subúrbios da cidade, assumem novos significados na análise qualitativa dessas experiências depois da produção de mapas como esse. No caso de Santa Maria, essas reflexões são possíveis apenas com o uso de SIG Histórico. O seu uso tem se mostrado um aliado essencial nesse processo, e um método poderoso para refletir sobre a forma que trabalhadores e trabalhadoras experienciaram a urbanização de Santa Maria, durante a Primeira República. Para além de meras ilustrações e recursos narrativos, os mapas são fontes poderosas para o estudo das sociedades que eles buscaram representar. Assim como qualquer documento, os mapas são produtos da ação humana, da necessidade de representar a realidade em que seus criadores viveram. Um olhar atento a eles pode revelar, para além das informações superficiais que possuem, uma série de valores morais e hierarquias introjetadas em quem os produziu e ao momento histórico ao qual pertenceu. A planta utilizada neste texto data do início do século XX, momento onde a prática da cartografia era privilégio de poucos, e produzidas para grupos sociais igualmente privilegiados: setores do poder público, das elites locais e etc. Como vimos, estas características se introjetam na produção final desses documentos. Com o avanço da tecnologia dos microcomputadores nas últimas décadas, a prática cartográfica se tornou acessível por meio de softwares de SIG, onde um historiador, com um conhecimento básico de geografia e informática, pode inclusive produzir seus próprios mapas. Isso abre caminhos interessantes para as ciências humanas, seja por criar representações cartográficas que Felipe Farret Brunhauser | 79 busquem tornar didáticos elementos que seriam difíceis de expor em texto, ou mesmo pela possibilidade de construir novos problemas de investigação, que considerem o espaço em seus questionamentos, e abram novas possibilidades em fontes já bastante conhecidas. 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Devido a isso, surge a importância em compreender como essas duas categorias se relacionam entre si e com os demais sujeitos coloniais. Nisso também se apresenta a necessidade de abordar como os pais estão presentes nessas fontes como uma forma de enriquecer a nossa análise. Portanto, a proposta deste texto é apresentar alguns apontamentos e reflexões sobre as diferentes concepções e práticas acerca das mães e país indígenas, estas encontradas na documentação produzida por variados sujeitos durante o século XVIII. Nosso trabalho se detém nas localidades e reduções situadas na região da Bacia do Prata, utilizando tanto fontes da burocracia hispânica como eclesiásticas publicadas em coleções. Em linhas gerais, podemos dizer que a documentação consultada tem como característica uma visão com base em modelos ocidentais de feminino, família e infância, esses em muitas ocasiões diferentes dos praticados pelas populações indígenas. Quanto ao nosso apoio teórico, buscamos amparo em diferentes autores como Ariès (1986), Sciortino (2017), Fleck (2006) e Vitar (2015). Desses trabalhos mencionados destacamos algumas colocações, como as de Ariès, quanto ao lugar social 1 Mestre-UFSC; lauraoeste@gmail.com 84 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS dos pais e das crianças nas famílias ocidentais do século XVIII, bastante úteis para trabalhar com as concepções dos religiosos e funcionários coloniais acerca desses sujeitos. Como forma de contraponto para a análise, consultamos o trabalho da antropóloga Sciortino (2017), que traz noções de maternidade e paternidade presentes em sociedades indígenas da Argentina contemporânea, esses pautados em uma complementariedade entre mães e pais. Já as autoras Fleck (2006) e Vitar (2015) se dedicam a analisar as mulheres indígenas nas reduções, a primeira com foco nas representações dos jesuítas acerca das indígenas e a segunda sobre o trabalho feminino nas missões. Podemos começar por alguns questionamentos tais como: quais narrativas em relação às mulheres e homens indígenas foram veiculadas nesses contextos? Conseguimos perceber quais adaptações e reformulações foram possíveis nos espaços missioneiros? Dessa forma, organizamos a escrita em dois momentos: primeiro apresentamos como e em quais momentos as mães indígenas são descritas na documentação, após são realizadas algumas comparações entre as narrativas sobre as mulheres mencionadas como mães e homens indígenas, procuramos também compreender como a figura do pai indígena esteve presente em alguns discursos, direta ou indiretamente, tanto eclesiásticos como dos próprios indígenas. Mulheres, homens e crianças Ao consultar a documentação do século XVIII para a região do Prata, nos deparamos com um considerável número de referências que relacionam a mulher indígena com crianças em variadas situações, principalmente, em relatos relativos às reduções. Fazendo algumas observações iniciais, percebemos que muitos dessas fontes quando voltadas para as mulheres, trazem uma narrativa com viés um tanto Laura Oeste | 85 estereotipado, apresentando muitos adjetivos quando falam de aspectos considerados negativos pelo narrador, em especial no momento de relatar comportamentos entendidos como inadequados conforme veremos adiante. Também percebemos que esses relatos, em muitos casos, trazem poucas informações efetivas sobre essas mulheres, ou seja, há uma certa contradição em que muito se fala sobre “indígenas e seus filhos”, mas ao mesmo tempo pouco. Quanto aos homens indígenas, as narrativas são um pouco mais positivas, sendo apresentados como bons exemplos frente ao comportamento feminino e destacados como provedores essenciais do grupo familiar. No caso específico de algumas reduções, em comum observamos nas falas de alguns jesuítas analisadas, a utilização de justificativas pautadas em ideias que remontam a uma “salvação” das indígenas e seus filhos dos seus próprios povos. Muitas dessas narrativas eram voltadas para indígenas considerados “infiéis” pelos poderes coloniais. Como na fala dos inacianos De Zea e Sanchez (1702), em que discorrem sobre as tensões com os indígenas próximos das missões localizadas entre os rios Uruguai e Paraná, entre eles yaros e pampas. Segundo eles, esses povos teriam se aliado aos portugueses da Colônia de Sacramento e promoviam ataques aos pueblos próximos. Quando comentam sobre as mulheres e jovens desses indígenas, se destaca a argumentação utilizada, na qual sustentam que a única forma de as redimir do seu mau comportamento, seria por meio da separação, necessária para salvar as mulheres e crianças do “escândalo da idolatria e feitiçaria”. Na visão dos padres, os homens nesse caso não teriam salvação, já que não se converteram em tentativas anteriores e são intermediários de portugueses, desertores e malfeitores (DE ZEA; SANCHEZ, 1702, p. 129). Em outra situação, as mulheres e crianças indígenas também são mencionadas como necessitadas de salvaguarda, tendo sua simplicidade 86 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS destacada em um depoimento da década de 1760. Nele o jesuíta o Cardial menciona a debilidade e humildade das mulheres e de suas crianças que “por sus cortos pensamientos no aspiran â fausto, pompas y variedades” (CARDIAL, 1766, p. 36). Em outros momentos, ele enfatiza a fragilidade de maneira um tanto contraditória, em que elas trabalham muito nas mais diversas tarefas, mas por ser de uma natureza “débil” adoecem facilmente devido ao excesso de labor. Cabe comentar que a intenção da carta do padre era convencer seus interlocutores do não pagamento de tributos, alegando que as missões não tinham condições financeiras, portanto ele pode ter carregado um pouco na pobreza e humildade da população local. Interessante notar que ele foca a sua justificativa nas mulheres e nas crianças como uma forma de comoção da pouca possibilidade de contribuição monetária. Contudo, nem sempre as mulheres eram apresentadas a partir de uma pretensa fragilidade, nesses casos elas também deveriam ser afastadas dos mais jovens. Como no relatado pelo jesuíta Rojas (1708) em Yapeyú, onde as mulheres e crianças Yaro e Mbohas foram separadas e encaminhadas à força para diferentes pueblos para serem batizadas. O padre explica ser necessário mais paciência e mais tempo para catequizar as indígenas adultas, ao contrário das crianças que receberiam tratamento diferente (ROJAS, 1708, p. 242). Ao que parece se as mulheres não fossem tão frágeis como esperado, elas deveriam ser distanciadas dos jovens para não atrapalhar o seu “resgate”4. Após a expulsão dos jesuítas ainda encontramos algumas narrativas bastante estereotipadas sobre as mães indígenas. Como em uma carta escrita pelo franciscano Mendez (1772) sobre os costumes dos indígenas é mencionado o descuido das mães com os filhos que ficam “presos” por nove meses “[...] Nace el Mbayà, cuando su cruel madre lo dexa salir con vida de la carcel en que ha estado encerrado nuebe meses, y lo acoge un Laura Oeste | 87 toldo desabrigado de esteras, que apenas le defiende del sol, sin mas cama ni ajuar que un cuero de Vaca, o de cualquier otro animal[...]” (MENDEZ, 1772, p. 53). Na fala do religioso se destaca a forma de apresentar a gravidez como uma maneira de maltratar a criança. Na documentação consultada, encontramos poucas referências à gravidez, em outra ocasião há algumas questões em torno das mães, do batismo e o parto. Também no contexto da expulsão dos inacianos, um bispo ao visitar as reduções realizou uma série de críticas e comentários sobre as indígenas. Em suas colocações ele associa o comportamento das indígenas a uma série de estereótipos femininos, como um excesso de fragilidade e futilidade como, por exemplo, ao chorar a morte de um simples frango e uma tendência a se levar pelas influências alheias (LA TORRE, 1767, p. 30-36). Esses aspectos inconstantes, segundo o padre, são característicos das mães indígenas, principalmente das parturientes, que insistiriam em batismos desnecessários e convenceriam os padres a fazêlos. Particularmente, os comentários do bispo sobre os jesuítas serem influenciados pelas “veleidades” das indígenas, incomodou sendo respondido de maneira ríspida: “[...] irían los Padres preguntando si la india es robusta ó delicada ó enfermiza [...]” (LA TORRE, 1768, p. 469). Ao que parece, o parto era um assunto de interesse apenas das mulheres, já o batizado dos infantes era matéria de preocupação comunitária visto que no mesmo documento, La Torre explica a importância em nomear especificamente um padrinho para os meninos e madrinhas para meninas (LA TORRE, 1768, p. 463). Observamos que em nenhum momento, o bispo sugere que os homens teriam algum tipo de influência no comportamento dos padres, se destacando nesse trecho, o fato das indígenas terem uma certa autonomia e forte influência nas decisões envolvendo os recém-nascidos e o seu próprio parto, aspecto visto como ruim pelo bispo. 88 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Considerando as fontes organizadas até o momento, notamos que as mulheres indígenas têm seus comportamentos narrados de maneira divergente, partindo da passividade à agressividade, de serem manipuláveis e, ao mesmo tempo, tendo facilidade em influenciar. Aspectos semelhantes são mencionados por Fleck (2006) para as primeiras reduções ainda no século XVII, nos quais os relatos sobre as mulheres oscilavam entre narrativas contraditórias que iam de auxiliares do demônio a devotas exemplares. Segundo a historiadora, esses estereótipos foram mudando de forma gradual conforme o projeto colonial avançava, dando espaço aos exemplos de conversão valorizados pelos padres. Já as crianças são sempre apresentadas como frágeis e necessitadas de resgate, inclusive as afastando dos adultos de seus povos. A estratégia de separar pessoas, sejam elas adultos ou crianças não era incomum. Especificamente os relatos com um viés negativo sobre as mães indígenas, alguns pesquisadores apontam como eles foram veiculados com frequência ao longo da história. Destacamos as colocações da antropóloga Segato (2012), em que associa esse comportamento como uma forma de legitimação da intromissão por parte dos agentes coloniais nos modos de viver dos povos indígenas. Esses relatos se valeram da utilização dessas narrativas de salvação de crianças de seus próprios povos ou de suas próprias mães, nos quais comportamentos fora de um padrão de referência deveriam ser neutralizados e combatidos (SEGATO, 2012, p. 122). A reflexão da autora é pertinente para compreender algumas das argumentações utilizadas pelos narradores apresentados e que, infelizmente, ainda encontramos em discursos veiculados atualmente. Sobre como nossas fontes apresentam as mulheres indígenas, destacar alguns aspectos estereotipados não é uma novidade. Outros trabalhos argumentam a relação dessas falas aos interesses próprios de Laura Oeste | 89 seus narradores. No caso para os religiosos, a preocupação com a conversão religiosa e o controle da população indígena, trazia elementos específicos para as indígenas pautados em exemplos de conduta que tinham a mulher cristã ocidental como parâmetro (GÓMEZ, 2012, p. 29). Outra pesquisadora apresenta algumas considerações semelhantes que mostram diálogos com representações femininas em geral, nos quais associa a descrição das mulheres na documentação a poucas informações e sempre imaginada, relatada e descrita por outro. Nisso, as representações tendem a um modelo de conduta e personalidade que preza características como pureza, honra, submissão, entre outras (GUARDIA, 2002, p. 369). Essa última colocação explica um pouco a observação realizada no início dessa sessão, sobre a ocorrência de várias citações nas fontes sobre as indígenas, mas com poucas informações relevantes para sua contextualização. Comparando como nossas fontes mencionam alguns comportamentos dos indígenas quando elas descrevem mulheres e homens no mesmo documento, percebemos uma valorização dos últimos e uma certa depreciação do feminino. Em um relato na redução de San Javier, as mulheres indígenas são representadas como tendo um comportamento excessivo enquanto os homens seriam ponderados. Em uma parte da carta ele destaca a calma dos maridos frente a agitação das mulheres “[...] Las Yndias son mui inquietas y chismosas. Por no nada vienen á las manos. Mas, aunque ellas se den de paios, no se alteran sus maridos. Antes, tendidos de barriga, miran mui sosegados la pelea [...]” (ANÔNIMO, 1750, p. 18). Ao longo desse mesmo documento, seu narrador relaciona a poligamia ao mau comportamento das mães indígenas em relação aos seus filhos, enquanto para os homens, o narrador enaltece suas condutas de zelo e exemplo quando mencionam o mesmo costume. 90 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Já especificamente para os homens encontramos questões com aspectos mais brandos, quando comparados às indígenas. Frequentemente nas fontes os indígenas são apresentados como os principais e únicos provedores das famílias e, sem eles, as mulheres e crianças estariam totalmente desamparadas. Cabe ressaltar que não estamos argumentando que os indígenas não foram importantes para a manutenção das suas famílias, e que a sua ausência não teve um impacto significativo em seu sustento. Mas destacamos alguns relatos nos quais os homens são tratados como os únicos responsáveis pela sobrevivência do grupo familiar ou como nas falas dos padres de suas “pobres” mulheres e filhos, sendo que as mulheres tiveram um papel fundamental e foram responsáveis pela grande quantidade do trabalho e manutenção das reduções como bem relatado por outros autores (VITAR, 2015). Em meados do Setecentos, observamos essa argumentação com frequência quando os homens se ausentavam para trabalhos externos como, por exemplo, nas vacarias, ervais, entre outros. Segundo um jesuíta, as “pobres mulheres e filhos”, com seus maridos ausentes dos pueblos, morreriam de fome pois não teriam ninguém para semear os campos com os grãos e raízes necessários. Essa desordem levaria a miséria corporal e espiritual, pois devido à falta de sustento as mulheres precisavam sair “em busca dele” por vários lugares colocando em risco suas vidas (ANÔNIMO, 1710, p. 152). No informe já mencionado dos jesuítas De Zea e Sanchez, eles desenvolvem uma argumentação semelhante sobre a importância do acesso às vacarias para os indígenas e suas mulheres e filhos (DE ZEA; SANCHEZ, 1702, p. 125). Os indígenas também recorriam a esse imaginário quando precisavam defender seus posicionamentos. Observamos isso no seguinte caso: Laura Oeste | 91 Sr. Desde el 3 de abril del año 1771 salimos de nuestras tierras y pueblos destinados a estas reales obras y nosotros como leales vasallos de su magd nosignamos obedientes dejando a nuestras mujeres e hijos en puestos y mil hambres y miserias y padeciendo nosotros en tan largo viaje por caminos con esperos y ríos qe a nado pasamos inmenso trabajo con perdidas de nuestro vesticario llegando quasi desnudos a estas fatigados de aver andado a pie los mas de nuestros hijos todo el camino y desde el año de 1771 al de 1773 ha que nos damos trabajando con el maior empeño [...] (AGNA, 1773, p. 4). Nessa carta elaborada por alguns capitães e caciques missioneiros ao Governador Geral, eles argumentam como a ausência e distância das suas famílias são prejudiciais para as mulheres. Esses indígenas construíram em seu texto, argumentos bastante semelhantes aos apresentados anteriormente pelos jesuítas. No caso, eles estavam auxiliando na construção da Fortaleza de Santa Teresa há mais de dois anos, desde 1771 (AGNA, 1773). Na documentação consultada os homens indígenas são raramente nomeados como pais, vale apontar que também observamos isso para as mulheres, elas são dificilmente chamadas de mães, mas quando mencionadas como tais em nossa documentação, os relatos tendem a ser pejorativos, como alguns dos já apresentados. Em algumas fontes, de produção não religiosa, encontramos referências que dialogam com as falas dos inacianos. Quando da expulsão dos jesuítas da América espanhola, diversas instruções foram apresentadas para organizar a manutenção das reduções. Entre elas, se destacam as orientações referentes às mulheres e seus filhos e como eles seriam representados nos censos. Os filhos e as indígenas casadas pertenceriam à redução do pai, enquanto que os filhos de mulheres solteiras à da mãe. Quando viúva ela seria livre para se mudar, mas deveria deixar os filhos no pueblo do pai. O interesse do funcionário estava 92 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS relacionado a preocupação em tributar os moradores das missões, no mesmo documento ele também menciona o controle em saber quais são casados, solteiros e solicita uma relação individual dos indígenas (BUCARELI Y URSUA, 1770, p. 322). Importante mencionar que essas tentativas de organização não foram apenas para as reduções. Ao longo da década de 1770, na documentação presente no Cabildo de Buenos Aires, observamos várias tentativas de organizar a vida dos cônjuges. As fontes mostram algumas tentativas em determinar quais casados realmente tinham “vida Maridable” com suas esposas. O material, nesse caso, não especificou para quem essas instruções eram voltadas e foram justificadas como um auxílio na organização dos censos que seriam realizados (AECBA, cabildo del 25 de octubre de 1774, p. 158). A proposta não foi bem recebida e vista como uma intromissão pelos moradores locais (AECBA, cabildo del 24 de abril de 1775, p. 343). Considerações Finais Realizando algumas ponderações finais: a documentação mostra uma variedade de tensões, contradições e concepções dos sujeitos coloniais sobre a mulher indígena e seu lugar social, que em alguns momentos dialogava com ideias que estabeleciam características e papéis femininos e masculinos nos moldes da sociedade ocidental do período, em contraponto aos dos povos indígenas. Sobre essa última colocação, não encontramos referências que sustentassem uma maternidade e paternidade mais colaborativas, talvez pela característica de nossas fontes que tendiam a falar muito mais sobre as suas próprias percepções. Mas nesses mesmos documentos notamos que as indígenas em determinados momentos, faziam valer os seus interesses, nesses casos sendo acusadas de serem má influência tanto para seus filhos como para os padres. Laura Oeste | 93 Também percebemos que as indígenas têm seus comportamentos frequentemente comparados e medidos em relação ao dos homens, o que reforça a importância de uma análise com base nas relações de gênero. Pontuamos que esses escritos trazem muitos adjetivos e aspectos negativos quando relatavam comportamentos compreendidos como inadequados pelos agentes coloniais distintos. Para as mães as narrativas trazem um julgamento um tanto negativo quanto à gravidez e cuidados com os filhos. Especificamente sobre os pais, os indígenas são apresentados nos escritos como provedores das famílias e bons exemplos de conduta. Referências AGUIRRE, Andrés; NÉSPOLO, Eugenia. 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Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão de Publicações e Divulgação, 1969. ROJAS, Salvador de. Situação das reduções do Uruguai em 1707. SÃO BORJA, 20-XII-1708, p. 248. In: Jesuitas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758) Manuscritos da Coleção de Angelis: BIBLIOTECA NACIONAL. Divisão de Obras Raras e Publicações. 1970. Capítulo V As Cartas Ânuas como fontes etnográficas: possibilidades e desafios. Uma análise de caso da Ânua de 1735-43, de Pedro Lozano S.J, e as reduções austrais da pampa-patagônia Thaís Macena de Oliveira 1 Introdução: Cartas Ânuas e o gênero epistolar O presente trabalho buscará realizar uma análise inicial de um estilo de documentação bastante clássico, já utilizado por gerações de historiadores. Buscaremos verificar as possibilidades e limitações desta fonte para o conhecimento das missões austrais da pampa bonaerense e das populações indígenas que habitavam este espaço2, no século XVIII. Neste sentido, a Carta Ânua de “autoria”3 do jesuíta Pedro Lozano4 [1735- 1 Mestranda – Universidade do Vale do Rio dos Sinos; tmacena@gmail.com 2 Nesse território, até meados do XVII, contatos entre “brancos” e indígenas eram escassos. Assim, grupos indígenas viviam com relativa independência do poder colonial, ainda no XVIII, e, na prática, exerciam o controle sobre este território. A partir do avanço de pueblos e haciendas coloniais e da dinamização das etnias indígenas, ocorreu o incremento dos contatos interétnicos na região. Tais relações adquiriram uma tonalidade violenta sobretudo na década de 1730, pressionando as autoridades a pensarem em estratégias de apaziguamento da fronteira com a tierra adentro (território ocupado pelas populações indígenas independentes). O historiador Raul Mandrini (2004) via esta intensificação de contatos como o resultado de uma disputa pelo gado, que havia sido introduzido pelos europeus na região no XVI, mas que, no XVIII, o avanço das haciendas de criação deste animal inaugurou um período de maior conflitividade nesta “zona de contato” (PRATT, 1999). Nesse sentido, as três reduções jesuíticas (Nuestra Señora de la Purisima Concepción de los Pampas [1740], Madre del Pilar del Volcon [1746] e Nuestra Señora de los Desamparados [1750]) que duraram entre 1740 e 1753, enquadram-se dentro dessa iniciativa, e são espaços privilegiados para estudos de relações interétnicas, tendo em vista que dinamizaram ainda mais os contatos neste espaço. Nas últimas décadas, a historiografia sobre esse tema tem buscado renovar as interpretações acerca dessas relações, ver em: Bechis (2008); Mandrini (2004); Martins (2017); Nacuzzi (2008); Silva (2016) e Silva (2018). 3 Sobre a autoria das cartas ex comissione: “[...] quem é o autor destes documentos? Muitos são os estudiosos da Companhia que recorrem à análise grafológica e/ou morfológica dos textos na tentativa de diferenciar os estilos próprios do escritor material e do “escritor moral”, procurando uma resposta para os casos específicos. O que se pode com certeza afirmar é que existe uma simbiose entre o escritor material de uma carta, por exemplo, e o ditador da mesma, onde a minuta entregue é fielmente reproduzida pelo escritor, muito embora com expressões e estilo próprio. A questão fica aberta, chamando a atenção dos pesquisadores para mais pesquisas” (RODRIGUES, 2011, p. 15). 4 Para a compreensão da prática de escrita de Pedro Lozano S.J e de sua trajetória, indicamos o trabalho de MOURA, 2019. Thaís Macena de Oliveira | 99 1743] foi lida e examinada, tendo como foco a análise do que este religioso nos descreve sobre a fundação da redução de Nuestra Señora de la Concepción de los Pampas5, e dos indígenas que estavam em contato com os missionários e com a sociedade hispanocriolla como um todo. As Cartas Ânuas eram documentos de orientação oficial dos jesuítas. Desde o princípio, a prática epistolar foi incentivada por seus fundadores, sobretudo a partir da figura de Inácio de Loyola. Não apenas a produção desta escrita, mas a conservação dessa documentação, sempre foi, e, continua sendo um aspecto fundamental para a Companhia. Neste sentido, Paulo Rogério Melo de Oliveira nos esclarece: Desde a fundação de sua ordem, os jesuítas dedicaram-se à conservação dos registros escritos relacionados à sua instituição e às suas atividades missionárias pelo mundo. A produção de documentos da instituição é monumental, tanto no aspecto da colossal emissão de papéis escritos, quanto na intencionalidade do que foi produzido. Desde os tempos de Loyola, sempre houve o cuidado de cultivar um legado exemplar a ser transmitido às futuras gerações. Os próprios jesuítas, a começar pelo fundador da ordem, espelharam- -se nos escritos dos santos e padres da igreja conservados através dos séculos. Os exemplos do passado e a memória escrita da igreja estimularam o desejo de deixar algo edificante, digno de ser lembrado no futuro. (OLIVEIRA, 2011, p. 267). Onde estão localizadas estas Cartas Ânuas? A coleção mais completa de originais está no Arquivo Geral da Companhia de Jesus, em Roma, incluindo a Paraguay Liit. Annue / Vol. III / 1735-43. Apesar do título, essa fonte é na verdade uma única carta que abrange um longo período. O acesso a ela é 5 Esta Carta Ânua do Padre Pedro Lozano [1735-43] abrange informações de um curto período da primeira redução construída na região, Nuestra Señora de la Purisima Concepción de los Pampas [1740]. Dessa forma, a partir das informações que coletou, o religioso também escreveu sobre uma parte do período que antecede a construção da missão e descreveu de forma breve as populações indígenas. Não temos conhecimento de outra Carta Ânua que traga informações sobre estas reduções. 100 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS possível, por exemplo, através do Instituto Anchietano de Pesquisas (Unisinos), que, a partir de uma coleção de réplicas fotográficas dos originais presentes no Arquivo Geral da Ordem6, produziu microfilmes. Estas Cartas eram informes que o Superior da Província remetia periodicamente7 ao Geral da Companhia de Jesus, em Roma. Elas eram produzidas a partir das “ânuas parciais”, ou seja, das informações provenientes das missões ou reduções, e dos Colégios. Também poderiam conter informações colhidas pelos Superiores em suas viagens de visita, ou, ainda, aquelas contidas em cartas particulares (FLECK; FRANZEN; MARTINS, 2008). A regulação das Ânuas era rígida, de forma que elas atendessem a funções múltiplas da ação jesuítica na Europa e nos outros continentes. As Constituições da Ordem8 designavam “responsabilidades para a geração das informações e destinatários destas. Foram fixados prazos, determinada a produção de cópias, definida a circulação destas, consideradas as línguas e apontados os temas a serem tratados nas cartas. ” (LONDOÑO, 2002, p. 15). O Padre Polanco, secretário de Inácio de Loyola, foi quem sistematizou as orientações para a escrita das Cartas. A motivação para o empreendimento das Ânuas pode ser visualizada em uma carta de Polanco ao Padre Manuel de Nóbrega, datada do ano de 1553, na qual ele afirma que as informações sobre as Províncias eram imperfeitas (NÓBREGA, 1955, pp. 511-512 apud FLECK; FRANZEN; MARTINS, 2008, p. 10). 6 O Arquivo Geral da Ordem está localizado no “Colégio del Salvador” em Buenos Aires (FLECK; FRANZEN; MARTINS, 2008, p. 13). 7 Não existia uma periodicidade “correta” para a redação destas Cartas. Ao contrário do que possa parecer devido ao nome, elas não eram “anuais”, poderiam abranger um longo período de tempo, como no caso da Ânua de Pedro Lozano. 8 “As Constituições da Companhia abrangem, no detalhe, todos os aspectos da vida do jesuíta. Através dos seus decretos, Inácio de Loyola fez o máximo esforço para dar conselhos, úteis e necessários, aos jesuítas. Mas também era seu desejo conhecer quanto estes faziam nas suas missões” (RODRIGUES, 2010, p. 2). Thaís Macena de Oliveira | 101 As Cartas Ânuas deveriam receber a assinatura dos Provinciais, entretanto, eram escritas “por seus secretários ou por algum Irmão de reconhecido talento para escrever” (FLECK, FRANZEN; MARTINS, 2008, p. 11). O relator, que classificava e ordenava o material, excluía o que não era tido como importante ou conveniente. Ele também poderia transcrever os informes individuais, fazendo, ou não, menção aos seus autores. Depois de redigidas, as Ânuas eram submetidas a um “censor de estilo”, e, após isso, à avaliação dos Consultores de Província. Em seguida, eram traduzidas ao latim. Após essas “camadas” de filtros, as Cartas, várias cópias e por meios diferentes, eram enviadas até Roma para o Padre Geral da Companhia. Os Gerais da Companhia9 estimulavam seus companheiros a escreverem sobre seus testemunhos na “divulgação da palavra de Cristo e na conquista espiritual dos gentios e infiéis” (FLECK; FRANZEN; MARTINS, 2008, p. 11). As Ânuas alcançavam um público maior do que os religiosos jesuítas, circulavam entre a população europeia com o intento de conquistar novas vocações. Por isso, define-se as Ânuas como um gênero de escrita “edificante”. A circulação e leitura pretendida na Europa buscava estimular “[...] a boa-vontade das autoridades, as doações por parte dos bem-feitores da Companhia e as vocações de novos irmãos”, além disso, as informações sobre os indígenas “[...] convertidos a partir do apostolado jesuítico eram exemplos de vida e fé a serem seguidos”, e portanto, “[...] as Cartas seriam mais um diálogo espiritual com os leitores, do que um registro fiel de uma realidade observada e descrita” (FRANZEN, FLECK, MARTINS, 2008, pp. 1112). Aqui, chamamos a atenção novamente para a questão do propósito de escrita destas Ânuas, que indicam algumas possibilidades e limites de sua 9 Havia também um estilo de documentação que percorria o caminho inverso trilhado pelas Ânuas. Estas, são as cartas dos Gerais da Companhia, enviadas aos Provinciais. É possível o contato com esse tipo de fonte através do trabalho de Martín María Morales (2005), por exemplo. 102 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS utilização. Ou seja, a escrita das Cartas não tinha a intenção de ser um relato da verdade vivida e observada, mas, de ser um testemunho edificante. As Cartas também testemunham a solidão do sacerdócio, as dificuldades enfrentadas – sobretudo em localidades fronteiriças -, e demonstram que os jesuítas deveriam estar “prontos para o sacrifício do martírio como testemunho extremo de vida” (FLECK, FRANZEN, MARTINS, 2008, p. 12). Nesse sentido, um possível objeto de pesquisa para quem optar por utilizar as Cartas Ânuas é o estudo da subjetividade destes missionários, que estavam em contato com um mundo completamente adverso do seu. Um exemplo contundente de estudo neste sentido é o livro de Ivonne Del Valle, Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuitas en el siglo XVIII (2009), no qual a autora investiga a epistemologia dos missionários em contato com populações indígenas na fronteira norte do império espanhol, a partir de noções como corpo e subjetividade.10 Outras possibilidades de pesquisa com o uso das Cartas Ânuas dizem respeito ao estudo das relações mantidas entre estes missionários, o trabalho que eles exerciam nas cidades e nos Colégios, e nas chamadas missões populares11. Esta documentação também pode servir ao estudo sobre os indígenas, sobretudo, no caso das sociedades que eram ágrafas. Para isso, contudo, é necessário ter em claridade a questão do etnocentrismo, perceber que o olhar do jesuíta é o de um evangelizador e civilizador, que vê o indígena como um ser humano que precisa ser transformado. Nesse sentido, estas fontes podem ser instrumentos importantes para estudos etnográficos, mas precisam ser decodificadas através de um exame crítico – possível, sobretudo, a partir das 10 “...muitos missionários, por causa da solidão e do desgaste físico e psicológico do excesso de atividade apostólica, sentem a necessidade de receberem conforto e a ajuda de conselhos sobre o melhor modo de proceder. Daí que a troca de notícias por via epistolar traz consigo novo ânimo e recíproca consolação” (RODRIGUES, 2011, p. 4). 11 Há o trabalho de Beatriz Franzen (2005), no qual a autora investiga as missões populares a partir, justamente, da Carta Ânua de Pedro Lozano. Thaís Macena de Oliveira | 103 contribuições da antropologia. Este exame crítico não tem a intenção de deslegitimar os sujeitos históricos construtores dos discursos. Não se trata de exercer um julgamento moral a posteriori sobre o que os missionários relataram, mas, de relativizar as informações a fim de evitar a reprodução das generalizações, por exemplo. A grande “virada” foi passar a tratar as Ânuas realizando uma crítica interna delas. Ou seja, não mais ler estas Cartas com uma intenção positivista de que elas sejam o reflexo do que ocorreu nas missões. Assim, um documento muito clássico e tradicional como as Cartas Ânuas, vem sendo reutilizado por historiadores que tem renovado a produção historiográfica sobre os jesuítas, sobre as missões, a partir da crítica interna das fontes, buscando decodificar as intencionalidades, os aspectos subjetivos. É necessário abandonar a ilusão de uma historiografia que via essa documentação uma janela para o passado. Dito isto, o presente texto buscará evidenciar as informações relatadas sobre a redução de Pampas e as populações indígenas da região, a partir da Ânua de Pedro Lozano S.J, sempre que possível, contextualizando com trabalhos recentes sobre este espaço e estas populações. A Carta Ânua de Pedro Lozano S.J e as reduções austrais A estrutura característica de uma Carta Ânua é iniciada com uma saudação protocolar e uma introdução, seguida da descrição da situação específica de cada Colégio. No caso da Carta Ânua escrita por Pedro Lozano S.J, nos deparamos com a seguinte estrutura: [...] lo repartiré en varios capítulos, tratando primero lo perteniciente a los colegios, y los ministerios acostumbrados, en ellos ejercitados; 2º las continuas predicaciones apostólicas habídas en cada uno de los colegios al pueblo, con un éxito extraordinario; 104 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS 3º las excursiones que se han hecho, desde estos colegios a los pueblos circunvecinos en cada año; 4º la vuelta a nuestro colegio de la Asunción, y la recién fundada residencia en el puerto de Buenos Aires; 5º los trabajos de los nuestros en las misiones del Paraná y Uruguay; 6º los trabajos de los mismos en la misión de los chiquitos; 7º las antiguas y nuevas estaciones misionales entre infieles; 8 º al fin nuestros hermanos en religión, difuntos en esta Provincia (LOZANO, [1735-1743] 1994, pp. 2-3) [grifo nosso]. Aqui, nos interessará, especificamente, a parte sétima desta fonte, em que o religioso descreve sobre uma série de projetos missionais entre infiéis, entre estes, os de pampas e serranos. Descrever a estrutura da Carta teve a intenção de apresentar a enormidade de possibilidades de objetos de estudo que há com essas fontes. Esta Ânua contém mais de 600 páginas. O presente trabalho focou na análise das páginas 579 a 603, uma vez que são nestas que se encontram as informações sobre a redução de Pampas. Passaremos agora para a exposição das informações contidas nesta carta, realizando uma crítica interna do conteúdo a partir de trabalhos da historiografia e da antropologia, que nos ajudam a entender a complexidade destas relações e desta região. Lozano S.J inicia seu relato intitulado La misión y redución de los Pampas fundada el año de 1740, afirmando que os pampas eram uma “nação”12 numerosa que a princípio resistiu ferozmente a dominação espanhola, retardando-a muito. Mas, que a esta altura, acabaram sendo obrigados a fazer as pazes e reconhecer a superioridade dos espanhóis. Podemos, e, devemos relativizar esta informação, uma vez que existem inúmeros trabalhos nas últimas décadas que demonstraram que os 12 Para o exame da questão das classificações étnicas como não definidoras das identidades indígenas, ver: Boccara, 2001 e Weber, 2007. Thaís Macena de Oliveira | 105 indígenas da região, suas ações e estratégias políticas, continuaram a impor uma série de dificuldades aos intentos espanhóis durante o desenrolar do século XVIII (ARIAS, 2007; MARTINS, 2017; SILVA, 2016). Sobre o trato familiar com os espanhóis, Lozano afirma que isto levou ao arraigamento de seu principal vício, a ebriedade. “Dizimados” pela varíola e pela bebida, esses indígenas se reduziriam à três “parcialidades” de número “insignificante”. Além de utilizar trabalhos da historiografia e da antropologia recente, outro meio pelo qual o/a pesquisador/a pode realizar uma crítica interna da fonte é através do cruzamento desta, com uma documentação de outra origem, em que os sujeitos viam os acontecimentos por outra ótica. Nesse sentido, para um estudo que tenha como objeto a questão da demografia das populações indígenas desta região, as atas dos Acuerdos do Cabildo de Buenos podem ser valiosas no intento de relativizar tal “dizimação”, por exemplo. Assim, podemos colocar este número “insignificante” que Lozano afirma, dentro de um contexto. As atas do Cabildo de Buenos Aires, sobretudo as que são referentes às décadas de 1730 e 1740, apresentam de forma contundente a preocupação das autoridades com os inúmeros ataques às estancias – conhecidos como malones – e às carretas de comerciantes que andavam pelos caminhos, colocados em prática por grupos indígenas da região. Nestas atas, seguidas vezes, nos deparamos com as autoridades implorando aos superiores – governador e/ou rei – ajuda financeira para empreender a “guerra” contra os infiéis, em uma situação que transparece até mesmo uma “inferioridade” militar destes colonos em relação aos nativos. Tal situação revela que o número “insignificante” de indígenas naquele período, não era tão insignificante assim, pelo menos, não em relação à demografia da região. 106 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A Carta Ânua, por si só, já é uma fonte que transparece a ação dos jesuítas. Ela também acaba revelando as ações de outros sujeitos. Ou seja, há uma infinidade de movimentações sociais, políticas, econômicas, e militares, que são possíveis de vislumbrar através da leitura desse documento. Nesse sentido, Lozano relata alguns acontecimentos essenciais da década de 1730 – especificamente, a série de ataques e roubos – que irão gerar inúmeras consequências, inclusive, relacionadas ao progresso da redução de Concepción de los Pampas. No ano de 1734 ocorreram vários delitos, como o roubo de gados dos povoadores das aldeias próximas de Buenos Aires, perpetrados por alguns grupos de índios pampas. Como castigo, o governador mandou cativar alguns pampas (não se tem ideia se são os mesmos pampas que efetuaram os delitos). Como não havia provas suficientes, eles foram soltos e julgaram o acontecido como uma injustiça, se juntaram em número muito grande e atacaram a todos na estância de Don Francisco Cubas Diaz, levando todo o seu gado. Como resposta a este ataque, se decidiu “castigar os atrevimentos” do cacique Calelían, o Velho, e da sua parcialidade. Essa entrada punitiva levada a cabo pelo Mestre de Campo Juan de San Martin, acaba por tomar a parcialidade indígena de surpresa e dizimar a todos do grupo (FARIAS, 2017). Entretanto, não havia nenhuma prova de que teria sido Calelían, o Velho, o autor dos saques à estancia. Seu filho, Manuel Calelían, estava ausente quando o ataque aconteceu, e, tendo notícia do fato, voltou após a retirada dos espanhóis. Ao ver seu pai, parentes e amigos degolados, resolveu se vingar, então reuniu cerca de 300 homens, foi à vila de Lujan, matou grande número de espanhóis, tomou alguns cativos, e roubou alguns “milhares” de cabeça de gado. De acordo com o relato de Lozano, depois do ataque sobre Lujan, há uma outra expedição punitiva orquestrada por Juan de San Martin. Uma das frentes desta, acaba atacando um grupo de pampas serranos liderados Thaís Macena de Oliveira | 107 pelo cacique Don Maximiliano, que detinha uma licença para habitar a ilha de Carbón, e mantinha um trato amigável com os espanhóis. Mataram o cacique e sessenta de seus vassalos, e cativaram mulheres e crianças, como se eles tivessem sido cumplices dos delitos cometidos por outros pampas. O sobrinho de Maximiliano, o cacique Cangapol, o Bravo, liderou inúmeros momentos de instabilidade na região, nos anos seguintes. Há, com esses relatos, embora não possam ser vistos como a apreensão da “verdade” sobre os acontecimentos, uma boa ideia da complexidade das relações estabelecidas entre estes grupos indígenas – sociedades extremamente segmentadas, como vimos – e os hispanocriollos. A própria existência da redução dos Pampas foi afetada por estes acontecimentos. Segundo Lozano, os pampas puelches e carayhetes, com esta sorte de tragédias, ficaram preocupados com os seus destinos. Assim, segundo o Padre, esses caciques teriam considerado que seria mais acertado nestas circunstâncias, se entregarem à administração dos espanhóis. E assim, foi oferecido a eles que vivessem em redução, pois teriam paz e o favor de proteção do monarca católico. Foi o governador quem logo decidiu, de acordo com Lozano, que seria a Companhia quem deveria tomar a direção desse projeto, devido aos seus “bons frutos”13. Rogou ao Provincial que proporcionasse as pessoas mais idôneas, em que pudessem instruir os pampas “formando de ellos templos vivos de Dios” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 590). Ele também teria “agenciado” o projeto com o “empenho de um missionário”. Falou com o reitor do Colégio para convencê-lo e afirmou que esta seria “una ocasión 13 “Outro “motivo-vantagem” do escrever é a humildade, produzida e alimentada pela consideração de que quanto trabalho o jesuíta passa e faz na missão, e que Deus se serve destes co-irmãos missionários. Disto decorre o crescimento do “bom odor” da Companhia, muito almejado para os fins a que ela se propõe” (RODRIGUES, 2011, p. 4). 108 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS excelente para los Padres, en lo qual pudiesen comprobar que no buscaban otra cosa, sino servir a Dios y al rey” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 591). Para Lozano, até mesmo o “cielo pareció favorer esta empresa” [...] pois os superiores tinham destinado “unos sujectos excelentes, varones verdaderamente apostólicos, y ya muy experimentados entre los guaraníes” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 592). Estes padres eram Manuel Querini e Matías Strobel. Os missionários tinham uma preocupação muito grande: que a admissão da fé cristã deveria ser algo completamente livre, que os índios não se atravessem a pedir o batismo por medo. Os caciques – Don Lorenzo Manchado, Don José Acazuzo, Don Lorenzo Manuel e Don Pedro Milán –, segundo relata Pedro Lozano, foram encaminhados ao Colégio, para que fossem questionados várias vezes sobre o assunto. O Padre Provincial recebeu as cartas do Governador e do Cabildo Secular, resolvendo admitir a redução dos Pampas. O Cabildo Secular nomeou alguns cavalheiros distintos para recolher as esmolas de casa em casa. Em pouco tempo, conseguiram cerca de 700 pesos de prata, mil ovelhas e outras tantas vacas. Esse sucesso no recolhimento de esmolas para o empreendimento, se deve ao fato de que, não apenas para as autoridades, mas, também para todos os criollos da região, a redução significava a esperança de que esta “zona de contato” (PRATT, 1999) seria apaziguada14. Enquanto isso, o Padre Matías Strobel se dirigiu com os caciques e uma escolta militar para localizar o terreno mais adequado para a fundação da redução. Neste momento, Lozano relata que os missionários tiveram algumas dificuldades, uma vez que os catecúmenos queriam se 14 “Había esperanza de que se aumentaria de un día al otro su número, juntándose con ellos otros pampas, que vagaban por los montes; hasta otros infieles más, tan pronto que supiesen algo de la redución, y hubieron visto, cuán comodamente se vivía en ella” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 598). Thaís Macena de Oliveira | 109 “establecer demasiado cerca de la ciudad, parte para alejarse más de sus enemigos, los pampas serranos, parte para poder comunicarse con más facilidad con los españoles, circunstancia que a todo trance se empeñaron los padres a eliminar...” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 595). Assim, foi necessário que o Governador interferisse: Para allanar esta dificultad, llamó el gobernador de provincia a su presencia los caciques, y los encargo, interponiendo su autoridad, que, ante todo, guardasen una total obediencia y reverencia para con los Padres [...] y por lo tanto, quedasen solo las tierras al otro lado del rio Salado, las mismas que había escogido el Padre Matías, como muy a proposito para la redución (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 595). Ao relatar esta dificuldade, Lozano nos conta que o governador precisou agir e ser firme ao esclarecer a autoridade dos padres para os indígenas. Não é possível afirmar em que ponto chegou tal “desobediência”, ou insistência dos pampas, sobre a questão da localidade da redução. Mas, podemos conjecturar que este foi um desafio que já antecipava como as relações nas reduções austrais seriam mediadas15. As Cartas Ânuas são repletas de exemplos de conversões que possuem como intento a edificação dos seus leitores. Assim, na Ânua de Lozano, especificamente, também há um relato deste tipo. Trata-se da conversão da esposa do cacique Manchado16, que Se había enfermado gravemente, y pidió aqui ardientemente el bautismo. Habiendose ella preparado con gran para este acto, recebió este sacramento com también poco después él de la Extrema unción, y al fin, entre firvientes 15 Este trecho chama a atenção para a questão da agência indígena, tema de estudo nos últimos anos por alguns historiadores. No caso da região em questão, temos, por exemplo, o trabalho de Silva (2016), que buscou investigar a agência destes nativos no manejo da fronteira bonaerense e das relações nas missões. 16 O nome da indígena não é mencionado, questão que nos chama atenção para os desafios de uma história de gênero indígena, haja vista um “duplo” silenciamento sofrido. São muito raras as menções aos nomes das mulheres nas fontes dessa região e período, não apenas para o caso das indígenas. 110 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS actos de virtud, y durante la recomendación de su alma, se fue al cielo, como feliz primicia de esta futura misión” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 597). Depois deste relato edificante de conversão de uma indígena enferma, Lozano conta que os Padres, os pampas e alguns guaranis artesãos, chegaram ao local da fundação da redução e iniciaram as obras. Após assegurar, por ora, o sustento temporal da redução, era chegado o momento de iniciar a principal tarefa dos missionários, “que consistia en formar de estos troncos primero seres racionales, y despues buenos cristianos” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 599). Lozano dá detalhes de como era feito isto. Se reuniam aos catecúmenos pela manhã e à tarde “les explicaban la doctrina cristiana; y para que les entrase ella con más facilidad, la hacían rezar en alta voz” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 599). As crianças foram todas batizadas, e assim também os adultos que desejavam receber o sacramento e que se empenhavam em aprender a doutrina. À noite, nas suas casas, eles deveriam repetir a lição dada pelos padres, e as vezes, relata Lozano, vinham pedir explicações aos missionários sobre o que não entendiam. Com isso, os Padres estavam, segundo Lozano, maravilhados “de tan buenos resultados, y estó, con gente que por dos siglos habían quedado mas dura que rocas, así que parecia haber llegado el momento, determinado por el cielo, para su conversión” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 600). Ainda, o que teria animado mais aos Padres foi “la prohibición absoluta de la ebriedade, cosa, que hasta ahora era muy deseable para esta nación, pero tenida por irrealizable”17 (LOZANO, [17351743] 1994, p. 600). 17 O período que a Carta Ânua de Lozano [1735-43] abrange diz respeito aos primeiros momentos de desenvolvimento da redução de Pampas [1740-1752]. Assim, não podemos arriscar uma explicação sobre diferença entre este relato e as cartas e crônicas dos próximos jesuítas missionários que atuaram na região. Nesse sentido, uma potencialidade de estudo seria a investigação, a partir de documentações de vários jesuítas, das circunstâncias que Thaís Macena de Oliveira | 111 A Carta é finalizada com o jesuíta trazendo à tona que o “espírito do mal” não aguentou “este feliz progreso de la misión, y para destruirla, quiso encender las antorchas de la guerra, instigando los pampas a asaltarla, o, a lo menos, procurando que los catecúmenos la abandonasen por miedo del español” (LOZANO, [1735-1743] 1994, pp. 600-601). Lozano está se referindo às ameaças de ataques que o referido cacique Bravo e seus aliados estavam exercendo pela região. Um dos alvos deste grupo seria a nova redução, que se viu livre deste perigo, de acordo com Lozano, devido que “ali había una trinchera muy alta, defendida por dos cânones...” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602). Entretanto, os pampas reduzidos não se viram livres das acusações de que eles seriam cúmplices da parcialidade do cacique Bravo. Relata o padre Lozano, “surgió la sospecha contra estos inocentes, como si ellos hubiesen atraído al inimigo ifo (sic) infiel” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602). Os “vecinos” passaram a tratar “como enemigos encarnizados a todos nuestros catecúmenos” (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602), e complementa com a defesa dos catecúmenos: Sucedió por entonces, que dos pampas fueran tratados pessimamente por los vecinos de Buenos Aires, contanto ellos, al volver a la redución, los maltratamientos, sufridos por los españoles. Al oi resto el cacique catecúmeno Don Felipe Yahati, se transtorno de tal manera, que ya no se tenía por seguro, en caso de que no volviera con sua vassalos a sus serranos; y lo puso a la obra, sin que los nuestros le hubieran podido quitar de la cabeza este arbitrio disparado. [...] Pero Dios quiso conservar allí a los demás, para comprobar su inocencia [...] Estaba además, comprobada su inocencia por el outro hecho, testificado por los Padres, que sus pampas, en tiempo de la invasión, todos estabam presentes en su pueblecito (LOZANO, [1735-1743] 1994, p. 602-603). causaram a falência do projeto reducional na pampa bonaerense, ou, ainda, verificar o porquê das fontes posteriores a esta Ânua apontarem o caráter borracho e quase “inconvertível” desses indígenas. 112 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Considerações finais A realização deste trabalho revelou algumas potencialidades e desafios do uso das Cartas Ânuas como fontes etnográficas, para o entendimento das relações vivenciadas nas missões e nos seus arredores, por indígenas, criollos e jesuítas. Foi possível perceber que vários objetos de investigação podem ser trabalhos a partir de uma crítica interna do documento histórico – que deve ser tido como uma versão que é sempre limitada e incompleta sobre os fatos – aliada ao cruzamento de fontes, quando possível e necessário. No caso de inúmeros grupos indígenas, não temos acesso à uma versão escrita do passado sob as suas óticas. Dessa maneira, uma análise das fontes “tradicionais”, como o caso da Carta Ânua, através de uma perspectiva que considere as contribuições da antropologia, sobretudo, podem nos auxiliar a formular possíveis interpretações que considerem a visão dos nativos sobre o passado, e a agência desenvolvida por eles nas relações, por exemplo. Um dos principais questionamentos que a análise desta Ânua de Lozano levantou, foi a questão do que teria motivado os indígenas pampas a solicitarem a construção de um Pueblo sob à proteção dos espanhóis, e aceitarem formar uma redução. A fonte, lida por si só, indica para duas motivações. O medo dos ataques de outras populações indígenas da região, e, um verdadeiro intento de salvação da alma. Entretanto, lida nas entrelinhas, com as contribuições já citadas, e, tendo em conhecimento outras fontes produzidas nos anos seguintes, é essencial levantar a hipótese das relações sócio-políticas e comerciais-econômicas, que seriam aproximadas e intensificadas a partir da vivência em um Pueblo, como Thaís Macena de Oliveira | 113 uma importante motivação desses indígenas terem procurado e aceitado viver reduzidos18. Fonte LOZANO, Pedro. Carta Ânua de la Provincia del Paraguay año 1735 – 1743 Traducción de Carlos Leonhardt, S.J. Buenos Aires, 1928. Transcrición 1994 Instituto Anchietano de Pesquisa, UNISINOS. Referências ARIAS, Fabián. Frente al Leviathan... Prácticas de contención fronteriza aplicadas por los administradores borbónicos en los territorios rioplatenses: la jurisdicción de Buenos Aires entre 1740-1755. 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Organizadores: Caroline von Mühlen, Maíra Ines Vendrame e Caiuá Cardoso AlAlam. – São Leopoldo: Oikos, 2017. p. 56-64 18 Podemos ver, nos anos seguintes, tanto nas fontes produzidas pelos missionários, como nas documentações de origem civil, que a redução, para os pampas, foi “reinterpretada” conforme as suas próprias intenções, conforme o seu agenciamento das relações. Havia uma queixa frequente de que esses catecúmenos abandonavam e voltavam para redução como se estivessem em uma de suas tolderias, ou seja, seus acampamentos estacionais. 114 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS FLECK, Eliane C Deckmann (Org.); FRANZEN, Beatriz Vasconcelos (Org.); MARTINS, Mª. Cristina Bohn (Org.). Cartas Anuas de la Provincia del Paraguay. 1. ed. São Leopoldo; Cuiabá: Oikos, Ed. da UNISINOS; Ed. da UFMT, 2008. v. 1. 143p. FRANZEN, B. V. As missões populares na Carta Ânua de 1735/43, da Província Jesuítica do Paraguai. 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História Oral e Memória Capítulo VI Pandemia, fronteiras regionais e estudos da memória: conexões e virtualidades a partir do IV Encontro Discente de História da UFRGS João Camilo Grazziotin Portal 1 Lúcio Geller Junior 2 Pedro Henrique Batistella 3 Criar meu web site Fazer minha home-page Com quantos gigabytes Se faz uma jangada um barco que veleje Que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve um oriki do meu velho orixá Ao porto de um disquete de um micro em Taipé Um barco que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve meu e-mail até Calcutá Depois de um hot-link Num site de Helsinque, para abastecer Gilberto Gil, Pela Internet A década de 1990 foi decisiva para a consolidação dos computadores como itens de consumo doméstico destinados ao trabalho e ao lazer no Brasil. Você poderia ler textos ou ver fotos em monitores similares aos televisores da época. Conectar-se à internet não era tão comum, fazer um 1 Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; joaocamilooo@gmail.com 2 Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; lucio.geller@gmail.com 3 Mestrando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; pedrohbatistella@gmail.com 120 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS download podia levar algumas horas, e transmissões de vídeo em tempo real eram raras. Contudo, em 14 de dezembro de 1996, Gilberto Gil, um cantor que “anda com fé”, lançou Pela Internet, que, fazendo justiça ao nome, foi a primeira música inédita que se pode ouvir na frente de um computador, em casa, no país, entrando nas frequências do rádio no dia seguinte. Com uma boa dose de otimismo, Gil cantou as promessas e potencialidades da informação e da cultura e as fez velejar ao redor do planeta pelo “infomar”, de Taipé até Helsinque. De lá pra cá, o que se pode dizer é que as transformações tecnológicas ao longo do novo século alteraram profundamente a nossa sociedade, gerando novos meios de sociabilidade, novas formas de difusão e produção de conhecimento e conteúdo, sob novos meios e formatos. No mundo digital, seja através das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram) ou das plataformas colaborativas (YouTube, Wikipédia), todos os sujeitos conectados podem produzir e divulgar conteúdos, inclusive históricos (CARVALHO, 2018, p. 171-172). Com efeito, os saberes, de modo geral, configuram-se hoje muito mais como uma rede de conexões do que como “a construção científica e disciplinar que evidenciou e dirigiu a formação dos campos tradicionais de saber, como no nosso caso a História” (PEREIRA, 2016, p. 9). Outro aspecto importante desse cenário diz respeito ao fato de que, por mais inovadora que tenha sido a letra e a divulgação da música de Gil em 1996, a tecnologia não cessou de sofisticar-se. Palavras que antes eram novidade, como “disquete”, já foram pelos ares, ou melhor, para as “nuvens”, fazendo parte do fenômeno que Valdei Araujo e Mateus Pereira (2019) convencionaram chamar de “atualismo”. Tal conceito pode ser vivamente exemplificado por uma iniciativa do mesmo Gil, que, em 2018, resolveu “atualizar” aquela canção, lançando Pela Internet 2. Agora, é “cada dia nova invenção” e “5 gigabytes” já são suficientes para velejar; e, João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 121 porque falar em “giga”, se agora é “terabyte”, “que não acaba mais por mais que se deseje”. Ao invés de um “disquete” para um “micro” em Taipé, o “monge no convento, aguarda o advento de deus pelo iPhone”. Como bem canta Gil, há uma contínua dilatação do que é estar “atualizado”, que, ao mesmo tempo, também cria aquilo que corre o risco de “ficar para trás”, isto é, “desatualizado”. Essa pressão, dizem Araújo e Pereira (2019, p. 180), “ganha os contornos de uma ideologia, na medida em que parece dar sentido a uma visão conjunta da realidade”. Em março de 2020, a emergência abrupta da pandemia de coronavírus (COVID-19), declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), imprimiu uma necessidade violenta e sem precedentes de “atualização” de quase todas as esferas da vida das pessoas. Nessa situação, apartar-se do mundo pandêmico não era uma opção. No caso dos acadêmicos, principalmente de mestrandos e doutorandos, se por um lado suas atividades já tinham traços individualizantes e por vezes solitários, não por menos foram afetadas e modificadas pela pandemia. Eventos como congressos, seminários, colóquios, muitas vezes momentos de grande interação e confraternização entre estudantes e pesquisadores, foram “atualizados” para a realidade virtual pandêmica. Foi esse o caso do IV Encontro Discente de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), programado para ocorrer em setembro de 2020, mas que acabou “transferido” das dependências do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas no Campus do Vale, em Porto Alegre, para as salas da plataforma online Google Meet. Diferentes reflexões podem ser motivadas a partir da “atualização” que essa situação implicou para as atividades acadêmicas. Assim, dois de nós, João e Pedro, como os dois proponentes do Eixo Temático 3: “História Oral e Memória”, recebemos com surpresa a inscrição de trabalhos de pesquisadores vinculados a distintos programas de pós-graduação do país. 122 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Os três autores aqui - os dois coordenadores do simpósio e um apresentador de trabalho assíduo em todas as mesas - estavam acostumados a dialogar com mestrandos e doutorandos majoritariamente de universidades da região Sul e, eventualmente, da região sudeste. Passamos a perceber que o nosso evento havia sido “atualizado” da sua dimensão regional para “nacional”. Nesse sentido, a virtualização do evento, ocorrido de maneira totalmente gratuita para não gerar exclusões, nos proporcionou um diálogo com pesquisadores e trabalhos que dificilmente teríamos contato caso o evento fosse nas dependências da UFRGS. A adaptação à nova realidade do espaço, agora vista em sua forma virtual, foi ao encontro de vozes compartilhadas e de uma historiografia nacional absolutamente abundante, a ponto de inclusive nos questionarmos sobre o que significa falar em termos de uma historiografia brasileira no singular. A partir dessa experiência, nos deparamos com uma historiografia diversa, lançando um contraponto à uma memória disciplinar unificada e territorialmente circunscrita ao eixo Rio-São Paulo. Certamente, à maneira de Gil, tal modificação valeu-se dessa “vazante da infomaré”, isto é, da virtualização do evento, ou da sua absoluta “desespacialização” - ao menos física, como veremos adiante - para fluir por correntes territoriais diversas. Tal mudança nos serviu para entrarmos em contato com outros territórios, outros sujeitos e outras epistemologias através da interlocução com pesquisadores de estados como Paraíba, Pernambuco e Goiás, para citar alguns exemplos. Fomos de testemunhos de acontecimentos catastróficos do século XX a narrativas sobre práticas e rituais que compõem as representações do espaço urbano no interior de Minas Gerais. Por isso, como organizadores do Eixo Temático Memória e História Oral, acreditamos que essa experiência nos permite esboçar algumas reflexões sobre o papel da tecnologia nas pesquisas, encontros e demais atividades João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 123 que compõem o nosso campo de estudos, assim como sobre a diversidade temática e teórico-metodológica das pesquisas sobre o mesmo a memória no Brasil. Desse modo, o texto está organizado em dois movimentos: primeiro, refletimos brevemente sobre algumas implicações na vida dos pesquisadores/as e na dinâmica acadêmica imposta pela atual conjuntura; em seguida, apresentamos considerações a respeito das mobilizações teóricas francesas por parte dos estudos da memória no Brasil, a partir de uma perspectiva atenta às relações geopolíticas do conhecimento. § Da delimitação de um problema de pesquisa ao acesso e à gestão das fontes, da escrita até à comunicação da história - como neste capítulo, redigido à três mãos, em que cada autor está em uma cidade diferente do Rio Grande do Sul compartilhando um mesmo arquivo no Google Docs percebemos que cada vez mais as problemáticas tradicionais da história passam pela tela de um computador ou por uma conexão de Internet. É assim latente o imbricamento entre a história e o desenvolvimento tecnológico, manifesto já em etapas mais “analógicas”, como foi o caso, por exemplo, da própria metodologia da história oral, ligada ao aparecimento de aparelhos de gravação portáteis. Contudo, tais percepções limitam-se à esfera instrumental da tecnologia, que não necessariamente implicam em uma reflexão sobre o seu papel em nossa profissão, assim como o seu potencial de ressignificação das tradições e de reinvenção da própria disciplina histórica (CARVALHO, 2018, p. 173; LAITANO, 2020, p. 176). Por outro lado, convém sublinhar, ainda que brevemente, o momento em que estamos pensando tais questões. O olhar sobre a crise desencadeada pela pandemia, para além das necessárias soluções home office, não pode arredar-se da dimensão assombrosa das perdas de vidas humanas que fazem, uma vez mais, a disciplina histórica repensar o seu lugar no mundo. As considerações e alternativas àquela perspectiva 124 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS instrumental apresentam-se, e isso não se pode ignorar, nesse estado de medo e sofrimento em que vivemos. Estamos em mais um momento cujo centro, parafraseando Walter Benjamin (1987, p. 114), encontra-se sob o “frágil e minúsculo corpo humano”. É o corpo em risco, o corpo isolado e o corpo no ciberespaço frente ao princípio tácito que aqui problematizamos, dos encontros corporais dentro de um mesmo espaço físico, dos professores com suas turmas, dos pesquisadores com seus pares, do historiador oral com seus entrevistados, enfim, das trocas dentro e fora dos ambientes escolares e universitários, do “olho no olho” e do aperto de mão, espacialmente delimitados. Como dissemos, não é de hoje que novas dinâmicas e trocas sócioculturais, através de interconexões dadas pela tecnologia, “reconfiguram” a nossa “forma de enxergar o mundo”, compelindo, inclusive, os espaços tradicionais de produção e circulação de conhecimento (PEREIRA, 2016, p. 15). Uma possível palavra-chave para estes problemas talvez seja justamente essa: reconfiguração. Ao desenvolverem tecnologias, segundo Ricardo Santhiago e Valéria Barbosa de Magalhães (2020, p. 4-5), os humanos também são “recriados” e, sobretudo, “ampliados” por elas; seus “corpos não são desmaterializados, mas reconfigurados virtualmente”; seus hábitos, costumes e práticas medulares são reorientados; e, “novas modalidades de comunicação transfiguram gêneros do discurso, seus conteúdos e modos de dizê-lo”. Por isso, acreditamos ser necessário ir além do instrumental, pois a tecnologia é mais um “exoesqueleto”, justaposto ao olho humano, do que um “autômato”, ou, no limite, um Terminator de seres humanos “obsoletos” (NICODEMO; CARDOSO, 2019, p. 22-33) Em nossa experiência, os corpos de jovens pesquisadores foram reconfigurados para auditórios inteiramente virtuais, assim como o Encontro como um todo, que contou, inclusive, com transmissões de João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 125 palestras ao vivo no YouTube e no Facebook. As mesas do nosso Eixo ocorreram em dois turnos, vespertino e noturno, ao longo de dois dias. Recebemos trinta e dois resumos de inscrição, distribuindo-os em três mesas de debate conforme suas temáticas: Mesa 1 – Autoritarismos e memórias sensíveis: trauma e violência no século XX; Mesa 2 – Memórias em circulação: identidades, patrimônios e lugares de memória; Mesa 3 – Corporeidades, repressões e escritas de si. Diferentes regionalidades, memórias quilombolas em Pernambuco, relações afetivas comunitárias com seus lugares de memória no Ceará, estudos sobre religiosidades regionais no interior de Minas Gerais vieram nos desestabilizar enquanto pesquisadores e pensadores do Rio Grande do Sul. Acreditamos que tenha sido justamente essa a proposta de troca do evento, proporcionando diálogos não apenas epistemologicamente diversos, mas sobretudo territorialmente diferentes. Nos vimos verdadeiramente conectados. Os meios de comunicação e divulgação, em conformidade com as próprias circunstâncias do evento, deram-se sobretudo através das redes sociais Facebook e Instagram. Este último, além da própria página do Encontro, contou com a divulgação da página Eventos Acadêmicos de História, criada em 2019 pela historiadora Thaís Turial (UnB), cujo objetivo é “centralizar” em um mesmo ambiente chamadas de publicações acadêmicas e eventos de história. Nas apresentações, além dos convencionais agradecimentos pelo espaço de diálogo ofertado, muitos comunicadores não deixaram de registar de qual cidade e Estado estavam falando e a forma pela qual ficaram sabendo do evento, momento em que repetidas vezes ouvíamos o nome da dita página do Instagram. Em conversa com suas administradoras, em 03 de novembro de 2020, sobre o alcance que ela veio adquirindo entre o público daquela rede social, elas nos contaram que, em junho de 2020, tinham não mais do que 3 mil 126 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS seguidores, mas “em setembro já eram 10 mil” - número que não cansa de se atualizar, pois enquanto escrevemos ela já passa dos 13 mil. A menção ao lugar de onde falavam, acompanhada pelo potencial de divulgação da Eventos Acadêmicos de História, buscava expressar, em especial, o potencial de circulação do conhecimento no ambiente digital e a oportunidade que se abre de fazer “conexões” de longo alcance, no sentido dos espaços de apresentação e discussão de pesquisas. Nosso Encontro, vale destacar, não foi o único que se “virtualizou” ao longo de 2020. Do XV Encontro Nacional de História Oral, passando pelo Encontro Nacional de História Pública, até os diversos encontros das seções estaduais da Associação Nacional de História (ANPUH), diversos outros ocorreram através de serviços de comunicação por vídeo (Google Meet, Zoom) e transmissões ao vivo em redes sociais e plataformas de compartilhamento. Nesse sentido, não se pode ignorar a tecnologia, sobretudo em situações nas quais consistem em uma das poucas maneiras de viabilização das nossas atividades. No entanto, a discussão não pode se encerrar por aqui, isto é, na já referida conveniência instrumental. Para nós, enquanto organizadores, e em consonância com as vozes acima, a experiência de “virtualização” do corpo pode ser frutífera e até mesmo necessária. Entendida enquanto um elemento que nos “reconfigura”, o impacto da tecnologia, bem como os “passos” que damos junto a ela em nossas pesquisas e atividades, devem ser discutidos teórico e metodologicamente ao lado de todas as nossas escolhas conceituais, teóricas, narrativas, sociais e comunicativas. E é a partir deste ponto de vista que aqui compreendemos que essa “diversidade” e “aproximação” de pesquisas e pesquisadores nacionais, que nos saltaram aos olhos, pode ser discutida. É a historiografia e/com tecnologia que, nas páginas seguintes, nos permitiu refletir sobre temas e textos, lugares e linguagens, escritas e João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 127 epistemologias, reapropriações e ressignificados que encontraram-se no nas mesas de debate de Memória e História Oral. § Uma análise panorâmica da tematização das pesquisas permite observar a grande diversidade de temas e objetos trabalhados a partir da metodologia da história oral e do arcabouço teórico dos estudos da memória, ligados em especial à historiografia francesa. Referências aos conceitos de “memória coletiva”, “enquadramento da memória”, “memória subterrâneas”, “lugares de memória” indicam a vitalidade da tradição do pensamento de acadêmicos franceses, como Maurice Halbwachs, Michael Pollak, Pierre Nora, para os estudos da memória no Brasil. Conforme salientam Alexandre Avelar e Mateus Pereira (2018), o início dos estudos da memória teve como grande influência a problemática dos “Lugares de Memória” vinculada ao projeto historiográfico de Nora. O texto de introdução do projeto escrito em 1984 foi traduzido pela revista Projeto História em 1993, possibilitando a expansão de tal referência para os estudos no Brasil. Muito embora possamos observar uma grande presença dessa matriz teórica no contexto nacional, nos surpreendemos também com suas ressignificações. Tal diversidade temática revela a grande capilaridade dos estudos da memória na historiografia brasileira. Na avaliação de Avelar e Pereira (2018), de modo geral, seis grandes áreas ou subdisciplinas são abarcadas pelos estudos da memória no Brasil: os estudos da escravidão e da diáspora africana, a história oral, o ensino de história e patrimônio, a ditadura militar e a teoria da história/história da historiografia. Não cabe aqui traçar a trajetória de apropriação que os historiadores apontam, mas somente destacar que uma das particularidades que caracterizou a introdução do campo de estudos da memória no Brasil constitui-se na sua relação articulada com a emergência da metodologia da História Oral. Desse modo, segundo Avelar e Pereira (2018), essa 128 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS característica foi expressada na postura crítica à perspectiva de Nora e, por conseguinte, da tradição sociológica de Halbwachs. Todavia, esse processo não implicou na marginalização de um sobre o outro, mas na complementação de suas perspectivas através da apropriação de variadas referências europeias, destacadamente dos trabalhos de Michael Pollak e de Alessandro Portelli (AVELAR; PEREIRA, 2018). O primeiro autor foi citado sobretudo através de dois textos, também publicados na revista Estudos Históricos: Memória, esquecimento e silêncio (1989) e Memória e identidade social (1992) - este último fruto de uma conferência no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Pollak serviu não só como uma revisão do pensamento de Halbwachs, herdeiro da tradição sociológica de Émile Durkheim, mas também abriu novas problemáticas no campo, as quais estão sendo desenvolvidas, a saber: os conflitos de memórias; a relação entre a “memória coletiva” e a “memória individual”; as “memórias subterrâneas”; a dimensão traumática dos testemunhos (POLLAK, 1989; 1992). Na sequência, com Portelli, a partir de sua análise do massacre dos italianos em Civitella Val di Chiana pelos alemães em 1944, foi sublinhado o caráter “fragmentado” e “idiossincrático” da memória e o papel mediador da cultura (PORTELLI, 1996). Ademais, cabe observar a inserção de autores como Paul Ricoeur, Jan e Aleida Assmann, Andreas Huyssen, Beatriz Sarlo, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Henri Bergson ao longo das últimas décadas, reafirmando a característica de constante investimento teórico do campo brasileiro (PEREIRA; AVELAR, 2018). Contudo, Avelar e Pereira (2018) consideram que, se por um lado os estudos da memória no Brasil demonstram esse esforço teórico, há de ser levado em conta também as dificuldades de sua inovação teórica. Nesse sentido, os autores destacam o valor paradigmático dos dois artigos de Pollak como parte do conjunto de João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 129 referências mais citadas no campo. Em vista disso, enfatizam os usos e abusos da noção de “enquadramento” como desdobramento desse lugar paradigmático assumido por Pollak, de modo que, por vezes, a categoria pode tornar-se subserviente e perder sua eficiência explicativa (AVELAR; PEREIRA, 2018). Não obstante, o lugar social dos historiadores, segundo Ana Carolina Barbosa Pereira (2018), não pode ser desvinculado de seus usos epistêmicos. Neste caso, consideramos que, em relação aos estudos da memória no Brasil, há certo a priori vinculado à historiografia francesa, o que demonstra uma grande correlação estrutural no plano das pesquisas dadas a nível nacional. Identificamos, portanto, uma expressiva presença de referências franceses, o que corrobora a análise de Barbosa Pereira a respeito de uma certa dependência epistêmica. Assim, é necessário lembrar dos pretensos ideais universais do discurso científico europeu, que foram tanto produtores quanto aliados dos processos de colonização a nível mundial ao longo da modernidade. Como interpretar então o “locus enunciativo desse conhecimento hegemônico” (PEREIRA; 2018, p. 97)? Ao que nos parece, tal tradição historiografia mantém-se mais ou menos estável a nível nacional desde a sua introdução no final do século passado. Logo, não seria demais afirmar que, ao mesmo passo em que tais estudos condicionaram as bases fundamentais para a área da memória no Brasil, as atuais produções são descendentes diretos de tais categorias de análise. Muito embora reconheçamos o provincialismo que se inscreve em tais autores, fundacionais e estruturalmente estáveis para a área no Brasil, não podemos deixar de ressaltar as diferentes (re)apropriações que se pode fazer desses mesmos autores. A partir da compreensão de que a dinâmica centro-periferia na produção do conhecimento histórico possui a ideologia de dominação europeia como base epistemológica, Pedro Afonso dos Santos, Thiago 130 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Nicodemo e Mateus Pereira (2017, p. 177) questionam: “existem meios de aproveitar as tensões produzidas por essa dualidade para pensarmos criticamente? Ou estaríamos aprisionando o pensamento em um horizonte inevitavelmente etnocêntrico?”. Considerando a pertinência de tais indagações, ao longo do simpósio percebemos que diversos trabalhos seguiam uma linha tangente à teoria crítica e aos estudos decoloniais, ou seja, tais trabalhos não estavam reproduzindo acriticamente a bibliografia francesa, ou utilizando-a como justificativa científica do domínio colonial; antes, vimos como certo autor, por exemplo, utilizou de maneira positiva os conceitos de Halbwachs e Pollak enquanto instrumentais de análise para compreender uma comunidade quilombola no interior de Pernambuco, numa exposição engajada na afirmação de sua negritude territorial. Por isso, cabe retomar a dimensão ético-política da trajetória dos estudos da memória e sua articulação com a metodologia da História Oral no Brasil. Desse modo, cumpre ressaltar que esses dois campos se articulam no contexto dos primeiros anos da Nova República, o que implica considerar que a experiência da redemocratização redefiniu os pressupostos ético-políticos da historiografia brasileira a partir da década de 1980. Para Francisco Gouvea de Sousa (2018), tais mudanças se expressaram a partir do interesse em abordar “novos personagens” historicamente excluídos da história oficial. É considerando tal horizonte democrático, que constitui a identidade da historiografia contemporânea brasileira, que podemos entender as mobilizações do arcabouço teóricometodológico, majoritariamente francês, pelos estudos da memória no Brasil, e principalmente seus efeitos políticos e éticos para o debate historiográfico e público brasileiro. Segundo Francisco Santiago Júnior (2015), as categorias da historiografia francesa, como “lugar de memória”, foram instrumentalizadas pelos historiadores da história do tempo presente no João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 131 Brasil para articular tal anseio por “dar voz” aos “excluídos da história”. Desse modo, a articulação dos estudos da memória com a metodologia da História Oral no Brasil viabilizou a produção do conhecimento historiográfico alinhado com os debates públicos democráticos da Nova República. Na avaliação do historiador, O interesse da historiografia parece ter sido transformar a memória em fonte histórica, apreciando o fenômeno mais pelo aspecto dos métodos e limites desta “nova” fonte (discussão fundamental da história oral, metodologia de investigação por excelência), e menos por sua dimensão processual. Por meio do testemunho oral, os subalternos poderiam ter ‘o direito à memória’ e os historiadores poderiam se aproximar do presente. Este ‘direito’ consolidou uma nova perspectiva das ciências humanas, as quais se aproximaram das questões da memória por meio de um princípio ético-epistemológico de fazer dela a matéria prima por meio da qual os subalternos poderiam adquirir visibilidade social, participando inclusive do reforço de uma cultura cidadã (SANTIAGO JÚNIOR, 2015, p. 246) . Assim como Gouvea Sousa (2018), entendemos que o princípio do “direito à memória” ainda compõe o horizonte democrático da escrita da história no Brasil do século XXI, e foi fortemente expresso nos trabalhos apresentados no evento em questão. Observamos autores engajados em suas pesquisas, social e epistemologicamente, realizando um grande reconhecimento a respeito de grupos tradicionalmente vistos como periféricos ao longo da história da historiografia. Estaríamos em pé de evidenciar mais uma reprodução provincial? Acreditamos que não, mas também em certo sentido que sim, pois é também no interior da própria universidade, e da própria epistemologia disciplinar, que torna-se possível questionar suas bases e fundamentos por dentro, produzindo novas configurações estruturais geopoliticamente diversas que não atentem apenas ao Norte global. 132 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Nesse sentido, não seria necessário afirmar mais uma vez ao leitor a dependência francesa em relação aos estudos sobre a memória. Entretanto, acreditamos haver sempre certa diferença de significado entre os conceitos e as formas pelas quais eles são utilizados e reapropriados por seus diversos atores ao longo do tempo. O que pudemos ver, além de uma epistemologia meramente europeia, foi também um uso crítico dessas referências. § A partir da nossa experiência conjunta de realização do Eixo Temático Memória e História Oral no IV Encontro Discente de História da UFRGS, buscamos apresentar reflexões historiográficas sobre os estudos da memória no Brasil, sem desconsiderar os efeitos da pandemia do COVID-19 nas condições de possibilidade do evento, bem como na vida dos pesquisadores. Enquanto mestrandos que trabalham em torno dos campos da História Oral, dos estudos da memória e dos usos do passado, nossa intenção consistiu em estabelecer apontamentos com base na diversidade de temas e objetos inscritos. Embora conscientes da impossibilidade de apresentar apontamentos gerais a partir de um reduzido espaço de apresentações de trabalho sobre história oral e memória, procuramos nesse breve texto registrar nossas reações e impressões desencadeadas pela ampliação do horizonte teórico-metodológico e temático, suscitado pela abrangência nacional que o evento adquiriu. Não caminhamos, entretanto, em direção a uma frieza objetivista que almeja dizer que há então algo de “favorável” proporcionado pelas horrendas circunstâncias em que nos encontramos, nem tão-pouco referendar a propalada vulgata do “novo normal”, naturalizando processos destrutivos e de dissociação das relações de trabalho (SEGATA, 2020). Por certo, acreditamos em ver essa abrupta emergência do virtual a partir de março de 2020 muito mais como um problema do que como João Camilo Grazziotin Portal; Lúcio Geller Junior; Pedro Henrique Batistella | 133 uma simples resposta para a nossa disciplina. O que nos parece é que há uma dimensão frutífera e latente de reflexão sobre os espaços virtuais, que não deve se limitar às situações nas quais consistem na única forma de viabilização das nossas atividades, nem à mera conveniência instrumental. Poderíamos falar, nesse sentido, numa espécie de pequeno futuro imaginado por nós durante o evento? Retomando a ideia da historiadora polonesa Ewa Domanska, acreditamos que a incorporação de uma estrutura digital não é apenas o sintoma da “atualização” da área, mas faz parte da própria performatividade da área atualmente. Enquanto ação localizada, acreditamos que a conexão ocorrida pela virtualização do evento pode servir de inspiração para “conectar e criar, e não dividir e governar”, tal como provocado por Domanska (2018) a respeito das humanidades atualmente. Não obstante, acreditamos que a desobediência epistêmica pode inclusive existir a partir do uso crítico de determinadas correntes de pensamento, na medida em que são reapropriadas enquanto preenchimentos particulares como incentivadoras de racionalidades outras por meio de epistemologias sustentáveis. Muito embora a ideia de Humanidades afirmativas (DOMANSKA, 2018) seja ampla para tratarmos aqui, enquanto esboço conclusivo consideramos que a possibilidade de cenários que vão além da mera representação da catástrofe tornam-se concretos quando acreditamos em sua resolução futura. Não vimos, durante o simpósio, a discussão de catástrofes estanques e traumas inconclusos, como uma eterna condenação pessimista da derrota que assola, antes da humanidade, boa parte da historiografia. Antes, percebemos como diversos autores a nível nacional discutiram as possibilidades futuras para a história. Talvez a união, ou a amizade, enquanto método esteja em voga aqui, como um aprendizado compartilhado de discussão. Nesse sentido, tendo consciência dos dolorosos tempos de hoje, acreditamos que a esperança nesse momento é 134 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS de extrema necessidade para nós enquanto criadora de redes compartilhadas, coisa que, em última instância, constitui o próprio viver coletivo no tempo. Referências ARAUJO, Valdei Lopes de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória, ES: Milfontes; Mariana, MG: Editora da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia, 2019. AVELAR, Alexandre; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Ethics, present time and memory in Brazilian journals of history, 1981-2014. In: Historein, v. 17, n. 1, p. 1-20, 2018. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. 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Escritas da história nos anos 1980: um ensaio sobre o horizonte histórico da (re)democratização. In: Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 46, p. 159-181, 2017. Acesso em: 16 dez. 2020. Capítulo VII Sob o olhar quilombola: narrativas, memórias, tradições e oralidades José Luiz Xavier Filho É inexplicável pra mim, eu não sei se é de mim mesma, mas eu considero muito ser do quilombo [...] é muito histórico. Você pode é... assim... pode ver, eu não sou tão nova, chega por aí e fala assim: “Solange do Sambaquim”, todo mundo já me conhece, porque onde eu chego, na cidade, na rua em Cupira, lá fora onde for, falou mal de Sambaquim: Epa! Peraí, eu sou de Sambaquim. Eu já entro com tudo, tô nem aí ó, tenho nem medo de nada. Eu pra defender minha comunidade enfrento todo o perigo. (Solônia Josefa da Silva, 34 anos) Quando falamos em “quilombo”, a visão que ainda predomina no pensamento da maioria dos brasileiros é a de um local de escravos rebeldes e refugiados, e a principal referência é a do Quilombo de Palmares, destacando-o somente como uma experiência militar difícil de ser destruída. Mas desconhecem quase que completamente os processos de espacialidades, territorialidades, identidades negras e suas heranças africanas. Eram sociedades político-militares, que nasceram de movimentos de insurreições, levantes, revoltas armadas, proclamando a queda do sistema escravocrata. Frequentemente aqueles movimentos tomavam a forma de quilombos à semelhança de Palmares. Os quilombos existiram em múltiplos pontos do país em decorrência das lutas ocorridas em diferentes lugares onde houvesse negação de liberdade, dominação, desrespeito a direitos, acrescidas de preconceitos, desigualdades e racismo. Segundo Rafael Sanzio dos Anjos: José Luiz Xavier Filho | 137 É no território étnico, um espaço político, físico e social, que estão gravadas as referências culturais e simbólicas da população, um espaço construído, materializado a partir das referências de identidade e pertencimento territorial e, geralmente, dotado de uma população com traço de origem comum. A terra tem grande importância na temática da pluralidade cultural brasileira, no processo de ensino, planejamento e gestão, principalmente no que diz respeito ás características territoriais dos diferentes grupos étnicos que convivem no espaço nacional (ANJOS, 2006, p. 15). O território é uma condição essencial porque define o grupo humano que o ocupa e justifica sua localização em determinado espaço. A terra e o terreiro, não significam apenas uma dimensão física, mas antes de tudo um espaço comum, ancestral, de todos que têm registros da história, da experiência pessoal e coletiva do seu povo, enfim, uma instância do trabalho concreto e das vivências do passado e do presente (ANJOS, 2006). Hoje os quilombos estão localizados em quase todo o território nacional, principalmente nas áreas rurais. Incorporados às áreas urbanas e periféricas das cidades, essas comunidades tradicionais caracterizam-se por apresentar diferentes níveis de inserção na sociedade. O conceito de comunidade quilombola, portanto, tem origem no campesinato negro, povos de matriz africana que conseguiram ocupar uma terra e obter autonomia política e econômica. Ao quilombo contemporâneo está associada uma interpretação mais ampla, mas que perpetua a ideia de resistência do território étnico capaz de se organizar e reproduzir no espaço geográfico de condições adversas, ao longo do tempo, sua forma particular de viver. [...] As comunidades quilombolas emergiram e apresentam visibilidade no movimento do campesinato brasileiro, em se tratando das políticas afirmativas e de reparação social (Idem, 2006, p. 52). É nesse contexto contemporâneo de quilombos, que se movem no decorrer do tempo, que se insere o município de Cupira, localizado na 138 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Região Agreste de Pernambuco. Preservando ainda uma região de descendentes de quilombolas, o Quilombo Sambaquim dista quatro quilômetros da cidade. Hoje, essa comunidade constitui um quilombo contemporâneo, que não representam mais um espaço de fuga, estrategicamente isolado. É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa de força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo (ALMEIDA, A. W. B., 2002, p. 63). Sob o viés historiográfico é possível perceber, hoje, que as comunidades remanescentes quilombolas não permaneceram estáveis com o passar do tempo. Elas mudaram conforme a dinâmica da história, isto é, não são apenas terras de negros fugidos dos tempos coloniais. Logo, nossa pesquisa não se limita a tratar e definir o Quilombo Sambaquim se baseando apenas em conceitos e definições, e sim, procurando questionar e entender como foi construída a ideia de quilombo e de ser quilombola através de seus aspectos culturais, na medida em que formam sua identidade como comunidade remanescente. É preciso pensar nesses grupos como possuidores de articulações sociopolíticas e econômicas próprias e não de forma teatralizada, como se fosse possível criar um estereótipo daquilo que se espera que sejam, como se estivessem emolduradas em um tempo e espaço que não se modificaram desde a escravidão. A existência de comunidades quilombolas, na acepção contemporânea do termo, está indissociavelmente ligada ao processo de José Luiz Xavier Filho | 139 integração social desses sujeitos. Ela rompe com a possibilidade de manutenção da percepção estática tradicional na qual os quilombolas continuariam sendo considerados como grupos de ex-escravos que se refugiavam e se organizavam no sentido de reagirem e se rebelarem contra o regime ao qual estavam submetidos (SANTOS; DOULA, 2008, p. 73). As comunidades remanescentes quilombolas guardam memórias específicas que ajudam a contar outra história do Brasil, uma história na qual as ditas “minorias” ocupam o lugar de sujeitos protagonistas e não de meros colaboradores. Nesse processo, a identidade é peça chave no resgate da história e memória dessas comunidades. Ao mesmo tempo, servem de meio para uma politização em busca de direitos sociais que foram historicamente negados a esses grupos. Para maior compreensão dos estudos sobre comunidades quilombolas contemporâneas, é necessário desvincular-se da ideia do passado, abrindo uma nova concepção de comunidade e de suas relações sociais. Esses espaços são formados a partir de uma questão de identidade e territorialidade, os quais remetem à valorização de suas tradições e histórias relevantes para a consolidação da comunidade negra ali estabelecida. Nas palavras de Anjos, pensar: Em um conceito de quilombo mais amplo na atualidade, como um segmento da sociedade brasileira excluído secular e historicamente, que tem direitos e garantias territoriais reconhecidos, porém ignorados. Negar a importância da população de ascendência africana é, na verdade, negar a verdadeira identidade brasileira (ANJOS, 2006, p. 75). No quilombo Sambaquim é através das manifestações e expressões culturais (festas e ritos religiosos, músicas e danças) que os quilombolas lutam por um espaço e resistem à tentativa de ter a sua cultura considerada subalterna e periférica. A partir dessas manifestações, os 140 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS indivíduos passam a se identificar com suas tradições, valorizando suas origens. As identidades são contestadas a partir de um novo olhar, não confirmando o caráter de subalternidade, de modo construtivo no processo de formação dessa identidade. As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”. “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (HALL, 2003, p. 109). Ao pensarmos sobre o processo da formação da identidade quilombola, levamos em consideração que existem esferas individuais e sociais conectadas, que se constroem no cotidiano da comunidade. Sendo assim, a história, a tradição, a oralidade, a cultura e o sentimento de pertencimento a um determinado grupo social fazem parte da construção identitária de cada membro da comunidade. Significa pensar em grupos sociais cuja identidade se constrói em um processo dinâmico, na união de fatores diversos: história cultura e relações de poder. É pensar em atores sociais detentores de discursos múltiplos que se constroem como sujeitos em suas relações com seus pares e com o universo externo às comunidades em que vivem. Ignorar as diferenças e peculiaridades desses sujeitos, certamente apresenta-se com um fator negativo para a construção de sua identidade (SANTOS; DOULA, 2008, p. 82). A partir disso, podemos refletir a respeito da importância do processo de construção da identidade negra nas comunidades quilombolas. O José Luiz Xavier Filho | 141 estudo do cotidiano, das memórias e das tradições orais da comunidade nos possibilita estudar as mais diversas relações sociais do quilombo e nas formas como as questões culturais se moldaram através do tempo até os dias atuais. Memória e tradição do quilombo Sambaquim na contemporaneidade O Quilombo Sambaquim, foi inserido no município de Cupira em 1959, data da emancipação política da cidade. Até então, Cupira era uma vila pertencente ao munícipio vizinho, Panelas. Nesse mesmo ano, com as novas limitações geográficas, o sítio ao qual leva o mesmo nome da comunidade quilombola, foi anexado aos limites territoriais de Cupira. Dentro da comunidade remanescente é de fundamental importância, a construção de sua história, visto que a oralidade em Sambaquim é a fonte que faz perpetuar o conhecimento, através das gerações. Conforme Matos e Castro, em comunidades quilombolas, “os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão” (MATTOS; CASTRO, 2006, p. 109) são comumente destacados nas narrativas, principalmente dos mais velhos. As histórias são construídas de acordo com a produção da memória coletiva. As narrativas são “elaboradas e reelaboradas em função de relações tecidas no tempo presente” (MATTOS; CASTRO, 2006, p. 109). A priori, quando começamos a pesquisa em Sambaquim, na busca sobre sua historicidade, investigamos sua ancestralidade e descobrimos que o nome do quilombo foi dado pelos “antigos” - palavra constantemente presente na fala dos quilombolas quando se referem aos seus antepassados, como podemos ver no trecho abaixo: Ói, a origem, segundo os mais antigos, tinha uma árvore com um nome Sambaquim e por isso ficou chamado comunidade Sambaquim. Pesquisador: Nos casos os mais antigos são teus avós? É bisavós, eram esses... (Quitéria Josefa da Silva, 43 anos). 142 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Outras definições dadas pelos moradores confirmam a descrição feita por Quitéria Josefa da Silva, como no caso a fala de Otávio Miguel da Silva: A origem do Sambaquim? Quer dizer que a origem aqui... O nome de Sambaquim vem, eu vou falar pra você. Eu não conheci o pau [árvore], mas ainda conheci umas raizeras de pau atravessado no barranco da água. Olhe, a origem de Sambaquim vou lhe mostrar. Você tá vendo aquela casa, por cima dessas duas que tem essa branca ali, naquele terreno de lavoura, lá no pé da serra a casa, apois o Sambaquim é daquela casa pra cá na baixa era um olho d’água antigo que se chamava Sambaquim (Otávio Miguel da Silva, 76 anos). A árvore se encontra na entrada da comunidade e, segundo os moradores, é nesse ponto que os antigos se encontravam ou se orientavam. Supõe-se que a árvore podia ser o marco referencial para os negros fugitivos onde identificavam a entrada do quilombo. Além da função simbólica para a comunidade, ela é um ponto de referência para os limites territoriais. É comum na comunidade apontarem onde começa ou termina o quilombo, uma forma de demarcar o local e as fronteiras interétnicas1, que, segundo eles, são pelos aspectos físicos da geografia local. As referências dos limites de Sambaquim, historicamente, são a árvore, da qual deriva o nome da comunidade até a Serra do Bode, depois da serra se encontra outra comunidade quilombola. 1 Nos apropriamos desse termo porque a comunidade faz fronteira com outra comunidade quilombola e com outros sítios, aos quais eles chamam de terra de brancos. José Luiz Xavier Filho | 143 Figura 01 – Árvore Sambaquim Fonte: Arquivo do autor, 2020 Figura 02 – Serra do Bode Fonte: Arquivo do autor, 2020. O nome da serra é derivado de um conto que a comunidade conhece bem, João Miguel filho compartilhou conosco: 144 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Ali onde você tava era a Serra do Bode, não sei se lhe contaram a história da Serra do Bode pra você. Aqui ali, antigamente, era que nem o sertão, ninguém tinha um metro de terra, criava solto, né. Aí a finada mãe, falou, disse que, o cara vinha correndo dentro do mato atrás de um bode, aí chegou naquela pedra lá, você viu a pedra? Naquela pedra ali o bode pulou e ele pulou junto, não sabia a altura, porque dá uns 60 metros pra lá. Ele pulou junto e ficou enganchado numa calça de arrurado, o bode morreu embaixo, mas ele ficou enganchado e tiraram ele, o arrurado era um pano azul, bem azulzin, o caba ficou enganchado no toco e depois tiraram ele, aí botaram o nome Serra do Bode (João Miguel Filho, 71 anos). A Serra do Bode também é referência a um “esconderijo” que existe nela. No topo, existe uma gruta chamada Pedra da Lua, local onde os antepassados se escondiam. Informalmente, durante as andanças pelo quilombo, conversávamos com os moradores sobre esse local, e diziam que era ali que os antigos se escondiam. Não podemos provar com exatidão esse fato, fica apenas as falas de uma história movida pela tradição oral. A vida em Sambaquim não é fácil, mas já foi mais difícil que nos dias atuais. De acordo com os moradores, a comunidade já passou por situações muito precárias, mas, hoje em dia, já se aspiram dias melhores na comunidade. A minha vida foi muito sofredora, comecei a trabalhar desde os 8 anos, até hoje não tive estudo, que meu pai não podia dá estudo pra nói, quando a gente queria estudar ele: “não, vai trabalhar”. Plantar uma mandioca, uma macaxeirinha, plantar uma batata. A gente tinha que fazer tudo isso. Despois, quando tava com 17 ano, fugi, que não aguentei, fugi fui morar em Alagoas, fazer sabe o que? Cortar cana (Josefa Estelina da Silva, 60 anos). Solônia Josefa da Silva complementa, em seu diálogo, problemas com a infraestrutura do local, segundo ela: José Luiz Xavier Filho | 145 Antes pra começar, fiquei ajudando meus pais desde cedo, com 9 anos de idade. A gente morava numa casinha de taipa. Sabe o que é casinha de taipa né. Uma casinha tão pequenininha, que quando eu cresci, cresci demais como você vê, pra entrar em casa eu tinha que me abaixar. Daí por diante a gente tinha que trabalhar, a gente sofria porque não tinha energia, água muito menos. Trabalhava no roçado, a vida da gente foi muito dura, muito sofrida mesmo. Mas graças a Deus depois que chegou esse negócio da energia, aí veio aparecendo mais recurso, a gente foi crescendo, fomos trabalhando sem parar, sempre no roçado. Só largava de meio-dia porque tinha a escola, a gente precisava estudar. Estudava, mas vivemos até hoje da agricultura. Hoje em dia, eu me considero uma pessoa rica, é o que eu repasso para meus filhos, porque antes, era aquela coisa, como Seu José falou pra você, mãe ia pra feira, e ia pra cidade de a pés, ia e voltava, a feira vinha assim, num saquinho, a gente não tinha tanto recurso, a gente não tinha dinheiro pra comprar comida, nem pra comprar comida a gente tinha dinheiro, então... (Solônia Josefa da Silva, 38 anos). Apesar de todas as dificuldades que foram relatadas, foi demonstrado através da narrativa de Maria Sileide, que viver em Sambaquim é motivo de orgulho para ela, de modo à sua fala soa como uma satisfação pessoal. Ela diz: Eu gosto muito, eu amo essa comunidade, desde quando eu nasci, a questão assim de sofrer, eu não sofri muito não, meu pai já andava por São Paulo. O custo de vida assim, não tive sofrimento. Eu adoro essa comunidade, eu amo morar aqui (Maria Sileide da Silva, 34 anos, grifos nossos). Por sua vez, os moradores que saíram da comunidade em busca de melhores condições de vida para arriscarem novas oportunidades em cidades grandes, e retornaram para o quilombo, não se adaptaram ao ritmo frenético dos grandes centros urbanos. 146 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Saí daqui com 16 anos pra São Paulo, cheguei lá de menor. “O que é que vou fazer meu Deus?”. Mas eu tinha muitos primo lá, tinha muitos primo lá, tinha fí lá. Voga por um ponto, mai família voga muito mai tempo, mai num voga porque a pessoa é de menor. Mas podia voltar, né. Quando arrumar um emprego vai ganhar, e eu cheguei lá não faltou serviço não, porque era trabalhador aqui e lá enfrentei tudo a vida, só não roubar, mas todo trabalho em São Paulo eu fiz, todos os trabalhos lá, cortar cana, e caipir mato, arrumei uma coisa no pomar, no pomar passei 6 meses, era banana, pêssego, figo, laranja, abacate, abacaxi, uva, todo tipo de verdura tinha lá. Comecei mesmo, com 6 meses eu saí, aí arrumei um serviço na pedreira, e fui quebrar pedra de marreta, bater, furar buraco, o dia todim batendo marreta. [...]Todo ano eu vinha de São Paulo, passava 2, 3 mês e ia mim bora, passava lá e a família aqui. Meu pai e minha mãe, meu pai morreu, meus filhos ficaram já de maiorzin. Entreguei la e vim mim bora. Tô por aqui ainda (José Joaquim da Silva, 74 anos). É perceptível entre os quilombolas um sentimento comunitário mútuo e uma ligação forte à terra, local onde a maioria nasceu, “se criou” e fincaram suas raízes. O trabalho se resume a agricultura e, dessa forma, se torna escasso para a parcela que não quer trabalhar no cultivo e procuram trabalho “na rua”2. Sobre a história do quilombo, João Miguel Filho foi apontado pelos moradores entrevistados como um referencial na comunidade para falar a respeito, enquanto autoridade. Ele narra a origem de Sambaquim através dos “negros fugidos de Palmares”: E então... também chegou, uns... acho que negros era refugiado da família dos quirinos, acho que foi na época que eles vinheram de Palmares, acho que quem acabou com esse negócio foi... o nome dele, esqueci o nome dele... Zumbi do Palmares, num foi ele que organizou uma associação por lá. Sei que esse negros, certamente vinheram de lá, que eles eram bem pretim, pretim mas pretim mesmo (João Miguel Filho, 71 anos). 2 Palavra utilizada para se referirem a cidade de Cupira. José Luiz Xavier Filho | 147 Percebemos em seus relatos que sua memória individual não está isolada e fechada, sua fala é contextualizada, coerente com os outros relatos dos moradores. No momento memorial impulsionado pela nossa visita ao quilombo, pudemos perceber as conversas constantes por parte dos moradores, que evocavam lembranças antes esquecidas. Como bem disse Halbwachs: Nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida. Por história, devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros do qual os livros e as narrativas em geral nos apresenta apenas um quadro muito esquemático e incompleto (HALBWACHS, 2003, p. 79). Quando o questionamos se João Miguel Filho sabia algo sobre a participação dos seus antepassados em movimentos ligados ao quilombo ele nos fornece o seguinte: Pesquisador: Os seus pais e avós (antepassados) já participaram de algum movimento ligado a quilombos? O que eu sei dizer mesmo, é que minha finada mãe dizia, que ela pertencia a esse povo. A avó dela foi pegada e mãe dela foi pegada a dente de cachorro, que nem índio, caboclo brabo, você sabe, ela veio pro mato, e... refugiada, com certeza, já né. Diz que pegaram ela assim, diz que ela era bem pretinha, cabelo escorrido, e a finada mãe era desse mesmo jeito. Eu tenho um retrato dela aqui (João Miguel Filho, 71 anos). Não pretendemos comprovar e descrever a origem exata do quilombo, porém observá-la por meio dos diálogos, que foram estabelecidos com os moradores da comunidade. O fato de usarmos as entrevistas e a história oral em Sambaquim potencializa nossa pesquisa porque nos dá acesso a pluralidade da memória e inúmeras perspectivas de um passado em comum. Ao mesmo tempo, a utilização da memória e a 148 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ênfase na tradição oral, facilita o contato numa comunidade onde esses aspectos fazem parte do cotidiano e da história dessas pessoas. São os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão que mais se destacam nas narrativas, elaboradas e reelaboradas em função de relações tecidas no tempo presente, como em todo trabalho de produção de memória coletiva (MATTOS; CASTRO, H. M. M, 2006, p. 169). A comunidade quilombola Sambaquim hoje reconhece a sua importância não só para a cidade, mas para a história. Solônia Josefa da Silva, 38 anos, em nossa última conversa revelou que estava com medo do que queríamos, mas que agora não se sente mais com medo. Relatou que já tinham chegado a se reunir na Associação Comunitária de Remanescente de Quilombo Sambaquim de Cupira (ACORQ) e não responder mais nenhum “entrevistador” que fosse até eles, porque todos que iam, conseguiam o que queriam e não traziam nada de volta a comunidade. Compartilhou que em nenhum momento desanimou o povo, e que, se passaram por situações bem piores no passado, enfrentariam qualquer uma que surgisse. As identidades estabelecem uma conexão entre o presente na comunidade e dão origem de um passado histórico em comum com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Isso ficou evidente durante nossas entrevistas e nas relações sociais cotidianas da comunidade. Em contrapartida, a autoatribuição em se dizer quilombola, nos pareceu serem atribuídas e construídas por mediadores, pois as respostas adquiridas, quando questionamos “o que é quilombo?”, eram quase as mesmas, uma repetição do conceito e alguns não sabiam responder. Pesquisador: O que é quilombo? José Luiz Xavier Filho | 149 Ói, não sei se vou responder no pé da letra, mas... Quilombo é o seguinte, quilombo acho que é aquele povo refugiado no tempo do cativeiro, né, que correram daquele mundo que não sei da onde, e saíram se refugiando (João Miguel Filho, 71 anos, grifos nossos). Pesquisador: O que é quilombo? Sei não. Pesquisador: Mas o senhor sabe que mora em um quilombo, né? É... os negros trabalhava apulso. Cativeiro né... o tempo do cativeiro (José Joaquim da Silva, 74 anos, grifos nossos). Pesquisador: O que é quilombo? O que eu conheço aqui... pra mim é... o que é quilombo, é aquela história que você, não sou quilombo, me considero descendente de quilombo, porque a gente já vive aqui numa terra sofrida, que vem dos escravos, acho que quilombo é essa coisa, viver da agricultura, não sei nem explicar, já peguei essa história caminhada, um pouco difícil pra mim ainda (Solônia Josefa da Silva, 38 anos, grifos nossos). Através das falas dos nossos entrevistados, entendemos que os mediadores, possivelmente, foram os que trabalharam na comunidade durante o processo de titulação em 2005, pois esses, segundo os moradores, esclareceram para eles o que era quilombo. Nessa ótica, não podemos afirmar com exatidão quando começou especificamente a discussão no quilombo, mas, através dos diálogos, o termo “ser quilombola” começa a ser usado após a fundação da ACORQ, estabelecendo uma relação com um dos papeis assumidos pela Associação: representar a comunidade nas questões sociais relativas ao quilombo e as atividades culturais e do campo. Esses posicionamentos foram discutidos com todos os entrevistados: queríamos saber o que eles entendiam por quilombo e perguntamos se eles se consideram quilombolas e o que isso influenciava na vida deles. Nosso interesse não é definir o conceito de quilombo, mas saber até aonde eles sabem o que é, o que torna mais relevante, portanto, são as memórias do 150 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS grupo em relação ao que seus moradores sabem sobre eles mesmos e o que foi apreendido com seus antepassados sobre os conceitos deixados por eles. Os membros da comunidade assumem serem quilombolas, pois associam o termo com a associação da comunidade e as melhorias que trouxe ao quilombo. Todos os nossos entrevistados alegaram de modo consensual que Sambaquim mudou depois que “virou quilombo”. Tais mudanças vão desde os benefícios e recursos recebidos pelo grupo, até o modo como são vistos pela sociedade cupirense. Segundo o relato de Quitéria Josefa da Silva, e confirmado por outros moradores, durantes as feiras de rua semanais no centro de Cupira, antes do processo de titularização da comunidade, os quilombolas eram tratados com preconceito. O resultado das nossas entrevistas evidencia uma construção identitária recente sobre ser quilombola. Esse discurso é novo na comunidade, ganhando força a partir da certificação. Mesmo assim, existe uma consciência e um conhecimento sobre sua origem histórica, fato comprovado na fala dos moradores que é justificada por uma ancestralidade comum: descendentes de escravos. A mediação se torna perceptível porque os entrevistados tomam como referência a titulação. Em outras palavras, eles sabem que são quilombolas desde que nasceram, mas só se sentiram quilombolas depois de um documento oficial. Com base nos testemunhos orais do grupo construímos essa análise sobre a identidade negra em Sambaquim e como eles atualizaram esse conceito. A revalorização da cor passou a ser o símbolo da luta e tem evocado uma nova percepção sobre eles mesmo e nos processos identitários. Hoje, após a certificação, a comunidade começou a se politizar e a buscar melhorias para quilombo. A identidade negra no quilombo Sambaquim de hoje, como foi brevemente discutida, se tornou essa realidade da qual se fala tanto, mas José Luiz Xavier Filho | 151 sem definir no fundo o que ela é ou em que ela consiste. A identidade objetiva apresentada através das características culturais, linguísticas é confundida com a identidade subjetiva, que é a maneira como o próprio grupo se define ou é definido pela sociedade. Tomar consciência histórica da resistência cultural e da importância de sua participação na cultura brasileira atual é o que importa e deveria fazer parte do processo de busca da identidade negra por parte da elite politizada. Mas basear busca e construção de sua identidade na “atualmente” dita cultura negra é problemático, pois em nível vivido outros segmentos da população brasileira poderiam lançar mão da mesma cultura e nem todos os negros que no plano da retórica “cantam” a cultura negra a vivem exclusiva e separadamente dentro do contexto brasileiro, assim como não existem brancos vivendo exclusiva e separadamente a cultura dita branca (MUNANGA, 2012, p. 17). Essa breve discussão evidencia não só os conceitos e a ressemantização do termo quilombo dentro da comunidade através das lutas e conquistas históricas, por parte de um povo que há muito esteve excluído das políticas públicas. Sambaquim, como comunidade remanescente de quilombo, permanece nas mesmas terras de origem ganhando visibilidade não apenas como terra de descendentes de escravos, mas principalmente como protagonistas da sua própria história. A identidade está diretamente vinculada à percepção que cada grupo ou indivíduo tem de si próprio. O quilombola que foi ou é alvo de preconceito ou que foi discriminado não só pela cor da pele, mas também por seu local de origem, tenta se tornar um “igual” e a aceitar uma condição falsa dos outros sobre a construção do seu próprio eu, utilizando o argumento do agressor para sua transformação sobre si. Compactuamos com Nilma Gomes quando afirma: 152 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Entendo a identidade negra como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/raciais sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o outro, volta-se sobre si mesmo, pois só outro interpela a nossa própria identidade. A identidade negra é também uma construção política. Por isso, ela não pode ser vista de forma idealizada ou romantizada. Significa que, no contexto das relações de poder e dominação vividas historicamente pelos negros, no Brasil e na [diáspora], a construção de elos simbólicos vinculados à matriz cultural africana tornou-se um imperativo na trajetória de vida e política dos/as negros/as brasileiros/as (GOMES, 2004, p. 9). Assim, os valores culturais herdados dos seus descendentes passam a ter menos aceitação pelos jovens da comunidade, porque se tornou motivo de constrangimento, buscando uma identidade que não pertence a si e nem ao quilombo. Uma consequência do preconceito ao qual o quilombola se tornou vítima, ressaltando como é confirmado na fala da neta de Ulisses Francisco da Silva, “se algo de errado acontecer na cidade, foi Sambaquim”. Porém, mesmo diante das atitudes discriminatórias, ela como membro da comunidade, não se tornou vulnerável e ainda afirma: “é um orgulho pra comunidade de Sambaquim ser parte dos quilombolas. Eu me sinto. Se alguém me perguntar eu digo que sou de Sambaquim com muito orgulho”. Referências ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. C. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. São Paulo: ABA/FGV, 2002, p. 13-42. ANJOS, Rafael Sanzio Araújo. Quilombolas. Tradições e cultura da resistência. São Paulo: Aori Comunicação, 2006. José Luiz Xavier Filho | 153 GOMES, N. L. Educação e identidade negra. In: BRITO et al (Orgs.). Kulé kulé: educação e identidade negra. Maceió: EDUFAL, 2004, p. 83-96. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. MATTOS, Hebe; CASTRO, H. M. M. Políticas de reparação e identidade coletiva no mundo rural: Antônio Nascimento Fernandes e o Quilombo São José. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.1, n. 37, 2006, p. 167-189. MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebeldia negra. São Paulo, Brasiliense, 1981. MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do Quilombo na África. In: Revista USP, n. 28, São Paulo, 1996, p. 56-63. NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1980. SANTOS, Alexandre; DOULA, Sheila Maria. Políticas públicas e quilombolas: questões para debate e desafio à prática extensionista. In: Revista Extensão Rural, DEAER/PGExR – CCR – UFSM, ano XV, n. 16, jul./dez. 2008, p. 67-83. Fontes orais FILHO, João Miguel. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. FILHO, Otávio Miguel. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, José Joaquim da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. 154 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS SILVA, Josefa Estelina da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, José Joaquim da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, Maria Sileide. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, Otávio Miguel da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 29 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, Quitéria Josefa da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 29 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. SILVA, Solônia Josefa da. Entrevista concedida a José Luiz Xavier Filho. Quilombo Sambaquim, 28 de novembro de 2019. Entrevista completa encontra-se no arquivo pessoal do autor em áudio e transcrita. Capítulo VIII Entre a lembrança e a compra do silêncio: a Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos e a construção da memória sobre a ditadura militar em Santa Catarina Juliano Cabral Pereira 1 Introdução Em 13 de janeiro de 1998 era promulgada a Lei Estadual nº 10.719, a qual instituía a Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos de Santa Catarina – uma comissão especial cuja função era analisar pedidos de indenização das vítimas da repressão da ditadura militar no estado catarinense. Seu estabelecimento era não apenas uma maneira de compensar financeiramente aqueles que sofreram com a violência de Estado, mas também de reconhecer que as instituições de SC participaram de forma ativa em ações repressivas ao longo do período ditatorial. Assim, o grupo fazia parte daquilo que se entende por justiça de transição, a qual possui como alguns de seus objetivos a reforma das instituições para consolidar a democracia, o reparo às vítimas, o estabelecimento do direito à memória e à verdade, a investigação das violações praticadas em contextos autoritários e o julgamento dos perpetradores da violência (SCHINCARIOL, 2014; THIESEN, 2019). Entretanto, a noção de justiça transicional também recebe críticas. A principal consiste no fato de que comumente é aplicada de modo generalizante a qualquer Estado que carregue traços de um passado violento, sem grandes distinções entre os contextos que possibilitaram a 1 Mestrando em História – UDESC; juliaanoc@gmail.com 156 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ocorrência do mesmo (SCHINCARIOL, 2014). Ora, um país que possui histórico de guerra com outra nação, por exemplo, está inserido em circunstâncias bastante divergentes de casos onde o próprio Estado perpetrou o terror contra sua população. Sendo assim, analisar o caso brasileiro a partir de uma concepção de conflito pode implicar em políticas de reparação baseadas em um sentido de igualdade, voltadas a resolver a contenda atendendo a demandas de ambas as partes. Esse foco na resolução das divergências e não na garantia de justiça às vítimas contribui para a fundamentação de sociedades amnésicas (SILVA FILHO, 2009, p. 9) – em que determinados fatos são esquecidos em prol da conciliação. Contudo, pensar em maneiras de promover o esquecimento é também fomentar discussões sobre memória. Ou seja, “falar de reparação é, principalmente, apontar para o combate que se trava hoje em torno de determinadas memórias, em especial nos países que passaram por recentes ditaduras” (COIMBRA, 2008, p. 6). Nesse sentido, o foco do presente trabalho é refletir brevemente acerca da reparação oferecida às vítimas da ditadura militar em Santa Catarina, a partir da Comissão de Indenização dos Ex-Presos Políticos, em contraste com a postura da sociedade em relação à memória do período ditatorial no referido estado. Ao fim do texto, há ainda exemplos de políticas de reparação2 bem sucedidas em outras localidades, as quais poderiam inspirar as autoridades catarinenses. Comissão de Indenização: Santa Catarina entre o reparo e o esquecimento A Lei 10.719/1998 diz que “Somente terão direito à indenização os que, comprovadamente, sofreram sevícias que deixaram comprometimento físico ou psicológico” (SANTA CATARINA, 1998, 2 O sentido de políticas de reparação adotado nesta produção engloba também políticas de memória e de verdade. Juliano Cabral Pereira | 157 online). Para atender a esse requisito, os solicitantes deveriam entrar com um processo na comissão, o qual continha o relato por escrito das violações sofridas e um conjunto de provas que atestavam os fatos narrados. Eram anexadas páginas de Inquéritos Policiais Militares (IPM’s), matérias de jornal sobre a repressão nas quais os requerentes eram citados, transcrições dos interrogatórios a que foram submetidos, alegações de testemunhas, entre outros materiais que formavam um acervo documental bastante amplo. Para além da diversidade, a documentação comprobatória continha nomes de agentes da repressão, de órgãos responsáveis e de instituições utilizadas como prisão de perseguidos políticos; são os casos, por demonstração, de João Rath de Oliveira e de Geni Oliveira Ramos. O primeiro fez uso de um IPM para atestar sua narrativa e, ao final do inquérito, há a assinatura do capitão encarregado de produzi-lo, bem como menciona determinado coronel “a quem incumbe solucionar o mesmo e remetê-lo a autoridade competente” (OLIVEIRA, 1998, n. p.), citando os nomes completos de ambos. Já o segundo traz a argumentação do advogado da solicitante, em que é relatado que seu marido ficara preso no Sindicato dos Trabalhadores Portuários de Itajaí, “sob o comando do Tenente da Marinha Brasileira José Pinheiro Dantas” (RAMOS, 1998, n.p.) – identificando assim o local utilizado como cárcere e o militar responsável pela sua administração. Chama atenção o fato de que a comissão era composta, entre outros membros, por representantes do Ministério Público e da Assembleia Legislativa, somados a quatro pessoas indicadas diretamente pelo governador do estado (SANTA CATARINA, 1998). Ou seja, havia ocupantes de cargos que poderiam fazer uso das muitas informações trazidas no conteúdo dos processos, direcionando esforços para iniciativas de reparação às vítimas que fossem além do aspecto financeiro. A reparação 158 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS de caráter indenizatório é necessária e justa; porém, sua utilização solitária passa longe de ser suficiente. Faz-se necessária a existência de políticas reparadoras em relação à memória da ditadura militar, que possuam a finalidade de evitar a permanência de traços autoritários na sociedade brasileira. De acordo com o artigo 8 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo [grifo meu] para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2018, online). A eficácia desse remédio, no caso das ações posteriores à referida comissão, pode ser questionada quando posta em contraste com a situação presente de Santa Catarina em relação à memória do regime. Primeiramente, apenas em 2013 o governo catarinense se envolveu de forma direta com outra medida que tratava do assunto – a Lei nº 16.186, de 5 de dezembro de 2013, instituiu a Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright (CEV-SC), tendo por função auxiliar a Comissão Nacional da Verdade a examinar violações de direitos humanos com motivações exclusivamente políticas (SANTA CATARINA, 2013). Entre as duas comissões (a de indenização e a CEV), os trabalhos realizados em sentido reparatório e que tratavam da memória sobre a ditadura foram iniciativas de caráter nacional (como as Clínicas do Testemunho e as Caravanas da Anistia) ou de grupos independentes, como o Coletivo Memória, Verdade e Justiça – mas nada que tenha partido diretamente do governo estadual. Obviamente, a intenção não é criticar de forma leviana ou condenar as instituições catarinenses por omissão no trato de questões referentes à ditadura no estado – longe disso – e sim atentar para o fato de que é possível fazer mais do que já foi feito, havendo ferramentas para tanto. Juliano Cabral Pereira | 159 Em segundo lugar, a necessidade de políticas de reparação e do trabalho de memória é intensificada pelo caráter bastante conservador de Santa Catarina. Ao longo do século XX, a política local fora amplamente dominada por grandes famílias que compunham os grupos hegemônicos do estado (DUWE, 2016; LOHN, 2018), ligadas a partidos mais próximos ao lado direito do espectro político. Mais do que isso, essa tendência se mantém quando observados, respectivamente, os partidos dos governadores eleitos desde a redemocratização e dos prefeitos de algumas das maiores cidades catarinenses escolhidos nas eleições de 2016. Governadores: Pedro Ivo Campos (PMDB), Vilson Kleinünbing (PFL), Paulo Afonso Vieira (PMDB), Espiridião Amin (PPB), Luiz Henrique da Silveira (PMDB), Raimundo Colombo (DEM/PSD), Carlos Moisés (PSL). Prefeitos: Florianópolis (Jean Loureiro-MDB), São José (Adeliana Dal PontPSD), Balneário Camboriú (Fabrício Oliveira-PSD), Joinville (Udo DöhlerMDB), Criciúma (Clésio Salvaro-PSDB), Lages (Antônio Ceron-PSD), Chapecó (Luciano J. Buligon-PSD), Blumenau (Napoleão B. Neto-PSDB), Laguna (Mauro Candemil-MDB). Diante disso, é possível levantar a hipótese – confirmá-la demandaria espaço maior do que o limite da presente produção – de que a sociedade catarinense, em termos políticos, seria pouco afeita a ideias reformistas, mantendo certa tendência eleitoral ao longo do tempo3. Soma-se a isso o fato de que uma suposta identidade europeia caracterizaria as raízes do estado, calcada em valores como a ordem e o apreço pelo trabalho. O ponto a que se quer chegar com essa pequena discussão é o seguinte: a escassez de políticas de reparação e do amplo trabalho de memória em um contexto conservador, tanto no sentido identitário quanto político, com forte apego 3 Tal fato não caracteriza julgamento sobre o trabalho desses políticos ou suas posições ante a ditadura militar. O que se pretende é demonstrar como aparentemente o eleitorado de Santa Catarina não promoveu grande rotatividade de seus representantes em termos de posicionamento político. 160 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ao civismo e à ordem (termos constantemente atrelados à ditadura militar), pode contribuir para o estabelecimento de permanências do regime autoritário em período democrático, não atendendo assim aos objetivos da justiça transicional e minando a eficácia do trabalho da comissão. Alguns exemplos podem ajudar a compreender tal tese. Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República em 2018 fazendo uso, dentre outros fatores, de retórica saudosista em relação à ditadura militar, ressaltando ter sido um período ordeiro, de honestidade e de segurança. Pois bem: o estado em que mais recebeu votos foi justamente Santa Catarina, onde mais de 75% dos eleitores teriam apoiado o então candidato (PORTAL, 2018). Dentro desse contexto, houve exaltação ao aspecto identitário europeu em algumas cidades, como nos casos de Treze de Maio e Blumenau. Naquela, grupos bolsonaristas viviam fortemente armados à época das eleições, clamando pelo reconhecimento da ascendência italiana da região (CANZIAN, 2018); nesta, um entrevistado na tradicional festa alemã Oktoberfest, cuja edição daquele ano teria sido recheada de exaltações a Bolsonaro, afirmava que gente honesta e trabalhadora não precisaria ter medo dele (SAYURI, 2018). Um último exemplo a ser citado remete a Joinville, cidade industrial de colonização alemã. No ano de 2014, antes de passeatas pedindo intervenção militar virarem moda em 2020, parte da população da cidade reeditou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (SEGUINDO..., 2014), evento que apoiou o golpe civil-militar de 1964 e o comemorou em várias partes do país nos dias seguintes a sua execução. Na reedição da passeata, o grupo marchou em direção ao prédio do 62º Batalhão de Infantaria – uma das entidades mais atuantes durante a ditadura em SC. Como se não bastasse, em 2018, o batalhão foi homenageado na Assembleia Legislativa pelos seus cem anos, onde houve solenidade agradecendo pelos serviços prestados ao longo desse século de existência, Juliano Cabral Pereira | 161 bem como afirmações sobre terem defendido as maiores bandeiras da cidade e serem a instituição a que o povo dedica maior apoio (COSTA, 2018). Diante de fatos dessa natureza, evidencia-se a necessidade de trazer para a população catarinense o debate sobre o que foi a ditadura militar no estado. É a noção de justiça que dá à memória o sentido de dever e, ao extrair valor exemplar das lembranças traumatizantes, a memória é colocada enquanto projeto e atribui a esse dever a forma do futuro; “pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança ao inventário” (RICOUER, 2007, p. 101). Ou seja, é mister que se pense nos resultados a longo prazo das políticas de reparação e aonde se quer efetivamente chegar com sua implementação. Ações reparadoras que garantam a não repetição das ocorrências do período autoritário e o direito à memória que respeite o sofrimento das vítimas são urgentes em contextos como o de Santa Catarina, onde os exemplos supracitados constituem novas violações, ainda que veladas, aos que sofreram com a repressão no estado. Experiências de reparação que obtiveram sucesso: exemplos a serem seguidos Algumas experiências de políticas de reparação bem sucedidas poderiam servir de exemplo para o estado de Santa Catarina. Peço licença ao leitor e a leitora para me desviar brevemente do espaço catarinense, com a finalidade de elaborar algumas sugestões que poderiam ser efetivadas para levar o reparo além do aspecto financeiro e dar o passo adiante em relação ao trabalho da Comissão de Indenização. Vale pontuar que não se tratam de iniciativas puramente ilustrativas ou que objetivam apenas homenagear as vítimas do autoritarismo, sem efetivamente promover a reflexão do corpo social; são ações de cunho prático, didaticamente elaboradas para que a população tenha condições de refletir e compreender do que se trata esse passado tão sensível. Além disso, foram 162 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS escolhidas também por caracterizarem medidas regionais, para que se pudesse estabelecer uma comparação mais ajustada com Santa Catarina em termos de recorte espacial. Dito isso, sem mais delongas, vamos a elas. Entre as décadas de 1960 e 1990, a América do Sul sofreu com uma onda autoritária que se evidenciou violentamente através de ditaduras militares instauradas em diversos países do continente; as ocorrências em território argentino entre 1976 e 1983 podem ser consideradas algumas das mais graves violações de direitos humanos efetuadas no período. Torturas, mortes e desaparecimentos foram executados a partir de diferentes mecanismos, tais quais os campos de concentração – entre 1976 e 1982, funcionaram no país “340 campos de concentración-extermínio, distribuídos en todo el território nacional (...) se estima que por ellos pasaron entre 15 y 20 mil personas, de las cuales aproximadamente el 90 por ciento fueron asesinadas” (CALVERO, 2006, p. 29) – e os chamados “voos da morte”, em que aviões carregados de prisioneiros políticos sedados sobrevoavam rios, em cujas águas eram atirados os cativos ainda com vida. Contando somente os presos nas instalações da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), cerca de 1.500 a 2.000 pessoas teriam sido vítimas desta aterradora prática (SOCA, 2016, p. 95). Ao fim do período ditatorial e ao longo das décadas que o sucederam a luta do povo argentino por justiça ainda vigora com muitas barreiras e dificuldades, mas importantes avanços em termos de reparação também foram conquistados. De acordo com o estudo produzido pelas pesquisadoras Francisca Garretón, Marianne González e Silvana Lauzón, do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Chile, cerca de 50 políticas públicas de busca pela memória e pela verdade foram registradas na Argentina entre 1983 e 2009 (GARRETÓN, GONZÁLEZ e LAUZÓN, 2011, p. 27). Dentre elas, primeiramente destaca-se uma medida que visa trazer para as novas gerações a magnitude do que foi (e do que é, no Juliano Cabral Pereira | 163 presente, a partir de seus desdobramentos) a ditadura militar, em diálogo direto com o âmbito educacional. Trata-se da Lei 11.782/1996 da província de Buenos Aires, que determina a realização de atividades em instituições de ensino que contribuam para aprofundar o conhecimento dos jovens acerca da ditadura iniciada em 1976. Nos próprios termos da legislação: El presente proyecto apunta a sistematizar la transmisión de las duras experiencias de los años de la última dictadura militar a las jóvenes generaciones que por fortuna ignoran lo que es vivir bajo el imperio del autoritarismo y la violencia de Estado sistemática. El afianzamiento en la juventud de la cultura de la democracia, la libertad y el respeto por la dignidad de sus semejantes, abonado por el conocimiento de los trágicos efectos que conlleva el abandono de esos valores, cualquiera sea la causa en la que se inspire, es una tarea que debe concitar el empeño de todas las instituciones republicanas. En el marco de este instrumento legal y sobre la base de los contenidos mínimos en él prescriptos puede desplegarse una vasta gama de iniciativas que permitan poner en acción la creatividad de docentes y alumnos. Estas acciones, diversas en sus formas, contribuirán a mantener viva la memoria y a consolidar el compromiso democrático de toda la ciudadanía bonaerense (BUENOS AIRES, 1996, online). Estreitar relações com instituições de ensino é um passo fundamental para a completude do processo de retorno à democracia e, principalmente, para a efetivação do direito à memória das vítimas da repressão. Afinal, tal qual aponta Dominique Juliá (2001, p. 10), não se pode olhar a educação (e a cultura escolar) de modo a restringi-la aos muros da escola; assim como os estudantes trazem consigo experiências externas ao ambiente escolar para dentro das classes, também levam para seus círculos sociais aquilo que é apresentado nas aulas que lhes são ministradas. Sendo assim, utilizar os espaços de educação com a finalidade de aprofundar o conhecimento acerca de feridas ainda abertas, causadas por passados autoritários bastante recentes, é não somente garantir que memórias 164 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS sensíveis sejam devidamente respeitadas, como também colocar em prática o processo gradual de conscientização popular para evitar que sigam ocorrendo violações diárias, tais quais as supracitadas em relação ao contexto catarinense. Ainda em referência a Argentina, cabe ressaltar um último exemplo: a criação do Museo de la Memoria de la Municipalidad de Rosario, na província de Santa Fe. Estabelecido no imóvel em que funcionou durante a ditadura El Comando del Segundo Cuerpo del Ejército, o museu retrata elementos do período autoritário à nível local. Além de marcar aquele território enquanto palco de violações de direitos humanos à época do regime, utilizar as instalações de um antigo órgão repressor é também uma iniciativa de ressignificação de espaços (GARRETÓN, GONZÁLES e LAUZÓN, 2011, p. 27), tornando palpável e sólido o fato de que a província foi atingida violentamente pela repressão. Ademais, a ideia de um lugar de memória que privilegia a região em que está inserido e que torna vívidas para a população local as ocorrências de um passado traumático não é exclusiva do contexto argentino; semelhante exemplo pode ser encontrado no Brasil, na figura do Memorial da Resistência. O Memorial da Resistência do Estado de São Paulo foi elaborado na mesma lógica de ressignificação de localidades marcadas por um passado de horror, tendo sido instituído no prédio do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) – um dos órgãos mais temidos da ditadura militar brasileira, onde dezenas de opositores do regime foram torturados e mortos. Elaborado em 2007, o Memorial não se trata de apenas um espaço de amostragem de objetos estáticos, distantes da realidade de seus frequentadores; foi projetado a partir de diálogos interdisciplinares entre museólogos, historiadores e educadores da Pinacoteca do Estado, objetivando trazer experiências que instiguem a reflexão daqueles que o visitam. É composto por seis linhas de ação: Juliano Cabral Pereira | 165 Centro de Referência, Coleta Regular de Testemunhos, Lugares de Memória, Exposição, Ação Educativa e Ação Cultural. Além disso, conta ainda com quatro módulos: Edifício e suas Memórias; Controle, ação e resistência; Construção da memória: o cotidiano nas celas do DEOPS-SP e Da carceragem ao centro de resistência (GUMIERI, 2012). O interessante acerca de seu funcionamento é a articulação dos diferentes mecanismos de diálogo com o público. Os visitantes podem, por exemplo, conhecer quatro celas remanescentes, cada uma com uma forma de interação diferente. De acordo com Julia Gumieri (2012, p. 4), a Cela 1 apresenta um vídeo que expõe documentos sobre quatro presos mortos em decorrência das torturas sofridas no DEOPS-SP, além de prestar homenagem aos demais perseguidos pela repressão; a Cela 2 foi reconstituída através das memórias de antigos presos do local; a Cela 3 expõe um áudio com testemunhos acerca do cotidiano e da resistência dentro do cárcere; por fim, a Cela 4 oferece leituras sobre a convivência entre os prisioneiros. Além disso, e ainda de acordo com a autora, há terminais de consulta em outras regiões do prédio, onde podem ser acessados sites, dados referenciais e testemunhos de ex-presos políticos, havendo ainda uma vitrine expondo objetos e documentos originais do DEOPS-SP. Por fim, merecem destaque as ações culturais: seminários acadêmicos, peças de teatro, mostras de filmes, rodas de conversa, visitas educativas e projetos como o Encontro com professores. Detalhe: segundo a coordenação do Memorial, a iniciativa partiu do governo do estado de São Paulo, através da parceria de sua Secretaria de Cultura com organismos de defesa dos direitos humanos. Diante do que foi exposto, fica evidente ser possível avançar em políticas reparadoras que vão além da compensação financeira. Obviamente, cada localidade (seja estado ou país) possui suas próprias leis, contextos e limitações; entretanto, com planejamento e organização, 166 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS medidas como estas aqui exemplificadas podem ser postas em prática. Em Santa Catarina, um importante passo inicial – simples, ainda que trabalhoso – poderia ser o recolhimento da documentação oficial dos órgãos da ditadura militar que atuaram em Santa Catarina, os quais se encontram espalhados por diferentes arquivos do território nacional. Isto possibilitaria que, juntamente com materiais como aqueles do acervo da Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos, mais pesquisas acadêmicas fossem realizadas e gerassem embasamento para a elaboração de novas iniciativas por parte do governo estadual. Ainda neste sentido, seria imprescindível buscar o estreitamento com instituições de ensino – seja com a educação básica, para aprofundar o conhecimento de crianças e adolescentes, seja com as universidades, para dialogar com estudiosos da temática. Mais do que isso, grupos como o Coletivo Memória, Verdade e Justiça e o Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH) realizam trabalhos com documentação, testemunhos e produção de eventos voltados à temática em Santa Catarina; sua experiência e know-how certamente seriam úteis para iniciativas em parceria com o governo do estado. Por meio de tais ações talvez fosse possível a criação de museus interativos e de projetos de capacitação de professores, bem como a realização de ações culturais que aproximassem a população do assunto. O desafio é grande, o caminho é longo, mas estas são medidas que comprovadamente obtiveram relativo sucesso em outros lugares; a tentativa valeria a pena não só para os que foram vítimas da repressão, como também para a saúde da democracia no estado catarinense. Considerações finais A Comissão de Indenização aos Ex-Presos Políticos de Santa Catarina foi fundamental para reconhecer as violações perpetradas pelas Juliano Cabral Pereira | 167 instituições catarinenses contra sua própria população. Assim sendo, o problema não é a comissão em si, mas não ir além dela – indenizar as vítimas sem considerar as reminiscências da ditadura no tempo presente pode soar como a compra do silêncio dessas testemunhas sobre os horrores praticados ao longo do regime. Com a existência de rico acervo documental gerado a partir de seus processos (reunido pelo excelente Coletivo Memória, Verdade e Justiça, é importante dar os créditos), poderia ser realizado o investimento em políticas de reparação que vão além da compensação financeira, consequentemente contribuindo para a formação de uma memória da ditadura em Santa Catarina que faça jus às ocorrências do período. A necessidade de ações que caminhem nessa direção se evidencia quando expostas as circunstâncias atuais do estado em relação a esse passado recente, ao qual parte da sociedade local dedica certo saudosismo. Eventos abertos para a população, divulgação de filmes e peças de teatro na grande mídia, criação de museus, adaptação do currículo escolar, entre outros elementos, são alternativas cabíveis – contudo, é preciso apoio do governo com políticas de memória e não esquecimento em prol da conciliação. Referências BUENOS AIRES, Ley 11.782, de 17 de abril de 1996. 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A freguesia de São José do Taquari, criada em 1765, no extremo oeste da ocupação portuguesa, compunha o projeto de ocupação e exploração colonial de Portugal numa região em disputa com os domínios espanhóis da América. Enquanto isso, em 1763, Santo Antônio da Patrulha se constituiu como freguesia em meio ao contexto de abertura dos caminhos das tropas e instalação do Registro, que levavam o gado à Sorocaba, e a fixação da população de origem europeia na região dos Campos de Viamão. Porém, antes de tratarmos especificamente do perfil das freguesias cabe relembrar o processo de inserção colonial da região que atualmente compreende o estado do Rio Grande do Sul e parte do estado de Santa Catarina. Esse espaço geográfico foi disputado entre as Coroas ibéricas na América, através de acordos e tratados e também investidas bélicas. 1 Mestre em História; sandrahh13@hotmail.com 2 Mestranda em História – PPGH/UFRGS; vaschommer@gmail.com 174 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS As primeiras investidas no sul da América Portuguesa tiveram início na segunda metade do século XVII quando, partindo de terras paulistas, avança-se para o sul. Entre os anos de 1676 e 1737, Laguna permaneceu como povoação portuguesa mais austral3, até a fundação do presídio de Rio Grande que recebe um governo militar específico. Dessa forma, constituindo uma descontinuidade na organização administrativa da região, sendo os Campos de Viamão dependentes de São Paulo, Rio Grande e Sacramento, do Rio de Janeiro (OSÓRIO, 2015, p. 71-71). Dois anos após a fundação do presídio, é estabelecida a Guarda de Viamão (1739), a partir dessa guarda, é instituído o registro e suas lojas, e uma povoação. Em 1747 é fundada a freguesia de Viamão, em 1756, a de Triunfo. Osório, ao analisar cronologicamente a fundação das freguesias no espaço rio grandinho, percebe que a intensificação do povoamento e a ordenamento do espaço em freguesias deu-se entre as décadas de 1760 e 1770 (OSÓRIO, 2015, p. 75). São, dessa forma, sete freguesias criadas antes da invasão de Rio Grande (1763-1776), e é nesse primeiro movimento que se inserem as freguesias de São José do Taquari e Santo Antônio da Patrulha Assim, ambas freguesias foram criadas ainda no período que antecede a demarcação territorial entre as coroas ibéricas no extremo sul americano, pois essa somente se resolveu em 1777, com o Tratado de Santo Ildefonso que incorporou definitivamente a Colônia de Sacramento aos domínios do Vice-reino do Rio da Prata, devolveu o território da ilha de Santa Catarina aos portugueses, que havia sido tomada no mesmo ano pelas tropas espanholas, e estabeleceu uma região neutra nos domínios ibéricos, conhecida como “campos neutrais”. Contudo, a expedição demarcatória portuguesa, iniciada em 1751-1752, encabeçada pelo 3 No território contíguo, já que em 1680 funda-se a Colônia de Sacramento. Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 175 governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade, pretendia encaminhar, de modo sistemático, a apropriação das terras que naquele momento pertenciam aos domínios portugueses e isso impulsionou uma série de mudanças demográficas e sociais no Continente do Rio Grande de São Pedro. A presença do governador do Rio de Janeiro no Continente acelerou as concessões de terras denominadas sesmarias, comuns nos domínios portugueses, já que cabia a esse conceder ou não o aval aos requerentes da mercê. Osório (2017, p. 71) mostrou que as primeiras concessões de sesmarias feitas pelo governador ocorreram na região do rio Jacuí em 1754, caminho para as missões jesuíticas, territórios que posteriormente formaram as freguesias de Rio Pardo e Santo Amaro, e caracterizam o ponto extremo da ocupação portuguesa no Oeste, na década de 1750. Em 1764, foi criada, nas margens do rio Taquari, a freguesia de São José do Taquari. A região já abrigava assentamentos populacionais desde 1750, entre eles estavam antigos posseiros, contingentes militares e famílias de origem ou ascendência açoriana. Os últimos eram oriundos de Viamão, Rio Pardo e Rio Grande e buscavam inserção no Continente americano enquanto pequenos produtores e foi justamente a presença dessas famílias que levou o governador Coronel José Custódio de Faria e Sá a cumprir o requerimento do vice-rei Conde da Cunha que ordenava a acomodação das populações açorianas “onde melhor lhe parecer, ainda que seja em sesmarias das mais apotentadas pessoas” (apud OSÓRIO, 2017. p. 86). Em 1768, o vice-rei recebeu a resposta do governador sobre a criação da freguesia de São José do Taquari, primeira do Rio Grande de São Pedro especificamente destinada a acomodar imigrantes açorianos e seus descendentes na América. Essa população foi assentada em pequenos lotes de terras conhecidos como datas de terra. As datas eram concedidas pelo 176 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS governador, possuíam tamanho muito inferior às sesmarias, podendo alcançar a extensão máxima de 272 hectares e eram concedidas para os “casais” de origem açoriana, migrados do arquipélago português no norte atlântico à América. Já a Freguesia de Santo Antônio da Patrulha é criada a partir da construção de uma Capela dedicada ao santo homônimo por Ignácio José de Mendonça e sua esposa entre os anos de 1756 e 1760. Essa capela foi erigida ao lado do Registro e da Guarda (ou Patrulha) do Caminho dos Tropeiros, instalação que buscava cobrar as taxas e controlar a passagem de homens e animais em direção ao norte do Continente. Lembramos que o processo de abertura do Caminho dos Tropeiros teve início em 1720, como uma alternativa ao Caminho da Praia, que ligava a Colônia do Sacramento, assim como as vacarias do mar e dos pinhais à Sorocaba. Este novo caminho foi concluído entre os anos 1730 e 1740, e cruzava por entre os Campos de Viamão. Ao atravessar esses campos em direção ao território de Cima da Serra, impulsionou o povoamento dos campos de seu entorno. Entre as povoações que foram estimuladas por essa estrada está a de Santo Antônio da Patrulha, que foi elevada à categoria de freguesia 3 anos após a construção da capela, em 1763. São, portanto, duas freguesias que embora sejam criadas na mesma década e no mesmo momento de retração e defesa do Continente, após a ocupação de Rio Grande pelas tropas de Ceballos, se deram por formas diferentes, São José de Taquari criada para receber os imigrantes açorianos e seus descendentes, e Santo Antônio surgida a partir do Registro e elevada à categoria de freguesia por conta da construção de sua Capela através da iniciativa privada. Mas, a década de surgimento não é o único elo que une essas localidades, assim como Taquari, em Santo Antônio também foram distribuídas as datas de terra aos casais açorianos, Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 177 em 1770-1772. E é a inserção desse contingente migrante, e as diferenças no seu assentamento e acesso à terra que buscamos discutir nesse artigo. Cartas de datas: perfil A presença da população açoriana ao Sul da América portuguesa compunha o projeto português de traslado e instalação de súditos das ilhas açorianas para a região da fronteira, sendo incentivada pela publicação de um Edital de 1747. Por ordem do rei D. João V, esse Edital foi divulgado nas ilhas do arquipélago dos Açores e incitou a população a se matricular no dito projeto e posteriormente migrar para o Brasil. Para Marta Hameister (2006) essa era uma medida benéfica para ambos os domínios portugueses, pois se o extremo sul e a região norte da América necessitavam de povoadores e as ilhas sofriam com o excedente populacional, dificuldades de acesso à terra e desastres ambientais. A conjuntura política, social e econômica encontrada pelos imigrantes e seus descendentes na América foi de conflitos bélicos com os espanhóis e dificuldades de acesso à terra. Assim, formas estratégicas de associação e reciprocidade familiar compunham a realidade desse conjunto populacional, desde a sua chegada ao continente do Rio Grande de São Pedro até a sua inserção no mercado interno colonial enquanto pequenos produtores de alimentos. O acesso à terra na primeira freguesia de população açoriana (Taquari) se deu, majoritariamente, pelas concessões de datas de terras pelo governador, na década de 1760. Essas originaram unidades produtivas que se especializaram no plantio e cultivo de lavouras e através do mercado interno se inseriram economicamente na sociedade colonial, enquanto lavradores. Em Santo Antônio da Patrulha, ocorreu maior diversificação nas formas de acesso à terra, pois como essa era uma freguesia de mais antiga ocupação, no entanto, as concessões de data 178 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS também compunham a sua estrutura agrária, ainda que em dimensões muito inferiores às de Taquari. A partir das análises das Cartas de datas de terra que se dão aos casais açorianos4 gostaríamos de apontar alguns elementos sobre as duas freguesias. Essa documentação consiste em títulos de terra, concedidos a partir da década de 1760, pelo governador do Continente do Rio Grande de São Pedro. Em seu conteúdo encontramos informações sobre os beneficiários da concessão, o que possibilita conhecer o perfil demográfico e social desses indivíduos e suas famílias, e algumas características da propriedade de terra. Essas concessões de datas de terra não seguiam um único padrão social e econômico e poderiam variar bastante de uma freguesia para outra, principalmente nas extensões dos terrenos concedidos. Para conhecermos algumas semelhanças e diferenças entre as freguesias de Taquari e Santo Antônio da Patrulha analisamos todos os registros de concessão de datas de terras, localizados para as duas freguesias, e seus dados estão representados na tabela a seguir. Tabela 1: Perfil da concessão de datas de terras em duas freguesias riograndenses Freguesia Taquari St. Antônio da Patrulha Ano do Nº de registro registros 1770 54 1770-1772 19 Beneficiários Extensão da propriedade casais açorianos (44,5%) e 562.000 braças filhos de açorianos (51,5%) quadradas casais açorianos (30%) e entre 33.600 e 585 filhos de açorianos (70%) braças quadradas Fonte: Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770. AHRS. Códice F 1229. 4 Esses documentos estão compilados no Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770 e salvaguardados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Códice F 1229. Encontram-se transcritos em: BARROSO, Vera Lúcia Maciel (org.). Açorianos no Brasil: história, memória, genealogia e historiografia. Porto Alegre, EST, 2002. Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 179 Podemos, dessa forma, comparar essas concessões a partir de seus registros. Uma primeira análise pode ser feita quanto ao perfil matrimonial dos casais que receberam datas. Em Taquari, onde as terras foram distribuídas na década anterior, Eckhardt (2019) constatou que 46,5 % eram casais onde pelo menos um dos cônjuges era emigrados das ilhas, e 53% filhos ou cônjuges dos filhos. Percentual maior ao encontrado em Santo Antônio (cerca de 39%), o que possivelmente se deve ao fato de ter sido em Taquari que as datas foram primeiro distribuídas. Seguindo a comparação entre as freguesias, podemos observar a precariedade com que foram assentados os açorianos em Santo Antônio, diferente do padrão de distribuição dos lotes no restante da Capitania. Em Taquari e Viamão as datas de terra distribuídas tiveram a extensão média de 560.000 braças quadradas; em Porto Alegre possuíam a metade do tamanho, 280.000 (GOMES, 2018, p. 95). Observamos, portanto, em todas essas freguesias uma certa regularidade no tamanho das distribuições das datas, o que não ocorreu em Santo Antônio, uma vez que encontramos a menor concessão com 585 braças e a maior com 33.600, tamanhos bastante inferiores quando comparados às demais freguesias. Mas, é importante frisar que mesmo onde houveram as maiores concessões de terras, elas ainda eram bastante inferiores ao previsto no edital, e representavam somente ¼ do que fora prometido aos migrantes. Essa precariedade de assentamento pode significar que foram somente medidas e concedidas terras aos sujeitos que já se encontravam em Santo Antônio no momento da distribuição das datas, e essa variação de tamanhos, portanto, representaria as diferentes condições em que se encontravam os açorianos na dita freguesia. Neis e Osório (1975, p. 33; 2017, p. 79) afirmam que uma década depois, vários casais já haviam migrado para outras freguesias, buscando condições melhores de acesso à terra e, consequentemente, de vida. 180 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Mas, para além das cartas de datas, temos outra fonte muito interessante para observar o perfil de distribuição de terras, e o que representavam os casais para as freguesias. Estamos falando da Relação de moradores de 1785, a qual consiste em um minucioso levantamento sobre a ocupação da terra do Continente do Rio Grande de São Pedro, tanto por proprietários com títulos legais, quanto posseiros e agregados. Relação de Moradores Em 1784, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza ordena que o provedor da Fazenda Real do Rio Grande realizasse um levantamento sobre a estrutura agrária das freguesias do Continente, com o objetivo de conhecer as formas de ocupação da terra e as principais atividades ocupacionais desenvolvidas no extremo sul da América. Esse levantamento deu origem a Relação de Moradores que têm campos e animais, que é um compilado de páginas organizadas para cada freguesia do Rio Grande de São Pedro, da década de 1780. A coleta dos dados foi realizada pelos capitães auxiliares que visitavam as freguesias e coletavam os dados, gerando um compilado de documentos conhecidos como rascunhos da Relação de Moradores5. A versão encaminhada ao vicerei no Rio de Janeiro6 se baseou nesses rascunhos dos capitães e organizou as informações referentes às freguesias. Para Taquari foram localizadas as duas documentações e o grau de compatibilidade é bastante alta, já para Santo Antônio da Patrulha, encontramos somente os borradores, a versão oficial não foi enviada ao Vice-Rei. Os rascunhos e a versão oficial da Relação de Moradores são as fontes por excelência utilizadas pela historiografia do Rio Grande do Sul no que 5 Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. E Relações de moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. 6 Relação de moradores que têm campos e animais no Continente (versão oficial de 1784). ANRJ. Códice 104, v.6, 7 e 8. Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 181 diz respeito ao estudo da estrutura agrária, pois apresentam um conjunto de informações muito pertinentes ao tema. Entre essas informações estão o nome de cada produtor, cada ocupante de lotes de terra, os títulos de propriedade, quando o possuem, a atividade ocupacional que se empregava nos domicílios arrolados e o número de animais possuídos por cada freguês, explicitando gênero e espécie desses. Helen Osório foi a primeira pesquisadora a abordar as principais questões contidas na Relação de Moradores, para todas as freguesias do Continente. Suas análises trouxeram importantes e sólidas contribuições sobre a apropriação de terras ocorridas no Rio Grande de São Pedro, durante o século XVIII. Utilizando-se do repertório de todos os registros dos moradores declarados nessa listagem, Osório (2007, p.88) identificou seis formas de apropriações primárias da terra ocorridas no Continente do Rio Grande de São Pedro, o que ela categorizou como datas, não informadas, despachos do governador, posse, sesmaria e arrematação. A pode observar que em maior número prevaleciam as datas. Como demonstramos anteriormente, essas eram as pequenas propriedades de terras concedidas, comumente, aos imigrados açorianos e seus descendentes, durante a década de 1760 e 1770, pelo governador da Capitania do Rio Grande, e ostentavam uma dimensão máxima de 272 hectares. Desse modo, o repertório de informações contidas nesta documentação nos ajuda a entender as dinâmicas de ocupação e estruturação do cenário agrário em duas freguesias com presença de imigrantes açorianos e seus descendentes, uma década após a concessão das datas de terra. Sendo possível avaliar as proporções de propriedades que mantiveram sua forma original, as possíveis partilhas, vendas e ampliações, fosse pela compra ou simples apropriação. 182 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Quadro 2: Principais formas de ocupação da terra constantes na Relação de Moradores (1784-1785) Freguesia Datas de terra à favor Sesmarias Posse Compras Outras Taquari 35,7% 31,2% 0,9% 19,2% - 13% Snt. Antônio da 13% 23% 2% 21% 25% 16% 18,3% 8,6% 2,3% 10,4% 32,4% 28% Patrulha Rio Grande de São Pedro* Fontes: Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198; Relações de moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. * Os dados sobre o Continente do Rio Grande de São Pedro foram extraídos de OSÓRIO, 2007, p. 93 e transformados em percentuais. Antes de seguirmos com as comparações, cabe aqui esclarecer que as categorias de análise (formas de acesso à terra) aqui expostas foram adotadas exclusivamente para a reflexão proposta nesse artigo. A categoria “outras”, não existe nos trabalhos originais, e é bastante complexa, agrupando no mesmo lugar terras acessadas por meio de despachos do governador, arrematações sítios, chácaras, arrendamentos, heranças, doações, trocas e sem identificação7. Também é importante frisar que não necessariamente eram encontradas todas essas formas de acesso à terra em todas as freguesias. Desse modo, queremos reafirmar que a paisagem agrária do Rio Grande de São Pedro foi formada a partir de um variado repertório das formas de acesso ao principal recurso produtivo, a terra, e ao deslocar a escala para analisa-lo por freguesias, é possível observar que esse processo foi marcado por especificidades regionais, que complexificam a narrativa de conquista e formação do espaço agrário do Rio Grande do Sul mediante comparações e cruzamentos. Outra informação, contida na Relação de Moradores, é a ocupação declarada por cada representante de domicílio, algo que podemos compreender como a atividade econômica predominante. Em todo o Rio 7 Para mais detalhes, consultar o trabalho de Osório (2007, p. 87- 100). Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 183 Grande de São Pedro a atividade ocupacional mais representativa foi a de “lavrador”, conforme demonstrou (OSÓRIO, 2007, p. 98). Essa categoria somada com a “mais lavoura”, categoria que mesclava agricultura com criação de animais, ultrapassam os 65% das atividades declaradas na Relação de Moradores. A atividade ocupacional, predominante, em Taquari e Santo Antônio da Patrulha foi a de “lavrador” e assim se assemelham com o perfil geral do Continente. Existe uma relação intrínseca, já conhecida, entre a forma de acesso à terra e a atividade ocupacional e ambas as freguesias comparadas reforçam essa relação. Primeiramente, pela presença da população migrante e seus descendentes, beneficiários das concessões de datas de terra, os quais engrossaram a camada de lavradores do Rio Grande de São Pedro, a partir da segunda metade do século XVIII. Em segundo lugar, pelas poucas sesmarias concedidas nessas regiões, onde de forma unânime se instalaram pequenas unidades produtivas. De modo geral, as paisagens agrárias se assemelham em diversos pontos, porém diferem, percentualmente, nas formas de acesso à terra. Santo Antônio da Patrulha, muito mais inserida nas rotas comerciais, e, sendo uma ocupação mais antiga apresenta maior dinâmica do mercado de terras, em relação à Taquari, que por mais que tenha apontado algumas compras, essas puderam ser identificadas como a ampliação de lotes originados por outros meios. A presença de famílias e sujeitos “a favor”, em ambas as freguesias, é significativa e sinaliza para a ideia de que, por mais que algumas regiões do Rio Grande de São Pedro ainda não possuíam fronteiras fechadas, nem todos os sujeitos ou famílias vissem a migração como a única e/ou melhor possibilidade de se inserir social e economicamente na sociedade colonial. Em Taquari, aqueles que declararam viver “a favor” eram aparentados em primeiro grau com o proprietário da terra e essa relação ocorreu, 184 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS majoritariamente, entre os beneficiários das concessões de data, que poderiam abrigar até 3 famílias. Por outro lado, em Santo Antônio da Patrulha, o fator familiar não foi majoritário, mas ainda assim, metade dos sujeitos que viviam à favor, estavam instalados em terras de seus pais ou sogros. Considerações finais Ser açoriano, descendente desses e beneficiário das concessões de data não foi sinônimo de igualdade de condições no acesso e administração dos recursos. Mediante as observações e comparações realizadas entre as freguesias de Taquari e Santo Antônio as diferenças são evidentes, em especial discrepância na dimensão dos lotes de terras destinados a essa população, em cada freguesia. Assim, entendemos que a ideia de uma identidade e estratégias de acesso aos recursos, instalação e formação de redes ação, não podem ser entendidas como parte de uma suposta “açorianeidade”, pois essa população não se inseriu em estruturas sociais e econômicas idênticas. As condições, conflituosas, encontradas no novo Continente além de atrasar o cumprimento das promessas do Edital de imigração, também foi responsável por espalhar os imigrados e seus descendentes por diferenças freguesias do Rio Grande, nas quais já haviam formações, embrionárias ou consolidadas, socio-econômicas pré-existentes, as quais interferiram na distribuição das datas de terra. Fontes Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas – 1770. AHRS. Códice F 1229. Relação de moradores que têm campos e animais no Continente (versão oficial de 1784). ANRJ. Códice 104, v.6, 7 e 8. Sandra Michele Roth Eckhardt; Vanessa Ames Schommer | 185 Relações de moradores de San Jozé do Taquary de 1785. Os borradores de 1874, Códice F1198. Relações de moradores de Santo Antônio da Patrulha de 1785. Os borradores de 1874, Códice F-1198. Referências ECKHARDT, Sandra Michele. Lavouras de sustento: demografia e estrutura agrária de São José do Taquari, 1765-1811. 2019. 187 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019. GOMES, Luciano Costa. Camponeses e pequenos escravistas: estrutura econômica, reprodução social e vínculos extradomiciliares de produtores rurais em Porto Alegre e Viamão, décadas finais do século XVIII. 2018. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila de Rio Grande dos Registros Batismais (c. 1738- c. 1763). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006. NEIS, Rubem. 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Na mesma, uma casa antiga e idilicamente rural – com uma varanda comprida na frente onde dois senhores de idade tomavam um mate –, e dois galpões compunham a paisagem predominantemente composta por tons de marrom e verde. Na porta de um dos galpões, uma grande placa azul indicava um misto de propaganda com instruções de manuseio adequado do fumo: “UNIVERSAL LEAF TOBACCOS LTDA.: COMO CURAR SEU TABACO”. Considerando que a sede da Universal Leaf Tobacco está localizada em Virgínia, EUA, há cerca de oito mil quilômetros de distância, quais fatores levavam esta a ter interesse em produzir no interior de uma pequena cidade no Sul do Brasil? É movido por esta dúvida que o presente trabalho se estrutura, em tentar entender quais as relações do sistema econômico mundial e como estes afetaram e afetam a formação das práticas agrícolas de pequenos agricultores. Para tal, o trabalho foi construído sobre duas bases. A primeira é voltada para entender quais as dinâmicas envolvidas na economia mundial, vinculando-se principalmente com o proposto pela teoria dos sistemas mundo e de longas trajetórias históricas – com destaque para 1 Mestrando em Desenvolvimento Rural – PGDR/UFRGS; angelo.belletti@hotmail.com Ângelo Belletti | 187 Wallerstein, Arrighi e Fiori. O objetivo é entender como a posição do Brasil no sistema mundial pautou as possibilidades históricas internas. Já a segunda base, é direcionada a dinâmicas específicas do meio rural e como estas podem ser fruto das macroestruturas levantadas na primeira base. Assim, utilizando o espaço geográfico a ser apresentado, dentro da temporalidade escolhida – década de 1950 até 1980 – o objetivo é entender como a fumicultura emerge enquanto uma possibilidade específica para agricultores inseridos em uma realidade macroeconômica periférica. Aqui o foco será a utilização de dados primários levantados pelos Censos Agropecuários de diversas datas realizados pelo IBGE, e de dados qualitativos obtidos através de entrevistas semi estruturadas com fumicultores de São Lourenço do Sul, RS, no ano de 2018. Estes temas serão analisados a partir, também, de teorias que estudem as dinâmicas de trabalho na periferia do capitalismo. Como espaço geográfico, utilizar-se-á o município de São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul, e a dinâmica dos fumicultores nesse espaço. Esta escolha dá-se pela importância econômica e cultural do plantio de tabaco para a manutenção da cidade, bem como pela vasta trajetória histórica que a mesma apresenta (sendo espaço de formação de quilombos ao longo dos séculos XVII, e também de imigrações alemãs/pomeranas ao longo do século XVIII) Economias, Sistema Mundo e agriculturas Inspirados por correntes marxistas dependentistas, pós coloniais (AMADEO; ROJAS, 2011), sistêmicas e de longos ciclos históricos (BRAUDEL, 1987), diversos teóricos construíram, no final do século XX, a noção de sistema mundo. Nesta, o objetivo é entender as dinâmicas socioeconômicas dos países não desde uma perspectiva exclusivamente local e restrita aos seus processos internos, mas evidenciar que, em um 188 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS sistema, as linhas são tão importantes como os pontos conectados e, da mesma maneira, a disposição destes também é essencial de ser compreendida (ARRIGHI, 1994; WALLERSTEIN, 2004; FIORI, 2014). Como resultado do sistema mundo, de acordo com Wallerstein (2004), teríamos três níveis majoritários de enquadramentos entre as economias capitalistas: (a) aquelas que habitam o centro dos processos, usufruindo do nível tecnológico tido como desenvolvido e que pautariam as dinâmicas da economia como um todo, principalmente através das instituições; (b) a semi periferia que serviria de um meio termo entre os centros tecnológicos e econômicos e o restante dos países, englobando algumas tecnologias, mas sendo deficitária em outras dinâmicas; (c) e, por fim, a periferia do sistema, na qual estariam os países de maior deficit econômico, profundas desigualdades sociais e com barreiras institucionais (CHANG, 2003) para qualquer ascensão. Conforme ilustrado na Figura 1. É interessante perceber, também, que a própria posição do país dentro do estrato que ocupa pode sofrer hierarquias e diferentes relações com as outras realidades ao seu entorno. As dinâmicas dessa economia mundial capitalista seriam pautadas em três eixos: (i) ocorrem em um espaço demarcado (na maior parte dos períodos, por mais que levem a alcunha de mundial, estão circunscritas a espaços); (ii) apresentam um centro de poder dentro deste espaço; (iii) ao entorno do centro de poder, diferentes níveis de relação com este formam zonas intermediárias e periféricas. Além disso, a movimentação deste arquétipo ocorreria pela constante disputa de poder quanto a quem controlaria o centro desta articulação. Essa disputa evidencia o papel do Estado como um agente da economia global, afinal é através dele que ações expansivas (sejam militares ou políticas) tomam força e se estruturam (FIORI, 2014). Ângelo Belletti | 189 Figura 1 – Estrutura do Sistema Mundo Fonte: elaborado pelo autor a partir de informações em Wallerstein (2004). O local ocupado por estes países na economia global determinaria diversas dinâmicas internas dos mesmos. O predomínio tecnológico das economias centrais possibilitaria um incremento no valor dos itens produzidos e comercializados por estas – aumentando a rentabilidade. Já no caso dos países periféricos, a baixa disponibilidade de tecnologia, as produções de baixo valor agregado, acrescido à alta disponibilidade de mão de obra, estimularia outras dinâmicas exploratórias dos trabalhadores por parte das elites locais (FIORI, 2014). Assim, as práticas cotidianas dos indivíduos seriam pautados pelo ambiente cultural no qual se inserem; e esse, por sua vez, formado por motivações próprias locais mas também por reflexos das dinâmicas geopolíticas desenvolvidas globalmente (WALLERSTEIN, 2004). Neste conforme, as estruturas agrícolas brasileiras poderiam ser interpretadas como resultado de dinâmicas internas e externas formadas 190 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS através de décadas de interação sistêmica do Estado Nação Brasil com o sistema mundo econômico no qual se insere. As alterações promovidas no meio rural brasileiro ao longo do século XX evidenciam massivamente essa conexão. É através da propagação de “pacotes tecnológicos modernizantes” para o meio agrário que o bloco capitalista pós Segunda Guerra inicia a promoção de novas práticas agrícolas, as quais, teoricamente, possibilitariam um incremento massivo no índice de produtividade global e solucionariam a questão agrária em diferentes países (ANDRADES; GAMINI, 2011). Estas inovações foram batizadas, no seu coletivo, como Revolução Verde e, na prática, propunham alterações em quatro eixos centrais promovidos através da ação estatal: (i) fomento ao uso de maquinários agrícolas; (ii) massificação do uso de agroquímicos no manejo; (iii) aumento do controle sobre produção de sementes; e (iv) destinação de crédito agrícola para produtores diretamente vinculados aos tópicos anteriores (DELGADO, 2013). Em especial em relação à disponibilidade de crédito, cabe salientar a alta entrada de capital estrangeiro no contexto brasileiro no período. Como salienta Delgado (2013): Há, necessariamente, uma seleção na clientela que demanda crédito, com a emergência de clientes preferenciais representados por empresários rurais ligados a atividades econômicas integradas com a indústria, comércio exterior, serviços, etc. Esses, constituindo-se num grupo restrito de operadores, contando com massas de lucros apreciáveis a negociar com os bancos, podem eventualmente gozar dos benefícios financeiros da reciprocidade, obtendo taxas diferenciadas de juros, prazos e condições outras que não são acessíveis ao pequeno produtor. (DELGADO, 2013, p. 30) Assim, os pacotes tecnológicos, além de terem limitações aquisitivas por seus custos de implementação, contavam com diretrizes Ângelo Belletti | 191 orçamentárias que facilitavam e estimulavam a grande propriedade agrícola. E, em especial, a integração ao mercado internacional. Formando assim uma composição que era lucrativa tanto para o latifundiário como para o capitalismo financeiro cada vez mais conectado a esta produção. O único agente isolado nesta composição era, novamente, o pequeno agricultor. Por mais que tenha ocorrido uma ampliação da produtividade de alguns setores agrícolas, as práticas promovidas pela modernização conservadora ampliaram as necessidades de interação com o mercado capitalista, gerando barreiras de capital e de tecnologia para inserção produtiva dos pequenos agricultores (BRUM, 1988). Ou seja, para manterem-se a par do mercado competitivo, os agricultores, em geral, precisariam adquirir uma quantidade elevada de insumos mínimos para perseverarem suas produções, o que encarecia a produção e gerava uma série de empecilhos ao longo do mercado, inclusive impossibilitando a manutenção econômica de alguns produtores enquanto tais. O resultado desta composição foi o de que diversos agricultores não dispunham do capital necessário para sua inserção nesta nova lógica mercadológica e, assim, acabaram marginalizados dentro do sistema produtivo agrícola brasileiro (SILVA, 1981). Além do próprio êxodo rural, outras práticas emergiram como consequência desta marginalização, desde inserções alternativas – como a agroecologia (ALTIERI, 1979) –, até o caso focalizado aqui da fumicultura. A Figura 2 ilustra a tendência dessas diferentes culturas ao longo do período 1920-1985 para o município de São Lourenço do Sul. 192 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Figura 2: Relação de crescimento de culturas agrícolas para São Lourenço do Sul Fonte: elaborado pelo autor a partir de dados dos Censos Agropecuários, IBGE, diversos anos. Destaque para como culturas de alta inserção no mercado internacional (commodities), como a soja, apresentam um massivo crescimento na produção total – no caso da sojicultura, o incremento é de mais de dez mil vezes sua quantidade total produzida. Ao mesmo tempo, outras culturas – como o feijão – apresentam uma estabilização, ou até mesmo retração em relação a si mesmas. Com este processo da Modernização Conservadora, a introdução de instrumentos de produção e processamento agrícola geraram barreiras econômicas, técnicas e fitossanitárias, limitando as possibilidades de inserção dos pequenos agricultores nos mercados cada vez mais internacionalizados (DELGADO, 2013). Como alternativa, diversas empresas surgiram neste espaço de intermediação entre o pequeno produtor e uma comercialização de maior envergadura. Essas empresas seriam responsáveis, em teoria, por facilitar e estimular o acesso tecnológico destes agricultores, oferecendo apoio técnico e vias simplificadas de aquisição de maquinários e materiais. Em troca, os agricultores firmariam contratos de produção com as primeiras, nos quais garantiriam a venda final Ângelo Belletti | 193 do seu produto para as mesmas, bem como a prevalência dos parâmetros de qualidade que esta desejasse (WATTS, 1990). Por mais que estas empresas tenham surgido como solução ao problema de isolamento produtivo enfrentado por alguns agricultores, faz-se necessária a adesão de três elementos relativos às dinâmicas dos processos de integração. O primeiro destes elementos (i) é a situação socioeconômica que se apresentava para os agricultores antes de ingressarem em sistemas de integração vertical. O contexto agrícola promovido pela chamada Revolução Verde gerou, em linhas gerais, dois grandes processos: de um lado, agricultores que já dispunham de algum capital mínimo e que conseguem abarcar as inovações tecnológicas propostas pelo referido movimento, ampliando suas produções e produtividades, frequentemente contando com ampliação de seus mercados e com economia de escala; do outro lado, o agricultor (ou a agricultora) que não dispunha de capital excedente e, quando o sistema agrário como um todo direciona-se numa ampliação tecnológica, vê-se cada vez mais ultrapassado e isolado nos seus modos de produção, resultando num distanciamento do mesmo de qualquer possível inserção mercadológica capitalista (SILVA, 1981). Ao que indicam diferentes estudos (WATTS, 1990; SILVEIRA, 2010; CONTERATO, 2014), a maior parte dos agricultores que aderiram (e aderem) aos sistemas de integração vertical o fazem desde uma situação socioeconômica de poucas alternativas. Como destaca um dos agricultores entrevistados, seu último cultivo majoritário antes de aderir ao SIPT foram batatas, e, em sua derradeira comercialização, o valor total adquirido não era suficiente nem mesmo para cobrir o investimento realizado no início da produção. Assim, o primeiro elemento é a criação de um ambiente de baixas alternativas produtivas que tivessem um retorno mercadológico mínimo para manutenção da unidade familiar agrícola. 194 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Já inseridos nos contratos verticais, o segundo elemento ocorre pela dinâmica como essas relações produtivas tomam forma. (ii) A cada ano, antes da respectiva safra, cada unidade agrícola estabelece um acordo com uma empresa pela venda futura do produto a ser cultivado. Em especial no cultivo de tabaco, ficam firmadas a área que será plantada, qual espécie de semente utilizada e qual a temporalidade de aplicação dos venenos e fertilizantes necessários – prescritos e fornecidos pela própria empresa contratante. Percebamos que, dentre os fatores que são acordados, o valor pago pelo produto não é um deles, visto que este será decidido de forma unilateral pela empresa no momento de entrega do cultivo. Este valor é diferenciado entre diversas avaliações aplicadas sobre o produto colhido, que consideram espessura da folha, coloração, tamanho e afins (HILSINGER, 2016). Entre os valores superiores e inferiores pagos pelas empresas pode haver variação de até 100%. E, como existe um regime de oligopsônio, os valores entre diferentes empresas têm uma baixíssima alteração, limitando as possibilidades de negociação por parte dos agricultores. Diversos foram os agricultores entrevistados que reclamaram da falta de controle sobre o valor recebido final e, mesmo aprendendo como os critérios das empresas eram estabelecidos (por anos de experiência lidando com esse processo), as estimativas sempre eram errôneas – e, curiosamente, sempre em benefício da empresa contratante. Aqui retomemos o ponto da introdução em que, por mais que seja dono da propriedade, a prática produtiva dos fumicultores integrados torna-se uma busca por atingir os melhores patamares de avaliação, seguindo ao máximo as instruções das empresas e, mesmo assim, frequentemente sendo surpreendidos negativamente. Por fim, cabe aqui o terceiro elemento de destaque. Enquanto o primeiro referia-se ao pré-contratos, e o segundo às dinâmicas durante o mesmo, o derradeiro nos coloca o debate sobre quais as possibilidades dos Ângelo Belletti | 195 agricultores de saírem do regime de contratos de integração vertical. (iii) Podemos nos ater a explicação crua e entender que, por ser um contrato firmado entre partes, basta que os agricultores não firmem este para estarem fora do sistema referido – visto que são livres e donos do meio de produção. Esta afirmativa é, em partes, evidentemente assertiva. Há, entretanto, algumas ressalvas que são necessárias. A primeira destas é a formação dos mercados para estes agricultores. Historicamente o espaço de São Lourenço do Sul identificou-se (ou foi identificado?) enquanto um produtor tabagista e, portanto, as instituições sociais funcionam direcionadas para este cultivo. Há tentativas alternativas, como turismo rural, promoção de feiras de produtos coloniais e produções agroecológicas, porém é marcante a predominância do tabaco como produção na região. A própria formação cultural do espaço, após décadas de cultivo de tabaco, é profundamente marcada por esta planta (HILSINGER, 2016). Da mesma forma que nas pessoas e no espaço ocupado, o monocultivo por décadas deixa diversas cicatrizes no solo sobre o qual se opera. Assim, a perda da agrobiodiversidade também é resultado das práticas supracitadas (SANTILLI, 2005), ampliando o cuidado necessário com o solo caso fossem estimuladas alterações produtivas. Após agregar estes três elementos, podemos retomar no conceito original dos contratos de integração vertical como um acordo entre agricultores dispersos e uma empresa que administra e processa a produção de forma centralizada. Porém entendendo que estes agricultores aderem desde uma posição específica, que o contrato não é firmado em uma relação equitativa, e que as alternativas à adesão não são vastas. Durante as entrevistas realizadas, os agricultores relataram sua entrada na fumicultura ao longo das décadas de 60 e 70 quando o preço dos outros produtos que cultivavam adquirira um nível aquém do mínimo para manutenção do próprio plantio – principalmente culturas de batata, 196 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS cebola e pêssego. E, reforçando o caráter teórico apresentado anteriormente, estes agricultores repetidamente afirmaram que o fumo apareceu, no período, como a única alternativa possível para sua manutenção econômica no meio rural – ou se veriam obrigados ao êxodo rural. Já frente as suas práticas produtivas, por mais que não exerçam contratos trabalhistas com as empresas fumageiras contratantes, os agricultores relataram uma percepção de serem subordinados aos interesses das empresas com quem negociam. E, ao serem questionados sobre a possibilidade de negociação com as mesmas, afirmaram não haver nenhum espaço para tal, visto que, caso tentassem se impor, seriam excluídos das relações de contrato e isolados enquanto produtores. É interessante constatarmos que ocorrem estratégias de ação por parte dos pequenos agricultores envolvidos nestes contratos – como, por exemplo, exigirem acompanhar a entrega e precificação dos produtos para terem certeza da avaliação correta – porém práticas ainda limitadas frente ao poder das empresas. Quando inferidos sobre suas jornadas, a maioria dos produtores afirmou trabalhar mais de dez horas diárias e, em períodos de ápice produtivo – como durante a colheita –, chegar até dezoito horas de trabalho diárias. Acrescido do tempo de trabalho, as condições mostramse bastante danosas para a saúde dos envolvidos. Os prejuízos vão desde o contato direto e constante com agrotóxicos, até a exposição contínua ao sol – o período de colheita coincide com o ápice do verão. Estes relatos reforçam uma caracterização de sistema produtivo periférico de alta exploração da mão de obra disponível (WALLERSTEIN, 2004; FIORI, 2014). Assim, na superexploração, o valor recebido por este trabalhador seria aquém do valor de energia dispendido, ou insuficiente para sua Ângelo Belletti | 197 reprodução social (ou ambos) (MARINI, 1973; LUCE, 2013). Por exemplo, é um trabalhador que exerce uma jornada de oito horas diárias, porém que ao longo deste tempo é obrigado a manter um ritmo produtivo muito além do padrão socialmente construído de desgaste muscular em trabalho no respectivo período de tempo. Mesmo se considerada a possibilidade de horas extras, em algum momento o valor recebido seria sempre insuficiente para a manutenção mínima deste trabalhador – já que sempre precisaria de horas de descanso e reestabelecimento. Como aponta Marx, é a “compressão do salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho” (2013, p. 388 – 389). Por mais que seja o possuidor da terra, o agricultor vê-se, cada vez mais, subordinado às diretrizes impostas pela empresa, fator agravado quando considerado o caráter de oligopsônio da cadeia. Ou seja, a dinâmica dos processos históricos em um Sistema Mundo e, mais especificamente, em uma economia periférica desenvolveu, para a realidade dos fumicultores de São Lourenço do Sul uma estrutura sócia específica. Nesta, por mais que detentor dos meios de produção, estes agricultores são subordinados e dependentes frente interesses e práticas externas. Considerações finais Analisando a conjuntura, percebemos que as práticas fomentadas pelo bloco capitalista ao longo do século XX como modernizadoras do meio agrícola, de fato trouxeram um incremento dos índices produtivos. Porém, ao mesmo tempo, criou uma barreira tecnológica e de capital para que agricultores já desprovidos de uma inserção mercadológica maior pudessem realizar esta entrada. Ao longo das décadas, esta baixa disponibilidade de oportunidades produtivas gerou consequências como a subordinação destes agricultores a dinâmicas exploratórias desenvolvidas 198 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS por algumas empresas. E é neste eixo que a análise específica sobre a fumicultura encontra espaço. As empresas que trabalham com tabaco estabelecem relações contratuais com pequenos agricultores, contratos estes que colocam, sob tutela do empresariado, as diretrizes a serem desenvolvidas durante o cultivo do produto. Assim, por mais que sejam proprietários dos meios de produção – a terra –, estes agricultores encontram-se progressivamente numa posição subordinada aos interesses externos – os da empresa –, gerando uma condição de proletarização destes agricultores situados em periferias do capitalismo global. Obviamente que é essencial destacarmos a agência destes agricultores e que os mesmos têm plena capacidade de distinguirem sua realidade e de buscarem vias para agir sobre a mesma, porém é interessante percebermos, também, a formação do contexto e das possibilidades que se apresentam. É importante adicionar, também, a baixa quantidade de estudos que abordem os contratos de integração vertical do ponto de vista trabalhista, visto a própria complexidade do tema do ponto de vista de considerar relação trabalhista uma prática no meio rural. Assim, é interessante fazer a ressalva de que o tema deste próprio artigo pode, e deve, ser mais profundamente desenvolvido, visando construir um arcabouço de entrevistados mais amplo para uma análise mais abrangente do tema. Por mais que aqui tratam-se de relações agrícolas específicas, a profusão das mesmas se insere num ambiente de surgimento de uma série de novas relações trabalhistas apresentadas na fase contemporânea do capitalismo, assim como outros processos como a retirada de direitos trabalhistas, a uberização e a terceirização. Ângelo Belletti | 199 Referências ALTIERI, Miguel A. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. AMADEO, Javier; ROJAS, Gonzalo. Marxismo, Pós-colonialidade e teoria do sistema mundo. Anais XXXI Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais, 2011. ANDRADES, Thiago. O.; GANIMI, Rosângela. N. Revolução Verde e a Apropriação Capitalista. 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Primeiramente devemos elucidar que Cajazeiras, como uma cidade pequena pertencente ao alto sertão paraibano, na região Nordeste, não se caracteriza por uma urbanização metropolitana, pois suas raízes são rurais e esses sentidos ainda atravessam parte dos moradores que mantêm traços da vida no campo, principalmente na relação com a agricultura semeando a terra dentro e aos arredores da cidade e com a pecuária. A feira livre nos chamou atenção por seu caráter temporário e por ser produzida pelos próprios indivíduos que lhe atribuem os sentidos. Nossa ideia inicial consistia em perambular pelas ruas centrais aos sábados, para compreender como essa manifestação popular ocorre. À primeira vista fomos tomadas por um “balaio” de simbologias aleatórias, mas pela frequência assídua foi possível perceber que neste ambiente está tudo no seu devido lugar. Sendo assim, para termos uma maior dimensão de como esse espaço funciona, entrevistamos alguns feirantes e, estabelecendo uma relação ética, explicamos nosso propósito, buscando respeitar a disposição e concepção dos entrevistados, enquanto 1 Graduanda – (UFCG/CFP); mirian.mjso@gmail.com 2 Graduanda – (UFCG/CFP); linstatiana1@gmail.com 202 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS tentávamos, como menciona Portelli (1997), “aprender um pouquinho” com essas pessoas. Partindo disso, observamos que a feira de rua em constante movimento torna o centro da cidade mais democrático, colorido e inquieto, no qual zonas rurais, periferias, centro e cidades circunvizinhas se misturam em torno das trocas, compras, vendas e pelo direito de ocupar as ruas. Tomando isso como base da nossa análise, nos propomos a discutir a feira a partir do “mosaico de signos” construído por aqueles que dela participam, o que nos confere através da memória um amplo debate em torno de permanências, mudanças e ressignificações em contrapartida à modernização das cidades; assim como, nos faz refletir a feira como um signo de interligação entre o espaço urbano e aspectos rurais. Dessa forma, levando em consideração que signo é algo que representa algo para alguém (PEIRCE apud. FERRARA, 1988, p.8) e partindo da premissa que os termos “urbano” e “rural” são tidos como uma dicotomia, a presente pesquisa busca traçar uma análise em torno das feiras livres da cidade de Cajazeiras-PB, principalmente, aquelas situadas na rua Pe. Manoel Mariano, Av. Cel. Matos e na Praça Coração de Jesus. As feiras em questão, respectivamente, referem-se a uma produção específica de origem agropecuária, como frutas, legumes e carnes; enquanto as outras possuem uma maior variedade de mercadorias contendo produtos alimentícios, artesanais e industrializados. As transformações e conflitos entre o campo e a cidade A partir das delimitações espaciais entre o campo e a cidade, foi construído um imaginário que deu origem a diversas concepções cristalizando uma noção dicotômica que os associa, respectivamente, ao atraso em contraposição ao progresso. Essas classificações decorrem da ideia de que esses espaços pertencem a uma linha evolutiva na qual a zona Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 203 rural é o “ponto de partida”, por estar relacionada ao natural e “primitivo”; e o urbano é a “consequência” da proximidade com o “moderno”. Portanto, relacionar o campo e seu modo de vida rural ao atraso foi uma forma de construir uma ideologia que solidificasse o novo modo de vida: o das cidades (urbano). A ruralidade seria substituída pela urbanidade. A urbanização expandiria as condições do novo modo de produção, estenderia a “civilidade” a todos. Destarte, com o objetivo de “civilizar o campo”, justificouse o desmatamento, a expropriação, a expulsão e a apropriação de recursos naturais. (BAGLI, s/d, p.2). Desse modo, o ideal de progresso das cidades é atrelado a uma perspectiva mais ampla, a “civilidade”, utilizada para validar a arquitetura que se ergue em torno dos sentidos que compõem a vida moderna. Diante disso, “estagnada” a natureza torna-se apenas um recurso à serviço desses interesses e as expansões urbanas caracterizam um constante movimento. Entretanto, esses espaços não estão em uma construção linear e a delimitação entre o âmbito rural e urbano não ocorre a partir de uma ruptura tão brusca. Utilizando como exemplo nossa delimitação espacial, Cajazeiras é caracterizada como uma cidade média, considerando sua extensão territorial e contingente populacional entre as demais localidades do alto sertão paraibano. Os projetos de urbanização que prometem “modernizar” e impermeabilizar o município se misturam com a terra batida pelas andanças dos habitantes. É possível experimentar movimentações e trânsitos caóticos, assim como os silêncios que regem alguns horários e ritos da população. Percebemos esses “pontos de intersecção” no cotidiano das pessoas, assim como no uso do espaço. Quanto à vivência nas zonas rurais dos arredores, mesmo que os modos de habitar caracterizem experiências diferentes, parte da população do campo possui acesso à algumas tecnologias e serviços concebidos como aspectos da cidade. 204 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Portanto, algumas transformações que ocorrem no meio urbano também são uma possibilidade para o campo, bem como os costumes do mundo rural também podem estar inseridos na cidade. Isso não quer dizer que sejam experiências iguais, mas que perpassam possibilidades comuns e sofrem constantes mudanças a partir de suas realidades. Assim, A relação campo-cidade está em constante produção, visto que não se tratam de dois espaços distintos e estáticos, mas são alterados de acordo com as relações sociais no decorrer do tempo histórico, evidenciando em suas paisagens as transformações que ocorrem num processo contínuo. (LIMA, s/d, p.4). Por meio da construção desse imaginário em torno dos âmbitos urbano e rural é criada uma oposição como uma forma de demarcar e divergir espaços que se comunicam e, por vezes, se interligam pelas intervenções dos habitantes. Consequentemente, os conceitos de campo como lugar estático e atrasado, e de cidade como sinônimo de civilidade e progresso, não se sustentam tendo em vista que, como citado acima, “eles estão em constante produção” e mudança, no qual esses “pontos de intersecção” são características fluídas podendo existir em ambos os espaços sem descaracterizá-los. Dito isto, encontramos na feira livre um espaço fronteiriço em que a produção entre essas experiências de habitar tomam a cidade trazendo signos e interações que desmistificam essas concepções. Tradição x modernização A feira surge na Fazenda Cajazeiras, por volta de 1848, com o intuito de possibilitar o comércio de alimentos e outros produtos sem a necessidade de grandes deslocamentos. Por conseguinte, ocorrem um aumento da população e expansão do território, passando para a condição Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 205 de vila em 1863 e para cidade em 1876. O início do século XX e o ideal de progresso e modernização trazem para Cajazeiras o teleférico, a usina de algodão, a estrada de ferro, o cinema e uma maior circulação de automóveis. Dessa forma, a feira vai se desenvolvendo como um reflexo da urbanização da própria cidade, que necessita de um comércio que dê vazão aos consumidores que aumentam com o seu desenvolvimento. (SANTANA, 2017). Partindo dessa visão de “urbanização” e embora a “história oficial” reserve às famílias oligárquicas a construção da cidade, a feira foi organizada junto aos primeiros indícios de expansão do território e deu margem para que Cajazeiras se tornasse um polo de trocas e comercializações entre periferia, centro, zonas rurais e cidades circunvizinhas. Portanto, todos esses sujeitos foram diretamente responsáveis por esse processo. Durante o desenvolvimento da urbanização da cidade, a feira livre ocorria nas principais ruas do centro compondo inúmeras categorias de produtos desse comércio em proximidade. Porém, com o passar do tempo, essa manifestação foi se fragmentando, inicialmente pela construção de uma avenida, correspondente a atual rua Padre José Tomás, e, posteriormente, pela ampliação dos estabelecimentos comerciais que seguem outras lógicas, marcando a concorrência com ela. Buscando observar e compreender essas mudanças, assim como, as permanências marcadas pelos signos que se constroem em torno disso, no sábado, por volta das 07h, fomos à feira de Cajazeiras para conversar com alguns feirantes e consumidores, especificamente, onde se concentra um maior fluxo de produtores/vendedores, artesãos, agricultores, bancas de roupas, etc. Nessas caminhadas, encontramos com seu Antônio (74 anos) e sua banca de chinelas de couro, que há mais de 50 anos ocupa um lugar nesta feira. Bastante acolhedor e comunicativo, nos envolveu em uma conversa 206 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS sobre sua trajetória, “eu gosto de trabalhar na arte e gosto da feira”, em um tom incisivo, reforçando que nem mesmo a aposentadoria o fez largar o ofício de coureiro e essa forma de expor e comercializar sua arte. Quando questionado sobre as mudanças e permanências vivenciadas através da sua experiência como feirante, nos resumiu poeticamente que “a feira é assim, como a maré, né”. Essa comparação carrega muitos sentidos sobre sua percepção deste espaço, trazendo-o como uma certeza a cada sábado, assim como, a natureza da maré que não se pode adiar, mas fluída como a água e influenciada por inúmeras condições, tem um caráter mutável. Assim, seu temperamento é cíclico, resistente e se transforma, muda, mas também é “regular”, como ele disse. Diante disso, sistematizamos algumas narrativas de pessoas que constroem esse espaço, buscando compreender a organização da feira sob os aspectos autônomo e institucional, e os processos que a caracterizam como fluída. Percebemos que é comum entre os vendedores que estão na feira há um maior tempo, expor essas transformações mais significativas, como seu Joaquim Pereira, revendedor de grãos e conhecido como o feirante “mais antigo” da cidade. Ele nos relatou “trabaio na feira faz uns 53 anos... os mais antigo, nois agora fica aqui (referenciando a rua Pe. Manoel Mariano), os novato é pra lá (na direção da praça “Coração de Jesus”), antes a feira pegava isso aqui tudin”, nos apresentando um pouco da configuração dessa demarcação antes e depois das transformações urbanas que contextualizamos acima. Voltando à fala de seu Antônio, ele ainda nos explicou que “Antigamente se pagava uma taxazinha, né, no tempo de Vituriano, quando Vituriano entrou foi que ele tirou, mas antes pagava”, apontando as intervenções da prefeitura na regulamentação dos feirantes. Atualmente, a prefeitura ainda delimita os espaços a serem ocupados pela feira, porém não impõe mais uma taxação para essa ocupação. Diante Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 207 disso, compreendemos a feira do sábado um espaço mais democrático, pois, apesar das adversidades nas condições do trabalho autônomo, qualquer pessoa que deseje tem o direito se estabelecer e comercializar dentro dessa manifestação popular. Para termos maior dimensão sobre as regularidades e transformações que constroem esse lugar, também buscamos as experiências dos fregueses que o vivenciam a partir de outras perspectivas. Tivemos a oportunidade de conversar um pouco com dona Maria (60 anos), frequentadora assídua da feira desde os 15 anos, que dentre a contação de histórias sobre casos que vivenciou com sua família neste espaço, nos contou que as mercadorias “antigamente eram provindas da feira e das bodegas”, trazendo outros sentidos para a cultura alimentar. Não era supermercado não, antes tinha era as budegas de Jaime Daniel, Budega de São Fasto, de Seu Alcides, não tô bem alembrada do nome das outras...nelas vendiam feijão, arroz, farinha, cachaça, a granel, o café...o café a gente comprava o caroço para chegar em casa, lavar e butar o caco de barro no fogo, pra quando o caco tivesse quente, aí torrava o café, aí quando esfriava ia colocar no pilão [...]. As relações entre as diferentes formas de comercialização se iniciam entre a feira livre e as bodegas, por meio de pequenos armazéns que vendiam esses artigos citados acima. A convergência entre esses espaços não se configurava de maneira tão clara, isso se dá ao fato que as bodegas e feiras se complementavam no fornecimento de mercadorias. Prevalecia o comércio em natura ou pouco processado, em que parte da população precisava conhecer o manejo no preparo de alguns alimentos e o acesso a eles, muitas vezes, era regido pela estação e o local. Eu acho que mudou, porque di primeiro não comprava maracujá, tomate... é mais agora, hoje tem mais diversidade...di primeiro na feira era mais feijão, 208 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS arroz, rapadura...di primeiro era difici ver uma roupa feita pra vender, era mais o ticido, não tinha essas banca de roupa, a gente comprava nas lojas de ticido para mandar fazer um vestido, uma saía...hoje já compra feita. Além dessa “diversidade” nos produtos alimentícios, dona Maria também ressalta uma modificação na confecção do vestuário, implicando em uma nova forma de comércio dentro da feira, as “bancas de roupas” advindas de fábricas. Essas transições ainda são perceptíveis, principalmente ao observar os homens mais velhos que a frequentam, seja os feirantes, passantes ou consumidores. Eles geralmente estão trajados com calça de linho, camisa social de botão e chapéu, fazendo um contraste com os tecidos e modelos das vestimentas dos ocupantes mais recentes. Figura 01 – As bancas de roupa Fonte: Acervo pessoal (2020) A partir disso, notamos alguns deslocamentos da feira para atender às novas necessidades do consumo popular, assim como, o surgimento de outros formatos de vendas em espaços restritos e higienizados que caracterizam escolhas sociais da “vida moderna”. Os supermercados e Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 209 hortifrútis iniciam a substituição às bodegas e marcam uma relação mais forte quanto à concorrência com as feiras livres. Esses estabelecimentos mantêm uma sistemática totalmente diferente do funcionamento da feira, porém, o objetivo de mercantilizar constitui uma disputa em que ambos precisam traçar estratégias para legitimar a sobrevivência de suas práticas. A feira, como representante de uma tradição no ato de comercializar, desafia os parâmetros da modernização ao se reinventar e estabelecer relações que estão além do sentido mercadológico, criando suas formas de persistência dentro dela. Ao indagar os feirantes sobre essa relação de contraposição entre os supermercados/hortifrútis e a feira, ela nos foi demarcada a partir de algumas questões, como a qualidade e a origem dos produtos comercializados. Como exemplo, trouxemos os relatos de seu Augusto que nos disse que trabalha na feira, há cerca de quinze anos, vendendo frutas, hortaliças e grãos, e que não percebe tantas complicações nessa relação: não, eu não acho não, porque nossa mercadoria é mercadoria fresca que nois traiz do sítio, a maioria é nois que produz...muitas coisas aqui, então o pessoal sempre procura mais a gente...nossa mercadoria é melhor que a do mercado, porque mercado é coisa que vem de fora, vem do CEASA que tem muito veneno e as nossas não, as mercadorias tudo saudável aqui, do sítio mesmo, pode olhar aqui. Apesar de alguns feirantes não demonstrarem muitas preocupações em torno da “rivalidade” com essas outras formas de comercialização pela qualidade dos seus produtos, constatamos, através das entrevistas e das transformações da cidade, uma consequente redução do espaço e do horário que a feira ocupava, à medida que houve a ampliação da influência dos supermercados, que se fixam numa sistemática diária e buscam contemplar os mais variados produtos, caracterizando assim um “embate” 210 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS entre eles. Diante disso, percebemos os conflitos que demarcam essas relações, pois, “aos olhos do mundo moderno, o comércio impessoal dos supermercados parece mais compatível. No entanto, os consumidores que privilegiam a qualidade dos produtos não abandonam a feira” (NAGEL; GONÇALVES; RANGEL; PEÇANHA, 2007, p.53). Sendo assim, a feira vivenciou todos esses processos observando as mudanças sociais e conseguiu se reinventar e adaptar-se às novas realidades, mantendo alguns de seus sentidos. Diante disso e através das narrativas dos feirantes assim como de consumidores, percebemos as transformações que a feira sofreu quanto às medidas do poder público na delimitação espacial e na tentativa de institucionalização da sistemática da feira, nos produtos comercializados e nas outras formas de comercialização que surgiram trabalhando em conjunto ou estabelecendo a concorrência com ela. A feira enquanto signo A construção da feira enquanto signo atua mediante as significações atribuídas pelos produtores, comerciantes, consumidores e transeuntes que compõem esse espaço. Em um dia, o próprio povo organiza uma zona temporária e acessível dentro de uma política de subsistência que marca um espaço fronteiriço entre o rural e o urbano. É importante destacar que o sentido da feira ultrapassa os limites físicos. Ela, apesar de se apropriar de um espaço urbano, é constituída por mercadorias provindas (em boa parte) do cenário rural e permeada por pessoas que constroem uma prática que interliga essas duas experiências habitacionais, a cidade e o campo. Ademais, Cajazeiras por ter essa noção peculiar de urbanização, como já mencionado, não tem limites tão claros entre a zona urbana e rural, caracterizando a feira como o momento e espaço no qual essa relação se sobressaí. Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 211 O espaço produzido na feira se apresenta como multiplicidade conectiva, encruzilhada de trajetórias e, ao mesmo tempo, pode ser articulado a essa atratividade, à função magnética, pois coisas e gentes, atraídas pelo movimento das manhãs de sábado, circulam intensamente por entre os corredores que se improvisam no meio da rua. (BARBOSA, 2011, p. 4). Essas construções simbólicas produzidas dentro da feira caracterizam o que chamamos de “mosaico de signos”, que são esses sentidos que colocam a feira como um espaço sensorial de sons, cheiros, cores, trocas afetivas, culturais dentre alguns dos fatores que garantem a sua permanência em meio à concorrência. À primeira vista, a feira impacta com um emaranhado de pessoas, produtos e ofertas, porém, ao longo da nossa pesquisa se tornou cada vez mais nítido como toda essa estética é propositalmente construída pelos feirantes e a disposição dos produtos é pensada de forma a chamar a atenção do cliente. Além disso, como foi dito anteriormente na fala do seu Joaquim, há uma lógica em que o tempo é primordial à delimitação desse espaço. Essa forma de organização visual da feira foi o primeiro signo que reconhecemos, mas, além dele, podemos listar: as relações entre feirantes e clientes; a linguagem utilizada nas propagandas ou a “musicalidade” da feira; as estratégias de venda (maior e menor preço); a hereditariedade; a coletividade entre os vendedores; etc. Pelas práticas e a frequência em que ocorrem, as feiras constroem uma relação para além do cunho comercial, estabelecendo uma ligação intimista entre o comerciante e seus clientes, atuando também como ponto de encontro entre as pessoas que a frequentam. As relações construídas entre os vendedores e consumidores proporcionam também outro tipo de contato com o produto, ou seja, aprendemos a utilizar todos os sentidos. Portanto, consumimos provando, pegando, cheirando, ouvindo, lendo, conversando, recitando e tudo que a feira permitir que façamos. Podemos 212 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS entender, principalmente em relação à comida e aos produtos artesanais, como ocorre a produção destes fortalecendo a agricultura familiar e os trabalhos manuais. Pelo interior das barracas, carregadores passam com caixas nos ombros, feirantes se alimentam, conversam sobre política, comentam sobre as condições do tempo – o quanto está “bonito para chover” ou a “quentura” que rege o dia –, partilham dos seus conhecimentos e fazem contações de histórias ao passo em que realizam as vendas. Passantes chegam dispostos a estabelecer diálogos, trazem notícias e alimentam alguns ritos presentes na feira. Consumidores caminham pelo labirinto que se forma entre os arranjos dos feirantes, arrastando suas sacolas e de olhos atentos às cores, aos preços e à qualidade dos alimentos. Quando as disposições são atrativas, param para tocá-las, enquanto os vendedores rapidamente abrem as sacolas que desejam encher, atestando a qualidade dos seus produtos. Feita a negociação, podem voltar aos anúncios, às conversações ou observá-las, compondo com agencia o fluxo das linguagens de sociabilidade nesse espaço. Ao convocar os clientes, a maneira de agir, falar, comercializar, produzir sentidos e aquilo que trazem, refletem diretamente essas experiências. A propaganda consagrou aos gritos “é só 3 por 10 reais” e “corre que já tá acabando” como uma linguagem específica desse lugar. Dentro dessa estratégia de vendas, nos deparamos também com o que os feirantes chamam de “maior e menor preço”, prática que se faz nas formas de negociação dos produtores diretamente com seus clientes. Por exemplo, dona Lourdes não coloca o preço exposto nas suas louças de barro, mas negocia seus produtos de acordo com as condições, como: quando já são fregueses, os clientes ganham uma promoção; quando a feira não está tão boa tem um desconto, pois é necessário tirar o sustento da semana, porém, se o fluxo de vendas aumenta, é possível negociar sua produção a um preço Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 213 mais justo. Mas, sempre ao final, existe a xepa, em que os últimos produtos que restaram nas barracas possuem um “precinho mais em conta. ” Além dos diálogos e relações de negociação, pelas entrevistas, percebemos questões que estão atreladas à hereditariedade na feira que, embora não seja um consenso, ocorre com grande parte dos feirantes, como Edivan, vendedor de temperos, que nos relatou: “Era meu pai quem trabalhava aqui, ele ficou 40 anos... eu cheguei com 10 ano, estou aqui faz 30 anos. ” Ele continua a trabalhar na feira como um negócio deixado pelo seu pai, que conquistou o ponto que ele ocupa atualmente, reforçando essa legitimidade na forma da organização. Baseado na questão da hereditariedade, tornou-se ainda mais perceptível a constante presença de crianças ajudando os familiares na comercialização de produtos na feira, como parte dessa sistemática de herança. Essa questão, embora seja corriqueira entre alguns feirantes, caracteriza a prática do trabalho infantil e envolve as condições de subsistência dentro do capitalismo, no qual as demandas excessivas muitas vezes precisam integrar toda a família. A intenção nessa discussão não é estigmatizar as práticas dos feirantes que acompanhamos e que as julgam necessárias ou dignas, mas atentar para as condições de trabalho que os inserem dentro desse sistema econômico, político e social. Nesse sentido, Costa (2010) afirma que inúmeros processos históricos ligados aos interesses estatais e privados sobre a economia do país influenciaram as normas de institucionalização do trabalho e, nessas circunstâncias, a “informalidade” foi sendo definida como um contraponto à “formalidade” que é regulamentada pelo emprego assalariado. Portanto, essa conjuntura contribuiu para a situação de instabilidade dos trabalhadores autônomos e, em algumas conjunturas, favoreceu o trabalho infantil. Em contrapartida, embora essas condições tornem o trabalho árduo, os feirantes desenvolveram entre si uma relação de coletividade que os 214 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS auxilia nas adversidades do dia a dia. Seu Edifram e sua companheira, comerciantes de plantas, debulham o feijão verde da barraca do seu Augusto para lhe ajudar nas vendas. Mais tarde, o vendedor de goma de mandioca precisou se ausentar e seu Augusto lhe substitui nas negociações. Gradativamente, fomos percebendo uma rede de apoio entre os feirantes que lhes trazem o sentido de comunidade dentro dessas vivências do comércio de um dia só. Diante disso, nos trouxeram relatos que desmitificam a questão da concorrência entre eles, pois, dentro do espaço, todos precisam se ajudar e desenvolvem boas relações nesse convívio e fora dele. Figura 02 – Edifram e sua companheira debulhando feijão Fonte: Acervo pessoal (2020) Portanto, toda essa análise em torno da feira livre como um signo que aos sábados dispõe de alguns lugares da cidade, atravessando questões históricas e, consequentemente, elementos culturais e políticos, interações e ressignificações em construção contínua, nos proporcionou compreender as relações estabelecidas entre o urbano e o rural enquanto Mirian Jossette de Sousa Oliveira; Tatiana de Sousa Lins | 215 espaços que se entrelaçam e que dão corpo a uma tradição em movimento, que produz diversos sentidos, problemáticas e peculiaridades. Referências BAGLI, Priscilla. Campo e Cidade: A construção dos mitos. s/d. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/nera/ublicações/Campoecidadeaconstrucaodosmitos.pd f. Acesso em: 03 nov. 2020. BARBOSA, Maicon. Narrativas, conversações e alguns ritornelos em meio à feira livre. Ponto Urbe, [s. l.], v. 8, p.1-15, 2011. DOI: 10.4000/pontourbe.1766. 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Com base no conceito de contra-colonialismo, de Antônio Bispo, e de agência e localidade, de Assante, argumentamos que, para pensarmos uma filosofia política de emancipação, não podemos adotar categorias construídas com base em uma historiografia eurocêntrica que, à margem da teoria crítica produzida por pensadoras negras e negros, busca “inaugurar” uma ruptura com o eurocentrismo. Para demonstrar a existência do contra-colonialismo e da agência como categorias que pautam a construção dos saberes das comunidades negras, apresentamos a Amefricanidade, de Lélia Gonzalez, como uma “categoria política-social” que demonstra que, na trajetória de intelectuais negros, aspectos como universalidade, agência e resistência ao colonialismo já vinham sendo pautas da diáspora negra no Brasil. Contra-colonialismo e intelectuais negros Pela proposta que foi pedida para essa pesquisa nos debruçamos para buscar outras epistemologias, e não conceitos ou categorias exógenas às 1 Licenciando – UFRGS; jonaslichistoria@hotmail.com 2 Licenciando – UFRGS; matheus.menezes.m@gmail.com 220 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS comunidades negras do Brasil. Para poder pensar a subjetividade do ser em questão, brasileiro não branco, nos debruçamos em categorias ou conceitos endógenos. Usamos um termo que Nego Bispo cunhou, mas ele explica que esse termo não um conceito ou teoria, e sim um modo de luta, um modo de viver, mas nos remetemos em chamar “prática-teoria” para facilitar a compreensão da proposta: contra-colonização. O termo práticateórica contra-colonização se refere aos processos de enfrentamento entre povos, raças e etnias em confronto direto no mesmo espaço geográfico físico (SANTOS, 2015, p. 20). Essa prática-teórica é usado para enfrentar as epistemologias eurocidentais que até hoje estão entranhadas em todos campos mentais e materiais da comunidade brasileira. Epistemologias essas que não dão conta da subjetividade do sujeito não branco, tal qual Fanon demonstra em seu “Peles Negras Máscaras Brancas”. Nego Bispo afirma que: [Vamos] compreender por colonização todos os processos etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra, independentemente do território físico geográfico em que essa cultura se encontra. E vamos compreender por contra colonização todos os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios. Assim sendo, vamos tratar os povos que vieram da África e os povos originários das Américas nas mesmas condições, isto é, independentemente das suas especificidades e particularidades no processo de escravização, os chamaremos de contra colonizadores. O mesmo faremos com os povos que vieram da Europa, independentemente de serem senhores ou colonos, os trataremos como colonizadores. (BISPO, 2015, p. 47-48). As colocações de Nego Bispo são bem "escuras" ao demonstrar que todo e qualquer processo que partiu do homem branco colonizador ao homem negro e os povos originários foi gerador do epistemicídio, ou seja, Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 221 ele foi um modo operante da colonização eurocêntrica. E quando ele trata os povos africanos e povos originários na mesma condição ele entende a conexão que faz, com que os africanos sequestrados e trazidos para a América, novo mundo, e os povos já posto nela, povos originários, já se debruçaram em uma luta contra a colonização. Consideramos que o conceito prática-teórica de contra-colonialismo conduzido por Nego Bispo, garante a existência de dois processos fundamentais para a produção de uma epistemologia que garanta o livre pensar e viver das comunidades negras: agência e localização. Buscamos a base para esses conceitos em Asante e sua teoria da afrocentricidade (ASANTE, 2007). Nesse processo, a agência visa à emancipação da população negra, recuperando sua história, seu direito de governar a si mesma e, também, um enfrentamento direito ao racismo anti-negro. A localização é usada para o ser negro na abordagem afrocêntrica, em que os parâmetros e as construções de sentido serão baseadas em relações em que os conhecimentos de matriz africana serão as narrativas centrais, distanciando-nos da relação “Eu-Outro” eurocêntrica que aprisiona outras epistemologias em conceitos como “margem” e/ou “periferia”. No contexto brasileiro, usamos o conceito da afroperspectiva, de Renato Nogueira, em que para afrocentrar fenômenos da nossa realidade, precisamos de uma visão com base em nossa realidade de diáspora africana no Brasil, espacialidade sócio-política com particularidades que a diferenciam das realidades diaspóricas em outras comunidades negras. Recorremos ao conceito de Renato Nogueira por entender que o conceito afrocêntrico de Asante e da filosofia africana não dialogam diretamente com as experiências negras com os povos originários do continente que hoje chamamos América. O conceito prática-teórica de contra-colonialismo, em nosso contexto, coloca-se contrário às categorias decolonial /descolonização 222 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS apresentadas por intelectuais pertencentes à branquitude, tais como Aníbal Quijano, Boaventura de Souza Santos e Walter Mignolo. Não centramos nossa crítica, no entanto, na superficial abordagem do “lugar de fala” desses autores, mas, em essência, na historicidade que é estabelecida por eles no momento em que, com base em suas abordagens decoloniais, procuram inaugurar uma abordagem do campo das ciências humanas ainda dentro da perspectiva eurocêntrica. Nego Bispo afirma que para um pensamento decolonial você precisa ter uma herança colonial. Então, entende-se que os pensadores brancos decoloniais que trabalham com esse conceito estão certos, mas ele explica que esse conceito tem que ser trabalhado no seu local de origem. O professor Renato Nogueira, entrevista Nego Bispo (2020) em uma live, nela ele comenta que os decoloniais precisam, eles e seus pares, trabalharem como decoloniais no seu território, para que impeça que seus outros pares tentem novamente colonizar os povos não brancos. Não que isso não esteja acontecendo. Em olhar crítico na teoria decolonial, ela pode ser uma armadilha teórica que, talvez, sem perceber, pratique um neocolonialismo ao campo das humanas, simplesmente pelo fato de sua herança ser eurocêntrica, como diz mestre Jairo Pereira: “mesmo a sua fala sendo contra todos os processos colonizadores, a sua subjetividade acaba sendo colonizadora”, dentro disso atitudes como a forma de escrita e o modo de viver acabam sendo feitos de modo colonizador, mesmo partindo de um conceito que visa dar voz aos povos ditos subalternos/periféricos. Outro ponto é entender que antes mesmo de estes intelectuais decoloniais sugerirem com suas compressões da arquitetura dos países colonizados, na subjetividade, na economia, arquitetura material, na forma como a cidade se distribui, da forma como espaço. Mas antes, a gente já tinha, autoras e autores negros trabalhando nesse contexto Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 223 histórico e teórico. Lélia Gonzalez, Abdias e Beatriz Nascimento e outros já vinham produzindo trabalhos com esse entendimento do processo histórico brasileiro e partindo da centralidade negra. No livro “Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição”, organizado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas onde possuem uma demanda maior das obras da autora, o texto “Por uma história do homem negro” (NASCIMENTO, 2018), percebe-se que ela busca o centro da experiência vivida por negras e negros e não a “margem”, a “periférica” ou “subalternidade”, como pontua o campo decolonial. Beatriz busca o reexame da história do negro, mas pelos olhares e sentires do próprio negro, diante disso ela se dedica em estudar a historiografia e o processo histórico dos quilombos, retirando todos os estereótipos racistas produzidos ao longo da história pela hegemonia branca para explicar o que são os quilombos. Debruçando-nos mais sobre os estudos de Beatriz, que mesmo diferentemente de Nego Bispo, que trabalha com o Quilombo na forma prática-teórica, ela busca entender o quilombo no seu processo de continuação histórica ao longo do século XX. Beatriz diz, O quilombo não é, como historiografia tem tentando traduzir, simplesmente um reduto de negros fugidos, simplesmente a fuga pelo fato dos castigos corporais, pelo fato de os negros existirem dentro de uma sociedade opressora, mas também a tentativa de independência, quer dizer, a independência de homens que procuram por si só estabelecer uma vida para si, uma organização social para si . Então fundamentalmente, o quilombo é uma organização social de negros, que foi só os negros que empreenderam essa organização social e que foi paralela durante todo o período da escravização. E mais importante ainda, sendo essa uma organização social, ela se projetou no século XX como uma forma de vida do negro e perdura até hoje. Então, basicamente, meu estudo do quilombo se prende a essa perspectiva de organização social do 224 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS quilombo uma organização social que tinha uma economia própria, que tinha relações próprias e que fundamentalmente era não só uma necessidade de resistência cultural, mas também de resistência racial do negro. (NASCIMENTO, 2018, p. 129). Apesar de que o quilombo sofra alterações no decorrer da história, a característica principal é a de uma organização social desenvolvida pelos negros, sem interrupções no decorrer do período do escravismo. No século XXI, o quilombo é um “instrumento ideológico de luta para o negro diferente do passado, que a luta era mais física. Beatriz acredita que “o quilombo é uma coisa tão própria do povo negro, tão explícito que transcorre a ser visto como fortalecimento psíquico”. Analisando os estudos de Beatriz Nascimento, ela inaugurava nos 1970 e 1980 o que hoje chamamos de agência e localização negra, hoje com bases nas teorias da afrocentricidade e com a afropespecitiva, facilita o entendimento dos processos e a complexidade que o quilombo se deu e as formas que ele se estruturou. É perceptível que os estudos de Beatriz, foram simplesmente magníficos ao entender o quilombo, diferentemente de outros autores que erroneamente compreendiam o quilombo como um a lugar de negros fugitivos. Acima de tudo, Nego Bispo com sua prática-teórica e Beatriz Nascimento partindo mais da teoria, até por que ela era uma professora de história, entendem que os quilombos nos propiciam uma oportunidade de fazer uma leitura da luta quilombola à contrapelo de algumas obras clássicas do Pensamento Social, centralizando a luta quilombola contra todos os processos de colonização. Tal processo, pensado a partir do Quilombo e do Contra-colonialismo de Nego Bispo e de Beatriz Nascimento, é confirmado pelo conceito de “Amefricanidade” criado por Lélia Gonzalez, na medida em que, em seu conceito, a intelectual visava Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 225 elucidar a filosofia política presente nas manifestações culturais negras pelas Américas. Amefricanidade como filosofia política Dentro de sua longa trajetória política e acadêmica como cientista social e militante do Movimento Negro Unificado, Lélia Gonzalez demonstrou a importância da produção de saberes escritos sobre as experiências negras na diáspora que estivessem conectados com epistemologias relacionadas à produção de organizações políticas e de conhecimentos que, não se pautando no Ocidente, buscassem demonstrar a agência de africanas e africanos em diáspora durante a história da população negra. Em entrevista para Carlos Alberto Pereira, ao ser perguntada da relação do movimento negro com o marxismo, a pensadora negra já demonstrava sua ruptura com a lógica colonial: [...] o que eu estou querendo colocar é o seguinte: me parece que a gente tem que ver a questão, nós, do terceiro mundo, os chamados povos de cor, temos que ver é o seguinte: é que nos parece que os discursos mais avançados, mais progressistas do ocidente, com relação a nós, não chegam perto, não conseguem tocar uma outra forma discursiva que caracterizou a resistência desses povos. (GONZALEZ, 2018, p. 88). Ao utilizar a expressão “outra forma discursiva”, é preciso pontuar que a pensadora não estava propondo uma reformulação de aspectos previamente apresentados pelo eurocentrismo, ela está a afirmar que, a partir das experiências sociais dos povos racializados, é preciso pensar uma outra filosofia política que dê conta das experiências sociais e dos problemas que se apresentaram e continuam a se apresentar para as comunidades. 226 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Tais reflexões de Lélia Gonzalez não podem ser descontextualizadas, no entanto, do contexto histórico no qual ela estava promovendo suas reflexões, como Raquel Barreto bem contextualizada em sua dissertação: No caso da amefricanidade, a mesma deve ser pensada dentro das ideologias de libertação africanas e afro-diásporicas. Especialmente ligada ao movimento de pensadores negros terceiro-mundistas que a partir da década de 1950, preocupados em construir um conhecimento na periferia do capitalismo avançado. Elaborando uma filosofia própria, enraizada em seu contexto histórico e social que sofria transformações profundas com o processo de descolonização pelo qual passavam vários povos africanos. A categoria de Lélia deve ser pensada nesse quadro. (BARRETO, 2005, p. 48 - 49). Não é de se estranhar que, em conformidade com o paralelo que estabelecemos com os conceitos de agência e de localização sugeridos por Molefi K. Assante, Lélia Gonzalez já era uma leitora dele quando produziu seu texto “A categoria político-cultural da Amefricanidade”, como podemos observar na passagem em que apresenta os significados políticos e culturais da Amefricanidade: As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto, ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 227 da Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas do Pan-africanismo, “Negritude”, “Afrocentricity”, etc. (GONZALEZ, 2018, p. 329 - 330). A Amefricanidade de Lélia Gonzalez, nesse sentido, encaminha para uma proposta de identidade coletiva negra que, ainda que centrada na experiência negra nas Américas, não perde de vista um olhar de continuidade de uma ontologia africana que, em contato com as sociedades indígenas, garantiu e garante formas da agência das populações negras. A narrativa que afirma que, após a diáspora, inicia-se um período histórico novo na vida das comunidades negras em diáspora é, ao menos em termos gerais, racista. Essa perspectiva age como se, ao atravessar o Atlântico e lidar com um outro sistema de sentidos estabelecidos pelas sociedade ocidental, africanas e africanos e seus descendentes não pudessem utilizar referenciais africanos na sua forma de constituir o mundo e, também, aliar esses conhecimentos aos novos aprendidos para, desta forma, reconfigurar a sua existência. Essa reconfiguração, localizada na experiência africana nas Américas, é que constitui a amefricanidade, não podendo, nós, sermos tratados como “contribuições” ou “infeções” ao sistema colonial branco, mas, na verdade, nós devendo ser vistos como continuidade de um processo da agência africana no mundo. Contextualizamos, na contemporaneidade, o conceito dessa intelectual negra com o que José Carlos dos Anjos chama de uma “filosofia política afro-brasileira”, em seu texto “A Filosofia Política Da Religiosidade Afro-brasileira Como Patrimônio Cultural Africano”, pensando que a perspectiva filosófica imanente às comunidades negras permitem que os sujeitos históricos vivam uma epistemologia diversa daquela oferecida pelos valores ocidentais, escreve o autor: 228 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Cada filho de xangô tem o seu xangô singular, e mesmo que dois filhos de santo sejam filhos deste xangô especificado como xangô abomi, ou xangô aganjú trata-se para cada um de uma intensidade diferente. Criança, adulto ou velho, cada “passagem” não é apenas uma fase de uma linearidade mitológica. É o orixá singularizado num momento. Um mesmo nome – xangô – percorrendo diversas “passagens”, se singularizando numa multiplicidade de momentos. O eu torna-se residual e múltiplo, desterritorializando todas as identidades precariamente constituídas numa multiplicidade de passagens. É nesse sentido que o ritual afro-brasileiro não é apenas uma prática, mas também uma filosofia da identidade. (ANJOS, 2008, p.85). Tendo como base a reflexão sobre o indivíduo e sua multiplicidade, dentro das religiões de matriz africana, o intelectual está demonstrando que a dinâmica de constituição do ser constrói-se através de uma relação entre a unidade (Xangô) e sua multiplicidade (xangô abomi, xangô aganjú, os diferentes filhos do mesmo Orixá). Essa perspectiva filosófica como construtora de identidade permite que pensemos as diferentes formas de produção do “ser” sem a definição de um “único ser” que definiria a todos, diferindo totalmente da abordagem ocidental da identidade, que elenca apenas os corpos brancos como identidades únicas. A filosofia política afro-brasileira oferece noções próprias para pensar as relações entre os sujeitos históricos e as suas formas de compreender o mundo. Na medida em que a modernidade ocidental criou uma série de sentidos pré-estabelecidos para a produção das ciências, para os corpos das diferentes pessoas, para as formas legítimas de relações afetivosexuais (com a exclusividade heterossexual). A Amefricanidade permite que a partir da busca pelas semelhanças culturais entre as comunidades negras, possamos pensar quais são os sentidos próprios produzidos em nossas comunidades. José Carlos dos Anjos, em texto já citado, apresenta uma reflexão sobre como as religiosidades afro-brasileiras constroem relações políticas e Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 229 epistemológicas próprias aos corpos e sujeitos históricos que participam de suas comunidades, o fazer diário da religiosidade afro-brasileira constrói, desta forma, uma perspectiva política diversa da oferecida pelo ocidente. Sueli Carneiro e Cristiane Cury, em seu texto “O Poder Feminino no Culto aos Orixás”, produzem uma pesquisa filosófica e antropológica, através de entrevistas, sobre a forma como a relação de mulheres negras com seus Orixás, dentro do candomblé, possibilitam que suas vivências transbordem os papéis de gênero estabelecidos pela sociedade patriarcal e, dentro da filosofia política afro-brasileira, essas mulheres se entendam como produtoras de potência e de vida. Essas duas pesquisas citadas, de José Carlos dos Anjos e de Sueli Carneiro e Cristiane Cury, são exemplos do dado de unidade e agência que Lélia Gonzáles anunciava: a configuração de uma prática teórica e política com base na experiência de mundo das comunidades negras da diáspora nas Américas. Era com olhares a estas vivências que Lélia Gonzalez propunha sua Amefricanidade, enxergando nas comunidades negras os potenciais de insurgência, auto-organização e continuidade temporalidades de matriz africana. Conclusão Neste breve ensaio, esperamos ter demonstrado como a produção de uma teoria crítica ao Ocidente já era produzida por intelectuais negras como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, tomando o conceito de “Amefricanidade” proposto como uma proposta epistemológica de abordagem das existências negras. Em diálogo com o contemporâneo mestre quilombola, Nego Bispo, e seu conceito de contra-colonialismo, entendemos que a produção de uma abordagem teórica autodeterminada passa pela compreensão de que, para as comunidades negras, o fazer 230 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS prático cotidiano é, também, fazer crítico, científico e reflexivo, ou seja, é também produtor teórico. As múltiplas experiências negras, demonstradas em nosso texto pelo quilombo, sugerem, portanto, não um fazer que proponha a “descolonização” de saberes hegemônicos, mas a compreensão de que, frente ao colonialismo, pessoas negras estiveram sempre produzindo e dando continuidade a perspectivas culturais distintas das ocidentais e estabelecendo padrões próprios de racionalidade, de abordagens frente ao mundo e de estratégias de vida, muito para além das questões impostas pelo Ocidente. Referências ANJOS, José Carlos dos. A Filosofia Política Da Religiosidade Afro-brasileira Como Patrimônio Cultural Africano. In: Debates NER, v. 1, n. 13 (2008). ASANTE, Molefi Kete. Um manifesto afrocêntrico: Rumo a um renascimento africano. Polity, 2007. BARRETO, Raquel. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles. Dissertação de Mestrado (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Departamento de História). Rio de Janeiro, 2005. CARNEIRO, S. Cury, C. O poder feminino no culto aos orixás. In: NASCIMENTO, Elisa. Guerreiras da Natureza mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008, 117 – 147. GONZALEZ, Lélia. Lélia Gonzalez Primavera para Rosas Negras. Diáspora Africana: UCPA, 2018. NASCIMENTO, Maria Beatriz. Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos d. África, 2018. p. 129. Jonas Silveira da Silva; Matheus Menezes Marçal | 231 SANTOS, Antonio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, 2015. _____. In: Negro Bispo e Renato Nogueira. 2020. (12m à 13m30s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OehRhw3Dp_U>. Acesso em 21. nov. 2020. Capítulo XIII Racializando o branco: as implicações da noção de branquitude nos estudos da História Social do Racismo Marina Albugeri da Silva 1 Este texto é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Curso2, apresentado no segundo semestre de 2019 e das reflexões que venho desenrolando desde então. Aquele percurso de pesquisa foi instigado pelas proposições dos estudos da História Social do Racismo, em especial, pelas provocações dos Estudos Críticos da Branquitude. Este campo tem como eixo deslocar o objeto de análise dos estudos das relações raciais, grandemente centrados no negro e nos efeitos que o racismo tem sobre essa população3. Assim, questiona-se que implicações tem em voltar o olhar para o branco, grupo até então ausente na maior parte das pesquisas sobre questões e relações raciais no Brasil. Em outras palavras, o que a noção de branquitude pode nos informar sobre a constituição da noção de raça, os modos de operação e reprodução do racismo e a estruturação de relações de poder. 1 Licenciada – UFRGS; marina_albugeri@hotmail.com 2 SILVA, Marina Albugeri da. Racializando o branco ou desvelando a branquitude: a política de imigração e colonização no Rio Grande do Sul (1875-1889). Porto Alegre: UFRGS, 2019. (Trabalho de Conclusão de Curso). 3 Guerreiro Ramos, nos anos 1950, caracterizou os estudos sociológicos como Sociologia do negro e foi um dos primeiros pesquisadores a abordar o branco enquanto tema nos estudos das relações raciais no Brasil, cf. RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. Para uma breve noção de como a Escola de Sociologia Paulista, sintetizada na figura de Florestan Fernandes, tratou do tema, cf. MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. Revista USP, São Paulo, n. 46, jun-ago 2000. E, ainda, sobre como o campo da historiografia trata sobre o tema do racismo, cf. LARA, Silvia Hunold. Introdução: a história social e o racismo. História Social, n. 19, 2º semestre 2010. Marina Albugeri da Silva | 233 O Pós Abolição e os sonhos brancos4 Naquele trabalho, analisei as políticas imigrantistas no Rio Grande do Sul, da segunda metade do século XIX, a partir dos Relatórios e Falas dos Presidentes de Província5. Tendo em vista que essas políticas foram construídas num período conturbado de intensas confrontações sociais e raciais. Célia Azevedo (1987) caracterizou esse momento histórico como envolto de medo. A elite política brasileira, diante das pressões pela abolição e possíveis insurgências de escravizados, temiam uma “inversão da ordem política e social” (AZEVEDO, 1987, p. 36). Marcus Vinicius Rosa (2014) também argumenta nesse sentido. Diante do descumprimento dos contratos de serviço e da liberdade condicionada por parte dos libertos, o presidente da província gaúcha, Rodrigo de Azambuja Villanova, defendia que a extensão da liberdade aos escravos, sem qualquer restrição, poderia representar um caos social e uma ameaça à propriedade privada. À vista disso, as políticas de imigração se configuraram como uma possível resposta a esse momento vivido enquanto uma crise social, que envolvia disputas em torno da ampliação da liberdade. É importante ressaltar que diante desse período de transformações, o projeto imigrantista não foi o único pautado. Ele estava em discussão e em disputa com outros projetos que se punham a pensar e elaborar caminhos para o Brasil. Figura entre esses projetos propostas de integração dos nacionais livres e libertos pobres como trabalhadores livres e se discutia a possibilidade de educar e disciplinar esses sujeitos para que desenvolvessem prazer e amor pelo trabalho6. Com isso, pretende-se 4 Tomo de empréstimo a expressão usada por Celia Azevedo ao se referir aos projetos imigrantistas discutidos pela elite política e intelectual brasileira. Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 5 Os relatórios e falas examinados correspondem aos anos de 1875, 1878, 1881, 1885, 1888 e 1889 e podem ser acessados em: http://www2.al.rs.gov.br/memorial/. 6 Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia: reação do parlamento brasileiro à 234 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS evidenciar que as políticas imigrantistas não estavam colocadas como o único destino possível para o Brasil ou para o Rio Grande do Sul. Ela foi uma escolha dos administradores públicos e do estado que se deu em meio a conflitos num momento histórico percebido como de profundas transformações. Partimos do entendimento que as políticas de imigração se configuraram enquanto uma política racial, pois estava estritamente alinhada e informada pelas teorias do racismo científico do século XIX. Os teóricos racistas compreendiam tipo racial e destino da nação conjuntamente, então, a raça determinava o progresso ou não da nação, por isso a importância de estudar os tipos raciais. Giralda Seyferth (1996), ao se debruçar sobre as discussões em torno das políticas imigrantistas, argumenta que havia uma preferência por determinados imigrantes europeus brancos – preferiam os estrangeiros que fossem agricultores eficientes. E se considerava atrasadas, imorais e inaptas ao trabalho livre as correntes imigratórias africanas e asiáticas. Assim, o significado imediato de “trabalho livre” é a desqualificação dos negros e mestiços para o trabalho independente, então, se omite a questão posta pelo fim da escravidão: é como se os descendentes de africanos simplesmente tivessem destinados ao desaparecimento. (SEYFERTH, 1996, p. 46). Ainda, as políticas imigrantistas estavam sendo elaboradas em consonância com a formação da identidade nacional. Pois, se o tipo racial determina a nação, era preciso pensar qual o tipo ideal para a nação que se desejava. Para a maior parte da elite política alinhada com essa política, o tipo ideal era o imigrante europeu branco. Em alguns casos, a política de política de colonização e imigração (1850-1875). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Importante apontar que aqui (e nos trabalhos indicados) estamos tratando dos projetos da elite, que certamente são diferenciados e estavam em disputas com projetos de outros grupos sociais. Marina Albugeri da Silva | 235 imigração estava sendo construída como uma via para o branqueamento, a partir da miscigenação ou não7. Ademais, ao deter-se sobre as obras de dois políticos republicanos gaúchos no final do oitocentos, Rosa (2014) demonstra a “construção da invisibilidade dos negros no Rio Grande do Sul” conjunta ao “processo de invenção da província gaúcha como um “lugar de europeus” (ROSA, 2014, p. 30). Destacamos, mais uma vez, que o projeto imigrantista foi elaborado concomitantemente com o processo emancipacionista e as pressões pela abolição, que colocavam em pauta questões sobre a cidadania de boa parte da população. Desse modo, a política de imigração, que pretendeu introduzir sistematicamente o trabalho livre, elaborou diversos artifícios para justificar a vinda de imigrantes europeus brancos baseados no estabelecimento de comparações, classificações, nomeações, diferenças e oposições entre supostos tipos raciais. Buscou influir nas relações, orientada por um entendimento racial, e reforçando categorias que já circulavam acirrando o processo de racialização da população. Assim, engendrou distribuições desiguais de acesso à terra e ao estado, por exemplo. Diante disso, as políticas que favoreceram a vinda de trabalhadores europeus brancos, parecem chave para compreender como a identidade racial branca e, por conseguinte, branquitude, se gestou e foi mobilizada na segunda metade do século XIX, nos anos finais da escravidão. 7 Sobre como a miscigenação é entendida e formulada por alguns teóricos racialistas como uma via para o embranquecimento da população. Cf. CONCEIÇÃO, William. Brancura e Branquitude: ausências, presenças e emergências de campo em debates. Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social). SCHAWRCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 236 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Mas branco tem raça8? A partir de Sueli Carneiro (2005), compreendemos raça enquanto um dispositivo de poder, instaurado no marco do colonialismo, que instituiu um campo de poder em que se entrelaçam e se articulam saberes e práticas que dão a autoridade de classificar, nomear e renomear. E, por sua vez, produz “privilégios simbólicos e ou materiais” (CARNEIRO, 2005, p. 29). Portanto, raça é uma categoria fundamental para entendermos a estruturação das relações sociais e de poder nas sociedades colonizadas e a definição de lugares sociais. Como já indicamos anteriormente, a construção do estado brasileiro está profundamente orientada na noção de raça. Willian Conceição (2017) afirma que a racialização da população passa a ser um instrumento de controle social e de controle da própria vida de forma coletiva. Ainda, embora estejamos nos ocupando sobre como a raça foi construída e mobilizada pela elite política e como incidiu nas relações sociais, é pertinente destacar que a raça também foi construída pelos “de baixo”. Como bem demonstra Rosa (2014), ao se debruçar sobre as relações entre a população negra e os imigrantes brancos na virada do século XIX em Porto Alegre, em especial, na Colônia Africana. Raça surge aí como um construto histórico-social que organiza as interações e identidades de diferentes grupos sociais, constantemente sujeita a mudança, portanto, precisa ser compreendida dentro dessas interações, como é significada e instrumentalizada. Branquitude é um conceito histórico ainda em definição, nos parece, visto que os estudos que o mobilizam são esparsos e bastante recentes no 8 Importante ressaltar, mais uma vez, que compreendemos e fazemos uso de raça enquanto uma categoria históricosocial, não é uma categoria biológica, ainda que, em algumas circunstâncias, seja informada nesse sentido. Marina Albugeri da Silva | 237 Brasil9. Cabe apontar brevemente o contexto de emergência das discussões sobre a identidade branca e a estruturação de um campo de estudo voltado para isso. Os “Estudos Críticos da Branquitude” emergem nos Estados Unidos, nos anos 1990, vinculado às lutas travadas pelo Movimento dos Direitos Civis10. Logo, os questionamentos sobre a racialidade do branco emergem num momento de tensionamento das relações raciais e reconfiguração das identidades negras estadunidenses. No Brasil, pelo menos desde os anos 2000, quando a branquitude aparece como tema em pesquisas, ocorria uma explosão do debate racial proporcionado pelo protagonismo do movimento negro e suas pressões sobre o estado e as universidades e as discussões sobre cotas raciais11. Maria Aparecida Bento (2002), uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a se debruçar sobre essa noção, define branquitude como os traços da identidade do branco construída sob um imaginário de superioridade racial e da ideologia do branqueamento. Essa construção é relacional, o branco constrói um imaginário de superioridade para si, ao mesmo tempo em que constrói um imaginário extremamente negativo sobre o outro, não-branco. Outro aspecto atribuído a branquitude, apontado por Bento, é o privilégio material e simbólico. Tal privilégio pode ter diferentes facetas a depender do atravessamento e entrelaçamento de outras categorias sociais e, também, pode estar relacionado a uma 9 Apesar dos poucos trabalhos no Brasil que analisam a branquitude, Lourenço Cardoso argumenta que esse é um tema emergente na produção acadêmica. Cf. CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. (Mestrado em Sociologia). 10 Cf. WARE, Vron. O poder duradouro da branquitude: “um problema a solucionar”. In. WARE, Vron (org.). Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. 11 Antes da estruturação desse campo e estudos mais sistemáticos sobre o tema, havia pesquisadores retratando os aspectos da brancura para compreender as desigualdades raciais, como W. E. B. Du Bois, James Baldwin e Theodore W. Allen. Cf. CONCEIÇÃO, W. Brancura e Branquitude: ausências, presenças e emergências de campo em debates. Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social). E, no Brasil, Guerreiro Ramos (1957) é um dos primeiros pesquisadores a tratar do branco enquanto tema, ainda que não se trate de estudos sobre a branquitude. Cf. CARDOSO, Lourenço. O branco “inivísel”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. (Mestrado em Sociologia). 238 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS solidariedade ou um pacto entre brancos. Ademais, é importante destacar que a branquitude nem sempre se apresenta como racializada, pois entende-se como universal, logo, nas discussões sobre a política imigrantista e nos relatórios dos presidentes de província a raça não estava explicitada, necessariamente. Bento (2002) e Lourenço Cardoso (2014) propõem um método para investigar e compreender os sentidos da branquitude: entender como essa se projeta sobre o outro, o não-branco. Nesse sentido, Priscila Elisabete da Silva (2015) compreende o conceito de branquitude enquanto um dispositivo analítico, pois pesquisas nesse campo têm identificado certas características recorrentes ao conceito. Portanto, o conceito de branquitude, segundo a autora, tem o potencial de análise de evidenciar a atuação de noções raciais como orientadoras das ações de indivíduos e grupos. Além das definições que referimos, Silva traça outras. A branquitude é um ‘ponto de vista’, um lugar no qual o branco se vê e elabora práticas e identidades culturais, um lugar no qual vê o outro e o classifica. A branquitude se apresenta como padrão normativo e, dificilmente, como racializada e se desloca dentro de denominações étnicas ou de classe e também nacionais. A branquitude é uma categoria relacional, seus significados se dão nas relações sociais. Por fim, a branquitude vê raça não apenas como diferença, mas, sobretudo, como hierarquia. Os imigrantes brancos e os outros na política de imigração As políticas de imigração da segunda metade do século XIX foram construídas num âmbito nacional, porém ela foi atravessada por peculiaridades regionais. No Rio Grande do Sul a política foi formulada em conjunto com a colonização. Ou seja, os imigrantes que aqui chegavam eram encaminhados para as colônias com a intenção de introduzir o trabalho livre, formar um campesinato médio e ocupar o território gaúcho. Marina Albugeri da Silva | 239 Os relatórios dos presidentes de província nos possibilitaram averiguar o desejo e expectativas dos administradores públicos com a vinda dos imigrantes12. Assim, as diferentes classificações e significados atribuídos aos sujeitos e grupos pelos estadistas, presentes nesta documentação, dão algumas indicações sobre como se conforma o processo de racialização dos diferentes grupos sociais, como se gestou e os sentidos da branquitude e para que fins ela foi mobilizada. Ao relatar algumas situações de tumulto e alteração na tranquilidade das colônias, os presidentes pouco detalham os acontecidos, as motivações e os envolvidos. Parece óbvio de quem se falava, o que se esperava desses e como lidar com tal situação, não precisando minuciar os ocorridos13. Em maio de 1888, na colônia São Feliciano, a presença de intrusos devastando as matas, causou prejuízos para a Província, ao que o governo recorreu a força policial para que não tolerassem tal ato14. Em novembro do mesmo ano, novamente denuncia-se a presença de intrusos, na colônia São Feliciano, “que lhe exploram os mattos para extrahir cascas e outros productos naturaes”. O encaminhamento da assembleia provincial é que se povoe com imigrantes aquelas terras e que o governo ofereça condições de progresso à colônia e comodidades aos imigrantes15. 12 Essa documentação foi produzida nos momentos de instalação da Assembleia Provincial ou na transmissão do cargo de presidente da provincial para seu sucessor. Quem ocupava o cargo de presidente no momento da sessão de instalação da Assembleia teria que relatar o “estado dos negócios públicos e as providências, que a mesma Província mais precisava para o seu melhoramento” (IOTTI, 2010: 146). Além disso, o espaço que a imigração e colonização ocupa nessa documentação é variável, a depender também do tempo em que o presidente ocupou o cargo e sua apropriação das questões e demandas das colônias. 13 Além dos documentos detalhados a seguir, encontramos mais um entre os relatórios analisados que menciona um ocorrido na colônia de Caxias que vai em sentido semelhante aos apontados. Cf. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Joaquim Pedro Soares, Vice-Presidente, passou a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Exm. Sr. Dr. Francisco de Carvalho Soares Bandão no dia 19 de Meio de 1881. 14 Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova passaou a presidência da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul a Ex. o Snr. Barão de Santa Thecla, 1º Vice-Presidente, no dia 9 de agosto de 1888. 15 Fala que a Assembleia Legislativa Provincial de S. Pedro do Rio Grande do Sul dirigiu o Exm. Sr. Barão de Santa Thecla, Vice-Presidente da Província, ao instalar-se a 2ª sessão da 22ª legislatura, em 27 de novembro de 1888 240 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Em janeiro naquele mesmo ano de 1888, na localidade de Faria Lemos, o presidente Joaquim Jacintho Mendonça, deliberou que se removessem os obstáculos que impediam a concessão dos lotes de terras e garantissem aos colonos a posse pacífica das terras16. Aí, não se nomeia nenhum grupo, entretanto, a menção à necessidade de garantir a posse pacífica do território denota que havia conflitos naquela região pela posse e uso da terra, assim como nos episódios mencionados na colônia de São Feliciano. Quem eram esses indesejados – intrusos e empecilhos – nas regiões coloniais? Os sentidos dessas classificações empenhadas pelos presidentes de Província nos dão alguns indícios, além do estudo de Soraia Dornelles (2011) sobre as relações dos imigrantes com as populações indígenas que já estavam nessa província antes de sua vinda. A qualificação dos indígenas como selvagens ou mansos, juntamente com a construção dos vazios territoriais são usados pelo Estado para legitimar o processo de expropriação dos territórios tradicionais indígenas (DORNELES, 2011). Ou seja, as ditas terras devolutas destinadas para os imigrantes para a colonização eram de ocupação tradicional indígena. O que os estadistas que elaboraram e defenderam as políticas de imigração e colonização desconsideraram, já que esse são vistos como intrusos, que devastam a mata e causam prejuízo à província. Afinal, a ocupação e posse dessas regiões por essas populações nativas não eram tidas como lucrativas, logo, não eram de interesse das elites políticas. Outras situações de tumulto nas regiões coloniais são mencionadas nos relatórios. No entanto, o modo como foi descrito os acontecidos, como foram nomeados os envolvidos e como se mediou e solucionou os conflitos é bem diferente dos anteriormente apresentados. Em março de 1878, o 16 Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacintho de Mendonça, 3º Vice-Presidente, passou a administração da Província do Rio Grande do Sul ao Presidente Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, 27 de janeiro de 1888. Marina Albugeri da Silva | 241 diretor da colônia Dona Isabel reclamou ao presidente que a ordem pública se achava alterada naquela localidade, por falta de pagamento aos colonos, pedindo, por isso, reforço policial para conter os imigrantes. Ao que o presidente João Chaves Campello respondeu: [...] se deve aguardar a abertura do necessario credito, já solicitado por esta Presidencia para occorrer a taes pagamentos: e quanto à requisição de força, que era preferível recommendar àquele Diretor, como anteriormente se fizera ao de Conde d’Eu, que aconselhe os colonos a prodencia, scientificando-os de que serão brevemente pagos17. Ainda que a colônia D. Isabel estivesse tumultuada, colocando em risco o bom andamento dos serviços, não era necessário a intervenção da força policial, já que o pagamento haveria de ser feito logo e os colonos voltariam as suas atividades. Em outro caso, ocorrido no mesmo ano em fevereiro, o presidente Francisco Faria Lemos recorreu a força policial, mas recomendou aos oficiais, que deveriam ser de confiança, “toda a possivel prudencia no desempenho de qualquer diligencia a que tivessem de proceder” 18. O presidente Francisco Faria Lemos diante de “alguns distúrbios por parte dos colonos” que prejudicavam os serviços na colônia relatou que providências deveriam ser tomadas para evitar “questões e reclamações”. Os colonos instão por trabalho e prompto pagamento. Desde que, pela boa direção que vai tomando o serviço se conseguir atender a tão razoaveis desejos e autorizarem-se os directores a, em casos extremos e de força maior, auxiliar, com conveniente discrição, os colonos que se vejão reduzidos à miseria, ou incapazes do trabalho [...]. 17 Fala com que o Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello abriu a segunda sessão da 17ª legislatura, no dia 12 de Março de 1878. 18 Relatório com que o Exm. Sr. Desembargador Francisco de Faria Lemos passou a administração desta província ao Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello, 2º Vice-Presidente, no dia 10 de Fevereiro de 1878. 242 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS As seccas, as enchentes, os insectos destruidores de plantações, as molestias graves dos chefes de familia e algumas vezes sua morte, reduzem os colonos aperecer de fome, si não forem subsidiados pelo Governo. O serviço de estradas e caminhos, como está sendo feito, não pode remediar o mal. Além da providencia do subsidio para casos extraordinarios, convêm multiplicar os trabalhos de estrada, das quaes aliás depende o futuro dos estabelecimentos coloniaes19 Em março de 1881, o presidente Henrique D’ Ávila também reclamou da situação de abandono dos imigrantes brancos. Essa situação se devia à falta de investimentos nas colônias, à nomeação de maus funcionários e a falta de preparo para receber os imigrantes. Aqui, o apontamento do presidente não é apenas no sentido de haver estrutura material para o estabelecimento dos imigrantes, seriam necessárias mudanças nos costumes, nas instituições, entre outros aspectos. Tal situação afastava os trabalhadores europeus brancos, fazia com que não quisessem para essa província migrar e nem se fixar no solo. O presidente ainda enfatizou que a solução desse problema “depende essencialmente a grandeza, riqueza e poder de nossa pátria” 20. Diante da diferenciação no tratamento para um e outro grupo, alguns questionamentos podem ser levantados. O fato dos protestos dos trabalhadores imigrantes causarem perdas aos serviços coloniais ocasionaria numa maior brecha para negociações entre os estrangeiros brancos e os governantes e administradores? Em outros termos, a diferença no tratamento dos governantes se deve à importância que se dava aos serviços dos imigrantes brancos, ou seja, aos significados atribuídos ao trabalho dos estrangeiros brancos? 19 Relatório com que o Exm. Sr. Desembargador Francisco de Faria Lemos passou a administração desta província ao Exm. Sr. Dr. João Chaves Campello, 2º Vice-Presidente, no dia 10 de Fevereiro de 1878. 20 Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul Henrique D’Ávila, 4 de Março de 1881. Marina Albugeri da Silva | 243 Frequentemente, os governadores exaltam e idealizam o trabalho dos imigrantes brancos, esse é tido como um valor cultural desses grupos e, por vezes, como uma capacidade específica dos estrangeiros europeus. Si pela adiantada civilisação, naturesa da indústria pastoril ainda predominante, systema ja adoptado de cultura interior em areas limitadas e servidas quasi exclusivamente por braços livres, corrente de immigração que a amenidade do clima, a vastidão e uberdade do solo, as riquezas naturaes, a hospitalidade e o caracter do povo, a attração dos nucleos coloniaes, engrossam de anno em anno; é esta parte do Império que menos deve arrecear-se de crise por essa transformação, mormente com as providencias tomadas para evitar o ocio e a mendicidade o abandono e a paralysação das industrias actuam todavia motivos poderesos para que ella não ceda a nenhuma outra a precedencia no acolhimento e agasalho dos estrangeiros o trabalho livre tem seus requisitos peculiares: é a intelligencia e a moralidade que nelle substituem vantajosamente a coacção constitutiva do systema condemnado; e posto não sejam essas qualidades, privilégios de nenhuma raça, fora demasiado exigir ao oppresso do cativeiro, ahi deserdados do ensino e dos mais nobres estímulos do dever, o grão de aptidão necessario para as industrias que requerem perfeição [...]21 O fragmento do relatório de 19 de setembro de 1885 dá alguns apontamentos sobre os sentidos dado ao trabalho. O trabalho livre não pode ser empregado por qualquer um, há de ser por quem tenha inteligência e moralidade, qualidades essas que não são privilégios de nenhuma raça, segundo o relato do presidente José Julio Barros. Mas certamente não poderia se esperar dos escravizados recém-libertos, deserdados do ensino e dos mais nobres deveres. Ainda que o trabalho 21 Relatorio apresentado a S. Exc. o Sr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos, 2º vice-presidente da Provincia do Rio Grande do Sul, pelo Exm. Sr. Conselheiro José Julio de Albuquerque Barros, ao passar-lhe a Presidencia da mesma Provincia no dia 19 de Setembro de 1885. 244 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS livre não fosse atributo de qualquer estrangeiro, parece, que certamente não era um atributo da população negra livre e liberta. O trabalho como categoria racializada Nos documentos anteriormente mencionados nos salta um aspecto que parece ser chave para compreender o processo de racialização de diferentes grupos e os significados da identidade racial branca: os sentidos dados ao trabalho dos estrangeiros europeus brancos. Primeiro, o trabalho desses trabalhadores brancos seria capaz de garantir o progresso da província gaúcha. Ao contrário dos “intrusos” que causam prejuízos. Portanto, o sentido dado ao trabalho aí está orientado por uma lógica específica de ocupação da terra e de produção que, por sua vez, é tido como atributo específico dos trabalhadores europeus brancos. Esses inteligentes, morais e disciplinados para empreender um trabalho nessa lógica. A exaltação do trabalho como um atributo de distinção também aparece nas elaborações sobre si e o grupo a qual pertencem os próprios imigrantes, alemães e italianos, especificamente. Ambos mobilizam o trabalho como uma qualidade diferencial, uma “virtude étnica”, nos termos de Maria Zanini e Miriam Santos (2009, p. 192) (SEYFERTH, 1982; ZANINI e SANTOS, 2009). De modo geral, nos parece que o trabalho é mobilizado pelos governantes enquanto uma qualidade racial dos trabalhadores estrangeiros europeus, intrínseca a sua biologia e ou cultura, e justifica o investimento numa política que busca facilitar sua vinda e permanência no território nacional. Bento (2002) argumenta que no momento de mudança do trabalho escravo para o trabalho livre, houve uma europeização da concepção de trabalho. Seguindo nessa perspectiva, Cardoso (2008; 2014) afirma que o progresso desejado pelas elites brasileiras não admitia o negro como trabalhador, esse era sinônimo do Marina Albugeri da Silva | 245 atraso, dado seu passado escravista. Assim, o trabalhador branco era o único capaz de romper o progresso e civilização na província. Salientamos a coincidência entre os significados atribuídos pelos presidentes de província aos imigrantes brancos e as atribuições e qualidades que esses dão a si mesmos. Para ambos o trabalho é uma qualidade diferencial dos estrangeiros europeus brancos. A partir disso, sugerimos algumas problemáticas ainda em aberto, as quais podem ser exploradas em futuras investigações. Como os imigrantes europeus brancos interagiram com os desejos e expectativas das elites políticas gaúchas que elaboraram um lugar diferenciado para esses trabalhadores? Ou, no sentido proposto por Marcus V. Rosa (2014), como os “de baixo”, no nosso caso os imigrantes europeus brancos, construíram categorias raciais? Que sentidos e usos esses trabalhadores brancos atribuíram a essas categorias já circulantes por aqui? Em que medida isso constituiu, nas palavras de Bento, “um pacto entre brancos” (2002, p. 36) ou uma identidade racial compartilhada entre classes? Ou, ainda, na chave de Cardoso, como podemos pensar a branquitude como um “valor em espécie” (2008, p. 183), podendo ser mobilizada, por quem a reivindica, para negociar e garantir o acesso a bens materiais e ou bens simbólicos? O fato de compartilharem uma identidade racial comum tornava os desejos dos imigrantes mais razoáveis? Conforme relatado pelo presidente de província Francisco Faria Lemos, no documento anteriormente citado. E, mais razoáveis em que situações? Referências AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 246 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS BENTO, Maria Aparecida. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In. BENTO, Maria Aparecida; CARONE, Iray. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. __________. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In. BENTO, Maria Aparecida; CARONE, Iray. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. (Mestrado em Sociologia). __________. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. Araraquara: UNESP, 2014. (Doutorado em Ciências Sociais). CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo: USP, 2005. (Doutorado em Filosofia da Educação). CONCEIÇÃO, Willian. Brancura e Branquitude: ausências, presenças e emergências de campo em debates. Florianópolis: UFSC, 2017. (Mestrado em Antropologia Social). DORNELLES, Soraia. Dos Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos indígenas no contexto de imigração alemão e italiana no Rio Grande do Sul do século XIX e início do XX. Porto Alegre: UFRGS, 2011. (Mestrado em História). IOTTI, Luiza Horn. Imigração e Poder: a palavra oficial sobre os imigrantes italianos no Rio Grande do Sul (1875-1914). Caxias do Sul: Educs, 2010. LARA, Silvia Hunold. Introdução: a história social e o racismo. História Social, n. 19, 2º semestre 2010. LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia: reação do parlamento brasileiro à política de colonização e imigração (1850-1875). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Marina Albugeri da Silva | 247 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995 ROSA, Marcus V. F. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durantes o pós-abolição (1884-1918). Campinas: UNICAMP, 2014. (Doutorado em História). SCHAWRCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SEYFERTH, Giralda. A representação do “trabalho alemão” na ideologia étnica teutobrasileira. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional, Antropologia, n. 37, 17 p., 1982. ___________. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In. MAIO, Marco Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editira Fiocrz/CCBB, 1996. SILVA, Priscila Elisabete. Um projeto civilizador e regenerador: análise sobre raça no projeto da Universidade de São Paulo (1900-1940). São Paulo, USP, 2015. (Doutorado em Educação). ZANINI, Maria Catarina; SANTOS, Miriam de Oliveira. O trabalho como “categoria étnica”: um estudo comparativo da ascensão social de imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1975). Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana. Brasília, ano XVII, n. 33, p. 175-196, jul./dez. 2009. Entre o Oriente e Ocidente nos Séculos V ao XV Capítulo XIV Estudar a Idade Média em espaços não-europeus: apresentando um panorama dos Estudos Medievais no Brasil em nível discente Kauê J. Neckel 1 Vinicius Silveira Cerentini 2 Quando o IV Encontro Discente de História da UFRGS começou a ser organizado, ainda em 2019, procurávamos criar um espaço plural de pesquisas em História. No Simpósio Temático 06 – Possibilidades de pesquisa em História entre os séculos V e XV: do Oriente ao Ocidente – que aconteceu entre os dias 1 e 4 de setembro de 2020 construímos um local de discussão em História Medieval em nível discente. Nossa proposta de Simpósio Temático era simples, mas desafiadora: quais as possibilidades de trabalhar com Idade Média de forma descentralizada? Realizamos uma conferência online que possibilitou a participação de pesquisadores oriundos de diversas regiões do Brasil com trinta e oito apresentações e onze mesas. Assim, o objetivo deste capítulo é traçar um breve panorama das pesquisas em Idade Média realizadas por alunos de graduação e pósgraduação do Brasil, baseado no que foi proposto neste Simpósio Temático. Tomando como parâmetro os trabalhos apresentados neste simpósio, encaminhamos algumas reflexões sobre a pesquisa em Idade Média em um espaço não-europeu, o Brasil. Além disso, refletimos sobre os temas que apresentaram maior interesse pelos estudantes da área e pensamos em como eles estão sendo trabalhados. 1 Mestrando – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; neckel.kaue@gmail.com 2 Mestrando – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; vinicerentini@gmail.com 252 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A primeira mesa, Estudos de Gênero no Medievo, contou com quatro trabalhos. A comunicação inaugural do Simpósio Temático foi proferida por Wendell dos Reis Veloso. O historiador, em sua tese de doutoramento, discutiu o tema da sexualidade divina. Nas palavras de Carolina Coelho Fortes, “Veloso se ocupa em discutir aspectos pertinentes […] ao refletir sobre o conceito de sexualidade, informado sobretudo pela Teoria Queer, por sua vez derivada, em grande medida, dos Estudos de Gênero e associada a estes” (FORTES, 2019, p. 17). Em sua apresentação, ao usar da metodologia da Análise do Discurso, Veloso tratou sobre a virilidade romana a partir das Confissões de Agostinho de Hipona (século IV). O objetivo de Veloso foi refletir sobre como o discurso agostiniano associa determinados comportamentos a específicas performatividades de gênero, ao passo que constroem outras em seu vazio. Seguindo as apresentações, Gabrielle Marques Neves analisou o feminino e a demonização em Castela (século XIV). Analisando a figura de Dona Maria Padilla, Neves demonstrou a ambiguidade que existe em torno de sua imagem, a partir da Crónica del Rey Don Pedro escrita por Pedro Lopes de Ayala nos séculos XIV e XV e dos Romanceros da cultura popular ibérica. Já Guilherme Avila Teixeira também voltou-se para Agostinho de Hipona. Teixeira, em sua pesquisa em fase inicial, apresentou uma série de intenções de gênero nas cartas de Agostinho à Proba e à Juliana. O epistolário de Agostinho também foi objeto de Admara Titonelli Ferreira Gouvêa. A partir das cartas, a historiadora investigou de que forma a mulher era vista e o lugar que era concebido para ela dentro da religião católica. Com estes quatro trabalhos, foi perceptível como as possibilidades de gênero na Idade Média são um campo de estudo importante e em ascensão no Brasil. Esse campo tem se mostrado objeto de interesse ativo de pesquisadores, tanto de discentes em fase inicial, quanto de docentes com extensa carreira nos Estudos Medievais no Brasil. Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 253 A segunda mesa, Alteridade e Etnicidade na Idade Média, trocou a chave de análise das formas de identidade do gênero para a etnia. No Brasil, os estudos de etnicidade na Idade Média tem sido um campo que ainda consta com relativa exploração. Para Isabela Albuquerque, “a referência a identidades étnicas é largamente utilizada por pesquisadores de diversas áreas, mesmo que para servir de contraponto” (ALBUQUERQUE, 2017, p. 15). É por este contraponto citado que analisar a identidade étnica, principalmente aquela formada a partir do Outro, tem se tornado uma alternativa pertinente para escapar aos subjetivismos que o conceito emprega. É uma contribuição bastante peculiar dos Estudos Medievais não-europeus, especificamente na perspectiva Latinoamericana (CÂNDIDO DA SILVA, 2018). Uma perspectiva compartilhada pela historiografia, que evita um essencialismo comum expresso nas fontes medievais e por vezes reproduzidos por historiadores europeus em perspectivas escorregadias como pensar o Medievo como o berço dos Estados-nação. Nesta mesa, o primeiro trabalho foi de Geraldo Rosolen Junior que procurou definir seu horizonte metodológico de estudo entre a etnogênese e a etnicidade no Reino Vândalo. Rosolen Jr questionou acerca da possibilidade de se acessar as identidades de povos através de uma historiografia não-nativa/estrangeira. Para responder ao questionamento, o autor evocou as três correntes do estudo da etnicidade nas historiografias dos Estados Unidos, Reino Unido e Áustria. O trabalho a seguir foi de Kauê J. Neckel que identificou as características de alteridade na história dos Pictos. Para a Ecclesiastica Historia Gentis Anglorum de Beda (731), Neckel questionou: o que sua narrativa implica para a compreensão dos Pictos a partir da fortuna escrita? Ao analisar de que forma o discurso de Beda ressoa nas fontes escritas que tratam os Pictos na Idade Média inicial, o historiador elencou a hipótese de que a 254 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS compreensão dos Pictos a partir das fontes escritas não pode ser desvinculada da alteridade. Já Augusto Machado da Rocha demonstrou o diferente valor da viagem para a cristandade e para o mundo muçulmano, ampliando análises relativas ao Outro. A partir disso, Rocha abordou o modo com que a busca por conhecimento fazia parte da prática da viagem para os muçulmanos para além das práticas religiosas na Baixa Idade Média. Gabriel Giacomazzi e Kelvin da Silva analisaram o imaginário maravilhoso em obras de Ibn-Battuta e Marco Polo. Sob a metodologia da alteridade comparada, Silva e Giacomazzi investigaram elementos sobre a maneira pela qual cada viajante construiu sua narrativa a respeito do Outro. Por fim, Felipe Augusto Ribeiro analisou a Historia Langobardorum Beneventanorum, de Erchemperto (século IX). A proposta de Ribeiro questionou a forma com que o cronista retratou bizantinos e sarracenos, objetivando identificar os traços com os quais Erchemperto caracterizou esses sujeitos. Ribeiro defendeu a hipótese de que embora algumas passagens descrevam esses “Outros” como cruéis e rapaces, o cronista não nega que eles foram atores decisivos nos jogos políticos regionais. As narrativas sobre o Outro apresentadas nessa mesa nos faz perceber que analisar a alteridade pode ser um ponto profícuo para a compreensão da etnicidade na Idade Média. A terceira mesa versou sobre as possibilidades de estudo acerca da administração e do direito no Medievo. Um tema em renovação nos Estudos Medievais no Brasil, como se vê no dossiê organizado por Carolina Gual Silva (2020). Refletindo sobre o direito na Idade Média, a autora indica que “procurou-se cada vez mais incorporar uma abordagem que ia além do interesse pelo contexto normativo e institucional no interior do qual as relações sociais se estabelecem” (GUAL SILVA, 2020, p. 6). É nesta superação do contexto normativo que justifica a conjunção desta mesa com os estudos sobre a administração medieval. O uso da norma e sua Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 255 aplicação para o entendimento dos poderes são temas em pleno crescimento nos estudos medievais brasileiros. Seguindo esta linha, a inauguração desta mesa foi de Paula dos Santos Flores que discutiu a existência e o espaço da expressão de opiniões dos escrivães do Parlamento de Paris em seus registros. Flores apresentou as manifestações do escrivão acerca dos conflitos políticos do período, discutindo o espaço da opinião em um período para o qual a historiografia questiona o uso das noções de indivíduo e de sujeito. A análise do espaço do julgamento também foi um tema pertinente. Maiara dos Santos Soares analisou o julgamento dos membros da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão (1113-1312) e o perdão concedido aos membros através do pergaminho de Chinon. Sem dúvida, com os trabalhos apresentados, percebemos que o campo da administração e do direito na Idade Média tem se tornado um tema bastante produtivo para a interpretação da norma no período medieval. Nos conflitos políticos em espaços de opinião ou julgamento dos membros de ordens, percebe-se a multiplicidade de possibilidades de análise sobre o contexto normativo e institucional, como exposto por Gual Silva. A quarta mesa investigou o papado e o poder entre os séculos V e XV. A expressão das formas de poder na Idade Média tem se tornado um tema em ascensão na medievalística brasileira, principalmente no tocante a seus vínculos com a História Política. Recentemente Almeida e Silva chamam atenção para este tópico ao lê-lo de maneira subjetiva aos diferentes locais de atuação deste poder no medievo. De acordo com os autores, as leituras sobre o poder na Idade Média “distancia-se dos estereótipos niveladores [...] em relação ao modelo da dominação de natureza institucional, clerical e feudal” (ALMEIDA e CÂNDIDO DA SILVA, 2011, p. 12). É com base nesta versatilidade do conceito de poder na Idade Média que o papado se torna um instituto a ser revisitado. Mesmo que o espaço clerical não seja uma forma 256 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS de poder soberana e singular durante o medievo, nesta mesa vimos algumas maneiras com que o poder papal foi alcançado e/ou aplicado. Neste sentido Gustavo da Silva Gonçalves analisou a validade do conceito de “política dialógica” aplicado ao pontificado de Gregório IX (1227-1241). Construído a partir de reflexões de diferentes áreas, o pesquisador defendeu que a proposta auxilia a compreender os posicionamentos da Cúria Papal frente ao imperador Frederico II (1194-1250). A hipótese central de Gonçalves foi de que a política dialógica é um instrumento analítico para identificar as tentativas de manutenção do dominium da Igreja, em um momento de crescentes questionamentos à autoridade eclesiástica. Já Lucas Cunha Nunes traçou uma breve reflexão sobre o uso do conceito de propaganda para análises sobre o Baixo Medievo. Nunes mostrou o valor e as possibilidades de uso da propaganda para investigar disputas por poder entre Igreja e autoridades seculares. Já Jordana Eccel Schio examinou como o nepotismo e mecenato foram centrais para a construção da reputação dos papas Della Rovere durante o Renascimento. Schio exemplificou estes dois conceitos a partir da análise do papado de Sisto IV (1471-1484) e como suas decisões como pontífice fizeram com que o conclave que elegeu Júlio II (1503-1513) fosse decidido em poucas horas. Estudar o papado e seus desdobramentos na Idade Média é um tema já tradicional, mas que tem se renovado em termos de perspectivas historiográficas. A depender do contexto trabalhado, é possível entender o poder como uma construção contextual, volátil e situacional. O papado se torna uma – das muitas – formas de poder, lido de modo cada vez mais descentralizado no medievo. Uma temática recorrente de estudos é a recepção do medievo, tratada na mesa V. Conforme as mídias vão se popularizando, pensar a recepção da Idade Média nestas mídias tem se tornado um instrumento profícuo de análise. De acordo com Silva e Albuquerque, quando se pensa em Idade Média, “é necessário pensar sua recepção, suas reivindicações, seu caráter Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 257 ideológico, a construção das personagens e valores ético/morais ali representados, enfim, toda a relação que a obra estabelece entre o passado e o tempo presente” (SILVA E ALBUQUERQUE, 2016, p. 256). É por esta aproximação entre passado e presente que seguiram-se os trabalhos desta mesa. Léo Araújo Lacerda, por exemplo, teceu considerações sobre a cultura histórica a partir da sitcom The Simpsons. A partir da noção de cultura histórica, Lacerda analisou episódios fundamentados na releitura do presente a partir de cenários, eventos e personagens vinculados a um mundo medieval. Lana Letícia Barbosa de Souza, por outro lado, realizou uma análise histórico-cultural através da adaptação em quadrinhos da ópera O Anel dos Nibelungos, do compositor alemão Richard Wagner, por P. Craig Russel. Uma análise concebida através da relação entre as fontes medievais A Canção dos Nibelungos e a Saga dos Volsungos que datam dos séculos XII e XIII. Barbosa de Souza realizou uma discussão em torno da dissociação do significado de ‘medievo’ ao trabalhar com os conceitos de medievalidade e neomedievalidade. Já Paulo Christian Martins Marques da Cruz investigou a representação da Conquista Normanda da Inglaterra no jogo Age of Empires: Definitive Edition. Ao abordar o jogo como um documento histórico, Marques da Cruz o compreendeu como um lugar de memória enquanto produto de múltiplas memórias possíveis, o que lhe permitiu falar em uma sobreposição de culturas históricas. Barbara Denise Xavier da Costa partiu do questionamento: como mídias dos séculos XV e XVI contribuem para a construção de um videogame inspirado no Medievo? Costa defendeu que através de retrolugares determinados, elementos do passado são por vezes “descolados” de sua temporalidade e se consubstanciam com o que os desenvolvedores estão criando. Com os trabalhos destes pesquisadores foi possível perceber a Idade Média não como um tempo passado inacessível à contemporaneidade, mas como um tempo passível de ser vivido e revivido em elementos atuais. 258 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Já na mesa VI pensou-se a Idade Média em seu impacto na educação. Todos os professores de História passam por questões relacionadas ao ensino do medievo em algum período de sua vida profissional, o que torna o ensino da Idade Média e na Idade Média um tema relevante para pesquisas discentes. A Idade Média e suas representações no ensino de História tem sido um tema que aproxima pesquisadores em nível docente e discente já há considerável tempo, como, por exemplo, na publicação do livro Possíveis Passados por Nilton Mullet Pereira e Marcello Paniz Giacomoni (2008). Na mesa vimos resultados desta aproximação. Em termos de ensino na Idade Média, Andrei Roberto da Silva, a exemplo disso, identificou as implicações do carisma de Pedro Abelardo (1079 – 1142) nas relações entre mestre e estudante. Ao compreender as práticas de ensino utilizadas pelos professores nas escolas catedrais no século XII, Andrei da Silva refletiu acerca da mudança dos métodos de ensino, a construção das experiências pedagógicas, bem como as relações entre Abelardo e seus seguidores. Sobre os impactos da Idade Média na educação, Yuri Gallindo Borges analisou seus mitos. Com questões voltadas à memória coletiva, Borges analisou livros didáticos de nível fundamental e médio para perceber a mitificação e desmitificação da Idade Média nestes materiais. Lucas Mizael Lopes Pacheco, por outro lado, especificou sua análise para a representação do Islã nos livros didáticos. Pacheco analisou o Islã utilizando-se do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) entre 1997 e 2017, por meio de uma análise teóricometodológica qualitativa, valendo-se de ferramentas conceituais como o Orientalismo e o Medievalismo. Borges, Silva e Pacheco nos elucidaram um ponto relevante: a Idade Média não está exclusivamente no ambiente acadêmico, mas impacta no cotidiano escolar dos professores de História. Sem dúvida, é um desafio do professor e do pesquisador repensar o ensino das diversas Histórias Medievais e suas possibilidades em sala de aula. Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 259 A iconografia e a representação da Idade Média também estiveram em protagonismo, contando com a mesa VII. De acordo com a historiadora Maria Cristina Leandro Pereira, “o objetivo principal da ciência histórica é compreender as sociedades humanas em suas produções e representações” (PEREIRA, 2016, p. 672). É justamente pensando nestas produções discursivas e em como a ciência histórica visualiza a representação que os trabalhos desta mesa foram encaminhados. Karolina dos Santos Rocha fez uma detalhada análise dos modelos iconográficos do manuscrito Codex Purpureus Rossanensis (Σ 042). A partir de uma abordagem serial, que insere a imagem em um contexto mais amplo de uma tradição bizantina, Rocha considerou suportes como a pintura mural para analisar o Codex usando a materialidade do manuscrito para investigar os diferentes usos do suporte iconográfico. Uma forma diferente de representação da de Felipe Mello Veiga, que analisou a representações dos Saxões na obra Vita Karoli Magni (Vida de Carlos Magno) de Einhard. Veiga analisou o discurso como representação para entender os Saxões no recorte de 613 até 793 da obra selecionada. As reflexões destes acadêmicos nos faz pensar em como o conceito de representação pode ser multifacetado, contando com uma amplitude metodológica ativa e profusa. É da análise de um discurso biográfico até os modelos iconográficos de um manuscrito que compreendemos esta amplificação conceitual do que se refere como ‘representação’, também em objetos de distintas origens do período medieval. Ao analisarmos um período amplo, também foi possível verificar como a participação de certos personagens foi ativa e controversa. Um destes personagens é Ricardo I, rei da Inglaterra entre 1189 e 1199. Um rei de muitas faces, Ricardo I também foi uma figura que concentrou muitas expressões de poder, frequentemente com sua figura determinando também a “construção e manutenção de determinados imaginários 260 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS sociais” (ALMEIDA E CÂNDIDO DA SILVA, 2011, p. 14). A mesa VIII, desta forma, foi dedicada à análise dos desdobramentos dos imaginários de uma figura em específico que representa, em certo nível, uma imagem do poder monárquico. O trabalho de Ana Luiza Mendes e Roberta Bentes utilizouse das representações de Ricardo I em fontes como a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth (1095-1155) e a Geste de Bretons, de Wace (1110-1174). As pesquisadoras analisaram as crônicas arturianas como um espelho do príncipe para Ricardo I amparadas no conceito de cultura intermediária como hipótese central. Já Alexandre Fernandes Alves analisou a imagem de Ricardo como rei-cavaleiro. Considerando os Anais de Roger de Hoveden (1174 – 1201), Alves procurou compreender a construção da narrativa histórica do Reino da Inglaterra. Por outro lado, a face de Ricardo I analisada por Mauricio da Cunha Albuquerque foi a que dá voz às noções de heroísmo e anti-heroísmo no romance métrico Coer de Lyon (século XV). À luz dos conceitos de imaginário, mito político e da mito-crítica, Albuquerque buscou o sentido de Ricardo I na literatura e seu papel na monarquia inglesa. A análise de um personagem em específico faz entender, enfim, como os estudos sobre monarquia inglesa estão em crescimento e solidificação na historiografia brasileira discente. Além disso, nos apresentou as possibilidades de análise sobre a construção do imaginário em uma figura específica, de modo a repensar as construções em torno de indivíduos que representam um tempo ou uma instituição. A Idade Média como produto discursivo foi tema da mesa IX. Esta noção, usada por Vinicius Silveira Cerentini, serviu para mostrar como a Idade Média foi, em primeiro lugar, discursivamente colonizada e, posteriormente, utilizada por um discurso colonizador, a partir do século XVI, para impedir que sujeitos colonizados acessassem o Tempo metropolitano, permanecendo, dessa forma, como Outros “primitivos” do Europeu moderno/contemporâneo. O discurso da poesia foi também uma Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 261 ferramenta de análise de Marcos Jorge dos Santos Pinheiro. Pinheiro analisou os aconselhamentos de Ramon Llull (1232-1316) e a sua relação com papa, clero e nobreza a partir do poema O Concílio. O discurso sobre a violência na Idade Média foi objeto de Leandro Ribeiro Brito. Questionando as práticas de opressão e a polissemia do conceito de violência, o historiador partiu do discurso associado ao poder para ler as determinações sobre o que é ou não é violento. O discurso, desta forma, se torna um aporte metodológico muito rico para lançar um olhar a determinados contextos e documentações do período medieval. Outro tema quase inevitável para se investigar a Idade Média são as religiosidades e as heresias. Neste campo de estudos, com a mesa X, Marcos Pedrazzi Chacon destacou a literatura pastoral para estudar a cultura e a religiosidade popular. O objetivo do autor foi avaliar problemáticas e tecer considerações metodológicas sobre a relação entre os dois campos. Já Ana Carolina Martinez interessou-se pela heresia, especificamente no seu papel para a transformação e união de conceitos na bula papal Quod super nonnullis de Alexandre IV (1258). Investigando os conceitos de feitiçaria, magia e heresia, Martinez analisou como esses conceitos são unidos e aplicados nesta bula papal. Eduardo Jorge de Rezende também analisou a heresia, mas em um espaço em específico, como ela é representada nos Concílios Lateranenses. Em sua proposta inicial de pesquisa, Rezende investigou os pormenores da Igreja no século XII, apresentando considerações historiográficas sob a perspectiva da História das Religiões. A Igreja, as heresias e o sentimento de religiosidade, assim, são temas que dividem protagonismo com as mesas anteriores. Dessa forma, apresentam larga profusão de análise, tornando-se campos que frequentemente estão entrelaçados, o que possibilita enormemente o diálogo entre os pesquisadores. 262 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Por fim, a mesa que concluiu o Simpósio Temático foi a de estudos sobre a Península Ibérica no Medievo. Nathalia de Ornelas Nunes de Lima analisou os ideais de morte dos reis de Avis nas Crônicas de Rui de Pina. Lima discutiu mecanismos de poder régio em Portugal, buscando compreender os ritos fúnebres como um destes processos. Ainda na Dinastia de Avis, Beatriz Nogueira de Sousa analisou o reinado de Dom Duarte (1391 – 1438) na Carta de El Rey D. Duarte e sua obra O Leal Conselheiro. Sousa usou este arcabouço para cunhar a chave interpretativa de ideário fúnebre para análise dos reinados da Dinastia de Avis. Ainda na Península Ibérica, Êmily Stephane Rodrigues da Silva dividiu a análise de Portugal com a de Castela, investigando o perfil dos conselheiros na literatura de aconselhamento. Sob a metodologia comparativa, Rodrigues da Silva estudou os vícios e as virtudes de um conselheiro em O Leal Conselheiro, no lado português, e no Libro del Consejo, no lado castelhano. A organização urbana de Portugal foi tema de Flavia Vianna do Nascimento, que analisou o papel dos marginais na economia, ação estatal e legislação durante o século XIV. Voltando-se para a Espanha, Marcos Souza Rodrigues investigou a General Estoria, do rei Afonso X (1221 – 1284). O foco de análise de Rodrigues foram os capítulos que tratam sobre o norte da África. Utilizando-se do arcabouço da História Global, o autor procurou entender a compreensão de alteridades pelas ideias de encantamento e distanciamento em relação ao chamado ‘Nilo profundo’. Finalizando a mesa, Elby Aguiar Marinho investigou a obra As Décadas de Ásia de autoria de Diogo do Couto (1542 – 1616) e João de Barros (1496 – 1570). Marinho debruçou-se especialmente na mudança da narrativa nas fontes durante as diferentes décadas de colonização portuguesa da Índia. Estes autores, assim, destacaram como os estudos sobre Península Ibérica, algo já tradicional na historiografia brasileira sobre Idade Média, tem se tornado um ponto de constante mudança em relação as formas que se Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 263 leem as fontes. Mesmo que estas fontes continuem as mesmas, imutáveis ao longo do tempo, as perspectivas sobre o território tem constantemente se modificado e se renovado. Apontamentos finais Escrever sobre um passado que não “nos pertence” pode ser um desafio: os manuscritos estão, em geral, em bibliotecas e museus distantes assim como outros vestígios materiais desse momento histórico. Produzir história sobre o Medievo na América, sobretudo na América Latina, como disse Cândido da Silva (2018) e complementou Rust (2019) ainda era, até há pouco, questionado (e ainda é em muitos cenários). Portanto, consideramos as pesquisas apresentadas nesse Simpósio Temático – elencadas brevemente neste capítulo – como o fruto de uma resistência desses profissionais em relação ao sentimento de posse de uma parte minoritária da intelectualidade europeia (e norte-americana) com a história medieval e mesmo de uma resistência à proibição do discurso dos sujeitos coloniais sobre uma história não-raramente considerada metropolitana. Evidentemente os trinta e oito trabalhos apresentados são apenas uma concisa amostra de um universo que, pelo exposto até o momento, parecem se espraiar pelas mais diversas áreas relacionadas ao Medievo. Nisso incluímos a matriz teórico-metodológica, que abarca uma diversidade de abordagens e objetos, como evidenciado no corpo desse escrito. É por esta pluralidade de perspectivas que entendemos as perspectivas sobre Idade Média produzidas no Brasil como algo em plena renovação. Além desse Simpósio Temático poder ser considerado como uma breve amostra desta diversidade temática e teórico-metodológica, ressaltamos a presença de autores dos mais diversos graus acadêmicos – graduandos, mestrandos, doutorandos – o que tornou o debate profícuo tanto para aqueles já formados quanto para aqueles em formação. O 264 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS diálogo dentro da academia, de forma horizontal e não vertical – como é de praxe – possivelmente vem fortalecer os laços desse círculo de profissionais que estudam o Medievo. Não temos dúvida de que os participantes puderam fazer proveitosas reflexões acerca do seu próprio trabalho e sobre as pesquisas dos colegas. Dessa forma, malgrado o tempo de isolamento social que vivemos em 2020 e da impossibilidade de acessar locais como bibliotecas e museus, a pesquisa em Idade Média avança. A internet nos permitiu reunir trabalhos de partes distantes do Brasil em um evento no qual todos tiveram voz ativa. Logo, não é exagero afirmar o saldo positivo desse Simpósio. E, nesse saldo, podemos incluir a reflexão mesmo acerca dos meios de divulgação da pesquisa em História Medieval, que pôde ser debatida e repensada: eventos online – desde congressos até defesas – podem, e devem, estar à disposição das comunidades (não apenas da acadêmica) para democratizar e pluralizar o debate sobre um momento histórico, o Medievo, que ainda tem uma abundância de documentos e perspectivas não-exploradas. Por fim, ansiamos por outros eventos como o que resumimos até aqui. A troca de experiência e o debate acadêmico saem fortalecidos após esse multifacetado simpósio acerca de um momento histórico muitas vezes pouco considerado no âmbito escolar e universitário. A comunidade de pesquisadores do Medievo só tem a ganhar com reuniões plurais – na temática e na teoria – que debatam o Medievo sem perder de vista a situação política e social em que estamos imersos enquanto cidadãos e cidadãs do Brasil e da América Latina. Referencial ALBUQUERQUE, Isabela Dias de. As relações identitárias entre Anglo-Saxões e Escandinavos: uma comparação do reino de Wessex com a região da Danelaw (séculos IX-X). Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em História Comparada. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2017. Kauê J. Neckel; Vinicius Silveira Cerentini | 265 ALMEIDA, Néri de Barros. CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. (Orgs). Poder e construção social na Idade Média: história e historiografia. Goiânia: UFG, 2011. p. 7-17. CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. A Idade Média e a América Latina. In: FAUAZ, Armando Torres. La Edad Media em perspectiva latino-americana. Heredia, Costa Rica: EUNA, 2018. GUAL SILVA, Carolina (org.). Sobre Direito e Normas na Idade Média: do pluralismo à multinormatividade. Signum – Revista da ABREM. v. 21. n. 1. 2020. FORTES, Carolina Coelho. Estudos de Gênero, História e a Idade Média: relações e possibilidades. Signum – Revista da ABREM. v. 20. n. 1. 2019. PEREIRA, Nilton Mullet. GIACOMONI, Marcello Paniz. Possível Passados: representações da Idade Média no Ensino de História. Porto Alegre: Editora Zouk, 2008. PEREIRA, Maria Cristina C. Leandro.. Pensar (com) a imagem: reflexões teóricas para uma práxis historiográfica. Topoi: revista de historia, v. 17, p. 672-679, 2016. RUST, Leandro Duarte. Quem precisa de medievalistas? Mato Grosso, os territórios da pesquisa sobre História Medieval e as fronteiras da atualidade. In: AMARAL, Clínio; LISBÔA, João. A historiografia medieval no Brasil: de 1990 a 2017. Curitiba: Editora Prismas, 2019. SILVA, Daniele Galindo; ALBUQUERQUE, Maurício C. Para uma recepção do medievo: a temática Viking no Heavy Metal (1988 – 1990). Revista de História Comparada (UFRJ). v. 10, p. 230-261, 2016. VELOSO, Wendell dos Reis. Os Continentes, os Conjugati e os Outros: identidade cristã e a instituição da sexualidade divina nos escritos de Agostinho de Hipona (séculos IV e V). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Seropédica, 2019. Capítulo XV As crônicas arthurianas como espelho de príncipe para o Rei Ricardo Coração-de-Leão da Inglaterra Ana Luiza Mendes 1 Roberta Bentes 2 Na Alta Idade Média francesa, Geoffrey I, conde de Anjou (938-987) se encantou por uma mulher misteriosa: Adele of Meaux (950-980). Eles se casaram e tiveram vários filhos, mas o Conde ficava preocupado pois sua mulher sempre saía da Igreja antes que a hóstia fosse levantada. Um dia ele comanda que um de seus cavaleiros a pare, mas ela se desvencilha soltando sua capa e voa para fora da janela com um grito. A condessa de Anjou nunca mais foi vista (BARBER, 1996, p. 9-10). De acordo com essa lenda todos os Plantagenetas que reinaram a Inglaterra são descendentes da Condessa demoníaca de Anjou. Seu sangue corre em suas veias e ao longo dos séculos isso serviu de justificativa para o temperamento temerário e a sede de sangue que a família carregava, assim como a sua brutalidade (BARBER, 1996, p. 9-10). Ricardo Coração de Leão (1157-1199) utilizou-se da lenda ao proclamar que “do diabo nós surgimos, e para o diabo nós voltaremos” (CHURCHILL, 1956, p.394). A referência à lenda demonstra como a concepção da existência no medievo situava-se numa linha muito tênue entre a realidade e a ficção. Podemos conceber essa ambivalência a partir do conceito de cultura intermediária definida por Hilário Franco Júnior como aquela praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma dada 1 Doutora - Universidade Federal do Paraná; analuizam982@gmail.com 2 Mestra - Universidade Federal do Paraná; roberta.bentes@gmail.com Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 267 sociedade, constituindo-se como um fator comum, um conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecidos e aceitos pela maioria dos indivíduos (FRANCO JÚNIOR, 2009). É a partir dessa perspectiva que podemos compreender a utilização que a dinastia Plantageneta faz dos recursos literários e lendários a fim de legitimar o seu poder. Levando em consideração que ela rivalizava com o poder régio francês, que fundamentava seu poder em Carlos Magno (742-814), era necessário, portanto, amparar a dinastia inglesa em um fundador de prestígio igual ou superior ao rei dos francos. A necessidade da legitimação se dá pelo fato de que a ascensão de Henrique II Plantageneta (1133-1189) ao trono inglês ocorreu em meio a uma crise sucessória e uma guerra derivada dela. Esse período ficou conhecido como Anarquia (1139-1153), no qual o território peninsular entrou em conflito com a Normandia. Com a morte de Guilherme Adelino (1103-1120), filho e sucessor de Henrique I da Inglaterra (1068-1135), este se vê motivado a instituir sua filha Matilde (1102-1167), imperatriz consorte do Sacro Império Romano-germânico, como sua sucessora. Sua sucessão não foi efetivada e o trono inglês ficou com Estevão (1092/96-1154), cujo início de reinado foi marcado por tensões entre barões ingleses, rebeldes galeses e escoceses que viam na instabilidade política uma oportunidade de dominar o território inglês. Matilde e seu filho, o futuro Henrique II, não ficaram satisfeitos com a situação e enfrentaram Estevão a fim de conquistar o trono. Porém, o conflito se encerrou com um acordo de paz firmado pelo Tratado de Wallingford (1153), no qual ficava determinado que Estevão permaneceria rei e Henrique Plantageneta seria seu herdeiro e sucessor. Estevão I morre um ano depois e Henrique assume o trono com a missão de reconstruir o reino ainda marcado pelo conflito. Com sentido político apurado, Henrique casa-se com Leonor d’Aquitânia (1122-1204), expandido o território inglês, constituindo-se 268 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS como o mais poderoso e rico governante do período (GILLINGHAM; GRIFFITHS, 2000, p. 24) e tornando a Inglaterra em um importante rival do reino francês. Casando-se com Leonor, Henrique não apenas somava ao reino inglês domínios extra insulares, como também inseria a cultura do sul da França que dominará por muito tempo a produção cultural inglesa. O jacente de Leonor d'Aquitânia, com a fronte altiva circundada pela coroa real, olhos fechados pela eternidade, tendo em suas mãos um livro aberto, ainda hoje é testemunha na necrópole da abadia de Fontevraud da riqueza da história política e cultural do século XII especialmente nos domínios Plantagenetas. (CHAUOU, 2001, p. 9) 3 Contudo, ela não estava sozinha. Henrique II era até assumir o trono, o príncipe mais bem educado do ocidente (GILLINGHAM, 2006, p. 25) e, como rei, dará continuidade ao florescimento da cultura no reino inglês, o que pode ser notado com o surgimento de um grande número de “intelectuais” e escritores a partir da segunda metade do século XII, coincidindo com a sua ascensão ao trono. O reconhecimento do fomento cultural promovido pela corte de Henrique também pode ser atestado a partir de produções que indicam essa característica do rei, como o poema provençal Les Auzels cassadors de Daude de Pradas (1214-1282), no qual há uma referência de um livro de falcoaria do rei Henrique da Inglaterra4, indicando a produção cultural fomentada por ele e demonstrando que, 3 No original: “Le gisant d'Aliénor d'Aquitaine, le front altier ceint de la couronne royale, les yeux fermés pour l'éternité, tenant dans ses mains un livre ouvert, témoigne encore aujourd'hui dans la nécropole de l'abbatiale de Fontevraud de la richesse de l'histoire politique et culturelle du XIIe siècle notamment dans les domaines Plantagenêts”. Tradução das autoras. 4 En um libre del rei Enric d’Anglaterra, lo pros e-l ric/que amet plus ausels e cas/que nos fes anc nuill crestias/ trobei d’azautz esperimens [...]. “Em um livro do rei Henrique da Inglaterra, o bom e excelente, que ama os pássaros e a caça, que nunca fez/agiu como falso devoto, cantei de espírito elevado.” Tradução das autoras em conjunto com Marcella Lopes Guimarães. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 269 o poder de Henrique e o glamour de sua esposa provaram ser uma perigosa combinação, difícil de resistir. Em consequência, praticamente todo escritor que viveu e trabalhou em algum lugar da Inglaterra ou da França na segunda metade do século XII foi em algum ponto incorporado na órbita de Henrique e Leonor, “riche dame de riche rei” [rica dama de rico rei] (GILLINGHAM, 2006, p. 26). 5 É sintomático que o reconhecimento de Henrique como um grande rei e fomentar da cultura se desenvolva no período em que podemos verificar o surgimento de um novo ideal de comportamento e de rei que une e beligerância e a cortesia. A partir do século XII pode-se identificar um novo modelo de rei e do “ofício régio, pautado na cultura que aos poucos vai se laicizando e se materializando por meio da escrita que elabora um novo poder” (MENDES, 2018, p. 54). Esse novo poder diz respeito a um dirigismo cultural, no qual a produção artística é fomentada e utilizada pelo rei como um elemento integrante de um projeto político. Inserida no novo molde de comportamentos sociais, a produção cultural desse período, enquadrada no movimento de sua laicização, se desenvolve a partir da expressão de sentimentos de ordem pessoal, social e política que convergem nas definições de uma identidade necessária para governar um reino tão heterogêneo, como apontam alguns estudiosos sobre a tática políticocultural de Henrique II. Bernard Guenée (1980) diz que no século XII, os Plantagenetas usaram massivamente a História para fundamentar as origens de sua linhagem e justificar seu domínio inglês. Na mesma perspectiva, Diana Tyson (1979) já afirmava que, por meio da ação de Henrique II, a historiografia da Inglaterra perdeu sua característica 5 No original: “Henry’s power and his wife’s glamour have proved to be a perilous combination, hard to resist. In consequence, virtually every writer who lived and worked somewhere in Britain or France in the later twelfth century has at some stage been drawn into the orbit of Henry and Eleanor, “riche dame de riche rei” [the powerful wife of a powerful king].” Tradução das autoras. 270 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS monástica para se tornar um instrumento de propaganda régia.6 Gillingham (2006), entretanto, não considera que tenham sido escritas muitas obras históricas com o patrocínio direto de Henrique, sendo apenas a partir de 1190 que a produção historiográfica ganha impulso, transformando Ricardo I no primeiro rei desde Alfred (849-899) que pensa sistematicamente como as palavras podem ser utilizadas para moldar a opinião pública. No que diz respeito às produções literárias é importante destacar o papel da produção do Roman de Brut, de 1155, de Wace (1110-1174), também conhecido como Geste des Bretons. Tal roman correspondeu à adaptação poética da Historia regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, por solicitação de Henrique II, que desejava uma epopeia versificada para consagrar uma narrativa de laude à Dinastia Plantageneta, apta a suplantar a celebridade da Chanson de Roland, de que os Capetos se valiam para exaltar suas glórias e, assim, legitimar seu poder político, vinculando sua linhagem, diretamente, a Carlos Magno (BACCEGA, 2011, p. 64). Na obra de Monmouth (~1100-1155), Arthur7 é apresentado como um dos ancestrais dos reis britânicos e como um remanescente dos troianos (VARANDAS, 2012, p. 306-307). Por sua vez, no Roman de Brut, Arthur foi transformado em um personagem mais cortês e piedoso. Todavia, na tradição Anglo-normanda ele ainda era considerado como um poderoso inimigo. Essas características, portanto, serviam para a legitimação do poder de Henrique, pois fundamenta sua imagem e seu reinado na figura 6 No original: “It was through Henry's encouragement that historiography in England lost its purely monastic character to become an instrument of propaganda for the king”. Tradução das autoras. 7 O primeiro registro em latim de Arthur se dá no manuscrito Historia Brittonum de Nennius produzida no Norte de Gales, provavelmente perto de 829-830, no qual Arthur é visto como um dux bellorum (chefe militar) que liderou 12 batalhas contra os anglo-saxões. E esta fonte é usada abertamente por Geoffrey of Moumonth para elaboração do Historia Regum Britanniae. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 271 proveniente de uma mitologia imperial que se equiparava a Carlos Magno dos Capetos (GILLINGHAM, 2006, p. 36), demonstrando que “nenhuma dinastia, de fato, pode viver sem ancestrais ilustres, panegíricos pomposos e símbolos falantes” (MARTIN, 2001, p. 3).8 Isso demonstra que Arthur é uma figura extremamente plástica, isto é, suas características se moldam ao contexto e aos objetivos dos seus autores. Por isso a obra de Geoffrey of Monmouth foi tão popular, de acordo com Judith Weiss (2006), pois ao se apropriar de lendas celtas e modelos pagãos, permitiu aos autores posteriores inserir elementos que incrementam a lenda de Arthur e moldam sua personalidade ambígua, navegando entre a cortesia e a arrogância9, características que também poderão ser observadas nos relatos sobre Ricardo I, os quais orbitam entre a admiração e a intrepidez, como podemos ver na crônica Itinerarium Peregrinorum et Gesta Regis Ricardi (~1220), de Geoffrey of Vinsauf10 (?1200) quando o jovem rei é tem suas qualidades descritas como: Sua generosidade, e seus dotes virtuosos, o governante do mundo deveria ter dado a ele nos tempos antigos; pois neste período do mundo, à medida que envelhece, tais sentimentos raramente se manifestam e, quando o fazem, são objetos de admiração e espanto. Ele tinha a valentia de Heitor, a magnanimidade de Aquiles, estava no mesmo patamar que Alexandre e não inferior a Rolando em prestígio; Ou seja, ele ofuscou muitas personagens ilustres de nossos tempos. A liberalidade de um Tito era dele, tão raramente encontrada em um soldado, e era dotado da eloquência de Nestor e da prudência de Ulisses; ele se mostrava preeminente na transação e fechamento de negócios, cujo conhecimento não 8 No original: “Aucune dynastie, en effet, ne peut se passer des ancêtres illustres, de panégyriques ronflants et desymboles parlants”. Tradução das autoras. 9 Nas produções galeses O sonho de Rhonabwy, Owain ou A Dama da Fonte e Geraint, Filho de Erbin, assim como acontece nos romances Lancelot, Yvain e Perceval de Chrétien de Troyes, Arthur parece encarnar o extremo de um rei imperial, esperado dos romances de cavalaria desenvolvidos na França, mostrando-se como rei passivo, arrogante e satírico que se deleita dos prazeres mundanos da corte do que se aventurar com seus cavaleiros. 10 Nesta crônica a autoria é dada a Vinsauf, e sua compilação é realizada por Ricardo do Templo nos meados de 1220 em Londres. 272 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS carecia de boa vontade para fazê-lo, nem sua boa vontade faltante em desenvoltura. Quem, se Ricardo fosse acusado de presunção, não o desculparia prontamente, conhecendo-o como um homem que nunca viveu a derrota, impaciente por uma injuria e impelido irresistivelmente a reivindicar seus direitos, embora tudo o que ele fizesse fosse caracterizado por uma nobreza mental inata. (VINSAUF, 2001, p. 95-95)11 Assim, o Arthur da corte Plantageneta é um personagem extremamente maleável, uma vez que sua figura histórica, baseada em um guerreiro do século VI, transcende os limites da realidade e é moldado em prol da defesa da dinastia e dos seus reis. Dessa forma, o Arthur de Henrique II não é o mesmo de Ricardo I. No reinado do primeiro, Arthur é moldado conforme as características de Henrique, contribuindo para disseminar uma propaganda do rei inglês e legitimando sua ação conquistadora, assim como das histórias sobre Arthur que agora se estabelecia como um fundador dos Plantagenetas. Nesse contexto, surge a visão messiânica de Arthur, expressada na “esperança bretã” do seu regresso. No entanto, essa não era uma visão homogênea verificada em todas as obras de temática arthuriana do período. Muitos autores representavam essa ideia como chacota, demonstrando que existia uma dialética de perspectivas de como Arthur deveria ser visto (BERARD, 2015, p.16). Se, por um lado, no reinado de Henrique II, Arthur foi construído como um modelo para os reis ingleses, sobretudo sob a pena de Geoffrey of Monmouth que o concebe como um 11 Tradução da fonte em inglês modern pelas autoras: “His generosity, and his virtuous endowments, the ruler of the world should have given to the ancient times; for in this period of the world, as it waxes old, such feelings rarely exhibit themselves, and when they do, they are subjects of wonder and astonishment. He had the valour of Hector, the magnanimity of Achilles, and was equal to Alexander, and not inferior to Roland in valour; nay, he outshone many illustrious characters of our own times. The liberality of a Titus was his, and, which is so rarely found in a soldier, he was gifted with the eloquence of Nestor and the prudence of Ulysses; and he shewed himself pre-eminent in the conclusion and transaction of business, as one whose knowledge was not without active good-will to aid it, nor his good-will wanting in Itinerary knowledge. Who, if Richard were accused of presumption, would not readily excuse him, knowing him for a man who never knew defeat, impatient of an injury, and impelled irresistibly to vindicate his rights, though all he did was characterized by innate nobleness of mind”. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 273 campeão socialmente relevante para a autoridade monárquica (BERARD, 2015, p.12), no reinado de Ricardo não há uma identificação direta entre os dois reis, uma vez que há a necessidade de mudar o discurso sobre Arthur já que seus restos mortais, assim como os de Guinevere e Mordred foram “encontrados” em Glastonbury em 1191. Nesse contexto, esta “oficina de falsificações” engendra a relação entre Glastonbury e a lenda de Arthur, propiciando a difusão das narrativas arthurianas pelos diferentes estratos sociais (BACCEGA, 2011, p. 64). Essa “descoberta” minava a ideia de que Arthur retornaria. Ao findar com a “esperança bretã” Arthur é moldado sob uma perspectiva distinta, dada em parte pela nomeação do sobrinho de Ricardo como Arthur da Britânia (1187-1203), definindo que, de fato, Arthur era Plantageneta e seu retorno se efetivou com o nascimento desse novo Arthur e, em parte pelas ações desenvolvidas por Ricardo que, mesmo não relacionando sua imagem com a de Arthur diretamente, toma determinadas decisões que se assemelham às do rei lendário. Uma dessas ações é relacionada com o sobrinho Arthur a quem Ricardo alça à condição de seu herdeiro e sucessor em detrimento de seu irmão João Sem-terra (1166-1216). Essa ação é interessante de ser pensada no contexto do imaginário arthuriano, uma vez que Arthur, assim como Ricardo, não teve filhos legítimos12, definindo, então, seu sobrinho Mordred como seu herdeiro. Não à toa, portanto, que seus restos mortais foram “encontrados” juntos aos de Arthur e sua rainha. Outra ação emblemática da relação entre os dois reis é o fato de que Ricardo teria levado consigo a espada de Arthur para a Cruzada, dando-a para Tancredo da Sicília (1189-1194). 12 De acordo com os contos galeses Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy encontramos a tradição de que Arthur teria um filho chamado Llachau, e em Geraint, filho de Erbin, Arthur tem um filho chamado Amr, diferentemente do que aparece nos registros de Geoffrey of Monmouth e também nas crônicas de Chrétien de Troyes. 274 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Nessa conjuntura, pode-se compreender que no reinado de Ricardo a “angevização” de Arthur já está consolidada, processo desenvolvido no reinado de Henrique II, no qual existia uma “ideologia Plantageneta” (BERARD, 2015, p. 42), constituída por meio dos escritos de Wace e Geoffrey of Monmouth que não eram escritores oficiais da corte, mas foram os responsáveis pela separação entre historicidade e fantasia de Arthur para defini-lo como um antepassado de Henrique II. (BERARD, 2015, p. 42) Assim, há a construção de Henrique como uma versão idealizada de Arthur e provendo a dinastia com elementos para eternizar esse rei como Plantageneta. Importante observar também que nesse processo de fabulação de Arthur, há a simbiose entre o elemento guerreiro e cavaleiresco, corroborando o fato de que essas obras eram escritas em conformidade com as demandas do período. Como já mencionado, a cultura cortês não deveria estar em segundo plano na corte inglesa e, portanto, nesse contexto pode-se pensar que surge um novo modelo de rei, o qual alia sua faceta beligerante à cortês. A importância desse novo tipo de rei, relativamente instruído, é atestada por contemporâneos de Henrique, como Guilherme de Malmesbury (10801143) que diz que “um rei iletrado é apenas um asno coroado” (LE GOFF, 2017, p. 456). Segundo Jacques Le Goff, “esse novo ideal de rei letrado, culto e mesmo erudito, caminha paralelamente à transformação das realezas em Estado administrativo e burocrático, e é igualmente acentuado pela reabilitação de Salomão como modelo de rei” (LE GOFF, 2017, p. 456). No tocante a Ricardo, sua faceta cortês pode ser atestada por meio de sua produção trovadoresca: a tensó13 “Dalfin je’us voill deresnier” e a 13 Tensó é uma subclassificação dentro do gênero poético lírico provençal em que dois trovadores realizam uma disputa poética. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 275 rotrouenge14 “Ja nuls òms pres no dirá as razon”. O registro da sua disputatio poética com Dalfins d’Auvergne (1150-1234) pode ser encontrado em três cancioneiros occitanos: o Cancioneiro I, o Cancioneiro K e o Cancioneiro A. Neste último, há a representação de Ricardo como um rei-trovador, aparecendo coroado e tocando uma harpa. A referência a Ricardo como um rei cortês em consonância com sua faceta guerreira também é vista na personagem de Arthur do conto galês Culhwch ac Olwen presente no Mabinogion, coletânea de manuscritos medievais em prosa escritos em galês medieval.15 Nele, Arthur aparece já como um rei com uma vasta corte de nobres ao seu redor e mostra a transição para o cristianismo16, trazendo em seu diálogo com seu primo Culhwch, que ansiava por encontrar Olwen, as características de um rei cortês, largo que apreciava boas armas de combate: Ainda que não queiras ficar entre nós, terás aquilo que desejas, seja aquilo que for, mesmo que se encontre muito longe. Só não te darei o meu barco; o meu manto; a minha espada Caledvwlch; a minha lança Rhongomynyad; Wynebgwrtbucher, o meu escudo; Carnwennan, o meu punhal; ou a minha esposa Gwenhwyvar. (VARANDAS, 2012, p.117-118). A espada Caledvwlch está presente na crônica de Roger de Hoveden (1174–1201), que acompanhou o rei inglês na Terceira Cruzada (1189-1192) e pode descrever o momento que Ricardo a entrega para Tancredo: 14 Rotrouenge é uma cantiga parecida com uma cansó que arremata cada estrofe com um refrão fixo de uma única palavra. 15 Ainda que parte de sua escrita seja tardia do século XIV, os contos remetem aos costumes e lendas orais anteriores ao século X. De acordo com Angelica Varandas (2012, p. 136), a história de Culhwch e Olwen teria sido produzida cerca de 1080-1100, data anterior à obra de Geoffrey of Monmouth. O estudo de T.M. Charles-Edwards e Patrick Sims-Williams apontam que a linguagem da obra teria vestígios do século XI e XII. Vide: SIMS-WILLIAMS, Patrick. “The Early Welsh Arthurian Poems”. In: BROMWICH, Rachel; EVANS, D. Simon. Culhwch and Olwen: An Edition and Study of the Oldest Arthurian Tale. Cardiff: University of Wales Press, 1992.; CHARLES-EDWARDS, T.M. "The Date of the Four Branches of the Mabinogi". Transactions of the Honourable Society of Cymmrodorion (1970-1972), 1971, pp. 263–298. 16 Quando Arthur nomeia seus 136 guerreiros, ao final da lista vemos Kethcrwn, o Padre e Bedwini, o Bispo (que abençoava a comida e bebida de Arthur. (VARANDAS, 2012, p. 120). 276 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS O rei da Sicília concedeu ao rei da Inglaterra presentes, que eram tanto numerosos quanto ótimos, sendo [na forma de] vasos de ouro e prata, em cavalos e roupas de seda, mas Ricardo, que não carecia de coisas desse tipo, não queria levar nenhum desses itens, exceto um certo pequeno anel, que ele recebeu como um símbolo de seu afeto mútuo. O rei da Inglaterra, porém, deu a Tancredo a melhor espada de Arthur, que já foi nobre rei dos bretões. Os bretões chamam esta espada de "Caliburn". Além disso, Tancredo deu ao rei da Inglaterra quatro grandes navios, que eles chamam de "Ufsers" [Huissiers], e quinze gales (HOVEDEN , 1870, p. 97-98)17 Outro diálogo que pode ser visto entre Ricardo e Arthur ocorre em Cligés, de Chrétien de Troyes (1130-1191), no qual Arthur é apresentado como um líder militar. Ele se encontrava na região da Britânia, presumidamente realizando expansões territoriais, deixando a cidade de Londres sob a regência do Earl de Windsor que toma o controle da cidade. Ao ter conhecimento da traição, Arthur reúne um exército e a retoma. Com a captura do nobre, Arthur demonstra ser cortês ao ter misericórdia do traidor e seus cúmplices (DIVERRES, 1994, p. 61). Caso semelhante aconteceu com Ricardo quando estava ausente do reino por causa da Terceira Cruzada (1189-1192). Aproveitando sua ausência, João sem Terra (1166-1216) se revoltou com ajuda do rei Capeto, deixando o território da Normandia para Felipe Augusto (1165-1223). Após retornar de seu cativeiro, Ricardo perdoou João e buscou a reconquista da região normanda que permanece como possessão inglesa até 1204. 17 No original: “rex Siciliæ dona multa et magna, in vasis aureis et argenteis, in equis et pannis sericis obtulit regi Angliæ: at hujusmodi non indigens, nihil eorum capere voluit præter annulum parvulum quendam, quem in signum mutuæ dilectionis accepit. Rex autem Angliæ dedit ei gladium optimum Arcturi, nobilis quondam regis Britonum, quem Britones vocaverunt Caliburnum. Præterea Tancredus dedit regi Angliæ quatour magnas naves quas vocant Ufsers, et quindecim galeas.” Cf. DE HOUEDEN, Roger; STUBBS, William (org.). Chronica magistri Rogeri de Houedene. Londres: Longman &Co., and Trübner &Co, Paternoster row, 1870, p. 97-98. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IkY7AQAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false. Acesso em 07/12/ 2020. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 277 Nesse contexto, pode-se inserir Arthur dentro de um projeto político que alia cultura e poder de forma que as histórias referentes a ele possibilitam serem pensadas como espelhos de príncipe, uma vez que estas obras se fundamentam em princípios político-morais com a finalidade de edificar a educação e o caráter do monarca através de modelos teóricos conforme os conjuntos de ideais políticos, morais e éticos (RICÓN apud SANTANA, 2017, p.80). Tais princípios podem ser identificados tanto nas ações de Arthur quanto nas de Ricardo que, entretanto, já inicia seu reinado com o imaginário arthuriano estabelecido que, contudo, precisa ser modificado conforme interesses específicos do seu contexto. O Coração de Leão não precisava ser relacionado diretamente a Arthur porque já tinha um arsenal próprio de lendas (Quadro 1). No entanto, suas ações demonstram que seu imaginário também estava impregnado de Arthur, cujas histórias não eram restritas a Inglaterra, local em que pouco ficou. A faceta bélica de Arthur pode ser pensada como um ideal a ser atingido pelo rei, como o foi por Ricardo que encarnava importantes virtudes régias: cortesia cavaleiresca, conquistas militares e ardor cruzadístico. O que comprova que a visão do Rei Arthur que Goeffrey of Monmouth trouxe para Wace e, consequentemente Ricardo, seria não só um modelo de conquista e consolidação, mas sim um modelo de reinado cristão em simbiose com uma sociedade cortês. Quadro 1- Mitologia Ricardiana Lendas e Topos Míticos Medievais Lendas e Topos Míticos Modernos Rei Guerreiro Robin Hood Excalibur/Caliburn18/Machado Mágico Culto a São Jorge Choque de Civilizações Rei Ausente Justa contra Saladino Fanático – Genocida – Brutal Luta contra o Leão Unificador Apaziguador Cativeiro – romance com filha do Imperador Herói do povo – justiça 18 Os itens que se apresentam em negrito nesta tabela são itens adicionados pelas autoras para complementar o raciocínio da mitologia ricardiana. 278 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Resgate com Blondel Herói Nacional O retorno do Rei Homossexual Revolta contra o pai Ascendência demoníaca Canibalismo Morte Fonte: ALBUQUERQUE, Maurício. Coração de Leão – O Retorno do Rei. Sobre o ressurgimento de Ricardo I na Cultura Britânica Oitocentista (1784-1850). In: I Simpósio de História Antiga e Medieval - UNIPAMPA, 2020, Jaraguão. Comunicação. O quadro acima demonstra que o imaginário acerca de Ricardo era extremamente fértil, desenvolvendo-se desde a sua própria época até o período contemporâneo, criando um arsenal próprio de lendas e contribuindo, assim, para a mitificação do rei inglês. Desse modo, tanto Arthur quanto Ricardo estão rodeados de aspectos históricos, como batalhas e campanhas militares, e tópicos de natureza mítica, como lutas sobrenaturais, tornando-os reis que inspiravam a moral de seus seguidores, perpetuando uma fama temerária entre seus rivais, como pode ser atestado pela frase que teria sido proferida por Saladino a seu respeito: “o rei tem muita valentia e muita audácia, mas se lança tão loucamente! Se eu fosse qualquer alto príncipe, preferiria mais ter liberalidade e julgamento comedido que audácia desmedida” (LE GOFF, 2013, p. 203). Assim, da mesma forma que Arthur, as narrativas sobre Ricardo promovem um modelo de conquistas e consolidação que liga o reinado de um rei cristão inserido em uma sociedade cortês que presa por uma cultura na qual seu rei pode ser concebido como um herói das novelas de cavalaria, colocando, assim, a dinastia Plantageneta nas brumas que fazem da Inglaterra a lendária Avalon. Ana Luiza Mendes; Roberta Bentes | 279 Referências ALBUQUERQUE, Maurício. Coração de Leão – O Retorno do Rei. Sobre o ressurgimento de Ricardo I na Cultura Britânica Oitocentista (1784-1850). In: I Simpósio de História Antiga e Medieval - UNIPAMPA, 2020, Jaraguão. Comunicação. ANDERSON, Carolyn B. Constructing royal character: King Richard in Richard Couer de Lyon. Enarratio. n. 6, 1999. Disponível em: https://kb.osu.edu/handle/1811/71246. Acesso em: 07/09/2020. BACCEGA, Marcus. Logos do Sacramento, Retórica do Santo Gral: a sacramentalidade medieval do mundo e do homem na Demanda do Santo Gral de Heidelberg (séc. 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Capítulo XVI A literatura pastoral e sua relação ao estudo da cultura e religiosidade popular na Alta Idade Média 1 Marcos Pedrazzi Chacon 2 Edmar Checon de Freitas 3 Introdução Com o advento da Escola dos Annales e de sua história cultural, um novo ímpeto foi alçado em relação ao estudo das crenças e práticas que marcam os modos de vida e a consciência do homem e da mulher medieval, assim como as formas com que estes interagem entre si e com a natureza à sua volta. Tal complexo de práticas e crenças integra o âmago da cultura e da religiosidade popular, constituindo elementos compartilhados pela maior parte da população em uma dada temporalidade. Em se tratando da Idade Média, as fontes que compõem a literatura pastoral constituem uma forma privilegiada de se perscrutar a visão de mundo e os diferentes modos de interação do homem medieval com a realidade à sua volta. Todavia, sua utilização também propõe ao historiador uma série de desafios e problemáticas, visto que, por mais que tais fontes se ocupem das práticas, crenças, ritos devocionais e festividades observadas pelo homem comum, elas não são capazes de fornecer acesso direto à cultura religiosa das massas, visto que os elementos registrados passam pelo filtro das mentes e da escrita dos que integravam o mundo clerical. 1 O presente estudo foi originado de pesquisas realizadas no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), através do projeto intitulado “As artes da cura: a doença e os agentes da cura na Gália Merovíngia”, sob a orientação e revisão do Professor Doutor Edmar Checon de Freitas. 2 Graduando - Agios/PIBIC/UFF; marcpchacon@gmail.com 3 Doutor - Scriptorium/Agios/PPGH/IHT/UFF; edmarcfreitas@gmail.com Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 283 Desse modo, sob a luz da bibliografia especializada, pretende-se: (i) expor e analisar as principais correntes historiográficas que se propuseram a examinar e conceituar o que constituiria a cultura e religiosidade popular; (ii) apresentar uma breve síntese do processo de conversão e cristianização no Ocidente alto medieval, adotando-se a perspectiva favorável ao dinamismo deste processo, sobretudo, marcado por trocas e influências mútuas; (iii) elucidar a natureza das fontes que compõem a literatura pastoral; (iv) tecer breves considerações sobre as principais vantagens e problemáticas de sua utilização no estudo de crenças e práticas relacionadas à cultura e religiosidade popular e; (v) ao fim, apresentar uma metodologia apta à utilização de tais fontes, cuja aplicação demandará pesquisa ulterior. Cultura e religiosidade popular A afirmação da história cultural por volta de 1970, uma das filhas da Escola dos Annales, marca a contestação de um modelo de História apenas preocupado com fatos singulares de natureza política, diplomática e militar e com as grandes personalidades, reis, generais e outros líderes. Pelo contrário, objetivou-se a construção de uma história problematizadora do fenômeno social, que fosse voltada para as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar (VAINFAS, 1997). No campo dos estudos medievais, essa discussão abarca o estudo do processo de conversão e cristianização do Ocidente na Alta Idade Média, engendrando diversos debates na historiografia acerca do que constituiria a cultura e religiosidade popular. Assim, no que tange ao debate sobre a cultura e a religiosidade popular, destacam-se três correntes principais. A primeira, também conhecida como corrente dualista, é composta por autores como Raoul 284 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Manselli, Etienne Delaruelle4 e Oronzo Giordano (1983). Tais autores se apoiam na noção de que a religiosidade popular constitui uma expressão espontânea dos anseios e necessidades das massas e se encontra em posição diametralmente oposta em relação à cultura clerical, oficial e de elite (GIORDANO, 1983). Além disso, tal dualidade é evidenciada através da utilização de certas expressões (que, muitas vezes, encerram em si conotações negativas), tais como: religion populaire e religion savante; religião dos intelectuais e religião das massas; religião não oficial e oficial; grande e pequena tradição; letrados e iletrados (JOLLY, 1996, p.13). Apesar de frisarem tal oposição entre a cultura e a religiosidade popular e a de elite, ainda se admite a possibilidade de uma interação dinâmica entre ambas as formas de religiosidade, estando também tal interação acompanhada de uma incompreensão mútua (GIORDANO, 1983, p.24). De tal corrente, surgiu uma vertente que radicaliza uma postura de “descristianização” do processo de conversão do Ocidente europeu, destacando o vigor com que a cultura germânica se impôs à cristianização. Desta forma, segundo autores como Valerie Flint (1991), James Russell (1994) e Joyce Salisbury (1981), teria ocorrido uma verdadeira “contaminação” do cristianismo por parte das culturas germânicas, de modo que a Igreja teria perdido seus traços distintivos e originais, e vinculando-se a valores que representavam anseios terrenos (BASTOS, 2013, p.33). Assim, conforme expõe Flint (1991, p.8-9), durante o processo de conversão, o cristianismo teria adotado elementos mágicos estranhos a ele, sujeitando-se verdadeiramente à magia de origem pagã. Isso poderia ser observado no fato de que não só os membros do clero acreditavam em certos tipos de magia, mas deles necessitavam no esforço empreendido para impor sua hegemonia no campo do sagrado. Assim, a Igreja teria 4 DELARUELLE, Etienne. La piété populaire au Moyen Âge. Torino: Bottega d’Erasmo, 1975. Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 285 atuado de forma vigorosa, por um lado, na seleção e no resgate de modalidades mágicas não cristãs capazes de auxiliá-la neste embate e, por outro, na veemente rejeição de práticas mágicas incompatíveis. O resultado desse processo, conforme defende a autora, culminaria na existência de fronteiras incertas e borradas entre a magia e a religião. Já, para Russell (1994, p.3-4), o encontro dos povos germânicos com o cristianismo teria resultado em sua transformação ou, mais propriamente dito, em sua germanização. Isso se deveu à necessidade da adaptação do cristianismo para que fosse aceito no seio da sociedade germânica, visto que: Uma religião que não aparentasse estar preocupada com questões fundamentais militares, agrícolas e pessoais não poderia esperar ganhar aceitação entre os povos germânicos, uma vez que a religiosidade germânica pré-cristã já providenciava respostas adequadas a tais questões (RUSSELL, 1994, p.4, tradução nossa)5. Assim, através da ação missionária, os anseios e preocupações dos povos germânicos foram acomodados no cristianismo, integrando sua ética, doutrina e promovendo sua germanização (RUSSELL, 1994, p.4). A seu turno, Salisbury6 (1981 apud BASTOS, 2013, p.34) salienta que o triunfo do cristianismo, através da imposição de sua hegemonia religiosa, em fins do século VII, só foi possível uma vez que ele obteve sucesso em se adaptar, equilibrando a preservação da ortodoxia religiosa aos anseios das populações campesinas pela ritualização de suas relações sociais e controle da natureza. 5 Texto original: “A religion which did not appear to be concerned with fundamental military, agricultural, and personal matters could not hope to gain acceptance among the Germanic peoples, since the pre-Christian Germanic religiosity already provided adequate responses to these matters”. 6 SALISBURY, Joyce E. Lay Piety and Village Culture in Spanish Galicia during the Visigothic Reign. New Brunswick: Rutgers University, 1981. 286 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Tal corrente foi alvo de severas críticas pelo estabelecimento de fronteiras extremamente rígidas entre o cristão e o pagão, entre a religião e a magia. Dessa forma, irromperam análises que buscaram observar a cristianização como um processo marcado pela “interação dialética entre conflito e mútua assimilação” (BASTOS, 2013, p.34). A partir destas análises, forma-se uma segunda corrente que, consubstanciada por autores como Karen Jolly (1996), Aron Gurevich (1993) e Lucy Grig (2018), pretende analisar a religiosidade popular como um espaço de trocas e influências mútuas entre a cultura folclórica e a de elite. Assim, segundo Jolly (1996, p.9-12), o processo de conversão foi sobretudo dinâmico, não havendo uma parte passiva, de modo que nem o cristianismo nem a cultura folclórica germânica atuaram como meros recebedores inertes de valores e crenças estranhas a eles. Pelo contrário, tal processo foi marcado por trocas mútuas, assim como conflitos, in verbis: De modo a compreender as práticas religiosas populares neste período, devemos inserí-las no contexto deste gradual processo de conversão cultural, no qual o folclore germânico e a crença cristã tanto se imiscuíram, quanto buscaram se destruir mutuamente (JOLLY, 1996, p.10, tradução nossa)7. Além disso, julga-se relevante destacar o entendimento de Aron Gurevich (1993), segundo o qual a cultura popular estava enraizada na mentalidade medieval, perpassando todos os setores e grupos da sociedade, aí incluindo a elite eclesiástica. De forma mais específica, esse fenômeno pode ser evidenciado ao se analisar a produção literária da Alta Idade Média. Nestas obras, compostas especialmente por sermões, hagiografias e penitenciais, os autores eclesiásticos se esforçaram para 7 Texto original: “In order to understand popular religious practices in this period, we need to place them in the context of this gradual process of cultural conversion, in which Germanic folklore and Christian belief bled into each other as much or more than they sought to destroy each other”. Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 287 adaptar e adequar os ensinamentos e valores cristãos em uma linguagem que fosse inteligível aos fiéis, que muitas vezes dispunham de um conhecimento muito precário do latim. Com tal finalidade em mente, tais autores, dentre os quais pode-se citar os bispos Cesário de Arles (469/470542) e Martinho de Braga (520-579), fizeram uso de certas imagens e noções familiares, que apelavam ao horizonte mental de suas congregações. Isso culminou com a introdução no cristianismo de crenças e ideias que lhe eram originariamente estranhas (GUREVICH, 1993, p.15). Um exemplo mais preciso nos traz Bastos (2013, p.42), descrevendo um conjunto de orações e rituais presentes no Liber Ordinum, que eram voltados para garantir a fertilidade dos campos. Tal prática seria um verdadeiro exemplo da mencionada assimilação entre a religião formal e a popular, voltada à satisfação de um anseio popular. Em consonância, Lucy Grig (2018, p.67) leciona que a cultura popular constitui um fenômeno verdadeiramente abrangente, não se restringindo a um grupo particular da população. Nesse sentido, ela não se origina de “baixo pra cima”, o que a levaria a se identificar com a cultura do povo, dos membros subalternos da sociedade (como argumentam os membros da primeira corrente). Pelo contrário, a cultura e a religiosidade popular era compartilhada pelos vários subgrupos sociais, fato este que pode ser verificado pelo temor que as elites locais, assim como os clérigos, participassem de atividades e ritos devocionais proscritos8. Ademais, salienta a autora, a religiosidade e cultura popular estabelece diversas relações com a elite e cultura oficial, estando ainda intimamente relacionada às esferas mais amplas da sociedade, da economia e da ideologia. 8 Exemplo disso pode ser visto no cânone LXI do Segundo Concílio de Braga de 572, que proscreve aos clérigos a prática de encantamentos e a confecção de ligaduras: “De eo quod non liceat sacerdotibus vel clericis incantaturas et contrarias ligaturas facere.” 288 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Em relação à terceira corrente, conforme enuncia Bastos (2020), esta é mormente minoritária, sendo integrada por autores, tais como Carlo Ginzburg9 (2006), Steven Sangren10 (1984) e o próprio Bastos (2013). Para tais autores, a religiosidade popular não chegou a integrar um todo partilhado pelo conjunto ou maior parte da sociedade (tal como entende a segunda corrente), mas, antes, é vista como um espaço de conflitos e de criação, exprimindo as relações de dominação e resistência que se dão no seio de tal sociedade. Nesse sentido, a religiosidade popular é aquela ligada aos setores subalternos da sociedade, especialmente os camponeses. Tal religiosidade, pode-se colocar, incorpora certos elementos da religiosidade oficial, eclesiástica e de elite, ressignificando-os de acordo com sua própria experiência, e forma, com isso, uma base de formulação que é alheia à Igreja, nunca sendo completamente controlada por ela. O processo de cristianização e o advento da literatura pastoral Dando seguimento, busca-se estabelecer um panorama geral do Ocidente europeu durante os primeiros séculos da Alta Idade Média. Nesse sentido, Bastos (2009, p.49) observa que o cristianismo, por volta dos séculos V e VI, havia se expandido de forma restrita, limitando-se quase que completamente aos meios urbanos, ao passo que os vastos contingentes da população rural campesina permaneciam como pagãos, arraigados a antigos costumes e práticas. De forma mais abrangente, Filotas (2005, p.38-42) assevera que, neste período, o cristianismo já estava alicerçado nas grandes regiões pertencentes ao antigo Império Romano, tais como a Gália, a Ibéria e a Bretanha. Todavia, com o deslinde 9 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 10 SANGREN, P. Steven. Great Tradition and Little Traditions Reconsidered: The Question of Cultural Integration in China, Journal of Chinese Studies, 1. 1, 1984, 1- 24. Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 289 das ondas migratórias germânicas, houve uma verdadeira reemergência de um paganismo popular, sobretudo nas áreas rurais. Esse processo, como salienta Le Goff (1979, p.211), foi marcado por uma regressão, que se deu na forma da ressurgência de técnicas, mentalidades e crenças tradicionais. Além do mais, tendo em vista que muitos dos reinos germânicos tais se converteram ao cristianismo, mas à vertente ariana, tida pela Igreja como herética (caso dos visigodos), foi necessário, segundo Filotas (2005) que a Igreja realizasse uma verdadeira “reconversão da europa”, trazendo os pagãos e hereges arianos ao seio do cristianismo ortodoxo. Assim, deparando-se com esse universo de práticas e crenças estranhas ao cristianismo, muitas vezes designadas como sobrevivências pagãs, ou seja, vestígios de um passado remoto que remontam à Antiguidade Clássica, mas incompatíveis com a nova religião. Diante disso, a Igreja, sobretudo pela ação dos bispos e párocos, se lança a um processo de conversão e cristianização, buscando hegemonizar tanto a crença, quanto a consciência dos crentes (BASTOS, 2013). Dessa forma, segundo Filotas (2005), a cristianização se desenvolveu em duas fases distintas: a primeira diz respeito à “fase missionária”, efetivada pela ação de missionários frente aos reis tribais, não às massas, adotando-se o princípio de que a conversão do rei implicaria na conversão da população. Essa ação afetou sobretudo as formas exteriores da vida religiosa, através do batismo da população, da supressão dos cultos pagãos públicos, destruição de seus templos, altares e ídolos, ação que era seguida da instituição, em seu lugar, das estruturas e rituais da Igreja. Todavia, as atitudes e crenças que davam sustento aos cultos privados e à religião doméstica persistiram. Já, a segunda fase, conhecida como “fase pastoral”, seguiu-se através da implantação de uma rede de paróquias e monastérios nas áreas rurais, que ficavam sob a administração de um bispo, sendo 290 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS periodicamente visitados por ele. O objetivo principal de tal fase dizia era o de inculcar valores cristãos nos fiéis, educando-os a assumirem atitudes em conformidade com os preceitos previstos pela Igreja, o que se dava através do desenvolvimento de uma liturgia, da utilização da pregação e do uso da confissão (FILOTAS, 2008, p.42). Nesse ínterim, difunde-se pela Alta Idade Média uma série de documentos, que cumpriam a função de educar, repreender e admoestar os fiéis recalcitrantes nas inúmeras práticas consideradas supersticiosas e pagãs: a literatura pastoral. Aprofundando essa temática, Filotas (2005, p.42) conceitua a literatura pastoral simplesmente como o conjunto de fontes que tratam do cuidado pastoral, isto é, da formação doutrinária dos fiéis e seu bem-estar moral, espiritual e físico, buscando evitar os possíveis desvios da ortodoxia e a retomada de práticas associadas ao paganismo e superstições. Assim, contidos em tal gênero literário, encontram-se os sermões, certas fontes legislativas (abarcando tanto leis eclesiásticas quanto seculares que tratem de assuntos ligados à religião) e penitenciais, documentos estes que, em diferentes escalas, ocupam-se das ações e crenças dos fiéis. Incidentalmente, as hagiografias podem ser utilizadas, mesmo que não façam parte da literatura pastoral, visto que, em sua narrativa, as virtudes e proezas do santo são, muitas vezes, demonstradas na forma com que este lidava com os pagãos e outros desviantes da fé (FILOTAS, 2005). Dito isso, pode-se arguir que o principal valor do uso de tais fontes corresponderia ao fato das informações sobre as crenças e práticas registradas terem sido obtidas a partir da observação direta, por parte dos clérigos, em relação ao comportamento e costumes de suas congregações. Todavia, até mesmo essa assertiva é questionada por alguns autores e, quando somada a outros questionamentos, põe em xeque a viabilidade e a significância de tais documentos como fontes para o estudo da cultura e Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 291 religiosidade popular. Destarte, um primeiro questionamento levantado diz respeito à nítida hostilidade dos autores eclesiásticos às práticas e crenças registradas. Estas eram associadas diretamente ao paganismo ou a meras tolices supersticiosas, devendo ser prontamente erradicadas. No que tange a seus praticantes, a estes eram atribuídos muitos nomes, tais como como mulierculae, rustici e idiotae, denotando o escárnio e a depreciação por eles sentidos. Assim, pode-se dizer que a religiosidade contida em tais fontes é a religiosidade combatida, conhecida indiretamente através de textos produzidos por clérigos que ressaltam seu caráter aberrante e desviante do modelo de piedade oficial cristão (GIORDANO, 1983, p.10-11). Um segundo ponto, e possivelmente o mais polêmico, diz respeito à repetida utilização, não só de certas temáticas, mas de fórmulas e expressões padronizadas para designar práticas similares que se deram em localidades e temporalidades diferentes, o que põe em dúvida se a informação registrada foi proveniente da observação direta da realidade do autor, ou se constitui meramente a reprodução de uma tradição literária eclesiástica (FILOTAS, 2005). Um exemplo disso diz respeito à prática recorrente em vários textos de se realizar votos a árvores, que é expressa na fórmula vota ad arbores. A questão é que tal fórmula não indica as diferenças que poderiam ter existido de acordo com o tempo e o lugar - quais tipos de árvores eram cultuadas? Quais tipos votos e rituais eram feitos? Conforme aponta Filotas (2005, p.50), um grave problema é que essa reiteração de palavras e frases cria a aparência enganosa de um paganismo popular homogêneo que se estenderia por toda a Europa, desconsiderando variações locais e regionais na natureza dos atos devocionais e dos próprios objetos de devoção. Junto a essa questão, tem-se a problemática da falta de uma descrição detalhada das práticas alistadas, o que poderia significar que o fato 292 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS registrado era de conhecimento comum, não sendo necessária sua descrição nos pormenores; ou um desprezo pelo o que era considerado pagão; ou mesmo um conhecimento inadequado, pelo autor, da linguagem ou costumes de sua congregação (FILOTAS, 2005, p.49). Uma última questão que merece ser citada tem relação com a utilização intercambiável e generalizante de termos latinos (além de suas múltiplas grafias), que acarretam o obscurecimento da natureza de certas práticas e de seus praticantes. Um exemplo disso diz respeito aos praticantes de artes divinatórias, conhecidos por nomes como sortilegi, divini, arioli, haruspices, auguri, caragii. Ora, se no latim clássico, tais termos designavam praticantes de formas específicas de adivinhação, no período medieval eles já se encontram esvaziados de seus sentidos originais, sendo utilizados por vezes em conjunto, mas sem que se estabeleça a distinção entre eles. Qual o perfil dos praticantes, seu status social e grau de formação? Qual sua área ou técnica de especialização? (FILOTAS, 2005, p. 219). Ante o exposto, deve-se indagar: em que medida se pode utilizar a literatura pastoral no estudo dos fenômenos da cultura e religiosidade popular, especialmente tendo em conta a questão da extrema repetição de temas e fórmulas? Nesse ponto, a historiografia apresenta grande divergência. Por um lado, Filotas (2005, p.46) cita autores como Wilhelm Boudriot11 (1964) e Dieter Harmening12 (1997), que advogam pela impossibilidade da utilização de tais fontes. Segundo eles, em virtude das repetições (e cópias feitas de obras anteriores), tais textos só provam a persistência de uma tradição literária eclesiástica e fornecem pouca 11 HARMENING, Dieter. Superstitio: Überlieferungs und theoriegeschichtliche Untersuchungen zur kirchlichtheologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters. Berlin, 1979. 12 BOUDRIOT, Wilhelm. Die altgermanische Religion in der amtlichen kirchlichen Literatur des Abendlandes vom 5, bis 11. Jahrhundert. Darmstadt, 1964. Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 293 credibilidade aos costumes das pessoas no tempo e lugar em que foram escritos. Já, no ponto de vista de Yitzhak Hen (2001, p.45-46), a repetição sistemática da proibição de certas práticas, classificadas como pagãs ou supersticiosas, na literatura pastoral, por mais que resulte da adoção de uma convenção literária preestabelecida, acaba por refletir uma realidade, só que uma realidade mental ao invés de prática. Assim, o conjunto textual que compõe a literatura pastoral pode ser utilizado como evidência para o que seus autores pensavam que deveria ser proibido, e não como indícios para os fatos em si, visto que não espelham a realidade empírica. Em posição diametralmente oposta, Jean Gaudemet13 (1985 apud FILOTAS, 2005, p.46) defende a possibilidade de utilização de tais fontes, argumentando que a repetição frequente de temas constitui, na verdade, prova do descumprimento sistemática dos cânones, demonstrando, com isso, a persistência e o vigor das práticas registradas. Por sua vez, os autores Aron Gurevich (1993), William Klingshirn (1994) e Jean-Claude Schmitt14 (1988 apud FILOTAS, 2005, p.46-47) vêem a repetição de temas como a “prova da estabilidade do fenômeno vital”, ou seja, que tais práticas e crenças permaneceram constantes na consciência do homem medieval, tendo, assim, conexão com a realidade que eles foram compostos e podendo ser utilizadas para o estudo da cultura e religiosidade popular. Demonstrando grande simpatia por esta corrente, Filotas (2005, p.47) argumenta a favor da relevância desta documentação para o estudo da cultura e religiosidade popular, visto, especialmente, o caráter prático das informações registradas, ligado à resolução de questões concretas. Assim, mesmo que se possa verificar o empréstimo, ou mesmo 13 GAUDEMET, Jean. Les sources du droit de l’Église en Occident du IIe au VIIe siècle. Paris, 1985. 14 SCHMITT, Jean-Claude. Les superstitions. In: LE GOFF, Jacques; RÉMOND, René (ed.). Histoire de la France religieuse. Paris, 1988; 294 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS a cópia, de passagens de textos anteriores, tal cópia nunca é feita de forma indiscriminada, mas, sim, seletiva, tendo relevância para o enfrentamento de uma situação atual aos autores. Todavia, faz-se necessário que se adote uma perspectiva cautelosa, empregando-se estratégias e metodologias que sejam propícias à análise crítica dos registros contidos na literatura pastoral. Uma proposta metodológica Tendo em mente essa problemática, Bernadette Filotas (2005, p.48) adotou a proposta metodológica de Rudi Künzel (1992)15 e a adaptou. Tal metodologia baseada na análise comparativa dos documentos se presta a auxiliar o historiador a melhor identificar quais registros têm maior probabilidade de serem baseados na observação direta da realidade e não na tradição literária. Expressa em dez critérios a serem levados em consideração durante o exame das fontes, tal metodologia, a grosso modo, procura observar se há a repetição de certas práticas em outros textos o grau de conformidade de determinada prática registrada em relação a um paradigma ou estereótipo, dando grande atenção aos termos utilizados para designar tais práticas e suas qualificações. Assim, tal método pode ser resumido em: (i) observar se há a descrição de práticas similares em textos de outros gêneros literários; (ii) examinar se há o uso de um termo novo, não estereotipado, para designar uma prática em que poderia ser empregado um termo padronizado; (iii) atentar se há a descrição da mesma prática em dois textos independentes, escritos em períodos de tempo distantes, mas que se referem à mesma localidade. (iv) verificar se nos textos há interpretações diferentes da mesma prática; (v) observar se um novo elemento foi adicionado à prática 15 KÜNZEL, Rudi. Paganisme, syncrétisme et culture religieuse au haut moyen âge: Réflexions de méthode. Annales ESC 4-5, 1992. Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 295 de um ritual antigo (levando em consideração o contexto histórico); (vi) atentar para o uso de um termo da língua vernácula em um texto latino; (vii) considerar a finalidade do texto (e também podemos adicionar, todo seu contexto de produção); (viii) apurar o grau de conformidade da prática descrita com um estereótipo estabelecido; (ix) observar se há a existência de um elemento a qual é dado uma interpretação incongruente com o cristianismo; (x) investigar se há a omissão de um elemento importante dentro de uma lista de termos estereotipados para determinada prática. No que cabe à aplicação dessa metodologia no tratamento de fontes alto medievais e posterior apresentação dos resultados, isso demandará um trabalho ulterior, de maior extensão e aprofundamento, excedendo aos objetivos e ao imperativo de brevidade do presente estudo. Conclusão Portanto, diante do que foi trabalhado, pode-se, primeiramente, analisar as divergências historiográficas acerca do conceito e das implicações relativas à cultura e religiosidade popular. Assim, a primeira corrente apresenta um caráter dualista, defendendo que a cultura e religiosidade popular está ligada aos setores subalternos da sociedade, principalmente às populações campesinas, opondo-se veementemente à sua contraparte clerical, ligada às elites sociais. Desta, irrompeu uma vertente que mantém o caráter dualista, mas insiste na perspectiva de uma “contaminação” ou “germanização” do cristianismo mediante seu contato com as populações germânicas. Por sua vez, a segunda corrente observa a cultura e a religiosidade popular como um “ponto de encontro”, no qual se desenvolvem trocas e influências entre a cultura folclórica e a de elite. Assim, quando se fala em cultura e a religiosidade popular, deve-se ter em mente que esta atravessa todos os setores e estamentos sociais, moldando a mentalidade do homem 296 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS medieval. Já, a terceira corrente, tendo uma natureza minoritária, analisa a cultura e religiosidade popular como um espaço de conflitos, que exprime as relações de dominação e resistência que se desenvolvem no interior da sociedade, estando relacionada principalmente à população campesina. Ainda, foi possível, aliando-se à perspectiva da segunda corrente, observar o processo de conversão e cristianização como um processo dinâmico em que a Igreja buscou alicerçar sua hegemonia e centralidade no campo das relações humanas com a esfera do sagrado. Para isso, junto à ação de bispos e párocos, desenvolveram-se gêneros literários que buscaram não só traduzir os preceitos fundamentais do cristianismo em uma linguagem inteligível pelas congregações de fiéis, mas repreendê-los por sua recalcitração em práticas e crenças de origem pagã ou de caráter supersticioso. Assim, intentou-se discutir as principais vantagens e problemáticas oferecidas no estudo da literatura pastoral, apresentando os argumentos dos principais estudiosos. No que tange às vantagens, estas dizem respeito ao fato de que os registros adviriam da observação direta da realidade por parte dos autores eclesiásticos, e sua reiteração em documentos posteriores seria decorrente do descumprimento sistemático das proscrições ou constituiria uma verdadeira prova que tais práticas e crenças eram constantes na mentalidade medieval. Todavia, tal noção é posta em dúvida, visto a hostilidade dos autores eclesiásticos às práticas e crenças registradas, a repetição de termos e expressões padronizadas, a falta de uma descrição detalhada das práticas alistadas e a utilização intercambiável e generalizante de termos latinos. Por fim, apresentou-se brevemente a metodologia proposta por Rudi Künzel (1992) e adaptada por Bernadette Filotas (2005), que se propõe a analisar crítica e comparativamente o universo de práticas e crenças Marcos Pedrazzi Chacon; Edmar Checon de Freitas | 297 presente em tais fontes, indicando-se, ainda, a necessidade de pesquisa posterior. Referências BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu...: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IV-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. __________________________. Religiosidade popular no medievo. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de História das Religiões na Antiguidade e Medievo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2020. __________________________. O poder nos tempos da peste (Portugal - séculos XIV/XVI). Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2009. FILOTAS, Bernadette. 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Popular religion in Late Saxon England: Elf charms in context. Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 1996. KLINGSHIRN, William E. Caesarius of Arles: The making of a Christian community in Late Antique Gaul. Cambridge: Cambridge University, 1994. LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia. In: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1979. MANSELLI, Raoul. La religion populaire au Moyen Âge: problèmes de méthode et d’histoire. Montréal: Institut d’études médiévales Albert-le-Grand, 1975. RUSSELL, James C. The Germanization of Early Medieval Christianity: a sociological approach to religious transformation. Oxford: Oxford University Press, 1994. VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de Teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. O Brasil Republicano Capítulo XVII Emergências da branquitude na historiografia brasileira: possibilidades de análise Gabriel Ribeiro da Silva 1 A jornada de ir atrás de documentos que possam acalmar a inquietude de pessoas alarmadas pelas questões do passado, sempre me fazem desdobrar diversos questionamentos sobre as decorrências científicas da História e suas metodologias. Mas, principalmente, fico indagado pelas preocupações e questionamentos que historiadores e historiadoras fazem em seu tempo para esses documentos. É por essa razão que as revisões bibliográficas se tornam importantes, pois desvendam emergências historiográficas e abrem possibilidades de análises para as pesquisas. Em uma dessas jornadas, um inquérito criminal do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre, me fez questionamentos que eram dispersos das possibilidades que ele aparentava me mostrar. O caso desvendou apontamentos cruciais em questões de raça, gênero e classe, por mostrar um conflito em um grande centro urbano. Porém, ao mesmo tempo, o inquérito parecia incompleto, apenas com as descrições das ações, exames de delito e a sentença final do réu. A partir dessa característica, consegui deduzir que não se tratava apenas de uma análise de raça, gênero e classe a partir da opressão ocorrida no conflito, mas também desses três elementos de análise na elaboração da documentação do inquérito. 1 Doutorando – UFRGS; gabrielisribeiro@yahoo.com.br 302 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Ou seja, tratava-se de um caso de racismo, sexismo e classismo também na forma que foi conduzida a investigação criminal, assim como, nas ações das pessoas envolvidas no caso. Percebi que interpretar a opressão iria limitar a complexidade do documento e do caso, pois ambas características me alertavam para uma possibilidade de análise de uma emergência historiográfica. O acontecimento tratava de questões sobre opressões sociais e, fundamentalmente, indagava a presença de privilégios raciais e simbólicos. Por conta disso a branquitude se tornou uma emergência da historiografia brasileira. A branquitude é o estudo da identidade racial das pessoas brancas a partir da ideia do branqueamento, buscando investigar quais são, como um grupo racial, suas táticas de organização para preservar suas superioridades raciais, sociais e econômicas na sociedade (BENTO, 2002, p. 27). A branquitude compreende a existência de uma hierarquia racial, onde pessoas brancas estão no local mais elevado, tanto pela positividade de suas atribuições físicas que são construídas como o ideal, quanto pelas suas posições de escolha nos espaços, que as fazem obter vantagens econômicas, jurídicas e territoriais em diversos lugares do mundo (CARDOSO, 2020, p. 12). Esse ensaio tem o objetivo de explicitar os principais trabalhos que utilizam a branquitude como um campo de pesquisa, e que de alguma forma, transformam esse campo em metodologia de pesquisa. Procurarei expor as variáveis da branquitude, estipular algumas ferramentas analíticas para o estudo histórico sobre a branquitude, e em seguida, expor as especificidades do caso que encontrei no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, que pode auxiliar na identificação de documentos onde esse grupo racial atua de forma literal ou simbólica. A branquitude é uma emergência de pesquisa no momento que continua no silêncio estático de sua formação social. Ou seja, assim como pessoas brancas não se veem como pessoas Gabriel Ribeiro da Silva | 303 racializadas e tomam a decisão de não falar sobre raça, o campo de estudos sobre a branquitude acaba se encontrando nesse mesmo local de "ninguéndade",2 de desconhecimento e principalmente de desimportância. Portanto, esse ensaio pretende contribuir para algumas diretrizes do campo de estudo e sobretudo salientar a racialização de brancos e brancas. O campo da branquitude A branquitude como campo de pesquisa foi idealizada, primordialmente, por pessoas que não são consideradas cientistas: negros e negras. Lourenço Cardoso, em uma investigação específica sobre a afirmação acima, salienta que ao pesquisar com pessoas brancas que pesquisam pessoas negras, enfrentou problemas estruturais, onde parecia improvável o estudo centrado nas pessoas brancas como um problema das relações raciais. Ele afirma: "no ambiente acadêmico, ser branco significa ser cientista, o cérebro, aquele que produz o conhecimento" (CARDOSO, 2020, p. 17). Cardoso, como um pesquisador negro, seria uma "ameba revoltada", desencadeando a "revolta do micróbio", porque estaria revertendo a ordem dos estudos das relações raciais no Brasil: o estudado estudando o estudioso (ou seja, o negro estudando o branco). A ousadia de reverter o objeto, ocorreu primeiramente com o sociólogo estadunidense W. E. B. Du Bois. Em alguns ensaios e principalmente em duas obras principais entre 1920 e 1935, ele compreendeu que trabalhadores brancos dos Estados Unidos, mesmo exercendo a mesma função de trabalhadores negros e recebendo salários tão baixo quanto o deles, detinham de melhores condições de trabalho, 2 Conceito travado por Lourenço Cardoso como resposta à questão: “existe branco no Brasil?”, e a resposta ser “não” é atribuir isso a uma “ninguendade” que apenas pessoas racialmente brancas podem se colocar. Ver mais: CARDOSO, 2020, p.42-43. 304 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS sendo direcionados para esferas públicas bem localizadas e urbanizadas, o que Du Bois chamou de "salário psicológico" (DU BOIS, 1995, p. 700–701). Assim como os esforços não-ficcionais de James Baldwin, em 1963, ao localizar os problemas de humanidade das pessoas brancas estadunidenses, que praticaram durante século ações de terrorismo contra a população negra através da escravidão, assassinatos, estupros e políticas de permanência sub-humana de pessoas racializadas (BALDWIN, 1963, p. 22). Academicamente, o campo Whiteness studies, em contexto estadunidense, começou a reverberar entre cientistas brancos e brancas, onde se destaca as obras de Ruth Frankenberg e David Roediger. Em meados dos anos 1990, nas universidades americanas, fortalecem-se as tendências de investigação em que o branco é tomado como objeto de estudo. Esses trabalhos ficaram conhecidos como estudos críticos da branquitude. A formulação e a aplicação do conceito branquitude alterou o modo como se pesquisava a categoria raça na sociedade estadunidense. Antes se presumia que a abordagem sobre as relações raciais deveria se restringir aos grupos classificados como negros, e/ou grupos não-brancos, contudo, as pesquisas acerca da identidade racial branca evidenciaram que, como com qualquer outro grupo étnico e racial, o estudo sobre as relações raciais se beneficia com a pesquisa sobre o branco (CARDOSO, 2008, p. 174). No Brasil, embora tenhamos a compreensão das influências dos Whiteness studies e incorporarmos as críticas e reflexões nas análises, as contribuições também são anteriores aos anos 1990. A obra “Patologia social do ‘branco’ brasileiro” do sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos, em 1957, se torna pioneira por dois pontos. O primeiro, seria que o artigo trazia uma análise completamente diferenciada sobre a presença das pessoas brancas na sociedade brasileira. Além do caráter econômico, como colaborado por Du Bois, Guerreiro pauta a questão da dominação Gabriel Ribeiro da Silva | 305 social por pessoas brancas a partir de elementos fixados em violência e um sistema de pseudojustificações que causaria os estereótipos da sociedade brasileira. Tudo isso seria fruto de uma patologia social que levaria brancos/brancas a negarem sua descendência negra, sendo o "pardo" se classificando como branco, o negro sendo classificado como pardo e toda a população negra brasileira desaparecendo por conta de um embranquecimento patológico (RAMOS, 1995, p. 215-240). Em segundo, por conta do impacto social que o artigo teve no meio acadêmico brasileiro, sendo fruto de uma luta do movimento negro, do qual, no momento, Ramos fazia parte. A teoria influenciou o movimento negro a estimular o estudo da presença do branco nos problemas das relações raciais nos anos posteriores, principalmente na área da Sociologia (CARDOSO, 2008, p. 188). Os esforços de Guerreiro Ramos desencadearam obras importantes para a formação do campo da branquitude no Brasil. A tese de 2002 da psicóloga e integrante do movimento negro Maria Aparecida da Silva Bento, foi a primeira pesquisa de fôlego sobre a temática e permaneceu com essa posição durante anos na academia brasileira. Bento investigou como funcionários públicos brancos da área de Recursos Humanos de dois municípios, discursam e versam suas escolhas para o mercado de trabalho a partir do pertencimento racial. A escolha desses trabalhadores fica a cargo de um pacto narciso que pessoas brancas têm em empregar outras pessoas brancas por conta da confiança e cumplicidade que o branco lhe transmite (BENTO, 2002, p. 70-120). Essa ação, para Bento, é balizadora para a manutenção da hierarquia racial que sobrepõe as pessoas brancas em um sistema de privilégios raciais, materiais e simbólicos palpáveis. As pessoas brancas seriam, portanto, as únicas pessoas possíveis de conseguir esses empregos, sendo assim, produzindo a manutenção de suas posições sociais e econômicas de poder (CARDOSO, 2008, p. 198-199). 306 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Após a publicação da tese, Bento colaborou em alguns trabalhos juntamente com Iray Carone, explorando em alguns pontos as reflexões anteriores no livro “Psicologia social do racismo”, principalmente sobre sua atuação como coordenadora no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Na comunicação social, é importante salientar as visões críticas de Liv Sovik entre 2002 e 2004 sobre a influência da mídia na manutenção de estereótipos e padrões sociais, bem como sua defesa pela branquitude como um campo de pesquisa (CARDOSO, 2008, p. 189). Os anos 2010, para o campo da branquitude, se mostrou mais fértil e promissor para revisões teóricas e aumento da produção bibliográfica. Em 2012, Lia Vainer Schucman se torna a primeira pesquisadora branca a defender uma tese de doutorado sobre branquitude na Psicologia Social. A premissa de sua pesquisa foi entender as diferenciações que representações de corporeidade que traz a noção de raça e classe social podem formular uma hierarquia racial entre pessoas brancas na cidade de São Paulo. Além dos resultados, Schucman trouxe elementos importantes para o processo de pesquisa na temática, como por ser branca (o mesmo foi sinalizado por Edith Piza), ter facilidades na hora de acessar pessoas brancas, aplicar os questionários ou manter diálogo com interlocutores/as (CARDOSO, 2020, p. 151). Um ano depois, mais uma pesquisadora branca defende uma tese no Serviço Social. Ana Helena Ithamar Passos salienta a importância de uma nova forma de racialização para a compreensão das relações raciais, e para isso, ela fez um trabalho de reflexão sobre a identidade racial branca com estudantes brancos/as que se viram confrontados com as teorias da branquitude, trazendo negação, autocrítica e uma interpretação da racialização brasileira de pessoas brancas mesclada com classe. Depois de Passos, alguns trabalhos estavam sendo desenvolvidos. Gabriel Ribeiro da Silva | 307 Em 2014, o sociólogo Lourenço Cardoso defende e publica sua tese, depois lançada em livro com o título “O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional”, em 2020. O objetivo da pesquisa foi entrevistar uma gama de pesquisadores/as brancos/as que consequentemente investigam "o negro brasileiro" e questionar o porquê eles/elas esquecem de si. Lourenço tensiona as motivações de pessoas brancas cientistas em debruçar-se sobre as pessoas negras como um tema de pesquisa, articulando isso com a teoria crítica da branquitude. Sugiro que esse tenha sido o estudo de maior impacto no quesito de extrapolar as possibilidades teóricas do campo da branquitude. Somando sua formação de historiador, Lourenço utilizou da literatura acadêmica sobre a construção da sociedade brasileira e conseguiu traçar a formação histórica da população branca, utilizando da teoria dos "degredados" que formaram as colônias após a invasão de Portugal no, hoje em dia, chamado Brasil (CARDOSO, 2020, p. 25-68). Esse ponto histórico de pessoas brancas é crucial para uma possibilidade de pesquisa histórica com investigação em documentações e outras fontes. Por ser um ponto importante, retomarei de forma detalhada no próximo subtítulo abaixo. As produções que utilizaram o campo da branquitude como temática ou teoria crítica, cresceram de forma contundente a partir de 2014. Em uma pesquisa no portal Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, com a palavra-chave "Branquitude", foram encontrados 71 trabalhos entre dissertações ou teses sobre o tema entre 2000 e 2019. Entre 2000 e 2013, foram registradas a produção de uma ou duas investigações do tema por ano, sendo em 2001, 2004, 2006 e 2008 sem registro algum no portal. Como afirmado acima, depois de 2014, as pesquisas cresceram de forma notável, tendo o recorde de 23 teses ou dissertações apenas em 2018. Em relação às áreas, se destaca em primeiro lugar a Educação, e logo em 308 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS seguida, disputam a Psicologia e a Sociologia. Sobre teses e dissertações na área da História, encontra-se apenas 5. Para lisura, apontarei as contribuições desses trabalhos.3 A primeira obra da área de História de 2016, escrita por Beatriz Floôr Quadrado, investiga o concurso de beleza “Miss Mulata” na cidade de Arroio Grande, interior do Rio Grande do Sul. Essa terminologia "mulata", ao se referir a mulheres negras, seria uma maneira de ser negra e "menos preta", ou seja, mais perto do que a autora denomina "branquitude normativa" por ter a estética branca como representante de humanidade (QUADRADO, 2016, p. 45-92). Em 2017, Aline Dias dos Santos investigou a forma que mulheres negras são representadas em livros didáticos de História do ensino médio como pessoas subalternizadas. Por ser em pequeno número a referência a mulheres negras, Santos faz uma relação com a permanência da branquitude e da colonialidade para tal feito (SANTOS, 2017, p 71-140). No mesmo ano, Rafael Filter Santos da Silva apresentou uma investigação sobre a construção da branquitude e da negritude nos Estados Unidos a partir das noções religiosas da Nação do Islã (SILVA, 2017, p. 31-43). Já em 2019, Kerollainy Rosa Schütz investigou sobre o ensino da história indígena em cursos de ensino superior em História, e o impacto na vida de estudantes brancos através do estudo crítico da branquitude (SCHÜTZ, 2019, p. 65-73). E a última dissertação sobre o tema na História, também de 2019, investigada por Fábio Dantas Rocha, conseguiu sinalizar conflitos raciais entre brancos pobres e pessoas negras descendentes de escravizados no final do século XIX e metade do XX (ROCHA, 2019, p. 153-203). Essas obras salientam que a área da História, enquanto ciência, está de forma inicial, incorporando as teorias dos estudos críticos da 3 Dados recolhidos do site Catálogo de Teses & Dissertações - CAPES.<catalogodeteses.capes.gov.br>. Acesso em: 24 de novembro de 2020. Gabriel Ribeiro da Silva | 309 branquitude em suas reflexões. Porém, todas as cinco obras citadas acima não usam as pessoas brancas como ponto principal de análise. Ou seja, não fazem uma plena interpretação histórica sobre a composição dessas pessoas enquanto grupo privilegiado de forma racial, material e simbólica. Os cinco trabalhos utilizam o "outro", que seria as pessoas negras ou indígenas, como contraponto para compreender as atitudes racistas ou racialistas da branquitude. A análise é digna e necessária, mas não consegue incorporar as preocupações do campo da branquitude, que está nas vias de investigar a fundo a construção social e histórica de um grupo racial ainda em plena análise: a população branca. Construção histórica de pessoas brancas brasileiras Consigo perceber que compreender as formas históricas que foram constituídos todos os atributos sociais de pessoas brancas brasileiras em nosso contexto, é necessário para uma ampla discussão e debate sobre o campo da branquitude de forma científica. Como percebemos acima, as pesquisas históricas que utilizam os estudos críticos da branquitude ainda não se encontram em plena problemática sobre desvendar a historicidade da população branca. Tal fato é compreensível, se analisarmos a rota do caminho percorrido pela temática na academia brasileira, iniciado de forma contundente após os anos 2000 no âmbito da Psicologia Social. Internacionalmente, temos alguns trabalhos que auxiliam na “história das pessoas brancas”, de alguma forma. A obra The History of White People, da historiadora estadunidense Nell Irvin Painter, de 2010, acompanha a trajetória de pessoas que hoje em dia são racialmente conhecidas como brancas desde os primórdios da Grécia antiga, onde não existia a ideia de raça social, apenas de classe e etnia, e até a constituição do “homem branco livre”, que surgiu nos Estados Unidos no fim do século XVIII e reverbera até hoje (PAINTER, 2010). Já no Brasil, não existe um 310 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS livro que se debruce sobre essas especificidades, mas há uma incansável literatura científica que indica os primórdios da chegada de pessoas brancas no Brasil, antes mesmo do início da colonização com a invasão portuguesa. Resgatar, unir e dar uma nova interpretação a essas obras é um trabalho necessário para uma mudança metodológica que insira os estudos críticos da branquitude enquanto elemento chave na historiografia brasileira. O início para a compreensão histórica dessa população a partir dos estudos críticos da branquitude, foi organizada no livro “O branco ante a rebeldia do desejo”, do sociólogo Lourenço Cardoso, já citado anteriormente. Na pesquisa, ele reúne literários brasileiros que escreveram livros considerados “canônicos” sobre a história do Brasil, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e elabora características pontuais que esses autores escreveram e traça um panorama histórico do que ele chama de “A construção histórica do branco não branco” (CARDOSO, 2020, p. 27). Sua principal teoria é que, segundo esses autores, o "branco brasileiro" é miscigenado, e não por conta apenas dos processos históricos do Brasil, mas pela sua história no "Velho Mundo". Uma parcela das pessoas brancas brasileiras, seriam descendentes diretas de portugueses/as que vieram de forma "degradada" para o Brasil. Em Portugal, essas pessoas, de certa forma europeias também, eram vistas pelas grandes potências brancas como "os negros", pois tinham uma "mistura" cultural e biológica com mouros, asiáticos e africanos. Ou seja, no outro lado do oceano, descendentes das pessoas brancas brasileiras eram vistos politicamente como "brancos-não brancos". Cardoso afirma que as pessoas ibéricas só se transformaram brancas em sua plenitude, ao entrarem em contato com pessoas não-brancas na América, especialmente no Brasil, a partir do contato com indígenas e do sequestro de pessoas africanas. Gabriel Ribeiro da Silva | 311 De forma geral, o branco não-branco, ou “branco-Aqui”, que colonizou, “civilizou,” terra e gente, no futuro, seus descendentes tornar-se-ão brancos brasileiros, quando o fenótipo permitir, principalmente. Os brancos não se tornarão identidades “hifenizadas”, como é o caso dos afro-brasileiros, quando se refere somente aos negros, tornar-se-ão apenas brancos, “brancosAqui”. Porém, em outros espaços territoriais podem ser considerados nãobrancos, como é o caso da Inglaterra, em que o branco-Aqui (Brasil), pode ser considerado um não-branco-Lá (Inglaterra) (CARDOSO, 2020, p. 30). Essas afirmações e teorias são inspiradas na vasta produção sociológica e historiográfica sobre a "composição do povo brasileiro". Embora se entenda a posição "não-branca" do "branco brasileiro", principalmente em contexto internacional, a discussão se torna complexa quando mesmo com essa afirmação, essas pessoas continuam com um aparato estático de privilégios raciais materiais e simbólicos. Esse tipo de discurso pode criar uma complexidade de auto-afirmação que por um longo período, tem sido uma reivindicação constante do movimento negro brasileiro e de outras pessoas que não detém os privilégios raciais da branquitude. Conforme afirmado, essas investigações sobre a construção histórica da população branca brasileira precisam ser levadas como um ponto essencial para a engrenada dos estudos críticos da branquitude na historiografia brasileira. O documento e as possibilidades Encontrei esse documento no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, na época da investigação do meu Mestrado em História. Eu procurava por casos que mostrassem conflitos raciais entre os anos de 1964 e 1985. Achei esse. O inquérito criminal foi aberto contra um homem de cor “preto” em sua ficha, que ao entrar em um bar, do qual era frequentador assíduo, esfaqueou a atendente. No momento, estavam mais cinco homens no local, 312 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS e após a facada, o homem foi linchado e espancado até a chegada da polícia. O motivo do esfaqueamento foi passional, pois a atendente era sua companheira e não queria mais relacionamento, e além do mais, a atendente era branca. Por certo, localizei o caso como feminicídio, pois a mulher acabou falecendo, como relata o documento. E assim como racismo, pela forma como um homem “preto” foi tratado e principalmente pelo fato de o documento não fazer menção aos cinco homens que estavam presentes, lincharam o réu e poderiam constar como testemunha do caso. A partir de então, o caso começou a ficar complexo, principalmente pela sua composição. Ao analisá-lo, de início, percebi que ele poderia estar incompleto, pois os dados que constam são apenas: relatório do caso, constando detalhamento dos acontecimentos, porém, uma ocultação de quem prestou as informações; o exame de corpo de delito da atendente esfaqueada; a ficha do homem que esfaqueou e sua sentença de prisão. As alegações da Delegacia de Polícia de Porto Alegre, é que não encontrou os homens que proferiram o linchamento. Essa documentação, além de trazer pontos essenciais para o entendimento do feminicídio passional e do racismo, também traz uma possibilidade para analisar a fundamentação da documentação e possivelmente a composição racial dos homens que proferiram o linchamento. O estabelecimento se encontrava no Centro Histórico da cidade de Porto Alegre, na Rua da Praia, no ano de 1965, que segundo relatos, localizava o reduto da intelectualidade portoalegrense (FRANCO, 2006, p. 29-31). Cardoso nos lembra que a intelectualidade e a posição científica sempre é somada a pessoas brancas (CARDOSO, 2020, p. 17). Por conta da branquitude ser uma racialização complexa, é necessário que tenhamos a possibilidade de investigar sua historicidade através de uma subjetividade da sua sociabilidade. A pesquisadora Priscila Elisabete da Silva afirma que a branquitude é um dispositivo analítico, e por conta Gabriel Ribeiro da Silva | 313 disso, a “subjetividade do branco” se torna essencial especialmente em contextos aparentemente não racializados, (SILVA, 2017, p. 20) mas que tragam indícios onde possa reverberar as principais característica do grupo no meio social: o privilégio. Um homem de cor “preta”, sendo linchado por cinco homens desconhecidos após esfaquear uma mulher de cor branca em um local marcado por um perfil social “intelectual”, nos traz subjetividades necessárias para contestar uma documentação que se mostrou neutra na sua judicialização. Assim como o serviço público compactua com um “pacto narciso”, como pontua Maria Aparecida Bento, (BENTO, 2002, p. 70-120) esses elementos também refletem na busca histórica pela “subjetividade do branco” na vida cotidiana. O ponto de o caso ter um relatório expondo os “fatos” do caso, mostram que algumas pessoas, sem ser o réu e a vítima, estavam prestando informações para a judicialização. A versão e a análise do réu sobre o caso – homem de cor “preta” que esfaqueou uma mulher branca – consta apenas em sua ficha de indiciado. E a mulher de cor branca que foi esfaqueada, estava impossibilitada de prestar depoimento. Por conta disso, é importante análises profundas, que podem ser locais onde a racialização, quando não for “negra”, escracham privilégios raciais simbólicos e materiais, influenciando decisões extremas, pois ser branco na sociedade brasileira “significa obter vantagens econômicas, jurídicas, e se apropriar de territórios dos Outros” (CARDOSO, 2020, p. 12). Considerações finais Há possibilidades de encontrarmos, em contextos históricos, a presença da população branca com interpretações pautadas a partir dos estudos críticos da branquitude. Defendo que essa seja a possibilidade mais latente para uma amplificação dos estudos das relações raciais no Brasil, que deveria ser um pilar metodológico para as interpretações 314 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS historiográficas em todos os âmbitos e contextos históricos de nossa História. Assim como todos, o campo de estudo da branquitude não é consolidado e tão pouco há um acordo mútuo sobre suas possibilidades e interpretações. O que conseguimos perceber nesse ensaio, é que os estudos críticos tem uma presença inicial quando usado como teoria crítica, principalmente no que concerne as mazelas que a branquitude causa na vida e sociabilização de pessoas que não são brancas. Porém, há uma menor análise no que se refere às vias abertas das críticas e pesquisas feitas. A primeira diz respeito à historicidade desse grupo racial em contexto brasileiro, pois no que foi elencado acima, apenas uma das produções conseguiu abrir perspectiva sobre o quesito até então. Em segundo, a carência de circunstância para admitir o campo de estudo da branquitude como um dispositivo analítico próprio, com metodologias e epistemologias, como sugere apenas um dos estudos também expostos acima. O que foi elucidado como exemplificação com o documento, mostra que há passos analíticos essenciais para conseguir perceber a presença de pessoas brancas em contexto de cotidiano, tendo em vista que essas pessoas não são racializadas de forma expositiva, pois não enfrentam um fenômeno extremo que pessoas não-brancas vivenciam: o racismo. Portanto, é necessário o entendimento das subjetividades e dos contextos sociais que agentes históricos estão inseridos, pois na realidade brasileira, o “lugar natural”, pensado por Lélia González, funciona de forma contundente. O lugar do “dominador”, sempre são locais requintados dos centros urbanos ou grandes redutos rurais cheio de “serviçais”, já o lugar do “dominado” sempre são lugares de subalternidade e periferia, seja em grandes centros urbanos ou em âmbitos rurais. O que precisamos compreender é que, na sociedade brasileira, existe a divisão racial do Gabriel Ribeiro da Silva | 315 espaço, e ela é fundamental de ser levada em consideração para conseguirmos localizar as pessoas brancas e racializá-las (GONZALEZ, 1982, p. 15). Referências BALDWIN, James. The Fire Next Time. Nova Iorque: Dial Press, 1963. BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2002. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, p. 25-58, 2002. CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (Período: 1957-2007). 2008. Dissertação. Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2008. CARDOSO, Lourenço da Conceição. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional. A branqitude acadêmica: volume 2. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020. CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Editora Vozes Limitada, 2017. DU BOIS, W. E. B. Black Reconstruction in America, 1860–1880. Nova Iorque: Free Press, 1995. FRANCO, Sérgio da Costa. Guia Histórico de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2006. GONZALEZ, Lélia. O movimento negro na última década. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. 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Dissertação (Mestrado em História), Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. SCHÜTZ, Kerollainy Rosa. A Lei 11.645/2008 e a História Indígena no contexto dos cursos de graduação em História das Universidades Públicas em Florianópolis (2006-2018): reflexões e perspectivas. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, 2019. SILVA, Priscila Elisabete da. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In: MULLER, Tânia Pedroso; CARDOSO, Lourenço. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. 1. ed. Curitiba: Appris, 2017, pp. 19-32. SILVA, Rafael Filter Santos da. O nacionalismo preto da Nação do Islã: entre Pretos divinos e negros fragmentados. 155 f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de PósGraduação em História, Porto Alegre, BR-RS, 2017. Capítulo XVIII A mais velha e justa inspiração: Uma análise das relações raciais no Vale do Rio Pardo a partir dos clubes negros Helen da Silva Silveira 1 O presente artigo aborda as reflexões e resultados parciais de uma pesquisa sobre associativismo negro e projetos de liberdade no pósabolição no Vale do Rio Pardo, interior do Rio Grande do Sul. Nesta pesquisa são abordados os clubes sociais negros Négo Foot Ball Club fundado em 1935 na cidade de Venâncio Aires e Sociedade Cultural Beneficente União criada em 1923 na cidade de Santa Cruz do Sul. O objetivo é analisar algumas nuances da relação entre negros e teutobrasileiros no contexto pós-abolição nestas cidades marcadas pela imigração alemã. Em 22 de abril de 1922, três amigos estavam conversando sobre as preocupações com as brigas e desavenças existentes entre a sociedade 15 de novembro e a sociedade Rio Branco duas sociedades que eram a “forssa viva da cor preta” de Santa Cruz do Sul. Conversa vai, conversa vem estes três amigos, os cidadãos João Lopes, Jovenal Bibiano e Romualdo Ferreira tiveram uma ideia luminosa. E se a gente propusesse a que estas duas sociedades se juntassem para criar uma só e mais forte e colocar “fim às entrigas existentes em nossa classe” convidando os dois presidentes para se unir nesta nova sociedade. A ideia pareceu muito interessante, então os três amigos decidiram leva-la adiante e fizeram uma reunião na casa do sr. Romualdo, na rua 1 Mestranda- UFRGS; E-mail:helen.dasilvasilveira@gmail.com 318 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Thomaz Flores e Deus que “ vigia os ricos, mas ama os que vem do gueto” estava ao lado deles e com a ajuda do seu João Garibaldi um cidadão que possuía alguns recursos se prontificou a fazer uma sede para o clube, na rua Carlos Trein que a princípio que se chamaria Progresso e União, mas o que prevaleceu foi a união, portanto o nome que prevaleceu foi Club União. Depois de alguns meses de preparação que devem ter envolvido convites e chamamentos chegou o tão esperado dia 1º julho de 1923, o dia da fundação e posse da 1º diretoria do então Sport Club União. A primeira diretoria foi composta de: João Garibaldi (Presidente), João Antônio Lopes (Vice-Presidente), Olmiro Bastos (1º secretario), Manuel Flores (Fiscal Geral), França Garibaldi (1º capitão), Agenor Garibaldi (2º capitão), Ari do Prado, Jorge Antônio Machado, João Generso, Otacilio da Silva e Graciano Benevite de Oliveira. Anos mais tarde, no início da década de 1930, Ataliba Rodrigues um atleta jogador do time futebol Guarani de Venâncio Aires foi alvo de racismo durante um jogo no qual atuava como goleiro. Na situação o time estava perdendo para o time adversário e a torcida entendeu aquilo como culpa do goleiro e começo a ofende-lo com chigamentos racistas. Como disse o seu sobrinho Leobaldo Rodrigues: “ele era um homem de sangue nas veias” que tirou a camiseta do time e saiu de campo. Como forma de apoio, a ala negra da torcida se retirou do estádio. Este evento, somado à restrição de muitos clubes que proibiam a entrada de negros e a vontade destes de ter um espaço seu, culminou na fundação da Sociedade Négo Foot Ball Club São Sebastião Mártir em 1935, na casa do casal João Generoso e Maria Generosa dos Santos, sendo este senhor o presidente. Ataliba Rodrigues também estava nesta fundação, assim como sua esposa Maria Francisca Rodrigues, assim como Amaro da Luz e José de Sá. Muito provavelmente também por João Francisco, Chim de Amorim, Amaro P. da Silva, Ambrósio P. da Costa, Martin Adelino, Helen da Silva Silveira | 319 Frontino M. Crispim, Joao Argenor da Rosa, Simão M. Crispim, João da Silva, Hermínio A. de Borba, Theodoro J. da Silva, Adelino P. da Costa e Juvelino Dias. Este são os nomes que constam no registro mais antigo do livro de atas do clube, na data de 26 de julho de 1936. Segundo o estatuto da sociedade, datado de 17 de dezembro de 1936, os seus propósitos eram recreativos e desportivos aliados à cultura física e intelectual. Os dois clubes, apesar de serem de cidades vizinhas, foram fundados em dois momentos radicalmente diferentes entre si. Com arranjos políticos e ideológicos muito diferentes. Na década de 1920 a política do Café com Leite direcionava os rumos dos governos central e estaduais do país. Em 1930, a chamada Revolução de 1930 instituiu o início da Era Vargas. Ideologicamente anos de 1920, assim como as décadas anteriores desde a Abolição foi marcada pela ideologia do branqueamento que visava branquear a população a partir da importação de imigrantes europeus. Em contrapartida, nos anos de 1930 surge a Democracia Racial que colocava que no Brasil não haveria mais preconceito de cor e que as três raças, branca, negra e indígena, teriam se misturado espontaneamente e dado origem a raça brasileira. A sua forma e seu jeito as duas entidades procuraram fazer de sua fundação um ato político, como uma ideia luminosa de cidadãos que estavam procurando coletivizar a liberdade a partir de um lugar que pudesse abrigar seus projetos de educação, sociabilidade, esporte e etc. Porém, as relações étnico-raciais são mais complexas do que parecem à primeira vista, pois não se pode interpreta-las como estanques e rigidamente delimitadas. Como dois senhores de oitentas anos de existência estes clubes possuem momentos e fatos de sobra para refletirmos sobre um ponto muito sensível sobre clubes negros em regiões de imigração alemã, a relação entre negros e teuto-brasileiros. Como podemos ver no relato sobre a fundação da Sociedade Négo, um dos 320 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS aspectos desta relação bastante evidente é o conflito. Um conflito que podia se expressar de forma explicita como na situação envolvendo o jogador Ataliba ou um conflito mais velado. Em uma de suas entrevistas, Maria Thereza da Silva, avó desta autora, diz que “A gente não podia frequentar... O motivo que eles diziam era sobre a raça né a raça negra. Tanto que o Clube não deixava ninguém entrar.” (Entrevista concedida em 08 de fevereiro de 2016). O Clube ao qual Maria Thereza se refere é a Sociedade de Leituras, criada em 30 de abril de 1887, por homens com sobrenome de origem alemã, que chegou a funcionar na então rua principal da cidade, 28 de setembro, e já em 1920 possuía uma sede própria. Esta sociedade sempre se configurou como um clube de elite e aqueles que desejavam se associar passavam por uma seleção que não permitia a entrada de negros e negras em suas festividades. A proibição de pessoas negras frequentarem outros clubes não é novidade, esta forma de conflito permeia a criação de praticamente todos as entidades negras e já foi amplamente discutida, mas nesse caso, o ingrediente a mais é conflito com imigrantes e/ou seus descendentes. Neste caso não se trata apenas de brancos e negros, mas sim de brancos estrangeiros e negros, ou seja, há uma diferenciação de cor, mas também de nacionalidade. Ao pensar a cidade de Novo Hamburgo, que é uma cidade do Rio Grande do Sul que também possui também forte presença da imigração, Magna Magalhães coloca que cidade construiu a sua memória selecionando quem seriam seus habitantes. A retórica do desenvolvimento relacionava-se a um “povo laborioso” [...] Negava-se a visibilidade aos luso brasileiros, aos indígenas e aos negros escravos. Assim, a constituição histórica da cidade de Novo Hamburgo não difere do restante da região do Vale do Rio dos Sinos, que, a partir de uma Helen da Silva Silveira | 321 memória oficializada, nega a visibilidade de diferentes sujeitos históricos, os quais antecedem a chegada dos imigrantes alemães, ou que atuaram no mesmo cenário. (MAGALHÃES, 2010, p. 73). É como se a constituição social destas cidades estivesse calcada em outros elementos que destoam daqueles no quais estão calcados o restante do país. Esta é uma das consequências da imigração que serviu também para demarcar melhor as noções de raça que seria hierarquizada tendo estes imigrantes brancos no topo da pirâmide. Isto é o denominamos racialização um processo fundamental para entender pós-abolição, haja vista que, é essa hierarquização que baliza as noções de superioridade branca e inferioridade negra presentes no racismo e também presentes nestes conflitos acima mencionados. Todavia, elas não representam o todo das relações inter-raciais e étnicas, dado que o formato do racismo no Brasil não permite conflitos abertos o tempo todo. É o que Lélia González chama de Racismo por Denegação, um racismo mais disfarçado e implícito característico dos países latino-americanos nos quais prevalecem as teorias de miscigenação e assimilação. Este tipo de racismo tem um aspecto interessante, a negociação que no caso dos clubes aqui estudados pode ser vista a partir uma questão, a construção de suas sedes. Se levarmos em conta a precariedade que estava sujeita esta população, onde os recursos financeiros não eram abundantes, como eles conseguiam adquirir uma sede própria? Bem, em muitos casos nos primeiros anos a sede social não era própria, haja vista que isso envolve custos, mas sim alugada. Muitas entidades recorriam ao aluguel de salões de festas para promover seus eventos. Em Novo Hamburgo, por exemplo, o clube Cruzeiro do Sul se utilizava deste recurso para poder funcionar: 322 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS O salão de propriedade de Lúcio Rodrigues configurou um espaço acolhedor não só do bloco Os Leões e das festividades voltadas para o carnaval, mas também para as diferentes festas promovidas pela Sociedade Cruzeiro do Sul. Como mencionamos anteriormente, o salão era alugado para a promoção dos eventos. (MAGALHÃES, 2017, p.117). Desta forma, os clubes recorriam a espaços da cidade que já eram conhecidos por sediar atividades culturais. Mas isso não significava uma condição permanente, pois haviam mobilizações importantes para que conseguissem ter seus próprios espaços. Ao pesquisar os clubes uruguaios que faziam fronteira com o Brasil, Fernanda Silva, coloca que um dos meios utilizados para angariar fundos era a criação de jornais: é importante não perder de vista que o periódico Acción tinha um objetivo bastante específico: “ser porta-voz do comitê em prol da construção da sede própria do clube.” (SILVA, 2017, p. 114). Em Venâncio Aires, a sociedade Négo teve como sua primeira sede a casa de João Generoso e Maria Generosa dos Santos, que tinham o direito de usá-lo com outras finalidades quando o clube não estivesse realizando atividade. Anos mais tarde, o clube conseguiria adquirir seu espaço, que se localizaria na rua Emiliano de Macedo, e ali permaneceria por alguns anos. Já na década de 1970, os administradores da entidade fariam um acordo com a prefeitura que estava interessada no terreno atual do clube. Em troca deste, o município daria um outro terreno e a mão de obra para que fosse erguida a terceira e definitiva sede social do clube. Este projeto teve envolvimento inclusive do avô desta autora. Luiz da Silva, que era funcionário público da cidade, foi designado como mestre de obras e chefiou a construção nos anos de 1970. No mapa a seguir é possível visualizar os endereços do clube ao longo do tempo: Helen da Silva Silveira | 323 Mapa 1: Localização das sedes da Sociedade Négo Foot Bal Club na cidade de Venâncio Aires, RS Fonte: Feito por Felipe F. Brunhauser, gerado a partir das mapa produzido a partir do programa Quantum GIS, dados coletados da plataforma Open Street Map. Já no caso do seu vizinho co-irmão União, a primeira sede foi construída por um dos sócios fundadores, o senhor João Garibaldi. Mas a atual sede foi erguida a partir do angariamento de fundos, o que pode ser constatado no Livro Ouro da entidade. Indo ao encontro da mais velha e justa aspiração desta Sociedade a Deretoria que neste anno dirige os destinos desta collectividade, resolve empreender aconstrução de sua sede própria apelando para o concursso de seus associados e bem assim a todos os admiradores Organiza livro de contribuições foram ellas levadas a todos aquelles a quem esta Sociedade sabia possuir um socio fervoroso, ou um admirador sincero e enthusiata. Coroada tal iniciativa do maior socio e resolveu a Directoria criar o presente “livro de Ouro” onde ficarão consignados os nomes de todos aqueles que concorreram para tão altruísta iniciativa, bem como o quantuim da contribuição feita. (Termo de Abertura do Livro Ouro da Sociedade Cultural Beneficente União, 1940). 324 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Este livro contém informações valiosas, que ajudam a entender melhor como um clube social consegue adquirir espaço próprio. Nele constam doações de sócios e de estabelecimentos comerciais da cidade. Entre os muitos nomes de estabelecimento, alguns me chamaram atenção por terem nomes alemães. Levando em conta o contexto explicitado em que ocorria a fundação das organizações negras, é interessante refletir sobre por que estabelecimentos comerciais de imigrantes ou ainda de teuto-brasileiros fizeram contribuições para a construção de uma sede social de um clube negro. Principalmente se levarmos em conta que alguns destes empresários faziam parte da elite burguesa local2 e a cidade de Santa Cruz do Sul abrigou células do Partido Nazista e do Partido Integralista na década de 1930. Esta é uma questão que me custou horas e muitas xícaras de chá e ainda assim não foi suficiente. Confesso que não acharia ruim se fossem adicionadas nas fontes algumas linhas explicando o porquê de algumas coisas. O que me coube foi dividir minhas dúvidas com as colegas pesquisadoras que possuem mais experiência de pesquisa do que eu, o que de fato foi produtivo. Ao mostrar minhas fontes pera as colegas Franciele Oliveira e Fernanda da Silva em momentos distintos, as duas me ofereceram a mesma hipótese: Será que não havia sócios do clube que fossem funcionários nestes estabelecimentos, por isso transformavam uma parte do salário destes trabalhadores em contribuição a pedido dos mesmos? Além disso, que os patrões fizessem contribuições para manter relações paternalistas com os empregados negros? Se tratava de uma hipótese plausível. E me ajudou inclusive a ler a fonte com outros olhos e entender que o que eu gostaria que tivesse sido 2 Cf; NORONHA, Andrius Estevam. Beneméritos Empresários: história social de uma elite de origem imigrante do sul do Brasil (Santa Cruz do Sul, 1905-1966). Tese (Doutorado em História). Universidade de Santa Cruz do Sul. Santa Cruz do Sul, 2012. Helen da Silva Silveira | 325 escrito de fato foi, mas não como eu estava procurando. No termo de abertura citado acima consta: “Organiza livro de contribuições foram ellas levadas a todos aquelles a quem esta Sociedade sabia possuir um socio fervoroso”, ou seja, é possível que os donos dos estabelecimentos Hoppe e Cia, Frederico Rech, Samuel Kremermam, entre os de nomes germânicos pudessem ter funcionários negros que eram sócios do clube. Mas como coloca o documento era preciso ter um administrador sincero e entusiasta, ou seja, além de ter funcionários negros tinha que se dispor, e talvez entre os muitos motivos de tal simpatia tenha esteja uma possível vantagem em converter parte dos salários em doações para o clube. Outra possibilidade, é que os valores sejam referentes a algum material doado, não sendo necessariamente dinheiro em espécie. Neste caso temos um elemento que considero importante nas relações inter-étnicas de sociedade que se desenvolveram sob o signo da escravidão, o paternalismo. Os estudos sobre o período escravista, mostraram que as relações entre senhores e escravizados tendiam a envolver este componente. Segundo Chiga: O paternalismo foi uma forma de dominação pessoal que reconhece em atitudes supostamente beneficiadoras para o escravo, mas apenas na ótica do senhor, e que busca, com uma enganosa benevolência, expandir seu campo com maior eficácia, dentro de relações sociais, o já desgastado poder de atuação senhorial no mando de trabalho aos escravos. (Chiga, 2009,p. 10). Desta forma o paternalismo passava uma falsa ideia de benevolência senhorial, mas na verdade trazia muitas vantagens ao mesmo, já que contribuiu na criação de um vínculo e dever do escravo com o seu senhor. No entanto, os mesmos estudos da escravidão mostraram que não podemos tomar os escravizados como ingênuos, em razão de que eles sabiam como tais situações poderiam ser vantajosas. No pós-abolição em 326 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS que o status jurídico iguala a todos, mas a raça diferencia socialmente o paternalismo é possível a medida que há um desnível entre os grupos sociais, assim quando um comerciante e ou patrão faz uma possível doação para a construção de um clube negro este dificilmente não o faz porque é benevolente, mas porque vê nesta situação uma contrapartida que neste caso pode ser uma vinculo de dever de seu funcionário negro para com ele e o fato de que aquele lugar concentrará os negros e negras que passam a ter e ficar no seu espaço. Como coloca Barbara Fields (1990), o racismo não explica, deve ser explicado. Já Kabengele Munanga (2017) diz que o racismo no Brasil é um crime perfeito. Por muitos anos a historiografia sobre imigração defendeu que as colônias e os imigrantes viviam de forma isolada do restante da população: A hipótese do fortalecimento étnico a partir do isolamento e da passividade dos imigrantes, difundida na historiografia da imigração alemã, sobretudo por Aurélio Porto (1996) e Jean Roche (1969), perdeu força a partir de uma série de novos estudos. Marcos Antônio Witt (2008), descontrói essa visão ao demonstrar em estudo empírico as relações entre famílias de diferentes colônias e destas com indivíduos nacionais no megaespaço São LeopoldoLitoral Norte do Rio Grande, assim, rompendo com a tese do isolamento, tanto entre as colônias quanto entre os colonos alemães e seus descendentes com os nacionais. (PIASSINI, 2017, p. 41). Conforme Piassini coloca, outros pesquisadores já comprovaram que o isolamento não foi parte da vida dos imigrantes e seus descendentes no estado. Algo que é reforçado pelo Livro Ouro do União, em que é possível ver as relações entre negros e teuto-brasileiros ou imigrantes acontecendo, sem a mediação do Estado e seus órgãos, principalmente os de repressão, e de uma forma em que não há conflitos aparentes. É neste sentido, que os argumentos de Fields e Munanga tem substância, pois aparentemente Helen da Silva Silveira | 327 é difícil explicar a partir do racismo situações em que não existe segregação ou discriminação explícita. E que relações cordiais entre negros e teutos não eliminam o racismo, pelo contrário caracterizam o tipo de Racismo de Denegação que é sutil e insidioso e paternalista que foi se desenvolvendo no Brasil. Haja vista que, aqui, vemos a cordialidade das relações sócioraciais se desenrolar, um comerciante branco fazendo doações ou contribuições para um projeto encabeçado por negros. Todavia, é bom não perder de vista que a contribuição feita era para a construção de um clube social negro, ou seja, era interessante para os brancos que os negros tivessem um lugar próprio, pois eles poderiam se negar a fazer tal acordo, pagar uma parte do salário como contribuição para o clube. No mapa abaixo se pode ver os deslocamentos das sedes do clube União ao longo do tempo: Mapa 2: Localização das sedes da Sociedade Cultural Beneficente União na cidade de Santa Cruz do Sul, RS Fonte: Feito por Felipe F. Brunhauser, gerado a partir das mapa produzido a partir do programa Quantum GIS, dados coletados da plataforma Open Street Map. Voltando ao propósito principal do documento, a construção da sede foi possível perceber que os valores doados não eram uniformes, podendo variar de sócio para sócio, de estabelecimento para estabelecimento ou 328 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ainda de ano para ano. Alguns sócios ao invés de doar em dinheiro doaram sua mão de obra, como é o caso de José Protasiano, Júlio Carvalho e Manoel Abel Silveira e assim a tão sonhada sede própria se concretizou. Neste sentido, se pode entender que as maneiras para se conseguir a tão sonhada sede social própria foram muitas, desde negociações com o poder público local, até negociações com indivíduos que poderiam ser pequenos ou grandes burgueses da cidade, passando pela criação de periódicos para arrecadar fundos. Em todos os casos, e aqui principalmente no Vale do Rio Pardo, se teve sucesso. Para isso contou-se com o envolvimento dos sócios tanto em termos monetários quanto em termos de mão de obra. Até hoje quem cruzar pelas ruas Júlio de Castilhos, em Santa Cruz do Sul, ou Henrique Vila Nova em Venâncio Aires poderá conferir o resultado dos trabalhos dos cidadãos José Protasiano, Júlio Carvalho, Manoel Abel Silveira e Luiz da Silva. Como forma de ajudar o leitor neste reconhecimento, coloco abaixo as fotos das atuais fachadas. Se tiver a oportunidade de entrar, por favor, limpe os pés e não deixe o respeito na porta. Imagem 4: Fachada atual da sede da Sociedade Négo Football Clube de Venâncio Aires, RS Fonte: Retirado de Escobar (2010). Helen da Silva Silveira | 329 Imagem 5: Fachada da Sociedade Cultural Beneficente União de Santa Cruz do Sul, RS, 2018 Fonte: Página da Sociedade Cultural Beneficente União no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1538628126243056&set=pb.100002876497064. 207520000..&type=3&theater Acesso em: 06/06/2020 Todos estes aspectos abordados até aqui, referentes aos fatos ocorridos depois do 13 de maio de 1888, dizem respeito uma abordagem, o pós-abolição enquanto problema histórico (MATTOS; RIOS, 2004). Mais do que um período, o pós-abolição diz respeito à reorganização sofrida pela sociedade após o fim da escravidão. Leva-se em conta os projetos de liberdade dos negros e negras e como se pode perceber todos eles giravam em torno de uma questão, cidadania em todas as suas dimensões, social, civil e política. Por último, é importante pontuar que a negociação e o conflito costumam andar juntos a mesma relação pode ser negociada e conflituosa, depende da situação. Portanto, ainda que pesem questões históricas e estruturais da sociedade não há como dizer que existe uma linha rígida que delimita até onde cada vai, ela costuma ser movida conforme a necessidade e interesse dos envolvidos. 330 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Referências CHIGA, Mauricio. Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (18401870). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2009. DANTAS, Sylvia; FERREIRA, Ligia; VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Um intérprete africano do Brasil: Kabengele Munanga. Revista USP. 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Acervo Sociedade Cultural e Beneficente União Ata da Sociedade Négo Foot-Ball Club (1936-1957). Acervo da Sociedade Négo Foot-Ball Club Estatuto da Sociedade Négo Foot-Ball Club de 29 de junho de 1936. Acervo da Sociedade Négo Foot-Ball Club Livro Ouro (1940-1957). Acervo Sociedade Cultural e Beneficente União Ata da Sociedade Cultural e Beneficente União nº01 (1923). Acervo Sociedade Cultural e Beneficente União Capítulo XIX Os antecedentes do “milagre econômico”: a reestruturação do sistema financeiro (1964 – 1966) Werbeth Serejo Belo 1 Introdução A partir de 1964, com o golpe classista Empresarial-Militar2, uma nova fração burguesa passa a conduzir as diretrizes estatais em consonância com um grupo heterogêneo de militares que ditam novas formas de acumulação de capital baseado em planejamento econômico, isto é, não seria mais adotado um posicionamento imediatista frente às proposições econômicas a partir dali. Enquanto no contexto internacional tinha-se uma consolidação do pensamento neoliberal, no Brasil toma-se uma postura de planejar em prol de um desenvolvimento econômico, mesmo que muitas vezes essas diretrizes estivessem alinhadas, em parte, com a ideologia neoliberal3, como a recessão necessária à (re)organização 1 Doutorando – Universidade de Coimbra; werbethsbelo@hotmail.com 2 Há um vasto debate sobre a orquestração do golpe e a condução do regime que se instaurou no Brasil em 1964 com vertentes interpretativas díspares a respeito do tema. Para maiores esclarecimentos a respeito deste debate conferir: MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Cascavel, ano XIII, nº27, 2º sem, p.39-53, 2012. 3 A ideologia neoliberal surge durante a década de 1940, mais exatamente pós II Guerra Mundial, fazendo oposição ao socialismo e ao modelo econômico Keynesianista – também conhecido como Welfare State (Estado de Bem Estar Social) tendo este como base, segundo Fernando Ribeiro em “Friedman, monetarismo e Keynesianismo: um itinerário pela história do pensamento econômico em meados do século XX”, “uma curiosa contradição”: a) uma economia de empreendedores; b) um papel de grande importância desempenhado pela moeda; c) a moeda com funções clássicas de ser meio de troca e unidade de conta; d) a moeda desempenha a função de reserva de valor. Então, fazendo frente a essas bases surge o pensamento neoliberal que tinha como dois dos grandes teóricos Milton Friedman e Friedrich Hayek. Hayek critica a ideia de que o “planejamento econômico pelo Estado é o caminho para combater as crises do capitalismo e inclusive salvá-lo dos regimes autoritários extremos, como o nazismo, à direita, e o socialismo, à esquerda”. (SPÍNOLA, 2004, p. 105). Portanto, a atuação estatal direta na economia não seria o real caminho ao combate às crises do capitalismo, ao contrário, deveria haver uma redução da atuação do Estado no âmbito econômico. Em 1947, como forma de organização do pensamento neoliberal, surge a sociedade de Mont Pelerin que tem como presidente o próprio Friedrich Hayek e como membro Milton Fridman. Este é o início do processo de consolidação do pensamento neoliberal em níveis mundiais, obviamente que esta consolidação se dá em Werbeth Serejo Belo | 333 e a utilização da política monetária4 como um viés de solução à crise econômica. Segundo Tomas Skidmore (1988) havia dois sérios problemas econômicos no Brasil no início da década de 1960: a) déficit crônico na balança de pagamentos por vários fatores: receita das exportações dependia de um único produto, o café; o nível das exportações estava estreitamente ligado ao crescimento industrial; outros níveis negativos: remessas de lucros, amortização de empréstimos e repartição de capitais. b) a inflação que de 1949 a 1959 variou de 12% a 26%. Ao longo da década de 1960 outros problemas se agregaram e se tornaram intoleráveis: o plano de estabilização de 1963 foi engavetado; a defesa por Goulart das reformas de base (SKIDMORE, 1988, p. 36-37). Haja vista o desequilibro econômico que se atingiu em fins de 1963, a articulação golpista de longo prazo estava com o campo livre para a atuação da tomada do Estado através da Guerra de Movimento que deporia Goulart em abril de 1964. A modernização conservadora se iniciava no período do regime Empresarial-Militar com a escolha dos novos dirigentes para as pastas da Fazenda e do Planejamento. O governo de Castelo Branco: a reestruturação do sistema financeiro O general Castelo Branco5 assume a presidência da República em 1964 e começa o processo de reestruturação administrativa, que seria a períodos diferentes em cada localidade do Globo: Chile – década de 1970, Brasil – década de 1990, por exemplo. No entanto, desde o acordo de Bretton Woods realizado em setembro de 1946, isto é, em fins da II Guerra Mundial já se pensava “a forma que deveria ser dada para o novo Sistema Monetário Internacional” (RIBEIRO, 2013, p. 61). Por fim, Friedman determina quais os papeis reservados ao Estado, proposições estas que se tornariam as base do pensamento liberal que tomariam proporções internacionais a partir da década de 1970: a) fornecer uma estrutura jurídica; b) proteger as liberdades individuais e a propriedade privada; c) garantir a execução de contratos livremente estabelecidos; d) fornecer uma estrutura monetária (RICHTER, 2009). 4 Segundo Vera Spínola política monetária seria um “conjunto de medidas adotadas pelo governo visando adequar os meios de pagamento disponíveis às necessidades da economia do país” (SPÍNOLA, 2004, p. 110). 5 Segundo Thomas Skidmore (1988), o general Castelo Branco era líder do grupo da Sorbonne que tinha “oficiais estritamente ligados à Escola Superior de Guerra”, sendo este um “interessante produto de influências brasileiras e estrangeiras pois frequentou escolas de guerra na França e nos Estados Unidos” (SKIDMORE, 1988, p. 50). 334 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS característica principal de seu governo, tanto no âmbito político quanto no âmbito econômico. Para ministro da Fazenda foi escolhido Octávio Gouveia de Bulhões e na pasta do Planejamento e Coordenação Econômica, Roberto Oliveira Campos6, ambos envolvidos diretamente na elaboração do Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG, grande responsável pela reestruturação do Sistema Financeiro Nacional. No processo de elaboração de políticas econômicas travestidas em planos de atuação, o fator primeiro de análise diz respeito ao diagnóstico inflacionário que tem como formas de análise três correntes principais: a) a ortodoxa, b) a heterodoxa e, c) estruturalista. A corrente ortodoxa 6 Monica Piccolo em sua tese de doutorado intitulada “Reformas Neoliberais no Brasil: A privatização nos Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso” (2010) faz o levantamento – a partir do dicionário histórico biográfico brasileiro – das atuações dos diversos agentes político-econômicos brasileiros, apresentando as informações em cinco blocos a fim de que se possa localizar estes agentes por meio de sua formação e relações com a sociedade civil e a sociedade política, a saber: formação acadêmica, atuação nas agências estatais, atuação nos Aparelhos Privados de Hegemonia, atividades profissionais e atuação político partidária. Dentre eles os condutores da política econômica de 1964 a 1967. Octávio Gouveia de Bulhões: Formação acadêmica: Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Faculdade de Direito do RJ); Doutorado (Faculdade de Direito do RJ); Especialização em Economia em Washington; Doutor Honoris Causa (EPGE-FGV). Atuação nas agências estatais: Diretoria Geral do Imposto de Renda do Ministério da Fazenda (1926); Chefe da Seção de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda (1939); Assessor Técnico do órgão Coordenação da Mobilização Econômica (1943); Membro da Comissão de Investimentos do Ministério da Fazenda (1945-1948); Chefe dos técnicos brasileiros na Missão Abbink (1948); Membro do Conselho Técnico do Departamento Nacional de Previdência Social (1946); Superintendente da SUMOC (1954-1955 / 1961final de 1962); Membro do CNE e do CMN (1950-54; 1956-60); Membro do Conselho Fiscal da Caixa Econômica Federal (1967); Presidente do Conselho de Administração da Ericson do Brasil; Presidente do Conselho de Diretoria do Unibanco; Presidente do Conselho Técnico de Administração do Banco de Investimento Credibanco; Membro do Conselho Consultivo do Banco Itaú; Membro do Conselho de Administração do Comind – Banco de Investimento, da Caemi e da Bayer do Brasil. Atuação nos Aparelhos Privados de Hegemonia: Membro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio; Instituto Brasileiro de Executivos Financeiros; CONSULTEC (1958); IPES. Atividades profissionais: Professor Emérito da UFRJ; Presidente COPEG (1971 a 1973); Presidente BEG (1971 a 1974); Presidente IBRE-FGV; Presidente do IBMC (1971- 1974); Presidente da Mercedes-Benz do Brasil; Diretor da Wilkinson Fiat Lux, Administração e Participação. Roberto de Oliveira Campos: Formação acadêmica: Teologia e Filosofia; Economia (EUA); Pós-Graduação (EUA). Atuação nas Agências Estatais: Itamaraty (1939); Assessor Econômico de Vargas (1951); Direção econômica do BNDE (1952-1953); Cônsul em Los Angeles (1953); Diretorsuperintendente do BNDE (1955); Membro do Conselho de Desenvolvimento (1956-60); Presidente do BNDE (1958); Embaixador Washington (1961);Embaixador em Londres (1974). Atuação nos Aparelhos Privados de Hegemonia: Membro do conselho técnico da Confederação Nacional do Comércio (1967-69). Atividades Profissionais: Presidente do Invest Banco (1968-72); Presidente da Olivetti do Brasil; Membro do conselho de administração da Mercedes-Benz (1972); Membro das juntas de governadores do Instituto Internacional de Planejamento e Educação, sediado em Paris (1972-75) e do Instituto Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento, com sede em Ottawa (1973-76); Membro da Resources for the Future (1974/76). Atuação Política Partidária: Filiação ao PDS (1980); Senador (1982); Deputado Federal (1990); Filiação ao PPR (1993); Filiação ao PPB (1995). (PICCOLO, Monica. Reformas Neoliberais no Brasil: A privatização nos Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. 2010. 427 p. Tese (doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal Fluminense, Niteroi, 2010). Werbeth Serejo Belo | 335 enfatiza “o papel do desequilíbrio fiscal nos processos de inflação crônica7” e para pôr fim à inflação seria necessário “eliminar os déficits fiscais e produzir um arrocho monetário” (CARDOSO, 2007, p. 115). A corrente heterodoxa enfatiza “o papel da inercia inflacionária criada por mecanismos de indexação endêmicos em economias que sofrem de inflação crônica” e para pôr fim à inflação seria necessário “eliminar a memória inflacionária a partir de um congelamento de preços, por exemplo” (CARDOSO, 2007, p.115). A corrente estruturalista foi elaborada por membros da CEPAL8 e aponta que [...] estruturas inadequadas como a agrária, por exemplo, tornavam inelástica a oferta de alimentos e matérias-primas, o que significava elevação de preços nos centros urbanos. A deterioração das relações de troca provocaria déficits comerciais e do balanço de pagamentos, obrigando tais países a desvalorizações cambiais constantes, sendo estas outro alimentador do processo inflacionário (SANDRONI, 1999, p. 225). Como subterfúgio à inflação com diagnóstico estrutural tem-se que deveria haver uma reestruturação de todo o sistema governamental em prol da resolução do problema inflacionário. A opção adotada por Roberto Campos e Octavio Bulhões tinha como base os preceitos da ortodoxia, portanto, as diretrizes econômicas adotadas pelo PAEG caminhariam de forma a atingir a estabilização econômica9. 7 Gera mecanismos de indexação que perpetuam a inflação passada (CARDOSO, 2007, p.115). 8 “Comissão Econômica para a América Latina. Órgão regional das Nações Unidas, ligado ao Conselho Econômico e Social; foi criado em 1948 com o objetivo de elaborar estudos e alternativas para o desenvolvimento dos países latino-americanos. É integrado por representantes de todos os países do hemisfério e conta com a participação especial dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Holanda. Tem sede em Santiago do Chile e promove uma conferência a cada dois anos para debater seus projetos e analisar a situação dos países-membros.” (SANDRONI, 1999, p. 90) 9 “Geralmente, o termo vem associado a políticas monetárias efetuadas por bancos centrais, para reduzir ou limitar as flutuações de uma moeda nacional nos mercados financeiros internacionais, comprando ou vendendo reservas de, ou para, outros bancos centrais” (SANDRONI, 1999, p. 220). 336 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Segundo Eliana Cardoso (2007) o PAEG tinha dois objetivos principais: acelerar o crescimento e baixar a inflação. Para que tais objetivos fossem alcançados seria necessária a utilização da correção monetária10 que, segundo Pastore e Pinotti, tinha atrelada a si algumas determinações: a) reformar o Sistema Financeiro Nacional; b) retomar os financiamentos de habitação; c) criação do F.G.T.S11, PIS, PASEP12; d) reajustes salariais; e) controle de preços; f) aperfeiçoamento do imposto de renda13; g) reforma tributária de 1965: Imposto sobre o consumo (IC), Imposto sobre produtos industrializados (IPI), Imposto de vendas e consignações (IVC), Imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM) – que levariam ao crescimento da arrecadação; h) criação do Banco Central; 10 A correção monetária foi criada em 1964 no governo de Castelo Branco e, segundo Paulo Sandroni em “Novíssimo dicionário de economia” (1999) , “Consiste na aplicação de um índice oficialpara o reajustamento periódico do valor nominal de títulos de dívida pública (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) e privados (letras de câmbio, depósitos a prazo fixo e depósitos de poupança), ativos financeiros institucionais (FGTS, PIS, Pasep), créditos fiscais e ativos patrimoniais das empresas. Os índices de correção monetária são calculados de acordo com a taxa oficial de inflação, tendo por objetivo compensar a desvalorização da moeda” (SANDRONI, 1999, p. 135). 11 “Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Fundo formado, no Brasil, por depósitos bancários feitos em nome dos empregados, para prover indenizações trabalhistas. Criado pelo governo federal em 13/9/1966,obrigou as empresas sujeitas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a depositarem até o dia 30 de cada mês, em conta bancária vinculada, 8% do salário de cada funcionário que renunciasse ao sistema de indenização até então vigente e optasse pelo fundo.” (SANDRONI, 1999, p. 238). 12 “Fundo contábil de natureza financeira criado em 11/9/1975. Resultou da unificação do Fundo de Participação do Programa de Integração Social (PIS) e do Fundo Único do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), ambos criados em 1970. Propõe-se a integrar o trabalhador à vida da empresa, garantindo-lhe participação nos lucros, criar um pecúlio para sua aposentadoria e arrecadar recursos para investimentos privados, sobretudo nas médias e pequenas empresas. É gerido por um conselho formado por quatro membros efetivos e quatro suplentes indicados pelo Ministério da Fazenda, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No PIS são cadastrados os trabalhadores empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os trabalhadores avulsos sem vínculo empregatício e os temporários. Não participam do PIS, mesmo com registro em carteira, os empregados domésticos e os trabalhadores rurais. Os empregados em repartições da administração pública federal, estadual e municipal (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista) são cadastrados no Pasep. Essa diferenciação dos beneficiados permaneceu até mesmo com a unificação dos referidos fundos. Os recursos do PIS são provenientes de contribuições mensais pagas pelas empresas (...)” (SANDRONI, 1999, p. 460-161). 13 “Tributo cobrado das pessoas físicas e jurídicas sobre os rendimentos auferidos no exercício de suas atividades profissionais ou comerciais, ou ainda sobre os rendimentos resultantes da aplicação de seus capitais. O Imposto de Renda no Brasil foi criado pelo presidente Artur Bernardes, em 1922, sendo a primeira cobrança feita sobre o exercício financeiro de 1924. O Imposto de Renda é direto e progressivo, isto é, incide diretamente sobre uma pessoa física ou jurídica, e a taxação é progressivamente proporcional ao valor do rendimento. Por isso, é considerado o imposto mais justo. O sistema de arrecadação, apesar das constantes mudanças feitas, sustenta-se em duas bases: o imposto arrecadado na fonte e o imposto lançado. O imposto arrecadado na fonte é retido e recolhido pelas fontes pagadoras do rendimento, enquanto o lançado baseia-se na declaração do contribuinte” (SANDRONI, 1999, p. 292). Werbeth Serejo Belo | 337 i) criação do Conselho Monetário Nacional (CMN) para fixar os tetos para a expansão do crédito; j) alteração da política econômica com relação ao setor externo e, k) criação do sistema de subsídio às exportações. (PASTORE; PINOTTI, 2007, p. 30-31). As determinações econômicas acima expostas contribuíram para o quadro de acumulação de divisas nos caixas governamentais, mas não seriam suficientes para a tão almejada estabilização econômica e reordenação de todo o Sistema Financeiro Nacional que seria a ferramenta fundamental para que a nova fração burguesa empresarial de base principalmente financeira se articulasse no Estado Restrito brasileiro a partir de 1969. No que tange à reestruturação do Sistema Financeiro Nacional temos a criação do Banco Central que “constituir-se-ia em um órgão deliberativo da política monetária em função do orçamento monetário através do qual eram fixados tetos para as operações ativas, cuja soma determinaria a expansão da base monetária” (PICCOLO, 2010, p. 129). Foi criado o Sistema Financeiro de Habitação tendo como agência principal o Banco Nacional de Habitação que utilizaria o FGTS como forma de depósito compulsório e forma de financiamento à moradia popular que daria ao governo todo o mérito das construções, no entanto sairia do bolso dos trabalhadores grande parte do custeamento das obras. Além disso, foram criados novos programas de seguro social - os já mencionados PISPASEP. Portanto o Sistema Financeiro Nacional passa a se organizar da seguinte forma: 338 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Organograma 1 - Sistema Financeiro Nacional É perceptível no organograma acima que há uma consolidação dos conglomerados de financeiras, sobretudo privadas. Isso se dá pela reestruturação do sistema capitalista em nível mundial14. É importante ressaltar que o Brasil não se insere – neste período – no ideário neoliberal, mas se apresenta participante da lógica capital-imperialista de forma subsidiada, isto é, o domínio do capital multinacional e associado se expande e atinge países da América Latina e o Brasil não estaria de fora. 14 Werbeth Belo (2017), em trabalho intitulado “Estado Capitalista Contemporâneo: análise teórico-conceitual para o caso do Brasil sob a ditadura Empresarial-Militar”, apresenta um debate acerca do imperialismo recente destacando que “várias interpretações acerca do capitalismo contemporâneo podem ser incorporadas aos trabalhos acadêmicos que permitam uma análise mais profunda da sociedade contemporânea. É muito comum, no entanto, que se encontre em trabalhos acadêmicos, e fora da academia, uma generalização a respeito da forma contemporânea do Estado capitalista. Essa generalização perpassa por algumas formas de análise deste Estado, tais como: adoção da simples forma do capitalismo como Estado burguês, sem sequer tentar perceber qual fração burguesa detém a hegemonia do projeto estatal vigente; frequente análise da hegemonia norte-americana sem apresentar o contexto em que esta nação se apresenta como nação hegemônica da nova forma capitalista; análise do Estado contemporâneo de forma que este seja fruto de uma simples sequência de acontecimentos que tem a ver de forma mínima com a esfera econômica em que este está inserido e; análise que apresenta esfera econômica completamente externa ao Estado, e externa à política, de forma que durante a análise este Estado seja apresentado ora como Estado sujeito, ora como Estado coisa [...].”. (BELO, 2017, p. 307). Alguns autores, no âmbito do marxismo, podem ser destacados: Marx, Lenin, Poulantzas, François Chesnais, David Harvey e Virginia fontes. Werbeth Serejo Belo | 339 Segundo Francisco de Oliveira em “A Economia da dependência imperfeita” (1977) o PAEG “não muda o padrão de acumulação sustentado na expansão do Departamento III15” e o remédio seria a contenção salarial. O fato de o padrão de acumulação estar baseado no departamento III demonstra que a produção estava voltada - sobretudo - para uma classe média empresarial possuidora do poder de compra de carros e outros produtos de difícil acesso à classe trabalhadora. O capital financeiro, articulado aos oligopólios das multinacionais e transnacionais, passa a ser o modelo de capital que conduz a economia brasileira, entretanto, aliado ao capital industrial. Formam-se, assim, dois blocos capitalistas no Brasil: “um sólido bloco capitalista gerando lucros numa etapa de forte concentração de capital e o segundo bloco formado por empresas nacionais de capital privado nacional” (OLIVEIRA, 1977, p. 95). Neste período já há, além da abertura maior a empresas de capital multinacional e associado, “a entrada de capitais sob a forma de empréstimo” (OLIVEIRA, 1977, p.97) que caracterizaria este período como “uma fase de preparação institucional da economia para o desempenho dos oligopólios” (OLIVEIRA, 1977, p.97) que potencializariam a acumulação de capital que poderá ser percebida entre 1969 e 1973 no Brasil. Enquanto temos a interpretação de Francisco de Oliveira que prima pela análise de luta entre classes, Roberto Campos (1994) aponta que entre 1964 e 1967 houve no Brasil uma “austeridade fiscal e monetária, realismo cambial, taxas de juros positivas, abertura para o investimento estrangeiro e integração na comunidade financeira internacional” (CAMPOS, 1994, p. 58) e assume que alguns princípios adotados pelo PAEG são princípios adotados também por “países bem sucedidos” (CAMPOS, 1994, p. 58), isto 15 “Departamento I, produtor de bens de capital ou, em sentido lato, de bens de produção, pois inclui os chamados bens intermediários, que são também capital constante; Departamento II, produtor de bens de consumo aos trabalhadores (...) bens de consumo não duráveis; Departamento III, produtor de bens de consumo para os capitalistas, (...) bens de consumo duráveis” (OLIVEIRA, 1977, p.77). 340 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS é, estes países: “mantiveram a estabilidade de preços através de políticas monetárias e fiscais austeras; procuraram preservar estabilidade na macroeconomia e competição na microeconomia; investiram pesadamente em capital humano e em abertura internacional” (CAMPOS, 1994, p.58). O argumento de Campos é perfeitamente válido para quem não pretende fazer a reflexão a respeito de quem é o verdadeiro favorecido com tais medidas, o que não é o caso do nosso trabalho. Procura-se aqui perceber os meandros relacionais utilizados pela fração burguesa financeira em prol da consolidação de seu projeto de condução do Estado Restrito. Os argumentos de Roberto Campos, portanto, são válidos tão somente para explicar a forma encontrada pela burguesia financeira para a organização dos aparelhos da Sociedade Política. O primeiro governo Empresarial-Militar buscou ‘preparar o terreno’ para as medidas desenvolvimentistas que seriam tomadas no “milagre econômico”16. Para tanto, este período se utiliza de uma nova política salarial e trabalhista que tinha três objetivos principais, segundo Sonia Mendonça e Virginia Fontes (2001): a) a sujeição dos trabalhadores a um verdadeiro programa de poupança forçada; b) a criação de um “novo” sindicato, com funções mais assistencialistas que impedisse uma organização efetiva da classe trabalhadora e; c) fortalecimento da estrutura sindical e corporativa enquanto alicerce da coesão social. (MENDONÇA; FONTES, 2001, p.22). Portanto, o chamado “milagre econômico” tem suas bases na reestruturação do Sistema Financeiro Nacional e nas novas diretrizes 16 Em artigo publicado intitulado “Entre o ‘milagre econômico’ e o ‘quinquênio de ouro’: análise introdutória dos planos econômicos brasileiro e português (1968-1973)” Monica Piccolo e Werbeth Belo analisam em uma perspectiva comparada os planos econômicos brasileiro e português em períodos de alto crescimento econômico nos dois países. No caso brasileiro é analisado o I Plano Nacional de Desenvolvimento e no caso português o III Plano de Fomento. Para maiores informações, conferir: PICCOLO, Monica; BELO, Werbeth Serejo. Entre o “milagre econômico” e o “quinquênio de ouro”: análise introdutória dos planos econômicos brasileiro e português (1968-1973). Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 23, p. 248-267, jan.-abr. 2020. Werbeth Serejo Belo | 341 econômicas adotadas pelo PAEG que visavam à estabilidade econômica necessária ao posterior desenvolvimento. Para o financiamento deste projeto, inúmeros think tanks17 são utilizados ao longo das décadas de 1960 e 1970 a fim de que pudesse garantir a hegemonia do projeto de condução estatal tão almejado pela fração burguesa financeira aliada à fração industrial. Considerações finais Em 1964, com o golpe, os militares e a fração civil que estava inserida em todo o Estado Restrito postulavam a Doutrina de Segurança18 Nacional no que diz respeito à política e defendiam, na esfera econômica, o dito desenvolvimento do país. No entanto, só se obteria o desenvolvimento a partir de uma reforma de toda a estrutura econômica do país, inicialmente articulada por Octavio Gouveia de Bulhões (ministro da fazenda) e Roberto Campos (ministro do planejamento), responsáveis pela opção adotada pelo país no que diz respeito à condução da economia, a partir da implementação do PAEG em 1964. Para que as reformas fossem concretizadas e a fração da classe dominante – que havia tomado o poder juntamente com os militares – permanecesse no poder e para que o dito desenvolvimento se concretizasse, abrindo caminho para o imperialismo19 e o CapitalImperialismo20 seriam necessários instrumentos de coerção e de 17 Segundo Denise Barbosa Gros (2008) think tanks são institutos privados de pesquisa que estão presentes no processo de formulação de políticas públicas que são financiados por doações de grandes empresas. 18Segundo Maria Helena Moreira Alves, “A ideologia de segurança nacional contida na doutrina de segurança nacional e desenvolvimento foi um instrumento importante para a perpetuação das estruturas de Estado destinadas a facilitar o desenvolvimento capitalista associado-dependente” (ALVES, 1984, p. 26) 19 Segundo Lenin o Imperialismo é uma fase superior do capitalismo. Nesta fase há uma concentração da produção que leva aos monopólios que são a lei fundamental desta fase do capitalismo. Há, ainda, nesta fase, segundo Lenin, a consolidação do capital financeiro o qual é o somatório do capital industrial com o bancário, isto é, os bancos atuam de forma que financiam as indústrias (LENIN, 2008). 20 Segundo Virgínia Fontes, o capitalismo contemporâneo está em sua fase imperialista, mas apresenta algumas particularidades que, no contexto de escrita de Lenin ainda não poderiam ser percebidas. Segundo a autora, “falar em capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a 342 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS construção de consenso21 por parte da Sociedade Política no dito período aqui estudado. A coerção era exercida, sobretudo, com a promulgação dos Atos Institucionais e pela utilização da polícia política, enquanto o consenso era construído a partir da utilização da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, sobretudo este último como forma de legitimar a tomada do poder ocorrida em 1964. Este consenso era construído por meio da utilização de alguns Aparelhos Privados de Hegemonia22 como os jornais, rádio, TV, além de empresas e instituições em geral inseridas no âmbito da Sociedade Civil, mas que tinham como dirigentes os próprios membros da fração da classe dominante que estava inserida no Estado Restrito. Dreifuss (1987) cita algumas instituições como sendo esses aparelhos privados de hegemonia: o complexo IPES-IBAD23 e o CAMDE24. Referências ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Editora Vozes, 1984. Guerra Fria que exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente consorciando-os. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas de forma mercantil, ou através da exportação de bens ou de capitais, mas também impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção (terras), de direitos e de suas próprias condições de existência ambiental e biológica” (FONTES, 2010, p. 149). 21 Coerção e Consenso, segundo Gramsci, são uma forma dual de estabelecer relações dentro da sociedade em prol da manutenção da hegemonia de certo projeto (GRAMSCI, 2012) 22 São considerados aparelhos privados de hegemonia as instituições localizadas na sociedade civil como a imprensa, por exemplo, utilizadas para garantirem a hegemonia de determinado projeto, ou mesmo, garantirem que um novo projeto se torne hegemônico (GRAMSCI. 2012) 23Segundo Dreifuss (1987), o IPES, depois de abril de 1964, “foi transformado em um eficaz ‘órgão intermediário’ para a elaboração de diretrizes políticas. Operava como um mediador entre o Estado, onde tinha seus homens-chave em cargos vitais, e os grandes interesses privados, dos quais seus ativistas eram figuras de destaque” (DREIFUSS, 1987, p. 449). 24 A CAMDE, segundo Dreifuss (1987), “organizava reuniões de protesto, escrevia milhares de cartas aos deputados e da mesma forma que o IBAD, pressionava firmas comerciais para retirarem seus anúncios dos jornais pró João Goulart ou orientados pela esquerda e o trabalhismo” (DREIFUSS, 1987, p. 297). Werbeth Serejo Belo | 343 BELO, Werbeth Serejo. Estado Capitalista Contemporâneo: análise teórico-conceitual para o caso do Brasil sob a ditadura Empresarial Militar. Anais do IV Simpósio de História Contemporânea/I Colóquio de História das Américas do Norte e do Nordeste: O Brasil e as Américas: perspectivas de pesquisa e ensino. 2017. Disponível em: http://nupehic.net.br/wp-content/uploads/2018/08/Estado- Capitalista-Contempor%C3%A2neo.pdf. DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 03. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. GROS, Denise Barbosa. Considerações sobre o neoliberalismo como movimiento ideológico internacional. Ensaios FEE, v.29, nº2, p. 565-590, Ago./dez, 2008. LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2008. MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Cascavel, ano XIII, nº27, 2º sem, p.39-53, 2012. MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. Historia do Brasil Recente. São Paulo: Ática, 2001. OLIVEIRA, Francisco de. A economía da dependencia imperfeita. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977. 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São Paulo: Editora Best Seller, 1999. Werbeth Serejo Belo | 345 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SPÍNOLA, Vera. Neoliberalismo: considerações acerca da origen e história de um pensamento único. Revista de desenvolvimento económico, Salvador, ano VI, nº09, p.104-114, 2004. África e africanidades Capítulo XX Narrativas de mulheres negras em Florianópolis sobre Áfricas: oralidades, corpos e movimentos Carol Lima de Carvalho 1 Considerações iniciais O presente trabalho tem como intuito apresentar reflexões sobre a pesquisa que venho desenvolvendo a respeito da história de mulheres negras em Florianópolis. O objetivo foi identificar em seus universos culturais as suas narrativas sobre Áfricas, considerando os atravessamentos das dinâmicas sociais, culturais e políticas em suas trajetórias de vida e que de algum modo perpassam os conceitos de oralidade, tradição oral, ancestralidade, corporeidade e movimentos. Elementos importantes para pensarmos as memórias afrodiaspóricas ancoradas em corpos negros. Este trabalho emergiu através da necessidade de evidenciar epistemologias e narrativas plurais sobre mulheres negras catarinenses, em que a sua condição de mulher, negra e majoritariamente vindas de situações sociais excludentes, as impedem de disfrutar formas de bem viver. As inquietações que também configuraram esta pesquisa são frutos da minha trajetória de vida, enquanto mulher negra buscando destacar o movimento de mulheres negras e sua relação intensa com a educação e com laços culturais vitais de nossas culturas de ancestrais matrizes orais. Embora minha trajetória tenha fortes laços com formação antirracista, inserida em contexto familiar baseado em matrizes culturais 1 Doutoranda – Universidade do Estado de Santa Catarina; carolimac18@gmail.com 350 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS afro-brasileiras, num determinado momento algumas lacunas surgiram, principalmente no que se refere às especificidades das mulheres negras, tornando ainda mais forte o anseio de buscar suas/nossas histórias em Florianópolis. Ao me aproximar dos estudos sobre as mulheres negras me vinculei a Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB umas das primeiras organizações que se intitulam ser formadas por mulheres negras, além das quatro principais fundadoras serem reconhecidas na cidade de Florianópolis por seus trabalhos envolvendo educação, cultura e saúde da população afro-brasileira, em prol de uma sociedade catarinense livre de racismo e discriminações. A trajetória da organização é baseada na intenção de lutar contra o racismo, contra as violências, pela equidade e bem viver. Caminhos iniciam na década de 1980, elas se organizaram como grupo intitulado Mulheres Negras Nós, já na década de 1990 o grupo passou a se reconhecer como Grupo de Mulheres Negras Cor de Nação, e Grupo de Mulheres Negras Antonieta de Barros, e em 2001, diante de uma necessidade de caráter jurídico elas fundam a Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros (AMAB), presente até os dias atuais, enquanto uma sociedade sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria. Ademais, enfatizando os percursos de minha pesquisa, após encontro com AMAB e também alguns diálogos com orientação sobre minha trajetória de vida, resolvemos que a discussão da pesquisa a discussão iniciaria pelas mulheres negras de minha família. Pois sou bisneta, neta e filha de mulheres negras matriarcas de suas famílias, educadoras e protagonistas de grandes histórias na cidade de Florianópolis. Estas protagonistas que me inspiraram a fortalecer e dar visibilidade a história das mulheres negras catarinenses, me antecederam e projetaram um mundo que hoje eu usufruo. Carol Lima de Carvalho | 351 Diante da apresentação das concepções fundamentais para esta pesquisa, a ideia do texto é, portanto, apresentar um breve recorte desta pesquisa que venho desenvolvendo sobre histórias de mulheres negras em Florianópolis, focando nas construções de narrativas sobre Áfricas em suas trajetórias de vida, além de proporcionar uma reflexão sobre a importância de visibilizar histórias e memórias afro-diaspóricas. As protagonistas: presença e protagonismo neste enredo As protagonistas deste enredo são minha bisavó, Gesuína Adelaide dos Santos, mais conhecida como Dona Geninha nascida no ano de 1920, no bairro da Freguesia do Ribeirão da Ilha, na cidade de Florianópolis. Ela fundou e presidiu durante dezoito anos uma escola de samba chamada Império do Samba (1971 a 1989), esse processo era intenso, a ponto da escola se confundir com a sua vida, o nome era Império do samba, mas era conhecida como “escola da dona Geninha”. O último desfile foi em 1989 e a Dona Geninha faleceu aos oitenta e cinco anos, em 2005, deixando um legado aos seus filhos, netos e bisnetos. Na sua trajetória foi possível perceber que o seu “corpo vivo, com seus gestos, movimentos e interações simbólicas configuraram-se em arquivo de memória” (ANTONACCI, 2017, p. 160). Nesse sentido, seu corpo reverberava aspectos das memórias afro-diaspóricas e a possiblidade de construção a respeito das narrativas sobre Áfricas em Florianópolis, permeadas de oralidade, ancestralidades, tradições orais, corporeidades e movimentos. Assim como dona Geninha, sua filha, dona Ada Jesuína dos Santos, minha avó materna, nascida em 1940, na costeira do Ribeirão da Ilha, inicia, dentro do que lhe era possível, trabalhou na Universidade. Ela fez um concurso para agente administrativa, ela ficava na portaria, abria as salas, fazia o café, entregava materiais para professores. Começou a 352 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS trabalhar no Departamento de Matemática, depois foi pro Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH. Dona Ada frequentava espaços culturais que marcaram sua trajetória. A praça XV no centro da cidade, os desfiles de escola de samba, as festas de Cosme e Damião, festas do Boi de mamão e, principalmente, os Bailes Municipais de Florianópolis e o bloco Zé Pereira. Todos espaços marcados por dinâmicas orais, identidades e identificações negras. Considerando o debate sobre as identidades, os pensamentos desta pesquisa convergem com concepções de Nilma Lino Gomes, a autora acredita que a “construção de uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiras(os)” (GOMES, 2012, p. 43). Nesse sentido, na medida em que busco nestes escritos evidenciar os universos culturais de mulheres negras em Florianópolis e suas narrativas sobre Áfricas, é um movimento desafiador, porém, o intuito de viabilizar histórias e memórias da população negra na cidade transcendem, perspectivando assim uma sociedade mais plural e democrática, além de contribuir para construção de identidades e identificações negras na capital catarinense. Neste viés, pensando na importância em romper com cenário hegemônico na escrita da história da cidade, a minha avó paterna, Zenair Maria de Carvalho, nascida em 1935, na cidade de Florianópolis, nos apresenta uma trajetória de vida permeada pelo anseio de ser professora normalista e alfabetizadora, diante dos desafios do racismo e machismo, ela seguiu esta carreira, a qual se dedicou integralmente. Assim como a dedicação na criação do seu único filho João, em que conseguimos observar uma forte presença da tradição oral e ancestralidade em sua relação. Dona Zenair transmitiu conhecimento que adquiriu com meus pais para o seu Carol Lima de Carvalho | 353 filho. Muitas vezes, conhecimentos ancorados em memórias afrodiaspóricas. Dona Zenair faleceu aos sessenta e três anos. Além das três protagonistas da pesquisa vinculadas a minha família, dialoguei com as quatro fundadoras da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros (AMAB), cabe ressaltar que suas histórias se cruzam, a primeira é dona Valdeonira Silva dos Anjos, nasceu na cidade de Florianópolis em 1935, no Morro da Caixa d’água, estudou junto com minha avó Zenair, acompanhou crescimentos, desafios e conquistas uma da outra. Dona Valdeonira é formada em magistério e aderiu como profissão. Algo que chama atenção em sua trajetória é a luta pela visibilidade das histórias das populações negras catarinenses, em seu corpo há anseio de justiça e reconhecimento, compreendendo a importância de evidenciar as lutas por sobrevivência. Diante disso, ela decide cursar história, ela me relata que seu “objetivo no curso de História era eminentemente estudar sobre o negro, sempre queria fazer trabalho sobre o negro” (ANJOS, 2016)2. Através da educação ela reverbera narrativas negras por onde percorre. Por fim, algo a se destacar sobre dona Valdeonira é uma participação na Companhia de Fuxico, produção que está firmemente atrelada as dinâmicas das concepções de conhecimentos ancestrais, uma vez que elas produzem, também cantam ou contam uma história, muitas delas relacionadas as populações africanas ou afro-brasileiras. Compreendem a importância da oralidade e dos elementos que compõem os seus corpos negros. No mesmo bairro de dona Valdeonira tem outra protagonista deste enredo, a dona Maria de Lourdes da Costa Gonzaga, conhecida por dona Uda, nascida em 1938 na cidade de Florianópolis, durante sua trajetória 2 Trecho retirado da entrevista realizada no ano de 2016 para elaboração do trabalho de conclusão de curso em História intitulado “Negras em movimento: Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros” defendido no ano de 2016 na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). 354 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS foi professora de uma escola no morro e tem como luta a educação para todos e todas. Ela presidiu a escola durante dois anos após o falecimento de seu marido. Atualmente ela abre sua casa para organizar a ala das crianças e das baianas da escola de samba Embaixada Copa Lord, assim como para as aulas de catequese. Suas portas estão sempre abertas, algo significativo para pensarmos comunitariamente e coletivamente considerando um dos valores civilizatórios africanos. Nesta caminhada de luta, dona Uda também encontra dona Altair Alves Lucio, também protagonista desta pesquisa, ela nasceu na cidade de Tubarão no ano de 1944, formada em Magistério, exercendo na Profissão por muitos anos. Ao finalizar o magistério iniciou o curso superior em licenciatura em Pedagogia. Importa destacar em sua trajetória a referência que ela se tornou na cidade, mulher negra em movimento, lutou pelos estudos da Educação das Relações Étnico Raciais (ERER), uma educação para todas as pessoas e a Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. Atuou também na Universidade sendo uma das fundadoras do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina. Por fim, ao pensarmos no ambiente da Universidade, destaco a trajetória de vida de dona Neli Góes Ribeiro nascida em 1948 na cidade de Florianópolis, passou infância e adolescência no bairro Estreito, na região continental da cidade. Ela é formada em Pedagogia e mestre em Educação. Dona Neli é referência dentro da UDESC, instituição em que dedicou longos anos, ocupou diversos cargos como por exemplo, chefia de Departamento da Pedagogia, Diretora de Extensão de centro e também Pró Reitora de Extensão, além de ser uma das fundadoras Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina. A dona Neli ocupando este lugar possibilitou, também em conjunto com a AMAB, a proposição de programas e projetos que possibilitaram o Carol Lima de Carvalho | 355 acesso e permanência de homens e mulheres negras na Universidade, garantiu a discussão sobre Educação das Relações Étnico Raciais (ERER) deixando um legado de luta e resistência no ambiente acadêmico, uma mulher negra em movimento. As Áfricas em suas narrativas: mulheres negras e seus universos culturais afrodiaspóricos em Florianópolis. A pesquisa teve como universo espacial a cidade de Florianópolis, mais precisamente nos bairros: Freguesia do Ribeirão da Ilha, Estreito, Balneário do Estreito e Morro da Caixa d’água. A escolha por estes locais está imbricada ao espaço circulado pelas protagonistas desta pesquisa. Além de considerarmos relevante o período dos anos de 1950 a 1980, pois neste momento as protagonistas estavam atuando na cidade, imersas às conjunturas políticas, sociais e culturais marcadas pela ditadura militar e a emergência dos movimentos sociais no Brasil. Por meio de alguns documentos retirados dos acervos particulares e familiares, da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros – AMAB, da Casa da Memória, do Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas- IDCH e da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, assim como entrevistas com protagonistas ou representantes delas para aquelas que já fizeram a passagem, a ideia foi identificar seus universos culturais na cidade, considerando as dinâmicas de oralidades e letramentos que envolviam suas trajetórias de vida. Dito isso, importa destacar a maneira como os conceitos são compreendidos nesta pesquisa, a concepção de oralidade versa a partir das ideias de Antonacci (2009) destacando que sociedades africanas em regime de oralidade, “em seu elenco de gêneros de linguagens orais, ampliou percepções de práticas culturais de comunicação inerentes a corpos e memórias de africanos, que transportaram suas heranças para o Brasil” (ANTONACCI, 2009, p, 54). Isto é, a oralidade possibilitou 356 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS interlocuções Áfricas/Brasil através do corpo e da fala, reverberando nos “significados políticos e estéticos de festas, danças, ritmos que, ética e liminarmente, vêm configurando corpos e ritos africanos como comunitários monumentos históricos na guarda e transmissão de culturas sob regime de oralidade” (ANTONACCI, 2009, p, 54). Além disso, Dumas (2012) destaca que muitas vezes o conceito de oralidade fica subjugado à percepção humana de expressar e perceber através do falar e do ouvir, sugerindo corpos reduzidos à boca e ao ouvido (DUMAS, 2012, p. 152). No entanto, ao trazer concepções de Paul Gilroy sobre a oralidade que “parte de um corpo amplo, com os sentidos abertos à percepção e captação de conhecimentos e não apenas como o que fica sugerido no étimo oral” (DUMAS, 2012, p. 152). Este corpo amplo também é evidenciado nos estudos de Antonacci e que é possível refletir sobre corporeidades, a autora destaca que são “expressivas possibilidades de apreensão de corpos negros e tradições orais africanas, em circuitos África/Brasil/África” (ANTONACCI, 2009, p. 52). E assim, é preciso considerar os “tempos, gestos, danças, narrativas e performances desprezadas pela avalanche da civilização euroocidental” (ANTONACCI, 2009, p. 52). Para esta pesquisa, o corpo também está vinculado ao conceito de resistir que é entendido através do “corpo como instrumento de resistência sociocultural e como agente emancipador da escravidão. Seja pela religiosidade, pela dança, pela luta, pela expressão, pois a via corporal foi o percurso adotado para o combate, resistência e construção da identidade” (KABENGELE; GOMES,2006, p.152). Isto é, “o corpo negro pode ser entendido ainda como existência natural e simbólica dos negros em nossa sociedade e também como corpo político” (GOMES, 2017, p. 98). Estava presente na pesquisa também a ideia de decolonialidade de corpos e pedagogia decolonial, a partir de Glissant (2005); Antonacci Carol Lima de Carvalho | 357 (2009;2013); Irobi (2012); Mbembe (2014); Quijano (2005); Walsh (2009) na intenção de proporcionar uma mudança de postura política, epistemológica e acadêmica diante da historiografia catarinense e sobretudo de mulheres negras no sul do Brasil. Neste sentido, compõem a pesquisa as produções por e sobre mulheres negras brasileiras e africanas para potencializar os diálogos proporcionados pela pesquisa, nos debruçamos nos escritos de Truth (1797); Reis (1859); Jesus (1960); Nascimento (1970); Gonzalez (1982); Davis (1980); Carneiro (2003); Evaristo (2008); Werneck (2009); Collins (2015). Ademais, atrelada a esta concepção de oralidade, memórias ancoradas em corpos negros, corpos políticos e decolonialidade, está a ideia de tradição oral, entendida como costumes, saberes e narrativas que passam de geração em geração por séculos, isto é, de acordo com ideias de Hampaté Bâ focadas na memória viva, a qual os “conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos” (1982, p.167). Além disso, de acordo com Damasceno (2019), Esta forma envolve uma visão particular do mundo, ou melhor, uma presença particular no mundo. Desta forma, no seio das famílias, a tradição oral conta com a participação dos mais velhos, que ministram ensinamentos ligados às circunstancias da vida (experiências vividas), mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, em que evocam os grandes feitos dos seus ancestrais (DAMASCENO, 2019, p. 2). Algo importante para a concepção de tradição oral é a ancestralidade, nesta pesquisa este conceito está compreendido a partir de um tempo relacional, ou seja, um tempo da natureza, não é linear e nem circular, significa que está diretamente relacionada ao fato de aprenderem com aquelas que as antecederam. Desse modo, é importante evidenciar a 358 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS ancestralidade como aspecto fundamental no “processo de formação identitária e de libertação, especialmente das pessoas inseridas nos contextos sociais desprivilegiados, pois implica em conhecer e reconhecerse na construção de sua história e missão de vida” (MACHADO; ABIB, 2011, p. 6). A ancestralidade nos permite pensar os corpos em movimentos, nesta pesquisa, são mulheres negras se movimentando. A ideia é evidenciar as suas experiências de vida atravessadas pelo racismo, sexismo e machismo, além das resistências e pluralidades que as levam a aderir às práticas antirracistas na perspectiva de (re)existirem na sociedade. Desse modo, todas estas concepções analisadas numa perspectiva interseccional, pois seus percursos são atravessados pelo racismo, sexismo, machismo, classicismo. Para isso, o diálogo foi em torno das concepções de Crenshaw (2002); Davis (1981); Ribeiro (2017); Akotirene (2019); Kyrillos (2020) considerando que esta concepção esteve presente há muito tempo nas experiências e articulações de mulheres negras, potencializando o conceito e evidenciando ser muito além de uma categoria e sim uma postura de sentir e pensar o mundo. Portanto, segundo Djamila Ribeiro, “a combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade permite uma verdadeira prática que não negue identidades em detrimento de outras” (RIBEIRO, 2017, p. 3). Além disso, Kiimberlé Crenshaw (2002) ao propor uma discussão sobre a perspectiva interseccional destaca que o “racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002, p. 177). A autora Gabriela Kyrillos (2020) ao realizar uma análise crítica sobre os antecedentes da interseccionalidade aponta para os cuidados de não esvaziamento do conceito, em relação a isso, Kyrillos destaca que o Carol Lima de Carvalho | 359 “apagamento se torna especialmente grava quando se observa que a origem da interseccionalidade está relacionada com as luta sociais e as elaborações teóricas de mulheres negras” (KYRILLOS, 2020, p.2). Além disso, a autora complementa “a ideia basilar da interseccionalidade é uma preocupação que já existia dos movimentos sociais e de textos teóricos desde muito antes do surgimento do termo e a apropriação no meio acadêmico” (KYRILLOS, 2020, p. 2). Isto é antes da academia passar a reconhecer o conceito, as dinâmicas dos movimentos de mulheres negras e movimentos feministas negros tinham como dinâmica uma perspectiva interseccional. Cabe ressaltar também que a autora Carla Akotirene (2019) também traz reflexões sobre interseccionalidade, pois para as mulheres negras e feministas negras ele é muito mais que um conceito, é uma teoria e uma ferramenta de luta política que emerge das ações cotidianas. Através das experiências de enfrentamentos e desafios políticos das mulheres negras é que se constitui os pensamentos feministas. Nesse sentido, para a autora, “a interseccionalidade instrumentaliza os movimentos antirracistas, feministas e instâncias protetivas dos direitos humanos a liderarem com as pautas das mulheres negras” (AKOTIRENE, 2019, p. 62) Akotirene destaca portanto que a interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica usada para pensar a estrutura do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado. Desse modo, as trajetórias de vida de mulheres negras, sejam elas articuladas em movimentos sociais ou não, devem ser reconhecidas a partir da interseccionalidade, principalmente por compreendê-las como sujeitos plurais. Dito isso, os conceitos, categorias e autores/as evidenciadas acima compõem a analise desta pesquisa. Importa destacar que as mulheres negras apontam a relevância daquelas que as antecederam, pois lutaram por direitos, cidadania, educação e melhores condições de vida, fazendo 360 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS com que elas pudessem dar continuidade a estas dinâmicas de (re)existências. E este movimento possibilitou identificarmos aspectos interessantes dentro de seus universos culturais, como por exemplo, a tradição oral, oralidade, corporeidade, movimentos e decolonialidade presentes nos espaços aos quais elas frequentaram e construíram na cidade. Um dos espaços que evidencio são as escolas de samba e também a produção do fuxico, que para elas eram momentos de sociabilidades e que permitiam visualizarmos as dinâmicas orais, corporais e de movimentos. Algo interessante para destacar neste sentido é a relação entre o dia a dia das mulheres negras em Florianópolis, autora Brignol (2003) em seus escritos evidenciou o cotidiano das mulheres afrodescendentes entre o século XIX e início do XX, destacando elementos dos universos femininos negros. Resultado de suas análises foram as relações entre corpos e os conhecimentos ancestrais transmitidos através da oralidade, possibilitando construção de identidades e identificações negras em Florianópolis. Atrelado a essa perspectiva de corpos negros e conhecimentos ancestrais, existe a musicalidade, um dos valores civilizatórios africanos que está presente tanto nos carnavais de escola de samba, blocos de rua e cotidiano dos universos culturais negros. Neste sentido, cabe destacar o bloco de carnaval Zé Pereira, festa que emergiu na Freguesia do Ribeirão da Ilha. O bloco proporcionava uma articulação e sociabilidade entre as mulheres e homens negros da cidade. Além de ter sido enredo de muitas escolas de samba da cidade. Outros espaços que evidenciavam uma ideia de comunitarismo e comunidade eram as praças, a primeira Praça da Freguesia e a Praça XV de Novembro (no centro da cidade) locais em que a movimentação entre a população negra era intensa, na qual utilizavam da oralidade para se Carol Lima de Carvalho | 361 comunicarem, transmitir e produzir conhecimentos. Assim como os Bailes Municipais e Clubes Negros, locais que evidenciam as corporeidades, movimentos e as formas de estar e ser no mundo. O Boi de mamão no Estreito, movimentava toda população. Por fim, a ancestralidade e espiritualidade presentes nas suas religiões Umbanda, Candomblé, Católica e Espírita. Todos estes universos culturais identificamos os conceitos apresentados, assim como uma mobilidade social que proporcionou um protagonismo destas mulheres na cidade e que contribuem para deslocarmos nossos pensamentos e evidenciarmos narrativas outras sobre a construção da cidade de Florianópolis. Considerações finais Diante de tudo que foi apresentado até aqui, convido você pra leitura da pesquisa intitulada “Trajetórias de mulheres negras em Florianópolis: transmitindo entre oralidades e letramentos” a qual estou dialogando com mais detalhes sobre as histórias e memórias das protagonistas, dissertação foi orientada pela Profa. Dra. Maria Antonieta Antonacci e defendida em março de 2019. Nós consideramos este trabalho um indicativo para estudos referentes às mulheres negras catarinenses. Além de possibilitar a ampliação dos pensamentos referentes aos universos culturais da educação, dos espaços culturais e sociais, e mulheres negras em movimento, assim buscando uma perspectiva decolonial para discussões. E por fim, buscando uma alteração do cenário hegemônico a respeito da história de Santa Catarina, viabilizando a presença da população negra, sobretudo das mulheres, assim como cooperar com implementação da Lei Federal 10.639/03 em todos âmbitos escolares. 362 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Referencias ABIB, Sara Abreu da Mata; MACHADO, Pedro Rodolpho Jungers. CORPO, ANCESTRALIDADE E AFRICANIDADE: por uma educação libertadora no jogo da capoeira angola. Revista Eletrônica de Culturas e Educação, Brasil, v. 4, n. 2, p. 116, nov. 2011 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polen, 2019. 150 p. AKOTIRENE, Carla. O que é Interseccionalidade?: Carla Akotirene. Carla Akotirene. 2018. 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O escopo do projeto é a criação e divulgação de materiais que contribuem para a qualificação profissional dos professores da rede de ensino e de acadêmicos de graduação e pós-graduação do campo das Ciências Humanas, embora o alcance extrapole os muros da universidade e as fronteiras do Brasil. O Laboratório AYA tem como base a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, articulados em uma relação dialógica com a sociedade (MORTARI; WITTMANN, 2018, p.161), desta forma desenvolve a teoria e a prática de forma conjunta na formulação e divulgação do conhecimento, visando contribuir para a luta e educação 1 Graduada - Universidade Estadual do Estado de Santa Catarina; helenagohl18@gmail.com 2 Graduanda - Universidade Estadual do Estado de Santa Catarina; lu.ferreiradasilva1109@gmail.com 3 Participantes desta ação: Adriano da Silva Denovac; Cadídja Assis Pinto; Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva; Emílio Ranieri Migliorini; Rodrigo Ferreira dos Reis. Orientado por Profª Drª Claudia Mortari e Profª Drª Luísa Tombini Wittmann. 366 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS antirracista. Paulin Hountondji (2010, p.133) nos questiona: “quão africanos são os chamados estudos africanos?” Este apontamento levanta questões sobre o discurso histórico e a invisibilização de populações africanas, onde a produção historiográfica legitimada é sobre África, porém não no diálogo com e a partir de África, o que serve para pensar também as histórias indígenas comumente contadas. O epistemicídio consiste em um processo colonial constante de deslegitimação de pessoas racializadas e de suas capacidades como sujeitos cognoscentes, produtores e portadores de conhecimento, assim como a inferiorização de suas produções em um sequestro duplo: a negação de sua racionalidade e a imposição de uma assimilação cultural (CARNEIRO, 2005, p.97). A história do Brasil é constituída no silenciamento das realidades de populações afro-brasileiras, africanas e indígenas4. Considerando este contexto, esta ação de extensão trabalha a partir da pesquisa, análise, produção e divulgação de materiais (audiovisuais, escritos, sonoros, imagéticos e pedagógicos) produzidos em diferentes espaços de memória, sobretudo por africanos/as, indígenas e afro-brasileiros/as. O site da Biblioteca Virtual AYA intenciona disponibilizar produções diversas sem hierarquizar o saber e o sentir, compreendendo que o conhecimento ultrapassa as barreiras da universidade, procurando “um movimento contra as fronteiras e para além delas” (HOOKS, 2017, p. 24). Permeando todas as vivências e suas especificidades, desta forma, promovendo reflexões críticas sobre a sociedade e compartilhando o sensível. Este trabalho objetiva apresentar três eixos do site5, analisando suas características e intencionalidades, assim como o processo de pesquisa 4 Discussão abordada no texto “Histórias compartilhadas: propostas universitárias de construção de conhecimentos decolonizados” da Profa. Dra. Claudia Mortari e Profa. Dra. Luisa Tombini Wittmann. 5 O site também possui o eixo “Ver e Ouvir”, voltado para produções sonoras e audiovisuais, ao qual abordaremos brevemente. Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 367 realizado pelos/as bolsistas na organização dos materiais para a biblioteca. São eles: “Experiências Sonoras”, espaço de sentipensar na articulação entre músicos africanos e indígenas; “Sala de Aula”, voltado para a divulgação de materiais didáticos nas temáticas afro-brasileiras, africanas e indígenas e “Para Ler”, onde realizamos a divulgação de textos acadêmicos do campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais, e de intelectuais indígenas, africanos e afro-diaspóricos. Este trabalho foi inscrito no eixo temático de África e Africanidades por isso, focalizaremos nos materiais relacionados a esta temática. Contudo, ressaltamos que os materiais indígenas possuem igual protagonismo e importância para esta ação de extensão. O projeto “Experiências Sonoras” nasceu como uma nova estratégia de postagens para o site, incentivando as produções próprias do laboratório com o objetivo de qualificar as pesquisas a partir de materiais pós e decoloniais. A princípio, o interesse do grupo voltou-se para o campo artístico, decidindo por trabalhar com músicos africanos, africanas e indígenas. Tentamos alguns formatos e com o decorrer das orientações das professoras fomos instruídas a fazer um levantamento mais aprofundado de artistas, focando em, como nos disse Profa. Dr. Claudia Mortari, “ouvir aos mais velhos”. O processo de levantamento foi engrandecedor, expandido nossa visão sobre a riqueza e multiplicidade de músicos e suas diferentes abordagens. Porém, logo fomos alertados pelo integrante do grupo Ms. Adriano Denovac do caráter colonial de encaixarmos estes artistas em “caixas”6, algo que foi constatado ao longo do processo, onde notamos que as intencionalidades permeiam os mais diferentes aspectos contextuais e culturais, impossibilitando definições simplórias. 6 Refere-se ao modelo de levantamento dos artistas, nos quais a tabela focava em “artistas”, “gênero musical” e “intencionalidade” 368 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Aprofundamos o debate com a leitura da entrevista de Rolando Vázquez (2016), “Aiesthesis decolonial y los tiempos relacionales” e o texto “Aesthesis Decolonial” de Walter Mignolo (2014), re-elaborando a proposta, decidindo na “construção de um espaço de diálogos múltiplos a partir do compartilhamento de músicas de artistas indígenas e africanas/os, para um exercício de escuta profunda. Além de ouvir, buscamos sentir essas composições instigando a aesthesis, aqui entendida como o processo de liberação dos sentidos7 (VÁZQUEZ, 2016, p.6). Ao iniciarmos a escrita, nos deparamos com a dificuldade de deslocamento das percepções coloniais que embaçam o olhar, e fomos instruídas ao giro epistêmico e estético (MALDONADO, 2018, p.46), partido dos artistas e suas produções para a reflexão, evitando focar nas faltas e silenciamentos impostos pela colonialidade. Atualmente, já realizamos a análise de questões como música e tradição; música e corpo-memória; movimentos sociais e sonsresistências; educação, resistência e territorialidades. Sempre no diálogo com e a partir dos artistas8 e textos de intelectuais africanos e afrodiaspóricos, articulando suas aproximações, sensações e contextos9. Como produções próprias do laboratório, assinalamos o lançamento do primeiro episódio do AYAcast10 no dia 04 de novembro de 2020. Na série inicial, intitulada Narrativas e Histórias Plurais, os episódios são resultantes dos férteis diálogos desenvolvidos no I Encontro Pós-Colonial 7 Para saber mais sobre a proposta, aesthesis e acessar os textos produzidos: https://ayalaboratorio.com/ 2020/06/26/projeto-musica/ 8 Artistas africanos já abordados: Amadou & Mariam, Fela Kuti, Orlando Owoh e as bandas Tinariwen e Atri N’Assouf. Sempre presente nas postagens no mínimo um artista africano e um indígena para a promoção conjunta do sentir-pensar. As referências de cada texto estão disponíveis nas respectivas publicações. 9 O primeiro texto intitulado “Convidamos você a um momento de escuta”, pontua algumas questões que transcorrem os textos: “O que é possível aprender com esses artistas? Quais deslocamentos essas músicas provocam? Quais ideias novas e modos de ação no mundo elas instigam? O que eu vejo e o que me olha? Entre as duas coisas estamos nós”. 10 Produção e Concepção: Profa. Dra. Claudia Mortari e Profa. Dra. Luisa Tombini Wittmann. Roteiro: Siméia de Mello Araújo, Maria Cristina Martins Calixto Coelho Cardoso, Isabel Idiarte Dargélio. Narrador e editor: Vinicíus Pinto Gomes. Voz de Chimamanda Adiche: Siméia de Mello Araújo. Disponível em: <https://ayalaboratorio.com/2020/11/04/lancamento-do-ayacast-podcast-do-aya-episodio-01-sobre-historias/> Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 369 e Decolonial (I EPD), ocorrido em outubro de 2019, organizado pelo Laboratório AYA na UDESC, e buscam, a partir da interlocução com pesquisadores/as, docentes, intelectuais e militantes sociais, difundir histórias e culturas de populações africanas e indígenas. A ação é vinculada ao projeto de extensão “Fazer e Contar Histórias: audiovisuais sobre temáticas indígenas e africanas”, portanto, encontra-se no suporte oral e audiovisual um caminho de diálogo com histórias outras, heterogêneas e intrincadas em diversas teias de conhecimento, desta forma focalizando a agência dos próprios sujeitos e suas formas de fazer e narrar. No primeiro episódio, intitulado Sobre Histórias, estabelecemos interlocução com palestrantes do I Encontro Pós-Colonial e Decolonial (I EPD), valorizando para além da existência de narrativas históricas plurais, suas formas de contá-las em atenção ao que a autora nigeriana Chimamanda Adichie alerta em seu célebre discurso sobre os “Perigos de uma única História”, encadeando reflexões acerca do imaginário social e das narrativas que permeiam a sociedade. Contemplando sobre quem organiza, controla e seleciona quais histórias serão contadas, assinalando a conexão entre poder e narrativa. Chimamanda nos diz: Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece uma história com o fracasso do estado africano, não com a criação colonial do estado africano, e você tem uma história totalmente diferente. (ADICHIE, 2009) Com o estabelecimento do positivismo no século XIX, e da colonialidade dentro da academia e dos mais diversos setores, tornam-se necessárias ponderações acerca da validação do conhecimento. A metodologia acadêmica ocidental faz parte da estrutura triangular da colonialidade sobre o ser, o poder e o saber, ordenando toda experiência corporal enquanto empecilho epistemológico, desconsiderando os 370 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS diversos laços visíveis e invisíveis entre as relações humanas e as histórias de populações indígenas e africanas, tendo a Europa enquanto hybris del punto cero11, constituindo o continente enquanto o ponto neutro de observação para todas as experiências humanas por meio de violências físicas e simbólicas (CASTRO-GÓMEZ, 2007). Portanto, o eixo “Sala de Aula” centraliza a divulgação e produção de materiais didáticos e dissertações que contribuem para a atuação na carreira docente nas temáticas de Estudos Africanos, História Indígena e História e Cultura Afro-Brasileiras. Incentivando a desconstrução de noções hierarquizadas e estereotipadas sobre vivências outras e modos de ser e estar no mundo por meio da escuta e do diálogo com histórias invisibilizadas pela colonialidade/modernidade. O material “Narrativas sobre a Diáspora Africana” é resultado da dissertação de mestrado da professora Carolina Corbellini Rovaris (2018) no PROFHistória da UDESC/FAED, orientado pela Professora Dr. Claudia Mortari, intitulada “Narrativas sobre a diáspora africana no ensino de história: trajetórias de africanos em Desterro/SC no século XIX”. O site foi elaborado como resultado final da pesquisa, partindo de um rico acervo de fontes sobre a vida de quatro homens que viveram na Ilha de Santa Catarina, no século XIX. Uma atividade que pode ser realizada coletivamente ou individualmente por professores e estudantes ao seguir o caminhar de Augusto pela cidade, descobrindo conexões e trajetórias de livres e libertos no sul do Brasil12. 11 “A ciência moderna pretende estar no ponto zero de observação para ser como Deus, mas não pode observar como Deus. É por isso que falamos de arrogância, do pecado dos excessos. Quando os mortais querem ser como os deuses, mas sem ter a capacidade de sê-los, eles incorrem no pecado da arrogância, e é o que acontece com a ciência ocidental moderna. Na verdade, a arrogância é o grande pecado do Ocidente: fingir ter um ponto de vista sobre todos os outros pontos de vista, mas sem que esse ponto de vista possa ter um ponto de vista" (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p.83) (tradução nossa). 12 Acesso ao material e dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2018/12/13/narrativas-sobre-a-diasporaafricana/> Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 371 O material didático “Memórias e Histórias de vida das populações de origem africana em territórios do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis” é resultado da dissertação de mestrado13 da professora Karla Andrezza Vieira (2016) e volta-se para as memórias e histórias da população de origem africana no território, refletindo sobre a História Local a partir da memória de sujeitos vistos como subalternizados, procurando quebrar com as concepções eurocêntricas que perpetuam práticas coloniais no ensino de História14. O trabalho do professor Bruno Ziliotto, “Provocações Crônicas”15, é resultado da Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em Ensino de História - Profhistória na UDESC-FAED, intitulada “Provocações Crônicas: a construção de um site educativo para repensar a escola, a disciplina de história e as Áfricas” (2016). Volta-se tanto para o professor quanto para o estudante que estiver interessado em investigar a escola, a construção da história, a história das Áfricas e o racismo. Disponibilizamos na biblioteca a dissertação que serviu de base para o site onde encontramse quatro crônicas e diversos links para vídeos, textos, fotos, charges e músicas que encaminham ao aprofundamento na temática. Pontuamos também a disponibilização do material História e Cultura Guarani na biblioteca, organizado pelo professor André Meyer, como resultado do Mestrado Profissional em Ensino de História, PROFHISTÓRIA (UDESC), partindo das reivindicações dos povos Guarani, principalmente Guarani Mbya, organizando as histórias a partir de três temas e de sua importância para o mbya reko (modo de ser Guarani Mbya): territorialidade, artesanato e educação Guarani. 13 Vozes, corpos e saberes do maciço: memórias e histórias de vida das populações de origem africana em territórios do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis. Orientado pela Prof.ª Drª. Nucia Alexandra Silva de Oliveira. 14 Acesso ao material e a dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2017/07/27/material-didatico-vozes-corpos-esaberes-do-macico/> 15 Acesso ao material e a dissertação: <https://ayalaboratorio.com/2017/10/01/provocacoes-cronicas/> 372 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Com estes materiais, e lançamentos futuros de outros materiais didáticos, busca-se o que o escritor africano de nacionalidade nigeriana Chinua Achebe (2007) propôs como “equilíbrio das histórias”, rompendo com uma compreensão única sobre a realidade (MORTARI; WITTMANN, 2018, p.159). O giro histórico é indispensável no repensar dos materiais didáticos, um processo que escancara o quão brancas e coloniais são as referências pré-estabelecidas pelos cânones ocidentais, regrados pela separação entre sujeito e objeto, homem e natureza, razão e emoção. Esta concepção de mundo é invariavelmente questionável diante de existências e narrativas outras, partidas de lócus de enunciação, permeados por diferentes experiências em relação à raça, ao tempo, ao viver e o sentir em múltiplos espaços geopolíticos (GROSFÓGUEL, 2008). Portanto, no eixo “Para Ler” são focalizados escritas que fomentem este questionar. Selecionamos alguns materiais e iremos abordá-los brevemente.16 “A invenção das mulheres”, livro de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2017), é de suma importância para o estabelecimento do contato com um pensamento africano. Levantando o debate acerca da teoria feminista nos estudos pós e decoloniais, abordando a realidade e percepções de mulheres africanas, discutindo sobre a categoria gênero e sua base de organização colonial. O livro “Cartografias em Construção: Algumas escritoras de Moçambique” da autora Ana Rita Santiago (2019) procura dar a conhecer escritoras moçambicanas, questionando quem elas são, suas identidades, tradições e cotidianos, refletindo sobre seus sonhos e representações de memória, partindo também para pensar a realidade de escritoras afro-brasileiras, ressaltando a relevância de suas produções. Já a coleção “Educação para as relações étnico-raciais” (2016) tratase de uma parceria entre UFFS, UDESC e financiada pelo FNDE e 16 Todos podem ser acessados pela aba Leituras - Para Ler no site. Pontuamos que o acervo disponibilizado na biblioteca é maior que a seleção realizada para este trabalho. Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 373 MEC/SECADI e é resultado de pesquisas nas áreas da História, da Educação e da Cultura de sujeitos africanos, afro-brasileiros e indígenas. O principal foco da coleção, dividida em quatro volumes (Estudos Africanos, Histórias Africanas e Afro-Brasileiras, As relações étnico-raciais na sala de aula e Protagonismo indígena na História) é contribuir para a qualificação docente e para a implementação das leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Disponibilizado também o artigo de Paulin J. Hountondji sobre o conhecimento de África e conhecimento Africanos, indagando sobre as tradições intelectuais e projeto abrangente de acumulação epistemológica iniciada e controlada pelo Ocidente. Expondo o caminho das pesquisas sobre o tema, massivamente direcionados e alinhados com os aportes e abordagens teóricas do Norte, e incentivando novas orientações e ambições para pesquisadores africanos em África. O livro “O Pensamento Africano Subsaariano”, escrito por Eduardo Devés-Valdés, contempla o crescimento de expoentes intelectuais ao longo do último terço do século XX. Considerando o período entre 1850 e 2000, abordando questões políticas como construções nacionais e econômicas, o desenvolvimento e a dependência. Sociais, como as étnicas e de gênero. Culturais, como a educação, a criação de um saber africano e a disputa pela hegemonia da compreensão da África, e internacionais, como o colonialismo, o neocolonialismo, a globalização. A entrevista e o artigo disponibilizados de Mahfouz Ag Adnane: “Arte e história: raízes coloniais do movimento cultural tamacheque Ichúmar (1893/4 à 1963)”, abordam a região do Saara central, atentando-se para os movimentos de resistência cultural dos povos Kel Tamasheq. Discutindo um movimento musical, político e com ramificações culturais amplas, criado e conduzido pela juventude Tamacheque para a denúncia dos desdobramentos da colonização francesa. Diversos tópicos mostramse relevantes, o mundo nômade, o estabelecimento de fronteiras 374 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS alienantes no território, assim como as diversas influências musicais e o envolvimento com a música rock and roll. No dia 16 de outubro de 2020 foi realizado o lançamento online do livro em formato de Ebook gratuito: “Diálogos Sensíveis: produção e circulação de saberes diversos”17, resultante dos debates empreendidos nos simpósios temáticos do I Encontro Pós-colonial e Decolonial, um sonho coletivo dos/as integrantes do Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais (AYA-UDESC) e de outros grupos envolvidos na rede de pesquisadores e da luta antirracista. Assim como o evento, o livro é permeado pela problemática central elaborada coletivamente ao longo da construção da proposta do evento: “Como, a partir de lugares diversos e saberes plurais, construímos diálogos e projetos alternativos?”. Os tópicos centrais trabalhados no evento foram: “Educação: Saberes e Interseccionalidade”, “Mundos do Trabalho e Redes de Sociabilidades”, “Territorialidades e Mobilidades”, “Performances Decoloniais”, “Narrativas históricas” e “Descolonizar a Universidade”. Para tanto, foram selecionados autores que abordam variados temas de seus respectivos lócus e espaços geopolíticos. Temas como educação, ciência, feminismo e gênero, antropologia, teatro, arte, e muitos outros. Desta forma debatendo sobre questões pertinentes as pessoas e populações plurais, impulsionando a troca de saberes de forma igualitária e as novas interconexões necessárias para um repensar de nosso mundo. Para além desta produção, está previsto para o final de 2020 o lançamento e a disponibilização gratuita de outro livro incluído da Coleção AYA, contando com textos dos palestrantes e mediadores presentes no I EPD, realizando movimentos potentes de desobediência epistêmica. 17 E-book disponível em: <https://ayalaboratorio.com/2020/10/16/dialogos-sensiveis-producao-e-circulacao-desaberes-diversos-livro-aya/>. Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 375 O site também possui o eixo “Ver e Ouvir” de equivalente importância para a divulgação de materiais audiovisuais circunscritos as temáticas selecionadas. Devido ao contexto de pandemia do (COVID-19) nota-se um crescimento expressivo do uso de formatos virtuais como as lives, portanto atualmente divulgamos as realizadas por integrantes do Laboratório AYA sobre diversos temas como sexualidade, literatura, história das Áfricas e racismo científico. Em produções fílmicas ressaltamos exemplos como “Na dobra da capulana”, um documentário realizado pela MOCIK – Cineastas Moçambicanos Associados por meio de relatos de mulheres moçambicanas sobre as simbologia e as implicações sociais, culturais e econômicas da capulana no universo feminino, interligadas pelos traços, cores, padrões, desenhos, dizeres e nomes de cada capulana, onde se encontram histórias singulares. “La Noire de…”, é um filme de Ousmane Sembène, um dos grandes expoentes do cinema africano, engajado em lutas e denúncias contra o colonialismo e o racismo. Nele uma jovem senegalesa vai trabalhar na casa de um casal francês na Riviera Francesa. Esta mudança demonstra as contradições presentes em uma romantização narrativa sobre a Europa, pois lá se vê em choque com a estrutura do racismo que a mantém presa na casa da família, trabalhando como doméstica. Evidenciando um discurso sobre os processos de marginalização e inferiorização das populações africanas no continente europeu. Nesta aba do site pode-se encontrar diversos outros filmes e produções audiovisuais, universos e perspectivas outras que fomentam a expansão da realidade, de referenciais visuais e representativos. O arrolamento do material ocorre por meio das variadas pesquisas empreendidas pelos integrantes do laboratório, sendo responsabilidade dos atuantes no projeto em questão realizar o contato e organização dos 376 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS materiais para a biblioteca. Processo que inclui: pesquisa sobre os direitos autorais da obra; seleção da imagem; escrita do resumo; postagem e divulgação nas redes sociais. O Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais desenvolve dois programas de extensão com três ações em cada18, portanto para materiais de produção própria, como o AYAcast, integrantes das diferentes ações se encarregam do processo de elaboração da proposta, pesquisa, escrita, gravação e edição, realizado coletivamente e com a orientação das professoras coordenadoras e, posteriormente repassado aos responsáveis pela Biblioteca AYA. Atualmente o site possui 75 postagens e, acumula desde seu início, 108 mil visualizações e 37 mil visitantes. Sendo as categorias mais visualizadas “Para ler” e “Ver e Ouvir”. Concluímos pontuando o caráter permanente da ação de extensão “Biblioteca Virtual Estudos Africanos e Indígenas” no Laboratório AYA, atualmente passando pelo processo de profissionalização do site, atuando com produções próprias do laboratório, assim como na divulgação de outros materiais diversificados nas temáticas, procurando atender aos mais diversos públicos, oferecendo um rico acervo de produções relevantes de artistas, intelectuais e pensadores afro-brasileiros, africanos e indígenas. Referências ADICHE, Chimamanda. O Perigo de uma História Única. TEDTalks, jul. 2009. Disponível em:<https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_si ngle_story?language=pt-br>. Acesso em: 25 novembro 2020. 18 O programa “Histórias Africanas e Indígenas: Olhares e Práticas na Educação” conta com as ações: Narrativas africanas e indígenas e o ensino de história; Histórias africanas e indígenas: epistemologias e saberes em diálogo e Curso de Formação Continuada: Histórias e narrativas africanas e indígenas. O segundo programa “Olhares, Vozes e Memórias: Saberes Africanos e Indígenas” abrange as ações: I Encontro de Estudos Africanos; Fazer e Contar Histórias: Audiovisuais Sobre as Temáticas Africanas e Indígenas e Biblioteca Virtual Estudos Africanos e Indígenas. O Laboratório possui também com dois projetos de pesquisa: A Revolta do Olhar: Concepções de História na Narrativa Audiovisual Guarani, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Luisa Tombini Wittmann; e Modos de Ser, Ver e Viver: O Mundo Ibo a partir da Escrita de Chinua Achebe (África Ocidental Séc. XX), coordenado pela Prof.ª Dr.ª Claudia Mortari. Helena Fediuk Gohl; Luiza Ferreira da Silva | 377 CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p.96 - 124. CASTRO-GOMES, Santiago. Decolonizar la universidad: la hybris del punto cero y el diálogo de saberes. In: CASTRO-GOMES, Santiago y Grosfoguel, Ramón (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 79-92. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], v. 80. Disponível em: http://rccs.revues.org/697, 2008. HOOKS, B. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. São Paulo: Ed. WMF, 2013. HOUNTONDJI, Paulin J. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa y MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. 2.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2015, p. 131-144. MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 171-169. MIGNOLO, Walter. Aesthesis Decolonial. in: BORSANI, Maria Eugénia; MELENDO, Maria José. Arte y estética en la encrucijada descolonial II. Ciudad Autônoma de Buenos Aires: Del Signo, 2014 MORTARI, Cláudia; WITTMANN, Luisa Tombini. Histórias compartilhadas: propostas universitárias de construção de conhecimentos decolonizados. Revista PerCursos, Florianópolis, v. 19, n.39, p. 154 - 176, jan./abr. 2018. 378 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS VÁZQUEZ, R.; BARRERA CONTRERAS, M. Aiesthesis decolonial y los tiempos relacionales. Entrevista a Rolando Vázquez. Calle 14 revista de investigación en el campo del arte, v. 11, n. 18, p. 76-93, 4 oct. 2016. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/ servlet/articulo?codigo=5687728>. Acesso em 16 de junho de 2020. Capítulo XXII Ensino de História das Áfricas e a Literatura: a produção de um e-book ilustrado em diálogo com a obra Efuru de Flora Nwapa (Nigéria, 1960) Tathiana Cristina S. A. Cassiano 1 Introdução As discussões apresentadas neste capítulo são decorrentes da pesquisa que desenvolvi no Mestrado em Ensino de História (PROFHISTÓRIA) da Universidade do Estado de Santa Catarina, na qual explorei as possibilidades da Literatura enquanto instrumento na produção do conhecimento histórico acerca das Áfricas2. Em consonância com os pressupostos contidos na Lei 10.639/2003, mais tarde alterada pela Lei 11.645/2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira (2004), desenvolvi um material didático na forma de e-book ilustrado a partir da literatura da escritora nigeriana Flora Nwapa e em diálogo com intelectuais africanos e com os campos de estudo pós colonial e decolonial, evidenciado pela intencionalidade de romper com a visão eurocêntrica e essencializada das experiências africanas e, acima de tudo, destacar o protagonismo das mulheres 1 Mestra – PROFHISTORIA/UDESC; tathi.leandro@gmail.com 2 Utilizo o termo “Áfricas” no sentido de que este evidencia a multiplicidade de povos, culturas, organizações sociais e política do continente africano (MORTARI, 2016, p.15) 380 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS africanas, particularmente as mulheres igbos3, diante do contexto do colonialismo e pós independência na Nigéria A Literatura de Flora, suas entrevistas e escritos são considerados aqui formas de enunciação, carregadas da visão de mundo de sua autora, de suas experiências e perspectivas, portanto, testemunho histórico a partir do qual encontramos evidências do contexto e dos processos históricos relativos à Nigéria (MORTARI,2016). Neste espaço compartilharei a trajetória de como a pesquisa se constituiu e resultou na produção do e-book. Começo este capítulo com as reflexões acerca da importância do ensino da História das Áfricas na disciplina de História e as múltiplas perspectivas de aprendizagem oriundas da articulação entre História e Literatura, particularmente a Literatura Africana. Na segunda parte faço uma breve apresentação da autora, Flora Nwapa, do seu lócus e da obra Efuru (1966). E, por fim, descrevo a construção do e-book ilustrado, material didático desenvolvido a partir de todas essas ponderações. As Áfricas e o Ensino de História: A História do Ensino de História no Brasil evidencia que a constituição deste campo sempre assentou-se em base eurocêntrica, com um currículo inspirado no modelo clássico francês e a permanência da centralidade nos processos históricos europeus, enquanto que os eventos relativos à História nacional ou latino-americana apareciam enquanto complementos (BITENCOURT, 2007). A partir da segunda metade do século XX, há uma ampliação de conteúdos sobre Brasil e América em geral, porém o modelo europeu civilizatório se mantém, organizado em uma ordem cronológica linear ainda presente nos materiais didáticos da atualidade. 3 Igbos são um dos inúmeros povos que ocupam o território nigeriano, particularmente na região Sudeste em cidades como Enugu, Aba, Ugwuta, Onisha e Port Harcour. Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 381 Neste modelo, salta aos olhos como a História de povos originários, africanos e afrodescendentes é invisibilizada e os indivíduos representados em uma condição de subalternidade e sempre a partir do olhar do outro. Essa exclusão fundamentou uma percepção errônea da identidade nacional que, construída sob a égide da colonialidade4, apagou a presença indígena e africana. O preconceito e a ignorância sobre esses povos, raiz do ocultamento de suas Histórias, relaciona-se com a necessidade de domínio dos grupos dominantes cujas sociedades serviram de espelho para a construção dos saberes oficiais sobre o Brasil (LIMA, 2004). No caso de História das Áfricas o ocultamento é ainda mais emblemático. Coisificados e tratados como vítimas passivas e sem protagonismo de suas Histórias, as populações africanas são contempladas nas discussões do Ensino de História somente no contexto da escravização e do neocolonialismo. Foi pensando sobre a necessidade de promover um rompimento com esse apagamento e com a perspectiva eurocêntrica e colonial na produção de conhecimento histórico das Áfricas e da presença africana no Brasil, aliado à luta antirracista, que diversos setores do movimento negro do Brasil mobilizaram-se por políticas públicas mais assertivas e que culminaram no processo de elaboração da Lei 10.639/2003 e nas Diretrizes de 2004. Esses dispositivos legais foram passos importantes para se pensar um ensino construído fora das inúmeras simplificações acercas das Áfricas e de visões estereotipadas das experiências das populações africanas, tanto no passado quanto no presente. Pensando que a negação da contribuição africana e de seus descendentes é um “fator de exclusão e produção de desigualdade”, a implementação da Lei e das 4 Colonialidade aqui é entendida como “um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder” (QUIJANO, 2010, p. 73) 382 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Diretrizes “colabora sobremaneira para o combate ao racismo e à discriminação” (MORTARI, 2016, p. 43). Malgrado os esforços de pesquisadores e educadores na última década em fazer valer um ensino de História em consonância com a legislação e as Diretrizes, identifica-se nos livros didáticos uma permanência na abordagem unilateral dos processos históricos no continente africano e a insistência de usos de expressões eurocêntricas para estudos de eventos específicos do contexto africano além de relacioná-los com a História europeia, tirando-lhes a centralidade (SILVA, 2018). Nesse sentido, os conteúdos de História das Áfricas devem contribuir para a construção de um olhar ampliado sobre as experiências e eventos históricos do continente, destacando a complexidade, a diversidade e o protagonismo de suas populações. A partir dos pressupostos evidenciados nas Diretrizes, que é o de “ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira”, e que sejam abordadas nos estudos em sala de aula as “contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia” (BRASIL, 2004, p. 17) e, eu acrescento, fugindo da armadilha de considerar as culturas como algo “fixo” ou “imutável”, é preciso uma epistemologia outra que reconheça e valorize as pluralidades e diversidades de experiências dos sujeitos, sem hierarquizá-las. Ou seja, pensando especificamente em uma proposta de ensino sobre as experiências de mulheres africanas igbos durante o contexto da colonização britânica no território do atual Estado da Nigéria, é necessária uma proposta de prática de ensino que desloque o lócus de enunciação para as próprias mulheres africanas igbos. Considero que a Literatura é o instrumento adequado para tal intento. Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 383 Flora Nwapa: a vida e a obra Florence Nwanzuruahu Nwapa (1931-1993), mais conhecida pelo pseudônimo Flora Nwapa, foi professora, escritora e editora de origem igbo, nasceu e cresceu em Ugwtua5, cidade do Estado de Imo na região sudeste da Nigéria. Ao contrário da maior parte das mulheres em sua época, Flora frequentou escolas missionárias de educação primária e escolas de educação superior na Nigéria (Universidade de Ibadan) e na Escócia (Universidade de Edimburgo) (CHUKU, 2013). Ela é reconhecida como a primeira escritora africana a publicar uma obra em inglês e obter reconhecimento internacional e também por ser a primeira mulher em África a comandar uma editora. Flora também atuou na administração do serviço público e ocupou cargos nos Ministérios da Saúde e Previdência Social e no das Terras, Pesquisa e Desenvolvimento Urbano (ibid.). O diálogo com a autora se deu inicialmente a partir do entendimento de suas experiências e vivências na conjuntura dos eventos relacionados à sociedade igbo para, em seguida, identificar como essas características se refletem nas intencionalidades de sua escrita. Flora escreveu cinco obras literárias, sendo Efuru (NWAPA, 1996) a sua obra de estreia. Além disso publicou livros de contos e livros infantis. Efuru foi um marco na literatura nigeriana não só por ter sido pioneiro no reconhecimento internacional da escrita literária de mulheres africanas, mas também por evidenciar uma perspectiva feminina que, de acordo com Flora, era negligenciada pela escrita masculina de seus colegas africanos (UMEH, 1995). O livro é o número 26 de uma série intitulada “African Writers Series” da Editora Heinemann, com sede em Londres, é escrito no idioma inglês falado pelo povo igbo da Nigéria, uma variação do inglês 5 De acordo com a Nnaemeka (1995, p. 103), Ugwuta é o nome dado pelo povo igbo a cidade de Oguta. Os europeus a renomearam por sua incapacidade em pronunciar “gw”. No texto optei pelo uso do nome original, dado pelo povo que ali vivia e ainda vive. 384 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS nigeriano com elementos da cultura e idioma igbo e que podem ser percebidos no esforço de recuperar a atmosfera e sabedoria da oralidade por meio de provérbios (OLIVIA, 2013), e por estratégias de intencionalmente se distanciar da língua colonial e transmitir a visão de mundo igbo, naquilo que foi chamado por Herbert Igboanusi de “africanização” deliberada da língua inglesa (2001, p. 376). Efuru é a personagem principal que dá título à obra. Todas as histórias das outras personagens estão conectadas com a dela. Flora a descreve como uma mulher respeitada, independente e responsável por suas escolhas e que enfrenta dilemas inerentes ao casamento e maternidade, elementos considerados fundamentais no papel social da mulher igbo, mesmo naquelas com maior poder econômico. É a busca por negociar esse papel que se desenvolve toda a trama de Efuru, destacandose a divindade igbo, Uhamiri, como a personagem central no papel de legitimar a liberdade e a independência feminina articuladas com a vida em comunidade. A leitura e a tradução da literatura foram acompanhadas da busca de elementos que evidenciam o olhar de Flora sobre as transformações que as mulheres igbos tiveram em seus papéis dentro da comunidade. Defendo que a trajetória de Flora e das suas personagens, bem como as personalidades a elas atribuídas, nos permitem estabelecer conexões com o contexto histórico no qual estão inseridas (colonialismo e pós independência) e entender a visão de mundo e sentidos da história, pois autora e obra estão atreladas a um tempo e a um lugar (MORTARI, 2016). Em suas entrevistas, Flora nunca escondeu o propósito de personificar em suas personagens a assertividade e independência femininas, no sentido de projetar uma imagem mais equilibrada da feminilidade africana e de como as mudanças sociais, econômicas e políticas a partir da metade do século XX na Nigéria afetaram as experiências das mulheres (NWAPA, 2007). Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 385 O interesse da autora está nas rotinas e rituais da vida cotidiana, nas experiências individuais e coletivas, nas organizações, na cosmogonia e nas estratégias de sobrevivência (CHUKU, 2013) e por meio das histórias de Efuru elenquei temas construídos a partir de categorias centrais presentes ao longo de toda a narrativa: cosmogonia e ancestralidade, colonialismo, trabalho, educação e relações sociais. Levando em conta uma episteme decolonial que emancipa os sujeitos, considerando-os como produtores de conhecimento e não como objetos de estudo (HOUNTONDJI, 2008), os temas elencados foram compreendidos a partir de uma agenda de investigação em diálogo preferencialmente com intelectuais africanos e com o cuidado de não incorrer em uma leitura de vitimização que reduz a experiência histórica do continente a meros fenômenos que são sujeitos a um conjunto de forças maiores que escondem as singularidades locais. Desse modo, como nos propõe Mortari (2016, p. 51) em uma questão para problematizarmos por intermédio da literatura, “o que o autor e sua escrita nos permitem desvendar do processo histórico?”. No tema “colonialismo”6, evento que M’Bokolo (2009) descreve como ruptura no processo histórico das Áfricas, a violência colonial bem como o impacto desta no modo de vida igbo e em particular no status social da mulher, aparecem na descrição do passado do pai de Efuru, que enriqueceu graças ao comércio transatlântico de escravizados, na presença do discurso civilizatório dos missionários cristãos, nas restrições impostas à produção local de bebidas, evidenciando como as atividades econômicas voltavamse para os interesses do comércio internacional britânico (FALOLA; HEATON, 2008), nas estratégias que as mulheres usaram para contornar 6 Colonialismo: “estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial” (QUIJANO, 2010, p. 73). 386 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS essas proibições e continuar produzindo, por exemplo, o “gin” caseiro, e no papel das mulheres mais velhas, como a personagem Ajanupu, de guardiãs e transmissoras dos costumes que promoviam o equilíbrio da comunidade, equilíbrio esse ameaçado pelas gerações de “frequentadores de igreja” (NWAPA, 1966, p. 223). Temas como “trabalho” e “cosmogonia” aparecem de forma articulada na escrita de Flora. A prática agrícola historicamente relacionava-se a varias esferas da vida igbo, principalmente o cultivo do inhame, considerado um conhecimento adquirido pelos ancestrais através das divindades. A terra é a fonte de morada, sustento e principal espaço de passagem dos ancestrais para o mundo dos espíritos (UZUKWO, 1982). A personagem principal, Efuru, é uma mulher que enriqueceu graças ao comércio de inhame, lagostim e outros produtos agrícolas. Com o colonialismo e o direcionamento forçado da mão de obra masculina para as atividades econômicas imposta pelo colonizador, muitas mulheres assumiram o papel na produção de alimentos (FALOLA; HEATON, 2008), alterando a relação da sociedade igbo com o trabalho e, consequentemente, o espaço social da mulher. Essa problemática aparece nas narrativas de Flora referentes a Nwabata, Ogea e Efuru. Essas informações resultaram na proposta de material didático. Um material que traz a narrativa de um processo histórico sob a perspectiva de uma autora africana/nigeriana/igbo, por meio de suas personagens, mulheres igbos. Ele tem o propósito de promover uma aprendizagem histórica das Áfricas tal qual bell hooks7 (2013) sugere, que cria a consciência da diversidade de experiências, em particular das experiências das mulheres igbos africanas, sempre no sentido de positivação destas. 7 bell hooks é o pseudônimo da intelectual afro americana Gloria Jean Watkins inspirado em sua avó materna. A escolha da grafia em minúsculo, de acordo com a autora, serve para enfatizar o conteúdo de sua obra e não a sua pessoa. Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 387 O E-book ilustrado O material didático intitulado “Efuru: a história das mulheres igbo na literatura de Flora Nwapa” foi pensado a partir de reflexões teóricas e metodológicas que se pautam no argumento de que as narrativas literárias, articuladas com o entendimento do lócus de seu autor, são instrumentos de produção de conhecimento histórico e que também possibilitam uma prática pedagógica que contempla as Áfricas em sua diversidade e especificidades e dentro dos parâmetros estabelecidos pelas Diretrizes de 2004. Tendo em vista este objetivo, selecionei seis personagens, Efuru, Ajanupu, Ossai, Nwabata, Ogea, Uhamiri (a deusa do lago), a partir das quais desenvolvi textos narrativos inspirados na literatura acerca de cada uma delas de modo que o leitor conhece suas características, as relações entre cada uma delas e com o contexto. As narrativas estão acompanhadas de ilustrações dessas mesmas personagens em diálogo com as histórias descritas e que permitem um processo amplo de leitura para além do textual. Para evidenciar a articulação dessas narrativas com a literatura de Flora, trechos traduzidos da obra que contextualizam a informações colocadas em destaque no texto, foram inseridos ao longo das páginas. 388 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Figura 1 – Imagem do material didático - Efuru Fonte: Material didático, 2020, p. 13 As narrativas não possuem um fim em si mesmas, são ferramentas de aprendizagem para o compreender o passado e ativar o pensamento (SCHMIDT, 2008), portanto estão vinculadas com os temas selecionados ao longo da leitura. O objetivo é que as narrativas, articuladas com o contexto no qual se inserem, possibilitem a apreensão de conceitos presentes nestes temas. Para isso, foram produzidos textos didáticos sobre cada um desses temas em interlocução com intelectuais africanos do campo da História, Literatura, Linguística, Antropologia, entre outros. O material está em formato e-book, um livro digital, em extensão .PDF, cujo acesso é disponibilizado gratuitamente por meio do site do AYA - Laboratório de Pesquisa Pós Colonial e Decolonial8, grupo do qual sou integrante. O formato digital facilita a circulação do material e o acesso dos leitores por computador, tablet ou celular, e amplia as possibilidades pedagógicas em sua utilização. 8 Disponível em <https://ayalaboratorio.com/> Tathiana Cristina S. A. Cassiano | 389 Além das narrativas e textos citados anteriormente, há uma breve biografia de Flora Nwapa, contextualização histórica do povo igbo, apresentação da obra Efuru e as fontes de pesquisa, ou seja, trechos da obra por mim traduzidos e organizados em categorias e relacionados aos eventos narrados na literatura. A estrutura do material o divide em partes independentes entre si, conforme demonstrado na Figura 2, dando ao leitor autonomia na forma de utilização. Figura 2 – Sumário do material didático Fonte: Material didático, 2020 Conclusão O desafio a que me propus foi o de desenvolver estratégias outras para um ensino de História em diálogo com essas narrativas presentes na literatura de Flora Nwapa. Como essa literatura se encontra em língua inglesa e, dada a importância da vida e obra de Flora para compreender a perspectiva desta sobre a mulher dentro contexto da Nigéria no período do colonialismo e no pós-independência, era preciso que essa estratégia incluísse a produção de um material para uso didático no qual não só fosse 390 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS possível conhecer a autora e a obra, mas também articular as histórias dessas com o contexto e, assim, possibilitar a construção do conhecimento histórico acerca da Nigéria destacando as especificidades e complexidades dos seus processos históricos. Os caminhos percorridos por meio das ponderações brevemente apresentadas neste capítulo, resultaram no desenvolvimento de um material didático que contemple os objetivos propostos e se coloque como uma ferramenta na construção de “práticas educativas que colaborem com um equilíbrio de histórias, ao aprender com conhecimentos indígenas e africanos, por meio da discussão de materiais diversos produzidos por eles mesmos.” (MORTARI, WITTMANN, 2019, p 23). Creio que uma prática pedagógica que nos permite o descortinar de mundos outros por meio da Literatura, atende às determinações da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes de 2004 e, principalmente, promove uma educação emancipadora, com o compromisso antirracista, de combate à violência e que garante o direito à diferença. Referências BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Identidade nacional e ensino de história do Brasil. In: Ensino da História e Memória Coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007. BRASIL. Ministério da Educação. 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Durante o período de Guerra Fria na América Latina, Oesterheld desenvolveu planos de intervenção nos meios comunicacionais em direcionamento ao público infanto-juvenil durante os anos cinquenta. Esta perspectiva se baseia ao estímulo à produção de artistas nacionais mediadas pelos esquemas de prensa localizada na distribuição de impressos no país. As revistas de baixo custo, sobretudo as historietas (Histórias em Quadrinhos [HQs] na Argentina), circulavam em bancas de jornais localizadas em rotas comerciais, servindo a um público amplo e concreto sintetizado pelo urbanismo de Buenos Aires. Ao formalizar seu projeto pela criação da editora Frontera em 1955, o editor e roteirista 1 Mestrando pelo programa de pós-graduação em História pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em História pela mesma universidade. Desenvolve pesquisa sobre os quadrinhos argentinos na década de 50, com orientação da História do Impresso e História Cultural. lpires@discente.ufg.br 396 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS organiza um campo artístico a fim de destacar a produção local e incentivar o comércio do patrimônio nacional por meio de revistas baratas e de fácil acesso econômico (SOARES, 2007, p. 46). Assim, tiragens expressivas de noventa mil exemplares chegavam para realizar ao leitor a força dos artistas argentinos durante a primeira metade do século XX. Assim, Oesterheld se faz personagem importante para a história argentina em diferentes níveis de profundidades. Pois, realizado como autor fundamental para o aprimoramento editorial e narrativo dos quadrinhos nacionais, também participou da guerrilha armada em defesa da liberdade política e social na Argentina durante a década de 1970. Viveu pela arte, morreu pela política. Oesterheld é um dos milhares de desaparecidos políticos durante as ditaduras latinas; entretanto, o seu projeto de identidade cultural e defesa do patrimônio nacional permanece inalienável até o tempo presente. Desta forma, este artigo tem como, fundamentalmente, suscitar o debate em torno da iconografia realizada por Oesterheld como militante e roteirista. Levantando pontos chaves para a história biográfica, penso em como esta memória é apropriada ao longo das décadas e como, apesar de distante, as narrativas tornam-se tão perceptíveis na política e cultura contemporânea. Manifesto pró-historieta nacional Ao realizar-se como editor e autor, Héctor Oesterheld decide ser, então, empresário no ramo editorial. Preocupado com as necessidades narrativas e a elaboração de um projeto editorial a fim de proteger os sentidos editoriais nacionais, Oesterheld cria a editora Frontera. O editorial tem como intenção a formalização do campo cultural artístico e impresso da Argentina na década de 50 com prerrogativas que circulavam ao redor das historietas. Assim, de forma dinâmica, as revistas divulgadas pelo editorial Frontera tinha como necessidade básica a consolidação de Leonardo Pires Nascimento | 397 métodos e estratégias narrativas para a codificação da cultura argentina. Ainda, Laura Vazquez (2010, p. 37) sugere que esta organização e nova dinâmica de publicação e leitura das historietas é, de fato, uma forma de apresentação de um produto distinto: as narrativas de qualidade, moderna, adultas e argentinas é uma maneira de constituição do cenário cultural em diversos níveis – tanto ao leitor quanto aos autores. Desta forma, o manifesto publicado na contracapa da revista Hora Cero Suplemento Semanal (1957), brada em caixa alta: “defendemos la historieta”. O uso do manifesto em publicação sugere, por decisões editoriais, alguns posicionamentos enfrentados pelo grupo Frontera em atuação profissional decisiva na atual conjuntura do mercado: a valorização das Histórias em Quadrinhos e o ataque deliberado contra o bloco americanista instalado no país. Em primeiro lugar, as HQs cerceados pela cultura popular estadunidense por conta do vínculo entre juventude e delinquência, de sobremaneira, orientados pela publicação Seduction of the Innocent (1954) de Frederic Wertham, sofreu duras críticas tanto dos órgãos institucionais, quanto das camadas populares. Em avanço deste pensamento retrógrado e sem fundamento, por conta da falta de base metodológica do trabalho de Wertham, afetou a distribuição de quadrinhos por toda a área de influência dos Estados Unidos e nos países sublocados em sequência. As declarações de cunho político tiveram tom decisivo na opinião pública e comercialização dos quadrinhos, sobretudo, vinculados ao leitor infantil. A primeira expressão deste manifesto completa o significado básico da distribuição dos quadrinhos: “os quadrinhos são maus quando os fazem mal” (OESTERHELD, 1957, p. 16). Oesterheld toma parte do discurso amplo que circula entre as massas e recebe a crítica como uma forma de localizar a sua produção editorial dentro de um espectro mais amplo e decisivo para a cultura do impresso; a defesa pela historieta parte da necessidade de recobrar os sentidos 398 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS qualitativos das narrativas em quadros e suscitar o retorno ao consumo deliberado do produto. O manifesto tende a orientação de sentido com base na necessidade cultural dos quadrinhos, a proposta da revista em questão elenca pontos de discussão moral e ética, ampliando os sentidos narrativos da arte e tocando no sentimento latino-americano de reconhecimento do indivíduo socialmente marginalizado. O que leva ao segundo ponto do manifesto. O sentimento anti-americano torna-se saliente desde a primeira edição da revista. Em tom claro e direto, o editor diz: “Apresentamos [a revista] com legítimo orgulho de editores, sabendo que com Hora Cero Semenal fazemos um novo aporte de valor ao grupo de revistas que, dando as costas ao material estrangeiro, mais barato mas quase sempre de qualidade inferior, preferem abrir suas páginas ao material argentino” (OESTERHELD, 1957, p. 16). O tom político de expurgar a publicação estrangeira no país se localiza na necessidade de reforçar o patrimônio nacional, mas, essencialmente, direcionar o debate público em tom crítico contra o imperialismo cultural em ascensão. Alan McPherson (2003, p. 6) assume que o anti-americanismo se origina em diferentes formas de representação nos países da América Latina. Assim, considerando o posicionamento subversivo de tom reacionário das políticas de intervenção cultural dos produtos de influência estadunidense, Oesterheld configura o campo em sentido cultural para expropriar a influência norteamericana no país e realizar a força das narrativas intelectuais nacionais. Este fato se baseia na necessidade de procurar uma identidade artística fruto da ruptura intelectual no período peronista e durante o governo militar da Revolução Libertadora (1955). Com a redemocratização pela eleição de Arturo Frondizi, o produto estrangeiro agrega ainda mais valor. Assim, buscando uma necessidade de reafirmar a soberania cultural do povo argentino, a editora Fontera parte da busca de isolamento crítico do Leonardo Pires Nascimento | 399 produto importado – como localizado na citação anterior – e agregar status ao artista nacional com a especialização do traço autoral. Esta colocação parte não apenas da defesa dos quadrinhos enquanto produto cultural de massa e de alta penetração nas camadas populares, mas também localizar a produção cultural nacional em sentido de renovação. Ainda sobre este documento, há a divulgação das histórias argentinas, caracterizadas pela qualidade de produção elencados pelos artistas competentes e, o mais importante, latinos. A partir desta defesa, a editora compreende-se como uma instituição divulgadora e incentivadora das funções qualitativas dos quadrinhos, não censurando ou inibindo: ao contrário, as historietas tomam forma e identidade na Argentina dos anos 50. Os primeiros caminhos da luta política Além da concretização do projeto editorial de Oesterheld na Argentina, a mesma década sofre os conflitos políticos latino-americanos em profundas crises: com maior destaque, a Revolução Cubana (1959) orienta novos sentidos de guerrilha contra o imperialismo norteamericano, sugerindo a via de autonomia e soberania política como um meio de resistência e vida para os países sobrepujados na marginalidade do globo político. Cuba localiza a luta anti-imperialista em novos sentidos de reação e decisão contra o poder imperialista estadunidense. Como sugeriu McPherson anteriormente, a luta pela autonomia latinoamericana sempre existiu em diferentes vertentes, entretanto, com a entrada dos revolucionários castristas e a autarquia de um governo nacionalista e hegemônico em suas decisões, orientou e motivou parte considerável da luta guerrilheira nos países do centro-sul da América. A divulgação de ideias revolucionárias incentivadas por Cuba tornam-se emergentes no pensamento comum dos latino-americanos. Esta 400 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS divulgação orientada pelo governo cubano ganha sobrevida característica na Argentina: realizando Che Guevara como ícone não apenas de Cuba, mas recobrando a sua nacionalidade argentina, doa influência aos movimentos estudantis de tomada pelos direitos cívicos e políticos. Héctor Oesterheld, inicialmente, não toma parte desta luta. Apesar de seus trabalhos dialogarem com intensidade competente contra o avanço imperialista, sua orientação política residia no movimento antiperonista. Entretanto, ao passo que suas jovens filhas (Estela, Beatriz, Marina e Diana) tomam contato com estas ideias revolucionárias tomadas pela ânsia libertadora, Oesterheld se filia ao movimento de esquerda ao qual participou ativamente durante as décadas de 60 e 70. Contudo, sua militância armada vinculada ao partido de esquerda Montoneros, não anula sua produção cultural. Ao contrário, com maior intensidade, suas obras recobraram valores políticos mais incisivos e críticos. Sobretudo após a morte de Che em 1967, Oesterheld desenvolveu o trabalho político com mais clareza. Em 1968 publica Che: Os últimos dias de um herói. Este movimento se trata de aliar as perspectivas da prensa revolucionária com a iconografia argentina. Ainda, o projeto se restituiu em uma coleção que elencou os ícones da resistência política nacional: iniciada por Che, o segundo volume contaria a história de Evita Péron. Entretanto, a repressão do governo militar argentino fez com que a coleção fosse censurada e impossibilitada de reprodução. A construção da narrativa em torno de Che Guevara tem como fundamento a canonização do símbolo revolucionário argentino. A jornada intensa nas veias abertas da América Latina, a fome, a miséria e a desgraça inerente ao descaso do poder público e intensificado pela atuação intervencionista dos países capitalizados é o ponto de partida da construção de um ser indignado. A HQ inicia-se na emboscada final de Che e recobra todas as passagens marcantes de Guevara. Ao final, a produção Leonardo Pires Nascimento | 401 de curta duração conclui os sentidos específicos de alienação política e flerte contra os interesses do imperialismo: “O sangue de Che já é mais uma gota no Rio Sangue derramado contra a fome e o grilhão. Seu nome inspira amor e ação. Faz as juventudes do mundo se levantarem e andarem” (OESTERHELD, 2008, p. 88). Como sugere Martín-Barbero (2015, p. 232), os meios de comunicação na América Latina fizeram ouvir os anseios populares e a estratificação das camadas subalternas; o uso recreativo que Oesterheld faz da prensa argentina sobre a divulgação das ideias revolucionárias e subversivas orientadas pela revolução cubana segue o espírito impregnado de Che: as historietas continuam inspirando jovens por toda a comunidade latino-americana e, por causa da sua fragilidade material, tem maior inserção nas classes populares – como comentado anteriormente. Ainda, as ideias políticas de Oesterheld são divulgadas, com maior viabilização, no jornal montonero El Descamisado (1973). Sugerido por Laura Vazquez (2010, p. 178), Oesterheld assume um discurso político enviesado e direcionado às instituições políticas e estruturas de poder na Argentina da década de 70. O roteirista assume a luta social como condição do contexto sociopolítico argentino na presente década, e a derivação das narrativas embarcam na problematização do descaso público bem como na ação reativa da militância armada montonera. Os quadrinhos abertamente de esquerda, “que dão conta de uma ‘guerrilha sempre ativa, buscam destacar a entrega absoluta a causa como condição do sujeito revolucionário, mas funciona também como a representação do herói” (VAZQUEZ, 2010, p. 178). Vinculado ao movimento de guerrilha da frente armada peronista, Héctor Oesterheld é personagem de destaque das lutas progressistas na Argentina. Entretanto, o destaque saliente enquanto produtor cultural e roteirista, exige o preço da clandestinidade. Ainda trabalhando para o 402 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS editorial Record na década de 1970, Oesterheld passa a atuar sem localização fixa: os roteiros são enviados a partir de cartas sem remetentes, os encontros são feitos durante a calada da noite em lugares remotos e afins. O editorial, anteriormente prestigiado pela presença e divulgação da imagem de Oesterheld, passa a escondê-lo das instituições militares argentinas. Esta eterna batalha entre o órgão repressivo de conduta autoritária, ainda, é palco de críticas nas obras de Oesterheld. Apesar da atuação reclusa, o constante medo contra a segurança e qualidade de vida funciona como gatilho reflexivo para as obras seguintes do autor: idealizado, principalmente, na historieta La Guerra de los Antartes (1974) – desenhada por Gustavo Trigo – sugere uma invasão alienígena ao planeta Terra. Entretanto, para assegurar o livre conduto do hemisfério norte, as elites do mundo politizado entregam o hemisfério sul como garantia de sobrevivência. A alusão metafórica da obra em questão se divide na necessidade de ampliar o sentido imperialista nas instituições e financiamento de ditaduras militares ao longo dos países latinoamericanos. Ainda, o movimento de Oesterheld está vinculado diretamente ao grupo dos Montoneros. Beatriz Sarlo comenta sobre a via vingativa dos Montoneros frente a improbidade do governo militar argentino na década de 1970, a autora diz sobre esta ação depende de “onde inexiste uma administração da justiça que funcione de maneira plena e universal, mas também pode ser o de sociedades onde essa administração existe porém não cumpre com certas condições” (SARLO, 2005, p. 278). Assim, esta vingança tem, em sentido único, o “poder de salvação moral” (SARLO, 2005, p. 279) por realizar a supressão moral de um Estado falido e/ou decadente. Os anseios do grupo político argentino tomaram a via armada e revolucionária, lutaram em busca de um peronismo de esquerda (quase) Leonardo Pires Nascimento | 403 utópico; a ação medida da atitude violenta do grupo Montonero provocou a censura e perseguição aos seus membros. As obras artísticas aliadas ao posicionamento político de Oesterheld é decisivo: junto a suas quatro filhas, em 1977 é desaparecido pelos braços autoritários da ditadura. Até o presente momento, o governo argentino não concluiu o que foi feito da vida do autor. Não se sabe quando morreu, como morreu ou se morreu. O que fica aos cidadãos argentinos e a massa artística estimulada por Oesterheld é apenas uma pergunta: ¿Donde esta Oesterheld? Consolidação de Oesterheld na iconografia argentina Idealizado como um ícone revolucionário e um autor ativo no meio político e cultural, Oesterheld atinge novos significados no imaginário coletivo argentino. Em alguns sentidos – a morte trágica do autor e o impacto fundamental de sua obra –, as historietas de Oesterheld permaneceram em constante divulgação sob os diferentes contextos políticos e sociais argentinos. Por conta desta elaboração, as obras foram reinterpretadas a partir do contexto corrente, ganhando novos sentidos e guias de leituras para dar sentidos ao presentismo (FERNÁNDEZ. GAGO, 2012, p. 65). É, a partir deste momento, que são valorizadas certas etapas e qualidades da obra de Oesterheld: inicialmente pelas historietas adquirindo tom profético discorridos pelas narrativas em torno das questões do imperialismo cultural e político durante os anos de 50 e 60; em segundo, o reconhecimento da luta de Oesterheld frente ao movimento armado em defesa da soberania argentina, bem como a extensa crítica aos modelos militares de governo. Inicialmente, o valor histórico agregado aos roteiros de Oesterheld simboliza um avanço narrativo não apenas dos quadrinhos argentinos, bem como a construção de uma sociedade progressista que mira ao futuro 404 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS do desenvolvimento individual e coletivo. Pois, a essência básica das historietas discorridas por Héctor potencializa a ação do heroísmo coletivo em um tom de união e comunhão com a fraternidade do povo marginalizado. Assim, subvertendo a constatação do indivíduo liberal como centralidade do desenvolvimento único e pessoal, a projeção de Oesterheld se localiza na força do coletivismo e do desenvolvimento social em grupo, recobrando os valores do moralismo social baseado na justiça não-eletiva. Isto pois, os governos posteriores de esquerda, sobretudo, orientados por uma lógica peronista, recobram a obra de Oesterheld como uma forma de reafirmar a solidariedade e o assistencialismo como fonte básica das políticas de governo. Passando deste pressuposto, a reedição do trabalho original do roteirista assume um tom qualitativo da história do tempo presente, em que, utilizando o conceito de Koselleck, as obras de Héctor Oesterheld elaboram um campo de experiência como raízes para o horizonte de expectativas. Adiante, a qualidade do movimento armado reencarna a encenação do mito libertador e da figura revolucionária orientada por certo parâmetro ideológico e histórico inerente a um contexto específico. Em rima narrativa, a diatônica entre Che e Oesterheld recobra novos significados: ainda nos 60, o roteirista traz a biografia do revolucionário como forma de impulsionar a causa social, a luta pela libertação das políticas autônomas da Argentina em período de Guerra Fria e, fundamentalmente, o estímulo do sentimento de indignação suplantada pela corrente dos jovens latino-americanos. Assim, destinado ao fim trágico semelhante ao ídolo social argentino, Oesterheld assume esta posição de idealização da iconografia de frente progressista, por maioria das vezes, orientada pela esquerda. A ação de Oesterheld influenciou novos roteiristas que buscam a valorização da causa política e da insatisfação frente a mediocridade institucional de sucateamento público; assim, o Leonardo Pires Nascimento | 405 projeto editorial de Oesterheld sobre a unificação da qualidade do produto nacional permanece vivo e constante nas obras de artistas como Carlos Trillo, Carlos Sampayo, Juan Sasturain e outros. Por outro lado, a apropriação do poder Estatal frente às obras de Oesterheld simbolizam o uso da iconografia do autor e seus personagens como uma forma de sintetizar os valores e princípios do governo em questão. O escritor foi responsável pela ruptura imediata dos parâmetros editoriais argentinos na década de 50; apesar da existência de editoras que buscassem a valorização do artista local, Oesterheld dinamizou esta luta pelos direitos dos artistas localizando o desenvolvimento do traço artístico e autoral com uma ótica de procurar a expressividade dos desenhistas argentinos. Em conseguinte, a Argentina se destaca como principal polo de publicação de HQs, tornando-se um mercado idealizado e de autonomia plena. A empreitada da editora Frontera é reconhecida por conta da cisão entre a prioridade estrangeira e a valorização e proteção da expressividade nacionalista. A história de Oesterheld sugere a ampliação dos sentidos nacionais, e o uso da iconografia do roteirista simboliza o protecionismo, agora por parte do Estado, das qualificações da Argentina soberana. Assim, aprimorando o uso latente das obras em quadrinhos em republicações extensivas e o uso pedagógico/educativo por meio das historietas da editora Frontera elaboram o significado concreto intermediado entre Estado e leitor: a Argentina se faz grande. A iconografia de Héctor Oesterheld enquanto militante e roteirista se perpetuou nas diferentes camadas políticas da sociedade argentina. A mais clara e direta se legitima no posicionamento de Néstor Kirchner em utilizar o principal personagem de Oesterheld, El Eternauta (1957), como divulgação política de sua própria imagem. Nesta aliança entre ficção e realidade, Kirchner adotou a alcunha de Nestornauta e estampou o centro urbano de Buenos Aires, ilustrado através de grafites ou decalques. 406 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Este envolvimento entre a imagem da criação autoral de Oesterheld e o movimento político argentino já no século XXI se restitui em recuperar esta imagem do militante idealizado. Kirchner, então, se posiciona como defensor dos interesses nacionais em defesa extensa da invasão estrangeira. Em entrelaçamento constante, a narrativa de tornar-se um político um personagem de quadrinhos é, de certa forma, reorganizar as orientações políticas da história do tempo presente e direcionar novos sentidos sobre o período Kirchner (PALACIOS, 2020, p. 186). A apropriação de Nestor Kirchner frente a obra de Oesterheld tende a recuperar o paralelismo político lacônico das duas figuras da Argentina. Assim, recuperar a imagem do personagem de Oesterheld e a inserção do então presidente argentino com a epígrafe “resiste”, baseia-se na extensão dos valores inerentes a Oesterheld como coadunação das políticas kirchnerista; apesar da latência e distensão temporal entre as duas atuações históricas, o uso da iconografia do roteirista militante pretende a generosidade e motivação da juventude política, relacionando-se de forma amigável e concisa com o governo defensor dos valores populares (FERNÁNDEZ. GAGO, 2012, p. 68). Recuperando a menção de MartínBarbero feita anteriormente, a estratificação dos valores midiáticos da América Latina recupera os anseios da população como uma forma de unificar os desejos internos do país em uma única voz; sugere então que a representação do Nestornauta é uma forma de recuperar “os sentidos e a imagem desta narrativa [que] formam uma paisagem ideológica, que inclui o messianismo e o paternalismo, culto à personalidade [...]; apelação a redenção, ao sacrifício patriota e militante, a resistência ao inimigo poderoso” (FERNÁNDEZ. GAGO, 2012, p. 71) e outros. A reinterpretação constante das obras de Oesterheld e a difusão em diferentes instâncias de sua imagem, em qualidades culturais e políticas, torna o roteirista argentino um ícone de resistência latina e um eterno Leonardo Pires Nascimento | 407 militante contra as injustiças do mundo colonizado (seja pelo imperialismo cultural ou o intervencionismo político). Conclusão Recuperar a memória de Oesterheld é, de forma ampla, comum à cultura popular argentina. Sua presença como roteirista, militante e criador cultural é eterna e presente na vida do cidadão médio argentino. Seja pela museificação de sua casa, que funcionava como base para a editora Frontera, ou pela locação de seu personagem no Museo del Humor, é uma forma de apropriar-se da imagem de Oesterheld em sentido qualitativo. Assim, percebemos que o uso ostensivo da imagem de Héctor tem, como fundamento básico, o uso metodológico idealizado para elaboração de um projeto político de resistência. Este projeto, iniciado na década de 1950, permanece preponderante e ativo ainda no tempo presente. Ainda, os valores agregados ao trabalho de Oesterheld servem como disputa política entre os partidos políticos de esquerda e direita. Como comentado no tópico anterior sobre o uso político da obra de Oesterheld pelo governo de Nestor e Cristina Kirchner, por outro lado a memória do autor sofre rupturas abusivas do governo de direita de Maurício Macri. Observando a popularidade do movimento em defesa do Nestornauta, Macri subverte a lógica básica do liberalismo em constante defesa ao longo de seu governo, ao usar dos braços burocráticos do Estado para realização da censura da obra de Oesterheld. Sugerindo que o problema estava no kirchnerismo, Macri bane a obra de Oesterheld dos colégios e cria mecanismos de denúncia contra a divulgação das obras do roteirista argentino. Como uma forma de suplantar a memória artística e política de Oesterheld alinhada em sintonia com o governo de esquerda dos Kirchners, a figura de Oesterheld volta aos calabouços do autoritarismo 408 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS político e do projeto de esquecimento dos valores nacionais. A abertura da Argentina para uma economia internacional, torna novamente o objeto estrangeiro como uma cobiça social e de qualidade superior ao produto nacional. Em amplos e múltiplos sentidos, a obra de organização do campo artístico e (possivelmente) político da Argentina segue ao relento nos anos de Macri frente ao poder máximo das estruturas argentinas. Entre ficção e realidade, a figura icônica de Oesterheld segue enfrentando o imperialismo e autoritarismo político ao longo do período. Assim, as obras permaneceram como uma forma de recuperar a essência da arte argentina e, além, dinamizar os valores de resistência política e social. O movimento em pró da memória de Oesterheld tornou-se forte novamente com a apropriação das narrativas em todo o mundo: reedições de suas obras passaram a habitar o mercado europeu, norte americano e, com maior força nos últimos anos, Brasil. Apesar da proximidade geográfica, o processo de esquecimento das obras e história de Oesterheld tenha surtido com maior força em solo brasileiro, visto a escassa possibilidade de leitura do público tupiniquim das obras do hermano. Entretanto, desde 2018, editoras brasileiras reforçaram a busca da valorização política das narrativas de Oesterheld e procuraram recuperar suas Histórias em Quadrinhos para o Brasil redescobrir a ruptura argentina dos anos 50. Ainda, com o fim do governo Macri e a ascensão dos movimentos e governo de esquerda centralizada pela figura de Alberto Fernández, a imagem de Oesterheld restitui novamente um lugar de privilégio na iconografia argentina. Recuperado pela força histórica de sua figura, as obras de Oesterheld continuam valorizando a defesa do produto nacional, a expugnação do imperialismo cultural e político, a luta interminável dos direitos civis e, essencialmente, a soberania cultural argentina, em que permanece com a marca icônica do eterno viajante entre eras. Leonardo Pires Nascimento | 409 Referências FERNÁNDEZ, Laura Cristina. GAGO, Sebastian. Al que le quepa la escafandra que se la ponga: la (re)construcción del relato político peronista a partir de El Eternauta. In: REGGIANI, Federico. BERONE, Lucas (Orgs.). Creencias bien fundadas: historieta y política em Argentina, de la transición democrática al kirchnerismo. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 2012. MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução: Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015. McPHERSON, Alan. Yankee No! Anti-Americanism In U.S.–Latin American Relations. Harvard University Press, 2003 OESTERHELD, Héctor Germán. Hora Cero Suplemento Semanal: edição 1. Buenos Aires: Frontera, 1957. _____. BRECCIA, Alberto. BRECCIA, Enrique. Che: os últimos dias de um herói. São Paulo: Conrad, 2008. PALACIO, Cristian. ‘The Nestornaut’, or how a president becomes a comic superhero. In: SCORER, James (Orgs.). Comics beyond the page in latin america. Londres: UCL Press, 2020. SARLO, Beatriz. A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear Horizontes: Uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: editora UFMG, 2007. VÁZQUEZ, Laura. El oficio de las viñetas: la industria de la historieta argentina. Buenos Aires: Paidós, 2010. Capítulo XXIV Encarceramento político, violência de gênero e redefinição das práticas repressivas na ditadura civilmilitar brasileira em Porto Alegre (1970-1971) Maria Eduarda Magro 1 Este é um trabalho que parte de três trajetórias, mas cujas linhas se espalham para além das vidas aqui enfocadas. Mirando nas experiências de detenção de Helena Lucia, Ignez Maria e Vera Lucia, de algum modo também se fala aqui de todas as mulheres que, envolvidas politicamente no enfrentamento à ditadura civil-militar brasileira, tiveram suas liberdades cerceadas e integridades violadas em instituições prisionais. Mais do que isso, são apresentados sintomas que ainda compõem os moldes de encarceramento de nossos tempos presentes, cada vez mais massificados, e sempre pautados numa constituição seletiva e, por que não, política. Sendo o encarceramento político o mote central desse texto, é a partir dessa noção que iniciamos. Inscrevendo-se nos anos da ditadura civil-militar brasileira, a detenção é aqui entendida como conceituada pela Comissão Nacional da Verdade: “qualquer forma de privação da liberdade dos indivíduos, mesmo que por um breve período de tempo”, sem englobar, necessariamente, as “etapas distintas de restrição da liberdade (detenção, prisão e reclusão)” (BRASIL, 2014, p. 280). Essa perspectiva aponta que presos e presas são tanto aqueles que foram brevemente detidos em locais variados, improvisados ou oficiais, quanto os que cumpriram pena de prisão em instituições penitenciárias durante períodos alargados. 1 Mestranda – UFRGS; dudamagro@hotmail.com Maria Eduarda Magro | 411 Soma-se a essa definição a compreensão dessas detenções enquanto ilegais e arbitrárias. Enquanto a ilegalidade decorre do descumprimento de normas constitucionais e de medidas legislativas dos estados, assim como da realização da prisão sem ordem de autoridade em situação que não seja de flagrante delito, a arbitrariedade se dá quando direitos e garantias legais são violados por meio da utilização de procedimentos ilegais, desproporcionais ou desnecessários, ainda que exista previsão legal da detenção (BRASIL, 2014, p. 302). Tal previsão legal, no que tange ao período abordado neste artigo, consiste no Decreto-Lei n. 989/69, também conhecido como Lei de Segurança Nacional (LSN). Nos anos da ditadura civil-militar, cinco diferentes versões dessa lei foram promulgadas. A LSN foi mobilizada enquanto dispositivo legal responsável por assentar as medidas coercitivas do Estado frente às ditas “ameaças” contra a segurança nacional e a ordem política e social. Para tanto, foram incorporados os preceitos da Doutrina de Segurança Nacional, convocando toda a sociedade para a vigilância e combate aos “inimigos internos”, de modo a criminalizar diretamente a oposição política. A edição mais recrudescida dessa lei é justamente a que perpassa o recorte cronológico aqui abordado. A versão de 1969 (DEL 898/69) deu a sustentação legal para as arbitrariedades do governo em perseguir os opositores políticos, estabelecendo a aplicação prática de toda a base doutrinária que norteava o regime e, com isso, constituindo-se enquanto o principal instrumento formal de repressão política (ALVES, 1984, pp. 158,159). Sob o manto desse instrumento legal executavam-se práticas excessivas de violações dos direitos humanos. A lei não tipificava, em termos diretos, o “crime político”, com essa identificação que aqui se apresenta. No entanto, ao criminalizar uma ampla gama de manifestações opostas ao governo, prevendo penas como a prisão perpétua, a morte e o banimento, o que se fazia era criminalizar a ação 412 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS política, criando-se assim uma noção de crime político. Não eram, no entanto, somente os chamados “presos políticos” que figuravam enquanto enquadrados na LSN. Ao definir que crimes como assaltos, roubos ou depredação de estabelecimentos de crédito ou financiamento, quaisquer que fossem suas motivações, seriam punidos com até 24 anos de prisão, ou até mesmo com prisão perpétua ou pena de morte em casos mais graves (art. 27), abriu-se margem para que pessoas sem vínculos a organizações políticas fossem também enquadradas na Lei de Segurança Nacional. Com isso, surge a figura dos chamados “presos da Lei de Segurança Nacional”, ou somente “os LSN”: assaltantes de banco que eram destinados às mesmas instituições prisionais onde ficariam todos aqueles que, por ações de enfrentamento ao governo, eram considerados ameaçadores à segurança nacional. A geração de presos enquadrados no DEL 898/69 encabeçou uma ampla mobilização pelo reconhecimento público da existência da prisão política no Brasil, denunciando as condições de confinamento dos presos políticos (FARIA, 2005, p. 47). Os presos da LSN, por sua vez, eram solapados dessa audiência, que se concentrava nas experiências de militantes. Como visto, a concepção de prisão política aqui apresentada se restringe ao contexto da Doutrina de Segurança Nacional, com ênfase para as pessoas que foram encarceradas por, deliberadamente, realizarem ações diversas de oposição à ditadura. No entanto, tomar essa perspectiva não significa que se ignore uma outra interpretação dada à expressão prisão política, também de fundamental importância. Trata-se de uma crítica encabeçada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), ao observar a seletividade no tratamento exigido aos presos, desde a distinção entre aqueles que seriam identificados como “políticos”, em oposição aos “comuns”. Desde a máxima “todo preso é um preso político”, apontam como todos processos de aprisionamento são constituídos por fatores notadamente políticos (SANTOS, 2015, pp. 48-49), que, como Maria Eduarda Magro | 413 colocado por Juliana Borges, são classistas e racistas (BORGES, 2019). Pensando essa asserção, a historiadora Suzane Jardim destaca que todos os presos, sejam atribuídos como comuns ou políticos, inseriram-se “em um sistema econômico que causava as incidências criminais, ao mesmo tempo em que colocava meios também politicamente localizados de selecionar quais corpos cairiam ou não na malha do sistema prisional” (JARDIM, 2018, p. 146). Tomando essas contribuições, aqui não há a proposta de inscrever hierarquização da importância política e social entre os corpos aprisionados; por isso, se refuta o uso do termo presos ou presas comuns. A prisão política, por sua vez, é considerada sob o escopo das formulações já colocadas, sem, no entanto, desprezar a constituição política que atravessa o sistema de encarceramento de um modo geral. Breves ou extensas, repetidamente ilegais e arbitrárias, as detenções por motivações políticas não podem ser compreendidas desde um mesmo padrão explicativo generalizado, uma vez que poderiam tomar rumos distintos, que nem sempre envolviam os mesmos percursos e, muito menos, os mesmos destinos. No entanto, os estudos historiográficos de testemunhos e trajetórias nos fornecem algumas categorias classificativas que são úteis para entendermos os meandros desses processos, sobretudo no que tange às fases de aprisionamento e aos espaços de detenção. O Projeto Brasil: Nunca Mais identifica diferentes estágios para a detenção política. O primeiro deles compreenderia a “fase policial”, quando o inquérito policial-militar (IPM) era elaborado em uma lógica marcada por práticas excessivas e clandestinas (ARNS, 1985, p. 173). Avança-se então para a “fase judicial”, quando a prisão era comunicada, a denúncia oficializada e os trâmites judiciais prosseguidos, incluindo desde a prisão preventiva até o deferimento da sentença e cumprimento de pena, em caso de condenação (ARNS, 1985, p. 176). Quanto aos espaços em que ocorriam cada uma dessas fases, Jacob Gorender propõe a distinção entre 414 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS “instituições de interrogatório e formalização dos processos da fase policial”, correspondendo à primeira etapa da detenção e abarcando locais como os DOPS e DOI-CODIs, e “instituições de reclusão”, de cumprimento de prisão preventiva ou pena-prisão, correspondendo às instituições prisionais destinadas especificamente para encarceramento (1987, p. 220). Na mesma perspectiva, Jocyane Baretta identifica os “lugares de tortura”, “lugares de prisão” e “lugares de prisão e tortura” (2015, p. 66), em classificação que leva em conta as principais finalidades às quais serviam os espaços utilizados pelos órgãos de repressão. Os estágios da detenção e os espaços de cárcere foram fundamentais para ditar e definir as experiências de encarceramento político. Estar confinado em um lugar de prisão e tortura configurava uma experiência distinta do aprisionamento em um lugar de prisão, tanto em níveis subjetivos, quanto em termos políticos. Para cada fase e instituição, engendrava-se um regime de encarceramento específico, tendo seus parâmetros inscritos desde aquilo que mirava a repressão: a destruição dos opositores desde a violência física e a aniquilação moral, ou a punição continuada com a adoção de formas alargadas e indiretas de violações. Enquanto as experiências de detenção em locais como os DOPS são bastante contempladas pela historiografia, haja em vista se tratar de uma experiência traumática com violação dos corpos, os outros modos de punição em instituições penitenciárias ainda não são suficientemente discutidos. É a este deslocamento das atenções que nos propomos aqui. * No ano 1970, a perseguição às esquerdas se fez recrudescida no Rio Grande do Sul2. Segundo Taiara Souto Alves, neste ano os processos na 2 Especialmente três eventos marcaram a intensificação da perseguição às esquerdas no RS: a descoberta do “esquema de fronteiras”, em 1969; a expropriação de uma agência do Banco do Brasil, na cidade de Viamão, em março de 1970; e a tentativa de sequestro do cônsul estadunidense, em abril de 1970. Cf. FERNANDES, 2009; BETTO, 1986. Maria Eduarda Magro | 415 Auditoria Militar de Porto Alegre estiveram no auge: foram 33 processos, com 215 pessoas denunciadas, o que corresponde a 40% do total de pessoas denunciadas na capital por ações políticas ao longo de todos os 21 anos da ditadura (SOUTO ALVES, 2009, p. 66). O mesmo se percebe na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, nosso objeto de análise, que neste mesmo ano atingiu o ápice do número de mulheres aprisionadas por motivações políticas. Durante o período que operou como cárcere de presas políticas – ou “presas do DOPS”, como queriam as administradoras da instituição – a Penitenciária Feminina Madre Pelletier foi o local de detenção de, ao menos, 18 mulheres aprisionadas sob essas condições3. A investigação realizada até o momento, com base nos processos de indenização movidos sob âmbito da Lei Estadual n. 11.042/1997, assim como os testemunhos orais concedidos no âmbito dessa pesquisa, permite demarcar o período de encarceramento de presas na política PFMP, que corresponde aos anos de 1969 e 1979; podendo-se ainda, dentre desse largo período, situar fluxos específicos do regime de encarceramento. Nesse sentido, conduz-se à identificação de diferentes estágios da dinâmica do cárcere, sendo o ano de 1970 o mais representativo da primeira fase de encarceramento, quando as restrições impostas sobre as presas eram mais severas e se inseriram em um mesmo projeto de confinamento e isolamento. Ignez Serpa, Helena Rudolphi e Vera Durão foram três das sete mulheres que estiveram aprisionadas na PFMP em 1970. Ainda que suas 3 Este número foi determinado a partir de pesquisa nos processos de indenização movidos por ex-presas políticas, que estão disponíveis para consulta no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Tal fundo documental, oriundo dos trabalhos da Comissão Especial de Indenização, estruturada a partir da Lei Estadual n. 11.042/97, apresenta limitações, uma vez que os processos foram autonomamente movidos por pessoas que se entendiam enquanto vítimas das arbitrariedades das forças policiais do estado e optaram por requerer reparação. Portanto, o número total de requerentes não corresponde ao número total de pessoas atingidas, mas sim àquelas que tomaram conhecimento da legislação e escolheram se expor a este trâmite. A análise dessa documentação apontou 13 requerentes que citaram o aprisionamento na PFMP, número que foi alargado para 18 a partir de menções a companheiros de prisão. 416 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS trajetórias apresentassem confluências, seus caminhos se interseccionam somente no cárcere. Todas foram detidas por vinculação à mesma organização clandestina de esquerda: a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, ou somente VAR-Palmares. No entanto, seus vínculos e participações eram diferentes: Helena se enxergava apenas como uma “simpatizante”, que teve aproximações pontuais em grupos de discussão e trabalho de base com operários, mas sem ingressar nos quadros oficiais da militância (RODOLPHI, 2019); Ignez foi a única mulher a ser parte do Comando de Operações regional da organização, participando do planejamento e execução de ações, dentre elas ações armadas (DURÃO, 2019); e Vera, por sua vez, era atuante no Setor de Imprensa, sendo responsável pela produção de materiais informativos e de denúncia (DURÃO, 2019). As especificidades de suas relações com a organização não se fizeram sentir no momento da detenção: todas foram igualmente sequestradas, enviadas para o DOPS/RS, mantidas incomunicáveis, constantemente vigiadas e violadas em torturas físicas e psicológicas. Viveram, neste período, o que Caroline Bauer identifica como uma “fase de terror” (BAUER, 2006, p. 97), passando por experiências que balizaram os parâmetros do excessivo, do violador e do traumático. A permanência no DOPS/RS indicava a constante exposição a arbitrariedades e violências, imergindo-as em uma realidade de medo e vulnerabilidade ou, em termos mais diretos, destruição. A instabilidade vivida dentro do DOPS só poderia ser superada com a transferência para outro espaço de detenção, que as salvaguardasse dos constantes desmandos. O translado para uma instituição prisional era tomado como um processo de retirada do reino do arbítrio, uma vez que o reconhecimento da detenção e a instalação em um espaço próprio para isso poderia assegurar visibilidade e algumas garantias mínimas, como a Maria Eduarda Magro | 417 visita de familiares, o contato com advogados e o prosseguimento jurídico do processo. A saída do DOPS chegaria como um alívio, não pela simples retirada desse espaço, mas em muito pelas expectativas criadas sobre o novo local de detenção. É o que compartilha Vera Durão em seu testemunho oral: De uma certa maneira, quando eles nos tiraram do DOPS, disseram “vocês vão pro presídio feminino”, é... Pra nós [...] foi um alívio. Porque a gente ficava ali à disposição daqueles policiais [...] A gente vivia nesse embate. Então, quando a gente foi pro Madre Pelletier, pra mim foi um alívio. [...] Porque eles tiravam a gente da sala de noite, nos vendavam, ficavam rodando o DOPS com a gente, e falando assim, agora você vai pra uma sala aí que os cara vão te estuprar, não sei o que, coisa assim, pra nos apavorar né… Então, agora, eu levei um choque quando eu cheguei ali naquele lugar, porque eu achei que era um presídio, por pior que fosse, era um presídio. Mas aquilo ali parecia mais um bunkerzinho, uma coisa... (DURÃO, 2019) Como se pode inferir a partir dos relatos das ex-presas, as projeções positivas sobre o novo espaço de encarceramento logo foram interpeladas pelas condições reais com as quais se depararam. A expectativa de encontrar salvaguarda nas novas instalações, buscando a possibilidade de recuperação pessoal após tão intensamente viverem a fase de terror, imediatamente se frustrou com a chegada ao Madre Pelletier. É também o que percebemos no testemunho de Ignez Serpa, que passou por situação traumática tão logo ingressou na instituição: a revista vexatória. Em suas palavras, “Magina, eu saio do DOPS, isso é tipo pra te humilhar, sabe? Aí vem a mulher meter os dedos na minha vagina, no meu ânus, pra ver se eu tinha alguma coisa dentro. (...) E ela fez aquilo, te machucava, porque fazia pra doer mesmo, de pessoa com maldosa assim, sabe, e ele se achando poderosa ali” (SERPA, 2019). 418 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Seja por meio de violações mais diretas, como é o caso da violência sexual sofrida por Ignez e compartilhada no relato acima, quanto por outras formas mais sutis e imbricadas no cotidiano prisional, o que se coloca é a redefinição das práticas repressivas, consoantes com o ambiente penitenciário, que exigia outros modos de se fazer incidir as violações. Conforme apontado por Erving Goffman, as instituições totais – tais como as prisões, conventos e hospitais psiquiátricos – operam no sentido de provocar o que identifica como “mutilações do eu”. Manejam-se uma série de “rebaixamentos, degradações, humilhações” que visam a desqualificação e a dissolução das constituições próprias das pessoas apenadas, mortificando-as e incutindo um alvo nível de tensão psicológica (GOFFMAN, 2015, pp. 24, 49). Também a Penitenciária Feminina Madre Pelletier se conformou com essa operação, desde um emaranhado de elementos que constituíram o regime de encarceramento político na instituição, tendo por fim a mobilização de formas variadas de mutilações e mortificações psíquicas e subjetivas. Apresentamos aqui alguns indícios que apontam nesse sentido, sem a intenção de dissociá-los de uma ordem coesa, colocando-os separadamente apenas à título de ilustração. Em um plano mais amplo, denotam-se os usos da especialidade e de seus implícitos para manutenção de constantes violações. No recorte temporal aqui tratado, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier era administrada por freiras da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers. Criada na França no ano de 1835, essa Congregação rapidamente alastrou-se por outros países e continentes, pautando-se na missão de “salvação das almas” e “cura moral” de moças desamparadas (ANGOTTI, 2011, p. 198). Sob a premissa de acolhimento de mulheres em situação de risco e marginalidade social (KARPOWICZ, 2017, pp. 66-67), a proposta central a era a reabilitação para o convívio em sociedade, a partir da reconversão pautada em dogmas católicos. Em Maria Eduarda Magro | 419 acordo firmado com o governo do Rio Grande do Sul no ano de 1936 (KARPOWCIZ, 2017, p. 82), as irmãs iniciaram as suas atuações no estado, abrindo aquela que seria a primeira casa prisional destinada exclusivamente a mulheres no Brasil. A gerência durou até 1981, quando a Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) assumiu definitivamente a administração, após anos de gradual penetração na instituição (KARPOWICZ, 2017, pp. 287-301). Entre 1969 e 1979, eram as freiras católicas que se dedicavam aos cuidados das apenadas, que eram alocadas em um amplo prédio ao estilo “casa-convento” (ANGOTTI, 2011, p. 261). As presas políticas, no entanto, foram enviadas para um anexo situado nos fundos do terreno. Nos relatos orais, assim como nos relatos de prisão anexados aos processos de indenização que foram analisados para essa pesquisa, a descrição do espaço de confinamento é unânime. Narra-se nos testemunhos que o espaço de cárcere das presas políticas se tratava de quatro celas isoladas e minúsculas, onde havia espaço somente para uma cama e banheiro do tipo “turco”, com abertura cimentada no chão, por cima do qual havia um chuveiro de água fria onde deveriam se banhar. Para além das celas individuais, um pequeno pátio dentro dos muros permitia que pudessem respirar a céu aberto e ter alguns momentos de convívio. Essa estrutura foi amplamente apropriada para a definição de novas violações. Em primeiro lugar, destaca-se o que é mais visível: o confinamento e o isolamento. Alojadas nesse ambiente precário e inóspito, as presas políticas eram segregadas da ordem carcerária que compunha a instituição no momento. Para além da impossibilidade de convívio com as outras presas, eram apartadas da rotina existente no “prédio central”, forjando-se ali no anexo um novo regime de encarceramento, completamente dissonante do projeto de reconversão moral pautado pelas 420 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS freiras, e que orientava o cárcere “no lado de lá”. Esse isolamento seletivo e intencional pode ser entendido como uma tentativa de anulação das inserções sociais das mulheres aprisionadas por motivos políticos, punindo-as por terem ousado adentrar essa esfera que não lhes pertencia por princípio. E a elas essa percepção chegava diretamente: Sabíamos que era um presídio que era administrado por freiras. Por isso que a nossa expectativa era outra, não que a gente fosse ficar enfurnada numa solitária, num ambiente totalmente, que você tava ali, isolada de tudo e de todos, era uma coisa muito estranha, era dentro do presídio, era um pátio enorme que o presídio tinha, que eles criaram esse bunkerzinho pra gente ficar ali dentro. [...] O que me entristecia muito no Madre Pelletier [..] era o fato de que a gente ficava ali como um ser estranho, uma coisa estranha ali... [...] A gente se sentia de uma certa maneira meio rejeitada ali. (DURÃO, 2019) Situadas em regime de encarceramento específico, pautado não na salvação moral e religiosa, mas sim na punição incorpórea, as presas políticas inseriram-se em uma complexa trama de relações de poder tensas e paradoxais. Tomadas como “presas do DOPS” para as administradoras do presídio (KARPOWICZ, 2017, p. 219), ocupavam o ponto de interseção entre as duas esferas institucionais que ali operavam, quais sejam, o presídio e a polícia. Por isso, circulavam entre um amplo conjunto de sujeitos: por um lado, representando o “quadro permanente” da penitenciária, as freiras (representações do poder central da instituição), as presas do prédio central (cujo convívio era oportunizado somente quando estas eram enviadas para castigo no anexo) e as agentes penitenciárias (responsáveis pela vigilância nos momentos de convivência no pátio); e o “quadro transitório”, correspondente às presenças da polícia, ali representadas pelos delegados do DOPS (enquanto seus custodiadores) e os policiais militares (responsáveis por vigilância contínua). Maria Eduarda Magro | 421 Para pensarmos essas relações entre sujeitos tão diversos, tomamos aqui a concepção foucaultiana que entende o poder desde uma perspectiva relacional, e nunca dada a priori: o poder não possui existência primária, localizada em um ponto central, nem pode ser detido e situado em um único indivíduo ou instituição, mas sim analisado à luz das relações por onde circula e se exerce onipresentemente (FOUCAULT, 2019a, p. 101). Sendo para Foucault o cárcere entendido como a manifestação mais pura do poder (FOUCAULT, 2019b, p. 134) - por coercitivamente furtar os indivíduos de suas liberdades individuais, submetendo-os a um regime de constante vigilância e controle dos corpos -, a experiência de aprisionamento deve ser analisada à luz dessas relações contínuas, que não partiam de único foco irradiador, sendo exercidas em rede. Nessa esteira, entende-se que os indivíduos imersos nessas relações, são, “com suas características, sua[s] identidade[s], fixado[s] a si mesmo, [...] produto[s] de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças” (FOUCAULT, 2019b, p. 257), o que demarca a impossibilidade de situá-los em posições fixas e rígidas, antagônicas e isoladas, sendo necessário voltar o olhar às sutilezas, ambiguidades e contradições. Afinal, como já apontaram Gianordoli-Nascimento et al., “durante o período [da ditadura civil-militar], as relações com o sistema foram vividas como repletas de antagonismos e contradições, nem sempre inteligíveis, ou congruentes com as posturas ideológicas que tentavam preservar” (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 319). Os modos de convivência deste emaranhado de sujeitos não obedeceram a lógicas coerentes de comportamento. As brechas e variações ocuparam espaço central, como se depreende a partir das relações estabelecidas entre presas políticas e os policiais militares responsáveis por sua guarda e vigilância constantes. Segundo os testemunhos de Ignez, Helena e Vera, alguns dos “brigadianos” se mantinham distanciados, 422 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS enquanto outros se aproximavam reticentes, demonstrando curiosidade em conhecê-las ou até mesmo compartilhando um chimarrão. No extremo da lógica irruptiva, houveram aqueles que auxiliaram a tecer uma rede de colaboração com as presas do Madre Pelletier e os militantes detidos na Ilha do Presídio, possibilitando a troca de cartas sem que passassem pela censura da penitenciária. No entanto, o padrão comportamental esperado também se manifestou, preponderando-se às práticas alternativas de convivência. No espaço do cárcere, os brigadianos atuaram presencial e tangivelmente na redefinição das práticas repressivas. Instituíram uma rotina de humilhações, como compartilhado por Ignez: “à noite eles entravam nesse corredor pra vir nos olhar. E tinha alguns deles que eram nojentos, que vinham falar barbaridades pra gente. Chamar de puta, não sei mais o que, aquelas coisa, baixaria, sabe. Vim nos xingar...”. (SERPA, 2019). Para além das agressões verbais, outros modos de humilhações foram mobilizados: “Tu ia no banheiro, tu tinha que chamar o guarda, pra pedir pro guarda dar descarga. Então tudo é feito pra te humilhar, até tu fazer xixi e cocô, as tuas necessidades fisiológicas, entendeu, tu tinha que pedir o cara, pro cara vir, é pra te humilhar” (SERPA, 2019). Como assinala Jocyane Baretta, é possível assinalar como propósito dessas ações o objetivo de “quebrar qualquer tentativa de privacidade ou individualidade, deixando claro que havia controle até sobre as necessidades fisiológicas” (BARETTA, 2015, p. 82). Estes exemplos servem para apontar como as violações foram atualizadas em outros formatos e incidências, não mais necessariamente diretas contra o corpo, mas ainda assim mirando-o difusamente. Pode-se entender que essas violências configuraram violência de gênero, tomando a conceituação proposta pela Comissão Nacional de Verdade que entende que as violações de gênero “nem sempre se manifestam sob a forma de violência sexual”, podendo “incluir ataques não sexuais a qualquer Maria Eduarda Magro | 423 indivíduo, motivados por seu gênero” (BRASIL, 2014, p. 420). As agressões voltadas ao intangível, e tecidas desde inscrições de gênero, que visavam à despersonalização, subjugação e desqualificação das mulheres aprisionadas, tal como os processos de privação e isolamento, assim como as agressões verbais e as ameaças, podem ser tomadas desde esse escopo. Afinal, eram atacadas desde seus papéis enquanto mulheres que se insurgiram politicamente, o que resultava em ações duplamente repressivas, alvejando-as por ambas esferas – política e de gênero -, como apontado por Joffily (JOFFILY, 2005, p. 124). Para além desses aspectos aqui abordados, que tocam os usos da espacialidade do cárcere e a violência de gênero, cabe ainda mencionarmos um terceiro eixo que se desenha a partir desses. Trata-se da violência psicológica, que se fez enquanto uma constante no período de encarceramento político na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, por meio da combinação de formas difusas, indefinidas e paradoxais das violações, conduzindo à fragilidade e instabilidade psíquica das mulheres ali detidas. A violência psicológica não pode ser compreendida externamente às outras punições às quais foram submetidas; ao contrário, o que há é uma ação combinada de mecanismos que, direta ou indiretamente, sempre tratam de alvejar o incorpóreo. Para além dos fatores já elencados, destacam-se outros que notadamente operaram nesse sentido. Conforme vimos, a Penitenciária Feminina Madre Pelletier foi palco de meticulosa redefinição dos modos de punir as presas políticas, com muitas congruências ao que se espera de um ambiente prisional de um modo geral, mas também forjando um regime de encarceramento especialmente severo. Para além dessas condições internas, as presas políticas também seguiram, neste espaço de cárcere, expostas aos acontecimentos dos extramuros. Novas ações das organizações de esquerda, assim como detenções de militantes, definiam diretamente suas 424 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS condições de aprisionamento, resultando em alterações na rotina que acentuavam as privações, como a proibição de “banho de sol” no pátio, da convivência entre as presas e de visitas de familiares, conforme relatado por Ignez Serpa (2019). A vulnerabilidade a situações que escapavam de suas responsabilidades ou poder de decisão, como estes eventos que aconteciam externamente e tinham ressonâncias nas suas condições de encarceramento, acarretavam em sentimentos de instabilidade, insegurança e impotência. Isso porque, para além de terem algumas prerrogativas retiradas de sua rotina, também podiam correr o risco de serem levadas novamente para interrogatórios nas instalações do DOPS/RS, como aconteceu com Helena e Ignez, que lá passaram por novas sessões de tortura física. Sem qualquer garantia de proteção, às mulheres que foram presas políticas na PFMP viam suas integridades físicas constantemente ameaçadas. A permanência desse risco em muito decorria do estágio de seus processos judiciais: o período de alocamento na instituição compreendia ainda a prisão preventiva, antes que o trâmite dos processos tivesse seguimento na Justiça Militar, de modo que ainda passavam pela fase de elaboração do inquérito ou, em outras palavras, ainda continuavam expostas à possibilidade de interrogatórios à base de torturas. Às prisões de companheiros da organização ou à menção de seus nomes em outros interrogatórios, eram coercitivamente transferidas de volta ao espaço que associavam ao terror, gerando assim um sentimento permanente de insegurança. O medo constante da repetição da tortura física, combinado à ausência de qualquer prerrogativa de proteção que pudesse lhes defender desses maus-tratos, as inseriam em incessante condição de terror psicológico. Aqui nos propomos a mirar o encarceramento político em uma instituição prisional destinada a mulheres criminosas desde um olhar Maria Eduarda Magro | 425 preocupado com as manifestações do Terrorismo de Estado, pensando também os modos específicos pelos quais as mulheres foram visadas e atingidas enquanto presas políticas, desde orientações calcadas no gênero. Com observações em torno dos usos da espacialidade, da violência de gênero e da violência psicológica, percebe-se como esses fatores se coadunaram para, mais do que operar dentro dos moldes de punição de um estabelecimento carcerário, estabelecer um novo regime de encarceramento tecido para punir mulheres que se insurgiram ao tomar a luta contra o governo, desde variadas articulações e tomadas de posição, mas sempre inseridas na mesma lógica punitiva. As redefinições das violações aqui apresentadas, que miravam o corporal e o incorpóreo conjuntamente, direta ou implicitamente, são tomadas enquanto graves violações de direitos humanos, perpetradas difusa e irregularmente, mas nem por isso menos intensas ou severas. Lançamos mão de algumas possibilidades analíticas para se investigar o encarceramento político em instituições prisionais, pretendendo contribuir de alguma forma com os estudos historiográficos deste campo que, crescentes mas em ritmo lento, urgem continuar se solidificando para que possamos pautar as manifestações repressivas para além dos locais de tortura, questionando também à ênfase dada a alguns modos de se torturar em detrimento de outros. Fontes DURÃO, Vera Ligia Huebra Neto Saavedra. Entrevista concedida a Maria Eduarda Magro. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2019. 1h42min26s. RUDOLPHI, Helena Lucia. Entrevista concedida a Maria Eduarda Magro. Porto Alegre, 26 de agosto de 2019. 2h03min26s SERPA, Ignez. Entrevista concedida a Maria Eduarda Magro. Porto Alegre, 20 de setembro de 2019. 1h57min56s. 426 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Referências ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Editora Vozes, 1984. ANGOTTI, Bruna. Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus. O surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011. BARETTA, Jocyane Ricelly. Arqueologia e construção de memórias materiais da Ditadura Militar em Porto Alegre/RS (1964-1985). 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2015. BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 - 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). 2006. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BRASIL. 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Dos quartéis aos tribunais: a atuação das Auditorias Militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às Leis de Segurança Nacional (1964-1978). 2009. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Ensino de História Capítulo XXV Ensino de História da África: o problema da disciplina no Século XXI Bianca Lopes Brites 1 Domingos Mula Cá Júnior 2 Juliana Carolina da Silva 3 Introdução O objetivo deste pequeno texto que apresenta um conjunto de discussões teórica sobre o papel da disciplina na contemporaneidade, sobretudo no campo da teoria da história e historiográfico que é do nosso interesse. Por assuntos relativos à aplicação de um ensino voltado a produção de conhecimento endógeno4 (local). A nossa discussão parte de um ponto de vista que visa problematizar o lugar da disciplina no século XXI em África, pensando conceitos-chave como modernidade e cânone. Os materiais para a realização desse pequeno texto foram resultados das leituras dos autores que se preocupam em não responder o ocidente, mas contribuir nas produções não eurofônos “não ocidentais”. Sobre a Modernidade e a História O princípio epistêmico desse debate parte de questões básicas do pensamento intelectual na área de humanidades acerca da crítica ao 1 Mestranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Mestranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul 3 Doutoranda – Universidade Federal do Rio Grande do Sul 4 É um conceito desenvolvido por pesquisadores africanos, que estudam o continente a partir de uma visão africana e de uma produção voltada para a África. Entre eles citaremos alguns como Mudimbé, Hountondji, Osman Oumar Kane e Oyewùmí, Oyèronké. 432 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS eurocentrismo do conhecimento e seus percalços histórico-políticos, especificamente para o campo disciplinar da história tendo em vista sua articulação com outros campos disciplinares das “humanas”. Busca-se refletir sobre alguns problemas a partir do se configura enquanto “Modernidade”5 tanto como uma temporalidade histórica quanto como parte de um projeto político específico do local da qual parte, quanto uma temporalidade que agrega formações discursivas detentoras de uma certa especificidade no que tange o Ocidente. Problemáticas que se referem à imposição por meio de regimes de verdade6 como partes do projeto colonialista cuja dimensão territorial é bastante específica e diminuta que, no entanto, acabou por auto afirmar-se como a “essência de todas as coisas”, formaram bases para um questionamento epistemológico profundo. Nesse sentido, a partir dessa duplicidade processual busca-se compreender o colonialismo moderno europeu, tendo em vista o seu caráter diferencial de outras formas de processos de colonização da antiguidade e de povos não europeus, adquire contornos globais de alcance por meio formas de imposição múltiplas. Importante ressaltar essas formas que terão percalços em processos subsequentes do próprio colonialismo e que impactam profundamente o presente mediante as continuidades de seu legado nos sentidos supracitados. Como parte do contexto histórico ocidental-europeu medieval a preponderância do imaginário cristão é um absoluto para essas sociedades. Desse modo, pode-se inferir genericamente que a partir da expansão e conquista por 5 Busca-se um entendimento com a contribuição de Chakrabarty (2008) sobre a dimensão fundamentalmente política do conceito supracitado, importante para compreender a amplitude de seu alcance e constituição uma vez que:“[...] o fenômeno da “modernidade política” – em concreto , do domínio exercido pelas instituições modernas do Estado, a burocracia e as empresas capitalistas – não podem conceber-se de nenhuma maneira a escola mundial sem ter em conta certos conceitos e categorias, cujas genealogias têm suas raízes nas tradições intelectuais, até teleológicas, da Europa [...]”(CHAKRABARTY, 2008, p.30) 6 SHOHAT, Ella. Crítica da Imagem Eurocêntrica: Multiculturalismo e Representação, Cosaic Naify, 2006, p. 44. Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 433 parte das monarquias nacionais, sobretudo ibéricas, sobre os territórios americanos, e do processo de tráfico transatlântico de africanos a retórica cristã é acionada enquanto mecanismo civilizador e justificativo para as atividades econômicas de extração e ocupação mediante uso da força. Tal retórica ostenta uma base teleológica que discerne cristãos e não cristãos segundo status de humanidade e diferenciação hierarquizante. Logo, as populações indígenas e das américas e africanas traficadas de África passam a ser representadas sob esses mecanismos de diferenciações. Paralelamente, para além dos escritos literários e relatos informativos, os discursos científicos-formais do Iluminismo já reproduzem uma noção racializada dos “outros” não europeus, cunhando classificações pejorativas para esses. Entre as tendências de pensamento no final do século XVIII a partir da sistematização da natureza cria-se um novo tipo de projeto de alcance planetário, associado à exploração marítima de construção do conhecimento. O campo da história também se agrega a tal intento em que a História passa a ser um processo do vir a ser no tempo, onde toda a História da humanidade é uma pura História da Natureza e suas forças. (KOSELLECK, p. 171, 2013). Intelectuais como Buffon, Kant, Voltaire, Montesquieu, entre tantos outros são exemplos dessa tendência supracitada. Teorias como a associação do clima em autores como Buffon e Kant enquanto elemento pseudojustificativo para a escravização dos africanos, inferiorização física e intelectual dos Negros, em Montesquieu e Voltaire, entre formulações que trazem uma teleologia com base nos Estados-Nacionais europeus modernos idealizados pósRevolução Francesa e princípios da ideologia liberal como a expressão humana genuína. As ideologias vigentes no século XIX que passam a conceber a categoria “raça” como uma categoria de estatuto científico, já não associada a elementos como clima e natureza. Entre essas teorias, o 434 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS racismo científico, que tem como premissa o determinismo racial cujo argumento assenta-se na concepção da existência de diferentes raças humanas , tendo como idealizador Arthur Gobineau e o darwinismo social, que se associa a aplicação da teoria de “seleção natural” de Charles Darwin às dinâmicas sociais e da classificação de diferentes povos como “civilizados” e “selvagens”, defendendo uma possibilidade de “progresso” a partir de um processo de “evolução” dos últimos para ser como os primeiros7. Como tendências teóricas das ciências humanas, especialmente a história, tanto o positivismo quanto o historicismo, e até mesmo o marxismo, como uma tendência teórica que se opõe ao capitalismo, mas que reproduz uma expressão evolucionista consoante o pensamento da época. A primeira associa-se ao movimento com relação a afirmação do estatuto da História como ciência, à semelhança das ciências naturais, e que se pode presumir leis que determinam o movimento histórico, a segunda o historicismo que parte de um modelo idealizado com base no conceito de “consciência” para definição da história e sua temporalidade progressiva, sendo alvo de críticas por essa “consciência” ser associada a dinâmica política dos Estados-Nação europeus e seus respectivos nacionalismos. Entrementes, consoante a definição de “Modernidade”, virou consenso por parte de várias tendências teóricas, e particularmente apresentado como alternativa mais sensata, associá-la ao que se denomina eurocentrismo nos seus sentidos semântico-político e epistemológico. O Eurocentrismo, como parte integrante da Modernidade, corrobora uma tendência que busca o autocentramento das regiões do Ocidente europeu nos sentidos supracitados. Estruturou-se mediante a “expansão do legado” em um destino histórico a partir do silenciamento de outras culturas e 7 PRATT, Mary Louise, 1999, p. 25. Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 435 práticas genocidas como justificativa para alcançar o “progresso da humanidade”. Tal legado articula-se às formações de discurso colonialista, expressos, por exemplo no princípio do conhecimento como estando associado uma Grécia enquanto personificação da civilização ocidental, Esse Ocidente, nesse sentido, é colocado como um potentado homogêneo que reafirma as “virtudes” desse território a partir de dimensões ontológicas e morais constituintes do período em que esse estrutura-se como episteme, sobretudo a partir do Iluminismo e reforçado no cientificismo do século XIX. Ademais, o próprio Ocidente é compreendido como uma herança coletiva em que seus subprodutos discursivos como as nomeações “Oriente”, “África”, “América”, entre outros não passam de criações imaginárias impelidas no seu ímpeto de conquista e diferenciação assimétrica. Em outras palavras, o que convenciona a determinar como “Ocidente”, na verdade é constituído por múltiplas culturas uma vez que, por exemplo: [...] o “mito do Ocidente” e o “mito do Oriente” formam duas faces do mesmo signo colonial. Se Edward Said, em Orientalismo, chama atenção para a construção eurocêntrica do Oriente, outros, como Martin Bernal em Black Athena, apontam para o processo complementar de construção eurocêntrica do Ocidente a través da omissão do “Oriente” e da África. [...] (SHOHAT, p. 40, 2006). Desse modo, na verdade o Ocidente cunhou tais classificações após um movimento bem específico de sua temporalidade histórica tendo como ponto de inflexão as cruzadas e queda da hegemonia muçulmana e a área em seu mundo conhecido. De tal modo, passa a obter cada vez mais domínio geopolítico sobre os territórios, agregando elementos culturais dessas e outras tantas culturas para formar seu discurso unificador e acaba 436 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS por manifestar suas ambições políticas de expansionismo e dominação em consonância com as atividades intelectuais do “Século das Luzes”. As ciências humanas como campo de conhecimento implicado mais diretamente nas questões políticas e sociais do mundo refletem em grande medida as preocupações de nosso período contemporâneo. Não somente reflete como propositalmente engaja-se a elas com vistas ao intento de promover mudanças concretas na realidade. Ao menos é o que se tem procurado pensar e que particularmente venho a defender na presente abordagem. Contudo, esse importante passo não é fruto de uma simplória intenção pessoal descontínua de movimentos anteriores, tanto políticos quanto epistemológicos. Em termos de disciplina de história faz-se necessário recordar que a prática historiográfica convencional, decorrente das matrizes teóricas de pelo menos três séculos atrás, sofreu uma série de modificações dando margem ao questionamento das temporalidades, categorias analíticas, concepções de sujeito e agência históricas, além da própria finalidade de sua existência, a partir da segunda metade do século XX. As humanidades adquiriram uma maior autonomia institucional frente às ingerências externas uma vez que essas disciplinas se viram confrontadas com o desafio de elaborar, ao mesmo tempo, uma crítica de suas marcas de origem e uma nova orientação normativa e de legitimação. (TURIN, 2017, p. 196) A história abre-se a outras metodologias, conceitos e problemáticas de outros campos disciplinares, como antropologia, sociologia, além das possibilidades de uso de fontes até então desconsideradas para um fazer do ofício convencional, passando por modificações internas bastante profundas que suscitam um período de “crise” por historiadoras e historiadores por volta de 1970. Tendo em vista os esforços e iniciativas de intelectuais, pensadores e militantes negros em reverter a analítica colonial sobre a África, povos Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 437 africanos e o sujeito africano, há um percurso realizado de estudos que vão contrapor as narrativas do não humano e não histórico. Brevemente, pode-se pontuar as discussões que visam trazer uma abordagem oposta ao caráter de desumanização e inferiorização sob a retórica civilizacional, da raça e do progresso perpetradas pela episteme ocidental trazendo como exemplo o trabalho de Cheikh Anta Diop e a disputa narrativa/política envolvendo a racialização do Egito Antigo.8 É consensual que o Egito antigo bem como a civilização e suas múltiplas criações tem agência de indivíduos, grupos, povos africanos que lá habitaram, sendo a discussão epidérmica uma alegação de que sim, os habitantes daquela região seriam portadores de características fenotípicas ao que hoje se convenciona a identificar enquanto “Negro”. Outros estudiosos negros como Theophile Obenga, contemporâneo de Diop e o afro norte americano Ivan Van Sertima, de uma geração posterior, entre outros tantos valem-se desta tese e preocupam-se em reconstituir em torno desta problemática com o Antigo Egito ou Kemet para contrapor o racismo científico sobre a incapacidade intelectual, cognitiva, cultural e política de indivíduos racializados enquanto Negros. Outrossim, historiografias, estudos e pesquisas que vem a abordar culturas autóctones não cristãs e não islâmicas de diferentes partes do continente já descoladas de uma analítica racializante ou do exotismo que reafirma um caráter de inferioridade de sua ontologia, em grande medida 8 A obra “ A Origem Africana da Civilização: Mito ou Realidade?” é um exemplo que encarrega-se de articular a ideia da origem da humanidade na África, especificamente no Egito como a primeira civilização complexa bem como a anterioridade com relação à Grécia Antiga. De forma significativa, agrega elementos que visam estabelecer as relações do Egito ou Kemet com as outras sociedades e povos africanos ao defender a partilha de aspectos tecnológicos, culturais, espirituais. O centro da defesa empreendida por este trabalho afirma que os habitantes do Egito eram Negros a partir de argumentos que são fundamentos a partir de textos antigos dos gregos, posteriormente de intelectuais do século XVIII, análises de melanina a partir das epidermes das múmias antigas, comparações a partir de aspectos fenotípicos das iconografias e estatuária, rotas migratórias, entre outros aportes metodológicos cuja interpretação não cabe a este trabalho aprofundar. 438 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS associadas aos esforços de militantes e intelectuais negros9. Associando tanto as contra narrativas negras sobre o Egito Antigo e esses esforços ao tratar culturas autóctones com simetria a expressões ocidentais há tanto intelectuais negros que vem a criticar uma espécie de essencialista ou romantização dessas práticas, não a fim de esvaziar as suas premissas inicias de combate ao racismo científico e reinvenção dos próprios saberes relativos à África, mas no sentido de uma crítica epistêmica que vem a afirmar a existência de uma metafísica racial ou endossar aspectos da filosofia teleológica do progresso. Problemáticas sobre o ensino de História da África Quando se trata da teoria da história e historiografia da história em relação a ciências modernas, sobretudo no que se refere às disciplinas das ciências sociais que são sustentados pelas múltiplas teorias consumista em todo o aparato do diferente campo de aprendizagem, sejam elas informal e formal sendo essa última a nossa prioridade. Universidades, Faculdades, formações profissionais e técnicos de várias áreas de saber. Nesse sentido, propomos pensar as seguintes questões: Mas que teoria atenta o nosso ramo de saber em África concretamente? Qual o lugar da historiografia africana em relação às disciplinas da história ofertadas nas universidades estrangeiras? O que se trata nessas disciplinas sobre a África na diáspora? Mudimbe, ao falar sobre a “invenção da África”, em substituição à sua gnose (conhecimento), argumenta que não precisamos simplesmente criar ideologias que respondem ao ocidente, mas devemos descolonizar o pensamento acadêmico africano, e que por mais que esses estudos ainda 9 Kwasi Wiredu, Kwame Gyekye e Odera Okura são exemplos de pensadores africanos que partem das chamadas filosofias tradicionais das culturas autóctones para pensar formas de transformação social na África e romper com a ideia negativa sobre as expressões supracitadas. (VALDÉS, Eduardo Devés, p. 155-156, 2008) Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 439 estejam vinculados ao ocidente10. Os africanos devem criar e responsabilizar-se da produção dos seus saberes voltadas para o continente, olhando a partir de dentro os documentos produzidos de uma forma endógena (local). O que vai além das questões clássicas em torno da Antropologia e da história da África. Para descolonizar o pensamento acadêmico africano precisamos reestruturar os nossos currículos e disciplinas vinculadas ainda às teorias ocidentais. Por exemplo, na Guiné-Bissau um país colonizado por Portugal, ainda contém no seu currículo escolar a obrigatoriedade de aprender o Hino nacional português em algumas escolas privadas do país “escola portuguesa”. As nossas matérias ainda contém a decoreba dos alunos em aprender os nomes dos primeiros reis e infantes da era colonial metropolitana. Nas universidades no curso de direito, as leis jurídicas ainda estão consagradas com o do colonizador. De um pensamento crítico em repensar as humanidades na África é preciso desapropriar do passado e recondiciona-lo. Segundo Falola (2007) 11 demarcar fronteiras delimitadas pelo ocidente e reorganizar a produção de conhecimento, romper com o passado romantizado sobre o continente assim como reestruturar o conhecimento ocidental. Porque as nossas universidades não podem criar economias diversificada, mas podemos criar e nutrir as humanidades, que vão desconstruir o conhecimento ocidental atrelado aos nossos de uma forma equivocado. De um modo geral, precisamos romper com esse apego das teorias do passado internamente, antes de usar da fala e escrita para criticar as disciplinas que são ministradas na diáspora sobre á África. Assim 10 MUDIMBE, Valentim Yves. A Invenção da África: gnose: filosofia e a ordem de conhecimento. Ana Medeiros (trad.), Portugal, Edições pedagogo, 2013. 11 TOYN Falola, Nacionalizar á África, Culturalizar o Ocidente e Reformular AS Humanidades na África. Afro-Ásia, 36 (2007), 9-38pp 440 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS poderemos responder as perguntas do tipo: Essas disciplinas falam de que África? Será que o conteúdo dado é compatível ao programa? Quem são os especialistas a ministrar essas cadeiras? São essas e mais perguntas que parecem simples ou complexas, mas, que precisam ser respondidas, todavia, para isso precisamos repensar o nosso modo consumista das teorias coloniais. A extensão dessa prática consumista das teorias verifica-se em outros lugares que detém recursos e meio de ensino e construção de conhecimento consagrada a exemplo do Brasil, que possuí um arcabouço das produções de conhecimento cientifico e pesquisa, mas com uma grande dependência teórica ocidental. A minha posição é a do reconhecimento de que o modo como ensinamos e desenvolvemos pesquisa em teoria da História, no Brasil, nos coloca em posição de consumidores (as) de referenciais importados, especialmente de países como Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos da América e, em menor escala, Holanda e Itália. Não se trata de assumir uma postura de recusa imprudente, ou de rejeição irrefletida de um cânone, mas de perguntar como se construiu, por que e de que modo se perpetua esse cânone. O que está em questão, portanto, é a urgência em extrapolar a categoria de lugar social dos (as) historiadores (as) e de considerar a existência de um a priori epistêmico que o antecede, regula e condiciona. (PEREIRA, 2018, P.90)12 Entretanto, essa não transgressão que não rompe com o passado colonial, vai além da academia brasileira. As pessoas estão sendo formados pelas instituições universitárias brasileiras num modelo de aquisição de conhecimento voltada num campo teórico que não é decolonial. O uso do termo “decolonial” dentro dessas instituições virou uma permanência é um hábito obrigatório para os docentes e discentes, mas de que 12 PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88 - 114, abr/jun. 2018. Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 441 decolonialidade estamos falando se ainda mantemos, repetimos e vivemos da mesma prática de ensino? Um dos possíveis caminhos para esse empasse talvez seja valorizar as produções locais, e pensar sobre a teoria da história e sua praxidade. Rever o modo de uso dessas teorias e quebrar com o senso comum que aplaude quem vive dessa consumação. Porque não adianta ler os clássicos a partir das mesmas perguntas que fazem esses clássicos, porque os tempos mudaram, a forma de ver e de dar respostas desses clássicos mudou, pois, transgredimos e evoluímos em termos de produção e das normas que regem essas produções. Quando falamos da evolução não queremos dizer que somos melhores ou piores que os clássicos, mas a nossa forma de ver e pensar a sociedade tem se alterado ao longo do tempo. Conclusão Quando se trata dos problemas da disciplina no século XXI, da forma como ela é selecionada, preparada e aplicada. Em todos esses processos ela é sujeita a modificação, pois, essa modificação não é um problema. O problema está na forma como iremos dialogar com as ementas disciplinares, que na maioria das vezes foi idealizado com teorias estrangeiras. Outro problema é que seguimos a risca os mesmos modelos de desenvolvimento dessas teorias canônicas. Lembrando que muitas dessas narrativas históricas em África, assim como seus pesquisadores, sofreram influência da colonização. Em adição, herdamos as velhas praticas do nosso colonizador. Essas heranças acabam eximindo qualquer possibilidade das relações intercambiais que foram desenvolvidas de uma forma endógena com outros ramos do saber, a exemplo do Brasil que formou e vem formando inteletuais africanos que retornam para os seus países após a formação. 442 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Não conseguem aplicar na pratica os ensinamentos adquiridos por causa dessa intransigência de ensino e aprendizagem. Aqui queremos ressalvar que esses profissionais por hora acabam reproduzindo as mesmas praticas obtidas, mesmo que almejam a mudança, mas o próprio sistema de ensino os impede dessa inovação. Pensar as próprias dinâmicas de transformação no campo da História e Ensino de História instituído enquanto tal e as interligações com o campo de estudos africanos ou de África são fundamentais à medida que as discussões epistêmicas supracitadas permeiam partes significativas dessas transformações do primeiro e da ampliação do segundo. É importante reforçar que a própria consolidação das discussões sobre história do continente africano, atualmente, vale-se da diáspora e da série de problemáticas que surgem a partir deste enquanto empreendimento político ancorado no âmbito discursivo. Além de práticas de pensamento, a busca por políticas públicas de valorização da oralidade, de práticas não consumistas, a própria luta contra a precarização das vidas e pelo respeito às complexas e diversificadas confluências humanas e de ambientes, são essenciais para trazermos para a prática, a realidade das discussões. Valendo-se de chaves lançadas por Mudimbe (2013), Appiah (2014) e Mbembe (2017) com relação ao continente africano, as práticas epistêmicas e as implicações políticas associadas ao racismo e racialização, pensar em diferentes temporalidades, seja no período do que tradicionalmente concebe-se como Antiguidade, seja as civilizações e impérios africanos medievais, as confluências de povos africanos na modernidade e do próprio contexto contemporâneo pós-colonial, é eticamente necessário validar as múltiplas maneiras de habitar o mundo. Seja dentro de expressões culturais singulares de povos autóctones, seja de expressões culturais islâmicas e cristãs, as possibilidades de Bianca Lopes Brites; Domingos Mula Cá Júnior; Juliana Carolina da Silva | 443 coexistência em igualdade política com os múltiplos povos constituem as múltiplas regiões de África. Referências APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. CHAKRABARTY, Dipesh. Al Margen De Europa – Pensamiento Poscolonial e Diferencia Histórica. Barcelona: Tusquets Editores, 2008. KOSELLECK, Reinhart. O conceito de História. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. MBEMBE, Achille. A Crítica da Razão Negra. Ed. Antígona, Lisboa, 2017. MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa: Mangualde: Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2009. PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, Luiz Eugênio; SANTOS, Pedro Brum. (Org.). Literatura e História: Perspectivas e Convergências. Bauru: EDUSC, 1999. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica - Multiculturalismo e Representação. Cosac Naify, 2006. TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades. In: Revista Tempo, vol. 24, n. 2, maio/agosto, 2018. p. 187-205. VALDÉS, Eduardo Devés. O Pensamento Africano Sul-Saariano: Conexões e paralelos com o pensamento Latino-Americano e o Asiático. Rio de Janeiro: EDUCAM , 2008. Capítulo XXVI “Quem sou eu na História?”: O papel histórico feminino no imaginário de uma turma de estudantes do Ensino Fundamental Alice Schmitz Toldo 1 Introdução Este trabalho é parte de uma pesquisa cujo objetivo é compreender o que pode a imaginação para a aprendizagem histórica, da qual participei no segundo semestre de 2019 em parceria com os professores Nilton Mullet Pereira (UFRGS), Marcello Paniz Giacomoni (UFRGS), e os bolsistas de iniciação científica Leonardo Amorim (UFRGS) e Jean Nunes (UFRGS). Elaborado para ser desenvolvido em escolas de educação básica, no período em questão ele foi executado no Colégio de Aplicação da UFRGS em uma oficina do Projeto “Amora", da qual fizeram parte alunos do sexto e sétimo ano do Ensino Fundamental. O Projeto Amora é um espaço em que docentes desenvolvem oficinas sobre o conhecimento escolar a partir de uma perspectiva multifacetada e interdisciplinar. Entre variadas alternativas, os estudantes participam das oficinas que mais atendam aos seus interesses, as atividades ocorrem na parte da tarde ao longo de um semestre escolar. Para a realização do estudo, partimos das elaborações teóricas de Bergson (2010), Deleuze (1996) e Blanchot (1987) sobre o que é a imaginação enquanto conceito, concebendo então que ela é um não-lugar do corpo, não diretamente relacionado a racionalidade e ontologicamente criadora. Nesse sentido, acreditamos na potência da imaginação para a 1 Graduada – UFRGS; alicestoldo@gmail.com Alice Schmitz Toldo | 445 aprendizagem histórica a partir do fato em que ela intrinsicamente prevê o deslocamento do Eu que imagina a um Outro, que é imaginado; isto não se dá somente no próprio fato em que, em uma aula de história somos convidados a imaginar temporalidades das quais não fizemos parte, como também no modo em que a aprendizagem conceitual prevê a articulação dessa imaginação. Sobre esta aprendizagem de conceitos, Giacomoni e Pereira escrevem: Quando se aprende história, afinal? Não se trata simplesmente de definir conceitos, mas de estar inserido num tempo no qual o conceito pode ser criado. Logo, não se trata de o professor preocupar-se em apresentar definições ou interpretações de conceitos ou acontecimentos históricos, mas o de ensejar um lugar onde os conceitos podem aparecer como criação. (GIACOMONI; PEREIRA, 2013, p. 14) Assim, o exercício da imaginação na aula de história está para a elaboração conceitual pelo modo em que, criando um passado possível, o estudante articula seu entendimento de “o que aconteceu” e “o que poderia ter acontecido” a partir de como ele próprio compreende o passado. Gabriel Torelly em seu trabalho Memória e fabulação em Henri Bergson: considerações sobre a experiência do tempo no ensino de história (2014) descreve a relação da aprendizagem conceitual e fabulação da seguinte forma: “A combinação entre emoção criadora e capacidade representativa que preside o processo de elaboração de um conceito não é apenas um prodígio da abstração analítica, mas o envolvimento na trama inventiva da “literalização” (TORELLY, 2014, p.98). Isto é, ao imaginarmos, nos relacionamos, e ao nos relacionarmos, entendemos. Foi a partir desse contexto que se originou o exercício Quem Sou Eu na História? cujo objetivo era convidar os alunos a criarem um 446 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS personagem (existente nos documentos históricos ou não) que voltasse em qualquer momento do passado e tomasse alguma atitude que alterasse o mundo presente. Com efeito, uma das possibilidades que a tarefa oferecia era que os estudantes refletissem sobre as relações de causa e consequência no processo histórico, porém, esta não foi a única decorrência da atividade. A partir da produção dos alunos, entre diversas possíveis análises, pudemos observar questões de gênero produto do seu imaginário. É preciso situar aqui concepções sobre imaginário e sua diferenciação do que é a imaginação. Os estudos da história do imaginário estão preocupados em entender as representações criadas em determinado tempo e por certo grupo a partir de imagens verbais, visuais, corporais, sonoras, entre outras. Estes signos, dentro do campo em questão, são compreendidos como produto de uma relação entre a sociedade e o indivíduo que se criam ao mesmo tempo em que são criados. Será também o campo do imaginário pelo qual entenderemos os trabalhos produzidos pelos alunos refletindo que tipo de trabalho produziram, então, partimos agora para a explanação metodológica mais detalhada tanto do exercício quanto de minha investigação. Assim, tendo a estrutura do exercício apresentada, cabe então apresentar os objetivos que pretendo alcançar com a realização deste trabalho. Ao analisar os produtos dos alunos, pude identificar símbolos relacionados a papéis de gênero presentes no imaginário da sociedade ocidental. Meu intuito, então, é ensaiar hipóteses sobre o modo em que estes signos se apresentam e o porquê. Da mesma forma, na divulgação desta proposta está também a defesa de sua potencialidade e a finalidade de que outros educadores possam desenvolvê-la com seus alunos do modo que acharem mais apropriado. Dito isto, podemos passar para a compreensão metodológica da realização e análise do exercício. Alice Schmitz Toldo | 447 Metodologia O exercício Quem Sou Eu na História? foi um entre diversos outros que realizamos ao longo da oficina. Intitulamos essas atividades “ateliês”, com o objetivo de que mais do que tarefas comuns, cada ateliê fosse uma suspensão da narrativa histórica para que a imaginação dos alunos fosse articulada com o passado, criando ficções a partir de algumas regras estabelecidas. Estas regras eram organizadas a partir do propósito de cada ateliê e tinham o intuito de pensar diversos modos em que os alunos trabalhariam – seja por escrita, desenho, fala, etc. No caso do exercício Quem Sou Eu... fazíamos a proposta de trabalho aos estudantes, que escreveriam sobre seu personagem e o que ele faria para alterar o curso da História. Após esse momento, os alunos deveriam apresentar sua criação aos colegas, para que acontecesse uma discussão coletiva sobre o que fizeram. Terminada a aula, recolhemos os trabalhos para que nós, enquanto grupo de pesquisa, analisássemos a produção dos estudantes e de que modo a imaginação aparecia ali como potência para a aprendizagem. De minha parte, relacionei a quantidade de trabalhos produzidos com alguns eixos que julguei relevantes para compreender as representações reproduzidas pelo imaginário dos alunos, sendo estes: período histórico escolhido pelo aluno; “raça” do personagem criado; gênero do personagem criado; tipo de trabalho exercido pelos personagens masculinos; tipo de trabalho exercido pelas personagens femininas; quantidade de meninos que produziram personagens masculinas; quantidade de meninos que produziram personagens femininas; quantidade de meninas que produziram personagens femininas; quantidade de meninas que produziram personagens masculinos. 448 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Ao analisar quantitativamente a produção dos estudantes durante o ateliê Quem Sou Eu na História?, percebi alguns padrões em relações ao gênero. Dos catorze trabalhos no total, nove eram personagens masculinos, sendo oito destes criados por meninos e um destes criado por uma menina. Quatro destes exerciam algum trabalho que envolvia a guerra, e todos estes que praticavam essa função foram criados por meninos. Todos os personagens masculinos eram os protagonistas da narrativa criada, isto é, atores de suas ações no passado que previam a alteração do futuro. As personagens femininas eram cinco, sendo quatro destas criadas por meninas e uma destas criada por um menino. A única personagem que exercia uma função guerreira foi criada por um menino. Duas das outras quatro personagens eram subordinadas do rei no período romano, as outras duas eram deidades do Egito Antigo. Por certo, estes números são insuficientes para que se possa chegar em alguma conclusão aprofundada sobre as representações masculinas e femininas na sociedade contemporânea. Ainda assim, são resultados interessantes para se elaborar hipóteses sobre os significados representados no imaginário dos alunos da oficina ligados a relações de gênero, a partir de teorias sobre identidade cultural, gênero e sexualidade e o espaço reservado para mulheres e homens nas pesquisas e aulas de história. Feminilidades e Masculinidades A formulação de identidades de gênero é uma questão historicamente determinada. Como formula Foucault (FOUCAULT apud SEFFNER, 2003, p.99), a sociedade ocidental se baseia na estrutura binária, feminino e masculino, para a definição de cada indivíduo a partir de seu órgão sexual. É papel de cada um, portanto, exercer papéis e corresponder a códigos culturalmente designados a cada sexo, de modo a ser reconhecido como tal. Alice Schmitz Toldo | 449 Cabe a este trabalho designar alguns desses símbolos culturais que legitimam o sexo. Simone de Beauvoir já destacava os mitos que compõem o que se espera de uma mulher na sociedade patriarcal. Em O Segundo Sexo, a autora defende que a mulher é entendida como O Outro (BEAUVOIR, 1970, p.173) no contexto cultural; um outro secundário misterioso que encerra o bem e o mal como é a própria natureza, distante da razão masculina. Nessa lógica, assim como a natureza está para servir à exploração do homem, também está a mulher, cujo papel é se entregar ao cuidado dos filhos, do marido, do pai, da casa e de sua aparência física. Ainda que o desenvolvimento do pensamento sobre as relações de gênero esteja em desenvolvimento contínuo e críticas ao pensamento de Beauvoir tenham aparecido nas últimas décadas, ressalto a existência um certo consenso sobre o imaginário patriarcal sobre a feminilidade como um traço agregador da fragilidade e do cuidado. Isto é defendido por Ana Colling em seu capítulo A Construção Histórica do Feminino e do Masculino (2004), que comenta a existência dessa mulher mãe, esposa dedicada, “rainha do lar”, pertencente portanto ao âmbito privado. Quando a mulher não se comporta dessa forma, ela é uma “Eva, debochada, sensual, constituindo a vergonha da sociedade” (COLLING, 2004:15). Isto, claro, não se dá com o papel masculino, ao qual pertence a vida pública, a força e a autonomia de ser sujeito de sua própria história. “Ser homem”, portanto, é ser alheio a diversas características, como a delicadeza, a higiene, a vaidade estética, entre outras. Estas representações, devo frisar, não são alheias a atravessamentos de raça e classe. Angela Davis (2016) ao defender a indissociabilidade desses elementos em seu livro Mulheres, Raça e Classe demonstra que as mulheres negras não pertencem ao imaginário de mães bondosas e recatadas, já mencionado; ao contrário, são entendidas como promíscuas, resistentes, independentes e indisciplinadas. 450 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Discutidos alguns elementos do imaginário representativo da masculinidade e feminilidade, retomo a discussão sobre a historicidade e, portanto, mobilidade desses símbolos. Sobre isto, Fernando Seffner apresenta: “[...] de toda forma [o indivíduo] não está submetido a forças naturais cegas, como a carga genética, o tamanho do hipotálamo ou qualquer outro atributo biológico, genético ou de origem, que o moldariam de forma quase sempre independente de sua vontade. [...] É na tensão entre a agência e as representações socialmente construídas que cada indivíduo vai fabricando sua identidade, entre limites e possibilidades, negociações e imposições.” (SEFFNER, 2003, pp. 105-106) Nesse sentido, o ambiente escolar se mostra um espaço potencial em que a agência e a representação se relacionam, podendo isto, aparecer nos múltiplos espaços da escola, em nosso caso, em um exercício em uma oficina sobre história. É certo que as narrativas históricas, tanto as da sala de aula quanto as que conhecemos fora dela, são pautadas pela cultura em que estão inseridas. Isto é, elas também apresentam papéis de gênero atribuídas ao sexo, questão que discutiremos adiante. As Excluídas da História A narrativa histórica está diretamente relacionada a quem a constrói, de que perspectiva o faz e quais seus objetivos com esta tarefa. Assim, a sociedade ocidental, essencialmente patriarcal, é responsável por séculos de criação de discursos nas mais diversas áreas de estudo que corroboram com as noções supostamente biológicas entre homens e mulheres, e seus respectivos papéis sociais (TEDESCHI, 2012, p.15). Como aponta Losandro Antônio Tedeschi (2012), esta perspectiva pode ser identificada desde os gregos na Antiguidade, que assumiam que a mulher seria um ser imperfeito e, naturalmente, deveria estar Alice Schmitz Toldo | 451 subordinada ao homem. Nesta mesma lógica, na Idade Média a Virgem Maria vai ao centro do discurso clerical para identificar o feminino com a natureza maternal (IBID, p.17). No mundo contemporâneo, com novas formas de estruturação do trabalho e da família a partir da II Revolução Industrial, a reestruturação social aparece como uma refinação da divisão sexual do trabalho em que a mulher deve assumir o espaço de sua natureza, o lar (IBID, p. 121). Com o avanço das décadas, essas noções foram complexificadas, de modo que colaboram ainda hoje para a ideia da fragilidade feminina e de seu pertencimento ao espaço doméstico, presente na narrativa histórica. Como propõe Michelle Perrot: [...] não existiram para o espaço público [...] As mulheres agricultoras ou de artesãos, cujo papel econômico era considerável, não são recenseadas, e seu trabalho, confundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torna-se assim invisível. Em suma, as mulheres “não contam”. E existe aí muito mais do que uma simples advertência”. (PERROT, apud TEDESCHI, 2012, p.25) Nesse sentido, a história das mulheres torna-se uma sombra da história masculina, aquela de “grandes feitos”, importantes políticas e guerras. Estudar o sexo feminino no passado, assim, torna-se quase uma incongruência, não fossem os avanços na pesquisa histórica que problematizam estas questões (DUBY, Georges; PERROT, Michelle, apud TEDESCHI, 2012, p.26). A autora Joan Scott avança sobre isso em seu texto Gênero: uma categoria útil para análise histórica (1995). Ela argumenta que, ao tratarmos da história das mulheres no mundo ocidental sobre a perspectiva da dominação masculina, sem entender essa relação como uma construção situada no tempo e no espaço, acabamos por reproduzila como um dado biológico e a mulher como um ser passivo no processo histórico. Mais do que isso, ela propõe que o gênero seja um modo de 452 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS compreensão das relações de poder presentes no passado e da maneira que se dá a desigualdade entre sexos. Desse modo, homens e mulheres deixam de ser analisados como elementos separados e para serem entendidos de modo relacional. O uso do gênero como categoria de análise histórica surgiu e se consolidou a partir de esforços de grupos feministas ao longo do tempo, contudo, é preciso frisar que nem sempre esta concepção histórica aparece em narrativas sobre o passado. Ainda que se espere que historiadores e professores de história trabalhem este tipo de concepção em seus espaços de atuação, a fim de problematizar papéis de gênero consolidados pela sociedade patriarcal, estes atores não detêm total poder sobre a narrativa histórica. Desse modo, retomando nossa discussão sobre estudantes de educação básica, deve-se frisar que suas noções de história não podem ser restringidas ao que vivenciam em sala de aula. Por senso comum, podemos apontar que filmes, séries, livros, músicas, peças de teatro, entre diversos elementos culturais, também trazem narrativas históricas, que nem sempre são atravessadas por estudos de gênero e que permeiam nossas noções sobre o passado. Assim, partindo para analisar possíveis significados dos trabalhos apresentados pelos alunos, os entenderemos como parte da concepção patriarcal de papéis sociais, e não apenas resultados objetivos do que supostamente aprendem na escola. Analisando os Exercícios Nos últimos parágrafos, nos dedicamos a observar alguns elementos da sociedade patriarcal que penso estarem diretamente relacionados ao imaginário que temos sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher” na nossa sociedade. Mais além, analisando simbolicamente os trabalhos dos estudantes, podemos ensaiar como este conjunto de imagens criadas se relaciona com a imaginação, para não só dizer o que cada sexo é, mas Alice Schmitz Toldo | 453 também o que pode ser dentro do universo de possibilidades que é a fabulação. Início comentando os trabalhos das alunas que criaram deusas como personagens. Relacionando estes com as narrativas sobre mulheres na antiguidade como seres incompletos e, portanto, desempoderados, é possível ensaiar que as estudantes em questão não encontraram uma forma de exercer poder como mulheres no espaço mundano e precisaram transcendê-lo para alcançar seus objetivos. Ou ainda, pode-se pensar que elas estavam justamente seguindo o imaginário patriarcal sobre o feminino como um universo místico e misterioso se tornando criaturas não terrenas. Não se pode deixar de comentar que, de todo o modo, a função de uma deidade é também cuidar daqueles que creem nela, assim, isto também é associado ao papel da mulher como cuidadora. Já as personagens com função de subordinação ao rei no período romano seguiam a representação que o espaço pertencente a mulher é o espaço privado, doméstico. Como serviçais, as ações escolhidas que alterariam o curso da história eram pensadas por elas, mas eram executadas pelos homens a quem serviam, o que está de acordo com a concepção de que o sexo feminino é incompleto e está subordinado ao masculino. Cabe notar que a única aluna que decidiu criar um papel que não tivesse nenhuma função de cuidado e fosse protagonista de suas próprias ações foi a que inventou um protagonista masculino. Ela optou por retornar ao passado como Cristóvão Colombo, um dos primeiros europeus chegados ao Brasil2, e pessoalmente impedir o uso de mão de obra escravizada no Brasil. Quanto às criações de heróis (e uma heroína) 2 Pelo trabalho da aluna se referir ao Brasil, acreditamos enquanto grupo de pesquisa que ela tenha tido a intenção de se referir a Pedro Álvares Cabral, ainda que, por se tratar de sua imaginação, referir-se a ele ou a Cristóvão Colombo não acarrete nenhum problema para a realização do exercício. 454 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS guerreiros, com a função de estar presente em alguma guerra que se passou ao longo da história e vencê-la, é notável que todos tenham sido produzidos por estudantes do sexo masculino. Isto não se distancia do imaginário do que é a masculinidade, isto é, forte, independente e violenta. Estas representações, devo frisar, não são alheias a atravessamentos de raça e classe. Angela Davis (2016) ao defender a indissociabilidade desses elementos em seu livro Mulheres, Raça e Classe demonstra que as mulheres negras não pertencem ao imaginário de mães bondosas e recatadas já mencionado; ao contrário, são entendidas como promíscuas, resistentes, independentes e indisciplinadas. Contudo, isto não se refletiu nas personagens femininas construídas por meninas. Assim, pode-se depreender que o imaginário sobre o feminino explicitados nas sessões anteriores é relativo à mulher branca, a mesma que aparece nos trabalhos das estudantes. Conclusão Relacionamos, então, as produções dos alunos no exercício Quem Sou Eu na História? com o imaginário ocidental, discutido pela literatura sobre história das mulheres e estudos de gênero contemporâneos. Por certo, dado o pequeno número de trabalhos realizados no total, bem como o fato de que o projeto nomeado não teve continuidade em discutir relações de gênero, ressalto que meu objetivo foi ensaiar hipóteses e não chegar a conclusões do que significavam as personagens criadas. Contudo, é importante notar a consonância entre as elaborações dos estudantes e o que é discutido pelas teóricas das relações de gênero apresentadas. Podese constatar que a subjetivação patriarcal opera entre esses adolescentes, ainda que não possamos avançar em sobre como e por quais meios isto ocorre. Alice Schmitz Toldo | 455 O ateliê Quem Sou Eu Na História? mostrou também um aspecto interessante sobre o que pode a imaginação na aprendizagem histórica. Tornando o passado um lugar de possibilidades, os alunos têm a oportunidade de criar e se encontrarem com o próprio imaginário, podendo refletir sobre ele ao compreenderem que o que constrói a história são as pessoas a partir de suas próprias invenções. Trazer a imaginação para a aula de história, é portanto, propor um modo de aprendizagem em que os alunos têm poder sobre o processo histórico. Nesse sentido, reitero a possibilidade de que se aplique a proposta na escola, a fim de dar continuidade a discussões sobre relações de gênero em sala de aula ou qualquer outro tema apresentado pela imaginação dos alunos. Referências BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960 BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2010 BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987 COLLING, Ana. A Construção Histórica do Masculino e do Feminino. In: STREY, Marlene; CABEDA, Sônia; PREHN, Denise (Orgs.). Gênero e Cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004 DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2013 DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: ALLIEZ, E. Deleuze Filosofia Virtual. 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É papel primordial garantir a formação de professores/as qualificados/as para atuarem na educação, não somente como transmissores de informações, mas, também para propiciar uma educação crítica, coletiva e que preze pela inclusão das mais diferentes formas de agir, pensar e crer. Nesse sentido, entre as disciplinas do curso de Licenciatura em História da UNESC está o Estagio Obrigatório em espaços não formais de atuação (Estágio IV). Particularmente, para o ensino de História, multiplicam-se espaços não formais que muitas vezes são usados para atividades educativas. Exemplos desses espaços são os museus, centros de memória e arquivos, que além das mediações, tendo como público-alvo as escolas, também se dedicam a criar setores voltados a promoção de ações educativas. Esses/as educadores/as, de diversas áreas de atuação, incentivam o público participante dessas atividades a promoverem suas reflexões a partir de seus acervos. O objetivo não é o repasse simples de 1 Pós-graduanda - Universidade do Extremo Sul Catarinense; lizi@unesc.net 2 Mestranda – Universidade do Extremo Sul Catarinense; ariel-medeiros@hotmail.com 458 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS informações, mas sim, um diálogo entre o acervo (incluindo seu processo formativo), e suas múltiplas possibilidades de pesquisa. Mesmo os espaços não formais podem se subdividir em duas categorias, as que são instituições e as que não são instituições. Na categoria Instituições, podem ser incluídos os espaços que são regulamentados e que possuem equipe técnica responsável pelas atividades executadas, sendo o caso dos Museus, Centros de Ciências, Parques Ecológicos, Parques Zoobotânicos, Jardins Botânicos, Planetários, Institutos de Pesquisa Aquários, Zoológicos, dentre outros. Já os ambientes naturais ou urbanos que não dispõem de estruturação institucional, mas onde é possível adotar práticas educativas, englobam a categoria Não-Instituições. Nessa categoria podem ser incluídos teatro, parque, casa, rua, praça, terreno, cinema, praia, caverna, rio, lagoa, campo de futebol, dentre outros inúmeros espaços. (JACOBUCCI, 2008, p. 56-57). O espaço não formal pode ser compreendido como local “fora” da escola, no contra sentido de espaço formal, nesse caso a escola enquanto instituição que gerencia o ensino e possui espaços destinados a tal demanda. Reconhecendo que o papel da escola é essencial na formação de cidadãos e cidadãs conscientes, bem como, manter uma educação que prime pelos Direitos Humanos. Por compreendermos que a educação pública, gratuita, laica e obrigatória, são primazias para que tenhamos pessoas que lutem cada vez mais para manter um Estado democrático de direito a todos/as. É nesse sentido que os espaços não formais entram em conjunto para anexar junto ao ensino e a aprendizagem um caminho primordial na formação dos indivíduos. Durante o primeiro semestre de 2018, tivemos a disciplina de Estágio IV (Estágio Obrigatório em espaços não formais), ministrada pelos/as professores/as Michele Gonçalves Cardoso e Ismael Gonçalves Alves. Nos primeiros encontros tivemos discussões referentes a atuação de Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 459 profissionais da área de História em outros locais que não sejam somente a sala de aula, como os espaços não formais de educação. Além da parte teórica, entre leituras e debates, um dos pré-requisitos da disciplina, visava-se ao planejamento, observação, pesquisa e a aplicação de uma ação educativa que conciliasse um espaço não formal e a participação de educandos/as na execução da atividade. Nesse processo de mediação entre a nossa aprendizagem como alunas do curso e a articulação de projetos com ensino formal optamos em realizar nossa atuação no Centro de Memória e Documentação da Unesc-CEDOC. Este local faz parte de um conjunto de setores que a UNESC dispõe como laboratório para o ensino e aprendizagem, e que possuem atividades tanto para o público acadêmico quanto a comunidade externa. O CEDOC/UNESC é um espaço destinado a salvaguardar as memórias por meio da conservação, restauro e disseminação da informação por meio dos seus fundos e coleções, bem como da gestão documental. As informações contidas nos mais diferentes suportes só têm valor se por meio delas somos capazes de produzir conhecimento. Para os/as historiadores/as a importância de preservar as fontes de pesquisa é essencial para o desempenho de suas atribuições enquanto pesquisador/a e/ou professor/a. Para tal a consolidação de espaços não formais como arquivos, bibliotecas, museus e centros de memórias, para a preservação das memórias da sociedade e como espaços de ações educativas, podem e devem ser lugares “vivos” e dinâmicos. Se adentrarmos na produção do conhecimento fora dos muros da escola, se ampliaria os múltiplos saberes e locais possíveis. O conhecimento “serve para adquirirmos as habilidades e as competências do mundo do trabalho; serve para tomar parte nas decisões da vida em geral, social, política, econômica.” (GADOTTI, 2005, p. 4). O/a educador/a atua como mediador/a desse conhecimento, mas também esse processo é de via dupla: ensinando e aprendendo, essa metodologia engloba a 460 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS essência da educação “[...] o educador já não é o apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa (FREIRE, 1987, p. 39). Nesse sentido, compreendermos que o processo educativo pode ser almejado em espaços não formais e essa articulação entre a educação formal e não formal coopera para uma amplitude do conhecimento. Elaboração e desenvolvimento da ação educativa: construindo um olhar sobre o rio. Os documentos selecionados para proposta da ação educativa em grande parte foram fontes do proprio acervo do CEDOC/UNESC e outros foram levantados durante a pesquisa. O primeiro documento foi um mandado de segurança de 1975, que faz parte do acervo doado pelo Fórum de Criciúma no ano de 2000 para o CEDOC/UNESC. No referido proceso alguns proprietários entraram com uma o medida contra a Prefeitura Municipal e o Secretário de Finanças do Município de Criciúma. Entre os motivos do pedido estava o questionamento de valores requeridos por parte da prefeitura aos proprietários no movimento de canalização e de retificação do rio Criciúma. Alguns proprietários tinham suas casas próximas as margens e/ou sobre o rio, bem como outros que tiveram seus nomes anexados na lista de custeio que não tinha casas próximas. No referido processo, alguns recortes de jornais, fotografias e mapas estavam anexados, demonstrando e existência e o discurso sobre o rio Criciúma. O segundo material levantado, também acervo do CEDOC, foi uma exposição feita pelo centro no ano de 2010, a partir do processo do documento mencionado acima. Esse material gerou novos olhares e novas intepretações sobre a temática do rio Criciúma. O mesmo material foi convergido então, em uma exposição apresentada em maio de 2010 na “8ª SEMANA NACIONAL DE MUSEUS NA UNESC”, com o tema “AS MARGENS: A CIDADE E O RIO”, que circulou por outros espaços como em Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 461 novembro de 2010 pelo E. E. B. Sebastião Toledo dos Santos, com acadêmicos/as da 6ª fase do curso de História da Unesc. Entre os materiais utilizado na exposição estão recortes de jornais com enchentes dos anos de 1974 e 2010, charges e reportagens; fotografias da cidade de Araranguá e Tubarão (ambos possuem o um rio que corta a cidade), mapas e algumas fotografias retiradas do processo de mandado de segurança fazendo um comparativo de antes e depois. Ao selecionar essas fontes sem ignorar que por “trás” de cada uma há representações e uma interpretação que são definidos por aqueles/as que fazem as leituras. De acordo com Jenkins (2007), essas construções sobre os documentos são resultadas da própria leitura e/ou releitura, o/a historiador/a que interpretam e reinterpretam as fontes, e que são ilimitadas. Com isso fizermos a nossa leitura discursiva sobre os documentos e readaptamos aos nossos objetivos. Para a ação educativa buscamos analisar a paisagem em torno do espaço configurado como Criciúma/SC e tendo o rio Criciúma como núcleo central. Permitindo que os/as educandos/as compreendessem que no processo de construção da cidade o rio sofreu ressignificações no seu significado e na representação da paisagem. É no final do século XIX e início do Século XX que a conjuntura nacional se voltava para a criação de colônias de povoamento e a história da criação da cidade de Criciúma/SC se insere nesse mecanismo. Para a ocupação dos espaços os rios serviram de demarcadores de fronteiras “as aguas [...] são abundantes. Não há lote colonial que não seja atravessado por um rio, um córrego, um regato” (DALL’ALBA, 1983, p. 151). Deste modo Criciúma não fugiu à regra, sua ocupação com a chegada de imigrantes italianos que foram destacados de Urussanga para ocuparem lotes demarcados pela Comissão de Colonização (ADAMI, 2015) que se deu de acordo com Belolli (2011, p. 335) “quando arreiaram as bagagens junto 462 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS a um velho barracão erguido e abandonado por algum sertanista à margem do riacho Criciúma, estada fundado o então núcleo colonial “São José de Cresciúma”. Era o dia 6 de janeiro de 1880.” É possível perceber que o espaço era ocupado anterior a chegada dos imigrantes italianos bem como a relevância de manter-se próximo ao rio para subsistência. A trajetória do rio Criciúma se interlaça com a própria história da cidade, mesmo anterior a própria formação, [...] os sujeitos sociais consideravam o rio Criciúma como um elemento de referência da paisagem, que participava ativamente do cotidiano individual e coletivo da sociedade.” (ADAMI, 2015, p. 47). Com a intensificação das atividades carboníferas já no século XX e com o advento da Segunda Guerra Mundial a cidade passou por um grande “salto” no seu desenvolvimento econômico e social com as atividades carboniferas, nesse interim o rio passou a coadjuvante, e novos rumos foram sendo construidos e [...] a ideologia do progresso induziu a população a acreditar que o “carvão mineral” era o nosso “ouro negro” e que a poluição dos rios era o custo necessário desse progresso” (CAROLA, DASSI, 2014, p. 25). Criciúma se desenvolvia sendo que “a maior parte dessa produção concentrava-se em Criciúma, o que gerava um impacto populacional e econômica muito grande sobre a pequena cidade[...]” (NASCIMENTO, 2012, p. 19-21). Novas construções foram sendo constuidas as margens do rio e/ou sobre o rio, como foi possivel observar no mandado de segurança salvaguardado pelo CEDOC/UNESC, por meio os documentos do processo pudemos compreender a dinâmica na cidade e na paisagem que conforme Meneses aponta, “[...] considerando homem e paisagem como indissociáveis, podemos afirmar que a paisagem tem história, que ela pode ser objeto de conhecimento histórico e que essa história pode ser narrada.” (2002, p. 36). Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 463 Desde modo, foi possível analisar o caráter histórico do rio Criciúma, por meio da paisagem e das modificações e transformações da urbe, bem como, compreender o percurso de construção da cidade que (in)visibilizou o rio para que a mesma se desenvolvesse. Observando esses percursos históricos do rio e da formação da cidade, foi possível construir um projeto que convergisse em uma ação educativa. Para essa ação educativa, tivemos por objetivos, compreender por meio de relatos e imagens a dinâmica da cidade em torno do rio, anterior e após as atividades carboníferas; identificar por meio das imagens o impacto ambiental que as atividades carboníferas acarretaram ao rio Criciúma e identificar por meio de mapas os locais por onde o Rio Criciúma circula e sua relação com a cidade no tempo presente. Com esses objetivos e delimitando nosso espaço principalmente no centro urbano da cidade pudemos fazer a nossa releitura e narrativa sobre as fontes. Além do acervo do CEDOC/UNESC, outros materiais foram reunidos durante a pesquisa para a que se concretizasse a ação educativa, sempre procurando problematizar as fontes e que as mesmas construissem uma narrativa que fosse de fácil compreensão e que pudessem atingir nossos objetivos. Ainda no processo de levantamento de material para montagem da ação educativa, foi selecionado o livro escrito pela Prof. Dra. Rose Maria Adami, Rio Criciúma: o rio que a cidade escondeu: significados e representações na paisagem. A propria autora nos cedeu algumas imagens e entrevistas que estão em seu livro para serem utilizadas no planejamento e durante a mediação da ação educatica. Um mapa sonoro cedido pela professora do Curso de Artes Visuais na UNESC Daniele Zacarão, também serviu de fonte e recurso, esse material foi produziu 2015 para um interveção no centro da cidade que teve por título Rio Criciúma: instruções para escuta. 464 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A ação educativa na prática e sua construção para um ensino História. Os/as alunos/as convidados para virem até o CEDOC para participarem das atividades da ação educativa foram do Centro de Educação Profissional “Abílio Paulo” (CEDUP), da cidade de Criciúma/SC. A escola fica ao lado da Universidade o que facilitou a deslocação dos/as educandos/as até o setor. Conversamos com o assessor administrativo (CEDUP), que nos apresentou a professora de História Cristine Santiago Crispim, e que prontamente aceitaram a proposta e disponibilizou suas turmas do 2° ano. Durante a ação educativa apresentamos brevemente o CEDOC/UNESC, os seus laboratórios, o memorial UNESC, e explicamos nossos objetivos com a ação educativa e que na prática tantos eles/as como nós estávamos ensinando e aprendendo. Buscamos também incentivar a presença dos/as educandos/as em outros locais além da instituição de educação formal e que esses espaços também geram conhecimento. Nesse primeiro acolhimento possibilitou um vínculo entre nós e eles/as, o processo de adaptação (mesmo que breve), é essencial para o andamento da ação educativa. A atividade foi dividida em dois momentos, para o primeiro, montamos um slide a partir das fontes pesquisadas e selecionadas com: imagens e relatos cedidos pela Prof. Dra. Rose Maria Adami que gentilmente nos enviou imagens visuais do próprio acervo do CEDOC/UNESC do período colonial de Criciúma, passando pelo período de intensificação das atividades carboníferas na região (década de 1940 a 1980), imagens de enchentes que foram retratadas nos jornais da cidade em forma de notícias e charges. Buscamos mostrar a construção do espaço e das transformações da paisagem em torno do rio e como as atividades carboníferas e os discursos de progresso vão auxiliando na sua in(visibilidade), para isso construímos uma linha do tempo do próprio rio. Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 465 O uso das “linhas do tempo” ou “frisas cronológicas” tem sido um meio eficiente de concretizar e visualizar períodos longos para apreender uma representação da dimensão temporal da história. O uso das linhas do tempo merece também cuidados quando se pretende que os alunos dominem efetivamente a noção de tempo histórico. (BITTENCOUR, 2008. p. 212). Outro recurso utilizado foi o mapa sonoro da passagem do rio pela rua Anita Garibaldi, centro da Criciúma, o que possibilitou “ouvir” o rio e os ruídos que fazem parte do próprio contexto em que este está inserido. Por meio das imagens e sons foi possível visualizar as transformações na paisagem da cidade ao longo do tempo e com isso perceber a existência do rio e à medida que ele vai sendo “apagado” da cidade em meio a prédios e asfalto. O rio Criciúma diferentemente de outros rios da região tinha por característica ser de pequeno porte com vários afluentes ao longo do seu percurso, não sendo esta uma justificativa para o seu apagamento da paisagem. Em 1931 o então prefeito municipal Cincinato Naspolini começou a canalizar as águas das nascentes do rio no morro Cechinel, e trazendo para Praça Nereu Ramos, centro da cidade e para que os comerciantes pudessem manter alguns estabelecimentos abertos (serrarias, tafonas, olarias e outros). (ADAMI, 2015). Pelas imagens foi possível não só problematizar os usos hídricos das águas, mas a ligação entre a cidade e o rio. E que o processo de canalização ainda é visível na paisagem da cidade. Entre os anos de 1960 e 1970 o processo de canalização adquiriu outros objetivos. Com o rio já tomado pelo lixo e principalmente por rejeitos do carvão, a canalização teve por objetivo esconder e/ou “doma-lo” com concreto. Entre as imagens utilizadas estão a construção em 1979 do canal auxiliar nas Ruas Getúlio Vargas, Marcos Rovaris (Imagem 1) e Rua Araranguá, em meio a ferro e lajes de concreto, o rio vai ganhando outros rumos. 466 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Imagem 1 – Construção de canais auxiliares para conter as cheias do rio na rua Marcos Rovaris em 1979. Fonte: Rose Maria Adami, 2015. Também apresentamos imagens de algumas enchentes de 1974 e de 2010, ocorridas no centro da cidade, local onde o rio faz o seu trajeto, essas enchentes representam a falta e a falha de uma atitude inversa sobre rio. Nos recortes de jornais também de 1974 e 2010 foi visível apresentar aos educandos/as o discurso negativo sobre o rio, a mídia cobrava dos poderes públicos uma atitude sobre o rio e que acabasse com as enchentes na cidade. Em janeiro de 2010 com os veículos de comunicação mais difusos, jornais como A Tribuna, Diário de Criciúma, Jornal da Manhã, trouxeram em suas páginas reportagens sobre a enchente, entre imagens e textos escritos, as charges também discursavam sobre o rio (Imagem 2). As narrativas midiáticas são fontes de analises, carregadas de símbolos, auxiliam na construção da cultura e formar identidade, que são expressões de um determinado tempo e podem expressar o cotidiano. Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 467 Imagem 2 – Charge retratando a enchente na cidade de Criciúma em 2010. Fonte: A Tribuna, 2010. A construção da imagem do rio nas charges pôde ser compreendida e analisada na representação de uma realidade em um determinado tempo. As charges criavam a imagem de que o rio era o grande causador das perdas materiais e a tristeza do povo criciumense acerca da enchente. A escrita jornalista tenta “prender” quem lê e não foge de uma construção discursiva. Os títulos de jornais estão sempre se transformando, tentando adaptar-se aos critérios de noticiabilidade do momento, às mudanças estéticas de paginação e aos avanços tecnológicos. Além disso, os títulos também têm que acompanhar o modo de vida de muitos leitores, que não dispõem de tempo suficiente para ler um jornal, mas têm interesse em se informar sobre os principais assuntos e dos argumentos que os envolvem. (FERNANDES, 2007, p. 1) No segundo momento os/as alunos/as desempenharam uma atividade de pesquisa e análise. Anexado aos autos do processo de mandado de segurança, existem 5 (cinco) mapas que trazem a retificação 468 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS e canalização do rio Criciúma e afluentes, nestes é possível visualizar o traçado do rio na cidade. Em meio aos documentos visuais disponíveis, podemos considerar os mapas como testemunhos concretos de mentalidades, enfeixando elementos referentes ao imaginário e a cultura de uma época em seu caráter administrativo, político, estratégico e científico. Enquanto uma construção social, ou seja, um documento elaborado com determinado objetivo, os mapas históricos estão permeados por interesses econômicos e políticos. (MOLINA, 2005, p. 2). Os cinco mapas foram xerocados em tamanho original e com o recurso do celular os/as alunos/as tinham por objetivos identificar alguns pontos na cidade. Para isso eles puderam utilizar os celular por meio do Google Maps e do Google Earth, Neu, destaca que é possível fazer uso desses recursos, pois, “o uso do Google Maps e do Google Earth, com o foco de atender as necessidades do aluno em seu cotidiano, afinal, induz o mesmo, a estudar o ambiente em que vive e a contextualizar o presente com o passado.” (2014, p. 5). Com isso os/as educandos/as conseguiram se identificar, reconhecendo locais já visitados e visualizando o rio Criciúma nesse cenário. Mudanças e permanências nos mapas foram percebidos. Pelo recurso Google Street View do Google Maps e Google Earth foi possível visualizar alguns locais onde o rio passa quase despercebido entre edificações (como exemplo na rua Anita Garibaldi, centro de Criciúma). A maioria dos/as educandos/as são da região de Criciúma, conhecendo o centro da cidade e circulando por espaços onde o rio percorre. Além de discutir a cartografia na construção do espaço, mas também de maneira visual acrescentamos questões sociais e políticas, bem como problematizando esse tipo de fonte como qualquer outro Liziane Acordi Rocha; Ariel Alves Medeiros | 469 documento. A construção do mapa tinha por finalidade jurídica e podendo o mapa ser um dos elementos que legitima e/ou silencia e a partir dos questionamentos e da ação do/a historiador/a sua utilização pode suscitar o debate e a crítica. No nosso objetivo o rio Criciúma foi visto nos mapas como elementos central, a as intervenções humanas que ali são representadas, inferem numa construção social. Os mapas puderam representar um fragmento no tempo e um momento na História, um olhar sobre mundo, que passa por filtros de escolhas de quem o produz e a sua finalidade. Conclusão Nessa ação educativa, compartilhamos e produzimos conhecimento sobre a cidade de Criciúma com destaque para o rio. Nessa via de mão dupla selecionamos documentos e produzimos uma narrativa histórica que para o nosso tempo representa o nosso olhar sobre rio e como as dinâmicas da cidade vão sendo construídas até o presente. Percebendo as transformações como uma espécie de “janela” na trajetória da pesquisa, por compreendemos que ao olharmos através desta, passamos por um enquadramento para visualizar a paisagem (JENKINS, 2007), sendo que por meio de outras “janelas” outras analises podem ser feitas. Da nossa sala de aula para sala de aula do CEDUP, procuramos ligar ambos os espaços e construir uma ligação entre espaços tanto formais quanto não formais. Horas de planejamentos e de leituras para em uma manhã ser colocada em prática e a dádiva e aflição de ser responsável pelo processo educativo. Cada fonte seleciona necessitou de uma abordagem diferente, os mapas (cartográfico e sonoro), as fotografias, entrevistas orais, jornais, enfim, todos reunidos em um único processo (a ação educativa). Não almejamos o todo nem a veracidade dos fatos, mas demonstram que na História as fontes podem se cruzar em um único objetivo. 470 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Sensibilizar os/as educandos/as quanto a uma mudança de olhar sobre rio Criciúma é uma ação política que age na esfera social e cultural. Relacionar as mudanças e permanências na representação e no significado que as pessoas deram e dão acerca de uma questão e que não são somente ambientais, e de responsabilidade da prefeitura e demais órgãos públicos, mas de todos/as os indivíduos. Criciúma não é um caso isolado no mundo, o forte discurso de progresso provocou consequências visíveis e caras na contemporaneidade. Referências ADAMI, Rose Maria. 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História e cinema Capítulo XXVIII A memória cultural do cemitério indígena na narrativa cinematográfica e o trauma da expropriação colonial Carolina Suriz dos Santos 1 O cinema, além de nos proporcionar o entretenimento, e eventualmente a reflexão, também estabelece narrativas que acabam indexando estereótipos e possibilitando visões sobre um determinado objeto, lugar, cultura ou passado. O cliché do cemitério indígena como um espaço maldito, que é responsável pelos infortúnios da família branca de classe média norte-americana, é um dos arquétipos que a narrativa cinematográfica gentrificou na memória coletiva, utilizando-se do gênero mais propício a dialogar com o âmago humano, o horror. Considerando o cinema como um agente criador de memórias, um veículo para a rememoração e, consequentemente, um meio para elaborar e manifestar traumas passados – históricos ou não -, o presente capítulo investiga a formulação de uma narrativa histórica traumática inserida dentro do gênero cinematográfico mencionado. O objetivo aqui é apresentar como a constituição do lugar “cemitério indígena” se desenvolveu como modelo e sinônimo de perigo, vingança e morte para a comunidade branca, privilegiada e economicamente ascendente nas décadas de 1970-1980 dos Estados Unidos; e como podemos encarar isso como uma rememoração traumática do passado colonial em relação aos povos nativos. Para isso, tal reflexão se dividirá em três momentos: primeiro defendo a ideia do cinema como um produto da modernidade e um dos responsáveis pelo choque que 1 Mestranda em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; carolinasuriz@gmail.com 476 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS marca a sociedade moderna, principalmente do século XX, pensando no choque análogo ao trauma, típico do gênero de horror. Após este primeiro tópico, alio-me ao estudo da memória a partir da análise da obra Espaços de Recordação: formas e transformações da memória cultural de Aleida Assmann, a fim de identificar as manifestações de um trauma histórico utilizando sua metáfora de evocações de espíritos, que dialoga com a construção de uma recordação que ressurge de um passado impacificado, neste caso, do cemitério indígena como esta memória fantasmagórica que surge do trauma colonial . Por fim, apresento então o cerne deste estudo, a memória cultural de um passado histórico presente no lugar cemitério indígena inserida na narrativa cinematográfica estadunidense de horror das décadas de 1970 e 1980. Para isso, além de apresentar vários exemplos dentro do cinema como transmissores dessa memória, tenho como fonte principal o filme Horror em Amityville de 1979, dirigido por Stuart Rosenberg, encarando esta produção como precursora e responsável pela rememoração do trauma colonial na memória cultural estadunidense. Da modernidade veio choque, do choque o horror A Modernidade, essa temporalidade tão polêmica e assombrosa, tem para além da constituição da disciplina histórica, a mudança de perspectiva da obra de arte. O grande historiador Walter Benjamin disserta sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte no século XX afirmando que, com o advento da sociedade moderna, nossa sensibilidade e percepção – que são históricas- transformam-se junto com a ruptura de uma autoridade em relação a imagem. Um tempo acelerado, técnico e barulhento, produz uma sociedade que paradoxalmente está mais sensitiva às formas culturais que a cercam e a compõem. É dentro desse espectro temporal latente que o cinema nasce com um berro estrondoso e fugaz, jogando-se como uma locomotiva em direção ao maravilhoso olhar Carolina Suriz dos Santos | 477 de seu espectador em choque. A historiadora Johanna Gondar Hildenbrand disserta sobre os efeitos de choque que a modernidade trouxe ao indivíduo e como o cinema se entrelaça nessa relação. Refletindo a partir de Benjamin, afirma que “tanto as obras literárias quanto as obras em telas tinham uma recepção semelhante “[ao] choque físico embalado no choque moral’ assegurando assim uma ‘distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo” (HILDENBRAND, 2015, p. 25). Enquanto as obras cinematográficas traziam consigo uma recepção cada vez mais instantânea, causando um baque, ou melhor, um choque pela sequência de imagens que proporcionavam, sendo assim, “é um dos mais nítidos exemplos de um objeto visível que se torna sentido por todo o corpo” (HILDENBRAND, 2015, p. 26-27), tornando a arte cinematográfica mais corpórea em relação às demais. Sendo a forma artística que mais tem potencial de causar uma colisão e reação imediata em seu espectador, o cinema acaba então por se fundir como um dos principais meios culturais da sociedade moderna, não sendo apenas fruto dela, mas também uma peça chave para o seu funcionamento. Robert Rosenstone, sem meias palavras, define o cinema não como uma alegoria para se estudar ou representar o passado, mas sim como um discurso histórico próprio: [...] o mundo familiar e sólido da história nas páginas impressas e a igualmente familiar, porém mais efêmera, história mundial na tela são semelhantes em pelo menos dois aspectos: referem-se a acontecimentos, momentos e movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e do ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de convenções que desenvolvemos para falar de onde nós, seres humanos, viemos ( e também de onde estamos e para onde achamos que estamos indo, embora a maioria das pessoas preocupadas com o passado nem sempre admitem isso) (ROSENSTONE, 2010, p. 14). 478 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Encarando o cinema através dos estudos de Rosenstone, é possível afirmar que toda e qualquer película, seja ela uma representação do passado, uma narração fantástica ou de horror, tem em sua produção algo que sempre corresponderá e dialogará com o grupo social que a absorve, realizando de alguma forma uma narrativa histórica. Apoiada então nas reflexões desenvolvidas acima, é possível encarar a sociedade contemporânea como produto desse choque da modernidade, que permeia a cultura e acaba levando ao nascimento da sétima arte. De acordo com Hildebrand, “o efeito de choque é próprio da arte cinematográfica, dentre todas as formas de representação, em nenhum outro gênero isso fica tão claro como no gênero de horror” (HILDENBRAND, 2015, p. 27). De todos os gêneros cinematográficos, o horror - além de compor o panteão dos primeiros gêneros desenvolvidos para a tela prateada - é aquele que propõe expor de forma mais profunda as significações sociais e culturais de suas películas. Stephen Prince, historiador estadunidense, argumenta que o gênero de horror é o único capaz de atingir o âmago mais profundo da existência humana, e porque o faz, acaba correspondendo mais profundamente com a nossa noção de mundo do que qualquer outro gênero. No cinema, desde seus primórdios, o horror foi o responsável por desenvolver narrativas temáticas que se encontravam com tópicos vigentes de seu público: do impecável e revolucionário Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene -onde a psiquê se encontra pela primeira vez como metanarrativa cinematográfica- ao monstro da Universal A Múmia (1932) de Karl Freund – que é um dos grandes representantes do cinema clássico para se debater alteridade entre oriente e ocidente. O gênero sempre se reinventou e se manteve como um dos carros-chefes da indústria cinematográfica. O filósofo Noel Carrol, dentro de seu fascínio pelo tópico, argumenta que o Carolina Suriz dos Santos | 479 o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas contemporâneas, populares ou não, gerando em quantidades vampiros, duendes, diabretes, zumbis, lobisomens, crianças possuídas pelo demônio, monstros espaciais de todos os tamanhos, fantasmas e outros preparados, num ritmo que fez os últimos dez anos[ da década de 1980], mais ou menos parecem uma longa noite de dia das bruxas (CARROL, 1999, p. 08-09). Portanto, encontrando o horror como este propagador de sensações, percepções, memórias e passados, é possível afirmar o gênero como um veículo que revela traumas históricos dentro de sua narrativa fantástica e sobrenatural. Adam Lowenstein, em sua obra Shocking Representation: historical trauma, national cinema, and the modern horror film desenvolve sua análise a partir daquilo que chama de "allegorical moment”, argumentando que “o momento alegórico é como uma colisão chocante entre o filme, o espectador e a história, onde os registros do espaço corporal e do tempo histórico são interrompidos, confrontados e entrelaçados” (CARROL, 1999, p. 3-4). O autor trabalha então com o conceito de trauma formulado por Sigmund Freud, onde o criador da psicanálise define trauma como “uma experiência que traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser absorvido” (FREUD apud HILDENBRAND, 2015, p. 12-13) logo, o choque da modernidade também se reflete como um trauma histórico para a existência humana, que em si, é responsável e perpetuado pelo gênero de horror cinematográfico. Este, sendo um dos gêneros de maior apelo da indústria fílmica, é também um aglutinador e recriador de memórias traumáticas, que vêem na ficção sobrenatural o seu condutor. 480 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A memória cultural de um esquecer não pacificado A memória vai para além de uma categoria de análise histórica, pois não pode ser monopolizada por nenhum discurso ou conhecimento; os estudos sobre as diversas faces da memória “transcende as costumeiras fases de ‘temas da moda’ na ciência” pois permite que diversas questões e interesses se cruzem(ASSMANN, 2016, p. 19). Quando Pierre Nora afirma que “fala-se tanto de memória porque ela já não existe mais”(NORA, 1993, p. 07) ao apresentar sua tese sobre o lieu de mémoire, o autor entende por memória algo muito mais atrelado a uma tradição cultural, de um laço criado entre um indivíduo e uma nação ou comunidade específica, ou seja, uma memória formativa. Ele aponta que aquilo que chama de crise de memória é um desacoplamento entre passado e presente. A historiadora alemã Aleida Assmann argumenta a partir dos apontamentos de Nora que “essa lógica condiz com o caráter retrospectivo da lembrança, acionado somente quando a experiência na qual a lembrança se baseia já estiver consolidada no passado” (ASSMANN, 2016, p. 15) e hoje em dia, afirma que não precisamos mais lidar com uma interrupção do recordar a partir de uma memória experiencial de testemunhos, para então trazermos à superfície o lembrar. A autora defende que esta memória é uma memória viva que se traduz em uma memória cultural da posterioridade, e que “enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política de recordação e esquecimento.”(ASSMANN, 2016, p. 19) Em sua fantástica obra Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural, a historiadora tem como proposta refletir sobre diversos pontos de vista a respeito daquilo que chama de “complexo fenômeno da memória”, dividindo sua análise em tradições mnemotécnica e discurso de identidade-, perspectivas – memória cultural, Carolina Suriz dos Santos | 481 coletiva e individual-, e mídias – textos, imagens, lugares, bem como discursos (literatura, história, arte, psicologia, etc.). Para este presente ensaio, procurei focar naquilo que a autora identifica como Meios de Memória, desenvolvendo a metáfora que chama de evocação de espíritos. Encarando a metáfora como um meio para recordar, Assmann a define “não como uma linguagem que se parafraseia, mas uma linguagem que primeiro desvela o objeto e o constrói”(ASSMANN, 2016, p. 162); mostrando ao leitor que quando fala em metáfora, está a encarando como o único meio para falar em recordação. A metáfora se entrelaça com as imagens e modelos de memória, se dividindo entre aquelas que são espaciais e temporais. Enquanto a metáfora espacial desenvolve os códigos de conteúdos da memória em “fórmulas imagéticas impactantes” que por si são destinadas a locais específicos, se tornando então espaços mnemônicos, a metáfora temporal trabalha com a ideia de um despertar memorativo, de uma revivificação, de um combate ao esquecimento. Ambas se complementam. Para falar em evocação de espíritos é preciso inicialmente compreender onde essa metáfora se encaixa dentro das qualidades temporais que a constitui. Para isso, Assmann introduz a ideia de uma forma memorial regenerativa que nasce a partir de uma concepção antiga sobre o fogo. O fogo é um símbolo da recordação, pois ele tanto evidencia aquilo que estava nas sombras e devastado pelo tempo como também renova uma memória perdida. “A faísca, que faz clarear a memória esquecida, significa aqui uma energia que é tão subjetiva quanto repentina, tão pontual quanto precária” (ASSMANN, 2016, p.186). Esta magia da recordação ocorre enquanto este passado continua de alguma forma “soltando faíscas”, fixando uma fascinação em torno dele, que é renovada a partir de novos conjuntos de metáforas, que se desenvolvem com novas consciências históricas. Aby Warburg, importante historiador da arte e um dos pensadores que influenciaram a construção da teoria da 482 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS memória cultural, declara em sua noção de magia anteica que, a memória sofre descargas latentes quando se encontra pressionada pelo o que chama de tangenciamentos diretos, ou seja, esse fascínio, que permite uma regeneração de uma memória cultural, é causado por uma demanda que tanto pode ser institucional quanto sociocultural. […] quanto mais longo o caminho através do tempo histórico, mais intenso o interesse imaginativo pela abreviação, por tangenciamentos imediatos e contatos diretos. O simbolismo do fogo para significar a recordação ganha nova virulência no horizonte do historicismo (ASSMANN, 2016, p. 187). Então esta memória que está momentaneamente inativa até ser resgatada do limbo do esquecimento, contém um potencial de afeto que a desperta de sua inércia; porém quando este afeto é substituído pelo recalcamento, a potencialidade dessa memória se transforma em um acontecimento demoníaco. Nesse caso suspende-se o controle voluntário da consciência, e o processo da recordação passa a seguir os ritmos de uma energia imanente. A imagem dos fantasmas presta-se a significar essa estrutura procedimental involuntariamente coerciva das recordações (ASSMANN, 2016, p. 187). Pode-se entender por recalcamento a metáfora da memória que pulsa à procura da tocha que a revelará da escuridão, e que quando não ressurge por meio do afeto, ou seja, quando é silenciada, e não promovida à recordação, vê como caminho para a luz a evocação mágica e demoníaca. É a memória que assombra e que intimida, é o passado sangrento e impacificado que resiste ao tempo e se vê preso cada vez mais ao presente. Este esquecer não pacificado são seus mortos que não descansam por terem sidos assassinados ou ficarem insepultos [corretamente], eles retornam como aparições, como fantasmas. (...) Um Carolina Suriz dos Santos | 483 passado impacificado ressurge de forma inesperada e assombra o presente como um vampiro (ASSMANN, 2016, p. 188-189). O uso do cemitério indígena como um espaço maldito que causa o sofrimento à família branca de classe média norte americana, é um dos exemplos mais notórios que o cinema nos traz para falar sobre um passado “irresolvido e inconcluso que sobrevive tácito e interdito de geração a geração”. Esta memória que é evocada, a partir da metáfora de Assmann, é fruto de um passado traumático, que vive preso em um pesadelo, é um “trauma coletivo, a culpa recalcada pela sociedade, que, em suas peças, reconduz violentamente à consciência a partir de um presente que negligencia a memória do passado e dos antepassados”(ASSMANN, 2016, p. 189). Este trauma que é ignorado conscientemente e que regressa violentamente é o resultado de uma memória que anseia pelo reparo, mas que pela falta do afeto pela sociedade que a desperta, é vista como uma tentativa de vendeta aos colonizadores. A imagem que se constrói na tela do cinema, a ideia que ela vende e manipula para o público é a forma de recordação de um trauma coletivo colonial que não conseguiu o esquecimento, mas que apenas chegou à luz por meio da assombração. Pais brancos, filhos vermelhos Na madrugada de 13 de novembro de 1974, na casa de número 112 situada na Ocean Avenue, subúrbio de Amityville, Ronald DeFeo Jr. assassinou a tiros seis membros de sua família, cometendo um dos crimes mais hediondos da história da ilha de Long Island em Nova York. Em dezembro de 1975, George e Kathy Lutz compram a residência a baixo custo e mudam-se com seus três filhos: Daniel, Christopher e Melissa. Vinte e oito dias depois, os Lutz fogem no meio da noite, alegando que fenômenos estranhos e violentos vindos da casa estavam colocando em perigo o bem- estar mental e físico da família. Em paralelo a esses eventos, 484 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Ronnie DeFeo Jr alega no tribunal que vozes demoníacas o fizeram cometer o ato brutal contra seus entes familiares. Assim, se estabelece uma das histórias urbanas sobrenaturais mais famosas da cultura norteamericana. Atraindo jornalistas em busca de um sensacionalismo ligado aos assassinatos DeFeo, os Lutz concedem o direito a especialistas em paranormalidade para examinar a casa, afirmando que durante sua permanência foram até a Amityville Historical Society que os informou da hipótese da existência de uma espécie de sanatório da tribo Shinnecock no mesmo terreno onde a casa agora se situava, onde os doentes, loucos e moribundos eram abandonados. Ethel Johnson-Meyers, uma das médiuns que visitou a casa, afirmou na época ter invocado o espírito de um chefe Shinnecock que disse a ela que o local fora construído em cima de um cemitério indígena. O romancista Jay Anson munido então deste material que variava entre artigos de jornais, depoimentos de médiuns, reportagens sobre os assassinatos de 74 e uma fita de cerca de 45 horas de testemunho gravada pelos Lutz, desenvolve o quadro para criar seu mais famoso romance, intitulado “Horror em Amityville”, lançado em 1977. Anson constrói uma narrativa que define o cemitério indígena como este grande antagonista e responsável pelo terror e trauma de duas inocentes famílias brancas e ordinárias do subúrbio nova-iorquino, os DeFeo e os Lutz. Em 1978 os direitos do best-seller são garantidos pela American Internacional Pictures (AIP), que lança sua adaptação em 1979. Dirigido por Stuart Rosenberg e estrelado por James Brolin e Margot Kidder como o casal George e Kathy Lutz, o filme foca de forma mais incisiva numa possível ligação entre os assassinatos de 1974 e os eventos sobrenaturais de 1975/76 como consequência dessa assombração Shinnecock que permeia o local da casa, reconstituindo os vinte e oito dias da família como um longo e violento pesadelo. A película fez um imenso sucesso nas bilheterias estadunidenses, alcançando sucesso também nas salas de Carolina Suriz dos Santos | 485 cinema ao redor do globo. Essa é a premissa que inaugura uma onda avassaladora de produções cinematográficas de pequeno à grande alcance inseridas dentro do gênero de horror. Do final dos anos 1970 à toda década de 1980, o cliché do cemitério indígena como um lugar amaldiçoado, vingativo e desumano se constitui como uma memória cultural estadunidense de forma tão intensa e veloz, que acaba se transformando em sátira nos anos 1990 e problematizada no início do século XXI. Após o lançamento e sucesso comercial concretizado, “Horror em Amityville” foi o responsável pelo renascimento de um subgênero dentro do horror cinematográfico, a casa mal-assombrada. Introduzido ao grande público a partir dos anos 1960 com os filmes “The Innocents” (1961) de Jack Clayton e “The Haunting” (1963) de Robert Wise, adaptações dos romances Turn of the the screw de Henry James e The haunting of Hill house de Shirley Jackson, respectivamente, o subgênero da casa malassombrada flertava com aspectos da psiquê de seus personagens principais, sendo uma alegoria para um trauma passado. Com “Amityville”, este trauma, que anteriormente estava relacionado com aspectos de um individualismo e uma neurose freudiana, agora encontrase como um trauma histórico, algo que perturba diretamente o american way of life dos protagonistas ali postos. Em 1980 chega a tela prateada “O Iluminado” de Stanley Kubrick, uma das grandes obras primas do gênero na história do cinema, adaptado do livro homônimo de Stephen King. O longa-metragem envolve mais uma vez a ideia do despertar de uma violência patriarcal como uma “memória do conflito subjacente da expropriação colonial e a profanação de túmulos nativos que não podem ser narrados nem esquecidos” (MACKENTHUN, 1998, p. 93). Dois anos depois, “Poltergeist”, de Tobe Hooper, é lançado; produzido por Steven Spielberg, o filme torna-se um dos blockbusters do ano de 1982, confirmando esta memória do cemitério indígena como lugar maldito, e 486 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS aparentemente lucrativo. O curioso sobre este longa em particular, é que o cemitério que aparece na narrativa é especificamente indicado como um território que não é nem antigo nem tribal, porém a memória que estava em construção sobre o famoso indian burial ground2era tão forte que é um erro comum, até os dias atuais, confundir a entidade maligna deste filme como uma entidade nativo-americana. Em 1983, com a demanda comercial para histórias que “antagonizassem” a figura do índio norte americano, Stephen King lança sua obra literária Pet Sematary, que chega às telas em 1989. A narrativa nos conta sobre uma família que ao se mudar para uma zona afastada da cidade, acaba descobrindo um antigo cemitério indígena da tribo Micmacs, vinculada a lenda Wendigo3, que é capaz de ressuscitar os mortos ali enterrados. A história de King ocorre simultaneamente ao processo legal do estado do Maine contra as tribos Maliseet, Penobscot e Passamaqueoddy, membros da Confederação Wabanaki4 , que iniciou em 1972. Essas tribos processaram o estado do Maine pelas terras das quais eram suas por direito de acordo com a lei federal; terras essas que somavam 60% da área do estado. Há muito tempo habitada por americanos não-nativos, a terra em disputa era o lar de mais de 350.000 pessoas que teriam precisado de reassentamento se as tribos tivessem tido sucesso (DICKEY, 2016). Toda essa história serve como background para o romance de King. Os filmes mencionados acima são alguns exemplos mainstream de produções que a partir de 2 Forma como os estadunidenses se referem ao que aqui chamamos de cemitério indígena. 3 Figura mitológica nativo-americana. O Wendigo seria uma espécie de espirito canibal que traz a neve e a fome. A memória estabelecida sobre o Wendigo e todos seus representantes assombra o inconsciente coletivo da América, uma lembrança voraz da expropriação colonial. (EFLIN, Jackson. Incursion Into Wendigo Territory. In: Digital Literature Review- Historical Haounting and Modern-Day Manifestations, Vol. 01, p.09, 2014, Ball State University.) 4 A Confederação Wabanaki representa a união das primeiras nações nativo-americanas, sendo composta pelas cinco principais nações-tribos. Carolina Suriz dos Santos | 487 “Amityville” ganharam espaço e promoveram o apelo público sobre o tema. A pesquisadora Gesa Mackenthun, em seu ensaio Haunted Real Estate: the occlucion of colonial dispossession and Signatures of cultural survival in U.S. Horror Fiction argumenta que a prática política colonial de expropriação foi traçada historicamente como uma profanação inevitável de túmulos nativos. A imagem sentimental da civilização americana sendo erguida sobre os túmulos dos desaparecidos e exterminados nativos-americanos, prosperou na era de expansão imperial- em particular na retórica de Andrew Jackson, cuja presidência foi responsável pela remoção de todas tribos do leste para o território indígena a oeste do Mississippi-, milhares de pessoas morreram durante este êxodo (MACKENTHUN, 1998, p. 96). Jackson foi o responsável também por tentar criar um diálogo com os nativos durante a expansão do oeste, porém quando a Suprema Corte dos Estados Unidos legou o status de nações domésticas dependentes aos Cherokees e outras tribos, tornando-as independentes do estado da Georgia, o governo federal se viu em um conflito com o governo local, que acaba sendo privilegiado pelo governo de Jackson, contrariando a Suprema Corte. A atitude da presidência parte de um diálogo político e, teoricamente, pacífico para a conclusão de que os nativos americanos só poderiam ser removidos pelo uso da força; Jackson acaba colocando a si mesmo como o ‘pai branco’ com seus “filhos vermelhos” que seriam transferidos e retirados de sua terra. O exemplo mais amplo da linguagem do ‘pai branco’ e dos ‘filhos vermelhos’ veio com a batalha legal entre a nação Cherokee e o estado da Georgia mencionados acima, sustentando a ideia de uma dependência da tribo ao Estado. A preocupação simbólica e científica com os túmulos e restos mortais dos nativos “sugere que o êxodo indígena produziu uma maior instabilidade psicológica dentro da sociedade americana do que se 488 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS supõe geralmente.”(MACKENTHUN, 1998, p.97). A política jacksoniana indígena representou um escândalo e peso moral até mesmo para seus contemporâneos, que não conseguiram evitar o evidente genocídio cultural do período. Com isso, o tópico “expropriação indígena” torna-se uma presença constante na literatura e posteriormente, no cinema norteamericanos, especialmente na ficção de horror do fim dos anos 1970 e durante os 1980. O mistério da emancipação da memória colonial é, que ele se desenvolve no lar da família tradicional colonizadora, onde liberta uma memória cultural e coletiva conflitantes sobre a propriedade privada, que ao mesmo tempo é presa novamente ao ser traduzida como um drama familiar evocado pelo sobrenatural maléfico do lugar. Essa memória cultural que é estabelecida sobre o cemitério indígena se desenvolve em uma memória traumática do processo de expropriação nativa-americana a partir do uso da metáfora de evocação de espíritos de Aleida Assmann. Porém o trauma que vínculo aqui às produções cinematográficas é um evento traumático para a cultura anglo-americana, pois como Mackenthun discorre, o evento daquilo que a autora chama de “colonial dispossession” é moralmente indigesto, e não pode ser expressado em nenhuma narrativa nacional. O filme “Horror em Amityville”, portanto, pode ser considerado esta válvula de escape que tensionou uma questão histórica que lutava contra o esquecimento. Como Assmann afirma, este passado impacificado e violento que não é investigado pelo afeto e sim negado à luz da rememoração, surge como um fantasma, uma entidade maligna vingativa, que irrompe o angloamericano e contesta seu direito a terra, a posse, a propriedade; que o expulsa. Carolina Suriz dos Santos | 489 Considerações finais Em 2005 a produtora Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) adquire os direitos de uma refilmagem, do já considerado clássico, “Horror em Amityville” de 1979. Ainda se sustentando sobre uma narrativa sangrenta e sobrenatural que possibilitou o primeiro longa, e provando que a história da casa mal-assombrada mais famosa dos EUA ainda não tinha cansado os espectadores, o filme surpreende pelo giro narrativo que desenvolve sobre seu antagonista. Enquanto no original de 1979 – que provocou uma série de filmes posteriores, contando 21 películas até o momentoapresentava uma memória cultural do cemitério indígena como fonte do mal que aterrava o local da casa; na sua revisitação de 2005 essa memória é subvertida e coloca os nativos-americanos como vítimas de um sádico padre que utilizava do subterrâneo da casa para exercer seus crimes. Produção com nível de gore muito mais explícita em sua narrativacaracterística do gênero de horror do início do século XXI-, “Horror em Amityville” de 2005 procura então exercer esta mea culpa branca em relação ao seu predecessor, alertando aos mais atentos a uma mudança dessa memória cultural constituída na narrativa cinematográfica no final dos anos de 1970. O que este capítulo buscou investigar foi a construção de uma memória cultural relativa a concepção do lugar cemitério indígena inserida na narrativa cinematográfica de horror estadunidense dos anos 1970 e 1980. Levantando primeiro o gênero como um condutor de traumas passados ou históricos -que foram possibilitados através da Modernidade – além de, é claro, ser um veículo de rememoração único. Baseando-me nessa premissa, pude perceber a viabilidade de uma memória cultural, instrumentalizada através da metáfora de evocação de espíritos de Aleida Assmann, somada então a uma demanda sociocultural pelo tema, que é 490 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS produto daquilo que aqui chamo de trauma colonial da expropriação nativo-americana. Referências ASSMANN, Aleida. Introdução; Segunda parte: meios – Sobre as metáforas da recordação. In: Espaços de Recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe (org.). Campinas: Ed. Unicamp, 2016, p. 15-30/161-184. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de: Francisco de Ambrois Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012. CARROL, Noel. 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Horror em Amityville (1979) – de Stuart Rosemberg. Produtora: American International Pictures (AIP). Estados Unidos. Ficção. Horror em Amityville (2005) - de Andrew Douglas. Produtora: Metro Goldwyn Meyer (MGM). Estados Unidos. Ficção. O Iluminado (1980) – de Stanley Kubrick. Produtora: Warner Bros. Estados Unidos e Reino Unido. Ficção. Poltergeist (1982) – de Tobe Hooper. Produtora: Metro Goldwyn Meyer (MGM). Estados Unidos. Ficção. The Real Amityville Horror (2005) – de Craig Collinson e Nick Freand Jones. Produtora: Nobles Gate Scotland. Estados Unidos. Documentário. Capítulo XXIX A segunda Cinelândia carioca: uma análise sobre o fim dos cinemas da Praça Saens pena entre 1970 e 1999 e seu impacto para a vida social dos tijucanos Danielle Lima Rodrigues 1 Hoje, quem anda na rua Conde de Bonfim e no entorno da Praça Saens Pena, não imagina que a maioria dos estabelecimentos que estão lá, como as farmácias e lojas de departamento, foram salas de exibição que atraiam muitas pessoas todos os dias. Um olhar mais atento poderá notar que alguns lugares guardam ‘’resquícios’’ dessas salas, como a própria estrutura física, fotos ou cartazes de filmes antigos. Em linhas gerais, analisaremos como o fim dos cinemas de rua impactaram na vida social dos moradores, pois a Praça Saens Pena não concentrava apenas várias salas, mas também era um espaço de encontro e sociabilidade. Considerando que o processo de fechamento das salas começou a acontecer em 1970 e tendo a última fechada em 1999, isso aconteceu de forma gradual, entretanto, os cinemas foram dando espaço para outros estabelecimentos. Dessa forma, busca-se identificar como foi a transição dos cinemas de rua para o Shopping Tijuca, que hoje abriga o único complexo de salas do bairro. A partir dos relatos dos antigos frequentadores das salas de cinema e a minha observação como entrevistadora e moradora do bairro, que tenta descrever um pouco das memórias dessas pessoas e deixar transparecer os sentimentos que são evocados a pesquisa tem como hipótese central que o público de cinema 1 Graduanda – UFRJ; daniellelimaro@hotmail.com Danielle Lima Rodrigues | 493 local não se adaptou ao fenômeno da nova “Era dos cinemas de shopping centers” devido, entre as principais razões, a falta de variedade dos filmes em exibição, que atualmente reduziram-se aos filmes blockbusters hollywoodianos, a perda da identidade do espaço de socialidade no convívio da experiência cinematográfica, já que o público frequentador dos cinemas de shopping é bastante heterogêneo e principalmente a especulação imobiliária, que foi atendendo a um novo momento. A História Cultural é de fundamental importância para a pesquisa, visto que trata-se de uma investigação sobre a cultura de um bairro do Rio de Janeiro onde seus moradores carregam um grande sentimento de pertencimento ao lugar que moram. Assim, deve-se elencar alguns conceitos como hábito, costumes, cultura e identidade. Desse modo, uso principalmente Michel de Certeau e Stuart Hall, que ajudam a elucidar esses conceitos que se cruzam durante todo o processo. Segundo Certeau: “O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior” (CERTEAU, 1996, p. 31). Essa rápida explicação já nos adianta que o antigo costume de ir ao cinema de rua da Praça Saens Pena é algo que significa muito para seus antigos frequentadores. Além disso, Stuart Hall aponta: A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e “culturas populares’’ das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas (HALL, 2003, p. 136) Assim, dentro da História Cultural, o presente trabalho se agrupa na memória e historiografia por concentrar-se em evocar memórias que pertencem a um local hoje quase irreconhecível. Da mesma forma, a História Oral também tem grande valor para essa pesquisa. Assim, a metodologia fica por conta de alguns autores como Leandro Alonso e Marieta Ferreira que enfatizam como a História Oral é indispensável para 494 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS a historiografia e ensinam como utilizar essa prática nos estudos. De acordo com Leandro Alonso: O que torna a história oral possível é a intrincada experiência de campo. Um trabalho de história oral, portanto, justifica-se por meio da armação de um projeto característico – o que nos faz conceber que a história oral não é sinônima da prática essencial e impreterível da realização de entrevistas, mas que as entrevistas fazem parte da história oral – são “colunas cervicais.” (ALONSO, 2017, p. 214) Certamente, a realização de entrevistas foram peças chaves para discutir a problemática, porém como Leandro afirma, a pesquisa de campo, o “circular’’ pelo local garantiram que fosse ouvido o que muitas vezes não foi falado, apenas percebido. Entretanto, como é afirmado na obra Usos e abusos da história oral (1998, p. 16): “a história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho [...] e é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar, questões; formula as perguntas, porém não pode oferecer as respostas”. Dito isso, ao longo do trabalho pretendo cruzar a história oral com a teoria da história e discutir os conceitos, perpassando pelos relatos que expressam a subjetividade que eu pretendo trazer com o tema. Ao olhar para trás, verifica-se que a história do cinema já vem sendo estudada no Brasil de forma muito eficiente, entretanto, com o advento da História Oral e sua recente renovação, percebo que os autores que se ocuparam dos cinemas deixaram escapar a importância da mesma para a história do cinema. Há poucos trabalhos que abordam sob a perspectiva da História Oral no período por mim recortado. Grande parte desses trabalhos, desenvolvem a questão da era dos cinemas de rua recorrendo a outros estudiosos da historiografia cinematográfica, jornais e arquivos públicos. Desse modo, destacarei dois importantes trabalhos sobre os cinemas de rua. Danielle Lima Rodrigues | 495 Sheila Schvarzman é historiadora e em seu artigo: “Ir ao cinema em São Paulo nos anos 20’’ (2005) disserta um pouco sobre o papel das salas de cinema para a sociedade paulista, abarcando desde as classes mais baixas até a elite. Para isso, a autora recorre às críticas feitas por Octávio Gabus Mendes e publicadas na década de 1920 em Cinearte, revista carioca dedicada ao cinema. O artigo aponta que ir ao cinema era além de assistir a produção cinematográfica, por isso se investiu tanto em estrutura, sinalizada no luxo dos cinemas do centro de São Paulo: Nos anos 20 se consolida a ideia do cinema como o espetáculo da evasão popular. Grandes salas — a média é de quinhentos lugares ou mais — são construídas ou reconstruídas para criar ‘atmosferas’ de surpresa e emoção. Da fachada ao lobby a arquitetura da “evasão e desmesura” — nunca identificada com um desenho contemporâneo — se encarrega de lançar o espectador para fora de seu cotidiano: o exotismo é certamente a característica marcante. (SCHVARZMAN, 2005, p. 161-162) Desse modo, mesmo falando de um lugar e tempos diferentes, o trabalho de Sheila é um bom representativo de como estudar o cinema de uma determinada localidade, envolvendo também o seu público, a localidade das salas, seus usos e não apenas a exibição dos filmes. Por outro lado, temos Talitha Ferraz, formada em jornalismo e atuante em estudos sobre as salas de cinemas, exibição cinematográfica, memória e nostalgia. A jornalista trouxe importantes contribuições com a sua obra ‘’A Segunda Cinelândia Carioca’’ (2012), na qual investiga sobre toda a época áurea dos cinemas na Praça Saens Pena, desde o inicio do século XX até o fechamento da última sala. Diferentemente de Sheila, que aborda as salas de cinemas paulistanas, Talitha escreve justamente sobre o local que busco estudar, porém, dando um recorte temporal maior abarcando desde a inauguração das primeiras salas, ápice e declínio. De 496 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS qualquer forma, a jornalista foi o pontapé para que meu trabalho pudesse ser realizado, estando seu conceito presente no título. Um breve histórico dos cinemas O auge dos cinemas na Praça Saens Pena foi entre as décadas de 1940 e 1960, sendo considerada por muitos como a “Segunda Cinelândia Carioca’’ (FERRAZ, 2012). A “primeira’’ se localiza no centro do Rio de Janeiro, a Praça Marechal Floriano Peixoto, que ficou conhecida nos anos 30 como Cinelândia por concentrar em um mesmo espaço várias salas de cinemas. É interessante perceber as semelhanças e diferenças entre os dois locais. Em comum, podemos apontar que os dois serviram como grandes polos de exibição cinematográfica no Rio de Janeiro e ambos são praças. Assim, diante desse espaço ‘’plano e retangular, com extremidades bem próximas, a praça permitiu o estabelecimento de uma gama de equipamentos ao seu redor, os quais poderiam ser facilmente acessados’’ (FERRAZ, 2012, p. 51). Entretanto, a Cinelândia e a Praça Saens Pena se diferenciam, pois indubitavelmente na Cinelândia existiram mais cinemas e além disso, a Cinelândia foi construída com a intenção de ser um complexo destinado ao entretenimento e a Saens Pena não. Desde o início do século XX, em 1907, a Tijuca já abrigava salas de exibição. O primeiro cinema na grande Tijuca se chamava Pathé Cinematográfico na Rua Hadocck Lobo. Já na Praça Saens pena, construída em 1910, o primeiro cinema a ser inaugurado foi o Cinema Olinda, onde hoje funciona o Shopping 45. Após este, muitos outros surgiram, como o Cine América, onde hoje é uma farmácia e o Cine Metro, que hoje é uma loja de departamento. Esse cinema localizado bem no centro da praça, era a principal referência em filmes americanos, foi considerado o mais luxuoso, tinha enormes tapetes vermelhos, poltronas muito confortáveis e era administrado pela Metro-Goldwyn-Mayer. Além disso, existiam os Danielle Lima Rodrigues | 497 cinemas conhecidos como “poeirinhas’’, que eram menos confortáveis, sem ar condicionado e acústica não muito boa. As salas exibiam filmes já não eram lançamentos ou produções menores, no entanto, atraiam muitas pessoas. Ao longo do século XX a praça Saens Pena, incluindo ruas ao redor, como Desembargador Isidro, Haddock Lobo e Mariz e Barros, abrigaram mais de 40 salas de cinema, que fizeram o local ficar conhecido e frequentado pelos amantes do cinema. O processo de decadência começou em 1970 e foi gradual, sendo o último cinema fechado em 1999 – o Cine Art-Palácio – para dar lugar a uma loja de departamento. As razões para esse processo são muitas e atravessam vários campos, nos quais tentaremos tratar neste trabalho. Assim começa a ascensão das salas do tipo multiplex, como o Shopping Tijuca, que passou a concentrar as únicas salas de cinema da Tijuca. O cotidiano: as maneiras de fazer Mesmo depois de alguns anos, foi incrível perceber como os antigos frequentadores dos cinemas lembram com detalhes do que faziam, as roupas que usavam, os dias que frequentaram, entre outras coisas. A praça era uma grande referência para o cinema carioca, mas além disso, o lugar permitia o convívio, a troca de experiências, o afeto e o sentimento de pertencimento àquele local. A praça era o point do final de semana. A gente ia no cinema, depois ia para o Bob’s da Rua General Roca ficar conversando e paquerando. Era muito frequentado pelas moças e pelos tremendões tipo o Erasmo Carlos, que iam para paquerar (...) Os cinemas menores chamados poeirinhas, eram mais baratos porém tinham um cheiro estranho, as poltronas eram duras, telas ruins sem qualidade e os filmes também não eram muito legais (Dona Angela). “Para que haja cultura, não basta ser ator das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as 498 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS realiza’’ (CERTEAU, 1996, p.142). Assim, a ida ao cinema significava muito mais do que assistir o filme do momento. As pessoas iam para lanchar nas bombonieres, algumas inclusive se localizavam até dentro dos cinemas e ao redor como por exemplo o tradicional Café Palheta. Além disso, também havia movimentação de pessoas conversando na porta das salas antes e após os filmes e no centro da praça, o tradicional footing que vem do inglês “ir a pé’’. Essa caminhada no centro da praça funcionava como uma forma de “flerte’’, assim, os rapazes e as moças seriam notadas e é exatamente isso que Dona Angela nos conta. “Os dias mais frequentados eram sábado e domingo. A gente ia no cinema com a namorada, fazia um lanche e depois ia namorar um pouco na praça’’ (Seu Luiz). Segundo Certeau: “O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior” (CERTEAU, 1996, p. 31). O conceito do autor se faz importante no trabalho, pois só dessa forma poderemos sentir um pouco do porquê os moradores entrevistados exprimem tanto sentimento e riqueza de detalhes ao lembrar desse momento da vida deles. O que Certeau quer dizer com o termo ‘’prisão’’: a repetição das ações torna-as cotidianas, fazendo despertar sentimentos. Em conjunto isso ainda fica mais forte, visto que chegando ao fim, a quebra de convívio e a sensação de que os sentimentos vividos não voltarão leva a um vazio. A “prisão’’ daquela rotina desaparece. De acordo com essa concepção, Jesus Martin Barbero, tal como Certeau, trabalha com a ideia de que os cinemas também contribuem para que as pessoas sigam um padrão e assim: Cultura popular fala então não de algo estranho, mas de um resto e um estilo. Um resto: memória da experiência sem discurso, que resiste ao discurso e se deixa dizer só no relato. Resto feito de saberes inúteis à colonização tecnológica, que assim marginalizados carregam simbolicamente a cotidianidade e a convertem em espaço de uma criação muda e coletiva. E um Danielle Lima Rodrigues | 499 estilo, esquema de operações, modo de caminhar pela cidade, habitar a casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de inventividade técnica e resistência moral (BARBERO, 1997, p. 126). Portanto, é de fato possível perceber entre os relatos a repetição de ações de pessoas que não se conhecem, mas que por morarem em um mesmo bairro e frequentarem o mesmo lazer, tem histórias e costumes em comum. Certeau e Barbero colocam como isso influencia na questão da sociabilidade e na formação de identificação própria do lugar. O fim dos cinemas e a transição para o shopping O último cinema fechou as portas em 1999, mas desde 1970 os cinemas da Praça Saens Pena já passaram por uma crise e vinham gradualmente fechando suas portas. Algumas das razões para isso foi a especulação imobiliária, que passou a querer fazer novos usos do terreno dos cinemas, sendo sua maioria para o comércio, a chegada da fita VHS e posteriormente o DVD, assim as pessoas não precisavam mais sair de casa e ficavam no conforto dos seus sofás assistindo os filmes do momento e a violência, apontada por muitas pessoas como principal motivo, pois os números de assaltos vinham crescendo e os frequentadores do cinema começaram a ficar com medo de sair de uma sessão e serem surpreendidos. Além disso, nos anos 80, sob o governo do Presidente Fernando Collor, o cinema brasileiro passou por uma grave crise, sendo o período chamado de ‘’a nossa idade das trevas’’ pelo cineasta José Roberto Torero. Nessa época, Collor deu fim a EMBRAFILME e o CONCINE – principais órgãos de cinema no Brasil, em nome da austeridade de gastos do Estado e exaltação do livre mercado. Assim, com a diminuição da produção de filmes, muitas salas de exibição também foram entrando em instabilidade. 500 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Isso tudo impactou no cotidiano da praça, que era um lugar de convívio, de conversa e a partir dos fatores citados, esse costume só foi desaparecendo. Pra mim, os cinemas acabaram porque o comércio começou a dar mais lucro e a fita e o DVD contribuíram. Esse foi um fator demolidor. Agora a praça é apenas um meio de passagem, cheia de pivetes. Foi deteriorada totalmente (Seu Henrique). Ao conversar com os moradores e perguntar o que eles achavam que seria a causa principal para o fim dos cinemas, pude perceber que eram apenas especulações, mas ninguém na época esclareceu de verdade. Inclusive, pude constatar isso com clareza quando ouvi frases como: ‘’Eu não entendi porque acabou, as pessoas continuavam frequentando e os cinemas não incomodavam ninguém’’ e ‘’Ninguém falou porque acabou, a gente só via eles (cinemas) fechando as portas.’’ Portanto, é o suficiente para evidenciar que a partir desse momento já começa a despertar um sentimento de tristeza e representa o fim de um período muito rico em cultura e convívio da Tijuca. Ligado ao fim dos cinemas de rua, está a construção do Shopping Tijuca, inaugurado em 1996, porém desde 2006 o cinema Kinoplex Tijuca, localizado no ultimo piso do shopping, passa a abrigar 6 salas de exibição – que são o total de salas de cinema que agora a região da Praça Saens Pena tem. Os moradores mais antigos, que frequentaram a Segunda Cinelândia Carioca, se queixam que hoje a única opção de ir ao cinema é o shopping e alguns não se acostumaram até hoje. ‘’Os mais velhos que ainda frequentam o cinema no shopping vão porque não tem outra opção’’ (Seu Henrique). ‘’As velharias raramente vão no cinema de shopping, elas não gostam e nem eu. É difícil ir com as minhas amigas.’’ (Dona Angela). ‘’Nunca fui a cinema no Shopping Tijuca, não Danielle Lima Rodrigues | 501 gosto, mas acho bom porque leva as crianças para o cinema... ainda mais hoje com a violência.’’ (Seu Luiz) Assim, pode-se notar que os entrevistados têm até hoje certa resistência ao cinema Kinoplex. O cinema no centro comercial veio para ter um novo significado, em um novo momento do bairro. Dito isso, é notável entre os entrevistados que essa transição do cinema para o shopping diminuiu a frequência deles nas salas, o que provavelmente se repete entre as pessoas mais velhas. O que é perceptível é que eles falam com muito pesar dessa mudança, por exemplo: “Agora não vou mais ao cinema, compro DVD, dá preguiça de subir todas aquelas escadas...’’ (Dona Angela). Indivíduo como testemunha Sem dúvida, a transferência das salas de cinema para o complexo comercial mudou a frequência nos cinemas e a vida social na praça. Agora quem passa por lá não imagina que um dia ela foi um grande centro cinematográfico que exibia os maiores lançamentos do momento. “Lamento que a vida moderna não seja tão bonita como antigamente, era mais saudável, mais leve’’ (Dona Angela). Hoje, os mais velhos dizem que a juventude passada vivia muito mais plenamente do que a de agora devido principalmente a violência. Quando perguntados sobre a impressão atual da Praça Saens Pena, todos disseram em resumo a mesma coisa: ‘’Agora é só um meio de passagem com pivetes. A Tijuca foi deteriorada’’. “O fim dos cinemas foi a decadência social do bairro, o tijucano perdeu o lazer.’’ Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo, deu grande contribuição a história cultural e nesse momento nos apoiaremos a um dos seus apontamentos sobre cultura: 502 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e ‘’culturas populares’’ das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas (HALL, 2003, p. 136). Nos moradores é nítido como essa cultura perpassa por todas as práticas sociais como vimos em relatos anteriores e se tornaram uma forma de encontrar os amigos, namorar, ter uma programação para o lanche do final de semana, enfim, se tornou a ‘’cultura dos cinemas’’, que envolvia o espaço-físico e ia além dele – os relacionamentos proporcionados por esse espaço de lazer. Enquanto iam evocando suas memórias, foi notável que o misto de sentimentos e emoções que eram trazidos ao presente e que eram manifestados na mudança de semblante, nos gestos e na intensidade do gesticular. Quanto a esse aspecto, Eclea Bosi nos ajuda a compreender com os seus apontamentos sobre memória coletiva e individual: Há fatos que não tiveram ressonância coletiva e se imprimiram apenas em nossa subjetividade. E há fatos que, embora testemunhados por outros, só repercutiram profundamente em nós; e dizemos: ‘’Só eu senti, só eu compreendi’’ (BOSI, 1994, p. 408). Isso se torna evidente em alguns trechos da conversa como: ‘’Era outra vida, uma coisa que jamais vai voltar em século algum’’ (Seu Luiz). ‘’A vida de antigamente era muito diferente.’’ (Dona Angela). Hoje na praça, ainda é possível encontrar certas memórias de que um dia tal espaço foi um cinema, por exemplo no Centro Comercial Iskye, onde funcionavam os cinemas Tijuca 1 e 2, foi preservado uma parede com vários pôsteres de filmes que podiam ser assistidos naquelas salas e os famosos ícones de crítica de filmes do Jornal O globo. Diante disso, o saudosismo presente durante as conversas e a consciência de que esses Danielle Lima Rodrigues | 503 momentos não se repetirão, são perpetuados por esses espaços que ainda foram um pouco mantidos e que são símbolo de orgulho. Considerações finais Durante as entrevistas foi possível notar como os entrevistados falam com carinho e saudade dos momentos em que viveram, o prazer em poder contar com detalhes a rotina deles e o modo pelo qual eles se socializavam através do cinema. Quando era perguntado algo mais específico, eles ficavam orgulhosos de lembrar e poder compartilhar essas lembranças, dessa forma, “a recordação é tão viva, tão presente, que se transforma no desejo de repetir o gesto e ensinar a arte a quem o escuta’’ (BOSI, 1994, p. 474). Entre as pessoas foi comum começar a conversa dizendo: “Olha, eu não lembro de muita coisa’’ ou se não: “Eu lembro de tudo!’’, independente do caso, a riqueza de detalhes era impressionante e dava pra perceber que conforme iam trazendo à tona essas recordações, as sensações: alegria, empolgação, euforia, eram despertadas e os mais velhos se sentiam mais jovens novamente. Além dessa afetividade com o cotidiano nos cinemas, foi possível ver como eles amam o bairro no qual vivem e chegam a ter um certo sentimento “regionalista’’, se identificando como tijucanos antes de qualquer outra denominação. Inevitavelmente em vários momentos, o hoje e o ontem foram comparados. A Praça Saens Pena hoje é apenas um lugar de passagem, onde a violência tomou conta e a cada dia a Tijuca vem sendo mostrada nos jornais como palco de ações de violência como roubos e assaltos - um fator de suma importância para a transformação do uso do lugar. Antigamente era o lugar onde eles poderiam sentar no banco em volta do coreto e ficar horas e horas conversando despreocupados. Nesse momento, a tristeza toma conta em ver a “depredação’’ na qual a praça se encontra. 504 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Retomando as palavras de Certeau: “O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior” (CERTEAU, 1996, p. 31), creio que essa citação seja necessária para explicar o porquê de tanto sentimento ao recorrer a essas lembranças. Mesmo tendo passado algum tempo, esses moradores ainda sentem aqueles dias vivos em sua memória e sentem falta da sociabilidade que a Praça Saens Pena proporcionou aos tijucanos. Além de recordar os lugares, eles recordam as sensações, o que gera mais emoção no relato. Hoje, não é possível encontrar muitas referências por assim dizer, estruturais, a “Segunda Cinelândia Carioca’’ na Praça Saens Pena, porém o que restou é tratado com muito orgulho e carinho pelos moradores. Já na memória, o que restou foi a saudade. Os maiores cinemas como o Metro, Olinda e América deram lugar para pontos de comércio e agora os tijucanos só tem o Kinoplex Tijuca como opção. Os mais jovens não sentiram muito essa mudança, mas para os mais velhos, essa adaptação não foi bem desenvolvida e diminuiu a ida do público do cinema de rua ao Shopping. Assim, torna-se claro como o trabalho procurou ir além do que o simples relato descritivo, a intenção era tentar passar um pouco do que os entrevistados sentiam e viviam rotineiramente nos cinemas e como o fim desses espaços causou um vazio na vida social e memória dos tijucanos, que não foi preenchido por nenhum outro lugar de convívio. Referências ALONSO, Leandro. Entrevistar é transitar: uma passagem por histórias de vida, de religiosos, de resistentes e de apoiadores da ditadura militar brasileira – seis entrevistas. In: Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 4, Nº 7, pp. 214-219, Jan.-Jun. 2017 BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Danielle Lima Rodrigues | 505 BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. BARONI, João Guilherme. Exibição, crise de público e outras questões do sistema brasileiro. In: Revista Famecos/ PUCRS, Porto Alegre, Nº 20, Dezembro 2008. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1, artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996. FERRAZ, Talitha. O cinema sai da rua para o último piso: sociabilidade, exibição, e expectação cinematográficas no espaço urbano da Tijuca. In: Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação / UFJF. Vol. 3. nº2. Dezembro, 2009. HALL, Stuart. Da diáspora identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Capítulo XXX O conceito de cinema no ensino de história em investigações na pós-graduação Luiz Paulo da Silva Soares 1 Primeiras palavras... [...] o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte. (NAPOLITANO, 2005, p. 11). Ao ponderarmos, na epígrafe acima, que o cinema conglomera valores distintos, compartilhamos o sentimento de Marcos Napolitano (2005) sobre as características universais e essenciais, pautados pela estética, ética, lazer e ideologias que são veiculados nas obras cinematográficas e que possuem como endereçamento públicos específicos ao redor do mundo. Tornando-se, muitas vezes, em uma pedagogia cultural, que produz, e que está carregada de significados discursivos, gestuais e visuais partilhados pelos sujeitos que o assistem a fim de instrumentalizá-los a desenvolver uma competência para ver (DUARTE, 2012). Nesse sentido, o presente manuscrito de pesquisa, buscou realizar o mapeamento de pesquisas em nível de pós-graduação (mestrado e/ou doutorado) que foram desenvolvidas em território brasileiro, sobre a utilização de filmes no ensino de História, no período compreendido entre 2017 a 2019, tendo como problemática: quais os conceitos sobre cinema no ensino de História são utilizados pelos autores 1 Professor Mestre em Educação – EEEM. Dr. Augusto Duprat; luizsoaresrg@gmail.com Luiz Paulo da Silva Soares | 507 para fundamentar a pesquisa? Esse questionamento serviu para sulear2 o processo de desenvolvimento da investigação em questão. Esse recorte faz parte do Projeto de Pesquisa titulado: Ensino de História & Cinema: mapeamento e análise de pesquisas desenvolvidas na pós-graduação (2000-2020). O mesmo está sendo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa e Extensão Educação e Memória – EDUCAMEMÓRIA (FURG/CNPq), na linha de pesquisa Redes de Cultura, Estética e Formação na/da cidade – RECIDADE, do Instituto de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Cabe mencionar, que tanto este trabalho quanto a pesquisa são desdobramentos da dissertação de mestrado intitulada Cartografando Experiências no Ensino de História: A Mídia Cinemática como Fonte Educativa em Sala de Aula, desenvolvida na FURG de 2015 a 2017. Percursos teórico-metodológicos e descobertas sobre conceitos atribuídos ao cinema no ensino de História A utilização do cinema no ensino de História não é algo novo, em se tratando de educação, mas ganha, atualmente, proporções muito particulares que precisam ser esmiuçadas. Pois vivemos em um mundo pautado pela exacerbada circulação de imagens. Um mundo paradoxalmente visual, com estruturas imagéticas articuladas e concebidas e (re)ssignificadas diferentemente por cada um dos daqueles que acabam por serem interpelados constantemente pelos meios visuais, aqui expressos especificamente pelo cinema. O cinema na educação se pauta em uma ordem global que compreende novas formas de problematizar o conhecimento, provocando 2 O termo sulear aqui empregado, refere-se a expressão utilizada por Paulo Freire em A Pedagogia da Esperança (1992), onde o autor realiza uma problematização e contraposição sobre o caráter ideológico do termo nortear (norte: acima, superior; sul: abaixo, inferior), dando visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal. 508 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS discussões sobre processos históricos distintos. Principalmente devido à experiência triunfante da imagem em movimento em nossa sociedade que configura não apenas um modo contemporâneo de registrar o mundo e as diferentes culturas, mas também de criar mecanismos que possam simultaneamente representar nas telas de cinema estratos de um passado remoto, presenteando a sociedade através de detalhes valiosos sobre a História de um povo, de uma região, de um país. Nesse ínterim, para desenvolver a pesquisa, foram analisados dezenove trabalhos de pós-graduação defendidos e disponibilizados na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD no período compreendido entre 2017 e 2019. Embora a ênfase dada durante o recolhimento do material empírico, tenha recaído ao período anteriormente mencionado, os trabalhos foram catalogados desde os anos 2000 e aqui foi realizado um recorte temporal para buscar compreender o fenômeno conceitual atribuído ao cinema pelos autores de pesquisas de pós-graduação á nível de mestrado e doutorado. No que se refere aos procedimentos metodológicos adotados para a realização deste trabalho, estes são de caráter exploratório e centram-se em um estudo qualitativo (FLICK, 2004), cujo levantamento do material empírico pautou-se na busca através do site da BDTD, utilizando como descritores “Filmes no Ensino de História” e “Cinema no Ensino de História”. Ao realizar a busca na referida base, foram encontrados dezenove resultados na fase preliminar de coleta de dados. Cada trabalho passou pelo mesmo processo de tratamento das fontes, por meio do método de análise de conteúdo proposto por Laurence Bardin (2012), classificando, quantificando, visibilizando os objetos de análise das pesquisas que compõem o arcabouço empírico desta investigação para poder inferir e refletir sobre os processos de conceituação do cinema no ensino de História. Os trabalhos, após serem encontrados na base BDTD, Luiz Paulo da Silva Soares | 509 foram divididos em categorias amplas que continham o título do trabalho, autor, orientador, resumo, programa de pós-graduação, nível, universidade, ano de defesa e repositório institucional. Na sequência, os trabalhos passaram por uma reclassificação, visando restringir os dados de forma objetiva e ao mesmo tempo amplificando as possibilidades de análise do estudo. Durante o processo de análise da segunda fase de tratamento da empiria, realizamos a exploração desses documentos, dividindo-os em categorias específicas para refinar os resultados. A categorização nessa fase pautou-se na explanação através do título, problema, objetivo, objeto e/ou sujeito de pesquisa, metodologia, referencial teórico empregado e conceito preliminar atribuído ao cinema no ensino de História. Essa categorização, acima mencionada, proporcionou o desenvolvimento do processo de análise, compreensão e reflexão dos materiais encontrados com vistas a realizar o mapeamento dos dados obtidos por meio de quadros que denotam especificidades em cada estudo analisado no percurso da investigação. Foram construídos quadros com a síntese dessas informações, o que favoreceu o processo de análise. Antes de trabalhar com a conceituação do cinema que os autores empregam para fundamentar seus estudos, cabe mencionar os perfis de estudos delimitados nos trabalhos catalogados para esta pesquisa, foi possível inferir que 52,63% dos trabalhos pautam-se em estudos investigativos, tendo como sujeitos da pesquisa professores e/ou estudantes da educação básica ou do ensino superior. Percebe-se ainda, que 26,31% dos trabalhos analisados, apresentam um perfil misto em sua abordagem, enquanto 15,79% possuem uma feição prescritiva de como utilizar o cinema em sala de aula, e apenas 5,27% não foi possível identificar nenhum dos perfis elencados, conforme podemos perceber no quadro a seguir: 510 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Quadro 1: Tipo de Estudo preliminar dos trabalhos analisados PERFIL DE ESTUDO Nº. DE TRABALHOS QUANTIDADE EM % Investigativos 10 52,63 Mistos 5 26,31 Prescritivos 3 15,79 Não identificado 1 5,27 Fonte: Quadro organizado pelos pesquisadores de acordo com as pesquisas disponíveis na plataforma BDTD. Os dados que compõem o quadro acima, demonstram que os estudos são predominantemente referente a investigações exploratórias que buscam compreender o jogo existente entre educação e cinema no âmbito escolar, em perspectivas múltiplas, como, por exemplo, do professorado ou alunado, buscando ouvir o que esses sujeitos têm a dizer sobre a utilização do cinema na escola e sua função pedagógica na construção cidadã e compreensiva de conteúdos e/ou temas concernentes a História. Os referidos perfis podem ser assim compreendidos: Os materiais analisados e que configuram o perfil investigativo, apresentam temáticas complementares, isso significa que as pesquisas tecidas possuem centralidade na contribuição qualitativa, buscando por meio de metodologias distintas, como pesquisa-ação, história oral, história de vida, diário de campo, construir um arcabouço que possa tornar compreensivo a relação estreita do cinema e ensino na vida de professores e estudantes. Em se tratando do perfil misto, este configura aqueles trabalhos que possuem as características investigativas, científicas e ao mesmo tempo aponta um caráter prescritivo metodológico da utilização do cinema em sala de aula. Esses estudos abordam, em sua maioria, análises semióticas, visando perscrutar de que maneira o cinema pode ser válido no uso para o ensino de História, utilizando para isso, uma análise fílmica e estudos bibliográficos que juntos delineiam um estudo que possa indicar a Luiz Paulo da Silva Soares | 511 viabilidade de forma positiva e prescritiva para o professor utilizar em suas aulas. Cabe ressaltar, também, que o número de trabalhos de pósgraduação, referente a esse perfil de estudo, e que compreende um total de cinco (05) trabalhos, pautam-se numa análise histórica, por meio de metodologias que visam corroborar a eficácia do uso desse artefato didático-pedagógico em sala de aula, priorizando em alguns casos, por exemplo, investigação bibliográfica e documental de projetos que tenham sido colocados em prática na escola. No que tange aos materiais que possuem um perfil prescritivo, podemos constatar através das análises realizadas, que os mesmos possuem o caráter de prescrever o modo e/ou sequência didática que o professor pode valer-se ao se disponibilizar a utilizar esse artefato em suas aulas. Ademais, esse caráter prescritivo, só corrobora com o fato de buscar “facilitar” o trabalho do professor, indicando quais filmes e de como fazer uso desses “produtos culturais” (CARMO, 2012, FONSECA, 2012 & FERRO, 2010), em sala de aula de maneira dinâmica. Nesses trabalhos, aparece um planejamento de como se valer das imagens em movimento, bem como do figurino, do contexto de produção, prescrevendo maneiras corretas de apreciar e utilizar os aspectos descritos no filme, como mote para se ensinar História. Por fim, cabe destacar que apenas um trabalho não foi possível enquadrar em nenhum dos perfis anteriores. Este, que ficou sob na categoria de análise não identificada, não possuía características prescritivas nem investigativas. O mesmo atenta-se em realizar uma análise de materiais teóricos e outros artefatos didático pedagógicos, na compreensão do uso do filme na escola, como por exemplo, a análise de filmes utilizando a semiologia como aporte metodológico ou ainda de trabalhos que vislumbre as possibilidade de utilização do cinema no âmago escolar. 512 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS No que tange aos resultados encontrados no processo de análise do material empírico, estes dizem respeito ao conceito atribuído ao cinema no ensino de História e constatamos múltiplas significações. Dentre elas o cinema visto como prática pedagógica, ferramenta didática, recurso, fonte histórica, representação social o que denota uma amplitude de significados que os autores atribuem a utilização desse “produto cultural” no ensino de História (CARMO, 2012, FERRO, 2012, FONSECA, 2010), conforme podemos perceber no quadro a seguir: Quadro 1: Categorias de dimensões conceituais atribuídas ao cinema DIMENSÃO N. DE VEZES Linguagem pedagógica 1 Prática pedagógica 4 Ferramenta, recurso ou suporte didático 6 Memória 1 Prática e/ou representação social. 7 Criticidade 5 Fonte: Organizado pelo pesquisador, de acordo com as pesquisas encontradas na plataforma BDTD. Podemos vislumbrar seis dimensões conceituais distintas que são atribuídas pelos pesquisadores quando os mesmos se propõem a trabalhar com a questão do cinema na História e no ensino. A seguir vamos analisálas para compreendermos as concepções elencadas nos estudos catalogados. Comecemos por considerar a dimensão linguagem pedagógica, caracterizada em apenas um trabalho, na qual o pesquisador considera o cinema como um importante material que potencializa a prática docente, renovando metodologicamente o modo de trabalhar os temas em sala de aula. De acordo com Christian Metz, o cinema é a própria linguagem, pois Luiz Paulo da Silva Soares | 513 possui um conjunto de fenômenos que possibilitam a transmissão das mensagens veiculadas na sequência de imagens dos filmes. Para o autor, O cinema, [...] pode ser considerado como uma linguagem, na medida em que ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, diferentes daquelas praticadas pelos nossos idiomas, e que tampouco decalcam os conjuntos perceptivos oferecidos pela realidade (esta última não conta estórias contínuas). A manipulação fílmica transforma num discurso o que poderia não ter sido senão o decalque visual da realidade. Partindo de uma significação puramente analógica e contínua – a fotografia animada, o cinematógrafo –, o cinema elaborou aos poucos, no decorrer de seu amadurecimento diacrônico, alguns elementos de uma semiótica própria, que ficam dispersos e fragmentários no meio das camadas amorfas da simples duplicação visual (METZ, 1972, p. 126-127). O excerto acima exemplifica a dimensionalidade do cinema como linguagem, ponderada em um dos trabalhos analisados e único a abarcar o conceito. Uma vez que essa concepção constitui elementos próprios da obra fílmica que possuem significância quando debatidos em sala de aula. Então, o cinema como linguagem pedagógica, conforme foi apontado (quadro 2), favorece uma maneira de abordar os conteúdos históricos através do poder que a linguagem fílmica oferece. Não estamos aqui nos referindo apenas à linguagem verbal, mas sim a todo um conjunto de planos, ângulos, movimentos, recursos, cenários, figurinos, enredo, diálogos entre os personagens como constituintes do universo da produção fílmica. A linguagem do cinema é tida assim, como uma linguagem plural, pois envolve diversos aspectos que podem ser analisados separadamente ou em conjunto. Todos esses aspectos mencionados anteriormente constituem a linguagem do cinema, e como toda linguagem pressupõe como objetivo a comunicação e, sendo uma comunicação, possibilita debates entre os sujeitos. 514 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS Seguindo essa concepção do cinema como linguagem pedagógica, identificada nas análises dos trabalhos, temos que considerar uma definição teórica sobre a linguagem do cinema no âmbito escolar, posto que [...] é certo que a linguagem da arte só poderá ser compreendida nas suas relações mais profundas com a teoria dos signos. Sem esta, qualquer filosofia da linguagem permanece fragmentária, porque a relação entre linguagem e signo vem das origens e é fundamental. (BENJAMIN, 1994, p. 195). Ao refletir sobre as palavras de Benjamin sobre a linguagem do cinema e suas relações existentes com os signos, ao nos disponibilizarmos a utilizar as mídias cinemáticas no ensino, precisamos pensar sobre os significados de todo esse processo de construção de um filme e que pode ser explorado de forma comunicacional no âmago escolar, levando os estudantes a refletirem sobre o que acontece na trama atrás da tela. De modo análogo, também assim não ocorre na própria história, cujos bastidores são parte do que ocorre no palco e é o (in)visível. Constata-se assim, que essa definição de linguagem do cinema tem por intuito expandir os horizontes e as possibilidades de análise da obra fílmica. Ainda assim, o autor eleva o cinema a uma forma de arte contemporânea que nos sensibiliza, que nos toca, que nos emociona. De acordo com Benjamin, O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1987, p. 174). Ao analisarmos as palavras do autor, constatamos que Benjamin considerava o caráter sensível do cinema sendo eleito por ele como a arte Luiz Paulo da Silva Soares | 515 primeira, no que tange a percepção, as significações que a arte cinematográfica exerce nos atores sociais na contemporaneidade, divertindo, mas também alargando a percepção humana. Ainda de acordo com ele, [...] a recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado. E aqui, onde a coletividade procura distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo (BENJAMIN, 1987, p. 194). Ainda que relevante, a observação de Benjamin sobre a percepção construída no momento de “distração”, como ele diz, a relação de sucessões de imagens também pode permitir aos receptores da mídia cinemática refletir sobre a arte cinematográfica; não apenas assistir aos filmes para passar o tempo, como muitos pensam, mas, sim, contemplar, fruir e analisar o conteúdo que está sendo veiculado nos filmes. Já o cinema visto como prática pedagógica é pontuada em quatro (04) estudos, onde vislumbram que o cinema em sala de aula está muito além de um simples artefato didático pedagógico. O mesmo é visto como a própria prática pedagógica do professor, buscando em sua figura, desenvolver a educação do olhar do estudante, conforme nos ensinou Duarte (2002) sobre a competência para ver. Nesse sentido, o cinema engloba uma interface constituída como documento histórico, produto cultural e criação artística a ser desenvolvidas junto às competências e habilidades dos estudantes, mas constitui, por essência, uma prática pedagógica do docente. A aprendizagem decorre de um conjunto de interações e no caso do cinema pressupõe também uma formação cultural. Conforme Duarte, “ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação 516 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS cultural e educacional das pessoas, quanto à leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais” (DUARTE, 2002, p. 17). Nesse sentido, o cinema acaba por impactar o telespectador ao abordar, por exemplo, a estética, valores sociais, enfim, possibilidades no desenvolvimento cultural através da reflexão fílmica. Ainda de acordo com a autora, [...] determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional – sua natureza eminentemente pedagógica (DUARTE, 2002, p. 19). A História sendo a ciência dos seres humanos no tempo e no espaço cabe-lhe analisar o passado a partir do tempo presente e avaliar o presente à luz desse passado. Nesta direção, a História contribui para o desenvolvimento e a formação da cidadania investindo em estímulos didático-pedagógicos e debates que viabilizem a reflexão dos atores sociais da história, atuando ativamente na sociedade. Na dimensão do cinema como ferramenta, recurso ou suporte didático que constituiu seis (06) dos trabalhos explorados, os pesquisadores pressupõem que o cinema é considerado como um instrumento de auxílio para o professor, evidenciando uma estratégia pautada em um veículo de comunicação de massa, instrumento educacional, objeto de entretenimento. Nesse cenário, Duarte (2002, p. 87) assevera que muitos professores fazem uso do cinema apenas como recurso, suporte ou ferramenta didática de “segunda ordem”, como forma lúdica e atraente. Se recorrermos ao dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009) o tripé formado pelas palavras anteriormente mencionadas referem-se ao Luiz Paulo da Silva Soares | 517 ato ou efeito de recorrer a um auxílio que possa trazer ou ser benéfico no processo de ensinar os estudantes. Nesse sentido, esse instrumento que é o próprio filme, auxiliaria no desenvolvimento do trabalho pedagógico do professor, gerando aprendizagens aos estudantes em sala de aula. Entretanto, cabe refletir que se os autores das pesquisas catalogadas concebem o filme como um recurso didático, devemos ponderar em que sentido é abstraído e fomentado em sala de aula pelos professores. Essa conotação em relação a mídia cinematográfica como ferramenta, ou seja um recurso didático pode ser empregada de diversas maneira, como, por exemplo, a possibilidade de ilustrar os conteúdos/temas que estão sendo debatidos pelos professores em sala de aula. O filme como poética, os diálogos como versos, as imagens como arte e o cinema enquanto memória, assim são os filmes, testemunhos do passado, de existências distintas, de lugares possíveis que são cristalizados pela memória vivida, pela dualidade da lembrança e do esquecimento (NORA, 1993). Diante disso, o filme é a memória materializada da História, do discurso que mobiliza experiências ativadas pelo rememorar para experimentar o ato de desfrutar de outros lugares, objetos, sensações, imaginários. E o cinema tem a mais robusta capacidade de tratar com esplêndida magnificência o tema da memória e da história. De acordo com Cristiane Freitas Gutfreind, a memória assume uma noção de “memória coletiva”, ou seja, uma “lembrança não é constituída apenas pelo indivíduo, mas também pela lembrança de outros, mesmo por uma simples conversa. O resultado é uma troca de memórias. Além disso, as transformações na lembrança são produzidas pela transformação dos meios coletivos” (GUTFREIND, 1997, p. 17). De acordo com a autora, O cinema é, por excelência, um meio de socialização que tem como função produzir uma memória social compartilhada por um grande número de indivíduos. É também um fenômeno de memorização de fatos, de 518 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS personagens, de idéias e, por essa importância, impõe-se a necessidade de conservação de todos os filmes. (...) [Assim,] o encontro entre o cinema e a história permite estabelecer um laço com a memória passada, que pode se tornar uma ação no presente e se constituir em uma maneira de tentar confortar antigas dívidas (GUTFREIND, 1997, p. 17-18). Assim, a memória histórica é vislumbrada nas telas do cinema, como uma maneira de expressar temas tão caros a sociedade humana, como, por exemplo, as ditaduras militares na América Latina, os massacres ocorridos ao longo da História sendo admitidos por nações europeias são alguns dos diversos exemplos em que o cinema busca rememorar, ressignificar períodos tão sombrios da História da humanidade, com vistas a não cair no esquecimento as atrocidades que marcaram a subjugação de povos ao longo do tempo. Os estudos em que o cinema é concebido como prática e/ou representação social, que representa a maioria dos trabalhos analisados, proporciona como característica a construção de imaginários representativos do passado mediados pelo cinema sobre o passado. Ademais, o cinema como prática social, pode ser visto como uma forma narrativa histórica, construída para promover a potencialização dos fatos ocorridos no passado e rememorados nas telas do cinema e amplificados na História e no ensino, sendo, por vezes, uma representação social, produzida por determinados grupos como forma de manutenção de poder. De certa forma não teria como não sê-lo, tendo em vista o caráter social, cultural, ideológico etc., de quem o produz. Ferro aponta que [...] desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde a sua origem, sob a aparência da representação, doutrinam e glorificam. Na Inglaterra mostram essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França, Luiz Paulo da Silva Soares | 519 preferiram filmar as criações da burguesia ascendente: um trem, uma exposição, as instituições republicanas (FERRO, 2010, p. 13). Sob a ótica de Ferro (2010), o cinema apresenta-se como um instrumento de legitimação de uma cultura, de uma sociedade. Vejamos como exemplo, o caso da Alemanha nazista, onde alguns filmes foram utilizados com o intento de propagar em larga escala uma ideia de “raça pura”, da “raça” ariana, e todos que não pertencessem a ela deveriam ser exterminados. O teor das mensagens que eram veiculadas nesses filmes sobre o governo de Hitler servia unicamente para difundir uma campanha de ódio e preconceito, impondo os valores que o próprio general possuía como verdade. Já os trabalhos que visualizam os filmes como forma de criticidade, estes possuem a concepção de que a utilização do cinema em sala de aula, "seria o responsável por modelar mentalidades, sentimentos e emoções e que é possível por meio dele construir saber histórico e aprimorar a capacidade crítica. Ao analisarmos cada uma das categorias dimensionais acima descritas (quadro 1), podemos vislumbrar que tais características que foram apontadas nos respectivos trabalhos, apresentam conjecturas diferenciadas e estabelecem uma relação profícua no que tange a este “produto cultural” e seus diversos significados de acordo com categorias históricas, epistemológicas, culturais referenciadas. (In)conclusões Ao longo da História, diversos artefatos culturais passaram a condição principal de manutenção, evolução e disseminação em massa da cultura, da sociedade, de políticas, das relações tecidas e obras realizadas ao longo do tempo. Neste aspecto, o cinema é um desses “produtos culturais” (FERRO, 2010; CARMO, 2012; FONSECA, 2012) que possui essa 520 | A produção historiográfica em tempos de crise: IV Encontro Discente de História da UFRGS incumbência de manter a memória, a história viva e presente nos dias atuais, não apenas no ensino, mas de maneira geral e não pode ser concebido como mero entretenimento ou lazer. O trabalho aqui exposto, em fase inicial de análise, apresenta algumas características que denotam a utilização deste “produto cultural” (FERRO, 2010; FONSECA, 2012; CARMO, 2012) como forma de amplificar e mobilizar as aprendizagens dos estudantes. Ademais, cabe frisar que as análises dos estudos apresentam uma maneira diferenciada de conceber o cinema no ensino de História. Existe no material empírico uma multiplicidade de conceitos, conforme apresentados no quadro 2, que denotam a compreensão por parte dos autores sobre não apenas as potencialidade desse produto, mas, também, da sua enorme capacidade de desenvolver um espaço propício para reflexão, imaginação, integração e crítica sobre o que está sendo veiculado nas imagens em movimento. Desta forma, o cinema se torna um importante mobilizador de aprendizagens significativas, propiciando a reflexão, a curiosidade e a criticidade daqueles que com ele interagem. Ratifica, portanto, que sua empregabilidade é mais do que uma ferramenta didática de cunho instrumental, pois envolve questões subjetivas, históricas, políticas que exigem que o professor a conheça bem sua apresentação em sala de aula. Referências BENJAMIN, Walter. A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. (Obras escolhidas, I). BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2012. Luiz Paulo da Silva Soares | 521 CARMO, Leonardo Cesar do. O cinema do feitiço contra o feiticeiro. Cinema de Massa e Crítica da Sociedade. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2012. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2009. FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento. São Paulo: Paz & Terra, 2010. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas: Papirus, 2012. FLICK, Uwe. Uma introdução a pesquisa qualitativa. São Paulo: Bookman; Artmed, 2009. FREITAS GUTFREIND, Cristiane. Da Memória ao Cinema. In: Logos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 7, p. 16-19, 1997. METZ, Christian. A significação do cinema. Tradução e posfácio de Jean-Claude Bernadet. São Paulo: Perspectiva, 1972. NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema em sala de aula. 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