COORDENAÇÃO DO EPHA
Profa. Dra. Elaine Dias [Biênio 2020-2021] Coordenadora
Profa. Dra. Angela Brandão [Biênio 2020-2021] Vice-coordenadora
COMISSÃO ORGANIZADORA
Bruna Aparecida Silva de Assis
Davi Luis Galindo dos Santos
Débora Fernandes Medeiros
Érica Megumi Kodaira Ishikawa
Fabriccio Miguel Novelli Duro
Joyce Farias de Oliveira
Laís Silva Amorim
Livia de Seixas Torres Corigliano
Natália Cristina de Aquino Gomes
Natália Ferreira de Almeida
Rachel Midori Sugo Miyagui
Simone de Oliveira Souza
Tarcísio Antonio da Silva
Vivian Catarina Dias
Wellington Souza Silva
COMITÊ CIENTÍFICO
Drª Ana Maria Cavalcanti
EBA, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil
Drª Angela Brandão
EFLCH, Universidade Federal de São Paulo - Brasil
Drª Carolina Vanegas Carrasco
Universidad Nacional de San Martín - Argentina
Drª Elaine Dias
EFLCH, Universidade Federal de São Paulo - Brasil
Drª Fernanda Mendonça Pitta
Pinacoteca do Estado de São Paulo - Brasil
Drª Isabel Plante
CONICET, Universidad Nacional de San Martín – Argentina
157 Brenda H. M. Yoshioka | O MA: DIÁLOGOS
COM A ESCRITURA BARTHESIANA
171 Camila Vitório Siqueira | CORPO, DISCURSO
E REPRESENTAÇÃO: ALGUNS APONTAMENTOS
SOBRE O TRABALHO DE LETÍCIA PARENTE.
182 Carlos Henrique Nunes Costa | A ESTÉTICA
DA SATURAÇÃO DE EDUARDO MONTELLI.
195 Cintya dos Santos Callado | PIERRE FRANCASTEL
E GEORGES DIDI-HUBERMAN: UM DIÁLOGO ENTRE
TEÓRICOS PARA PENSARMOS OBRAS DE PINTURA
DA EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES DE 1890.
209 Clara Mourão Downey | CULTURA DE MUSEUS
NO BRASIL: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE.
223 Débora Poncio Soares | ENTRE APAGAMENTOS E
LEMBRANÇAS: SYLVIA MEYER E O MODERNISMO.
242 Grasiela Prado Duarte de Oliveira |
REPRESENTAÇÃO SONORA NO INFERNO
DE HIERONYMUS BOSCH: INSTRUMENTOS,
TORTURA E NOTAÇÃO MUSICAL ORIGINAL
DO TRÍPTICO JUÍZO FINAL DE VIENA.
258 Helena Ariano | EROS E MORTE: A LINGUAGEM DO
CORPO NO CURTA YÛKOKU DE YUKIO MISHIMA.
272 Helena Wilhelm Eilers | TIEMPO DE MIRAR:
IMAGEM, CORPO E EXPOSIÇÃO.
285 Isabela Ramos de Oliveira | PINTORAS
E O ACERVO MUSEOLÓGICO: EMBATES
SOBRE GÊNERO NA ARTE BRASILEIRA.
301 Jancileide Souza dos Santos | ARTE, CRIAÇÃO
ARTESANAL E MEMÓRIA BIOCULTURAL.
317 João Paulo Ovidio | A FASE SOCIAL
DE RENINA KATZ (1948-1956).
333 João Víctor Kurohiji Bonani | A RAIZ
GEOGRÁFICA COMO “AUTENTICIDADE” DOS
SUBSTRATOS PERIFÉRICOS: APROXIMAÇÕES
ATRAVÉS DO ESCULTOR NAGARE MASAYUK.
351 Jovita Santos de Mendonça | AURA E
AUTENTICIDADE: OS DESENHOS DE J.CARLOS
PARA AS CAPAS DE PARA TODOS…
366 Julia Maria de Souza dos Santos | A
PAISAGEM CARIOCA POR THOMAS GEORG
DRIENDL: UM ESTUDO DE CASO.
375 Julia F. Zanon | CASA CORPO CORPO NINHO.
383 Lara Rossi Ambrozin, Mariana Abramo
Fugagnolli | CORPOS QUE (NÃO) IMPORTAM:
REGIMES DE INVISIBILIDADE E VIDAS PRECARIZADAS,
UM CASO DE ESTUDO DE AI WEIWEI.
398 Luís Fernando Beloto Cabral | ARTE E ALTERIDADE
EM JÚLIO BRESSANE E HÉLIO OITICICA.
414 Maria Ilda Trigo | WARHOL-FOTO-CINEMA:
UM ENSAIO SOBRE AS RELAÇÕES DE ANDY
WARHOL COM AS IMAGENS TÉCNICAS.
430 Matheus Corassa da Silva | LE ROI GOUVERNE
PAR LUI-MÊME: O CORPO DO PODER NAS
PINTURAS DE CHARLES LE BRUN (1619-1690)
PARA A GRANDE GALERIE DE VERSALHES.
446 Natália Cristina de Aquino Gomes | DÂNDIS
AQUÉM E ALÉM-MAR: AUTORREPRESENTAÇÃO E
REPRESENTAÇÃO DE ARTISTAS ESTRANGEIROS
E BRASILEIROS NO ENTRESSÉCULOS XIX E XX.
459 Nicoli Braga Macêdo | UMA VISÃO DO
FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL.
471
Nina Ingrid C. Paschoal | REPRESENTAÇÕES
FEMININAS NA PINTURA ORIENTALISTA (SÉC. XIX):
ANÁLISE DE DISCURSO E CARACTERÍSTICAS.
486
Rachel M. S. Miyagui | A GRAVURA COMO
PRÁTICA COLETIVA: A EXPERIÊNCIA DE ATELIÊS
COLETIVOS NA CIDADE DE SANTOS.
499
Ramsés Albertoni Barbosa | A
BELEZA É O REINO ONDE AS LUTAS E AS
MORTES ACONTECEM: OS RETRATOS E A
CORRESPONDÊNCIA DE CÂNDIDO PORTINARI.
516
Roberta Mendes de Sá | AS CASASMUSEUS COMO DIMENSÃO PATRIMONIAL NA
CONTEMPORANEIDADE: A FUNDAÇÃO EMA
KLABIN E O MUSEU LASAR SEGALL COMO
ARTICULADORES DA DINÂMICA DE PRESERVAÇÃO.
532
Tânia Kury Carvalho | CONJECTURAS
ACERCA DE UMA INFLUÊNCIA DAS ARTES
CÊNICAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE
TICIANO DOS MITOS PARA FERRARA.
552
Tarcisio A. da Silva | O RESTAURO DA
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO E AS
INTERVENÇÕES DE PAULO MENDES DA ROCHA
EM EDIFÍCIOS DE INTERESSE HISTÓRICO.
567
Vitoria Amadio de Oliveira | RELAÇÕES ENTRE
PINTURA BRASILEIRA E LITERATURA NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX: APONTAMENTOS INICIAIS.
583
Vitória Paschoal Baldin | RELAÇÕES ENTRE O
GRAFITE E O CONFLITO ISRAELO-PALESTINO:
ASPECTOS ESTÉTICOS, POLÍTICOS E COMUNICATIVOS.
APRESENTAÇÃO
É com grande satisfação que apresentamos os Anais do VI
EPHA - Encontro de Pesquisas em História da Arte (EPHA), evento
anual do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Escola de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São
Paulo (PPGHA - EFLCH/UNIFESP), que ocorreu entre os dias 6 a 10
de dezembro de 2021.
O EPHA foi criado em 2016 pelos discentes de mestrado do
referido programa, com o objetivo de divulgar as pesquisas desenvolvidas na Unifesp. Nos anos seguintes, o encontro conquistou espaço
mais amplo, estendendo a proposta aos pesquisadores de outras universidades em níveis de pós-graduação e de graduação, permitindo a integração e troca de conhecimento entre os diferentes graus de formação
acadêmica. O EPHA caracteriza-se, ainda, por um viés multidisciplinar,
elemento fundamental das pesquisas em História da Arte, possibilitando um espaço de difusão e debate de diferentes trabalhos concluídos ou
em desenvolvimento.
Os anais que aqui se apresentam correspondem, portanto, ao
evento ocorrido em 2021 que, em razão da pandemia de COVID-19
- enfermidade que assolou um grande número de vítimas no Brasil e
no mundo - foi realizado de forma virtual através da plataforma Streamyard. Também o evento anterior, o V EPHA, realizado em 2020,
transcorreu de forma remota. Contamos com a mesma comissão científica da última edição, sendo esta constituída por pesquisadoras nacionais e internacionais, a saber: professoras Ana Maria Cavalcanti (EBA-UFRJ - Brasil), Fernanda Mendonça Pitta (Pinacoteca do Estado de
São Paulo - Brasil), Carolina Vanegas (UNSAM - Argentina) e Isabel
Plante (UNSAM – Argentina), além de uma comissão organizadora formada por discentes do programa que trabalharam de forma intensa e
dedicada até os dias de hoje. A programação contou com duas palestras,
sendo aquela de abertura conduzida pela Profa. Dra. Marcela Drien
(Universidad Adolfo Ibáñez - Chile) e intitulada “En la búsqueda de
autenticidad: expertizajes y atribuciones de pintura europea en Chile”; a
palestra de encerramento ficou a cargo da Profa. Dra. Claudia Valladão
10
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
de Matos Avolese (UNICAMP - Brasil), sob o título “Uma História da
arte para o antropoceno: novas abordagens a partir de uma perspectiva
ecocrítica”. O encontro foi composto de 20 mesas de discussão e mais
de 80 comunicações, reforçando a continuidade das trocas acadêmicas
e ofereceu a oportunidade de participação de pesquisadores de todo o
território nacional e internacional em decorrência de seu caráter virtual.
Os anais do VI EPHA trazem, assim, uma coletânea de 38 textos
originados das pesquisas de discentes de graduação e pós-graduação
nos mais diferentes campos da História da Arte, confirmando sua relação com o universo das Artes, com o caráter multidisciplinar da área,
abordando questões historiográficas, institucionais, metodológicas e
curatoriais, tocando também em temáticas fundamentais para o debate
contemporâneo, entre diversos outros caminhos interessantes e de necessária discussão.
Elaine Dias e Angela Brandão
Coordenadoras do EPHA (2020-2021)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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HIPER-REALISMO E SUBJETIVIDADE:
PSICANÁLISE E ARTES VISUAIS1
Alan Ricardo Floriano Bigeli2 – alan.bigeli@unesp.br
Gustavo Henrique Dionisio3 – gustavo.h.dionisio@unesp.br
Resumo: Qual é o impacto das imagens artísticas nos modos de subjetivação da atualidade? Essa provocação direciona nosso viés de pesquisa
e norteia os desejos do presente trabalho. Vivemos uma época estética em uma sociedade imagética. Seja nas mídias ou nas redes sociais,
nos meios virtuais ou físicos, as imagens estão lá, sempre nos olhando
e clamando para serem olhadas. Isso nos leva a pensar em como nos
comunicamos e nos relacionamos, enquanto sujeitos, com essa recorrente visualidade encontrada em nosso dia-a-dia. Aqui encontra-se um
breve ensaio reflexivo sobre o modo de produzir pensamento sobre as
imagens no contemporâneo, sobretudo através de obras de artes visuais, e as relações que podem emergir desse contexto entre quem olha
e quem é olhado, pois na medida em que lançamos nosso olhar para
o mundo, somos invariavelmente olhados de volta. Nessa esteira, nos
apoiaremos em obras de artistas que contemplam transversalmente aspectos do movimento hiper-realista. Artistas que, até a atualidade, não
cessam de inscrever seus nomes na História da Arte e fomentar os mais
diversos embates reflexivos. Na busca de desenvolver essa atividade de
pensamento, abordaremos um estado de suspensão dos sentidos em que
1 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Imagens que falam, olhos
que escutam: Psicanálise e poéticas visuais”, orientada pelo Prof. Dr. Gustavo Henrique
Dionisio, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e Letras
de Assis/SP. A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - CAPES.
2 Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pela FCL-Unesp Assis.
3 Mestre e Doutor pelo IP-USP, é docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da FCL-UNESP Assis. É autor de “O antídoto do mal: crítica de arte e loucura na
modernidade brasileira” (Ed. Fiocruz), “Pede-se abrir os olhos. Psicanálise e reflexão estética
hoje” (Ed. Annablume/Fapesp), e organizador de “Políticas públicas e clínica crítica” (Cultura
Acadêmica UNESP).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
somos colocados frente às imagens, bem como os enlaces e desenlaces
com que essa relação se faz para, ao final, dispararmos inquietações
sobre arte, psicanálise e a abertura das imagens diante das relações afetivas que se dão pelos campos visuais no contemporâneo.
Palavras-chave: Imagens; Hiper-Realismo; Psicanálise; Artes Visuais;
Subjetividade.
Abstract: What is the impact of artistic images on current modes of
subjectivation? This provocation directs our research and guides the objectives of the present work. We live in an aesthetic age in an imagetic
society. Whether in the media or social networks, in virtual or physical
media, the images are there, always looking at us and clamoring to be
seen. This leads us to think about how we communicate and relate, as
subjects, with this recurring visuality found in our daily lives. Here is
a brief reflective essay on the way of producing thought about images
in the contemporary, especially through works of visual arts, and the
relationships that can emerge from this context between who looks and
who is looked at, because as we launch our gaze at the world, we are
invariably looked back. In this way, we will rely on works by artists that
transversally contemplate aspects of the hyperrealist movement. Artists
who, up to the present, do not cease to inscribe their names in the History of Art and foster the most diverse reflective clashes. In the search
to develop this activity of thought, we will approach a state of suspension of the senses in which we are placed in front of the images, as well
as the links and denouements with which this relationship is made, in
order to, in the end, trigger concerns about art, psychoanalysis and the
opening of the images in the face of the affective relationships that take
place through the visual fields in the contemporary world.
Key-Words: Images; Hyper-Realism; Psychoanalysis; Visual arts;
Subjectivity.
IMAGENS, PSICANÁLISE E O HIPER-REAL
Somos bombardeados por imagens a todo momento, e essas imagens possuem capacidades subjetivantes (RANCIÈRE, 2008;
MONDZAIN, 2011). Nesse sentido, Muniz Sodré (2006), com base em
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
13
Perniola (1993), afirma que podemos considerar nossa inserção temporal em uma época estética, pois junto a essa disseminação visual caminha a potência do plano do sentir. Ou seja, a aisthesis seria o campo
estratégico do pensamento diante de nossa atual sociedade. Contudo,
segundo Emmanuel Alloa (2015), a exorbitante proliferação imagética
de hoje corre, paradoxalmente, na contramão de nossa capacidade de
atribuir uma definição unívoca a esses fenômenos imagéticos. Ou seja,
ao tempo que estamos constantemente em interação sensível com as
imagens, não saberíamos responder a uma perspicaz pergunta que nos
exigisse explicar o que é, de fato, uma imagem. A resposta a tal indagação seria de extrema complexidade visto que estaríamos diante de um
impasse em que explicar uma imagem pode correr o risco de delimitar
suas inúmeras capacidades condenando-as à unificação e ao reducionismo, ou por outro lado, ao responder essa questão, cairíamos em uma
investida ontológica da imagem (ALLOA, 2015).
Esse contexto paradigmático é um meio proposto por Alloa
(2015), amparado em Georges Didi-Huberman (1998; 2012), de produzir
um posicionamento diferente da mera estagnação do espanto diante das
imagens. É possível tomar uma atitude ativa, distanciando-se da imagem
como um problema, incorporando-a mais aos moldes de um objeto para
o pensamento, um enigma. Essa tal coisa enigmática não pertence propriamente a um espaço-tempo, “nem presente, nem ausente, mas iminente” (ALLOA, 2015, p. 16). Essa iminência dá às imagens capacidade de
suspender tanto os signos como os significantes; suspender os objetos em
função de representações (e vice-versa), adquirindo o sentido de por vir e
garantindo a pluralidade que há de se criar dali a diante.
Desde Immanuel Kant, é recorrente uma questão acerca de o
que é orientar-se no pensamento, sobretudo nas condições que definem
as faculdades de juízo, às quais podem ser lidas como uma experiência
estética. Essa instrução mostrou-se profundamente atrelada às imagens
e a seu papel no contemporâneo, reformulando essa orientação justamente para o campo do pensamento sensível sobre as imagens ou como
imagens. Embora Kant proponha uma autonomia da estética como uma
razão universalista, contemporaneamente podemos concordar com a
reformulação de Gadamer que implica a integralização dos sujeitos em
14
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
relação à aisthesis do mundo; ponto central de um senso comum estético, residente no âmago também dos processos comunicacionais. Tal
problemática relacional entre sujeito e imagens pode ser compreendida,
segundo Georges Didi-Huberman (2012), como complexa e ardente.
Complexa pela dificuldade de se encaminhar uma resposta e ardente
pelo fato de continuar sempre e sempre em constante ação.
O filósofo e historiador da arte francês destaca que o momento em que estamos conta com uma grande imposição da imagem em
várias esferas: estética, política, cotidiana, histórica. Assim, comparativamente com outros momentos, a força da imagem está mais atual do
que nunca. Seu caráter de mostração, de veracidade, de credulidade e,
consequentemente, de destruição estão mais presentes do que nunca.
Vemos isso, claramente, por meio do Hiper-Realismo; movimento que
interroga nossas construções imaginárias e imagéticas inseridas entre o
visível e o invisível. Abre-se, então, uma questão: como essas obras de
arte provocam nossa subjetividade?
Fazendo uma brevíssima contextualização sobre as provocações imagéticas nas artes, bastaria um pequeno exercício de percepção
visual para que sejamos magicamente tocados pelos mistérios evocados
nos processos criativos do pintor belga René Magritte (1898 – 1967).
Ao mergulharmos em seu universo artístico e pessoal, nos encantaremos com seus métodos e procedimentos ao evidenciar a resolução pictórica de problemas da realidade - tal como ele próprio definia ser o
objetivo de suas obras. Dentre as questões que Magritte suscita, encontramos campo para diversos debates: a implicação poética do olhar,
representação e um certo estranhamento do familiar [no sentido freudiano]. Contudo, a provocação central se dá a respeito da problemática
da realidade, que as imagens interrogam e confrontam. As imagens são
capazes de enganar nossa percepção e de reter nosso olhar, abrindo inúmeras possibilidades de suspensão de nossos sentidos, provocando, de
maneira bastante sensível, a nossa subjetividade. Esses questionamentos compõem também poéticas mais contemporâneas, sobretudo dos
movimentos pós-modernos.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O movimento Hiper-Realista surge nos Estados Unidos, na década de 1960, partindo de imagens amparadas na realidade, mas que
evidenciam um algo a mais. Apoia-se em evoluções técnicas das artes
visuais e experimentações híbridas. Buscando a hipertrofia da realidade, explorando ao máximo os limites representativos e provocando a
mobilização de nossos processos mais íntimos, criando confrontos com
a realidade habitualmente percebida, consciente e inconscientemente;
através do excesso, o Hiper-Realismo força nosso olhar para os detalhes
que essa mesma realidade tentaria esconder (LEVISKY, 2012).
Em O Retorno do Real, Hal Foster (2017) propõe justamente uma leitura surrealista4 dessas poéticas visuais, a qual distancia-se
do espírito Bretoniano, identificando-se mais com a ótica de George
Bataille, em que o aspecto sur da realidade se encontra embaixo, nos
meandros subterrâneos da realidade, podendo vir a eclodir a qualquer
momento. Algo que muitos artistas contemporâneos possibilitam, tais
como Cindy Sherman, Sherrie Levine, Bárbara Kruger e Richard Prince, seguindo com esse intuito de emergir uma hiper-realidade. Foster
(2017), demonstra que, nos anos 1960, grande parte do métier artístico
estava comprometido com as relações entre realismo e ilusionismo nas
pinturas. Algo parecido com o que propunha Magritte em seu surrealismo belga, podemos afirmar. Desses movimentos sessentistas, temos
como exemplo a Pop Art, Arte da Apropriação5 e o Hiper-Realismo.
Foster (2017) explicita que as preocupações daquela época convergiam
em dois sentidos básicos de representação: imagens ligadas aos ícones;
e, por outro, imagens autorreferentes.
Nesse aspecto, Foster propõe a leitura por um realismo traumático, apoiando-se em obras de Andy Warhol. Além disso, toda sua
4 Foster (2017) esclarece que sua leitura surrealista, ao exemplo de Georges Bataille, corresponde muito mais ao sub do que ao sur, ou seja, é um modo de olhar voltado para o subterrâneo, “no sentido do real que está embaixo” (p. 139), algo que, salvo diferenças, ainda se
conserva no Hiper-realismo.
5 Segundo o crítico de Arte inglês Michel Archer (2013), a apropriação, ou seja, “as coisas tomadas oportunamente para nosso uso” (p. 165) seria uma característica a que todos estaríamos
fadados sob a condição de pós-modernos, assim, ditando fortemente as tendências poéticas
desse período.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
discussão é adensada com ajuda da noção lacaniana de Real6, em consonância direta com a ideia de repetição em Freud, a qual o crítico
se aprofunda para falar do trauma e de sua relação com a Arte. Essas
imagens artísticas se apresentam plenas de repetições e, além de serem
objetos de reprodução, também produzem algo – inicialmente um choque, mas que à posteriori deixam transparecer seu sentido traumático.
Aprofundando sua leitura, Foster (2017) emprega o conceito de tiquê
de Lacan (1998) e de punctum de Barthes (1984), como referentes ao
ponto traumático, o detalhe inquietante presente nessas imagens. A seu
ver, esse aspecto reside naquele detalhe que gera um incômodo ao nosso
olhar, podendo assumir aspectos ímpares para cada sujeito. Olhar para
o detalhe inquietante significa produzir: a) um recorte; b) uma aproximação; c) uma relação dialética, como define Georges Didi-Huberman
(1998). Ampliando o trabalho de reflexão estética, nos deparamos com
um paradigma indiciário e dois outros conceitos se apresentam: o caráter sintomático (sintomal) do detalhe; junto ao inconsciente estético
na partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009; 2000). Segundo Rancière,
com a modernidade surge um inconsciente estético, em que se inaugura
um “regime do pensamento no qual haveria uma abertura total para a
coexistência de paradoxos e contradições no modo de encarar a Arte”
(DIONISIO, 2016, p. 89).
Esses detalhes, contudo, jamais se darão de forma trivial e o
que possibilitará chances para o Real [lacaniano] aparecer de forma
traumática, será a sua repetição. Foster (2017) adverte que é preciso
considerar que, mesmo com a possibilidade de choque disponível no
mundo, o desenvolvimento do trauma dependerá do sujeito, contando
com suas associações, vindas sempre à posteriori, e, aqui o crítico de
Arte emprega o sentido freudiano desse efeito. De acordo com Lacan,
esses lampejos provocam um furo onde o Real traumático quase pode
ser vislumbrado. É o que expressa o termo troumatisme, em que trou
se traduz por buraco. Tais aspectos abrem diferentes faces para a re6 A noção de Real na psicanálise lacaniana é bastante complexa de se definir brevemente,
contudo destacamos que o Real está relacionado ao que escapa às nossas simbolizações e se
contrapõe ao nosso imaginário; remetendo também aos aspectos traumáticos do psiquismo, ou
mesmo, irrepresentáveis, ou seja, impossíveis de serem representados na vida cotidiana.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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petição, fixando ou encobrindo, e mesmo produzindo o realismo traumático. Desse ponto de vista, Foster (2017) busca demonstrar como o
Real é encoberto nas imagens amparadas na realidade e exaustivamente
repetitivas de Warhol, mas que insiste, ainda assim, em retornar. Foster
(2017) indica também esse retorno através do Hiper-Realismo. Ao seu
ver, o retorno do Real encontrado por meio dessa poética se dá pelo seu
caráter ansioso em ocultá-lo, mas que acaba sendo evidenciado justamente por esse anseio.
Foster (2017) destaca a necessidade de uma mediação entre a
Arte e o Real, baseando-se em proposições sobre os aspectos psíquicos
do Olhar, propriamente reunidas em O Seminário, livro 11 – Os quatro
conceitos fundamentais da Psicanálise de Lacan (2008). Segundo essas premissas, o Olhar, tal como a linguagem, é preexistente ao sujeito
inserido em um mundo especular e espetacular, que o olha de volta.
Como constata Gustavo Dionisio (2012), neste seminário Lacan mostra
como essa problemática olhar-real é paradoxal. Não se trata de um atributo exclusivo do olho; os órgãos sensoriais ajudariam a circunscrever
essa experiência sensível visual que se dá no mundo. O olhar, segundo
essas premissas, tal como a linguagem, é preexistente ao sujeito que se
encontra jogado em um mundo especular e espetacular, que o olha de
volta. Nesse sentido, “aquilo que vale para a linguagem também vale
para o olhar”. Assim, o olhar sendo algo que vem de fora, instaura-se
originariamente como “uma antecipação intrínseca ao desenvolvimento
da espécie humana” (DIONISIO, 2012, p. 188), e por comportar, ao
mesmo tempo, características persecutórias [justamente por residir fora
do sujeito] e uma posição de objeto a, permite a inscrição do registro
simbólico na subjetividade. Um exemplo disso é visto na formação do
eu através do Estádio do Espelho. Nesta proposição, Lacan circunscreve essa antecipação da formalização imaginária de um corpo outrora
fragmentário, resultante na distinção do eu [je – sujeito do inconsciente] e do eu [moi – eu-ego], através de um processo imagético.
Podemos compreender, pela leitura de Foster (2017), como se
dá a sobreposição dos cones no diagrama lacaniano do olhar – daquele
que emana do sujeito e daquele que parte do objeto – evidenciando que
o sujeito se encontra em uma posição dupla, isto é, ele é “visto vendo,
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
figurado figurando” (p. 133). Essa relação se dá [pois] tanto a pintura
lança sua luz sobre o sujeito, fotografando-o, como este direciona seu
olhar para o quadro. Do primeiro cone, que parte de um ponto geometral em direção ao objeto, encontramos a focalização da imagem. No segundo caso, em que parte do ponto luminoso ao quadro, como intermediário há o anteparo (ou tela). Da superposição deles, portanto, temos
uma relação entre o olhar e o sujeito da representação, que comportam
como intermediários, o anteparo imagem, que seria o mecanismo de
mediação entre o olhar e o sujeito da representação (Figura 1).
Como destaca Dionisio (2012), se Foster posiciona a imagem
e a tela como anteparos do olhar é porque apresentam-se também como
proteção contra um objeto-olhar. Essas defesas podem ser entendidas
como as características mediadas pelo Simbólico e Imaginário, traduzidas e apresentadas ao nosso olho justamente através da produção poética das obras de arte. Sendo assim, configuram meios de proteção contra
o olhar do Outro, isto é, de uma invasão do real - apresentando-se das
maneiras mais complexas e enigmáticas. Essa proteção é permissiva
em determinados aspectos, trabalhando na negociação com a violência
que acompanha esse olhar invasivo. Tal mecanismo, dentre os seres
humanos, possibilita que haja um escape através do imaginário, com o
registro simbólico garantindo essa criação de imagens. Essa mediação
angariada através do processo subjetivo do olhar consiste numa captura
de suas funções mais incontroláveis que, ao fim e cabo, visará uma domesticação através da imagem.
Assim, compreendemos como começam a se inscrever as relações entre o olhar e as imagens na subjetividade. Se nosso olhar é
lançado ao mundo de um só ponto, o contrário não é válido. Somos
observados de inúmeros perfis e de diversas maneiras correspondentes
a uma alteridade. Esse endereçamento-outro traz consigo algo do nível
relacional em aspectos transferenciais. Se algo me olha, dentro de tais
configurações, possui afinidades comigo, mesmo que estas se desenvolvam a par de possíveis estranhamentos correlatos a uma falta constitutiva. Uma obra pode comportar consigo grande parte desses aspectos. Se
uma pintura é apresentada ao olhar, a oferta feita pelo pintor é abundan-
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
19
te: “Queres olhar? Pois bem, veja isso!” diz Lacan (1998, p. 99), como
a demonstrar esse convite para que o espectador possa se demorar ali.
Intrigante exemplo desse movimento é encontrado nas obras
da artista e fotógrafa norte-americana Cindy Sherman. Aqui, é produzido um desvio que parte da realidade sendo efeito da representação e
quase chega ao Real como coisa traumática. Foster (2017) demonstra
que, ao dividir, ainda que a grosso modo, o trabalho de Cindy Sherman
em três grupos, é possível relacionar cada período a um posicionamento
específico entre sujeito e obra de arte. Em suas primeiras fotografias,
Sherman coloca o sujeito como ser observado (Figura 2). Quem olha é
também olhado por suas obras; esse olhar não vem só da tela, mas de
dentro do sujeito. No segundo momento, a artista se coloca no lugar de
anteparo/imagem provocando justamente a questão das representações,
seja no mundo da moda, na história da arte ou em imagens de desastres.
Sherman aposta em uma concepção psicótica representacional do corpo, demonstrando a matéria corpórea evidenciada como coisa plástica,
descartável (Figura 3). Já o terceiro momento, herdeiro dos anteriores,
parece romper o anteparo tal que o olhar-objeto invade e ultrapassa o
sujeito-como-quadro, demonstrando o horror real da representação, à
beira dos limites do abjeto, causando um revirão literalmente visceral
ao apresentar cenas que remetem à escatologia humana, corpos feridos,
excrementos e vísceras envolvendo a si mesma, chegando a dar pistas
para o Real irrepresentável (Figura 4).
Para Foster (2017), essa investida em ver aquilo que se coloca
por detrás do quadro indica que lá poderíamos encontrar “o olhar, o
objeto, o real” (p. 137). Contudo, em Lacan, “o real não pode ser representado” a não ser pela sua negatividade, ou seja, por aquilo que ele
não é (DIONISIO, 2012, p. 199). Sendo assim, essa compreensão é de
extrema importância para as correspondências entre experiência psicanalítica e recepção estética, pois essa falta está em direta correlação à
incompletude do desejo. Se o Hiper-Realismo reprime o Real, inevitavelmente, ele retorna. Isso ocorre, segundo Foster (2017) na superfície
dos signos hiper-reais. Nesse sentido, aparece a insurreição de uma ambivalência que, outra vez, nos leva a evocar esse Real. Na perspectiva
de Dionisio (2012) em consonância a Foster (2017), vemos aparecer o
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
balizamento poético de um efeito representativo da realidade, buscando
atingir o Real como coisa traumática. Esse deslizar nos coloca, justamente, em suspensão e configura um clamor por sua ressignificação,
sobretudo nas poéticas visuais da Arte Contemporânea.
Assim, temos alguns caminhos diante das obras do Hiper-Realismo, uma vez que sua configuração permita incomensuráveis aberturas nos sujeitos – possibilitando a mediação das subjetivações no espaço
que se dá entre o olhar e sujeito, ou ainda, entre o Imaginário, o Simbólico e o Real. Instala-se uma espécie de alteridade da Arte e, também,
uma identidade própria de suas formas relacionadas ao modo como a
vida se deflagra. “O estado estético é pura suspensão, momento em que
a forma é experimentada por si mesma. O momento de formação de
uma humanidade específica” (RANCIÈRE, 2009, p. 34). Portanto, a
configuração de um possível olhar psicanalítico para as obras de arte se
dá inevitavelmente no âmbito sensível da percepção. Concordando com
João Frayze-Pereira (2010), ainda que não seja fácil “manter os olhos
abertos para acolher o olhar inquietante que nos interpela”, partir desse
ponto é suficiente para “esquecer-se de si, para deixar-se surpreender”,
emergindo dessa “desnorteante força da Arte” (p. 91), inúmeras questões e múltiplos estranhamentos.
Nesse sentido, Umberto Eco (1991) afirma que as aberturas
das obras de arte são possíveis de se dar em um nível de convite dirigido ao espectador para produzir a obra junto ao artista; de outro modo,
em um nível mais amplo, de movimento e mudança do espectador, que
implica a atualização intersubjetiva deste frente à manifestação estética; e, ainda, em um terceiro nível, no qual a obra é sempre e infinitamente reeditada e atualizada causando sua revitalização de acordo com
as diversas associações lançadas a ela. Eco (1991) deixa claro que este
é um movimento poético contemporâneo, tratando-se de aspectos contextuais da Arte, porém o autor diz que todo fenômeno artístico possui
tais capacidades de abertura, sem se deixar fechar nas inúmeras interpretações que o passar do tempo e os diferentes contextos subjetivos e
socioculturais poderão despertar. A seu ver, essa poética da abertura faz
emergir novos problemas e pode adensar ainda mais as situações comunicativas entre espectador e obra de arte, sempre colocando em xeque
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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nossa atenção e nossa percepção visual, possibilitando novos meios e
novas formas de contemplação das obras de arte, que se encontra sempre em movimento.
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JORNAIS
Imagens:
Figura 1: Diagrama dos cones na leitura de Foster (2017)
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Figura 2: Untitled Film Still #2 - Cindy Sherman (1977) - Gelatin silver print - (24.1 × 19.2
cm) – Credit: Horace W. Goldsmith Fund through Robert B. Menschel - Object number:
811.1995 – Copyright© 2022 Cindy Sherman, courtesy of the artist and Metro Pictures, New
York. Department - Photography
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Figura 3: Untitled #183 - Cindy Sherman (1988) - Chromogenic print; 125.7 × 89.2 × 3
cm - Credit Line: Gift of Boardroom, Inc. Reference Number: 1992.716 Copyright© Cindy
Sherman. Courtesy Metro Pictures, New York
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Figura 4: Untitled #190 - Cindy Sherman (1989) - chromogenic color prints (two panels) 245.11 x 185.42 x 6.67 cm – The Broad.
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O SANTUÁRIO NOSSA SENHORA DA SALETTE:
HISTÓRIA DE UMA IGREJA NEOGÓTICA
Alice Almico Saraiva7 - almicoalice@gmail.com
Resumo: A presente pesquisa se debruça sobre o Santuário Nossa Senhora da Salette - edifício religioso e importante patrimônio arquitetônico Neogótico do bairro do Catumbi, região central da cidade do
Rio de Janeiro - e sobre seu conjunto de objetos artísticos e mobiliário, com especial destaque aos elementos escultóricos da fachada, os
altares e móveis que compõem o altar-mor e as capelas laterais e o
grupo de vitrais franceses, originais de 1927, de autoria do renomado
artista do vidro Jacques Gruber. Apresentaremos os resultados parciais
da reconstituição da história da construção do templo e dos primeiros
anos da presença da Ordem Saletina no Brasil, respeitando o recorte
temporal que corresponde ao período entre 1902 e 1939 - momento no
qual assistimos aos processos de idealização projetual, de construção,
de aparelhamento social e da montagem de parte essencial do conjunto
artístico-decorativo da igreja -, fruto do trabalho com as fontes documentais. Buscaremos também apresentar, a partir de uma revisão da historiografia dedicada ao fenômeno artístico Neogótico, algumas noções
centrais a respeito deste estilo arquitetônico relacionando-o a diferentes
fatores que determinavam a atmosfera cultural do início do século XX,
evidenciando a relevância do Santuário de N. S. da Salette como parte
deste complexo nacional de arquitetura de natureza eclética-revivalista,
bem como elaborar uma análise do Santuário e dos objetos que constituem seu acervo previamente mencionado, além de apontar a recepção
que essa edificação em estilo Neogótico teve na sociedade fluminense à
época de seu erguimento.
7 Esta publicação faz parte do projeto de pesquisa em nível de graduação intitulada “O Neogótico religioso no Rio de Janeiro do século XX: Santuário Nossa Senhora da Salette”, orientada
pelo Prof. Dr. Alberto Martín Chillón, desenvolvida no Departamento de História e Teoria da
Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa conta com
financiamento da Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos - COPPETEC/UFRJ, bolsa em vigência desde outubro de 2021.
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Palavras-chave: Arquitetura neogótica; Arquitetura Religiosa; Século
XX; Ecletismo.
Abstract: The present research focuses on the Sanctuary of Our Lady
of La Salette - a religious building and an important Gothic Revival architectural heritage in the Catumbi neighborhood, central region of the
city of Rio de Janeiro - and on its set of artistic objects and furniture,
with special emphasis on sculptural elements of the façade, the furniture that make up the main altar and the side chapels and the set of French
stained glass windows, original from 1927, by the renowned glass artist
Jacques Gruber. We will present the partial results of the reconstitution
of the history of the construction of the temple and of the first years of
the presence of the Missionaries of La Salette in the country, respecting
the time frame that corresponds to the period between 1902 and 1939
- moment in which we witness the processes of design idealization,
construction, of social equipment and the assembly of essential parts of
the artistic-decorative ensemble of the church -, result of dealing with
different sources. We will also seek to present, from a review of the
historiography dedicated to Gothic Revival artistic phenomenon, some
central notions about this architectural style relating it to different factors that determined the cultural atmosphere of the early 20th century,
highlighting the relevance of the Sanctuary of Our Lady of La Salette as
part of this national architectural complex of eclectic-revivalist nature,
as well as an analysis of the Sanctuary and the objects that make up its
previously mentioned collection, in addition to pointing out the reception that this religious Neo-gothic building had in the society of Rio de
Janeiro at the time of its construction.
Keywords: Gothic Revival architecture; Sacral architecture; 20th century; Eclecticism.
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INTRODUÇÃO
Olhar as coisas de um ponto de
vista arqueológico é comparar
o que vemos no presente, o que
sobreviveu, com o que sabemos
ter desaparecido. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 41)
Erguido em estilo Neogótico a partir de variados esforços e de
uma campanha pública de arrecadação de recursos entre a segunda e a
quarta décadas do século passado, o Santuário Nossa Senhora da Salette do Rio de Janeiro se configura como um objeto de estudo complexo que deve ser abordado de maneira a interligar diferentes saberes,
disciplinas e metodologias. Acreditamos que trazê-lo para os estudos
da História da Arte atende à necessidade que o nosso campo tem de
ampliar seu leque de objetos para melhor compreender as práticas e o
debate arquitetônico brasileiro do século XIX e princípios do século
XX, especialmente em relação aos estilos ecléticos. Esse resgate adquire importância renovada se entendermos que significativas correntes historiográficas dos estudos de artes tenderam a negligenciar essa
herança artística-arquitetônica como objeto de estudo, pois partiam de
uma literatura modernista marcada pela crítica a esses movimentos questão historiográfica que abordaremos ainda neste texto.
Para o estudo do nosso objeto, justificada sua importância dentro
dos estudos históricos da arquitetura brasileira, abordaremos no presente artigo algumas noções centrais a respeito do estilo Neogótico; logo
pretendemos detalhar também os esforços e os resultados da tarefa de
recuperação da história do Santuário e dos primeiros anos e atos da presença da Congregação dos Missionários de N. S. da Salette no Brasil,
respeitando o recorte temporal proposto e expondo as especificidades
do trabalho com as fontes primárias - sendo as principais utilizadas por
nós o 1º Livro do Tombo da Paróquia, documentos diversos, esboços
e projetos arquitetônicos e artísticos que formam o arquivo paroquial e
periódicos que circularam no atual estado do Rio de Janeiro no período;
então passaremos para a apresentação e análise do Santuário como objeto arquitetônico e das obras de arte e mobiliário que compõem o seu
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acervo, mostrando como os já mencionados jornais e revistas ilustraram
a recepção dessas peças e do próprio edifício na sociedade fluminense à
época.
1. REVISÃO HISTORIOGRÁFICA
Partimos do entendimento de que o Neogótico surgiu como um
fenômeno localizado dentro do contexto das dinâmicas de reapropriação romântica do mundo medieval e também dos estilos arquitetônicos
ecléticos típicos dos séculos XVIII, XIX e XX (BARROS, 2009, p.
180). De acordo com Pinheiro, o Ecletismo estaria, por sua vez, ambientado temporalmente entre a crise do cânone cultural classicista e a
emergência das expressões modernistas de arte e arquitetura (2010, p.
438-439). Apesar da atitude eclética de revivalismo histórico ter sido
considerada conservadora e retrógrada por alguns autores, outros contestam esse viés de interpretação, demonstrando que os agentes dessas
escolas não se opuseram categoricamente à assim chamada modernidade dos séculos XIX e XX, ao contrário, integraram muitas vezes em
seus projetos as tecnologias e os novos processos construtivos promovidos pelos avanços industriais e científicos do contexto, extraindo dessas novas técnicas grande potencial criativo (ARGAN, 1992, p. 28-29)
e contextualizando o Ecletismo como parte constituinte de uma “cultura do modernismo”, fortemente marcada pela mudança na percepção
temporal e pelas novas dinâmicas ditadas pela relação, não necessariamente dicotômica, entre tradição e modernidade (VELLOSO, 1996). É
interessante frisar como essa modernidade não surgiu repentinamente
com o advento do movimento de vanguarda normalmente tido como
“modernismo” e seus marcos - no caso brasileiro, a Semana de Arte
Moderna de 1922 e os artistas e arquitetos dessa geração -, sendo fruto
na realidade de um processo de gestação anterior e que atravessa esses
movimentos de vanguarda artística do século XX, perdurando até meados desse mesmo século8.
8 A pluralidade e a coexistência de diferentes modernidades no período de 1890 a 1945 é analisada profundamente por Rafael Cardoso, que cita “a existência de outras correntes modernizadoras [em relação ao modernismo antropofágico organizado ao redor da geração da Semana de
1922], subestimadas pela historiografia” (2022, p. 19).
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Além desses aspectos, é notável que a definição das tipologias e
programas das construções do Ecletismo se dava muitas vezes a partir
de associações simbólicas, ideológicas e históricas entre os tipos e as
funções destinadas aos edifícios9 (FABRIS, 1993, p. 140) e, dentro do
contexto dessas associações simbólicas, foi construída uma relação explícita entre a arte gótica e o cristianismo: o que colocou o Neogótico na
posição de “arquitetura eclesiástica ideal” para o conturbado contexto
da fé católica na virada dos séculos XIX e XX (DE OLIVEIRA NETO,
2015, p. 4-5). Sobre a complexidade que marca essa atitude de evocação histórica de estilos artísticos do passado, como o Neogótico, Maria
Cristina Pereira nos diz:
A Idade Média então reconvocada, em discursos e práticas artísticas, arquitetônicas, literárias, religiosas, filosóficas e políticas, estava longe de ser, em nosso entender, apenas um modismo ou uma via de escape. Ela era parte da complexa rede
de representações que a sociedade [dos séculos XVIII e XIX]
fazia para si mesma fazia [sic.] naquele momento, construindo
sua identidade [...] (PEREIRA, 2011, p. 1)
Na conjuntura brasileira, o Neogótico e essas outras tipologias
reunidas sob o conceito de “Ecletismo” foram entendidas como propostas arquitetônicas representativas do progresso e do processo de
industrialização e modernização do país nesse momento, tendo como
principal modelo as experiências européias (FABRIS, 1995, p. 73). A
promoção desses tipos também estava atrelada às reformas urbanas e
à demolição de antigas estruturas e monumentos promovida nas cidades brasileiras ao longo dos séculos XIX e XX, e também à “construção” de novas cidades, como é o caso de Belo Horizonte10 (DIAS,
2008, p. 105). As edificações ecléticas surgem mais significativamente na arquitetura brasileira a partir da segunda metade do século XIX,
em especial nas décadas de 1870 e 1880, e o mesmo se estende até as
9 Autores como Mattos (2004, p. 5) chamam atenção também para o papel do “gosto” na cons-
trução estética eclética, bem como a importância que as possibilidades criativas e inovadoras
promovidas por essas escolas arquitetônicas tiveram na sua aceitação e difusão por parte das
camadas burguesas - paralelamente a característica associativa que frisamos acima.
10 A complexidade do processo de construção da nova capital do estado de Minas Gerais é
objeto de análise de Heliana Angotti-Salgueiro (2020).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
primeiras décadas do XX11 - momento de construção do Santuário da
Salette.
Temos a compreensão de que os estilos revivalistas, como é o
caso do Neogótico, estavam localizados em um importante eixo dentro do debate arquitetônico brasileiro dos séculos XIX e XX12, movimentando diferentes agentes como engenheiros, críticos de arte e
arquitetos em torno do debate acerca da aplicação dessas tipologias,
cada vez mais populares, em projetos arquitetônicos13, tendo a imprensa e as revistas especializadas como plataforma para divulgação
de opiniões contrárias e favoráveis ao Ecletismo e as suas implicações nas cidades brasileiras. A exemplo disto, Mário de Andrade, em
artigo publicado na “Revista do Brasil” em 1920, dedica parte de seu
comentário sobre arquitetura religiosa brasileira do período colonial
para o desenvolvimento de uma crítica ao panorama arquitetônico do
contexto no qual escrevia, marcado pela cultura eclética que discutimos anteriormente14. O intelectual diz:
11 Na capital federal, é marcante o projeto das torres da Igreja do Santíssimo Sacramento, de
1870. Assinadas por Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, muito aclamado à época pelo
mérito de harmonizar uma construção de matriz classicista com torres-agulha de base piramidal
retiradas do universo das tipologias arquitetônicas góticas (SOBRAL FILHA, 2018, p. 1), além
de edifícios civis, também da cidade do Rio de Janeiro, como o neomanuelino Real Gabinete
Português de Leitura e a já demolida sede da Tipografia Nacional - ambos projetos são desse
mesmo contexto das décadas de 1870-1880.
12 Esse ambiente de intensa discussão a respeito das questões arquitetônicas que marca o momento inicial do século XX foi estudado por Marcelo Silveira e William Bittar a partir da figura
de José Marianno Filho e de sua defesa da arquitetura Neocolonial (2013).
13 A participação de nomes como Manoel de Araújo Porto-Alegre, Félix Ferreira, Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, Ernesto da Cunha Araújo Viana e Antônio de Paula Freitas nesses
debates é explorada por Doralice Duque Sobral Filha (2018).
14 Vale ressaltar que há também na imprensa uma grande repercussão positiva acerca do erguimento de edifícios neogóticos, como o Santuário da Salette; elogiado por que será “de estylo
ghotico e se destacará, entre as demais egrejas ; pela suas bellas linhas architectonicas [...]” (A
União, 20 de dezembro de 191, ed. A00102, pág. 2). Essas linhas de pensamento sobre a arquitetura são contemporâneas e configuram um importante debate que se infiltrou nos mais diversos espaços, como por exemplo no senado brasileiro onde, como registrado na seção “Caixa de
Gazolina” da revista Fon Fon, o senador Victorino Monteiro discursou acerca da variedade de
possibilidades estéticas promovida pelo ecletismo-revivalista: “A uns o estylo gothico é preferível ao romano, outros preferem o da época da da renascença italiana. Há ainda quem aprecie
mais a architectura ingleza pela simplicidade de suas linhas. Entretanto, a nosso vêr, um dos
melhores estylos é o manuelino.” (21 de maio de 1910, ed. 0021, pág. 31).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Queríamos ser progressistas, reformadores, cubistas, fomos
buscar o que não era nosso, imitamos sem altivez, copiamos
sem engenho [...] O erro nosso de construir igrejas nos mais
estrangeiros dos estylos propaga-se com rapidez perniciosa por
todo o Brasil. Quebrou-se bruscamente a cadeia da arte religiosa nacional: todos os estylos penetraram a praça numa sarabanda de mistificações. Na Bahia, em Minas, na Capital Federal,
no Rio Grande do Sul, em toda parte, si houver uma capellinha
por construir, é preciso que seja helenica ou sessessionista. E o
nosso barroco? … (ANDRADE, 1920, p. 109)
Esse exemplo pontual é parte do que Annateresa Fabris (1995)
nomeia como uma corrente modernista crítica à cultura do Ecletismo,
um fenômeno historiográfico que não é particular da literatura artística
brasileira15. Essa corrente do pensamento modernista legou aos historiadores e demais pesquisadores da arte do século passado uma crítica generalizada ao conjunto arquitetônico do oitocentos e princípio do
XX, taxando suas construções como kitsch, desordenadas, falsas, provisórias, pastiche, de mau-gosto, etc. Em seu “Panorama da Arquitetura
Ocidental”, publicado pela primeira vez na década de 1940, Nikolaus
Pevsner diz:
[...] encontramos, por volta de 1830, a mais alarmante situação
social e estética na arquitetura. Os arquitetos acreditavam que
qualquer coisa criada nos séculos anteriores à industrialização
seria necessariamente melhor que qualquer obra que expressasse o caráter de sua própria era. (PEVSNER, 2015, p. 390)
Esse trecho ganha maior importância quando se considera o
peso que a publicação de Pevsner teve e tem sobre o entendimento histórico da arquitetura. Já nos anos de 1980, Yves Bruand escreve “Arquitetura contemporânea no Brasil” e declara:
O panorama oferecido pela arquitetura brasileira por volta de
1900 nada tinha de animador. Nenhuma originalidade podia ser
entrevista nos numerosos edifícios recém-construídos, que não
passavam de imitações, em geral medíocres, de obras de maior
ou menor prestígio pertencentes a um passado recente ou lon-
15 De fato, a própria autora explora como as críticas tecidas por certos intelectuais modernistas
brasileiros guardam diversas semelhanças com as de diferentes pensadores internacionais cujos
textos circularam no país, como por exemplo Adolf Loos (1995).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
gínquo, quando não eram meras cópias da moda então em voga
na Europa. (BRUAND, 1981, p. 33)
Destacado o papel menor que muitas vezes coube ao Ecletismo
no pensamento sobre arquitetura principalmente durante a primeira metade do século XX, frisamos também como, a partir dos mesmos anos
de 1970 e 1980, surgiram mais e mais obras que reavaliavam esse conjunto despidas dos preconceitos críticos citados anteriormente16. Nesse
contexto de tentativas de entendimento do patrimônio eclético a partir
de suas teias de complexidades, Sonia Gomes Pereira articula que:
[...] é possível observar, na prática arquitetônica do século XIX,
um conjunto muito mais complexo, em que vários elementos
estão interligados [...] coexistem técnicas, programas e estilos
do passado e do presente, evidenciando a permanência da tradição colonial, entrelaçada ao desejo de modernização e à necessidade de construção imaginária da nova nação.
2. HISTÓRIA DO SANTUÁRIO DE N. S. DA SALETTE
A partir da união de uma restrita bibliografia referente à Ordem
Saletina17 com as fontes foi possível organizar uma linha do tempo dos
primeiros anos da presença e dos atos dos Missionários da Salette no
Brasil - e, portanto, entender como se deu a institucionalização da crença no país e, no Rio de Janeiro posteriormente, a criação da Paróquia de
“Nossa Senhora das Dores da Salette”18, a campanha de construção do
16 Chamamos atenção aqui para o fato de que, como é comum nas ciências, correntes diferen-
tes de pensamento coexistem no tempo. Essa retomada crítica da herança artística e arquitetônica do período entre os séculos XIX e XX não substituiu efetivamente a obra de pensadores
como Bruand - que publicou sua “Arquitetura Contemporânea no Brasil” apenas seis anos antes
do clássico “Ecletismo na Arquitetura brasileira”, organizado por Annateresa Fabris -, somente
propuseram diferentes abordagens a um mesmo campo de estudos.
17 Grande parte das informações apresentadas nesta seção foram retiradas do título “Crônicas
de uma Missão”, - livro publicado pelo Padre Ático Fassini em ocasião do centenário da chegada dos primeiros saletinos em Santos, São Paulo - e, quando não, será indicado. O título é embasado num extenso trabalho com diferentes documentos, os quais se encontram majoritariamente
no arquivo central saletino, em Curitiba, mas também na transmissão oral de conhecimento e
nas experiências do Padre Fassini como membro da Ordem.
18 Essa nomenclatura da paróquia, que faz referência à Nossa Senhora das Dores (uma forma
de celebração da Virgem Maria anterior à saletina), foi utilizada pelos Missionários da Paróquia
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Santuário Neogótico e o aparelhamento social da nova Matriz, respeitando o recorte temporal proposto entre os anos de 1902 e 1939. Cabe
apontar que o trabalho com as fontes primárias ainda está em andamento e seus resultados são apenas parciais, sendo as principais fontes consultadas os periódicos disponibilizados na plataforma da Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional19, o 1º Livro do Tombo da Paróquia do
Catumbi e diversos documentos que se encontram no arquivo da própria igreja20.
A partir da figura de Clemente Henrique Moussier, o primeiro
saletino a vir para o Brasil, podemos alcançar uma narrativa resumida
de como essa experiência inicial se deu:
Em 1902, um missionário saletino norte-americano, padre Clemente Henrique Moussier, após insistências ao seu superior, foi
enviado ao Brasil para a fundação de uma casa no País. [...] Em
15 anos, os saletinos fundaram uma revista de circulação nacional, iniciaram a construção do primeiro santuário na cidade
do Rio de Janeiro e criaram seminários e escolas paroquiais.
(LEONARDI; MAZOCHI, 2014, p. 102)
Os padres saletinos - vindos do interior de São Paulo - se instalaram no Rio de Janeiro em 1912 e, já no ano seguinte, realizaram
a compra dos terrenos onde a Matriz seria erguida posteriormente, no
bairro do Catumbi. Os imóveis existentes aí foram reformados para
acomodar os missionários e a igreja provisória. Em abril de 1914 é criada finalmente a paróquia de N. S. das Dores da Salette e, nos anos que
se seguem, o projeto do Santuário, elaborado pelo engenheiro Paulo
do Catumbi até o ano de 1972, postulamos que seja uma possível tentativa de aproximação da
aparição mariana francesa com a realidade e os costumes religiosos brasileiros.
19 A pesquisa na Hemeroteca Digital nos permitiu não só avançar em relação à tentativa de
entender a história do Santuário e da missão saletina, como também observar certos padrões e
a reincidência de alguns grupos temáticos principais entre as ocorrências - como anúncios de
atividades religiosas diversas, notícias relativas à associações, ligas e outros grupos religiosos,
publicação de cartas e artigos informativos ou de opinião, sobre o processo de construção do
templo e da sua campanha arrecadação de fundos, ações sociais, fatos da vida clerical, outras
notícias e ocorrências não necessariamente relacionadas.
20 A maior parte da documentação referente aos Missionários de N. S. da Salette encontra-se
no Arquivo Geral Saletino, em Curitiba, porém, algumas fotos, projetos, desenhos e outros
tipos de registros ainda se encontram na Matriz do Rio de Janeiro, como também os Livros do
Tombo e fotografias.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Schroeder, é posto em prática. A sagração da pedra angular da construção se deu em janeiro de 1918, cerimônia conduzida pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Joaquim Arcoverde (A Epoca, 14 de jan.
de 1918, ed. 02012, p. 4). Em 1919 as obras já estão consideravelmente
avançadas e então é demolida a Matriz provisória: as atividades litúrgicas foram transferidas temporariamente para a cripta da igreja, um amplo salão no andar térreo que será dividido em três salas posteriormente,
na década de 1930.
Já em 1924, chega ao Rio de Janeiro o novo conjunto de sinos
e o carrilhão portugueses e, depois, o grupo de vitrais franceses21. Em
1927, após a instalação dos vitrais, o Santuário é inaugurado, ainda
com os movéis litúrgicos antigos e o exterior inacabado, a cerimônia
de benção solene acontece em 13 de novembro desse mesmo ano. Em
1934 são instalados o retábulo de mármore do altar-mor e os três grandes afrescos originais, a cerimônia de sagração dessas obras se deu em
13 de abril (1º Livro do Tombo, 1934). A flecha da única torre e a cruz
do topo são adicionadas e abençoadas posteriormente. Em 1939, o Santuário de N. S. da Salette comemora as bodas de prata da criação da paróquia. Em resumo, o processo de aparelhamento social da Paróquia no
período estudado se dá principalmente pela abertura de grupos e associações religiosas; por diferentes formas de engajamento da população
na campanha de arrecadação de fundos para a construção do santuário;
pela disseminação nacional do periódico religioso “O Mensageiro de
N. S. da Salette”22; com a criação de uma Associação de Escoteiros;
a manutenção de um consultório de higiene infantil; e outros tipos de
obras sociais.
21 Em abril desse mesmo ano de 1927 tinha sido publicada no Correio da Manhã a concessão
da isenção de direitos na Alfândega do Rio de Janeiro para “obras de arte destinadas ao santuário de Nossa Senhora da Salette, matriz de Catumby” (Correio da Manhã, 15 de abr. de 1927,
ed. 09890, pág. 9).
22 A importância desse periódico - lançado em janeiro de 1927 com redação instalada em sala
anexa à própria Matriz carioca - para a difusão da fé saletina no Brasil é destacada por Leonardi
e Mazochi (2014). Após a transferência de sua sede editorial para Marcelino Ramos (RS), a
revista é publicada até os dias de hoje sob o título de “Salette”.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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3. ESTUDO DO SANTUÁRIO E DE PARTE DE SEU CONJUNTO ARTÍSTICO E MOBILIÁRIO
A planta do Santuário de N. S. da Salette é basilical, formada por
três naves - sendo a central projetada para o alto em relação às da epístola e do evangelho, o que cria um clerestório cortado por óculos com
vitrais. O templo é elevado um andar acima da rua; entra-se por um portão à altura da cripta, onde há três portas para as áreas administrativas
da paróquia, decoradas com relevos em formato de arcos conopiais23. O
acesso ao andar superior se dá por duas escadas à esquerda e à direita.
Há uma única torre sineira de base quadrada ladeada por dois pináculos,
uma flecha e cruz ao topo. A entrada para o Santuário é única e centralizada e, após o nártex, a porta corta-vento é ornada com um vitral ao
topo. Na parte externa, acima do portal, há um tímpano decorado com
um mosaico colorido representando um campo com animais, nuvens
e as duas crianças, testemunhas da aparição - cenário para a escultura
branca de N. S. da Salette que há ali no meio. O arco ogival deste portal
é composto de arquivoltas com ornatos florais dourados - como também
são dourados outros elementos, como os capitéis decorados das colunas
do interior e as que orlam o pórtico. No pequeno frontão, encimado por
um florão ou crista, dispõe-se de maneira triangular esculturas da Santíssima Trindade; a figura de Deus Pai localizada ao topo, centralizada,
a do Divino Espírito Santo abaixo à direita e a de Jesus Cristo do lado
oposto a esta. Acima disto há uma grande rosácea que, internamente,
ilumina a galeria superior, oposta ao abside. Fazendo conjunto com a
citada imagem da Virgem da Salette no tímpano existem dois nichos
com esculturas, cada um ao topo das duas escadas que levam ao nível
da igreja - o grupo escultórico formaria uma representação completa da
narrativa, dividida entre seus três momentos principais24.
23 O mesmo motivo decorativo em forma conopial se repete no interior; entre as janelas das
naves, pequenas representações dos momentos da Via Sacra são emolduradas por relevos de
arcos em amarelo.
24 Veremos que esse padrão de representação tripla da Aparição Saletina é repetido no Santuário por diferentes linguagens artísticas, e gostaríamos de relacionar o conjunto de esculturas do
Santuário carioca com o feito em bronze que se encontra no adro do Santuário francês, erguido
ainda no século XIX em estilo neo românico nas montanhas onde a aparição teria ocorrido. As
esculturas francesas foram encomendadas pelo espanhol Conde de Peñalver (A União, 25 de
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Ambas as áreas interna e externa têm elementos decorativos florais, cogulhos, pináculos menores e relevos pintados em tons de amarelo, se tratando muitas vezes de formas comuns à arte gótica repensadas
pela lente revivalista-eclética. Parte do conjunto de vitrais25 pode ser
visto também de fora do templo, integrando os dois espaços - à exemplo
da rosácea, dos óculos em ambos os lados do clerestório e das grandes
composições ogivais que cortam as naves laterais. Este grupo é de autoria de Jacques Gruber, um mestre de vidro francês, e foram instalados
para realização da missa inaugural do santuário em 13 de novembro de
1927. Por meio da imprensa, obtemos informações como seu custo - estimado em mais de 50 contos de réis (O Brasil, 06 de set. de 1927, ed.
01906, pág. 8). Contabilizamos cerca de quarenta peças no conjunto,
divididas entre; a rosácea que contrasta dourado e azul com uma disposição circular de rosas cor de rosa; os grandiosos modelos ogivais com
narrativas da mitologia católica26, que se dividem em dois grupos de
seis entre as janelas das paredes das naves; peças retangulares e em formato de ogiva nas salas laterais anexas logo na entrada; vitrais ogivais
menores nas duas capelas e no altar; e os óculos do clerestório somados
out. de 1925, ed. 00086, pág. 4) e, como as posteriores que vemos na parte exterior do Santuário
do Rio de Janeiro, se dividem entre a cena da Virgem chorando sentada; conversando com as
crianças; e sua Assumpção.
25 Utilizamos aqui para categorizar os vitrais o conceito de “bem integrado”, uma definição
que tenta dar conta de objetos que não são bens móveis nem imovéis mas que tem uma integração com o espaço arquitetônico, tendo suas dimensões e proporções relativas à superfície
construída, o que dificulta, por exemplo, sua retirada sem danos e transferência do local de
origem para um outro edifício (VIANA, 2015, p. 22).
26 Essas peças, um total de doze, têm os seguintes títulos gravados em suas bases (as dividimos
numericamente no sentido da esquerda na entrada seguindo em direção ao altar e depois do altar
para a entrada pela direita): (esq.) 1- “VIIº / IX Mystério do Rosário [...]” 2- “Xº / XIº Mystério
do Rosário [...]” 3- “XIIº / XIIIº Mystério do Rosário [...]” 4- “XIVº / XVº Mystério do Rosário
[...]” 5- “Sᵗᵃ Joanna D’Arc libertando Orleans / Offerta da colônia e da Missãa Militar Francezas” 6- “Apparição do Sᵈᵒ Coração / à Sᵗᵃ Margarita Maria” (dir.) 7- “Apparição de Nᵃ Sᵃ da
Salette / Santuário de Nᵃ Sᵃ da Salette” 8- “São José / São Vicente de Paula” 9- “Sᵗᵃ Therezinha
do Menino Jesus / Iº Mystério do Rosário [...]” 10- “IIº / IIIº Mystério do Rosário [...]” 11- IVº
/ Vº Mystério do Rosário [...]” 12- “VIº / VIIº Mystério do Rosário [...]”. Todas as composições
têm uma parte inferior retangular basculante com motivos florais, à exceção da sétima, onde
há uma representação das montanhas e do Santuário saletino de La Salette-Fallavaux, local da
aparição. Além destas, outras peças do conjunto apresentam motivos florais decorativos e temas
religiosos - como o batismo de Jesus Cristo, representações de santos como São Sebastião e de
aparições marianas como de N. S. Aparecida.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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aos três que estão acima dos afrescos do altar27. Uma visão do interior
do templo nos permite observar o efeito de policromia causado pelos
coloridos e vibrantes vitrais, impressão que é acentuada pela iluminação natural intensa que a edificação recebe - muito devido à combinação de diversos artifícios construtivos como a elevação da nave central, a amplitude geral e claridade das paredes do salão e a disposição
nordeste-sudoeste do edifício -, direcionada para as coloridas vidraças
dispostas por toda sua extensão de diferentes formas ao longo do dia.
O retábulo do altar-mor, que combina mármore rosado com um
de tom mais claro, branco, foi instalado anos após a inauguração do
templo, em conjunto com as pinturas murais, de autoria de um pintor
identificado apenas como “Fantappi, de nacionalidade italiana”28 (1º
Livro do Tombo, 1934). No arquivo paroquial constam, entre plantas
baixas, aquarelas e projetos de móveis litúrgicos e do gradil da parte externa, o esboço de um dos nichos desse altar com características formais
neogóticas com o carimbo de Bertozzi & Cia., uma empresa de marmoraria de São Paulo responsável pela obra, além de um projeto maior
não-assinado do móvel como um todo na escala 10:100. Podemos ver
no desenho do nicho - preenchido pela imagem do segundo momento
da narrativa, no qual Salette comunica sua mensagem às crianças Melánie e Maximiliano - que pretende-se seguir a repetição do padrão de
se representar separadamente os três momentos da Aparição Saletina,
observado no grupo escultórico da parte externa e em um dos vitrais
estudados, como também na capa da edição de março de 1917 do Mensageiro de N. S. da Salette (Leonardi e Mazochi, 2014, p. 109).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para introduzir e melhor compreender nosso objeto foi preciso
- em face da exigua literatura acadêmica sobre o Santuário e os objetos
27 O conjunto do altar mostra uma âncora, um crucifixo e o Sagrado Coração de Jesus Cristo,
enquanto os outros repetem os seguintes motivos: um ostensório com hóstia, as chaves de São
Pedro e as tábuas dos Dez Mandamentos.
28 Esses afrescos atualmente não podem ser mais vistos pois foram pintados novos por cima.
Por meio da comparação de fotografias, podemos perceber que houve uma reforma no abside
que reestruturou as janelas, diminuindo o espaço das pinturas e possivelmente afetando suas
condições.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
artísticos que compõem seu conjunto - fazer uma ampla revisão historiográfica, um levantamento inédito de fontes documentais e a análise
do edifício e de seus objetos a partir de suas características construtivas
e formais. Ressaltamos como, se tratando de um estudo de caso dentro de um panorama artístico-arquitetônico maior que convencionamos
agrupar sob o Ecletismo, este trabalho se alinha com a tendência historiográfica de lançar luz sobre objetos que ficaram de fora das principais
narrativas da História da Arte e Arquitetura. Pretendemos expandir ainda essa pesquisa, avançando nas três principais abordagens aqui apresentadas, considerando os limites impostos por um trabalho de pesquisa
em nível de graduação.
A partir do apresentado ao longo do artigo, pode-se considerar que a construção do Santuário transbordou temporalmente os anos
de seu levantamento (1914-1927), posto que os esforços e negociações
dos saletinos de ter sua própria paróquia na cidade do Rio de Janeiro
datam ainda da primeira década do século XX, e como a campanha de
financiamento popular e coletivo e as encomendas de obras de arte e
mobiliário atravessaram esse período29. Além disso, traçamos relações
entre a campanha de divulgação da fé saletina no país e a concessão de
uma nova paróquia e Matriz aos missionários dessa ordem, visto que
o próprio Santuário apresenta didática e repetidamente a narrativa da
aparição mariana francesa, além de ter sido a primeira sede do periódico “Mensageiro de N. S. da Salette”30. É importante também destacar
como o estudo do templo e de sua repercussão na sociedade carioca à
época adiciona profundidade ao entendimento que temos da arquitetura
eclética, pelo menos no tocante à forma como a mesma era recepcionada de maneiras plurais por diferentes agentes e grupos contemporâneos
29 Citamos anteriormente que seu conjunto de movéis e seu exterior ainda estavam incompletos nos primeiros anos dos anos 1930 e, mesmo depois da data da cerimônia de benção solene
e inauguração do templo, ainda celebravam-se quermesses e outros tipos de atividades para angariar fundos para a finalização do templo, como também realizaram-se encomendas de obras
e outros tipos de intervenções arquitetônicas ao longo dessa década.
30 Podemos também perceber, em face da criação da paróquia do Catumbi, um fluxo de publicações em diferentes periódicos de artigos e cartas apresentando a aparição, sobre a presença
de seus missionários no Brasil, sobre o santuário francês e etc. É o caso do texto “A Apparição
da Salette (a proposito da nova parochia)”, assinado por João Marques (Jornal do Commercio,
20 de maio de 1914, ed. 00147, pág. 3).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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e, posteriormente, pelas distintas correntes da historiografia arquitetônica.
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Correio da Manhã (RJ) - 1920 a 1929. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional.
Fon Fon : Semanario Alegre, Politico, Critico e Espusiante (RJ) - 1907 a 1958.
Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional.
Jornal do Commercio (RJ) - 1910 a 1919. Hemeroteca Digital Brasileira da
Fundação Biblioteca Nacional.
O Brasil (RJ) - 1922 a 1927. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação
Biblioteca Nacional.
DOCUMENTOS PAROQUIAIS
1º Livro do Tombo (1914-1950). Arquivo da Paróquia de N. S. das Dores da
Salette.
Esboços projetuais do retábulo (c. 1934). Arquivo da Paróquia de N. S. das
Dores da Salette.
Plantas baixas (s/d). Arquivo da Paróquia de N. S. das Dores da Salette.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O PRAZER DO ENCONTRO: OS VISITANTES DE
MUSEUS NAS FOTOGRAFIAS DE ALAIR GOMES
Aline Ferreira Gomes31 – afgomes83@gmail.com
Resumo: Esse artigo apresentará algumas das fotografias realizadas
pelo fotógrafo Alair Gomes (1921-1992) quando visitou museus e galerias de arte em suas viagens aos Estados Unidos e à Europa. Seu olhar
vigilante capturou os visitantes de espaços culturais, refletindo seu objeto de desejo, o corpo masculino, que jamais passou despercebido pelas lentes de sua câmera. No vasto acervo da Biblioteca Nacional, no
Rio de Janeiro, há dois trabalhos que apresentam esse tema: Glimpses
of America (1975-76) e a série Viagens (c.1983-1991). Dentro da diversidade de temas desses conjuntos fotográficos encontramos imagens de
rapazes visitando exposições de arte, muitos são registros furtivos, sem
autorização dos fotografados, resultando capturas de momentos espontâneos, poses sinuosas de jovens que encaravam quadros e esculturas.
Visitantes em salas de museus foram fotografados por célebres artistas
como Henri Cartier-Bresson, Alécio de Andrade, Thomas Struth, Elliott
Erwitt, entre outros. Cotejando as cenas de Alair Gomes com os trabalhos desses fotógrafos, percebe-se que seus registros vão além de meros
flagrantes do público diante de obras de arte. Também operam como um
espelho multiplicado, na medida em que são instantâneos forjados pelo
olhar daquele que manipula a máquina. Ao capturar esse outro corpo
que olha, se evidencia o objeto de admiração, escapando assim, desejos
e afeições do próprio fotógrafo. Por detrás dessa visibilidade se libera
uma poética fotográfica abandonada ao êxtase, um eco no imaginário
de seu criador, o fotógrafo.
31 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Alair Gomes: A New Sentimental Journey”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa conta com o
financiamento da Fapesp, Processo no. 2018/05927-9.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Palavras-chave: Alair Gomes; fotografia; visitantes de museu; corpo
masculino; erotismo.
Abstract: This article will present some photographs taken by Alair
Gomes (1921-1992) when he visited museums and art galleries on his
trips to United States and Europe. His vigilant gaze captured the cultural spaces visitors, reflecting his object of desire, the male body, which
never went unnoticed by his camera’s lens. In the vast collection of the
National Library, in Rio de Janeiro, there are two works that present this
theme: Glimpses of America (1975-76) and the series Viagens (c.19831991). Within the diversity of themes of these photographic sets, we
find images of young men visiting art exhibitions, many of which are
furtive records, without the permission of those photographed, resulting
captures of spontaneous moments, sinuous poses of young male facing
paintings and sculptures. Museum visitors were photographed by famous artists such as Henri Cartier-Bresson, Alécio de Andrade, Thomas
Struth, Elliott Erwitt, among others. Comparing the scenes of Alair Gomes with the works of these photographers, it is clear that his pictures
go beyond mere snapshots of an audience in front of works of art. They
also functioning as a multiplied mirror, insofar as they were forged by
the gaze of the person who manipulates the camera. By capturing the
other looking at works of art, the object of admiration becomes evident,
thus escaping the photographer’s own desires and affections. Behind
this visibility, a photographic poetics abandoned to ecstasy is released,
an echo in the imagination of its creator, the photographer.
Keywords: Alair Gomes; photography; museum visitors; male body;
erotism.
INTRODUÇÃO
O fotógrafo carioca Alair Gomes (1921-1992) adquiriu certa
notoriedade nos últimos anos, em razão de instituições renomadas projetarem seu trabalho na história da fotografia. Cito alguns exemplos
mais recentes: houve uma importante exposição realizada em 2001 na
Fundation Cartier pour L’arte Contemporain, em Paris, que destacou a
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
obra de Alair para o mundo da arte contemporânea; em 2012, a 30ª. Bienal de Arte de São Paulo apresentou um espaço exclusivo para expor as
obras de Alair; em 2015, a Caixa Cultural realizou a mostra Alair Gomes: Percursos, exibida em algumas capitais do Brasil; além de colecionadores particulares, museus brasileiros também possuem no acervo
algumas obras de Gomes e, em 2015, o MoMA de Nova York adquiriu
parte da série Sonatina, Four Feet (1977)32.
Considerando esse cenário atual, é possível arriscar que o público esteja mais familiarizado com os registros dos banhistas cariocas,
tema que foi mais explorado pelos eventos citados acima. No entanto,
A Coleção Alair Gomes mantida pela Biblioteca Nacional (BN) no Rio
de Janeiro é vasta e possui uma diversidade de assuntos cultivados pelo
artista.33 Esse artigo apresentará um dos numerosos temas que se encontram nesse acervo da BN. São fotografias realizadas em terras estrangeiras, durante as viagens de Alair ao exterior, portanto um ambiente
menos habitual que o das praias do Rio de Janeiro.
Em 1965 Alair Gomes realiza sua primeira viagem à Europa,
retornando ao velho continente em 1983. Essas duas estadias estão registradas em dois suportes que estão presentes no acervo da Biblioteca Nacional. Um deles é um diário de viagem, cuja narrativa ele se
dedicou até poucos meses antes de sua morte. O relato da viagem é
intitulado A New Sentimental Journey (ANSJ), é um texto datilografado em inglês e infelizmente não foi publicado em tempo, logo é um
documento inédito34. Nele Alair apresenta ao leitor apontamentos sobre
locais, monumentos e exposições de arte que visitou. A narrativa possui
caráter erótico, juntando reflexões sobre arte, corpo masculino e vivências em diversas instituições culturais. Em mais de quinhentas páginas,
Gomes apresenta sua jornada pela Inglaterra, França, Itália, Alemanha e
Suíça. O outro documento sobre essa viagem é um conjunto fotográfico
32 Cf. https://www.moma.org/collection/works/180046
33 A Coleção Alair Gomes, é composta por 16 mil fotografias e 150 mil negativos, além de
diversos registros realizados pelo fotógrafo como manuscritos referentes às suas atividades
acadêmicas e artísticas, diários íntimos, estudos sobre matemática, física, filosofia e arte; planos
de aulas, correspondências, recortes de jornais e impressos diversos.
34 Apenas uma parcela das fotografias de série Viagens e alguns trechos do texto de A New
Sentimental Journey foram publicados em uma edição brasileira: GOMES, Alair. A new sentimental journey. Coautoria de Miguel Rio Branco. São Paulo, SP: CosacNaify, 2009.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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composto por aproximadamente 630 imagens. As fotografias da Europa
acompanham a temática do diário, no entanto, não figuram como simples ilustrações ao texto, elas são por si um objeto artístico e refletem
mais um aspecto do olhar poético da Alair sobre o universo masculino.
Outra viagem do fotógrafo também possui registros semelhantes aos da Europa. Em 1962 Alair Gomes realiza sua primeira visita aos
Estados Unidos, retornando ao país nos anos de 1975-76, momento em
que realizou a série fotográfica Glimpses of America. As fotografias em
terras americanas foram produzidas num período em que sua carreira na
fotografia já havia se iniciado. Em dezembro de 1975 ele havia publicado seu trabalho em uma das edições da Artists Alamanac, uma edição
coletiva de Nova York no formato livro de artista35. No ano seguinte, participou de uma mostra coletiva na galeria Walker Street. Assim,
Glimpses of America possui registros da paisagem urbana e de outros
cenários menos citadinos, como fazendas e praias, sem abandonar seu
fascínio pela figura masculina, as composições se concentram no jovem
branco americano.
Em comum os diários fotográficos dos Estados Unidos e da Europa revelam um viajante explorador, na ânsia de tudo ver e conhecer
Alair visitou muitos museus e galerias de arte. A busca por conhecimento o impeliu de fotografar muitas obras desses acervos, algumas vezes
para compor e enriquecer seu próprio museu imaginário, como ele mesmo afirmou: “My first glimpse at the Antiken36 makes me realize I must
take several photos; must pieces in display are not in books I have – and
there’s no album of this museum either.” (GOMES, 1983-1991, p.111).
Contudo, frequentar museus e galerias também poderia ter outro objetivo, além de enriquecer seu repertório iconográfico.
35 Sobre a participação de Alair Gomes em publicações americanas cf. PITOL, André Luis
Castilho. Ask me to send these photos to you: a produção artística de Alair Gomes no circuito
norte-americano. 2016. Dissertação (Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-15032017-151252/pt-br.php. Acesso em: 10
jan. 2022.
36 Aqui Alair se refere ao Antikenmuseum Basel, o museu de arte antiga de Basileia, na Suíça.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O PRAZER DO ENCONTRO
Walter Benjamin ao refletir sobre a figura do colecionador, em
seu livro Passagens (1982), traz um apontamento instigante. Para ele o
colecionador articula sua busca para que o objeto de desejo sempre venha ao seu encontro: “Ora, é exatamente isso que se passa com o grande
colecionador em relação às coisas. Elas vão de encontro a ele. Como
ele as persegue e as encontra, e que tipo de modificação é provocada no
conjunto das peças que se acrescenta, tudo isto lhes mostra suas coisas
em fluxo contínuo.” (BENJAMIN, 2009, p. 240)
O deslocamento de Alair é sempre orientado por espaços frequentados por rapazes, ele mesmo confessa buscar parques ou praças
esportivas justamente para aumentar suas chances de encontrar jovens
rapazes: “Lone morning walk towards the Parco Querino. I follow a
roundabout way, to see more of the city, and increase my chances of
coming across some open sports field, with young Vicentines showing
their pilose thighs at their Sunday morning football or some other
game.” (GOMES, 1983-1991, p. 141-142). Ou seja, Alair não esperava
simplesmente o acaso operar em seu favor, havia um esforço do fotógrafo para encontrar os rapazes e seu olhar aguçado aproveitava qualquer oportunidade ou lugar para cultivar seu desejo.
Novamente Benjamin observa que o verdadeiro colecionador é
aquele que insere o objeto específico em um círculo pessoal de sentidos,
o que não significa alienação, pelo contrário, cada objeto da coleção
está diretamente ligado à rememoração de sua história. Nesse sentido,
é sintomático que Alair Gomes tenha se dedicado com afinco em visitar
museus e coleções:
Living in Brazil, I would every two years make the pilgrimage
from Rio de Janeiro to São Paulo, and stay there for several
days for examination and fruition of the exhibits of modern art
in the Biennale of the latter city, in its good times, rivaled its
Venetian counterpart. I have also already meticulously visited
every art corner in New York’s Soho and other neighborhoods.
(GOMES, 1983, p.2)
Frequentar acervos do Brasil e de outros países sublinha o caráter colecionador de Alair Gomes, ao explorar outros acervos ele passou
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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a conhecer distintas formas de coletâneas e adquiriu percepções sobre
outras coleções.
É nessa ânsia de um colecionador de imagens que a mirada vigilante de Alair também operava entre salas e corredores dos museus,
capturando com sua câmera os visitantes que o atraiam. Essas fotos
unem dois elementos caros ao artista: o homem jovem e as obras de
arte. Temas que jamais passaram despercebidos pelas lentes de sua câmera. Alair registra momentos de jovens contemplando objetos artísticos ou apenas transitando pelos espaços museográficos. Estabelecendo
um jogo complexo entre seus modelos, ora sequestrando cenas sem autorização dos fotografados, ora conseguindo que posassem para suas
lentes. Gomes conseguiu captar gestos espontâneos, poses sinuosas de
jovens que encaravam quadros e esculturas.
Um desses momentos pode ser observado em sua passagem por
Paris. Alair Gomes visita o Musée de l’Orangerie e fotografa um grupo
pequeno de rapazes na sala do museu (figura 1). A sequência ilustra
bem a capacidade que ele tinha de estabelecer alguma interação com
seus modelos. Registrando seis momentos desse encontro, o observador
é convidado a conhecer os modelos progressivamente. Embora não se
tenha encontrado alguma indicação da ordem das fotografias e a organização apresentada aqui seja da escolha da autora, as capturas parecem
seguir um breve enredo.
As três primeiras imagens indicam que o fotógrafo avistou o
pequeno grupo e, com certa hesitação, os fotografa discretamente (figuras 1.a, b e c). São registros distantes, quase tímidos. Na primeira cena
(figura 1.a) há dois rapazes no banco do museu. Em seguida, (figura 1.b
e c) um terceiro personagem se reúne ao grupo, mas evita se juntar aos
outros no banco, permanecendo em pé. Possivelmente, até esse ponto,
Alair não tenha recebido nenhum sinal de recusa da parte dos modelos
e na quarta foto (figura 1.d) ele se aproxima do grupo. O trio também
se movimenta. Dois deles se colocam de pé e o terceiro se agacha. Alair
parece ter feito o mesmo gesto, pois o ângulo do registro também se
modificou. Agora a câmera, próxima ao solo, mira levemente para o
alto. Gomes já conquistou um cúmplice, o rapaz em pé no canto esquerdo, é atraído pela lente e cruza seu olhar com o de Alair.
A quinta composição (figura 1.e) é um recorte do registro ante50
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
rior. No canto direito da cena continuam o rapaz do primeiro plano e no
segundo plano, o jovem agachado. Comparando com a foto antecedente
(figura 1.d), os dois modelos modificaram apenas alguns gestos: a direção do olhar do jovem em pé e as mãos que repousam sobre os sapatos
do rapaz que se agachou. Na sexta cena (figura 1.f), um dos rapazes está
sentado sozinho. Ele inclina o tronco para frente e sustenta a cabeça
com as duas mãos. O olhar distante do modelo confere ao retrato introspecção e melancolia. Inevitavelmente, a postura rememora a célebre
escultura de Rodin, O Pensador37 e, também a figura da Melancolia de
Dürer38. O sétimo registro (figura 1.g) é o triunfo do fotógrafo. A lente
se acerca dos três rapazes. Agora todos de volta ao banco da sala, posam
mirando para Alair, legitimando a presença invisível do fotógrafo. Em
destaque, há ainda a expografia do museu que rememora um palco. O
formato oval da sala remete uma arquitetura teatral. A luminosidade
que surge de cima se assemelha aos holofotes utilizados em espetáculos
de dramaturgia e, para completar, as obras de Monet ao fundo figuram como peças de um cenário. Todos esses elementos, somando-se
a ausência de outros visitantes na sala, reforçam a impressão de uma
orquestração operada pelo fotógrafo sobre os garotos.
É curioso notar que nas fotos do l’Orangerie Alair deixou o objeto artístico como segundo plano e quem protagoniza as cenas são os
rapazes. Tal exercício lembra uma frase do célebre pensador francês:
“Confesso que sou incapaz de me interessar pela beleza de um lugar
se ali não houver pessoas (não gosto de museus vazios)” (BARTHES,
2004, p. 53). A afirmação de Roland Barthes publicada em uma revista
francesa, em 1978, se coaduna ao olhar do fotógrafo carioca, onde o
componente principal de suas fotos é a presença humana, em especial
nos registros de suas viagens. As salas dos museus nunca estão vazias,
salvo alguns momentos em o tema da foto é exclusivamente o objeto
artístico. O mesmo destaque também se projeta no diário de viagem de
37 RODIN, Auguste. The Thinker, 1902-04, escultura. Acervo: Musée Rodin, Paris. Disponível em: https://www.wga.hu/cgi-bin/highlight.cgi?file=html/r/rodin/1gates/2thinke1.html&find=thinker
38 DÜRER, Albrecht. Melencolia I, 1514. Gravura, 239 x 189 mm. Acervo: Kupferstichkabinett, Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe. Disponível em: https://www.wga.hu/cgi-bin/highlight.
cgi?file=html/d/durer/2/13/4/079.html&find=melancholy
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Alair. Em sua estadia por Paris o fotógrafo caminha pelas salas de outro
museu, desta vez o Louvre, ele avista dois rapazes que chamam sua
atenção pelo comportamento e os corpos que possuíam:
Quelles cuisses dont je viens de prendre quelques photos! Souvent je les vois encore plus dorées dans la plage à Rio – but this
is gold enough for flesh in the Louvre. The boy displaying them
talks with another – they speak English, are obviously from the
other side of the Atlantic. The way they evince their entrancement with each other makes me guess they’ve just striken their
acquaintance – avowed gays or still under disguise? Anyway,
they seem to have enjoyed my photographing. The gym socks
of the one with bare thighs have been half-swalled by his sneakers”. (GOMES, 1983-1991, p. 71)
O trecho acima faz referência de uma fotografia que exibe as coxas dos rapazes, infelizmente esse registro não foi encontrado no acervo da Biblioteca Nacional, mas existem outras fotografias que se assemelham ao relato. É o caso da imagem que retrata um rapaz observando
a obra de Giovanni Boncosiglio detto Marescalco (1465-1535), figura
2. Compianto su Cristo morto (1490-1495) é uma obra que pertence
ao acervo do Museu Civico em Vicenza, na Itália. Na foto o rapaz se
posiciona diante da obra, ocultando seu rosto. Os braços estão cruzados por de trás do corpo e ele segura na mão direita um pequeno livro.
O modelo veste uma camisa de manga longa, shorts, tênis e meias. A
pequena bermuda garante a exibição das pernas do rapaz, detalhe que
dificilmente passaria despercebido por um observador tão atento como
Alair. Embora o jovem não tenha um parceiro, como no caso da narrativa do Louvre, a foto exibe a mesma região do corpo que Alair destacou
no seu relato, as coxas nuas.
Voltando ao trecho do museu francês, Alair apresenta um ponto
relevante quando nota a ausência de discrição dos garotos ao demonstrarem afetuosidade um pelo outro, indicando a relação amorosa entre
eles. Tal liberdade sexual parece ter sido o motivo pelo qual os rapazes
tenham consentido que Alair os fotografasse. Ele até percebe um certo
prazer dos garotos ao posarem para ele: “they seem to have enjoyed my
photographing” (GOMES, 1983-1991, p. 71), o que sugere uma relação
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
de reciprocidade entre fotógrafo e fotografados. Sobre a fotografia do
museu italiano, faltam as impressões textuais que provavelmente forneceriam mais informações comportamentais do modelo, como Alair
o fez ao descrever os rapazes do Louvre. Infelizmente, sobre a foto de
Vicenza, em razão do texto não apresentar seus detalhes, a interface
entre fotógrafo e modelo se silencia e ficamos sem conhecer a enredo
dessa relação.
A narrativa dos garotos no Louvre remete ao trabalho de outro
fotógrafo carioca. A partir de 1964, durante trinta e nove anos, Alécio de
Andrade (1938- 2003) registrou os visitantes do mesmo museu. O fotógrafo que morou em Paris, produziu um conjunto de 12 mil imagens.
Ele capturou flagrantes que destacam a relação dos visitantes com o
acervo do museu. A diversidade desse trabalho possui cenas divertidas,
outras poéticas e até mesmo teatrais. Esse grande conjunto fotográfico
de Alécio revela as apropriações que o público fez do espaço museográfico. O mundo masculino também figura nesses registros, é o caso da
fotografia de dois rapazes que olham para o quadro feito por Leonardo
da Vinci (figura 3). Diante do retrato feminino, os visitantes vestem
shorts curtos, camisetas e tênis com meias. As pernas estão expostas.
Eles possuem as mesmas posturas estáticas, o peso dos corpos recai em
uma das pernas. Essas características recordam tanto a descrição textual
de Alair no Louvre, quanto a sua foto do jovem no museu de Vicenza.
Outro ponto em comum entre as fotos de Alair e de Alécio, é a concentração que os modelos dedicam ao objeto artístico. Na imagem de
Alécio ainda se percebe, mesmo que de maneira sútil, a interação entre
os corpos masculinos no ponto em que as mãos da dupla se encontram e
se tocam levemente. A fotógrafa e crítica de arte, Stefania Bril, escreveu
em 1981 um texto analisando esse trabalho de Alécio de Andrade. Bril
escreve: “A impressão é de um palco onde os atores representam sem
jamais se repetir nem corrigir a sua atuação. Que peça mais fascinante!”
(BRIL, 1981, p. 18). Embora o comentário de Bril seja sobre a obra de
Andrade, ele também poderia ser remetido aos registros do l’Orangerie
de Gomes. Tanto Alécio como Alair atuam como diretores de esquetes
teatrais, manipulam ângulos e luminosidade, operam a máquina fotográfica como diretores de seus atores-modelos, desvelando um universo
sensível que só existe a partir do contato com a obra de arte.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Anos antes das imagens realizadas na Europa, Alair visitou os
Estados Unidos. Essa viagem também foi registrada pelas suas lentes
produzindo outro conjunto de fotografias, a série Glimpses of America.
O hábito de visitar museus e galerias já existia e os seus visitantes não
escaparam de seu olhar atento. Mais uma vez, Gomes aproveitou os
momentos em que o público se concentrava nas obras e seu modo de
atuar já se dava como ocorreu no território europeu: a máquina fotográfica operava como armadilha, roubando cenas, compondo flagrantes,
manifestando nuances da relação dos rapazes com as coleções. Tratando-se dessa temática, duas fotos se destacam. Dessa vez o cenário é
o Museu de Arte Moderna de Nova York (figura 4). Os protagonistas
circulam pelas salas com seus corpos menos expostos, pois estão mais
cobertos pelas roupas de inverno. Seus olhares se desviam das obras de
Henri Rousseau e Robert Delaunay. Este último olha para a janela, mira
as árvores despidas de folhagens no jardim do museu. Já sobre o rapaz
próximo ao quadro de Rousseau, pouco se pode supor sobre o motivo
de seu olhar ter abandonado a tela. As duas composições retratam a
introspecção dos rapazes. Apesar de estarem em um ambiente público,
as fotografias capturam um momento intimista, conferindo um caráter
invasivo da lente fotográfica. As cenas reforçam o interesse de Alair
que se rende mais ao visitante do que a peça artística em si, mesmo em
momentos como esse em que um frequentador distraído do museu deixa de contemplar o objeto artístico.
Retomando a série realizada na Europa, encontramos momentos
em que Alair conseguiu alinhar o registro da obra de arte com a mirada
dos jovens visitantes. A fotografia do gaulês moribundo é um desses
momentos extraordinários (figura 5). A imagem registra ao mesmo tempo o dorso da escultura e um jovem observador. Novamente recorremos
ao texto de Alair que traz a descrição desse encontro:
Standing just to his front, altogether absorbed in his figure, a
youth of delicate aspect – what and comely face - just for a
moment I could see it, as he raised it, and turned his electric,
but sweetly dazzled eyes from the dying man certainly from his
eyes-catching genitals, which I know well, but do not yet see,
to my camera – which I’d too promptly turned to him – but he
instantly parted - just as if he’d been caught in a grave, double
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
delict: closely gazing in fascination at a man’s dick and balls,
and for a split second acknowledging the obvious erotic interest
of another man for him - and had thus to flee the place and the
occasion of his flagrant faults – I had no time even for another
click at him - anyhow, there was also unquestionable sympathy
in his enquiring but fully informed glance at the one he had
attracted. (GOMES, 1983-1991, p. 388-389)
Se nas fotos dos rapazes do MoMA, citadas anteriormente, o flagrante de um momento introspectivo dos modelos indicava um aspecto
voyeurístico, no trecho acima é o próprio Alair quem informa que sua
prática fotográfica testemunhou uma cena que não deveria ser vista. Ao
dizer que o garoto foi flagrado cometendo um duplo delito, primeiro por
ter olhado para o sexo da escultura, depois por reconhecer o interesse
erótico de outro homem por ele, que no caso era Alair. O caráter invasivo da lente se concretiza e Alair nos torna cúmplices de seu olhar sagaz.
A cena do gaulês moribundo lembra a composição realizada
pelo fotógrafo franco-estadunidense Elliott Erwitt. Na fotografia do
museu grego (figura 6) quem encara a lente fotográfica é um homem
mais velho. Vestindo um traje religioso, o personagem se apresenta no
segundo plano, exatamente entre as pernas da escultura. O observador
tem a visão da traseira da estátua que funciona como uma moldura ao
retrato do religioso, dando um tom bem-humorado à cena. Lembrando o relato de Alair no qual o garoto do museu romano examinava as
partes erógenas da figura masculina, somos contaminados com essa informação e passa a ser inevitável não fazer suposições sobre a direção
do olhar desse homem diante da nudez da escultura masculina. A justaposição de universos tradicionalmente conflitantes: a austeridade da
religião versus a voluptuosidade de um corpo masculino nu, são contrastes que ocupam o mesmo espaço reforçando o caráter, no mínimo,
divertido da fotografia.
Todas essas cenas revelam um universo onde arte e vida, invenção sublime e a existência mais trivial, misturam-se indissociavelmente. Um aspecto importante é o modo pelo qual esses artistas exploram
o tema que se diferencia de um registro simplesmente documental. Isso
se percebe se compararmos com trabalhos fotojornalísticos por exemplo. As imagens feitas por Luiz Carlos Barreto, publicadas na revista
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O Cruzeiro, em 1953 (figura 7), fizeram parte de uma reportagem sobre obras do Museu de Arte de São Paulo expostas em Paris no museu
l’Orangerie. O texto acompanha um conjunto de fotografias de personalidades que visitavam a mostra. Barreto utilizou ângulos que privilegiavam tanto as celebridades, quanto boa parte da dimensão das telas,
assim eram identificados obras e visitantes. Além de revelarem os perfis
desse grupo seleto, as fotos também traziam legendas que reforçavam
a identificação: como o casal Bardi, funcionários do alto escalão do
museu e André Marie (ministro da educação da França). Sem desconsiderar que o objetivo do trabalho de Barreto era de o fornecer informação para um veículo de comunicação em massa, se observa que as
composições seguem os modos de um tradicional ensaio fotográfico: os
modelos posam, as posturas são previsíveis, evita-se qualquer sugestão
de espontaneidade e surpresa. A cena ensaiada é carregada de aspectos
formais, sem espaço para a ambiguidades ou humor.
De fato, Alair possuia objetivos distintos de Barreto, mas ele explorou o mesmo tema criando composições muito diversas das fotos do
Cruzeiro. Muitas das capturas de Alair contam com o desconhecimento
do modelo sobre sua ação fotográfica. Utilizando elementos que causam surpresa e ambiguidades, de alguma forma, suas fotos são capazes
de revelar uma certa intimidade que existe no olhar de quem caminha
pelos corredores de um museu.
O jogo entre modelo e fotógrafo ganha outra perspectiva no trabalho da francesa Sophie Calle. A artista manipulou a ideia do fotógrafo
que aproveita oportunidades e rouba cenas em salas de museus. Em sua
obra de 1981, The Shadow (Detective), um detetive particular segue a
própria artista e registra seus passos por um dia inteiro. No conjunto de
imagens produzidas por essa perseguição, uma das fotos retrata Calle
na sala do Louvre. Ela está diante do quadro de Ticiano39. O observador
a enxerga de longe, talvez estivesse de braços cruzados, tampouco é
possível afirmar muito sobre a direção do olhar da artista, pois o ângulo
da foto oculta seu rosto. O distanciamento da cena corrobora o clima de
espionagem. Ao trocar de lugar com o fotógrafo, se transformando em
39 CALLE, Sophie. La filature (The Shadow) 1981. KRAUSS, Rosalind. Two Moments from
the Post-Medium Condition. October, vol. 116, The MIT Press, 2006, p. 61. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/40368424.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
modelo, Sophie Calle engendrou uma espécie de caça entre gato e rato.
Ela subverteu o papel do fotógrafo, passando a ser o objeto de desejo e
não mais aquela que deseja.
Já a fotógrafa Louise Lawler pouco privilegia os frequentadores
do museu, mas também deixa de destacar o objeto artístico. Na fotografia do Metropolitan Museum of Art de Nova York (figura 8), a escultura
de Canova é deslocada do centro da fotografia, ocupando o canto direito
da imagem. O enquadramento segmenta a figura de Perseu, vemos o
corpo da cintura para baixo, garantindo a exibição do sexo masculino.
Ao fundo, a escadaria do museu é habitada por alguns indivíduos que
se direcionam para a sala de obras europeias. Esses visitantes se apresentam tão pequeninos que se parecem mais com bonecos utilizados em
maquetes arquitetônicas. Tal distanciamento reforça a fantasia de que
o segundo plano da fotografia funcione mais como um cenário do que
como uma estrutura real. Enquanto na foto de Sophie Calle, adquirimos
a posição do detetive, agora Lawler nos colocou na posição de quem
deu o clique, somos mais que cúmplices desse sofisticado jogo de perspectivas. O efeito criado transforma o observador no próprio visitante
do museu.
Se ao se dedicar ao tema dos frequentadores de museus, a fotografia é capaz de manipular a posição do observador, talvez o cinema
tenha conseguido ir além, desdobrando ainda mais esse jogo de arranjos
entre o artista e aquele que observa a cena. Alfred Hitchcock explorou
com maestria o fascínio íntimo que existe entre o autor, aquele que registra, e o observador. Em Vertigo (Um corpo que cai), filme de 1958,
Hitchcock ofereceu ao espectador um lugar especial para participar de
uma cena tão exclusiva. Em determinado momento da trama o detetive
Scottie, protagonizado por Jimmy Stewart, persegue Madeleine, que é
interpretada por Kim Novak. A situação inicia quando Madeleine entra
num museu. O detetive a observa de longe, ela está sentada contemplando um quadro. Nesse ponto, Hitchcock cria uma espécie de espelho
multiplicado: primeiro espionamos Scottie, que por sua vez olha para
Madeleine. Em seguida, a câmera se aproxima e o espectador ganha a
mesma visão do detetive que agora passa a observar Madeleine diretamente. Nesse momento, somos os olhos de Scottie, somos tão voyeurs
quanto ele. Observamos em primeira mão a visitante solitária na sala
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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que se apresenta em tal grau de hipnose pelo quadro que observa que
nem percebe que a espionamos.
O esquema orquestrado pelo cineasta trata de um aspecto minucioso entre ver e ser observado, mas também entre a obra e o observador. Há algo enigmático que se desvela. É preciso lembrar que Scottie
se apaixona por Madeleine. O enredo depois nos revela que se trata de
um amor impossível. A cena de Hitchcock apresenta o museu como o
lugar do amor inalcançável, dos desejos sorrateiros e de uma sexualidade reprimida. Se pensarmos nos rapazes dos museus fotografados por
Alair Gomes, há também ali paixões sutilmente escondidas sob o verniz
do amor pela alta cultura. Suas cenas de museus evocam uma estranha
combinação entre tensão erótica e um desejo inatingível.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As obras apresentadas neste artigo permeiam a interação entre
o observador e a obra de arte. O que existe nessa relação? Um texto
de Jorge Coli sobre a importância do silêncio na história da arte nos
auxilia a pensar sobre o assunto. Em determinado ponto de seu ensaio
ele reflete sobre o silêncio entre o público do museu e o contato com
a peça artística: “A solidão no museu é carregada de uma sensação de
privilégio, já que nós não estamos com a multidão e que podemos entrar
em interstícios que nos levam para além das aparências das obras, por
meio de uma sintonia muito fina. É o silêncio que isola diante da obra.”
(COLI, 2014).
Contudo se o silêncio é capaz de sintonizar o observador com a
obra, para Georges Bataille os acervos dos museus constituem a ligação
com um universo que já não existe mais. Ao refletir sobre o tema, ele
diz que as obras são objetos mortos e é a relação com público que as
reaviva:
Un musée est comme le poumon d’une grande ville : la foule
afflue chaque dimanche dans le musée comme le sang été elle
en ressort purifiée et fraîche. Les tableaux ne sont que des surfaces mortes et c’est dans la foule que se produisent les jeux,
les éclats, les ruissellements de lumière décrits techniquement
par les critiques autorisés. Les dimanches, à cinq heures, à la
porte de sortie de Louvre, el est intéressant d’admirer le flot des
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visiteurs visiblement animés du désir d’être en tout semblables
aux célestes apparitions dont leurs yeux sont encore ravis. (BATAILLE, 1970, p. 239)
As fotos dos rapazes nos museus realizadas por Alair Gomes
apresentam a sensibilidade dos pontos tocados por Coli e Bataille. Percebemos nelas que o visitante confere uma outra perspectiva para as
‘coleções mortas’, como Bataille diz. E de certa forma, a fotografia
e até o cinema foram atraídos pelo silêncio potencializador existente
nessa relação.
Tanto o diário como as fotos das viagens de Alair permitem
acompanharmos seus percursos por entre salas e corredores dos museus. Registrando seu fascínio pelo corpo do homem, ele constrói uma
certa cartografia do universo masculino. Essas capturas funcionam
como o espelho multiplicado de Alfred Hitchcock. E ainda, se pensarmos que as cenas foram forjadas pelo olhar daquele que deu o clique,
esses instantes significam mais do que um simples retrato do momento,
tratam também de algo sobre o fotógrafo. Lembrando que Alair Gomes
também é um visitante, essa perambulação pelos museus traduzem uma
espécie de pacto mútuo entre a obra e observador. Esse outro corpo
que olha traduz descobertas sobre um objeto de admiração. Os registros
dos visitantes são capazes de apresentar desejos e afeições do próprio
fotógrafo. E é por detrás dessa visibilidade que se libera uma poética
fotográfica abandonada ao êxtase, um eco no imaginário de seu criador,
o fotógrafo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BATAILLE, Georges. Œuvres complètes, Premiers Écrits, 1922-1940, tome I.
Paris: Gallimard, 1970.
BENJAMIN, Walter. O colecionador. In: Passagens. Belo Horizonte; São
Paulo: Editora UFMG; IMESP, 2009.
_____. Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador.
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In: ______. Obras escolhidas: a rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,
1987, v. 2.
BRIL, Stefania. Paris marota e alegre nas fotos de Alécio de Andrade. O Estado de São Paulo. São Paulo, 20 nov. 1981.
COLI, Jorge. A Inteligência do Silêncio. In: NOVAES, Adauto (org.). Mutações: O Silêncio e a prosa do mundo, 2014. Disponível em: https://artepensamento.com.br/item/a-inteligencia-do-silencio/?_sf_s=intelig%C3%AAncia+do+sil%C3%AAncio. Acesso em: 06 abr. 2020.
DEUTSCHE, Rosalyn. Louise Lawler’s Rude Museum. Disponível em: http://
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GOMES, Alair. A new sentimental journey. Coautoria de Miguel Rio Branco.
São Paulo, SP: CosacNaify, 2009.
_____. Introduction, fev. 1983, p. 2. Manuscrito de 4 páginas, datilografado,
com inscrição a lápis na primeira página: “not published”. Acervo Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
_____. A New Sentimental Journey, 1983-1991 (texto inédito). Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
KRAUSS, Rosalind. Two Moments from the Post-Medium Condition. October, vol. 116, The MIT Press, 2006. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/40368424 Acesso em: 13 mar. 2021
PITOL, André Luis Castilho. Ask me to send these photos to you: a produção artística de Alair Gomes no circuito norte-americano. 2016. Dissertação
(Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-15032017-151252/pt-br.
php. Acesso em: 10 jan. 2021
TRUFFAUT, François. Hitchcock Truffaut: entrevistas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.
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Imagens:
Figura 1: GOMES, Alair. Série Viagens. Fotografias s/d., sem título. Fotos realizadas no
Musée de l’Orangerie, Paris. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Figura 2: GOMES, Alair. Série Viagens. Fotografia s/d., sem título. Foto realizada no Musei
Civici - Palazzo Chiericati, Vicenza, Itália. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
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Figura 3: ANDRADE, Alécio de. Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519), dito Leonardo
da Vinci, Retrato de mulher, dito A Bela Ferreira, c.1495-1500. Museu do Louvre, Paris, 1990
ADAGP, Paris. Fonte: http://aleciodeandrade.com/en/le-louvre-et-ses-visiteurs-en/
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Figura 4: GOMES, Alair. Newyorkness - XIX. Fragmentos da série Glimpses of America: a
sentimental Journey (1975-76), EUA. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 5: GOMES, Alair. Fotografia da série Viagens, s/d. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio
de Janeiro.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 6: ERWITT, Elliott. Greece, 1963. Acervo: Magnum Photos. Fonte: https://www.
magnumphotos.com/arts-culture/art/elliott-erwitt-the-art-of-looking-at-art/
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Figura 7: Fotografias de Luiz Carlos Barreto. O maior sucesso da “grande saison”: o Museu
de Arte de Arte de São Paulo expõe em Paris. O Cruzeiro, 7 nov.1953, p. 94-97. Fonte: http://
memoria.bn.br/DocReader/003581/83756
Figura 8: LAWLER, Louise. Statue before Painting, Perseus with the Head of Medusa by
Canova, 1982.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
POR UMA HISTÓRIA DA ARTE SINESTÉSICA:
AS REIVINDICAÇÕES POÉTICAS DA
SELEÇÃO DE OBRAS PARA A OFICINA
DE PERCEPÇÃO AUDITIVA-VISUAL
Ana Beatriz Acioli Mendes40 – anaacioli55@gmail.com
Resumo: Esta comunicação analisa as cinco obras de arte escolhidas
para o desenvolvimento da terceira e última atividade do projeto “Oficina de Sinestesia: Percepção Auditiva-Visual”. O presente trabalho
pretende discutir a seleção de pinturas dentro do recorte temporal do
século XIX até os dias atuais que se restringe a artistas que chegaram
a mencionar no decorrer de sua carreira a sinestesia ou tópicos associados à temática. Temos como maior objetivo possibilitar reflexões e
concepções introdutórias aos assuntos que permeiam arte, sinestesia e
multissensorialidade diante das práticas de aprendizagem com base nas
linguagens artísticas que fomentam o protagonismo do participante.
Com a criação de oficinas dialógicas, desejamos estabelecer uma relação com objetos artísticos de forma horizontal e lúdica, gerando trocas
de saberes e observações múltiplas as questões estéticas e de gosto.
Nosso olhar para esta pesquisa é ressaltar a sinestesia no âmbito das
artes, principalmente das artes plásticas, quando recorremos a condição
como recurso de manifestação ou quando o público a experimenta de
tal forma. É inegável a união de sensações e de comunicação que podem ser feitas com a aproximação sinestésica na arte, sendo até mesmo,
busca as fusões de dois ou mais sentidos da mesma maneira de uma linguagem artística. Entramos em contato com a obra de arte em perspectiva da sinestesia no campo artístico ao escolher apenas uma obra para
fazermos uma releitura. O ato de reler uma obra e criar outra, pautando
em novas conexões, mostrar aos participantes como sentimos as artes.
40 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação intitulada “Ver o som:
Oficinas de Sinestesia para Exercitar Percepções Auditivas-Visuais”, orientada pela Profa. Dra.
Tania Cremonini de Araújo-Jorge, desenvolvida no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz na Fundação Oswaldo Cruz. A pesquisa conta
com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Palavras-chave: Sinestesia. Sentidos. Oficinas. Percepção.
Abstract: This communication analyzes the five works of art chosen for
the development of the third and last activity of the project “Workshop
of Synesthesia: Auditory-Visual Perception”. The present work intends
to discuss the selection of paintings within the temporal cutout of the
nineteenth century until the present day that is restricted to artists who
came to mention in the course of their career the synesthesia or topics
associated with the theme. We have as our main objective, to enable reflections and introductory conceptions to the subjects that permeate art,
synesthesia and multisensitivity in the face of learning practices based
on the artistic languages that foster the protagonism of the participant.
With the creation of dialogic workshops, we want to establish a relationship with artistic objects in a horizontal and playful way, generating
exchanges of knowledge and multiple observations of aesthetic and taste issues. Our look at this research is to highlight the synesthesia in the
field of the arts, especially the plastic arts, when we use the condition
as a manifestation resource or when the public experiences it in such a
way. It is undeniable the union of sensations and communication that
can be made with the synesthetic approach in art, being even, seeks the
fusions of two or more senses in the same way of an artistic language.
We come into contact with the work of art in the perspective of synesthesia in the artistic field by choosing only one work to do a rereading.
The act of rereading one work and creating another, based on new connections, shows the participants how we feel about the arts.
Keywords: Synesthesia; Senses; Workshops; Perception.
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta um segmento da pesquisa de iniciação
científica desenvolvida e apoiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico no Laboratório de Inovações em Terapias,
Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz na Fundação Oswaldo Cruz (PIBIC/CNPq/LITEB/IOC/FIOCRUZ). Titulada “Ver o som:
Oficinas de Sinestesia para Exercitar Percepções Auditivas-Visuais”,
a pesquisa, ainda em andamento, vem estudando a condição chamada
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
sinestesia dentro de sua literatura médica e artística sem esquecer sua
relevância na parte do estudo em artes e fruição de obras de artes.
Para introduzir nossa discussão, compreendemos a sinestesia
como neurológica, artística e desenvolvimental (CYTOWIC, 1989) ou
constitutiva (BARON-COHEN, 1996). Ao adotarmos a explicação que
existem inúmeras categorias diante do nosso assunto central, entendemos a sinestesia como um fenômeno-neurológico, na qual sua origem
parte da percepção sinestésica das conexões e funções cerebrais do indivíduo, mas também distinguindo de metáforas e recursos linguísticos,
ou até mesmo, como consequência do uso de drogas psicoativas (COSTA, 2018, p. 20). Isto é:
A ligação cruzada entre os diversos sentidos da percepção humana está reunida no leque de sentidos da palavra sinestesia.
No sentido estrito, a sinestesia é uma síndrome neurológica rara
em que o estímulo de um sistema sensório-cognitivo é acompanhado de outra percepção automática e involuntária de um
segundo mecanismo sensório-cognitivo (SOUZA, 2016, p. 18).
Desse jeito, o olfato, o tato, a audição, o paladar e a visão fazem
parte das manifestações artísticas, uns com mais frequência do que outros. Em nosso caso de estudo priorizamos a visão e a audição, interpretando-os suas ligações diretamente ao cérebro, já os demais sentidos,
são entendidos como participantes de “uma classificação corpórea, sendo estimulados por atributos físicos, com conexões mais indiretas, em
comparação à visão e à audição. Todavia, ainda são capazes de fornecer
o contato com o cérebro, ao criar pensamento ou ‘quase-pensamento’”
(SILVA, 2021, p. 17). Mas, quando estamos nos referindo a uma oficina
de sinestesia, mesmo que indiquemos uma relação entre dois sentidos
específicos, sabemos que estas relações só serão existentes a partir do
que for desencadeado. Por isso, convidamos os participantes a aguçarem a visão e a audição sem negar os outros três.
Outro ponto é que, ao ressaltar a sinestesia no âmbito das artes quando recorremos à condição como recurso de manifestação ou
quando há a experiência do público e/ou artista, estamos afirmando o
valor da condição como, segundo o artista e pesquisador de sinestesia,
Dr. Hugo Heyrman, “sem uma forma sinestésica de ver o mundo, não
haveria arte” (2005, n.p.). Desse jeito, “é o resultado de uma intenção
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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artística (uma forma de sinestesia feita pelo homem)” que está ligada a
imagem, movimentação, cor e recursos poéticos e metafóricos (2005,
n.p.).
Temos por base o estudo de mestrado da pesquisadora Carla Patrícia Magalhães Presa, que nos informa que “a sinestesia é uma condição neurológica na qual o estímulo de um determinado sentido provoca
uma percepção automática noutro sentido diferente” (PRESA, 2008,
p. 12). Isto quer dizer que apontamos a existência de correspondência entre os modais sensório-cognitivo em teorias da literatura sobre
a condição, tais como são citados por Laise Silva (2021, pp. 21-22):
Teoria da Conectividade Neural Preservada (MAURER, 1997) e Teoria
do Cruzamento das modalidades perceptivas (cruzamento cross-modal)
(MARKS, 1994). Isso implica, no que diz respeito a origem e graus de
intensidade, que a própria pode ser compreendida por diferentes tipos.
Do nível mais baixo ao mais alto, devemos ter em mente que, mesmo
que estejamos estudando a sinestesia em seus estágios, a condição neurológica pode ser tanto desenvolvida em seus primeiros dias de vida
como pode ser adquirida por lesões e gatilhos artísticos - este último é
destaque em nossa pesquisa.
Trazendo para um lado mais da metáfora e da associação, “existe também a pseudo-sinestesia que é adquirida pela cultura, hábitos sociais e pela memória ao longo da vida” (BARON-COHEN & HARRISON, 1997; BASBAUM, 1999 apud. SILVA, 2021, p. 20). A sensação
associativa é absorvida como se fosse uma tradução de signos (COSTA,
2018, p. 20). Por isso, a partir da literatura sobre o assunto, temos dois
lados: um que é realmente a condição e outro que é mais metafórico do
que “verídico” em níveis físicos e neurológicos. Não podemos esquecer
que “a sinestesia na arte resulta em uma forma de comunicação, em um
ambiente de múltiplas opções” (COSTA, 2018, p. 11) não sendo um
fenômeno homogêneo e padronizado.
A partir das explicações diante a sinestesia, a proposta inicial da
pesquisa prática apresenta uma “Oficina de Percepção Auditiva-Visual”
cuja atividades ressaltam a discussão e pontos vinculados ao estudo,
como cores, sons e imagens, enfatizando assim a sinestesia artística.
Mas o enfoque que iremos trazer no decorrer do texto se dará sobre
a terceira atividade da oficina, ao trabalhar as ações e interpretações
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
diante de cinco obras de arte que foram escolhidas. Desse modo, a relevância diante das releituras é entendida como práticas de ensino-aprendizagem sobre a História da Arte e principalmente, sobre a Sinestesia.
1.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
Além de todo o aspecto teórico, o projeto se expandiu de forma
empírica, já que era necessário uma prática para estabelecer relações
sinestésicas - o que ocorrem quando entramos em contato com algo até desenvolver oficinas dialógicas que pudessem de alguma forma evidenciar essas vivências e todo o referencial bibliográfico por trás dele.
Uma oficina, principalmente dialógica, coloca em evidência a ação e a
conversação articulando teoria e prática. Concordamos com as professoras Neires Maria Soldatelli Paviani e Niura Maria Fontana, que nos
informam que a oficina “atende, basicamente, a duas finalidades: (a)
articulação de conceitos, pressupostos e noções com ações concretas,
vivenciadas pelo participante ou aprendiz; e (b) vivência e execução de
tarefas em equipe, isto é, apropriação ou construção coletiva de saberes” (2009, p. 78).
Sendo assim, nossa proposta é apresentar o que é a sinestesia e
como ela se desdobra no campo artístico e, para fixarmos essas questões além de exemplos, convidamos os participantes a trazerem suas
vivências e que cada um possa desenvolver algo que esteja relacionado
a troca de sentidos. Pensando em pessoas e não em objetos científicos,
a oficina quer humanizar esse estudo e propor reflexões, sendo o participante, promotor da sua própria aprendizagem. Classificamos nossa
metodologia como ativa, pois “está centrada na aprendizagem, o que
significa uma hegemonia do aluno sobre o professor, dispensando, de
certa forma, o mesmo. O aluno seria um auto aprendiz.” (ARAÚJO,
2015, n.p.).
Pretende-se trazer à tona uma parte dessa oficina que trata da
seleção de pinturas dentro do recorte temporal do século XIX até os
dias atuais, e que se constitui na atividade 3 da “Oficina de Percepção
Auditiva-Visual”. Chamada de Releitura, a atividade com o cunho de
“faça você mesmo” convida os participantes a aguçarem e trazerem
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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suas interpretações diante do que foi selecionado para a amostra. São
imersões em 10 obras de arte que discutem aspectos importantes para a
História da Arte e para a produção de arte pautada na sinestesia.
As investigações se darão no espectro do ensino sobre arte, tais
como as metodologias Pesquisa Baseada em Artes e a Proposta Triangular, sendo a produção de oficinas dialógico-pedagógicas como o principal fator. Temos com isso o principal objetivo de explorar o potencial
das artes, especialmente as artes plásticas e música, como forma de
ensino-aprendizagem não-formal e de conceber e elaborar oficinas de
sinestesia trazendo a prática de releitura nas metodologias de arte-educação.
Quanto à Art Based Research, a ABR, que em português é traduzida por alguns pesquisadores como Pesquisa Baseada em Artes, trata-se de um processo no fazer artístico como forma de saber, pensando
em novas possibilidades dentro da pesquisa científica com intuições,
emoções e experimentações. Salientando a materialização e a mentalização desses processos quando estudamos o decorrer de suas feituras,
o objeto finalizado é importante, mas nos debruçamos mais ainda em
como foi feito e por quê. Desse jeito, a pesquisa está relacionada à criação artística.
[...] A partir dessa perspectiva o pesquisador tem a possibilidade de construir o conhecimento ao interagir com o material
artístico. Dessa maneira o conhecimento se constrói a partir do
fazer artístico.
No desenvolvimento da prática artística, surgem questionamentos possíveis em torno de outras possibilidades para registrar os
dados de pesquisa tais como a utilização de outras linguagens
artísticas. [...] Esse diálogo, ao respeitar as especificidades de
cada linguagem, abre espaço para a arte como um campo do
saber, ou seja, de reflexão (STRATTNER, 2020, p. 48).
Continuando com a proposta de estudar aquilo que é produzido
nas oficinas, forma de abordar os participantes de maneira horizontal
e com mais espaços de conversação, nos orientamos com as produções textuais de Paulo Freire e Ana Mae Barbosa, sobre a Educação
Não-Formal e a Abordagem ou Proposta Triangular. Ao possibilitarmos socialização, conteúdo transdisciplinar e principalmente trazermos
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
exemplos cotidianos e expandimos para sentir antes de aprender algo
de forma tradicional, nos sustentamos na ideia de conhecer a história,
o próprio fazer artístico, e saber apreciar uma obra de arte. Essa aprendizagem “‘no mundo da vida’, via os processos de compartilhamento
de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianos” (GOHN, 1999; FALCÃO, 2009, p. 18 apud. PAZ et al., 2011, p.
185) enquanto nos apropriamos das artes, “se faz necessário valer-se de
vários conceitos para compreender a produção, veiculação, fruição e
novas possibilidades como fazer e como saber fazer” (SANTOS, 2008,
p. 328 apud. PAZ et al., 2011, p. 187).
Segundo Paulo Freire, “uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 2002, p. 40). E ao alinharmos essa possibilidade de formação de
tomada de consciência e de conexões sensitivas, como nossa oficina
busca propor com a releitura, estamos nos apoiando no que Ana Mae
Barbosa também se fundamentou: o projeto Discipline Based Art Education (DBAE) na década de 1980 formulado por J. Paul Getty Trust
diante a Estética, Crítica de Arte, História da Arte e Produção de Arte.
Quando compreendemos as contextualizações e as colocamos em prática a partir de tudo aquilo que adquirimos de conhecimento prévio e
interpretativo com nossas construções paralelas criativas, evidenciamos
o ensino das artes por meio das pessoas que fazem algo com a arte.
“Elas produzem, elas veem, elas procuram entender seu lugar na cultura através do tempo, elas fazem julgamento acerca de sua qualidade’”
(EISNER, 1988, p. 198 apud. BARBOSA, 1991, pp. 36-37).
Portanto, acreditamos ser possível fazer a releitura ser uma ferramenta de aprendizagem artística significativa e não mera reprodução,
indo além da apropriação e citação. A atividade exercita pois, ao abarcar na proposta inicial da oficina, entrar em contato com a obra de arte
em perspectiva da sinestesia no campo artístico ao escolher apenas uma
obra para uma releitura. Esse processo pedagógico pautado nas diversas
formas de se expressar com base nas nossas intervenções sensitivas e
interpretações artísticas, é mediado pela criatividade.
O ato de reler uma obra e criar outra, pautando em novas conexões, mostra aos participantes como sentimos as artes. Isso se deve,
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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principalmente, se estivermos pensando no julgamento da materialização da ideia e da investigação do diálogo por ter sido iniciada por este
mesmo diálogo com outra obra, não esquecendo que ambas estão inseridas em seus próprios cenários sociais, políticos, filosóficos e culturais.
Para além da defesa das obras de arte como fontes, partimos de uma investigação poética ao criarmos narrativas únicas por meio das próprias
quando entramos em contato.
Releitura no âmbito do Fazer Artístico significa fazer a obra
de novo, acrescentando ou retirando informações. Não é cópia. Cópia é a reprodução da obra. Reler uma obra subentende adquirir conhecimento sobre o artista e a contextualização
histórica. É uma nova visão, uma nova leitura sobre a obra já
existente, uma nova produção com outro significado. O produto final da releitura pode levar ou não ao reconhecimento da
obra escolhida. Reler é interpretar a obra, é colocar sua visão de
mundo, suas críticas, sua linguagem e suas experiências sobre a
obra escolhida (RANGEL, 1999, p. 48).
2. SELEÇÃO DAS CINCO OBRAS DE ARTE
Através dos questionamentos diante as origens da sinestesia,
uma das questões direcionada para o produto de um sinesteta e para os
entusiastas ao tema é a sua finalidade, isto é, uma obra de arte pode ser
sinestesia por si só ou depende de algo para se tornar, e esse algo seria
o que? Além disso, se ela não é sinestesia, ela pode ser gatilho para um
outro sinesteta?
Ao entendermos como uma experiência estética, o fenômeno
acaba sendo um espectro que se alastra para demais outras implicações,
tais como expor uma obra assim e como interpretá-las. Essas correspondências entre o público-obra, obra-obra, obra-artista e/ou artista-público, sem contar entre elementos de modalidades perceptivas distintas,
pode ser visto de três maneiras: a metafórica, a mnemônica e como
simulação (BERGANTINI, 2019, pp. 229-230).
A “sinestesia é um efeito sensorial, em vez do que cognitivo ou baseado em associações de memória” (RAMACHANDRAN;
HUBBARD, 2001, p. 7) mas quando se trata das artes, notamos que
isso é visto como uma linha tênue de interesses comunicacionais e expressivos, já que os sinestetas não controlam sua condição. A questão
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
é apenas se eles irão expor isso a obra ou não, o que pode acontecer
se distinguirmos suas práticas sinestésicas como parte do conceito ou
como tema. Nas palavras de Heyrman,
[...] Ela torna a arte comunicável e mistura uma visão pessoal de
cada pessoa que a compartilha. Ao usar a sinestesia a intenção
do artista é provocar, através da sua obra, sensações diferentes.
É de extrema importância diferenciar o artista sinestésico daquele que não o é, mas utiliza o conceito em suas obras intencionalmente. Existe o artista que possui a sinestesia como
condição neurológica e transmite para a sua obra sua própria
experiência, assim como existe o artista cuja obra de arte é resultante de uma ‘intenção artística’, usando a união de sensações e metáforas com a intenção de proporcionar às pessoas o
maior número possível de sensações (HEYRMAN, 2005 apud.
COSTA, 2018, pp. 26-27).
Em nossa oficina, são 10 obras de arte, contudo, neste artigo,
iremos citar apenas as pinturas escolhidas juntamente com suas justificativas.
2.1. OBRA Nº 1: “COMPOSITION VII”, WASSILY KANDINSKY, 1913.
No início do século XX, segundo a Professora Dorotéa Machado
Kerr do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
as manifestações de criatividade humana, tais como criar imagens, gestos, sons, formas e palavras que eram relacionados com a religião, filosofia, poética, estética e sociedade passaram a serem manifestações
dinâmicas, com discussões modernas sobre as práticas artísticas, se distanciando da arte dos tempos anteriores (KERR, 2010, p. 56). Para uma
arte que quebrou modelos tradicionais, é impossível não citar Wassily
Kandinsky (1866-1944) quando o assunto é cor e formas abstratas.
As composições de Kandinsky feitas de 1910 até 1939, dialogando com o inconsciente, eram geradas por linhas, ângulos e formas
que são construídas por nossa codificação da percepção em conjunto
com cores variadas a fim de um equilíbrio. O artista é ainda uma incógnita aos estudos pois estamos falando de uma época que havia um
interesse principal neste diálogo entre som e imagem. Então, alguns
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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pesquisadores afirmam ser um sinesteta de fato e outros, explicam ser
um exemplo de pseudo-sinestesia - relembrando que o pseudo engloba
questões de metáfora artística e associativa.
2.2. OBRA Nº 2: “NICHOLS CANYON”, DAVID HOCKNEY,
1980.
Na década de 1980, temos David Hockney se utilizando de sua
memória, porém, não somente dela. Hockney utiliza todas as suas lembranças, o cheiro da grama que remete a uma determinada cor e formato
único que aparece só para ele. Todavia não se prende apenas a essa bagagem sensorial para criar um ambiente sinestésico para todos. Caminhamos pela estrada com os olhos e os demais órgãos, todos aguçados
por essa paisagem hiper colorida da realidade.
Como muitos, Hockney enfrentou a dificuldade do mundo acadêmico diante da sinestesia e as suas influências e correlações. “Somente a partir da década de 1980 foram criados testes para averiguar
a genuinidade da condição, separando-a cada vez mais do âmbito das
artes” (BERGANTINI, 2019, p. 228) mas ainda continua tendo um caráter subjetivo e experimental, o que inevitavelmente é um “flerte” com
o mundo artístico.
Enquanto ele explora a riqueza e potência das cores em seus
quadros, fazendo com que o espectador seja transportado para um espaço retratado bem calmo e colorido, tal como no estilo fauvista no início
do século XX, vemos sua paixão por Los Angeles e suas estradas. Essa
exploração de cores estridentes é vista em seu processo criativo, resultado de suas excursões de carro, ruas a fora, pintando e conhecendo
suas paisagens enquanto fugia da perspectiva.
2.3. OBRA Nº 3: “LITTLE WING - JIMI HENDRIX”, MELISSA
MCCRACKEN, 2014.
Melissa McCracken trabalha a autoexpressão com cores vibrantes e texturas vívidas relacionadas com suas canções favoritas. São inspirações sonoras que, depois de algumas pinceladas, se tornam grandes
telas impulsionadas por sua alta dedicação em materializar toda sua
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
criatividade fazendo releituras. Ela transforma o que ela vê no sonoro
em visual.
A americana tem cromestesia, que segundo o dicionário da Associação Americana de Psicologia (em inglês American Psychological
Association - APA):
É um tipo de sinestesia em que a percepção de estímulos não
visuais (por exemplo, sons, sabores, odores) é acompanhada
por sensações de cor. Estritamente falando, a cromestesia não
é uma justaposição consciente de duas percepções sensoriais
diferentes: as duas percepções coincidem como respostas ao
mesmo estímulo (CHROMESTHESIA, 2021).
Na sua pintura-música, temos cores específicas que surgem no
rock’n’roll psicodélico imprescindível de Jimi Hendrix (1942-1970).
Como ela é brutalmente psicoativa, não precisamos nem ouvir a música completa para ela reagir em nosso organismo. Portanto, nesse caso,
aborda uma sinestesia de uso de substâncias tóxicas e/ou alucinógenas
do músico e do poder de sua guitarra. Essas drogas afetam nossas conexões cerebrais possibilitando esses “devaneios” das sensações dos
sentidos trocados.
2.4. OBRA Nº 4: “TENOR SAX”, STEPHANIE DE PAULA, 2020.
Stephanie de Paula, uma paranaense, dá vazão à sua própria
mente com traços coloridos ao ouvir e ver qualquer coisa. A condição
sinestésica está “traduzida” nas pinturas, que decidiu fazer, porque queria materializar as sensações de quando assistia a um concerto. Suas
inspirações são nas cores e nas formas já que vemos vermelho, laranja,
amarelo e azul dando as informações necessárias para que nosso cérebro crie o sentido.
A brasileira é mais uma das sinestetas que se sente imersa a esse
contexto e que não consegue simplesmente ignorar a condição que atravessa sua vida. Muitas das vezes são entendidos como: o(a) sinesteta,
o(a) estranho(a). Eles pensam que todos enxergam da mesma forma e
quando descobrem que não, se sentem diferente e acham que são esquisitos ou anormais (RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001, p. 4)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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fazendo com que não comentem com ninguém, já que eles têm medo de
serem chamados de loucos ou coisa pior.
2.5. OBRA Nº 5: “SOMEBODY ELSE - THE 1975”, LAUREN
MCCOIG, 2021.
Por último, uma jovem novata nesse mundo do mercado de arte
on-line que começou sua divulgação via aplicativo Instagram pintando
aquilo que era habitual a ela: ouvir uma música e enxergar coisas além
da melodia e ritmo. Lauren McCoig é uma menina como todas as outras que está se descobrindo e engajada em se estudar e entender a sua
condição. Ela se considera uma artista abstrata na qual ela diz que há
7 formas diferentes de sinestesia, mas varia sua produção por músicas,
signos e letras com cores.
A sinestesia é uma parte fundamental de sua percepção, com ela
as coisas acontecem no exterior, porém, os verdadeiros acontecimentos
ocorrem na mente. “Para um sinesteta a condição neurológica não é
algo passageiro que depois de algumas horas deixará de ocorrer” (CALAIS; CARMEN, 2020, n.p.), é “uma condição congênita, que se manifesta desde o nascimento e possui relação com a genética” (CALAIS;
CARMEN, 2020, n.p.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este traçado histórico de opções para a proposta de releitura dos participantes na oficina, fica claro que ela possui o intuito de
mostrar a estes participantes como sentimos as artes, principalmente a
troca entre a visão e audição. Entendemos que as oficinas sejam “instrumentos poderosos para transformar a prática docente” (GROSSMAN
2008, BARROS 2013, SAWADA, 2014 apud. COSTA, 2020, p. 10).
Este trabalho, ainda em sua fase inicial, contribui para o desenvolvimento de novas habilidades e propostas diante a prática da releitura
dentro das metodologias de Arte/Educação.
Usamos cinco pinturas enquanto recurso, nos permitindo sermos criativos e inovadores. Patricia Leavy nos informa em seu livro
“Method Meets Art: Arts-Based Research Practice” (2015), que “a pes78
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
quisa social interdisciplinar com as artes criativas [...] cultiva novos insights e ilumina aspectos do mundo social e experiência humana, assim
como pesquisas quantitativas e qualitativas, mas de maneiras diferentes” (LEAVY, 2015, p. 21; 31).
Por isso, entendemos que os cinco sentidos podem ser misturados com base no objeto. Ele será ressignificado a partir dos nossos
sentidos, ou seja, mesmo que seja uma pintura ou uma composição musical, nós podemos ouvir a pintura e ver a música ao mesmo tempo.
Com a elaboração de uma oficina, reiteramos que “atividades lúdicas
e intelectuais a fim de trocar experiências e estimular a aprendizagem
mais dinâmica, contextualizada e significativa” (SILVA; NEVES, 2015,
p. 427) estimula uma “aproximação sinestésica à realidade [como] uma
das fontes primárias da arte” (HEYRMAN, 2005; PRESA, 2008, p. 56
apud. POSCA; AGRELI, 2019, p. 11).
Entender o papel da História da Arte dentro dessa pesquisa é
primordial porque estamos estudando as práticas dos seres humanos
nos decorreres dos séculos e toda a sua conjuntura de pensamento presente nas sociedades. Neste texto, seguimos a interpretação de uma
abordagem pluridisciplinar fenomenológica da sinestesia nas artes e
dentro das inúmeras possibilidades de se contar as Histórias das Artes,
tais como: os métodos historicista, formalista, sociológico, marxista,
iconológico, estruturalista e muitos outros.
Os sinestetas - ou quase-sinestetas - citados na pesquisa são poucos dentro da vasta possibilidade de pessoas neste mundo que possam
ter algumas dessas características. Como foi mencionado anteriormente, por ser considerado raro e diferente, as pessoas que fogem do perfil
neurotípico, são difíceis de serem encontradas, já que possuem uma experiência emocional, sensorial e cognitiva diferenciada. “Dependendo
do contexto sociocultural em que se encontra, o sinestésico pode optar
por esconder as manifestações da sinestesia das outras pessoas para que
possa inserir-se nos grupos” (CAETANO, 2015, p. 49). Mas com apoio
da arte, elas podem se expressar e colocar no mundo suas visões e até
mesmo seus gostos.
Além disso, se formos olhar com mais cuidado, podemos salientar que essas pinturas também podem ser consideradas releituras
devidas terem sido originárias pela evocação da percepção sinestésica
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dos próprios diante aos sons e as cores, as formas, nos números, enfim,
qualquer elemento suscitado em mente.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O ‘CORPOMANTO’ E A COSTURA DA MEMÓRIA
Ana Maria Tibaldi Basso – anadibasso@gmail.com
Anderson Diego Da Silva Almeida – andersondiego.almeida@gmail.
com
Resumo: O objetivo principal deste projeto é a investigação de elementos do processo de criação de um objeto propositor de performances e
obra de arte, para o qual dei o nome de “O ‘Corpomanto’ e a Costura da
Memória”, trabalho híbrido entre objeto tridimensional e performance,
que venho realizando nesta etapa final do curso de Teatro e Educação
- UFMG Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. Nessa prática artística procuro evidenciar o ritual do vestir e acionamento da construção
da persona e dramatização como acontecimento que evapora sem justificativas, procedimentos regidos pela intuição e experimentação sensorial, usuais nos processos em arte moderna e contemporânea, de modo
a identificar em minha produção artística o ritual e a memória como
elementos propulsores e movente de novos trabalhos e que, desenvolvidos dentro do campo da educação com alunos do Ensino Fundamental
II e Médio, podem ser objetos potencializadores e gatilhos para novas
perguntas - tensões transformadoras.
Palavras-chave: Educação; performance; ritual; memória; manto.
Abstract: The main goal of this project is the investigation of elements
of the process of creating a performance proposer object and work of
art, for which I gave the name “O ‘Corpomanto’ e a Costura da Memória”, a hybrid work between three-dimensional object and performance,
that I have been doing in this final stage of the course of Theater and
Education - UFMG Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. In this
artistic practice I seek to evidence the ritual of dressing and the activation of the construction of the persona and dramatization as an event
that evaporates without justifications, procedures ruled by intuition and
sensorial experimentation, usual in modern and contemporary art proANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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cesses, in order to identify in my artistic production the ritual and the
memory as propulsive and moving elements of new works that, developed within the field of education with students from Elementary II and
Secondary Schools ( Ensino Fundamental II e Médio ), can be potentiating objects and triggers for new questions - transforming tensions.
Keywords: Education; performance; ritual; memory; mantle.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
‘Corpomanto’
Costuro,
construo,
costuro,
construo,
costuro,
construo,
costuro,
construo...
Roupa como Minh ‘alma
Quase transparente.
Suporte de quase tudo
que suporto.
Se a fé é pouca,
não lhe cabe espaço maior.
Tudo que está guardado dentro,
somente segredos
não poderás vasculhar
e muito menos
levá-los de mim.
Por dentro sou maior
que a mim mesma.
Costuro,
construo,
costuro,
construo,
costuro,
construo,
costuro,
construo,
costuro...
Ana Di Basso
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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AS PRIMEIRAS COSTURAS
O projeto surge a partir de memórias familiares, de um experimento onde recolhi tecidos e objetos pessoais de meus pais que se tornaram marcas, vestígios, resíduos, cicatrizes, cortes que, permaneceram neste mundo, indicando a passagem e a vida que um dia já havia
sido vivida e que remetem à minha infância na casa de meus pais, onde
existia um ateliê de costura com muitos tecidos, recortes, formas, linhas
e etc. O som da máquina de costura que trabalhava quase que sem parar
naquele tempo e lugar, agora reivindicam suas marcas em meu trabalho
atual por meio da própria costura e do desejo de unir partes, passado e
presente, verdades e mentiras, intuição e lógica. Assim, dentro do processo de criação, faço o livro de artista. Assim Aleida Assmann, escreve
lindamente sobre a memória em seu livro, Espaços da recordação:
A tarefa da memória que reanima (..) é à força espiritual e ao
carisma mnemônico do leitor que os mortos devem a vida. O
pano de fundo dessa tarefa extenuante cria uma nova consciência sobre o caráter efêmero do passado. Para resgatar o que
passou e torná-lo presente requer-se uma força necromântica de
revivificação, cujo símbolo é a faísca. Platão escreveu na Carta sétima (341c 5) o significado da faísca; “De repente, assim
como a faísca que salta desencadeia o fogo, surge na alma a
imagem originária da coisa”. O fogo é símbolo de um conhecimento súbito e indispensável, que acende sobre o fundamento de uma recordação latente. Como símbolo da recordação, o
fogo é tão ambivalente quanto a água, pois ele torna evidentes
tanto esquecer e a devastação pelo tempo (“chama arrasadora”)
quanto a memória e a renovação do que estava perdido. (ASSMANN, 2021. p.186)
A partir do livro de artista, que quando fechado lembra um manto,
sou levada a outra criação, o ‘Corpomanto’, palavra criada que sugere a
união entre as palavras corpo e manto. O ‘Corpomanto’ já foi acionado
em uma experiência a priori minha e que proponho ser utilizado em
uma atividade voltada para a escola no Ensino Fundamental II e Ensino
Médio.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O ‘CORPOMANTO’
Sobre esse processo de criação percebo que tudo vai se transformando conforme o trabalho vai sendo ativado por diferentes pessoas
que os vestem. Todo o processo está no fazer e não na espera. Didi-Huberman bem nos explica como esse processo acontece:
(...) que ver só se pensa e só se experimenta em última instância
numa experiência do tocar. Joyce não fazia que senão pôr antecipadamente o dedo no que constituirá no fundo o testamento de
toda fenomenologia da percepção. “Precisamos nos habituar”,
escreve Merleau-Ponty, “a pensar que todo visível é talhado no
tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade,
e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado
e quem toca, mas também entre tangível e o visível que está
incrustado nele”. Como se o ato de ver acabasse sempre pela
experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós,
obstáculo talvez perfurado, feito de vazios. “Se se pode passar
os cinco dedos através, é uma grade, se não, uma porta”... Mas
esse texto admirável propõe outro ensinamento: devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre
a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos
constitui. (DIDI-HUBERMAN, 2018. p.31)
Dessa forma, como exposto, a proposta da obra ‘Corpomanto’
nasce por meio do objeto artístico tridimensional que é uma peça que
cobre ou veste o corpo. Assim, na construção de um personagem, mantos como vestes e experiências para tais processos, transforma-se numa
nova proposição para a elaboração da performance por parte daqueles
que a experimentam. Portanto, esse trabalho foca no ritual do vestir e no
acionamento para a construção da persona e dramatização.
A PERFORMANCE E A PARTICIPAÇÃO DO OUTRO:
Nos atos do projeto ‘Corpomanto’, conhecer na prática, o ser
total, inteiro e com possibilidades que variam conforme muda a pessoa em seu interior, a pessoa que a veste trás consigo toda uma carga
pessoal que vai sendo construída e caracterizada por seus diferentes
movimentos. Compreender que a cada mudança de interlocutor o trabalho muda completamente. E quanto à forma, ela assume construções
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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distintas, metamorfoseia, se perde na cor, perde sentido e se materializa
em pura energia do movimento.
O espaço que envolve e apresenta o performer do projeto, questiona seu território limite e se expande até os limites que lhes são impostos pela tensão do tecido explorada pelo seu ativador convidado. A
partir da oferta desse objeto para outras pessoas, evidencia-se no processo do trabalho, a importância da resposta física do outro envolvido
pela peça. Assim, resolvi explorar artistas do corpo das áreas da dança,
teatro e circo para que a experiência se tornasse mais rica na construção
de novos movimentos que trazem como resposta a exploração contínua por parte desses interlocutores dos muitos e novos limites possíveis
para a visualidade e sensorialidade do projeto.
Com esse diálogo, procuro expandir minhas intenções preliminares para com esse objeto de forma que ele se construa no contato
renovado com esses outros corpos, que nos apontam caminhos para refletir sobre o uso da razão, da intuição, e do ritual que toma forma, por
meio de experimentações artísticas performáticas.
Partindo deste pressuposto, ao todo, realizei duas experiências
com oito performers, entre eles, dois bailarinos e seis acrobatas. Percebi que, cada artista que se propôs fazer a experiência da performance,
apresentou em primeiro plano o uso da razão para tentar entender como
o corpo reage ao objeto que os cobre.
Em seguida entra em ação a experimentação caracterizadora da
intuição que possibilita que se tentem movimentos novos e possíveis
para aquele momento. Sobre estes momentos únicos de experimentação, a singularidade das formas construídas pelo corpo vestido pelo objeto evidencia-se única porque cada artista que pratica a performance
traz elementos contidos em sua formação performática, ricos para minha pesquisa.
A vestimenta é oferecida com o máximo de pesos (garrafinhas
de água ou terra) possível em seus oito bolsos. A curiosidade da exploração do objeto pelo interlocutor foi a surpresa em que os próprios
movimentos expulsaram tudo o que havia de peso nos bolsos pela força
centrifuga dos movimentos executados em uma cama elástica que anulou até mesmo o peso do seu próprio corpo.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Entretanto, é a união entre a minha consciência de artista produtor da obra e a consciência do interlocutor que é nas palavras de Pareyson, quando ele cita que o objeto de arte carrega elementos da subjetividade do autor elementos que não são necessariamente vistos, mas
sentidos pelo performer: (...) a arte acolhe em si toda a vida espiritual de
seu autor, torna-se realmente vida e razão de vida para o artista, em cuja
consciência concreta os valores são indivisos. (Pareyson, 1997, p.40).
Esta experiência relaciona-se com cada pessoa que aceita transportar para fora do corpo, as formas do movimento corporal de maneira
intuitiva, movidas pela surpresa, por certa liberdade de experimentação
sugerida pela proposição artística.
O próprio MANTO traz consigo forças escondidas que são próprias de sua natureza e sobre essa qualidade do trabalho, novamente
cito Pareyson em seu dedicado estudo sobre os problemas da matéria
da arte:
É necessário recordar que os materiais físicos já chegam à arte
carregados de uma dimensão espiritual e artística a qual, unicamente, torna-os capazes de interessar a arte: a matéria da arte
nunca é virgem e informe, mas já prenhe de uma carga espiritual e assinalada por uma vocação de forma, quer estas possibilidades lhe tenham sido oferecidas pela própria natureza, quer,
pelo contrário, o homem já as tenha inserido nela, no decurso
de uma tradição de manipulação artística. (PAREYSON, 1997.
p. 157)
Entretanto lembro-me do artista Flávio de Carvalho que em 1931,
promove a Experiência nº 2, uma performance que torna o artista famoso
e conhecido como o primeiro performer brasileiro. Nessa experiência, o
artista caminha por uma procissão religiosa com uma postura desafiadora, indo na contramão das pessoas, uma atitude considerada extremamente desrespeitosa para com aqueles que participavam do ritual.
A leitura mais atenta desse trabalho me ajuda a compreender
que as energias invisíveis que permeiam uma obra de arte, tornam-se
visíveis por meio das práticas que as materializam na vida concreta,
neste caso pela execução programada de performances, dotadas de atos
que indicam a intuição no próprio fazer.
Vislumbro nesse compartilhamento com a experiência do outro,
que os fragmentos do cotidiano de cada artista que vivencia a experiênANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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cia possam materializar-se pela força da intuição, trazendo outras novas sensações e percepções não previstas para o projeto, inicialmente.
Gosto da ideia de partilhar a sensorialidade típica de projetos de arte
que promovem o olhar que deixa a dúvida das coisas experimentadas
pela primeira vez. A obra veste e dialoga criando perguntas e busca uma
construção de imagens a partir de um acontecimento gerador de emoções. Sobre essas emoções Didi-Huberman diz que:
Se a emoção é um movimento, ela é, portanto uma ação: algo
como um gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer
imaginamos ...Jean-Paul Sartre dirá que, (…) ao contrário de
nos afastar do mundo, a emoção é uma maneira de perceber o
mundo. (DIDI-HUBERMAN, 2021. p.26)
O processo todo me permite ainda, juntamente com os performers/alunos reorganizar ideias como, por exemplo:
De que forma oferecer a vestimenta para a participação do outro?
O que será ou não permitido fazer dentro desse objeto? Como abordar
e informar ao performático uma proposta simples e com alguns limites
de uso do objeto para se obter um resultado satisfatório?
A IMAGEM FOTOGRÁFICA
A fotografia foi o meio que escolhi para congelar o tempo e
promover a contemplação do outro tanto quanto a análise de um processo que talvez eu não conseguisse em palavras dizer. Comungo nesse
ponto, com a atenção dispensada por Joseph Beuys para com a imagem
fotográfica citado por Antonio d’Avossa.
A imagem fotográfica é, em essência uma informação de caráter
visual que provém de um tempo passado”, escreve Jean Keim.
Por outro lado é graças a ela que um fato pode ser contemplado
por muito tempo, mesmo muito depois de ter acontecido. Esse
tempo prolongado nos permite prolongar uma imagem visualmente de forma meticulosa e profunda. Para Beuys, porém, a
imagem antes de mais nada, deve projetar uma contra imagem,
ou seja, deve provocar a reflexão e pensamento, estimular-nos
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
para além da capacidade dos órgãos da visão. (D’AVOSSA,
2010 p.22).
Observar os resultados visuais que outras pessoas conseguem
provocar ao vestirem a obra de arte ‘Corpomanto’, tiveram dois alcances que gostaria de evidenciar: aquele promovido pela experiência ao
vivo, à olho nu, e a outra forma mais delongada permitida pelo registro
fotográfico. Essa segunda forma de registro, me faz captar variações
que reveladas por meio das imagens congeladas pela fotografia e que
estendem, de outra forma, o alcance sobre-humano do projeto. A partir
desta ideia corroboro com os apontamentos de Walter Benjamin quando
diz: “A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.”
(1931. p. 94).
Por isso, a imagem quer se desenvolver no espaço e no tempo,
ainda mais, porque o processo está em constante transformação pela
produção da performance que nunca se acaba.
Ao perceber a construção da performance a partir das sequências fotográficas, me interessa identificar a percepção do interlocutor e
do observador que podem se identificar como parte da mesma história e
se ver na obra ou ainda, reproduzir-se na imaginação levada pela obra,
refazendo ou reconstruindo memórias que passeiam no passado, no presente e no futuro. Sobretudo este procedimento, recupera sentidos que
transcendem a matéria, tocando a aura que se constitui em criação a
partir do olhar do acontecimento do ato de vestir que apontam para uma
evolução humana sugerida pelas imagens. Ainda sobre a aura, Didi-Huberman nos mostra que:
(…) aura, que é o de um poder do olhar atribuído ao próprio
olhado pelo olhante: “isto me olha”. Tocamos aqui o caráter
fantasmático dessa experiência, mas, antes de buscar avaliar seu
teor simplesmente ilusório ou, ao contrário, seu eventual teor de
verdade, retenhamos a fórmula pela qual Benjamin explica essa
experiência: “Sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder
de levantar os olhos” (DIDI-HUBERMAN, 2010. p.148)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O ato de vestir ao longo da história da arte como um ato de dramatização que não são alegóricos, paramentos ou fantasia e sim, algo
feito para uma realidade cultural.
APROXIMAÇÃO COM OUTROS ARTISTAS
Dentro da performance não poderia deixar de citar alguns artistas usaram elementos artísticos que também vestiam a figura humana e
aqui abordarei, Daiara Tukano, Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, que iam de encontro com o rompimento
das separações entre obra e experiência.
Daiara Tukano (1982)
Pertence ao clã Uremiri -Tukano, da região amazônica do Alto Rio Negro. ela produz imagens que evocam aspectos da existência. Na 34ª
Bienal, Daiara apresenta dentre outra obras, um manto feito de penas
que, deixaram de ser confeccionados com a invasão dos territórios, os
assassinatos dos povos indígenas, a extinção das aves sagradas. Esta
obra fala do sagrado, fala do luto vivido e perdas de anciões guardiões
dessas histórias.
Arthur Bispo do Rosário (1911-1988)
A obra é o Manto da Apresentação, que Bispo deveria vestir no dia de
seu enterro e se apresentar para no Juízo Final, encontro com Deus.
Hélio Oiticica (1937-1980)
Parangolés tinham que ser vestidos pelas pessoas da comunidade para
que fossem ativados. De expectador o observador passa a ser interlocutor da obra inserindo sensações, emoções e memória como a alma da
obra. Transmutação do corpo normal para o corpo dramatizado a partir
da vestimenta. O trabalho abre novas maneiras de interpretação da Obra
e os pilares das convenções da arte ficam abalados.
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Lygia Clark (1920-1988)
Explora os sentidos do observador que veste e participa da obra.
A obra “O eu e o tú: Série Roupa-Corpo-Roupa” um casal veste a roupa
que possuem bolsos recheados com materiais ambíguos para o homem
sensações femininas e para a mulher sensações masculinas e cada um
explora os bolsos da roupa do outro.
Lygia Pape (1927 - 2004)
Sua obra é pautada pela liberdade com que experimenta e manipula as
diversas linguagens e formatos, incorporando o espectador como agente e ativador de parte de suas obras performáticas.
NOVOS ALCANCES PARA A OBRA CRIADA
No princípio do processo, não tinha ideia clara sobre até onde
o projeto poderia chegar e diante de cada nova experimentação, percebo que a ideia inicial vai sendo reformulada de acordo com as performances realizadas e as influências que o objeto causa nas pessoas que
o vestem. Os pesos adicionados aos bolsos da peça, fazem parte da
composição plástica da obra de arte. Ao colocar em prática as ideias
para a realização do objeto ‘Corpomanto’, a escolha do material foi
fundamental para a realização das possibilidades desse dinamismo do
movimento. O tecido, os bolsos, os pesos dentro dos bolsos, os nós e a
costura proporcionam um objeto propositor de performance.
A ideia é dar forma plástica e artística ao imaterial e invisível
que vive dentro da alma, de cada pessoa que o veste e que, por meio
da ação performática pode agora tomar forma no lado de fora e passa a
ser visível. Um manto que carrega em seus bolsos, qualquer coisa que
tenha um peso causa resistência e incomoda.
A arte tem que ser uma ferramenta para conectar ou questionar ou criar consciência no público, como qualquer outra coisa.
Eu acredito que a performance também é uma ferramenta, e
por isso os objetos, eles mesmos, não tenham valor. Quem tem
valor é o processo e quando você passa por uma experiência,
existe a transformação. Então a arte está completa. Mas para
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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mim, arte fora de contexto e sem propósito, arte pela arte não
alcança ninguém. (IBRAMOVICH, Folha de São Paulo, São
Paulo. 17 nov. 2010).
Nesse projeto, ocupa o lugar de algo que carregamos em nosso
interior pessoal como alegria, tristeza, fragilidade, na memória dos tempos presente, futuro e passado. Enfim percepções sinestésicas e simbólicas de memória.
A PERFORMANCE ADENTRANDO O ESPAÇO ESCOLAR
Portanto, ao colocar em prática as ideias para a realização do
objeto ‘Corpomanto’, a escolha do material foi fundamental para a realização das possibilidades desse dinamismo do movimento. O tecido,
os bolsos, os pesos dentro dos bolsos, os nós e a costura proporcionam
um objeto propositor de performance. Sobre os estudos da performance,
Richard Schechner aborda a performance com modelo para a educação
“A educação precisa ser ativa envolver no todo ‘mentecorpoemoção’tomá-los como uma unidade. Os estudos da performance são conscientes dessa dialética entre ação e a reflexão.” (SCHECHNER, 2010. p.26)
A vestimenta oferecida com o máximo de peso possível nos
bolsos. A curiosidade da exploração do objeto pelo interlocutor, a surpresa, ocorre a cisão. Essa cisão aconteceu quando o interlocutor resolveu usar uma cama elástica que anulou por completo até o peso do seu
próprio corpo. Sobre isso, Bachelard em seu ensaio sobre a imaginação
do movimento, deixa claro que a leveza e o peso só pode ser percebido
porque o movimento se cristaliza ou evapora.
O elemento ganha corpo, se é que podemos dá-lo tamanha solidez, na medida em que só é possível com espaço entre os ossos.
O desenho da brisa só se faz pela sustentação do peso da massa
e pelo seu abandono. Seu movimento em várias direções, alcançando altitude e profundidades... em elevação e queda supera a
substância. (BACHELARD, 1986, p. 10).
A performance realizada por este artista acrobata especificamente, me remeteu a uma analogia do cotidiano da alma que carrega94
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
mos e a da alma que um dia cedo ou tarde se libertará do corpo.
Entretanto as performances realizadas com bailarinas foram um
espetáculo aparte. No ambiente da dança, o peso toma conta e conduz
os movimentos que parecem ser gerados a partir do próprio significado
que a palavra peso tem e induz movimentos como a tristeza que abre
uma luta constante contra a liberdade. O mais interessante foi que no
decorrer da performance os pesos começaram a se deslocar para fora
dos bolsos da vestimenta como num processo natural de libertação.
ÚLTIMA COSTURA
Todo movimento gera pontos de vista diferentes, provoca alterações na essência do ser que o experimenta, que o testemunha, que
dele participa de alguma forma.
A arte complexa da performance, viva e pulsante, estabelece-se, aos poucos, como elemento definitivo e definidor do projeto ‘Corpomanto’. Ato que potencializa a vida, impõe relações multifacetadas
com o observador, o interlocutor e o artista provocando questionamentos da própria consciência. É a própria mistura de arte com vida que nos
deixa uma experiência difícil de esquecer.
Espero com este projeto, ampliar a visibilidade da performance
dentro das escolas, da construção do manto, que o professor trabalhe da
teoria à prática, para que a performance não seja vista apenas como um
ruído do estranhamento, mas como algo potente que possa fazer parte do cotidiano do aluno como objeto de transformação e crescimento
pessoal.
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Imagens:
96
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 1. Ana Di BASSO. CorpoManto. 2015. Ilustração em nanquim sobre papel, 14cm x
16cm. Coleção particular.
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Figura 2. Ana Di BASSO. Manto. 2014. Livro de Artista técnica mista, 20cm x 28cm. Coleção Particular.
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Figura 3. Ana Di BASSO. CorpoManto. 2015. Vestimenta em tecido elastano, 170cm x
120cm. Coleção Particular.
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Figura 4. Ana Di BASSO. CorpoManto. 2015. Vestimenta em tecido elastano, 170cm x
120cm. Coleção Particular.
Figura 5. Flávio de Carvalho apresentando seu New Look (Experiência nº 3) nas ruas de São
Paulo, 1956.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 6. Arthur Bispo do ROSÁRIO. Manto da apresentação. Sem data. 118,5×141,2×7 cm.
Costura, bordado, escrita. Fotografia Ana Di Basso, 2012.
Daiara TUKANO. Espelho da vida. 2020. Dimensões variadas. Plumária em seda e espelho.
Fotografia Ana Di Basso, 2021
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Figura 7. Hélio OITICICA. Nildo da Mangueira vestindo P15 Parangolé capa 11 - Incorporo
a revolta.1967.Tecido-couro-esteiras-de-palha-90-x-60-x-10-cm. Fotografia Claudio Oiticica
Coleção Projeto Hélio Oiticica
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Figura 8. Lygia PAPE. Divisor. 1968. Tecido branco com aberturas para passar a cabeça,
dimensões variadas. Foto Reina Sofia. Reencenado em Madri, 2011.
Lygia CLARK. O eu e o tu. 1967. 170 x 68 x 8cm. Borracha, espuma, tecido, acrilon. Col.
Família Clark. Foto: cortesia Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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NOSSO NORTE É O SUL:
IDENTIDADE ARTÍSTICA LATINOAMERICANA EM CONSTRUÇÃO NAS
OBRAS DE TORRES GARCÍA E NA
EXPOSIÇÃO VIZINHOS DISTANTES
André da Silva Torres41 - andre.torres@unifesp.br
Resumo: A proposta neste artigo é discutir como a exposição Vizinhos
Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP dialoga
com a obra de Joaquín Torres García, uma das suas principais referências. A mostra proporciona um campo fecundo para compreender de
que maneira Torres García tornou-se um norte para os artistas engajados na produção de arte comprometida com o contexto sócio-político-cultural da América-Latina.
Palavras-chave: Arte latino-americana; Universalismo Construtivo;
Contexto político-social; Joaquín Torres García.
Abstract: The purpose of this article is to discuss how the exhibition
Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP
dialogues with the work of Joaquín Torres García, one of its main references. The exhibition offers a fertile field to understand how Torres
García became a guide for artists engaged in the production of art committed to the socio-political-cultural context of Latin America.
Keywords: Latin American art; Constructive Universalism; Political-social context; Joaquín Torres García.
INTRODUÇÃO
A exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP, realizada em São Paulo desde junho de 2015 até a
presente data, proporciona um espaço de análise e reflexão sobre como
41 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação de História da Arte da EFLCH da Universidade Federal de São Paulo sob orientação de Jens Michael Baumgarten.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
a proposta de Joaquín Torres García seria basilar para os trabalhos de
artistas contemporâneos latino-americanos comprometidos com o contexto sócio-político da região. A curadora da mostra, Cristina Freire,
estabelece um diálogo entre a questão da identidade da arte latino-americana e as propostas de Torres García através da exposição e da publicação organizada por ela, Terra Incógnita, cujos textos são referências
importantes sobre a relevância do artista no debate sobre o conceito de
identidade da arte latino-americana.
Torres García propôs o desenvolvimento de uma escola artística
genuinamente latino-americana denominada Universalismo Construtivo, cujas bases construtivas essenciais incorporariam desde elementos
das culturas ameríndias ao construtivismo. Segundo o artista, os símbolos, signos, figuras, formas e cores encontradas nas culturas ameríndias
pré-colombianas se adaptam à regra de unidade base do construtivismo
por causa de suas formas; se relacionam com a simbologia encontrada
no mundo primitivo, antigo e moderno e aos ideais plásticos do Universalismo Construtivo. Ao considerar que “entre as culturas pré-colombianas as culturas pre-incaicas estariam mais relacionadas à América do
Sul e, portanto, à proposta do Universalismo Construtivo como um movimento genuinamente autóctone latino-americano” (TORRES GARCÍA, 1939. p.3), Torres García afirma que esta nova arte caracterizada
pelo compromisso com a definição de um conceito de identidade na
arte latino-americana se relaciona intrinsicamente ao contexto político
e social da região.
Nessa perspectiva, cabe afirmar que a obra América Invertida
sintetiza conceitos e ideias acerca da discussão sobre a identidade latino-americana e sua representatividade através de símbolos, signos,
palavras, números e imagem cartográfica, elementos que compõe este
emblemático desenho à caneta e tinta. Esta obra está diretamente relacionada ao manifesto de Torres García intitulado La Escuela del Sur,
publicação primordial para a discussão acerca do conceito de identidade
da arte e da cultura latino-americana pautada nas propostas do artista.
La Escuela del Sur é o manifesto americanista onde se formularia a premissa que faria possível a criação de um movimento artístico autônomo
no continente: a inversão da América do Sul com seu extremo mais
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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meridional apontando para o norte (TORRES GARCÍA, 1984, p.193).
Nesse trabalho o artista propôs a construção da identidade cultural e artística latino-americana através de uma relação de proximidade e
diálogo entre suas vanguardas e da integração regional entre os países.
Torres García apresenta uma nova possibilidade para a arte na América
Latina, onde os artistas se concentrariam em discutir o que seria uma
produção artística genuinamente latino-americana.
Segundo Torres García, o artista que está comprometido com a
construção de uma nova arte representativa de sua identidade cultural
deve considerar como elementos cruciais na sua produção artística a
heterogeneidade da região onde a arte é desenvolvida, assim como as
características, especificidades e singularidades de seu povo em constante interação entre si e com o outro. Portanto, a obra desse artista
latino-americano, idealizado por Torres García, precisaria contemplar a
realidade e os acontecimentos de sua época evocando a história do passado em diálogo com o presente em desenvolvimento numa perspectiva
de produção artística capaz de afirmar-se como heterogênea e, ao mesmo tempo, consciente de sua importância no diálogo entre as diferentes
produções artísticas no mundo em igual posição de relevância.
Ao retornar a Montevideo em 1934, Torres García põe em pauta
o debate sobre a perspectiva da história da arte ocidental e seu enquadramento anacrônico e parcial. Ele propõe uma resposta à imposição
da cultura ocidental na América do Sul, rejeita os poderes coloniais e
se contrapõe ao esquema de relação entre centro e periferia como manutenção do poder do eixo Estados Unidos-Europa sobre a história da
arte. Sendo assim, o Universalismo Construtivo, essa nova escola cujas
características seriam intrinsicamente relacionadas ao contexto social
onde é desenvolvida, seria a contraposição aos poderes hegemônicos
e coloniais, uma vez que não se limitaria a apresentar propostas étnicas ou marginais segundo modelos europeus, mas reivindicaria o reconhecimento da arte genuinamente latino-americana segundo uma nova
perspectiva na história da arte. Ao universalismo42 encabeçado pela his42 Em seu livro O Fim da História da Arte Hans Belting propõe uma abordagem mais ampla
da história da imagem onde anacronismo e supremacia seriam evitados e o uso da imagem
na contemporaneidade seria amplamente discutido. Sobre o universalismo ele afirma: “A arte
universal emerge finalmente como a quimera de uma cultura global pela qual a história da arte
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
tória da arte europeia Torres García apresenta o Universalismo Construtivo desenvolvido na América do Sul, onde a iconografia ameríndia e
de povos primitivos e símbolos e signos comuns em muitas civilizações
são evocados a compor uma nova arte que pretende resgatar a imagem
anterior à história da arte, quando a imagem fazia parte do cotidiano e
integrava-se à cosmologia dos povos - da mesma forma como o Universalismo Construtivo intenta integrar o homem moderno ao universo
através da transcendentalidade que a arte proporcionaria.
Este artigo busca discutir como Torres García, ao relacionar elementos identitários dos povos latino-americanos contemporâneos e
pré-colombianos com o contexto político e social da região, tornou-se
referência para a exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina
no Acervo do MAC USP. A mostra foi escolhida por proporcionar um
espaço de análise e reflexão sobre como a proposta de Torres García
seria basilar para os trabalhos de artistas contemporâneos latino-americanos. A exposição, além de colaborar para o debate sobre o conceito
de identidade na arte latino-americana, proporciona um campo fecundo
para compreender de que maneira Torres García tornou-se um norte,
uma referência fulcral para os artistas engajados na produção de arte
comprometida com o contexto sócio-político-cultural da América-Latina.
As obras que serão analisadas mais adiante possibilitarão contextualizar como os conceitos, teorias e ideias de Torres García contribuíram para o debate acerca das questões identitárias, estéticas e políticas
na arte latino-americana, perseverando como cruciais para a construção de uma história da arte plural e democrática. Entre as obras que
integram a exposição foram selecionadas Superfícies de Memórias de
Sérgio Meirana e Violência de Juan Carlos Romero. Superfícies de Memórias faz uma referência mais direta e irreverente ao mapa invertido
da América do Sul de América Invertida de Torres García enquanto
Violência permite a análise dos conceitualismos latino-americanos a
partir dos anos 1960 sob a ótica do diálogo entre a proposta de uma
é desafiada como um produto da cultura europeia. Em contrapartida, as minorias reclamam sua
participação numa história da arte de identidade coletiva em que não se veem representadas”.
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac
Naify, 2006. p.18
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arte latino-americana relacionada ao contexto da região, idealizada por
Torres García, e a perspectiva das práticas conceitualistas latino-americanas de resistência na luta contra as ditaduras militares no Cone Sul
via processos de decolonização e desobediência estética e epistêmica.
Ainda sob esse viés, destacam-se as publicações Hexágono 71 CD de
Edgardo Antonio Vigo e OVUM de Padín por dialogarem com a proposta da revista Círculo y Cuadrado, criada em 1936 por Torres García
e a Asociación de Arte Constructivo.
A PRESENÇA DE JOAQUÍN TORRES GARCÍA NA EXPOSIÇÃO VIZINHOS DISTANTES: ARTE DA AMÉRICA LATINA NO
ACERVO DO MASP USP
A exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no
Acervo do MAC USP reúne 250 obras de artistas latino-americanos sob
a proposta de dialogar sobre as aproximações entre as culturas heterogêneas do continente, a colaboração e o contato entre artistas e o rompimento de fronteiras entre países latino-americanos através da arte. A
curadora Cristina Freire organizou a exposição a partir das pesquisas
sobre arte latino-americana desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em
Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu MAC USP, do qual ela é
coordenadora, em conjunto com os alunos do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo, onde leciona como professora titular. Além da exposição, a
pesquisa resultou na publicação em três volumes Terra Incógnita: Conceitualismos da América Latina e o acervo do MAC USP que apresenta
os resultados da pesquisa de forma mais ampla para discussão e estudo
do acervo, trazendo documentos, arquivos, imagens, fotos e registros
fotográficos de performances. Todas as obras selecionadas para a exposição integram o acervo do museu.
Não estão incluídos artistas brasileiros na exposição, todavia esse
fato não exclui a presença da arte brasileira. Ao analisar e interpretar as
obras o público é convidado a pensar sobre o que é a arte latino-americana e onde/como a arte brasileira está inserida nesse conceito. Desse
modo, a exposição proporciona um espaço de reflexão sobre o conceito de identidade na arte latino-americana, seu protagonismo frente ao
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
combate à hegemonia do hemisfério norte e sua afirmação no campo
cultural e artístico global43.
Cristina Freire ressalta o fato de Torres García ser uma referência para a arte latino-americana desde sua proposta de um movimento
construtivista genuinamente latino-americano até a produção artística
contemporânea44. Os artistas, críticos, curadores e estudiosos da arte
desenvolvida no continente - e a partir dele – se baseiam nas ideias,
nas obras e nos escritos do artista como referências desta vez oriundas
da América Latina para a discussão sobre o conceito de identidade da
arte latino-americana. As obras de arte de Torres García, seus livros,
publicações de artigos e contribuições em revistas, palestras e conferências inspiram e estimulam a incorporação, continuidade, assimilação e
transformação de suas ideias pelos artistas que fazem parte da exposição, como também pelos artistas que integram acervos no mundo.
Partindo do pressuposto que a categoria arte latino-americana torna-se insuficiente para reunir a diversidade e os contextos culturais da
região, assim como contemplar os exílios e as migrações de artistas em
trânsito pelo mundo e os efeitos da globalização, a exposição é organizada em núcleos temáticos não cronológicos: Identitários, Construtivos, Oníricos e Conceituais que apresentam os muitos perfis do acervo
do MAC USP (FREIRE, 2015a. p.14). As práticas artísticas conceituais
têm lugar privilegiado nesta exposição que expõe um conjunto específico de trabalhos de artistas latino-americanos das décadas de 1960 -70.
43 Ao excluir obras de artistas brasileiros e nomear a exposição de Vizinhos Distantes, a cura-
doria propõe ao visitante refletir sobre por que o brasileiro não se identifica como latino-americano. Este não pertencimento talvez aconteça como efeito da economia globalizante e a
tendência de aproximar-se mais dos países desenvolvidos que de seus vizinhos no continente,
ao mesmo tempo em que expressa vontade de liderança econômica na América do Sul. Essa
ambivalência se deve em parte pela sensação de não pertencimento à definição de América Latina pelo fato do Brasil ser o único país de língua portuguesa no continente e ter passado por um
processo de independência e transição política da colônia ao império diferente de seus vizinhos
que tiveram um histórico de guerras pela independência e heróis em comum contra o império
espanhol. Entretanto, o Brasil e seus vizinhos na América Latina estão submetidos aos mesmos
efeitos da globalização na economia e possuem histórias com características comuns: a hibridização cultural ameríndia, africana e europeia, a violenta colonização e um passado recente de
golpes de estado e governos autoritários.
44 Figuras Sobre Uma Estrutura, única obra de Torres García que integrava a exposição, foi
impedida de ser exposta por causa de questões judicias que culminaram na sua disponibilidade
para leilão pela Sotheby’s.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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A obra Superfícies de Memórias, do artista uruguaio Sérgio Meirana, está em destaque ao lado do texto curatorial. Esse trabalho é permeado de humor por colocar figuras em situações inusitadas misturando a definição de arte e artesanato na escolha do suporte. As figuras são
pequenas esculturas que extrapolam a moldura do quadro. Nessa obra é
possível identificar reflexões sobre a procura da identidade do homem
contemporâneo envolto em questões pessoais, culturais, sociais e políticas que fazem parte de sua história. Meirana faz referência à América
Invertida de Torres García ao colocar uma de suas pequenas esculturas
puxando uma corda presa ao mapa invertido da América do Sul que flutua no ar, fazendo alusão ao homem que carrega consigo seu contexto
de origem pelo caminho que segue.
A vontade construtiva de uma arte genuinamente latino-americana, discutida e proposta por Torres García em seu regresso ao Uruguai,
foi desenvolvida pela Escuela del Sur que se constituiu como um modelo de fomento à discussão sobre o conceito de arte latino-americana
e para a formação de coletivos de artistas como o Movimento Diagonal
Cero, o Grupo de Los Trece / CAYC, o grupo Tanagra entre outros
grupos e movimentos por todo o continente. As discussões propostas
por estes e outros grupos são divulgadas pelas suas publicações. Cabe
ressaltar a relevância da Asociación de Arte Constructivo formada em
1933 por Torres García em Montevidéu e sua revista Círculo y Cuadrado, que teve sete números lançados entre 1936 e 1938. Círculo y
Cuadrado viabilizou um espaço para a discussão sobre o conceito de
arte latino-americana, experimentações, formação de coletivos e circulação entre artistas tornando-se uma referência para publicações posteriores no continente como Removedor, Hexágono 71, Diagonal Cero,
Las Moradas, Los Huevos del Plata, Ovum, entre outras que inclusive
integram a parte da exposição dedicada às práticas artísticas conceituais. As ideias de Torres García estão presentes em discussões sobre a
heterogeneidade da arte em desenvolvimento na América Latina e pelos
artistas latino-americanos e a dificuldade de reunir todas as manifestações artísticas sob um mesmo grupo denominado arte latino-americana.
Em contraposição ao poder hegemônico do eixo Estados Unidos-Europa no cenário artístico global que, não raramente, classifica a arte produzida na América do Sul como marginal e submissa aos movimentos e
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
escolas europeias, Torres García propôs resistência a essas relações de
poder; propôs o desenvolvimento na América Latina de um movimento vanguardista marcado por características identitárias do continente,
relacionando o abstracionismo e o concretismo com os contextos político, social e econômico na construção de uma arte que fizesse parte do
cotidiano e que abrangesse a criticidade e a reflexão, a autonomia e o
protagonismo latino-americano.
Apesar da pluralidade de expressões e movimentos artísticos no
continente e da proposta do Universalismo Construtivo não ter alcançado seu fim último, diversas produções artísticas desenvolvidas na América Latina abarcam engajamento político e comprometimento com o
contexto social onde são desenvolvidas como características marcantes
autênticas. Segundo Cristina Freire, destaca-se a importância de Torres
García para a arte em construção no continente e entre as produções
artísticas do conceitualismo latino-americano cujo contexto sócio-político é intrinsicamente relacionado. Segundo a autora, o mapa invertido da América do Sul em América Invertida “poderia ser até pensado
como uma metáfora do desafio e do risco de um programa artístico e
existencial, pautado na comunicação sem restrições, naqueles difíceis
anos 1960 e 1970” (FREIRE, 2015b. p.38).
As práticas conceituais de artistas latino-americanos nas décadas
de 1960-1970 engajados politicamente contra a censura e a violência
dos regimes autoritários estabelecidos na América Latina estão expostas num ambiente com paredes de cor preta que alude ao luto pela morte
dos que se opuseram às ditaduras e regimes políticos opressores. Antes
de se discutir esta parte da exposição dedicada ao conceitualismo latino-americano durante as décadas de 1960-1970 cabe ressaltar a importante contribuição de Walter Zanini frente à direção do MAC USP para
o desenvolvimento das propostas dos artistas latino-americanos neste
momento de cerceamento dos direitos civis na América Latina: ele os
convocou para participarem de exposições disponibilizando o museu
para a exposição de suas obras e abrindo espaço para experimentações
e discussões sobre arte relacionada ao contexto político e social. Para a
exposição foram pesquisados e organizados, além das obras, arquivos e
documentos institucionais do MAC USP e de artistas que mantiveram
contato com Zanini nesse período; são registros fotográficos de perforANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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mances realizadas no museu e em outros lugares, fotografias, arte postal, produções e publicações coletivas, arquivos, cartas, documentos,
livros de artista, entre outros trabalhos e materiais.
Para potencializar o sul do continente como polo centrípeto de
produção e trocas artísticas no contrafluxo das correntes migratórias
locais e das estruturas de poder e catalisar essa força criativa numa forma de comunicação capaz de resistir ao exílio, à ditadura, à censura
e apta a ir além da indiferença e da incompreensão (FREIRE, 2015b.
p.38), muitos artistas organizaram suas próprias editoras coletivamente
e suas publicações estabeleceram uma rede de comunicação alternativa durante a política de repressão instituída pelos regimes autoritários.
Dessa forma, desenvolveram uma rede de trocas onde arte também se
torna meio de comunicação entre eles - vários artistas estavam no exílio
por causa da perseguição política45. Desse modo, suas publicações tornaram-se uma forma de comunicação, divulgação e circulação de seus
trabalhos e propostas, marginalmente rompendo fronteiras territoriais e
barreiras impostas pelo mercado, pelos circuitos hegemônicos de circulação de arte e pela indústria cultural sob controle do governo. Estes
circuitos subterrâneos de informação resultaram também em galerias
alternativas para exposição dos trabalhos que, em conjunto com as publicações dos artistas, constituíram um meio de resistir às imposições e
buscar outra forma de circulação da arte.
Alguns trabalhos são de difícil manutenção no acervo devido à
fragilidade do material e a precariedade dos meios e técnicas utilizadas
para reprodução. A utilização desses meios e do material precário de
fácil reprodução e baixo custo objetivava a circulação dos trabalhos
produzidos pelos artistas atingindo o público em grande quantidade em
contraponto aos meios de reprodução midiáticos regularizados e controlados pelos regimes autoritários. O uso desses meios de reprodução e
circulação entre o público, as instituições e as pessoas envolvidas neste
circuito de comunicação, propõe uma relação entre a arte e a sociedade
transformadora do público em protagonista da criação em conjunto com
45 Padín se tornou desaparecido político durante alguns meses em 1977 e depois declarado oficialmente preso após a descoberta de seu cárcere pelo circuito alternativo artístico coletivo que
mobilizou a pressão internacional contra sua prisão. Em 1979 o artista foi condenado à prisão
domiciliar até 1984, sendo constantemente vigiado.
112
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
o artista.
Esta proposta de coletividade integra o trabalho do artista argentino Edgardo Antonio Vigo46. Sua produção artística multifacetada e
conceitual é composta por revistas, obras gráficas, arte postal e poesia
visual. Fazem parte da exposição seus trabalhos Assinalamentos, Obras
Incompletas e as publicações Hexagono’7147. São obras de caráter coletivo devido à circulação e a proposta de tornar o público participante
na arte em referência à necessidade de participação na sociedade através de mobilização popular em prol da resistência contra as ditaduras
(FREIRE, 2015d. p.146-205).
Nesta parte da exposição destacam-se também a obra de arte postal A verdadeira Arte é Anônima e as publicações da revista OVUM
do uruguaio Clemente Padín. Em A verdadeira Arte é Anônima, o artista critica através da arte postal o mercado formal de arte ao utilizar
materiais mais simples nas suas obras, como envelopes, recortes de
propagandas, entre outros materiais gráficos. Ao enviar os envelopes
sugerindo a intervenção na obra até que não haja mais apenas um autor,
ele propõe a produção coletiva e a circulação do trabalho (FREIRE,
2015c.). Padín foi um dos responsáveis pela publicação das revistas colaborativas Los Huevos del Plata (1965-1969), OVUM 10 (1969-1972)
e OVUM 2º período (1972-1975) dedicadas às práticas de poesia visual
e experimental, arte postal e crítica social e política. Através dessas publicações muitos trabalhos de arte postal de artistas latino-americanos
foram divulgados, viabilizando assim um espaço para experimentações
e circulação entre artistas.
Integra também esta parte da exposição a instalação Violência
do argentino Juan Carlos Romero, realizada primeiramente no CAYC
em 1973 e posteriormente montada na 31ª Bienal de São Paulo. VIOLENCIA é composta por montagens gráficas de registros fotográficos
da repressão brutal praticada pela ditadura argentina em conjunto com
frases e textos que fomentam a reflexão do público sobre a necessi46 A trajetória de Vigo é marcada pelo desaparecimento de um dos seus filhos durante a dita-
dura argentina.
47 Obras e textos de artistas argentinos e internacionais integravam a publicação Hexágono ’71
acompanhada pelo discurso de Vigo onde abordava ideias sobre arte experimental intercaladas
às discussões sobre a repressão política na Argentina e na América Latina.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dade de posicionamento frente aos acontecimentos. O artista faz uso
das imagens violentas recorrentes nos registros fotográficos dos jornais
que se tornaram triviais aos olhos da população; retira da imageria dos
meios de comunicação os registros fotográficos da violência do regime
opressor e, numa intervenção militante, problematiza essa brutalidade
ao propor a reflexão no público relacionando o espaço expositivo com o
espaço da rua. A presença ostensiva da palavra VIOLENCIA, impressa
no cartaz produzido em imprensa tipográfica popular, e o jogo dialógico
das frases e textos com as imagens trazem à tona a crueldade do regime
autoritário para além dos registros. Romero manipula a imagem e as palavras para apresentar a violência em aspectos além da contemplação;
mescla a apreciação estética à realidade dos acontecimentos presentes
nas imagens enquanto estimula o papel do espectador como agente necessário da mudança social.
A repressão durante os regimes ditatoriais vigentes na América
do Sul forçaram muitos artistas ao exílio, marcando suas trajetórias e
suas produções artísticas, levando-os à reflexão sobre a situação do artista latino-americano e o papel da arte no continente naquele período.
Desta reflexão emergiram trabalhos coletivos cujas propostas incluíam
engajar o público transformando seu papel na sociedade, sendo o artista
o mediador destas relações através da arte como pesquisa, intervenção e
conscientização – elementos-chave do conceitualismo latino-americano
dos anos 1960 e 1970. Segundo Cristina Freire, “o mapeamento dos circuitos subterrâneos de trocas revela comunidades transnacionais pautadas em estratégias de comunicação e criação, organizadas em redes
pré-digitais, como táticas de resistência artística e política” (FREIRE,
2015a. p.15). O relacionamento entre os artistas comprometidos com o
contexto político e social, suas trocas de ideias, conceitos e teorias revelam “o espírito moderno e as práticas revulsivas austrais, reunidos na
exposição, remetem à potência crítica originária desse Continente para
seguir ativando outras visadas e vizinhanças” (FREIRE, 2015a. p.15).
Não obstante, o conceito de transformação da sociedade através
de uma arte intrinsecamente relacionada ao contexto social latino-americano onde é produzida fora discutido décadas antes por Torres García
quando enfatizou seu ideal de arte integrada à vida e ao contexto da
América Latina (KERN, 2013, p.90). Ao projetar a identidade cultural
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
e a arte da América do Sul, suas teorias tornaram-se referências para as
discussões sobre o papel da arte e para a organização coletiva de artistas através de circuitos de comunicação alternativos num período cuja
manifestação de ideias contrárias aos regimes vigentes custou vidas.
Kern, ao afirmar que a missão de Torres García “não se condiciona ao
seu país, mas à independência da arte e das sociedades latino-americanas em face dos grandes centros cosmopolitas” (KERN, 2013, p.96),
evidencia que as ideias do artista ainda são basilares para artistas contemporâneos latino-americanos.
CONCLUSÃO
Artistas contemporâneos latino-americanos utilizam o repertório
cultural disponível através dos meios eletrônicos, da internet e de circuitos internacionais de informações em suas produções artísticas cuja
referência ao contexto social permeia tanto suas práticas quanto suas
obras. Estes artistas latino-americanos inseridos - ou não - no circuito
global apresentam ressignificações das influências culturais e artísticas
do hemisfério norte segundo contradições entre a recepção da cultura
hegemônica e a escolha de elementos dessa cultura que, em diálogo com
o contexto e a experiência dos artistas, compõe o processo da sua produção artística envolvendo a antropofagia, transculturação e hibridez
numa relação intercultural e conflituosa de insubordinação. Os artistas
latino-americanos insubordinam-se contra a dependência dos conceitos
da arte ocidental ao utilizarem a linguagem internacional para contestar
a supremacia do hemisfério norte e a estrutura hegemônica do circuito
global de arte. Desse modo, buscam “introduzir novas problemáticas e
significados provenientes de suas experiências diversas, e infiltrar suas
diferenças em circuitos artísticos mais amplos e até certo ponto mais
verdadeiramente globalizados” (MOSQUERA, 1996. p.15). A arte latino-americana rebela-se contra o cânone artístico ocidental que a enquadra em um nicho derivado da arte oriunda da Europa e dos Estados
Unidos ao apresentar linguagens e formas distintas de abordagem e
observância dos fenômenos culturais no mundo e no continente - que
apesar de ser formado por países heterogêneos, partilha acontecimentos
históricos e lutas em comum. Sua relação com o contexto político e
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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social a distingue de outras produções artísticas, a diferencia da forma
como a arte produzida no hemisfério norte aborda questões similares.
Sua particularidade de abordagem da tensão entre o local e o global, do
contexto político-social do continente e do papel da arte como meio de
subversão, protesto, reflexão e ação caracterizam-se como componentes
perceptíveis do que poderia ser um conceito da identidade artística latino-americana capaz de desenvolver relações geopolíticas que rompam
os discursos eurocêntricos de acordo com o processo de decolonização
e desconstrução da hegemonia econômica, política, cultural e simbólica do hemisfério norte. Pode-se afirmar apenas que, para pesquisar
sobre o conceito de identidade da arte latino-americana é necessário
debruçar-se sobre o contexto político e social do continente e investigar
como os artistas relacionam suas produções artísticas, ideias e teorias às
demandas da sociedade por mudanças. Enveredar por este caminho requer familiarizar-se com a produção artística e teórica de Torres García.
Ao inverter a corrente, ao virar o mapa de ponta cabeça e estabelecer
o sul como a direção para o desenvolvimento da arte genuinamente latino-americana, ele contesta a estrutura hegemônica e propõe as bases
para debates acerca da arte como uma linguagem capaz de conectar
o homem ao contexto em que está inserido numa relação de reflexão
e ação transformadora. Apesar das discussões sobre as características
da arte latino-americana demonstrarem a incompletude da definição do
conceito proposto por Torres García, é inegável a riqueza de sua contribuição para o desenvolvimento de produções artísticas engajadas e
fortemente relacionadas ao contexto político-social do continente, propostas que abordam a arte também como um meio de tornar o público
agente transformador da sociedade. Sem dúvida a exposição Vizinhos
Distantes buscou seguir por este caminho.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Imagens:
Figura 1: Joaquín TORRES GARCÍA. América Invertida. 1943. Tinta sobre papel, 22 x 16
cm, Fundación Torres García, Montevideo. Disponível em: <https://www.khanacademy.org/
humanities/art-1010/latin-america-modernism/constructivism/a/torres-garca-inverted-america>. Acesso em: 20/07/2021.
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Figura 2: Sergio MEIRANA. Superfície da Memória. 2008. Acrílica sobre madeira, impressão pb sobre papel e tela de plástico, 275 cm x 1000 cm x 760 cm, MAC USP, São Paulo.
Disponível em: <https://amoralegria.com/2017/02/18/sao-paulos-art-museums-mac-usp/>.
Acesso em: 20/07/2021.
Figura 3: Juan Carlos ROMERO. Violência. 1972-1974. Impressão offset em papel, 64 x 94
cm. MAC USP, São Paulo. Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-jtXstsLNb94/VBGAU1LaIGI/AAAAAAAAFvk/GVVYMOTyYtU/s1600/violencia1.JPG>. Acesso em: 21/07/2021.
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“O GROTESCO E O SUBLIME NA
OBRA DE G. B. PIRANESI”
Angela Rosch Rodrigues48 - angelarr@usp.br
Resumo: Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) foi um
arquiteto, antiquário e gravurista do século XVIII que difundiu a arquitetura e antiguidades romanas. O objetivo deste artigo é verificar em que
medida os conceitos grotesco e sublime foram incorporados por Piranesi
para compor suas gravuras em água-forte. Naquele contexto setecentesco, o significado do grotesco está atrelado à correspondência - ou a falta
dela - entre as lições da natureza e a invenção de elementos nas artes.
Giambattista não teorizou sobre o grotesco; mas se valeu dessa concepção a partir do estudo do aparato iconográfico da Roma Antiga que ele
dispunha através de suas incursões às ruínas, tendo dedicado uma série
exclusiva ao tema constituída por quatro Capricci. Além dessa série,
há figuras grotescas inseridas em toda obra piranesiana que contribuem
para potencializar a dimensão sublime associada às sensações de obscuridade, poder, privação, vastidão, infinidade e magnificência. O sublime
no século XVIII é um tema amplamente debatido. Toda a obra de Piranesi, mas, principalmente, a série intitulada Carceri d`invenzione, suscitou interpretações associadas a um viés eminentemente “Romântico”
entre fins do século XVIII e início do XIX, abordagens essas que foram
revistas ao longo do século XX. Conclui-se que o grotesco e o sublime
na obra de Piranesi são elementos trabalhados em conjunto para expressar a licença do gênio do artista que interpreta o problema espacial
de modo atrelado à temporalidade, concebendo eloquentes invenções
incisas onde o espaço é dinâmico, como é a imaginação, a memória e a
história.
48 Esta publicação faz parte da pesquisa de Pós Doutorado intitulada “A lição das ´rovine
parlanti´ e o legado de G. B. Piranesi para a história crítica da arquitetura - uma leitura sobre
o ´Parere su l`architettura´”, supervisionada pela Profa. Dra. Andrea Buchidid Loewen, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP no
Departamento: História e Estética do Projeto. A pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo: 2018/04931-2, processo BEPE:
2019/05236-9 e 2021/09340-5)
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Palavras-chave: Piranesi; ruínas; antiguidades; grotesco; sublime.
Abstract: Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) was
an architect, antiquary and engraver from the Eighteenth Century who
spread Roman architecture and antiquities. The purpose of this article is
to verify how Piranesi incorporated the grotesque and sublime concepts
to compose his etchings. In that context of the Eighteenth Century, the
meaning of the grotesque is linked to the correspondence - or lack of
it - between the lessons of nature and the invention of elements in the
arts. Giambattista did not theorize about the grotesque; but he took advantage of this conception from the study of the iconographic apparatus
of Ancient Rome that he had available through his incursions into the
ruins, and have dedicated an exclusive series to the theme consisting
of four Capricci. In addition to this series, there are grotesque figures
inserted in Piranesian work, which contributes to enhance the sublime
dimension associated with the sensations of obscurity, power, deprivation, vastness, infinity and magnificence. The sublime in the Eighteenth
Century was a widely debated topic. The whole work of Piranesi, but
mainly the series entitled Carceri d`invenzione, gave rise to interpretations associated with an eminently “Romantic” bias between the late
Eighteenth and early Nineteenth Centuries; these approaches were revised throughout the Twentieth Century. It is concluded that the grotesque and the sublime in Piranesi’s work are elements that were worked
together to express the license of the artist’s genius, who interprets the
spatial problem in a way linked to temporality, conceiving eloquent incised inventions where space is dynamic, as is the imagination, memory
and history.
Key words: Piranesi; ruins; antiquities; grotesque; sublime.
INTRODUÇÃO
Ao longo do século XVIII, o contato direto com os vestígios
da antiguidade proporcionado pela visita a Roma e arredores (com as
emergentes escavações em Pompeia e Herculano no Reino de Nápoles)
é um ponto nodal para a decodificação das artes em função de uma
aspiração em se estabelecer parâmetros mais racionalizados de inter-
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pretação do passado, numa chave eminentemente crítica em relação ao
precedente século XVI.
Contudo, a pretensa racionalização se funde a elucubrações;
a obra do gravurista, antiquário e arquiteto vêneto Giovanni Battista
(Giambattista) Piranesi (1720-1778) é um dos exemplos mais eloquentes desse amálgama: razão e sentimento no tempo da Ilustração.
Como profícuo difusor da arquitetura e das antiguidades de
Roma ao longo do século XVIII, na historiografia da arte, Piranesi passou a ser reconhecido como o “Rembrandt das ruinas”, alcunha instituída pelo biógrafo Giovanni Lodovico Bianconi (1779).
Ao longo de sua carreira, Giambattista produziu em torno de
1000 (mil) gravuras catalogadas e grande parte desse material foi dedicada às ruínas de Roma, cidade onde ele viveu e desenvolveu sua
carreira entre 1740 e 1778. O objetivo deste artigo é verificar em que
medida os conceitos do grotesco e do sublime foram mobilizados por
Piranesi para compor suas gravuras.
1. O GROTESCO
Na Encyclopédie (ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des
Arts et des Métiers), editada por Jean le Rond d’Alembert (1717-1783)
e Denis Diderot (1713-1784), o vocábulo “grotesque” (Tomo VII, p.
966-967) dispõe sobre um gênero nas artes convencionalmente constituído por excessos a serem evitados. Ao longo do verbete, a “Arte Poética” (Ars Poetica - c. 19 a.C.) de Horácio (c. 65-8 a.C.) é citada para
elucidar que, nas artes, deveria prevalecer certo equilíbrio e sabedoria
ao dispor da irracionalidade, que derroga a austeridade dos princípios:
Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça
humana um pedaço de cavalo, ajustar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de
mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto;
entrando para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o
riso? [...] A pintores e poetas sempre assistiu a justa liberdade
de ousar seja o que for. Bem o sei; essa licença nós a pedimos
e damos mutuamente; não, porém, a de reunir animais mansos
com feras, emparelhar cobras com passarinhos, cordeiros com
tigres. (HORÁCIO In: A poética clássica, 2014, p.55)
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Essas palavras de Horácio reverberam uma tópica também abordada pelo contemporâneo Vitrúvio (Marco Polião Vitrúvio - c. 80-15
a.C.) em seu tratado “De Architectura” (c. 25 a.C), quando este se refere às pinturas parietais do estilo pictórico pompeiano (c. 20 a.C.):
Todavia, estes modelos que se retiravam de coisas reais são
hoje considerados de mau gosto. Com efeito, nos estuques pintam-se mais monstros do que imagens determinadas de coisas
concretas [...] sem falar dos caulículos que têm figurinhas partidas ao meio, umas com cabeças humanas, outras, com cabeças
de animais. 4. Pois estas coisas não existem, nem se podem
fazer, nem nunca existiriam. Por isso, os novos gostos levaram
a que maus juízes negligenciassem a perfeição das artes. (VITRÚVIO, VII, cap. V, 3 In: MACIEL, 2006, p. 273)
As asserções de Horácio e Vitrúvio - cunhadas no século I a.C.
- refletem o que está no cerne do entendimento sobre o significado do
“grotesco”, ou seja, a correspondência - ou a falta dela - entre as lições
da natureza e a invenção de elementos nas artes. Essas reflexões se aplicam às pinturas que comporiam o Palácio Imperial de Nero (a chamada
Domus Aurea) construído entre os anos de 64 e 68, cujas estruturas
foram descobertas na Era Moderna em torno de 1480, na Collina Oppio
em Roma quando se pensou que se tratavam das ruínas das Termas de
Tito. Em 1496 apareceu pela primeira vez o termo “grotresche” denominado para definir essas pinturas antigas sepultadas nessas “grutas”.
Será Rafael Sanzio (1483-1520) junto com seu colaborador Giovanni da Udine (1487-1564) que compreenderam mais profundamente
a lógica desses sistemas decorativos reproduzindo-os organicamente
em diversos afrescos49.
No século XVIII, em meio a uma querela sobre o mérito das artes
dos antigos, G. B. Piranesi articulou sua defesa aos romanos, enfatizando que os gregos se empenharam na busca de uma vã beleza concebendo toda sorte de ornamentos sugeridos à capricho, discrepantes dos
elementos da natureza que os teriam inspirado.
Nos textos que acompanham suas gravuras, Piranesi retomou as
asserções de Horácio dispondo que tanto a poesia quanto a arquitetura,
49 Dentre eles na Loggia do Palazzo Apostolico (c. 1516) com a solicitação do Cardeal Bernardo Dovizi da Bibbiena (1470-1513).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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deveriam estar norteadas pelo dito: “Qualquer coisa deve ser simples
e única” (apud PIRANESI, 1761, p. cxxix - trad. nossa). É o decoro
- conforme o disposto na retórica de Cícero (106-43 a.C), bem como
apregoado por Vitrúvio como um dos preceitos fundamentais da arquitetura - que deveria nortear a verdade arquitetônica e sua relação com
os ornamentos. Atributos que, segundo Giambattista, os romanos conheciam por influência dos etruscos, e que superaram os gregos pela
capacidade inventiva.
É a partir dessa concepção do decoro - que promulga sobre a sintonia entre o todo e as partes -que Piranesi engenha suas “arquiteturas
ideias”, produtos de sua fase de maior maturação teórica em meados
dos anos 1760. Contudo, a licença na representação dos vestígios da
antiguidade é um moto contínuo nas séries piranesianas.
O nosso “arquiteto vêneto”, como Giambattista assinava, não
teorizou sobre o grotesco; mas, para conceber suas “invenções”, ele se
valeu dessa concepção a partir do estudo do aparato iconográfico da
Roma Antiga que ele dispunha através das muitas incursões às ruínas e
através de todo o material coletado em muitas escavações.
Os estudos decorrentes desse contato com as antiguidades levaram-no a inserir elementos grotescos de modo diversificado (Figura 1)
em suas invenções derivando-os também dos estudos das figuras humanas que tinha à sua disposição, conforme descrição do biógrafo G. L.
Bianconi:
[...] ao invés de estudar o nu e as mais belas estátuas da Grécia
que temos aqui, e que são a única boa maneira de aprender, ele
começou a desenhar os aleijados e corcundas mais descompostos, que via ao dia por Roma, [...], e quando encontrava um
desses espetáculos nas igrejas, ele parecia ter encontrado um
novo Apolo de Belvedere, ou um Laocoonte, e corria à casa
para desenhá-lo. Qualquer pessoa que tenha visto esta coleção
singular afirma ser essa a mais salutar meditação sobre as misérias humanas. (BIANCONI, 1779, p. 1)
Piranesi dedicou uma série exclusiva ao tema grotesco, constituída por quatro Capricci Grotteschi concebidos nos primeiros anos
de sua carreira: Gli scheletri; L`arco di trionfo; La tomba di Nerone
e La targa monumentale. Essas gravuras foram realizadas durante o
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retorno de Giambattista a Veneza entre 1745-1747 e foram concebidas
para serem publicadas como uma série autônoma, pois conservam uma
coerência iconográfica e uma uniformidade estilística. Elas somente publicadas no volume das Opere Varie 50 a partir de 1750, um compêndio
que Piranesi elaborou com suas principais obras realizadas até aquele
momento e que, posteriormente, teve outras edições.
Há uma complexa linguagem artística que permeia a elaboração
dessas pranchas. A princípio, pelos efeitos cenograficamente fantasiosos, denota-se uma evidente influência da pintura veneta coetânea, em
particular de Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770) que explorava o
efêmero mundo do capriccio barroco. A acepção de “capricho” naquele
contexto aludia a composições artísticas de diversos campos (dentre os
quais o da pintura, o da arquitetura e o da música) em que se privilegia
o gênio do indivíduo em detrimento às regras. Segundo o expresso na
Encyclopédie, o capriccio constitui:
uma composição bizarra, embora engenhosa, mas distante dos
preceitos da arte, como são as obras de Borromini, arquiteto da
Itália, [...] & muitos, outros destes dias; por uma imaginação tão
fértil quanto desregulada, valem-se das licenças que autorizam
a maioria dos jovens arquitetos sem experiência e sem regras a
imitá-los e, assim, tornar a arquitetura suscetível a variações,
como roupas, modas, [...] (ENCICLOPÉDIE, 1751,Tome II, p.
637-638)
No que tange ao complexo simbolismo dessas pranchas, Maurizio Calvesi51 (1967) propôs uma interpretação embasada na conexão
de Piranesi com a maçonaria52; nessa chave, os princípios alquímicos
e esotéricos delineiam a invenção dos caprichos. Ao verificar mais detidamente Calvesi (1967, p. XXVI-XXX), nos deparamos com uma
leitura dos quatro capricci grotteschi piranesianos através do desen50 Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani.
Embora a obra seja datada de 1750, houve várias versões posteriores com acréscimos de gravuras.
51 No texto introdutório de 1967 à versão em italiano da tese de Henri Foncillon dedicada a
Piranesi.
52 Missivas enviadas a Robert Mylne e Thomas Hollis (respectivamente em 1760 e 1770)
confirmam a filiação de G. B. Piranesi à maçonaria (respectivamente em 1760 e 1770 - ver
BEVILACQUA, 2008, p. 69 - notas 34 e 35).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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volvimento cíclico de quatro tempos, vinculados aos quatro momentos
dispostos na cultura hermético-alquímica de raízes Renascentistas que
chegam à simbologia maçônica do século XVIII. Calvesi também faz
associações com o ideário de Giambattista Vico (1668-1744), filósofo
napolitano fundamental para o embasamento da concepção histórica
desenvolvida a partir do Iluminismo. A historiografia crítica apresenta
Vico como uma referência para compreender aspectos da obra de Piranesi, considerando a influência do napolitano no ambiente setecentesco,
principalmente, a partir da publicação da obra “Scienza nuova” (1725).
Acompanhando a explanação de Calvesi, a primeira prancha
(Figura 2) corresponderia ao elemento terra, à estação do inverno, há
uma massa confusa que alude à putrefação representada por esqueletos
ou cadáveres. No alto à direita, aparece uma faixa zodiacal que corta
o céu com o signo de escorpião, que astrologicamente remete à morte
e tem uma indiscutível conexão com essa fase da “putrefactio”. O escorpião é um signo que está sob a influência do deus Marte, em efeito
à esquerda se veem homens armados delineados em baixo relevo. Esse
obscuro início da história consta na obra Vico e poderia compor uma
imagem de lutas e de guerras, ou de alusão ao pecado original. A água
sendo versada poderia remeter à destruição (ao dilúvio).
O segundo Capriccio Grottesco (Figura 3), corresponderia à estação primaveril, uma fase historicamente mais evoluída. Há um processo de redução progressiva da densidade escura na gravura: o céu
se abre, se delineia um arco triunfal, junto ao qual a figura de um rio,
denotado pela ânfora que versa água; à esquerda uma palmeira e uma
espécie de esfinge na qual se reconhece um dos dois leões egípcios dispostos na colina do Campidoglio em Roma. A simbologia egípcia sugerida pela palma e pela esfinge indica que o rio poderia ser identificado
como o Nilo, associando a água com a purificação. Historicamente estamos diante da fase de revelação egípcia, cara à fantasia hermética e que
nas sucessões de eras em Vico corresponderia à fase dos “heróis” que
poderiam estar representados pelo grupo de homens no centro da cena;
despostas as armas esses personagens parecem inspecionar as ruínas.
No terceiro Capriccio (Figura 4), Calvesi vê uma correspondência com o elemento ar, pelos indicativos aéreos mais claros que nas
pranchas precedentes: uma nuvem avança através do primeiro plano;
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
um delfim que salta (provavelmente símbolo do deus Mercúrio) concedendo uma ideia de leveza e vitória sobre o peso terrestre; o céu é límpido e a luz aparece mais intensa e vibrante. Estaríamos no dia pleno,
no verão, com o triunfo do Sol. As serpentes simbolizam uma ideia de
união, de aliança. Haveria uma relação com uma terceira fase da história, como idealizada por Vico: após a revelação egípcia, a idade romana
teria alcançado o equilíbrio e a ordem civil com bases na justiça e paz.
No quarto e último grottesco (Figura 5), haveria uma correspondência com o elemento fogo, com a hora do ocaso e da estação outonal.
O líquido versado a partir de uma mão que segura um cálice seria o
vinho, como símbolo do espírito que evapora ao tentar ser aprisionado
numa garrafa. Abaixo, uma ampulheta e caveiras, símbolos da morte
e do tempo vencidos pela ressurreição do espírito; mais embaixo, o
caduceu com as serpentes entrelaçadas que testemunham a fase da liberação e ascensão do espírito de Mercúrio. O fogo é visível em primeiro
plano; segundo Calvesi, esses elementos configuram uma clara alusão
à conclusão do opus alquímico: a transmutação, o triunfo do espírito.
Poderia haver ainda uma alegoria vinculada às ideias de Vico sobre o
triunfo da história ideal eterna sobre a história entendida como contingência temporal.
Com a finalização dessa abordagem, Calvesi considera que há
nessa série de Piranesi um essencial aspecto ligado à sazonalidade do
universo nos seus cursos e transcursos, aludindo à história como ciclo vital. No âmbito da historiografia crítica, a interpretação de Calvesi
constituída por perscrutações de viés esotérico, embasadas na alquimia
e na filiação maçônica de Piranesi, tem sido um ponto de divergência, sujeita a debates e revisões. Mais recentemente, Francesco Nevola (2009) apresentou outra abordagem sobre os temas narrativos das
pranchas, mencionando o poema épico de Hesíodo (séc. VIII a.C) - Os
trabalhos e os dias - de forte conotação moral; segundo Nevola (2009,
p. 184-196), através desse poema, Piranesi teria elaborado o mito grego
das eras históricas.
O fato é que Giambattista visivelmente se apropriou do repertório derivado do contato com as ruínas para compor seus fantasiosos
caprichos, em que as figuras grotescas se mesclam ao tema do memento
mori. Essa tônica, contudo, não é exclusiva da série Grotteschi, mas é
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perceptível na quase totalidade da produção piranesiana que teve início em 1743 com a obra Prima parte d`architetture e prospettiva e foi
finalizada em 1778 com a obra póstuma sobre as Diferentes Vistas dos
Templos de Pestum53.
A confluência entre o espaço e o tempo dá o tom aos Grotteschi
e as pranchas são sublinhadas pelas características técnicas da água-forte que, através do apropriado domínio das texturas incisas, permitem
ampliar a percepção das nuances de claro e escuro.
2. O SUBLIME
Em 1757, Edmund Burke (1729-1797) publicou A Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful. Para ele, o sublime estaria conectado com as ideias e sensações
do terrível, do doloroso, do ameaçador e do tenebroso que podem ser
desencadeadas a partir da visualização de elementos da natureza e do
entendimento da condição de finitude do ser humano. Essa obra tornou-se paradigmática no ambiente “Romântico” de fins do século XVIII
e início do XIX; nesse contexto a dimensão “sublime” tornou-se uma
chave de leitura para a produção de Piranesi.
Pelo teor das gravuras, é contundente como Giambattista estava
perpassado pela ideia do sublime. Contudo, ele não chega a teorizar
sobre o tema nos textos que acompanham suas pranchas, com exceção
da breve passagem: “do medo, emana o prazer” (PIRANESI, 1769).
A historiografia crítica não é consensual sobre a influência de
Edmund Burke em Piranesi (ou ao contrário). Segundo Rykwert (1982,
p. 292), não teriam sido os preceitos sobre o sublime articulados na teoria de Burke que influenciaram Piranesi, mas outras referências; dentre
elas, a do abade Jean-Baptiste Du Bos (1670-1742) - Abbé Du Bos francês, ligado à Academia Francesa em Roma e defensor da ideia que
do terror pode advir o prazer. Essa concepção sobre o sublime estaria
vinculada à oratória, a partir de outro ensaio mais longevo, que fazia
parte do repertório dos antigos com o qual Giambattista era familiarizado: o texto “Do Sublime” (séc. I) atribuído a Longino ou Dionísio. Se53 Differentes vues de quelques restes de trois grands édifices qui subsistent encore dans le
milieu de l’ancienne ville de Pesto autrement Possidonia, et qui est située dans la Lucanie.
128
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gundo M. Calvesi (1967, p. XVIII), com o ressurgimento desse tratado
sobre o sublime a partir de 1674 - devido à tradução de Nicolas Boileau
(1636 -1711) do texto em grego para o francês - a temática se expandiu
na França e Inglaterra; a teorização de Burke seria o coroamento dos
efeitos do contato com essa obra da antiguidade.
Nessa passagem de Longino sobre a elocução é possível depreender a relação com a proposta pelas imagens de Piranesi:
I. 4: Não é a persuasão, mas o arrebatamento, que os lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável com
seu impacto, supera sempre o que visa a persuadir e agradar; o
persuasivo, ordinariamente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam um poder, uma força irresistível e subjugam
inteiramente o ouvinte. A habilidade da invenção, a ordenação
da matéria e sua distribuição, nós a custo as vemos emergir, não
de um, nem de dois passos, mas do total da textura do discurso,
enquanto o sublime, surgido no momento certo, tudo dispersa
como um raio e manifesta, inteira, de um jato, a força do orador.” (LONGINO In: A poética clássica, 2015, p.72)
A eloquência persuasiva das invenções piranesianas será um
dos aspectos destacados na biografia de francês Jacques-Guillaume Legrand (1821)54:
A verdade e o vigor de seus efeitos, a correta projeção de suas
sombras e sua transparência, ou alegres licenças a esse respeito,
a própria indicação dos tons de cor se devem à exata observação
que ele ia fazer a cada dia, seja ao sol escaldante, seja ao luar,
onde as massas arquitetônicas adquirem tanta força, e têm uma
solidez, uma suavidade, uma harmonia, muitas vezes muito superior à luz bruxuleante que espalha o dia. (LEGRAND, 1821
In: MORAZZONI, 1920, p. 57)
No início do século XIX, a difusão de uma interpretação sobre a
obra de Piranesi pautada por um viés que enaltece o “sublime” se dissemina. As palavras do contemporâneo romancista inglês Horace Walpole (1717-1792) demonstram o impacto que alguns artistas e diletantes
experimentavam com suas gravuras:
54 A biografia de Legrand foi produzida no início do século XIX sob encomenda dos filhos de
Giambatttista Piranesi.
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Sonhos sublimes de Piranesi [...], ele imaginou cenas que abalam a geometria, [...]. Ele empilhou palácios e pontes, e templos
em palácios, e escadas celestiais com montanhas de edifícios.
Que gosto na sua ousadia! Que grandeza na sua impetuosidade!
Que trabalho e pensamento tanto em sua imprudência quanto
em seus detalhes. (WALPOLE, 1759 apud BEVILACQUA,
2008, p. 277)
A sublimidade de Piranesi é alcançada através de um inescrutável
amálgama entre a dimensão temporal e espacial que se materializa nos
grandes maciços arruinados, nos fragmentos e nos ambientes pouco definidos de uma arquitetura (preferencialmente a dos romanos) de escala
magnânima, envoltos por uma inexorável degeneração provocada pela
passagem do tempo; o domínio da técnica da água-forte dá a tônica
para o eloquente contraste entre os claros e escuros. Esses aspectos estão disseminados nas diversas séries de invenções piranesianas como
as notórias Le Antichità Romane (Figura 6) - e Vedute di Roma; mas, as
composições dos Carceri d`invenzione. (as Invenções sobre os Cárceres) talvez sejam os exemplos mais emblemáticos.
As Carceri d`invenzione foram realizadas por Piranesi nos anos
1740 e retrabalhadas, do ponto de vista técnico e compositivo, em 1761
(Figura 7), reverberando as palavras de Burke sobre a percepção da arquitetura que, a fim de suscitar a ideia do sublime, deveria ser obscura e
tétrica. Percebe-se a distensão dos planos de perspectiva que desdobram
um espaço (Figura 8), concebido com base nos vestígios arqueológicos
da antiga prisão de Roma - o Marmetino. Nessas gravuras, Giambattista
insere referências aos suplícios através dos instrumentos de tortura e das
figuras humanas que remetem aos opressores e aos cativos.
Marguerite Yourcenar (1903-1987), no ensaio Le cerveau noir
de Piranèse (1959-61) menciona que o destino dos Carceri foi diferente do restante da obra de Giambattista. As pranchas, pouco apreciadas
em sua época, encantaram poetas a partir do século XIX. No círculo
francês55, Víctor Hugo (1802-1885) mantinha um especial apreço por
Piranesi; é do escritor francês a citação que compõe o título do ensaio
de Yourcenar - “o negro cérebro de Piranesi”. Hugo remete aos Carceri
55 Os escritores Luzius Keller (1966) e Georges Poulet (2018) tratam mais profundamente da
relação de Piranesi com os “Românticos” franceses.
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como essas “espantosas torres de Babel que sonhava Piranesi” (apud
YOURCENAR, 1985, p. 14).
Não obstante a repercussão na França, na Inglaterra, a influência dos Carceri exerceu grande força sobre a imaginação dos artistas.
O mesmo Walpole, citado acima, via nas gravuras das prisões “umas
cenas caóticas e incoerentes onde a morte ri sarcasticamente” (apud
YOURCENAR, 1985, p.14); essas imagens ressurgem na novela “The
Castle of Otranto” publicada em 1764, três anos após a edição definitiva dos Carceri, e onde o cenário é uma imaginária fortificação italiana.
O escritor William Beckford (1760-1844) também era um dos admiradores de Piranesi, e as espaçosas salas subterrâneas da sua obra Vathek,
publicada em 1784, poderiam ser uma referência às prisões piranesianas.
A despeito da relevância dos comentários de Walpole e Beckford, dois mestres da novela “gótica”, sobre a obra de Piranesi, a referência mais impactante sobre os Carceri aparece posteriormente. Thomas Penson De Quincey (1785-1859) escreveu em 1821 as Confessions
of an English Opium-Eater onde menciona a referida obra de Giambattista através das impressões de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834):
Um dia que eu estava olhando as `Antiguidades de Roma` de
Piranesi, em companhia de Coleridge, este me descreveu uma
série de gravuras desse artista intituladas ´Sonhos´, onde representava suas próprias visões durante um delírio produzido
pela febre. Algumas dessas gravuras (as descrevo embasado
unicamente na lembrança do que me contou Coleridge) representam uns amplos vestígios góticos, formidáveis artefatos ou
máquinas: rodas, cabos, catapultas, etc., eles dão testemunho
de um enorme poder posto em marcha ou de uma enorme resistência superadas. Vê-se uma escada, que se eleva ao longo
de uma muralha, e a Piranesi tateando seus degraus. Um pouco
mais acima, a escada acaba subitamente, sem nenhum tipo de
corrimão e sem oferecer mais saída que a de cair no abismo.
Seja o que for do desafortunado Piranesi, supõe-se que de uma
maneira ou de outra suas fadigas terminaram aí. Mas eleve os
olhos e vereis uma segunda escada, situada ainda mais acima,
sobre a que encontramos de novo a Piranesi, desta vez de pé na
borda externa do abismo. Levanta a vista mais uma vez e vislumbrareis uma série de degraus ainda mais vertiginosos e, em
cima desses, o delirante Piranesi prosseguindo sua ambiciosa
escalada, e assim sucessivamente, até que aquelas escadas infinitas, e aquele desesperado Piranesi se perdem juntos por entre
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as trevas das regiões superiores. Com essa mesma capacidade
de ilimitado desenvolvimento crescia a arquitetura de meus sonhos, multiplicando-se até o infinito [...] (DE QUINCEY, 1821
apud YOURCENAR, 1985, p.14-15)
Yourcenar salienta como nessa passagem há simultaneamente
uma fidelidade ao espírito da obra de Piranesi e pouca exatidão sobre
a realidade. O título, em primeiro lugar é errôneo, já que as “Prisões”
nunca se chamaram “Sonhos”. Em seguida, a imagem de vestíbulos
góticos, introduzidas de modo inconsciente por esses dois grandes “Românticos” (De Quincey e Coleridge) num mundo arquitetônico especificamente romano. Mas, sobretudo, buscaríamos em vão nas pranchas
que compõe a série completa dos Carceri essa escada que prossegue
sua ascensão, interrompida, onde o próprio Piranesi reaparece cada vez
um pouco mais acima. Essa interpretação de De Quincey em chave
“Romântica” associa o nome de Piranesi a um universo onírico, labiríntico, de repetição infinita, norteando uma sensibilidade aos Carceri
na literatura, já que serão inumeráveis as referências a essa página de
De Quincey.
Também é relevante considerar como que esses poetas removeram a temática da prisão, tão cara a outras interpretações artísticas e
literárias, como, mais tarde no ensaio de Aldous Huxley Variations on
the prisons (1949), mencionando que todas as pranchas evidenciam:
“variações de um único símbolo, que se refere às coisas existentes nas
profundezas físicas e metafísicas das almas e dos corpos humanos, à
acídia e à confusão, ao pesadelo e ao medo, à incompreensão e ao pânico temeroso” (HUXLEY, 1949 apud POULET, 2018, p. 22).
M. Calvesi em 1967 (p. XIX) propõe outra abordagem sobre
os Carceri procurando se descolar dessas interpretações. Ele retoma o
real interesse de Piranesi pela arquitetura romana, um tema expresso
em tantas de suas obras, em especial na coetânea Della magnificenza ed
architettura de` romani (1761). Segundo Calvesi, para Giambattista o
sublime espetáculo da grandeza de Roma não é só material, mas é, principalmente, moral denotando uma fé “cívica”; assim, o que se evidencia
com maior potência nas pranchas dos Carceri, é a obsessão de Piranesi
pela grandeza do passado (de Roma), e seu desejo de tocar os vértices
morais da civilização romana.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em pleno século das Luzes, Giambattista Piranesi incorporou
em sua trajetória artística os conceitos do grotesco e do sublime que
remontam à antiguidade - seja através das pinturas que chegaram até a
Era Moderna através do contato com os remanescentes da Domus Aurea, seja através do Tratado do Sublime, atribuído a Longino.
Giambattista estabeleceu, portanto, para a historiografia um
ponto de conexão entre os debates artísticos sobre esses dois conceitos
(grotesco e sublime) que emergem a partir do século XV e repercute
para os posteriores séculos XIX e XX.
Com os elementos iconográficos grotescos, nosso artista vêneto
concebeu um arsenal ornamental que, em suas invenções arquitetônicas, foi incorporado ao conjunto dos grandes maciços dos edifícios da
antiguidade romana, na maioria das vezes em estado de ruína. As figuras grotescas também contribuem para a dimensão sublime da obra de
Piranesi configurando as sensações de obscuridade, de poder, de privação, de vastidão, de infinidade e de magnificência.
Mas, a constituição do sublime em Piranesi está associada, principalmente, à sua interpretação sobre a problemática espacial no âmbito
temporal. Através das sensações provocadas pela sublimidade das invenções incisas, o espaço é alargado, mutável, dinâmico, rico de repentinos avanços e retornos, como é o espaço da imaginação e da memória.
O grotesco e o sublime em Piranesi são, portanto, elementos
trabalhados em conjunto constituindo os meios para expressar a licença
do gênio do artista. A percepção, interpretação e representação do problema espacial e temporal atuam para ir além de uma mera cenografia
característica do barroco; assim, Piranesi aceita e incorpora, definitivamente, a dimensão histórica estabelecendo um ponto de inflexão para
os debates da modernidade.
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Ugo Bozzi Editore, 2009.
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YOURCENAR, Marguerite. The dark brain of Piranesi and other essays.
New York: Farrar, Straus and Giraux Inc., 1985.
Imagens:
Figura 1: Giovanni Battista PIRANESI. Seis máscaras romanas (Six roman masks). S. data.
Caneta e tinta em papel, 203 x 342 mm. Coleção The Morgan Library & Museum. Disponível em:https://www.themorgan.org/sites/default/files/images/collection/drawings/download/142432v_0001.jpg Acesso: 20 novembro 2021
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Figura 2: Giovanni Battista PIRANESI. Gli scheletri. 1750. Gravura 390 x 547 mm. In:
PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli
antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s.
Ed., 1750, p. 26. Coleção: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21.
Figura 3: Giovanni Battista PIRANESI. L`arco di trionfo. 1750. Gravura 390 x 547 mm. In:
PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli
antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s.
Ed., 1750, p. 27. Coleção: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21.
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Figura 4: Giovanni Battista PIRANESI. La tomba di Nerone . 1750. Gravura 390 x 547
mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul
gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 28. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em:
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21.
Figura 5: Giovanni Battista PIRANESI. La targa monumentale. 1750. Gravura 388 x 540
mm. In:PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul
gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 29. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em:
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21.
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Figura 6: Giovanni Battista PIRANESI. Veduta degli avanzi di fabbrica magnifica sepolcrale
co`sue Rovine, 1756. Gravura 395 x 525 mm. In: PIRANESI, G. B. Le Antichità Romane.
Roma: Stamperia di Angelo Rotilj, 1756, Tomo II, prancha LX, p. 60. Coleção: Biblioteca
Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em
20 nov. 21.
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Figura 7: Giovanni Battista PIRANESI. Carceri d`Invenzione – frontispício (2. Estado),.
1761. Gravura 545 x 410 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive
Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 43. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de
Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21.
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Figura 8: Giovanni Battista PIRANESI. Carceri d`Invenzione - Pilastro con catene e due
busti nelle nichie, 1761. Gravura 400 x 550 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise
da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 58. Coleção: Biblioteca
Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em
17 nov. 21.
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DO ABSTRACIONISMO À VIRTUALIDADE.
WILLYS DE CASTRO E CRISE DE
EXPANSÃO DA MODERNIDADE
Antonio Herci Ferreira Júnior56 - antonio.ferreira@usp.br
Resumo: Este ensaio interpreta a transição para a contemporaneidade
como um movimento de expansão — e não de esgotamento — da modernidade, com a reafirmação do construtivismo, do abstracionismo e a
noção de virtualidade.
Palavras chave: Continuidade; Radicalidade; Disruptura; Transcendência; Crise de expansão.
Abstract: This essay interprets the transition to contemporaneity as a
movement of expansion - rather than exhaustion - of modernity, with
the reassertion of constructivism, abstractionism, and the notion of virtuality.
Keywords: Continuity; Radicality; Disruption; Transcendence; Expansion crisis.
INTRODUÇÃO
Willys de Castro (1926-1988) transita por uma grande variedade de meios e linguagens — música, pintura, escultura, figurino e
cenografia, poesia, design de moda, design gráfico e de produto.
Além da diversidade de meios, desenvolve também diversas
técnicas e diferentes abordagens criativas e originais: musicalização de
poemas concretos; composição de poesia concreta com máquina de es56 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Transcendência do meio e
estado artístico da obra: a trajetória construtiva de Willys de Castro”, orientada pelo Prof. Dr.
Edson Leite, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo. A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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crever e datilografia sobre papel, mas também sofisticadas técnicas de
design gráfico e diagramação; nas artes visuais utiliza-se de fundição,
pintura em óleo, esmalte e acrílico sobre tela, madeira, papel e papelão,
revestimento, encapamento e cobertura de material sólido; inovou em
tingimento, artesanal e industrial, pigmentação de tecidos para design
de moda, figurino e cenografia para Teatro e novas tecnologias do design gráfico de diagramação e composição, artística, jornalística, empresarial e publicitária.
A relevância de ter transitado por diversas linguagens se revela
no plano de longo prazo que caracteriza sua jornada criativa: a transcendência ou transbordamento do meio e a exploração sistemática dos
limites entre as linguagens, formas expressivas ou classificatórias nas
artes.
Através dessa estratégia, mobiliza paradigmas que se tornarão
eixos centrais nas décadas seguinte e na virada para o século XXI: o site
específico, o campo expandido e a virtualidade. Mas, ao mesmo tempo,
fortalece e reverbera alguns valores axiais da modernidade.
A interpretação de sua produção nos permite uma abordagem
crítica de alguns pontos teóricos que motivaram o debate estético marcado pela polêmica da pós-modernidade, particularmente oferecendo
uma forma de interpretar essa crise da modernidade como uma crise de
expansão, e não de esgotamento, através de um complexo movimento
de continuidade, radicalidade, disruptura e transcendência.
Continuidade no sentido moderno de afastar a estética de uma
interpretação essencialista e incluí-la no rol da expressão intrínseca a
um modo de vida e seu ambiente, na aproximação entre arte e vida,
além da estetização do cotidiano.
Radicalidade no minimalismo, abstracionismo geométrico,
aprofundamento do projeto construtivista, fortalecimento da sintonia
com o avanço tecnológico, de informação, design e exploração das técnicas de simulação, virtualização e seriação de obras.
Disruptura no afastamento dos discursos generalizantes sobre
os não lugares — as utopias — característica de certas vanguardas modernas e a vinculação a um projeto que coloca a obra de arte como algo
que acontece de forma atual, isto é, tem um lugar próprio e aponta para
uma territorialidade.
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E, principalmente, transcendência, como uma suma das questões anteriores, indo além das dicotomias das tradicionais oposições,
como entre o moderno e o contemporâneo e, ao invés de opor um pensamento novo contra ou arremessado para aniquilar um pensamento
antigo e ultrapassado, vê-se dinamicamente situado em um espaço contemporâneo possibilitado, justamente, pela radicalidade da “inquietude
dos esquemas formais modernos” (BRITO, 1980, p. 206), do minimalismo, desconfiguração ou desmaterialização do objeto — em seus objetos ativos, por exemplo (CASTRO, 1961) — e fugacidade das regras
de produção simbólica ou julgamento estético.
Um campo ampliado e expandido caracterizado por uma reflexão produtiva, viva e pulsante da obra moderna, não como uma “figura
clara, com âmbitos plenamente definidos”, mas sim
Um feixe descontínuo, móvel, a se exercer na tensão com os
limites da modernidade, interessado na compreensão e superação desses limites. Não há uma diferença evidente entre o
trabalho moderno e o trabalho contemporâneo válida por si;
há, isto sim, démarches distintas agindo ‘dentro’ e ‘fora’ deles.
(BRITO, 1980, p. 206, destaques do autor)
Segundo Brito, “dentro” porque a arte contemporânea não é
mais fundado em uma arte idealizada da modernidade, mas como ela
“resultou assimilada e recuperada” e “fora” porque “os procedimentos
são outros” (BRITO, 1980, p. 206–207).
Nas palavras de Ricardo Fabbrini: “não se trata, porém, de
decretar, sem mais, ‘a morte do novo’, mas de redefinir o sentido do
‘novo’” (FABBRINI, 2013, p. 178).
Fabbrini afirma, ainda, que existe uma dialética “interna à modernidade que se manifesta no caráter afirmativo de certas vanguardas,
e negativo, em outras”:
De modo que se constituíram, ao longo do século XX, duas
linhagens, ainda nos termos da historiografia. A primeira é a das
vanguardas construtivas, positivas, afirmativas, compromissadas com o capitalismo industrial, como o futurismo, e a escola
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
143
da Bauhaus [...]. A segunda linhagem é a das vanguardas líricas,
ou pulsionais, como no caso do sortilégio anarco-dadaísta, que,
desde o início do século, fez a crítica desse compromisso com a
racionalidade técnica ou instrumental. (FABBRINI, 2012, pág.
32)
Essas duas linhagens, entretanto, mantém em comum o objetivo de aproximar a arte da vida comum e da “estetização do real”, ainda
que com estratégias diferentes.
Willys de Castro apresenta ambas as características, transitando do concretismo ao neoconcretismo: por um lado estando integrado
ao sentido do progresso técnico e compromisso com o mundo do trabalho e industrial. Por outro, também portando um inerente e grande
criticismo ao processo de massificação e exploração do trabalho e do
aumento das contradições sociais, sabendo-se, quanto a isso, que ambos
os movimentos aos quais esteve ligado, concretismo e neoconcretismo,
tinham fortes ligações com movimentos de resistência à Ditadura Militar.
O movimento que caracteriza o concretismo em sua passagem,
metamorfose ou ruptura ao neoconcretismo, oferece muitas nuances
que devem ser consideradas, para além de uma abordagem de ruptura.
Willys de Castro coloca-se, ainda, no centro crítico de uma
polêmica sobre a pós modernidade: por exemplo, antes de demonstrar
uma submissão acrítica ao capitalismo, ou antes de se “transformar em
farsa” (JAMESON, 1992, 2001): não apenas os pensamentos concretos
e neoconcretos eram explicitamente ligados ou referenciados ao pensamento de esquerda, dos comunistas Ferreira Gullar ou Mário Pedrosa
(MARI, 2001) como eram parte importante de um ativo discurso político de resistência contra a ditadura e, sem dúvida alguma, de uma estética e atuação artísticas extremamente inovadoras e criativas, mesmo que
concretizadas com instrumentos da indústria do design ou sob a tutela
da publicidade.
Em diálogo também com a perspectiva Harvey (1998), Willys
confirma uma alteração profunda no tratamento do tempo e espaço da
obra, através dos conceitos de entropia e estado de coisas. Na de Lyotard (2008) poderia corroborar o diagnóstico da dissolução das grandes
metanarrativas e sua pulverização em narrativas cada vez mais parti144
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
culares e subjetivas que não tem preocupação com o reconhecimento
universal, mas com a construção de territórios conceituais.
Isso mostrava que não existia apenas “um construtivismo”
mas “construtivismos”, e que a sua radicalidade não passava simplesmente pela construtividade como submissão ao artefato industrial, mas
sim a construtividade como possibilidade concreta de revelação ou desvelamento justamente da farsa da ditadura ou, generalizando, da farsa
da ideologia, cuja característica é se auto ocultar nos hábitos e na vida
comum, mas que pode ser desvelada pela dialética dos conceitos e pelo
apelo concreto a uma arma impensada pelas próprias vanguardas tradicionais: a concretude da linguagem, literalmente o ponto de encontro
da arte, da teoria, da ciência, do conhecimento e matéria bruta da ágora.
1. CONTINUIDADE
Willys de Castro revela um processo construtivo que incorpora, como ideário, as questões colocadas acima como parte de um cuidadoso planejamento estético, temático e curatorial que envolve seus
Objetos Ativos e seus Pluriobjetos.
Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que apresenta uma continuidade do projeto de considerar a obra de arte fixada como estado de
arte a partir de seu uso, e não como possuidora de uma essencialidade
que a defina para além disso e que pode ser visto como uma mediação
do movimento do concretismo ao neoconcretismo, como uma continuidade do projeto construtivista.
Em um primeiro aspecto afirma-se que a criação artística de
Willys de Castro se vincula a um ideário de si mesma, um conjunto de
princípios ou preceitos teóricos ou conceituais que a CONCRETIZA
como modelo, dando consistência à teoria da qual emana. Isso partindo-se do fato de que uma teoria é consistente na medida em que apresenta
modelos.
Nesse sentido, a CONCRETUDE dessa estética pode ser visto
na expressão modelar de sua realização. Tal concretude depende, por
outro lado, de um jogo de linguagem que pode constituir a partir de
sua construtividade, isto é, de suas relações interativas de significação
que demandam não do ideário de um objeto pronto e acabado, mas do
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
145
processo permanente de seu desvelamento, a construção do seu sentido
acumula a virtualidade do planejamento, a construtividade do trabalho,
o fundamento da matéria e o seu sentido estético como certeza habitual
de uma percepção que, sabendo que é virtual, pode paramentar-se de
certeza e verdade objetal.
Por isso mesmo guarda, em sua significação, um aspecto que
podemos chamar de construtivo, pois torna-se concreto na medida em
que realiza um modelo segundo uma relação de significação que depende, em última instância, dos jogos de linguagem ou jogos de certezas
habituais de um determinado modo de vida cultural.
Reafirma-se como CONCRETA na medida em que não se vale
de essências, de beleza ou sublimidade na constituição do valor, mas sim
das relações concretas em que se insere como parte dessa humanidade
compartilhada. Importante frisar que tal interpretação de CONCRETO
é coextensiva e compatível com a interpretação de CONCRETO a partir da não referencialidade da linguagem ou representação autônoma de
seus recursos, sejam sonoros sejam pinturas, sólidos ou palavras.
No entanto, a linguagem não abarca a relação entre a concretude e a transcendência, dela mesma, em pura virtualidade, pois não
pode descrever nem uma nem outra. Assim como o visível e o invisível,
a linguagem não tem como expressar algo que é sendo ali mesmo uma
percepção de mundo: ao falar dela, já não é percepção, mas uma cadeia
textual que se volta para outra percepção, em outro momento completamente distinto do original.
Uma imagem que vem na lembrança jamais será comparada
a um texto que a descreva, a não ser por uma ligação que é, ao mesmo
tempo, o elo de ligação entre um momento e outro do solipsismo de
instantes presentes que, embora encadeados em uma crença de unidade,
expõe um fosso inexpugnável de ontologias de serem no mundo coisas
em seus instantes presentes como que objetos diferentes.
2. RADICALIDADE
Tal concretude depende, por outro lado, de um jogo de linguagem que pode construir a partir de sua performatividade, isto é, de suas
relações interativas de significação, o seu sentido estético como mensa146
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
gem. Performatividade de si como aspectos de seu processo para constituir o estado de arte e performatividade do ponto de vista do observador em seu processo de subjetivação, que será o resultado da imersão
no mundo da obra, autônoma, mas agora inserida em uma significação
relacional. Essa relação demanda uma radicalidade no aprofundamento
da arte como um objeto fabricável, serializável e reprodutível, pois cada
experiência será única, como a própria relação vital entre a vida e os
objetos fabricados em série, padronizados, mas únicos quando imersos
em uma relação pessoal com seu possuidor ou observador.
Sob esse aspecto e segundo interpretação de Lyotard (2008)
aproxima-se das formulações sobre a polêmica da pós-modernidade, ao
expressar uma crise e esgotamento dos “grandes metadiscursos” transitando para um discurso intrínseco de si mesma, uma forma de, ao mesmo tempo, significar e oferecer, a partir do modelo da teoria, também
os parâmetros de verificação e apreciação como valores ou conceitos.
A obra “inaugura-se no mundo como um instrumento de contar a si próprio” (CASTRO, 1961).
Segundo Lyotard (2008) esses metadiscursos passam por uma
crise que se caracteriza justamente pela falta de credibilidade nos valores e falta de padrões de reconhecimento e verificação universais. Por
outro lado, revelam sob novos aspectos a mesma arena cultural que,
se antes travava-se predominantemente na “arena da produção”, passa
a se espalhar “tornando a produção cultural uma arena de implacável
conflito social” (HARVEY, 1998, p. 65) o que nos aponta, apesar da
mudança da amplitude da “arena”, uma continuidade de sua presença
marcante no cotidiano da vida, no primeiro caso como aspecto de sua
difusão e produção, no outro como aspecto de sua participação direta
nos conflitos sociais.
Se a modernidade buscava padrões e critérios universais de
interpretação estética, a pós-modernidade dissolve tais padrões em uma
tendência cada vez mais individualizada e personalizada de constituição de padrões, pulverizando a certeza universal em horizontes fechados e construtivos de si como obra de arte. A obra não busca mais a universalidade em expressões técnicas e abstratas, mas sim na concretude
com que provoca em cada um individualmente, reações significativas.
No entanto, na obra de Willys, o estado artístico tem a pretenANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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são de ser reconhecido e percebido social e coletivamente, no entanto
deslocando o tradicional conceito de aura para o de realização técnica:
não passa mais pela apreciação de sua aura, mas sim pela excelência de
sua técnica e pela sua capacidade de, efetivamente, provocar com sua
reação um estado artístico que transcenda o objeto original.
As ideias, conceitos e relações significativas desse processo
dependem, portanto, de um paradoxo, contido outrossim em toda obra
de arte: deve ser algo especialíssimo naquele momento enquanto mensagem e realização artística, mas também deve ancorar-se em algo habitual e cotidiano para sua realização, do contrário perde sua capacidade
reativa que pode gerar esse novo estado de arte.
A obra de Willys de Castro deve apresentar um equilíbrio entre
a satisfação e a traição das expectativas habituais do entendimento, a informação nova e inédita e as habitualidades e redundância que compõe
as certezas convencionais: se for pura novidade e informação, não tem
lastro e não pode realizar-se como sentido e muitas vezes não pode ser
entendida; se for pura redundância não atende ao lastro criativo que a
atividade artística deve garantir para proporcionar de forma “cotidiana”
e continuada o seu estado de arte.
Por isso mesmo guarda, em sua significação, um aspecto que
podemos chamar de performativo, pois torna-se concreto na medida em
que realiza um modelo segundo uma relação de significação que depende, em última instância, dos jogos de linguagem ou jogos de certezas
habituais de um determinado modo de vida cultural, a partir de uma
autonomia minuciosamente garantida pela técnica artística na transcendência da matéria bruta para o estado artístico da obra.
3. DISRUPTURA
Disruptura ao apresentar a obra como um discurso de si, fixado em sua própria atualidade e não como propositora de um não lugar
idealizado.
Tais debates podem ser reinseridos em um contexto de discussão sobre a “modernidade após a modernidade”, entretanto sem assumir o registro propriamente pós-modernos, ou suas teses. Ou seja,
tais tendências de Willys de Castro nos permitem falar em resiliência
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e fortalecimento de determinadas teses da modernidade, e não em seu
esgotamento.
Por outro lado, nos permite evidenciar alguns pontos de inflexão: o abandono das utopias discursivas e a assunção do discurso
pontuado por coletivos e lugares próprios, que culminarão atualmente
nas questões identitárias.
E também em uma retomada da incorporação da arte na tecnologia, a radicalização das tendências visuais e estilísticas próprias
da alta modernidade, por exemplo nos logotipos da Bauhaus, hoje presentes no cotidiano do design. Também na seriação de obras e no fortalecimento do design nas artes visuais, com incorporações de técnicas
digitais em diversos trabalhos.
A consequência é uma profunda inflexão sobre os espaços de
arte, o papel do museu contemporâneo e as formas criativas que caracterizam uma reviravolta no papel do observador, tornando a observação
ativa e o objeto de arte uma interação do ambiente que propicia a observação.
Se a tendência moderna que vem desde Duchamp, passando
por Andy Worrol é a de introduzir elementos do cotidiano e objetos
triviais no espaço de arte (DANTO, 2002, 2005), a proposta de Willys
de castro é trabalhar também com elementos ‘triviais’ e do ‘cotidiano’,
mas não objetos do mundo — mictórios, caixas de sabão ou outros —
mas objetos virtuais da própria razão ou do logos e da imaginação da
geometrização do mundo: cubos, paralelepípedos, encaixes de formas,
negativos e positivos. Nesse sentido, se a modernidade traz o objeto
cotidiano para o museu, Willys faz uma imersão do próprio espaço do
museu na trivialidade da percepção de mundo e do hábito transfigurando a própria obra, transcendendo o objeto original — quadro com
tridimensionalidade (a tela tem as três dimensões) — e realizando uma
virtualização de sua concretude perceptiva. Além disso torna patente
a configuração da obra como um processo de produção e circulação
(CAUQUELIN, 2005, 2008)
Um objeto bruto transcende-se não pela interpretação ou observação, mas pela desmaterialização de si mesmo e pela realização de
uma realidade potencial, que o trabalho do artista deixa impregnado no
ser do objeto de arte e que torna este objeto dotado de uma capacidade
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genuinamente humana: o trabalho. No objeto ativo, que inaugura a fase
mais realizada de sua teoria, o objeto é ativo justamente por desempenhar, em modo de potência acumulada ou virtualidade ontológica, um
trabalho cotidiano de dizer-se, recontar-se e desvendar-se.
Willys de Castro insere em um componente particularmente
promissor na interpretação da estética na contemporaneidade: esse trabalho, potencialidade e virtualidade citadas anteriormente só são possíveis por estarem imersas em jogos de linguagem (WITTGENSTEIN,
1999, p.ex. págs. 27, 57, 75, 290 etc.) que envolvem o planejamento,
construtividade e fruição do objeto artístico, fruição em seu sentido
epistemológico e como percepção sensível, estabelecendo algo como
um sentir da mente, fundado em hábitos e imersos e possibilitados justamente pelos jogos praticados nos sentidos todos de um modo de vida
que, ao dar sentido no conhecimento de algo, instaura também a materialidade da própria sobrevivência do corpo do qual o objeto torna-se
alteridade.
4. TRANSCENDÊNCIA E VIRTUALIDADE
Transcendência como processo do objeto bruto para a virtualidade de seu sentido, realizável como um trabalho estético que, impregnado pelo artista na matéria bruta, faz da perenidade do estado de arte
uma função dessa transcendência do meio em que ocorre, realizável
como um trabalho estético que, impregnado pelo artista na matéria bruta.
As principais questões suscitadas fazem apelo à transcendência do meio e à estetização do modo de vida contemporâneo. A primeira
é uma proposta de toda a trajetória do artista, que participa de um questionamento sobre a pintura e a tridimensionalidade. A segunda é uma
tendência geral da pós modernidade, mas pode ser acompanhada em
Willys de Castro em sua marcante atuação na área de figurino, moda e
design.
Ambas as vertentes, a concreta e a neoconcreta, seguem na
afirmação do abstracionismo, divergindo, entretanto, em como se dá
essa expressão do abstracionismo.
Teoricamente continuam apresentando modelos e dando con150
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
sistência à atuação paradigmática do construtivismo artístico, continuam concorrentes em uma mesma teoria de não figuração como ligação
ontológica.
Entretanto, às vezes de forma clara, outras de modo menos explícito, questões ideológicas determinam de fato uma reproposição do
concreto para vertentes concorrentes em termos propedêuticos.
Haroldo de Campos, por exemplo, vê no movimento do concretismo ao neoconcretismo um movimento de “idiossincráticas polêmicas pessoais em torno de personalidades” (CAMPOS, 1996) e minimiza as polêmicas mais conceituais ou de fundo.
Embora considere-se que a alternância foi muito além de desavenças pessoais, essa alternância dá menos ênfase a um movimento
de ruptura, do que uma mudança de eixo que, malgrado uma profunda
reavaliação de alguns pontos fundamentais de um mesmo paradigma
— a arte construtiva — continuava exatamente no mesmo campo e na
mesma ligação semântica que permitisse a ambos os grupos, o paulista
e o carioca, manterem aspectos muito semelhantes, embora oferecendo
modelos distintos conforme alguns operadores estéticos e ideológicos.
Ou seja, as afirmações de ambas as teorias, concreta e neoconcreta, não eram contraditórias entre si, mas concorrentes, no sentido
de ocorrerem juntas e competirem pela interpretação mais adequada
a um mesmo paradigma construtivo, o da relação entre o concreto e o
abstrato.
Por outro lado, também se considera que a prática dos artistas
dos dois grupos era também sistemicamente ligada à apresentação de
modelos, características marcantes desde a poesia concreta paulista dos
irmãos Campos, até as de Hélio Oiticica: obras que surgiam não de uma
proposta de inspiração transcendental, mas de uma inspiração imanente
a uma forma de planejar a mediação entre obra e mundo, seguindo um
protocolo geral de retirar a figuração como centralidade da representação.
Willys de Castro, malgrado discreta e sem alarde, esteve diretamente e ativamente envolvido nos debates, com atuação destacada tanto no concretismo quanto no neoconcretismo, o que nos permite
identificar na análise de sua produção e incorporados na sua obra de
forma construtiva, para além das divergências entre as duas escolas,
alguns pontos centrais que motivaram o debate estético marcada pelo
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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esgotamento expressivo do modernismo e discussão sobre o caráter do
novo, agora em um contexto que se abre particularmente a partir de
possibilidade da virtualização de determinados procedimentos e da simulação e projeção de projetos, antes de sua realização material.
Foca-se aqui as discussões e polêmicas que rugem nos anos
1960, entre o concretismo paulista, na abordagem dos poemas e reflexões de Augusto de Campos; e o neoconcretismo carioca, representando pelo poeta e escritor Ferreira Gullar.
A mediação entre os dois movimentos e a compreensão da
crise de modernidade podem ser compreendidos a partir da obra do
multiartista Willys de Castro, que pertenceu aos dois movimentos e,
de certa forma, o transcendeu, na medida em que não se fechou a um
ou a outro e, justamente por extrapolar os dois, colocou-se diretamente
no campo expandido da estética como forma de vida, que a partir das
décadas seguintes marcaria a arte da virada para o século XXI.
Tal transcendência pode ser observada no deslocamento da
questão central que estava em jogo: o que é o concreto?
Nem o concretismo nem o neoconcretismo se propõe como
uma estética imitativa ou figurativa, mas sim com raízes na própria abstração geométrica. Além disso, se não imitam ou figuram objetos no
mundo, a estética permite imitar imitações, sob forma de metalinguagem, comentários em contexto da própria obra ou sob formas de citações e recorrências.
Dessa forma, o objeto ativo de Willys de Castro não figura um
buraco ou fissura no mundo, mas sim a operação mental que concluiria
que existe ali um e, de fato, constrói uma sensação da razão.
O objeto de seu quadro é o próprio quadro que, mimeticamente, não teria como imitá-lo, pois inexiste ainda. Entretanto, sua mimese
é a sincronia da presença do espectador, que ao interpretar parece entrar
em uma espécie de vertigem, pois dá vasão não ao quadro como imitação da natureza, mas como uma sensação mental de que o quadro como
pintura trai essa natureza pictográfica do próprio quadro.
Não se trata de uma estética figurativa ou imitativa, mas sim de
uma estética de sincronia, onde a forma ou o sentido não se restringem
a uma imitação da natureza ou sua figuração, mas no compartilhamento
do processo de criação ou da construção de sentido.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Se a trajetória de Willys de Castro é trazida como paradigma
do movimento histórico — depois da modernidade —, sua produção é
aqui apresentada como uma sucessiva apresentação de aspectos de um
tipo de prática criativa que tem por objetivo a apresentação de um resultado objetal de uma teoria de fundo que dá origem à prática continuada.
Esse objeto resultante é também capaz de revelar os paradoxos que fazem parte do seu jogo de linguagem realizando um trabalho cotidiano,
como obra, de manter o objeto bruto em estado de arte.
O paradoxo reside no fato de que a materialidade do objeto é
descontruída, na exata medida em que, desconstruído como objeto bruto, é matéria prima da concretude do objeto ativo, mais virtual do que
efetivamente real, mas verdadeiro para o observador, ao mesmo tempo
que o objeto bruto deixa de ser verdadeiro no sentido da percepção, para
tornar-se duvidoso e encoberto por seu revestimento epistemológico.
A obra de arte fundamenta-se em uma busca teórica e construtiva sobre a percepção como produtora de significados e conceitos
e, levando-se em consideração o preceito geral da lógica de que “uma
teoria é consistente se e somente se apresentar um modelo”, a própria
obra final apresenta-se, para além de seu resultado estético e artístico
propriamente dito, como modelo que dá consistência à teoria da qual
emana. Segundo o artista, essa teoria deve ser “de ordem fenomenológica”(CASTRO, 1961), pois trata-se de buscar como a percepção da
obra pode desencadear uma “torrente de fenômenos perceptivos e significantes”, disparados a partir do jogo de sentidos e suscitados da relação
da obra com o mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Willys de Castro perseguiu, durante toda sua vida criativa, uma
mesma teoria da obra, apresentando como modelos, nas mais diversas
linguagens, os objetos que, considerando-se a linguagem artística, poderiam ser objetos musicais, plásticos, pelas de figurino ou tecidos estampados.
A transcendência do objeto bruto ao estado de arte ocorre
como uma desvelamento do objeto, realiza-se por sua vez como fruto
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de um trabalho ativo de conhecimento, onde quem observa a obra, o
sujeito da percepção, deve ultrapassar um obstáculo anteposto a ele,
a face oculta do que seria um tridimensional, mas não o ultrapassa senão pela completude de ver o que não pode ver materialmente, isto é,
completude habitual de ver como um todo o que esperaria que fosse um
todo na vida cotidiana. Mas o sujeito que observa a obra também deve
ultrapassar um obstáculo anteposto à própria obra, impedida intencionalmente de ser um quadro, mas impedida intencionalmente de ser um
tridimensional.
O objeto ativo não se transforma ou é ativo porque muda sua
essência, é ativo porque transcende o hábito cotidiano do olhar dano
outro sentido: o que é transcendido é a própria percepção não porque
mude o objeto ou mude o ser de quem observa, mas por ocorre, naquele
instante, a desmaterialização do seu fundamento e a materialização de
sua potencialidade, isto é, a transcendência do objeto é a sensação dominante de uma imanência que, estando onde não deveria estar, porta-se como um questionamento de qualquer imanência que não pode estar
onde presume que esteja.
Dessa forma não é ativo o objeto, ativo é o seu conhecimento virtualmente transcendente e brutalmente virtual: o abstracionismo
expressa-se mais do que geométrico: como virtualidade de sua razão
de sentido, isto é, como uma imagem que apenas se expressa geometricamente por sua participação como virtualidade de sentido. Um cubo
não existe geometricamente de fato, mas expressa-se virtualmente pela
ideia de ser um cubo.
A obra de Willys de Castro apresenta-se como uma mediação
entre o concretismo e o neoconcretismo e remete a uma radicalidade e
transcendência de determinados valores das vanguardas do século XX,
configurando a crise da modernidade não como uma crise de esgotamento, mas de expansão e consolidação, principalmente em aspectos
centrais e fundantes do pensamento vanguardista: o projeto de estetização da arte e sua integração ou expressão no cotidiano; a estética como
valor relacional imanente (e não transcendental e essencial) dentro de
um modo de vida; a elegia da tecnologia e do progresso; a consolidação
do design minimalista e do abstracionismo, reafirmado como virtualidade.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José
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de arte nos anos 50. 2001. Mestrado em Relações Públicas, Propaganda e
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tde-22072016-174048/publico/Mari.pdf. Acesso em: 26 mar 2022
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
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O MA: DIÁLOGOS COM A
ESCRITURA BARTHESIANA
Brenda H. M. Yoshioka57 – b.yoshioka@unifesp.br
Resumo: Nosso objetivo é compreender a estética Ma e identificar
seu possível uso na escritura58 barthesiana. Então, a partir do estudo
acerca da cultura e comunicação japonesa realizado por Michiko Okano (2012) buscaremos acepções do Ma que se aproximem da linguagem literária. Dessa forma, realizaremos uma breve análise de alguns
elementos da obra O Império dos Signos (1970), de Roland Barthes,
com as lentes da estética Ma a fim de exemplificar como o ela pode
permear o campo literário visando os seguintes aspectos: a espacialidade como experiência dos espaços construída pela percepção guiada
pelos elementos culturais japoneses; e o intervalo como a pausa que
dita o ritmo da leitura devido à disposição das imagens e texto.
Palavras-chave: Roland Barthes; Ma; Escritura; Ensaio; Cultura japonesa.
Abstract: Our objective is to understand the Ma aesthetic and identify its possible use in Barthesian writing. Then, based on the study of
Japanese culture and communication carried out by Michiko Okano
(2012), we will seek meanings of Ma that bring it closer to literary
language. In this way, we will carry out a brief analysis of some elements of the work O Império dos Signos (1970), by Roland Barthes,
with the lens of Ma aesthetics in order to exemplify how it can perme57 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação como iniciação científica,
intitulada “O Ma: diálogos com a escritura barthesiana”, orientada pela Profa. Dra. Paloma
Vidal, para os graduandos, no “Departamento de Literatura” da Universidade Federal de São
Paulo. A pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP), com número de processo 2021/08415-1.
58 Em um pequeno glossário do léxico barthesiano presente no livro Aula (1980), Leyla Perrone-Moisés explica o que seria a escritura para Barthes: o termo é usado para designar “todo
discurso em que as palavras não são usadas como instrumentos, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes” (p.78). Com isso em vista, priorizamos o termo barthesiano para analisar justamente esses aspectos que fogem de um uso instrumental da língua,
e que evidenciam uma poiesis especificamente barthesiana.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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ate the literary field aiming at the following aspects: spatiality as an
experience of spaces built by perception guided by Japanese cultural
elements; and the interval as the pause that dictates the pace of reading due to the arrangement of images and text.
Keywords: Roland Barthes; Ma; Writing; Essay; Japanese culture.
INTRODUÇÃO
O que instiga a investigação que propomos nesta pesquisa são os
tipos de produções de linguagens que nascem de diálogos entre Oriente
e o Ocidente. Para isso elegemos dois objetos principais que percebemos construir essa ponte: o Ma e o livro de ensaios O Império dos
Signos (1970), de Roland Barthes (1915-1980).
Publicado originalmente com título francês de L’empire des Signes pela Éditions Albert Skira, em 1970, O Império dos Signos é uma
encomenda de Maurice Pinguet, fruto de anotações de viagens59 feitas
por Barthes ao Japão no ano de 1966. São no total 26 fragmentos de
textos mesclados com imagens e anotações feitas à mão, que tecem
vários aspectos da cultura japonesa. Sua primeira edição foi lançada
no Brasil em 2007, pela Editora Martins Fontes e traduzido por Leyla
Perrone-Moisés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP (Universidade Estadual de São Paulo).
Optamos por embasar a análise nos estudos de Michiko Okano,
Ma: Entre-espaço de arte e comunicação no Japão (2012), para assimilação e contextualização do Ma, bem como para compreender os
impactos e reverberações que a entrada deste elemento causou quando
foi apresentado ao Ocidente. Do campo semântico vasto em que opera
o Ma, Okano diz:
O Ma é um elemento cultural especificamente nipônico que se
apresenta como um modus operandi vivo no cotidiano dos japoneses e está presente em todas as suas manifestações culturais: na arquitetura, nas artes plásticas, nos jardins, nos teatros,
na música, na poesia, na língua, na comunicação interpessoal,
59 Rodrigo Fontanari disponibiliza esta informação no ensaio “A concepção de vazio em Roland Barthes” (2018).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
como os gestos do cotidiano ou o modo de se falar etc. (OKANO, 2012, p. 13, grifos da autora).
Em seu livro, Okano retoma a exposição organizada por Arata
Isozaki, no Musée des Arts Décoratifs, em Paris no ano de 1978. Na
sequência, a autora reflete sobre as reverberações que a exposição causou no Ocidente, analisando vasta bibliografia de títulos orientais e ocidentais que empreenderam estudos na compreensão do Ma. Para além
da contextualização histórica e cultural desta estética, Okano pauta sua
argumentação sobre o conceito de quase-signo da semiótica peirceana
para exemplificar que o Ma é reconhecível por meio de sua concretização: “Assim, pelo olhar semiótico, o Ma configura-se como um entre-espaço prenhe de possibilidades e, por esse caminho, permite-se uma
aproximação, ainda que inicial, àquilo que expressa um japonês ao se
referir ao Ma ou manifestá-lo” (OKANO, 2012, p. 24, grifos da autora).
Partindo desse pressuposto, a pesquisadora analisa as diversas formas
como o Ma se revela em obras, por exemplo, do arquiteto Ando Tadao
(1941) e em filmes do diretor clássico japonês Ozu Yasujiro (1903 1963) e do cineasta e ator Kitano Takeshi (1947).
Como foi salientado por Okano, o Ma é tido como um elemento particular da cultura japonesa, e está presente em várias linguagens
artísticas, geralmente as relacionadas à música, à arquitetura, ao cinema, entre outras. No Brasil, pesquisas têm como foco essas linguagens,
como por exemplo “O conceito Ma: o conceito Ma na conformação de
espaços em Tadao” (2015), de Walkyria Tsutsumi Ferreira Coutinho,
“Como Vestir o Intervalo” (2014), de Julia Valle Noronha, e “Ma e o
Shôjô Mangá Clover” (2013), de Simonia Fukue Nakagawa.
À primeira vista, este diálogo literário pode parecer complexo
de elaborar. No entanto, ainda acreditamos que possa ser firmado, e a
exemplo disso encontramos produções recentes que entram nessa discussão. Atualmente, a Editora UNIFESP em conjunto ao Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA), sediado na Universidade de São Paulo, lançou
o livro digital Conceitos estéticos: do transtemporal ao espacial na arte
japonesa (2021), o qual aborda diversas formas estéticas particulares à
cultura japonesa, bem como a estética Ma.
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O livro conta com um rol variado de pesquisadores do grupo, e cada
um trabalha temporalidades e espacialidades artísticas do Japão. O texto de
Plínio Ribeiro Jr, “Figurações da espacialidade japonesa na vida e na obra de
Wenceslau de Moraes” (p. 77-92) presente no livro do GEAA, desenvolve
uma análise de obras do autor Wenceslau de Moraes e como este trabalhou a
espacialidade em relação a sua vivência no Japão, com foco especial nos efeitos que podemos compreender como resultantes da experiência proporcionada pelo Ma em diálogo com os conceitos uchi e soto. A proposta de Ribeiro
Jr. é, então, uma das que mais se aproxima do que queremos desenvolver
nesta pesquisa e em território nacional, já que nosso objetivo é analisar de que
forma a arte e cultura japonesa podem reluzir e compor, em certa medida, a
escritura, porém, especificamente a barthesiana em O Império dos Signos.
Dessa forma, a partir do contato com estudos precedentes, gostaríamos
de investigar se a mescla entre as palavras e imagens não poderiam ser tão
visuais e sensoriais quanto a arquitetura e a vestimenta, por exemplo. Assim,
esta pesquisa pretende se inserir nas fronteiras dessas artes, inscrevendo um
diálogo entre linguagens.
1. O MA: DIÁLOGOS COM A ESCRITURA BARTHESIANA
O laço que ata esta estética ao livro O Império dos Signos é, de saída,
o fato de que Roland Barthes demonstrou conhecimento sobre ele em seus
seminários60 e presenciou a exposição mencionada, chamada “MA: Espace
Temps du Japon”61, que apresentou o Ma para o Ocidente. Para levar adiante
ele mesmo um diálogo entre Oriente e Ocidente, Barthes não apenas empreendeu seminários para discutir estéticas relacionadas à cultura japonesa, mas
também incorporou em sua escritura estes aspectos, sendo O Império dos
Signos (1970), segundo gostaríamos de mostrar, a obra que tem como operador estético e temático o Ma.
60 O Neutro (1977-1978) seminário em que Roland Barthes citou o Ma para exemplificar o
que seria “la bonne distance”, e o autor também retoma o Ma em A preparação do Romance –
Volume I (1978-1979) para compreender a importância da disposição das palavras na página
em relação ao haicai.
61 Michael Lucken informa em seu texto, “The limits of ma. Returning to the beginning of a
‘Japanese’ concept” (2014), que Roland Barthes escreveu um pequeno artigo para Le Nouvel
Observateur acerca da exposição, presente em Œuvres Completes (1995), em 23 de outubro de
1978, chamado “L’intervalle”.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O Ma, por estar tão enraizado na sociedade japonesa, dificilmente se distingue de práticas cotidianas e socioculturais, e devido a essa
diluição que naturaliza sua presença no país acreditamos que, com uma
sensibilidade mais aguçada, é possível deixar-se entrar nesse fluxo. Assim, essa presença quando percebida, pode ser vivenciada.
Dessa forma, nos ensaios de O Império dos Signos, Barthes guia
seu leitor por meio de um processo que constrói sentidos nos deslizamentos entre textos e imagens, de forma que auxilia a experienciar
espaços e intervalos vivenciados no Japão. Estes deslizamentos podem
ser potencializados no desenvolvimento de compreensão da estética
Ma.
Isto posto, da grande sistematização de acepções do Ma que Okano faz, algumas delas parecem estar em diálogo com a escritura de Roland Barthes, como quando a autora diz que:
A espacialidade Ma mostra-se assim, muitas vezes, de frágil
visualidade, mas eminentemente comunicativa, ao convidar
não só a participação perceptiva polissensorial e física do ser
humano, que vivência a construtibilidade processual da espacialidade, mas também sua memória e seu pensamento, pela
relação do homem com a sociedade e a cultura [...] (OKANO,
2012, p. 102, itálicos da autora).
Nos ensaios de O Império dos Signos, Roland Barthes guia seu
leitor por meio de algo similar a essa “construtibilidade processual da
espacialidade” (OKANO, 2012, p. 102), para que são enxergue apenas
textos e imagens, mas que possa experienciar por meios perceptivos as
espacialidades que ele encontra no Japão. O que ajuda a compreender
essa espacialidade é a forma como Barthes descreve o que experiencia,
evidenciando elementos culturais japoneses. Um dos fragmentos do livro que encenam a experiência da espacialidade é “Centro da cidade,
centro vazio”, no qual é dito:
A cidade de que falo (Tóquio) apresenta este paradoxo precioso: possui certamente um centro, mas esse centro é vazio. A cidade toda gira em torno de um lugar ao mesmo tempo proibido
e indiferente, morada escondida pela vegetação, protegida por
fossos de água, habitada por um imperador que nunca se vê,
isto é, literalmente, por não se sabe quem. Diariamente, em sua
circulação rápida, enérgica, expeditiva como a linha de um
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tiro, os táxis evitam esse círculo, cuja crista baixa, forma visível da invisibilidade, oculta o “nada” sagrado. Uma das duas
cidades mais poderosas da modernidade é, portanto, construída
em torno de um anel opaco de muralhas, de águas, de tetos e de
árvores, cujo centro não é mais do que uma ideia evaporada, subsistindo ali não para irradiar algum poder, mas para dar
a todo o movimento urbano o apoio de seu vazio central,
obrigando a circulação a um perpétuo desvio. Dessa maneira,
dizem-nos, o imaginário se abre circularmente, por voltas e rodeios, ao longo de um sujeito vazio (BARTHES, 2016, p. 46,
grifos nossos).
Segundo Okano, os espaços japoneses são caracterizados por
aspectos como efemeridade, primazia do movimento, lococentrismo e
descentramento (OKANO, 2012, p. 101). Partindo dessas características, a percepção da espacialidade urbana japonesa é construída no ensaio e este trajeto perceptivo é arquitetado pelo universo semântico que
guia o efeito de sentido que oscila entre o concreto e o abstrato (centro
vazio; o nada sagrado; ideia evaporada; vazio central; sujeito vazio),
possibilitando uma experiência como o Ma, enquanto “passageira e em
fluxos, porque sempre constituída pelas ações humanas” (OKANO,
2012, p.101), efeito garantido pelas escolhas semânticas e suas disposições que conotam movimento (circulação rápida; enérgica; expeditiva
como a linha de um tiro; o movimento urbano; obrigando a circulação).
Em certos fragmentos, o Ma se faz presente também como tematização de uma experiência de quem vive um vazio de fala necessário,
que possibilita a escritura:
A escritura é, em suma e à sua maneira, um satori (o acontecimento Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte (nada
solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um
vazio de fala. E é também um vazio de fala que constitui a escritura; é desse vazio que partem os traços com o Zen, na isenção de todo sentido, escreve os jardins, os gestos, as casas, os
buquês, os rostos, a violência (BARTHES, 2016, p. 10, grifos
do autor)
Em entrevista feita por Guy Scarpetta à Promesse em 1971, presente no livro O grão da voz (2004), Barthes explica como compreende
esse vazio:
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
[...] o vazio não deve ser concebido (figurado) sob a forma de
uma ausência (de corpos, de coisas, de sentimentos, de palavra,
etc.: o nada) – aqui somos vítimas da física antiga [...] O vazio é
antes o novo, o retorno do novo (que é o contrário da repetição)
(BARTHES, 2004, p.164, grifos do autor)
A afirmação de Barthes na entrevista sobre como não conceber
o vazio se aproxima do que Okano assinala sobre a compreensão do
mesmo termo:
Deve-se lembrar que, do ponto de vista nipônico, causa certo estranhamento a acepção mais comum do termo “vazio” na
língua portuguesa: espaço onde não há nada a não ser ar. Ora,
se o ar é elemento fundamental e necessário para nossa sobrevivência, considerar o vazio um lugar em que ele está presente,
é praticamente desconsiderar um elemento essencial (OKANO,
2012, p. 27-28).
Esse vazio de fala não impede que Barthes, de forma até mais experimental, aceite a língua estrangeira como desconhecida, de tal modo
que não busca necessariamente uma comunicação efetiva pela fala,
pois deixa-se envolver pela “massa rumorosa da língua desconhecida”
(BARTHES, 2016, p. 17) para apreender “novas formas de enunciação”
(BARTHES, 2016, p. 11) estando atento a:
[...] respiração, a aeração emotiva, numa palavra, a significância pura, forma à minha volta, à medida que me desloco,
uma leve vertigem, arrasta-me em seu vazio artificial, que só
se realiza para mim: vivo nos interstícios, livre de todo sentido
pleno. Como você se virou lá, com a língua? Subentendido:
Como você garantia essa necessidade vital da comunicação?
Ou mais exatamente, asserção ideológica que recobre a interrogação prática: só há comunicação na fala (BARTHES, 2016, p.
17-18, grifos do autor).
Adentrar nesse sistema estranho é estar disposto a reconhecer e
viver a diferença, sem o medo de não alcançar o sentido pleno do que
se apresenta à frente. Okano nos indica essa necessidade de interação
para compreender o Ma que permeia a cultura japonesa ao dizer que:
E numa zona na qual as coisas permanecem “em suspensão”,
os níveis de definição informacional e de descrição são baixos.
Isso exige uma participação mais complexa do receptor, quer
dizer, demanda o uso de relações analógicas e metafóricas, que
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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complementam as informações, de modo que as possibilidades
se concretizem. Essas associações estão fortemente vinculadas
a potenciais descobertas de outras, inéditas, o que viabiliza o
estabelecimento de novas relações e torna viável uma correspondência com a estética. (OKANO, 2012, p. 126-127).
Assim, pretende-se demonstrar que este trajeto tecido pelos ensaios que não fixa significação e está aberto para o deslizamento de
linguagem pode ser compreendido como experiência estética proporcionada pelo Ma, que a escritura barthesiana busca acessar.
É possível compreender ainda sob a lente do Ma o intervalo que
opera nos ensaios, tal como uma pausa que dita o ritmo da leitura devido à disposição das imagens e textos. Esse intervalo constitui um ritmo
de leitura que o aproxima da análise de Okano sobre cinema, feito na
seção “Montagem Sequencial Construtiva” (OKANO, 2012, p. 142) em
que estuda os filmes de Ozu, ao dizer que:
O Ma no cinema, assim como na música, enfoca a questão da
fronteira e do filtro, por meio da criação de uma espacialidade
intervalar adaptativa e de passagem de um elemento a outro, em
forma de vestígio. A fronteira, nesse caso, não é delimitadora
de espaços, mas se apresenta como uma zona de contato que
delineia um trânsito gradual entre dois ambientes (OKANO,
2012, p. 145).
Essa “espacialidade intervalar” (OKANO, 2012, p. 145) é construída na obra de Barthes em momentos que, por exemplo, o autor intercala um trecho do ensaio “Naquele Lugar” (p. 7) com uma imagem do
ideograma Mu (Figura 1), o vazio (BARTHES, 2016, p. 9).
A imagem sugestiva do ideograma configura um ritmo para a
leitura, é preciso uma pausa, “uma fissura” (BARTHES, 2016, p. 10)
para experienciar o que virá adiante nas próximas páginas. Observa-se
também que o corte, um quase kireji62, no conteúdo da página é feito,
a “fissura” não é apenas a palavra grafada, “o vazio”, é a experiência
de leitura “que delineia um trânsito gradual” (OKANO, 2012, p. 145).
Este aspecto de intercalar imagens em meio aos textos reverberarão ao
longo da obra proporcionando um ritmo descontínuo à leitura, de modo
62 Um dos elementos que compõem o haikai, o kireji pode ser traduzido como “palavra cortadora”, e a depender do local que se encontra no poema conota ritmo, pausa, emoção.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
a influenciarem a construção de sentido dos ensaios.
Outro aspecto que relaciona o livro de Barthes com a estética japonesa tem a ver com a ênfase no processo de um corpo que experiencia
e traduz em escrita essa espacialidade. Para compreensão relacionada a
corporeidade, salientamos a reflexão feita por Okano acerca do entendimento dos espaços japoneses ao fim de sua análise sobre arquitetura:
No tocante à corporeidade, há, na espacialidade Ma de passagem, o desenvolvimento de uma construtibilidade que se faz
em conjunção com a ação humana, por meio da participação
não apenas da visualidade, mas de uma percepção polissensível, que inclui o corpo como elemento preponderante para se
obter uma experiência fenomenológica (OKANO, 2012, p.
128).
Desse modo, então, as pausas e ritmos evidenciados na escritura
inscrevem um corpo no espaço que dialoga com a estética do Ma quando a compreendemos como um elemento que potencializa a escritura e
suas possibilidades de sentido.
E ainda que Barthes diga que “O texto não ‘comenta’ as imagens. As imagens não “ilustram” o texto” (BARTHES, 2016, p. 6), é
preciso reconhecer o diálogo que ocorre entre os elementos verbais e os
elementos plásticos nos ensaios. É, então, ainda dentro desse alerta que
o autor nos permite firmar este diálogo pois em:
[...] cada uma, foi para mim, somente a origem de uma espécie
de vacilação visual, análoga talvez, àquela perda de sentido que
o Zen chama de satori; texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o
corpo, o rosto, a escritura, e neles ler o recuo dos signos (BARTHES, 2016, p. 6).
Nesta circulação à qual Barthes se refere é possível, por meio de
um ritmo construído entre a imagem e o escrito, compreender o Ma
como elemento organizador estético dos ensaios, ecoando não apenas
de forma visual, mas, em alguma medida, na construção de sentido dos
ensaios de tal forma que “[...] a espacialidade Ma pode ser entendida
como fronteira, algo que separa e ata os dois elementos que intermedeia, criando uma zona de coexistência, tradução, diálogo” (OKANO,
2012, p. 27).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Aqui investigamos como o diálogo entre texto, imagens e sentidos são construídos nos ensaios, e a forma como este movimento nos
auxilia a experienciar espaços e intervalos sem pressa, com pausas e
ritmos, como uma câmera lenta que desvela aos poucos o trajeto, e leva
nossos olhos pelos espaços de múltiplas referências da cultura japonesa
que se permeiam pelo Ma e reverberam na escritura barthesiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que os tempos e lugares nos distanciem, viver no Brasil e
estudar literatura ocidental através do pensamento japonês é uma forma
de unir a prática de pesquisa com a sensualidade da experiência por
meio da escrita e da leitura, e como resultado dessa união poder contribuir com o campo literário que se instiga pela escritura barthesiana e a
investiga, bem como agregar mais esta discussão ao campo de contato
com arte japonesa. Isso posto, podemos compreender, em alguma medida, que o resultado da experiência literária proposta nos ensaios emerge
do “terceiro espaço” que o indiano Homi Bhabha, um dos estudiosos
mais representativo dos estudos pós-colonialistas, aborda em seu estudo do discurso colonial britânico na Índia do século XIX:
É o Terceiro Espaço que, embora em si irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que garantem que
o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou
fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo
(BHABHA, O Local da Cultura, 2010, p. 67-68).
Ainda assim, o seguinte questionamento pode ser levantado: por
que estudar o Japão através de Barthes? A princípio, Mikhail Bakhtin
(1895-1975), em Estética da Criação Verbal (1979), nos ajuda a refletir
sobre essa pergunta e a necessidade dessa pesquisa, ao dizer que:
A cultura alheia só se manifesta mais completa e profundamente
aos olhos de uma outra cultura. [...] Dirigimos à cultura alheia
novas perguntas que ela não havia se colocado, buscamos sua
resposta a nossas perguntas e a cultura alheia nos responde descobrindo diante de nós seus novos aspectos, suas novas possibilidades de sentido... No encontro dialógico, as duas culturas não
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se fundem, nem se mesclam, cada uma conserva sua unidade e
sua totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente
(BAKHTIN, 2003, p. 366).
Contudo, o próprio Roland Barthes, em entrevista dada à Le Magazine littéraire feita por Jean-Jaques Brochier, em 1975, nos dá pistas
para essa resposta também:
Quanto as coisas que me interessavam no Japão - é por isso que
falo de etnólogo -, eu estava absolutamente à cata de todas as
informações que pudesse receber, e correspondia a todas. Se me
falavam de um lugar que podia me instigar, mesmo de maneira
vaga, eu não desistia antes de tê-lo encontrado. É a atitude do
etnólogo: a exploração puxada pelo desejo (BARTHES, O grão
da voz, 2004, p. 327).
Então, devido a esse movimento intelectual muito característico
de Barthes — de um “professor impuro”63— ele nos aproxima do Japão
por meio de um exercício de sensibilidade. Este tipo de exercício nos
permite, com um olhar mais abrangente, reconhecer o viver as experiências de espacialidade e intervalos culturais dentro da literatura, a
partir de uma interpretação que aproxima linguagens artísticas de modo
polissensível64 (OKANO, 2012, p.66).
Uma das dificuldades da análise está na profusão de interpretações dos ensaios. Portanto, cabe ressaltar que alguns deles como “Pachinko” (p. 39) possa ser visualizado pelas lentes do Ma, mas também
pelo seu oposto complementar Basara. Alguns dos ensaios voltados
para o ambiente urbano possibilitam essa dupla leitura, que poderá ser
analisada numa hora oportuna.
63 Essa expressão refere-se a forma como Leyla Perrone-Moisés retoma a fala de Roland Bar-
thes presente no seminário Aula (1980), na qual Barthes diz: “É pois, manifestamente, um
sujeito impuro que se acolhe numa casa onde reinam a ciência, o saber, o rigor e a invenção disciplinada. Assim sendo, quer por prudência, quer por aquela disposição que me leva frequentemente a sair de um embaraço intelectual por uma interrogação dirigida a meu prazer [...]” (p. 8)
64 Uma das formas que Okano exemplifica o termo polissensível é por meio da experiência
proporcionada pela arquitetura, dizendo que: “Ao experienciar um espaço arquitetônico, o corpo, mais que o olhar, mede a distância entre o homem e os objetos e, entre os objetos, a pele lê
a textura, o peso, a densidade e a temperatura [...] O nariz capta o aroma que qualifica o lugar e
a sua lembrança parece ser, geralmente, mais forte que a visualidade” (p. 128). Compreendido
o termo como algo que abrange vários sentidos perceptíveis pelo corpo, optamos por seguir a
definição de Okano, ainda que a autora o relacione à arquitetura, pois essa é uma acepção que
nos auxilia a aproximar o Ma à escritura nesta pesquisa.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Por fim, tentamos observar o Ma como uma forma de fruição, de
como podemos por meio dessa estética japonesa experienciar espaços/
lugares/situações/culturas mesmo que não estejamos presentes no contexto japonês. Tomando, dessa forma, a escritura de Roland Barthes
como uma das vias para observar no fazer literário algo que nos ajude
a chegar nesta estesia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Imagem:
Figura 1: Páginas 8, 9 e 10 de Império dos Signos (2016), Editora Martins Fontes.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
CORPO, DISCURSO E REPRESENTAÇÃO:
ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O
TRABALHO DE LETÍCIA PARENTE
Camila Vitório Siqueira65 - camilavitoriosiqueira@gmail.com
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar três videoartes da artista Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação
1” (1975) e “Tarefa 1” (1982), presentes na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985” buscando compreender como
as obras são abordadas dentro do discurso curatorial da exposição.
Palavras-chave: Videoarte; Letícia Parente; História da Arte, Feminismo, História das Exposições.
Abstract: The present work aims to analyze three video arts by the artist Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação 1” (1975)
and “Tarefa 1” (1982), present in the exhibition “Radical Women: Latin
American Art, 1960-1985” seeking to understand how the works are
approached within the curatorial discourse of the exhibition.
Keywords: Videoart; Letícia Parente; Art History; Feminism; Exhibition Histories.
O presente trabalho tem como objetivo analisar três videoartes da artista Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação
1” (1975) e “Tarefa 1” (1982), presentes na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana nas décadas de 1960-1985” buscando
compreender como as obras são abordadas dentro do discurso curatorial
da exposição.
Para tanto, precisamos estabelecer a exposição enquanto enqua65 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “A insurgência do corpo político: a virada iconográfica no Brasil sob a ótica do trabalho de Letícia Parente”, orientado pela
Profa. Dra. Renata Cristina de Oliveira Maia Zago Mazzoni Marcato, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dramento ou evento que toma novos contornos a partir do término da
modernidade. Apesar do discurso de uma morte da historiografia artística, muitas vezes posta de forma apocalíptica e perigosa, é necessário
lembrar conforme Hans Belting (2012) acentua que não houve um fim
da história da arte, mas de determinado enquadramento da disciplina no
campo, este relacionado a narrativa da arte ocidental, baseada até então
numa “sucessão” de motivos e/ou estilos.
Dito isso, as exposições tornaram possíveis novos enquadramentos, que por sua vez, traziam à tona conceitos e ideias, em consequência do processo de desmaterialização do objeto artístico que ocorre
de forma acentuada a partir dos anos 1960/70 (MELLO, 2008). A narrativa da história da arte ligada a tríade aludida por Ive-Alain Bois (2012),
arte modernista, museu como espaço público e história da arte como
disciplina já não consegue dar conta da arte contemporânea - ou ao
menos, não conseguiria. Nesse sentido, as exposições despontam como
território importante na disputa e na confecção de outros discursos. No
espaço expositivo, confluirão conforme afirma Franciely Dossin (2014,
p.3):
“diversos atores e fatores atuantes no mundo da arte: artistas e
as novas produções, curadores, críticos, colecionadores, galerias e museus, patrocínio privado, políticas públicas de apoio a
cultura e público. Por isso as exposições formam um importante objeto para a pesquisa em arte contemporânea”.
No entanto, esse campo apresenta-se de forma complexa, tornando necessário questionar: como o discurso curatorial articula obras
dentro da sua lógica interna? Quais novas possibilidades de leitura são
trazidas à tona? E ainda, quais possibilidades de revisionismo da história da arte as exposições tornam possíveis? Obviamente, seria muito
ambicioso responder a todas essas questões devido à complexidade/
velocidade desses eventos no contexto artístico, ademais, seria também
incompatível tentar estabelecer um paradigma. No entanto, essa apresentação parte da tentativa de trabalhar obras dentro da lógica interna
de um evento expositivo, entendendo como essa complexa rede de relações mobilizada por esse evento, tensiona, disputa e privilegia determinadas questões.
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Dessa maneira, na presente apresentação, nos deteremos
a analisar as obras da artista Letícia Parente presentes na exposição
“Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana (1960-1985)”. A exposição ocorreu no Brasil entre os meses de agosto e novembro de 2018.
Anteriormente, a mostra esteve, entre setembro e dezembro de 2017,
no Hammer Museum em Los Angeles, e, entre abril e julho de 2018, no
Brooklyn Museum em Nova Iorque.
A exposição é resultado do trabalho de pesquisa das curadoras
Andrea Giunta e Cecília Fajardo-Hill. Durante cerca de sete anos, as
curadoras viajaram pelos países latino-americanos e realizaram o levantamento das artistas que produziam nesses países, buscando assim
preencher uma lacuna na historiografia da arte latino-americana no que
tange ao trabalho e produção de mulheres artistas.
A exposição trabalha com nove núcleos: “Autorretrato”, “Paisagem do corpo”, “Performance do corpo”, “Mapeando o corpo”, “Resistência e medo”, “O poder das palavras”, “Feminismos”, “Lugares
sociais” e “O erótico”. Segundo as curadoras, a escolha por núcleos
ao invés de categorias geográficas foi eleita, pois possibilita verificar
questões que atravessaram o trabalho dessas artistas.
Além disso, o presente trabalho partiu da análise dos seguintes
documentos para estabelecer um panorama acerca do discurso curatorial da exposição: a análise dos textos de apresentação disponíveis nos
sites das instituições, a análise das entrevistas concedidas pelas curadoras, a análise da produção acadêmica sobre a exposição, além da veiculação acerca da mesma nas mídias (artigos e resenhas presentes em
jornais, periódicos e sites da web).
A partir disso, algumas questões despontam como extremamente caras à concepção do discurso curatorial da exposição. No entanto, primeiramente, precisamos abordar dois aspectos da metodologia
traçada pelas curadoras. A pesquisa acerca das lacunas na história da
arte latino-americana no que tange a produção de mulheres artistas –
tanto no território latino-americana ou em mulheres artistas radicadas
no território norte-americano, como é o caso das artistas chicanas. Em
segundo lugar, precisamos destacar a postura eleita pelas curadoras, ou
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seja, a análise através do feminismo artístico – realizando assim uma
leitura da história da arte por um viés feminista. Visão também partilhada no desenvolvimento deste trabalho.
Na análise das fontes já mencionadas, algumas questões se
demonstraram muito caras a idealização do discurso curatorial, sendo
estas: a ideia de corpo político, a ideia de uma alteração radical na iconografia do corpo empreendida por essas artistas e a intensa experimentação de equipamentos e suportes mobilizada por novos conceitos e
poéticas. Conforme a curadora Andrea Giunta expressa em entrevista:
“Nós pensamos a noção de corpo político, que é um conceito
muito rico e muito complexo, de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, porque muitas dessas obras foram realizadas em
situações de vigilância extrema, durante a ditadura. (...) E também nos referimos ao corpo político porque elas atuaram sobre
os acordos estéticos estabelecidos: as iconografias do feminino
estavam predominantemente nas mãos dos artistas homens, que
foram os que realizaram 99% dos nus que conhecemos na história da arte. Trata-se de um olhar externo, patriarcal, guiado pelo
desejo masculino. O que a exposição faz é evidenciar que o
corpo é observado, experimentado, conceitualizado a partir de
um olhar interno, que navega o corpo, que o representa de uma
maneira nova, quase sem precedentes. Por isso, no meu ensaio
no catálogo me refiro a um giro iconográfico radical: temas que
nunca haviam sido representados começam a sê-lo. Sob essa
perspectiva, considero que essas artistas produziram a maior
contribuição da arte pós-guerra até o presente. Por fim, o sentido político do corpo também reside no fato de utilizarem seus
próprios corpos como ponto de partida e objeto de exploração e
de investigação, levando-os a extremos inéditos, e recorreram,
ademais, às linguagens mais experimentais: a performance, o
vídeo, a fotografia (GIUNTA, 2018)”.
Esse corpo, produzindo e se representando em um espaço extremamente delicado, com a ascensão e aprofundamento de contextos
ditatoriais na América Latina, ocupa assim dois espaços bastantes marcados: o local em que sua subjetividade é atravessada e ferida - diante
da esfera política, e os locais em que se transcrevem as questões do
gênero, estabelecendo assim dois locais de violência que impactam e
fomentam a produção dessas artistas.
Esses trabalhos, extremamente relevantes para a construção de
uma nova concepção do corpo, demonstram um lugar em que o corpo
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
feminino deixa de ser objeto de uma vista, ou objeto de prazer do olhar
(MULVEY 1983). Se anteriormente o domínio das mulheres estava na
função de agir como uma mera portadora de sentidos, essas obras demonstram um novo lugar em que as mulheres como produtoras de sentido se destacam. O corpo passivo transmuta-se em um lugar de ação.
Justamente nessa transmutação de portadoras de sentidos para criadoras
ocorre o profundo processo do que Giunta chama de “uma alteração
radical na representação iconográfica do corpo”. O corpo ganha novas
representações capazes de questionar visões essencialistas em relação
ao gênero, denunciar as violências infligidas a esses corpos e mudar
radicalmente como até então esses corpos haviam sido representados.
A partir da reflexão acerca dos elementos em relevo na exposição – sendo estes, conforme falado, a ideia de corpo político, a ideia
de uma alteração radical na iconografia do corpo empreendida por esses
artistas e a intensa experimentação de equipamentos e suportes mobilizada por novos conceitos e poéticas, contrapomos agora em análise
como as obras da artista Letícia Parente são envolvidas dentro desse
discurso.
Primeiramente, essa alteração radical numa iconografia da representação do corpo, fica nítida nos trabalhos de Letícia, quando observamos a ação exercida pelo corpo, muitas vezes realizando atos que
inicialmente parecem comuns ao cotidiano e aparecem relacionados
socialmente a ações ou tarefas femininas: o ato de costurar em “Marca
Registrada” (1975), o ato de maquiar-se em “Preparação I” (1975) e o
ato de passar roupas em “Tarefa I” (1982). No entanto, logo confrontados pela ação que excede o corriqueiro, em “Marca Registrada”, ela
costura a sola do pé, marcando-se como um produto nacional, ação que
logo demonstra-se absurda e dolorosa, levando-se em conta o período
político em que ela realiza tal ação. Em “Preparação I”, Letícia utiliza
símbolos da representação do feminino, ironizando a aplicação de maquiagem sobre esparadrapos, colocados sob seus olhos e boca, retratando o uso desse item como máscara. Por fim, em Tarefa I, o ato de passar
roupas logo é tensionado, no lugar das roupas a serem passadas, vemos
o posicionamento de um corpo que logo irá ser passado por uma outra
figura. Há algo de absurdo nessa alteração das atividades até então visANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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tas como ordinárias. Conforme André Parente coloca – estabelecendo
relações entre os trabalhos de Letícia e o grupo de pioneiros da videoarte dos anos 70:
“O que importa mesmo nesses trabalhos é o fato da câmera e
a filmagem agiram sobre os corpos e os personagens como um
catalisador que deve fazer do vídeo um duplo processo de desocultação e desconstrução – no primeiro caso, dos processos
de produção de subjetividade que incidem sobre o corpo; no
segundo, dos dispositivos de representação audiovisuais. Dito
de outro modo, tratava-se, antes de tudo, de pôr em crise a representação, seja esta a do corpo ou a da imagem audiovisual”
(PARENTE, 2009, p. 105).
A pesquisa e as indagações acerca do corpo encontravam desde os anos 1960 e 1970 solo fértil, essa discussão no contexto brasileiro
colocava-se de forma até exaustiva, afinal já encontrava pesquisa e tensões desde as obras que interpelam o quase-corpo dos neoconcretos em
meados dos anos 1950.
No trabalho de Letícia encontramos para além dessa investigação empreendida quase que de forma empírica - levando em conta sua
formação nas ciências naturais, a extensão dos territórios do corpo para
locais de pesquisa e experimento. Segundo André Parente:
“Esses vídeos guardam muitas características em comum: não
só todos foram realizados no espaço doméstico, num plano-sequência e não contêm falas, como é a artista quem, à exceção
da Tarefa I, realiza as ações, que sempre a ocupações femininas,
como passar e guardar roupa, costurar e maquiar-se (PARENTE, 2009, 104)”.
Nessas ações, ao despir as estruturas de seus fatores comuns,
apresentando o absurdo, Letícia coloca em xeque o próprio lugar ocupado pelo feminino no social. Esse lugar das tarefas, das preparações,
enfim, que evidencia a manutenção da mulher dentro da esfera privada,
cabendo a ela cuidar dessa suposta ordem doméstica, mas logo esses
pequenos atos que assegurariam essa manutenção, logo demonstram-se
intoleráveis.
Em Marca Registrada (1975), a performance do feminino
através da costura e aqui também brincadeira comum ao seu lugar de
origem, relembra esse instrumento que anterior ao enlace através da
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
costura, a linha e agulha ligadas à esfera do cuidado passam a figurar
um universo doloroso, em que é necessário tornar-se produto de uma
nacionalidade exacerbada, ter em seu corpo o “Made In Brazil” que
anuncia sua procedência. O ato corriqueiro dos locais e ações ligados ao
feminino, demonstra-se frágil, fica nítida a necessidade de mostrar-se
mulher “prendada” e, além de tudo, insuflada de um grande orgulho
nacional.
A obra não trata do ato de perfurar a pele, mas desse ato presente que ecoa (PARENTE, 2010), ficando registrado no vídeo. Há uma
desnormalização de ações ligadas ao feminino e associadas a uma ideia
de nacionalidade vazia, pois nesse momento no Brasil via-se a consolidação e estreitamento do discurso militar. Na análise de Kátia Maciel
para o catálogo da exposição “Arqueologia do Cotidiano” realizada em
2011 por ela e por André Parente como curadores, ela pontua:
Sem qualquer hesitação Letícia tece na própria pele o estado
do Brasil, um país feito fora daqui propriedade estrangeira, o
Brasil de 1975 estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da
agulha que não para. No gesto não há violência, mas coragem
e enfrentamento. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao
mesmo tempo. (MACIEL, 2011, p. 53).
Nos trabalhos de Letícia, o corpo que parece incialmente conformado a atos e atitudes que referenciam o local em que sua subjetividade se ancora no social, logo subverte ação e passa a ocupar um local
de ação ao invés de passividade. Nas palavras de Christine Mello, esses
trabalhos “remetem à destruição da noção de um corpo meramente passivo e que apontam para a urgência de um corpo ativo, que se propõe a
intervir de forma crítica nas questões da atualidade (MELLO, 2008, p.
143)”.
Nesse processo, a pesquisa de Letícia se dá de forma tão intensa sobre os territórios do corpo, que para além dessa alteração entre passividade e ação, ela também oferece uma transformação radical
das visualidades do feminino. Afinal, as representações do feminino
estiveram associadas a serem “objeto de uma vista”66 ou “objetos do
66 BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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prazer masculino”67, nas artes visuais e cinema. Letícia apresenta um
novo paradigma, visto que através de suas ações, ela trabalha dentro
das estruturas aceitas – dos gestos e tarefas cotidianos, e intervém sobre
elas, possibilitando outras leituras acerca desse corpo. Em Preparação
I (1975), Parente toma posse de seu corpo como agente colocando os
esparadrapos no rosto antes da aplicação da maquiagem, como quem
comprova que tal ato é incoerente, causando cegueira. A ação realizada
no presente e comum ao cotidiano, faz questionar por quanto tempo a
ação se perpetuará, mantendo essa privação de sentidos diante da performance que culturalmente convencionou-se a ser encenada.
Esses atos – costurar, maquiar-se, passar roupas – comuns
àquilo que se esperaria das ações ligadas ao feminino, poderiam seguir
eternamente, nesse fragmento de presente que ecoa ainda contemporaneamente. Apesar do contexto de produção de Parente, as opressões e
violências ligadas à ditadura a atravessarem, a atemporalidade desses
trabalhos é incontestável, afinal, no presente ainda somos vistas como
as únicas realizadoras de certas preparações e tarefas. No entanto, Parente propõe através dessas ações, o questionamento das estruturas,
evidenciando a exclusão e desigualdade que as mesmas causaram,
permitindo assim agir sobre elas e alterá-las. Conforme elucida André
Parente (2010, p. 110), “O vídeo, portanto, somos nós no passado, no
presente e no futuro, no sentido de um processo por meio nos tornamos
outro”. Assim, não seria equívoco dizer que Letícia altera a potência do
corpo e o coloca como agente, tornando possível outros olhares sobre a
construção do feminino.
Novamente, precisamos destacar que ao observamos esses trabalhos, principalmente através do discurso da exposição, nos orientamos
por meio de um olhar feminista. Entretanto, apesar de a artista apresentar preocupações com questões femininas, seria um equívoco – ou um
anacronismo – afirmar que seu trabalho era feminista. É inegável que
tais preocupações estavam bastante presentes tanto em seus trabalhos
quanto em alguns relatos sobre suas obras, e pelo fato de Letícia ocupar
67 MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
“local privilegiado” em relação ao conhecimento, já que era doutora
em química e atuou academicamente como docente do ensino superior
tanto no Brasil como no exterior, pode ter antecipado a discussão sobre
a consolidação do feminismo no Brasil, ou melhor, de uma crítica feminista no país, que ocorreu tardiamente no país conforme aponta Roberta
Barros no livro “Elogio ao Toque – ou como falar de arte feminista à
brasileira” (2016). Isso deve-se, conforme aponta Barros, ao fato de que
no momento de ascensão de tais questões, os anos 1970, no Brasil se
dava o estreitamento dos regimes totalitários e a organização das pautas de luta das mulheres ocorrerem através de questões mais coletivas.
Apesar disso, as preocupações de Letícia acerca de questões femininas,
fez com que a artista estivesse presente em curadorias feministas assim
como “Mulheres Radicais”, como foi o caso da exposição “Elles” (realizada no Centre Pompidou) em 2010 e a exposição “Manobras Radicais” realizada sob curadoria de Paulo Herkenhoff e Heloisa Buarque
de Hollanda, em 2006, no Centro Cultural Banco do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescimento exponencial de novas abordagens no sistema
artístico, considerando recortes de raça, gênero e classe há muito obliterados diante das narrativas canônicas ganham nas exposições novo
local discursivo. Imerso em uma sistemática de relações, as narrativas
negociadas no campo expositivo demonstram a complexidade de relações econômicas, políticas, sociais entre outros que são ali envolvidas.
No caso das exposições feministas, vemos a possibilidade de
elas evidenciarem narrativas trazidas na teoria, como é o caso das questões ligadas às teorias feministas, a um viés feminista da história da arte
e que passam a ganhar relevo através da exposição. Cabe destacar a
exposição como um outro momento de estabelecimento de relações. A
exposição torna possível a disseminação de ideias para um público, já
que este muitas vezes pode não ter contato com as teorias construídas
em outros campos, mas através da experiência na exposição, questões
mobilizadas pelos discursos que edificaram as exposições podem ser
conhecidas e disseminadas pelo público.
Não há dúvida que Letícia desloca o corpo, colocando-o sobre
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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intenso escrutínio e demonstra a fragilidade das estruturas ali erguidas
– sejam elas do espaço doméstico, dos locais ocupados pelo feminino
e da imensa repressão sofrida no período de estreitamento do regime
militar. Nesse sentido, algumas questões continuam ecoando: podemos
adotar o trabalho de Letícia como paradigmático na empreitada da confirmação de uma alteração iconográfica radical do corpo? E ainda, compreendendo a exposição como moldura, que segundo Ana Maria Albani
de Carvalho, “(...) pode assumir diferentes formatos ou privilegiar determinados enquadramentos – que afeta de forma significativa o modo
de visualizar e pensar a arte”. Assim, nessa empreitada enciclopédica
realizada pelas curadoras, apresentada ao público através deste recorte,
quais outros recortes possíveis acerca da produção da artista podem
ganhar novas análises?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PINACOTECA DE SÃO PAULO. Mulheres Radicais: arte latino-americana,
1960 – 1985. Disponível em: < https://pinacoteca.org.br/programacao/mulheres-radicais-arte-latino-americana-1960-1985/>. Acesso em: 11 outubro 2020.
VÍDEOS CONSULTADOS:
Marca Registrada, Letícia Parente, 1975, 10’19”. Disponível em: https://vimeo.com/106529888.
Preparação I, Letícia Parente, 1975, 3’28”. Disponível em: https://vimeo.
com/119148500.
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com/106539010.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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A ESTÉTICA DA SATURAÇÃO
DE EDUARDO MONTELLI
Carlos H. Nunes Costa68 – carloshnc@usp.br
Resumo: A tecnologia é produto da inteligência humana. A cultura, e
consequentemente a arte, são afetadas por essa relação. Andy Warhol,
na década de 1960, e Eduardo Montelli, nos dias de hoje, são exemplos
de artistas cujas obras evidenciam a sua cultura. Este artigo pretende
analisar a produção artística contemporânea de Montelli, notadamente
as obras pensadas com, criadas pela e veiculadas na internet, traçando
um paralelo com as obras pop seriadas de Warhol, a fim de identificar
aproximações e distanciamentos estéticos entre as produções desses artistas de momentos diferentes. Com isso, busca-se compreender como a
saturação imagética de Montelli, fortemente marcada pela apropriação
e pela repetição de imagens, permite pensar a cultura digital que vivemos.
Palavras-chave: Arte contemporânea; Cultura digital; Pop art.
Abstract: Technology is a product of human intelligence. Culture and,
consequently, art are affected by this relationship. Andy Warhol, in the
1960s, and Eduardo Montelli, nowadays, are examples of artists whose
artworks show their culture. This article intends to analyze the contemporary artworks of Montelli, notably those designed with, created
by and published on the internet, drawing a parallel with the serial pop
artworks of Warhol, in order to identify aesthetic approximations and
distances between the productions of these artists of moments many
different. Thus, we seek to understand how Montelli’s image saturation,
strongly marked by the appropriation and repetition of images, allows
us to think about the digital culture we live in.
Keywords: Contemporary art; Digital culture; Pop art.
68 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Arte Hiperconectada: a so-
lidão e os espaços digitais de convívio”, orientada pela Profa. Dra. Monica Baptista Sampaio
Tavares, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de
São Paulo.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
INTRODUÇÃO
A tecnologia é produto da inteligência humana. Ontologicamente, ela é parte do humano. Logo, não é possível falar de uma oposição entre ambos, mas de uma relação de aderência (ROCHA, 2019).
A cultura que a cria, motivada por uma necessidade primária, é afetada
sensivelmente por sua presença. Hoje, com a mobilidade e a conectividade, podemos falar de uma onipresença da tecnologia em nossas vidas. Ela afeta a todos, indistintamente, nas mais variadas faixas etárias,
até mesmo aqueles que não possuem dispositivos sempre conectados
à rede. A tecnologia está presente na comunicação, na economia, no
trabalho, nas relações sociais, na formação do sujeito.
A tecnologia desmaterializou a concretude dos documentos, da
moeda, de objetos estéticos e das relações sociais, possibilitando que a sociedade contemporânea viva, efetivamente, o modelo social moldado pela ciência e por sua filha mais proeminente,
a tecnologia (ROCHA, 2019, p. 63).
A mobilidade física acrescida dos aparatos móveis com acesso
ao ciberespaço dotou-nos de hipermobilidade. Em função desta, tornamo-nos ubíquos, pois estamos ao mesmo tempo em algum lugar e fora
dele. Tornamo-nos pessoas presentes-ausentes. Os dispositivos móveis
em rede oferecem a possibilidade de presença perpétua, de perto ou de
longe, mas sempre presença (SANTAELLA, 2013). Assim, o ciberespaço não se apresenta como um espaço específico e “abstrato”. Não
podemos pensar em dois mundos separados, o “natural” e o ciberespaço, pois este encontra-se entranhado na cultura, tornando-se um espaço
social relevante. Não só a tecnologia é onipresente hoje, mas também
a presença das pessoas em rede (ROCHA; AMARAL-SILVA, 2017).
Os novos dispositivos móveis hiperconectados expandiram a
presença das “imagens técnicas” na sociedade, apontadas por Flusser
(2008) como uma revolução cultural a partir do surgimento e popularização da televisão, da fotografia, do cinema e do microcomputador. As
imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano
e transcenderam a figura indicial, mimética, da produção tradicional.
Nosso olhar mudou com a manipulação das imagens nas telas táteis dos
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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aparelhos, expandindo-o dos olhos para outras partes do corpo. A cultural visual contemporânea é indissociável da produção imagética das
redes digitais (BEIGUELMAN, 2021).
A arte é profundamente afetada pelas formas de olhar e pensar
do seu tempo, pois vinculada está à cultura que a criou e lhe deu sentido. Nessa perspectiva, artistas fazem experimentações com a tecnologia, testando as possibilidades criativas dos novos suportes e recursos
técnicos disponíveis (SANTAELLA, 2005). Eduardo Montelli, artista
visual gaúcho, desenvolve um trabalho no qual cria imagens digitais,
estáticas e em movimento, para pensar a performatividade dos corpos
nas redes. O artista tem a si mesmo como temática estruturante de sua
produção – uma performance da vida pessoal. Este artigo analisará a
instalação online “Só sei me transformar, apenas não sei em que”, de
autoria de Montelli, realizada para a Pivô Satélite (MONTELLI, 2021).
Interessa nesta obra a possibilidade de pensar criticamente a construção visual contemporânea nas redes digitais e de que forma ela sugere um modelamento da subjetividade. Para tanto, serão estabelecidos
aproximações e distanciamentos com as obras pop de Andy Warhol,
circunscritas no período inicial da pós-modernidade, caracterizada pela
reprodutibilidade e distribuição em massa das “imagens técnicas”.
1. TELAS TÁTEIS, OLHOS SECOS E CORPOS DÓCEIS
Um artigo da Revista Veja publicado em 2016 alerta para um
problema ocular que se tornara comum, atingindo, segundo dados daquele ano, cerca de dezoito milhões de brasileiros. Trata-se da Síndrome do Olho Seco, uma queda na produção de lágrimas que impede
a lubrificação adequada dos olhos. Um dos motivos relatados para o
aumento de ocorrências da disfunção é o constante uso dos aparelhos
eletrônicos. Andressa Basilio relata que “Normalmente, uma pessoa fecha e abre as pálpebras de 8 a 10 vezes por minuto. Entretanto, quando
estamos fixados em uma telinha (ou mesmo em livros), essa frequência
cai para cerca de três vezes” (BASILIO, 2019).
Trabalho, aula, leitura, entretenimento, reunião com amigos,
conversas. As telas mediam quase todas as atividades cotidianas. Até
mesmo o descanso, momento de desanuviar a mente, tem a participação
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
dos dispositivos. Não tiramos os olhos das telas com suas imagens-movimento incessantes.
Byung-Chul Han associa o ato de fechar os olhos a uma atividade interna, a um momento de apreensão ou formação de sentido. Ele
defende que só é possível alcançar a subjetividade em estado de silêncio. Assim, fechar os olhos significa, nas palavras do próprio autor, “trazer a imagem à fala no silêncio” (HAN, 2021a, p. 15). Ele prossegue:
As imagens digitais de hoje em dia são sem silêncio e, por isso,
sem música, sim, sem aroma. Também o aroma é uma forma de
conclusão. As imagens inquietas não falam ou contam, mas sim
fazem barulho. Frente a essas imagens ‘ameaçadoras’, não se
pode fechar os olhos. O olho fechado é o signo visual [Sichtzeichen] da conclusão. Hoje, a percepção é incapaz da conclusão,
pois ela zapeia pela rede digital sem fim. A rápida alternância
entre imagens torna impossível o fechar os olhos. Este pressupõe um demorar-se contemplativo. As imagens, hoje, são construídas de tal modo que não é mais possível fechar os olhos.
Ocorre um contato imediato entre elas e o olho, que não permite
nenhuma distância contemplativa. A coação por uma vigilância e visibilidade permanente dificultam fechar os olhos (HAN,
2021a, p. 15-16).
O filósofo assinala como o ritmo acelerado do cotidiano afeta
nossa experiência do tempo. Este lança-se incessantemente para frente, sem pausa. Com isso, “O presente se reduz à ponta da atualidade”,
afirma Han (2021a, p. 27). Essa aceleração, sem direção e sem sentido, provém da incapacidade de concluir, de se deter, de demorar. Hoje,
quando fechamos os olhos de algum modo, é por cansaço e exaustão.
Diante da tela tátil, acessamos uma fonte inesgotável de imagens – também as produzimos e compartilhamos. A maior parte delas
transmite uma informação simples, curta, rápida – quando não o vazio.
Afinal, a “sociedade do cansaço” (HAN, 2021b) não pode parar. Novas
informações nos aguardam. Movimentamos os dedos em busca da próxima, atualizamos o feed à espera de novidades. Ironicamente, o espaço
de exibição das informações compartilhadas nas redes sociais digitais,
como Facebook, Twitter e Instagram, chama-se linha do tempo.
Publicado em 1999 por Jean Baudrillard, Tela Total apresenta
uma análise do fenômeno da televisão e do computador na sociedade
(BAUDRILLARD, 1999). O filósofo francês afirma que a interatividaANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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de proporcionada pelos dispositivos eletrônicos aboliu a distância. E,
como consequência, toda informação se tornou irrefutável. Na fotografia, no cinema e na pintura há uma cena e um olhar; nos dispositivos
eletrônicos, a imagem induz a uma imersão, cria uma relação umbilical, uma experiência tátil. “Entramos na substância fluida da imagem
para, eventualmente, modificá-la”, insiste Baudrillard (1999, p. 146).
Citando os reality-shows, afirma não haver “nada mais de separação, de
vazio, de ausência: entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculo.
Entramos na vida como numa tela. Vestimos a própria vida como um
conjunto digital.” (p. 146). O zapping é mencionado por Baudrillard
para descrever a ação de passar canais televisivos em busca frustrante
por algo surpreendente. O movimento pode, então, ser atualizado para
o deslizar dos dedos que incansavelmente passam para a próxima imagem nas telas sensíveis do século XXI.
Embora seja um representante do pensamento dominante na
década de 1990, isto é, a coexistência de um mundo real e outro “virtual”, heterogêneos e separados, e de ser possível notar grande apreensão quanto à presença cada vez maior da tecnologia no cotidiano,
Baudrillard apontou uma direção para a qual caminhávamos a passos
largos. O termo “tela total”, título da publicação, expressa uma dominação das telas. Podemos transpô-lo para a atualidade como uma onipresença das telas no nosso cotidiano. O que acontece por meio delas
induz e molda os indivíduos.
Beiguelman (2021) segue mesma linha de pensamento. Para
ela, a imagem das telas sensíveis é cada vez mais palpável e caminha
para a diluição do anteparo que separa receptor e mídia. Por isso, nossa
relação com a imagem é íntima, percebida por todos os sentidos. Citando as redes sociais Instagram e Tik Tok, Beiguelman (2021, p. 32-33)
dispara: “A tela foi canibalizada. Em todas as duas dimensões. Despejadas aos quinquilhões de bytes por segundo na internet, as imagens do
século XXI tornam-se também espaços de sociabilidade.”. Não apenas
o ciberespaço, mas também as imagens que nele circulam, configuram
espaços de troca entre as pessoas. Não estariam as imagens, portanto,
isentas de se tornar um mecanismo para o estabelecimento de relações
de poder.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Hoje, todos somos traduzidos para dados digitais. Intenções,
ações, reflexos, sentimentos são transformados em dados coletados,
processados, armazenados e interpretados para predizer novas ações,
comportamentos e conhecimentos (coletivos ou individuais) em sistemas de inteligência algorítmica. Vivemos um capitalismo de dados ou
de vigilância sob o poder de uma elite detentora desses sistemas (LEMOS, 2021). Por isso, não nos causa alvoroço a enxurrada de imagens
homogêneas que circulam nas redes digitais. A câmera e a internet, presentes em dispositivos móveis, alteraram significativamente o espectro
social e cultural dos registros imagéticos.
A câmera foi convertida de dispositivo de captação a dispositivo de projeção do sujeito. A homogeneidade das imagens dá-se graças
à “economia liberal dos likes” que padroniza ângulos, enquadramentos,
cenas e estilos. Tudo para seguir as regras dos algoritmos que determinam o que é visto e o que não é visto por nossas bolhas. Na rede,
encontramos uma “massa compacta de corpos formatados”, ávidos por
mais visibilidade e que, para tanto, performam uma espetacularização
de si (BEIGUELMAN, 2021).
A “dataficação” do social e as regras de conduta ditadas pelos
algoritmos modelam a subjetividade. A cultura digital contemporânea,
com a ubiquidade das redes, criou formatos de padronização da imagem
e do olhar. Os algoritmos tornam-se, dessa forma, o aparato disciplinar
de nosso tempo. E as redes sociais consolidam as normas dos olhares e
dos corpos dóceis (BEIGUELMAN, 2021).
2. A SATURAÇÃO DA INTIMIDADE DE EDUARDO MONTELLI
A instalação online “Só sei me transformar, apenas não sei em
que” (MONTELLI, 2021) é composta de forma a exacerbar a presença
de imagens no espaço. A experiência fruitiva acontece numa janela de
navegador da internet, na qual toda a extensão horizontal é tomada por
imagens. Só é possível percorrer a instalação verticalmente, acionando
a barra de rolagem. O percurso é unidirecional e o olhar fica preso a um
espaço por onde brotam imagens estáticas e em movimento. A velocidade de rolamento da página não apenas interfere na visualização, mas
também pode indicar esgotamento do usuário-observador. Na tentativa
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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de uma visita apurada à instalação online, leva-se mais do que dez minutos.69
Na obra de Montelli, as imagens são contínuas, não há intervalo entre elas. Os olhos são incessantemente estimulados. Por vezes, elas
são dispostas para formar um espaço tridimensional, como paredes,
que envolvem nosso olhar, dando a sensação de confinamento. Assim
é apresentado o primeiro conjunto de imagens. Nas laterais, ambientes
internos alternam-se rapidamente de forma a não conseguirmos reconhecê-los. No centro, uma área externa, em frente a uma casa cuja porta
encontra-se aberta, é preenchida com objetos, que são empilhados. Todos esses objetos parecem ser retirados do interior do espaço e levados
ao exterior. Na sequência seguinte de imagens, vemos um vídeo com
fogos de artifício ocupar a maior parte da tela. Ao fundo deste, uma
janela de microcomputador mostra arquivos, provavelmente da mesma
pasta de onde foi executado o vídeo em destaque. As imagens de capa
dos arquivos exibem um quadro de cada vídeo: o artista está em todas
elas, em poses e espaços que desvelam sua intimidade. Os conjuntos
iniciais de imagens não apenas abrem a instalação, mas declaram aberta a intimidade do artista. Os objetos e os espaços, então privados, são
expostos; as pastas com arquivos pessoais são abertas. A partir desse
momento, somos convidados a acessar a vida de Montelli – e com que
facilidade costumamos aceitar tal convite – ou, ao menos, a performance algorítmica de si a que nos expõe.
A instalação contém imagens do acervo do artista, obras que
são reutilizadas integralmente ou com pequenas alterações; imagens
apropriadas da internet e compostas para formar uma nova; e imagens
produzidas que desvelam a intimidade do artista, seus ambientes de
convívio, suas relações, seu corpo. De forma geral, a abordagem segue
um tom irônico, crítico, por vezes ácido. Embora as imagens pareçam
desconexas, é possível identificar em algumas sequências um tema específico.
69 Recomendo a visita à instalação online antes de prosseguir a leitura e a análise da obra.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Numa dada série, são apresentadas críticas ao mundo da arte
e a atual profusão de imagens. Lado a lado, uma janela da ferramenta
paint, com um texto que muda para diferentes possíveis classificações
para sua produção – digital art, web art, internet art, postinternet art
– e, ao lado desta, a lista de lembretes cadastrados num aplicativo de
celular, cujo conteúdo varia do conceito de readymade a pensamentos
sobre imagem e identidade. Um deles diz: “não amar só as imagens
e as palavras dos outros / amar mais as atitudes e os silêncios”. Uma
rolagem adiante e nos deparamos com uma citação de Mallarmé: “No
fundo, o mundo é feito para acabar num belo livro”, sendo a palavra
“livro” revezada com “gif”, como uma referência a seu próprio trabalho
e aos memes, febre viral imagética das redes sociais.
As críticas políticas permeiam toda a obra. Questões relacionadas à gênero e sexualidade, à crise política brasileira, à sociedade
de controle e vigilância, ao uso do telefone celular e às redes sociais
e suas regras de conteúdo. Um papel escrito “Como faremos para desaparecer?” é amassado. Uma propaganda do Tik Tok do canal digital
Globoplay é exibida. Um gif animado mostra o artista beijando seu
celular em posições variadas. Imagens de todas as suas redes sociais
são apresentadas.
Em meio às críticas políticas, vemos imagens da intimidade do
artista. Uma sequência delas mostra sua família, fotos de sua infância,
sua mãe em atividades cotidianas, a si mesmo em diferentes idades.
Aparecem também seus amigos, seu companheiro, todos em ambientes
privados. Ao mesmo tempo que nos oferece a intimidade, as personagens parecem encenar a própria vida. Há, portanto, um jogo entre lugar
e não-lugar, entre público e privado, ficção e realidade. Em meio a essas
dúvidas, algo nos atinge de pronto: a ostensividade do “eu”. E sentimos
um déjà-vu por sermos cotidianamente bombardeados por essas imagens nas redes sociais digitais, quando não somos nós os produtores
delas. De algum modo, temos uma sensação de familiaridade dada a
homogeneidade das imagens.
A obra finda com a imagem de um rosto, cuja forma e cor
remetem a uma goma mascada. À medida que percorremos a tela, esse
objeto emborrachado disforme segue, rolando sobre o fundo preto,
como se estivesse em queda livre. Já não vemos imagens em abunANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dância, apenas o chiclete. Ele encara-nos e sua boca movimenta-se na
tentativa de dizer algo. A massa humana mastigada, já desprovida de
aroma e açúcar, parece ter sido descartada, lançada ao ar. Um corpo
efêmero, sem serventia.
De forma geral, a instalação é composta por imagens estáticas
e dinâmicas que concorrem por nossa atenção. O movimento dos olhos
é incessante na tentativa de ler tudo. Ao primeiro olhar, o conjunto de
imagens da instalação é desprovido de sentido. É difícil encontrar uma
narrativa que as una. Mesmo se tratando de imagens diferentes, em ambientes ou com objetos de cena diferentes, temos a impressão de visualizar um bloco de imagens análogas, frívolas, constantes. A instalação
online de Montelli é, pois, autorreferente. Ela aponta para o universo
imagético das mídias digitais da qual faz parte.
3. APROPRIAÇÃO, REPETIÇÃO E VAZIO COMO ESTÉTICA
ARTÍSTICA
Sabemos que o uso de imagens corriqueiras da cultura vigente
não é novidade na arte. A arte pop norte-americana serviu-se desse expediente e abriu caminho para a consolidação da crítica ao tempo atual através da apropriação, da repetição e do aparente esvaziamento de
sentido objetivo das imagens. Temos em Andy Warhol um importante
exemplo dessa estética da saturação, que mobiliza até hoje pensamentos divergentes de filósofos e teóricos culturais.
Essa arte, erigida nos anos 1960, utilizou os signos da cultura
de massa, trazendo para o universo artístico o referencial visual dos
quadrinhos, da publicidade, das personalidades da política e do cinema. Os materiais oriundos das mídias de massa figuravam como fonte
iconográfica, técnica e de convenções de representação visual. As obras
aludiam à banalidade urbana estadunidense, ao contexto social da qual
eram parte. A arte pop deu-se, nesse sentido, como uma metalinguagem
por apresentar representações da realidade encontradas na cultura popular (SANTAELLA, 2005).
Há uma complexidade implícita na arte pop que precisa ser
deslindada. Ao incorporar e traduzir a iconografia popular e
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
mudar o modo de produção e distribuição da arte, os artistas
não visavam simplesmente a se tornar parte da cultura de massas. Apoiados pelos críticos e curadores, pretendiam reafirmar
o status de arte pop como arte, uma arte agora inserida em uma
sociedade industrial, cuja produção artística deveria também
ser industrializada, do que decorre que “arte industrial” poderia
ser um outro nome para arte pop (SANTAELLA, 2005, p. 40).
Warhol adquiriu grande notoriedade entre os artistas da estética pop. O processo mecânico da serigrafia possibilitava a produção
serializada. Com isso, ele lançava mão da repetição de imagens para
construir múltiplos que levantavam questões sobre originais e originalidade, sobre o processo duplicatório pelo qual o próprio ícone da
cultura de massa surgia. Embora tenha sido bem-sucedido como artista,
as obras de Warhol enfrentaram resistência no meio artístico por serem “comerciais demais, excêntricas demais, sem peso, frágeis demais”
(LAING, 2017). Com efeito, a arte pop está distante de um consenso,
mesmo entre estudiosos da estética e da cultura.
Para Danto, Andy Warhol “encarnava uma concepção de vida
que abraçava os valores da era em que ainda vivemos”. Ele foi o responsável por provocar uma revolução no “gosto” de sua época. Ainda
que aponte qualidades na produção pop, o filósofo americano associa o
uso de signos da cultura de massa à exaltação do estilo de vida norte-americano, pautado no consumo. Esse pensamento considera que a arte
pop instaurou uma estética da arte comercial. Não à toa, o artista tenha
adquirido o status de ícone cultural (DANTO, 2013).
Foster (2005) critica os modelos representacionais a partir dos
quais a arte pop é analisada. Em síntese, esses modelos buscam na “genealogia pop” uma ordem da representação: seja a uma realidade do
mundo ou a uma imagem existente. Não encontrando correlação, definem-na como simulacro. O crítico de arte norte-americano considera
essa linha de raciocínio, adotada por pensadores da linha pós-estruturalista, reducionista. É o caso de Jean Baudrillard e Roland Barthes, que
fazem uma leitura da arte pop na chave do simulacro.
Barthes reconhece que a arte pop rompe com a representação
vanguardista moderna. Contudo, afirma que suas obras são superficiais, desprovidas de significado profundo. Mais do que isso, o artista
pop promove seu próprio apagamento, não tendo ele mesmo qualquer
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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profundidade. Na arte pop, portanto, para o filósofo francês, não há
significado, nem intenção. Baudrillard possui uma crítica ainda mais
contundente. Para este filósofo, a arte pop constituiu o fim da subversão
pela total integração das obras à economia política do signo de consumo (FOSTER, 2005). Ambos os filósofos não julgavam como princípio
criativo a apropriação iconográfica e sua exposição direta, sem véus
formais que a dotassem de sentidos aprofundados. Para eles, imagens
sem um referente não passam de simulacros.
Em contrapartida, Thomas Crow vislumbra nas produções da
arte pop um estado crítico à cultura de massa. E associa Warhol ao rol
de artistas pertencentes à tradição popular norte-americana do Truth
Telling (FOSTER, 2005). Em sua análise, Crow faz uma leitura das
obras de Warhol de cunho político explícito: as imagens das cadeiras
elétricas e dos protestos contra o racismo institucional nos Estados Unidos. Em ambos os trabalhos, faz-se presente a repetição da imagem
apropriada da mídia (a cadeira elétrica e a repressão policial a um protesto), em que variava apenas a paleta de cores sobre a imagem reproduzida, uma marca da estética de Warhol com uso da técnica da serigrafia.
Foster (2005) apresenta uma leitura psicanalista da vida de
Andy Warhol, suas obras e suas declarações públicas. Apoiado nos estudos de Lacan, ele afirma haver no artista uma subjetividade em choque e uma compulsão pela repetição. Esta não é reprodução no sentido
de representação ou simulação. Ela serve para proteger o artista do real,
tido como traumático. Essa necessidade de fuga, porém, aponta para o
real. Nesse momento, não no conteúdo, mas no pipocar repetitivo das
imagens, surge o punctum barthesiano. As obras contendo imagens de
desastres, que remetem à morte, são utilizadas para enredar com maior
veemência a tese do “realismo traumático” warholiano. Nelas, vemos,
mais uma vez, imagens apropriadas da mídia, repetidas, com tonalidades variantes.
De forma geral, Crow e Foster atribuem uma autonomia da
imagem capaz de aproximar a arte do cotidiano das pessoas. Nesse sentido, ela passa, então, a se alimentar da realidade do seu tempo para
questioná-lo. Retomando a nossa contemporaneidade, podemos, então,
pensar as aproximações e afastamentos entre as produções de Warhol
e Montelli. As repetições em ambos são fruto da técnica à disposição.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Enquanto o artista pop dominava a serigrafia para reproduzir imagens,
Montelli domina os softwares de edição e montagem para produzi-las,
inserindo movimento. A saturação, no primeiro, está no uso da mesma
imagem. No segundo, está na temática do comportamento das redes
sociais digitais, encarnada nas muitas variações de seu corpo e das imagens apropriadas para compor a obra final. Individualmente ou agrupadas, as imagens oferecem o banal, um conteúdo presente na superfície,
sem um sentido profundo.
Diante dos aspectos que fazem convergir as produções dos
dois artistas, podemos indagar se a dualidade de pensamento apresentada para as produções pop de Andy Warhol também pode ser aplicada
à arte de Eduardo Montelli. As obras digitais de Montelli podem ser
analisadas como exaltação à “economia liberal dos likes”? Certamente,
pode haver quem situe apropriação, repetição e banalidade no campo
da exaltação dos signos do seu tempo. Deixo esse debate em aberto. No
entanto, há algo que não podemos negar: Warhol e Montelli são artistas
que deflagram o mundo em que vivem e, por isso, suas produções nos
permitem pensar a sociedade das quais são contemporâneas.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
PIERRE FRANCASTEL E GEORGES DIDIHUBERMAN: UM DIÁLOGO ENTRE TEÓRICOS
PARA PENSARMOS OBRAS DE PINTURA DA
EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES DE 1890
Cintya dos Santos Callado70 – cintya.callado@museus.gov.br
Resumo: O presente trabalho pretende analisar a composição pictórica
de algumas obras apresentadas na exposição geral de 1890, adquiridas
e premiadas pela Escola Nacional de Belas Artes, a partir dos teóricos
Pierre Francastel em seu trabalho Pintura e Sociedade, de 1990 e Georges Didi-Huberman, em Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens, de 2015. As pinturas em destaque são: Os bandeirantes, de Henrique Bernardelli, Caipiras negaceando, de José Ferraz
de Almeida Júnior, Morro da Viúva (Rio de Janeiro, RJ), de Joaquim
José da França Júnior; Praia Formosa (Rio de Janeiro, RJ), de Hipólito
Caron; Turbínio, de Antonio Parreiras e Paisagem (de Barbacena, Minas Gerais), de Giambattista Pagani.
Palavras-chave: Francastel; Didi-Huberman; Pintura; EGBA de 1890.
Abstract: The present work intends to analyze the pictorial composition of a few paintings presented in the 1890 Salon, acquired and
awarded by National School of Fine Arts, based on the theorists Pierre
Francastel, in his 1990’s work Pintura e Sociedade and Georges Didi-Huberman, in Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das
Imagens, 2015. The featured paintings are: Os bandeirantes, by Henrique Bernardelli, Caipiras negaceando, by José Ferraz de Almeida Júnior, Morro da Viúva (Rio de Janeiro, RJ), by Joaquim José da França
Júnior; Praia Formosa (Rio de Janeiro, RJ), by Hipólito Caron; Turbínio, by Antonio Parreiras e Paisagem (de Barbacena, Minas Gerais), by
Giambattista Pagani.
Keywords: Francastel; Didi-Huberman; Painting; 1890 Salon.
70 Cintya dos Santos Callado é doutoranda do PPGAV (UFRJ), mestra pelo PPGHC (UFRJ)
e graduada em História (UFRJ). Especializou-se em Cultura, História e Literatura Africanas
(UCP). Trabalha no Arquivo Histórico do MNBA, onde realiza pesquisa sobre as EGBAs, coordena a oficina “O Arquivo Histórico do MNBA de Portas Abertas” e participa do grupo de
Pesquisa “Artistas Negros e Representações do Negro do MNBA”.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Francastel e Didi-Huberman procuram questionar a noção de
temporalidade comumente utilizada para se fazer uma análise crítica de
uma obra de arte, que costuma reduzi-la a um determinado estilo artístico. Francastel ressalta que, durante a primeira metade do Quattrocento,
as experiências espaciais são diversas e não alinhadas, muitas vezes
contraditórias, mas convivem neste mesmo espaço. As obras de pintura
de Perugino (1446-1523) e Lippi (1406-1469), por exemplo, são construídas a partir de uma pluralidade de sistemas. Essa análise encontra
correlação com Didi-Huberman, que verifica no afresco “Madona das
Sombras”, de Fra Angelico (1395-1455), ideias múltiplas, de tradições
pictóricas distintas. Ele identifica nesta obra três tempos heterogêneos,
que são, portanto, anacrônicos entre si.
Toda essa multiplicidade, segundo Francastel, evidencia o caráter, ao mesmo tempo, efêmero e permanente, da arte renascentista. A
passagem de um estágio de desenvolvimento para o outro não elimina
os anteriores. Quando acontece a passagem de um estágio para o seguinte, o domínio – que já havia sido adquirido na etapa precedente –
do estágio alcançado não acontece de imediato. Quando esse domínio é
atingido, o indivíduo “automatiza mais do que abandona” (Francastel,
1990, pp. 91-92) suas práticas, apropriando-se da sua experiência presente e das anteriores.
Tal reflexão entre permanência e efemeridade encontra uma
feliz correspondência em Didi-Huberman, quando ele destaca que “Só
há história de sintomas” (2015, p. 43). O sintoma é o que surge, “aparece”, denotando um desequilíbrio, uma descontinuidade. Esconde
um paradoxo visual (imagem-sintoma), o que se externaliza, tirando a
normalidade das coisas, e um paradoxo temporal (sintoma-tempo), ao
passo que desvela os anacronismos, interrompe o curso natural representado pelo tempo cronológico. Podemos falar em paradoxo pois, ao
mesmo tempo que o sintoma denota uma descontinuidade do percurso
natural das coisas, esse próprio percurso também continua fluindo, com
seus anacronismos inerentes. Temos, portanto, a repetição e a diferença
(2015, p. 50).
Destarte, não haveria um único estilo nas obras de arte, ainda
que algum possa ser predominante. Eles se sobrepõem ou se justapõem
nelas, uma vez que os estilos artísticos não surgem abruptamente, mas
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
são resultado de um processo produtivo, que é influenciado pelo próprio tempo e espaço do artista e por suas interpretações de diferentes
temporalidades e espacialidades. Trazendo essas reflexões para as pinturas da EGBA de 1890, temos algumas considerações que serão expostas a seguir.
“Os bandeirantes” [Figura 1] foi feito por Henrique Bernardelli no ano de 1888 e recebeu a primeira medalha de ouro Exposição
Geral de Belas Artes de 1890 (AI/EN 28.17). A obra é uma pintura de
gênero histórico: ao mesmo tempo em que predomina uma apresentação de cena do quotidiano, numa concepção realista- naturalista, em
que os bandeirantes “bebem água como os animais” (Christo, 2002,
p. 34), ainda convive nele uma concepção romântica, que privilegia a
narrativa e uma visão idílica dos índios, personagens retratados a partir
de uma perspectiva exótica.
“Caipiras negaceando” [Figura 2] é uma pintura de gênero
feita por José Ferraz de Almeida Júnior, em 1888. É um exemplo de
obra de modernidade, à época identificada com o movimento realista,
que privilegia a realidade em sua crueza, procurando se distanciar dos
idealismos românticos, o que notamos na própria escolha do artista de
retratar duas personagens em atividades quotidianas.
“Caipiras negaceando” e “Os bandeirantes”, foram avaliadas
pela comissão julgadora da EGBA de 1890 em Rs 7:000$000 (sete contos de réis), cerca de R$ 861.000,00. Foram as obras melhor avaliadas
na exposição. Para termos uma ideia do prestígio de ambas, o próximo quadro mais caro pertencia ao próprio Bernardelli, avaliado em
2:000$000 (AI/EN 53.18-16).
Além dessas influências mais óbvias, nossa pesquisa buscou
possíveis interfaces dessas obras com a iconografia da cerâmica mediterrânica antiga, mais precisamente as áticas, coríntias e ápulas. Pensando no contato visual, realizado presencialmente, desses pintores do
século XIX com a arte greco-romana, remontamos às suas premiações
na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Um artista brasileiro que
recebesse o prêmio de viajar para a Europa para estudar pintura iria, de
Bernardelli com as pinturas dos vasos mediterrânicos antigos, percebemos importantes correspondências:
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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a) a imponência dos caçadores de javali em relação aos animais e a
imponência do índio em “Os bandeirantes”. Há uma idealização
dessas personagens;
b) os temas laborais, ou seja, as atividades rotineiras do homem,
estão presentes tanto no quadro quanto nos vasos. A “profissão”
é um tema de destaque: os fundidores de metal, os caçadores e
os bandeirantes;
c) há uma exposição da crueza do ofício, sem idealizações, tanto
nos vasos quanto no quadro. Basta olharmos, por exemplo, para
a posição de subalternidade dos bandeirantes, agachados, em
meio à sede, e compararmos com o árduo trabalho dos fundidores;
Comparando Caipiras negaceando com a iconografia dos vasos, temos:
a) o “negacear” como ritual subjacente ao trabalho. É possível
traçar um paralelo com os caçadores de javali [Figura 3]: todos, igualmente posicionados, com a sua lança na mão direita,
para atacar o animal;
b) em relação à crueza das atividades laborais, podemos comparar o risco do fundidor, ao inserir o metal na fornalha, com o
risco de ataque aos caipiras em meio à mata. [Figura 4] O fogo,
destacado na pintura da fornalha, nos remete a esse perigo, da
mesma forma que as armas dos caipiras remetem a uma necessidade de proteção em sua prática laboral;
c) a cooperação entre homens jovens e mais velhos no trabalho:
entre os caçadores de javali, há homens barbudos e imberbes;
os “caipiras”, um jovem e um homem mais velho, realizam a
atividade juntos.
Em ambas as pinturas do século XIX, vemos a importância da
coletividade, do trabalho em grupo ou em dupla. É o que percebemos
também nas imagens dos vasos: os fundidores trabalhando em dupla e
os caçadores de javali, em grupo.
Voltemo-nos agora para as paisagens. “Turbínio”, de Antônio
Parreiras, foi feita em 1888, quando da estada do artista na Itália. “Praia
Formosa, de Hipólito Caron, foi pintada em 1888. Giambattista Pagani
pintou “Paisagem (de Barbacena)” em 1890. Os três artistas receberam
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
a segunda medalha de ouro na exposição de 1890. Joaquim José da
França Júnior, com “Morro da Viúva”, recebeu uma menção honrosa.
Parreiras, França Júnior e Caron compuseram, juntamente
com outros artistas, sob a orientação do pintor alemão Georg Grimm,
o chamado “Grupo Grimm”, de 1884 a 1886, que se ocupou da feitura
de pinturas de paisagens ao ar livre. Em “Morro da Viúva” [Figura 5], é
possível perceber a influência de Grimm sobre França Júnior, pois seu
trabalho apresenta contornos nítidos e desenho definido.
Muitas obras de Caron trazem essas duas características, no
entanto, ao analisarmos “Praia Formosa” [Figura 6], percebermos que
as massas coloridas, tanto na vegetação, quanto nas construções, estão
se tornando cada vez mais densas, e alguns contornos já não aparecem
delimitados. Trata-se de mais liberdade, mais poesia do artista, que não
está tão preso a uma fidelidade da captação da realidade.
Em “Turbínio” [Figura 7], palavra italiana que significa “redemoinho”, Parreiras se ocupa de representar um fenômeno natural em
sua paisagem. A obra ainda traz a influência do seu antigo mestre George Grimm, com a fatura detalhista e os contornos bem evidentes, rigores
dos quais ele vai se distanciar nas décadas seguintes, aproximando-se
de trabalhos impressionistas, com pinceladas mais espessas. Essa tela
traz uma maior dramaticidade, enfatizando um instante de movimento
da natureza, com ventos intensos. Percebemos aproximações de “Turbínio” com “Agar e o Anjo”, de Nicolas Poussin. Apesar de os temas
escolhidos pelos autores serem díspares – um se baseia numa passagem
antiga da Bíblia, enquanto o outro se ocupa de representar um evento
do presente –, o arranjo dos elementos nas obras nos faz perceber algumas semelhanças. As telas trazem uma ideia de movimento que se
dá da direita para a esquerda, que é sugerido por Agar acompanhando
o anjo e pela disposição das árvores e das nuvens, no caso de Poussin,
e pelas palmeiras afetadas pelo vento, na tela de Parreiras. É possível
que ambos os autores tenham lançado mão de traçados reguladores para
atingir a proporcionalidade com linhas diagonais, que dão esse efeito de
movimentação e sentido.
Focando no arranjo das árvores nas telas, elas se encontram
predominantemente à direita em ambas. As personagens estão na porção inferior da tela e à esquerda. Apesar de estarem em primeiro plano,
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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elas têm um tamanho muito menor em relação à natureza. No caso de
Poussin, a imponência das árvores e das rochas e, no caso de Parreiras,
a força do vento no redemoinho, a causar o movimento intenso das
árvores, aliada à pequenez das personagens, sugere que a paisagem natural deva ser o destaque nas telas. Cabe também ressaltar o céu nestas
duas obras: está evidenciado à esquerda das telas, ocupando toda a sua
porção superior, com um clarão contrastando com nuvens mais escuras
e densas, que se movimentam para o sentido esquerdo. Em ambas as
telas, as nuvens carregadas anunciam o mau tempo, que remonta a períodos de turbulências. A presença dos rochedos em boa parte das telas e
num primeiro plano também denota a escolha dos autores por enaltecer
elementos naturais em sua crueza nas telas.
Em “Paisagem” [Figura 8], de Pagani, permanece a pequenez
humana diante da paisagem e os contornos nítidos. Contudo, a disposição da paisagem natural é outra. Ela circunda toda a imagem, o céu
aparece meio que no vão entre as árvores, dirigindo o olhar do observador primeiramente para o centro da tela (perspectiva com um ponto
de fuga). A iluminação caracterizada na tela também é diferente das
demais analisadas. É possível perceber que a pintura foi realizada durante a manhã, com o sol a pino, que ilumina o céu, as árvores e a trilha.
Ainda nos falta pesquisar a respeito do artista e de sua obra.
Cabe ressaltar que este trabalho é parte de uma análise que prima pela multiplicidade de inspirações que sofre um artista para pintar
suas telas. Não deixamos de perceber as diferenças entre as produções,
tendo em mente que elas sempre dialogam com seu contexto histórico.
No entanto, interessa-nos os diálogos que elas possam suscitar, a partir
das comparações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALCANTI, A. Antônio Parreiras, A Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro e a pintura de paisagem. Artigo apresentado no XI Seminário Museu
D. João VI, 2020.
CHRISTO, M. Bandeirantes ao chão. Revista Estudos Históricos, Vol. 2. Nº
30, 2002
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DIDI-HUBERMAN, G. Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo
das Imagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015, pp. 15-57.
DOSSIER DE L’ART. Poussin: Exposition au Grand Palais. Dijon: Editions
Faton S.A., n. 21, outubro/novembro 1994.
FRANCASTEL, P. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
PEREIRA, S. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.
FONTES DIGITAIS
GRUPO GRIMM. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo537095/grupo-grimm. Acesso em: 22 de janeiro de 2022.
FONTES DOCUMENTAIS
Acervo do Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes
AI/EN 28.17
AI/EN 53.18-16
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201
Imagens:
Figura 1. Henrique BERNARDELLI. Os bandeirantes. 1888. Óleo sobre tela, 400 x 290 cm.
Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
202
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Figura 2. José Ferraz de ALMEIDA JÚNIOR. Caipiras negaceando. 1888. Óleo sobre tela,
280 x 215 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
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203
Figura 3. Caça a javalis. Cratera com colunas coríntia. Grupo Andromeda. Londres. British
Museum. 1772,0320.6+. ©bristishmuseum.org
204
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Figura 4. Fundição de metal. Enócoa ática de figuras negras. Londres, British Museum.
1846,0629.45. ©bristishmuseum.org
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205
Figura 5. Joaquim José da FRANÇA JÚNIOR. Morro da Viúva, Rio de Janeiro. 1888. Óleo
sobre tela, 70 x 100,6 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
Figura 6. Hipólito CARON. Praia Formosa, Rio de Janeiro.1888. Óleo sobre tela, 38 x 54,5
cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
206
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Figura 7. Antônio PARREIRAS. Turbínio, Veneza. 1888. Óleo sobre tela, 349 x 208 cm.
Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
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Figura 8. Giambattista PAGANI. Paisagem (de Barbacena). 1890. Óleo sobre tela, 74 x 110
cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT.
208
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CULTURA DE MUSEUS NO BRASIL: DA
GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE
Clara Mourão Downey71 - clara_downey@hotmail.com
Resumo: O espaço museal no Brasil tem um histórico de afastamento
e mesmo com os esforços atuais das instituições para reaproximar o público, essa questão continua sem uma solução. Por outro lado, a Bienal
de São Paulo, idealizada por Ciccillo Matarazzo em 1951, obtém desde
sua primeira edição grandes números de visitação; além disso, a cada
edição a Bienal se renova e reflete o cenário brasileiro, promovendo
polêmicas e debates artísticos no país e no mundo. O presente artigo
propõe pensar a cultura de museus no Brasil a partir do conceito de
“habitus” de Bourdieu e como ela se desdobra na contemporaneidade,
a partir da relação das Bienais de São Paulo de 2006 a 2016 com seu
público.
Palavras-chave: Cultura de Museus no Brasil; História das Exposições; Bienal de São Paulo; Público.
Abstract: The museum space in Brazil has a history of distance and
even with the current efforts of institutions to bring the public closer,
this issue remains unresolved. On the other hand, the Bienal de São
Paulo, conceived by Ciccillo Matarazzo in 1951, has received large
numbers of visitors since it’s first edition; Furthermore, with each edition, the Bienal renews itself and reflects the Brazilian scenario, promoting controversies and artistic debates in the country and in the world.
This article proposes an analysis about the culture of museums in Brazil
based on Bourdieu’s concept of “habitus” and how it unfolds in contemporary times, based on the relationship of the São Paulo Biennials
from 2006 to 2016 with their audience.
71 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Cultura de Museus no Brasil:
Um Estudo Através da 31ª e 32ª Bienais de São Paulo”, orientada pela Profa. Dra. Renata Cristina Oliveira Maia Zago Mazzoni Marcato, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora. A pesquisa conta com
financiamento CAPES.
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Keywords: Culture of Museums in Brazil; Exhibition Histories; São
Paulo Biennial; Public.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês, conduziu entre os anos de
1964 e 1965 um conjunto de pesquisas que pretendia, através de um
método de amostra, sondagem e questionários, entender e equacionar a
relação dos museus de arte da Europa com seu público. Essa pesquisa
envolveu diversos pesquisadores e instituições, procurando comparar
informações como: número de visitantes anuais, números de obras expostas, número de obras do acervo, tipo de obras, situação econômica
da cidade onde o museu se situa, entre outras. Além disso, foram aplicados questionários ao público de cada uma das instituições, na intenção de entender o perfil social do visitante - classe econômica, nível
de escolaridade, faixa etária, local de residência; bem como museus já
visitados, tempo de duração da visita, tipo de arte favorito, entre outros
- qualidade da visitação. A partir dessa pesquisa, foi possível a elaboração de um modelo matemático que fosse capaz de analisar a frequência
das visitas aos museus.
A conclusão dessa extensa pesquisa, não foi chocante, como
aponta Bourdieu (2016) foi: “(...) a enunciação de algumas verdades
evidentes (...)” (BOURDIEU, DARBEL, p.157, 2016), contudo foi essencial para entendermos como a perpetuação do sistema de classes
está, não somente na economia como apontava Karl Marx, mas em uma
estrutura estruturante que Bourdieu denominou de “habitus”. Esta estrutura se trata de um marcador de classe social, uma noção de identidade construída pelo indivíduo desde seu nascimento, onde o círculo
social o insere nas práticas usuais de sua classe, estruturando suas atividades na sociedade e assim perpetuando o sistema de classe vigente.
A cultura de visitação a museus reflete o habitus pois há uma estrutura
oculta onde prazer estético experienciado no espaço museal está relacionado à perpetuação de um gosto culto, intelectual, que se opõem ao
gosto bárbaro e faz parte de um plano de monopólio cultural. Assim
como aponta Bourdieu (2016):
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O museu fornece a todos, como se tratasse de uma herança pública, os monumentos de um esplendor passado, instrumentos
da glorificação suntuária dos grandes de outrora: liberdade fictícia já que a entrada franca é também entrada facultativa, reservada àqueles que, dotados da faculdade de se apropriarem das
obras têm o privilégio de usar dessa liberdade e que, por conseguinte, se encontram legitimados em seu privilégio, ou seja, na
propriedade dos meios de se apropriarem dos bens culturais ou,
para falar como Max Weber, no monopólio da manipulação dos
bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural.
(BOURDIEU, DARBEL, p. 163, 2016)
As conclusões feitas por Bourdieu, na França, em 1979 podem
nos dizer algumas coisas sobre a cultura de museus no Brasil: desde o
surgimento da primeira instituição museológica no país, o Museu Nacional em 1818, seu modelo foi importado da Europa a fim de agradar e
presentear as elites europeias, monetárias e intelectuais aqui residentes.
Foi somente no período pós-guerra, com Assis Chateaubriand e Ciccillo
Matarazzo, que um olhar mais democrático para o acesso à cultura surgiu, com a criação de museus como o MASP, o MAM/SP e a Bienal de
São Paulo. Entretanto, esse acesso foi concedido por se acreditar que
era através do conhecimento e do enriquecimento cultural da população
que se alcançaria o progresso no país, como parte de um projeto de
industrialização do Brasil, e da transformação de São Paulo em uma
metrópole. Essas instituições ganharam, portanto, uma “aura de inacessibilidade”, afastando o grande público. Isso se deu justamente pelo
fato de que as instituições museológicas já adentraram o território brasileiro, permeando o habitus das elites e engessando-se em monopólio
cultural que reflete e perpetua a estrutura de classes.
O espaço museal no Brasil tem um histórico de afastamento e
mesmo com os esforços atuais das instituições para reaproximar o público - tendo sucesso apenas em megaexposições e recortes curatoriais
específicos, como a exposição Tarsila, realizada pelo Masp em 2019,
que bateu recorde de visitação com 402.850 visitantes - essa questão
continua sem uma solução. Por outro lado, a Bienal de São Paulo, idealizada por Ciccillo Matarazzo em 1951, obtém desde sua primeira edição grandes números de visitação; além disso, a cada edição a Bienal se
renova e reflete o cenário brasileiro, promovendo polêmicas e debates
artísticos no país e no mundo. Como afirma Terry Smith (2017): “As
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211
bienais, tanto quanto as exposições itinerantes que promovem a arte de
um país ou região, tem sido um local ideal para a crítica pós-colonial.”
A Bienal de São Paulo, para além de números altos de visitações, possui
estratégias educativas desde sua segunda edição, dedicando esforços
para pensar a experiência do visitante à exposição. Portanto, o presente
artigo se propõem a pensar a cultura de museus no Brasil a partir deste
espaço expositivo que conquista os visitantes, assim como ressalta Silveira (2021):
(..) é importante reafirmar o papel das instituições museológicas
não apenas como locais de salvaguarda da memória de patrimônios da história da humanidade, mas como instituições de pesquisa científica, com caráter social e com equipes profissionais
com competência para informar e educar a população, criando
esses canais diretos com o público como uma forma de compartilhar conhecimento, mas também de ouvir e reconhecer o que o
público quer ver e viver nos museus. (SILVEIRA, p. 51, 2021)
Ela se apresenta, portanto, como um fenômeno à cultura de museus no Brasil e pode ser um excelente caminho para de fato entendermos a relação do público brasileiro com suas instituições artísticas.
Apesar das problemáticas existentes na redução de um circuito artístico
de um país de proporções continentais a apenas uma cidade, São Paulo,
seria ingenuidade negar a centralização cultural presente na região sudeste - herança deixada pelas políticas públicas de incentivo à cultura
desde a época do império, que visavam o desenvolvimento desta região
para além das demais. Entretanto, para este artigo, essa concentração
não será um fator negativo, pois é nela que podemos encontrar uma
amostragem da pluralidade que as migrações à metrópole geraram, a
expressividade com a qual se deu a construção das desigualdades, como
o cotidiano popular se assemelha à grande maioria populacional e como
se dão os impulsos artísticos e sociais.
A fim de entender uma cultura de museus - habitus em Bourdieu - no Brasil contemporâneo através das Bienais de São Paulo faz-se
necessário a realização de um panorama histórico da exposição, para
que possamos compreender como a relação do público e da fundação
se desenvolveu ao longo dos anos. Para tanto, um recorte temporal de
um década foi escolhido para este panorama e ele tem seu início na 27ª
212
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
edição, realizada em 2006, curada por Lisette Lagnado e com a temática “Como viver junto”. Essa edição se caracterizou como uma grande
virada para a Bienal, pois foi quando a curadora da edição, resolveu
abandonar o modelo de representações nacionais importado da Bienal
de Veneza e realizou uma curadoria autoral e experimental, inspirada
em escritos de Roland Barthes e Hélio Oiticica, que pretendia abordar
temáticas referentes à vivência e a convivência contemporânea, às relações entre tempo e espaço, ao nomadismo do ser humano e do artista e
também sobre o nacional e o internacional. Essa decisão culminou em
uma série de dificuldades para a fundação, mas permitiu que a exposição assumisse cada vez mais uma unicidade enquanto Bienal de São
Paulo. A edição contou ainda com a participação de 118 artistas, de 51
países distintos, totalizando 645 obras; contou ainda com a participação dos co-curadores Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Roca, Rosa
Martínez e do curador convidado Jochen Volz.
A 27ª edição foi intensamente criticada, mas também bastante
elogiada. As críticas vinham de um lugar contestador do que seria ou
não arte e os elogios por ela suscitar e inserir o Brasil em um debate
tão em voga no cenário internacional das artes. Da mesma forma que o
abandono das representações nacionais permitiram que o debate “Como
Viver Junto” pudesse se expandir à esfera econômica da edição, na expectativa de combater a periferização de nações que não dispunham
de grande capital econômico; ela também refletiu nas ações do projeto
educativo e nos programas realizados pela Bienal, como o “Programa
Bienal-Escola” que contava com visitas escolares à exposição, bem
como workshops para professores; ou o programa “Centro-Periferia”
que levava arte-educadores às periferias da cidade de São Paulo, onde
promoviam vivências e provocações artísticas.
A curadora do projeto educativo, Denise Grispum, pretendia com
seus programas, transformar as relações entre a arte e a sociedade, dedicando seus esforços à ressignificação do lugar que a cultura de museus
possui no habitus das classes sociais brasileiras. Ciente das dificuldades
relativas ao ensino de arte nas escolas, lugar em que este campo é inserido na vida do cidadão brasileiro, a curadora entendia a importância da
mediação cultural devido ao fato de que muitos poderiam estar tendo
seu primeiro contato com o espaço expositivo. Este se trata, portanto,
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
213
de um momento crucial, a experiência que esse visitante terá nesta visita estará ressignificando o lugar que a cultura de museus possui em
seu habitus.
A gratuidade de entrada na Bienal foi conquistada em 2004, na
26ª edição, através do projeto “Movimento Arte Democracia”. Gilberto
Gil, à época Ministro da Cultura, suplicou às outras instituições culturais que se inspirassem na Bienal e garantissem o acesso gratuito em
suas exposições. Assim como afirma Fabio Cypriano em uma reportagem publicada na Folha de São Paulo: “O ministro defendeu que a
gratuidade é uma forma de democratizar o acesso à arte contemporânea, considerada por ele como ‘elitista’’’ (CYPRIANO, 2004). Em seu
segundo ano de gratuidade, a Bienal de São Paulo atingiu o marco de
535 mil visitantes, iniciando um desenho decrescente em um gráfico
histórico da gratuidade de acesso, devido ao recorde da edição anterior,
que atingiu 880 mil visitantes.
Dando continuidade ao panorama histórico, foi realizada em 2008
a 28ª edição da Bienal de São Paulo, com a temática “Em vivo contato”,
curadoria assinada por Ivo Mesquita e curadoria adjunta por Ana Paula
Cohen, esta edição contou com a participação de apenas 41 artistas - de
20 países - totalizando 54 obras; é também conhecida como a “Bienal
do Vazio”.
Como visto anteriormente, o abandono das representações nacionais trouxe à fundação uma série de dificuldades que puderam ser muito
bem notadas na 28ª edição. Foi uma decisão curatorial deixar o segundo
andar do pavilhão vazio e denominá-lo “Planta Livre”, o percurso longo
e vazio pretendia incitar questionamentos sobre o lugar e os rumos da
exposição, um momento de respiro e reflexão. Mas a realidade escondida por trás de um discurso tão ousado, eram as dificuldades financeiras
pelas quais a fundação enfrentava. À época o jornal Folha de São Paulo
interceptou um email enviado de Ivo Mesquita ao presidente da Bienal,
Manoel Francisco Pires da Costa, em que o curador respondia ao corte
de gastos relativos ao projeto educativo:
Cortar o educativo é grave. Esta é uma instituição pública e que
presta um serviço para a comunidade. Além do que, há no corpo
da 28a Bienal projetos que estão sendo trabalhados especificamente para um programa educativo. O corte do mesmo seria
214
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
extremamente danoso para a imagem institucional da Fundação
porque existem recursos alocados para a Bienal que contemplam especificamente o seu plano educativo, e se eu bem me
recordo eles já até foram usados sob essa rubrica (Secretaria
Municipal de Cultura e Votorantim). Acho que podemos reduzir algumas coisas, mas não podemos abrir mão deste setor.
Se algum corte for feito por exemplo, atendimento às escolas
públicas não podemos deixar de desenvolver trabalhos já em
andamento como a formação de monitores específicos para o
acompanhamento dos visitantes junto aos trabalhos dos artistas
do 3o andar. Já que a mostra se propõe interativa com o público
é preciso ter esse acompanhamento didático. O trabalho de formação de professores é outra peça fundamental, pois a Bienal
de São Paulo é conhecida e respeitada pela sua qualidade como
espaço dedicado ao conhecimento e difusão da arte contemporânea. Assim sendo, cada Bienal de São Paulo é uma ocasião
muito especial para a formação desses profissionais que são
propagadores da experiência oferecida pela Bienal. Também
devo dizer que em vista da importância do trabalho também
autorizei a continuação do projeto Centro-Periferia, iniciado em
2006 e que foi considerado uma das experiências mais bem sucedidas em arte educação de que se tem registro (MESQUITA,
2013, s/p, apud. NETO, 2014, p.200).
Os cortes de verba afetaram toda a edição, mas com mais força
o setor educativo. Entretanto mesmo com essas dificuldades ainda foi
possível concretizar alguns programas como o “Educadores em Sala”,
a formação de professores e o “Projeto Ambulante” (antigo Centro-Periferia). Além disso, novas estratégias como o website da exposição e a
distribuição de um Jornal pela cidade se mostraram bastante efetivas na
tentativa de atrair público, assim como afirma os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen (2009) no relatório da curadoria:
O Jornal 28B, com edição de Marcelo Resende, tinha como objectivo levar a Bienal de São Paulo para um público novo, fora
do circuito da grande imprensa. Para tanto, associou-se ao Jornal Metro, de distribuição gratuita pela cidade. O jornal trazia
ao leitor desinformado sobre a Bienal o que acontecia semanalmente no pavilhão no Parque Ibirapuera, ao mesmo tempo em
que funcionava como um catálogo, um registo, do processo da
28BSP. Segundo depoimentos de Educadores nos espaços expositivos, diversos visitantes vieram a Bienal pela primeira vez
por terem recebido o jornal na rua. Isto indica um potencial de
visitantes e frequentadores a ser explorado pelos novos projetos
da FBSP, além do acerto na estratégia de aproximação. (MESQUITA, COHEN, p.2, 2009)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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A 28ª edição teve seu encerramento aclamado pela crítica internacional por sua ousadia e descredibilizada pelo cenário nacional. Com
um total de 162 mil visitantes, o que foi considerado um sucesso para a
Fundação, mas em um panorama histórico configura uma grande queda
no número total de visitantes por edição.
É possível perceber a intencionalidade de alguns agentes da fundação em democratizar a exposição, contudo, um evento ocorrido nesta
edição, foi capaz de mostrar uma certa ambiguidade no discurso da
mesma: o segunda andar, ou Planta Livre, foi “invadido” por artistas
pixadores que, em vivo contato, preencheram o andar com suas intervenções, um prato cheio para a Fundação que visava a integração com a
cidade e a aproximação com o público, mas radical (ou seria marginal?)
demais para ser sustentada enquanto arte por um espaço historicamente
elitista e, portanto, dois dias após a ação ela foi completamente apagada
e a branquitude das paredes foi restabelecida.
Seguindo o panorama, em sua 29ª edição, realizada em 2010, a
Bienal se mostrou fortalecida, tendo seu pavilhão repleto por 850 obras,
de 159 artistas, vindos de 40 países. A temática escolhida pelos curadores-chefes, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, tem origem em um
poema de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar para um homem
navegar”. A edição contou ainda com a participação dos curadores convidados: Chus Martinez, Fernando Alvim, Rina Carvajal, Sarat Maharaj, Yuko Hasegawa.
Esta edição caracteriza-se pela contratação de Stela Barbieri para
a elaboração do projeto educativo e para a fundação do “Educativo Permanente”, que consolidou-se em 2011 na edição comemorativa de 60
anos da Bienal. Assim como destaca Pereira (2016):
Até então, a Fundação não possuía um projeto continuo sendo a
curadoria trocada a cada ano. A instabilidade dificultava a manutenção de um projeto ampliado, ou seja, que se realizasse não
somente no período da exposição, mas promovesse um acompanhamento junto aos professores e alunos pré e pós-exposição.
Nos últimos anos a sistematização de um Educativo na Bienal
se tornou uma das prioridades dentro da gestão da instituição,
que provavelmente reconheceu a competência do setor também
como um agregador desse valor de barganha diante dos patrocinadores. (PEREIRA, 2016, p.5)
216
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O projeto educativo da edição, se dividiu em oito frentes que pretendiam realizar um trabalho antes, durante e após a exposição. Contava
com a formação de professores de escolas pública e privadas; atividades em comunidades e ONGs; parceria com 24 instituições culturais da
cidade de São Paulo, para a realização do curso de formação para educadores que receberam o público da exposição; recebimento e acompanhamento do público durante a exposição; o Seminário Internacional de
Arte e Política; cursos para interessados e ações como performances e
debates nos Terreiros - seis espaços conceituais criados pelos curadores,
onde ocorreram cerca de 400 atividades.
A 29ª edição encerrou com um número total de 535.356 visitantes, marcando um ponto de virada na década, onde a Bienal retoma sua
popularidade e passa a valorizar o setor e as ações educativas, vendo
seus efeitos positivos ao atrair público e propiciar uma visita de qualidade a todos.
Em 7 de setembro de 2012 foi inaugurada a 30ª edição da Bienal
de São Paulo, com a temática “A iminência das poéticas” e curada por
Luis Pérez-Oramas, a edição contou com a participação de 111 artistas, vindos de 31 países e 3.796 obras. A equipe curatorial, composta
também pelos curadores adjuntos André Severo e Tobi Maier, além da
assistência de Isabela Villanueva, adotou a metáfora das constelações
como sua proposta:
Intitulada “A iminência das poéticas”, essa edição da Bienal
adotou a metáfora da constelação como proposta curatorial e
estabeleceu articulações discursivas entre passado e presente;
centro e periferia; objeto e linguagem. Com grande número de
obras de cada artista, a exposição privilegiou artistas latino-americanos e prestou homenagens a Arthur Bispo do Rosário e
Waldemar Cordeiro. O projeto Mobile Radio montou uma estação de rádio no mezanino do pavilhão, com programação que
se estendeu por todo o período da exposição. (30ª Bienal de
São Paulo)
Algumas estratégias para atrair o público foram aplicadas, como
a inserção de outras instituições artísticas de São Paulo ao circuito da
Bienal (como já foi feito anteriormente), além da instalação de obras
em espaços públicos movimentados, como a Estação Luz e a Avenida
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Paulista, mas que não surtiram grande efeito visto que poucos visitante
alegaram ter vindo à exposição a partir dessas instalações. Apesar disso, a edição encerrou com um número de 520 mil visitantes, um pouco
menor que do ano anterior, mas que não configura uma grande queda.
Essa edição caracterizou-se como um estabelecimento da estrutura e
estabilidade que a Bienal veio buscando nos últimos anos e seu sucesso
enquanto evento artístico brasileiro, com repercussão mundial e grande
expectativa do público.
Entrando na análise da penúltima edição deste panorama, a 31ª
edição aconteceu em 2014 contou - de forma inovadora - com um grupo
de curadores, foram eles: Charles Esche, Pablo Lafuente, Nuria Enguita
Mayo, Galit Eilat, Oren Sagiv; além de Benjamin Seroussi, Luiza Proença como curadores associados. A temática definida por este grupo foi
“Como (...) coisas que não existem”, propondo debates acerca de virada, coletividade, conflito, imaginação, transformação, processo e jornada. A curadoria, na tentativa de ressignificar alguns conceitos propôs
que a exposição fosse composta por 69 colaboradores (e não artistas),
vindos de 34 países, totalizando 81 projetos (e não obras); evocando
assim a ideia geral de coletividade.
O projeto educativo da edição dedicou seus esforços a pensar a
ideia de educação através de relação, expondo que os processos educativos se dão também de maneiro informal e não-formal e que podem ser
muito transformadores ao se tratar de uma déficit na educação artística
formal, como já vimos anteriormente ser o caso do Brasil. Portanto propõem que uma visita a exposição é também uma espécie de relação com
todos os agentes que ali já se dispuseram, evocando assim um sensação
de pertencimento ao visitante, que uma vez que se fez presente na exposição, também faz parte dessa relação e desse ambiente. A exposição
encerrou com um total de 472 mil visitantes, configurando o segundo
menor número de visitações da década, ficando atrás somente da Bienal
do Vazio.
Para finalizar o panorama proposto, em 2016 se deu a 32ª edição
da Bienal. Com a curadoria geral assinada por Jochen Volz e com a
participação dos co-curadores Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang
Larsen e Sofía Olascoaga, a edição contou com a participação de 81
artistas, de 33 países e 415 obras. Com a temática “Incerteza Viva” a
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
curadoria propôs um debate acerca das incertezas do mundo contemporâneo e como a arte pode promover estratégias para viver nele.
O aquecimento global, a perda da diversidade biológica e cultural, a crescente instabilidade econômica e política, a injustiça
na distribuição dos recursos naturais da Terra foram questões
em discussão. Mulheres e artistas nascidos após 1970 formaram
mais da metade dos artistas selecionados. Uma pista de skate,
uma oca para conversas e rituais e um restaurante de comida
orgânica estiveram entre as obras da exposição. (32ª Bienal de
São Paulo)
O projeto educativo da edição abordou a incerteza como uma forma de investigação, que leva ao questionamento e por consequência ao
envolvimento. Promoveu também a publicação de um catálogo denominado “Dias de Estudo”, onde diversos pesquisadores se lançaram a
campo a fim de investigar centros culturais, ateliês, comunidades tradicionais, reservas ecológicas e centro de pesquisas; a publicação final
reúne diversos artigos e foi disponibilizada ao público especializado de
forma física e a qualquer interessado, online.
Essa edição contou com grande divulgação nos meios digitais e
na imprensa alcançando o marco de 900 mil visitantes, o maior número da década, configurando-se como um fenômeno de visitação para
a fundação. Desta maneira a Bienal encerra uma década de atuação,
onde criou seu próprio modelo e o fundamentou dentro do imaginário
nacional e internacional, alcançando ao final um grande fenômeno de
visitação à uma exposição de arte contemporânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até a 31ª edição o número de visitantes estava muito relacionado
ao número de obras expostas em cada edição, assemelhando-se com
as conclusões que Bourdieu obteve em suas sondagens; contudo a 32ª
edição contou com o terceiro menor número de obras e a maior visitação da década, nos mostrando que esta análise não pode ser aplicada ao
Brasil contemporâneo.
Um segundo ponto a ser pensado é sobre a “novidade” e o “evento” enquanto estratégias para atrair o público. O pavilhão da Bienal,
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projetado por Oscar Niemeyer, possui fortes características do arquiteto
e que podem ser considerados “(...) como um dos signos da modernidade em arquitetura no Brasil.” (FREIRE, 1991, p.206). Portanto, a
arquitetura do pavilhão alia-se à missão da Bienal de mostrar as novidades da arte contemporânea, evocando o signo de “modernidade” (logo
“novidade”) ao visitante brasileiro. Para além disso, a 32ª edição soube
explorar essa condição de evento, abarcando áreas como a gastronomia
e através de instalações interativas com camas elásticas ou pistas de
skate, proporcionando ao visitante diferentes formas de experimentar e
se relacionar com o espaço da exposição e a arte.
Por fim, uma característica interessante que pode ser pensada é a
relação da exposição com o espaço urbano, assim como aponta a pesquisadora Márcia Eliane Rosa (2017):
Lugares incertos, sujeitos incertos. Maffesoli (2010) afirma
que, em tempos atuais, o sujeito perdeu a noção do individualismo para adotar a noção comunitária de sentir. Este sujeito
se faz presente porque experimenta de forma conjunta. O seu
lugar é aquele onde pode dividir experiências com outros. É o
que o faz pertencente. “O lugar faz a ligação. A ligação, quer
dizer o espaço, a natureza e os elementos primordiais que os
compõem, tornam visível a força invisível da ligação que me
une aos outros” (2010, p. 104). Assim, as manifestações artísticas em espaços urbanos suscitam a interação do transeunte, a
integração do morador, mas também ascendem à possibilidade
do não estar, do não lugar, das inconstâncias do “nomadismo”
(MAFESOLI, 2001) urbano. (ROSA, 2017, p.3)
A possibilidade da criação de um “não lugar” da arte em ambiente urbano se reflete na Bienal que se apresenta como um lugar - quase
ficcional - passível de construção coletiva e pertencimento; passível da
construção de um novo habitus onde a cultura de museus permeia todas
as camadas da sociedade. A cada proposta curatorial o espaço se constrói de forma diferente e, aquela que se mantiver aberta à contribuição
do espectador nessa construção, evocará o pertencimento do mesmo.
Visto a trajetória da Bienal na última década, podemos perceber a construção de um “não-lugar”, um lugar onde se questiona certezas e hábitos, onde se constrói cultura, onde todos à ali, pertencem.
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ENTRE APAGAMENTOS E LEMBRANÇAS:
SYLVIA MEYER E O MODERNISMO
Débora Poncio Soares72 – debora.p.soares@hotmail.com
Resumo: Após a abertura ao alunato feminino no Liceu de Artes e Ofícios em 1881 e na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) em 1893,
o número de artistas mulheres aumentou progressivamente com o passar dos anos. Porém, a maior abertura das escolas não foi suficiente
para aliviar o patriarcado no campo, resultando no esquecimento de
diversas artistas. Poucos nomes são conhecidos atualmente, resultado
da dificuldade de encontrar obras dessas artistas expostas em museus
e sendo adquiridas por eles. A artista carioca Sylvia Meyer, que viveu
durante os anos de 1889 a 1955, foi uma das várias brasileiras que tiveram sua produção esquecida pela historiografia da arte. Mas em vida
teve atuação intensa como pintora e professora. Deu aulas em diversos
colégios e em seu ateliê particular, foi influente nos circuitos acadêmico
e moderno, realizou exposições individuais quase anualmente. Porém,
após sua morte, poucas vezes suas obras foram expostas e seu nome foi
raramente mencionado em produções teóricas. Devido à falta de informações sobre a artista, sua biografia e carreira, foi necessário realizar
uma investigação sobre Meyer. A pesquisa na base de periódicos da Hemeroteca Digital, e em arquivos e acervos de museus nacionais e internacionais, permitiu reconstruir seus caminhos buscando entender como
se deu sua inserção nos circuitos artísticos acadêmico e moderno do
início do século XX, e o motivo de seu esquecimento após sua morte.
Palavras-chave: Sylvia Meyer; Arte Moderna; Século XX; Arte Brasileira; Mulheres Artistas.
72 Débora Poncio Soares é graduada em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Participou do projeto de pesquisa “Produção, circulação e recepção da arte entre Brasil
e Europa (séculos XIX e XX)” da Prof. Drª Ana Maria Tavares Cavalcanti, com uma pesquisa
sobre as Exposições de Arte Francesa do Brasil. Desenvolve também pesquisas sobre mulheres
artistas com foco no período entre séculos XIX e XX.
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Abstract: After opening to female students at the Liceu de Artes e
Ofícios in 1881 and at the Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)
in 1893, the number of female artists has progressively increased over
the years. However, the greater opening of schools was not enough to
alleviate the patriarchy in the countryside, resulting in the oblivion of
many artists. Few names are known today, because of the difficulty in
finding works by these artists exhibited in museums and being acquired
by them. The artist from Rio de Janeiro, Sylvia Meyer, who lived from
1889 to 1955, was one of several Brazilian women whose production
was forgotten by art historiography. But in life she had an intense performance as a painter and teacher. She taught at several schools and in
his private studio, was influential in the academic and modern circuits,
held individual exhibitions almost annually. However, after her death,
her works were rarely exhibited, and her name was rarely mentioned in
theoretical productions. Due to the lack of information about the artist,
her biography and career, it was necessary to carry out an investigation
on Meyer. The research in the journals of Hemeroteca Digital, and in archives and collections of national and international museums, allowed
to reconstruct her paths, seeking to understand how her insertion in the
academic and modern artistic circuits of the beginning of the 20th century took place, and the reason for her oblivion after her death.
Keywords: Sylvia Meyer; Modern Art; Twentieth Century; Brazilian
Art; Women Artists.
Durante o século XX, o número de artistas mulheres aumentou
progressivamente dentro da Escola Nacional de Belas Artes. Segundo a
historiadora da arte Ana Paula Simioni no documentário Mulheres Luminosas, 40% das obras do Salão de Belas Artes do ano de 1900 foram
realizadas por mulheres. Seis anos depois, essa porcentagem aumentou
para 50%. A quantidade de mulheres artistas era tão notável que várias
notícias sobre elas saíram em jornais, como na Revista da Semana, o
artigo “Eva no Salão de 1926” com autoria de Saul Navarro que homenageia a participação feminina no Salão de Belas Artes, onde destacou
o nome de 30 participantes (Figura 1). Outro exemplo, é a notícia escrita por Ney Machado em 1948, para a também Revista da Semana. No
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qual comentou que nesse ano, o alunato feminino totalizava 70% dos
alunos da Escola.
Apesar dos dados mostrarem um aumento na participação das
mulheres dentro do ensino artístico, existindo uma quantidade notável
de mulheres artistas ou mulheres que almejavam a profissão de artistas,
poucos nomes chegaram até nós nos dias de hoje. E com isso, alguns
questionamentos surgem: quantas delas sabemos o nome? Suas trajetórias? Suas obras? Quantas estão expostas em museus ou são adquiridas
por eles? Por que a Historiografia da Arte brasileira circunscreve as
artistas Anita Malfatti e Tarsila do Amaral como se fossem excepcionalidades? Ana Paula Simioni em seu livro “Profissão Artista: Pintoras
e Escultoras Acadêmicas do Brasil” comenta como essa “excepcionalidade” e esse mito de “Heroínas Solitárias” encobre com uma névoa a
lembrança de outras artistas anteriores a elas (e contemporâneas), desvalorizando assim, a produção feminina e apagando a própria misoginia
do cânone (SIMIONI, 2008, p. 21).
De forma semelhante, a autora Madalena Zaccara escreve em
seu artigo “Decolonização da Memória: mulheres artistas brasileiras nos Salões parisienses”, como a colonialidade do olhar masculino
apagou os rastros das mulheres (e de qualquer outro artista que não
se encaixasse nos modelos europeus). As mulheres sempre estiveram
nos espaços artísticos, porém, esse discurso naturaliza a arte como um
processo masculino, ou como Madalena Zaccara afirma “se sempre foi
possível para uma mulher entrar no mundo da arte e roçar o meio vanguardista, elas nunca foram percebidas por seus colegas como rivais”
(ZACCARA, 2019, p. 2). Principalmente no século XIX, quando havia
uma corrente de pensamento sobre as diferenças fisiológicas entre gêneros, na qual, as mulheres seriam menos capazes que os homens. Com
isso, entendia-se as mulheres artistas como amadoras.
O termo designa que a prática artística de uma mulher não era
vista como profissão, mas como passatempo ou algo que a faria melhor
dona de casa/ esposa, “uma extensão das capacidades concernentes ao
âmbito do privado exibidas em público” (SIMIONI, 2008, p. 43). A arte
era uma ocupação para a mulher burguesa que conseguia ter acesso a
essa formação artística por ter condições financeiras e tempo disponível. Por isso as mulheres durantes anos foram levadas a se dedicar às
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artes decorativas e aos gêneros menores da pintura e escultura, considerados mais delicados, leves, graciosos e ligados ao âmbito doméstico
que combinavam com os “atributos” que uma mulher deveria ter.
A questão que levantou Ney Machado, no artigo já mencionado,
é a dificuldade de profissionalização das mulheres na ENBA, contrastando a porcentagem tão alta de alunas com as que realmente seguiam
a profissão de artista e que conseguiam expor suas obras. Ele perguntou
para as alunas da Escola o que elas pensavam sobre o assunto e as questões que encontrou para essa dificuldade foram: a oposição da família,
casamento e proibição pelo marido. E as soluções para ultrapassar essa
condição eram se manter solteira ou se casar com um homem também
artista.
Isso mostra que as mulheres enquanto artistas no século XIX
e XX tinham três grandes dificuldades: Conseguir profissionalizar-se,
manter-se no campo ativamente e serem lembradas pela posteridade.
Sylvia Meyer (1889 - 1955) foi uma dessas várias artistas que
teve sua produção esquecida durante a história, porém, durante as primeiras décadas de 1900, foi influente no circuito acadêmico e moderno,
com trabalho intenso. Expôs quase anualmente suas obras e circulou
por diversos espaços, não só do Rio de Janeiro, mas como também outros estados brasileiros e até mesmo internacionalmente.
Os estudos de Meyer começaram em 1908 com o professor Rodolfo Amoedo (1857 - 1941) com o intuito de entrar na Escola Nacional
de Belas Artes. Onde começou a estudar por volta de 1912. Meyer teve
aulas com Zeferino da Costa (1840 - 1915), Rodolfo Amoedo e Eliseu
Visconti (1866 - 1944), mas no ano seguinte, tornou-se discípula de
Henrique Bernardelli (1857 - 1936) com quem permaneceu até final dos
seus estudos (SIMIONI, 2008). Ela participou das Exposições Gerais
desde 1910 (como aluna das aulas livres) até 1919 (já matriculada),
recebeu premiação de menção de primeiro grau em 1912, candidata
ao prêmio de viagem em 1913, recebeu menção de primeiro grau na
exposição de 1914 e pequena medalha de prata em 1915. Porém, não se
identificou com o ensino da Escola e sobre isso, ela comentou em uma
entrevista para o jornal A Noite em 1946:
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Sou um espírito inteiramente emancipado de preconceitos estéticos. Sempre fui rebelde às limitações das escolas. Estudei,
é certo, pelos compêndios clássicos. Fui aluna de Amoedo, de
Bernardelli, de Visconti. Mas, depressa, libertei-me das cadeias
da arte oficial que estandartiza e despersonaliza certas vocações. Pinto como acho que devo pintar. Cada instante, quero
ser diversa, outra. Não me preocupam os cânones acadêmicos.
Desejo permanecer eu mesma, enfim, com todas as minhas qualidades e defeitos (MEYER,1946, p. 7).
Após os estudos na ENBA, resolveu se desprender dos compêndios clássicos se aproximando da arte moderna. Em 1930, aos 41
anos, juntou todas as economias e aproveitando a licença-prêmio após
vinte anos de serviço público (MARQUES, 1948), decidiu ir para Paris. Assim como essa viagem ao exterior marcou os principais artistas
desse período, como: Anita Malfatti (Berlim, 1910 a 1914), Tarsila do
Amaral (Paris, 1920 a 1922), Candido Portinari (Paris, 1929 a 1931),
Di Cavalcanti (Paris, 1923 a 1925), Meyer possuiu uma trajetória que
se assemelhou a esses modernistas consagrados. Sua viagem a Paris em
1930 e sua volta, provavelmente no ano seguinte ou no final do ano,
causaram uma grande mudança na sua estética, descrita por ela mesma
em entrevistas e por notícias.
Dentre essas mudanças, estava a da principal técnica de seu trabalho. Do pastel para a pintura a óleo, onde ela mesmo explicou para
A Noite, “É que tenho fases. A gente precisa renovar-se. Até 1930 só
pintava pastel, daí em diante não pintei mais um só” (MEYER, 1948,
p.39). Outro artigo que mencionou essa mudança é o da jornalista Anna
Amélia para o Diário de Notícias. Publicado no 9 de outubro de 1932,
no qual a autora falou sobre o reflexo dessa viagem na segunda exposição da artista no Palace Hotel:
Sylvia Meyer era uma brilhante pintora brasileira. Essa pintora, que todos conheciam e admiravam, resolveu, um dia, desaparecer. Mas não para deixar saudades. Pelo contrário, para
aparecer de novo, mais viva do que nunca, inteiramente outra,
inteiramente nova. Melhorou? Superou-se? E o que ella acaba de provar. A romântica dos pasteis muito finos, das nuanças
muito tênues, acorda agora nas linhas fortes, nos óleos vigoro-
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sos, nas pinceladas nítidas, nos traços decisivos e penetrantes.
Suas telas não são espelhos frios que reproduzem nitidamente
a natureza: são representações palpitantes da vida, são interpretações especiais de coisas, são expressões de sentimentos e de
ideas, encontrados em cada aspecto do mundo exterior por um
temperamento singular (AMÉLIA, 1932, p. 7).
A viagem também proporcionou a Sylvia Meyer a descoberta de
novas inspirações. Como por exemplo, o pintor italiano Amedeo Modigliani (1884 - 1920). Ao longo da carreira de Sylvia Meyer, foi comum
suas obras serem comparadas com as do pintor italiano pela crítica da
época, categorizando-a com um estilo “Modiglianesco”. Essa categoria
era dada porque a pintora brasileira também utilizava a principal marca
de Modigliani, o alongamento extremo de suas figuras. Como é possível comparar nas obras Autorretrato73 de Sylvia Meyer (Figura 2) e na
obra Madame G. van Muyden de Modigliani (Figura 3).
Em uma entrevista para a jornalista Maria Wanderley Menezes,
publicada na Revista Carioca em 1948, Sylvia mostrou surpresa e estranhamento que teve ao ver as obras de Modigliani:
Assim, quando cheguei da Europa, em 1930, não consegui
compreender inteiramente Modigliani e por isso discutia-o e
estudava o. Depois outro e outros. O que tenho conseguido?
Cheguei a me realizar? Os outros que o digam. Eu sigo meu
caminho (MEYER, 1948, p. 12 e 13).
Entretanto, Meyer não gostava de ser comparada com nenhum
outro pintor nem colocada dentro de um “ismo”. Nessa mesma entrevista, a jornalista Maria Wanderley Menezes disse “Nem academismo,
nem modernismo, nem futurismo. Ela não quer saber de nenhuma escola, acreditando que só os criadores de escolas possuem autêntico valor”
(MEYER, 1948, p. 12). Por isso, a artista buscou uma expressão de arte
exclusiva e inteiramente sua. E aplicou isso em suas aulas particulares,
dando completa liberdade para suas alunas.
73 A obra foi doada pela família da artista, após sua morte, em 1955 para o acervo do MAM
do Rio. Infelizmente foi perdida no incêndio que ocorreu em 1978.
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Em outro momento da entrevista, Sylvia Meyer comentou: “Fechar-se dentro de quaisquer fórmulas é uma limitação e todo artista
deve ser inteiramente livre de preconceitos e limitações. Ser artista é
ser completamente livre (MEYER, 1948, p.13). Meyer continua demarcando sua opinião quando responde às perguntas: Quais as preferências
artísticas? E o que pensa da arte moderna?
[...] Não compreendo as escolas ou mais cruamente os academismos [sic]. E, afinal, é o que mais vemos; pequenos grupos
que trocam elogios e trancam-se dentro de uma corrente... Não
sei ser filiada. Sem dúvida, nossa sensibilidade sempre renovada tem que ir amando, ao decorrer da vida artística, os mestres
que têm mais afinidade com o sensível presente... Eu sigo meu
caminho. Faço o que chamo cumprir meu destino sem reservas,
sem literatura [...]
Se é sincera é arte, se não, é cabotinismo. Gosto apaixonamente
[sic] de tudo que tende a uma procura sincera, a um anseio de
invenção, de criação. Chegar a criar alguma coisa dentro de
sua época, seja de que modo ou por qual processo, é a isso que
chamo arte moderna (MEYER, 1948, p. 12 - 13).
As falas de Sylvia mostram não só um pensamento comum para
a época de não mais se filiar a uma corrente artística, mas também, revelam seu espírito livre. E talvez por essa questão, de variar tanto sua
produção, ora acadêmica, ora moderna que Sylvia não conste nos livros
de história da arte brasileira.
O estilo de Modigliani era disputado dentro do campo da arte
brasileira nas primeiras décadas do século XX. Em 1932, Sylvia e Portinari realizaram exposições para mostrar o que tinham produzido após
a viagem. Portinari, na Associação dos Artistas Brasileiros e Sylvia, no
Palace Hotel, ambas amplamente comentadas pelos jornais. Uma das
críticas, chamada “O Pintor Portinari”, escrita por Oswald de Andrade
para O Jornal, em 28 de dezembro de 1934. Oswald teceu elogios ao
pintor como: “Portinari pinta com uma inigualável consciência do officio”, “Seria um Modigliani, se não fosse mais” e “O Brasil tem em
Cândido Portinari, o seu grande pintor”. O escritor também não deixou
de mostrar seu ponto de vista sobre outros artistas modernos, inclusive
sobre Sylvia Meyer:
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Em meio dos esforços nacionais, Portinari caminha com a segurança de um trabalho vitorioso. Os que o seguem ficam subúrbios dele como Sylvia Meyer. Os que se destacam de sua
róta caem no abstruso ou no impotente, Ismael Nery, mesmo
em vida, foi pintura de centro espírita, com médium, crentes
e receitas. Annita levou uma patada do Jéca Lobato, outra do
puritanismo doméstico e a terceira do dr. Freitas Valle, que a
fizeram tímida e má língua. Não quis reagir na direção das suas
grandes qualidades iniciaes. Tarsila emprega hoje a sua inocência decorativa na luta de classes. Sem o resultado sério da phase
pau-tinta.
Sendo assim, o Brasil tem em Candido Portinari o seu grande
pintor.Mais do que escola, que faça exemplo. Pintor iniciado
na creação plástica e na honestidade do officio, homem de seu
tempo banhado das correntes ideológicas em furacão. Não admitindo a arte neutra, construindo na tela as primeiras figuras
do futuro titânico – sofredores e os explorados do capital (ANDRADE, 1934, p. 4).
Aparentemente, como uma resposta para a crítica de Oswald de
Andrade, em 6 de janeiro de 1935, o crítico e poeta Luís Martins escreveu também para O Jornal:
Dizer-se, como se tem dito ultimamente, que Sylvia Meyer é
um reboque artístico de Portinari, constitue, pelo menos, uma
injustiça. A recente exposição dessa pintora no Rio desmente
essa afirmação, assim tão simplesmente creada no ar. Si ha semelhança technica entre os trabalhos desses dois artistas, vem
essa semelhança de influencias idênticas e do facto de ambos
se dedicarem mais ao retrato. A influência mais ou menos fortemente marcada em Sylvia Meyer é a de Modigliani, ao passo
que Chirico é o mestre que atualmente mais impressiona Portinari (MARTINS, 1935, p. 2).
Essa semelhança que ambas as críticas apontam entre os dois artistas é perceptível na obra Retrato de Maria de Portinari (Figura 4) que
circularam pelos jornais na década de 1930, na ocasião de exposições
individuais. Nessa obra Portinari pinta um retrato feminino, sentada so-
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
bre um fundo liso, longilínea e utilizando tons terrosos, algo que Modigliani também realizava em suas obras com frequência, provavelmente
por isso a comparação de Oswald entre os dois artistas.
Outra semelhança que se-pode traçar entre Portinari e Sylvia
Meyer é a temática social. Nas décadas de 1930 até 1970, foi comum
o questionamento dos críticos de arte e dos artistas sobre como deveria
ser o seu posicionamento perante a sociedade e a quem eles deveriam
servir (AMARAL, 1987, p.3). Havia uma efervescência política na época, com a ascensão da União Soviética, as revoluções posteriores, ao
mesmo tempo em que crescia um movimento contra os governos nazifascistas e ditaduras militares pelo mundo, gerando uma preocupação
de realizar uma arte politicamente engajada nos artistas. A questão da
arte social pode ser percebida na obra de Meyer, Morro Vivo (Figura
5), que está acervo do Museu Nacional de Belas Artes, categorizada
como sem data, mas encontra-se uma reprodução da obra no O Jornal
em 1946.
Nessa obra, Meyer focou nas figuras femininas que são levemente alongadas, principalmente na área do pescoço, que descem o
morro e que possuem corpos mais reais. Sylvia também ressaltou as
várias cores e tonalidades da terra e seu movimento envolvente no final
do quadro até o topo. É perceptível nessa obra e em outras, que mesmo
com inspiração moderna, ela não se desprendeu do uso da profundidade.
A partir da década de 1940, Meyer da outra guinada em sua carreira. Porém, agora não tão elogiada. Segundo o crítico Geraldo Ferraz
para O Jornal em 1944, as obras da artista na Exposição na Casa do Jornalista (A.B.I) eram um retorno à ordem, porém, não tão bem-sucedido:
Sylvia Meyer [...] arrostou corajosamente as coleras [sic] da
tradição. Sua volta à ordem, hoje, faz16 Pintor e escultor inglês
da era vitoriana, George Frederic Watts (1817-1904), vinculado
ao movimento simbolista. 51 se dentro de inconformações que
não me parecem ter encontrado a sua verdadeira medida (FERRAZ, 1944, p. 8).
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O Retorno a Ordem é um termo que designa a reação às conquistas experimentais das vanguardas e a recuperação do estilo realista
e dos preceitos clássicos. Ferraz continua dizendo que “Sylvia refoge
ao academismo, mas não encontra nenhuma solução, sem dúvida nenhuma - que satisfaça aos que desejarem percorrer de novo os caminhos que ela percorreu para chegar aos seus quadros agora expostos”
(Ibidem, 1944, p.8). A crítica de Ferraz deixou claro que Meyer gostava
da experimentação, e que para o crítico, fazer tentativas, mesmo que
fracassando, era melhor do que ter a certeza absoluta (FERRAZ, 1944,
p. 8). Além disso, mostrou que Sylvia Meyer escolheu voltar-se para
os estilos mais acadêmico enquanto surgiram novas tendências da arte
moderna que se desprenderam da figuração, como o abstracionismo e
o construtivismo.
Com isso, Sylvia Meyer se mostrou uma artista relevante para
seu tempo e para o atual, não só pela qualidade de suas obras, mas
também por seu caráter independente. Ela tentou criar em seu estilo,
algo único, inspirando-se em várias vertentes, mas também não se resumiu-se a elas. Sua trajetória mostrou que ela própria não tinha medo
da renovação e se arriscou em tentativas. Sua viagem à Europa aos 41
anos é um exemplo disso, pois sem depender de nenhuma instituição,
foi para Paris de forma autônoma e com seu próprio dinheiro. A viagem
ainda teve um grande impacto em sua técnica e estilo, levando-a para o
lado modernista.
É importante também, ressaltar que Sylvia Meyer está dentro
de um grupo grande de artistas mulheres que não foram valorizadas o
suficiente durante a vida e/ou pela posterioridade. A revisão do campo artístico atualmente torna-se fundamental para desvendar o que está
escondido, e com destaque para os séculos XIX e XX por serem um
momento de abertura das escolas e academias resultando na profissionalização das mulheres nas artes. Porém, a maior abertura das escolas
não foi suficiente para aliviar o patriarcado no campo, resultando no
esquecimento de diversas artistas, assim como Meyer, que produziram
constantemente por todo esse tempo, mas que não constam nos livros
de História da Arte brasileira e que possuem uma bibliografia escassa,
sendo esse um grande desafio para essa pesquisa.
A pesquisa atual não se propõe, portanto, dar conta de todas
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
as particularidades da artista, mas abrir portas para novos estudos sobre Sylvia Meyer e sobre outras artistas mulheres de sua época. Além
de, com esse novo empenho, ajude a encontrar outras obras de Sylvia
Meyer que possam estar em acervos públicos e privados no Brasil e no
estrangeiro. E que possa servir para repensar a exclusão das artistas na
historiografia da arte, como o sistema artístico se deu e quais foram as
escolhas feitas para que elas fossem esquecidas.
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Imagens:
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- 23. Hemeroteca Digital.
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Figura 2: Sylvia MEYER. Autorretrato. 1944. Óleo sobre tela, 77 x 57 cm. Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro.
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Figura 3: Amedeo MODIGLIANI. Madame G. van Muyden. 1916-17. Óleo sobre tela, 92 x
65 x 2 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.
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Figura 4: Candido PORTINARI. Retrato de Maria. 1932. Óleo sobre tela, 101.00 cm x 82.00
cm. Museu Nacional de Belas Artes.
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Figura 5: Sylvia MEYER. Morro Vivo. s/d. Óleo sobre tela, 151 x 120,5 cm. Museu Nacional
de Belas Artes.
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REPRESENTAÇÃO SONORA NO INFERNO
DE HIERONYMUS BOSCH: INSTRUMENTOS,
TORTURA E NOTAÇÃO MUSICAL ORIGINAL
DO TRÍPTICO JUÍZO FINAL DE VIENA
Grasiela Prado Duarte de Oliveira74 - grasidoliveira@hotmail.com
Resumo: O estudo analisa um escrito partiturado contido especificamente no Inferno (painel lateral) do tríptico Juízo Final (1500-1505) de
Hieronymus Bosch (1450 - 1516), e os aparentes efeitos de tortura que
o som das vozes e instrumentos musicais dos demônios, causam à alma
condenada. A pesquisa foi atualizada à luz de novos dados, bem como
a própria visibilidade do trecho a ser analisado. A imagem cedida para
nosso estudo foi cortesia do Bosch Research and Conservation Project.
Como forma de contextualização, ilustraremos o castigo musical da forma como era presenciada e compreendida no século XV. A decifração
do excerto musical é segundo trechos visíveis, ou seja, parcial, e assim,
transcrevemos de forma que pudesse ser lido e executado em instrumento moderno, nesse caso, ao piano. Observamos também os instrumentos
musicais encontrados neste painel lateral, manipulados pelos demônios,
compreendendo a possibilidade de tormento físico, em termos de acústica.
Palavras-chave: Inferno; partitura; tortura musical; instrumentos; Hieronymus Bosch.
Abstract: This study analyzes a music score hold at Inferno (side panel)
of the Last Judgment triptych (1500-1505) painted by Hieronymus Bosch (1450 - 1516), and we will also observe the apparent torture effects
that the sound of the demons’ voices and musical instruments cause to
the damned soul. The research was updated in light of new data, as well
as the visibility of the section we analyzed. The image provided for our
74 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “a representação da figura do
Diabo no tríptico Juízo Final de Hieronymus Bosch”, orientada pela Profa. Dra Flavia Galli
Tatsch, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento da CAPES.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
study was courtesy of the Bosch Research and Conservation Project.
As a form of contextualization, we will illustrate musical punishment
as it was witnessed and understood in the 15th century. The deciphering
of the musical excerpt is according to visible excerpts, that is, partial,
and thus, we transcribed it in a way that it could be read and performed
on a modern instrument, in this case, on the piano. We also observe
the musical instruments found in this panel, manipulated by demons,
understanding the possibility of physical torment, in terms of acoustics.
Keywords: Hell; music score; musical torture; instruments; Hieronymus Bosch.
Seu nome era Jeroen van Anthoniszoon Aken, porém utilizava
o pseudônimo Hieronymus Bosch. Há dúvidas a respeito da data de
seu nascimento, estima-se que seja em meados do século XV (1450).
Hieronymus Bosch nascera na cidade de ‘s-Hertogenbosch, de onde
emprestou seu nome, também conhecida por Bois-le-Duc, localizada
no Brabante.
Bosch nascera numa família de pintores, e em 1481, aproximadamente, já trabalhava como autônomo. Alguns anos depois o pintor
ingressou em um grupo, no qual permaneceu até sua morte, chamado
irmandade de Nossa Senhora, filiada à Catedral São João, em ‘s-Hertogenbosch. Hieronymus Bosch morrera em 1516, como fora encontrado
nos registros da irmandade de Nossa Senhora. Os trabalhos de Bosch
colocam-se no divisor de águas entre a mentalidade religiosa da Idade
Média e o Humanismo do Renascimento.
Suas tendências moralizantes derivam da tradição popular dos
séculos XII a XIV, e são uma expressão de fé completamente condicionada pelo medo da danação, e traduzida pelas mentes férteis dos artistas, numa representação de contínua luta entre o homem e seu reflexo
pecaminoso, que aparece trajado numa infinidade de formas: o diabo,
monstros, seres fantásticos, meio-homem e meio-fera, entre outros.75 O
repertório essencial das obras Hieronymus Bosch consiste nas figuras
de Deus, Diabo, anjos, e os demônios do inferno, especialmente no to75 BENEZIT. Dictionary of Artists. Vol. 2. Paris: Gründ, 2006, p. 906.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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cante ao Juízo Final76. Não há equilíbrio entre luz e trevas, a escuridão
predomina no Juízo Final de Viena (1500-1505), e é um exemplo da
expressão moralista de Bosch, uma humanidade sem chance de redenção, pois não há salvação de seu ponto de vista, praticamente todos os
julgados têm destino certo para o tormento eterno, mesmo no volante
correspondente ao Paraíso, pois vemos anjos caindo para o abismo, tentação Adão e Eva, seguido do pecado original e expulsão do Éden. O
Paraíso num retábulo do Juízo Final era mais comumente retratado pela
ascensão dos escolhidos aos céus, como é observado em obras similares
de alguns de seus conterrâneos, Weyden, Memling, van Eyck.
Nossa atenção se volta diretamente ao Inferno, observado no
volante direito do tríptico Juízo Final, e mais especificamente aos castigos infligidos pelos demônios aos pecadores. Dentre as punições e
torturas ali vistas, exploraremos as de caráter musical, por assim dizer.
Segundo Robert Quist, os Infernos musicais de Bosch levam alguns
a inferir que o artista desdenha da música e dos instrumentos seculares. Bosch, contudo, revela um intenso interesse pelos efeitos do mal
e, neste contexto, o imaginário musical assume contornos sinistros. De
fato, as imagens musicais de Bosch simbolizam o mal potencial que
reside na raça humana. Embora influências da vida real, como menestréis, possam ser vistas afetando essas imagens musicais, Bosch parece
mais interessado nas forças demoníacas que desencadearam o processo
degenerado. O uso de Bosch pela imagética musical fantástica se expressa mais abstrata, e desta forma, uma temática mais simbólica, do
que realidade física.77 [FIGURA 1].
Não há como dizer se de fato todos aqueles demônios representados tocando instrumentos de sopro e cordas estão com intuitos musicais, homenageando a Lúcifer, que se encontra no mesmo plano, mas
podemos supor que sons emanam destes instrumentos, assim como a
voz de uma das almas condenadas, que é compelida ao ato musical, em
que lê e entoa uma partitura indicada por um dos demônios ao seu lado.
Young refere-se a esta cena como o Concerto Infernal, e cita
76 SILVER. Jheronymus Bosch and the Issue of Origins. Journal of Historians of Netherlandish
Art. Vol. 1, Issue 1. 2009, p. 02.
77 QUIST, Robert. The Theme of Music in Northern Renaissance Banquet Scenes. 2004, p.
180.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
o enredo musical do momento como uma referência aos pecados da
alma ali castigada, e a presença do alaúde simbolicamente faz o papel
de instigar a luxúria, já que a condenada une-se ao demônio simiesco,
demonstrando irracional apego. Nota-se que o dito demônio possui um
chapéu de vermelho usado por Cardeais, aferindo à desconfiança do
artista para com membros clericais do período.78
Certamente que, estando no Inferno, a vítima não canta ao seu
bel prazer, é um ato de punição, e mesmo, tortura. Young cita este caráter punitivo da cena, mencionando que, aparentemente, não apenas
a obrigatoriedade de execução e o som desagradável que emana deste
grupo musical são aspectos repugnantes, mas também a dissonância
e incongruência harmônica da música são destrutivos para a alma. A
performance da condenada e dos demônios intentam não apenas para
o mero incômodo auditivo, mas relembram que, a música que lhe dava
prazer na terra, lhe ferirá a alma como a uma lâmina.79
Dentro deste parâmetro da punição/tortura musical, há o painel
do Inferno também de Hieronymus Bosch, no tríptico “Jardim das Delícias Terrenas”, em que todas as funções de tortura e punições infligidas
aos pecadores são de caráter musical. Hipóteses sobre o uso de instrumentos musicais como objetos de tortura em obras de Bosch sugerem,
por exemplo, que tal punição é apropriada e destinada aos menestréis
viajantes por sua discordante musicalidade. Outros autores, como Young, examinam a cena como a representação da Luxúria, “música da
carne”.80
Segundo Holsinger a questão da punição musical é matéria amplamente conhecida no cotidiano medieval, e complementa que Bosch sequer utilizou as possibilidades mais radicais e espectaculares que
essa prática poderia ter oferecido a ele81. Ian Pittaway, um músico e
musicólogo especialista em música antiga, escreveu a respeito das re78 YOUNG, Liza. The Rise of the Sentient Musical Instrument: A Study of Hieronymus Bosch’s
Musical Instruments and their Dissonant Revolution. Senior Projects Spring 2011. 229. https://
digitalcommons.bard.edu/senproj_s2011/229 p. 50.
79 Idem, p. 33.
80 HOLSINGER, Bruce. Music, Body, and Desire in Medieval Culture: Hildegard of Bingen to
Chaucer. Stanford University Press. 2001, p. 255.
81 Idem, p. 257.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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presentações musicais em obras de Bosch, e comenta que, para compreendermos a real mensagem de Bosch é preciso relembrar que ele estava
profundamente empenhado nos aspectos doutrinários da arte em pintura, portanto, suas representações musicais com instrumentos e mesmo
notação musical, estão a serviço desta prática.82
Quanto à funcionalidade punitiva da música no fim do século
XV e começo do XVI, utilizada então por Bosch, citamos o estudo de
Herzfeld-Schild, que aborda a questão penal musical como parte do
sistema judicial do período, em algumas regiões dos Países Baixos. A
autora aborda obras de dois artistas, Peter Brueghel (1525 - 1569) e
Hieronymus Wierix (1553 - 1619), os quais ilustraram a questão da
tortura musical da forma como era conhecida no período, em carater de
exibição e humilhação pública. Os punidos eram colocados em espécies
de pequenas jaulas no alto de pilares, conhecidas também como pelourinhos, postas à vista de todos em ruas, e tinham instrumentos musicais
presos a suas mãos e/ou pescoço.
Para citarmos mais um exemplo passível de tal punição, Fischer
expõe que a ação poderia ser vista como analogia à quebra da harmonia e equilíbrio dos sistemas legais existentes83, como Young também
menciona. No exemplo da imagem pintada por Brueghel, vemos um
homem num desses pelourinhos, atado a um instrumento de cordas que
aparenta ser uma espécie de violino do século XVI. [FIGURA 2]. Já na
gravura de Wierix, o punido encontra-se no pelourinho, preso a um instrumento de sopro que é aparentemente uma charamela, predecessora
do oboé. [FIGURA 3].
Seguindo a análise, observamos as funções musicais no painel
da tortura através dos executores demoníacos, que, neste caso, tocam
instrumentos musicais e cantam, contribuindo para o tormento da alma
banida. Os instrumentos visíveis na cena são uma charamela, um alaúde, uma espécie de gaita de foles, que em realidade é o prolongamento
82 PITTAWAY, Ian. Performable Music in Medieval and Renaissance Art. Artigo disponível
em: <https://earlymusicmuse.com/performable-music-in-medieval-and-renaissance-art/ > (site
visitado em: 20/08/2021, 23h50.)
83 HERZFELD-SCHILD. ‘He plays on the pillory’. The Use of Musical Instruments for Punishment in the Middle Ages and the Early Modern Era. Artigo Científico em Torture, volume
23, 2, 2013, p. 16. apud H. Fisher, 1971.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
do próprio corpo do demônio que o toca, uma lira, um tambor e um
clarim. Como se pode ver na imagem, a charamela está sendo tocada
pelo sopro do ânus de um dos demônios certamente não com intuito
de melodia agradável. Durante o século XIV, as charamelas maiores
adquiriram o nome de bombardas ou bumbardas, do latim, bombus,
referindo-se à peido, e bombinare, para ruído ou zumbido. Para a língua
inglesa, bum note, por exemplo, é uma nota do traseiro, nota errada,
que não deveria estar ali; nota tão musical quanto a um peido, segundo
Pittaway. O flatus do latim, de onde deriva a palavra flatulência, era
usado regularmente em tratados musicais como um termo para o ar soprado em um instrumento de sopro, palavra agora usada exclusivamente para gases intestinais.
A fístula latina, que significa um tubo ou flauta, também é uma
abertura anormal que conecta dois ou mais espaços ou órgãos do corpo.
Uma fístula anal, por exemplo, é um canal que se desenvolve entre o final do intestino e a pele perto do ânus, onde ocorre a evacuação.84 A associação entre a música da boca e os sons da anal é ainda demonstrada
pelos diabos do Inferno do século XIV de Dante Alighieri, que fazem
del cul fatto trombetta, fazem “trombetas de suas bundas” , traduzido
para o português na obra: “como a uma tuba, à roda, sopros dando”.85
Atentaremo-nos aqui aos instrumentos tocados próximos à mulher, caracterizando tortura, e consideraremos a execução da partitura,
cantada pela alma condenada e por um dos demônios, como parte desse
processo. Neste ínterim podemos agregar a charamela, a gaita de foles
e as vozes dos demônios, que se encontram diretamente conectados à
sentenciada, porém o alaúde não está sendo tocado naquele momento.
Segundo Grout e Palisca, quanto aos instrumentos utilizados no medievo, a gaita de foles era o instrumento popular universal86, a charamela,
com seu som dito “rude”, agudo e penetrante87, segue para o contexto
84 PITAWAY, Ian. A brief history of farting in Early Music and Literature. https://earlymusicmuse.com/a-brief-history-of-farting/ (visitado em: 29/08/2021, 22h30).
85 ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. 2006, Canto XXI,
verso139; p. 233.
86 GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007.
p. 92.
87 SUMMERS; O’ROURKE-JONES. Music: The definitive visual history. New York: 1st
American Ed. 2013, p. 34.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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mais popularesco também.
O alaúde, conhecido desde o século IX, foi trazido à Península
Ibérica pelos conquistadores árabes, mas só se espalhou pelo restante
da Europa pouco antes do Renascimento88. Considerando o caráter intenso dos sons da gaita e da charamela, e a posição em que observamos
que a segunda se encontra no painel do Inferno de Bosch, direcionada
bastante próxima ao ouvido da cantora, conclui-se que sua função de
tormento está em progresso, visto que será um som persistentemente
eterno.
Abriremos um parêntese para abordarmos sucintamente a questão do incômodo físico causado pelos sons dos instrumentos e vozes.
Podemos estimar o sofrimento de acordo com dados e elementos acústicos básicos. Segundo os estudos em saúde auditiva de órgãos profissionais, como o dangerousdecibels.org, existem padrões e tabelas com
o tempo máximo recomendado de exposição a determinados sons com
decibéis elevados. Por exemplo, não se recomenda a audição contínua
de sons de 115 decibéis por mais de 30 segundos, pois a prática pode vir
a prejudicar permanentemente o sistema auditivo, além de ser doloroso
em certo ponto.89
Partindo destes elementos, podemos nos aproximar da provação
à que esta alma está exposta. A gaita de fole pode chegar a 120 decibéis
num pico de sonoridade90 (forte), o vocalista pode chegar a 94 decibéis91, não considerando gritos, e quanto à charamela, sendo precursora
do oboé, utilizaremos a medição deste último, que seria de até 116 decibéis92.
Considerando que uma britadeira chega a 120 decibéis, podemos associar o nível de ruído a que padece esta alma. Se calcularmos
que, cerca de 3 decibéis são acrescentados a cada soma de instrumento
(pois não se somam os decibéis individuais completos dos instrumentos
quando em conjunto), como vemos num estudo de 2011, Music, noise
88 GROUT; PALISCA. 2007, p. 92.
89 <http://dangerousdecibels.org/education/information-center/decibel-exposure-time-guide-
lines/> (site visitado em: 22/07/2021, 01h12)
90 <https://bagpipe.news/2019/05/24/we-dont-realise-how-important-our-hearing-is-until-we-start-to-lose-it/> (site visitado em: 23/07/2021, 23h13).
91 <https://gracenotepiano.com/blog/> (site visitado em: 23/07/2021, 23h24).
92 Idem
248
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
and Hearing,93 podemos ter cerca de 130 decibéis, apenas com sons de
instrumentos e vozes próximas. Lembrando, novamente, que são sons,
ou barulho, eternos, tornando o dano constante. Leva-se em conta ainda, que, estes instrumentos, próximos à cantora estejam, de certa forma,
atrapalhando sua leitura e execução musical, o que causaria outro tipo
de tormento também.
1. PARTITURA
Nossa primeira análise da partitura se realizou com base no tríptico do Juízo Final, porém, até aquele momento não dispúnhamos de
imagem com definição suficiente deste recorte do painel do Inferno,
para visualizarmos e lermos os caracteres e notação musical. Desta forma, havíamos feito a análise com base na cópia do tríptico, pintada por
Lucas Cranach, pois neste era visível e legível o excerto. Agora que
dispomos de uma imagem bem definida do livro partiturado no tríptico
original de Bosch, podemos completar com maior perícia a análise do
painel do Inferno de Bosch. A imagem foi cortesia do Bosch Research
and Conservation Project, que atualmente trabalha com a conservação
e restauro de obras de Bosch, incluindo o Juízo Final de Viena. [FIGURA 4].
Ian Pittaway cita todas as notações encontradas nas pinturas de
Bosch em seus estudos e as define como faux music, Strichnotation94,
música falsa, notação de traço, simbólica. O autor critica avidamente qualquer tentativa de decodificação da escrita musical, inclusive do
trecho do Inferno do Juízo Final de Viena, pois, para ele, a intenção
musical, assim como em outras ocasiões representativas, é simbólica,
alegórica:
Ideologicamente, quando Bosch avisa seus espectadores sobre
o pecado da luxúria, ele não pinta casais copulando, mas morangos simbólicos, cerejas e mãos colocadas sugestivamente
93 Music, Noise and Hearing: How To Play Your Part. A Guide For Musicians. BBC 2011.
<http://downloads.bbc.co.uk/safety/documents/safety-guides/audio-and-music/Safety-Musician_noise_guide_Part_I.pdf> (23/07/2021; 22h37).
94 PITTAWAY, Ian. Jheronimus Bosch and the music of hell: The Garden of Earthly Delights
<https://earlymusicmuse.com/bosch2/ > (site visitado em: 17/08/2021, 01h15).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
249
na coxa e no abdômen, para não incitar seus espectadores aos
pecados sobre os quais ele adverte. Da mesma forma, é uma
contradição impossível sugerir que Bosch pintaria pecadores
musicais e então convidasse seus espectadores a cometer o
mesmo pecado de que ele está alertando, pondo em perigo suas
próprias almas ao pintar a música que levou esses pecadores
para o Inferno. (PITTAWAY, 2021) 95
Ainda assim, tratamos o excerto musical inscrito no livro aos
pés do Concerto Infernal como notação legível e decifrável, com base
nos elementos visíveis na partitura. Trata-se de um excerto musical
cujas pautas compõem pentagramas, de acordo com nossa forma de
organização. A notação musical na pauta com cinco linhas já havia se
estabelecido até o século XV, assim, vê-se a clave de Do na 5ª linha. Foi
feita uma transcrição nos moldes de notação moderna para podermos
visualizar mais facilmente o contorno melódico composto. Desta forma observamos determinadas passagens e intervalos96 relevantes para a
análise. [FIGURA 5].
Na sequência de notas que foram transcritas, as passagens entre
a décima terceira para a décima quarta, e da décima sexta para a décima
sétima, há o intervalo conhecido como trítono, três tons inteiros, que
neste trecho está escrito de forma melódica, ou seja, consecutivamente.
E ao longo do excerto observamos o uso de intervalos diversos em saltos amplos, não comuns em composições vocais do período, menos ainda em cânticos litúrgicos, uma vez que, a maior parte das composições
documentadas do medievo refere-se à música de caráter sacro, como o
cantochão, por exemplo, e este era composto por passagens melismáticas, ou seja, graus conjuntos, sem maiores saltos em seus intervalos.97
O próprio suporte em que vemos a escrita musical nos remete a
livros como códex litúrgicos e livros de serviço, que colocado na cena
se diverge aos instrumentos seculares ali contidos, misturando componentes de ritos eclesiásticos com práticas mundanas, o que provavel95 PITTAWAY, Ian. Jheronimus Bosch and the music of hell: The Garden of Earthly Delights
<https://earlymusicmuse.com/bosch2/ > (site visitado em: 17/08/2021, 01h15). (Tradução nossa)
96 Intervalo: espaço entre duas notas.
97 GROUT; PALISCA. 2007, p. 63.
250
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
mente busca o choque desses elementos em desarmonia, resultando em
vários conjuntos caóticos que compõem a anarquia Infernal.
Desta forma, o visual do Concerto Infernal e as dissonâncias
partituradas remetem à confusão, desordem, atribulação, contrariedade,
visto que no período os intervalos eram de difícil execução para vozes,
soando discrepantes harmonicamente.
A imagem da pintura, mesmo com aproximação cuidadosa, não
permite que enxerguemos todos os detalhes da partitura, desta forma
nossa análise foi basicamente uma transcrição dos elementos visíveis
em suas respectivas linhas.
Relembrando a questão dos instrumentos, no plano central do
painel, uma criatura sopra com seu traseiro um instrumento citado anteriormente como um clarim, ou trombeta, que tinha finalidade solene,
usado apenas para a nobreza98, o que podemos relacionar ao anúncio
e aparição do próprio Diabo surgindo de uma pequena construção no
plano inferior do painel.
Há uma inversão de papéis dos elementos litúrgicos nesta representação, que pode ser interpretada como a própria quebra da harmonia e da ordem civil e religiosa consumada com o visual infernal deste
painel.
Palisca cita que, considerando-se que a região onde hoje se
encontra a Bélgica e o extremo noroeste da França, eram morada da
maioria dos grandes compositores nortenhos de finais do século XV99,
estima-se que houve o contato de artistas de outras guildas, como o próprio Bosch e Cranach, (autor da cópia do Juízo Final) com obras destes
músicos e mesmo com obras mais antigas.
O que poderia explicar elementos musicais presentes nas obras
destes artistas, mas sem explicar qualquer questão do porquê da utilização de tão duras penas de caráter musical nas obras de Bosch.
O que se sabe é que a Irmandade, como organização, não tinha
proibição de música, pois não só participava do canto eclesiástico como
tinha entretenimento musical em seu banquete anual músicos compositores contemporâneos de Bosch, dentre os quais estavam Nycasius de
98 Idem, p. 50.
99 Ibidem, p. 92.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
251
Clibano (? –1497), cujas obras sobreviventes creditadas são religiosas;
seu filho, Jheronimus de Clibano (c. 1459-1503), cujas três prováveis
obras que chegaram a nós são sacras; e Matthaeus Pipelare (c. 1450-c.
1515), que escreveu missas, motetos e canções seculares vernáculas, e
cujo sobrenome sugere que ele ou seu pai eram flautistas.100
Para Pittaway, a notação gregoriana, conhecida por Bosch era
a música escrita para o culto eclesiástico, composta para voz e órgão
apenas, exercendo o louvor fiel e sóbrio a Deus. A Strichnotation, que
ele pintou, segundo Pittaway, como uma tolice deliberada, era a notação
musical do mundo secular, para a voz e com instrumentos pecaminosos, para exaltação desleal da maldade sensual. O autor conclui dizendo
que, para Bosch, e para todos aqueles que pensavam como ele, Strichnotation e o que eles percebiam como instrumentos musicais seculares
eram uma só peça: convites para focalizar a mente em coisas profanas,
razões para inflamar os sentidos com paixões profanas, levando inevitavelmente às punições do inferno.101
Consideramos plausível a hipótese da faux music, porém, ainda
assim nos colocamos na posição de espectador curioso, que viu os dados impressos nesta pequena miniatura num emaranhado Infernal, e se
pôs a descrevê-lo. Os neumas, ou seja, notação antiga, estavam lá, uma
pequena clave de Do, ainda que apenas no início da partitura, também
é vista. Desta forma, se deu a transcrição e a execução melódica, com
instrumento moderno, mas com som do Inferno Boschiano.
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BURNS, Janet, 2016. Brief history of devil’s tritone. Artigo disponível em:
100 PITTAWAY, Ian. Jheronimus Bosch and the music of hell: Music and musicians in the
complete works of Bosch. Artigo disponível em: https://earlymusicmuse.com/bosch3/ (visitado
em: 18/08/2021, 01h30).
101 Idem.
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254
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Imagens:
Figura 1: Hieronymus Bosch. Juízo Final. Òleo sobre madeira; painel direito: 163 x 60 cm –
Inferno. Akademie der bildendenKünste, Viena.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
255
Figura 2 (Esquerda): Brueghel, 1559 - detalhe de pintura. Gemäldegalerie Staatliche Museen zu Berlin. Imagem do artigo de Marie-Louise Herzfeld-Schild.
Figura 3 (Direita): Wierix, em torno de 1569 – detalhe de gravura. The Metropolitan Museum of Art. Imagem do artigo de Marie-Louise Herzfeld-Schild.
256
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 4: Hieronymus Bosch (c. 1450 - 1516), O Juízo Final (c. 1500 - 1505). Òleo
sobre madeira. Detalhe do painel direito, Inferno. Imagem concedida por cortesia do Bosch
Research and Conservation Project: <http://boschproject.org/old_index.html#>
Figura 5 (Esquerda): Transcrição das notas legíveis da partitura, em clave de Do, 5ª linha.
Figura 6 (Direita): Transcrição da partitura em notação moderna, em clave de Sol.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
257
EROS E MORTE: A LINGUAGEM DO CORPO
NO CURTA YÛKOKU DE YUKIO MISHIMA
Helena Ariano102 - helena.ariano.92@hotmail.com
Resumo: O presente ensaio, que refere-se à comunicação apresentada
no EPHA, consiste em algumas considerações sobre a análise do curta
Yûkoku - Ritos de Amor e Morte, do escritor Yukio Mishima, de 1965,
que é minha pesquisa de mestrado em andamento. Yukio Mishima
(1925-1970) iniciou sua carreira literária ainda na adolescência, sendo
um dos mais importantes e polêmicos escritores japoneses do século
XX. Alguns de seus aspectos mais significativos são o patriotismo, o
erotismo e a morte, profundamente relacionados entre si e presentes no
conto Patriotismo, de 1960, que deu origem ao curta. Nesta produção
audiovisual, Mishima insere elementos japoneses e ocidentais, trazendo à tona certos aspectos essenciais de seu pensamento, tanto estéticos
quanto ideológicos.
Palavras-chave: Yukio Mishima; Japão pós-guerra; literatura japonesa
moderna; cinema japonês
Abstract: The following essay, which refers to the lecture conducted
during the EPHA, consists of a few considerations on the analysis of
Yûkoku - Patriotism or the Rite of Love and Death, a 1965 short film by
author Yukio Mishima, which is my ongoing master’s research. Yukio
Mishima (1925-1970) began his literary career in his teenage years,
and is considered one of the most important and controversial Japanese
writers of the 20th century. Among his most significant characteristics
are patriotism, erotism and death, all profoundly interconnected and
present in Patriotism (1960), the short story which originated the film.
In this audiovisual production, Mishima inserts Japanese and Occidental elements, discussing certain essential aspects of his thinking, both
aesthetic and ideological.
102 Este ensaio faz parte de minha pesquisa de mestrado em andamento em História da Arte
na Unifesp, orientada pelo Prof. Dr. Jens Michael Baumgarten e co-orientada pela Profª. Drª.
Michiko Okano Ishiki.
258
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Keywords: Yukio Mishima; post-war Japan; modern japanese literature; japanese cinema.
1. INTRODUÇÃO:
Há três eixos principais que norteiam o presente trabalho: o corpo na modernidade, o corpo como existência política e o corpo como
identidade. A modernidade, de forma geral, trouxe, junto a diversas
mudanças de pensamento, valores e política, intensos questionamentos acerca da identidade humana. Tais questionamentos manifestam-se
também na percepção e na representação do corpo, que muitas vezes na
arte moderna é mostrado fragmentado, destruído, decomposto, e essa
fragmentação, essa estética da destruição é fortemente percebida em
Yukio Mishima e suas produções literárias e artísticas em geral103.
Embora Mishima se encontre no contexto da modernidade, sendo atravessado fortemente por pensamentos ocidentais, é necessário
fazer algumas considerações sobre o histórico japonês sobre o corpo,
tendo-se em vista tratar-se esta de uma pesquisa distante histórica e
geograficamente do contexto do Japão pós-guerra. Muitos pensamentos da tradição japonesa provém primariamente da medicina chinesa e
do budismo Mahayana, inclusive conceituações sobre o corpo. O ser
humano, nessa tradição, é visto como integrado ao todo e em relação
não apenas com a natureza, mas também com a sociedade e a política,
e o processo e a transformação são elementos constantes, não havendo
nada que seja fixo ou constante. A própria representação do corpo nas
artes japonesas antes dos primeiros contatos ocidentais104 contava com
a figura humana sempre harmonizada ao ambiente, com todos os elementos possuindo a mesma importância e peso visual. Com a interação
e a inserção da arte ocidental, novos estudos visuais passaram a ser realizados no Japão, contando inclusive com o uso da perspectiva e muitas
vezes a centralização da figura humana.
103 Como será visto adiante, Mishima não apenas atuou na área de literatura, mas também no
teatro, no cinema, na fotografia como modelo, e nas artes marciais.
104 Os portugueses chegaram no país no século XVI, havendo intensas trocas culturais.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
259
É inegável também que a coletividade sempre foi - e ainda na
contemporaneidade é - um aspecto essencial do pensamento e vivência
japoneses. Um termo que se relaciona com essa noção de coletivo é o
kokutai, que pode ser traduzido como “essência nacional” ou “corpo
nacional”, e se refere à posição e importância do corpo do indivíduo
japonês em relação à sacralidade do Imperador e à lealdade e valorização da nação. Provindo da ideologia Yamato105, a importância do
kokutai também estava intimamente ligada ao corpo político e místico
do próprio Imperador, símbolo das virtudes morais do Japão. A lealdade
à nação japonesa e um consequente controle dos corpos dos cidadãos
passa a ser aplicada de forma intensa entre os anos 1930 e 1940. A importância do corpo é vista no seguinte contexto: um corpo saudável era
considerado como o ideal para servir ao país, e portanto era um corpo
patriota106. Havia no período da guerra programas governamentais para
detectar possíveis enfermidades físicas ou mentais da população, e os
corpos não saudáveis eram considerados anti-patriotas, marginalizados
e muitas vezes violentados. Há uma significativa mudança na percepção do corpo e da política após a derrota do Japão, como veremos a
seguir, e essa nova perspectiva afeta Mishima de maneira significativa.
2. DERROTA NA 2ª GUERRA E IMPLICAÇÕES:
O período do pós-guerra trouxe importantes implicações políticas e sociais, não apenas nos corpos dos sujeitos anônimos, mas mesmo
no corpo do Imperador. Em relação aos corpos dos cidadãos, houve
uma espécie de “senso de libertação” após a derrota por conta da perda
do controle do Estado japonês sobre esses corpos: não mais sob regulação política, os sujeitos muitas vezes passaram a se entregar a prazeres
físicos como sexo e a comida - embora esta fosse escassa. No entanto,
se por um lado havia a libertação do controle do Estado japonês, por
outros esses corpos passaram a ser controlados por um novo poder: os
EUA, durante a ocupação americana no país, que, com a justificativa
105 A ideologia do corpo nacional durou do ano 300 até o ano 1945, passando por períodos de
menor ou maior resgate, dependendo do cenário político.
106 Interessante destacar que Mishima estabelecia uma íntima relação entre a saúde, a adequação do corpo e a devoção à nação e ao Imperador.
260
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
da produção de “corpos democráticos”, muitas vezes violentavam os
cidadãos japoneses com intervenções sanitárias forçadas.
Nesse contexto, também o corpo de Hirohito, o Imperador
107
Showa , passou por grandes mudanças. Havia uma importância, inclusive mítica, da figura do governante no Japão, percebido como um representante divino de toda a nação. Com a derrota do país, Hirohito foi
humanizado: sua voz foi ouvida na rádio pela primeira vez, seu corpo
visto em meio às ruínas pela população, sua figura posta lado a lado à
do general Douglas MacArthur, se estabelecendo simbolicamente uma
relação de poder. Houve inclusive uma sexualização metafórica entre
ambos: o militar americano posto como viril e forte e Hirohito como
uma figura feminina e frágil.
Durante as décadas de 1950 e 1960, o Japão passou por um
intenso crescimento econômico, em grande parte proporcionado pela
ocupação pelos EUA no país. Nesse período, aspectos do modo de vida
americano foram incorporados no cotidiano dos japoneses, como o consumo de eletrodomésticos, mudanças nas moradias e paisagens urbanas
e incorporação massiva de vestimentas ocidentais108. Esse cenário propiciou uma brusca transformação nas condições do Japão: antes uma
nação guerreira, o país tornara-se forçadamente pacífico. Não mais sob
a tensão da guerra, os cidadãos vivenciavam a vida cotidiana. Juntamente com esse fator, ainda havia o fato de que a figura do tenno109
havia sofrido uma significativa mudança, perdendo grande parte de sua
aura divina, ao mesmo tempo em que se isentava da responsabilidade
política da guerra.
O suposto processo de efeminação do homem japonês moderno
e o pacifismo do pós-guerra foram dois aspectos severamente criticados
por Mishima, que durante boa parte de sua vida buscou um retorno a um
Japão tradicional, com um passado guerreiro e varonil110, e o retorno da
importância da figura imperial, deixando claro seu forte patriotismo. O
escritor perseguiu intensamente, também, a paixão e a tragédia, que só
107 A Era Showa durou de 1926 a 1989.
108 Este último acontecimento já se dava desde o Período Meiji (1868-1912), tendo aumentado
durante a ocupação e democratização forçada.
109 Imperador, instituição imperial.
110 Interessante ter-se em mente que a visão do Japão tradicional por Mishima era idealizada.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
261
seriam possíveis em tempos de guerra, mesclando à sua ideologia aspectos tradicionais japoneses, fortes influências ocidentais, a linguagem
da carne e o êxtase da morte.
3. YUKIO MISHIMA: PENSAMENTOS GERAIS
Yukio Mishima, pseudônimo de Kimitake Hiraoka, foi um importante e polêmico escritor japonês nascido em 1925, tendo portanto
vivenciado parte de sua juventude no período da guerra. Descendente
de uma família de samurais por parte de sua avó paterna, Natsuko, que
era profundamente ligada à tradição, ele apresentou uma saúde frágil
durante a infância e adolescência, agravada por seu convívio excessivo com sua avó111. Esses fatos, trazidos brevemente, podem auxiliar
a explicar a posterior intensidade de Mishima na busca por um corpo
ideal, pela ação e pelo retorno a um Japão tradicional e guerreiro que o
acompanhariam durante toda sua vida e obra.
Mônica Setuyo Okamoto e Pedro Tinen, no artigo “Patriotismo,
de Yukio Mishima: persona, autor e ator no cinema”, assinalam que as
três bases presentes no escritor são o patriotismo (manifestado através
da sacralidade do imperador112), o erotismo e a violência (que culminaria no ápice da morte). Esses elementos, somados à sua crítica ao Japão
moderno, ao pacifismo de seu tempo e às ações de Hirohito, compõem
o cerne de sua busca ideológica e estética, que ampliaria posteriormente
sua atuação artística para diversas áreas além da literatura, dentre elas
fotografia (como modelo), teatro e cinema. Mishima, após ter realizado diversos ensaios artísticos de sua própria morte, comete seppuku, o
suicídio samurai por enventramento, em 25 de novembro de 1970, após
um motim organizado juntamente com um grupo paramilitar, o Tatenokai (Sociedade do Escudo), com o objetivo de reconstruir a imagem
e a importância imperial.
111 Natsuko, adoentada e controladora, tomou o neto para si quando ele tinha poucos dias
de vida. O menino viveu durante muitos anos sob a atmosfera mórbida proporcionada pelo
convívio excessivo, sendo privado, inclusive, de muitas brincadeiras ao ar livre e mais intensa
fisicamente.
112 Cabe dizer que Mishima refere-se à instituição imperial e sua simbologia, não à figura
pessoal de Hirohito.
262
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Para melhor compreender essas questões, cabem algumas considerações sobre a forma como Mishima enxergava sua própria vida,
além de obras e influências filosóficas que lhe eram caras. No catálogo
da Exposição Yukio Mishima, organizada pela loja de departamentos
Tôbu em novembro de 1970, o próprio escritor se introduz dividindo
sua vida em Quatro Rios: Rio do Livro, Rio do Teatro, Rio do Corpo
e Rio da Ação. Nos dois primeiros, Mishima assinala a importância da
literatura e do teatro para ele, destacando também a angústia e amargura
acumulados nesses dois aspectos de sua vida. Já os dois últimos rios
adquirem um caráter totalmente novo e vital para ele: insatisfeito com o
universo limitado das palavras, ele transformaria seu próprio corpo em
obra, a beleza “visível aos olhos” (MISHIMA apud KUSANO). O Rio
do Corpo, a seu ver, o guiaria direto ao Rio da Ação, exclusivamente
masculino, no qual há “lágrimas, suor e sangue”, movimento vital, intenso e apaixonado que resultaria no êxtase final da morte.
Sua atração pela linguagem da carne, ou verdade do corpo, e a
ligação entre o erotismo, a morte e o patriotismo, mostra-se em diversas
obras suas, inclusive no curta Yûkoku - Ritos de Amor e Morte, objeto
deste estudo. No entanto, antes de adentrarmos na breve análise dessa
produção, cabe mencionar três importantes obras suas: Sol e Aço de
1968; O Hagakure: a ética dos samurais e o Japão moderno, de 1967 e
o conto Patriotismo, de 1960, cujo enredo deu origem ao curta. Em Sol
e Aço, que ele chama de “confidência crítica”, Mishima traça algumas
reflexões sobre como as palavras corromperam a linguagem da carne, e
narra seu processo em busca da verdade do corpo através do treinamento físico intenso, da construção dos músculos. Dentro desse processo
está sua busca pela tragédia, que ele associa a um tipo físico ideal (viril)
e ao coletivo, mostrando a importância do pertencimento a um grupo113.
O sofrimento físico e o combate são vistos como qualidades do
guerreiro, essas abordadas em seu O Hagakure. Nessa obra, que consiste na análise dos preceitos de Jôchô Yamamoto114, Mishima procura
fazer um resgate das qualidades essenciais de um samurai aplicadas ao
homem japonês moderno. O resgate, portanto, de um modelo masculi113 Depreende-se daí a importância do Tatenokai para ele.
114 Nome monástico de Tsunetomo Yamamoto, samurai que viveu de 1659 a 1719.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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no ideal é fortemente presente no pensamento do escritor, e um aspecto interessante dessa busca por um Japão masculinizado e guerreiro é
perpassado também por pensamentos ocidentais, como o conceito de
niilismo ativo de Nietzsche115 e sua força de destruição e o apreço pelo
corpo belo e jovem encontrado nas esculturas gregas116. Esses aspectos
mesclam-se no conto Patriotismo, de 1960, que posteriormente daria
origem ao curta Yûkoku - Ritos de Amor e Morte.
O conto é baseado no Incidente de 26 de Fevereiro de 1936117 e
é considerado pelo próprio Mishima uma obra chave de sua produção,
concentrando diversos elementos de seu pensamento, como a devoção
ao imperador, o erotismo e a morte. O enredo consiste no suicídio duplo
amoroso e patriota do tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko: o
tenente teria que combater seus companheiros, que haviam realizado
um motim, e, encontrando-se em conflito por conta de sua lealdade aos
colegas e ao Exército Imperial, decide cometer seppuku, seguido pelo
suicídio de sua leal esposa. A partir dessa premissa, o conto traça os
momentos finais do casal, entregues ao prazer erótico antes de encontrarem a própria morte.
4. YÛKOKU: PATRIOTISMO, EROTISMO E MORTE
O curta foi produzido e lançado em 1965, fruto de um intenso
trabalho em equipe que durou três dias. Mishima assume nessa obra
múltiplos papéis: roteirista, produtor, diretor, e, principalmente, ator
principal. No papel do protagonista Shinji Takeyama, o escritor, já há
cerca de dez anos praticando artes marciais e musculação, coloca seu
corpo em evidência, seu físico poderoso e em porte da tão desejada virilidade em contraste com o delicado corpo de Yoshiko Tsuruoka, a atriz
115 Nietzsche destaca dois tipos de niilismo: o passivo, que seria a não ação, e o ativo, que
traria a ação e a força destrutiva. Tais definições são aqui simplificadas e resumidas só para uma
compreensão geral.
116 Mishima realizou em 1952 uma viagem à Grécia que auxiliou a construir sua visão de
corpo ideal.
117 Jovens membros do Exército Imperial realizaram um motim em nome do Imperador com
o intuito de combater os oficiais que viam como corruptos. Tal acontecimento fez parte de uma
série de levantes dos anos 30 causados pelo faccionalismo no ambiente militar, e Mishima
enxergou esse ato como honroso.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
que representa o papel de Reiko. Assim como no conto, a ritualidade, o
preparo meticuloso para a morte, os êxtases sexuais do casal e a potente
e gráfica morte do tenente (fig. 4) são mostrados com maestria no curta,
e Mishima utiliza recursos estéticos bastante significativos.
O filme passa-se em preto e branco, utilizando forte contraste
de luz e sombra e trazendo bastante expressividade. Também é um filme mudo, havendo apenas legendas colocadas estilisticamente em um
kakejiku (pergaminho japonês). Aliado a isso, Mishima escolheu um
palco de teatro nô para as filmagens, aplicando elementos dessa arte à
obra, como a importância da gestualidade e o fantásmico. Visto que o
filme não possui falas, o gesto e o corpo são essenciais para a narrativa
e representação dos pensamentos, intenções e emoções, e em relação ao
fantásmico, é importante ter em mente que o casal, no curso da narrativa, já encontra-se morto, e o que é mostrado são as reminiscências do
que já ocorreu. Esse recurso de narrar um passado que não mais existe,
com personagens que não pertencem ao mundo dos vivos é algo extremamente presente no nô.
Além destes, outros aspectos do nô também se encontram presentes. Um exemplo é a estrutura chamada “tábua do espelho” em que
se encontra o yogo, pinheiro sagrado, no fundo do palco, substituído
pelos dizeres shisei, “sinceridade máxima” (fig. 3), denotando simbolicamente a lealdade do casal ao imperador.. Outro exemplo significativo
é a Sala do Espelho (Kagami no Ma), local onde o ator de nô coloca
a máscara e se transforma no personagem, sendo no curta destinado a
Reiko, após a morte do tenente, se maquiar, construindo uma espécie de
máscara mortuária para si. Outro uso simbólico da máscara é o quepe
do tenente (fig. 1), mostrando a transformação de Mishima no personagem e trazendo a perda de uma individualidade por conta do foco ao
pertencimento de um grupo (o Exército), representado também pelo uso
do uniforme.
Um outro elemento estético bastante importante é a trilha sonora. A música utilizada para acompanhar a trajetória do casal foi um
trecho da ópera Tristão e Isolda (1859) de Richard Wagner. A utilização
de Wagner interliga-se com a importância da tragédia no pensamento
de Mishima, que em Sol e Aço a relaciona à “sensibilidade comum” e
à “força física certa”, demonstrando a relação que fazia entre a adeANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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quação do corpo para o acontecimento trágico. Além disso, Wagner foi
um importante objeto de estudo de Nietzsche em seu O Nascimento
da Tragédia, que influenciou Mishima profundamente na formação de
seus conceitos de corpo e de trágico. No que diz respeito em especial à
ópera escolhida (Tristão e Isolda), é observada a importância da morte,
em especial a morte amorosa transcendental, que no curta é posta nas
figuras do tenente e de Reiko.
As imagens a seguir possibilitam uma breve análise dos elementos principais presentes no curta e seus possíveis significados. As
considerações sobre elas encontram-se nas próprias legendas:
Fig. 1: A partir do gesto, o tenente demonstra para Reiko e para o público como pretende cometer seu seppuku. Na cena seguinte, Reiko utiliza-se do gesto para também mostrar como cometerá seu jigai (suicídio
feminino).
Fig. 2: A cena do êxtase sexual do casal é narrada através do uso da
sombra e da sugestão imagética. A sequência é bastante delicada e sutil,
trazendo metáforas visuais.
Fig. 3: Os dizeres “Sinceridade Máxima” estão presentes na cena anterior e posterior ao ato sexual, mostrando a sujeição do casal à ideologia
patriota. Além disso, a espada do tenente e a adaga de Reiko se encontram na cabeceira da cama, mostrando o vislumbre da morte e como
esta e o erotismo coexistem.
Fig. 4: A morte do tenente. Com um tom distinto da sutileza anterior, o
acontecimento é mostrado de forma gráfica e crua, com os órgãos internos se espalhando pelas coxas de Takeyama. Toda a dor é representada
de maneira intensa tendo Reiko como testemunha. Ao fim da ação, Reiko levanta-se e vai se preparar para sua própria morte.
Fig. 5: Reiko maquia-se na Sala do Espelho. Após a intensidade da
morte do tenente, que é acompanhada pelas lágrimas de Reiko, a mulher recompõe-se e através da maquiagem transforma seu rosto em sua
máscara mortuária rumo ao seu destino trágico. Reiko, assim como o
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
tenente, também é uma heroína, mostrando a complexidade das personagens femininas de Mishima.
Fig. 6: A cena final. Após Reiko cometer o jigai, seu corpo tomba em
cima do cadáver de seu amado, e ambos são mostrados em cima de um
jardim zen japonês. Uma leitura possível da simbologia do jardim zen
é a relação à transcendência da morte, visto que para Mishima o jardim
representa a “imortalidade da própria morte”118.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Embora a presente pesquisa ainda se encontre em andamento, é
possível perceber que no curta mesclam-se elementos japoneses e ocidentais, algo que se enxerga no próprio Mishima, mostrando a complexidade de seu pensamento. O uso da trilha sonora feita por Wagner,
além de estar diretamente relacionada à questão da morte e da tragédia,
destaca a importância da modernidade ocidental na construção identitária e estética de Mishima, que vivenciava um Japão híbrido, composto
de múltiplos elementos. Ao mesmo tempo, a busca por uma identidade japonesa o faz recorrer ao teatro nô, que para o escritor é um dos
maiores símbolos do Japão tradicional, que impede a “intromissão do
homem contemporâneo” (MISHIMA apud STOKES).
Além disso, a junção entre o corpo, o erotismo, a morte e sua
profunda ligação com a devoção imperial e, consequentemente o patriotismo, são elementos centrais no curta, sendo essenciais para Mishima. O escritor buscou essa morte trágica e nacionalista em sua vida
pessoal ao cometer seppuku da mesma forma que seu protagonista o
comete, o que torna essa obra uma espécie de ensaio de morte. O curta,
portanto, consiste em uma síntese conceitual e estética do pensamento
de Mishima, sendo uma importante fonte para compreender seus elementos mais essenciais.
118 MISIMA apud KUSANO (2005).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GREINER, Christine. Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. São Paulo: N-1 Edições, 2015.
IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na
cultura japonesa (1945-1970). Tradução de Marco Souza e Marcela Canizo.
São Paulo: Annablume Editora, 2011.
KUSANO, Darci. Yukio Mishima: o homem de teatro e de cinema. São Paulo:
Editora Perspectiva: Fundação Japão, 2006.
MISHIMA, Yukio. Morte em pleno verão e outras histórias. Tradução de
Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
_____. O Hagakure: a ética dos samurais e o Japão moderno. Tradução de
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
_____. Sol e Aço. Tradução de Paulo Leminski. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
PATRIOTISMO ou Rito de Amor e Morte - Yukio Mishima. in LOGOS FÍLMICO. S/D. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8HDyfZaU2FM&t=109s>. Acesso em 09/12/2021.
STOKES, Henry Scott. The Life and Death of Yukio Mishima. Nova York:
Cooper Square Press, 2000.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
TIEMPO DE MIRAR: IMAGEM,
CORPO E EXPOSIÇÃO
Helena Wilhelm Eilers – helenaweilers@gmail.com
Resumo: Esta comunicação tem como objeto apresentar a exposição
Tiempo de Mirar, do artista uruguaio Joaquín Torres García e, por meio
dela discutir a ideia de “sobrevivência da imagem”, proposta pelo teórico alemão Hans Belting, no livro Antropologia da Imagem (2014).
Realizada em 2018, a mostra exibiu, através de diferentes técnicas, as
obras de Torres Garcia queimadas no incêndio do Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro, trazendo-as novamente à vida depois de 41
anos. As questões aqui levantadas surgem a partir da pesquisa que está
sendo desenvolvida na minha tese de doutorado, na qual eu investigo de
que maneira obras de arte destruídas materialmente podem sobreviver.
Por ser um trabalho em andamento, mais do que trazer pontos demasiadamente fechados, quero também levantar algumas inquietações.
Palavras-chave: Imagem; Corpo; Sobrevivência; Hans Belting; Torres
García.
Abstract: This paper presents the exhibition Tiempo de Mirar, by Uruguayan artist Joaquín Torres García and, through it, discuss the idea of
“image survival”, proposed by the German theorist Hans Belting, in the
book An anthropology of images: picture, medium, body. Held in 2018,
the show exhibited, through different techniques, the works of Torres
García burned in the fire at the Museums of Modern Art in Rio de Janeiro, bringing them back to life after 41 years. The questions raised here
arise from the research being carried out in my doctoral thesis, in which
I investigate how materially destroyed works of art can survive. As it is
a research in progress, more than bringing closed ideas, I also want to
raise some concerns.
Abstract: Image; Body; Survival; Hans Belting; Torres García.
Realizada em 2018, no Museu Torres García (MTG), em Montevidéu, a mostra Tiempo de Mirar reuniu 71 obras do artista uruguaio
Joaquín Tores García (1874) , dentre elas, quadros construtivistas, mu272
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
rais e juquetes120. Diferente, entretanto, de outras exibições do artista,
essa trazia uma peculiaridade: os trabalhos ali apresentados eram referentes exclusivamente às obras que foram destruídas 40 anos antes, no
incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).
Na fatídica noite de 8 de julho de 1978, o fogo consumiu grande parte
do acervo da instituição, atingindo quase mil obras de importantes artistas, entre eles Picasso, Matisse, Salvador Dalí, Portinari e Di Cavalcanti, porém, foi Torres García o mais prejudicado. Na época, o museu
recebia a exposição coletiva Arte Agora II, América Latina: Geometria
Sensível, da qual fazia parte uma retrospectiva da obra de Torres García.
Estavam expostos na ocasião sete grandes murais pintados para o Hospital Saint Bois, 46 quadros construtivos, 20 esculturas, além de jogos
e objetos de madeira. Desde então, essas peças sobreviviam apenas na
memória de algumas pessoas.
Chama a atenção o fato de que, ao longo dos anos, essas não
foram as únicas obras destruídas de Torres García. Também grande parte dos murais pintados pelo artista foi perdida e, com ela, boa parcela da produção do início da sua trajetória. Das pinturas realizadas na
igreja San Agustín (Barcelona), por exemplo, se conserva apenas um
desenho, algumas fotografias e uma única descrição feita pelo uruguaio
(MARTINÉZ, 2002, p. 106). Em outro caso, dos murais pintados no
escritório da Câmara Municipal de Barcelona, em 1908, há apenas uma
imagem do friso e textos publicados sobre eles no jornal El Poble Catalá, mas os trabalhos nunca mais foram encontrados. Os exemplos são
inúmeros e o eventual resgate de algumas de suas obras ainda está em
pauta. No final da década de 1960, foram recuperados murais localizados no Salão de Sant Jordi, do Palau de la Generalitat. Tal série foi
pintada entre 1913 e 1917, a pedido de Prat de la Riba (1879 - 1917)121,
porém cobertos com pinturas históricas durante a ditadura de Primo de
Rivera (1870-1930)122.
Já a possibilidade de montar Tiempo de Mirar, tantos anos de120 Como são chamados alguns objetos de madeira feitos por Torres García.
121 Enric Prat de la Riba, político nacionalista catalão. Foi o primeiro presidente da Manco-
munitat das províncias catalãs.
122 Miguel Primo de Rivera y Orbaneja foi um militar e ditador catalão. Implantou um golpe
militar em 1923, derrubando a constituição e se tornando presidente da Espanha até 1925.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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pois dos trabalhos terem sido destruídos pelo fogo, ocorre com a descoberta de alguns rastros do que anteriormente haviam sido essas obras.
Em uma entrevista, realizada pela autora em dezembro de 2019, Alejandro Diaz, diretor do museu e idealizador da mostra, relata dois acontecimentos imprescindíveis para sua idealização. O primeiro diz respeito
aos fragmentos de algumas pinturas destruídas que foram encontrados
em 2005, no acervo do Museu Nacional de Artes Visuais de Montevidéu (MNAV). Eram seis pequenos pedaços de tela chamuscados
que sobreviveram ao incêndio, vestígios do que haviam sido pinturas
construtivistas de Torres García. Deixados ali por Angél Kalemberg123,
possivelmente com a perspectiva de que não passariam de lembranças
de uma tragédia, vieram à tona quando a nova diretora da instituição
Jacqueline Lacassa124 realizou um inventário geral das peças do museu. Ao encontrar esses “restos mortais”, como classificou Diaz, Lacassa comunicou imediatamente à equipe do MTG para que fossem ver
aquilo que “pareciam espólios de um homem morto”. A decisão sobre
montar Tiempo de Mirar, todavia, foi tomada anos mais tarde com uma
segunda descoberta. Também por acaso, foram encontradas todas as
fotografias dos trabalhos queimados. As imagens estavam nos arquivos
do Museu Torres García, porém perdidas entre outros materiais125. No
presente texto, irei me deter principalmente nessas fotografias, já que os
fragmentos abrem margem para outra discussão.
Para poder apresentar essas obras ao público, foram fixados na
parede de uma sala em branco, alguns retângulos de mesma cor. Cada
um deles mantinha a dimensão dos quadros originais. Ao posicionar o
celular em frente ao retângulo, o público conseguia visualizar as obras
como no seu espaço real através da leitura de QR codes. No caso das
pinturas em que foram encontrados restos materiais, optou-se por não
trabalhar com a realidade virtual, apresentando apenas aqueles seis pedaços de tela emoldurados. Na abertura também foi possível visualizar
os sete murais pintados no Hospital Saint Bois, esses com o auxílio de
123 Professor e crítico de arte, diretor do MNAV entre 1969 e 2007, chefe da exposição de
Torres García no MAM.
124 Jaqueline Lacasa (1970) é artista, pesquisadora e docente. Foi diretora do MNAV (20072009), sendo a primeira mulher a ocupar o cargo.
125 Informações enviadas por e-mail em 23 dez. 2019.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
óculos de realidade aumentada, que projetavam fotografias de época.
Além dos quadros, a exposição incluiu reportagens e documentos da
época, catálogos de outras mostras e fotografias da exposição de Torres
García realizada em 1974, no Museu Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires. Assim, a partir desses resquícios e com a ajuda da tecnologia,
foi possível dar vida às obras perdidas e convidar o público a conhecer
parte da produção de Torres García, trazendo-a para o presente a partir
de sua ausência. [FIGURA 1; 2].
Propomos aqui examinar essa exposição a partir do livro Antropologia da Imagem (2014), de Hans Belting, o qual tem como ideia
central a divisão entre meio, imagem e corpo. Tal pensamento leva a
compreensão de que, após ter seu corpo de origem destruído, as imagens não morreriam ou desapareciam com com ele, pois poderiam reencarnar em outros meios e assim sobreviver. Ou seja, considerando
essa divisão, as imagens teriam a capacidade de migrar de um meio a
outro, sendo de tal maneira nômades e não reconhecendo fronteiras que
as imobilizem num determinado meio. Como consequência, as imagens podem viver numa obra de arte, mas não necessariamente precisam coincidir com ela, o que proporciona formas de sobrevivência da
imagem após a destruição da matéria.
A questão primordial neste enfoque medial das imagens é justamente essa separação entre elas e o meio, conjunção que por muitas
vezes é ignorada e faz com a que a imagem seja compreendida como o
próprio meio. Segundo Belting (2014, p. 43), a imagem “tem sempre
uma qualidade mental e o meio sempre um caráter material, mesmo
quando ambos formam par em uma unidade na impressão sensível”.
Assim, compreende-se o meio como um agente, um dispositivo que
funciona como suporte para que a imagem seja materializada. Esses
suportes criam um corpo artificial que permite que as imagens sejam
transmitidas. É mediante as diferentes técnicas ou programas elas se
tornam visíveis, “independentemente de surgirem num único exemplar, como num quadro, ou em série, como na gravura ou na fotografia”
(BELTING, 2014, p. 23). Tal distinção se torna mais nítida na língua inglesa, que ao contrário da alemã e também da portuguesa, diferencia as
palavras image (imagem) e picture (quadro), local onde imagem pode
existir. Conforme Belting (2006, p. 36),
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O “o quê” de uma imagem (o problema ao qual a imagem serve
como tal, ou ao que ela se refere como imagem) é guiado pelo
“como” ela transmite sua mensagem. Na verdade, o “como” é
freqüentemente difícil de distinguir do “o quê”; nisto repousa a
essência da imagem. Mas o “como”, por sua vez, é em grande
parte modelado por um dado meio visual no qual a imagem reside. Qualquer iconologia hoje em dia deve portanto discutir a
unidade assim como a distinção entre imagem e mídia, a última
entendida no sentido de meio transmissor ou portador. Não há
imagem visível que nos alcance de forma não mediada. Sua
visibilidade repousa em sua capacidade particular de mediação,
a qual controla a sua percepção e cria a atenção do observador.
Como exemplo, são citados os atos iconoclastia. Quando um
monumento ou obra é atacado ou vandalizado, a destruição se dirige
contra a imagem daquilo que ela representa, mas na realidade o que
danifica é apenas a pedra ou bronze. Em outras palavras, o que se destrói é o meio, o suporte medial, isto é, seu aspecto tangível, material. A
imagem, vai persistir, porém, habitando outros meios ou outros lugares.
Ela pode seguir em outras obras, em fotografias, passar na televisão ou
simplesmente se manter no imaginário individual ou coletivo. Para o
autor, a destruição de uma peça é tão simbólica como a instalação da
mesma em espaço público, mas a sua depredação não garante o esquecimento ou desprezo por aquela imagem na mente das pessoas (BELTING, 2015, p. 15).
Como exemplo recente, cito a estátua de Borba Gato, incendiada
em setembro de 2021 na zona sul paulista. Ao atear fogo no monumento, os manifestantes não destroem o corpo de Borba Gato, já falecido
em 1718. Tampouco a imagem do bandeirante desaparece, pois apesar
da destruição desse meio, ela segue incorporada e propagada em diversos outros locais. Entretanto, o ato de iconoclastia não deixa de reivindicar a indignação frente a uma figura histórica polêmica, responsável
pela morte de negros, indígenas e destruição de aldeias no século XVII.
Outro caso é o da obra Temer Vermelho (2017), do coletivo Tupinambá
Lambido (RJ). Contam os integrantes do grupo, que depois de colarem
os cartazes da campanha126 de 2017, sempre dotados de um forte viés
políticos, uma senhora passou a jogar ácido na peça que trazia o rosto
126 São chamadas “campanhas” as séries de cartazes impressas e coladas em determinada
época.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
de então presidente Michel Temer127. [FIGURA 3]. O que incomodava
ela para que tomasse tal atitude era o presidente em atuação? Era a
identidade diabólica que ele ganhou no cartaz? Apesar de não sabermos
a resposta, podemos, através da teoria de Belting, afirmar que, como
no caso anterior, o ácido era eficaz apenas contra o meio da imagem e
não contra a imagem em si, pois essa seguiria a existir e, possivelmente
circular.
Apesar das imagens terem tal capacidade de se descolar do suporte, não podem, porém, existir desatreladas ao corpo, pois é ele o
produtor e o receptor delas. Sejam as imagens endógenas, como Belting
as designa, aquelas criadas por nós, ou as exógenas, as quais capitamos
do mundo exterior, sempre são dependentes do corpo que as produz ou
as capta, as dá sentido e as rememora. Conforme o autor, as “imagens
não circulam de forma incorpórea, pois povoam nosso corpo” (2014,
p.21), sendo esse uma “mídia viva” e exercendo um papel essencial
dentro dessa tríade. Logo, a medialidade das imagens, explica Belting
(2005, p.69),
é originada da analogia ao corpo físico e, incidentalmente,
do sentido em que nossos corpos físicos também funcionam
como meios – meios vivos contra meios fabricados. As imagens
acontecem entre nós, que as olhamos, e seus meios, com os
quais elas respondem ao nosso fitar. Elas se fiam em dois atos
simbólicos que envolvem nosso corpo vivo: o ato de fabricação
e o de percepção, sendo este último o propósito do anterior.
Uma característica interessante de Belting é buscar olhar as
imagens pra além da História da Arte, ou seja, fora daquilo que é classificado como arte por uma disciplina criada e desenvolvida por uma
escola europeia, da qual ele se coloca como parte. Nesse contexto,
Belting (2014, p. 29) vai ressaltar a importância da imagem funerária na
cultura ocidental para esse debate e criticar como ela ficou complemente
soterrada pelo discurso da arte. Ao longo dos capítulos de Antropologia
da imagem, o autor disserta sobre as relações entre corpo, meio e ima127 Segundo Fernandes (2017, p. 133), o cartaz se tratava da “reapropriação de uma polêmica
capa da revista Veja, que apresenta sobre um fundo vermelho uma ilustração da cabeça do
ex-presidente Lula sangrando. Na versão do Tupinambá Lambido, no lugar da cabeça de Lula
figura a cabeça de Michel Temer.
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gem a partir de distintos elementos, desde os crânios de Jericó (2014,
p. 185), que eram exumados, trabalhados e posto em local visível para
representar familiar após sua morte, até fotografias de famosos. Nesses
diversos diálogos, Belting (2014, p. 12), vai pontuar como muitas vezes
um corpo que já não existe ou não pode ser exibido, será substituído por
outro meio, o qual terá a função de representar aquele ausente, atuando
como corpo artificial.
O corpo e o meio estão implicados nos significados das imagens fúnebres, já que tais imagens são instaladas no corpo perdido do defunto. Mas estas, por seu turno, precisam de um corpo artificial a fim de poderem ocupar o lugar vago do defunto.
Este corpo artificial pode denominar-se “meio” (e não apenas
“material”), no sentido de que as imagens requerem um corporalização para adquirirem visibilidade. Para isso um corpo
perdido é permutado pelo corpo virtual da imagem.
Tal relação entre meio, imagem e corpo, traz à tona o paradoxo
da imagem como presença de uma ausência. Com efeito, as imagens
tornam visível a ausência física de um corpo, transformando- a em presença icônica. O retrato, a pedra, o bronze, possuiriam a única presença
que é possível, que é a ausência do objeto real.
A analogia do corpo entra de novo aqui em ação. A
relação entre ausência, entendida como invisibilidade, e presença, apreendida como visibilidade é, em última instância uma
experiencia corpórea. A memória é uma experiencia do corpo,
porque engendra imagens de eventos ou de pessoas ausentes de
outra época ou lugar que são recordados. Tendemos a imaginar como presente o que, de fato, esteve muito tempo ausente,
e atribuímos a mesma capacidade aos retratos (como fotos do
defunto) que fabricamos. A medialidade dos retratos é assim o
elo entre imagens e nossos corpos.
Aplicando o pensamento de Belting às obras de Tiempo de Mirar, de uma maneira pragmática podemos criar a seguinte trajetória. As
telas, murais e objetos de madeira produzidos por Torres García atuam,
de início, como suporte, um corpo artificial, que de certa forma dá vida
àquilo que está internalizado no artista. Surgem aqui as obras originais.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Com a destruição desse corpo de obras, a imagem delas poderia sobreviver somente na memória de algumas pessoas, como acontecia com
grande parte dos trabalhos perdidos até os achados dos anos 2000. Com
as fotografias, esboços, pedaços de tela entre outros vestígios encontrados, de um lado, há o que Lacassa chamou de “espólios de um homem
morto”. Tal analogia se faz bastante pertinente por se tratar de fragmentos das telas de Torres García, que não deixam de ser, de certa maneira,
os restos mortais do corpo da sua obra e da sua trajetória, rastros encontrados após o fatídico acidente. De outro lado, existem as fotografias,
que servem com suporte para as imagens, que migraram para esse outro
meio. Essas fotografias hoje representam parte das obras destruídas e, a
partir dando a imagem deles um novo meio físico, criam presença para
algo que está ausente.
No caso da exposição, ainda há um outro desdobramento, pois
as imagens não eram apresentados ao público o papel fotográfico em si,
mas exibidas por meio da realidade virtual. Assim, era a tela do celular
que servia como meio da imagem, ou seja, o corpo provisório necessário para que ela fosse captada pelo nosso corpo. Tal capacidade de “encarnação” das imagens é o que teria possibilitado que, após 40 anos do
incêndio no Brasil, dezenas de obras de Torres García pudessem mais
uma vez ser apreciada pelo público uruguaio. As imagens ali apresentadas, de certa forma, substituem a obra inexistente e fazem delas uma
espécie de aparição. Entretanto, por mais que possa parecer simples,
numa primeira mirada, é preciso trazer alguns questionamentos que vão
surgindo desse desdobramento. Essa intrincada rede intermedial vai se
tornando cada vez mais complexa, exigindo que as observações a cerca
dessas obras não se reduzam simplesmente aos elementos formais.
A primeira provocação que gostaria de levantar a partir dessa
leitura, surge com obras como as abaixo. Essas imagens, habitando o
papel fotográfico e se propagando no meio digital, são as sobrevivências de telas de Joaquín Torres García. Entretanto, elas apresentam de
maneira bastante incompleta o que eram as obras originais: a qualidade
das fotos é muito baixa, estão borradas e não possuem cor. O quanto
daquela obra inicialmente produzida pelo artista sobrevive nesse novo
meio? Até que ponto ela segue sendo aquela imagem que habitava a tela
e até que ponto não é um só vestígio? Daquele corpo inicial das pintuANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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ras, parece que agora, nesses casos, só restam vultos. [FIGURA 4; 5].
Essa relação da representação do corpo ausente com os rastros é
trazida por Hans Belting, mesmo que não de maneira direta. Por exemplo, Belting retoma uma das histórias de Plínio, o Velho, quando escreve sobre Cora, uma jovem que coríntia que traçou na parede o contorno
da sombra projetada pelo rosto de um rapaz por quem estava apaixonada e que partia para o estrangeiro. Ali, entre sombra e luz, não restaram
mais que vestígios do rapaz, entretanto lá estava a imagem, impressa
no meio midiático da parede. Belting vai associar esse episódio com
a fotografia, que hoje também imprime o objeto, paisagem ou pessoa
ausente. No caso de Torres García fica no papel fotográfico a impressão
da obra, porém me interessa aprofundar os discursos que elas carregam
enquanto representação, seja em função da sua recepção estética ou da
própria atribuição como obra ou como arquivo (que não necessariamente serão funções conflitantes).
Outra questão é que Hans Belting trata no texto, principalmente,
sobre corpos e imagens que possuem algum grau de representação mimética ou uma carga simbólica forte, por exemplo, as pinturas de santos
ou estátuas de líderes políticos. No caso de Torres García, assim como
outros artistas abstratos, havia a premissa da “não representação”, então
a imagem que estava nas suas telas, não dizia respeito a um outro corpo,
mas à pintura em si. A sobrevivência dessas obras expressa peculiaridades se comparado, por exemplo, a atos de iconoclastia em pinturas
religiosas, nas quais santos ou a imagem de Jesus Cristo são destruídas,
mas sobrevivem no imaginário e em outras produções artísticas, mesmo
que não sejam exatamente como aquelas. Frente a tal particularidade,
com o avanço da pesquisa busco entender as formas de sobrevivência
de obras cujos corpos foram destruídos, o que tais imagens e meios
podem nos dizer e quais as maneiras que elas podem voltar aos olhos
do público.
280
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Visuais) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
281
Imagens:
Figura 1: Exposição Tiempo de Mirar. Fonte: Museu Torres García.
Figura 2: Exposição Tiempo de Mirar. Fonte: Museu Torres García.
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Figura 3: Temer Vermelho, Tupinambá Lambido, 2017. Fonte: Tupinambá Lambido.
Figura 4: Garcia, Torres, Constructif symbolique, 1932. Fonte: Catálogo Raisonné, Museu
Torres García.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Figura 5: Garcia, Torres, Triangulo, 1946. Fonte: Catálogo Raisonné, Museu Torres García.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
PINTORAS E O ACERVO
MUSEOLÓGICO: EMBATES SOBRE
GÊNERO NA ARTE BRASILEIRA
Isabela Ramos de Oliveira128 – isaramosdeoliveira@gmail.com
Resumo: A Arte Moderna brasileira teve mulheres artistas como protagonistas da pintura social e estas foram as primeiras a obter destaque
na história da arte no país. Apesar deste fato, não se encontram obras
de artistas mulheres em quantidades expressivas nos museus de arte.
A partir desta indagação o presente trabalho pretende verificar a invisibilidade e/ou opacidade de artistas mulheres na exposição de longa
duração da Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do
Museu Nacional de Belas Artes, localizado no Rio de Janeiro. Mediante
a pretensão de minimizar as desigualdades presentes no meio artístico
e, quem sabe, na desigualdade que permeia a sociedade brasileira tem-se por objetivo compreender por que as pintoras estão ou não estão, e
se estão, porque em menor quantidade se comparadas aos pintores na
exposição. Com base na abordagem metodológica quantitativa apresentar-se-ão dados sobre obras da técnica óleo sobre tela expostas na
galeria do museu e seus correspondentes criadores durante o período de
1920 a 1930 com base no Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna
e Contemporânea de 2009. Além disso, considera-se a problematização do pensamento do século XIX que considerava as mulheres como
naturalmente incapazes de produzir gêneros artísticos elevados. Sendo
assim, será discutida a questão da mulher artista e sua profissionalização, essencialmente na Escola Nacional de Belas Artes que deu origem
ao referido Museu. Foram constatadas a partir do Catálogo cerca de
170 obras de diversas tipologias de acervo, entre elas pinturas, esculturas, fotografias, instalações, entre outras. O número de artistas do sexo
masculino é aproximadamente 75% (125 artistas), já o número de artis128 Esta publicação resulta da pesquisa de trabalho de conclusão de curso desenvolvida na
graduação intitulada “Artistas na Arte Moderna Brasileira de 1920 a 1930: o caso do Museu
Nacional de Belas Artes”, orientada pela Profa. Dra. Junia Gomes da Costa Guimarães e Silva
e pela Profa. Dra. Márcia Valéria Teixeira Rosa, desenvolvida Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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tas do sexo feminino é de aproximadamente 25% (42 artistas). Nota-se
prontamente a divergência entre o número de artistas do sexo feminino
e masculino a partir da seleção das obras em pinturas da técnica óleo
sobre tela produzidas durante os anos de 1920 a 1930. Podemos obter
o resultado de 13 obras, entre estas apenas 3 foram concebidas por artistas do sexo feminino e pertencem ao gênero de pintura de paisagem
e de pintura de gênero. As pintoras Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral por serem as criadoras das obras anteriormente referidas
terão suas biografias apresentadas. Buscando pela maior valorização
de mulheres tanto nos espaços museais quanto na sociedade e na arte
brasileiras faz-se justificável a relevância deste estudo.
Palavras-chave: Arte; Gênero; Mulheres artistas; Pinturas; MNBA.
Abstract: Brazilian Modern Art had women artists as protagonists of
social painting and they were the first to be highlighted in the history
of art in the country. Despite this fact, we cannot find works by women
artists in significant quantities in art museums. Based on this question,
the present work intends to verify the invisibility and/or opacity of women artists in the long term exhibition of the Gallery of Modern and
Contemporary Brazilian Art of the National Museum of Fine Arts, located in Rio de Janeiro. With the intention of minimizing the inequalities
present in the artistic environment and, who knows, in the inequality
that permeates Brazilian society, the aim is to understand why the female painters are or are not in the exhibition, and if they are, why they
are in a smaller quantity if compared to the painters in the exhibition.
Based on the quantitative methodological approach, data will be presented about oil on canvas works exhibited in the museum gallery and
their corresponding creators during the period from 1920 to 1930 based
on the 2009 Catalogue Gallery of Modern and Contemporary Brazilian
Art. In addition, we will consider the problematization of nineteenth
century thinking that considered women as naturally incapable of producing high artistic genres. Therefore, the question of the female artist
and her professionalization will be discussed, essentially at the National School of Fine Arts, which originated the aforementioned Museum.
From the Catalog we can see about 170 works of various types of collection, including paintings, sculptures, photographs, and installations,
among others. The number of male artists is approximately 75% (125
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
artists), while the number of female artists is approximately 25% (42
artists). The divergence between the number of female and male artists
is readily apparent from the selection of oil-on-canvas paintings produced during the 1920s to 1930s. We can obtain the result of 13 works,
among these only 3 were conceived by female artists and belong to the
genre of landscape painting and genre painting. The painters Georgina
de Albuquerque and Tarsila do Amaral, as the creators of the above
mentioned works, will have their biographies presented. Seeking for a
greater valorization of women both in museum spaces and in Brazilian
society and art, the relevance of this study is justified.
Keywords: Art; Gender; Women artists; Paintings; MNBA.
INTRODUÇÃO
A Arte Moderna brasileira teve mulheres artistas como protagonistas da pintura e foram as primeiras a obter destaque na história
da arte no país. Apesar deste fato, não se encontram obras de artistas
mulheres em quantidades expressivas nos museus de arte. A partir desta
indagação o presente trabalho pretende verificar a invisibilidade e/ou
opacidade de artistas mulheres na exposição de longa duração da Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do Museu Nacional de
Belas Artes, localizado no Rio de Janeiro.
Mediante a pretensão de minimizar as desigualdades presentes
no meio artístico e, quem sabe, na desigualdade que permeia a sociedade brasileira tem-se por objetivo compreender por que as pintoras
estão ou não estão, e se estão, porque em menor quantidade se comparadas aos pintores na exposição. Com base na abordagem metodológica
quantitativa apresentar-se-ão dados sobre obras da técnica óleo sobre
tela expostas na galeria do museu e seus correspondentes criadores durante o período de 1920 a 1930 com base no Catálogo Galeria de Arte
Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009.
Além disso, considera-se a problematização do pensamento do
século XIX que considerava as mulheres como naturalmente incapazes
de produzir gêneros artísticos elevados. Sendo assim, será discutida a
questão da mulher artista e sua profissionalização, essencialmente na
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Escola Nacional de Belas Artes que deu origem ao referido Museu. Foram constatadas a partir do Catálogo cerca de 170 obras de diversas
tipologias de acervo.
O número de artistas do sexo masculino é aproximadamente 75% (125 artistas), já o número de artistas do sexo feminino é de
aproximadamente 25% (42 artistas). Nota-se prontamente a divergência entre o número de artistas do sexo feminino e masculino a partir
da seleção das obras em pinturas da técnica óleo sobre tela produzidas
durante os anos de 1920 a 1930. Podemos obter o resultado de 13 obras,
entre estas apenas 3 foram concebidas por artistas do sexo feminino,
são estas, Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral que por serem as criadoras das obras anteriormente referidas terão suas biografias
apresentadas. Buscando pela maior valorização de mulheres tanto nos
espaços museais quanto na sociedade e na arte brasileiras faz-se justificável a relevância deste estudo.
1. AS MULHERES NA ACADEMIA
Em 1816 é criada a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios
que originou a Academia Imperial de Belas Artes 1826. Com Proclamação da República e o perecimento da instituição, o pedido de críticos de
arte, professores e alunos por uma modernização de métodos de ensino,
acaba servindo de alicerce para a criação da Escola Nacional de Belas
Artes. Nos primórdios do século XX, durante o período das reformas
urbanísticas do Prefeito Pereira Passos, foi construída a sede da Escola,
finalizada em 1908.
Apenas a partir de 1893, integrantes do sexo feminino foram
legalmente admitidas na ENBA. Porém, eram exigidas dos alunos qualificações específicas. O que tornou a situação feminino ainda mais
complicada, já que a grade curricular que cursavam no segundo grau
era distinta dos homens, não havia disponibilidade de escolas públicas,
a predominante tendência de educação na residência com currículos
que destacavam as prendas do lar e aos “trabalhos classificados como
femininos”, fez com que tivessem menos tempo para disciplinas profissionalizantes. Para ingressar nos cursos gerais da academia era preciso
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
se submeter a avaliações rígidas na Escola ou trazer exames do Colégio
Pedro II - único curso admitido para esse fim. Tal fato fez com que nos
cursos de livre frequência possamos notar a presença feminina, mesmo
que em menor número com relação aos homens, por conta da simplicidade de ingresso.
Ainda que aceitas nas instituições de ensino sofreram diversos
preconceitos sociais, como a ideia de que seriam “eternas amadoras”, e
a crença de que seriam incapazes de realizar obras em gêneros artísticos elevados, como a pintura histórica, por exemplo. Também havia o
problema acerca do decoro que impedia o acesso ao ensino de modelo
vivo por um período, privando-as de conhecimento pleno. A diferença
de tratamento por alguns professores também fazia parte do cotidiano
das alunas.
Mesmo que tenham adquirido o estatuto de legalidade, as alunas permaneceram no anonimato por muito tempo. A lei que previa a
separação entre gêneros nas salas de aula foi implantada no Brasil tardia e insuficientemente. Dessa forma, as mulheres puderam assistir às
aulas ao lado de seus colegas e não foram imediatamente segregadas.
No final de 1900 foi aberto o concurso para prêmio de viagem
atribuído aos alunos de escultura, para este apresentou-se apenas um
candidato, uma mulher: Julieta de França, que conseguiu viajar com
bolsa de estudos para Paris. Não houve cogitação de exclusão, julgamento diferenciado, menção a candidata ser uma mulher e nem mesmo
a necessidade de autorização do responsável familiar durante o processo de julgamento pelo conselho escolar.
Com o início do século XX é possível notar a participação de
mulheres na instituição e nas exposições gerais. Conquistaram o direito
de se formarem no ensino superior, um local próprio na instituição, o
direito à nomeação, o acesso pleno às aulas e o direito de concorrerem
aos prêmios de viagem ao exterior.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
289
2. INFLUÊNCIA DA SEMANA DE ARTE MODERNA
Mesmo nos primórdios do século XX, os pintores brasileiros
prezavam pela tradicional representação pictórica. Com a virada do século XIX para o XX, a declaração da República, o desenvolvimento das
cidades, a industrialização e a modificação da vida urbana e da sociedade, há o sentimento de mudança e progresso. Assim fez-se necessário
traduzir e refletir a “vida moderna” através da arte.
Contrários ao modelo acadêmico, os artistas modernistas estavam sem critérios preestabelecidos para instaurar sua linguagem. A arte
moderna estimula a liberdade de expressão, assim como a criatividade,
o que permitiu independência no desenvolvimento artístico pessoal de
cada artista. O território nacional passa a ser o foco da arte, características nacionais são pesquisadas. A ideia era criar uma arte exclusivamente brasileira.
Entre os anos de 1917 e 1921 os artistas modernos produzem
as primeiras obras revolucionárias. Mas é a partir da Semana de Arte
Moderna de 1922 que o movimento alcança seu apogeu.
A partir da Exposição de Pintura Moderna de Anita Malfatti
em 1917 se inicia o modernismo. Tornando-se protagonista de um momento de ruptura na arte brasileira, Anita pode ser considerada introdutora da arte moderna no país.
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o primeiro evento estruturado que ocorreu no Brasil ao modo das vanguardas europeias pode
ser considerado, em caráter simbólico, o “ato inaugural” da modernidade no país.
A conquista por igualdade se iniciou de fato com a Semana de
Arte Moderna de 1922 - não descartando as lutas e buscas por espaço/
reconhecimento nas artes antecedentes, essas artistas por mais importantes que fossem permanecem invisibilizadas na história da arte.
Através das ideias modernistas foi possível ajudar a dar visibilidade à arte produzida por mulheres, tanto que Anita Malfatti e Tarsila
do Amaral puderam ser reconhecidas como artistas mais importantes do
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
modernismo brasileiro. O que não quer dizer que o percurso realizado
por elas não tenha sido árduo, do mesmo modo que sua tentativa de
profissionalização.
3. PINTORAS MODERNAS NO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES
Os dados da pesquisa foram obtidos através do Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009. De acordo
com a tabela podemos observar os artistas e obras presentes na exposição, os critérios de seleção foram baseados, essencialmente, nas obras
datadas entre o período de 1920 a 1930, levando em consideração os
nomes dos artistas, suas datas de nascimento e morte, se estão designados ao sexo feminino ou masculino, além da data e do gênero de pintura
da obra exposta.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Tabela 1: Artistas e obras expostas na Galeria de Arte Moderna e Contemporânea do MNBA
Nome
Data
Sexo
Acervo
Data da obra
Antônio Gar-
1897-1929
M
“Manhã no
s/d
cia Bento
Armando
Porto”
1897-1992
M
Viana
Augusto José
“Primavera
M
“Vaso com
Marques
Flores”
Júnior
“No Espelho”
Pintura
Pintura de
paisagem
1926
em Flor”
1887-1960
Gênero de
Pintura de
gênero
s/d
Natureza
1926
Pintura de
morta
gênero
Cândido
1903-1962
M
Portinari
“Retrato de
1928
Retrato
s/d
Pintura de
Olegário
Mariano”
Eliseu Vis-
1896-1944
M
conti
“A caminho
da escola”
“Igreja de
gênero
s/d
Pintura de
c.1920
Pintura de
Santa Teresa”
Georgina de
1885-1962
F
“Raio de sol”
paisagem
Albuquerque
gênero
“Dia de
c.1926
verão”
Henrique
1892/1894-
Cavalleiro
1975
João Timóteo
1879-1930
M
“Vestido
M
“Paisagem”
gênero
1921
Retrato
1926
Pintura de
rosa”
da Costa
Lucílio de
paisagem
1877-1939
M
“Gávea Golf”
c.1928
Albuquerque
Tarsila do
Amaral
Pintura de
Pintura de
paisagem
1886-1973
F
“Autorretrato
1923
Retrato
ou Le manteau rouge”
Fonte: Elaborada pela autora a partir do Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
É indiscutível a maior presença de artistas homens com pinturas
expostas, ocupando 80% (8 artistas) dos trabalhos, já as mulheres representam apenas 20% (2 artistas) da autoria de obras na Galeria, sendo
possível comprovar a invisibilidade das mulheres artistas do período
estudado na Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do
Museu Nacional de Belas Artes. Faz-se necessário contemplar as artistas Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral, que são as únicas que
possuem obras do período selecionado expostas no espaço em questão.
3.1 GEORGINA DE ALBUQUERQUE
Georgina de Moura Andrade Albuquerque nasceu em Taubaté,
interior de São Paulo em 4 de fevereiro de 1882. Aos 15 anos de idade,
Georgina iniciou os estudos artísticos com o artista italiano Rosalbino
Santoro. Como aluna dele, expôs na décima Exposição Geral de Belas
Artes do Rio de Janeiro em 1903 pela primeira vez.
Em 1904, se muda para o Rio de Janeiro e ingressa na Escola
Nacional de Belas Artes. Lá ela foi aluna de Henrique Bernardelli e conheceu Lucílio de Albuquerque, seu futuro marido e aluno da instituição. Em 1905, participou da décima segunda Exposição Geral apenas
com o nome de seu mestre. No ano seguinte casou-se com Lucílio e vivendo por cinco anos em Paris ingressou na Académie Julian e também
na escola de belas artes, sendo “a única mulher compatriota a vencer as
exigentes provas de ingresso no período estudado”, conforme Simioni
em 2005.
A artista adere ao impressionismo como estilo tanto na iluminação e movimento quanto na temática de representação. Voltando ao
Brasil em 1911, participa regularmente de exposições também mantinha cursos de arte. Em 1922, é contratada para lecionar na ENBA. Já
em 1927, se candidata ao concurso para ocupar o cargo de professora
de pintura e apesar de se classificar em primeiro lugar pelo comitê julgador, é impedida de assumir o cargo, pois a Congregação da Escola
enviou à presidência da república o nome do candidato que ocupou o
segundo lugar.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
293
De 1927 a 1948 leciona desenho artístico na ENBA. De 1935
até 1939, é professora do Instituto de Artes da Universidade do Distrito
Federal lecionando artes decorativas. Em 1948 volta a fazer o concurso
para lecionar pintura na ENBA e dessa vez, ocupando novamente o
primeiro lugar, assume o cargo. Posteriormente, em 1952, é nomeada a
primeira e única diretora da Escola Nacional de Belas Artes, ocupando
o cargo por três anos, conforme mandato.
Aos 70 anos de idade representou a Escola no Congresso da
Associação Internacional de Artes Plásticas da UNESCO, sendo nomeada presidente da entidade. Com relação a exposições, a artista teve
vasta participação ao longo dos anos em território nacional e até mesmo
no exterior.
Georgina de Albuquerque foi uma artista que recebeu diversos
prêmios em salões nacionais, especialmente por conta das exposições
da ENBA - onde marca presença desde 1903. Vindo a óbito em 28 de
agosto de 1962.
A temática da artista possui flexível repertório, porém tem a
mulher como personagem principal em suas obras. Essa mulher representada pela artista não é sexualizada como objeto de desejo ou frágil à
espera de salvação, pelo contrário, Georgina retrata a mulher republicana, trabalhadora e até mesmo heroína.
Além desse traço inovador, Georgina foi a primeira artista
brasileira a se dedicar à produção de uma pintura histórica até 1922,
vista como gênero mais elevado das modalidades artísticas. Rompendo
assim, com a crença do século XIX que mulheres eram incapazes de
realizar gêneros de pintura elevados.
Georgina, após o falecimento de seu marido, se dedicou a criação de um museu em homenagem ao mesmo, para evitar que suas obras
se dispersassem, o Museu Lucílio de Albuquerque. Fundado em 1943,
no bairro de Laranjeiras, Rio De Janeiro, em sua residência. No local,
a artista além de diretora do museu, organizou um curso gratuito de desenho e pintura para crianças, fato inédito à época tendo em vista que o
ensino das artes não era direcionado ao público infantil.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
3.2 TARSILA DO AMARAL
Nascida em 1° de setembro de 1886 em Rafard, à época distrito da cidade de Capivari, no estado de São Paulo. Tarsila de Aguiar do
Amaral era descendente de uma família de gerações de cafeicultores,
portanto ocupava uma condição social privilegiada. Em 1902 foi estudar em Barcelona, na Espanha, onde descobriu a pintura.
Regressando ao seu país de origem em 1904, casou-se com
André Teixeira Pinto e após dois anos tiveram a filha Dulce. O casamento terminou brevemente já que os interesses do casal divergiam.
Em 1916 inicia as aulas de modelagem e um ano depois pratica desenho
e pintura.
Embarca para Paris em 1920. Matricula-se na Academia Julian
e comparece aos ateliês de Émile Renard. Teve uma de suas telas de
1922 aceita no Salon Officiel des Artistes Français, intitulada Figura
(Retrato de Mulher), a qual chamava de Passaporte, devido ao obstáculo vencido.
Quatro meses após a Semana de Arte Moderna de 1922, a pintora chega ao Brasil. Mesmo que ainda não integrada à Arte Moderna,
forma, a partir do contato desta com os modernistas, o Grupo dos Cinco, que tinha como participantes a própria Tarsila, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
Em fevereiro de 1922, se instala em Paris junto a Oswald de
Andrade e inicia efetivamente sua descoberta da Arte Moderna. No ano
seguinte, retorna ao Brasil e se declara cubista. Em 1924 realiza, com
Oswald e os amigos, a denominada viagem de redescoberta do Brasil, o
que influenciou, principalmente, seus esquemas cromáticos.
A chamada fase pau brasil perdurou de 1924 a 1927 e foi um
marco da modernidade do país na época. Os elementos pictóricos das
obras desse período encontram-se constantemente em tensão e acumulados no plano, o que produz novos sentidos para compreensão do alcance e limites de definição de uma identidade moderna brasileira na
arte da época.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Em 1926 inaugurou uma exposição na Galerie Percier em Paris. A pintora casou-se com Oswald de Andrade no mesmo ano. Dois
anos depois o presenteia com a obra Abaporu - o homem que come
gente.
A partir de 1928, a artista concretiza em sua trajetória pictórica
um novo momento, caracterizado pela monumentalização e redução em
números dos elementos, a volumetria é padronizada no espaço, assim
como a equivalência humano-vegetal. Somam-se a esses elementos, as
deformações nos corpos que remetem ao Surrealismo e a representação
de espaços livres abertos.
Realiza sua primeira exposição no Brasil em julho de 1929.
Separa-se de Oswald em 1931, no mesmo período assumiu o cargo de
diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, dando início a seu catálogo.
Tarsila viajou para a União Soviética em 1931 e expôs obras
no Museu de Artes Ocidentais de Moscou. Na sua volta para França
estava mergulhada no espírito de atividades operárias. Quando retorna
ao Brasil, no ano seguinte, é presa durante um mês por razões políticas.
Executou retrospectiva no Palace Hotel no Rio de Janeiro. Somado a isso, apresentou uma convenção acerca da arte do cartaz na
URSS ilustrada por exemplares de sua coleção no Clube dos Artistas
Modernos em São Paulo. No próximo ano, iniciou a escrita regular à
imprensa. Em 1938 retoma os temas de infância na pintura. Regressa ao
clima onírico da Fase Antropofágica em 1946 e nos anos de 1950 recupera da Fase Pau-Brasil a temática brasileira. No ano seguinte é afortunada com o Prêmio Aquisição da I Bienal Internacional de São Paulo.
No ano de 1964 participou da trigésima segunda Bienal de Veneza. Vem a óbito em 17 de janeiro de 1973 em São Paulo. Tarsila do
Amaral foi de suma importância para a arte brasileira e apesar de não
ter participado da Semana de Arte Moderna tornou-se o ícone do movimento modernista.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após aplicar a filtragem nas 170 obras do catálogo, encontramos 10 artistas no total. Apenas 20% (2) são mulheres. Confirma-se
então, maior quantidade de artistas homens em exposição na Galeria o
que comprova a hipótese de que as pintoras foram invisibilizadas.
Como é possível verificar ao longo do trabalho e através deste
compreender como as artistas foram tratadas na Galeria faz-se necessário considerar que a profissionalização das mulheres nas artes se deu
tardiamente, de forma desigual e segregadora, isso sem mencionar o
preconceito sofrido pelas alunas e a base curricular diferenciada, o que
reduziu as chances de entrada na academia. Foram consideradas eternas
amadoras, impedidas de frequentar aulas, mantidas no anonimato. Tais
fatos também podem explicar o motivo das mulheres artistas estarem
em menor número se comparadas aos homens na Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea.
Apesar de o modernismo ter iniciado o reconhecimento das
mulheres na arte brasileira, estas ainda não tiveram suas obras expostas
na mesma quantidade que os artistas homens, sendo assim, invisibilizadas na galeria.
Leva-se em consideração a data em que a exposição foi concebida, que apesar de próxima da atualidade, não apresentava essa discussão com a ênfase dos dias atuais, tendo em vista também a provável
não intenção da curadoria em dar destaque à produção de pintoras. É
preciso considerar também a influência dos impasses de profissionalização das mulheres artistas.
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300
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
ARTE, CRIAÇÃO ARTESANAL E
MEMÓRIA BIOCULTURAL
Jancileide Souza dos Santos129 – jancileide.santos@ufob.edu.br
Resumo: O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa de doutoramento desenvolvida pela autora no Programa de Pós-graduação em
Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia, e tem o propósito de
refletir sobre o lugar da arte das mulheres que trabalham com a criação
artesanal no Oeste baiano, bem como o seu o papel na preservação da
biodiversidade do Cerrado. Essas mulheres têm garantido a sobrevivência de rituais do fazer artesanal - ao lado de inovações e recriações-,
e de procedimentos tradicionais de uso e aproveitamento dos recursos
naturais. A produção artesanal feita com o barro e as fibras vegetais se
desenvolve na região por meio do conhecimento que essas mulheres
têm sobre a biodiversidade e da re-existência da memória biocultural.
Mulheres que vivem em cidades e zonas rurais do Cerrado baiano conservam os saberes sobre modelagem do barro, extração da seda e palha
de palmeiras para fazer tramas e urdiduras, produção de tintas a partir
de cascas, entrecascas, folhas e raízes de plantas, tecnologias ancestrais de criação artística e que se constitui a base de sustento de muitas
famílias que moram nessa região do país. A criação artesanal com esses materiais define as características sociais, ambientais e culturais de
comunidades que ainda possuem uma relação de subsistência com o
meio ambiente, mesmo com o avanço das atividades agroindustriais e a
modernização do campo e sua consequente ameaça a sobrevivência de
práticas, saberes e fazeres adquiridos durante séculos e que se transformam e se reinventam nos tempos atuais.
Palavras-chave: Arte; Criação artesanal; Memória Biocultural; Cerrado baiano.
129 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Arte, Memória e Re-exis-
tência: a criação artesanal das mulheres no Oeste baiano”, orientada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto
Ribeiro Freire, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal da Bahia.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
301
Abstract: The present work is the result of a doctoral research developed by the author in the Postgraduate Program in Visual Arts at the
Federal University of Bahia, and aims to reflect on the place of art by
women who work with craft creation in Western Bahia, as well as their
role in preserving the biodiversity of the Cerrado. These women have
ensured the survival of craft-making rituals - beside innovations and
recreations -, and of traditional procedures for the use and harnessing
of natural resources. The handicraft production made with clay and vegetable fibres is developed in the region through the knowledge these
women have about biodiversity and the re-existence of biocultural memory. Women who live in cities and rural areas of the Bahian Cerrado preserve their knowledge about modelling clay, extracting silk and
straw from palm trees to make plaits and warps, and producing dyes
from bark, inter bark, leaves and roots of plants, ancestral technologies of artistic creation that constitute the basis of sustenance for many
families living in this region of the country. Craftsmanship with these
materials defines the social, environmental and cultural characteristics of communities that still have a subsistence relationship with the
environment, even with the advance of agro-industrial activities and
the modernisation of the countryside and its consequent threat to the
survival of practices, knowledge and skills acquired over centuries and
which are transformed and reinvented in current.
Key-words: Art; Handicraft Creation; Biocultural Memory; Bahian
Cerrado.
INTRODUÇÃO
A arte produzida com fibras naturais e com o barro é uma expressão de origem ancestral herdada e atualizada por distintos povos na
África, América Latina e o Caribe, principalmente os povos indígenas e
afrolatinos. Essa arte re-existe nas mãos de artesãs que produzem trançados de fibras vegetais, potes, panelas, fogareiros, filtros e moringas
de barro em distintas comunidades rurais do Brasil. Entretanto, na atualidade, muitas comunidades de artesãs que empregam a tecnologia artesanal originária de comunidades negras e indígenas não reconhecem
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
esse modo de fazer como uma tradição cultural herdada desses povos.
No Cerrado baiano, as mulheres trabalham na roça, cultivam a
terra, fazem medicamentos com plantas, produzem utensílios de uso
doméstico e arte com fibras naturais e com o barro, protegem os rios e
sabem gerir os recursos naturais de forma a não degradar a biodiversidade. Essas mulheres são as principais atingidas pelas ações predatórias
na região, principalmente porque necessitam dos recursos naturais para
sobreviver, uma vez que alimentam suas famílias com o que colhem e
dependem dos rios e da vegetação nativa para produzir medicamentos,
comida e arte. A monocultura, o extrativismo e a posse desigual de terras e águas no Cerrado têm mudado a realidade de vida dessas mulheres
e de toda a comunidade.
Essa região do Brasil tem uma história marcada por conflitos
sociais e disputas incitadas pela concentração da propriedade fundiária.
A partir do processo de modernização da tecnologia agrícola de grãos,
introduzida no Oeste baiano no princípio da década de 1980, o meio
ambiente começou a ser modificado, considerando que até então essa
região era pouco explorada pelos grandes produtores rurais no que se
refere ao desenvolvimento do agronegócio, como aponta o sociólogo
Clóvis Caribé Menezes dos Santos (2008). De acordo com o pesquisador, esta situação mudou nas últimas décadas com a ocupação da região
com a moderna agricultura de grãos, que se transformou na principal
atividade econômica do setor agrícola do Oeste da Bahia.
A perda e a destruição da vegetação do Cerrado baiano em decorrência da monocultura e da mecanização da agricultura podem levar
ao fim da produção artesanal, que é realizada ainda hoje com base nas
matérias-primas extraídas da natureza, a exemplo das fibras vegetais –
com a diminuição da água e a morte dos rios, as plantas dos Cerrados
tendem a desaparecer.
1. ARTE E MEMÓRIA BIOCULTURAL NO CERRADO BAIANO
No Cerrado baiano, o uso de técnicas e procedimentos de criação artística com matérias-primas extraídas do meio ambiente é fruto de
uma relação de vida das artesãs com o tempo e o espaço/território em
que vivem. Essa relação ocorre no interior de um fluxo natural de muANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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danças ambientais, como a sazonalidade do tempo de colheita da vegetação nativa e os ciclos de baixas e cheias dos rios, assim como também
acompanha o impacto dos efeitos nocivos da degradação humana ao
meio ambiente, que tem provocado a destruição da biodiversidade. O
modo de adaptação a essas mudanças não é similar em todas as comunidades que produzem arte na região, no entanto, independentemente
da forma como essas mulheres trabalham, as técnicas e os conhecimentos herdados são muitas vezes adaptados ao seu meio externo.
O trabalho dessas mulheres possui uma complexidade que
envolve mecanismos biológicos, culturais, econômicos e sociais, um
procedimento múltiplo que envolve distintos processos. A artesã que
trabalha em povoados ou comunidades nas zonas rurais no Oeste baiano apropria-se do restante da natureza a partir do uso de determinadas
estratégias, que podem ser definidas, segundo Víctor Toledo e Narciso Barrera-Bassols (2008), como os meios pelos quais cada família
organiza, pensa e reconhece os recursos naturais, assim como o seu
trabalho e a forma de manter e reproduzir a sua existência130.
Os mecanismos de sobrevivência ou re-existência dessas comunidades transcorrem no tempo e no território. Milton Santos (1998,
p.16) define território como o espaço usado (ações e objetos), apropriado, “sinônimo de espaço humano, espaço habitado”, o qual “pode
ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede”. O território,
segundo Haesbaert (2007, p. 22), é configurado a partir daqueles que
o constroem, como os indivíduos, o Estado, as instituições religiosas
e os grupos sociais. É a partir do território que emerge a territorialidade, ou seja, as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais
que estabelecem as suas fronteiras. Maria Amélia Bulhões e Maria
Lúcia Bastos Kern (2002, p. 9), definem a territorialidade como o “espaço de práticas culturais, nas quais se criam mecanismos identitários
de representação a partir da memória coletiva, das suas singularidades culturais e das suas paisagens”. Nesse sentido, a territorialidade
enquanto espaço de práticas culturais e identitárias é expressão de
re-existência da memória biocultural e coletiva das comunidades tradicionais.
130 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 55
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
No território, as artesãs utilizam todos os recursos naturais disponíveis do seu entorno para a sua sobrevivência, além de encontrarem forças para resistir às formas de dominação desse espaço, como a
expansão do agronegócio e os problemas decorrentes de tal processo,
bem como a falta de incentivo e valorização da sua arte, que tem
ameaçado a sobrevivência de práticas culturais ancestrais das comunidades.
No que diz respeito à dimensão temporal, as artesãs buscam
obter uma quantidade maior de materiais que a vegetação nativa ou
os rios oferecem ao longo dos ciclos biogeográficos, para garantir a
produção de artesanato e de alimentos básicos para a sua vida. Essas
mulheres realizam atividades como a colheita de ervas para serem utilizadas como medicamento, a coleta e a separação da seda e da palha
dos buritizais para a produção de redes, tapetes, esteiras e cestos, do
capim dourado para a criação de biojoias, fruteiras, bolsas e chapéus,
de resinas e corantes naturais para a pigmentação das fibras, assim
como a retirada do barro para a produção de potes, panelas e objetos
nos períodos de seca, os quais oferecem um material de melhor qualidade para a modelagem.
A produção com fibras vegetais é a que mais se sobressai no
panorama da atividade artesanal do Oeste da Bahia, devido à riqueza
de matéria-prima vegetal procedente de palmeiras – buriti, carnaúba
e babaçu – e de outras plantas, como a bananeira, a taboa e a palha de
milho, que crescem na região. As técnicas e o estilo de produção com
fibras vegetais foram herdados da tradição artesanal indígena e reexistem, por exemplo, em comunidades rurais do Cerrado baiano, como
em Ilha do Vítor, situada na zona rural do município de São Desidério,
onde as artesãs, a partir da seda e da palha retirada da folha da palmeira
do buriti, produzem redes, cestos, balaios e chapéus. No município de
Cocos, extremo Oeste da Bahia, na região dos Gerais que integram o
Parque Nacional Grande Sertão Veredas, há uma tradição de fiação e
tecelagem de algodão e buriti. Artesãs das comunidades de Canguçu,
Porcos e Cajueiro, zona rural de Cocos, produzem esteiras, redes de
dormir, tapetes e bolsas, assim como criam jogos americanos e caixas.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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No processo de criação artística com a fibra do buriti, palmeira
que cresce nas veredas do Cerrado, após a extração do broto ou olho
dos buritizais, tem início a etapa de separação da seda e da palha pelas
artesãs. A seda do buriti é uma fibra mais fina e lisa que reveste a palha.
Com a ajuda de uma faca, usando as mãos e os pés, e sentadas no chão,
as artesãs do município de Cocos separam as fibras. Primeiro, separam
a seda da palha com a ajuda dos dedos, depois puxam a palha para
baixo com a ajuda das mãos e enrolam o talo, em seguida colocam no
sol. Tanto a seda como a palha são expostas ao sol ou permanecem na
sombra para secar. Geralmente, essa etapa é realizada em um período
de dois a três dias.
A segunda etapa de trabalho com as fibras do buriti é o tingimento da seda, o qual é realizado a partir da aplicação de distintos pigmentos naturais extraídos do entorno onde residem as artesãs. As frutas
do Cerrado e suas sementes, assim como as cascas, entrecascas e folhas,
são utilizadas nesse processo. Em geral, as artesãs pintam as fibras com
as tonalidades preta, roxa, amarela, marrom, vermelha e azul. A fibra,
em sua cor natural, é tida como cor branca. As únicas cores que não são
extraídas de pigmentos naturais são o azul e o vermelho – embora esta
cor também seja tingida com pigmentos naturais, a escassez da planta
que fornece o tom vermelho tem levado as artesãs a utilizar tinturas
industrializadas.
As artesãs utilizam diversas plantas do Cerrado para colorir as
fibras, como a muçambé do brejo e a muçambé do Cerrado, e aproveitam as suas folhas para obter a tonalidade preta, assim como utilizam
a fruta do pó-terra, a casca do pequi e a entrecasca da pacari para obter
a mesma cor. Para obter uma tonalidade amarela, as artesãs utilizam a
amarelinha do brejo. Sobre a produção da cor amarela com esta planta,
Natalina Nogueira da Costa, artesã que trabalha com a criação de redes,
esteiras e outros objetos com a fibra do buriti no povoado de Porcos na
zona rural de Cocos (Bahia), comenta que, “você tem que pegar ela, põe
no sol para secar, na hora que tiver seca você leva ela pro pilão, mói
ela, bota na vasilha e põe para cozinhar”131. No processo de cocção da
cor amarela, a artesã ainda coloca o barro, que tem função de mordente
131 Informação verbal. Natalina Nogueira da Costa. Depoimento oral em 9 de agosto de 2019.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
(fixador). Segundo Natalina, “a gente pega o barro, coloca na água, põe
para ferver e dá o caldo amarelo”. De acordo com a artesã, a amarelinha
do brejo “rapidinho pega, no mesmo dia dá”. Natalina também diz que
a semente do urucum é rápida para realizar o tingimento, e ainda conta
que “a gente planta o urucum, as outras a gente tem que caçar”132.
Nas comunidades tradicionais ou indígenas, segundo Toledo e
Barrera-Bassols, os intercâmbios econômicos permitem que as populações rurais obtenham renda com a venda dos produtos ou com a troca
de mercadorias, ao mesmo tempo em que se apropriam da paisagem e
ainda favorecem a biodiversidade. Essa estratégia, de caráter de múltiplo uso, de acordo com esses autores, permite que esses produtores
realizem o jogo da subsistência através da manipulação dos componentes geográfico, ecológico, biológico e genético (genes, espécies, solos,
topografia, clima, água e espaço), e dos processos ecológicos (sucessão,
ciclos de vida e movimento de materiais)133.
De acordo com os pesquisadores, a diversidade de recursos disponíveis impulsiona as famílias a realizar uma produção especializada a
partir do uso da vegetação nativa e da reciclagem de materiais integrada
a práticas como a agricultura, a criação de animais e o artesanato134. Sobre esse aspecto, no processo de criação com a seda e a palha do buriti
no Oeste baiano, as artesãs também realizam reciclagens de materiais.
Tradicionalmente, a trama das redes de dormir e das esteiras é produzida com a palha do buriti, sem coloração, assim como também pode ser
feita com pequenas varetas extraídas da folha do buriti. Na atualidade,
a trama das esteiras e de outras peças também tem sido elaborada com a
palha do buriti intercalada com papel laminado de tiras de embalagens
recicladas de café, biscoitos e outros produtos industrializados, TNT
(tecido não tecido) e tecidos de algodão.
A arte das mulheres que trabalham com as fibras extraídas de
palmeiras desvela a sobrevivência da memória biocultural dessas comunidades. Utilizo o conceito de memória biocultural do ecólogo Víctor M. Toledo e do geógrafo Narciso Barrera-Bassols (2008), em seus
estudos sobre povos indígenas e comunidades tradicionais, e que deu
132 Informação verbal. Natalina Nogueira da Costa. Depoimento oral em 9 de agosto de 2019.
133 Cf. TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 57, nossa tradução.
134 Cf. TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 56-57, nossa tradução.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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fruto ao livro “A memória biocultural: a importancia ecológica das sabedorias tradicionais”. Esses pesquisadores afirmam que a memória da
nossa espécie possui três distintas dimensões: a genética, a linguística e
a cognitiva, as quais se manifestam na nossa diversidade de genes, línguas e conhecimentos. As dimensões genética e linguística demarcam a
nossa história a partir de um determinado contexto espacial, ecológico e
geográfico e configuram as relações dos sujeitos com o meio ambiente.
A dimensão cognitiva sintetiza, interpreta e explica essa experiência
histórica quando revela os mecanismos adotados pelas populações no
processo de adaptação às condições de vida na Terra135.
De acordo com os pesquisadores, a dimensão cognitiva permitiu
à espécie humana manter uma relação de intercâmbio e coexistência
com a natureza, e o resultado desse processo de assimilações, acumulações e experiências está contido, por exemplo, na memória e nos modos de criação artesanal das mulheres que herdaram de seus ancestrais
o conhecimento e saberes das técnicas sobre o processo criativo com
distintos materiais disponíveis em seu entorno. Essas três dimensões
colocam a memória como o encontro entre o biológico e o cultural, de
modo que a capacidade da espécie humana de conhecer e aproveitar os
recursos naturais do seu entorno, consoante Victor Toledo e Narciso
Barrera-Bassols, ocorreu graças à permanência dessa memória136.
O capitalismo globalizado tem ameaçado a memória biocultural
das comunidades tradicionais. Este projeto, nas palavras de Catherine Walsh (2017, p. 18), “capitalista-modernizador-extrativista com sua
destruição e desapropriação da Mãe Natureza e dos modos de vida em
/ de relacionalidade”, caracteriza os processos sociais, políticos, tecnológicos e econômicos em que vivemos na atualidade. Para Walsh, as estratégias de resistência e de luta dos povos indígenas e africanos contra
a dominação colonial são uma aposta pedagógica decolonial, isto é, um
caminho de luta frente às imposições da matriz colonial de poder137. Sobre a importância da memória ancestral, o líder indígena Ailton Krenak
(2019) reflete:
135 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 14
136 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 15.
137 WALSH, 2017, p. 25-26.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70%
estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta em favelas
e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos.
Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua
memória ancestral, com as referências que dão sustentação a
uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos138.
A memória coletiva e biocultural tem um importante papel no
processo de reafirmação e reinvenção de tradições, assim como abre um
caminho para as lutas pelo direito de existir, ser, pensar, fazer e criar de
distintas sociedades e culturas.
2. MULHERES RURAIS E MEMÓRIA BIOCULTURAL: UMA
REFLEXÃO INTERSECCIONAL
Em um momento em que o mundo enfrenta grandes impactos
ambientais decorrentes da destruição da biodiversidade e da natureza,
temos exemplos de ações de conservação e preservação do meio ambiente realizadas por mulheres em muitas comunidades do interior do
país. Responsável por manter a tradição do cuidado com a terra, com
os rios e com as plantas desde tempos imemoriais, a relação que as mulheres estabeleceram com a biodiversidade durante a história garantiu
a sobrevivência de suas famílias, o equilíbrio dos ecossistemas e a preservação de todo o restante da natureza em diversas partes do mundo.
As mulheres que trabalham como artesãs rurais, como agricultoras, por
exemplo, detêm um conhecimento ecológico amplo sobre o manejo dos
recursos hídricos, da terra e da vegetação.
O atlas das mulheres rurais da América Latina e Caribe, publicado em 2017 (NOBRE; HORA, 2017), apresenta a situação das mulheres rurais em relação ao estado dos direitos delas, suas dimensões
sociais e econômicas, sua segurança alimentar e nutricional e os principais desafios das políticas públicas. A publicação define a diversidade
138 KRENAK, 2019, p. 14.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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das mulheres, de todas as gerações, que vivem em campos, bosques,
selvas e lugares próximos aos cursos de água, como mulheres indígenas, do campo e afrodescendentes, as quais exercem distintas atividades
como agricultoras, coletoras de sementes, fibras e frutas139, pescadoras
ou assalariadas, assim como aquelas que desempenham atividades não
agrícolas, como o artesanato. O atlas destaca o papel das mulheres rurais como protagonistas na transmissão de conhecimentos, de mãe para
filha, de tradições orais próprias de sua cultura, de práticas e saberes
técnicos sobre a seleção de sementes, reprodução de plantas e usos medicinais de ervas, que são passados de geração em geração, além do
trabalho de cuidado da família e dos filhos e de atividades de produção
de artesanato e de utensílios. A publicação também coloca em evidência
o papel das mulheres, assim como o dos homens, como viabilizadoras
de suas histórias de resistência e de organização do trabalho e do território através de suas denominações, como os quilombos no Brasil, os
palenques na Colômbia, os cumes na Venezuela e os garífunas na costa
atlântica de Belize, Honduras, Guatemala e Nicarágua.
De acordo com o atlas, os elementos comuns que caracterizam
a vida das mulheres rurais na América Latina e no Caribe são a sobrecarga laboral, em decorrência da divisão sexual do trabalho, a falta de
visibilidade do trabalho reprodutivo, produtivo e de autoconsumo, o
baixo acesso aos meios de produção (água, terra, sementes e insumos),
a baixa qualidade para a produção agropastoril das terras sob seu controle, as dificuldades para participar da vida política e a baixa autonomia econômica e de decisão, ao lado da escassa proteção social.
Segundo o atlas, a divisão sexual do trabalho é organizada a partir do princípio de separação e hierarquia. Os trabalhos atribuídos aos
homens estão associados à produção de bens e serviços para o mercado
e são mais valorizados. Para as mulheres, são atribuídos os trabalhos
domésticos, de cuidado e de reprodução da vida. De acordo com a pu139 O atlas revela que, no Brasil, mais de 300 mil mulheres trabalham como quebradeiras de
coco babaçu em cinco diferentes estados. Essas mulheres coletam o coco das palmeiras que
caem no solo e depois quebram as cascas do fruto. Segundo o atlas, a maioria das palmeiras babaçu estão localizadas em terras privadas, onde seus donos impõem humilhações e ameaças às
mulheres coletoras. Muitas quebradeiras de coco estão organizadas no Movimento Interestatal
de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e desenvolvem atividades de produção de óleo de
coco, farinha e sabão.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
blicação, o trabalho produtivo realizado por mulheres rurais é considerado como ajuda. Nesse contexto, o maior desafio reside em viabilizar e
promover o reconhecimento do trabalho das mulheres, assim como dos
conhecimentos associados a ele.
Em relação à propriedade da terra, o atlas coloca que há uma
distinção das condições de homens e mulheres. A desigualdade de acesso à propriedade dos meios de produção é um aspecto marcante das
desigualdades de gênero nas zonas rurais, as quais podem ser vistas em
mecanismos do mercado e nos costumes patriarcais que desrespeitam
as legislações pelo direito à herança. De acordo com o atlas, as medidas
adotadas para assegurar o acesso igualitário das mulheres à terra, como
a reforma agrária e as políticas públicas de distribuição de terras, ainda
têm um alcance muito limitado.
O atlas também aponta um ritmo menor de diminuição da pobreza das mulheres na América Latina e no Caribe em relação aos homens. De acordo a publicação, a partir de um corte étnico, os povos
indígenas e afrodescendentes tendem a ser mais pobres. Considerando
as áreas geográficas, os residentes das zonas rurais têm menor acesso a
bens e serviços. E, segundo grupos de idade, as maiores taxas de pobreza estão concentradas entre crianças e idosos. Em relação ao corte de
gênero, a receita de homens que não são indígenas nem afrodescendentes é quatro vezes maior do que a de mulheres indígenas e duas vezes
maior do que de mulheres afrodescendentes. Em 2014, para cada 100
homens que viviam em casas humildes na América Latina e no Caribe,
havia 118 mulheres em situação similar140.
O atlas alerta para a necessidade de promoção da cidadania, da
proteção social e de ações de combate à violência contra a mulher e
recomenda um avanço nas políticas públicas para a redução das desigualdades sociais das mulheres. O material também aponta a necessidade de melhorias no acesso das mulheres à água e à terra, por meio da
efetivação das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável
140 De acordo com a FAO, a prevalência média da segurança alimentar severa e moderada,
segundo gênero e região, atinge 30% das mulheres e cerca de 25% dos homens. No caso da
obesidade, essa assimetria ainda é maior: a proporção de mulheres com obesidade é superior
à dos homens, e, em mais de 20 países, a diferença é mais de 10 pontos percentuais maior em
relação à obesidade masculina.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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da Terra. Recomenda também a melhoria na oferta de serviços e de
apoio à produção e ao financiamento por meio da implementação da
Estratégia de Gênero do Plano de Segurança Alimentar da Comunidade
de Estados Latino-americanos (CELAC). O documento ainda enfatiza
a necessidade da participação social das mulheres na política pública,
assim como coloca a importância do monitoramento dessas políticas, e
propõe que os países construam mecanismos e instrumentos em consonância com a Agenda 2030 para o avanço dos direitos das mulheres da
América Latina e Caribe (NOBRE; HORA, 2017).
O acesso a bens e serviços e a garantia dos direitos das mulheres rurais são fatores indispensáveis para o desenvolvimento social
e ecológico. Mais oportunidades e reconhecimento do trabalho dessas
mulheres são medidas eficazes para a diminuição das desigualdades sociais e de gênero e das discriminações de raça, pois sabemos que as
condições de vulnerabilidade social em que se encontram as mulheres
rurais na atualidade são fruto das experiências de opressão, dominação,
exclusão e subordinação que sempre atravessaram essa categoria. Sobre
esse aspecto, Lélia Gonzalez (2020) traz uma importante reflexão sobre
a estrutura de opressão das mulheres na América Latina:
É importante insistir que, no quadro das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está
inscrita e muito bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não brancas na região: as amefricanas e as
ameríndias. O duplo caráter de sua condição biológica – racial
e/ou sexual – as tornam as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque esse sistema transforma diferenças em
desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter
triplo, dada a sua posição de classe: as mulheres ameríndias e
amefricanas são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano141.
Lélia Gonzalez considera as condições de subordinação e opressão das mulheres indígenas e afrodescendentes como o resultado da
questão racial, sexual e de classe, e, por essa razão, essas mulheres são
as mais atingidas pelas crises sociais, econômicas, culturais e políticas
141 GONZALEZ, 2020, p. 145-146.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
em nosso continente. De acordo com Gonzalez, devido a essa condição,
as mulheres são os sujeitos “que sofrem mais brutalmente os efeitos da
crise. Se se pensa no tipo de modelo econômico adotado e no tipo de
modernização que decorre dele – conservador e excludente, devido aos
seus efeitos de concentração de renda e de benefícios sociais –, não é
difícil concluir a situação dessas mulheres”142. Não é difícil concluir
também que a falta de reconhecimento e de visibilidade do trabalho
das artesãs que vivem em comunidades rurais também é fruto das interconexões das opressões de gênero, classe social, raça e território, uma
vez que essas mulheres sofrem os efeitos históricos do colonialismo do
poder, do ver e do racismo, de modo que o seu trabalho criativo não é
visto como arte e sua produção é colocada às margens dos sistemas de
arte e de cultura. Em relação à dominação patriarcal e o respeito à vida
das mulheres rurais, Vandana Shiva (2004) argumenta:
A recuperação do princípio feminino permite transcender os
fundamentos patriarcais do mau desenvolvimento e transformá-los. Permite redefinir o crescimento e a produtividade como
categorias vinculadas à produção – e não à destruição – da vida.
De modo que é um projeto político, ecológico e feminista, ao
mesmo tempo, que legitima a vida e diversidade e que remove
a legitimidade do conhecimento e prática de uma cultura da
morte que serve de base para a acumulação de capital143.
Apesar de todas as ameaças à vida dos povos da América Latina, há um forte movimento popular de resistência ao sistema-mundo
capitalista, colonial, racista, patriarcal e extrativista. No Brasil, cabe
destacar a resistência de populações através de ações como a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e o movimento de mulheres trabalhadoras rurais que lutam por justiça social, igualdade, liberdade e
em defesa das águas e da biodiversidade, como é o exemplo da Marcha
das Margaridas, realizado desde 2000 na capital federal, entre tantos
outros movimentos de luta. Muitas dessas mobilizações buscam alternativas para o Bem Viver144 das comunidades do campo e denunciam as
142 GONZALEZ, 2020, p. 146-147.
143 SHIVA, 2004, p. 10.
144 O Bem viver/Buen Vivir/Vivir Bien, segundo Alberto Acosta (2016, p. 31), “pode ser
interpretado como sumak kawsay (kíchwa), suma qamaña (aymara) ou nhandereko (guarani),
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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condições de vida de populações ribeirinhas, quilombolas, geraizeiras,
de Fundos e Fechos de Pasto e de quebradeiras de coco babaçu, além
de fazerem oposição à tentativa de destruição da vida, da natureza e da
democracia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da relação criativa que as artesãs estabelecem com o meio ambiente, a arte aparece como resultado de um processo de uso de técnicas
que foram transmitidas de geração em geração por mulheres. A variedade de matérias-primas naturais disponíveis no entorno é um fator importante que tem garantido a continuidade do saber e fazer arte/artesanato em comunidades situadas nas zonas rurais, haja vista que as artesãs
retiram da vegetação nativa os insumos básicos para a elaboração de
redes, esteiras, cestos e outros objetos, obtêm tintas a partir de corantes
vegetais e empregam ferramentas naturais, como o uso de taliscas de
buriti, cuias de cabaça e sabugos de milho, para a criação de desenhos e
a modelagem e o polimento de potes, panelas e outros objetos feitos de
argila – uma tecnologia ancestral de criação artesanal de origem indígena, atualizada por mulheres afrodescendentes e afro-indígenas.
O avanço do agronegócio tem provocado a destruição do meio
ambiente e, como consequência, tem ameaçado modos de vida e culturas que tem como base o uso respeitoso e consciente da biodiversidade. As tensões socioambientais, a marginalização da criação plástica de
mulheres negras, indígenas e afro-indígenas tem estreita relação com as
desigualdades sociais e as questões raciais, de classe social, de gênero e
território, uma vez que essas mulheres, em sua maioria negras, sofrem
os efeitos históricos do racismo e do colonialismo do poder, do ser e do
ver.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros
e se apresenta como uma oportunidade para construir coletivamente uma nova forma de vida”.
Acosta ainda afirma que o “Bem Viver é, essencialmente, um processo proveniente da matriz
comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza” (ACOSTA, 2016, p. 32).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A FASE SOCIAL DE RENINA KATZ (1948-1956)
João Paulo Ovidio145 – joaopaulovidio@gmail.com
Resumo: A artista Renina Katz é reconhecida por ter se dedicado anos
a fio às artes plásticas, destacando-se por sua contribuição na afirmação
da gravura como meio expressivo, fato responsável por inseri-la na História da Arte do Brasil. A fase social corresponde ao início de sua produção artística, entre a década de 1940 e 50, quando se dedicava às temáticas sociais. Nesse período, as gravuras e desenhos possuíam um caráter
figurativo, didático, documental e, principalmente, de denúncia. Com
o presente texto, buscamos traçar um panorama de sua recepção, tanto
na imprensa da época como nos livros e trabalhos acadêmicos, tendo
como objetivo construir uma revisão para essa narrativa. Além disso,
ressaltamos a pertinência de atualizar o debate a respeito das temáticas
exploradas, deixando de restringir as imagens unicamente aos discursos
do passado, uma vez que ainda suscitam questões nos dias de hoje.
Palavras-chave: Gravura Moderna; Renina Katz; Fase Social; Xilogravura; década de 1940-50.
Abstract: The artist Renina Katz is recognized for having dedicated
years to visual arts, standing out for her contribution to the consolidation of engraving as an expressive artistic representation, a fact responsible for inserting her in the History of Art in Brazil. The social phase
corresponds to the beginning of her artistic production, between the
1940s and 1950s, when she dedicated herself to social themes. During
this period, the engravings and drawings had a figurative, didactic, documentary and, mainly, political character. With this paper, we seek to
outline an overview of her reception, both in the press of the period and
in academic works and books, aiming to build a review of this narrative. Furthermore, we emphasize the pertinence of updating the debate
on the themes explored, not restricting the images solely to discourses
from the past, since they still raise questions today.
145 Mestrando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV/
EBA/UFRJ e Bacharel em História da Arte pela mesma instituição.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Keywords: Modern Engraving; Renina Katz; Social Phase; Woodcut;
1940s-50s.
Com mais 70 anos dedicados às artes plásticas, a fase social de
Renina Katz diz respeito aos seus trabalhos iniciais, realizados entre
1948 a 1956, ou seja, pouco mais de 10% de sua trajetória. O recorte histórico abrange desde o início de sua inserção no meio artístico,
com as primeiras participações nos salões, até a sua afirmação, quando
alcançou o reconhecimento dos pares, a atenção da mídia e a musealização de seus trabalhos. O fim dessa primeira fase é marcado por uma
série de crises, motivadas por razões estéticas, temáticas, políticas e
pessoais. Nesse momento, quando se pôs a reavaliar sua produção artística, percebeu que deveria abandonar a figuração em prol de novas
experimentações plásticas, sobretudo porque já não conseguia transmitir as mensagens como gostaria, sendo por vezes incompreendida e
mal interpretada. A denúncia teria perdido sua força ou nunca passou de
atenuação da pobreza? A própria artista chegou a dizer em entrevistas
quais foram as motivações que a levaram encerrar o projeto em questão
e começar um novo, adotando novas técnicas e repertórios, bastante
diferente do anterior. Sem aderir às tendências da abstração geométrica
ou informal, como fizeram alguns de seus colegas, é visível como a
ruptura contribuiu para que ela pudesse se reinventar, provando a todos
que não estava limitada a um modo de fazer.
Com o presente texto, buscamos discutir a recepção de sua fase
social, bem como, a partir das ausências identificadas, propomo-nos
analisar a singularidade de cada um dos eixos temáticos. Mas antes de
prosseguirmos, devemos nos perguntar: Quem é Renina Katz? [FIGURA 1].
Artista fluminense, nasceu no dia 30 de dezembro de 1925, na
cidade de Niterói, então capital do estado do Rio de Janeiro. É a primogênita de um casal de imigrantes poloneses, de origem judaica, que
se refugiaram após o término da Primeira Guerra Mundial. Eles se conheceram no Brasil, se casaram e aqui fixaram residência (BECCARI,
1981, p. 8). Desde criança recebeu estímulo de seus familiares para as
manifestações artísticas, especialmente no que diz respeito à música,
chegando a estudar canto, piano e violino. Entretanto, diferente de seus
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
primos, que seguiram a carreira de musicista, optou por se dedicar a
sua verdadeira paixão: as artes plásticas. Durante a sua infância gostava de desenhar, costumava fazer cópias das ilustrações presentes em
livros infantis, como as histórias em quadrinhos e contos dos Irmãos
Grimm (KATZ, 1997, p. 16). Quando concluiu o Ensino Secundário,
disse ao seu pai que gostaria de ser artista e ouviu que havia escolhido
“a melhor profissão para passar fome” (BITTENCOURT, 2008, p. 12).
Para alguns, o comentário pode ser interpretado como pessimista, para
outros, indica uma visão realista sobre as dificuldades enfrentadas pelos profissionais da arte em nosso país. De todo modo, ele aceitou sua
escolha, mas com uma condição: para receber qualquer tipo de apoio,
seja financeiro ou afetivo, deveria cursar uma universidade. A própria
Renina Katz destacou como o pai atribuía importância em se obter uma
formação sistemática, diferente da experiência autodidata, de ateliês ou
de cursos livres.
No início de 1945, matriculou-se no curso de Pintura da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), dando início a sua formação
artística. Conhecida por sua militância política, participou ativamente
do movimento estudantil, assumindo ao longo dos anos a função de
representante da instituição na União Nacional dos Estudantes (UNE),
no Diretório Central dos Estudantes (DCE) e na União Metropolitana
dos Estudantes (UME). O engajamento também se manifestou diretamente nas temáticas escolhidas para sua obra gráfica, as quais abarcavam como repertório iconográfico a vida do povo brasileiro, sendo o
principal interesse construir uma denúncia das mazelas sociais. Nesse período, frequentava o Café Vermelhinho, point da boemia carioca,
considerado um importante espaço de sociabilidade para os intelectuais
de esquerda, dos militantes políticos aos escritores e artistas (KATZ,
1997, p. 13; BITTENCOURT, 2008, p. 14). Eles se reuniam para beber,
mas também para conversar sobre assuntos diversos e estabelecer parcerias. O convívio com diversas personalidades lhe garantiu indicações
para ilustrar crônicas, poemas e reportagens, destacando-se os desenhos
para o jornal Momento Feminino e a revista Esfera, no Rio de Janeiro,
ambos periódicos vinculados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e
fora do estado, a revista Joaquim, no Paraná.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Apesar de ter se formado em Pintura, chegando até a participar
de algumas edições do Salão Nacional de Belas Artes (SNBA) na seção
destinada a trabalhos dessa técnica, adotou as artes gráficas como sua
principal linguagem. Em 1946, simultaneamente ao ensino formal, cursou Desenho de Propaganda e Artes Gráficas na Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde recebeu orientação de xilogravura por Axl Leskoschek
e gravura em metal por Carlos Oswald. Depois de concluir o curso,
passou a frequentar o ateliê particular do primeiro e se aperfeiçoou com
o último no Liceu de Artes e Ofícios (LAO). Entre as suas principais
referências visuais se encontra a obra gráfica de Käthe Kollwitz, sendo
possível identificar quais imagens foram usadas como modelo. Interessada na contribuição dessa artista no Brasil, a historiadora da arte Eliana de Sá Porto de Simone (2004) estabeleceu uma análise comparativa,
não só entre as duas, mas também em relação a Carlos Scliar e Lívio
Abramo.
Em um curto intervalo, de 1947 a 1950, Renina Katz conseguiu
se destacar entre os jovens artistas de sua geração, sem manifestar nenhuma dificuldade para conquistar as láureas do SNBA. Em 1951, recebeu o Prêmio de Viagem ao País, na Divisão Moderna, o que a permitiu
conhecer diferentes recantos do Brasil e interpretar a realidade desses
locais. O recorte a qual nos referimos como fase social corresponde a
produção figurativa, em preto e branco, por vezes mais próxima do realismo social, outras do expressionismo. Na época, devido a associação
aos Clubes de Gravura, seu nome era mencionado na imprensa como
uma das representantes do realismo social. Todavia, anos mais tarde, na
década de 1980, seus trabalhos passaram a integrar exposições sobre a
tendência expressionista. O que houve foi uma revisão historiográfica
ou um apagamento, no qual grupos foram diluídos e incorporados no
guarda-chuva do expressionismo? Também não descartamos uma terceira hipótese, a de ter se inclinado mais para um lado e depois para
outro, conforme o que buscava com cada trabalho, alternando entre a
dramaticidade e o testemunho direto.
Durante uma entrevista à Elaine Bittencourt, a artista se posicionou contrária ao uso de determinadas categorias, pois ainda que o
objetivo seja “localizar um movimento historicamente”, e até mesmo
“facilitar um pouco a compreensão”, essas também podem atrapalhar
320
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
a experiência do observador. Quando uma obra de arte é classificada
como A ou B, espera-se que tal atenda certos preceitos, como o modo
de fazer e o que representar. Em vista disso, ela contestou o uso do termo “realista”, afirmando que esse se aplicaria melhor à literatura, mas
não às artes plásticas (BITTENCOURT, 2008, p. 27). Anteriormente,
já havia dito à Leonor Amarante que em sua juventude “preferia muito mais [...] uma manifestação de caráter expressionista do que aquele
realismo meio em banho-maria, requentado, que era o padrão da União
Soviética” (KATZ, 1997, p. 20). Mas, independentemente disso, posteriormente afirmou à Radha Abramo que os trabalhos da década de 1950
não poderiam ser considerados expressionistas pela falta de sua típica
contundência (ABRAMO, 2003, p. 291). Notamos então uma completa
negação por ter sua produção enquadrada a partir dos movimentos artísticos. E, igualmente, ao negar o realismo, a tentativa de se desvencilhar
de uma narrativa estritamente partidária.
O nome de Renina Katz aparece com frequência em livros escritos por autores interessados na relação entre artistas e o PCB, por exemplo, Aracy Amaral (1984), Dênis de Moraes (1994) e Alberto Gawryszewski (2010). As discussões por eles fomentadas, especialmente os
dois últimos, estão mais próximas da história social do que propriamente da história da arte, dado que as gravuras foram postas em segundo
plano, encaradas como ilustrações da realidade ou, quando não, documentos históricos, deixando de lado os valores estéticos e formais. Uma
gravura pode ilustrar um texto, mas não podemos esquecer que sua função primeira é outra, isto é, ser obra de arte. Nesse sentido, o artista
não deve abrir mão de sua criatividade em favor de discursos políticos,
limitando-se a uma representação pela representação. Foi a carência de
uma análise dessa produção, a neutralidade diante da imagem, que nos
motivou a iniciar uma pesquisa sobre a fase social, bastante conhecida,
mas pouco estudada.
A partir da década de 1960, seu nome passou a integrar livros
e dicionários de História da Arte no Brasil, sendo o primeiro deles A
Gravura Brasileira Contemporânea, escrito por José Roberto Teixeira
Leite, em 1965. Considerado um esforço pioneiro no estudo da gravura
moderna em nosso país, o autor foi responsável por estabelecer a divisão de três fases, sendo esse um modo de ressaltar as características
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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de cada recorte histórico. O trabalho de Renina Katz está inserido na
segunda fase, denominada afirmação, que vai de 1945 até 1955. Nesse
período, germinaram iniciativas de núcleos de ensino, locais onde se
podia fazer e aprender os processos da gravura. Gradativamente, conquistou sua autonomia, deixando de ser vista como um exercício, hobby
ou destinada à reprodução de imagens. O aumento do número de gravadores foi perceptível nos salões e bienais, nas conquistas dos prêmios,
assim como nas colunas de artes plásticas. Embora a baixa familiaridade sobre o assunto, os jornalistas e críticos escreveram textos que nos
permitem ter uma dimensão da recepção da época, sendo necessário
no presente tecer uma análise minuciosa a respeito da produção desses
gravadores.
O nome da artista também consta no: Dicionário de Artes Plásticas no Brasil (1969), de Roberto Pontual; Dicionário de Artes Plásticas (1970), do Ministério da Educação; Dicionário Delta Larousse
(1972); História da Arte Brasileira (1975), de Pietro Maria Bardi; Diário de Bolso (1977) de Walmir Ayala, entre outros. No entanto, somente
no final do século XX, mais especificamente em 1997, foi lançado o
primeiro livro inteiramente dedicado à sua obra. Mesmo com presença ativa no cenário artístico, com participação em eventos relevantes,
levou quase 50 anos para que isso pudesse acontecer. E depois, passou mais uma década até a segunda publicação, com pouca ou quase
nenhuma diferença de conteúdo. Os dois possuem a mesma estrutura:
texto de apresentação, entrevista, seleção de imagens e currículo. Além
disso, não há um recorte específico, uma vez que contempla uma visão
panorâmica de sua trajetória. Mas, por outro lado, independentemente
da originalidade, as respostas dadas as perguntas são únicas, pois foram
ditas em contextos e a pessoas diferentes. Aliás, as repetições nos permitem tanto uma revisão do discurso, como do mesmo modo podem
reforçar o posicionamento sobre determinado assunto.
Entre os anos de 1940 e 50, os periódicos da imprensa comunista, como a Fundamentos, em São Paulo, e a Imprensa Popular, no
Rio de Janeiro, desempenharam um papel fundamental na divulgação
do trabalho de Renina Katz e de seus pares. O levantamento de material
na Hemeroteca Digital Brasileira nos permitiu dimensionar a recepção
e circulação de sua obra gráfica, tal como observar seu crescimento no
322
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
meio artístico. Após a conquista do Prêmio de Viagem, em 1951, multiplica-se o número de ocorrências, resultado da visibilidade alcançada.
É a partir desse momento que passou a expor com maior regularidade,
tanto individualmente como em mostras coletivas, dentro e fora do país.
Tal condição também implicou uma maior cobrança, visto que não havia mais como passar despercebida nos eventos, pois estava em evidência. O envio de uma gravura para o Salão conseguia render comentários
a respeito da escolha, referindo-se a ela como acertada ou equívoco.
Semelhante ao caso do livro, é somente na década de 1990 que
seu trabalho passou a ser adotado como objeto de pesquisa na academia. A ocorrência mais antiga é da tese de Eliana de Sá Porto de Simone, defendida em 1993, na Universidade de São Paulo (USP). Apesar da
pesquisa ter como foco Käthe Kollwitz, uma atenção especial é dada à
gravadora brasileira, contemplando o recorte de nosso interesse. Posteriormente, foi a vez de suas aquarelas e litografias serem estudadas por
Ana Maria Netto Nogueira. Não obstante, essas dissertações abrangem
outros nomes, investigados em conjunto, a fim de contribuir para o debate propostos pelas autoras. Desse modo, o trabalho de Gloria Cristina
Motta, de 2007, seguido de Regiane Aparecida Caire da Silva, em 2009,
ambos desenvolvidos no mestrado, são notáveis por trazer protagonismo à obra de Renina Katz. Mas infelizmente, só depois de uma década
sua produção seria resgatada, despertando entusiasmo, pela primeira
vez, no recorte da fase social. O que motiva João Paulo Ovidio, Ana
Heloiza Albano, Gabriela Hermenegildo e Luana Medina Fortes escreverem sobre o mesmo objeto, quase concomitantemente?
A fase social se caracteriza pela adoção do povo brasileiro como
temática, sendo representados os camponeses, operários, pescadores,
retirantes e as lavadeiras na favela, personagens recorrentes na arte moderna brasileira. O que nos contam as imagens? Quais são as referências visuais e/ou literárias? A produção de série limita ou expande as interpretações? Em síntese, o que conhecemos sobre essa fase está restrita
às 45 peças que compõem o álbum Antologia Gráfica (1977), editado
por Julio Pacello e com texto de apresentação de Flávio Motta. Lançado
pela Editora Cesar, a publicação contou com 80 exemplares destinados
à venda e mais 10, marcados de A a J, para colaboradores. As imagens
estampadas nos livros, assim como as obras presentes nos acervos, são
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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praticamente as mesmas dos álbuns, com raríssimas exceções. Ao voltarmos nosso olhar para as gravuras, foi possível agrupá-las em quatro
eixos, sendo eles: trabalhadores, favelas, retirantes e outras temáticas.
No primeiro eixo, trabalhadores, observamos a representação
homens e mulheres exercendo diversas atividades. Nos jornais da época, ainda encontramos títulos de desenhos e gravuras dos quais desconhecemos o paradeiro, mas que reforçam a frequência do assunto,
como: Jornaleiro, Costureira, Verdureira. No campo, eles aparecem
principalmente nos canaviais e cafezais, sempre de chapéus para se
protegerem do sol e com suas ferramentas em mãos. No espaço urbano,
as mulheres estão ausentes, vemos somente os homens, nas construções civis. Fortes, com braços torneados, transmitem vitalidade, mas,
ao mesmo tempo, os pés descalços e as roupas surradas, a precariedade.
Os trabalhadores [FIGURA 2] estão em ação, usam pás e enxadas, empurram carrinhos de mão, deslocam-se de um lugar a outro. Anônimos,
eles se encontram em grupos, de perfil ou de costas, sem a abertura para
o contato visual. Ao limitar os rostos a silhuetas, ela não só constrói um
padrão, como também os nega individualidade. Nesse recorte, a artista
deu mais atenção aos gestos, o movimento do corpo, do que propriamente o serviço por eles realizado. No canteiro de obra, há somente
uma sugestão de arquitetura, traços verticais e horizontais que insinuam
vigas, e nada mais.
Em um país como Brasil, de herança colonial, o trabalho físico,
manual e mecânico, exercido pela parte mais pobre da população, está
associado aos valores escravocratas, como a exploração dos corpos e
a desvalorização da mão de obra. A fase social de Renina Katz nos
apresenta o retrato das desigualdades sociais, bem como, ao fazê-lo,
indica a manutenção dos privilégios da elite, como o direito ao ócio. O
fato de não ter sequer uma cena de descanso, nem mesmo para o almoço, evidencia a árdua realidade dos trabalhadores, que além da falta de
boa estrutura e de uma remuneração justa, também enfrentavam longas
jornadas de trabalho, sem dispor de tempo para o lazer. Como veremos
adiante, a labuta reaparece em outros eixos, como é o caso da favela, no
qual predomina os “serviços domésticos”.
No eixo favela, como destacou Eliana de Sá Porto de Simone, o protagonismo é feminino, sendo raras as cenas com a presença
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
masculina, e quando essa aparece, costuma ser uma criança, o filho de
alguém. Diferente de muitas pinturas da primeira metade do século XX
no Brasil, como as de Di Cavalcanti, o corpo representado por Renina
Katz não foi hipersexualizado. Mas, todavia, não podemos nos esquecer, que ainda assim são imagens de mulheres pretas, periféricas, mães
solos, gravadas por uma mulher branca, de classe média, que lançou
olhar etnográfico para um grupo a qual não pertence e pouco conhece
a realidade, sendo então passível da reprodução de estereótipos. A artista começou a representar o morro na década de 1940, quando ainda
morava no Rio de Janeiro, e o explorou durante toda fase social. Apesar
disso, há poucos comentários a respeito dessa temática quando comparada as demais, talvez, por ter investido bem mais na divulgação da
série Retirantes.
Em ocasião da III Bienal de São Paulo, em 1955, expôs quatro
xilogravuras sobre a temática favela no certame. À parte da sociedade,
as mulheres pretas estão sempre inseridas no morro, sem nenhum tipo
de contato com a vida no asfalto. Em vista disso, questionamo-nos se
de fato há um protagonismo ou se ela apenas reforça a exclusão. Não
podemos nos esquecer que é desse exato momento, dia 15 de julho, o
primeiro relato do diário de Carolina Maria de Jesus, presente no Quarto de Despejo (1960). A leitura desse livro confirma a possibilidade de
diálogo entre imagem e texto, uma vez que as gravuras vão de encontro à diversas passagens, como as idas até a única torneira da favela
para buscar água. Duas mulheres, duas realidades distintas, porém, um
assunto em comum. Enquanto a primeira assumiu a posição de observadora, ocupando-se de interpretar graficamente o que via, a segunda
se dedicou a escrever sobre a sua vivência, compartilhando o olhar de
quem está inserido naquela realidade.
Selecionamos duas gravuras que conseguem resumir bem todo
o eixo. Na primeira imagem [FIGURA 3], observamos uma cena aberta, com algumas cabras no primeiro plano e mais adiante mulheres carregando lenha na cabeça, rumo aos barracos, ao fundo. Em entrevista
cedida ao historiador da arte Renato Palumbo Dória, a própria artista
disse como a representação desses animais, devido à elegância do pescoço alongado, estava mais próxima de uma lhama do que uma cabra
(DÓRIA, 1996, p. 313). Em todas as gravuras o animal aparece de cosANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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tas ou na diagonal, mas nunca na posição frontal. Os chifres, voltados
para o lado, assemelham-se com a letra “v”. A paisana, não estabelecem
nenhum contato físico com as pessoas. Na segunda imagem [FIGURA
4], uma mulher, com lenço na cabeça, lava as roupas em uma bacia
apoiada sobre um caixote e as estende no varal. A silhueta de criança,
sentada, a observa, enquanto uma outra chega com uma lata d’água na
cabeça para ajudá-la. Paupérrimas, as mulheres trabalhavam como lavadeiras a fim de sustentar suas famílias.
Diferente dos outros eixos, Camponeses em terra: os Retirantes foi o único pensado desde o início para formar uma série e, assim
sendo, conseguimos identificar uma narrativa coesa. Quando adotamos
uma organização sequencial, torna-se possível apresentar a trajetória
das famílias que migravam do sertão nordestino rumo à metrópole, São
Paulo (Figura 5). Constituída por 22 peças, a artista dedicou cerca de
dois anos para a conclusão do projeto. São imagens de seca, fome e angústia. As pessoas caminham sob o sol escaldante, com seus pertences
reunidos em trouxas e embrulhos, carregados nas mãos, ombros e às
vezes no lombo de animais. À noite, depois de quilômetros percorridos,
montavam acampamento, no relento, para continuar no dia seguinte.
Os retirantes viajavam no pau-de-arara, um transporte irregular que os
permitiam sair de sua terra natal em busca de uma vida melhor, em outro lugar. Acompanhamos até o desembarque do trem, a falta de abrigo
e emprego, a necessidade de pedir esmolas, a exclusão nas ruas. Aos
finais de semana, Renina Katz ia até a Estação do Norte, atual Estação
Brás, para desenhar as pessoas que chegavam do Trem Baiano (SALLES, 1993, p. 8 apud GRAVURA, 2000, p. 86). No ateliê, os desenhos
de observação auxiliavam na produção das gravuras, bem mais elaboradas.
Em agosto de 1953, em ocasião de sua exposição individual no
Diretório Acadêmico da ENBA, apresentou entre 40 trabalhos recentes
as primeiras oito pranchas da série. Ainda incompleta, expor o conjunto
inicial a permitiu ter um retorno da crítica, importante para avaliar se, e
como, deveria continuar. Vale destacar que o texto de apresentação foi
escrito por Candido Portinari, pintor conhecido por sua série de quadros
sobre os retirantes, de 1944-1945. Nesse período, o sertão nordestino
era um assunto que interessava não apenas os artistas plásticos, como
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
também profissionais do cinema e literatura, de modo que podemos
citar como exemplo o filme O Cangaceiro (1953), dirigido por Lima
Barreto, e na literatura o livro de poemas Morte e Vida Severina (1955),
de João Cabral de Melo Neto. Quanto à recepção das gravuras de Renina Katz, tanto Mário Barata, no Rio de Janeiro, quanto José Geraldo
Vieira, em São Paulo, teceram comentários em suas colunas de artes
plásticas, respectivamente no Diário de Notícias e na Folha de S. Paulo. As gravuras sobre essa temática participaram de várias exposições,
merecendo destaque para a mostra internacional da XXVIII Bienal de
Veneza, na Itália, em 1956.
No quarto e último eixo, as gravuras reunidas não se enquadram
em nenhum dos grupos anteriores. Em menor quantidade, se dividem
em: paisagens, sem a presença de figuras humanas, nas quais as árvores,
em primeiro plano, escondem a maior parte da visão da cidade (Figura 6); e as ilustrações para o livro de Jorge Amado, contemplando assuntos diversificados, como a brincadeira do pau de sebo. Embora seja
possível identificar temáticas, como foi supracitado, elas não compõem
uma unidade como as demais. Independentemente disso, a artista as
selecionou para integrar seu álbum, o que indica que lhes atribuiu uma
importância.
Por fim, ressaltamos que existem diversas possibilidades de estudo para a fase social de Renina Katz, uma análise baseada na história, literatura ou na atualização dos signos, uma análise que abarque
questões de classe, gênero e étnico-raciais, que problematize a qualidades estética e as escolhas temáticas. Por exemplo, enquanto Gabriela
Hermenegildo pesquisa esse conjunto de trabalhos por estar interessada na produção de gravadoras mulheres na imprensa comunista, Luana
Medina Fortes, por sua vez, está interessada na representação, tendo
como proposta uma leitura feminista interseccional. O mesmo objeto,
dois trabalhos, duas maneiras diferentes de abordar a questão de gênero. Quanto à Ana Heloiza Albano, sua monografia lança um olhar para
o álbum, em vista disso, está mais preocupada em analisar as temáticas
a partir do repertório história da arte. Anteriormente, durante a graduação, debruçamo-nos igualmente a esse conteúdo. Porém, nesse momento, compreendemos o quanto é importante escrever sobre à obra gráfica
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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de Renina Katz à luz da contemporaneidade, tanto quanto foi escavar o
passado para entender o contexto histórico. Por esse motivo, em nossa
pesquisa, defendemos a leitura de autores que compartilham uma nova
perspectiva em relação aos personagens, cenários e histórias que constituem a fase social. As gravuras são atuais porque a desigualdade, o preconceito e a exclusão ainda são práticas vigentes em nossa sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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OVIDIO, João Paulo Brito dos Santos. Antologia gráfica, antologia crítica:
os discursos críticos sobre as gravuras de temáticas sociais de Renina Katz
(1948/1956). 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História
da Arte) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2019.
328
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SIMONE, Eliana de Sá Porto de. Käthe Kollwitz. São Paulo: Edusp, 2004.
Imagens:
Figura 1- Renina Katz em seu ateliê. Fonte: Acervo Cedoc / Pinacoteca de São Paulo. Foto:
Ruy Santos, ca. 1949.
Figura 2 - Renina Katz. Trabalhadores. Xilogravura, 19 x 26,5 cm. Fonte: Acervo do Museu
de Arte Brasileira (MAB-FAAP)
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Figura 3 - Renina Katz. Favela. Xilogravura, 29,3 x 27 cm. Mulheres carregando lenha. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP).
Figura 4 - Renina Katz. Favela. Xilogravura, 20,2 x 14 cm. Lavadeira. Fonte: Acervo do
Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 5: Renina Katz. Retirantes (Estação). Xilogravura, 19,5 x 24 cm. Fonte: Acervo
do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP)
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Figura 6: Renina Katz. Árvores. Xilogravura, 25,5 x 18 cm. Fonte: Acervo do Museu de
Arte Brasileira (MAB-FAAP)
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A RAIZ GEOGRÁFICA COMO
“AUTENTICIDADE” DOS SUBSTRATOS
PERIFÉRICOS: APROXIMAÇÕES ATRAVÉS
DO ESCULTOR NAGARE MASAYUKI
João Kurohiji146 – joaokurohiji@usp.br
Resumo: Escultor nascido em Nagasaki, Japão, os trabalhos de Nagare Masayuki (1923-2018) são majoritariamente baseados em um criar
escultórico sobre a pedra. Termos associados a uma tradição ou cultura
japonesa, ou do Leste Asiático, permeiam as descrições de sua vida e
obra. Além disso, de forma geral, o próprio artista opta por dialogar em
sua produção com formas e sensibilidades japonesas e/ou orientais. Sobre a obra do escultor, a historiadora da arte Joan Stanley-Baker (1984)
afirma que sua autenticidade reside em seu comprometimento com suas
raízes nacionais. Tendo isso em vista, o presente artigo teve por objetivo problematizar tal critério de originalidade ao realizar aproximações
à noção, decorrente da obra de Nagare, de raiz geográfica enquanto “autenticidade” dos substratos periféricos. Essas aproximações ocorreram
através do diálogo entre referenciais teóricos dos estudos decoloniais e
da história da arte global, bem como outros autores que possuem afinidades com a questão debatida. Em consonância, também foram discutidos autores que escrevem a partir de um contexto japonês e/ou oriental.
Consequentemente, buscou-se discutir as relações desiguais de poder
sobre as quais a modernidade e a narrativa da arte moderna se constituíram em conjunto com suas implicações, como a constante e persistente
necessidade de acessar as obras de artistas considerados periféricos por
meio do que é tido como peculiar, ou autêntico, de suas origens geográficas, numa visão do mundo artístico pautada em diferenciações
culturais e nacionais.
146 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “A Sobrevivência da Pedra”,
orientada pela Profa. Dra. Michiko Okano, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo.
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Palavras-chave: Estudos Decoloniais; História da Arte Global; Raiz
Geográfica; Substratos Periféricos; Nagare Masayuki.
Abstract: A sculptor born in Nagasaki, Japan, the works of Nagare
Masayuki (1923-2018) are mostly based on a sculptural creation in stone. Terms associated with a Japanese or East Asian tradition or culture
permeate the descriptions of his life and work. Furthermore, in general,
the artist himself chooses to dialogue with Japanese and/or Oriental
forms and sensibilities in his production. About the sculptor’s work, art
historian Joan Stanley-Baker (1984) states that its authenticity lies in its
commitment to its national roots. With this in mind, the present article
aimed to problematize this criterion of originality by approaching the
notion, arising from the work of Nagare, of geographical roots as the
“authenticity” of peripheral substrates. These approximations took place through the dialogue between theoretical references from decolonial
studies and the global art history, as well as other authors who have
affinities with the issue debated. Accordingly, authors who write from a
Japanese and/or oriental context were also discussed. Consequently, we
sought to discuss the unequal power relations on which modernity and
the narrative of modern art were constituted together with their implications, such as the constant and persistent need to access the works of
artists considered peripheral through what is taken for granted as peculiar, or authentic, to their geographical origins, in a view of the artistic
world based on cultural and national differences.
Keywords: Decolonial Studies; Global Art History; Geographical
Roots; Peripheral Substrates; Nagare Masayuki.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
INTRODUÇÃO
O escultor Nagare Masayuki147 (1923-2018) nasceu em Nagasaki, Japão. Seus trabalhos, majoritariamente em pedra, são comumente descritos como possuidores, além de sua modernidade, de sensibilidades ou formas japonesas tradicionais148. É também interessante nos
atentarmos que Nagare alcançou maior reconhecimento artístico inicial
nos Estados Unidos do que em solos japoneses (YAMASHITA, 1994),
bem como que a obra Receiving (1959-60) foi a primeira escultura realizada por um artista de origem japonesa a ser integrada permanentemente ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1960
(Ibid., p. 279).
Termos como Japão ou japonês, samurai, artes tradicionais,
zen budismo, xintoísmo, yin-yang, entre outras, figuram as descrições
de sua vida e suas obras149. Entretanto, coexistem e integram a modernidade artística de Nagare questões e sensibilidades japonesas que o
artista opta por tratar e ser associado. Aproximado em método ao artista Isamu Noguchi (1904-1988) pela historiadora da arte Joan Stanley-Baker (STANLEY-BAKER, 1984, p. 199), Nagare foi considerado no
início da década de 1970 pelo crítico de arte Ogawa Masataka uma figura que “[...] abriu portas no exterior para a escultura moderna japonesa”
(OGAWA, 1972 apud YAMASHITA, 1994., p. 294, tradução nossa).
Conjuntamente, as experiências e estudos de Nagare nas diversas esferas da vida e cultura japonesa local, sua experiência em artes
marciais, a estadia em templos de Quioto, as aprendizagens das etapas
da artesania tradicional de espadas na oficina de forja de espadas Ritsu147 Os nomes próprios de nativos do Leste Asiático estão escritos conforme o sistema de escrita convencional da Ásia Oriental, no qual o sobrenome precede o prenome.
148 Em exemplo, como também foi apontado em referência às denominadas “esculturas míticas” realizadas por Nagare a partir de motivos japoneses ao utilizar-se de um vocabulário
moderno da arte (YAMASHITA, op. cit., p. 295-6).
149 Além da publicação Stone Crazy (1963) da revista Time e Yamashita (op. cit.), veja, por
exemplo, um breve texto sobre Nagare disponibilizado pela casa de leilões Christie’s disponível
em: https://www.christies.com/en/lot/lot-2401914. Acesso em: 18 jan. 2022, e a página para a
obra Stone Riddle (1967) no site do Museu de Arte da Universidade de Princeton para obras
do campus disponível em: https://artmuseum.princeton.edu/campus-art/objects/31575?lat=40.3505&lon=-74.6511. Acesso em: 18 jan. 2022.
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meikan enquanto frequentava a Universidade Ritsumeikan também em
Quioto, e suas relações com as artes tradicionais japonesas, bem como
o budismo e o xintoísmo, informam de certa forma sua prática artística,
como comentado em descrições de sua vida150.
Ademais, no seu texto para o documentário experimental Ishi
no Uta (1963), o título pode ser traduzido ao português como Canção das Pedras, do realizador Matsumoto Toshio (1932-2017), Nagare
identifica o louvor à pedra no trabalho dos artesãos da produção de
granito da vila de Aji, situada na prefeitura de Kagawa, ilha japonesa de
Shikoku. Local onde o artista envolveu-se e contribuiu para as atividades e as vidas dos trabalhadores locais ao reunir um grupo denominado
de Sekishojuku (YAMASHITA, 1994, p. 280). Ademais, Nagare possui
um estúdio em Aji.
No documentário, o escultor evidenciou um senso de tradição e de significância da pedra no contexto da pedreira, assim como a
atitude afetiva e de respeito que os trabalhadores possuem para com a
mesma. Ainda a partir de Ishi no Uta (1963), o trabalho escultórico de
Nagare aparenta confundir-se com o trabalho dos artesãos de Aji, uma
confluência com o labor tradicional de trabalhadores da pedra também
já apontada (YAMASHITA, op. cit., p. 275).
Consonantemente, na matéria publicada em 1963 pela revista
estadunidense Time, intitulada Stone Crazy, sobre Nagare, é associado
ao material de sua escultura a “[...] antiga reverência japonesa pela textura e forma da pedra” (STONE..., 1963, n.p., tradução nossa). No texto, é dito que Nagare acredita que “as pedras devem registrar a mente
da natureza [...]” (Ibid., n.p., tradução nossa) e, ainda de acordo com a
matéria, seria através delas que um diálogo com a natureza é estabelecido, diálogo esse que o escultor afirma serem os orientais mais capazes
de realizar do que os ocidentais.
Nagare sinaliza um estado de diálogo entre a mente da natureza sedimentada na pedra e a sua própria na obra Mind to Mind (1965),
do acervo do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), o
que pode sugerir uma busca por um estado de união com a natureza no
150 Para maiores e outros detalhes acerca dos dados bibliográficos trazidos ao longo do parágrafo, leia Yamashita (op. cit.).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
processo artístico. Na obra, é possível percebermos o encontro de duas
técnicas pelas quais o artista é conhecido, o warehada (textura quebrada) – em que a superfície crua ou texturizada do mineral é mantida
ou induzida em conjunção com uma face polida –, e o método tsutsuki
migaki, no qual marcas registradas pela goivagem do cinzel do artista
são mantidas mesmo após o polimento – as tatilidades áspera e polida,
assim, coexistem numa mesma face da pedra (YAMASHITA, op. cit.,
p. 276). Com o diálogo entre o cinzelamento, a textura da pedra quebrada e o polido, a relação entre os diferentes estados da pele do corpo
mineral se faz presente na sua forma escultural arredondada e incisiva,
de contrastes entre declives e elevações.
Isto posto, frente aos elementos e sensibilidades culturais locais tanto nas descrições feitas sobre sua obra quanto no próprio posicionamento de Nagare perante seu trabalho, Stanley-Baker afirma
que suas “[...] obras nunca foram falsas às suas raízes Japonesas [...]”
(STANLEY-BAKER, 1984, p. 199, tradução nossa). Ainda, em consonância com o reconhecimento inicial do escultor nos Estados Unidos
mencionado anteriormente, a autora (Ibid., p. 199-200) demonstra-se
insatisfeita com a negligência do “establishment artístico japonês”
(YAMASHITA, op. cit., p. 292, tradução nossa) acerca da obra de Nagare. Tal insatisfação de Stanley-Baker e sua colocação em relação ao
escultor também foram comentadas pelo autor Roy Starrs (2012, p. 1213).
Ao atribuir autenticidade às obras do escultor devido a essa
característica nacional de seu repertório, em contraposição ao que é entendido pela historiadora como simplesmente emulado da arte internacional, Stanley-Baker enraíza Nagare nos limites de seu caráter nativo,
associando as produções que se aproximam em forma e conteúdo das
do centro artístico como emulativas, e, portanto, sem originalidade. O
uso da ideia da raiz pela autora é emblemático na medida que a raiz
– assim como de certa forma atua em uma árvore ou ser vegetal, por
exemplo – confina os artistas nativos de países periféricos em seus respectivos substratos esperados e ignora (ou minimiza) sua situacionalidade e inter-relacionalidade com outros seres e localidades.
Dessa forma, nas linhas a seguir serão feitas aproximações às
discussões presentes na história da arte global e decolonial em relação
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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às amarras geográficas dos artistas nativos das periferias do globo a
partir do posicionamento da historiadora da arte Stanley-Baker acerca
da obra do escultor Nagare Masayuki, apresentado nesta introdução.
1. DESENVOLVIMENTO
Uma vez que, embora seja moderna, a obra de Nagare possui autenticidade devido à sua alteridade geográfica em comparação
ao centro, internacional e produtor, ou a outras localidades, a afirmação de Stanley-Baker parece integrar a perspectiva marginalizante de
que a modernidade artística é um fenômeno caracterizado pelo novo
que ocorre particular e unidirecionalmente em substratos europeus e/
ou ocidentais, sucedendo-se nas partes periféricas do mundo de forma
emulativa. De acordo com a teórica e curadora Ming Tiampo:
A narrativa [da história do modernismo] assume duas coisas:
(1) que o modernismo era um sistema fechado, localizado no
Ocidente e implacavelmente disseminado em seus territórios
sem troca recíproca, e (2) que uma vez “transplantado”, o
modernismo foi replicado em torno do mundo, resultando em
nenhuma contribuição original digna de inclusão em sua história151 (TIAMPO, 2011b, p. 3, tradução nossa).
Consequentemente, as contribuições artísticas modernas dessas outras partes do globo tornam-se significativas no que tange sua
autenticidade através da presença do exótico, de uma qualidade nacional. Tiampo (Ibid., p. 46) também se aproxima em parte de tal ponto
de vista ao apontar a narrativa ocidental do modernismo enquanto uma
entidade central ao redor da qual outras modernidades artísticas orbitam
– quanto mais distantes, mais novas ou exóticas, quanto mais próximas,
mais emulativas (ambas posições não deixam de nos levar à atitude
comparativa para com um centro). Entretanto, apoiada no historiador
da arte Inaga Shigemi, Tiampo segue ao indicar que a distância ou a di151 The narrative assumes two things: (1) that modernism was a closed system, located in the
West and relentlessly disseminated to its territories with no reciprocal exchange, and (2) that
once “transplanted”, modernism was replicated around the world, resulting in no original contributions worthy of inclusion in its history.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
ferença plena em relação a essa narrativa ocidental do modernismo não
é análoga à originalidade, uma vez que leva à irrelevância ou mesmo
incompatibilidade com a ideia de arte dentro de sua história. A mesma
lógica vale ao plenamente próximo, considerado, então, emulado.
Segundo o pesquisador Yun Kusuk (2018), a busca por uma
qualidade geográfica nativa – ainda esperada na produção de artistas
originários em países à margem do centro artístico na contemporaneidade – está frequentemente baseada em estereótipos e clichés nos
quais o exotismo está alicerçado, que atuam em divisões de culturas
nacionais que dialogam entre si na alteridade. A dicotomia Ocidente e
Oriente, por exemplo, permanece nas constantes diferenciações entre
tais categorias.
Assim, os esforços da História da Arte Global residem em, de
acordo com os autores Béatrice Joyeux-Prunel (2019) e Thomas daCosta Kaufmann, Catherine Dossin e Béatrice Joyeux-Prunel (2016),
articular uma narrativa global que se afaste de configurações hierárquicas sobre as circulações artísticas e das limitações geradas por essas
compartimentalizações culturais e geográficas.
Somada à fragmentação geográfica e cultural hierárquica de um
mundo cada vez mais interconectado denunciada pela história da arte
global, está a dinâmica unidirecional entre centro e periferia comentada
inicialmente. Tais movimentos evidenciam relações políticas e de poder
assimétricas, relações essas que não são limitadas somente às circulações artísticas, mas também perpassam as circulações de ideias:
[...] o eurocentrismo funciona como um locus epistêmico de
onde se constrói um modelo de conhecimento que, por um lado,
universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir e, por outro, designa seus dispositivos de conhecimento como os únicos válidos (QUINTERO; FIGUEIRA;
ELIZALDE, 2019, p. 7).
Associa-se a tal ideia do poder eurocêntrico universalizante
e disseminado, o entendimento de que a modernidade é um fenômeno
particularmente ocidental e/ou europeu, e, portanto, um modelo central
para retorno comparativo com outras práticas artísticas relativamente
adverso a uma particularidade nacional ou cultural - uma vez que, diANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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gamos, o grau da localização de Nagare entre um e outro “extremo”
atribuiria ao artista a posição de mais verdadeiro ou falso às suas raízes.
Existem, subjacentes à tal fragmentação e dinâmica da formação da modernidade, relações de poder que estão intimamente relacionadas à colonialidade, acusadas pelas discussões de perspectivas
decoloniais ou da história da arte decolonial. Os estudos decoloniais
discutem justamente a presença do poder envolvida nesses discursos:
Os estudos decoloniais compartilham um conjunto sistemático de enunciados teóricos que revisitam a questão do poder na
modernidade. Esses procedimentos conceituais são: [...] 3. A
compreensão da modernidade como fenômeno planetário constituído por relações assimétricas de poder, e não como fenômeno simétrico produzido na Europa e posteriormente estendido
ao resto do mundo; 4. A assimetria das relações de poder entre
a Europa e seus outros representa uma dimensão constitutiva
da modernidade e, portanto, implica necessariamente a subalternização das práticas e subjetividades dos povos dominados;
[...] (Ibid., p. 5).
A assimetria de poder presente nas relações entre os impérios
europeus, e posteriormente o dos Estados Unidos, e os outros subjugados é também denunciada pelos estudos sobre o Orientalismo de
Edward W. Said. Considerado um dos pioneiros dos estudos subalternos e pós-coloniais, embora não tenha se associado diretamente a eles
(Ibid., p. 3-4), Said (2007) aponta para a ideia de uma realidade planetária que é permeada por inúmeras circulações culturais, interdependências, entre civilizações e que envolve muito mais complexidades
e poderes em jogo do que simples essencializações derivadas de uma
origem geográfica ou de polarizações territoriais genéricas.
O Orientalismo, além de uma distinção geográfica, “[...] é um
estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e (na maior parte do tempo) o ‘Ocidente’”
(Ibid., p. 29).
Ao retomarmos o posicionamento de Stanley-Baker sobre
a autenticidade da obra de Nagare residir em suas raízes nativas, tal
afirmação pode ser reminiscente da natureza do Orientalismo moderno
conforme entendida por Said (Ibid., p. 315-6), na qual a alteridade de
340
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
uma determinada localidade oriental é evidenciada através do enraizamento de toda sua modernidade em seus aspectos primitivos. Modernidade essa forçada a ser regredida à suas origens geográficas:
Dessa estrutura coerciva, pela qual um homem moderno “de
cor” é acorrentado irrevogavelmente às verdades gerais formuladas sobre seus antepassados linguísticos, antropológicos
e doutrinários prototípicos por um erudito europeu branco, derivava a obra dos grandes conhecedores orientais do século XX
na Inglaterra e na França. A essa estrutura, esses conhecedores
também acrescentavam sua mitologia e suas obsessões privadas
(Ibid., p. 320).
Em consonância com a natureza do Orientalismo moderno recém comentada, a perspectiva marginalizante da modernidade artística
discutida no início deste capítulo e os debates da história da arte global,
segundo Joyeux-Prunel (2019, p. 434), as diferentes manifestações artísticas externas ao centro artístico internacional ainda são diferenciadas em categorias de caráter geográfico, como também aponta o estudo
de Yun (2018), e delineadas aos seus passados – “A história da arte
moderna é uma história de inovações sucessivas acontecendo em um
centro, minimizando o passado e ofuscando periferias que estão sempre
relegadas ao passado [...]”(JOYEUX-PRUNEL, op. cit., p. 434, tradução nossa).
Uma estratégia orientalista para que diversos povos do amplamente denominado Oriente sejam “[...] de imediato compreensíveis em
vista de suas origens primitivas [...]” (SAID, 2007, p. 316). Tal forma
“primitivizante” de se interpretar uma manifestação oriental é também
apontada por Yun a partir da citação de um artigo sobre o pintor Kim
Whanki (1913-1974), na qual evidencia-se “[...] o ponto de vista do interlocutor na tentativa de compreender o assunto em questão por meio
de uma abordagem cultural e religiosa da Ásia” (YUN, 2018, p. 370,
tradução nossa).
A arte de Nagare torna-se subjugada por suas raízes geográficas, primitivas, e é deixado de lado sua posição artística de agência
e escolha - uma posição ativa que é negada ao outro pelo Orientalismo. Tal estado terminal original não é concretamente geográfico, como
demonstra Said (2007) nas suas discussões sobre o Oriente enquanto
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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construção sobretudo cultural, histórica e política.
As relações assimétricas de poder relativas à constituição da
modernidade artística – que caracterizam os artistas nativos da periferia
do mundo artístico como emuladores do centro na medida que se afastam de suas raízes geográficas, ou ainda geram comparações estilísticas
marginalizantes que se voltam à um centro produtor de tendências – negam ou reduzem a capacidade de agência e escolha do outro.
Tal unilateralidade também pode ser aproximada à denúncia
da ideia de influência realizada pelo historiador da arte Michael Baxandall (2006), embora o autor não discuta a qualidade negativa da noção
de influência dentro de uma perspectiva que examina o poder, como a
dos estudos decoloniais. Para Baxandall, o ponto de vista da influência
na constituição de um objeto artístico implica uma relação desigual entre um sujeito ativo influenciador e um outro passivo influenciado, assim como tal noção evidenciada pelo historiador da arte pode restringir
a análise à centralidade do influenciador:
[...] o termo [influência] já contém um viés gramatical que decide indevidamente sobre o sentido da relação, isto é, quem age
e quem sofre a ação de influência: parece inverter a relação ativo/passivo que o ator histórico vivencia e que o observador,
apoiado unicamente em suas inferências, deseja levar em conta.
Quando dizemos que X influenciou Y, de fato parece que estamos dizendo que X fez alguma coisa para Y e não que Y fez
alguma coisa para X (Ibid., p. 101-2).
Com relação ao contexto cultural japonês, em sintonia com a
noção de influência para Baxandall, a socióloga Tsurumi Kazuko (2014,
p. 62) demonstra-se descontente com o estereótipo de que os japoneses
são imitadores – uma concepção superficial da criatividade japonesa
em relação às circulações culturais a partir da qual “a representação
simbólica de tais trocas como formas de cópia muitas vezes levou a
ideias essencializadas sobre cultura, tecnologia e a nação” (COX, 2008,
p. 3, tradução nossa). Tsurumi reposiciona a criatividade local em uma
posição ativa perante a formação da modernidade:
342
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
No caso de nações que chegaram tarde à modernidade como o
Japão, os padrões pré-modernos [de pensamento] são principalmente endógenos (internos) à sociedade ou padrões exógenos
(externos) indigenizados durante os primeiros estágios da história da nação. Muitos dos padrões modernos de pensamento
foram recentemente introduzidos do exterior, principalmente
da Europa. Portanto, quando discutimos “criatividade” no contexto japonês, estamos discutindo os processos de aceitação ou
rejeição de padrões de pensamento estrangeiros em relação aos
padrões de pensamento nativos152 (TSURUMI, op. cit., p. 66-7,
tradução nossa).
Assim como as pedras, as quais são o foco do trabalho de Nagare Masayuki, são corporealidades minerais sobreviventes em que
diferentes tempos-espaços são nelas sedimentados, para Tsurumi, os
“elementos nativos e estrangeiros são empilhados uns sobre os outros,
como camadas geológicas. Dentro do mesmo indivíduo, essas diferentes camadas coexistem como partes de um eu [self] multicamadas”
(Ibid., p. 67, tradução nossa).
Ainda, a teoria do desenvolvimento endógeno de Tsurumi
pode nos levar a entender a modernidade europeia enquanto fruto de
um desenvolvimento local que se generalizou de forma negativa para
outras localidades na forma de um desenvolvimento exógeno153. Tal entendimento é possível de ser aproximado à ideia dos estudos decoloniais citada anteriormente neste capítulo de que o eurocentrismo “[...]
universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir [...]” (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019, p. 7).
152 In the case of late-comer nations to modernity like Japan, pre-modern patterns [of thinking]
are mainly endogenous (internal) to society or exogenous (outside) patterns indigenized during
the early stages of the nation’s history. Many of the modern patterns of thought were recently
introduced from abroad, mainly from Europe. So, when we discuss “creativity” in the Japanese
context, we are discussing the processes of accepting or rejecting foreign patterns of thinking in
relation to native patterns of thinking.
153 A socióloga Shoko Yoneyama (2018, p. 119) vai de encontro com tal colocação ao afirmar
que a “teoria da modernização”, é uma forma etnocêntrica dentre outras possibilidades de desenvolvimento, que exige que localidades se desenvolvam com base em padrões de um desenvolvimento endógeno ocidental. São, assim, exógenos e não condizentes com a vida e a ecologia
locais, por exemplo. Possibilidades de desenvolvimentos locais, nas palavras de Yoneyama (Ibid.,
p. 143, tradução nossa), a teoria do desenvolvimento endógeno de Tsurumi consiste em “[...] um
protótipo teorético que dá espaço discursivo para pessoas locais em cada lugar para decidirem seu
próprio modo de desenvolvimento, baseado em tradições locais e na ecologia local”.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Outro problema que perpassa a dinâmica de poder na modernidade a ser considerado é o entendimento confuso de que o moderno foi,
e ainda pode ser, um sinônimo do ocidental no contexto japonês. Como
exemplo, o filósofo Yanagi Sōetsu, no texto denominado A Perspectiva
Japonesa e datado de 1957, demonstra sua insatisfação ao descobrir
que o periódico e exposição intitulados A Perspectiva Moderna do Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio traziam tal perspectiva como
um sinônimo da perspectiva ocidental (YANAGI, 2018, n.p.). Apesar
da aparente confusão entre o moderno e o ocidental ou dessemelhança
entre o moderno e o japonês, o filósofo e crítico literário Karatani Kōjin
discute a dificuldade de se desvencilhar desses entendimentos:
O conceito do “moderno” é extremamente ambíguo. Isso é
verdade, não apenas para os japoneses, mas para os povos não
ocidentais em geral, entre os quais o “moderno” e o “ocidental”
costumam ser confundidos. Visto que, tanto no Ocidente quanto na Ásia, o moderno e o pré-moderno são distintos um do
outro, parece lógico que a modernidade deva ser conceituada
separadamente do Ocidente, mas uma vez que a “origem” da
modernidade é ocidental, os dois não podem ser tão facilmente
separados. É por isso que nos países não ocidentais a crítica
da modernidade e a crítica do Ocidente tendem a ser confundidas. Muitos equívocos surgem disso. Um, por exemplo, é
que a literatura moderna japonesa, por não ser ocidental, não
é totalmente moderna. O outro lado dessa ideia é que, se os
materiais e temas de uma obra são não ocidentais, a obra deve
ser antimoderna154 (KARATANI, 1998, p. 192, tradução nossa).
A atitude de medir o grau de modernidade e nacionalidade,
ou de falsidade e originalidade, de uma produção artística periférica
também pode ser aproximada ao que é esperado desses artistas outros,
como a retórica da modernidade denunciada pelo semiólogo e professor
de literatura Walter Mignolo:
154 The concept of the “modern” is an extremely ambiguous one. This is true, not only for Ja-
panese, but for non-Western peoples generally, among whom the “modern” and the “Western”
are often conflated. Since, in the West as well as Asia, the modern and premodern are distinct
from one another, it stands to reason that modernity must be conceptualized separately from
Westernness, but since the “origin” of modernity is Western, the two cannot so easily be separated. This is why in non-Western countries the critique of modernity and the critique of the West
tend to be confused. Many misperceptions arise out of this. One, for example, is that Japanese
modern literature, because it is not Western, is not fully modern. The flip-side of this idea is that,
if a work’s materials and themes are non-Western, the work must be antimodern.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
El “supposed to” (lo esperable, lo que debería ser) corresponde [...] a la retórica de la modernidad, la retórica que crea las
expectativas de lo que debe ser. Son estas expectativas naturalizadas las que operan en la colonialidad del ser, del sentir (aesthesis) y del saber (epistemología). “Como debería ser” es el
horizonte trazado por la fe puesta en la marcha hacia adelante;
“como debería ser” es precisamente el horizonte de la colonialidad del ser y del sentir (MIGNOLO, 2010, p. 18).
O esperado, na contemporaneidade, pode estar presente na
idealização de um critério estético do exótico na inserção das obras
desses artistas no cenário internacional, apontada pelos estudos de Yun
(2018). Tal idealização, de certa forma, conforme o Orientalismo de
Said (2007), pode ter como origem a construção cumulativa de conhecimento do que é o Oriente que o transforma num topos, e a consequente expectativa de conformidade oriental a dado conhecimento.
Essa colonialidade também envolve um processo de conservar
“[...] o Oriente seletivamente organizado (ou desorganizado)”, como
comentado por Said (Ibid., p. 338) através do empreendimento europeu
de transformar material e intelectualmente para si os frutos de sua relação de poder com um Oriente.
Essa dinâmica desigual do imperialismo e do colonialismo,
evidenciada por Said no Orientalismo, vai de encontro com a ideia
de mercantilismo cultural da curadora e teórica Ming Tiampo (2011a,
2011b), caracterizada pelo uso europeu de “matérias-primas” de outras culturas – desconsideradas anteriormente, por exemplo, como a
“infância da arte” e não como “[...] objeto válido da história da arte”
(JOYEUX-PRUNEL, 2019, p. 420, tradução nossa) – em sua constituição da modernidade e a consequente marginalização da produção dos
modernismos das mesmas como emulativas do centro exportador de
inovações:
Isso é modernismo enquanto continua a ser construído por meio
do mercantilismo cultural: a periferia é vista tanto como um
mercado de exportação cultural quanto como fonte de inspiração, a matéria-prima da arte. Apesar da transnacionalidade
do modernismo e de sua confiança nas ideais, mercadorias e
tráfico do imperialismo, o discurso sobre o período continua a
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
345
construir o centro como origem155 (TIAMPO, op. cit., p. 332,
tradução nossa).
Essas produções de outros modernismos seriam então de “segunda categoria”, para utilizarmos o vocabulário de Said, uma vez que
foram exportadas do Ocidente para outras localidades. O mercantilismo
cultural de Tiampo (2011a, 2011b) busca minar a relação unilateral de
origem e universalização que é mantida na narrativa modernista na medida em que as inter-relações transnacionais são eclipsadas pelo poder
europeu enquanto centro originário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isto posto, o presente trabalho apresentou como ponto de partida a afirmação da historiadora da arte Stanley-Baker de que as obras
do escultor Nagare Masayuki “[...] nunca foram falsas às suas raízes
Japonesas [...]” (STANLEY-BAKER, 1984, p. 199, tradução nossa). De
forma semelhante a como é esperado que uma raiz atue no substrato
do qual se origina, o posicionamento da autora acerca da produção de
Nagare enraíza-o ao que é esperado ser característica dos limites geográficos de seu substrato, considerado periférico, e entendido dentro de
uma categoria ou tipo.
Assim, os problemas da raiz geográfica enquanto autenticidade levantados aqui foram entendidos em relação à formação da modernidade e da narrativa da modernidade artística, nas quais estão em
jogo poderes que estabelecem dinâmicas desiguais entre polarizações
essencializantes ou diferenciações como centro e periferia, Ocidente
e Oriente, moderno e japonês. Essas polarizações muitas vezes atuam
com interesses políticos, nem sempre presentes de forma consciente
(KAUFMANN; DOSSIN; JOYEUX-PRUNEL, 2016, p. 2).
155 This is modernism as it continues to be constructed through cultural mercantilism: peri-
phery is envisioned both as a cultural export market and as the source of inspiration, the raw
materials of art. Despite modernism’s transnationality and its reliance upon the ideas, commodities, and traffic of imperialism, discourse on the period continues to construct the center as
origin.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Ademais, é preciso reconhecer que o problema também se
complexifica à medida que, por exemplo, o Oriente156 se orientaliza
através de tais dinâmicas, como aponta Said (2007, p. 433). Essas relações desiguais também minimizam ou negam ao outro a posição ativa
e consciente de sua escolha criativa ao articular determinados elementos que podem ser tidos como particulares de seu substrato geográfico
– uma estratégia inclusive de inserção no cenário e mercado artístico
internacional, conforme discute Yun (2018).
Essas produções e criatividades são simplificadas na medida
em que parecem necessitar de uma apreensão que as situe dentro de uma
ou outra categoria, de difícil coexistência ou afinidade entre si. Numa
realidade artística cada vez mais globalizada, distinções geográficas e
culturais esperadas das produções de artistas nativos das margens do
centro artístico internacional permanecem de forma proeminente como
forma de autenticidade:
Ser “exótico” frequentemente auxilia, encoraja e promove o
trabalho de artistas não ocidentais na forma do kitsch, que então
parece autêntico, específico e original na arte contemporânea
internacional. O exotismo reencarna o mito da originalidade,
autenticidade e singularidade artística e fortalece o sistema
capitalista porque a “raridade” garante alto valor econômico e
artístico. Observe que “ser exótico” não é simplesmente uma
questão de gosto estético em relação aos países asiáticos; também, no final, levanta a questão da liberdade artística de artistas
periféricos hoje condenados a falar quase apenas de seus ancestrais157 (Ibid., p. 384, tradução nossa).
As questões discutidas ao longo deste trabalho permanecem
156 É importante nos atentarmos ao fato de que o Oriente tratado por Said não é exata e majoritariamente o Japão ou o Leste Asiático. Ainda, no caso nipônico específico, como podemos
ver em sua anterior presença imperialista na atual Coreia do Sul, o país demonstra uma complexidade à delimitação dual dos papéis de sujeito/objeto, de colonizador/colonizado para a teoria
do Orientalismo de Said (NISHIHARA, 2005).
157 To be “exotic” often assists, encourages, and promotes the work of non-Western artists in
the form of kitsch, which then appears authentic, specific, and original in international contemporary art. Exoticism reincarnates the myth of originality, authenticity, and artistic uniqueness,
and strengthens the capitalist system because “rarity” ensures high economic and artistic value.
Note that “to be exotic” is not simply a question of aesthetic taste in regard to Asian countries;
it also, in the end, raises the issue of the artistic freedom of peripheral artists condemned today
to speak almost only of their ancestors.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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enraizadas na história da arte e no cenário artístico internacional, conforme demonstra autores como Joyeux-Prunel (2019) e Yun (op. cit.).
Frente à urgência de se enfrentar tais relações de poder e particularizações geográficas, e a partir delas reimaginarmos as diversas esferas do
mundo artístico, numerosos esforços teóricos e práticos foram e estão
sendo empreendidos ao redor do globo.
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348
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349
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REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
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350
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
AURA E AUTENTICIDADE: OS DESENHOS DE
J. CARLOS PARA AS CAPAS DE PARA TODOS
Jovita Santos de Mendonça158 – jovita@ufrj.br
Resumo: Esse trabalho tem por objetivo analisar quatro desenhos
preparatórios do caricaturista e ilustrador brasileiro J. Carlos (José Carlos
de Brito e Cunha, 1884-1950) produzidos entre os anos de 1925 e 1930
para publicação na revista carioca “Para Todos…”. Serão discutidas as
relações de aura e autenticidade subjacentes a tais obras, tendo como
base o clássico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” (1936), de autoria do filósofo alemão Walter Benjamin. Ainda
que a criação destes originais se destinasse à múltipla reprodução para
assim chegar em sua materialização e expressão final, o que essas obras
podem nos comunicar, além das escolhas técnicas e estratégias visuais
adotadas por J. Carlos?
Palavras-chave: J. Carlos; Para Todos...; Revistas ilustradas; Ilustração.
Abstract: This paper aims to analyze four preparatory drawings
of the Brazilian caricaturist and illustrator J. Carlos (José Carlos de
Brito e Cunha, 1884-1950) produced between the years 1925 and 1930
for publication in the Rio de Janeiro magazine “Para Todos...”. The
relationships of aura and authenticity underlying such works will be
discussed, based on the classic essay “The Work of Art in the Age of
Mechanical Reproduction” (1936), by German philosopher Walter
Benjamin. Even if the creation of these originals was destined to multiple
reproductions to reach their final materialization and expression, what
can these works communicate to us, besides the technical choices and
visual strategies adopted by J. Carlos?
Keywords: J. Carlos; Para Todos...; Illustrated magazines; Illustration.
158 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Origem, originais e originalidade em J. Carlos: os desenhos preparatórios para as capas de Para Todos… (1925-1931)”,
orientada pela Profa. Dra. Marize Malta Teixeira, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Caricaturista, ilustrador e designer gráfico, José Carlos de Brito
e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, nasceu na cidade do Rio de
Janeiro em 1884. É considerado como um dos maiores representantes
da caricatura brasileira, sendo atuante na imprensa entre os anos de
1902 a 1950.
Sua obra chegou ao público através das páginas de importantes
revistas brasileiras da primeira metade do século XX, tais como “Careta”, “Para Todos...”, “O Malho”, “O Tico-Tico”, “Fon-Fon”, “Illustração Brasileira”, “Vida Moderna”, “A Cigarra”, “O Cruzeiro”, entre
muitas outras. Foi o diretor de arte dos títulos publicados pelo grupo
S.A. O Malho entre os anos de 1922 a 1931, período em que além de
coordenar a atualização gráfica dos títulos distribuídos pela empresa,
produziu ilustrações icônicas para as capas da revista “Para Todos…”,
uma das principais referências de seu trabalho como artista gráfico.
Veículos tão diversos em termos de assuntos e pautas, quanto
apelativos à sensibilidade moderna, as revistas ilustradas materializavam um exercício dinâmico de visualidade. Considerando os processos
de modernização da comunicação de massa no Brasil da Primeira República, tais publicações tiveram “papel estratégico e de grande impacto social. Articuladas à vida cotidiana, elas terão uma capacidade de
intervenção bem mais rápida e eficaz, caracterizando-se como “obra em
movimento.” (VELLOSO, 2010, p.43). Nesse sentido, a produção de J.
Carlos para os periódicos está diretamente relacionada a um período de
grandes mudanças urbanas no Rio de Janeiro, então capital do Brasil:
ilustrando novos hábitos, modas e identificações, o artista solidificava
e colocava em circulação os símbolos de uma cidade que passava a se
entender como moderna.
Partindo do contexto apresentado, esta pesquisa tem como objeto de análise os desenhos preparatórios de J. Carlos para publicação
na capa da revista “Para Todos…”, que atualmente estão sob os cuidados do departamento de Iconografia do Instituto Moreira Salles, no Rio
de Janeiro. Tais obras integram a coleção Eduardo Augusto de Brito e
Cunha159, originada em parte pelo material reunido pelo artista durante
159 Eduardo Augusto de Brito e Cunha (1921-2012) foi o quarto dos seis filhos de J. Carlos.
Tornou-se um dos administradores da obra de J. Carlos a partir da morte do artista. Seus cuidados com a administração e preservação da obra e da memória do pai foram incansáveis até o
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
sua vida e também por acréscimos feitos por seus filhos, que após a
morte do pai recuperaram alguns desenhos nas oficinas da revista “Careta”. A coleção foi incorporada ao acervo do IMS no ano de 2015 e ao
todo reúne 1185 itens, entre periódicos, desenhos preparatórios, pinturas a óleo e documentos pessoais.
Apesar de figurarem em menor número em relação aos demais
originais presentes na coleção (sendo 10 de 956 obras), as ilustrações
para as capas de “Para Todos...” foram definidas como o objeto da pesquisa por formarem um universo coeso e por serem exemplos bem-acabados das estratégias visuais empregadas pelo artista no espaço de
maior evidência da publicação. Ainda que este material não represente
a totalidade da produção de J. Carlos em “Para Todos...”, encontram-se
ali os principais temas e assuntos tratados pelo artista ao longo de sua
carreira: a representação da mulher, do cotidiano urbano do Rio de Janeiro do início do século XX e de símbolos de nacionalidade. O presente texto irá se deter em quatro originais do artista, que foram produzidos
entre os anos de 1925 a 1930160 .
Para explorar as possibilidades de sentidos de uma imagem, a
coisa imaterial, que tomava forma na mesa de trabalho e chegava até a
banca de jornal, recorremos às ideias apresentadas pelo filósofo alemão
Walter Benjamin no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, para refletir sobre as noções de aura e autenticidade subjacentes a essas obras, cuja expressão final se materializou no impresso
de grande circulação. A esses princípios, podemos adicionar a ideia de
anacronismo, conceito utilizado pelo historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, e que seria “a primeira aproximação, um modo
temporal de exprimir a exuberância, a complexidade, a sobredeterminação das imagens”. (DIDI-HUBERMANN, 2015, p.22). Ainda que situadas fora do tempo de sua criação, as ilustrações de J. Carlos operam
como agentes de sentidos e potências estéticas aos olhares atuais.
Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”,
Benjamin analisa o impacto social, cultural e político ocasionado pela
seu falecimento em 2012.
160 Apesar de ter assumido a direção de arte do grupo S.A. O Malho em 1922, as capas de
“Para Todos...” ilustradas por J. Carlos teriam circulação mais frequente a partir de dezembro
de 1925, assim permanecendo até o final de sua parceria com a empresa em 1931.
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transformação dos meios de reprodução de imagens. Impulsionado pelo
surgimento de técnicas de gravação e impressão, o status de reprodutibilidade de uma obra ganhou fôlego sem precedentes com o advento
da litografia no século XIX, seguindo-se os avanços realizados pela fotografia, culminando no cinema e em sua capacidade de difusão entre
as grandes massas. Com isso, o período compreendido entre o final do
século XIX e o início do século XX vivenciou o crescimento das camadas urbanas junto à transformação dos meios de comunicação. Assim, é
neste cenário, que, para Benjamin, se coloca em questão o estatuto das
imagens produzidas a partir da associação entre agilidade de produção,
qualidade de impressão e alta capacidade de circulação:
O aqui e agora da obra original constitui o conceito de sua autenticidade, em cuja base se encontra a ideia de uma tradição
que acompanhou esse objeto até os dias atuais como o mesmo e
idêntico. Todo o âmbito da autenticidade escapa à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não apenas à técnica. Enquanto
a obra autêntica conserva a sua autoridade frente a reprodução
manual, rotulada, via de regra, como falsificação, o mesmo não
ocorre com a reprodução técnica. Há uma dupla razão para tal.
Primeiramente, a reprodução técnica se revela frente ao original como mais independente do que a reprodução manual. Ela
pode, por exemplo, salientar na fotografia aspectos do original
acessíveis apenas à lente ajustável, cujo ângulo de mira é escolhido arbitrariamente, mas não ao olho humano; ou ainda,
graças a certos procedimentos como a ampliação ou a câmara
lenta, é possível reter imagens que simplesmente se furtam à
ótica natural. Essa é a primeira razão. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode ainda trazer a cópia do original a certas
situações não acessíveis a ele. Acima de tudo, ela torna possível
ao original se aproximar do receptor, seja na forma de fotografia ou da gravação. (BENJAMIN, 2015, p. 283)
Mas, afinal, o que é autenticidade? Faz sentido falar em autenticidade de uma obra múltipla como um impresso? Partindo da definição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS, VILLAR,
2001, p. 348), autenticidade é a qualidade, a condição do que é autêntico, que por sua vez tem as seguintes acepções: cuja origem é comprovada, cuja autoria é atestada, reconhecido como legítimo, fidedigno.
Levando-se em consideração que para Benjamin “a obra de arte reproduzida se torna cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
para a reprodução” (BENJAMIN, 2015, p. 287), os desenhos preparatórios de J. Carlos estão exemplarmente situados nessa definição: são
obras únicas, criadas em função de sua reprodução múltipla e fidedigna,
com destino à apreciação coletiva.
Em termos de materialidade, os desenhos originais podem ser
encarados como um documento privilegiado das escolhas de J. Carlos: são um registro primordial, no sentido de primeiro, da habilidade
técnica e visual de um artista em pleno potencial e segurança de suas
habilidades. Registram orientações e anotações sobre cores e efeitos de
impressão, pedidos para que a gráfica cuide bem do desenho, intervenções posteriores como carimbos e assinaturas, e sinais como manchas
de cola e impressões digitais, marcas que evidenciam os usos e percursos vivenciados por essas obras.
Para compreender a tônica visual das capas criadas por J. Carlos
para a revista “Para Todos…”, é preciso, antes, esboçar a pauta geral da
publicação. Abaixo, a professora da faculdade de Letras da UFRJ, Vera
Lins, descreve o que poderia ser encontrado nas páginas da revista:
Para todos é dirigida por Álvaro Moreyra, de parceria com J.
Carlos, que faz as capas. Uma crônica ou poema de Álvaro
abre todos os números de 1918 a 1930, tempo de vida da revista. O cinema é seu ponto forte. De resto, segue o modelo
de Fon-Fon!, mas agora bem mais sofisticada. Muito ilustrada,
cabe de tudo em suas páginas: crônicas (de um Drummond recém-chegado ao Rio, de Nelson Rodrigues e outros), crítica de
teatro, muita fotografia de corridas de carros, as obras na cidade, figuras oficiais e estrelas americanas. Traz sempre o encarte
sobre cinema, cujo redator-chefe é o “operador”. Imprime letra
e música dos novos ritmos – jazz, foxtrote e tango. A cocaína
é assunto constante de blague. Café, cigarro, álcool e cocaína
ajudam a energizar a cidade, que procura acelerar seu ritmo no
compasso da produção industrial. (LINS, 2010, p.33)
“Para Todos...” se direcionava a temas como comportamento, literatura, moda e vida social. As capas não costumavam fazer referência
aos assuntos abordados no interior da publicação, mas sim a estações
do ano ou a datas comemorativas como o Natal e o Carnaval. Em geral,
as imagens eram apelativas ao público feminino, representando cenas
do cotidiano urbano, ou situações fantasiosas, geralmente protagonizadas por mulheres. Mônica Pimenta Velloso pontua que em geral, nas
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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revistas “o moderno configura-se através dos perfis femininos, inspirando-se tanto nos modelos e atributos clássicos da beleza, como no
arrojo dos novos comportamentos e da nova moda.” (VELLOSO, 2010,
p.44-46). Esse direcionamento foi representado de forma exemplar em
“Para Todos…”, tendo em vista as frequentes aparições da melindrosa,
uma das personagens mais desenhadas por J. Carlos, que moldava uma
imagem-síntese da moda e comportamento da jovem mulher carioca
dos anos 20.
Além de produzir ilustrações visualmente alinhadas à pauta da
revista, em “Para Todos...” J. Carlos também apresenta o seu o raciocínio enquanto diretor de arte, empregando nas capas combinações de
cores que se repetiriam durante um determinado ciclo. Tal esquema de
trabalho foi identificado por Julieta Sobral, designer e professora da
PUC Rio, e seria um padrão ao longo da atuação de J. Carlos em Para
Todos..., onde o já mencionado “descompasso” entre o tema da capa e
o conteúdo da publicação:
(…) permitiu a J. Carlos otimizar o uso do parque gráfico, rodando quatro capas por vez. A ‘paleta’ que criou em Para Todos
é marcada pela ousadia na escolha dos matizes. Impressas em
três, eventualmente em quatro cores, misturadas através da sobreposição de retículas, com o intuito de alterar o tom, ou obter
novos matizes, tais capas constituem uma verdadeira aula de
design gráfico. (SOBRAL, 2007, p.66)
As figuras 1 e 2 foram publicadas em “Para todos...” com uma
pequena diferença de tempo: a primeira saiu em 26 de dezembro de
1925 e a segunda em 03 de abril de 1926. Ambas representam uma cena
de toalete protagonizada pelos mesmos personagens: uma jovem mulher e seu ajudante. Também apresentam soluções de composição semelhantes: as figuras são desenhadas sobre fundo branco, cujas sobras
de espaço são aproveitadas para a inclusão de elementos gráficos como
o título da publicação, a data, o número da edição e o preço de venda.
Apesar do fundo vazio, a postura dos personagens em ambas situações
sugere intimidade, dando a entender que estamos olhando para cenas
que se passam num ambiente reservado, seja no interior de um quarto
ou de um ateliê. São imagens que convidam um leitor indiscreto a entrar nessas privacidades, onde o tempo parece em suspenso.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Ainda que semelhantes, é possível notar algumas diferenças
entre essas duas imagens: o original publicado em dezembro de 1925
(figura 1), trata-se de uma capa referente ao Natal, o que é indicado pela
data de publicação e pelo pinheirinho desenhado na tampa da caixa que
é ofertada pelo pajem. Há espaços vazios à esquerda, reservados para o
título da revista, preço, data e número da edição, incluídos à posteriori.
O exotismo, temática que se tornaria cara a J. Carlos em anos posteriores, está assinalado nessa ilustração através do pajem. O personagem,
alusivo à figura do rei mago Baltazar, tem suas origens orientais marcadas pelo corte, estampa e ornamentos caprichados de sua vestimenta.
A jovem olha para baixo e observa o conteúdo da caixa. Consequentemente direciona sua visão ao pajem, mas não pode vê-lo pois ele
está totalmente coberto pela enorme caixa de presente. Assinale-se também a diferença dos modos de representação dos personagens: a moça é
branca, alta, esbelta, seu rosto foi desenhado com particular delicadeza.
Já o pajem, negro e baixinho, tem feições genéricas e estereotipadas,
sua pele foi preenchida em nanquim preto, ao contrário da jovem, que
apresenta matizes de rubor nas bochechas. Ele se apresenta ao leitor em
posição inferior à moça, boquiaberto, como se admirasse aquilo que,
curiosamente, não pode ver. Sua posição é a de um servo. A agente da
cena é mulher e seu gesto sugere o movimento de quem se prepara para
pegar o presente.
Já na ilustração publicada em abril de 1926 (figura 2), J. Carlos
parece reinterpretar, à luz de sua contemporaneidade, o ideal de representação da Vênus e do Cupido. Aqui, moça é envolta em gentilezas:
seus pequeninos pés repousam sobre uma grande almofada. A jovem
está sentada em uma poltrona que não possui encosto, deixando em
evidência suas costas nuas, assim como a ampla saia e o laçarote de seu
vestido. A cena se desenrola em um ateliê, considerando os materiais
dispostos na área inferior da ilustração. O cupido porta um conjunto de
paleta e pincéis, que utiliza para maquiar a modelo. A imagem sugere
que o cupido é o agente dessa cena, onde a moça, de olhos fechados,
simplesmente se entrega a seus cuidados.
Se na primeira capa J. Carlos capricha nos detalhes da roupa
do servo, aqui ele se esforça nos cabelos do cupido, empregando diferentes tons de amarelo para simular nuances de iluminação. Enquanto
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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na ilustração anterior as feições do pajem estão praticamente cobertas,
aqui podemos ver a expressão do cupido, admirado e concentrado em
sua criação. Ele está posicionado sobre os joelhos da moça, encarando
diretamente a sua modelo. Nas duas capas o artista coloca os personagens do pajem e do cupido diminutos em relação às damas, conferindo
inequívoco destaque às figuras femininas.
Em ambos os desenhos J. Carlos apresenta um traço firme,
acentuado e limpo. Apesar do esmaecimento das cores dos originais,
é possível notar que as imagens foram transpostas de maneira bastante
fiel pela gráfica (figuras 3 e 4), garantindo sua expressão múltipla e final
através do impresso. Segundo Cássio Loredano, caricaturista e pesquisador especialista na obra de J. Carlos, isso era possível pois:
O desenhista estava liberado pela zincogravura de preparar originais na madeira, no metal ou na pedra, tendo que manipular
goivas, enxós, pontas-secas, lápis graxos, ácidos. O traço, que
o artista passara a gozar da comodidade de preparar sobre o
papel, a tinta, era transferido fotograficamente para o clichê.
Jornais e revistas reproduziam assim exatamente o que o caricaturista ou ilustrador fizera, numa atividade agora limpa, livre da
esquizofrenia de imaginar uma coisa e desenhá-la invertida, de
trabalhar sabendo que ao público chegaria espelhada a imagem
que ele tinha diante de si, quase mais imaginando do que vendo
o resultado final. (LOREDANO, 2019, p.163)
Outro ponto importante dentro da produção de J. Carlos foi a
representação de símbolos de nacionalidade. A ilustração publicada em
16 de novembro de 1929 (figura 5) faz alusão ao quadragésimo aniversário de Proclamação da República, onde o artista expõe o Brasão de
Armas do Brasil interpretado à moda art-déco. Apesar de estilizado, os
elementos que constituem o emblema são reconhecíveis: a constelação
do Cruzeiro do Sul, a estrela de cinco pontas, a guirlanda formada pelos
ramos de café e de fumo, o resplendor dourado.
Ao contrário das capas discutidas anteriormente, aqui a suavidade das cores do original, onde prevalecem as cores da bandeira brasileira, ganha tons mais vibrantes e sólidos quando trabalhados pela
gráfica (figura 6). J. Carlos inscreve inúmeras orientações nas margens
do desenho indicando a utilização de retículas para obter em gráfica os
efeitos de meio-tom desejados, também inclui manualmente o título da
358
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
publicação, formado por letras em afinidade com a composição, e os
dados da edição. J. Carlos insere o Brasão no centro de um círculo, colocando o símbolo nacional em destaque, de onde partem pequenos feixes que sugerem luminosidade e vibração. Não há espaços em branco
nesse impresso. A capa da revista é plenamente ocupada pelo símbolo
de uma República que, na visão do artista, estava em esplendor.
O cotidiano urbano aparece representado na capa de 31 de maio
de 1930 (figura 7), onde vemos três jovens que conversam animadamente. Uma delas estende a mão e exibe um anel. A moça com o anel
e a outra, posicionada no centro, sorriem, parecem entusiasmadas. Esta
última, ocupa uma posição ambígua na imagem: ao mesmo tempo em
que parece observar as mãos da companheira, também encara o espectador.
Onde a cena acontece? Os padrões decorativos ao fundo sugerem que se passa ao ar livre, na rua. São formas abstratas, sinuosas que
conferem sensação de movimento ao desenho e que sugerem nuvens,
brisas, raios solares. É outono, e uma brisa sopra a barra do vestido da
moça à esquerda. A composição se organiza de maneira a enfatizar a
presença das jovens no centro da ilustração, e assim o conjunto sugere
um convite ao leitor: “venha para a rua você também!”. São as três
graças circulando numa cidade moderna, onde passear pelas ruas compreende o jogo de ver e ser visto.
J. Carlos também desenhou o título dessa edição, que se dispõe
em duas linhas e ocupa uma boa parte da margem superior do papel.
Exceto pela letra “s”, o letreiro é formado por linhas retas, compensando o restante dos elementos que compõem a imagem. As consoantes P
e T, além de preenchidas com cor, têm detalhes de frisos, quebrando a
rigidez do traçado das letras e harmonizando com o padrão decorativo
de fundo. A capa em si perde um bocado da sutileza de seu colorido original quando finalizada pela gráfica, tornando-se mais vibrante e
contrastada (figura 8).
As três moças vestem-se elegantemente e seguem a moda da
época: usam chapéu cloche e os cabelos curtos. Altas, esguias, jovens
e ligeiramente despreocupadas, são a imagem da melindrosa, por excelência. Ao contrário da representação de intenção mais realista das
mulheres das duas primeiras ilustrações comentadas, aqui J. Carlos as
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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desenha de forma limpa e econômica, seja na expressão facial ou na
postura corporal.
Seja inspirando ou refletindo comportamentos, valorizando imagens de juventude e de nacionalidade, a produção de J. Carlos em “Para
Todos…”, sendo compreendida como um objeto de recepção e difusão
coletiva, pontuava e se articulava de maneira eloquente ao cotidiano
do Rio de Janeiro, que, no início do século XX, passara por reformas
urbanísticas como as do prefeito Pereira Passos (entre 1902-1906), que
tinha entre seus objetivos conferir novos ares e hábitos a uma cidade
que desejava se distanciar de seu passado de colônia e império.
Sabemos que a imagem nos sobreviverá, e que o espectador é
aquele que está de passagem. A imagem é aquilo que seguirá para o
futuro, carregando em si duração, persistência, abrindo-se a questionamentos e interpretações. Nessa relação entre deslocamento e permanência, a aura se presentifica no contato entre a obra e o espectador, “pois a
aura está ligada ao seu aqui e agora. Não há cópia dela.” (BENJAMIN,
2015, p. 297). Se a aura significa presença, as hoje quase centenárias
ilustrações de J. Carlos experimentaram, através do impresso, a amplitude de seu aqui e agora nas mãos de seus inúmeros leitores, e permanecem abertas a novos encontros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:
DUARTE, R (org). O Belo autônomo textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
DIDI-HUBERMANN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo
das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
HOUAISS, A.; VILLAR, M de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LINS, V. Em revistas, o simbolismo e a virada de século. In: OLIVEIRA, C.
de. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930.
Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
LOREDANO, C. A linha, serva e senhora. In: LOREDANO, C.; KOVENSKY,
J.; PIRES, P. (Orgs.), J. Carlos: Originais. São Paulo: IMS, 2019.
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SOBRAL, J. O desenhista invisível. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007.
VELLOSO, M. P. As distintas retóricas do moderno. In: OLIVEIRA, C. de. O
moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio
de Janeiro: Garamond, 2010.
Imagens:
Figura 1. J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1925. Nanquim, guache, aquarela e grafite sobre papel. 51,5 x 39,1 cm.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
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Figura 2: J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1926. Nanquim, guache, aquarela, grafite e lápis de cor sobre papel. 49,3 x 36,1 cm.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
Figura 3: J. CARLOS. Revista Para Todos... 26.12.1925. Impressão tipográfica sobre papel.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
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Figura 4. J. CARLOS. Revista Para Todos... 26.12.1925. Impressão tipográfica sobre papel.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
Figura 5. J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1929. Nanquim, guache e
grafite sobre papel. 50,7 x 38cm.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
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Figura 6. J. CARLOS. Revista Para Todos... 16.11.1929. Impressão tipográfica sobre papel.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
Figura 7. J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1930. Nanquim, guache e grafite sobre papel. 48,2 x 36,2 cm.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
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Figura 8. J. CARLOS. Revista Para Todos... 31.05.1930. Impressão tipográfica sobre papel.
J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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A PAISAGEM CARIOCA POR THOMAS
GEORG DRIENDL: UM ESTUDO DE CASO
Julia Maria de Souza dos Santos161 - juliamaria@edu.unirio.br
Resumo: O presente artigo consiste em apresentar uma produção particular do pintor Thomas Georg Driendl, intitulada “Vista da Baía de
Guanabara”, bem como certos aspectos ligados ao pintor e ao contexto
da pintura de paisagem do final do século XIX no Rio de Janeiro.
Palavras-Chave: Thomas Georg Driendl; Pintura de paisagem; Século
XIX; Grupo Grimm.
Abstract: This article presents a particular production by the painter
Thomas Georg Driendl, entitled “Vista da Baía de Guanabara”, as well
as certain aspects related to the painter and the context of landscape
painting in the late 19th century in Rio de Janeiro.
Key words: Thomas Georg Driendl; Landscape painting; 19th century;
Grupo Grimm.
Diante de tantas produções executadas pelo artista Thomas
Georg Driendl (1849-1916), no presente artigo optou-se discutir a questão da pintura de paisagem na produção do artista, tendo como estudo
de caso a aquarela intitulada “Vista da Baía do Rio de Janeiro”, ca.
1888. [FIGURA 1].
Nesse contexto, para a pintura de paisagem, é necessário citar
seu coleguismo com o artista Johann Georg Grimm (1846-1887). No
ano de 1884, Grimm e Driendl se mudaram para Niterói, “ocupando
parte de um grande casarão situado à Rua da Boa Viagem, [...] tendo como seu vizinho Thomas Georg Driendl” (PEIXOTO, 1989: 176).
161 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado, em desenvolvimento, a respeito da atu-
ação do artista Thomas Georg Driendl no Rio de Janeiro, orientada pelo Prof. Dr. Rafael Denis
Cardoso, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Driendl “[...] era o amigo inseparável” de Grimm, e “quem o substituía
quando havia algum impedimento” (PARREIRAS, 1999, p. 51). “De
acordo com Gonzaga Duque em seu livro “A arte brasileira” (1888), é
possível notar os elogios a respeito das inovações trazidas pelo grupo
Grimm em relação ao fazer artístico -pictórico- e ao ensino: uma fatura
luminosa e a preferência d’après la nature. [FIGURA 2]
Estar ao ar livre, até mesmo ligado à uma filosofia enquanto
metodologia, faz com que o pintor crie uma relação detalhada entre o
olho e a paisagem, acerca da mímesis que festeja no olhar do pintor e
demonstram um comprazimento com o sentido estético. [FIGURA 3]
À respeito do grupo Grimm, mais especificamente de sua paleta de cores, Avila (2019) elaborou, a partir de um documento de compras de tubos (1883), pertencente à Academia Imperial de Belas Artes,
evidências em que menciona a paleta de cores enquanto resultado de
uma “unidade estética coesa” do grupo (AVILA, 2019). Abaixo, tem-se dois exemplos de reprodução das cores utilizadas, sendo a segunda
imagem com tons de verde adicionados [FIGURA 4 e 5]:
Sabe-se que, no caso citado anteriormente, tratam-se de pigmentos à óleo, distinguindo-se da produção abordada em questão neste
artigo, que foi produzida com aquarela. Não obstante, julga-se importante aproximar-se dessas informações para melhor compreensão do
momento técnico em que Thomas Driendl estava inserido. Para efeito de possíveis comparações cromáticas, tendo em vista as diferenças
entre técnicas e suportes, apresenta-se uma obra de Antônio Parreiras
(1860-1937) intitulada como “Dois panoramas da Baía de Guanabara’’
e abaixo, novamente a “Vista da Baía de Guanabara”, por Driend [FIGURA 6 e 7]l:
A “Vista da Baía de Guanabara” é um exemplo da vague romântica e realista produzida pelo viés artístico e filosófico alemão. O
espírito de liberdade é propício à busca de sensações diversas, que caminharam em outros locais do mundo; na América do Sul como representante do Instituto de pintura religiosa de Munique (PEIXOTO,
1989, p. 187 e 188) e em diversos locais do Brasil atendendo trabalhos.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Característica essa que Gonzaga Duque chamou de “nomadismo”, referindo-se ao pintor Johann Grimm (DUQUE-ESTRADA, 1995: 193).
Em face das transformações que se desenrolavam
na virada do século XVIII para o XIX, as concepções acerca da representação da paisagem também
se alteravam. Não se tratava mais de pensar a paisagem a partir de um “cenário aprazível para cenas
idílicas”. [...] Ao longo do século XIX, sob a inspiração dos textos de Goethe, originalmente nos
espaços que atualmente correspondem à Alemanha,
a pintura encontrou um modo particular de evidenciar as relações entre o homem e a natureza. [...]
Inaugurava-se assim a “tragédia da paisagem”: um
espaço propriamente sem limite, onde o homem é
confrontado com sua expressão diminuta e quase
insignificante. (ALBUQUERQUE e LOUREIRO,
2018: 150)
Com relação aos contextos presentes na Alemanha, de certo
pode-se afirmar que o artista possuía uma cultura visual vindoura da
Akademie der Bildenden Künste München (Academia de Belas Artes de
Munique) e o cenário artístico da cidade. Sua vivência e seu estilo pictórico é readequado na cidade e emulsificado com a presença de certas
exposições na ENBA (Escola Nacional de Belas Artes). Ainda, Portela
(2008) acrescenta que
Em 1868, [...] o ambiente artístico alemão era essencialmente romântico. Inebriado pela sensação
de liberdade que facilitava infindáveis pesquisas de
efeitos novos, os artistas produziam em larga escala, procurando diferentes motivos. A geração de
Grimm foi a de pintores plein air, ao mesmo tempo
românticos e realistas, da segunda metade e fim do
século passado. Na Europa Central, foram os que
sucederam aos Nazarenos; na França foram os precursores do Impressionismo, com várias tendências,
de Corot aos pintores da Escola de Barbizon.
Mencionando uma de suas vivências no seu país de nascimento,
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
antes de ser naturalizado brasileiro, Driendl esteve com Grimm no combate da guerra Franco-Prussiana em 1870, conhecendo o pintor nesse
cenário (PEIXOTO, 1989). “Essa mão de soldado-artista, tão firme e
inteligente”162 impressionou o crítico de arte Gonzaga-Duque com sua
fatura quente, sinuosa, iluminada, com “cores fortes, bem temperadas”
(DUQUE-ESTRADA, p. 191). A respeito de sua movimentação pelo
mundo, Carlos Maciel Levy comenta:
[...] descendentes de Thomas Driendl [...] afirmam
que teria ele viajado em busca de clima adequado
para a convalescença de ferimentos e enfermidade
decorrentes das campanhas da guerra de 1870; [...]
Além disso, a unidade da Alemanha após a guerra
caracterizou-se pela violenta perseguição religiosa
que Bismarck desencadeou através do Kulturkampf, e não terá sido por acaso que Grimm e Driendl
professavam o catolicismo (e Driendl chegou ao
Brasil como representante do Instituto de Pintura
Religiosa de Munique de Rietzler), quando o objeto da perseguição foram os católicos e seu partido.
(PORTELA apud. LEVY, 2008)
Ainda citando Baudelaire163, a partir de uma perspectiva do
homem moderno, os artistas são pessoas que ancoram em seus corpos
os diversos traços deixados pela ação da natureza - natureza como conceito, como espírito, etc. Podendo ser ladeada à ordem do sublime, da
finitude da vida - o sublime como um cerne de beleza enquanto tema:
“Cette végétation, apparemment et métaphoriquement indépendante,
exprime certains aspects de la vie de l’intelligence, des aptitudes actives et passives de l’esprit humain [...]”. (FOCILLON, 1947: 7)
Como se sabe, muitos artistas do entresséculos participaram de
guerras e logo após voltaram à vida artística com novas mentalidades
em relação à sua produção. A respeito da temática de paisagem, pode-se
colocar que
162 Citando um trecho de O pintor da vida moderna, capítulo Os anais da guerra. BAUDELAIRE, 2010, p. 38.
163 BAUDELAIRE, Charles. Op. cit., p. 38.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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[...] o primeiro (o homem), através de sua razão, procura domesticar a paisagem – enquanto a segunda (a
natureza), pelo sublime, se impõe – e, justamente
por meio da razão, impele a refletir sobre sua humanidade. É nessa dialética que o homem moderno,
fruto do Oitocentos, se relacionava profundamente
com a capacidade de formar e fortalecer laços sociais, ou, em outras palavras, de (se) civilizar. (ALBUQUERQUE e LOUREIRO, 2018: 160)
Para além de seus com Grimm, Driendl se posicionou socialmente em relação aos seus ofícios e demandas, expandidos para além da
pintura de paisagem. Na pesquisa em questão, pode-se ter como exemplo uma publicação no Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil
e Industrial (RJ), encontrado na hemeroteca digital (Biblioteca Nacional), entre os anos de 1891 a 1940164, que também menciona Driendl
como um pintor decorativo (grifo nosso):
Art. 740 - Pintores scenographicos e de decoração
Antonio Araujo de Souza Lobo, Acropolio, r. Conde
d’Eu, 196, loja.
Frederico Antonio Steckel, r. Lavradio 22.
Giacomo Micheli, r. Silva Manoel, 13 A.
Gonçalves, Rezende & C., r. Hospicio, 117 e 119.
João Stallone, decorador, pr. Republica, 11.
L de Wilde, pintor, r. Sete de Setembro, 102.
Manoel Alves Corrêa de Azevedo, r. Ajuda, 45.
Thomaz Driendl, r. Bôa Viagem, 11, Nitherohy.
V. A. de Perini & E. Nasala, r. Ouvidor, 124, 2o andar
Concluindo, observa-se na “Vista da Baía do Rio de Janeiro”
um horizonte emoldurado por montanhas que se tornam suaves com as
cores escolhidas para o céu e o mar. Essa escolha costura visualmente
a natureza do quarto plano em diante. Barcos pontuais e distantes também estão na composição, distribuídos nos lados esquerdo e direito. A
natureza, concebida pelas formas, remarca as forças sublimes, como
164 Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional. Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil
e Industrial (RJ) - 1891-1940. Ps. 951 e 952.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Focillon cita: “La nature elle est aussi crée des formes, elle imprime
dans les objets dont elle est faite et aux forces dont elle les anime des
figures et des symétries [...]”. (FOCILLON, 1947: 3).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE, Fernanda Deminicis de; LOUREIRO, Marcello José Gomes. Edoardo De Martino e a representação da civilização na pintura de paisagem e de guerra. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, vol.
50, p. 141-166, 2018.
AVILA, Bianca da Silva. A paleta do Grupo Grimm. Revista Visuais, Campinas, SP, v. 5, n. 2, 2019. DOI: 10.20396/visuais.v5i2.12363. Disponível em:
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/visuais/article/view/12363.
Acesso em: 02 jan. 2022.
BAUDELAIRE, Charles. Écrits sur l’art. Livre de Poche: Librairie Générale
Française, 1992.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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CASA CORPO, CORPO NINHO
Julia F Zanon165 – j.furtadozanon@gmail.com
Resumo: O ritmo acelerado da vida contemporânea e a dificuldade
de encontrar propósito e significados leva a uma desvalorização do ser
pois existe uma necessidade/vontade humana pelo simbólico. A experiência da hostilidade e desorientação fruto da alienação vivida pelo
indivíduo contemporâneo toma o lugar do verdadeiro sentido de habitar
uma vez que a significância e identificação social, cultural e espacial é
comprometida. Se o corpo não se reconhece em si mesmo e no mundo,
não há ligação de pertencimento entre os mesmos. Esse ensaio pretende
então apresentar os trabalhos artísticos Ninhos de Hélio de Oiticica e
Casa de Abelha de Brígida Baltar para refletir como eles se apropriam
da alegoria do ninho para pensar o corpo e resgatar a percepção original
do habitar frente as desordens dos diferentes contextos sociais em que
foram concebidos.
Palavras-chave: arte contemporânea; percepção; habitar; corpo.
Abstract: The fast pace of contemporary life and the difficulty of finding purpose and meanings leads to a devaluation of being because
there is a human need/will for the symbolic. The experience of hostility
and disorientation as a result of the alienation experienced by the contemporary individual takes place of the true meaning of inhabiting once
the significance and social, cultural and spatial identification are compromised. If the body does not recognize itself in itself and in the world,
there is no connection of belonging between them. This essay intends
to present the artistic works Ninhos by Hélio de Oiticica and Casa de
Abelha by Brígida Baltar to reflect on how they appropriate the allegory
of the nest to think about the body and rescue the original perception of
inhabiting in the face of the disorders of the different social contexts in
which were designed.
Keywords: contemporary art; perception; dwell; body.
165 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na pós-graduação intitulada “Casa
Corpo, Corpo Ninho”, orientada pela Profa. Mara Kiel, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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INTRODUÇÃO
No imaginário humano, a imagem do ninho invoca instintivamente impressões de segurança, primitividade, refúgio e consequentemente de bem estar. Segundo o filósofo francês Gaston Bachelard, o
ninho se apresenta como o momento do habitar, permitindo uma pausa
capaz de expandir o ser que ali se recolhe em descanso e assim retomando à ele a sensibilidade do poder da intimidade, hoje perdida para
um sujeito apático que se contenta com pouco e cujas experiências deram lugar à vivências sem vínculos de afeto.
Fisicamente, esse sentimento de refúgio incita em nós o bem estar primário e primitivo “testemunhando uma atividade de imaginação
apenas refreada pela realidade dos objetos” (1993, p. 197). O estímulo
da imaginação por essa imagem é então capaz de aprofundar lembranças e assim desprender-se do que é medíocre, rompendo com a experiência de um mundo interior indiferenciado, sem foco ou envolvimento
emocional. Em outras palavras: inspira o habitar dos lugares inabitados.
Pode-se dizer então, que o verbo habitar está intimamente ligado à imagem do ninho assim como está à imagem da casa.
A casa-ninho nunca é nova. Poder-se-ia dizer, de uma maneira
pedante, que ela é o lugar natural da função de habitar. A ela
se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro volta ao ninho,
como o cordeiro volta ao aprisco. Este signo do retorno marca
infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre o
grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os anos, que
luta contra todas as ausências através do sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente
de íntima fidelidade.
(BACHELARD, 1993 p. 261-262)
O ritmo acelerado da vida contemporânea e a dificuldade de encontrar propósito e significados leva a uma desvalorização do ser pois
existe uma necessidade/vontade humana pelo simbólico. A experiência
da hostilidade e desorientação fruto da alienação vivida pelo indivíduo
contemporâneo toma o lugar do verdadeiro sentido de habitar uma vez
que a significância e identificação social, cultural e espacial é comprometida. Se o corpo não se reconhece em si mesmo e no mundo, não há
ligação de pertencimento entre os mesmos. Esse breve ensaio pretende
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
então apresentar os trabalhos artísticos Ninhos de Hélio de Oiticica e
Casa de Abelha de Brígida Baltar para refletir como eles se apropriam
da alegoria do ninho para pensar o corpo e resgatar a percepção original
do habitar frente as desordens dos diferentes contextos sociais em que
foram concebidos.
1. CASA CORPO CORPO NINHO
No Brasil moderno os movimentos artísticos passaram a contestar a funcionalidade da arte em um contexto sociopolítico ditatorial
cheio de contradições. O crescimento da economia simultâneo à ampliação da produção dos bens de consumo em massa e dos meios de
comunicação fazia parte de um cenário onde os sujeitos eram incentivados a não pensar diferente e não desenvolver uma consciência crítica.
A censura, a violência e o cerceamento da liberdade alavancaram um
debate cultural que questionava a opressão relacionando cada vez mais
a ação artística à uma ação política. Inovações na área da saúde como os
métodos contraceptivos, garantiram uma maior liberdade e domínio sobre o corpo e influenciaram o pensamento sobre uma nova consciência
corporal, onde o corpo era responsável pela maneira do indivíduo perceber e estar no mundo. Entretanto, devido a esse contexto autoritário
pensa-se o corpo como símbolo e agente de resistência, participando e
sendo incorporado na obra como uma forma de romper com a passividade experimentada em sociedade e fortalecendo a ideia de um corpo
social que pode (e deve) ser ativo e político.
Hélio de Oiticica (Rio de Janeiro, 1937-1980) foi um artista que
nesse contexto ampliou o lugar da arte trazendo e expandindo-a para a
vida. Sua obra tem um forte caráter experimental e propositor, pressupondo a participação do público como fundamental. Integrante do Grupo Frente, sua arte transita entre a linguagem geométrica, a superação
dos suportes tradicionais e a valorização da participação do espectador
refletindo o que ele desejava para o indivíduo e para a sociedade brasileira: a transformação seguida pela vivência. Muito influenciado pelas
vanguardas ele busca em sua produção uma nova forma de representar
o homem e o mundo.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
377
Pensando então nas transformações necessárias para escapar
das contradições vividas socialmente no cotidiano, Oiticica apresenta
Ninhos (1969) como lugares de abrigo, onde é possível “reordenar e
desestabilizar signos” (BRAGA, 2007), ou seja, estabelecer novas relações com o corpo, com o espaço e com a ação propriamente dita. Articuladas como células, ele cria uma grande estrutura coletiva de beliches
separadas por cortinas, propondo uma atividade descondicionada ao fazer imposto. É um local de lazer, de diversão, no sentido de, diverso à
realidade. A liberdade para uma ação despretensiosa é uma proposição
inventiva onde o participante pode ocupar o tempo e o espaço de forma
subjetiva e ativa. Esse refúgio que escapa da realidade remete assim,
como o próprio título da obra, à essa imagem primitiva descondicionada, sem qualquer tipo de imposição contrastando então com a realidade
social experimentada pelos sujeitos daquela época.
Habitar um recinto é mais do que estar nele; é crescer com ele,
é dar significado a casca-ovo166 (...) Os ‘estados de repouso’
seriam invocados como estados vivos nessas proposições, ou
melhor, seria posta em cheque a ‘dispersão do repouso’, que
seria transformado em ‘alimento’ criativo, numa volta a fantasia profunda, ao sonho, ao sono-lazer ou ao lazer-fazer não
interessado. (OITICICA apud Braga, 2007, p. 131)
Ao libertar os comportamentos, Oiticica permite aos participantes a proposição de novas possibilidades de si e de mundo. Segundo
Braga (2007) a morfologia celular de estruturação desses espaços individuais dá aos ninhos “um caráter de organismo vivo” capaz de multiplicar, reproduzir e crescer, se transformando e gerando algo novo.
Cada célula faz parte da oportunidade de criação de um novo mundo
construído coletivamente. Apesar da física separação pelas cortinas,
existe a consciência de uma presença comum.
Se livre para ser o que ainda não é, os Ninhos de Oiticica também convocam uma nova modelagem da morada individual: o corpo,
agora, habitado intencionalmente. E, “a medida em que o corpo incorpora novos papeis, altera-se comportamentos ético-sociais. ” (BRAGA,
166 Casca-ovo pode aqui ser relacionada à casa em Bachelard: “É o primeiro mundo do ser
humano”, que nas lembranças de proteção acrescenta-se valores de sonho. (1993, p. 201)
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
2007) Como um animal recolhido em seu ninho, o corpo do participante
pode experimentar a segurança de ser plural e livre em comunidade. A
flexibilização da proposta se estende para o comportamento, logo, para
a vida.
Conterrânea de Oiticica, Brígida Baltar (Rio de Janeiro, 1959-)
inicia seu trabalho como artista na década de 90. Sobre esse período no
Brasil, é interessante destacar o que afirma Romão:
As políticas sociais atuais remontam e são reflexos, ainda hoje,
das opções feitas na década de 60 durante o regime militar, com
o Estado assumindo papel central na economia e com as políticas sociais submetidas a um desenvolvimento baseado no
consumo e sendo financiadas pelas contribuições sociais. (ROMÃO, 2003, p. 2)
A modificação dos instrumentos culturais pela tecnologia, pelos
novos meios de comunicação e a cultura de massa alteraram a nossa
percepção do mundo, estetizando-a. O consumo se tornou um vetor importante para a afirmação identitária dos indivíduos e o bem estar do
corpo passa a estar condicionado à produtos e técnicas de embelezamento, ou seja, está submetido à uma norma homogênea, se distanciando cada vez mais de uma autonomia subjetiva.
Nesse contexto, Baltar incorpora diversas expressões artísticas
e transita entre fotografia, vídeo, performance, desenho, instalação e escultura. Participante do Grupo Visorama, a artista integra as pesquisas
e reflexões sobre arte contemporânea buscando relacionar suas próprias
vivências corporais às narrativas ficcionais das fábulas. Suas investigações aproximam o corpo da natureza de forma intimista e híbrida,
personificando animais para contar suas histórias. Em entrevista dada à
Blank Tape (2010) a artista cita Freud para criticar a assepsia comportamental moderna e contemporânea, que amortece os nossos instintos:
“quanto maior o grau de civilidade que atingimos, menos se observa
os sinais de alguma relação com o mundo animal. ” Essa imagem do
primitivo está então fortemente relacionada à essência original a qual
ela busca retornar. Pode-se dizer portanto que, assim como em Oiticica
há um distanciamento da realidade à qual se opõe para que a reflexão
sobre a mesma se oportunize.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Em Casa de Abelha (2002), assim como anteriormente em outros trabalhos167 Baltar parte de um cenário íntimo, a sua própria casa,
para articular morada e coletividade. Em uma coletânea de vídeos, fotos, desenhos e textos, a artista se envolve sob uma roupa confeccionada sob o traçado de uma colmeia e num gesto poético coloca o seu
corpo como o propositor de afetos: seu corpo é a casa que habita e é habitada, assim como o ninho “é uma casa de vida: continua a envolver o
pássaro que sai do ovo” (1993, p. 258). Em um dos vídeos apresentados
pela artista, seu corpo conduz o mel que é derramado sobre ele, para a
estrutura da casa (escada) onde a artista senta em repouso. O mel compartilha o contato do seu corpo, que consequentemente, compartilha o
contato com a casa. Mel-corpo-casa são um só, afetam e são afetados
simultaneamente.
A organização coletiva das abelhas nas colmeias constitui-se em
abrigo e alimento, e consequentemente em sobrevivência. A organização em comunidade é o que estrutura e possibilita a capacidade de multiplicação, reprodução e crescimento das colmeias. Da mesma maneira
que os participantes na proposição de Oiticica participam como cita
Braga (2007) de um auto-teatro, ou seja, atuam como espectadores e
performers – são o que são e não são – a artista descondiciona-se do que
é sempre, no ato de transformar-se no seu próprio ninho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bachelard afirma que “todo espaço verdadeiramente habitado
traz a essência da noção de casa”. Quando esses trabalhos apresentam
uma provocação que ativa os corpos como criadores de comportamentos ao invés de somente reprodutores, eles fazem um convite ao habitar
consciente do corpo. O retorno ao bem estar primitivo é apresentado por
ambas as obras como uma maneira de lidar com o que é estabelecido e
experimentar “situações que disseminam dissonâncias diversas” (FABIÃO, 2008) colocando em visibilidade outras possibilidades, oportu167 Em Pó de Tijolo (1990-2000) a artista faz da casa o tema e a matéria para uma série de
trabalhos que seguiria desenvolvendo. A partir desse lugar-imagem ela explora as ideias de lar,
habitação, proteção e intimidade.
380
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
nidades de afeto. Ser ou estar em um ninho transforma e expande a ideia
que vivemos no nosso próprio corpo, que por tantos meios externos é
condicionado a todo momento para afetar/ser afetado de forma passiva
e acrítica. Tanto Oiticica quanto Baltar, reforçam a ideia de uma percepção ativa, evidenciando e instigando a vulnerabilidade dos sujeitos
e das suas relações com o corpo e o meio mas também nos convidando
à uma tomada de posição que pode ser divergente e coletiva. Como afirma Fabião (2008), “nossas dramaturgias não apenas participam de um
determinado contexto mas os criam”, a casa é corpo e o corpo é ninho.
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381
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ROMÃO, Frederico L. Brasil década de 90: a recorrência das desigualdades
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
CORPOS QUE (NÃO) IMPORTAM: REGIMES DE
INVISIBILIDADE E VIDAS PRECARIZADAS,
UM CASO DE ESTUDO DE AI WEIWEI
Lara Rossi Ambrozin168 - lara.rossi@usp.br
Mariana Abramo Fugagnolli - mariana.fugagnolli@usp.br
Resumo: Partindo das provocações de Judith Butler, Michel Foucault
e outros pensadores em relação ao papel de determinadas construções
discursivas na instituição de normatividades e suas exterioridades (zonas abjetas e precárias), o presente artigo, fruto de uma pesquisa de
Iniciação Científica, investiga a aplicação desse referencial teórico para
a leitura de parte da obra do artista chines Ai Weiwei.
Palavras-Chave: Arte contemporânea; Regimes de visibilidade; Precarização.
Abstract: Starting with Judith Butler, Michel Foucault and other author’s provocations regarding the role of determined discursive constructions in the establishment of normativities and its externalities (zones of abjection and precarity), the present article, result of a scientific
initiation, investigates the application of this theoretical framework for
the reading of part of the chinese artist Ai Weiwei’s work.
Keywords: Contemporary art; Visibility regimes; Precarization.
168 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação de arquitetura e urbanis-
mo, intitulada “Corpos que (não) Importam: Regimes de (in)visibilidade na Arte Contemporânea”, orientada pelo Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes, desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos
de Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP) no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento do Programa Unificado de
Bolsas.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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INTRODUÇÃO
Partindo do conceito de assujeitamento de Foucault, que afirma
que o processo de constituição do sujeito (sua inteligibilidade e materialidade corpórea) só pode ser entendido a partir de um determinado
contexto histórico e discursivo, Judith Butler analisa tal formação na
contemporaneidade. Para a autora as normatividades (enquadramentos)
e performatividades criam zonas de inteligibilidade a partir das quais
os corpos podem ser pensados e podem existir como vidas qualificadas.
Ao criarem tais limites, criam, dialeticamente, também uma zona de
exclusão/invisibilidade que extravasa os enquadramentos existentes,
questionando os regimes normativos e de visibilidade que lhes correspondem. Dado o caráter histórico e social dos processos de assujeitamento e sua compreensão enquanto um conjunto de performances,
é possível que se pense em práticas e regimes disruptivos, como os
presentes, nas análises de Judith Butler, na corporeidade trans.
Vários são os críticos que apontam a presença dessas temáticas na
arte contemporânea e o quanto algumas obras constituem dispositivos
de questionamento das normatividades em curso. Uma das formas de se
analisar tal questão é por meio da discussão sobre as vidas precarizadas
na sociedade contemporânea. Tal discussão, presente em várias obras de
Butler, também norteia alguns trabalhos do artista chinês Ai Weiwei169,
permitindo, portanto, que se possa verificar uma possível contribuição
das análises butlerianas para a crítica de arte contemporânea.
1. FORMAÇÕES DISCURSIVAS, REGIMES DE (IN)VISIBILIDADE E VIDAS PRECÁRIAS
A obra de Judith Butler dialoga com a de Michel Foucault em
inúmeras ocasiões, sem que necessariamente concorde totalmente com
o mesmo. Assim, embora a dimensão discursiva seja fundamental para
169 Embora nossa pesquisa e, portanto, o presente artigo, se limite ao trabalho de Weiwei, vá-
rios teóricos e artistas vêm adotando a precariedade como a condição contemporânea a partir da
qual não somente grandes parcelas da população são enquadradas, mas também como condição
expressiva da própria arte.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
ambos – e Foucault, por exemplo, nega uma existência a priori de sujeitos, visto que esses seriam criados discursivamente através do que
sobre eles é dito. Ou seja, a partir de regras de formação que adquirem
regularidades e estabelecem hierarquias morfológicas da linguagem,
o discurso produz significados aos corpos que controla -, para Butler,
(2019a) a formação do corpo não é posta integralmente pela linguagem,
pois as necessidades corporais e seus significantes são construídas juntas com seus significados. Importa, pois, os processos performativos,
constantemente reiterados, de produção de sentido dos corpos.
Se, para Butler e, também, para Foucault, os regimes e práticas
discursivas criam uma zona de inteligibilidade, um regime de verdade
(um conjunto de regras, normas, modos de ver) a partir dos quais os
corpos existem e são apreendidos, a existência de alguns corpos, como
os corpos abjetos, ao não se deixarem apreender dentro dos limites das
molduras sociais as tensionam, exigindo, portanto, a reconfiguração do
existente.
Essa matriz excludente pela qual os sujeitos são formados requer a produção simultânea de um domínio de seres abjetos,
aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo do domínio do sujeito. O abjeto designa aqui
precisamente aquelas zonas “não-vivíveis” e inabitáveis” da
vida social que, não obstante, são densamente povoadas por
aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito, mas cujo viver
sob o signo do “inabitável” é necessário para circunscrever o
domínio do sujeito. (BUTLER, 2019a, p.18)
Essas “identificações” sociais são os denominados “enquadramentos de guerra” de Butler, presentes na obra Quadros de Guerra:
quando a vida é passível de luto; (2017) enquadramentos, molduras,
pois eles estruturam modos de reconhecimento e apreensão (inteligibilidade) sobre quais seres são considerados como “vidas”; a denominação “de guerra” se relaciona aos quadros políticos que essas vidas são
relacionadas, visto que aos seres considerados como avariados, abjetos
e insurgentes às normas, a “guerra” contra estes é o fator pelo qual a
política é necessária para manter a paz aos “vivos”, aos indivíduos condizentes coercitivamente às normativas, àquelas “vidas que importam”.
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Esses enquadramentos geram ontologias discursivas específicas
aos sujeitos, que determinam se esta vida importa às ações políticas ou
se ela é um elemento dispensável de significação e assistência, existências invisíveis e não passíveis de luto, donde, portanto, a importância da
discussão sobre as vidas precarizadas. É possível notar que esses “enquadramentos” não se referem somente ao seu sentido sinônimo como
“moldura” ou categorização, esse termo também relaciona-se ao ato
coercitivo policial de limitar as liberdades, de sujeitar algo à violência e
à condições de violabilidade, uma maximização da precariedade. É um
cenário político, uma política de formação diferencial do sujeito nos
mapas de poder: “[...] não é a revogação ou a ausência da lei que produz
precariedade, mas sim os efeitos da própria coerção legal ilegítima, ou
o exercício do poder do Estado livre das restrições legais”. (BUTLER,
2017, p. 51)
Ainda que, para Butler, a precariedade seja uma condição ontológica do ser vivo e social, são os enquadramentos sociais e os regimes
políticos deles decorrentes que fazem com que determinadas parcelas da
população estejam mais ou menos expostas às violações de seus direitos, à violência e à morte. (BUTLER, 2017) Suas vidas, não enlutáveis
e precarizáveis, não importam. Essas populações abjetas representam,
para Butler, o potencial de ressignificação das normatividades, uma forma de questionamento do status quo, visto que a mera existência e visibilidade desse conjunto pode disseminar oportunidades críticas contra
matrizes hegemônicas.
Neste sentido, que Butler procura, através da performatividade,
entender esse funcionamento ontológico e, a partir dele, estabelecer
novas formações discursivas, disruptivas dessas barreiras excludentes.
Como a materialidade dos corpos é dada por efeitos originários de dinâmicas citacionais de poder, a performatividade destes agiria como um
poder desestabilizador das normativas, a fim de rearticular os horizontes das matrizes simbólicas nas quais os corpos tornam-se materialidades inteligíveis e reconhecíveis. Ou seja, tornar corpos que antes eram
inviabilizados, em forças de ruptura e instauração de novos regimes de
verdade e visibilidade.
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A razão pela qual a repetição e a ressignificação são tão importantes para meu trabalho tem tudo a ver com o modo de
eu conceber a oposição como algo que opera do interior dos
próprios termos pelos quais o poder é reelaborado. A ideia não
é baixar uma proibição contra o uso de termos ontológicos mas,
ao contrário, usá-los mais, explorá-los e resgatá-los, submetê-los ao abuso, de modo que não consigam mais fazer o que
normalmente fazem (BUTLER, 2002, p. 159)
É a partir desse pensamento, que as obras de arte contemporâneas podem ser examinadas como tensionamentos, ou mesmo, como tornam-se as forças reacionárias descritas por Butler, surgentes a partir do
compartilhamento em comum de precariedades dos indivíduos, representando vontades de vidas, corpos e sujeitos próprios, que desejam ter
importância, reconhecimento e visibilidade. As obras são a superfície
de inscrição e exposição da materialização das subjetividades individuais, e a partir de matrizes contra hegemônicas, a arte pode servir como
forma instauradora de novos regimes ontológicos, como veremos no
caso de estudo do artista chines Ai Weiwei.
2. AS “MÁQUINAS DE VER” DE AI WEIWEI
2.1. BIOGRAFIA E IMPORTÂNCIA DE AI WEIWEI PARA A
ARTE CONTEMPORÂNEA
Ai Weiwei (1957-) nasceu em Pequim, filho do poeta Ai Qing
(1910-1996) e de Gao Ying (1934-). Durante a Revolução Cultural
Chinesa, sua família foi enviada para campos de trabalho na província
desértica de Xinjiang, devido ao discurso artístico questionador de Ai
Qing. Com o fim da Revolução Cultural em 1978, Weiwei ingressou na
Academia de Cinema de Pequim e participou do grupo Stars [Estrelas],
contudo, devido a perseguições políticas ao grupo, o artista migrou para
os Estados Unidos em 1983, onde incorporou ao seu trabalho referências da arte ocidental. (MENEZES, 2011) Em 1993 o artista voltou para
Pequim e desenvolveu “uma observação cuidadosa da situação política
e social vigente na China e na imersão em sua cultura material clássica”. (DANTAS, 2018, p.29) O artista criou obras como a série fotográfica Dropping a Han Dynasty Urn [Deixando cair uma urna da Dinas-
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tia Han] (1995) e a escultura Table with two legs on the Wall [Mesa
com duas pernas na parede] (1997). Em 1999, Ai Weiwei iniciou seu
trabalho arquitetônico com a construção de sua Casa-ateliê em Pequim
e posteriormente trabalhou em edifícios como o China Art Archives
and Warehouse (CAAW). Seu reconhecimento aumentou consideravelmente depois de 2005, quando o artista teve suas primeiras exposições
individuais e trabalhos com curadoria. (DANTAS, 2018)
Ai começou a atrair reconhecimento internacional cada vez
maior como o artista chinês mais intelectualmente desafiador,
cuja postura heterodoxa mesclava conceitualismo, profundo
respeito pelas habilidades tradicionais e uma prática arquitetônica significativa. Essa fusão única de abordagens diametralmente opostas se tornou mais complexa pelo ativismo político
crescente e uma mudança em direção à orquestração de obras
de grande escala, as quais têm muito em comum com o conceito de “escultura social” associada a Joseph Beuys. (DANTAS,
2018, p.47)
Em suas obras há uma constante preocupação com a liberdade de
expressão e com a história material e cultural da China, além de um forte ativismo pelos direitos humanos. As temáticas abordadas por Weiwei
carregam discussões a respeito de lutas sociais, identitárias e políticas
que permitem uma leitura dos conceitos abordados por Judith Butler e
Michel Foucault. Através das obras dos autores e do artista, busca-se
refletir sobre a precariedade e o luto, os regimes de (in)visibilidade,
além da apreensão e compreensão de vidas como corpos que importam.
2.2. A TEMÁTICA DE SICHUAN
Em 12 de maio de 2008, um terremoto atingiu a província de
Sichuan (China), e apesar de muitos prédios terem se mantido íntegros
na região, as escolas primárias construídas pelo governo chinês desabaram. Não foi feita uma investigação oficial das causas dos desabamentos das escolas, ou uma contabilização dos estudantes mortos e de seus
nomes, o que evidenciou a falta de transparência de dados e de informações, além do descaso com a população que buscava justiça pelas vidas
perdidas. Frente a essa situação, Weiwei organizou a investigação dos
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cidadãos “Citizens’ Investigation”, um coletivo composto pelo artista
e por voluntários que fez um trabalho de pesquisa e de mapeamento nas
regiões onde as escolas desabaram, conversando com as famílias das
vítimas, com as autoridades e com a população local.
Como resultado, o artista criou, dentre outras obras, o painel com
com os dados dos estudantes vítimas da catástrofe Names of the Student Earthquake Victims Found by the Citizen’s Investigation [Nomes dos estudantes vítimas do terremoto encontrados pela Investigação
dos Cidadãos] e o documentário Little Girls Cheeks170 [As Bochechas
da Menininha], que demonstra que a catástrofe ocorreu devido a má
qualidade e a insegurança dos edifícios públicos, além do desvio de
dinheiro das construções pelo governo e pelas empreiteiras. (BECKER,
2011)
Ai Weiwei também desenvolveu a instalação Straight [Reto], em
um processo coletivo em memória às vítimas no qual o artista e um
grupo de voluntários coletou manualmente os vergalhões dos destroços
das escolas atingidas pelo terremoto e os endireitou individualmente no
período de um ano. Em 2013, na Galeria de Arte de Ontário, Weiwei
expôs a instalação junto ao painel resultante da investigação como um
memorial às vítimas da catástrofe e organizou as barras de aço de forma
que quando são olhadas perpendicularmente se assemelham ao gráfico
da escala Richter do terremoto em Sichuan. (Ai Weiwei, 2008)
As escolas desabaram sobretudo por causa da baixa qualidade da construção que o governo executara ali (...). Weiwei se
engajou num projeto de recuperação para voltar com as barras
empenadas à sua forma original - um longo e trabalhoso processo, necessário para restaurar a memória e entender a perda (...).
(DANTAS, 2018, p.9)
As obras, quando analisadas em conjunto, dão voz à comunidade e às famílias das vítimas cujas narrativas foram invisibilizadas pelo
Estado. Por meio das entrevistas, vídeos e diálogos contidos no documentário, além de atos como o endireitamento dos vergalhões e sua
exposição, os indivíduos se auto representam e contam sua história em
170 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HuK5pSfZ1LA>. Acesso em: 26
ago. 2021.
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busca de justiça e do tensionamento das estruturas de poder para que
seus direitos sejam reconhecidos. Com base nos conceitos de Butler e
Foucault, é possível afirmar que as obras tensionam com os regimes de
visibilidade dos discursos oficiais, pois visibilizam as vidas que foram
perdidas, as famílias, os corpos precarizados, suas falas, sentimentos e
memórias.
Quando consideramos as formas comuns de que nos valemos
para pensar sobre humanização e desumanização, deparamo-nos
com a suposição de que aqueles que ganham representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chance de serem
humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande risco de ser tratados como menos
que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de fato,
nem serem mesmo vistos. (BUTLER, 2011, p.8)
Em muitos momentos, é possível relacionar as obras de Sichuan
com o conceito de luto abordado por Butler em suas obras. No documentário Little Girls Cheeks [As Bochechas da Menininha], o artista
mostra a impossibilidade do luto, por parte das famílias, pelas vidas das
crianças. Os sobreviventes não foram socorridos a tempo, foram dados
como mortos antes de qualquer investigação, e muitos corpos não foram velados e enterrados. O artista também mostra as tentativas de luto
pelas vidas das crianças através da construção de santuários próximos
às escolas que desabaram, todavia, esses atos foram encarados pelo governo como uma afronta ao Estado, o que resultou na destruição dos
memoriais e na prisão dos familiares.
Para Butler, o luto tem fundamental importância na compreensão de uma vida que importa. Quando existe a impossibilidade do luto,
como no caso da catástrofe em Sichuan, aquele corpo se torna “não enlutável”, “matável” e, portanto, não é reconhecido como vida. Através
dos conceitos da autora, pode-se dizer que o descaso governamental
com as vidas das crianças de Sichuan coloca esses corpos em uma condição precária, induzida pelo Estado ao se despir da responsabilidade
de proteção dos direitos humanos. A investigação promovida pelo artista, além do memorial Straight [Reto] e do painel Name List Investigation [Investigação da Lista de Nomes], funcionam como formas de luto
e portanto de apreensão das vidas perdidas como vidas que importam
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apesar do descaso estatal.
2.3. A TEMÁTICA DOS REFUGIADOS
Em 2015, Ai Weiwei estabeleceu um estúdio na ilha de Lesbos
(Grécia) onde desenvolveu trabalhos com foco na crise migratória
contemporânea e na situação dos refugiados, o maior êxodo desde a
Segunda Guerra Mundial. Ai viajou por diversos locais onde pessoas
estavam fugindo de conflitos e condições de vida precárias, passando
por campos de refugiados pelo Mediterrâneo, África e Europa. Com
base na viagem, o artista desenvolveu o documentário Human Flow
[Fluxo Humano] (2016) e as exposições Safe Passage [Passagem segura] em Amsterdam (2016) e em Minneapolis (2020), na qual exibiu
a instalação iPhone Wallpaper [Papel de parede do iPhone] (2016).
(DANTAS, 2018) A partir de tais obras e das reflexões de autores como
Butler, Foucault e Agamben, é possível refletir sobre a categoria política dos refugiados na contemporaneidade.
De acordo com Agamben (apud SILVA, 2021), a guerra civil atua
diretamente na subjetividade dos indivíduos, possui efeitos ontológicos
nos corpos que a vivem. Segundo o autor, a partir da guerra há um processo de “dessubjetivação” (idem) dos indivíduos em que são retirados
seus direitos, sua nacionalidade e suas identidades. Devido à guerra,
os indivíduos são obrigados a fugir de seu lar para preservar sua vida e
liberdade, afastando-se das terras de seus antepassados e de sua cultura.
A guerra também produz novas subjetividades, novas formas de vida,
que são, segundo Agamben, “vidas nuas” (idem), matáveis, despidas de
direitos. Os migrantes e os refugiados são exemplos das subjetividades
produzidas pela guerra civil, pois deixaram de ser protegidas pelo Estado e passaram a sofrer contínuas violações de seus direitos humanos.
Agamben, analogamente a Butler e Foucault, afirma que os indivíduos
são construídos a partir de um processo contínuo dos discursos de poder que criam e controlam os corpos e as identidades.
Os corpos precarizados e despidos de direitos podem ser violentados e sua morte é tratada com descaso devido a sua condição precária
induzida pelo Estado por meio da guerra civil. Segundo Butler, as vidas
dos refugiados não são “passíveis de luto” devido ao não reconhecimento de seus corpos como seres humanos dignos de proteção. Em
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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um determinado momento do documentário, um entrevistado afirma:
“Às vezes nos sentimos envergonhados quando nos chamam de pessoas
apátridas, pessoas do barco, e muitos outros nomes. Nós também temos
sentimentos. Nós também somos humanos”. (Ai Weiwei, 2016)
Através da obra de Weiwei e das análises de Butler e Foucault, o
observador reconhece que os refugiados são invisibilizados pelos regimes discursivos e pelas estruturas de poder. No documentário do artista
é relatado que os Estados não só se absolvem de qualquer responsabilidade em proteger a vida dos refugiados, mas removem constantemente
pessoas e agem com violência contra suas vidas. Com o movimento de
visibilizar essas, dentre outras questões, o documentário atua de forma
a contribuir para uma mudança de perspectiva sobre o assunto, pois
tensiona os regimes discursivos que invisibilizam essa parcela da população. A partir da obra de arte, das entrevistas e dos vídeos, há a autorepresentação e uma consequente humanização dos corpos em condições
precárias que buscam refúgio, condições de vida dignas e lutam em
defesa de seus direitos humanos.
Com base na viagem documentada pelo artista em Human Flow
[Fluxo Humano], Weiwei desenvolveu as exposições Safe Passage
[Passagem Segura] em 2016 na galeria de fotografia Foam em Amsterdam, e posteriormente em 2020, no Instituto de Arte de Minneapolis,
em que o artista cobriu as seis colunas neoclássicas da fachada do instituto com 2400 coletes salva-vidas abandonados por refugiados sírios
e afegãos nas praias da ilha de Lesbos na Grécia. Apesar da quantidade
representar apenas 6% do total de refugiados que cruzaram a fronteira no período de um ano, a obra inspirou uma série de diálogos acerca da escala das migrações e da precariedade dos trajetos percorridos.
(GRUMDAHL, 2020)
O segundo grupo de fotografias exibidas na exposição #Safe Passage [Passagem Segura] em Amsterdam formam a instalação iPhone
Wallpaper [Papel de parede do iPhone] (2016), dispostas cobrindo as
paredes de duas salas da galeria, e no centro de cada uma há uma reprodução em mármore de bóias salva-vidas. (POLETTI, 2018) Quando
o artista fundou seu estúdio em Lesbos, seu objetivo foi oferecer uma
“passagem segura” dos refugiados para a cultura e mídia europeia. O
artista auxiliou as pessoas que chegavam à fronteira oferecendo comi392
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
da, água e oportunidades de trabalho. Por meio da selfie, Ai Weiwei documentou a situação dos refugiados e migrantes, e deu visibilidade aos
sujeitos, suas falas e narrativas, através de sua divulgação na internet e
da exposição em suas obras.
Com base nos conceitos de Butler (apud POLETTI, 2018), Ai
Weiwei utiliza a selfie como uma forma de auto representação contemporânea, uma forma de narrar a vida e a história dos sujeitos invisibilizados pelos regimes discursivos institucionais. Segundo a autora,
a fotografia tem um papel importante na delimitação de quais vidas
são consideradas “matáveis” ou “enlutáveis”, e pode ser utilizada para
tensionar essa normatividade e expandir o reconhecimento de mais vidas como importantes. Nesse sentido, a exposição de Weiwei como um
todo, busca romper com o enquadramento institucional que determinou
que as vidas dos migrantes que buscam refúgio em outros países devem
ser mortas e invisibilizadas. (POLETTI, 2018) “O rosto do Outro chega
até mim pelo lado de fora e interrompe esse circuito narcisista. O rosto
do Outro me puxa para fora do narcisismo em direção a algo mais importante”. (BUTLER, 2019b, p.168)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa demonstra, com base nas análises de Butler, que
os discursos artísticos contemporâneos, como os do artista chinês Ai
Weiwei, podem conferir “efeitos ontológicos” a corpos e vidas tidas
como abjetas e não importantes. Por meio das obras do artista, os corpos refugiados, migrantes e das populações invisibilizadas por governos e instituições oficiais são visibilizados e auto representados. Nos
trabalhos relacionados ao terremoto em Sichuan, o discurso artístico
promoveu o luto de corpos “não enlutáveis”, e conferiu humanidade
às vidas perdidas que não importavam perante o governo chinês. Sua
performance artística questionadora gera discussões, trocas de informações e experiências de vida que causam efeitos ontológicos nos entrevistados, voluntários, espectadores e no público. As obras geram uma
mudança de percepção sobre suas vidas e promovem a apreensão de
seus corpos enquanto pessoas que importam.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Imagens:
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Eastern Oregon University, Basalt Magazine, 2020. Disponível em: <https://www.eou.edu/
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Figura 2: Ai WEIWEI. Straight [Reto]. 2008-2012. Barras de Aço Reforçado, 600cm x
1200cm. Brooklyn Museum. Disponível em: <https://www.5122018.com/straight>. Acesso
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Figura 3: Ai WEIWEI. Human Flow [Fluxo Humano]. 2016. Fotografia, 1800px x 860px.
Ai Weiwei Studio. Disponível em: <http://www.humanflow.com/gallery/>. Acesso em 30 jan.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 4: Ai WEIWEI. Iphone Wallpaper [Papel de Parede do Iphone]. 2016. Papel de Parede e Escultura. Fotografia de Anne Van Der Weijden, Fotografiemuseum Amsterdam. CHOY,
Yoko. Ai Weiwei’s #SafePassage surveys global refugee crises at Foam Amsterdam. Wallpaper
Magazine, 2016. Disponível em: https://www.wallpaper.com/art/ai-weiwei-refugee-photography-opens-at-foam-amsterdam. Acesso em: 30 jan. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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ARTE E ALTERIDADE EM JÚLIO
BRESSANE E HÉLIO OITICICA
Luís F. B. Cabral171 – lfbelotocabral@gmail.com
Resumo: A presente publicação busca expor como as obras de Júlio
Bressane e Hélio Oiticica trabalham a questão da alteridade, em seu
interesse comum e similar pela relação com o outro enquanto cerne do
processo criativo. Tanto os (anti)objetos de Oiticica quanto a câmera de
Bressane dispõem-se à intervenção inventiva de um outro simultaneamente envolvido pelo que os artistas lhe apresentam, e é dessa dinâmica
alteritária que se constituem suas experiências estéticas-vivenciais. Tal
consciência do outro e de sua potencialidade abre pertinentes reflexões
sobre o caráter da invenção artística, o artista-autor e as dimensões políticas da arte enquanto meio, corpo e expressão de um coletivo. E no que
se refere a Júlio Bressane, a noção de alteridade, como desenvolvida
pela (anti)arte de Oiticica, provê renovados instrumentos de leitura de
sua rica filmografia, para além dos debates diegéticos da teoria cinematográfica.
Palavras-chave: Júlio Bressane; Hélio Oiticica; Alteridade; Cinema;
Arte contemporânea.
Abstract: This publication seeks to expose how the works of Júlio
Bressane and Hélio Oiticica develop the question of alterity, in their
common and similar interest in the relationship with the other as the
core of the creative process. Both Oiticica’s (anti)objects and Bressane’s camera are open to the inventive intervention of an ‘other’ who
is simultaneously involved in what the artists present to him, and it is
from this alteritarian dynamic that his aesthetic-living experiences are
constituted. Such awareness of the other and of its potentiality opens re171 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Notas para uma tradução de
Júlio Bressane por Hélio Oiticica”, orientada pela Profa. Dra. Yanet Aguilera V. F. de Matos,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de
São Paulo. A pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), via processo de nº 88887.488216/2020-00. Luís F. B. Cabral é
mestre e bacharel em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo e atual integrante
do Grupo do Estudos MAAR e do Coletivo LuscoFusco.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
levant reflections on the character of artistic invention, the artist-author
and the political dimensions of art as an medium, body and expression
of a collective. And with regard to Júlio Bressane, the notion of alterity,
as developed by Oiticica’s anti-art, provides renewed instruments for
reading his rich filmography, beyond the diegetic debates of cinematographic theory.
Keywords: Júlio Bressane; Hélio Oiticica; Alterity; Cinema; Contemporary Art.
A presente publicação integra a proposta ensaística de transcriação e interdisciplinaridade, desenvolvida na pesquisa de mestrado
Notas para uma tradução de Júlio Bressane por Hélio Oiticica. Essa
pesquisa buscou refletir aspectos e questões da filmografia de Júlio
Bressane a partir de conceitos e proposições da obra de Hélio Oiticica,
num exercício de leitura livremente inspirado nas traduções criativas de
Haroldo e Augusto de Campos (os quais, referências muito caras tanto
a Oiticica quanto a Bressane). Aqui, dadas as limitações de tempo e
espaço, discutiremos especificamente a relação dos dois artistas com a
alteridade e o que ambos, comum e similarmente, propõem acerca das
potencialidades da arte enquanto uma relação com o outro.
Na obra de Hélio Oiticica, tomemos o exemplo dos bólides e
parangolés dos anos 60. Apesar de suas expressivas qualidades formais,
tanto o bólide quanto o parangolé não se reduzem ao objeto estético em
si: as obras só se realizam de fato quando esse mesmo objeto é apropriado e manipulado pelo espectador, que com ele encontra uma oportunidade de exprimir a sua criatividade recalcada. Transformado, nas
palavras de Oiticica (2011), num participante, o espectador intervém
direta e livremente na estrutura e configuração final da obra, a ponto
de assimilá-la em seu próprio corpo e movimento. Os objetos estéticos
tornam-se dispositivos para uma intervenção imaginativa e comportamental maior, que é, ao mesmo tempo, condicionada pelo que a estrutura dos bólides ou parangolés especificamente possibilita. Há, portanto,
uma relação de mão dupla, na qual os objetos instigam, por suas virtualidades próprias, uma criação material e performática, enquanto são
simultaneamente tensionados e desdobrados até o seu (des)limite.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O parangolé, em especial, ainda conduz, como escreveu Oiticica, a uma manifestação coletiva fundada por vários participantes vestidos, que se veem mútua e simultaneamente. Segundo a autora Flávia
Cera (2012), o parangolé acontece no espaço intercorporal existente
entre a capa/estandarte e o corpo do participante e entre os corpos-capas dos participantes como um todo, uns em relação aos outros. Nesse
fenômeno, um participante com a capa estimula outro espectador/participante a entrar na dança, fundando uma totalidade espaço-temporal coletiva de crescimento ilimitado, uma vez que tal tessitura pode sempre
agregar mais espaços e pessoas circundantes, como num contágio ou
reação em cadeia. O parangolé potencializa, portanto, não só o desdobramento dos objetos estéticos ou a criatividade dos participantes, mas
as experiências coletivas no próprio espaço e cotidiano urbanos, motivo
porque Oiticica estabelece que o museu agora era o mundo.
Não semelhante, mas similarmente172, no jogo de cena dos
filmes de Júlio Bressane, a câmera, em diversos momentos, interage
diretamente com os atores e demais agentes cênicos, e estes reagem
ativamente a essas intervenções, intervindo no aparato fílmico. Sem o
menor pudor, os atores põem as suas mãos na lente, batem ou esbarram
na câmera, usam-na como um cinzeiro, chutam-na ou jogam-na “de
boca na areia”, tiram-lhe um espinho da cara, cobrem-na ou “pescam-na” com um véu, projetam-lhe uma imagem com um projetor ou interpõem sobre a lente um estandarte, um pergaminho, um disco de vinil
ou um filtro escuro de papel. Os atores, equipe ou figurantes chegam
enfim a tomar e manipular a filmadora com suas próprias mãos ou cordões, quando não lhe endereçam uma performance, um monólogo ou
um olhar cúmplice, desafiador, intrigado ou até sedutor.
Os filmes fazem-nos perceber que a câmera é ela mesma um
corpo, um agente em relação com outros corpos, animados e até inanimados, num corpo a corpo experimental onde são possíveis até relações
eróticas e sexuais com a filmadora. Esta possui, é claro, momentos-solo
de performatividade, em que aparece lisonjeira e autônoma no tempo-espaço, fazendo toda a sorte de enquadramentos, angulações e movi172 Sobre a diferença entre semelhança e similaridade, Teixeira (2011).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
mentos. No entanto, mesmo nessas ocasiões, a câmera pode, a qualquer
instante, se deparar com um outro que interrompe e redireciona o seu
percurso e intervenção no ambiente. Parafraseando o próprio Bressane
(vide Contracampo, 2003), o que se tem nessas e outras interações é
uma experiência multipessoal e plurissubjetiva, na qual diferentes agentes fílmicos e extrafílmicos se encontram e se conjugam criativamente.
A câmera, com suas virtualidades próprias e sua desinibida atuação no
tempo-espaço, oferece perspectivas únicas e até inusitadas do mundo
sensível, físico, material e social, mas este mesmo mundo reage e responde a tal intervenção, devolvendo à filmadora o seu próprio olhar,
gesto e individualidade.
Nesse sentido, os filmes de Bressane interessam-se e estruturam-se pela interação fundamentalmente dialógica entre a câmera e
seus interlocutores. É dessa relação que surge ou se forma a imagem
cinematográfica: a imagem final do filme começa a se constituir e a
tomar corpo no momento em que os agentes fílmicos e extrafílmicos se
topam, e a própria orientação e desenvolvimento da filmagem é determinada pelas diferentes reações e intervenções possíveis de um sobre
o outro e vice-versa. Esse jogo de cena explicita aquilo que Spinoza já
afirmava, no séc. XVII, sobre a imagem enquanto uma ideia originária
da impressão que um corpo alteritário exerce sobre os nossos órgãos
sensíveis. Em outras palavras, a imagem não surge por si mesma, mas
com um outro: ela se origina dos afe(c)tos e impressões que este outro
nos traz173. Similarmente, a imagem em Bressane advém de uma experiência interpessoal onde o que vemos em tela é resultado da ação
concomitante de uma alteridade de cena. O próprio cineasta, inclusive,
parece reconhecer o caráter coletivo ou multipessoal dessa criação, ao
sempre pontuar seus filmes com “circuncenas” dos bastidores e da equipe de filmagem. Um dos marcos da carreira de Bressane foi justamente
a experiência coletiva da Belair, produtora fundada em 1970 por ele,
Rogério Sganzerla e Helena Ignez. A Belair foi uma confluência de
forças e amizades que em poucos meses sacudiu o cinema experimental
173 Sobre Spinoza e a imagem, ver a palestra O poder dos afetos, ministrada por Oswaldo
Giacoia Jr. e Vladimir Safatle no programa Café filosófico (disponível no canal homônimo do
programa, no site YouTube).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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brasileiro, num senso realmente grupal e afetivo de produção, como se
infere dos próprios filmes e de depoimentos póstumos. Bressane parece
ter tentado preservar, em seus trabalhos, o espírito colaborativo e horizontal da Belair, vide não só as circuncenas ou making-offs dos filmes,
mas os depoimentos de seus parceiros e parceiras de criação, compilados, por exemplo, em Contracampo (2003) e em Vorobow; Adriano
(1995).
Guardadas as evidentes diferenças entre um e outro (e o objetivo aqui não é forçar uma identificação ou algo parecido), Oiticica e
Bressane propõem uma experiência artística alteritária, em que a obra
se constitui e se forma necessariamente a partir de uma relação com um
outro. Conforme escreve o poeta Waly Salomão (2003), a respeito do
trabalho de Hélio Oiticica, este outro não é uma abstração descarnada,
mas um corpo de carne e osso que opera uma transmutação no próprio
corpo do artista ou da obra. Essa afirmação, embora dirigida a Oiticica,
poderia ser perfeitamente utilizada para descrever uma cena recorrente
nos filmes de Bressane, em que a câmera aparece coberta por um filtro
escuro de papel, que é gradativamente recortado, no formato de um
olho, pelo ator da cena. Aqui, é o ator, em sua intervenção externa e
corpórea, física, sobre a câmera, quem determina a abertura da lente e
o alcance de visão da filmadora, diretamente influenciando a captura
final do enquadramento conforme vai desprendendo a película opaca
do instrumento fílmico. Não muito distante, portanto, do estandarte
cujo total desdobramento cromático e espaçotemporal é condicionado
à manipulação da pessoa que o veste e que lhe dá movimento e dança.
Essa disponibilidade da obra à alteridade culmina numa vivência multipessoal e plurissubjetiva, na qual, a certo ponto, não conseguimos mais
distinguir um corpo do outro (ou quem é o mais determinante na experiência estética final). No parangolé, há uma continuidade vertiginosa
entre o participante e a capa, onde o movimento de um se confunde com
o desdobramento da outra numa única dança, e mesmo nos filmes de
Bressane, são frequentes as cenas em que o corpo da câmera, numa espécie de subjetiva, coincide espaçotemporalmente com um outro corpo
cênico visto em primeiro plano, com os gestos e percursos de um sendo
continuados nos gestos e percursos do outro.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Até nas intervenções no espaço cotidiano urbano os dois artistas se encontram. Os filmes da Belair - de Bressane e Sganzerla –
caracterizam-se, dentre outras coisas, pelas intromissões da câmera,
elenco e equipe de filmagem na paisagem e cotidiano da cidade, com
as reações e intervenções dos transeuntes sendo incorporados à cena
cinematográfica. Quase como os parangolés, as filmagens agregam os
corpos anônimos (e curiosos) da cidade, numa experiência disruptiva
de proporções muito maiores do que o núcleo atomizado da produção,
em sentido realmente coletivo. Mesmo as intervenções de filmes posteriores de Bressane em recônditos afastados ou introspectivos da cidade
do Rio de Janeiro (sobretudo o cenário-fetiche do Sétimo Céu), aproximam-se das deambulações de Oiticica no final dos anos 70, nos aterros,
campos e demais espaços marginalizados da metrópole - e tanto um
quanto outro realizam essas errâncias com um coletivo de pessoas em
clima de farsa, festa, dança e brincadeira. Importante dizer que Bressane e Oiticica não só se conheceram como trabalharam juntos em mais
de um filme, o principal deles sendo Lágrima-pantera, a míssil (1972),
produzido nos Babylonests de Oiticica em Nova Iorque. Segundo conta
Bressane, o filme foi inspirado no super-8 experimental amador do próprio Oiticica, que muito impressionou o cineasta na época.
Em outro canto de seu trabalho, com uma câmera super-8, [Hélio] testava, testava a si. Não era cineasta. Queria sentir as dificuldades de filmar, de enquadrar, de improvisar, de espacializar
corpos em movimento, em outro campo...
Estes pequenos filmes (2, 3 minutos) chamaram a minha atenção, vi neles uma maneira de desaparecer, de desaprender, de
desprender-me de mi, do clichê, de recomeçar...
Encontrei nestes fotogramas incertos, tateantes, uma imprevista
e ideal passagem... (BRESSANE, 2011, p.12)
Mas voltando à alteridade, o que ela significa afinal? Vladimir
Safatle (2019), ao discorrer sobre o mal-estar da civilização predicada,
demonstra como, nas culturas ocidentais/patriarcais, as subjetividades
acabam cristalizadas em um Eu individualizado e identitário, que reprime, sob constante estado de angústia, a polimorfia e fragmentação próprias da dinâmica psíquica inconsciente. Safatle defende como efetivo
gesto político a despossessão desse Eu individuado, no sentido de uma
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abertura ou disponibilidade do mesmo à contingência da vida psíquica
e à permanente ou contínua possibilidade de transmutação de si próprio
– e uma das principais maneiras de se chegar a esse desprendimento
é, justamente, a relação com o outro. A alteridade é quem principalmente nos despoja de nossas identidades e predicados, e daquilo que
entendíamos de nós mesmos e do mundo, forçando-nos a uma nova
consciência e subjetividade. É a partir das “interferências” trazidas ou
desencadeadas por esse outro que nossa psique se descobre múltipla e
ilimitada, num ciclo constante de perturbação e rearranjo de si mesma,
que é o que proporciona de fato a sua efetiva vitalidade. E em último
grau, são essas experiências renovadas de individualidade e socialidade
que contrariam as relações patriarcais de poder, até então beneficiadas
pelo engessamento de um Eu neuroticamente fixo e estabilizado.
Rosa Dias (2011), colaboradora de Júlio Bressane e especialista da obra de Friedrich Nietzsche, também demonstra como na filosofia
nietzscheana o sujeito atinge sua plena potencialidade ou desenvolvimento no momento em que se torna um sujeito-artista experimentador
de si mesmo, jamais concebido como substância dada, mas como forma
a compor, permanente transformação de si, como o que está sempre
por vir. E tamanha transmutação acontece necessariamente no ato da
travessia, na experiência errante da passagem ao desconhecido, ao que
está fora de si. É no acolhimento e assimilação das forças estrangeiras
que o indivíduo amplia a sua potência, alcançando renovadas experiências ou percepções de vida e desenvolvendo-se indefinidamente, contra
as forças conservadoras que o reprimem para a infelicidade e a mediocridade. É nesse sentido, inclusive, que Nietzsche valoriza o ato da educação como um cultivo permanente de si mesmo, necessariamente estimulado pelo agenciamento outro, alteritário, do mestre educador, que
é quem leva seus educandos a uma melhor compreensão de si próprios
e do mundo. Conforme também expõe Rosa Dias (1991), o ato criador,
em Nietzsche, é um ato doador que não se fecha em si mesmo: ele continua e se propaga no outro, através, principalmente, da educação, e a
maior fatalidade imaginável de um gênio ou mestre é o seu isolamento
na sociedade, sem a possibilidade de transmitir as suas potencialidades.
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É extremamente significativo, portanto, que a alteridade possua tanto espaço e protagonismo nos trabalhos de Oiticica e Bressane.
Este último, não por acaso, refere-se várias vezes ao cinema como um
forte instrumento de autotransformação. “[o cinema] tinha algum elemento, alguma força que me fazia, que preenchia algo que talvez eu
buscasse intuitivamente, inconscientemente, que era a vontade de me
autotransformar. A vontade de sair de si, de ir para fora de si” (CONTRACAMPO, 2003, p.09). Contra uma identidade autoral redutora,
Bressane procura, no cinema, parafraseando Francisco E. Teixeira, um
“vir a ser incessante, uma ilimitada combinatória de modos de subjetivação que não cessam de se inventar” (TEIXEIRA, 2011, p.348). Isso
se expressa na própria experimentação cinematográfica do cineasta, que
obsessiva e obstinadamente dobra e desdobra o aparato técnico cinematográfico, explorando todas as possibilidades imagináveis de movimento, angulação, enquadramento, luz, montagem, som e imagem que
ele oferece. O cinema jamais é circunscrito a um escopo limitado de
manuseios e invenções: o objetivo é sempre o deslimite do cinema, a
(re)descoberta de tudo o que se pode e ainda se poderá fazer com ele,
na mais absoluta liberdade. É o motivo, inclusive, porque Bressane se
aproxima do primeiro cinema pré-Griffith ou, nas suas palavras, o “cinema inocente”, ainda não regulado pelo manual técnico do “bom e do
mau cinema” (vide Camarneiro, 2016).
Aqui já percebemos a evidente inspiração nietzscheana do cineasta, fruto da colaboração com Rosa Maria Dias, pela qual a invenção
artística é continuidade de um gesto maior de potencialização da vida.
A arte é o apêndice ou um dos resultados de uma exponenciação indefinida de si, do “vir a ser” nietzscheano que artisticamente vai modelando a si mesmo, contínua e indefinidamente, sem jamais chegar a um
resultado último ou definitivo. Vida como obra de arte, como escreve
Dias (2011). Mas como se percebe pelos filmes, este vir a ser, o sair do
Eu predicado e individuado, acontece necessariamente com o outro. O
cinema de Bressane é um cinema que se abre à contingência da alteridade: é na relação com o mundo, seja ele o mundo sensível, físico e
social, que a câmera alcança o seu pleno deslimite ou desdobramento.
Lembremos do ator que abre o olho da filmadora, que conjuga o seu
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corpo com o dela ou interfere, até violentamente, no seu percurso e
orientação. Como na experiência nietzscheana da travessia, é a alteridade do mundo que conduz ou desvia a câmera, o cinema e Bressane a
uma nova experienciação do espaço e do tempo e a uma nova invenção
da imagem. A experimentação cinematográfica advém necessariamente
dessa contingência, desse corpo outro que estimula o cinema a ir além
do que lhe foi imposto em termos de técnica e estética. E para além do
jogo de cena aqui exposto, este senso de alteridade aparece nas próprias
“traduções intersemióticas” de Bressane, que buscam, pela forma cinematográfica, traduzir ou transcriar as formas da pintura, da música, da
dança, da literatura e da filosofia. Nesse exercício criativo de leitura, a
alteridade das outras disciplinas e campos artísticos, traduzida em cinema, igualmente estimula, inspira, novos arranjos, manejos e compreensões da arte fílmica - esta mesma definida por Bressane como “organismo intelectual demasiadamente sensível que faz fronteira com todas as
artes, ciências e a vida. Onde tudo se traduz, tudo se dobra e desdobra.
Chega à borda e transborda!” (BRESSANE, 1996, p.42).
O mais curioso, no entanto, é que tudo isso nos conduz diretamente de volta a Oiticica, pois foram os filmes amadores do artista que
inspiraram Bressane, nos anos 70, a se desprender de vez do formalismo cinematográfico e a abraçar o experimental, como se depreende do
relato do próprio cineasta. Oiticica, aparentemente, também representou, para o cineasta, essa alteridade condutora de novos entendimentos,
experiências e percepções de si mesmo e de sua potencialidade criadora. E numa poética sincronicidade, Oiticica foi, ele mesmo, um artista
marcado pela alteridade. Também ele propôs ir aos deslimites das artes
plásticas e performáticas a partir da abertura radical ao outro, à contingência do mundo trazida ao seio da obra como eixo por excelência de
sua estruturação e concretização final, experimental. E para além da
estética, a obra de Oiticica integra, parafraseando a autora Tânia Rivera
(2017), o gesto maior de uma subjetividade alteritária, que se constrói
pela entronização no universo do outro e pelo deslocamento a lugares
subjetiva e socialmente diversos dos do Eu atual, (re)fazendo-se em ato.
“A obra de Hélio Oiticica nos põe em movimento. Mais precisamente,
ela nos convida a realizar uma certa virada em nosso lugar no mundo
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e em nossa relação com o Outro. A traçar deslocamentos” (RIVERA,
2020, p.71). O parangolé, por exemplo, como escreve a autora, desloca-nos e suspende-nos em um hiato ou brecha que nos faz haver com o
mundo e com o outro, e é esse encontro magnético que suscita os novos
e inesperados gestos, movimentos e visões da experiência artística.
Hélio Oiticica, inclusive, traz novas dimensões à questão da
alteridade, ao refletir o fenômeno maior do coletivo, para além da relação atomizada eu-outro descrita por Safatle e Dias, acima. Sintomaticamente, o artista possuía em sua coleção de escritos um ensaio de
Viveiros de Castro (vide Stigger, 2017) intitulado O igual e o diferente,
que descreve e comenta a fantasia carnavalesca no bloco Cacique de
Ramos. Segundo Castro, era por meio da fantasia característica do Cacique de Ramos, composta por esparadrapos e pinturas faciais, que os
foliões eram assimilados na massa anônima do bloco de carnaval, bastando vestir a roupa para serem integrados ao coletivo, dissolvendo-se
na multidão. Contudo, cada folião podia, ao mesmo tempo, personalizar a sua fantasia ao pintar o rosto de um jeito próprio, combinando à
sua maneira o conjunto previamente dado de elementos gráficos. Era,
por fim, com a fantasia anonimizante do bloco que os participantes se
permitiam a liberar seus impulsos mais íntimos e peculiares, dissolvendo-se no coletivo justamente para soltarem a folia interna. Castro
identifica no carnaval duas concepções distintas da relação indivíduo-sociedade, coexistentes no bloco: o indivíduo como suporte ou médium dos significados coletivos da cultura ou sociedade, e a cultura ou
sociedade como resultado da ação e vontade autônomas do indivíduo.
Ambas se expressariam, de um lado, na absorção dos foliões no corpo
maior e coletivo, desindividuado, do bloco, e, de outro, na criatividade
e expressão individuadas de cada folião, manifestas na reelaboração
ou rearranjo próprio da fantasia carnavalesca, e na liberação das folias
recalcadas174.
Comentando o bloco Cacique de Ramos com o fotógrafo Carlos Ferrara175, Oiticica muito se impressiona com a descrição de Ferrara
174 O ensaio de Viveiros de Castro pode ser lido no Arquivo Hélio Oiticica/Programa Hélio
Oiticica (AHO/PHO), tombo nº0337/70, disponível no site do Itaú Cultural.
175 Vide Arquivo Hélio Oiticica/Programa Hélio Oiticica (AHO/PHO), tombo nº 0504/73.
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sobre o momento em que os foliões jogavam pedaços de suas fantasias
para o alto, para que pessoas de fora pudessem vestir as peças e se
juntar ao bloco. Essa projeção quase literal do corpo dos foliões pelo
espaço, e sua propagação indefinida no espaço-tempo da cidade com
a incorporação dos fragmentos pelos foliões circundantes, tornava o
fenômeno coletivo uma experiência de absurda potencialidade. O participante atomizado do cortejo via-se radicalmente exponenciado pelo
corpo maior e articulado do bloco, que num grande arrebatamento ou
“ejaculação de grupo” o conduzia a uma dimensão inimaginável de
si mesmo, integrando-o, em uma única totalidade, ao universo vital e
absoluto da cidade e do próprio mundo. Fora de si. O fenômeno do
coletivo não se reduz, portanto, a uma alienação do rebanho: Oiticica
atenta-se, no exemplo do carnaval e de outras manifestações populares,
à igual possibilidade do coletivo como experiência revitalizadora da
cultura, da sociedade e da subjetividade e sensibilidade criadoras dos
indivíduos alteritariamente articulados entre si. Como bem descrito por
Viveiros de Castro, o bloco não implica a anulação do sujeito, pois se
constitui e se potencializa pelo agenciamento mútuo e concomitante,
metonímico, entre a parte e o todo.
Oiticica traduziu muito bem essa experiência ao elaborar, em
correspondência com Haroldo de Campos (vide Braga, 2013), o neologismo singultaneidade, mistura de ‘simultaneidade’ com ‘singularidade’. Na experiência alteritária do bloco de carnaval e da escola de
samba, o pessoal, o singular, assim o é enquanto simultaneidade, continuidade com o outro, e vice-versa. O talento e a performatividade do
folião ou da passista manifestam-se e desdobram-se, na sua virtualidade
mais própria, enquanto partes do corpo maior e concomitante, potencialíssimo, do coletivo. Foi essa singultaneidade que Oiticica insistentemente invocou em sua obra, dos bólides e parangolés aos ninhos, cosmococas e deambulações ambulatórias. Tal entendimento do coletivo,
inclusive, deve-se em muito à sua experiência na comunidade e escola
de samba da Mangueira, ela própria uma alteridade para o então jovem
artista de classe média. É o que conta, por exemplo, Waly Salomão:
Revelou-me Hélio, certa vez, que sem essa imersão na vida
densa comunitária do morro e do samba teria sido para ele quase impossível entender inteiramente o alcance e desdobramen-
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tos do “corpo coletivo” que a perpétua ponta de lança Lygia
Clark propunha a partir de uma série de experiências com os
alunos dela na Sorbonne, Paris. (SALOMÃO, 2015, p.31-32).
...
Dobradinhas e dobradiças transformaram radicalmente o panorama e o panorama das artes brasileiras. A liberdade resulta
do encontro da fome com a vontade de comer, é uma junção
do exterior com o interior. Assumindo resolutamente o que lhe
caiu no colo pelo acaso de um convite da dupla Jackson Ribeiro-Amilcar de Castro para vir se juntar à equipe e terminar
a encomenda de pintar alegorias para o desfile de carnaval da
escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Hélio aproveitou a ocasião para se liberar de suas âncoras. Para ele foi
uma mudança de pele, uma transvaloração radical. (Ibid, p.42)
A arte contemporânea não inventou nada. A singultaneidade
já era a realidade do samba, do carnaval, do futebol e de outras manifestações populares de dança, música e festa, seja da Mangueira ou de
outras comunidades. A Oiticica só coube a tradução ou reelaboração
própria desse fenômeno coletivo para as reflexões e práticas específicas
da arte. E antes de finalizarmos, é bastante significativa a aproximação
do artista com Viveiros de Castro, uma vez que este também encontrou
nas cosmologias ameríndias um entendimento absolutamente alteritário do que é o sujeito e de como este se relaciona com o mundo. No
perspectivismo ameríndio, a formação e autopercepção do indivíduo
se dá necessariamente na sua relação com o outro. O corpo amazônico “recebe sua forma do olhar de outro sujeito” e depende enquanto
imagem “das intenções e percepções cambiantes dirigidas a ele ou que
nele encontram sua fonte” (vide Castro, 2017). Curiosamente, isso também é agenciado por uma fantasia ou roupa, pela aparência corporal
externa, onde se expressa e se mostra, ao contrário do cristianismo, a
singularidade mais essencial de cada indivíduo ou espécie. A roupa, no
parangolé, também é o lugar por excelência de modelação, exposição e
desdobramento da singultaneidade de quem a usa. Como bem analisa
Flávia Cera, o parangolé não cobre ou oculta, mas despe, desvela, a
virtualidade mais própria dos indivíduos-participantes e sua exponenciação subjetiva e performática no coletivo. A autora revela inclusive,
por entrevista com Viveiros de Castro, que o antropólogo, amigo de
Oiticica, se inspirou de fato no parangolé para elaborar a noção de rouANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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pa-corpo da teoria do perspectivismo.
Mas o que tudo isso nos diz sobre Bressane? Ora, se o cineasta já utilizou Orson Welles e o cinema expressionista alemão para
ler a obra de Antônio Vieira, e Francisco Alves e Noel Rosa para ler
Machado de Assis, por que não podemos ler a sua filmografia, usando
Hélio Oiticica (para mencionar apenas uma de várias possibilidades)?
Ler o cinema pelo parangolé. Com Oiticica, percebemos que o cinema
de Bressane é um cinema de singultaneidades, mesmo que a sua experiência de coletivo – o coletivo da filmagem – tenha uma escala muito
menor do que a do bloco de carnaval, restringindo-se (num primeiro
momento, pelo menos) às dinâmicas internas da equipe de produção176.
Curiosamente, a vivência da filmagem é mais próxima das experiências
coletivas de Oiticica nos anos 70, como as deambulações ambulatórias
no Rio de Janeiro ou o cotidiano-lazer introspectivo dos ninhos, cosmococas e babylonests (registrado, inclusive, no filme Lágrima-pantera)177. No entanto, o fundamento da experiência cinematográfica em
Bressane ainda é o bailado igualmente concomitante entre a filmadora
e seus interlocutores. O jogo de cena é moldado e ritmado pelo encontro magnético desses dois (ou mais) corpos marcadamente distintos
entre si, com seus gestos, humores e movimentos bastante próprios.
Tal singularidade é simultânea à confluência desses mesmos corpos,
e suas respectivas afecções, no gesto coordenado da invenção fílmica,
na coreografia conjunta em que o (des)limite cinematográfico é apenas,
176 Como no efeito cascata do parangolé, espectadores do filme também podem ser inspirados
e estimulados pela experimentação cinematográfica, dando-lhe continuidade em sua própria
experiência criativa e propagando assim a invenção desse primeiro coletivo de filmagem. Mas
essa é apenas uma das infinitas possibilidades de recepção da obra (e é bom lembrar que mesmo
os parangolés e bólides, com toda o seu apelo participativo, se sujeitavam a essa contingência,
pois uma das possibilidades de recepção dos objetos era justamente os espectadores não fazerem nada com eles – e o próprio Oiticica previa essa reação).
177 Os longas mais recentes de Bressane recuperam, inclusive, a vivência introspectiva de
Lágrima-pantera, ao mostrarem casais ou pequenos grupos reclusos em apartamentos, casas e
mônadas, vivendo uma experiência intersticial de intelectualidade e sexualidade (vide Camarneiro, 2016) - e é no seio de suas inusitadas afecções e interações que as personagens chegam a
um arrebatamento dionisíaco de si mesmas (no sentido nietzscheano do termo). Nesse sentido,
filmes como Filme de amor (2003), Educação sentimental (2013), Beduino (2016) e Sedução
da carne (2018) aproximam-se muito do lazer-criador afectivo dos ninhos oiticicanos, em que
a introspecção grupal nos espaços-tempos intersticiais e quase etéreos de Oiticica era condição
e catálise de um desenvolvimento único e potencial da criatividade e da singultaneidade.
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metonimicamente falando, a parte, o resultado, de uma revitalização
maior, lúdica e total, do coletivo de filmagem. Partindo não de um, mas
de todos, essa energização mútua é o que estimula todos os envolvidos
a irem, artística e subjetivamente, além de si mesmos, ao vivenciarem
juntos, mesmo que temporariamente, uma experiência ou percepção diferentes do mundo e de si próprios. Não à toa o carnaval é tão presente
na filmografia de Bressane: é o evento intersticial e arrebatador da folia
que desvela, por um relance, todas as maneiras ainda possíveis de se
experienciar o museu do mundo.
Essa singultaneidade lança, por fim, novas questões não apenas sobre Bressane mas sobre o cinema em geral. Se no Cão andaluz
de 1929, a navalha de Luís Buñuel cortava o olho de Simone Mareuil,
nos filmes de Bressane são os atores quem quase literalmente (re)cortam o olho da câmera. Os atores são muito mais que um objeto de visão passivo do diretor: a singultaneidade do jogo de cena demonstra
como o fazer cinematográfico se dá não somente com o “homem com
a câmera”, mas com os agentes sob sua mirada que o olham de volta. Quando os atores, e sobretudo as atrizes, encaram a câmera ou intervêm fisicamente sobre ela, o que se vê não é apenas uma “quebra
da quarta parede”. Para além da denúncia demagógica e paternalista
da suposta ilusão do público com a diegese cinematográfica, o que se
celebra é o fenômeno multipessoal e plurissubjetivo, o encontro e a
afecção reflexiva entre dois corpos que criam, afetiva e conjugalmente,
a imagem. É bastante significativo que em entrevistas ao Canal Brasil
(disponíveis no canal oficial da emissora na Internet), Bressane afirme,
por exemplo, que Alessandra Negrini foi quem lhe deu as imagens que
procurava em Cleópatra (2007), ou que tudo que Educação sentimental
(2013) precisou fazer foi seguir Josie Antello, conduzido que foi pela
performance da atriz. Reconhece-se a potencialidade maior do cinema
enquanto intersubjetividade, singultaneidade, onde a invenção não é
mérito exclusivo do autor-gênio do romantismo, ainda tão fetichizado
pela teoria cinematográfica (e mesmo por nós, que ainda nos referimos
aos filmes como obras de Bressane). Bressane por Oiticica é um convite
para repensarmos o cinema pelo parangolé ou mesmo, em último caso,
pelo perspectivismo, pela coreografia coordenada e total dos sambas,
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passistas e blocos conforme o próprio Bressane sugere em seu último
filme, Capitu e o capítulo (2021), cujas circuncenas finais com a equipe
de produção são embaladas pelo Hino da Mangueira de Jamelão.
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WARHOL-FOTO-CINEMA: UM ENSAIO
SOBRE AS RELAÇÕES DE ANDY WARHOL
COM AS IMAGENS TÉCNICAS
Maria Ilda Trigo178 – m189757@dac.unicamp.br
Resumo: Este ensaio trata da importância das imagens técnicas para o
pensamento e a produção artística de Andy Warhol, para além dos estereótipos e dos consensos estabelecidos sobre certa concepção de Pop
Art, que a resume basicamente ao uso de cores intensas e à apropriação
de imagens do cotidiano, especialmente o midiático. Pretende-se expandir esse entendimento, explicitando o embate com as imagens técnicas
não apenas como um “assunto” de Warhol, mas como fundamento de
sua produção e, antes disso, de sua vivência no que ele próprio (ironicamente) nomeou de “América”. A ideia é descentrar a análise das obras
mais referenciadas e estudadas de Warhol, dando espaço principalmente
para seus comentários sobre fotografia, cinema (além de outras mídias),
registrados em três de seus livros: A filosofia de Andy Warhol: (de A a
B e de volta a A), publicado originalmente em 1975; Popismo: os anos
sessenta segundo Andy Warhol, de 1980 e América, de 1985. Em relação ao cinema, daremos destaque à experiência EPI – Exploding Plastic
Inevitable, compreendendo-a como um prenúncio do que se denomina
desde então de cinema expandido. Apoiarão a discussão, além dos textos do próprio Warhol, o conceito de imagem técnica desenvolvido por
Vilém Flusser e as reflexões de Hal Foster apresentadas em O retorno
do real, além de outros autores.
Palavras-chave: Andy Warhol; Imagens técnicas; Fotografias; Cinemas.
Abstract: This essay deals with the importance of technical images for
Andy Warhol’s thought and artistic production, beyond the stereotypes
178 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada Let your body move: narrativas de arquivo, multimeios e interatividade, orientada pelo Prof. Dr. Paulo César da Silva Teles,
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de
Campinas. A pesquisa conta com financiamento CAPES.
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and consensus established on a certain conception of Pop Art, which
basically summarizes it in the use of intense colors and the appropriation of images from everyday life, especially the mediatic. It is intended to expand this comprehension, explaining the clash with technical
images not only as a “subject” of Warhol, but as the foundation of
his production and, before that, of his experience in what he himself
(ironically) called “America”. The idea is to decenter the analysis of
Warhol’s most referenced and studied works, giving space mainly to his
comments on photography, cinema (as well as on other media), registered in three of his books: The philosophy of Andy Warhol: (from A to
B and back again), originally published in 1975; Popism: the Warhol
sixties, from 1980, and America, from 1985. In relation to cinema, we
will highlight the EPI – Exploding Plastic Inevitable experience, understanding it as a harbinger of what is now called expanded cinema.
In addition to Warhol’s own texts, the discussion will be supported by
the concept of technical image developed by Vilém Flusser and by Hal
Foster’s reflections presented on the book The Return of the Real, as
well as other authors.
Keywords: Andy Warhol; Technical Images; Photographs; Cinemas.
1. INTRODUÇÃO
A reflexão aqui proposta tem origem na necessidade – inerente
a meu processo de pesquisa – de ampliar o entendimento de Pop Art,
para além dos aspectos pictóricos geralmente enfatizados pela crítica.
Em outras palavras, apoia-se na percepção de que o que se entende por
Pop é insuficiente para sua compreensão, especialmente quando se tem
em vista a prática de Andy Warhol.
Dentre os aspectos que eu supunha serem pouco tratados pela
historiografia e pela crítica, destacava-se a centralidade da imagem fotográfica, senão para a arte pop como um todo, pelo menos para muitos
artistas, especialmente aqueles que eu pesquisava. Com centralidade,
quero dizer não apenas que os artistas pop se apropriaram de fotografias (sobretudo veiculadas pelas mídias), mas que eram pop justamente
por terem feito isso, sendo impossível separar a Pop da predominância
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sócio-cultural desse tipo fundante de imagem técnica.
O fato de o fotográfico ter sido negligenciado pela crítica não
passou despercebido para Klaus Honnef, comentarista da obra de Andy
Warhol que credita essa negligência à reduzida importância da fotografia para o sistema da arte no momento em que a Pop começava a ser
por ele absorvida (HONNEF, 2005, p. 45). O autor, porém, não avança
muito na reflexão, apontando apenas que “[...] Warhol deve ter notado
logo muito cedo a influência dominante e sempre crescente da fotografia e do cinema sobre o espírito das pessoas na percepção da realidade”
(Idem, ibidem).
A dúvida sobre se Warhol teria ou não “notado” essa influência
me fez buscar em suas próprias falas ou escritos referências à importância do fotográfico em sua produção artística. Para além de ele ter
fotografado ou se apropriado de fotografias, interessava-me saber como
ele compreendia o mundo já predominantemente fotográfico em que
viveu e produziu arte.
2. A ESCRITA-FALA DE WARHOL
Confrontar-se com a produção “escrita” de Warhol exige algumas de ressalvas. A primeira é que se deve tomar a palavra “escrita” em
sentido ampliado. Isso porque ele não escrevia propriamente: ele gravava; e suas falas eram transcritas por datilógrafos contratados ou por sua
assistente Pat Hacket179. Esse fato aponta para aspectos importantes, a
saber, o caráter transmidiático de sua “escrita” e o performativo.
O primeiro diz respeito ao fato de que raramente Warhol se
“contentou” com apenas um meio, promovendo certa confusão entre
eles180 e utilizando-se de todos os recursos tecnológicos a sua disposição. Já o caráter performativo – nossa segunda ressalva – tem um
duplo sentido: ele mistura a performance oral e escrita e, além disso,
179 Pat Hacket ficou responsável pela transcrição de Popismo, do qual é coautora, e também
dos diários, editados por ela e publicados originalmente em 1989, dois anos depois da morte
de Warhol.
180 Note-se que Warhol tensionava as características próprias de cada meio. O exemplo mais
emblemático são filmes como Empire (1964), que confundem as noções de cinema e fotografia
(retrato).
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“performa” no sentido de promover uma encenação que dificulta saber
quando está falando seriamente e quando está sendo irônico181. Como
se verá mais à frente, o artista performava/encenava inclusive em momentos em que se esperava que ele falasse seriamente, por exemplo, ao
tratar de sua produção artística182. Era de se esperar, portanto, que essa
performance ambígua se revelasse também em seus textos, nos quais
muitas vezes nos deparamos com afirmações evasivas, contraditórias
ou sugestivamente irônicas. De certa forma, Warhol coloca em cheque
o caráter de verdade dos documentos produzidos por artistas, o que de
maneira alguma invalida o contato com esses textos, mas certamente
deve ser considerado durante a leitura.
3. REVENDO WARHOL
Os desafios impostos pelos textos de Warhol parecem ser apenas um reflexo de desafio mais amplo que envolve toda sua produção
– incluindo sua performance social, como veremos a seguir – e do qual
o principal sintoma talvez seja a igualmente ambígua e até contraditória
recepção de sua obra (CAUQUELAIN, 2005, p. 107). Ao mesmo tempo em que muitos o consideram uma farsa (INDIANA, 2010, p. 87),
outros o veem como crítico do capitalismo, fato que o próprio artista
não se cansa de negar. É conhecida a maneira como Warhol foi recebido
na Europa, em especial na Alemanha e na França, como uma espécie
de marxista (DANTO, 2012, p. 11; LARRATT-SMITH, 2010, p. 115).
O mito ambíguo que o próprio artista se esforçou para construir e alimentar certamente contribuiu para que sua obra e sua persona
artística continuassem vivas na contemporaneidade, ao lado de características de sua ampla atuação que, como já dito, não se resume às
consagradas pinturas e serigrafias. E é também importante ingrediente
das muitas revisões sobre o artista que, desde meados de 1990, têm sido
181 Muito poderia ser dito sobre a ironia de Warhol, perceptível em várias passagens de seus
textos. Ironia que em muitos casos tende para o escárnio e o deboche, como se percebe no trecho a seguir: “Não consigo entender por que nunca fui um expressionista abstrato, porque com
a minha mão que treme eu teria sido um talento natural.” (WARHOL, 2008, p. 171)
182 É bastante conhecido o fato de que Warhol costumava faltar a entrevistas e palestras ou
enviar sósias em seu lugar, e até mesmo apresentar versões diferentes de um mesmo fato (Cf.
WARHOL, 2008, p. 95).
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feitas183.
Dentre essas revisões a que mais tem se mostrado proveitosa
para compreender as questões levantadas por este ensaio é a de Hal
Foster. Ao rever a Pop, juntamente com o minimalismo, em seu livro
O retorno do real (2017), abdica da tarefa de resolver o paradoxo crítico-acrítico, busca por critérios outros para a compreensão do artista e
de sua importância para a contemporaneidade, aceitando a contradição
como uma das camadas de significado de seu trabalho.
O autor reconhece em Warhol a ambiguidade que torna difícil
distinguir o que nele é adesão ao way of life imperante e o que nele é
crítica, mas atribui isso a uma simulação. Segundo o autor: “[Warhol]
Certamente simulava a esquizofrenia como defesa mimética contra as
exigências contraditórias dos vanguardistas na sociedade do espetáculo, mas é difícil distinguir sua defesa contra o espetáculo da sua identificação com ele” (FOSTER, 2017, p. 121), colocando essa dificuldade
de distinção como o que nele causa fascínio (Idem, ibidem, p. 126)
Inscreve Warhol entre os artistas dândi, conforme descrito por Benjamin quando fala de Baudelaire: um artista que performa
em sua vida pessoal, assumindo posturas de adesão e distanciamento
em relação à realidade social (Idem, ibidem, pp. 118-119). No caso de
Warhol isso viria acrescido de um cinismo que se tornará característico das neovanguardas e, de maneira mais ampla, da produção artística
contemporânea, em que há predominância de “Personas infantilizadas”,
“parte paciente[s] psicótico[s], parte artista[s] de circo” (Idem, ibidem,
p. 151). E não deixa de ser alusivo a essas reflexões o fato de ter se deixado fotografar com nariz de palhaço (figura 1).
Assim, aderimos a essa visão de Foster, compreendendo a ambiguidade como um complexo fenômeno artístico184 e aceitando que
essa performance cínico-irônica possibilita leituras da realidade, inclusive leituras críticas.
183 Nesse ponto, destacam-se as reflexões de Anne Cauquelain (2005), Arthur Danto (2012) e
Hal Foster (2017).
184 Annateresa Fabris destaca a ambiguidade como uma característica intrínseca à Pop (FABRIS, 2007, p. 223).
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4. IMAGEM TÉCNICA
Diante das peculiaridades dos textos de Warhol e considerando ainda a imensa quantidade de informações de diferentes naturezas
contidas nos livros selecionados, era necessário estabelecer parâmetros
conceituais para a análise. Levando em conta o tipo de informação desejada, pareceu-me produtivo fazer uso de um importante conceito, frequentemente tomado como baliza para a compreensão do fotográfico:
o de imagem técnica, conforme desenvolvido por Vilém Flusser inicialmente no conhecido livro Filosofia da caixa preta, cuja versão em
português foi publicada originalmente em 1985185.
É bastante referenciada a posição de Flusser sobre as imagens técnicas, aquelas, segundo o autor, “produzida[s] por aparelhos”
(FLUSSER, 2009, p. 13). Para ele, o desafio do artista é “agir contra
o programa dos aparelhos no ‘interior’ do próprio programa” (Idem,
2008, p. 28). De maneira similar atribui à crítica a tarefa de “desocultar
os programas por detrás das imagens” (Idem, ibidem, p. 29). Desafio e
tarefa que foram prontamente assumidos por vários artistas e pensadores e que cabe muito bem inclusive a alguns artistas da Pop, que adotaram uma postura mais crítica, visando questionar “a estabilidade dos
esquemas de observação” (OSTERWOLD, 1999, p. 126) consagrados
pela sociedade de consumo.
Artistas como Martial Raysse, Richard Hamilton e Sigmar
Polke – ligados ao pop europeu186 – são bastante claros na intenção de
desmascarar a imagem fotográfica como resultado de um processo de
construção que cumpre “desnaturalizar”187. O mesmo não acontece com
Warhol. Além de ter sido evasivo e ambíguo em relação a esse e outros
temas, mais de uma vez afirmou categoricamente não haver nenhum
tipo de crítica em seu trabalho. Em vez de “lutar contra a automaticidade do aparelho”, como sugere Flusser (FLUSSER, 2008, p. 28), ele
adere totalmente aos automatismos, sendo muito conhecida sua afirmação: “Quero ser máquina”.
185 A primeira versão do texto foi publicada em alemão, em 1983.
186 Em geral a pop europeia é considerada mais crítica em relação à sociedade de consumo que
a estadunidense (DANTO, 2012, p. 10).
187 O percurso desses artistas está brevemente descrito em TRIGO, 2019, pp. 98-105.
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Em geral ele filmava e fotografava com equipamentos automáticos, muitas vezes com câmeras amadoras. É curiosa sua afirmação
sobre a dificuldade de manusear uma câmera 35 mm manual: “Eu tinha
comprado uma câmera fotográfica 35 mm e durante algumas semanas
fiquei tirando fotos, mas era muito complicado para mim. Ficava impaciente com as aberturas, a velocidade do diafragma, a medição de luz,
então desisti.” (WARHOL, 2013, p. 95)
De maneira que a relação de Warhol com os aparelhos pode
ser entendida como um elogio aos automatismos. Mais do que desafiar
o aparelho, age como um perfeito “funcionário”188 do aparato. E o seu
desejo de se fundir com a máquina pode ser lido em alguns de seus
autorretratos, especialmente nos autorretratos com câmera (figura 2).
Assim, pelo menos aparentemente, e seguindo o quase dogma
flusseriano que associa o poder crítico de uma produção intelectual e
ou artística a sua não adesão a programas maquínicos, somos quase que
imediatamente forçados a concordar com um Warhol farsesco. O que
nos obriga a buscar novas chaves para a leitura do artista.
5. THIS IS AMERICA
Buscar novas chaves de leitura implica, no caso, além de considerar as revisões sobre o trabalho de Warhol, examinar também o contexto social não apenas do momento em que ele produziu, mas aquele
em que nasceu e cresceu. Sua biografia, bastante referenciada e até fantasiada, é raramente levada em conta quando se trata de seus anos de
formação e guarda algumas peculiaridades que em muito contribuem
para a compreensão de sua prática artística.
Warhol nasceu e cresceu numa sociedade de consumo massivo
estabelecida nos Estados Unidos muito antes do que em qualquer lugar
do mundo e na qual a presença dos aparatos e das imagens técnicas já
estava bastante consolidada. Informações divulgadas pelo site do Museu Andy Warhol189, instituição da marca Warhol detentora de grande
188 Flusser define “funcionário” como “pessoa que brinca com aparelho e age em função
dele.” (FLUSSER, 2009, p. 77).
189 The Andy Warhol Museum. Acessível em: https://www.warhol.org/.
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parte do acervo do artista e cuja missão é preservar e divulgar sua obra,
dão conta de um jovem bastante familiarizado com cenário que posteriormente se tornaria hegemônico190. Nascido em família pobre e vivendo numa época de depressão econômica, teve sua primeira câmera
fotográfica com oito anos. Alguns anos mais tarde, seu irmão, John Warhola, e seu primo, John Preksta, mantiveram um estúdio fotográfico,
o que por si só poderia ser compreendido como prova da presença do
aparato e da imagem técnica em sua vida.
O mesmo se deu em relação às imagens produzidas por dispositivos técnicos. Ele tinha acesso a histórias em quadrinho, revistas sobre estrelas de Hollywood e brinquedos de recorte (Idem, 2008, p. 35).
Sua relação com as estrelas de cinema também foi muito intensa. Sistematicamente, escrevia a elas pedindo fotografias autografadas. A mais
querida dessas fotos era a de Shirley Temple, colorida no estúdio de seu
irmão e mantida até o fim de sua vida entre seus objetos preferidos.
Essas informações nos permitem imaginar como, ainda em
seus anos de formação, a experiência dos aparatos e das imagens técnicas foi muito viva. Andy misturava-se àquilo que ele mesmo assumiu como “América” (Idem, 2012, p. 17), num contexto que viria a se
configurar apenas posteriormente na Europa e tardiamente na América
Latina: o da sociedade de consumo massivo191, em que a presença dos
aparatos e do universo gerado por eles, incluindo o das imagens técnicas, floresceu a ponto de tornar-se, para Warhol, sua geração e aquelas
que viriam a seguir, a mais perfeita Natureza.
190 Cf. Biografia do artista em The Andy Warhol Museum. Disponível em: https://www.warhol.org/andy-warhols-life/. Acesso em 25 jan. 2022.
191 São várias as afirmações de Warhol sobre a sociedade de consumo estadunidense, nas quais
se observa uma profunda consciência sobre suas características e, ao mesmo tempo, uma identificação total com elas, como se pode confirmar no trecho que segue: “Comprar é muito mais
americano que pensar e eu sou absolutamente americano. [...] Americanos não estão interessados em vender – na verdade eles preferem jogar fora a vender. O que eles realmente pensam é
em comprar – pessoas, dinheiro, países.” (WARHOL, 2008, p. 255).
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6. UM NOVO ENGAJAMENTO
Se a proposta de Flusser desenvolvida na Filosofia não ajuda
a esclarecer a postura de Warhol, ou apenas reforça a convicção de um
artista acrítico, o mesmo não se pode dizer das ideias propostas pelo
autor num livro que, embora menos referenciado, aponta para outras
possibilidades de compreensão do problema.
Em O universo das imagens técnicas, publicado pela primeira
vez em 1985, que tem o curioso subtítulo “elogio da superficialidade”,
Flusser propõe outras possibilidades de atuação em relação às imagens
técnicas, colocando o elogio à superfície como uma espécie de militância, um novo engajamento. Para o autor:
O novo engajamento não acredita em tais relações ‘profundas’:
acredita que tais ‘profundidades’ não passam de reflexos da superfície da sociedade. Acredita que quem mudou a superfície,
mudou tudo, porque por detrás da superfície nada se esconde.
Acredita que as relações superficiais, intra-humanas, são as
únicas concretas. A atitude do novo engajamento é ‘fenomenológico’: elogio da superfície da superficialidade. (FLUSSER,
2008, p. 72)
Em outras palavras, para além de enfrentar o aparato, sugere-se que os artistas enfrentem “as estruturas comunicológicas, as ‘superestruturas’” (Idem, ibidem) reveladas pelas superfícies. Esse ponto de
vista muda completamente a leitura que se pode fazer de Andy Warhol,
uma vez que elogios à superfície sejam talvez o que ele mais tentou
fazer com seu trabalho. Frequentemente questionado sobre a melhor
maneira de conhecer a ele e a sua obra, mais de uma vez respondeu: “Si
vous voulez tout savoir sur Andy Warhol, contetez-vous de regardez à la
surfasse de mes peintures et de mes films et de ma personne, cést là que
que je suis. Il n’y a rien derrière”192 (Idem, 2005, p. 103).
192 “Se você quiser saber tudo sobre Andy Warhol, basta olhar para a superfície de minhas
pinturas e de meus filmes e de minha pessoa, é onde estou. Não há nada por trás disso.” (Livre
tradução)
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7. POP TRANSMÍDIA
Depois de ter sondado uma maneira satisfatória de (re)pensar
a prática artística de Warhol, cumpre questionar quais seriam os impactos dessa compreensão na pesquisa realizada. Nesse ponto, voltamos à
hipótese inicial – a sensação de que a Pop, especialmente em Warhol,
não se resume aos aspectos pictóricos referenciados pela crítica e reconhecidos pelo público em geral. O que proponho é que se compreenda
a Pop necessariamente como um fenômeno transmídia, inseparável da
(oni)presença dos aparatos e das imagens técnicas, bem como de todas
as implicações disso.
Em seus livros, especialmente em Popismo (2013), Warhol
fala da vontade dele e dos artistas do seu entorno de fazer tudo – e nesse
caso fazer tudo significava lidar com muitos meios: “A ideia pop, afinal,
era que todo mundo podia fazer tudo, então naturalmente estávamos
tentando fazer tudo. Ninguém queria ficar em uma categoria; nós todos queríamos ramificar para todas as coisas criativas que pudéssemos
[...].” (Idem, 2013, p. 165)
Warhol acompanhava a intensa cena artística de Nova Iorque,
o que incluía o circuito criativo de dança, cinema, literatura e artes visuais (Idem, ibidem, pp. 15, 37, 42, 68). Ele participou dessa cena de
muitas maneira: como artista ao mesmo tempo estabelecido no sistema
de arte e underground (ou independente, como ele preferia entender),
como colaborador, fomentador, produtor e inclusive como espectador,
no caso da poesia independente. Isso sem citar o papel da Factory como
espaço de encontro e trabalho de muitos artistas de diversas áreas.
Essa cena incluía experiências multimidiáticas. E Warhol teve
uma participação muito importante naquilo que até hoje se reconhece
como cinema expandido e que pode ser concebido como uma atividade
fundamentalmente multi e/ou transmidiática.
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8. EXPANDED CINEMA
O termo expanded cinema, que remete ao livro publicado por
Gene Youngblood em 1970193, foi usado em 1966 por Jonas Mekas194,
para nomear um projeto que ele estava organizando. De acordo com
Warhol: “Ele estava no meio de uma série chamada Expanded Cinema,
em que artistas como Jack Smith, La Monte Young e Robert Whitman
combinavam imagens de cinema e projetores com ação ao vivo e música.” (Idem, ibidem, p. 178) Ao ser convidado a participar, propôs uma
experiência com o Velvet Underground (Idem, ibidem), que acabou por
se expandir para fora do projeto de Mekas, tendo havido várias apresentações, em diversas cidades dos Estados Unidos.
O EPI – Exploding Plastic Inevitable – era um mixed media
happening que incluía música ao vivo, projeções de filmes, dança e
show de luzes estreboscópicas e globos de espelhos195. Em Popismo,
Warhol descreve a preparação para o evento:
Começamos a levar todo tipo de coisas da Factory para lá –
cinco projetores de cinema, cinco projetores de slides tipo carrossel, em que a imagem muda a cada dez segundos e, no qual,
se você põe duas imagens juntas, elas pulsam. Essas coisas
coloridas iriam em cima dos cinco projetores de cinema, e às
vezes deixaríamos as trilhas sonoras se sobreporem. Levamos
também uma das grandes bolas de espelho giratórias daquelas
dos bares clandestinos da lei seca – elas estavam jogadas na
Factory e achamos que seria fantástico reviver aquilo. (Idem,
ibidem, pp. 190, 191)
193 O livro de Youngblood (1942-2021), intitulado Expanded Cinema, é até hoje uma das
principais referências para artistas multimidiáticos e ajudou a consolidar a expressão “cinema
expandido” nos circuitos artístico e acadêmico.
194 Jonas Mekas (1922-2019) foi um cineasta lituano-estadunidense cuja atuação foi fundamental para a consolidação de uma vanguarda audiovisual nos Estados Unidos.
195 No link https://www.youtube.com/watch?v=HsR4ghMfq0U&t=353s pode-se ter uma
ideia do que eram esses hapennings.
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A experiência era bastante inovadora e, também por isso, merece ser pensada como o trabalho mais emblemático de Warhol no sentido transmidiático. O artista produziu vários cartazes para divulgar o
evento, no melhor estilo publicitário. Em todos eles, procura em maior
ou menor grau alertar o público para o tipo de experiência que estava
sendo proposto: “É onde entretenimento acontece”, “Estranhamente sedutor”, “É explosão de Andy Warhol!”, etc. (figura 4).
Sobre a reação do público, Warhol afirma:
Fizemos dois shows, para mais de 650 pessoas. Projetamos
Vinyl, Lupe e também filmes de Nico e os Velvets, com eles
tocando. Foi fantástico ver Nico cantando com um filme de
seu rosto imenso atrás dela. [...] O público ficou hipnotizado
– quando um universitário disparou o alarme de incêndio segurando um fósforo perto do sensor, ninguém prestou atenção.
(Idem, ibidem, p. 187)
Digno de nota é o fato de que a experiência do EPI ocorria
paralelamente a outros eventos organizados por Warhol, como a exposição das almofadas prateadas na galeria Castelli e as projeções de
filmes na Film Maker’s Coop, o que possibilitava ao artista ampliar seu
público (Idem, ibidem, p. 197). Segundo Warhol:
[...] nessa altura, com uma coisa e outra, estávamos atingindo
pessoas em todas as partes da cidade, todos os tipos de pessoas:
as que assistiam aos filmes ficavam curiosas com a exposição
da galeria, e a garotada que dançava na Dom queria veros filmes; os grupos estavam todos se misturando – dança, artes plásticas, moda, cinema. (Idem, ibidem, p. 197)
No EPI confluem diversos fatores que o colocam como experiência pioneira de um certo tipo de “arte” em que tudo se mistura:
o experimental, o entretenimento, o publicitário. E não se pode negar
que, especificamente nesse ponto, amplia uma das principais particularidades da Pop – a confusão das fronteiras entre alta e baixa cultura.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise apresentada permite constatar mais uma ambiguidade do fenômeno Warhol: um artista ao mesmo tempo superconhecido
– um “superstar” – e em alguns aspectos ainda subexplorado. Sua ampla e diversificada atuação artística aponta para uma transmidialidade
fundante, em geral desconsiderada pela crítica e pelo público.
Essa atuação não pode ser separada da presença massiva dos
aparatos e das imagens técnicas, devendo esses últimos serem compreendidos não apenas como tema dos artistas pop, mas – especialmente
no caso de Warhol –, como condição da emergência de uma arte que,
para além da forma como tem sido compreendida, ainda reverbera em
muitos aspectos na arte atual.
Especialmente em relação aos ambientes multimídias, em
franco desenvolvimento na década de 1960, para os quais o EPI figura
como exemplar: mais uma das faces da cultura pop – dessa cultura que
aqui defendemos como intrinsecamente transmidiática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Imagens:
Figura 1: Christopher MAKOS. Andy Warhol com nariz de palhaço. 1982. 40,6 cm X 50,8
cm. Fonte: https://www.makostudio.com/gallery/3028. Acesso em: 11 fev. 2022.
Figura 2: Andy WARHOL. Autorretrato com câmera (díptico). 1973. Fotografia polaroid.
Fonte: https://www.artsy.net/artwork/andy-warhol-self-portrait-with-camera-diptych-1. Acesso em: 12 fev. 2022.
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Figura 3: (À esquerda) John Warhola. Retrato de Andy Warhol um dia antes de ingressar na
universidade. 1945. (À direita) Retrato de estúdio de Shirley Temple com dedicatória para
Andy Warhol. 1941. Fonte: The Andy Warhol Museum/The Andy Warhol Foundation for the
Visual Arts. Disponíveis em: https://www.Warhol.org/andy-Warhols-life/ e em https://www.
warhol.org/rest-in-peace-shirley/. Acesso em 25 jan. 2022.
Figura 4: Cartazes de divulgação do EPI. Fonte: https://msmokemusic.com/blogs/mind-smoke-blog/posts/1966-any-warhol-s-plastic-exploding-inevitable . Acesso em: 25 jan. 2022.
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LE ROI GOUVERNE PAR LUI-MÊME: O
CORPO DO PODER NAS PINTURAS DE
CHARLES LE BRUN (1619-1690) PARA A
GRANDE GALERIE DE VERSALHES
Matheus Corassa da Silva196 - matheus.corassa@unifesp.br
Resumo: Charles Le Brun (1619-1690) figura entre os grandes vultos
da cultura visual do século XVII. Suas produções artísticas (como pintor e decorador) e acadêmica sintetizaram bem as contradições motivadas pelo contexto da Contrarreforma e do fortalecimento dos Estados
nacionais absolutistas. Além disso, estavam relacionadas ao estabelecimento de um novo paradigma estético posicionado a meio caminho do
classicismo renascentista e das inovações ditas barrocas. Os trabalhos
desse peintre savant canalizavam a preocupação da sociedade seiscentista com o mundo extra-racional ao mesmo tempo em que eram sinais
de seu esmero quase científico na elaboração das composições. Nessa
perspectiva, é digno de nota o protagonismo que Le Brun deu às representações corpóreas tanto em suas pinturas quanto em suas reflexões
teóricas. A proposta desta comunicação é apresentar as considerações
preliminares de nossa pesquisa de doutorado, centradas nas manifestações estético-iconográficas da noção do corpo do poder na obra lebruniana. A figura do rei Luís XIV (1638-1715) ganha centralidade na
produção do artista, que se propunha a enfatizar as representações do
Rei Sol e de seus feitos, ampliar sua visibilidade perante os súditos e
ritualizar os eventos e aparições em que sua majestade era manifesta. Nosso enfoque será a análise do conjunto de pinturas feitas por Le
Brun para o plafond da Grande Galerie do Palácio de Versalhes, que
ilustram feitos e realizações do monarca nos vinte primeiros anos de
seu governo pessoal, estabelecido a partir de 1661 com a morte do primeiro-ministro Mazarino (1602-1661). Deste modo, é nossa intenção
compreender o corpo do rei, a encarnação do Estado – direta ou indire196 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Fisionomia, Expressões e
Paixões: o corpo como argumento retórico em Charles Le Brun”, orientada pelo Prof. Dr. Jens
Michael Baumgarten, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte (PPGHA) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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tamente representado – como um importante argumento retórico tanto
nas obras de Le Brun quanto na própria cultura visual do século XVII.
A fim de abrir caminho para reflexões e novos olhares sobre a iconografia, debruçar-nos-emos sobre a pintura Le Roi gouverne par lui-même
que, num contexto mais amplo, pode ser entendida como sinal, muito
mais que ilustração, do poder real encarnado no corpo de Luís XIV, o
corpo do poder.
Palavras-chave: Charles Le Brun; Luís XIV; Pintura; Corpo do poder;
Retórica visual.
Abstract: Charles Le Brun (1619-1690) is one of the great figures of
17th century visual culture. His artistic (as a painter and decorator) and
academic productions well synthesized the contradictions motivated by
the context of the Counter-Reformation and the strengthening of Absolutist National States. Furthermore, they were related to the establishment of a new aesthetic paradigm positioned midway between Renaissance classicism and the so-called baroque innovations. The works of
this peintre savant canalized the preoccupation of 17th century society
with the extra-rational world at the same time that they were signs of
his almost scientific care in the elaboration of the compositions. From
this perspective, it is worth noting the prominence that Le Brun gave to
bodily representations both in his paintings and in his theoretical reflections. The purpose of this communication is to present the preliminary
considerations of our doctoral research, centered on the aesthetic-iconographic manifestations of the notion of the body of power in Lebrun’s
work. The figure of King Louis XIV (1638-1715) gains centrality in the
artist’s production, which aimed to emphasize the representations of
the Sun King and his deeds, increase his visibility before his subjects
and ritualize the events and apparitions in which his majesty was manifest. Our focus will be the analysis of the set of paintings made by Le
Brun for the plafond of the Grande Galerie of the Palace of Versailles,
which illustrate the achievements and accomplishments of the monarch in the first twenty years of his personal government, established in
1661 with the death of the prime minister Mazarin (1602-1661). In this
way, it is our intention to understand the king’s body, the incarnation
of the State – directly or indirectly represented – as an important rhe-
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torical argument both in Le Brun’s works and in the visual culture of
the 17th century. In the light of contemporary notions such as the body
as a battleground and as a territory of the political, we will present
the tensions, ruptures and continuities that this artistic motif assumed
in Le Brun’s production. In order to open the way for reflections and
new perspectives on iconography, we will focus on the painting Le Roi
gouverne par lui-même which, in a broader context, can be understood
as a sign, much more than an illustration, of royal power embodied by
Louis XIV, the body of power.
Keywords: Charles LeBrun; Louis XIV; Painting; Body of power; Visual rhetoric.
INTRODUÇÃO
Charles Le Brun (1619-1690) é considerado um dos principais
nomes do Grand Siècle francês. Renomado pintor e decorador, teve
papel de destaque na fundação da Académie Royale de Peinture et de
Sculpture em 1648 – da qual se tornaria diretor em 1683 – e foi nomeado premier peintre du roi Luís XIV (1638-1715), o que lhe garantiu
encargos grandiosos na decoração de palácios como o de Versalhes e
o do Louvre. Notabilizou-se, enfim, como um peintre savant,197 isto é,
um “pintor sábio” que, além de dominar o fazer artístico, dedicava-se
ao estudo e à teorização do próprio ofício. Sob a proteção do próprio
Rei Sol e do ministro Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), deu forma às
artes de seu tempo e lançou as bases para a sistematização acadêmica
do ensino artístico.
Le Brun é peça-chave para a compreensão de um panorama
artístico (no mais amplo sentido, incluídas aí a Literatura e a Arquitetura) que tinha como principal objetivo enfatizar as representações do rei
Luís XIV e de seus feitos, ampliar sua visibilidade perante os súditos e
ritualizar os eventos e aparições em que sua majestade era manifesta.
197 MONTAGU, Jennifer. Avant-propos. In: GADY, Bénédicte; MILOVANOVIC, Nicolas
(dir.). Charles Le Brun (1619-1690). Paris: Musée du Louvre-Lens / LIENART Éditions,
2016, p. 10-11.
432
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Verificava-se, assim, um processo de verdadeira fabricação do rei,198 de
construção simbólica de sua autoridade, que demandava das artes um
caráter cada vez mais persuasivo e de artistas como Le Brun a capacidade de desenvolvê-lo com zelo, decoro e glória.
Neste trabalho, pretendemos problematizar, mesmo que brevemente, parte da iconografia que constitui a decoração pictórica feita
por Le Brun para o plafond da Grande Galerie (ou Galeria dos Espelhos) do Palácio de Versalhes. No conjunto, composto por nove pinturas
grandes e dezoito menores,199 são retratadas cenas da Guerra Franco-Holandesa (1672-1678) e uma alegoria referente ao início do governo
pessoal de Luís XIV, após a morte do cardeal Mazarino (1602-1661).
Le Brun estabeleceu, assim, exemplares referenciais do que se convencionou chamar pintura discursiva,200 isto é, imagens envoltas por uma
mística verbal e que, submetidas à atmosfera linguística da corte e da
Académie, tinham o claro objetivo de persuadir espectadores e súditos
da glória alcançada pelo gênio militar e político do rei.
Dado o caráter ainda incipiente de nossa pesquisa, nosso enfoque será dirigido para uma das pinturas maiores da decoração, intitulada Le Roi gouverne par lui-même (O Rei governa sozinho), executada
por Le Brun entre 1681 e 1684. Sua concepção está permeada por referências alegóricas que colocam conhecidas figuras como as de Minerva,
Marte, Hércules, Saturno e as Três Graças como coadjuvantes de Luís
XIV, encarnação do poder e do próprio Estado, “causa dos eventos,
agente da história possuidor do poder de transformar as coisas”.201 A
maior parte das análises já realizadas sobre a imagem citada ressaltam
– corretamente, diga-se de passagem – a relação direta das alegorias e
personificações com a construção de uma narrativa simbólica e elogiosa
das conquistas político-militares de Luís. Nossa proposta, no entanto, é
ir um pouco além dessa abordagem iconográfica mais tradicional, tra198 Tese longamente desenvolvida em BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da
imagem pública de Luís XIV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
199 Ibid., p. 98.
200 BRYSON, Norman. Word and image: French painting of the Ancien Régime. Cambridge:
Cambridge University Press, 1981, p. 31.
201 SCHMITTER, Amy M. Representation and the Body of Power in French Academic Painting. Journal of the History of Ideas, v. 63, n. 3, p. 399-424, 2002. p. 410. Disponível em: www.
jstor.org/stable/3654315. Acesso em: 07 nov. 2021.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
433
zendo para o centro da reflexão a constituição pictórica do corpo do rei
como um elemento per se, e não como a representação de uma ideia
abstrata.
Num contexto marcado pelo estabelecimento de uma cultura
visual e literária que reforçava cada vez mais o discurso retórico-persuasivo, as artes visuais foram instrumentalizadas a favor de autoridades políticas, com os artistas a se utilizarem de elementos racionais
(a pintura e a composição dos corpos retratados, por exemplo) com a
finalidade de atingir objetivos extra-racionais.202 No caso de Le Brun,
tal instrumentalização política se faz presente e abre caminho para uma
estética do efeito em seus esquemas decorativos. Suas pinturas comunicam algo aos observadores, criam narrativas e legitimam discursos. São
sinais, muito mais que ilustrações, do poder real encarnado no corpo de
Luís XIV, o corpo do poder.203
Mais do que apontar conclusões ou interpretações fechadas,
nosso objetivo é abrir caminho para reflexões e novos olhares, mesmo que ainda em vias de elaboração, no que diz respeito à análise das
fontes iconográficas que elencamos acima. Para tal, partiremos dos referenciais metodológicos propostos por Daniel Arasse (1944-2003) no
livro Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura.204 Nele, o autor questiona, dentre outros aspectos, a capacidade dos iconógrafos de esmagar
os “incômodos” da pintura e de, como bombeiros, apagar o fogo que
ilumina possíveis anomalias que saltam aos olhos do espectador e que
fogem a toda e qualquer teorização ou hermetismo. A arte nos obriga a
olhar mais de perto e “a constatar que não é tudo tão simples, tão evidente” quanto gostaríamos que fosse.205
É a partir dessa visão ampliada que começamos a delinear a
hipótese central de nossa pesquisa, a ser, futuramente, desdobrada em
nossa tese: mais do que simbolizar ou representar o poder, o corpo de
Luís XIV, rigorosamente elaborado na pintura de Le Brun, encarna e se
constitui como parte indissociável do poder real absoluto e transcende à
202 MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São
Paulo: Edusp, 2009, p. 46.
203 SCHMITTER, op. cit.
204 ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora 34, 2019.
205 Ibid., p. 25.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
mera condição de parte integrante de um discurso, ao tratamento como
um corpo legível,206 sendo compreendido como o nó górdio da complexidade política e sede das tensões daqueles tempos.
1. A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA
Para compreendermos melhor a atuação de Le Brun junto à decoração do Palácio de Versalhes, assim como a elaboração das imagens
que figuram como objetos deste ensaio, precisamos retomar o contexto
que cerca a estruturação de um sistema artístico, a partir de meados do
século XVII, altamente centralizado e com objetivos muito claros: legitimar o poder do rei e contribuir para sua glória.
Em seu leito de morte, em 1661, Mazarino teria aconselhado
o jovem monarca a doravante governar sozinho, sendo o seu próprio
primeiro-ministro, e a jamais deixar as questões políticas importantes
aos cuidados de qualquer de seus auxiliares. 207 No mesmo ano, além
de concentrar seus próprios poderes, Luís se livrou do último elemento
que ainda o colocava sob a sombra da gestão do cardeal: o superintendente do Erário, Nicolas Fouquet (1615-1680). Acusado de vultosos
desvios monetários, Fouquet foi preso e condenado à prisão perpétua,
após três longos anos de julgamento.208 Após confiscar seus bens – aí
inclusas vastas coleções artísticas e bibliográficas –, o monarca tornou
Colbert (que fizera auditorias nas contas de Fouquet) seu novo homem
das finanças. Mais que isso, o novo ministro acumulava as funções de
conselheiro real e surintendant des bâtiments royales (superintendente
das construções reais), o que fez com que se empenhasse no mecenato
estatal à cultura, reestabelecendo a preeminência do rei como patrocinador das artes.
Os esforços de Colbert ganham força num momento peculiar
para as artes francesas, sobretudo para a pintura: uma crise político-institucional colocava em rota de colisão o domínio das guildas sobre
a atividade nos meios urbanos e a ascensão de artistas independentes
206 BRYSON, 1981, p. 29-57; SCHMITTER, 2002, p. 408.
207 DURANT, Will & Ariel. A História da Civilização VIII. A Era de Luís XIV. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1963, p. 11.
208 Ibid., p. 17-18.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
435
que buscavam uma alternativa a esses detentores da maîtrise, isto é, da
técnica. Para tal, apoiaram-se no patronato da Coroa e da corte, intensificado pela gestão colbertista, e tornaram-se a base de um sistema calcado no monopólio artístico estatal e na criação de instituições (como
a própria Académie) que reforçasse esse controle. Paulatinamente, os
homo faber das corporações de ofício foram substituídos pelos homo
significans, espécie de “artistas-intelectuais”, que dominavam tanto as
técnicas pictóricas quanto a narrativa que se queria transmitir.209
Charles Le Brun tornou-se, nesse contexto, um dos principais
auxiliares de Colbert no gerenciamento do monumental sistema artístico francês, ficando encarregado da direção da Manufacture des Gobelins em 1663, mesmo ano em que foi nomeado premier peintre du roi
(primeiro pintor do rei). Em 1675, ascendeu à condição de chanceler
e reitor da Académie, tornando-se uma espécie de mentor (ou ditador,
como preferiram alguns) de milhares de artistas a serviço do Estado.
Nele, convergiam duas forças: a da burocracia estatal e a da narrativa
que submetia a produção pictórica do período. A destacável posição de
Le Brun na gestão de parte desse sistema avalizava, assim, que a forma
do Estado e da estrutura institucional da pintura é que determinavam
a forma do signo pictórico, não o contrário.210 Em outras palavras, as
imagens não eram meras representações que cumulavam o rei de poder,
mas eram sinais visíveis, materializações do poder que emanava da pessoa, e portanto do corpo, de Luís XIV.
2. A DECORAÇÃO DA GRANDE GALERIE EM VERSALHES
Decidido logo após a Paz de Nijmegen (10 de agosto de
1678) – que colocou fim às hostilidades entre França e Holanda –,
o programa iconográfico para o teto da Galerie des Glaces (Galeria
dos Espelhos) de Versalhes constituiu uma verdadeira revolução na
representação do rei. Sabemos por Claude Nivelon (1648-1720), o
biógrafo do rei, que durante uma reunião do Conselho Secreto de
209 Discussão largamente abordada em WARNKE, Martin. O Artista da Corte. Os Antece-
dentes dos Artistas Modernos. São Paulo: Edusp, 2001; também em BURKE, 2009, p. 61-63 e
BRYSON, 1981, p. 29-30.
210 BRYSON, 1981, p. 30-31.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Sua Majestade, em que Colbert participou entre o final do ano de
1678 e o início do ano de 1679 (talvez em setembro de 1678), Luís
XIV decidiu modificar as pinturas anteriormente escolhidas a fim
de santificar o fim da Guerra Franco-Holandesa e perpetuar suas vitórias. Inicialmente, Charles Le Brun havia concebido um ciclo de
alegorias relacionadas a Apolo ou Hércules. Segundo o relato de
Nivelon, no entanto, Sua Majestade resolveu que sua história sobre
as conquistas deveria ser ali representada. Em dois dias, o pintor
reformulou todo o projeto e apresentou um grande programa representando as campanhas militares do rei durante as guerras contra a
Holanda e seus aliados de ocasião (como a Espanha e o Sacro Império). Recomendações reais foram feitas a Le Brun para “não incluir
nada que não esteja de acordo com a verdade”.211
Mais que desempenhar a contento um papel que lhe fora
incumbido pelo próprio rei, Le Brun tinha a oportunidade de, com
esse programa iconográfico, ser lembrado como aquele que tornou
visível e perene a glória de Luís XIV. Com a mudança de toda a
Corte para o Palácio de Versalhes entre o fim da década de 1670 e
o início da de 1680, suas pinturas iluminariam aquele novo mundo
social e político, contribuindo para a ritualização da vida cotidiana
do monarca.
A pintura intitulada O Rei governa sozinho (figura 1) ocupa
a primeira parte do painel central do plafond da Galeria e é a maior
da série de vinte e sete executadas por Le Brun. O pintor substituiu a
referência metafórica (Apolo) por Luís XIV em pessoa, sem renunciar à riqueza da composição cênica, misturando alegorias e deuses
das histórias mitológicas. [Figura 1]
O rei está no centro (ver detalhes na figura 2), sentado em seu
trono, com o timão do Estado em sua mão direita. Perto dele, as Três
Graças simbolizam os presentes que o Céu lhe concedeu. O rosto do
rei é refletido no escudo de Minerva: Le Brun associou, habilmente, o
símbolo da Prudência (o espelho) à deusa tutelar desta virtude, Minerva, que mais geralmente representa a Sabedoria real. A deusa aponta a
211 CORNETTE, Joël. Une représentation de Louis XIV. Histoire par l’image, 2012. Disponível em: http://histoire-image.org/de/etudes/representation-louis-xiv. Acesso em: 15 mar. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
437
Glória, que se senta em uma nuvem e oferece a coroa da imortalidade
ao rei: um círculo dourado encimado por estrelas. A Glória também é
indicada por Marte, o deus da Guerra, aqui entendido como o Valor real,
demonstrando que a Glória passível de ser obtida pelo rei só pode ser
o preço de sua sabedoria (simbolizada por Minerva) e de sua coragem
(representada por Marte). Tal interpretação é confirmada pelo gestual: a
mão esquerda do rei está levantada, palma aberta, em sinal de aceitação
do caminho para a Glória designado a ele por Minerva e por Marte.
Ao redor do trono, em primeiro plano, os Cupidos são figurados como os Génies des divertissements: eles escrevem, tocam música,
jogam cartas, damas, divertem-se com máscaras teatrais; simbolizam os
prazeres aos quais o rei renunciou quando decidiu assumir as rédeas do
Estado, ao mesmo tempo que relembram o patronato real à cultura e às
diversões da corte. O casamento do rei com Maria Teresa da Espanha
(1638-1683) é evocado pelo deus Himeneu, filho de Apolo, carregando uma tocha acesa e uma cornucópia. Abaixo à esquerda, a França
descansa sentada, revestida de seu manto azul ornado por flores-de-lis
douradas. Ela segura descuidadamente um ramo de oliveira na mão direita, símbolo da paz, e está apoiada em uma viga que se identifica com
a Justiça e a estabilidade que se impõem no reino.212 [Figura 2]
A maioria dos estudiosos de Le Brun concorda que, naqueles
tempos, o ato de pintar estava cercado por uma mística verbal. Se hoje
os artistas preocupam-se, na pintura, com a noção de composição, isto
é, o arranjo das formas que compõem a imagem, Le Brun trouxe para os
estudos pictórico-acadêmicos a noção de disposição. Mais que o equilíbrio das formas, seu objetivo era o equilíbrio das mensagens com vistas
à elaboração de um discurso belo e convincente.213 Aqui, Le Brun se
vale dos princípios básicos da retórica clássica, na qual a dispositio (a
ordenação do material e dos argumentos) é talvez a parte mais importante para que uma mensagem – eminentemente política, no caso da
pintura acima descrita – repercuta nos corações e mentes dos súditos.
212 MILOVANOVIC, Nicolas. Le Roi gouverne par lui-même, 1661. Versailles, la Galerie des
Glaces – catalogue iconographique, 2008. Disponível em: https://galeriedesglaces-versailles.
fr/html/11/collection/c17.html. Acesso em: 15 mar. 2022.
213 BRYSON, 1981, p. 32.
438
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
3. UM NOVO OLHAR SOBRE A ICONOGRAFIA
A breve análise da iconografia apresentada acima é tributária
da tradição panofskyana214 que permanece ainda bastante presente como
opção metodológica dos trabalhos que lidam com obras de arte figurativas, cuja produção seja anterior ao século XIX. Sem dúvida alguma,
Panofsky (1892-1968) permitiu nossas primeiras incursões no campo
da História da Arte e, certamente, as da maioria dos pesquisadores. De
certo modo, a perspectiva de uma “leitura das imagens”, da busca de
seu significado intrínseco, está na própria essência das pesquisas em
nosso métier, embora não deva ser adotada como um norte definitivo,
que fecha o campo das possibilidades de análise.
Os verbos utilizados na descrição dos elementos da pintura
remetem a essa quase onipresença do esquema panofskyano: “representar”, “indicar”, “simbolizar”, “associar”, “figurar”, etc. Embora
não seja nossa intenção assumir uma postura iconoclasta em relação
a esse clássico da História e Teoria da Arte, é preciso problematizar
as limitações e insuficiências que sua metodologia impõe às imagens.
Evidentemente, ela se apresenta bastante útil para esclarecer, por exemplo, representações alegóricas, significações mitológicas e simbolismos
cromáticos. No entanto, ao propor uma análise que associa imagens e
textos, há uma clara redução do processo de interpretação visual (no
sentido mais amplo) à mera legibilidade das obras de arte, o que exclui,
por vezes, aspectos afetivos, elaborações psicológicas e toda uma sorte
de relações que podem ser estabelecidas entre o espectador/pesquisador
e a(s) imagem(ns) objeto(s) de seu estudo.
Nesse sentido, são iluminadoras as reflexões levantadas por
Daniel Arasse ao questionar, por exemplo, os filtros (como textos, citações e referências externas) que, por vezes, queremos interpor entre
nosso olhar e a obra, “uma espécie de protetor solar que protegeria do
brilho da obra e preservaria os hábitos adquiridos nos quais a nossa
214 Referimo-nos, aqui, ao esquema metodológico dos três níveis de interpretação de Erwin
Panofsky (1892-1968): a descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação
iconológica. Cf. PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da
arte da Renascença. In: ______. Significado nas Artes Visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,
2012, p. 47-87.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
439
comunidade acadêmica se baseia e se reconhece”.215 Ou ainda as aparentes anomalias que se apresentam irrequietas às simplificações e/ou
interpretações tradicionais dos iconógrafos. Arasse nos chama atenção,
enfim, para as infinitas possibilidades da interpretação de obras de arte,
que precisam ser perpassadas por bom humor, questionamentos e dispostas a explorar os limites (físicos e simbólicos) entre o espaço da
pintura e o do espectador. Ao invés de “esmagar o caracol”, que continuemos a ser surpreendidos pela pintura e por sua presença.216
O entendimento de tais ideias coloca-nos em uma desconfortável posição, de duvidar e questionar concepções já consagradas e, aparentemente, invioláveis. Mas o que é a dúvida senão a própria razão de
ser de qualquer especulação que se diga teórica ou científica?! Muitos
questionamentos se apresentaram quando confrontamos a breve análise
dos elementos de Le Roi gouverne par lui-même com as provocações de
Arasse. Por exemplo, por que asseverar que Minerva, na composição,
personifica a Prudência e a Sabedoria reais? Sabe-se que a rainha-mãe
Ana da Áustria (1601-1666), regente da França até 1651, fora representada como Minerva no arco do triunfo efêmero instalado para a entrada
triunfal de Luís XIV em Paris em 1660.217 Por que Minerva deve ser,
então, alegoria de uma virtude e não de uma pessoa (primordial para a
formação política do rei, diga-se de passagem)?
Quando se trata do corpo do rei, a interpretação iconográfica
tradicional é ainda mais problemática. No mais das vezes, as análises
mais canônicas apresentam o corpo de Luís como uma representação
do poder e do Estado francês. E se dissermos que a abordagem de seu
corpo na pintura, na verdade, presentifica o monarca quase divino, perpétuo, onipresente e digno da veneração de sua corte e de seus súditos?
Mais: marca a presença do rei no tempo, para além da duração de seu
governo, d’ici à plusieur siècles (por vários séculos a partir de então).
Que dizer então de suas vestes? Luís porta um traje militar
que, diriam muitos, é a prefiguração de suas futuras conquistas bélicas.
Mas é possível enxergar muito além: o vestuário nunca é um “invólucro
215 ARASSE, 2019, p. 7.
216 Ibid., p. 25-38.
217 BURKE, 2009, p. 56.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
neutro e protetor”.218 É uma projeção do corpo, pois participa dos valores a ele atribuídos e transmite significados (hierarquias sociais, códigos de civilidade, dignidade). Mais que estar preparado para conflitos,
o monarca é um guerreiro disposto a lutar por suas convicções, por seus
domínios e por seu povo, sempre em condição de superioridade a seus
congêneres europeus. Dessa pintura em diante, Le Brun se especializaria em cenas de batalhas que retratassem o rei, retomando a guerra
como um dos mais antigos e, certamente, um dos mais poderosos topoi
retóricos.219 Com toda a sua complexidade, o corpo não permanece – e
nem pode – passivo e estável à legibilidade do esquema metodológico
de Panofsky.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final deste artigo com mais dúvidas que certezas. Os problemas e questionamentos aqui levantados permanecerão,
por ora, sem respostas definitivas. Serão, contudo, importantes direcionamentos para o desdobramento de nossa pesquisa/tese, sempre pavimentada pela noção de que o poder estatal requer reconhecimento para
existir e consciente do papel decisivo que as obras de Le Brun tiveram
na formatação deste poder encarnado no corpo do rei.220 E, principalmente, sem deixar de lado as indagações e os questionamentos sobre o
sentido da presença dessas imagens ante os nossos olhos.221 Nas palavras de Louis Marin:
Qu’est-ce que re-présenter, sinon présenter à nouveau (dans la
modalité du temps) ou à la place de... (dans celle de l’espace).
Le préfixe re- importe dans le terme la valeur de la substitution.
Quelque chose qui était présent et ne l’est plus est maintenant
représente. A la place de quelque chose qui est présent ailleurs,
voici présent un donné ici. Au lieu de la représentation donc, il
est un absent dans le temps ou l’espace ou plutôt un autre et une
substitution s’opère d’un même de cet autre à sa place.222
218 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo e o gesto na civilização medieval. In: BUESCU, A. I.;
SOUSA, J. S. de.; MIRANDA, M. A (coords.). O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval.
Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 20.
219 BRYSON, 1981, p. 36.
220 SCHMITTER, 2002, p. 399-400.
221 ARASSE, 2019, p. 31.
222 MARIN, Louis. Le Portrait du Roi. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981, p. 9.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Isto é, as representações daqueles que detêm o poder são um
sinal daquilo que está distante, ou que não mais existe, mas que se conserva em uma realidade abstrata. A relação desenvolvida ao se contemplar as imagens de Le Brun é a de recriar a presença de seu mais ilustre retratado, o rei Luís XIV. Mesmo ausente, torna-se presentificado;
embora no passado, volta à atualidade; e já estando morto, revive. Em
corpo e glória, d’ici à plusieur siècles.
Que este artigo seja, enfim, uma primeira incursão à produção
artística de Le Brun e à sua intenção de encarnar o poder real também a partir de suas tintas. Num contexto marcado pela centralização
do sistema estruturado por ele e por Colbert, a supremacia do discurso favorável ao rei nas artes se fez plenamente presente, de modo que
qualquer questionamento ou desvio àqueles rígidos padrões poderia ser
tido como “heresia artística e traição política”.223 E, ao que parece, tal
traição só seria possível a partir da compreensão de que Sua Majestade
de fato se faz presente, corporeamente, nas pinturas que a representam.
Este é, pois, o caminho que ainda temos a desbravar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora
34, 2019.
BRYSON, Norman. Word and image: French painting of the Ancien Régime.
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XIV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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DURANT, Will & Ariel. A História da Civilização VIII. A Era de Luís XIV.
Rio de Janeiro: Editora Record, 1963.
223 BRYSON, 1981, p. 34.
442
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
LANGMUIR, Erika; LYNTON, Norbert. Charles Lebrun. In: ______. The
Yale Dictionary of Art and Artists. New Haven / Londres: Yale University
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la Galerie des Glaces – catalogue iconographique, 2008. Disponível em: https://galeriedesglaces-versailles.fr/html/11/collection/c17.html. Acesso em:
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GADY, Bénédicte; MILOVANOVIC, Nicolas (dir.). Charles Le Brun (16191690). Paris: Musée du Louvre-Lens / LIENART Éditions, 2016.
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PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da
arte da Renascença. In: ______. Significado nas Artes Visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 47-87.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo e o gesto na civilização medieval. In:
BUESCU, A. I.; SOUSA, J. S. de.; MIRANDA, M. A (coords.). O Corpo e o
Gesto na Civilização Medieval. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 17-36.
SCHMITTER, Amy M. Representation and the Body of Power in French Academic Painting. Journal of the History of Ideas, v. 63, n. 3, p. 399-424, 2002.
Disponível em: www.jstor.org/stable/3654315. Acesso em: 07 nov. 2021.
WARNKE, Martin. O Artista da Corte. Os Antecedentes dos Artistas Modernos. São Paulo: Edusp, 2001.
Imagens:
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Figura 1. Charles LE BRUN. Le Roi gouverne par lui-même. 1681-84. Pintura em tela
apoiada sobre teto, 800 x 500 cm. Galeria dos Espelhos, Palácio de Versalhes, França. Fonte:
https://artsandculture.google.com/asset/wd/sQEDfFRwHew6Kw. Acesso em: 15 mar. 2022.
444
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Figura 2. Charles LE BRUN. Detalhe da pintura Le Roi gouverne par lui-même.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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DÂNDIS AQUÉM E ALÉM-MAR:
AUTORREPRESENTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO
DE ARTISTAS ESTRANGEIROS E BRASILEIROS
NO ENTRESSÉCULOS XIX E XX
Natália Cristina de Aquino Gomes224 - natalia.gomes@unifesp.br
Resumo: O que significava ser um dândi, o que os caracterizavam e
quais foram os responsáveis por essa “tradição”, também absorvida por
alguns artistas nacionais? Tais questionamentos serão abordados, a partir de duas fases de estudos. A primeira trará aspectos desenvolvidos na
pesquisa de mestrado intitulada “Retrato de artista no ateliê: a representação de pintores e escultores pelos pincéis de seus contemporâneos no
Brasil (1878-1919)”, defendida em 2019, no PPGHA-UNIFESP, sob
orientação da Profa. Dra. Elaine Dias e financiamento da FAPESP e a
segunda concerne à pesquisa de doutorado iniciada em 2021, sob mesma orientação e também realizada no PPGHA-UNIFESP. Neste texto,
veremos breves considerações acerca dos dois artistas que compõem
nossa análise. Olharemos, assim, para a representação do dândi e analisaremos como esse “personagem” esteve presente na imprensa, na literatura e nas artes plásticas em fins do século XIX e início do século
XX. Esperamos, assim, que o olhar para o dândi nos permita entender
como sua figura esteve imersa na cultura e na sociedade do século XIX
mantendo-se em evidência também nas primeiras décadas do século
XX, tendo em vista que importantes representantes estiveram presentes
em segmentos como a literatura, assim como nas artes e ofereceram um
224 Esta publicação traz questões trabalhadas no mestrado intitulado “Retrato de artista no
ateliê: a representação de pintores e escultores pelos pincéis de seus contemporâneos no Brasil
(1878-1919)”, orientado pela Profa. Dra. Elaine Dias, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa contou com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (processo n° 16/26221-1) e bolsa de estágio de pesquisa no exterior (BEPE-FAPESP, processo n°
2018/05802-1). Nesta publicação, também realizamos considerações vinculadas a pesquisa de
doutorado “Mário Navarro da Costa e Rodolfo Pinto do Couto: produção artística e protagonismo nas relações entre Portugal e Brasil (1911-1945)” iniciada em 2021, sob mesma orientação
e desenvolvida na mesma instituição. Até o momento, a pesquisa não possui financiamento.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
modelo de elegância aos seus sucessores e admiradores, o qual também
foi promovido na imprensa do período.
Palavras-chave: Autorrepresentações; artistas, dândis; elegância; representações.
Abstract: What did it mean to be a dandy, what characterized them
and who were responsible for this “tradition”, also absorbed by some
national artists? Such questions will be addressed, from two phases of
studies. The first will bring aspects developed in the master’s research
entitled “Portrait of an artist in the studio: the representation of painters
and sculptors by the brushes of their contemporaries in Brazil (18781919)”, defended in 2019, at PPGHA-UNIFESP, under the guidance
of Profa. Dra. Elaine Dias and funding from FAPESP and the second
concerns the PhD research started in 2021, under the same guidance
and also carried out at PPGHA-UNIFESP. In this text, we will see brief
considerations about the two artists that make up our analysis. We will
therefore look at the representation of the dandy and analyze how this
“character” was present in the press, literature and visual arts at the end
of the 19th century and the beginning of the 20th century. We hope,
therefore, that the look at the dandy will allow us to understand how
his figure was immersed in the culture and society of the 19th century,
remaining in evidence also in the first decades of the 20th century, considering that important representatives were present in segments such
as literature as well as the arts and offered a model of elegance to their
successors and admirers, which was also promoted in the press of the
period.
Keywords: Self-representations; artists; dandies; elegance; representations.
No mestrado em História da Arte (AQUINO GOMES, 2020),
investigamos alguns retratos de artistas brasileiros em que os pintores
recorreram à figura do dândi para representar seus pares no ateliê. Tal
questão levou-nos a olhar primeiramente o significado dessa terminologia. Segundo o dicionário da língua portuguesa, a palavra dândi foi
importada do “[...] ing. dandy ‘homem que tem preocupação exagerada
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
447
com a aparência pessoal’ [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 595), o
que pode significar: “1 indivíduo que se veste com elegância e requinte;
2 [...] indivíduo que se veste e comporta com afetação e delicadeza.”
(Ibidem). A palavra deriva o vocábulo “dandismo”, que é a “1 qualidade ou característica de dândi; 2 afetação no comportamento e/ou no
modo de vestir [...] ing. dandyism ‘estilo ou comportamento de dândi’
[...].”(Ibidem).
Por sua vez, o termo “dandy” teria origem no vocábulo francês
“dandin”, datado de meados do século XVI, e mais tarde inserido na Inglaterra, transformando-se em “Dandy”. Existe a teoria de que o termo
fora criação britânica e que “dandy” deriva do verbo “dandle”, que pode
significar “balançar, embalar ou acariciar”; e no francês corresponderia
a “dandiner” (SÉTAN apud SCHIFFER, 2011, p. 25)225. Ao olharmos
novamente para a língua portuguesa, temos como correspondente a palavra “dandinar” que compreenderia ao “[...] movimentar-se para um
lado e outro, gingando <ao cortejar as damas, dandinava (-se)> 2 [...]
andar com trejeitos afetados 3 [...] mostrar com vaidade; ostentar, exibir
[...] fr. dandiner ‘gingar, bambolear’” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p.
595). Nesse sentido, na língua portuguesa encontramos um intercâmbio
entre Inglaterra e França no surgimento dos termos dândi ou dandismo. Acerca dessa consideração, Schiffer menciona o trecho do artículo
Dandysme, da Encyclopédie Universalis, mostrando o intercâmbio entre França e Inglaterra na criação da palavra e a mútua contribuição para
a constituição dos dândis do século XIX: “Seja como for, a palavra aparece na Inglaterra no final do século XVIII, e as etimologias atestam as
trocas franco-britânicas que caracterizam o dandismo no século XIX.”
(SHIFFER, 2011, p. 26. Tradução e grifo nossos)226.
Com base nessas considerações, compreendemos o motivo de
os mais famosos representantes do dandismo emergirem de ambos os
países: os britânicos George Brummell e Oscar Wilde; e os franceses
Charles Baudelaire e Barbey d’Auverilly. Jean-David Jumeau-Lafond
225 Shiffer tem por base a ideia discutida por Michel Sétan em seu site “Les Nouveaux Dan-
dys”. Disponível em: <www.lesnouveaudandys.com>.
226 Trecho original: “Quoi qu’il en soit, le mot apparaît en Angleterre à la fin du XVIII ͤ siècle,
et les étymologies attestent les échanges franco-britanniques qui caractérisent le dandysme au
XIX siècle.”.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
menciona que o primeiro representante de um dândi surgiu em Brummell e “[...] não se limita ao narcisismo e ao refinamento de estilo, mas
inclui um importante elemento de ‘distinção’ no sentido forte do termo;
é uma questão de distinguir-se dos outros, numa afirmação de si mesmo
[...].” (JUMEAU-LAFOND, 2016, p. 75. Tradução nossa)227. Por esse
ângulo, Brummell é encarado como “dândi fundador”. De acordo com
Jumeau-Lafond,
[...] Brummell é, portanto, um dândi na afirmação de si mesmo, mas ele não é nem escritor, nem colecionador, nem mesmo
árbitro de outros esteticismos que o de sua pessoa. Este dândi
fundador faz da sua vida uma obra de arte, mas não integra
obras de arte à sua vida. (Idem. Tradução nossa )228
É interessante compreendermos que escritores do século XIX
herdaram o legado de Brummell e aplicados por eles de acordo com a
realidade de seu tempo. Segundo Jumeau-Lafond,
Os escritos de Balzac, Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, sem
renunciar aos fundamentos do dandismo brummelliano, confirmam suas virtudes sociais e morais, mas dá-lhe acima de tudo
sua nobreza literária em um contexto propício; a revolução
industrial e o triunfo da burguesia desencadeiam contra eles a
vingança dos partidários da beleza e da arte. (Ibidem. Tradução
nossa)229
Oscar Wilde correspondeu às características oriundas do dandismo expressas em sua vida e em sua obra como escritor, como no caso
de O retrato de Dorian Gray (WILDE, 2004). Para Shiffer, “[...] Wil227 Trecho original: “Il ne se limite pas au narcisisme et au raffinement vestimentaire, mais
comprend une importante part de ‘distinction’ au sens fort du terme; il s’agit bien de se distinguer des autres, dans une affirmation de soi.”.
228 Trecho original: “[...] Brummell est donc un dandy dans l’affirmation de lui-même, mais
il n’est ni écrivain, ni collectionneur, ni même arbitre d’autres esthétismes que celui de sa
personne. Ce dandy fondateur fait de sa vie une oeuvre d’art, mais n’intègre pas les oeuvres
d’art à sa vie.”.
229 Trecho original: “Les écrits de Balzac, Baudelaire et Barbey d’Aurevilly, sans renier les
fondamentaux du dandysme brummellien, confirment ses vertus sociale et morale mais lui conferente surtout ses lettres de noblesse littéraire dans un contexte propice; la révolution industrielle et le triomphe de la bourgeoisie déchaînent alors contre eux la vindicte des partisans du
beau et de l’art.”.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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de, pela voz de seu herói, faz aqui implicitamente uma homenagem a
Brummel.” (SHIFFER, 2011, p. 16. Tradução nossa)230. Nesse sentido,
os dândis aparecem na literatura e se mostram importantes para o campo das artes que terá artistas partidários dessas características.
Prova dessa relação pode ser vista no livro de Baudelaire, Sobre
a modernidade: o pintor da vida moderna, em que é evidente a presença do dândi na literatura. Para Alexander Sturgis e Michael Wilson, a
definição de dândi de Baudelaire:
[...] teve um efeito profundo sobre artistas mais jovens como
Tissot, Whistler e Beardsley, assim como em escritores como
os irmãos Goncourt, que adotaram uma pose de elegância indumentária e desdém aristocrático como expressão do culto da
arte pela arte que eles perseguiram. Em sua rejeição à vulgaridade da vida moderna, eles celebraram o artífice, cultivando um
prazer puramente estético nas belezas refinadas da arte japonesa e da arte francesa do século XVIII. (STURGIS, et al., 2006,
p. 119. Grifo nosso. Tradução nossa)231
Na visão de Baudelaire, “[...] a palavra dândi implica a quintessência de caráter e uma compreensão sutil de todo mecanismo moral
deste mundo [...].” (2007, p.20). E continua:
Denominem-se eles refinados, incríveis, belos, leões ou dândis,
não importa: têm todos uma mesma origem; são todos dotados
do mesmo caráter de oposição e de revolta; são todos representantes do que há de melhor no orgulho humano, dessa necessidade, bastante rara nos homens de hoje, de combater e de
destruir a trivialidade. (BAUDELAIRE, 2009, pp. 16-17)
De acordo com Pierre Bourdieu, no que diz respeito ao entendimento de Baudelaire acerca do dandismo:
230 Trecho original: “[...] Wilde, par la voix de son héros, rend ici implicitement hommage à
Brummel.”.
231 Trecho original: “[...] had a profound effect on younger artists such as Tissot, Whistler and
Beardsley, as well as on writers like the Goncourt Brothers, who adopted a pose of sartorial
elegance and aristocratic disdain as an expression of the cult of art for art’s sake which they
pursued. In their rejection of the vulgarity of modern life, they celebrated artífice, cultivating
a purely aesthetic pleasure in the refined beauties of Japanese art and French art of the eighteenth century.”.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A própria estética de Baudelaire encontra sem dúvida seu princípio na dupla ruptura que ele realiza e que se manifesta especialmente em uma espécie de exibição permanente de singularidade paradoxal: o dandismo não é apenas vontade de aparecer
e de impressionar, ostentação da diferença ou mesmo prazer
de desagradar, intenção concertada de desconcertar, de escandalizar, pela voz, o gesto, a brincadeira sarcástica; é também e
sobretudo uma postura ética e estética inteiramente voltada e a
concentração das capacidades sensíveis e intelectuais. (BOURDIEU, 1996, p. 97)
Para a nossa discussão, interessam os pontos que priorizam a
elegância e a preocupação dos dândis com a aparência e vestuário, elementos que os artistas absorveram. Menções a alguns pintores apontam
possibilidade no entendimento da representação do dândi no contexto
brasileiro. Alexander Sturgis e Michael Wilson já mostraram a importância da figura do dândi a artistas como James Abbot McNeill Whistler (1834-1903), James Tissot (1836-1902) e Aubrey Beardsley (18721898).
A esse respeito, Giuseppe Scaraffia aponta que Whistler “atraiu
a atenção pública com sua elegante afetação no vestir [...]” (SCARAFFIA, 2009, p. 57. Tradução nossa)232, como podemos perceber em seu
autorretrato de c. 1872, intitulado Arrangement in Gray: Portrait of
the Painter233. Na obra, ele se representa em meio corpo olhando para
o observador, mãos dois pincéis nas mãos e cercado pela tonalidade
cinza, que aparece em seu paletó e no plano de fundo, o qual possibilita
enxergarmos vivamente o delinear do chapéu preto sobre a cabeça de
Whistler. No entanto, depreendemos que toda a elegância e o dandismo
de Whistler não ficaram impressos de forma clara em seu autorretrato e
que seu colega William Merritt Chase (1849-1916) é quem conseguiu
captar e transportar para o retrato234, de 1885. Chase retrata Whistler de
232 Trecho original: “[...] atrajo la atención pública com su elegante afectación en el vestir
[...]”.
233 Para publicação da comunicação, optamos por fornecer os links de acesso para visualização das imagens ao longo de todo o texto. James Abbott McNeill Whistler. Arrangement
in Gray: Portrait of the Painter, c. 1872. Óleo sobre tela, 74.9 x 53.3 cm. Detroit Institute of
Arts. Imagem disponível em: https://www.dia.org/art/collection/object/arrangement-gray-portrait-painter-64930
234 William Merritt Chase. James Abbott McNeill Whistler, 1885. Óleo sobre tela, 188.3 x
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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trata Whistler de corpo inteiro, vestindo-se integralmente de preto, sem
menção ao ofício do pintor. Ele aparece posando com a bengala em sua
mão direita e a esquerda repousando no quadril. Nesse sentido, é interessante notarmos como um pintor compõe a imagem de outro artista e
desse modo realiza uma homenagem ao colega de profissão.
Da mesma forma que William Merritt Chase representou toda
a elegância de Whistler, encontramos correspondência em um retrato
de Chase realizado por John Singer Sargent (1856-1926), em 1902. Na
obra, vemos praticamente Chase de corpo inteiro, vestindo-se elegantemente e com os objetos do ofício em mãos. O pintor segura o pincel em
sua mão direita e na esquerda a paleta, o tento e outros pincéis. O plano
de fundo do retrato é totalmente escuro e não conseguimos identificar
demais detalhes ou indícios de que Chase foi retratado elegantemente
com os objetos de trabalho no ateliê. Já em seu Self Portrait in 4th Avenue Studio, datado dos anos 1915 a 1916, Chase se autorrepresentou no
ateliê vestindo um jaleco para proteção de suas roupas, com os pincéis
e paleta na mão esquerda e diante de uma tela, já com algumas pinceladas; próximo a ele vemos uma mesa onde outros objetos do ofício
estão dispostos e observamos demais detalhes de seu ateliê. O artista
se autorrepresenta em seu ateliê como se estivesse trabalhando e, nessa
escolha, abre mão da elegância do vestuário em favor do ofício ao usar
o paletó/jaleco para proteção de seu traje.
Outros artistas se viram representados de forma extremamente
elegantes, como dândis que realmente eram. É o caso de Aubrey Beardsley, que, de acordo com Scaraffia, era “Muito magro, com o rosto
afundado sob os cabelos lisos, penteado para o lado, o jovem artista incorporou rapidamente o ideal do dândi a quem aspirava. Em sua breve
vida, escondeu sob a elegância de sua aparência os sofrimentos causados por sua doença mortal.” (SCARAFFIA, 2009, pp. 62-63. Tradução
452
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
e grifo nossos)238. No seu retrato239 feito por Jacques-Emile Blanche240
(1861-1942), em 1895, observamos Beardsley sentado e olhando para
o canto esquerdo, evidenciando seu perfil delgado; a vestimenta é composta integralmente pela tonalidade cinza, que contrasta com a gravata
borboleta e a flor na lapela do paletó. Sua elegância é arrematada pela
presença das luvas marrons e pela bengala na mão direita.
Em 1890, de forma elegante e com um traje cinza, Blanche realizara cinco anos antes o retrato de Aubrey Beardsley, o Self-Portrait
with Raphael de Ochoa241. Chamamos atenção que Blanche se autorretrata como um dândi segurando pincéis e paleta, tendo o indício de uma
tela no canto direito da tela e avistamos, ao fundo, alguns quadros dispostos na parede, evidenciando sua presença no ateliê. Atrás de Blanche, vemos o pintor espanhol Rafael de Ochoa y Madrazo (1858-1935);
ele é retratado com a mão direita sobre o ombro de Blanche e olhando
para ele, representando certamente o apoio do pintor espanhol e a boa
relação entre pintores de nacionalidades distintas e que deveriam ser
próximos. Nesse sentido, vemos o pintor se autorrepresentando como
um dândi no ateliê, ao lado de outro pintor, em uma mútua homenagem.
Homenagem que pode ser vista em James-Jacques-Joseph Tis242
sot , de Edgar Degas (1834-1917), datado de 1867 a 1868. Na tela,
vemos Degas representado Tissot no ateliê e o retrata com um dândi,
elegantemente sentado numa cadeira, muito bem-vestido e segurando
uma bengala na mão direita. Tissot está cercado por quadros pendura238 Trecho original: “Delgadísimo, com el rostro sumido bajo el cabelo liso, peinado a un
lado, el joven artista encarnó rapidamente el ideal del dandi al que aspiraba. En su breve
vida escondió bajo la elegancia de su aspecto los sufrimientos causados por su enfermedad
mortal.”.
239 Jacques-Emile Blanche. Aubrey Beardsley, 1895. Óleo sobre tela, 926 mm x 737 mm.
National Portrait Gallery, London. Imagem disponível em: https://www.npg.org.uk/collections/
search/portrait/mw00427/Aubrey-Beardsley
240 Da mesma forma que Sargent, Blanche se tornou responsável pela produção de outros
retratos de dândis, entre eles mencionamos mais adiante o caso de Proust.
241 Jacques-Emile Blanche. Self-Portrait with Raphael de Ochoa, 1890. Óleo em tecido, 99.2
x 71 cm. Cleveland Museum of Art, EUA. Imagem disponível em: https://www.clevelandart.
org/art/1980.230
242 Edgar Degas. James-Jacques-Joseph Tissot, c. 1867-1868. Óleo em tecido, 151.4 x 111.8
cm. The Metropolitan Museum of Art. Imagem disponível em: https://www.metmuseum.org/
art/collection/search/436144
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dos na parede ou dispostos pelo ambiente e observamos uma obra num
cavalete no canto direito da tela.
A presença marcante do dândi é observada no Portrait d’Alfred Stevens243, de 1884, produzido por Henri Gervex244 (1852-1929).
Na obra, observamos o pintor Alfred Stevens (1823-1906) trajando-se
elegantemente, com indumentária completa, acompanhado de casaco e
cartola; em sua mão esquerda, vemos uma luva calçada e o par direito
que o pintor retirou, pois mantém na mão direita um cigarro, além da
bengala. Dessa mesma forma, com pequenas modificações, vemos uma
composição semelhante no Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro245, do
pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, no ano de 1891, como
no Estudo para o retrato de Felinto de Almeida246, de Rodolfo Amoedo,
datado em 1896. Anos antes, em 1888, Amoedo realizou o Retrato de
Gonzaga Duque247, em que o crítico de arte brasileira é retratado sentado com as pernas cruzadas, repousando em seu colo sob sua mão direita
a bengala, enquanto a esquerda repousa sob os papéis em cima da mesa
e próximos aos livros, em evidente menção à profissão do crítico. Não
é possível afirmar que o pintor português ou o brasileiro tenham visto
o retrato de Stevens, de Gervex. Sabemos que ambos circulavam pelo
ambiente francês e em algum momento podem ter visto a tela, e a partir dela criaram suas próprias obras que homenagearam a elegância do
caricaturista e irmão, como no caso de Columbano ou de Amoedo, ao
243 Henri Gervex. Portrait d’Alfred Stevens, 1884. Óleo sobre tela, 140 x 106. Musées royaux
des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelles. Imagem disponível em: https://www.fine-arts-museum.
be/fr/la-collection/henri-gervex-portrait-d-alfred-stevens#
244 Apontamos ainda que os dois pintores, Alfred Stevens e Henri Gervex, trabalharam juntos
na realização do “Panorama du Siècle”, para a Exposição Universal de 1889. A monumental
obra exposta em uma rotunda foi posteriormente separada e hoje suas “partes” estão espalhadas
por coleções particulares ou públicas. Interessa-nos mencionar que em um trecho do panorama
é possível ver Baudelaire e Barbey d’Auverilly, o que indica a importância destas figuras no
contexto francês e a admiração que Stevens e Gervex nutriam por eles. Ver imagem disponível em: <http://lediteursingulier.blogspot.com/2011/07/le-panorama-du-siecle-henri-gervex.
html>.
245 Columbano Bordalo Pinheiro. Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro, 1891. Óleo sobre tela.
Museu Bordalo Pinheiro, Lisboa. Imagem disponível em: https://bit.ly/3mH269p
246 Rodolfo Amoedo. Estudo para o retrato de Felinto de Almeida, ca. 1896. Aquarela sobre
papel, 20,5 x 27 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Sem assinatura, doação,
1941, Adelaide Amoedo.
247 Rodolfo Amoedo. Retrato de Gonzaga Duque, 1888. Óleo sobre tela, 50 × 40 cm. Coleção
Jones Bergamim. Imagem disponível em: https://bit.ly/3e6JgUp
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
retratarem escritores e críticos de arte como dândis.
Segundo Emilien Carassus, “O guarda-roupa do dândi é, sem
dúvida, um sinal de riqueza [...] a roupa os situa na sociedade: eles não
podem negligenciar este equipamento sem o qual não poderiam figurar
no mundo.” (CARASSUS, 1971, p. 103. Tradução e grifo nossos)248.
Os artistas claramente se preocupavam com a vestimenta. Cacilda Teixeira da Costa sublinha que a indumentária se associava “ao desejo de
expressão da interioridade do artista” (COSTA, 2009, p. 8). De acordo
com Honoré de Balzac: “O artista é sempre grande. Ele possui elegância e vida próprias porque, nele, tudo reflete sua inteligência e sua glória. [...] Neles, a fashion deve ser sem esforço: esses seres indomados
moldam tudo à sua maneira.” (BALZAC, 2009, p. 43). Observamos
que a elegância e o cuidado com os trajes constituem um ponto importante para os artistas, inclusive quando são representados por colegas
de profissão. Essas noções de elegância também estiveram presentes
na imprensa do período e a revista carioca Fon-Fon, de 31 de julho de
1909249, traz aos leitores uma espécie de passo a passo dos itens necessários para trajar-se como um dândi, mas carregado de bom-humor.
Por fim, em nossa pesquisa de doutorado iniciada em 2021, buscamos compreender como o pintor e diplomata brasileiro Mário Navarro da Costa (1883-1931) e o escultor português Rodolfo Pinto do Couto
(1888-1945) atuaram como importantes articuladores e protagonistas
das relações artísticas entre Portugal e Brasil. A seguir, veremos como
eles permitiram-se ser registrados para a posterioridade e em qual medida relacionam-se como a representatividade dos dândis.
Iniciamos, então, com uma fotografia de grupo de artistas no
Salão Nacional de 1913250, pertencente ao álbum de M. Nogueira da
Silva. Entre os artistas estão Mário Navarro da Costa e o casal Rodolfo
Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto.
Navarro da Costa, neste período, ainda não havia iniciado a sua
248 Trecho original: “La garde-robe du dandy est sans doute signe de richesse [...] le vêtement
les situe dans la société: ils ne peuvent négliger cette tenue sans laquelle il n’est pas question
de figurer dans le monde.”.
249 POLYBIO, Fon-Fon, Rio de Janeiro, 31 de jul. 1909, ano III , n. 31, p. 19.
250 O Salão Nacional de 1913. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1913. 1 foto:, gelatina, p&b;, 9 x
14,2 cm em folha: 21,5 x 15,5 cm. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.
asp?codigo_sophia=13953
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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carreira diplomática, assunto que investigamos no doutoramento, sobretudo, sua passagem pelo Consulado de Lisboa. Chamamos atenção,
então, para outras fotografias do álbum de retratos de Nogueira da Silva. Entre elas uma datada no ano de 1912251, antes da imersão de Navarro da Costa pelas embaixadas europeias, mas que talvez possua um
paralelo com o Portrait of Marcel Proust252, de 1892, de autoria de Jacques-Emile Blanche. No famoso retrato do jovem escritor, então com
21 anos, o vemos em meio corpo, com trajes elegantes e de tonalidade
escura muito próxima ao plano de fundo neutro do retrato; na lapela de
seu terno encontra-se uma orquídea branca, de uma coloração tão clara
quanto sua camisa e a própria tonalidade de sua pele alva. Tal aproximação pode sinalizar a admiração e homenagem do pintor brasileiro ao
escritor e a preocupação com a sua imagem e vestimenta semelhante ao
retrato de Proust.
Nos anos que seguem Navarro da Costa se insere na diplomacia e o veremos entre reconhecidos artistas, críticos, políticos e demais
figuras importantes no circuito cultural internacional, como é o caso da
imagem de Grupo de artista253 que acreditamos se tratar de uma das
exposições da Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa de 1916 ou
1917, a qual Navarro da Costa expôs suas marinhas. Em Portugal, também realizará exposições individuais e, igualmente, o veremos elegantemente entre as personalidades do período254. Desta mesma maneira,
foi representado pelos pintores portugueses com os quais estabeleceu
amizade, entre estes, destacamos o Retrato do pintor brasileiro Navarro da Costa255, de Arthur Alves Cardoso e o Retrato de Navarro da
Costa256, de Carlos Reis.
251 NAVARRO da Costa, pint. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1912. 1 foto:, Cópia fotográfica de
gelatina e prata, p&b;, 13,5 x 9cm em folha: 21,7 x 14,5cm. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276572_276573/icon1418931.jpg
252 Jacques-Emile BLANCHE. Portrait of Marcel Proust, 1892. Óleo sobre tela, 73.5 x 60.5
cm. Musée d’Orsay, Paris. Imagem disponível em: https://www.musee-orsay.fr/es/node/80645
253 [GRUPO de artistas]. [S.l.: s.n.], [191-?]. 1 foto:, gelatina, p&b;, 13,7 x 23cm em folha:
21 x 32cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/
icon276816/icon1421728.jpg
254 REVISTA DA SEMANA, Rio de Janeiro, Ano XVIII, 17 de março 1917, edição 6, p. 20.
255 Arthur Alves Cardoso. Retrato do pintor brasileiro Navarro da Costa. 14ª Exposição
da Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, p. 59. Imagem disponível em: https://issuu.
com/63619/docs/0015_14_exposicao_1917
256 Carlos Antônio Rodrigues dos Reis. Retrato de Navarro da Costa, 1918. Óleo sobre tela,
456
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Voltando a fotografia de grupo de artistas no Salão Nacional de
1913, chamamos atenção para o casal Rodolfo Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto. Nicolina, a única mulher na reunião,
aparece muito elegante, assim como fora retratada anos antes por Eliseu
Visconti257, obra apreciada pela escultora e mantida em evidência em
sua residência, conforme observamos na fotografia258 que também pertence ao álbum de M. Nogueira da Silva. Nela, vemos o casal no “Canto
de atelier”, ao fundo o retrato está disposto em uma das paredes. Outras
fotografias259 compõem o álbum e nestas o casal posam para o registro
com um atencioso cuidado para com o vestuário. Da mesma forma são
as imagens260 de Pinto do Couto divulgadas nos periódicos da época,
seja em suas exposições ou nas reuniões organizadas em seu ateliê em
que se destacam a presença de personalidades brasileiras e portuguesas.
Como vimos, Navarro da Costa e Pinto do Couto buscaram ser
representados com distinção e elegância, sendo herdeiros de uma tradição de representações de artistas vinculadas a figura dos dândis. Esperamos, assim, ter demostrado mesmo que brevemente que o olhar para a
figura do dândi esteve presente na cultura e na sociedade do século XIX
mantendo-se em evidência também nas primeiras décadas do século
XX, tendo em vista que importantes representantes estiveram presentes
em segmentos como a literatura, assim como nas artes e ofereceram um
modelo de elegância aos seus sucessores e admiradores, o qual também
foi promovido na imprensa do período.
67,5 cm x 92,5 cm. Imagem disponível em: https://www.catalogodasartes.com.br/obra/Btttt/
257 Eliseu VISCONTI. Retrato da escultora Nicolina Vaz de Assis, 1905. Óleo sobre tela,
100 x 81 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Imagem disponível em: https://
eliseuvisconti.com.br/obra/p227/
258 CANTO de atelier: R. Pinto do Couto e D. Nicolina Vaz P. do C. esculps. - E. Dr. Frontin.
Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1913. 1 foto:, Cópia fotográfica de gelatina e prata, p&b;, 17,1 x
12,1cm em folha: 21,7 x 14,5cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276572_276573/icon1418960.jpg
259 [RODOLFO Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto]. [S.l.: s.n.], [1926]. 1
foto:, gelatina, p&b;, 19,7 x 13,6cm em folha: 31,7 x 20,5cm. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276816/icon1421711.jpg e [RODOLFO
Pinto do Couto]. [S.l.: s.n.], [1926]. 1 foto:, gelatina, p&b;, 22,5 x 16,2cm em papel: 31,5
x 20,5cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/
icon276816/icon1421715.jpg
260 A CIGARRA, São Paulo, Ano XVI, 1929, n° 359, p. 31. A NOITE, Rio de Janeiro, 2 de
out. 1934, n° 244, p. 16.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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UMA VISÃO DO FEMININO NAS
BELAS ARTES EM PORTUGAL
Nicoli Braga Macêdo261 - nbraga@autonoma.pt
Resumo: O objetivo do presente artigo é apresentar a dicotomia no
tratamento entre o corpo masculino/feminino, e a luta de tal exposição anatómica, ao evidenciar a fronteira e abismo existentes entre eles.
Tendo por base a exposição do alicerce de minha tese de doutoramento,
atualmente em desenvolvimento, ao colocar as principais considerações que circundam a hipótese deste trabalho, que visa a compreensão da mecânica de construção do corpo feminino e as modificações
existentes dentro da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa e da
Academia Portuense de Belas Artes, nas décadas finais do século XIX.
Desaguando, consequentemente, na realidade do âmbito escultórico e
da arte pública, entre 1880 e 1926, um período que marcou historicamente o início de uma nova mentalidade na representação do feminino
e da própria mulher enquanto ser social em Portugal. Focar no importante trabalho de investigação dentro das instituições e o enriquecimento que a documentação ou até a falta dela, causam no decorrer de uma
investigação. Pontuar a trajetória realizada até então, mostrando rupturas e continuidades no caminho de minha pesquisa, considerar dentro
dos eixos temáticos da História da Arte e da História das Mulheres o
contato que existitu com outras realidades europeias, através dos artistas pensionistas, e até que ponto a mudança de característica vista em
solo português pode estar relacionada com estes intercâmbios. Analisar
a narrativa e a compreensão de uma relação ideológica nos projetos
e execuções da estatuária monumental, e a partir dela compreender a
existência de um discurso imagético sobre a mulher e suas vicissitudes.
Reforçando a tentativa de provar que a obra de arte é, sobretudo, um
261 Este artigo advém da pesquisa de doutoramento em História, ainda em desenvolvimento,
intitulada “A Estatuária Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República”, orientada pelo Prof. Dr. Miguel Figueira de Faria e pela profª.
Drª. Aline Gallasch-Hall de Beuvink, no Departamento de História, Artes e Humanidades da
Universidade Autónoma de Lisboa. A pesquisa conta com financiamento da CEU - Cooperativa
de Ensino Universitário - UAL. Doutoranda em História e investigadora integrada ao Departamento de História, Artes e Humanidades e ao Centro de Investigação em Ciências Históricas da
Universidade Autônoma de Lisboa (DHAH/CICH-UAL).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
aparato cultural mutável, e o seu resultado conota um significado para
além de sua dimensão espacial, mas também uma dimensão cultural,
política, temporal, geografica e social.
Palavras-chave: Belas Artes; História da Arte; História das Mulheres;
Escultura.
Abstract: The purpose of this article is to present the dichotomy in
the treatment between the male/female body, and the struggle of such
anatomical exposure, by highlighting the border and abyss between
them. Based on the exposition of the foundation of my doctoral thesis,
currently under development, by placing the main considerations that
surround the hypothesis of this work, which aims to understand the
mechanics of the construction of the female body and the existing modifications within the Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa and
the Academia Portuense de Belas Artes, in the final decades of the 19th
century. Flowing, consequently, in the reality of the sculptural scope and
public art, between 1880 and 1926, a period that historically marked the
beginning of a new mentality in the representation of the feminine and
the woman herself as a social being in Portugal. Focus on the important
research work within the institutions and the enrichment that documentation, or even the lack of it, causes in the course of an investigation.
To punctuate the trajectory carried out until then, showing ruptures and
continuities in the path of my research, to consider within the thematic
of the History of Art and the History of Women the contact that existed
with other European realities, through the pensioner artists, and to what
extent the characteristic change seen on Portuguese soil may be related
to these exchanges. To analyze the narrative and understanding of an
ideological relationship in the projects and executions of the monumental statuary, and from there to understand the existence of an imagery
discourse about women and their vicissitudes. Reinforcing the attempt
to prove that the work of art is, above all, a mutable cultural apparatus,
and its result connotes a meaning beyond its spatial dimension, but also
a cultural, political, temporal, geographical and social dimension.
Keywords: Fine Arts; History of Art; History of Women; Sculpture.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo advém como uma reflexão da investigação da tese
de doutoramento, ainda em desenvolvimento, intitulada “A Estatuária
Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República” a qual versa sobre dois eixos temáticos,
o primeiro da História da Arte e o segundo da História das Mulheres.
Uma junção que visará compreender as mudanças de tratamento plástico nas artes visuais em conjunção as questões da história social e das
mentalidades. Pontuar como se deu essa trnasformação do ser feminino
social e político na transição do século XIX para o século XX. Tal definição se faz necessária para entendermos os meandros da pesquisa e
como a mesma está alicerçada no que é denominado como “paradigmas
do feminino”. Estes são interpretados à luz de uma diversa documentação, desde desenhos, esboços, livros de matrícula até chegarmos na
execucação da obra escultórica em si, no período cronológico correspondente entre 1880 e 1926.
Um hiato temporal escolhido através da documentação encontrada. Em primeiro lugar a década de 1880 que marca o início da entrada efetiva de alunas mulheres nas escolas de belas artes, das cidades
de Lisboa e do Porto, bem como, o surgimento dos primeiros desenhos
de nu feminino em 1881262 no cerne das mesmas academias. Já na década de 1920, em que temos vários exemplos de esculturas públicas
que possuem um tratamento estético/plástico diferenciado, no que diz
respeito a imagética feminina, principalmente o ano de 1926 com a escultura denominada Maria da Fonte, localizada em Lisboa, executada
pelo escultor Costa Mota (tio), que marca o ápice de uma nova análise
da composição iconográfica e iconológica em comparação ao que vinha
sendo feito em Portugal, até então.
262 Inventário Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Museu Virtual. Fevereiro,
2021. Nº de Inventário: FBAUL/337/DA. Disponível em: http://museuvirtual.belasartes.ulisboa.pt/. Acesso em: 01/02/2022.
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1. UMA VISÃO DO FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL
O contexto social feminino alterar-se-á na transição dos dois
séculos, XIX e XX, no continente europeu. Uma mudança paulatina e
sutil, com avanços e conquistas muitas vezes sentidos somente décadas
à frente. Até então, um grande estereótipo marcava a diferença do tratamento dado aos artistas homens em comparação às artistas mulheres
perante a sociedade. Enquanto os primeiros eram sempre retratados na
boêmia vida de artista, seja na literatura ou na música, por exemplo,
sempre de forma positiva, as mulheres quando se destacavam, o que
por si só era já bastante dificultoso, eram questionadas na sua honra e
moral, além de acusadas de agir dentro da esfera da masculinidade.
Na linha desta realidade, o estudo e compreensão, aqui demonstrados, desta trajetória recai no entendimento também do chamado inconsciente coletivo que existia no âmbito da imagética do feminino,
tendo então por objetivo primário demonstrar a existência de uma evolução seja da figura da artista mulher, seja de sua representação enquanto arte na escultura portuguesa, uma passagem que pode ser classificada
em ambos os casos como uma verdadeira emancipação.
Importante ressaltar que o conceito de emancipação é configurado no horizonte histórico geografico europeu, pois já existiam publicações destinadas e voltadas para uma análise do comportamento da
mulher já nos séculos XV e XVII, como afirma a historiadora de arte
espanhola Patricia Mayayo:
La historia del movimiento feminista tiene ya (aunque muchas
veces se pretenda ignorarlo) bastantes siglos de antigüedad.
Ana de Miguel señala la existencia de lo que podríamos llamar
de un feminismo ´premoderno´, que arranca con el surgimiento
de las primeras ´polémicas feministas´: La Ciudad de las Damas (1405) de Christine Pizan (…) o el movimiento literario
impulsado por las ´preciosas´ (les précieuses) en los salones
parisinos del siglo XVII (…) Pero es con la publicación de
´La igualdad de los sexos´ del filósofo cartesiano Poulain de
la Barre en 1673 y con el surgimiento de varios movimientos
organizados de mujeres durante la Revolución Francesa cuando
se sientan las bases del feminismo moderno. (MAYAYO, 2003,
p.15).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
463
Ações que atuam no encontro de um movimento feminista, embora não possam ainda ser classificadas como tal, mas sim, o fertilizar
de um solo do que viria futuramente conjugar em um movimento propriamente dito e que conhecemos atualmente como as “ondas feministas”, já no século XX e XXI. Uma destas ações que merece destaque foi
a luta pelo sufrágio feminino na Europa e que mostra a efervescência de
tais questões no estrangeiro e que obviamente tiveram impacto também
em Portugal.
Aqui, cabe recapitular a evolução cronológica da presença feminina no âmbito das academias portuguesas e como pouco a pouco elas
foram ganhando o seu espaço em um universo até então dominado pelos homens. Os dados levantados e quantificado quantificados ao longo
do texto correspondem a Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa
(em sua denominação inicial) e a Academia Portuense, ambas fundadas
em 1836 e que “(...) vão tentar importar para os seus estudos artísticos
as bases acadêmicas vigentes nas congéneres de Roma e Paris, onde o
acento no ensino do Desenho era primordial, tomando para si idêntico
sistema de emulação dos estudantes (...)” (SERRÃO, 2016, p.1); o que
permitiu a realização de uma ampla observação da inserção das mulheres neste universo acadêmico.
Porém, antes de adentrarmos especificamente no universo do
desenho e, falarmos da especificidade de alguns trabalhos, torna-se fundamental atentarmos para a formação artística a reforma das Academias
de Belas Artes. Datada de 21 de Março de 1881, denominada como:
“Reforma das academias de bellas artes de Lisboa e Porto”, evoca no
título II, capítulo VIII o seguinte texto: “Dos alunos (...) Art. 54º Serão
admitidos à matrícula em qualquer destas classes, os indivíduos de ambos os sexos que o requererem ao inspetor da academia.”.
Segundo o disposto nos estatutos das Academias de Belas Artes, ao contrário do texto legal de 1823 que procurara criar a primeira instituição deste género no país, não se previa de forma
explícita a abertura dos seus cursos a alunos do sexo feminino,
todavia, também nenhuma disposição estatutária lhes impedia
nem a matrícula nem a frequência dos seus cursos. Mais tarde,
no texto da reforma de 1881, volta a explicitar-se que seriam
admitidos alunos de ambos os sexos. (...). (LISBOA, p.137)
464
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A partir daí buscamos analisar a documentação de matrícula das
academias de Lisboa e do Porto entre os anos de 1880 até 1926 e tentar
reconstruir a presença feminina e de sua formação acadêmica. De um
modo geral, foi possível constatar um número significativo de alunas a
partir da década de 80, principalmente nas cadeiras de pintura e desenho de ornato, todavia, importante destacar que existe um maior número de alunas na cidade do Porto em comparação com a capital Lisboa, o
que nos leva a crer em uma maior abertura na cidade nortenha na emanicapção social feminina. Outro factor que pode-se deixar evidenciado
são as primeiras alunas da cadeira de escultura. Na cidade de Lisboa
foi Mariana da Anunciação Leoni Pereira263, 25 anos, primeiramente no
ano de 1917. Já no Porto os primeiros registos são mais antigos, com as
alunas Lucilia Augusta Aranha (1889-1900) e Alice Adelaide Guilherme Moutinho (1890-1892)264.
Através desta breve análise podemos entender outros elementos
que conjugam o caminho desenvolvido pelas mulheres e, principalmente, estudarmos a mudança de uma hegemonia totalmente masculina e
começarmos a observar a dicotomia dos olhare agora também femininos na arte. Pontuar como as mulheres entram, que aulas frequentam,
quais as notas, e outros tantos dados quantitativos que auxiliam outras
problematizações, as quais serão deixadas para o desenvolvimento da
referida tese de doutoramento, na qual terá espaço para que sejam colocados outros pormenores quantitativos que possam esclarecer o desenvolvimento do feminino enquanto ser social e artístico na esfera profissional das academias.
263 Tanto nos livros de matrícula gerais quanto no livro de escultura e estatuária de 1883 a
1953 Mariana da Anunciação Leoni Pereira é a única mulher matriculada nesta cadeira. O
primeiro registo é de 1917 quando tinha 20 anos e o último de 1921 com 24 anos. Arquivo da
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
264 Livro de Matrículas - Aula Escultura Ordinários (1837-1907) - PT/APBA/F1-4/03-05
(Cota 18). Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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1.1 O DESENHO ANATÔMICO: DA PRIMAZIA MASCULINA
AO GRADUAL FEMININO
“O estudo do corpo humano, das suas proporções e anatomia,
foi reconhecido pelos primeiros tratadistas do Renascimento, como
Leon Batista Alberti (1404-1472), Leonardo da Vinci (1452-1519) e,
entre nós, por Francisco de Holanda (c. 1517-1584), como princípio
fundamental de qualquer artista.” (FARIA, 2008, p.126). Útil e primordial para o artista e a sua arte é então o estudo do modelo. Principalmente para o escultor o foco está na peculiaridade dos “três estados da
representação escultórica, Desenhar/Modelar/Esculpir”, como foi concebido pelo célebre escultor português Joaquim Machado de Castro,
enfatizanado a característica principal tridimensional da escultura e,
consequentemente, toda a carga ideológica que a comporta, sem deixar
de lado a primordial técnica do desenho, que aqui compreende-se pelo
desenho anatômico especificamente.
No caso da expressão através da natureza os artistas têm a sua
tarefa facilitada pois podem livremente trabalhar com a paisagem, animais, plantas, etc., o que não ocorre no trabalho com o corpo humano.
No panorama internacional, a historiadora de arte Linda Nochlin afirma
que o uso de modelos masculinos era realizado pelas academias já no
final do século XVI e início do século XVII, todavia, em um momento
inicial em estúdios privados. Sobre os modelos femininos, nosso objetivo de análise, relata que embora fossem presentes também no âmbito
particular as academias públicas proibiram a prática até 1850, o que não
ocorreu no caso masculino.
466
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Em Portugal os desenhos de modelo feminino apareceram
coincidentemente na mesma altura da presença das mulheres na academia, na década de 1880. Desenhos que, embora pertencentes às academias portuguesas, eram executados no estrangeiro, como por exemplo
nas academias de Roma e Paris, o que reforça novamente a perspectiva de influência externa de diversas alterações, principalmente sociais,
para com o universo feminino. Como exemplo, na academia de Lisboa,
evocamos a existência de sete desenhos de nu feminino, dentre os quais
apresenta-se dois abaixo inseridos (Figuras 1 e 2).
É então a partir da década de 1880 que observa-se o trabalho
através de modelos femininos ao natural, aos moldes que eram realizados já com os modelos masculinos. Através desta ação nos é possível
concluir uma grande mudança de mentalidade que estava ocorrendo
no continente europeu, seja para com a figura de representação feminina, seja para a sua inclusão também enquanto artista. Em concordância
com a historiadora portuguesa Filipa Lowndes Vicente, que observa,
no decorrer do século XIX, uma mudança do papel da mulher, agora de
sujeito duplo, tanto como observadora, quanto observada:
Uma diferença óbvia é que se, anteriormente, a mulher nua na
pintura era historicizada, colocada numa narrativa que a retirasse das referências ao mundo contemporâneo do observador e à corporalidade do “real”, a partir da segunda metade do
século XIX ela passa a ser a mulher “real” que, no estúdio do
artista-homem, ocupa o espaço quer da musa artística, quer da
sexualidade latente entre artista e modelo. (VICENTE, 2012,
p.185).
É exatamente na relação entre os sujeitos e os objetos acima
referida que, apesar de muito discutida, ainda não está superada, pelo
contrário, que recai a importância para a escolha desse tema de investigação. Compreender, principalmente, através das obras de arte, como
se dá a viragem desta relação do e com o feminino e quais os reflexos e
códigos intrínsecos, ao produzir artístico, que podem emergir enquanto
fonte documental para os historiadores problematizarem a sua posição
dentro das artes visuais.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo central foi trazer à tona provocações e dar voz as
mulheres, contrapondo o esquecimento e o silêncio histórico que circundam a narrativa do feminino em sua grande maioria. Ajudar a problematizar a partir do presente, através desta temática atual, uma realidade do passado e que estava circunscrita em importantes mudanças
sociais, políticas e ideológicas na transição entre os dois séculos em
questão, no continente europeu, especificamente em Portugal.
O debate sobre os grupos tidos como minoritários, entendendo tal conceito como os menos representados em termos historiográficos, visa a recuperação de personagens. Além de demonstrar que os
processos históricos não são apenas constituídos por jogos de poder,
que favorece os mais privilegiados, mas sim, alcançar também os elos
frágeis que sofreram e ainda sofrem as consequências dos silêncios e
omissões265, como acontece no caso das mulheres.
Posto isto, há uma necessidade de fomentar a área de estudo
da História das Mulheres em Portugal e a escassez de trabalhos que foquem tal temática foi um grande propulsor para o surgimento desta pesquisa. Um novo desafio, em é uma área em crescente desenvolvimento;
há uma grande diferença na academia portuguesa e brasileira no âmbito
da História das Mulheres, no Brasil estuda-se há mais tempo e de forma
mais acentuada, enquanto em Portugal, existem trabalhos, porém ainda
em uma crescente se comparadas com outras temáticas.
Em suma, este artigo, bem como sua investigação doutoral
torna-se uma mais valia. Principalmente por abrir caminhos para que
outros trabalhos possam surgir. Questionar essas ausências do feminino
na História e tentar dar voz a essas mulheres artistas, conhecendo desde
265 Nos últimos cinco anos em Portugal houve uma crescente em trabalhos académicos que vi-
sam a perspetiva feminina na História da Arte, embora ainda seja uma área que precise de muito
mais visibilidade. Ao pesquisarmos em títulos as palavras “arte e mulher”, entre 2015-2020,
temos: 6 artigos e 2 dissertações de mestrado, ao alargarmos a mesma pesquisa para o início
da base de dados 1822-2020 os números alteram-se muito pouco: 11 artigos, 6 dissertações de
mestrado e 2 teses de doutoramento. Com as palavras “ arte e feminino” o mesmo repete-se,
entre 2015-2020: 3 artigos, 4 dissertações de mestrado e 3 teses de doutoramento, ao alargamos
para 1822-2020: 4 artigos, 9 dissertações de mestrado, 7 teses de doutoramento. Fevereiro,
2021. Disponível em: https://www.rcaap.pt/.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
a sua formação profissional e pensar, sobretudo, a arte como problematização de estereótipos, concebendo as obras de arte como um mecanismo cultural mutável que precisa ser compreendido em suas especificidades, sejam elas sociais, culturais, políticas, geográficas ou temporais.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Imagens:
Figura 1: Ernesto Ferreira CONDEIXA. Academia de nú feminino. 01/05/1881, Escola Nacional e Especial de Belas-Artes. Paris. França. Carvão e esfuminho s/papel, 61,3 x 47,2cm.
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, FBAUL/337/DA
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Figura 2: José Maria Veloso SALGADO. Academia de nú feminino. 27/03/1889, Escola Nacional e Especial de Belas-Artes. Paris. França. Lápis negro, sanguínea e giz branco s/papel creme,
61,8 x 47,4 cm. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, FBAUL/354/DA.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA PINTURA
ORIENTALISTA (SÉC. XIX): ANÁLISE DE
DISCURSO E CARACTERÍSTICAS
Nina Ingrid C Paschoal266 – nina_paschoal@hotmail.com
Resumo: Durante o contexto de colonização do Oriente Médio, principiado pela campanha francesa ao Egito (1798), proliferaram as gravuras e pinturas que o retratavam. Muitas delas foram produzidas a partir
de incentivo político e/ou científico explícitos, enquanto outras eram
feitas no contexto das Belas Artes. Destas, grande número se deteve
especificamente às mulheres orientais, retratando-as como metonímias
do que seria o próprio Oriente no olhar ocidental: inferior, primitivo,
letárgico, disponível, sem qualquer traço de evolução moral ou social,
exótico e fetichizado. Tais características se alinham ao Orientalismo,
segundo os estudos saidianos, constituindo um repertório visual e discursivo. Este artigo visa elencar e discutir as principais características
da pintura orientalista, problematizando principalmente a representação
das mulheres e de seus espaços de convivência, elucidando o caráter
político presente em tais imagens.
Palavras-chave: Orientalismo; pintura; representação.
Abstract: In the frame of Middle East colonization, initiated by the
French campaign to Egypt (1798), there was a proliferation of engravings and paintings depicting this country. Many of them were produced from explicit political and/or scientific encouragement, while others
were made in the context of the Fine Arts. Of these, a large number
focused specifically on oriental women, portraying them as metonyms
of what the East itself would be in the Western gaze: inferior, primitive,
lethargic, available, exotic, fetishized, and without any trace of moral
266 Nina Ingrid C. Paschoal é mestra e bacharel em História pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, técnica em Museologia pela ETEC Parque da Juventude e arte educadora
em espaços culturais desde 2013. Membra fundadora do Coletivo Hunna – Historiadoras que
Dançam e colunista do portal Click Museus.
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or social evolution. These characteristics align with Orientalism, according to the studies of Edward Said, constituting a visual and discursive
repertoire. This article seeks to list and discuss the main characteristics
of Orientalist painting, problematizing mainly the representation of women and of their living spaces, thus elucidating the political character
present in such images.
Keywords: Orientalism; painting; representation.
Aproveitando da fragilidade da administração otomana da
época, ainda que enfrentando bastante resistência, os europeus conseguiram certo sucesso em seus empreendimentos coloniais no Oriente,
garantindo a extração de diversos produtos comerciais, instalação de
aparelhos governamentais e burocráticos, e um grande mercado consumidor por força da dominação e influência. O marco inicial foi a invasão de Napoleão Bonaparte e seu exército francês ao Egito, em 1798.
As invasões representaram uma grande virada no processo histórico
tanto das metrópoles quanto das colônias.
Contudo, o projeto imperialista ainda precisava de mais um esforço para se afirmar nestes novos territórios conquistados, e este ultrapassava a dimensão militar: teria que adentrar a esfera da cultura. Por
esta razão, o trabalho dos colonizadores europeus compreendeu relatar
e compilar o maior número de informações sobre o Oriente, estudando
tudo incessantemente – com todo o rigor acadêmico e científico que o
período iluminista já exigia; é destas áreas especializadas nas características do Oriente que se retirou a alcunha de Orientalismo.
Segundo Edward Said (1935-2003), estudioso seminal sobre o
tema, o Orientalismo foi um discurso (FOUCAULT, 2008, p. 8-9), sendo “uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia.
O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e
mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições,
vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais” (SAID, 2007, p. 28). Este discurso é criado para justificar moralmente a invasão do Oriente se apoia em algumas máximas: a ideia
de superioridade racial e intelectual, que opõe o racionalismo ocidental
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
com o instinto oriental, o reforço de uma relação de poder hierarquizada, e a constante afirmação de que esta seria uma “missão civilizadora”, o que fundamenta a subordinação do Oriente ao Ocidente, uma
vez que teria um suposto grau inferior de evolução social, tornando seu
povo incapaz de se auto organizar e representar.
A ideologia e repertório orientalistas se ramificou também
pelos meios artísticos: gravuras e pinturas carregavam essa ideologia
pejorativo, homogeneizador e raso sobre o Oriente por meio de representações e alegorias. O Orientalismo, em sua dimensão das artes visuais, não se consolidou propriamente como um movimento, escola,
vanguarda ou linhagem artística, mas sim um repertório visual repetido
em diversos estilos da pintura, da escultura e da gravura. É mais correto, então, dizermos que o Orientalismo é tanto o assunto destas pinturas
quanto o conjunto de enunciados discursivos ao qual elas se referem,
levando em conta o seu período histórico de feitura e o contexto colonial em que estão inseridas. Tal produção artística é iniciada tão logo os
europeus se assenhoram do Oriente, uma vez que desembarcaram muitos savants junto da caravana de Napoleão Bonaparte no Egito. Estes
eram patronos, eruditos e artistas que compunham a ala burguesa e nata
intelectual da França naquele momento. Suas intenções eram claras e
alinhadas ao sistema colonial.
O principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a terra, quem
tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro —
essas questões foram pensadas, discutidas e até, por um tempo,
decididas na narrativa. Como sugeriu um crítico, as próprias
nações são narrativas. (SAID, 2018, s/p.)
Os artistas plásticos corriam ao Oriente motivados por seu interesse em conhecer mais a fundo as paisagens bíblicas, épicas e históricas que estavam entre as mais representadas no período, fazendo jus ao
movimento romântico e neoclássico ensinado e produzido nas escolas
de Belas Artes e nos ateliês de seus oriundos. Aos poucos, se interessaram por outros temas e passaram a incluir a gente, os costumes e os
lugares do Oriente que presenciavam. Mas não sem certa “liberdade”
artística.
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Nas pinturas, as pessoas orientais eram retratadas costumeiramente através de extremos: ou violentamente impulsivos ou preguiçosamente repousados; ou cobertos dos pés à cabeça por conta dos rígidos
preceitos religiosos ou nus em mercados; ou donos de uma vastidão
de riquezas ou acomodados em suas ruínas. Envolvendo esta descrição
binária267 do Oriente, ainda temos uma outra contraposição frequente na
qual a pintura Orientalista se ancorou: a questão do gênero. O Ocidente,
com sua força e progresso, era visto como o lado masculino. O Oriente,
misterioso e encoberto, como um feminino a ser desvelado (DIB. 2011,
p. 148). Não à toa as mulheres orientais foram um dos principais temas
explorados pelos artistas europeus durante o auge da colonização do
Oriente, também afetando a produção que viria posteriormente.
Diferentemente da passividade apresentada pelos artistas
Orientalistas, as mulheres foram responsáveis por fazer grande resistência ao processo, buscando preservar seus costumes dentro dos ambientes familiares, onde a cultura europeia não podia infiltrar-se facilmente.
A modernização teve um grande impacto na vida cotidiana e domiciliar
das mulheres árabes, mas demorou a se mostrar. Ainda no século XIX,
embora já houvesse um contingente considerável de mulheres exercendo papéis profissionais dentro da sociedade e no comércio, a grande
maioria ainda se restringia aos afazeres domésticos e ao campesinato,
e este último se interligava, quase exclusivamente, à vida das classes
mais baixas. Mesmo com o processo de modernização do Oriente, a
convivência das mulheres entre si não era apenas uma marca da diferença entre gêneros, mas principalmente de distinção social.
Dentro dos ahadith268, era de bom tom que as mulheres convivessem o máximo possível somente entre si, pois assim evitariam a
tentação masculina e o olhar dos não fiéis, os quais não deveriam profanar a mulher de fé. Por isso, os ambientes destinados às mulheres eram
muito mais os internos, conservando costumes firmados com a religião
islâmica e a sua necessidade de decoro. A importância do sentido de privacidade era clara para as sociedades árabes e turco-otomanas no geral
267 Sobre o assunto, ver: SCHMIDT, 2014, p. 147.
268 Tradições islâmicas que são entendidas como ditos de Maomé. Não são propriamente reve-
lações divinas, mas um conjunto de práticas do profeta que devem ser tomadas como exemplo
recomendável de conduta para os fiéis.
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(DIB, 2016, s/p), uma característica ainda possível de ser notada por
meio da própria arquitetura islâmica característica. Os espaços internos,
fossem públicos como as mesquitas, ou privados como as residências,
possuíam de fato áreas especificas para a convivência das mulheres e
da família.
Visto que o acesso a estes ambientes era restrito ou mesmo
totalmente proibido, restou aos artistas – homens, europeus, invasores
– adentrá-los, boa parte das vezes, através de descrições de terceiros,
dos ambientes que podiam acessar, ou mesmo de sua imaginação e fantasias. Ainda que com doses exageradas de expectativas, curiosidade e
fantasias, as mulheres presentes nas pinturas Orientalistas foram amplamente retratadas nos seus ambientes de intimidade. Este é o caso da
representação delas nas mashrabeyas, nos haréns e nos hammans, os
três locais que trataremos a seguir, com exemplos de obras orientalistas
que os retratam.
1. MASHRABEYA
A mashrabeya é uma espécie de janela das construções de
mansões e palácios orientais de arquitetura tipicamente islâmica, e foi
um elemento arquitetônico difundido principalmente entre o período de
domínio turco-otomano e de líderes mamelucos. A mashrabeya, apropriado no Brasil como muxarabi, é um recorte projetado para o lado
externo dos edifícios, como um balcão suspenso, uma janela que protubera da fachada. O que lhes caracteriza, além deste relevo, são seus
gradis ou cobertura de treliças com padrões. Além de manter controle
climático para a propriedade, a mashrabeya permite que do lado interno se possa ver o externo, mas não o contrário. Parte da arquitetura
islâmica, esta janela pode ser lida metaforicamente como uma “porta
de entrada para dois mundos diferentes” (SHOKRI, 2018, p. 253): o
público e o privado.
A partir da visão ocidental, a mashrabeya acabou sendo lida
como símbolo da reclusão feminina oriental. Combinando com esta
descrição, podemos citar como exemplo o quadro The Siesta, produzido em 1876 por John Frederick Lewis (1804-1876) [Figura 1].
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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O próprio Lewis descreveu as mashrabeyas com a ideia de
permeabilidade velada, como vemos em: “The windows, which are often of an enormous size, are all covered with the finest carved wood-work, at a distance resembling lace, and which does not prevent the
inmates from seeing all that is passing, while it effectively precludes the
possibility of being seen from without”.269
Atentando-nos aos detalhes, vemos que animais ou partes deles são colocados nesta obra, assim como em muitas outras da temática
Orientalista, para retratar o estado de proximidade ao selvagem, dos
homens e mulheres orientais. Essa disposição de bichos ou partes deles
na cena é uma espécie de animalização das figuras humanas orientais,
especialmente das mulheres, ancorando a ideia de que elas e os bichos
vivem nos mesmos ambientes ou tem uma relação de igualdade, como
se estivessem mais próximos do “estado de natureza” a que os filósofos iluministas se referiam como sendo o estado anterior à construção
de civilidade – posta pelo contrato social. Lewis utiliza o cachorro e o
leque de penas de pavão, um objeto constantemente apresentado em
cenas que se pretendem representativas do Oriente já desde o período
barroco.
O pintor inglês teve dois diferentes momentos de contato com
o Oriente: visitando primeiro o Egito e, posteriormente, Constantinopla.
Ainda assim, preferia utilizar de modelos europeias para compor seus
quadros Orientalistas, fazendo sua esposa posar por diversas vezes para
estas composições. O corpo oriental, em oposição direta ao ocidental,
geralmente é representado em pinturas como amolengado, passivo, em
repouso, sem grandes ações. A maioria das mulheres se encontra reclinada, quase letárgicas e apresentando uma preguiça desmedida numa
espécie de dolce far niente.
Quanto ao ambiente representado em The Siesta, este foi uma
ilustração fiel da casa onde John Frederick Lewis morou quando esteve no Cairo. Vemos como os pintores procuraram muito mais exatidão nas representações dos ambientes e alegorias do que propriamente
das tradições femininas destes lugares. Segundo a pesquisadora Linda
269 Disponível em: http://collections.vam.ac.uk/item/O40690/the-hhareem-cairo-watercolour-lewis-john-frederick/. Acesso em 04 de fev. 2021.
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Nochlin (1991, p. 38), havia a necessidade de exagerar a decoração
dos ambientes para, assim, os artistas tornarem suas descrições visuais
críveis, sendo possível associa-las instantaneamente ao Oriente, conferindo um ar de veracidade à pintura através da verossimilhança realista.
A mashrabeya é, provavelmente, o ambiente mais visto pelos
pintores ocidentais dentre os três apresentados neste artigo. Talvez por
isso podemos ver mais detalhes verossímeis nas pinturas, que por muitas vezes eram de fato baseados em ambientes reais, tal qual o exemplo
acima citado. Isto foi possível porque não eram ambientes exclusivos
das mulheres, ainda que internos, mas notadamente um espaço de contato delas com o mundo público.
2. HARÉM
O harém era um espaço reservado e interno dos palacetes, um
ambiente específico da casa destinado para a convivência e a socialização das mulheres entre si. Longe de ser um espaço de mera exclusão
social, o harém era, pelo contrário, uma área interna de extrema importância. Como vimos, os ambientes privados representavam a parte mais
valorosa da vida oriental, pois continham a família e suas tradições,
podendo até mesmo ter um importante cunho sociopolítico, uma vez
que podiam ser lidos como símbolo de poder, riqueza e status social:
quanto maior fosse o espaço do harém e maior o número de mulheres
habitando-o, mais rica a família parecia ser, ou de fato era.
Este espaço das residências se tornou interesse para o povo
ocidental tão logo os primeiros foram conhecidos, como o de Topkapi,
na atual Turquia, resultando em uma vasta produção de descrições,
imagens e, principalmente, expectativas, não somente sobre o espaço
em si, mas sobre as mulheres que lá conviviam. De forma semelhante
às mashrabeyas, o espaço do harém era entendido como uma metáfora para as fronteiras e limites que separavam as mulheres do convívio
geral. Ao mesmo tempo em que há um imaginário libidinoso sobre a
convivência feminina neste espaço, ele também é lido como uma prova
da construção estereotipada do despotismo oriental e otomano (JARMAKANI, 2008, p. 34).
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As fantasias ocidentais sobre as mulheres que habitavam o harém eram, em grande parte, munidas pela própria inacessibilidade que
os pintores experimentavam, estimulando um mistério que esbarrava na
fantasia e no imaginário de sua época, que visualizava o Oriente como
um local permissivo e altamente sexualizado (ROBERTS, 2007. s/p).
O construto imaginário criado por artistas e viajantes também foi do
harém como local permissivo, reservado para as práticas poligâmicas
dos sultões com suas inúmeras concubinas e servas. A nudez parecia
dar conta de representar essa permissibilidade, bem como a forte disposição sexual das mulheres orientais.
Na pintura de Giulio Rosati (1858-1917), Harem dance, quem,
segundo as fontes encontradas, provavelmente nunca esteve no Oriente,
vemos um espaço habitado somente por mulheres ociosas, exceto pelo
corpo que dança, nu no torso [Figura 2].
De fato, as mulheres dos haréns costumavam receber educação
e instrução artística e, quanto mais elas dominassem os saberes da dança, do canto, dos instrumentos musicais e da poesia, maiores eram suas
chances de ascender hierarquicamente. Essas ocupações são representadas nas pinturas, por vezes, como alternativa às posições reclinadas
das mulheres nas cenas orientais. Entretanto, não há qualquer fonte do
período que revele que essas danças eram realizadas com o corpo descoberto, especialmente as que dançavam em ambientes internos. Isso
revela o caráter fetichista que a dança oriental recebeu desde o período
colonial (DE ASSUNÇÃO; PASCHOAL, 2022, p. 11).
Fato é que a dança feminina acabou se tornando um tema recorrente na pintura Orientalista. É possível que os viajantes do Oriente
tenham tido costumeiro contato com as ghawazee270, dançarinas públicas, especialmente no Egito, – que se apresentavam sob contratos e
pagamentos, mas à margem da sociedade. Nas pinturas, pouca ou nenhuma distinção é feita na forma de representar mulheres que dançavam dentro das casas e dos haréns familiares e das bailarinas públicas:
ambas eram retratadas em apresentações com homens em volta, com
partes do corpo totalmente despidas, e com movimentos que parecem
libidinosos em muitos dos casos.
270 Ver mais sobre as ghawazee em: DE ASSUNÇÃO, 2018.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O harém funcionava como uma alegoria para o homem burguês europeu, pois ele via neste um ambiente livre de pudores, onde
realizaria todas as suas fantasias e desejos de cunho sexual que eram
reprimidas pelo século XIX: […] the category of the harem is the imaginative space through which to project masculinist and heteronormative fantasies of erotic desire and male power, as organized around male
access to and possession of women (JARMAKANI, 2008, p. 3).
Sendo uma parte reservada de um ambiente interno, o da residência pessoal, acredita-se que pouquíssimos estrangeiros de fato chegaram a conhecer um harém e presenciar a vivência feminina ali dada.
Com isso, não é possível determinar com precisão o limite entre representações mais fiéis e outras mais fantasiosas, pois elas se mesclavam
umas às outras na encarrilhada produção de imagens criadas e expostas
pelos Orientalistas.
3. HAMMAN
Outro espaço de convivência das mulheres e, logo, de fantasia
ocidental sobre os corpos e a feminilidade foi a casa de banho, chamada
em árabe de hamman. O espaço era dedicado à higiene, que para os
muçulmanos ia além do aspecto físico, contemplando também a purificação da alma. Conforme o islamismo se expandiu, também o número
de casas de banho cresceu, ultrapassando três mil estabelecimentos no
século XVII (THORNTON, 1994, p. 66). Assim como no caso dos haréns, os primeiros hamman a serem visualizados pelos europeus foram
os da Turquia e Constantinopla, ainda no início do processo de islamização do Oriente, época em que foram já descritos com alguma curiosidade, embora semelhantes espaços já existissem na Grécia e em Roma
nos períodos antigos.
O hammam era frequentado tanto pelas mulheres quanto pelos homens. Entretanto, por servir como parte de um ritual associado à
religião e à pureza do corpo, os gêneros eram separados para o uso das
banheiras e do espaço. Ideias sobre um suposto uso conjunto foram, por
certas vezes, mostradas de forma errônea nas pinturas orientalistas; assim como também são generalizadas as várias representações que mos-
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tram os hamman como se fossem de uso exclusivo do gênero feminino.
Vê-se, aí, uma afirmação de que havia sentido erótico nesse ambiente
[Figura 3].
Em Le Bain Turc, Jean-Auguste Dominique Ingres (17801867) usa princípios da colagem para elaborar uma grandiosa reunião
de mulheres, retalhadas de outras de suas obras e estudos para traduzirem mais informações e costumes que ele atribuía às orientais. Algumas
delas são apresentadas ociosas, como mandava a tradição orientalista; já
outras são mostradas se entregando às artes e ao entreter umas às outras.
Temos uma ideia de que o hamman era também usado como ambiente
livre, onde mulheres poderiam seduzir umas às outras e satisfazerem-se
sexualmente entre si mesmas. Embora não estejamos descartando a presença de homossexualidade nos tempos e espaços a que nos referimos,
a tradição orientalista da qual a pintura faz parte, junto do conhecimento sobre a moral da era moderna onde também estão inseridas, nos dão
margem para inferir que a intenção não era de representar a homossexualidade, mas sim fazer surpreender a burguesia europeia expectadora
das Belas Artes com a “promiscuidade perturbadora” (GALLET, 2019,
p. 45) da mulher do Oriente.
A figura que primeiro nos capta o olhar, mais centralizada e
menos alva, parte de sua obra de 1808, La Baigneuse Valpinçon, e é representada desta vez segurando um instrumento musical, provavelmente um alaúde, inspirando outra, ao fundo, a dançar. Seu corpo, por si, já
traz um formato semelhante ao cordofone. A anatomia destas mulheres
é distorcida para satisfazer um olhar dúbio de beleza, contemplação e
sensação de grotesco, lembrando os traços maneiristas.
Ao contrário de outros artistas que, como vimos, apoiam-se
numa representação opulenta da arquitetura, decoração, panejamento e
outros detalhes do ambiente, Ingres recorre a uma descrição visual dos
corpos para evocar o ar do Oriente, como se estes se movessem sempre
de uma mesma repetida forma, caricata, desconjuntada, com profunda
decomposição de cada uma das partes do físico, mas ainda assim sensual e voluptuosa.
Além dos ornamentos como turbantes, bordados nas almofadas, colares, braceletes e coroas, a presença da temática oriental está
marcada nos utensílios existentes para servir as bebidas, sendo compos482
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
tos por jogos de louças azuis, brancos e dourados, remetendo às louças
produzidas no Oriente. Le bain turc é um quadro no qual é marcante a
concupiscência das formas femininas, representação muitas vezes obtida pela da distorção da anatomia dessas mulheres, que se contorcem de
uma maneira desatarraxada e liberta, possuindo em seus corpos alvos
um contraste com o ambiente no qual se encontram.
Talvez o hamman seja o único dos três espaços citados neste
artigo no qual as mulheres possivelmente circulavam com seus corpos
realmente nus – mas ainda sendo assunto de debate na historiografia:
alguns relatos de viagem do período diziam que as mulheres ficavam
completamente nuas, outros não. Contudo, de modo geral, os artistas
escolhiam retratar o corpo nu tanto pela questão do contraste com a
cultura europeia, quanto pelo fato de usarem modelos de estúdio nuas
e, ainda, por manter o ar fantasioso para a pintura (THORNTON, 1994,
p. 77-78). A nudez em obras de arte permanecia um tabu para a sociedade da época dos oitocentos; entretanto quando eram mulheres orientais
retratadas, esse impacto era atenuado, e os pintores europeus o usaram
com frequência como um pretexto para retratar os corpos desnudos com
ainda menos pudor. As cenas no hamman eram “um espetáculo que
dava a sensação de penetrar com violência em um mundo proibido”
(GALLET, 2019, p. 145).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos compreender o Orientalismo enquanto um discurso
que também se deu pela via visual, sendo apropriado pelas Belas Artes
e retroalimentando o imaginário dos europeus com pinturas e gravuras
que delineavam o Oriente como um local de fantasia onírica, sensualidade e passividade.
O Orientalismo busca, através de seus detalhes e apelos, produzir estereótipos do Oriente e, neste caso, de suas mulheres para fortalecer uma concepção ideológica de superioridade racial, que por sua
vez justificaria e legitimaria a dominação das colônias e a firmação de
protetorados nas terras orientais. O discurso orientalista, reforçado e
encorpado pelas imagens, desconsiderou particularidades culturais, de
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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gênero, de regionalidades e de tempo. De forma reducionista, portanto, chavões e estereótipos ficaram inculcados no imaginário depois da
Campanha do Egito empreendida pela França.
As mulheres, como metonímias do Oriente, são retratadas de
forma passiva, letárgica, inativas, exóticas, disponíveis, nuas, embranquecidas, fetichizadas e animalizadas. Além disso, são inseridas muitas
vezes em ambientes específicos, a maioria dos quais não era facilmente
acessível pelos pintores europeus ou mesmo pelos colonos que empreendiam o processo de dominação, que só teve seu fim nos meados do
século XX.
É importante, e talvez até necessário, ao observarmos pinturas, que possamos ver além: investigando suas camadas, tentando ler
suas entrelinhas, esmiuçando suas particularidades, repetições e continuidades. Assim é possível utilizar a imagem enquanto fonte histórica,
carregada de significados, produzidas por uma mentalidade específica,
em contexto específico, que geralmente em muito acrescenta na leitura
das obras.
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Imagens:
Figura 1: John Frederick LEWIS. The Siesta. 1876.
Figura 2: Giulio ROSATI. Harem dance.
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Figura 3: Jean-Auguste Dominique INGRES. Le bain turc. 1862.
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A GRAVURA COMO PRÁTICA
COLETIVA: A EXPERIÊNCIA DE ATELIÊS
COLETIVOS NA CIDADE DE SANTOS
Rachel M. S. Miyagui271 – rachelmidori@gmail.com
Resumo: Esta comunicação se propõe a apresentar a prática da gravura
na cidade de Santos a partir da experiência de núcleos de produção coletiva. Serão analisados ateliês que estiveram em funcionamento entre
os anos de 2000 e 2020. A produção desses núcleos nos ajuda a compreender peculiaridades sobre a dinâmica do trabalho artístico coletivo
e como este dialoga com especificidades da linguagem da gravura.
Palavras-chave: gravura, coletivo, ateliê.
Abstract: This communication proposes to present the practice of engraving in the city of Santos from the experience of collective production centers. Studios that were in operation between the years 2000 and
2020 will be analyzed. The production of these centers helps us to understand peculiarities about the dynamics of collective artistic work and
how it dialogues with specificities of the language of engraving.
Keywords: engraving, collective, studio.
INTRODUÇÃO
A prática da gravura na cidade de Santos é um recorte de uma ampla produção que compõe a história da arte brasileira no século XX. De
acordo com a historiografia sobre gravura brasileira, a tradição dessa
prática na cidade teve início na década de 1950, período de grande produção entre artistas gravadores considerados de uma segunda geração
271 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado que está em desenvolvimento intitulada
“A gravura em Santos a partir do estudo dos ateliês” orientada pela Professora Ana Maria Pimenta Hoffmann, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da Unifesp – Guarulhos.
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no cenário da gravura artística no Brasil e do surgimento de núcleos de
produção chamados Clubes de Gravura. O Clube de Gravura de Santos
foi fundado em 1951 pelo artista Mário Gruber, sendo o segundo do
país.
Durante as décadas seguintes, a recepção da gravura em Santos
foi constatada em diversas edições do Salão de Belas Artes, do Salão de
Arte Moderna, do Salão de Arte Jovem do CCBEU e da Bienal de Artes
Plásticas. A produção acontecia nos ateliês dos artistas e nos cursos de
arte oferecidos por instituições privadas - como a Faculdade de Artes
Plásticas - e públicas - como o Centro de Cultura Patrícia Galvão, administrado pela Secretária Municipal de Cultura.
Mais tarde, entre as décadas de 2000 e 2010, a prática se manteve principalmente em torno de quatro núcleos de produção: o Grupo
Gravura Mariana Quito, o Estúdio Valongo, o Gravurar e o Ateliê Cais.
1. O ATELIÊ DA SECRETARIA DE CULTURA
A partir da década de 1980, a Secretaria Municipal de Cultura de
Santos começou a oferecer cursos de artes, possibilitando uma formação artística fora da universidade, os cursos eram gratuitos e tinha entre seus professores artistas especialistas, como Sandra Regina Alves e
Suzue Eizo, que ministraram oficina de gravura a partir da década de
1980, nesse período o ateliê funcionava em uma área lateral do Foyer
do Teatro Municipal Bráz Cubas. Dentre os projetos desenvolvidos nessa época podemos citar o ‘Conexões’, uma exposição itinerante que
passou pelas cidades de Santos, Londrina, Campo Mourão, São José
dos Campos, Cascavel e Sertãozinho. A curadoria do projeto em Santos
foi feita por Gilson de Melo Barros e Sandra Regina Alves. (Figura 01)
Um ateliê de gravura exige um espaço físico com uma estrutura
específica e prensas de difícil transporte, portanto o local deve ser planejado para que seja utilizado à longo prazo, muitas vezes prensas de
artistas são passadas para outros artistas e podem atravessar gerações
se mantendo em um mesmo espaço. Isso é algo que pudemos constatar
na Secretaria de cultura de Santos, por exemplo, durante algum tempo
esteve em uso a prensa de metal do artista Alex Vallauri e mais tarde a
prensa da artista Mariana Quito.
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Durante a pesquisa percebemos que o ensino de gravura na Secretaria de Cultura assim como no curso de Artes da Universidade Santa Cecília entre as décadas de 1970 e 1980 foram essenciais para o surgimento de grupos que surgiram mais tarde. O ateliê da prefeitura deu origem
a dois grupos, o Grupo Gravura Mariana Quito e o Ateliê Cais. Mais
adiante falaremos de outros dois ateliês de gravura na cidade de Santos,
o Estúdio Valongo e o Gravurar. A partir da história desses espaços de
produção tentaremos entender como a experiência desses núcleos pode
nos ajudar a entender questões em torno da prática coletiva da gravura
e sua permanência na cidade.
2. GRUPO GRAVURA MARIANA QUITO
No início dos anos 2000, a artista portuguesa Mariana Quito, que
havia vivido seus últimos anos em Angola, passou a residir em Santos. A vontade de Mariana era concretizar no Brasil um projeto que foi
iniciado em Angola, o Barracão, que consistia em um ateliê de Artes
aberto ao público em geral e de todas as idades, onde seriam oferecidos cursos de diferentes segmentos artísticos, incluindo a gravura. Em
Santos, o projeto não foi concretizado. Mariana entrou em contato com
a Secretaria Municipal de Cultura de Santos e começou a dar um curso
de Gravura no Centro de Cultura Patrícia Galvão, citado anteriormente
como um espaço que oferecia cursos de arte desde a década de 1980. A
artista disponibilizou seus equipamentos – mesas e prensas - com o intuito de montar um ateliê que proporcionasse as condições necessárias
para um curso específico de gravura. As aulas aconteceram até 2003,
ano em que Mariana Quito faleceu.
Dentre as atividades que aconteceram durante o período em que
Mariana Quito coordenava o ateliê de Gravura, podemos destacar a exposição Intercâmbio de Gravura: Portugal - Brasil, a mostra aconteceu
em 2001 e foi uma realização entre a AGE - Associação dos Gravadores
de Évora e o CCBEU - São Vicente, que receberam obras dos mestres
Mariana Quito e Humberto Marçal junto do trabalho de seus alunos e
outros gravadores das respectivas cidades. (Figura 02)
Alguns anos pós o falecimento de Mariana Quito, a artista e gravadora Márcia Santtos que ministrava a disciplina de Gravura no curso
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de Artes Visuais da Universidade Santa Cecília em Santos, enviou um
projeto à Secretaria Municipal de Cultura propondo o retorno das aulas
no ateliê de gravura sob sua orientação. E assim, em 2006, o espaço
retomou suas atividades.
Durante os primeiros anos as aulas se limitavam às técnicas de
relevo como a xilogravura e linoleogravura, pois a prensa de metal necessitava de manutenção, após sua manutenção passou-se a produzir as
técnicas de côncavo como a água-tinta, a água forte e outros processos
como colagravura e transferências. Formou-se um grupo de alunos bastante heterogêneo, composto por pessoas de diferentes profissões e aspirações, que encontraram na gravura uma maneira de desenvolver um
trabalho artístico e poético. O grupo foi ganhando consistência e apesar
de estarem em um espaço coletivo atuavam individualmente, enviando
trabalhos para salões, participando de exposições, desse modo, percebeu-se a necessidade de se instituírem como um grupo de gravadores,
desse modo, nasceu o Grupo Gravura Mariana Quito, em homenagem à
artista. Apesar desse novo formato, o ateliê ainda recebia pessoas novas
e interessadas em aprender gravura.
Durante o período em que esteve em atividade, o Grupo participou de exposições nacionais e internacionais, projetos em parceria com
outros grupos e artistas e realizou a produção de um álbum de gravura,
em 2012. (Figura 03)
O ateliê funcionou no térreo do Centro de Cultura Patrícia Galvão entre os anos de 2001 a 2009, depois mudou-se para a rua Antônio
Bento onde ficou até 2012 quando se instalou no CAIS Vila Mathias, na
Avenida Rangel Pestana. Todos eram espaços administrados pela Prefeitura de Santos.
3. ATELIÊ CAIS
O grupo Gravura Mariana Quito esteve sob a coordenação de
Márcia Santtos entre os anos de 2006 e 2013, quando mudanças na administração de diversos departamentos na Prefeitura de Santos - devido
à mudança da gestão municipal - ocasionaram na descontinuidade de
diversos projetos de oficinas e cursos, incluindo o Grupo de Gravura
Mariana Quito. Integrantes do grupo reivindicaram a continuidade das
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atividades no espaço e o uso do equipamento que havia sido doado pela
artista Mariana Quito, foi então decidido que a artista Áurea Nogueira
Lima, integrante do Grupo Gravura Mariana Quito, ficaria responsável
pelo uso do ateliê que passou a funcionar em outro formato. A gravura
deixou de fazer parte dos cursos oficiais da Secretaria Municipal de
Cultura, mas foi permitido que os ex integrantes do grupo continuassem
utilizando o espaço.
Com o tempo, apenas alguns continuaram a produzir no espaço e durante esse processo de mudança, formou-se um pequeno grupo
que ao sentir a necessidade de repensar sua identidade como grupo se
definiram como Coletivo Santista de Gravura. Apesar de não haver oficialmente o curso de gravura, o grupo sob a orientação de Áurea, se
manteve aberto a receber interessados em fazer gravura, pessoas que independente de terem uma formação artística começaram a frequentar o
ateliê a fim de conhecer, aprender e praticar gravura, assim como alguns
integrantes também deixaram o grupo, desse modo, os frequentadores
do espaço passaram a se auto referir como Ateliê Cais, já que o espaço
se mantinha no C.A.I.S. (Centro de Atividades Integradas de Santos).
Dentre os trabalhos coletivos desenvolvidos pelo grupo, destacamos o ‘Projeto Herança Cultural: Marcando um espaço na cidade’, que
aconteceu entre 2014 e 2015, quando o grupo ainda se definia como
Coletivo Santista de Gravura. O projeto consistiu na produção de uma
série de gravuras obtidas a partir da impressão de uma mesma matriz
que figurava o mapa da cidade de Santos. Foi idealizado por Maria José
Solorzano, artista Guatemalteca que no período que esteve residindo
em Santos frequentou o ateliê de gravura da Secretaria de Cultura durante a transição do Grupo Mariana Quito para o Coletivo Santista de
Gravura. A proposta surgiu como forma de discutir certas mudanças
que a cidade vinha passando e as marcas que essas transformações deixam na arquitetura e na memória da cidade. (Figura 04)
4. ESTÚDIO VALONGO
No ano de 2010, inaugurou-se em Santos o Estúdio Valongo, um
ateliê coletivo de gravura que se propunha a produção, difusão e formação em artes visuais e que tinha como ênfase a gravura. O espaço
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era administrado por três artistas residentes: Fabiola Notari, Fabrício
Lopez e Márcia Santtos. O ateliê era compartilhado e estimulava o convívio entre os frequentadores. O espaço era aberto à associados que por
meio de uma contribuição mensal frequentavam o ateliê em um dia da
semana específico para desenvolverem seus projetos em gravura. Cada
artista residente tinha um dia da semana em que ficavam disponíveis
para orientações.
O Ateliê localizava-se na rua Visconde de Vergueiro, no centro
de Santos. Esteve em funcionamento de 2010 a 2012 e durante esse
período promoveu diversas mostras, oficinas, funcionando como um
espaço de convívio e produção de conhecimento em interação com a
comunidade local e com iniciativas e artistas de diferentes localidades.
Dentre as atividades que aconteciam no espaço, destacam-se as ações
de intercambio entre artistas de diferentes cidades e regiões, e as ações
coletivas que estimulavam o convívio entre os frequentadores e artistas
de outros espaços.
5. GRAVURAR
O Espaço Gráfico Gravurar é o ateliê da artista Márcia Santtos. Inicialmente o espaço teve como artistas residentes Fabiola Notari, Joyce
Farias e Lídice Moura. O ateliê foi inaugurado em 2016 e situava-se na
rua Anhanguera, no bairro Vila Mathias, hoje situa-se na rua Leonardo
Roitman no mesmo bairro, em Santos. A proposta do espaço é fomentar
a prática e difundir a gravura, por meio de cursos, oficinas, exposições
e ações coletivas em parceria com outros artistas.
O Gravurar desenvolveu diversos projetos de intervenção urbana no entorno do ateliê, dentre os projetos coletivos mais recentes
desenvolvidos pelo Gravurar está o ‘Gravura no poste’ que consiste em
uma ação em que gravuras impressas em papel foram coladas em postes
por diversos locais da cidade. (Figura 05)
6. QUESTÕES ACERCA DA GRAVURA
Apesar da gravura ter entrado na modernidade desvinculada de
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uma funcionalidade a que esteve originalmente associada, e ainda ser
relacionada à sua capacidade de reprodução, esses já não são fatores
determinantes para sua prática. Se em outros tempos ela foi considerada ortodoxa em seus meios técnicos tradicionais apurados, a partir da
década de 1960 ela passa por transições e rompe as fronteiras limitantes
em relação ao seu suporte, modo de gravação, reprodução e edição.
Embora a impressão de diversas cópias e a edição destas ser um recurso ainda bastante utilizado pela maioria dos gravadores, e que pode
funcionar como uma maneira de documentar a obra, ele passou a não
ser essencial. Isso nos leva a refletir sobre o que de peculiar há na gravura para que artistas de outras linguagens tenham encontrado nela e em
sua materialidade um campo para o desenvolvimento poético. Carlos
Martins, artista gravador e curador da exposição ‘Gravura em Campo
Expandido’, que aconteceu na Pinacoteca do Estado em 2012, comenta
que a partir da década de 1970, muitos artistas incorporaram em seus
trabalhos o mecanismo de impressão, desenvolvendo um pensamento
plástico em que os limites das técnicas tradicionais da gravura foram
excedidos e o processo de impressão se tornou um recurso na construção de imagens em diferentes linguagens como pinturas, instalações,
esculturas, objetos e arte pública.
Se pensarmos em seus procedimentos técnicos e a escolha dos materiais, o tipo de papel, as tintas, a matriz utilizada, temos uma vasta
possibilidade de escolhas. Portanto, percebemos que os artistas da gravura podem pensá-la como imagem que se multiplica tanto para alimentar exigências de um mercado como para subverter a mesma lógica.
Isso nos indica que a gravura integra um circuito muito específico, diferente das outras linguagens como a pintura ou a escultura. Ainda que
encontremos coleções de gravura nas galerias, no acervo de museus e
instituições culturais, ela também circula por espaços menos institucionalizados, como o ateliê dos artistas, as feiras de publicações independentes, eventos de artes gráficas, bibliotecas, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a pesquisa, buscamos recuperar informações sobre a tra-
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jetória desses grupos a fim de compreender o fenômeno artístico em
torno da gravura, não apenas no que se refere à produção, mas também
na experiência social dos indivíduos que criam e da interlocução dessa
prática com a cidade. Os acontecimentos constatados nesta pesquisa a
partir de relatos dos envolvidos nos mostrou que manter e democratizar
o acesso a uma prática artística depende de políticas públicas culturais
que reconheçam, estimulem e protejam os bens culturais. Em vista disso, abordar a história de um ateliê público que foi fundamental para a
sobrevivência da gravura na cidade de Santos parece pertinente enquanto preservação de uma memória cultural da cidade da qual não temos
muitos registros além da produção dos artistas locais.
Portanto, escolhemos apresentar uma breve história desses grupos,
citando algumas ações realizadas em que identificamos alguns aspectos
comuns ao universo da gravura e do fazer coletivo. Apesar da reprodutibilidade estar quase sempre presente, a entendemos como uma questão
da gravura que já está posta. Dessa maneira, ao citar algumas ações
desses grupos, apontamos um potencial da gravura que se origina do
seu caráter múltiplo e se desdobra em possibilidades de experimentação, circulação, intercâmbio e troca, ações que se potencializam quando
praticadas em coletivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARÁ, Adamastor; FERREIRA, Heloísa Pires; TÁVORA, Maria Luisa.
Gravura Brasileira Hoje. Depoimentos vol II – Adir Botelho...[et al.]. Rio de
Janeiro: Oficina de Gravura SESC Tijuca, 1996.
FERREIRA, Heloísa Pires; TÁVORA, Maria Luisa. Gravura Brasileira Hoje.
Depoimentos vol III – Anna Bella Geiger...[et al.]. Rio de Janeiro: Oficina de
Gravura SESC Tijuca, 1997.
KOSSOVITCH, Leon; LAUDANNA, Mayra; RESENDE, Ricardo. Gravura:
arte Brasileira do Século XX. Itaú Cultural, 2000.
LAUDANNA, Mayra. Mariana Quito: Portugal - África - Brasil: Uma trajetória artística. São Paulo: Edusp, 2013.
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LEITE, José Roberto. A Gravura Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro:
Editora Expressão e Cultura S.A., 1965.
MARTINS, Carlos. Gravura em campo expandido. São Paulo: Pinacoteca do
Estado, 2012.
SCLIAR, Carlos. Os Clubes de Gravura do Brasil. Pinacoteca do Estado de
São Paulo: São Paulo, 1994.
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Imagens:
Figura 1: Catálogo do projeto Conexões, 1995. Foto da autora.
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Figura 2: Catálogo da exposição Intercâmbio de Gravura: Portugal – Brasil, 2001. Foto da
autora.
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Figura 3: Imagem de gravuras que integram o I Álbum de Gravura do Grupo Gravura Mariana Quito, 2012. Foto da autora.
Figura 4: Imagens de gravuras que compõem o projeto Herança Cultural: Marcando um
espaço na cidade, 2014/2015. Foto da autora.
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Figura 5: Imagem da intervenção Gravura no Poste realizada pelo Gravurar, 2022. Foto da
autora.
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A BELEZA É O REINO ONDE AS LUTAS
E AS MORTES ACONTECEM:
OS RETRATOS E A CORRESPONDÊNCIA
DE CÂNDIDO PORTINARI
Ramsés Albertoni Barbosa272 – ramses.albertoni@ich.ufjf.br
Resumo: O artigo investiga a correlação entre os retratos e a correspondência do artista brasileiro Cândido Portinari com os seus retratados,
buscando compreender a fatura de parte da obra do artista por meio de
sua correspondência no ambiente intelectual e político, pois temos à
nossa disposição um vasto acervo epistolar em que podemos encontrar
aspectos da sua personalidade, revelando-nos o espaço de “sociabilidade intelectual” em que viveu, porquanto o estudo da correspondência de
artistas, escritores e intelectuais ajuda-nos a compreender os meandros
de uma existência, revelando ações e intenções em que nos é possível
entrever indícios de experiências sociais. Nessa rede epistolar, artistas,
intelectuais, empresários e políticos trocavam experiências e adesões,
no intuito de expandir as amizades e as influências. A sociabilidade intelectual construída por meio de uma rede epistolar caracteriza os interlocutores em duas categorias, uma definida como um “jogo de redes”,
formais ou informais, em que os intelectuais ocupam posições sociais
distintas, por isso, a carta é escrita com a finalidade de alcançar melhores posições ou de se integrar em determinado círculo; a segunda em
que prevalece a amizade intelectual, que reforça o relacionamento, pois
os missivistas ocupam a mesma posição social e se ligam por preocupações estético-ideológicas comuns. Dessa forma, os retratos de Portinari
podem ser analisados como “imagens negociadas” em suas cartas, pois
o pintor possui a característica de retocar os traços menos favoráveis
dos retratados na intenção de dar “prestígio visual” ao retratado.
Palavras-chave: Portinari. Retratos. Correspondência. Paisagem.
272 Professor de Língua Portuguesa. Mestre em Letras (UFRJ) e Comunicação (UFJF). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade
Federal de Juiz Fora. Orientadora: Raquel Quinet. Bolsista Fapemig.
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Abstract: This paper investigates the correlation between the portraits
and correspondence of the brazilian artist Cândido Portinari with his
portrayed, seeking to understand the making of part of the artist’s work
through his correspondence in the intellectual and political environment, as we have at our disposal a vast collection epistolary in which
we can find aspects of his personality, revealing the space of “intellectual sociability” in which he lived, as the study of the correspondence
of artists, writers and intellectuals helps us to understand the intricacies
of an existence, revealing actions and intentions where it is possible for
us to glimpse evidence of social experiences. In this epistolary network,
artists, intellectuals, businessmen and politicians exchanged experiences and adhesions, in order to expand friendships and influences. Intellectual sociability built through an epistolary network characterizes interlocutors in two categories, one defined as a “network game”, formal
or informal, in which intellectuals occupy different social positions, so
the letter is written with the purpose to reach better positions or to join
a certain circle; the second in which intellectual friendship prevails,
which reinforces the relationship, as the writers occupy the same social
position and are linked by common aesthetic-ideological concerns. In
this way, Portinari’s portraits can be analyzed as “negotiated images”
in his letters, as the painter has the characteristic of touching up the less
favorable features of those portrayed with the intention of giving “visual prestige” to the portrayed.
Keywords: Portinari. Portraits. Correspondence. Landscape.
O artista Cândido Portinari (Brodósqui, São Paulo, 1903 – Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 1962) foi um pintor, gravador, ilustrador e
professor brasileiro cuja produção artística utilizou várias técnicas ao
longo do tempo, mas que se manteve coesa em razão de algumas temáticas específicas, como o homem brasileiro e as questões sociais e históricas, exemplificadas nos quadros “O mestiço”, “Lavrador de café”,
“Café”, “Os retirantes” e nos murais do Monumento Rodoviário da Estrada Rio-São Paulo e do prédio do Ministério da Educação e Cultura
(MEC), no Rio de Janeiro, com temas dos ciclos econômicos do Brasil,
incluindo os painéis da Biblioteca do Congresso em Washington D.C.,
Estados Unidos, com temas da história do Brasil.
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Portinari iniciou sua formação artística na Escola Nacional de
Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro, em 1920, e após ser premiado,
viajou à Europa e estudou diversos estilos artísticos, principalmente as
obras de Giotto, Piero della Francesca, Amedeo Modigliani e Pablo Picasso. O artista estreou no Salão de 1922 com o retrato do escultor Paulo Mazzucchelli, que fora premiado com a Medalha de Bronze da XXX
Exposição Geral de Belas Artes da ENBA, com o Prêmio de Animação
da Galeria Jorge e um prêmio em dinheiro de 500 mil réis.
É preciso notar que, na pintura, o retrato está ligado à ideia de
mimese, representação, e foi utilizado nas academias e escolas de arte
para o aprendizado do ofício e do domínio da técnica. Ao longo de sua
carreira Portinari pintou cerca de 680 retratos, retratando os semblantes dos diferentes segmentos da elite intelectual, econômica, cultural e
política brasileira. Segundo o escritor Mário de Andrade, as criações de
Portinari podem ser compreendidas
[...] naquele desprezo por qualquer fantasia pessoal excitante,
naquele respeito à verdade secular, naquela obediência ao modelo, naquele artesanato repetidor renascentista que, evitando
os palpites de autor, ao mesmo tempo que expõe a realidade
do retratado e a eterniza (função mesma do gênero), reconduz
o retrato à pintura, a um problema de cor, de luz, de volume,
primordialmente técnico. (FABRIS, 1995, p. 31)
Na conferência pronunciada no salão do Instituto Francês de
Estudos Superiores, em 26 de junho de 1947, Portinari fala da “qualidade intrínseca da pintura”, de valor inegável, portanto, segundo ele, é
preciso analisar, não de forma isolada, a técnica e o espírito da obra de
arte, pois é a partir da técnica que o artista transmite sua sensibilidade.
Para facilitar minha expressão, vou usar uma maneira um tanto
arbitrária para expor meu pensamento. Vou desdobrar a sensibilidade em duas categorias: uma que denominarei sensibilidade artística, e a outra, sensibilidade coletiva. A sensibilidade
artística só é sentida – em geral – por aqueles que nascem e
educam-se com ela. Educa-se com museus, conferências etc.
[...] Nem a pintura circunstancial nem a pintura pela pintura
bastam para se dirigir às massas. Talvez com a fusão das duas
se possa alcançar esse fim. [...] Penso que a segunda sensibilidade poderá ser desenvolvida ao entrar em contato com as
massas, auscultando seus desejos. Todos possuem, em maior ou
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menor grau, tanto uma como outra sensibilidade; é claro que os
que na vida demonstram vocação devem educar-se para poder
atuar. Um pintor não é pintor social simplesmente porque tem
vontade de sê-lo, e sim por razões de sensibilidade e educação.
(FABRIS, 2011, p. 58)
De acordo com o artista, as atividades humanas se relacionam
com os acontecimentos históricos, políticos e econômicos.
O crítico Mário Pedrosa (2019) pontua, em artigo de 1935, que
caso Portinari superasse certos impasses e conseguisse acoplar à preocupação com a linguagem o compromisso com o social, ele representaria a possibilidade de empreender no país uma arte moderna, porquanto
os problemas “amadurecem” na mão do artista. Na interpretação marxista de Pedrosa, seria necessário, por meio da técnica e da tradição,
que os artistas modernos revolucionários arquitetassem uma “nova arte
integral”, síntese do conteúdo e da forma. Esses artistas deveriam se
inspirar socialmente no proletariado e guiar-se pelo sentido do materialismo dialético ao manejarem a matéria, as formas e o ritmo de suas
criações. Segundo Pedrosa, Portinari
Recorreu ao mundo exterior, à tradição do passado e à tradição do presente, modestamente, pacientemente. Trabalhou
como um modesto artesão obscuro, atento às regras, obediente
ao mestre, das corporações medievais. Não principiou com a
morgue do gênio. Não se deixou arrebatar exclusivamente pela
soberba da pura intuição. O anjo da inspiração continuou a ser
para ele o que é na realidade – uma alegoria emulativa, provavelmente necessária. Um signo corporativo. Ele bateu em todas
as portas antigas e modernas. Aos velhos clássicos italianos,
para a fatura dos retratos das damas da alta sociedade. Dos
mestres antigos holandeses aprendeu a pastosidade das tintas,
utilizou-se de grande parte dos componentes do ideal pictórico deles [...] Correu a Chirico, apanhou-lhe certos tons claros,
certo desembaraço de fatura, certos jogos de sombras produzidas para dar a distância, formular o espaço, isolar as coisas.
Chegou-se a Picasso e assimilou o segredo de seu modelado
ciclópico. Rivera, e a amplidão para o afresco. (PEDROSA,
2019, p. 41-43)
De acordo com o autor, por meio desse longo percurso, Portinari
não imitou outros artistas, mas se deixou influenciar em sua “vontade
criadora”, por isso, o maior elogio que poderia fazer ao artista seria
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constatar que diante deste “drama moderno”, Portinari armou a questão,
cabendo aos artistas da revolução resolvê-lo. Todavia, Chiarelli (2019)
argumenta que
Nessa complexa reflexão sobre as contradições da arte burguesa
(ou de determinada parte dessa produção, aquela que buscava,
mas que não alcançava a síntese desejada), Pedrosa culparia
justamente a “vontade criadora” do artista que, ao buscar tal
síntese, acabava por isolar um ou outro elemento de sua arte.
[...] Mário Pedrosa teria finalizado seu artigo justamente nessa
apologia do materialismo dialético aplicado à arte, se não se
sentisse obrigado a voltar à figura de Candido Portinari, reapresentando-o ao leitor, agora, como um dos “artistas da revolução”. (CHIARELLI, 2019, p. 31-32)
No entanto, a revolução defendida por Pedrosa não viria, pois
o percurso de Portinari e do país seriam outros, por isso, o artista construiu uma “modernidade possível”.
No Salão de 1931, Mário de Andrade foi ao Rio de Janeiro e
conheceu a obra e a pessoa de Portinari:
Numa das salas menores havia outro retrato de Manuel Bandeira, sem grande parecença talvez e nenhum brilho; todo em tons
baixos, de grande segurança na obtenção dos valores, obra muito
boa. Folheei o catálogo. Era um tal de Candido Portinari, artista
de que nunca tinha ouvido falar, naturalmente um “novo”. Ao
lado havia um outro retrato, Violinista, do mesmo autor; era já
uma obra admirável pela composição e a firmeza extraordinária
do desenho, e me deixei arrastar pelo entusiasmo. [...] Minha vaidade é a de ter sido dos primeiros a descobrir o valor deste grande
artista. Sua obra, ainda que muito cuidada, procurada na técnica e
muito afirmativa, obtinha então um respeito passivo e silencioso,
mais que uma verdadeira admiração. Por certo não passou por
minha imaginação todo o variado e extraordinário caminho que
Portinari iria percorrer em seguida, porém o Violinista já era uma
obra por si mesma excepcional em nosso meio. Havia nela uma
“necessidade” interior impossível de confundir-se com o prazer
da novidade e as preocupações de originalidade. E depositei no
pintor uma confiança sem reservas. (Revista da Semana, ano XLVII, nº 17, 27/04/1946, p. 15-16)
No último artigo que escreveu sobre a obra de Portinari antes
de morrer, Mário de Andrade apontou que o artista se tornara antitradicional.
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Já com a carreira consolidada, Portinari afirmará que a pintura
não deveria copiar o real, ser fotográfica, mas deveria ser composta pela
visão que o pintor tem dessa realidade. Quando Portinari afirma que
os detalhes, os tipos e os grupos de seus quadros são “arrancados” da
realidade e que o conjunto é composto pela sua visão dessa realidade,
nos aproximamos da formulação heideggeriana a respeito da origem da
obra de arte, haja vista que a obra de arte tem sua origem na verdade
como alétheia, porquanto ela é uma consagração e um abrigo cuja claridade permite a visão da essência do homem. Dessa forma, a origem da
obra estaria na arte enquanto um acontecer da verdade como des-velamento, um deixar-ser. Heidegger (2001) propõe que a arte deve ser um
modo de pensamento original que agencie outro protocolo de leitura
das coisas e do mundo, por isso, o autor aborda a criação artística como
um ente cujo caráter peculiar se propõe a des-vendar, pois a obra de
arte existe de modo tão natural como uma coisa, esse caráter de coisa é
o primeiro com que nos esbarramos ao enfrentarmos uma obra de arte.
Sendo assim, ao analisarmos a correlação entre os retratos e
a correspondência de Portinari com os seus retratados, iremos buscar
compreender a fatura de parte da obra do artista por meio de sua correspondência no ambiente intelectual e político, pois temos à nossa disposição um vasto acervo epistolar em que podemos encontrar aspectos da
sua personalidade, revelando-nos o espaço de “sociabilidade intelectual” em que viveu, segundo formula Trebitsch (1992).
Ao pesquisar a correspondência de Portinari, Arêdes (2015) observou que o fluxo da correspondência do artista aumentou significativamente durante o período do Estado Novo, demonstrando como ele foi
se integrando no disputado ambiente artístico-intelectual da década de
1930. É visível o maior número de missivas da década de 1930 se comparado com a década anterior, principalmente entre os anos de 1936 e
1945.
É justamente em 1936 que Portinari é convidado pelo então ministro Gustavo Capanema para pintar vários painéis para o novo prédio
do MEC, no Rio de Janeiro, com temas dos ciclos econômicos do Brasil. Dessa forma,
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
No campo das artes e da arquitetura, o ministério liderado por
Gustavo Capanema decidiu fazer da área da cultura um negócio
de Estado, atribuindo-lhe um orçamento que permitia a realização de encomendas e criando uma intelligentzia, um corpo
tecnicamente qualificado para dar vazão a suas realizações.
Inaugurou-se um campo frutífero de possibilidades para intelectuais, artistas e arquitetos – vários dentre eles de orientação
modernista –, os quais foram chamados a participar de um regime claramente autoritário. (SIMIONI, 2013, p. 6)
Sendo assim, o estudo da correspondência de artistas, escritores
e intelectuais ajuda-nos a compreender os meandros de uma existência,
revelando ações e intenções em que nos é possível entrever indícios de
experiências sociais.
Um dos grandes interlocutores de Portinari foi o escritor Mário
de Andrade, porém, Miceli (1996) denuncia certo narcisismo por parte
do escritor, que não dava tréguas em sua compulsão de desejar sempre
novas representações de si. Em carta de 25 de março de 1935, o escritor
comenta sobre o seu retrato, pintado por Portinari, comparando-o com
o realizado por Lasar Segall, como se divertiu no carnaval paulista e
descreve o início do outono em São Paulo, comentando como se sente
feliz nesta época do ano. Nessa carta, Mário fala de seus dois pintores
preferidos, Portinari e Segall, que retrataram o seu lado angélico e o seu
lado diabólico, respectivamente.
Nos primeiros meses de 1944, Portinari, assim como fez com
o escritor Manuel Bandeira, irá propor a Mário de Andrade a pintura
de um segundo retrato durante sua temporada em Petrópolis, pois acha
“[...] que o retrato do Manuel ficou bom – é bem o retrato d’ele. Eu
gostaria de fazer você; aqui a luz é muito boa para retrato. [...] Gostaria
muito de fazer seu retrato aqui” (CP/MA, 26.3.44. Arquivo IEB: CO5804). Contudo, impossibilitado de sair de São Paulo por problemas
de saúde, em carta de 6 de abril de 1944, Mário de Andrade escreve a
Portinari falando de sua saúde e do excesso de trabalho, que o impedem
de ir a Petrópolis, para ter o retrato feito pelo artista, como o do escritor pernambucano. É necessário ressaltar que esse retrato jamais será
realizado.
A correspondência de Portinari não se limitava apenas aos intelectuais brasileiros. Em março de 1940, a jornalista norte-americana
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Florence Horn escreveu a Portinari informando sobre a exposição da
coleção de Helena Rubinstein, em Washington, D.C., que incluía os
trabalhos de Portinari, especialmente o retrato de Helena Rubinstein.
Essa coleção era constituída por uma coleção de pinturas de artistas
franceses modernos e algumas esculturas africanas. Horn comenta que
a obra “Morro” fora reproduzida na revista Vogue, e relatou as artimanhas efetuadas para que a obra pudesse ser comprada pelo MoMA de
Nova York, que primeiramente fora enviado a um museu no Canadá.
Horn prevê que os trabalhos alcançariam grande repercussão, despertando o interesse de museus e galerias em expô-los.
Em 18 de julho de 1940, Helena Rubinstein, um dos grandes
nomes da indústria de cosméticos, apreciadora e colecionadora de obras
de arte, inclusive do trabalho de Portinari, nos Estados Unidos, escreveu uma carta ao artista, acusando o recebimento das fotos dos retratos
de Arthur Rubinstein, sua mulher e filhos, diz estar enviando recorte da
revista Vogue, onde está reproduzido seu retrato, pintado por Portinari, lamentado que ele não fora impresso em cores na edição, pergunta
sobre uma possível exposição, em agosto ou setembro, em Nova York,
e por fim, comenta sobre o livro de reproduções de obras do artista,
publicado pela Chicago University Press. Rubinstein deixou transparecer, nesta carta, o tom de carinho e admiração que nutria pelo artista
brasileiro e seu trabalho.
Nessa rede epistolar, artistas, intelectuais, empresários e políticos trocavam experiências e adesões, no intuito de expandir as amizades e as influências. De acordo com Trebitsch (1992), a sociabilidade intelectual construída por meio de uma rede epistolar caracteriza
os interlocutores em duas categorias, uma definida como um “jogo de
redes”, formais ou informais, em que os intelectuais ocupam posições
sociais distintas, por isso, a carta é escrita com a finalidade de alcançar
melhores posições ou de se integrar em determinado círculo; a segunda
em que prevalece a amizade intelectual, que reforça o relacionamento,
pois os missivistas ocupam a mesma posição social e se ligam por preocupações estético-ideológicas comuns.
Parte dos assuntos tratados nas cartas trocadas com Portinari
dizia respeito à produção de retratos. Mário de Andrade era o mais exigente nas novas representações de si, colecionando vários retratos pin508
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
tados por diversos artistas. Sobre o seu retrato, pintado por Portinari,
Mário escreverá à poetisa Henriqueta Lisboa para falar sobre o assunto,
em 11 de julho de 1941:
O Portinari quando se propôs fazer o meu retrato já me queria
muito bem e éramos já bem camaradas. E além disso ele tinha
por mim um especial e muito agradecido carinho porque no
Salão de 1930 [sic], no Rio, [...], eu, depois de um pequeno e
passageiro engano com um retrato do Manuel Bandeira, estupefaciente de parecença física feito por um alemão, “descobri”
colombicamente e com firmeza descobri o Portinari. Ainda não
conhecia o Portinari mas logo, no meio dos sucessos obtidos
pelo Cícero Dias e outros, fui afirmando sem discrepância que o
bom, que o forte mesmo era o Portinari e o retrato do Borghert o
melhor quadro da exposição. É uma coisa aliás de que ele nunca
se esquece e conta sempre. (SOUZA, 2010, p. 51-52)
O retrato se tornara, em algumas épocas, a principal fonte de
renda para alguns artistas, dentre eles Portinari, cujos clientes eram
geralmente indivíduos da elite urbana brasileira. Em 1928, Portinari
concorreu ao Prêmio de Viagem na XXXV Exposição Geral de Belas
Artes, e amealhou o prêmio com o retrato do poeta Olegário Mariano.
De acordo com Fabris, os retratos pintados por Portinari, entre 1925 e
1929, trazem a marca de um duplo registro, pois
Se, no desenho datado de 1925, o poeta estava sob o signo de
Ingres, em sua representação quase de corpo inteiro (1926), os
modelos são outros: os retratos de Théodore Duret e Antonin
Proust, realizados por Édouard Manet em 1868 e 1880, respectivamente, e os retratos mundanos de James Whistler, John
Singer Sargent e Giovanni Boldini. Enquanto no desenho o modelo ganha um aspecto intemporal, na tela de 1926 o centro de
interesse está numa visão altamente contemporânea, haja vista
o destaque dado ao traje do poeta e a seu penteado. Intemporais
também, e marcadas por uma concepção sintética do rosto do
modelo, são as representações de Olegário Mariano em 1926,
1927 e 1929. O desenho de 1926 parece servir de molde aos
óleos de 1927 e 1929, nos quais o poeta é captado com uma
pincelada mais enxuta, embora não isenta de certa densidade
matérica, como no caso da obra que integra o acervo da Academia Brasileira de Letras. (FABRIS, 2011, p. 11)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
509
No retrato premiado de Olegário Mariano, Portinari encontrou
uma “solução de compromisso”, conforme a autora, cujo modelo é idealizado e segue as regras acadêmicas, tendo em conta que o pintor precisava responder às demandas acadêmicas da ENBA, cumprindo assim
as etapas necessárias ao seu reconhecimento artístico.
A esse respeito, em artigo publicado no jornal A Província,
Manuel Bandeira comentou sobre a má qualidade das obras que foram apresentadas no Salão, ressaltando, porém, as qualidades de Carlos Oswald e de Portinari. Bandeira comenta igualmente a respeito dos
critérios injustos adotados pelo júri da ENBA, que não premiou Portinari, anteriormente, em razão das tendências modernas do artista, mas
concedeu-lhe a premiação, agora, graças a algumas concessões que o
artista fez. É preciso ponderar, apesar disso, que esse reconhecimento
artístico é uma via de mão dupla, pois se o artista o almejava, a elite
política e intelectual retratada buscava, outrossim, a sua legitimação
visual.
À vista disso, os retratos de Portinari podem ser analisados
como “imagens negociadas” em suas cartas, na conceituação de Miceli
(1996), pois o pintor possui a característica de retocar os traços menos
favoráveis dos retratados na intenção de dar “prestígio visual” ao retratado. O escritor Mário de Andrade pontua, no entanto, que os retratos
de Portinari derivam “[...] dos afetos do artista, das suas amizades, não
parte de nenhuma preocupação financeira. [...] Distribui quadros como
nenhum outro artista, da mesma forma como recusa remunerações”
(ANDRADE, 1984, p. 72).
Nada obstante, a questão não é tão simples como parece. Ao
estudar os retratos de Portinari, Miceli (1996) assinala que foi possível
aclarar o relacionamento de um paradigmático artista brasileiro moderno com as elites, deslindando as mediações da produção dos retratos e
interpretando o
[...] sistema de mediações entre as necessidades e investimentos
das elites em matéria de representações artísticas e as modalidades de expressão simbólica elaboradas pelos artistas profissionais em resposta às energias sociais canalizadas para esse
domínio especializado da produção de bens culturais. (MICELI, 1996, p. 139-140)
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
É mister ressaltar que a elite urbana brasileira era constituída,
na época, por representantes do “capitalismo dependente” brasileiro, de
acordo com Fernandes, que se inicia por volta de 1880, pois “[...] graças
ao café e à associação direta com o capital financeiro mundial, os homens de negócios transformaram a oligarquia paulista em uma complicada floração do capitalismo competitivo dependente” (FERNANDES,
1975, p. 221). Dessa forma, os setores arcaicos dessa oligarquia eram
tão burgueses quanto os setores mais liberais.
Sendo assim, o equacionamento desse esquema compositivo da
“fórmula portinaresca” (MICELI, 1996) vai se dar por meio da capacidade do artista em atender aos anseios de representação simbólica da
elite brasileira que se converteram em chancela de prestígio e requinte,
cuja “mágica do retrato” fundiu na mesma representação os conteúdos
particulares do artista às significações de um projeto político nacional
da burguesia urbana em ascensão.
Por isso, é essencial que se compreenda a experiência dos artistas para com as novas formas de dominação às quais se defrontaram
a partir segunda metade do século XIX, na Europa, e início do século
XX, no Brasil. Nesse mercado de bens culturais, a imprensa era um ator
importante, como foi possível perceber pelos textos publicados nos jornais e revistas da época, sobre Portinari, por Manuel Bandeira, Mário
de Andrade e Mário Pedrosa. Segundo Bourdieu,
O desenvolvimento da imprensa é um indício, entre outros, de
uma expansão sem precedente do mercado dos bens culturais,
ligada por uma relação de causalidade circular ao afluxo de uma
população muito importante de jovens sem fortuna, oriundos
das classes médias ou populares da capital e, sobretudo da província, que vêm a Paris tentar carreiras de escritor ou de artista,
até então mais estreitamente reservadas à nobreza ou à burguesia parisiense. (BOURDIEU, 1996, p. 70)
Coube à imprensa a tarefa de exercer os efeitos daquilo que
Bourdieu (2013) qualificou como “dominação estrutural”, pois a abordagem bourdiana de classe incorpora sua compreensão relacional da
vida social, haja vista que a realidade social consiste de relações materiais e simbólicas que existem sob duas formas principais, quais sejam,
os conjuntos de posições objetivas que os atores sociais ocupam, deterANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
511
minando sua percepção e ação; e os esquemas mentais de percepção e
apreciação do mundo vivido, articulados em camadas que compõem o
habitus.
Os grupos sociais, e notadamente as classes sociais, existem de
algum modo duas vezes, e isso antes mesmo de qualquer intervenção do olhar científico: na objetividade de primeira ordem,
aquela registrada pela distribuição das propriedades materiais;
e na objetividade de segunda ordem, aquela das classificações
e das representações contrastantes que são produzidas pelos
agentes na base de um conhecimento prático das distribuições
tal como se manifestam nos estilos de vida. Esses dois modos
de existência não são independentes, ainda que as representações tenham certa autonomia em relação às distribuições: a representação que os agentes se fazem de sua posição no espaço
social [...] é o produto de um sistema de esquemas de percepção
e de apreciação (habitus) que é ele mesmo o produto incorporado de uma condição definida por uma posição determinada
quanto à distribuição de propriedades materiais (objetividade
1) e do capital simbólico (objetividade 2) e que leva em conta não somente as representações (que obedecem às mesmas
leis) que os outros têm dessa mesma posição e cuja agregação
define o capital simbólico (comumente designado como prestígio, autoridade, etc.), mas também a posição nas distribuições
retraduzidas simbolicamente no estilo de vida. (BOURDIEU,
2013, p. 111)
Assim sendo, é preciso reconhecer que as classes sociais moldam a sua representação através da injunção de categorias de percepção
que contribuem para forjar a realidade social.
Miceli (1996) aponta que os retratos de Portinari parecem dois
quadros, já que possuem uma superposição de duas regiões distintas,
em que a área do retratado obsta a visão da paisagem ao fundo, em que
a figura do retratado se localiza num “lugar de passagem”, uma “estação de repouso”, cujo olhar nos convida a observar o cenário ao redor.
A respeito da presença da paisagem em seus retratos, Portinari explicou
que ela possui
[...] íntima relação com o retrato, de que é elemento essencial.
Zuloaga, o grande pintor espanhol, o maior pincel do mundo,
reproduz, continuamente em suas telas de figura trechos regionais, onde faz viver a alma da Espanha. Aqui, em que o sol é vibrante e as cores são de belíssima intensidade, o fator paisagem
seria primoroso em qualquer retrato. (“O momento na pintura”,
A Manhã, 3/7/1926)
512
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A palavra paisagem vem da palavra francesa paysage, derivada
do latim pago; pagus, termo que significava distrito, cantão, província
ou o país, designando uma unidade territorial. De acordo com Maderuelo (2005), a palavra paisagem aparece primeiramente na China, no
século VIII, espalhando-se pelo Oriente. Na Europa, o conceito e sua
noção surgem no século XV, durante o Renascimento, e está ligado ao
surgimento da subjetividade moderna, uma vez que ao observarem o
seu entorno, os artistas começaram a representá-lo em suas pinturas por
meio de uma “escola do olhar”. À vista disso,
A paisagem não é […] o que está aí, diante de nós, é um conceito inventado ou, melhor, uma construção cultural. A paisagem não é um mero lugar físico, e sim o conjunto de uma série
de ideias, sensações e sentimentos que elaboramos a partir do
lugar e seus elementos constituintes. A palavra paisagem […]
reclama também algo mais: reclama uma interpretação, a busca
de um caráter e a presença de uma sensibilidade. […] A ideia
de paisagem não se encontra tanto no objeto que se contempla
como na mirada de quem contempla. Não é o que está a sua
frente e sim o que se vê. (MADERUELO, 2005, p. 38)
Cauquelin (2007) pontua de que maneira a paisagem fora idealizada e reproduzida como o equivalente da natureza, inaugurando uma
prática pictórica que influenciou nossas categorias cognitivas e espaciais, principalmente com a longa elaboração das leis da perspectiva,
cujo tecido reticular é ao mesmo tempo frágil e resistente, por isso,
O “tema” do quadro bem que poderia ser a própria pintura, e,
particularmente, o vínculo que a cor e a forma introduzem entre objetos: simples disposição das “coisas da natureza” numa
moldura. Os olhos dos personagens pintados se desviam para
deixar a natureza se expressar. Não temos necessidade deles
para “ver” a paisagem, doravante nós mesmos a veremos. Ela
foi descoberta. (CAUQUELIN, 2007, p. 91)
É preciso ressaltar que, para que a paisagem ocorra, são necessárias duas operações, quais sejam, o “enquadramento”, subtraindo ao
olhar parte da visão, e o “jogo de transportes” entre os 4 elementos da
natureza. Ao vermos o nosso entorno como paisagem acabamos sabendo coisas profundas sobre nossa cultura, haja vista que as técnicas de
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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representação são um marco em nossa cultura visual, o mundo ocidental anterior à perspectiva renascentista não é o mesmo desde o século
XV. Segundo a autora,
Parece que se deu um salto que leva mais longe que a mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e dos objetos,
que é um salto de outra espécie: uma ordem que se instaura,
a da equivalência entre um artifício e a natureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com efeito, justamente “da
natureza”. A imagem, construída sobre a ilusão da perspectiva,
confunde-se com aquilo de que ela seria a imagem. Legítima,
a perspectiva também é chamada de artificial. O que, então, é
legitimado é o transporte da imagem para o original, uma valendo pelo outro. Mais até: ela seria a única imagem-realidade
possível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem
distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a natureza. (CAUQUELIN, 2007, p. 38)
Sendo assim, a perspectiva paisagística é uma “forma simbólica” que não se limita tão-somente à arte, mas envolve o conjunto de
nossas construções mentais e todas as atividades humanas.
Contra os ataques que sofrera, Motta (1970) faz a defesa da paisagem nos retratos de Portinari, especificamente no retrato de sua avó,
Maria Torquato, de 1957, obra que foge do padrão portinaresco de retrato. Segundo o autor, nesse quadro, o fundo e a roupa da retratada são
compostas de áreas geométricas coloridas e superpostas, exceção nas
pinturas de Portinari, por isso, Motta identifica um sistema de “fechamentos que se abre como totalidade”, considerando-se que
O exame da realidade (construtiva) dessa tela nos mostra que
figura e fundo, homem e meio, espírito e natureza, forma e
conteúdo, não precisam, necessariamente, de coexistirem pela
“fusão”, onde as coisas se borram, diluem-se, integram-se. Seria esta a tendência mais a gosto dos naturalistas, interessados
apenas num único elemento, a luz, por exemplo, como entidade
capaz de tudo fundir na indeterminação. Na verdade, elementos aparentemente desligados, coexistem pela comunicação de
caráter estrutural, dinâmica e de significação humana. Não são
realidades independentes que vivem isoladas; são elementos de
passagem, onde o fundo participa da figura e a figura do fundo,
dialeticamente. (MOTTA, 1970, p. 14)
514
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
O clima “poético e onírico” de algumas telas de Portinari será
um estilo a ser incorporado em seus retratos, inclusive desde as individuais do artista em 1934, preenchendo o fundo da composição com
fragmentos de paisagens constantes em suas obras “populares” que
agradavam os seus clientes, oriundos da elite urbana. Esses fragmentos
constituem, consoante Cauquelin, “[...] uma operação a priori, isenta
de toda intenção particular. Ela é patente, porque é condição de satisfação do enunciado ‘paisagem’”(CAUQUELIN, 2007, p. 138). Esses fragmentos remetem à natureza domesticada, cuja paisagem coloca
entre o retratado e o espectador o análogon civilizado, preenchendo a
satisfação retórica de notabilidade da elite retratada.
Por fim, foi-nos possível perceber, ao longo desse estudo, que
os retratos de Portinari são mais que uma simples coisa, no formular
heideggeriano, já que a realidade se apresenta para o artista como algo
complexo que exige decifração. Dessa forma, a obra põe em presença
um mundo que é a consciência do homem de sua existência e de sua
posição no meio de outros seres existentes, o homem faz-se consciente
de seu destino histórico, e a paisagem de fundo nos retratos de Portinari
é a apresentação cultural daquilo que nos envolve, porquanto a obra de
arte não é completa por si mesma, separadamente, só existe dentro de
um conjunto de relações que transcendem sua entidade concreta, para
integrá-la no mundo que a rodeia.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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AS CASAS-MUSEUS COMO DIMENSÃO
PATRIMONIAL NA CONTEMPORANEIDADE
A FUNDAÇÃO EMA KLABIN E O MUSEU
LASAR SEGALL COMO ARTICULADORES
DA DINÂMICA DE PRESERVAÇÃO
Roberta Mendes de Sá273 - roberta.msa@hotmail.com
Resumo: A presente pesquisa pretende analisar as casas-museus como
fontes de preservação histórica e artística e como devem se articular
como instituições culturais para manter a tradição e acompanhar a dinâmica do cenário contemporâneo. Este Projeto de Pesquisa tem como
objetivo geral analisar as casas-museus Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall, localizados na cidade de São Paulo, com relação às
suas trajetórias biográficas e culturais, histórias de suas personalidades
e coleções. Os objetivos específicos são: compreender a importância
das casas-museus para a preservação do patrimônio histórico e artístico; refletir sobre as questões que interferem no desenvolvimento das
mesmas; relacionar a dinâmica da contemporaneidade e suas mutações
com a preservação das casas-museus e sua memória. A Fundação Ema
Klabin e o Museu Lasar Segall se transformaram em museus pela importância histórica e artística e são também remanescentes dos antigos
estilos de moradia na cidade de São Paulo. A metodologia utilizada empregou a pesquisa bibliográfica referente aos conceitos de casa-museu
e preservação do patrimônio; histórico sobre a Fundação Ema Klabin e
o Museu Lasar Segall; pesquisas de campo com entrevistas qualitativas
junto aos responsáveis pelas instituições analisadas e observações de
como se reestruturam no cenário cultural.
Palavras-chave: Casas-Museus; Contemporaneidade; Fundação Ema
Klabin; Museu Lasar Segall; Tradição.
273 Esta publicação faz parte da pesquisa de Mestrado em História da Arte intitulada “As casas-museus como dimensão patrimonial na contemporaneidade: A Fundação Ema Klabin e o
Museu Lasar Segall como articuladores da dinâmica de preservação”, orientada pela Prof.ª Dra.
Ilana Seltzer Goldstein e pela Prof.ª Dra. Ana Letícia Fialho, desenvolvida pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo.
518
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Abstract: This research intends to analyze the house-museums as
sources of historical and artistic preservation and how they should be
articulated as cultural institutions to maintain tradition and follow the
dynamics of the contemporary scenario. This Research Project has as
general objective to analyze the Ema Klabin Foundation and Lasar Segall Museum house-museums, located in the city of São Paulo, in relation to their biographical and cultural trajectories, histories of their
personalities and collections. The specific objectives arte: to understand
the importance of house-museums for the preservation of historical and
artistic heritage; reflect on the issues that interfere with their development; relate the dynamics of contemporaneity and its mutations with
the preservation of house-museums and their memory. The Ema Klabin
Foundation and the Lasar Segall Museum were transformed into museums due to their historical and artistic importance and are also remnants of the old styles of housing in the city of São Paulo. The methodology used used bibliographical research referring to the concepts of
house-museum and heritage preservation; background on the Ema Klabin Foundation and the Lasar Segall Museum; field research with qualitative interviews with those responsible for the analyzed institutions
and observations of how they are restructured in the cultural scenario.
Keywords: Contemporary; Ema Klabin Foundation; Houses-museums;
Lasar Segall Museum; Tradition.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo estudar as características da
Fundação Ema Klabin e do Museu Lasar Segall, fazendo parte da dissertação de Mestrado em História da Arte, considerando-se os históricos,
trajetórias e como se desenvolvem, permitindo ao público a percepção
de suas personalidades fundadoras e como este legado é transmitido às
novas gerações.
O cenário contemporâneo em constante transformação constitui-se como um desafio para a sobrevivência das casas-museus, que devem integrar o passado e o presente em suas ações de forma a dialogar
com os diferentes públicos.
O problema de pesquisa é: “Como as casas-museus Fundação
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Ema Klabin e Museu Lasar Segall se articulam como instituições culturais para manter a tradição e acompanhar a dinâmica do cenário contemporâneo, considerando-se as suas semelhanças e particularidades?”
As hipóteses se concentraram no fato de que ao se analisar as
casas-museus Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall percebeu-se
a possibilidade de investigar como a preservação do patrimônio e das
coleções artísticas foi integrada ao ambiente contemporâneo por meio
de práticas que unissem a museografia às demandas de um ambiente
cultural e social em transformação.
O objetivo geral desta Pesquisa é analisar as casas-museus
Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall, localizados na cidade de
São Paulo, com relação às suas trajetórias biográficas e culturais, estrutura, gestão educativa, histórias de suas personalidades e coleções,
assim como as contribuições destas instituições para a História da Arte
no Brasil.
Os objetivos específicos são: compreender a importância das
casas-museus para a preservação do patrimônio histórico e artístico;
refletir sobre as questões que interferem no desenvolvimento das mesmas; relacionar a dinâmica da contemporaneidade e suas mutações com
a preservação das casas-museus e sua memória; articular alternativas
de sobrevivência das casas-museus que preservem a essência original.
A metodologia utilizada compreende a pesquisa bibliográfica
referente aos conceitos de casa-museu e preservação do patrimônio;
histórico sobre a Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall; desdobramentos da dinâmica das casas-museus no ambiente contemporâneo,
através da observação dos projetos que realizam. As pesquisas de campo com entrevistas qualitativas junto aos responsáveis pelas instituições
analisadas compreendem a dinâmica das casas-museus no ambiente
contemporâneo, através da observação dos projetos que realizam e de
como se reestruturam no cenário cultural.
1. AS CASAS-MUSEUS
A Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall conservam as
características principais dos imóveis de seus antigos moradores, contendo a atmosfera da época em que lá viveram, tendo sido adaptados
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
como casas-museus para a visitação pública.
Dentro dos grupos dos museus, existem os museus-casas, que
se referem à moradia de uma personalidade que contribuiu para a cultura de um determinado lugar, havendo a preservação de suas características principais, como mobiliário e objetos, e a memória de quem o
representa.
No caso específico dos museus-casa, o desafio do discurso expositivo será o de conciliar a celebração, a evocação e a memória de seus moradores com a vinculação que esses personagens
estabeleceram com seu tempo e seu território. Assim, a concepção de um museu-casa não deve privilegiar apenas e tão somente a reverência biográfica a seus moradores, mas muito além
disso, por intermédio dos objetos, agora ressignificados como
objetos históricos, referenciar-se a problemas históricos inerentes aos vetores de significação que lhes são atribuídos como
expressões materiais que reproduzem os conflitos e as condições sociais que nos permitem (re)conhecer a estruturação, funcionamento e, sobretudo, as permanências e transformações de
uma sociedade. (KASEKER, 2014, p. 24-25)
Kaseker (2014) acredita ainda que o museu-casa deve conter
em seu perfil institucional as conexões com o território em que habita,
construindo uma memória coletiva para a compreensão da memória social.
Afonso e Serres (2016) ressaltam que uma casa-museu deve
manter viva a memória de seu homenageado.
O primeiro objeto de estudo é a Fundação Ema Klabin, uma
instituição cultural privada, que foi a residência da empresária e colecionadora Ema Klabin. O segundo objeto de estudo é o Museu Lasar
Segall, que é uma instituição cultural pública, antiga residência do artista Lasar Segall.
É importante compreender que a instituição cultural busca ressignificar o espaço que já foi uma antiga residência, que se modificou
para dar espaço a este novo ambiente e que possui o desafio de evocar
a personalidade fundadora em suas ações.
2. A FUNDAÇÃO EMA KLABIN
2.1 HISTÓRICO DE EMA KLABIN E DA FUNDAÇÃO
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Costa (2007) narra que Ema Klabin nasceu em 25 de janeiro de
1907, no Rio de Janeiro, filha de Hessel Klabin e Fanny Gordon Klabin,
imigrantes lituanos de origem judaica. Era sócia-gerente da empresa
Klabin Irmãos & Cia, e possuía um gosto por viagens e pelo colecionismo de obras de arte, que se iniciou em 1947.
Ema não se preocupava com as convenções sociais ainda destinadas às mulheres no início do século XX, como casamento, filhos e
cuidados com o lar, dedicando-se aos projetos sociais, aos negócios da
família e possuía grande interesse pela literatura, obras de arte, viagens
e apresentações musicais.
A Figura 1 apresenta Ema Klabin com seu estilo aristocrático e
o destaque dos cabelos pretos com a mecha branca, sendo perceptível a
sua personalidade inquieta e aberta aos novos conhecimentos.
Com o falecimento da mãe de Ema, D. Fanny, em 1926, e o
casamento da irmã Eva em 1933, esta passou a acompanhar o pai nos
negócios e viagens e a cultivar o gosto pela decoração. (Ibid., 2007).
No início da década de 1950, teve início a construção da casa
no Jardim Europa, com Ema se dedicando ao colecionismo, realização de jantares e recepção de personalidades em sua residência. (Ibid.,
2007).
Em companhia da irmã, Eva, Ema realizava viagens pelo mundo, compartilhando do gosto pelo conhecimento de diversas culturas e
aquisição de obras de arte.
Ema Klabin faleceu em 27 de janeiro de 1994, aos 87 anos,
permitindo em seu testamento que a residência e a coleção se transformassem em uma instituição cultural aberta ao público.
Costa (2017), explica que em 1997 a Fundação Ema Klabin
iniciou as suas atividades, possibilitando o estudo e difusão do acervo,
sendo aberta à visitação somente em 2007.
A Fundação Ema Klabin, localizada na Rua Portugal, no bairro dos Jardins, na cidade de São Paulo, possui uma área total de 4.000
m², sendo que a casa tem cerca de 900 m² de área construída, conforme
Costa (2007). Há uma liberdade na mistura de épocas, estilos e materiais, seguindo o modelo das residências luxuosas europeias e com
inspiração no Palácio de Sanssouci, em Postdam, Alemanha.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A casa-museu Fundação Ema Klabin é formada pela galeria,
biblioteca, sala de jantar, sala de estar, quarto de hóspedes, quarto de
dormir e o jardim, com diversas espécies de plantas.
O jardim, conforme elucida Costa (2014), foi projetado pelo
paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), em 1956, sendo modificado para se adequar ao gosto de Ema. As espécies também eram trazidas
das viagens realizadas, o que influenciou nas adaptações realizadas neste espaço ao longo dos anos.
Costa (2007) caracteriza a coleção de Ema Klabin em quatro
diferentes períodos na trajetória das aquisições: tradição clássica europeia; peças do Brasil colonial e imperial; obras do modernismo brasileiro em sua maior parte; última fase composta por peças de grande valor
que voltam para temas anteriores, especialmente o europeu, e trazendo
um novo direcionamento para a coleção.
Costa (2021) comenta que, de acordo com o Estatuto da Fundação Ema Klabin, o acervo não pode ser descartado e nem alterado,
sendo opção da casa-museu preservar os ambientes. Assim, a coleção é
fechada e não inclui novas aquisições.
Assim, houve todo o processo de catalogação do acervo e
adaptação dos espaços para a abertura da casa-museu, que forma uma
tríade cultural na região dos Jardins, nas proximidades com o MIS (Museu da Imagem e do Som) e o MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e
da Ecologia).
2.2 A FUNDAÇÃO EMA KLABIN NA CONTEMPORANEIDADE
Durante a entrevista realizada, Costa (2021) explicou a adaptação da residência para a casa-museu: “Alguns objetos pequenos foram
removidos, proteções de acrílico foram colocadas e os tapetes foram
removidos para circulação. A parte de serviços foi adaptada para a casa-museu; o canil, a caldeira e a copa não foram preservados. Havia um
pátio externo, que recebeu a cobertura e o piso.”
A área que atualmente é a sala do educativo era a antiga garagem, enquanto que a sala dos cursos era a área de serviços da residência.
Costa (2021) explica que a Fundação apresenta os seguintes
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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dados: Biblioteca com 3.554 volumes; arquivos com 7.000 documentos e 2.133 fotografias. A Reserva Técnica possui itens do acervo, mas
grande parte permanece em exposição, mantendo os ambientes de forma original.
A Figura 2 apresenta a fachada da Fundação Ema Klabin, após
a reabertura para as visitas presenciais em 2021, encerradas em março
de 2020, devido à pandemia causada pelo vírus da COVID-19.
Dessa forma, as ações passaram a ser realizadas de forma online, sendo que os cursos, palestras e espetáculos aumentaram devido a
esse formato, mas Costa (2021) acredita que não surgiram novos públicos, sendo os mesmos que já conheciam a casa-museu, permitindo que
pessoas de outras regiões tivessem acesso aos eventos.
A Figura 3 apresenta a galeria da Fundação Ema Klabin em
2021, sem os tapetes que ficavam em todo o corredor. Há uma diversidade dos objetos presentes na coleção, com a galeria estabelecendo
uma comunicação entre todos os ambientes do imóvel, que é totalmente
térreo.
Costa (2021) afirma que: “Os recursos para manutenção foram
deixados por Ema, recebendo doações da empresa Klabin para a Fundação Ema Klabin e Fundação Eva Klabin; editais e leis de incentivo,
além dos recursos de ingressos e locação do espaço, que ocorre mais
para eventos empresariais, seguindo regras específicas para o uso externo, que pode incluir também a visitação à casa-museu”.
Assim, a casa-museu pode ampliar a sua atuação, não apenas
para a aquisição de recursos, como também para a descoberta de novos
usos do espaço, permitindo a exploração por diferentes públicos.
Para Silva (2021), a presença de Ema Klabin é evocada de
todas as maneiras, havendo a domesticidade abordada de diversas formas, ressaltando-se a biografia nas visitas, com o cuidado de não serem
tecidos elogios à fundadora, transmitindo a origem da casa-museu e a
atuação desta, trazendo para o presente a sua personalidade e atuação.
Percebe-se a importância do Educativo para inserir os públicos no contexto da casa-museu, permitindo que Ema Klabin possa ser
conhecida e evocada dentro do ambiente, assim como seus hábitos e
estilos, trazendo assim a percepção a respeito de sua personalidade.
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3. O MUSEU LASAR SEGALL
3.1 HISTÓRICO SOBRE LASAR SEGALL E A FORMAÇÃO DO
MUSEU
Beccari (1984) narra que Lasar Segall nasceu em 21 de julho
de 1891, na cidade de Vilna, capital da Lituânia. Filho de Abel Segall e
Esther Ghodes Segall, Lasar cresceu em um ambiente tradicionalmente
judaico.
Hoffmann (2017) relata que Lasar Segall, ainda com 15 anos,
saiu de Vilna para estudar em Berlim, de 1906 a 1910. Fundou a Secessão de Dresden de 1919. Mudou-se com a primeira esposa Margarete
para o Brasil, em 1924. Em São Paulo, participou intensamente da vida
artística e cultural da cidade entre 1920 e 1930.
Em 1924, Segall e Margarete se separaram, sendo que esta não
se adaptou à vida em São Paulo e retornou à Alemanha. Em 1925, Segall naturalizou-e brasileiro e casou-se com Jenny Klabin, sendo um
momento que influenciou a sua forma de pintar, com paisagens coloridas, formas arredondadas e um expressionismo mais sereno, identificando-se também com a marginalidade social e racial do negro brasileiro, segundo Beccari (1984).
A Figura 4 traz a obra “Encontro” (1924), que para Schwartz
e Monzani (2010), representa um autorretrato com um símbolo da integração de Segall à vida brasileira. É provável que esta obra tenha se
originado a partir de uma fotografia de 1919, do dia do casamento de
Segall com Margarete, em Dresden. A pele do artista representa o negro
brasileiro, havendo uma síntese entre a Europa e o Brasil.
Segall costumava se personificar em suas obras, parecendo
trazer as sensações vivenciadas pelos grupos apresentados, como se
percebesse as mesmas dores, angústias e expectativas, havendo uma
identificação com os indivíduos marginalizados.
Na Figura 5 observa-se Lasar Segall e Jenny Klabin durante
a lua-de-mel em Poços de Caldas (MG), em 1925. A cumplicidade e o
apoio eram evidentes entre ambos, perdurando durante toda a vida.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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Beccari (1984) conta que de 1928 a 1932, Segall e Jenny residiram em Paris junto aos filhos Mauricio e Oscar. Ao regressarem, fixaram residência em São Paulo, na casa da Rua Afonso Celso, projetada
pelo arquiteto Gregori Warchavchik, casado com Mina Klabin (irmã de
Jenny).
Um momento marcante para a carreira de Segall foi a formação da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), com o intuito de reaproximar os artistas e o público da arte moderna, sendo um de seus
fundadores e principal animador, incluindo outros artistas e intelectuais
da sociedade paulistana. A SPAM durou de 1932 a 1934, de acordo com
Beccari (1984).
A partir da década de 1940, Segall, M. L. A. (1991), analisa
que, após a extinção da SPAM, Segall se volta para a sua obra pictórica,
incluindo as angústias da condição humana e temas que afetavam o
povo judeu, como o nomadismo e o Holocausto.
No final da vida, como que se afastando “das dores do mundo”,
Segall concentrou-se no bucolismo das florestas de Campos do
Jordão e na placidez serena dos retratos: o refúgio final de quem
vivenciara e expressara as vicissitudes e percalços da condição
humana neste atribulado século XX. (SEGALL, M. L. A., 1991,
p. 35)
Em 02 de agosto de 1957, Segall faleceu em sua casa da Rua
Afonso Celso, em São Paulo, conforme Beccari (1984).
Segall (2001) explica que sua mãe, Jenny Klabin, muito abalada após o falecimento de Segall, decidiu por catalogar as obras e documentos no ateliê, se preocupando também em resgatar as obras que
estavam desaparecidas.
Assim, surgiu a vontade em transformar a residência da família em uma casa-museu aberta ao público. A vontade de Jenny Klabin
em difundir a obra de Lasar Segall envolveu não apenas a fundação
da casa-museu, mas também a recuperação e aquisição das obras, o
cuidado com o acervo e legado do artista, acreditando que merecesse
ser reconhecido por sua importância na História da Arte pelos temas
abordados e formas de expressão.
Jenny Klabin Segall faleceu em 05 de agosto de 1967, de acordo com Beccari (1984), após ter organizado e acompanhado uma turnê
526
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
de exposições sobre as obras de Lasar Segall pelos principais museus
europeus.
Idealizado por Jenny Klabin Segall, viúva do artista, o Museu
foi criado pelos filhos Mauricio Segall e Oscar Klabin Segall
em 1967. O acervo atual teve início com a doação da família
à Associação Museu Lasar Segall que, em dezembro de 1984,
se transformou no Museu Lasar Segall, hoje uma entidade do
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), órgão do Ministério
da Cultura. (SCHWARTZ; MONZANI, 2010, p. 5)
Segall, M. L. A. (1991) comenta que o Museu Lasar Segall foi
efetivamente aberto ao público em 22 de setembro de 1973, contendo
o cinema, biblioteca e o oferecimento de cursos. Durante a década de
1970, foram realizadas parcerias para a exibição de filmes e cursos destinados aos colégios da região, funcionários das empresas próximas,
operários do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema, e para os internos da unidade da Febem (Fundação do Bem
Estar do Menor) que havia nas proximidades do museu.
Caires (2021) informa que as obras no imóvel duraram cerca
de 30 anos, pois não era propício para virar um museu, necessitando
da estruturação técnica. O ateliê quase não se alterou, pois foi refeita a
estrutura mais própria do original.
O desafio em preservar o imóvel da forma como a personalidade fundadora o habitou, transformando-o em instituição cultural
aberta aos diferentes públicos, permite que cursos, espaços expositivos
e atividades educativas, de pesquisa e culturais evoque a presença da
personalidade que ali habitou.
Segall (2001) compreende que o Museu Lasar Segall propiciou o desenvolvimento do potencial criativo de seus visitantes, muitas
vezes com suas potencialidades alienadas, fazendo com que o exercício
da sensibilidade artística tornasse o ser humano mais completo.
Caires (2021) opina que: “O museu é um dispositivo de comunicação, que é ativado a cada visita de um espectador: exposições, mediação, cursos de gravura, visitantes do museu. Mauricio Segall acreditava que o museu ajudaria a que o espectador ampliasse a sua visão e
sensibilidade, permitindo uma democracia entre todos os funcionários
a cada reunião”.
Percebe-se a importância de dar voz aos funcionários, conforANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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me a proposta de Mauricio Segall, fazendo com que o museu se transformasse em um organismo vivo, formado por pessoas e não apenas
pelo acervo.
Camargo (2021), em seu depoimento para a pesquisa, afirma:
“Mauricio fez o museu pelo amor que ele tinha pelo pai e pelo amor que
a mãe tinha pelo pai.”
3.2 O MUSEU LASAR SEGALL NA CONTEMPORANEIDADE
Entre 2020 e 2021, devido à pandemia causada pelo vírus da
COVID-19, o museu permaneceu fechado por diversos meses, contando com a programação online de palestras, cursos, divulgação de materiais para serem baixados através do site do Museu Lasar Segall (www.
mls.gov.br), informações a respeito da instituição e obras do artista. Foi
possível atingir a uma maior quantidade de públicos, que não poderiam
participar presencialmente dos eventos, conforme Caires (2021).
Caires (2021) acredita que: “A imagem de Lasar Segall e suas
obras tratam a todo momento de sua personalidade. Há obras na Reserva Técnica que ainda não foram expostas. O curador constrói uma
narrativa sobre Lasar Segall a cada exposição, aberta a interpretações. É
um museu que engloba a arte, o modernismo brasileiro e permite questionar estas narrativas, pois Segall deixou a casa-museu, mas outros
artistas não tiveram esse privilégio.”
Assim, as casas-museus são reinterpretadas a cada visita e a
cada exposição, mostrando aos públicos aquela personalidade que lá
habitou e a sua importância histórica e social.
Camargo (2021) destaca que, por decisão do museu, as exposições de Segall deveriam ser de longa duração, não sendo caracterizadas
como permanentes. Os diretores contemporâneos abriram espaços para
as exposições temporárias de outros artistas no Museu Lasar Segall.
A Figura 6 apresenta a fachada do Museu Lasar Segall em
2021, após a abertura para os eventos presenciais. Percebe-se que a casa
mantém as características da arquitetura modernista, mas foi adaptada
para se tornar uma instituição cultural aberta ao público, evocando a
memória e a arte de Lasar Segall.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa está em andamento, mas pode-se observar a importância do desenvolvimento de ações da curadoria, educativo e cursos em cada instituição, assim como o estabelecimento de canais com
outras casas-museus, através do empréstimo de obras, participação em
encontros e debates sobre os rumos das mesmas.
Dessa forma, a evocação da personalidade que residiu no imóvel é feita através destas ações, considerando-se que não é mais uma residência, mas sim uma instituição cultural aberta ao público e que deve
estar atenta aos diversos públicos e possibilidades de atuação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AFONSO, Micheli Martins; SERRES, Juliane Conceição Primon. Casa-museu, Museu-Casa, Casa histórica: um lugar de memórias. Vox Musei Arte e
Patrimônio. ano 1, n. 1, jan.-jun. 2016. p. 39-47. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/voxmusei/article/view/6748. Acesso em: 27 jun. 2020.
BECCARI, Vera D’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
CAIRES, Daniel Rincon. Entrevista concedida à Roberta Mendes de Sá durante a visita ao Museu Lasar Segall. São Paulo, 18 set. 2021.
CAMARGO, Maria Pierina Ferreira de. Entrevista concedida à Roberta Mendes de Sá durante a visita ao Museu Lasar Segall. São Paulo, 25 set. 2021.
COSTA, Paulo de Freitas. Entrevista concedida à Roberta Mendes de Sá durante a visita à Fundação Ema Klabin. São Paulo, 14 out. 2021.
COSTA, Paulo de Freitas. Os tempos de uma coleção. In: COSTA, Paulo de
Freitas (Org.). A Coleção Ema Klabin. São Paulo: Fundação Cultural Ema
Gordon Klabin, 2017. p. 17-19.
COSTA, Paulo de Freitas. Sinfonia de Objetos: A coleção de Ema Gordon
Klabin. São Paulo: Iluminuras, 2007.
HOFFMANN, Ana Maria Pimenta. Ema Klabin, colecionadora de arte moderna brasileira. In: COSTA, Paulo de Freitas (org.). A Coleção Ema Klabin.
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529
São Paulo: Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, 2017. p. 167-175.
KASEKER, Davidson Panis. Os desafios da rede paulista de museus-casa e
casas históricas. In: CARVALHO, Ana Cristina. ENCONTROS BRASILEIROS DE PALÁCIOS, MUSEUS CASAS E CASAS HISTÓRICAS: 20142017. v. 4, São Paulo. Anais... São Paulo: Curadoria do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo, 2018. 2014, p. 21-26.
Disponível em: http://www.acervo.sp.gov.br/publicacoes/anais_encontro.pdf.
Acesso em: 06 ago. 2021.
SEGALL, Maria Lúcia Alexandrino. O Museu Lasar Segall na década de 70.
São Paulo: Edusp, 1991.
SEGALL, Mauricio. 30 anos a frente do Museu Lasar Segall. São Paulo: Museu Lasar Segall, 2001.
SCHWARTZ, Jorge; MONZANI, Marcelo (orgs.). Museu Lasar Segall: 50 obras do acervo. São Paulo: Iluminuras, 2010.
SILVA, Cristiane Alves da. Entrevista concedida à Roberta Mendes de Sá
durante a visita à Fundação Ema Klabin. São Paulo, 14 out. 2021.
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Imagens:
Figura 1: Ema Gordon KLABIN. Fonte: COSTA (2007, p. 4)
Figura 2: Fachada da Fundação Cultural Ema Gordon Klabin em 2021. Fotografia
realizada em 14 out. 2021, através do celular. Fonte: Acervo pessoal, 2021.
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Figura 3: Galeria da Fundação Ema Klabin em 2021. Fotografia realizada
em 14 out. 2021, através do celular. Fonte: Acervo pessoal, 2021.
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Figura 4: Lasar SEGALL. Encontro (1924). Óleo sobre tela (66 x 54 cm).
Museu Lasar Segall, São Paulo. Fonte: ALMEIDA (2014, p. 56)
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Figura 5: Lasar Segall e Jenny em Poços de Caldas
(MG), 1925. Fonte: BECCARI (1984, p. 7)
Figura 6: Fachada do Museu Lasar Segall em 2021. Fotografia realizada
em 25 set. 2021, através do celular. Fonte: Acervo pessoal, 2021.
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CONJECTURAS ACERCA DE UMA
INFLUÊNCIA DAS ARTES CÊNICAS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE TICIANO
DOS MITOS PARA FERRARA
Tânia Kury Carvalho274 – taniakury@yahoo.com
Resumo: Esta comunicação baseia-se em um estudo sobre a possibilidade da influência da linguagem corporal das artes cênicas sobre as
representações mitológicas de Ticiano. O questionamento é justificável
porque a figuração das mitologias para o Gabinete de Alabastro, feita
por Ticiano de 1518 a 1524, apresenta características muito diferentes
tanto de suas pinturas anteriores, quanto das mitologias pintadas por
outros artistas para a família Este. A questão parece conveniente porque
as pinturas para o Gabinete foram o primeiro contato de Ticiano tanto
com temas mitológicos, quanto com as descrições literárias de imagens.
Por isso, este trabalho propõe como possibilidade que a concepção mais
realista e teatral dos movimentos e afetos percebidos nas pinturas possa
ter sido inspirada na observação de peças, danças e outros espetáculos,
tanto em Veneza quanto em Ferrara que, ao colocarem diante de Ticiano
referências gestuais e corpóreas em ação real, teriam complementado as
referências iconográficas fornecidas pelas obras inspiradas na antiguidade clássica, como as esculturas e relevos, tanto na coleção de Alfonso, quanto as conhecidas por Ticiano por meio de gravuras.
Palavras Chave: Pinturas mitológicas, Ticiano, Ferrara, Alfonso d’Este, Artes cênicas.
Abstract: This communication is based in a study about the possibility of an influence of the body language in the performing arts upon
Titian´s mythological representations. The questioning is justifieble be274 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “A iconografia mitológica à
antiga de Ticiano e um possìvel reflexo do ambiente cultural de Ferrara, sob Alfonso d’Este”,
orientada pelo Prof. Dr. José Geraldo Costa Grillo, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte, na Universidade Federal de São Paulo. Mestra em História da Arte pela
Univesridade Federal de São Paulo.
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cause the figuration of the mythologies for the Cabinet of Alabaster,
done by Titian from 1518 to 1524, presents very different features from
both his previous paintings and the mythologies painted by other artists
for the Este family. The question seems convenient because the paintings for the Cabinet were the Titian’s first contact, both with mythological
themes, and with the literary descriptions of images. For this reason,
this work proposes as a possibility that the more realistic and theatrical
conception of the movements and affections percieved in the paintings
might have been inspired by the observation of plays, dances and others
spectacles, both in Venice and in Ferrara which, by putting before Titian
the gestual and corporeal references in real action, would have complemented the iconographic references provided by the artworks inspred
in classical antiquity, as sculptures and reliefs, both in the collection of
Alfonso, and those known by Titian through engravings.
Keywords: Mythological Paintings, Titian, Ferrara, Alfonso d’Este,
Performing Arts.
1. INTRODUÇÃO
Esta comunicação é baseada em um estudo acerca da possibilidade de um reflexo da linguagem corporal das artes cênicas sobre a
representação mitológica de Ticiano. Este estudo está inserido em uma
investigação mais ampla, para uma tese de doutorado, sobre a influência do ambiente cultural de Ferrara, sob o comando de Alfonso d’Este,
sobre a reformulação da iconografia mitológica feita pelo artista.
O questionamento se justifica porque a figuração das mitologias
para o Gabinete de Alabastro, feita por Ticiano entre 1518 e 1524, apresenta características muito diversas, tanto de suas pinturas anteriores,
quanto das mitologias pintadas por outros artistas para membros da
Família d’Este. A indagação parece oportuna porque as pinturas para
o Gabinete foram o primeiro contato de Ticiano com os temas mitológicos e com as descrições literárias de imagens. Sem experiência anterior na figuração da mitologia, e considerando que as interpretações de
artistas como Giovanni Bellini e Andrea Mantegna diferiram muito do
caminho que adotou, a referência nas esculturas e relevos antigos, não
é suficiente para explicar o novo tom nas interpretações.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Por esta razão, este trabalho coloca como possibilidade que esta
concepção mais realista e teatral dos movimentos e afetos presentes nas
obras possa ter sido inspirada na observação de peças, danças e outros
entretenimentos, tanto em Veneza, quanto em Ferrara, que teriam colocado o artista perante referências gestuais e corporais em ação real,
o que complementaria a referência iconográfica fornecida pelas obras
de inspiração clássica, como as esculturas e relevos presentes na coleção de Alfonso, ou que Ticiano conhecia por gravuras. Dado o grande
envolvimento de Ferrara com as artes cênicas desde a gestão de Ercole
d’Este, a qual será continuada sob o comando de Alfonso, esta hipótese
parece plausível.
Em função do espaço disponível, esta comunicação será centrada
sobre a Bacanal dos Andros e constitui apenas um panorama inicial
sobre o assunto.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO
Quando Ticiano muda-se para Veneza, a cidade experimentava
uma renovação urbana e vivia um período cultural rico, manifesto nos
mais diversos domínios como o teatro e todas as atividades relacionadas à encenação dos espetáculos: a música, a cenografia, os figurinos etc. Além dos teatros, havia performances e atrações dia e noite,
as quais os espectadores assistiam nas praças, ou das janelas e balcões
de suas casas [Figura 1]. Eram competições inusitadas, como montaria
em touros; ou provocação de ursos; ou entretenimentos mais amenos
como danças de grupo. Havia também jogos, como o futebol da época,
reservado para cidadãos nobres de nascimento. Era possível ainda ver
apresentações de música, de mágica, de encantadores de serpentes etc...
(WILLIAMS, 1972).
Inicialmente, Ticiano será aprendiz do mosaicista Sebastiano Zucatto, fazendo amizade com seus filhos, sobretudo com Valério, que era
casado com uma famosa atriz de teatro. A amizade permitirá a Ticiano conhecer pessoalmente, em cena e nos bastidores, os mais famosos
atores e músicos dos palcos Venezianos (CAROLI; ZUFFI, 1990). Sobre estas vivências, Flavio Carol e Stefano Zuffi comentaram que: “O
hábito da mise em scène e da mímica dos atores parecem ter sugerido
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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a nosso pintor [Ticiano] soluções peculiares para suas composições”
(CAROLI; ZUFFI, 1990, p. 24).
3. SOBRE ALFONSO D’ESTE
Alfonso d’Este era o filho mais velho de Ercole. Teve uma criação principesca mas, ainda assim, desenvolveu gostos pouco usuais
para um regente: gostava de carpintaria, de pintar cerâmicas, de moldar
bronzes, além de fazer e tocar vários instrumentos musicais. Sua principal paixão e expertise era o armamento de guerra, que ele colecionava,
desenhava e ajudava a construir (HALE, 2012). Aos 29 anos tornou-se
Duque de Ferrara. Apreciava a literatura, e à noite, além de jogar xadrez
e cartas, desfrutava da música e da leitura de romances. Muito apreciada era a poesia de Boiardo, e o primeiro rascunho de Orlando Furioso,
de Ludovico Ariosto, que era frequentemente chamado para lê-lo para
o duque (NICHOLSON, 1914).
4. SOBRE AS COMÉDIAS, A ESTRÉIA DE ARIOSTO, E UM
POSSÍVEL REFLEXO DO GOSTO TEATRAL SOBRE AS
OBRAS DE TICIANO
O interesse de Ferrara pela comédia foi resultado de uma iniciativa de Ercole d’Este, pai de Alfonso. Uma encenação dos Menecmos,
de Plauto, em 25 de janeiro de 1486, como parte das comemorações
do noivado entre Francesco Gonzaga e Isabella d’Este, marcou a primeira encenação teatral em Ferrara, cujo texto, em latim, havia sido
traduzido para a língua vernácula para a performance (HARDIN 2003).
A comédia teve enorme sucesso e foi encenada novamente durante as
festividades do casamento de Alfonso d’Este e Anna Sforza, em 1491
(HARDIN, 2007). A sociedade da época havia se dado conta do valor
de entretenimento da comédia romana encenada nos palcos.
Francesco Robortello, escrevendo sobre a comédia em 1548, retomou o conceito da comédia como uma “arte que imita ações humanas
consideradas ordinárias e vis’”; e acrescentou que: a Nova Comédia,
em particular, “[...] imita comportamentos observados no dia-a-dia, nas
relações comuns entre os homens” (HARDIN, 2007, p. 791). Era uma
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
comédia de costumes; tratava de fatos corriqueiros, engraçados, entre
pessoas pertencentes a classes sociais distintas (CARDOSO, 2011). Robortello teria comentado, ainda, que parecia que “Nada era sagrado no
mundo da comédia: nem o amor marital, nem o romance, nem as autoridades políticas ou religiosas” (HARDIN, 2007).
Em março de 1508, Ariosto estreia a primeira comédia de sua autoria: La Cassaria, encomendada por Ippolito d’Este (HARDIN 2003;
STTOPINO, 2015). No ano seguinte, teve sucesso ainda maior com
Os supostos, a primeira comédia em forma de prosa e ambientada na
própria Ferrara. Edmund Gardner (1906) comentou que ela havia despertado ainda mais risadas com sua trama de enganos e substituições
de pessoas. O argumento teria sido recitado pelo próprio Ariosto, os
interlúdios tiveram música e canto e, ao final da comédia:
Vulcano e os Ciclopes forjaram flechas ao som de flautas, marcando o tempo com seus martelos e com os pequenos guizos
que tinham nas pernas; e enquanto forjavam as flechas e empurravam seus foles, eles dançaram a mouresca ainda com os
martelos (GARDNER, 1906, p. 326)
Este tipo de espetáculo, que combinava teatro, música e dança
estabeleceu uma tradição com continuidade e expansão para outras cortes, e segue o costume das encenações das peças latinas originais, em
Ferrara. Uma encenação dos Anfitriões, de Plauto, por exemplo, de 3
de fevereiro de 1479, foi encerrada com um cortejo alegórico sobre Os
Trabalhos de Hércules (GRADNER, 1906). Em 1502, Lucrezia Borgia, foi recebida em Ferrara com comédias e interlúdios semelhantes
(GARDNER, 1906). Um tipo de entretenimento que produzirá em sua
própria corte, com recursos destinados ao seu financiamento, os quais
eram administrados pela própria duquesa (PRIZER, 1985).
Gardner (1906) comentou que em suas comédias posteriores
Ariosto foi além na modernidade das personagens que trouxe para o
palco, incorporando, nos comentários que fazia durante os intervalos,
temas da vida contemporânea. O autor acrescentou: “Que este ramo da
comédia italiana é satírica, foi apontado com frequência. Por vezes, no
entanto, a sátira está mais em evidência do que aquelas epístolas poéticas fascinantes às quais o nome de Sátira havia sido dado” (GARD-
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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NER, 1906, p. 323).
Um aspecto destacado pelos autores, no que se refere às comédias de Ariosto, é que embora baseiem-se em tramas e personagens dos
textos latinos de Plauto e Terêncio, ele realoca a trama para o momento
contemporâneo e para locações com as quais os espectadores têm familiaridade, o que colaboraria na criação de uma impressão de realidade.
Os autores comentaram que em suas comédias, Ariosto reimaginou a
geografia do Mediterrâneo, fazendo com que seus protagonistas se movessem em espaços conhecidos do comércio Veneziano. Em paralelo a
este “redesenho” do mapa, as personagens receberam identidades étnicas e nacionais, com frequência fora de sincronia com o passado grego
imaginado pelos modelos Plautinos (STTOPINO, 2015). Sttopino escreveu:
Fica claro que em Cassária, Ariosto constrói uma geografia que
não é abstrata, que não se propõe apenas a imitar os espaços
dos modelos de Terêncio e Plauto, e cujo exotismo é limitado
ao uso dos nomes. De fato, este é o mundo do Império marítimo veneziano e de seus espaços comerciais. Mesmo o uso dos
estereótipos, os quais são baseados na percepção dos habitantes
contemporâneos [da época] do Mediterrâneo, não é apenas eficaz do ponto de vista da comédia, mas participa da produção do
efeito de realidade (STTOPINO, 2015, p. 399).
Sobre este aspecto, Gardner acrescentou que, desta forma, Ariosto
repetia a maneira dos autores latinos. Zelia Cardoso explicou que “[...]
as histórias narradas na comédia latina se passam, em geral, em cidades
da Grécia; as personagens têm nomes gregos e as próprias roupas utilizadas pelos atores imitavam as vestes helênicas” (CARDOSO, 2011,
p.27). Ticiano buscará um efeito semelhante usando o mesmo artifício:
incluindo nas pinturas mitológicas elementos que remetem à Ferrara
contemporânea, como a moda, e os gostos particulares do comitente.
Certamente estas encenações das comédias, seguidas pelas danças mourescas com temas mitológicos interpretadas por dançarinos caracterizados, ainda estavam em voga na época em que Ticiano trabalha
para Alfonso e se hospeda em Ferrara por vários períodos, durante quase 10 anos. Sobre as danças e encenações dos episódios mitológicos
no final das apresentações, é claro que não é possível saber como era
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
feita a dramatização – no que se refere à pantomima e à caracterização
propriamente dita das personagens mitológicas, mas é sabido que estas
eram convincentes, e que o convencimento era obtido por meio de figurinos e aparatos cênicos, como navios e simulações de naufrágios, entre
outros, cujos efeitos e impressões foram documentados por escrito em
cartas e, em outras cortes, tempos depois, registrados em gravuras que
mostraram a complexidade e o nível de detalhe da construção visual em
termos de maquinários e figurinos. É bem possível, portanto, que Ticiano tenha visto algo semelhante, se não em Ferrara, na própria Veneza –
uma vez que mesmo em obras mitológicas posteriores, como as Dianas,
para Felipe II, a associação das representações com características das
cenas da ópera Veneziana é frequente (BRION, 1985).
5. SOBRE O GABINETE DE ALABASTRO
Por volta de 1516 Alfonso começou projetar seu Gabinete de
Alabastro onde concentraria obras de arte dos maiores artistas do seu
tempo. A primeira pintura adquirida para este conjunto, que deveria ter
como tema Os prazeres do amor e do vinho, havia sido uma Bacanal
pintada por Dosso Dossi, que ilustrava uma passagem dos Fastos, de
Ovídio.
Na sequência, adquiriu O Festim dos Deuses [Figura 2], de Giovanni Bellini, também inspirado nos Fastos. Definiu temas para mais
três obras que foram encomendadas, inicialmente, a Fra Bartolomeo e a
Rafael, que não conseguiram entregá-las, e as três pinturas – Adoração
à Vênus; Bacanal dos Andros e Baco e Ariadne – terminarão por ser
pintadas por Ticiano.
Antes de pintar as mitologias, Ticiano teria feito trabalhos menores para Alfonso e, entre eles, teria desenhado um poço (provavelmente
para um cenário) e figurinos para bailado, algo já feito por Leonardo da
Vinci, para o duque de Milão (BRION, 1985).
A Bacanal dos Andros [Figura 3] foi a terceira pintura que Ticiano realizou para o Gabinete, e trata da chegada de Baco à ilha de
Andros, cuja iconografia também reflete um texto das Imagens de Filóstrato (WILLIAMS, 1972) que teria sido, de acordo com David Jaffé
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(2003), complementado por um trecho dos Fastos que descrevia a Festa de Ana Perene.
Considere, no entanto, o que deve ser visto na pintura: O rio
repousa sobre um leito de cachos de uva, derramando sua corrente, um rio não diluído e de aparência agitada; os tirsos crescem a sua volta como o junco em torno de correntes de água,
e se alguém percorrer esta terra e os grupos que bebem dela
[...] chegará aos Tritões na foz do rio, os quais estão enchendo
conchas com vinho. Uma parte do vinho eles bebem, outra eles
assopram [formando] correntezas; quanto aos Tritões, uns estão
bêbados e outros dançando. Dioniso também navega para festa
em Andros e, com seu navio agora atracado no porto, lidera
uma multidão mista de Sátiros e Bacantes, e todos os Silenos.
Ele lidera riso [Como] e orgia [Gelos], dois dos espíritos mais
animados e que mais gostam de bebedeira, aqueles com os
quais ele pode colher a safra do rio com maior deleite. ( PHILOSTRATUS, 1931, p.98, acréscimos da autora).
O texto sobre a Festa de Ana Perene, nos Fastos, menciona em
algumas passagens:
[...]
O povo vem, bebe deitado em verdes ervas,
E cada qual recosta com seu par.
[...]
Ao sol e ao vinho eles se aquecem, pedem de anos
O número de cálices que bebem.
[...]
Cantam ali o que aprenderam nos teatros,
E acompanham com mímica as palavras.
[...]
Deposto o cráter, rudes coros são dançados
[...]
(OVÍDIO, Fastos, III, 525-537)
A música, o canto e a dança são inseparáveis do culto de Dioniso
e figuram com destaque na representação de Ticiano. A ondulação dos
tecidos das vestes não apenas reforça, mas intensifica as ideias de dança
e de movimento, em geral, que caracterizam o conjunto. Reforça, também, a presença da música. As mulheres com roupas contemporâneas
em primeiro plano [Figura 4] têm flautas e uma partitura com o trecho
de uma canção em francês que diz: “[...] quem bebe e não bebe mais,
não sabe o que é beber” (SAXL, 1989, p. 199).
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
A obra tem uma organização espacial complexa, em vários planos, onde há ações diversas acontecendo simultaneamente. Sobre esta
disposição, os textos não dizem muito, portanto é justo atribuir a solução compositiva que definiu a hierarquia da visibilidade à Ticiano.
Nem todos os personagens mitológicos descritos por Filóstrato
estão presentes. Na verdade, o artista suprimiu a grande maioria. Filóstrato menciona: os deuses dos rios: Aquelôo, Peneu e Páctolo; os
Tritãos, os Sátiros, as Bacantes, os Silenos, as personificações Como e
Gelos, e o Deus, Dioniso.
O deus rio [Figura 5]– o único que Ticiano representa entre os
três mencionados por Filóstrato – encontra-se sem nenhum atributo,
reconhecível apenas porque está deitado sobre num leito de cachos de
uva, rodeado por parreiras; deitado, nu, ao longe e, ao que parece, completamente embriagado e absorto em relação ao restante da cena. Não
apresenta nem um único traço da dignidade esperada de um deus. É
apenas um humano, idoso e entregue aos efeitos do vinho.
Não há tritões, ou sátiros, ou Silenos; nem mesmo Como ou Gelos – as personificações da orgia e do riso – são identificáveis. Ticiano
também não representa Dioniso, o deus de onde flui todo o deleite e
alegria, em função da transformação da água do rio em vinho, central
para o tema da pintura. Aparentemente somente seus efeitos sobre os
participantes são retratados.
É possível identificar características mais genéricas: “os homens
coroados com hera e briônia”; “esposas e crianças” e “pessoas dançando”. Fritz Saxl viu na figura barbada meio cambaleante, vestida de
amarelo, o indício de uma dança solitária, ao deus Dioniso; neste trabalho, acredita-se que a postura se relacione mais à instabilidade e ao
desequilíbrio esperado de um estado de embriaguez.
Existe uma espécie de divisão entre personagens vestidas – algumas com roupas contemporâneas – e um grupo de personagens nus à
esquerda que, a julgar pelos tipos de algumas das jarras que carregam
(hídrias e crateras), recolhem água (provavelmente para misturar ao vinho, conforme era costume na Antiguidade) [Figura 6]. Desempenham
as ações atribuídas por Filóstrato aos Tritões. Embora não demonstrem
os atributos esperados dos sátiros, talvez Ticiano tenha pensado neles
como o tíaso de Dioniso, auxiliando na festa, recolhendo o vinho do
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rio, transportando-o, bebendo direto de grandes jarras, e servindo aos
demais, uma vez que toda a interpretação é muito mais humana que
mitológica.
A figura feminina nua adormecida em primeiro plano teria sido
uma solicitação do comitente [Figura 7]. No contexto da obra, a posição
também faz referência ao sono decorrente da embriaguez. Esta figuração seria uma “resposta” à figuração de Giovanni Bellini da Vesta, no
Festim dos Deuses, que não teria agradado Alfonso e que ele teria pedido a Bellini que alterasse o caimento do tecido a fim de deixar a figura
mais sensual. Apesar das alterações, a representação de Billini continua
pouco sensual, principalmente quando comparada à figura feminina
pintada por Ticiano, em primeiro plano (HALE, 2012).
De fato, A Bacanal dos Andros apresenta bem menos figuras mitológicas identificáveis do que Baco e Ariadne. O que se vê na imagem
são os personagens humanos, vários vestidos com roupas contemporâneas, representados em estágios e reações diversas decorrentes dos
efeitos do vinho. O único deus, o Deus Rio, é representado despido de
toda a sacralidade, o que nos lembra uma característica da comédia,
(na qual, segundo Robortello, nada é sagrado, nem mesmo os deuses)...
as atitudes de todos expõem as relações e reações comuns entre os homens, sem idealizações ou aprimoramentos, às vezes até enfatizando
estados anormais, de pouco autocontrole, outra característica relacionável à comédia. O conjunto é inquieto, a movimentação das personagens
é exagerada, suas posturas estão fora do “eixo”, instáveis, características de estados de embriaguez.
A personagem à esquerda, com a calça amarela atrás da árvore
veste roupas características de Ferrara [Figura 8]: há quem defenda que
ele estava presente mas não podia ver nada, porque a bacanal estaria
acontecendo num domínio não visível aos humanos (JAFFÉ, 2003b),
outros defendem que ele é um habitante local presenciando a cena. Neste trabalho, em função do alinhamento com o já mencionado artifício
de Ariosto, será defendido que ele é, de fato, um habitante, e que está
realmente presente na cena, que no geral, é muito mais humana do que
mitológica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Embora as ações sejam as esperadas para uma bacanal, a interpretação de Ticiano as traz para o aqui e agora, retratando personagens
“reais”. As ações nas cenas têm caráter “vivido”, e não evocado, e parece que alguns dos pressupostos da comédia podem ter sido levados em
conta na figuração mais naturalista do texto de Filóstrato.
Terísio Pignatti parece concordar com uma influência da linguagem cênica da comédia sobre as figurações. Com relação às duas Bacanais (Bacanal dos Andros e Baco e Ariadne), comentou que em Ticiano:
[...] o pastoral, o encontro poético de música sentimento e natureza, é transformado em uma festa agressiva de figuras femininas e masculinas, mais de acordo com o teor erótico do século
XVI, da comédia de Calmo a Ruzzante, do que da contemplatividade refinada de Bembo [...] (PIGNATTI, 1979, p. 19).
No início desta comunicação, uma citação de Caroli e Zuffi também já haviam permitido conjecturar sobre a possibilidade desta influência, ao sugerirem que a familiaridade com a mise em scène e com a
mímica dos atores poderia ter sugerido a Ticiano soluções peculiares
para suas composições.
Ainda com relação ao contato quase permanente de Ticiano com
o universo das artes cênicas, é relevante mencionar que Ariosto, Aretino
e Dolce, todos muito próximos ao artista, foram dramaturgos e escreveram comédias e sátiras; e que Sebastiano Serlio – também próximo
ao artista – estudou os tipos de cenários relacionando-os aos gêneros
cômico, trágico e satírico, e que Ticiano esteve a par de suas reflexões
e realizações.
Ainda que esta seja uma investigação preliminar, reproduzida em
termos muito sumários em função do tempo do espaço disponível, parece haver indícios que permitem defender a existência de uma influência da linguagem corporal das artes cênicas sobre as representações
mitológicas de Ticiano para o Gabinete de Alabastro de Alfonso d’Este.
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Imagens:
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World of Titian. Nederland: Time-Life International, 1972.
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Figura 2: Giovanni BELLINI, e TICIANO. Festim dos deuses.
1514/1529. Óleo sobre tela. 170.2 x 188 cm. Galeria Nacional. Londres.
https://www.nga.gov/collection/art-object-page.1138.html
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Figura 3: TICIANO. Bacanal dos Andros. 1523-24. Óleo sobre tela.
175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org
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Figura 4: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe com instrumentos e partitura. 152324. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org
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Figura 5: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhes com o Deus Rio: 1523-24. Óleo
sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org
Figura 6: Detalhes das figuras femininas para comparação. Em cima: Giovanni
BELLINI, e TICIANO. Festim dos deuses. 1514/1529. Óleo sobre tela. 170.2 x
188 cm. Galeria Nacional. Londres. https://www.nga.gov/collection/art-objectpage.1138.html e embaixo: TICIANO. Bacanal dos Andros. 1523-24. Óleo
sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org
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Figura 7: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe: Possível Tíaso de Dioniso. 152324. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org.
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Figura 8: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe da personagem com
roupa da moda contemporânea de Ferrara. 1523-24. Óleo sobre tela. 175
x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org.
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O RESTAURO DA PINACOTECA DO ESTADO
DE SÃO PAULO E AS INTERVENÇÕES
DE PAULO MENDES DA ROCHA EM
EDIFÍCIOS DE INTERESSE HISTÓRICO
Autor: Tarcisio A. da Silva275 – E-mail: tarcisio.antonio@unifesp.br
Resumo: A pesquisa se propõe a estudar o restauro da Pinacoteca do
Estado de São Paulo, de autoria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha
e do escritório de arquitetura Ricoy Torres e Colonelli, e relacionar as
obras de intervenção de Mendes da Rocha em arquiteturas preexistentes por meio de sua atuação no campo do restauro. A Pinacoteca do
Estado de São Paulo ocupa o edifício que foi, originalmente, a sede do
Liceu de Artes e Ofícios, de autoria do escritório do arquiteto Ramos
de Azevedo. Os trabalhos de intervenção em arquiteturas de interesse
histórico do arquiteto Paulo Mendes da Rocha remontam aos anos 70.
Entre os primeiros trabalhos estão o projeto da Fazenda Ipanema para
a implantação do Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA)
e o projeto de intervenção da Casa das Retortas para a Companhia de
Gás de São Paulo – COMGAS. Nos dois projetos Paulo trabalhou em
parceria com Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), que dedicou sua
carreira à defesa do patrimônio cultural seja na academia ou seja em
órgãos de preservação. A compreensão da forma com que Paulo Mendes da Rocha propõe a interlocução entre as novas e as antigas estruturas, a metodologia projetual que o arquiteto utiliza quando trata de
projetos de restauro, as parcerias profissionais que Paulo estabeleceu
durante a elaboração de tais projetos e as discussões acerca do restauro
são fundamentais para um melhor entendimento sobre a sua produção
arquitetônica quando a mesma trata de intervenções em arquiteturas
275 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado em andamento intitulada “O restauro
da Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Octógono como espaço expositivo”, orientada pela
Profa. Dra. Manoela Rossinetti Rufinoni desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O autor
é arquiteto e urbanista titulado pela Universidade Paulista (UNIP) e atualmente também cursa a
graduação em História da Arte na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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preexistentes de interesse histórico.
Palavras-chave: Restauro, História da Arquitetura, Patrimônio, Arquitetura, Arte.
Abstract: The research proposes to study the restoration of the Pinacoteca do Estado de São Paulo, authored by the architect Paulo Mendes
da Rocha and the architecture office Ricoy Torres e Colonelli, and relate
the works of intervention by Mendes da Rocha in preexisting architectures through its performance in the field of restoration. The Pinacoteca
do Estado de São Paulo occupies the building that was, originally, the
headquarters of the Liceu de Artes e Ofícios, designed by the office of
architect Ramos de Azevedo. The intervention works in architectures
of historical interest by the architect Paulo Mendes da Rocha date back
to the 70s. Among the first works are the Ipanema Farm project for the
implantation of the Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA)
and the intervention project for Casa das Retortas for the Companhia de
Gás de São Paulo – COMGAS. In both projects, Paulo worked in partnership with Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), who has dedicated
his career to the defense of cultural heritage, whether in academia or in
preservation agencies. The understanding of the way in which Paulo
Mendes da Rocha proposes the dialogue between the new and the old
structures, the design methodology that the architect uses when dealing
with restoration projects, the professional partnerships that Paulo established during the elaboration of such projects and the discussions
about restoration are fundamental for a better understanding of its architectural production when it deals with interventions in pre-existing
architectures of historical interest.
Keywords: Restoration, History of Architecture, Heritage, Architecture, Art.
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INTRODUÇÃO
Os projetos de intervenção em preexistências de autoria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha remontam aos anos 70. Apesar de menos
destacado quando comparado ao restante de sua produção arquitetônica, esse campo de trabalho adotado logo no início de sua carreira
representa grande parte de seu trabalho. O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA) na Real Fábrica de Ferro de São
João de Ipanema em Iperó, de 1976276, e o projeto para a nova sede da
Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS, na Casa das Retortas,
em São Paulo, de 1977277, serão analisados em paralelo com o projeto
da Pinacoteca do Estado de São Paulo, também na cidade São Paulo, de
1993278, devido à importância desses trabalhos na carreira do arquiteto,
pela relação proposta com o patrimônio edificado e devido às parcerias
profissionais de Paulo Mendes da Rocha nesses projetos.
1. PAULO MENDES DA ROCHA E SEUS PROJETOS DE
INTERVENÇÃO
Nascido em Vitória no ano de 1928, Paulo Mendes da Rocha concluiu o curso de arquitetura em 1954 na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, cidade em que se estabeleceu profissionalmente279. Além de exercer o ofício de arquiteto, Mendes da Rocha lecionou
na Faculdade de Arquitetura da USP a partir de 1961 e também recebeu
diversos prêmios internacionais devido a sua produção arquitetônica,
como o Prêmio Pritsker em 2006280. Entre suas obras de destaque estão
276 ROCHA, Paulo Mendes da. Centro Nacional de Engenharia Agrícola Fazenda Ipanema –
Iperó – SP. Revista Módulo, n. 46. Rio de Janeiro: Editora Módulo, 1977, p. 50.
277 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito
ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 49.
278 PAULO Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli: Reforma, restauro e adaptação da Pinacoteca, São Paulo. Revista Projeto, São Paulo, n. 220, mai. 1998. Disponível em: <https://
revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-e-eduardo-colonelli-reforma-restauro-e-adaptacao-da-pinacoteca-sao-paulo/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
279 CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANSIMO – CAU. O pai engenheiro e Vilanova
Artigas, esteios da formação do arquiteto. Disponível em: <https://www.caubr.gov.br/paulomendesdarocha/?page_id=32>. Acesso em: 01 abr. 2022.
280 PRITSKER PRIZE. The Pritsker Architecture Prize. Disponível em: <https://www.pritzkerprize.com/laureates/2006>. Acesso em: 01 abr. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
557
o Ginásio do Clube Atlético Paulistano281; a Casa Gerassi282; e o MuBE
– Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia283. Apesar de extensa, é
menos divulgada e estudada a produção de Paulo Mendes da Rocha que
dialoga com o patrimônio edificado. Na Tabela 1 estão relacionados, de
forma preliminar, os projetos que possuem a autoria atribuída a Mendes da Rocha que se interligam com restauro, patrimônio e memória,
totalizando, assim, 40 projetos. Além disso, estão descritos também a
relação de parceiros profissionais que participaram de tais projetos e o
local onde se encontram os trabalhos. Foram utilizadas fontes diversas
para compor a lista, como sites de parceiros profissionais de Mendes
da Rocha e a publicação de projetos em revistas e sites especializados.
Tabela 1: Relação dos projetos de intervenção em preexistências de Paulo Mendes da Rocha
Id.
Projeto
1
Centro Cultural Georges
Pompidou (Beaubourg)284
2
3
Reurbanização da região
da Grota do Bexiga285
CENEA (Centro Nacional
de Engenharia Agrícola)286
Data
Parceiros
Local
Tipo de
Projeto
1971
Abrahão Sanovicz,
Osvaldo Corrêa
Gonçalves e Cláudio
Gomes
Paris, França
Intervenção
em sítio
histórico
1974
Flávio Motta, José
Cláudio Gomes, Benedito Lima de Toledo,
M. Ruth do Amaral
Sampaio, Samuel Keer,
Koiti Mori e Klara
Kaiser
São Paulo / SP
Intervenção
em sítio
histórico
1976
Antônio Luiz Dias
de Andrade (Janjão),
Roberto Leme Ferreira,
Cesar Luiz Mazzacorati e Roberto Burle
Marx
Iperó / SP
Intervenção
em sítio
histórico
281 ARTIGAS, Rosa. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 80.
282 Ibidem, p. 178.
283 Ibidem, p. 86.
284 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 263.
285 Ibidem, p. 263.
286 Ibidem, p. 264.
558
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
4
Sede da COMGÁS287
1977
Antônio Luiz Dias
de Andrade (Janjão),
Roberto Leme Ferreira
e Cesar Luiz Mazzacorati
5
Biblioteca Pública do Rio
de Janeiro288
1984
Eduardo Colonelli
Eduardo Aquino
Rio de Janeiro
/ RJ
Intervenção
em sítio
histórico
6
Urbanização e conjunto
de habitações na área do
antigo Hospital Padre
Bento289
1986
-
Guarulhos / SP
Intervenção
em sítio
histórico
Campos do
Jordão / SP
Intervenção
em sítio
histórico
São Paulo / SP
Restauro e
intervenção
São Paulo / SP
Restauro e
intervenção
7
Capela de São Pedro290
1988
Eduardo Colonelli,
Alexandre Delijaicov,
Carlos José Dantas
Dias e Geni Takeuchi
Sugai
8
Ampliação do Teatro Oficina - Uzina Uzona291
1991
-
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
9
Renovação Urbana Praça
do Patriarca e Viaduto do
Chá292
1992
Eduardo Colonelli,
Katia Pestana, Marcelo
Laurino, Giancarlo
Latorraca, Silvio Oksman, Martin Corullon
e Luciana Fukimoto
Itikawa
10
Pinacoteca do Estado de
São Paulo293
1993
Escritório Ricoy Torres
e Colonelli
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
11
Terminal rodoviário Parque Dom Pedro II294
1996
MMBB
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
12
Centro Cultural SESI no
Edifício FIESP295
1996
MMBB
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
13
Sede do Centro Geral do
Sistema de Vigilância da
Amazônia em Brasília296
1998
MMBB
Brasília /
DF
Intervenção em
sítio histórico
287 Ibidem, p. 264.
288 Ibidem, p. 265.
289 Ibidem, p. 265.
290 Ibidem, p. 265.
291 Ibidem, p. 266.
292 Ibidem, p. 266.
293 Ibidem, p. 267.
294 Ibidem, p. 267.
295 Ibidem, p. 267.
296 MMBB. CCG SIVAM. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/view/42>.
Acesso em: 01 abr. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
559
14
Casa da Música297
1999
-
Porto,
Portugal
Intervenção em
sítio histórico
15
OCA (Pavilhão de Exposições Lucas Nogueira
Garcez)298
2000
MMBB
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
16
Museu da Língua Portuguesa299
2000
Pedro Mendes da
Rocha
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
17
Piscina da Praça da República300
2001
-
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
18
Escola de Cinema Darcy
Ribeiro301
2001
Martin Corrullon
Rio de Janeiro / RJ
Restauro e
intervenção
19
Monumento Rodoanel302
2001
MMBB
São Paulo
/ SP
Monumento
20
Paço da Alfândega303
2001
MMBB
Recife / PE
Restauro e
intervenção
21
Fachada do Banco Safra
S/A, Agência Augusta304
2002
Eduardo Colonelli
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
22
SESC 24 de Maio305
2002
MMBB
São Paulo
/ SP
Restauro e
intervenção
23
Residência em Florença306
2003
MMBB
Florença,
Itália
Restauro e
intervenção
297 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 268.
298 MMBB. Oca, Parque do Ibirapuera. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/
view/38>. Acesso em: 01 abr. 2022.
299 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269.
300 ITAÚ CULTURAL. Proposta para a Praça da República. Disponível em: <https://www.
itaucultural.org.br/ocupacao/paulo-mendes-da-rocha/concepcao-de-cidade/>. Acesso em: 01
abr. 2022.
301 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269.
302 MMBB. Monumento Rodoanel. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/
view/62>. Acesso em: 01 abr. 2022.
303 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269.
304 Ibidem, p. 270.
305 Ibidem, p. 270.
306 MMBB. Residência em Florença. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/
view/49>. Acesso em: 01 abr. 2022.
560
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
24
Museu de Belas Artes do
Rio de Janeiro307
2005
Metro Arquitetos
Rio de Janeiro / RJ
Restauro e
intervenção
25
Capela de Nossa Senhora
da Conceição308
2005
Escritório Paulistano
de Arquitetura
Recife / PE
Restauro e
intervenção
26
Engenho Central de
Piracicaba309
2005
José Armênio de Brito
Cruz, André Dias Dantas, Fabiana Terenzi
Stuchi e Joana Maia
Rosa Rojo
Piracicaba
/ SP
Restauro e
intervenção
27
Museu das Minas e do
Metal310
2006
Pedro Mendes da
Rocha e Escritório B
Arquitetos
Belo
Horizonte /
MG
Restauro e
intervenção
28
Casa Daros311
2006
Pedro Mendes da
Rocha, B Arquitetos e
Maria Regina Pontin
de Mattos
Rio de Janeiro / RJ
Restauro e
intervenção
29
Universidade de Cagliari312
2007
MMBB
Cagliari,
Itália
Intervenção em
sítio histórico
30
Museu dos Coches313
2008
MMBB
Lisboa,
Portugal
Intervenção em
sítio histórico
31
Casa Quelhas314
2010
Inês Lobo
Lisboa,
Portugal
Restauro e
intervenção
307 RIOS, Maria Francisco. Intervenção na Preexistência - O projeto de Paulo Mendes da
Rocha para Transformação do Educandário Santa Teresa em Museu de Arte Contemporânea.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo. Orientação:
Helena Aparecida Ayoub Silva. São Paulo, 2013, p. 42.
308 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 270.
309 CAMPAGNOL, Gabriela. Redefinindo o espaço do açúcar: Patrimônio, reutilização e arquitetura industrial. In: VI COLÓQUIO LATINO-AMERICANO SOBRE RECUPERAÇÃO
E PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL, 2012, São Paulo. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/VI_coloquio_t1_redefinindo_espaco.
pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
310 MELENDEZ, Adilson. Paulo e Pedro Mendes da Rocha: Museu das Minas e do Metal.
Revista Projeto, n. 366, São Paulo, 2010. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/
paulo-mendes-rocha-pedro-mendes-rocha-museu-belo-horizonte-13-10-2010/>. Acesso em:
01 abr. 2022.
311 RIOS, Maria Francisco. Intervenção na Preexistência - O projeto de Paulo Mendes da
Rocha para Transformação do Educandário Santa Teresa em Museu de Arte Contemporânea.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo. Orientação:
Helena Aparecida Ayoub Silva. São Paulo, 2013, p. 51.
312 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 270.
313 Ibidem, p. 270.
314 INÊS LOBO. Quelhas House. Disponível em: <https://www.ilobo.pt/Quelhas.html>. Acesso em: 01 abr. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
561
32
MAM Santos315
2010
Metro Arquitetos
Santos / SP
Intervenção em
sítio histórico
33
Nova Pinacoteca316
2011
Eduardo Colonelli
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
34
Axel Springer317
2013
Metro Arquitetos
Berlim,
Alemanha
Intervenção em
sítio histórico
35
Museu de Arte Contemporânea de Ouro Preto318
2014
-
Ouro Preto
/ MG
Restauro e
intervenção
36
Sous-Station Voltaire319
2015
MMBB
Paris,
França
Restauro e
intervenção
37
Museu do Século 20320
2015
Metro Arquitetos
Berlim,
Alemanha
Intervenção em
sítio histórico
38
Parque Ibirapuera321
2016
-
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
39
Banco Trianom322
2018
Nadezhda Rocha
São Paulo
/ SP
Intervenção em
sítio histórico
40
Monumento Lastras323
2020
Nadezhda Rocha
Tijucas /
SC
Monumento
Na Tabela 1 os projetos foram subdivididos nas seguintes categorias: “restauro e intervenção” que contempla os projetos em que um
prédio preexistente e historicamente importante sofreu alguma inter315 METRO ARQUITETOS. MAM Santos, Santos, 2010. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/mam-santos-santos-2010/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
316 ROCHA, Paulo Mendes da; COLONELLI, Eduardo. Pinacoteca do Estado - Ampliação.
Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca do Estado de São Paulo, jun. 2011.
317 METRO ARQUITETOS. Axel Springer, Berlin, 2013. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/axel-springer-berlim-2013/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
318 CALDAS, Bruno Tropia. Paulo Mendes da Rocha, poesia de uma linha só: o Museu de Arte
Contemporânea de Ouro Preto. In: 5º SEMINÁRIO INTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E
ARQUITETURA DE MUSEUS, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA 2016, Rio de Janeiro, p. 1.
319 SERAPIÃO, Fernando; CONSÓRCIO URBEM/TRITYQUE. Sous-station Voltaire. Revista Monolito, n. 32, São Paulo: Editora Monolito, 2016. Pag. 65.
320 METRO ARQUITETOS. Museum of 20th Century, Berlim, 2015. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/museum-of-20th-century-berlim-2015/>. Acesso em: abr.
de 2022.
321 PAULO Mendes da Rocha encabeça reforma do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Revista
Projeto. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-rocha-encabeca-reforma-ibirapuera/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
322 SAI do papel Banco Trianon, de Nadezhda e Paulo Mendes da Rocha. Revista Projeto.
Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/noticias/sai-do-papel-banco-trianon-de-nadezhda-e-paulo-mendes-da-rocha/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
323 ARCHTRENDS Summit: os melhores momentos do tributo a Paulo Mendes da Rocha.
Archtrends. Disponível em: <https://archtrends.com/blog/tributo-a-paulo-mendes-da-rocha/>.
Acesso em: 01 abr. 2022.
562
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
venção do arquiteto, os projetos descritos como “intervenção em sítio
histórico” correspondem às obras inseridas em contextos urbanos historicamente reconhecidos e os projetos classificados como “monumento”
são obras que dialogam com um sentido memorial da arquitetura e da
história.
Durante os anos 70, Paulo estabelece parceria com Antônio
Luiz Dias de Andrade em alguns de seus primeiros projetos de intervenção. “Janjão” como era conhecido, dedicou grande parte da sua carreira profissional à defesa do patrimônio na atuação junto ao CONDEPHAAT e ao IPHAN324.
2. AS INTERVENÇÕES: CENEA, COMGÁS E PINACOTECA
O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola –
CENEA e o projeto para a Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS foram selecionados por serem alguns dos primeiros trabalhos relacionados ao patrimônio com que Paulo Mendes da Rocha teve contato
ainda quando jovem. Além disso, os projetos têm a contribuição do
arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade como colaborador. O projeto
da Pinacoteca do Estado de São Paulo é um projeto de destaque na trajetória do arquiteto pelo reconhecimento que Paulo Mendes da Rocha
recebe no campo do restauro.
2.1 CENTRO NACIONAL DE ENGENHARIA AGRÍCOLA –
CENEA
O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola –
CENEA compõe o conjunto arquitetônico histórico da Real Fábrica de
Ferro São João do Ipanema que se localiza na cidade de Iperó / SP. O
início da construção do conjunto data do ano de 1811325, e o seu tomba324 TOLEDO, Benedito Lima de. Janjão, um patrimônio da nossa memória. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n.8. São Paulo: FAUUSP,
2000, p. 254.
325 INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICM
BIO. Floresta Nacional de Ipanema: Patrimônio Histórico e Arqueológico, 2020. Disponível em: <https://www.icmbio.gov.br/flonaipanema/images/stories/Encarte_Hist%C3%B3ri-
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
563
mento por parte do IPHAN ocorreu no ano de 1964, tornando-se, assim,
o primeiro exemplar da arquitetura industrial brasileira que obteve algum tipo de proteção por parte do estado326. Já o tombamento ex-officio pelo CONDEPHAAT ocorreu no ano de 1974327. A Real Fábrica de
Ferro São João do Ipanema, localizada na Floresta Nacional de Ipanema, foi construída para ser um complexo industrial pioneiro no Brasil
destinado ao desenvolvimento da metalurgia328. Entre os anos de 1963
e 1967, o arquiteto Luís Saia, chefe da regional paulista do IPHAN,
concebeu o restauro do conjunto construído da Real Fábrica de Ferro
São João do Ipanema visando somente à preservação dos prédios mais
deteriorados329. Em 1970, Paulo Mendes da Rocha foi contratado para
desenvolver o plano de ocupação da Fazenda Ipanema para o Centro
Nacional de Engenharia Agrícola – CENEA. O conjunto arquitetônico possui diversas edificações dispersas entre si construídas em períodos diferentes, e o programa arquitetônico está dividido em seis áreas:
histórica e cultural; intermediária; habitacional; clube; laboratórios e
oficinas; e a área destinada à administração e ao ensino330. O projeto
completo não foi levado a termo. Sendo assim, os únicos prédios efetivamente construídos por Paulo Mendes da Rocha para o CENEA foram
o edifício do alojamento e o edifício administrativo331.
co_2020.cdr.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
326 KUHL, Beatriz Mugayar. Algumas questões relativas ao patrimônio industrial e à sua
preservação. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/algumas_questoes_relativas_ao_patrimonio.
pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
327 SÃO PAULO (Estado), CONDEPHAAT. Processo de Tombamento n. 00372/73. Resolução de tombamento Ex-Officio em 11/09/1974 (Sem Publicação no D.O.E.). Livro do Tombo
Histórico: Nº inscr. 88, p. 10, 11/9/1974.
328 SANTOS, Nilton Pereira dos. A fábrica de ferro São João de Ipanema: economia e política
nas últimas décadas do Segundo Reinado (1860-1889). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade de São Paulo. Orientação: Miriam Dolhnikoff. São Paulo, 2009, p. 19.
329 FERREIRA, Camila Corsi. Luís Saia e o restauro da Real Fábrica de Ferro Ipanema em
Iperó / SP. Revista Restauro, São Paulo, v. 4, n. 7, 2020. Disponível em:
330 RODRIGUES, Júlio Cezar Macedo; SOUZA, Gisela Barcellos de. Requalificação da Floresta Nacional de Ipanema: análise do projeto parcialmente executado de
Paulo Mendes da Rocha. In: 7º seminário do Do.co.mo.mo Brasil, 2007, p. 3.
331 RODRIGUES, Júlio Cezar Macedo; SOUZA, Gisela Barcellos de. Requalificação da Floresta Nacional de Ipanema: análise do projeto parcialmente executado de
Paulo Mendes da Rocha. In: 7º seminário do Do.co.mo.mo Brasil, 2007, p. 12.
564
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
2.2 COMPANHIA DE GÁS DE SÃO PAULO – COMGÁS
A Casa das Retortas faz parte do Complexo do Gasômetro na
cidade de São Paulo. Sua construção data do ano de 1870, e o ano da
intervenção proposta por Paulo Mendes da Rocha é 1977 332. O tombamento da Casa das Retortas por parte do CONDEPHAAT ocorreu
no ano de 2010333, e o tombamento ex-officio pelo CONPRESP se deu
no ano 2012334. O complexo industrial construído pela The São Paulo
Gas Company era dedicado à produção de gás destinado à iluminação
da cidade de São Paulo. Em 1968 a prefeitura expropriou o imóvel e o
destinou para uso da Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS. Durante os anos 70, as atividades na Casa das Retortas são completamente
desativadas, e o prédio, abandonado. Assim, foi encomendado o projeto
de intervenção da Casa das Retortas para o arquiteto Paulo Mendes da
Rocha para a Sede da COMGÁS.
O arquiteto, então, utiliza-se da principal edificação do conjunto para o atendimento ao público. Novas edificações destinadas ao
uso administrativo da COMGÁS são propostas, compondo um conjunto construído com as edificações históricas, que, devido a sua monumentalidade, destacam-se na paisagem urbana da cidade de São Paulo.
É notável a ênfase dada pelo arquiteto quando se refere à intervenção como um pensamento que está de acordo e alinhado às discussões acerca do patrimônio, referindo-se àquilo que consta das cartas
patrimoniais emitidas pelos órgãos internacionais ICOMOS e UNESCO335. Ainda que não citada diretamente por Mendes da Rocha, a Carta
de Veneza336 é o documento máximo quando se trata da conservação e
preservação do patrimônio histórico.
332 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 49.
333 Número do Processo: 46662/03-Vol1. Resolução de Tombamento: Resolução SC 20, de
26/03/2010.
334 Resolução de Tombamento: Resolução 09/12.
335 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito
ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 50.
336 CARTA DE VENEZA. In: Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, 1964. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%20
1964.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
565
Somente parte da intervenção proposta por Paulo Mendes da
Rocha para a Casa das Retortas foi concluída337. Atualmente encontra-se em andamento o projeto para o Museu do Estado de São Paulo, que
tem autoria do filho de Paulo, o arquiteto Pedro Mendes da Rocha338.
2.3 PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
A Pinacoteca do Estado de São Paulo foi construída pelo escritório de Ramos de Azevedo com desenho de Domiziano Rossi, inicialmente para ser a sede do Liceu de Artes e Ofícios. Sua construção se
inicia no ano de 1885 e é finalizada no ano de 1900339. É tombada pelo
CONDEPHAAT em 1987340, pelo CONPRESP em 1991 (tombamento
ex-officio)341 e pelo IPHAN em 2016 como parte do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Bairro da Luz342.
As constantes mudanças de uso descaracterizaram a arquitetura original do prédio projetado pelo escritório de Ramos de Azevedo. Assim, durante os anos 90, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha foi
contratado para a intervenção na Pinacoteca343. Uma das principais mudanças foi a nova entrada principal, até então à Avenida Tiradentes344.
337 MEMÓRIA: Casa das Retortas. Revista Projeto, 2007. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/memoria-casa-das-retortas-01-09-2007/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
338 ROCHA, Pedro Mendes da. Arquitetura de Museus. In: WORKSHOP ARQUITETURA
E TÉCNICAS MUSEOGRÁFICAS 2016 - ICAMT. Disponível em: <https://icamt.mini.icom.
museum/wp-content/uploads/sites/13/2019/01/PALESTRA_04_Pedro_Mendes_da_Rocha.
pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
339 UMA instituição benemérita: O Lyceu de Artes e Officios: Seu historico – Trium-
pho da iniciativa particular – 800 a 900 alunos beneficiados. O Estado de S. Paulo.
São Paulo, 2 ago. 1910.
340 SÃO PAULO (Estado), CONDEPHAAT. Processo de Tombamento n. 00215/79
e 00341/73 (Acervo). Resolução de Tombamento 24 de 05/05/1982.
341 SÃO PAULO (Município), CONPRESP. Resolução de tombamento 05, de
05/04/1991.
342 INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL –
IPHAN. Processo n. 1.463-T-00. Livro Histórico - Volume 3 Fl. 135 / Inscrição 707.
343 SÃO PAULO (Estado). Pinacoteca do Estado: A História de um Museu. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2007, p. 89.
344 PAULO Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli: Reforma, restauro e adaptação
na Pinacoteca, São Paulo. Revista Projeto, n. 220. São Paulo, 1998. Disponível em:
<https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-e-eduardo-colonelli-reforma-restauro-e-adaptacao-da-pinacoteca-sao-paulo/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
As passarelas que atravessam os vazios laterais criam uma nova lógica
de circulação, e o elevador que permite a circulação vertical dos visitantes da Pinacoteca. O teto de vidro que recobre os pátios laterais cria
um espaço de articulação no projeto de Ramos de Azevedo. O espaço
Octógono, no primeiro pavimento, é utilizado como área expositiva e
é recoberto por um teto de vidro que permite que a luz solar adentre a
Pinacoteca. Por fim, um auditório foi constituído no pavimento térreo
do Octógono.
2.4 APROXIMAÇÃO ENTRE AS INTERVENÇÕES
Em alguns dos primeiros projetos de intervenção nos anos 70,
Janjão, especialista em patrimônio histórico, era parceiro profissional
de Paulo Mendes da Rocha; enquanto que, na Pinacoteca, a equipe de
Paulo era composta por arquitetos. Tal dado pode explicar as justificativas projetuais que estão apoiadas nas recomendações dos órgãos
de proteção do patrimônio internacionais na intervenção da Casa das
Retortas, que teve a colaboração de Janjão, e a não utilização das mesmas recomendações nas justificativas relativas à Pinacoteca, que são
embasadas na estabilização da edificação, no ajuste da implantação e
na criação de novos espaços.
Os projetos em colaboração com Janjão também possuem
grandes magnitudes, com intervenção em sítios históricos de origem industrial e com a proposição de novas edificações. Na Pinacoteca a intervenção é menor, não inclui a construção de novas edificações, ficando
mais restrita ao interior do prédio existente. Os usos propostos para dois
dos primeiros projetos de intervenção em preexistências de Paulo são
muito distintos dos usos iniciais para os quais as edificações existentes
foram construídas, que era o uso industrial. No caso do Centro Nacional
de Engenharia Agrícola - CENEA, construções de diversos usos foram
propostas para compor o funcionamento do órgão. A Casa das Retortas,
que também foi concebida para o uso industrial, foi destinada a um uso
administrativo da Companhia de Gás de São Paulo - COMGÁS. O uso
da Pinacoteca é o que mais se aproxima ao uso original da construção,
que foi o de ensino.
Ao observar a Tabela 1, após os projetos do CENEA e da
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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COMGÁS, a produção do arquiteto passou por um período de queda
na quantidade de projetos que dialogam com o patrimônio edificado,
retomada anos depois com a construção da Capela de São Pedro, em
Campos do Jordão, em 1988345.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o CENEA, Paulo propôs um grande número de edificações integradas ao conjunto histórico construído, e para a COMGÁS,
um projeto de restauro para o conjunto histórico fabril construído acrescentado de novas edificações. A não conclusão dessas obras projetadas
durante os anos 70 pode ter feito com que Paulo Mendes da Rocha se
voltasse a outro tipo de produção arquitetônica, distanciando-se, dessa
forma, de projetos que dialoguem com o patrimônio histórico e, consequentemente, da parceria profissional estabelecida com Janjão.
Por meio do levantamento dos dados apresentados no decorrer do presente estudo e considerando os momentos vividos por Paulo
Mendes da Rocha em sua carreira, observa-se um grande aumento no
número de trabalhos relacionados ao campo do restauro e das intervenções em preexistências após a intervenção realizada na Pinacoteca em
1996. É possível, então, identificar, a partir disso, um marco na carreira
do arquiteto, que se tornou uma referência não só no campo da arquitetura, mas também quando se trata de intervenções em construções
preexistentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARCHTRENDS Summit: os melhores momentos do tributo a Paulo
Mendes da Rocha. Archtrends. Disponível em: <https://archtrends.com/
blog/tributo-a-paulo-mendes-da-rocha/>. Acesso em: 01 abr. 2022.
345 PAULO Mendes da Rocha: Capela de São Pedro, Campos do Jordão, SP. Revista
Projeto, n. 128. São Paulo, 1989. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-capela-de-sao-pedro-campos-do-jordao-sp/>. Acesso em:
01 abr. 2022.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
ARTIGAS, Rosa. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac & Naify,
2000.
CALDAS, Bruno Tropia. Paulo Mendes da Rocha, poesia de uma linha
só: o Museu de Arte Contemporânea de Ouro Preto. In: 5º SEMINÁRIO INTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E ARQUITETURA DE
MUSEUS, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA 2016, Rio de Janeiro.
CARTA DE VENEZA. In: Congresso Internacional de Arquitetos e
Técnicos dos Monumentos Históricos ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, 1964. Disponível em: <http://portal.
iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%20
1964.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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RELAÇÕES ENTRE PINTURA BRASILEIRA
E LITERATURA NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX: APONTAMENTOS INICIAIS
Vitoria Amadio de Oliveira346 – amadio.vitoria@gmail.com
Resumo: Trataremos das relações entre literatura e artes visuais no
Brasil durante o final do século XIX, explorando como tal produção
foi fundamental para criar um diálogo com tendências estrangeiras e
evidenciar um crescente gosto por representações com aspectos contemporâneos que referenciavam obras literárias já consolidadas. Intenciona-se traçar considerações sobre os diálogos estabelecidos entre as
duas instâncias a partir da perspectiva da história da arte, evidenciando
as obras de alguns pintores importantes do período, como Pedro Américo, Rodolpho Amoêdo e Aurélio de Figueiredo. Esta publicação busca
iniciar uma discussão mais ampla sobre a arte baseada em literatura,
através de análises sobre suas funções e suas popularidades. Tais aspectos da pesquisa trarão à tona a hipótese de que a popularização das
pinturas inspiradas pela literatura está relacionada com a flexibilização
dos gêneros artísticos e com as crescentes liberdades que os artistas
experimentavam em seus trabalhos.
Palavras-chave: Pintura brasileira; Literatura; Século XIX.
Relations between Brazilian painting and literature in the second
half of the 19th century: initial notes
346 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Romances em pin-
turas: representações de personagens femininas literárias no Brasil (1880-1920)”,
orientada pela Profa. Dra. Elaine Dias, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa conta com
financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
processo nº 2020/13472-1.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Abstract: We will discuss the relations between literature and visual
arts in Brazil during the late 19th century, exploring how that production was fundamental to create dialogues with foreign tendencies and
demonstrate an ongoing taste for representations with contemporary
aspects that evidenced already canon literary works. We intend to draw
considerations on the dialogues established between the two instances
through the perspective of art history, evidencing the works of important painters from the period, such as Pedro Américo, Rodolpho Amoêdo, and Aurélio de Figueiredo. Such aspects of the research will bring
the hypothesis that the flexibilization of the artistic genres and the crescent liberty experienced by the painters are related to the popularization
of literature-inspired paintings.
Keywords: Brazilian painting; Literature; 19th century.
INTRODUÇÃO
A pintura brasileira da segunda metade do século XIX dentro
do cenário acadêmico possuía uma gama variada de assuntos que lhe
serviram como temática, já que ela era descendente de tradições anteriores consolidadas em países europeus. Dentre esses diversos assuntos,
a literatura foi apenas um dos temas possíveis, utilizada para que se
adequasse com as intenções dos artistas. No Brasil, esse tipo de obra
foi utilizada tanto para explorar um caráter de formação do país quanto
para inserir os artistas dentro da esfera artística mais atual no período.
Abordaremos a seguir algumas minúcias sobre pinturas brasileiras inspiradas por literatura e suas relações com o contexto Oitocentista.
Este texto é uma ramificação da dissertação de mestrado em
andamento que trata sobre algumas personagens femininas literárias estrangeiras que foram representadas por pintores brasileiros, a partir de
comparações de análises das possíveis intenções dos artistas e suas relações com as descrições e narrativas propostas por seus textos de origem.
Nossos objetos de estudo são obras como Francesca da Rimini (1880),
de Aurélio de Figueiredo, Desdêmona (1892), de Rodolpho Amoêdo e
A morte de Virgínia (1905), de Antônio Parreiras. O primeiro capítulo
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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da dissertação, cuja temática origina esta publicação, contextualiza os
objetos de estudo através da proposição de um estudo introdutório sobre pinturas inspiradas em literatura no Brasil no entresséculos XIX e
XX, um exercício que objetiva uma melhor compreensão das condições
que tornaram tais obras possíveis.
É necessário que nos perguntemos se existe alguma coisa em
comum nas pinturas baseadas em literatura, além do fato de se referirem
a um texto. Observaremos se elas abordam assuntos semelhantes ou se
estariam concentradas em um determinado período, por exemplo. Enfatizamos que tais considerações tratam-se de apontamentos iniciais, pois
a vasta produção deste período necessita de estudos que contemplem
uma gama maior de assuntos. Nesta publicação, nos restringiremos a
tratar sobre obras que circularam em exposições públicas, que foram
compradas pelo Estado e/ou que foram feitas por artistas muito presentes na produção do período. Utilizaremos como fonte prioritária os catálogos digitalizados por Carlos Roberto Maciel Levy das Exposições
Gerais de Belas Artes (LEVY, 2003), evento realizado pela Academia
Imperial de Belas Artes que tomava espaço central no cenário artístico
da segunda metade do século XIX. É importante ratificarmos que essa
esfera não resume esse tipo de produção, sendo as obras de circulação
no âmbito privado igualmente relevantes. No mesmo sentido, reiteramos a importância de outros suportes, como gravuras e esculturas, para
esse tipo de produção, embora tais meios não sejam contemplados com
profundidade nesta publicação.
Para fazer jus ao propósito introdutório, devemos delimitar o
que será considerado como uma pintura baseada em literatura. De maneira mais ampla, nos referimos às pinturas que podem ser entendidas
como representações de passagens específicas de livros. São obras que,
através da cena representada e do título (geralmente) nos oferecem um
reconhecimento imediato de uma passagem literária de que tenhamos o
conhecimento prévio. Sendo assim, a pintura pode ser compreendida de
maneira individualizada, mas ela ganha maior densidade quando analisada junto de sua referência anterior. Para este texto, nos limitaremos
às obras que podemos relacionar com uma passagem específica, pois se
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
trata de um gênero muito comum, já que tais pinturas por vezes vinham
acompanhadas de citações ou seus títulos indicavam de qual cena tratavam. Soma-se a isso o fato de que, comumente, vários artistas pintavam
os mesmos temas literários, o que se unia à bagagem do observador e
lhe possibilitava um número ainda maior de conexões.
1. ORIGENS
O que os pintores brasileiros estavam realizando no período só
foi possível em decorrência de uma longa tradição anterior que unia as
duas artes através de comparações e hierarquizações. Uma das primeiras vezes que a ideia de as comparar foi formulada está contida na Epístola aos Pisões, escrita por Horácio na Antiguidade. O poeta escreve
um documento que condensa orientações sobre como escrever poesia,
endereçado a uma família patrícia. Sua noção sobre a relação entre a
pintura e a poesia fica condensada na célebre Ut pictura poesis – a tradução da frase almeja equiparar a poesia à pintura, já que a segunda era
mais prestigiada em sua sociedade. Ela acaba se transformando em um
tipo de ideologia para artistas e poetas. Jacqueline Lichtenstein aponta
sobre como o conceito adquiriu um sentido inverso no Renascimento,
que submete as artes visuais à literatura, e como tal hierarquia prevaleceu até o século XIX. A autora discorre sobre como ela influencia
aspectos importantes sobre as artes visuais, como a consolidação da
visão da pintura como atividade liberal e desvinculada de seu aspecto
manual. A abundância de pinturas inspiradas pela literatura possui, para
autora, um vínculo explícito com essa tradição:
Como no século XVIII seria infatigavelmente repetido, o pintor
deve saber ‘narrar com o pincel’. Desde então, pintar consiste em transpor uma seqüencia narrativa, e portanto temporal,
para o espaço de visibilidade que é o do quadro; em descobrir
os meios de representar fielmente uma história respeitando um
certo número de exigências próprias à composição pictórica.
A pintura de história, que assinala ao mesmo tempo o triunfo
do Ut pictura poesis e da estática de imitação, seria, a partir de
então e durante séculos, considerada como a mais alta expressão
da arte de pintar. (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13)
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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A menção da autora à “sequência narrativa, portanto temporal” é um ponto importante para tratarmos sobre outra diferença que
deve ser bem delimitada: entre pintura baseada em literatura e pintura
histórica. Não é incomum que uma pintura histórica tenha tema literário, produzida em grandes dimensões e representações exacerbadas ou
dramatizadas de fatos reais. Mas, como sabemos, nem toda pintura de
história possui um aparato literário e, da mesma forma, nem toda pintura inspirada pela literatura pode ser considerada como uma pintura
de história. Para exemplificarmos tal noção, sugere-se a lembrança do
quadro Fausto e Margarida (s.d) de Pedro Américo que, com suas pequenas dimensões, funciona como um engrandecimento muito discreto
da história de Goethe. Apesar disso, é impossível negarmos que as duas
categorias estão interligadas e que a notoriedade da pintura histórica,
por mais que nesse período começasse a perder seu espaço que outrora fora tão absoluto na hierarquia dos gêneros, surge ainda como uma
legitimação para as obras baseadas em literatura. Vale ressaltar que os
temas ditos históricos ainda tinham um distanciamento maior do observador, sendo cenas muitas vezes jamais vistas, enquanto os literários
poderiam sugerir um conhecimento mais profundo, considerando a forte presença dos livros no ambiente doméstico burguês daquele período
e que elas poderiam ter sido vistas representadas em palcos.
Tal discussão proposta por Lichtenstein sobre a importância do
Ut pictura poesis e sua permanência também é mencionada por Mário
Praz. Praz, ao dedicar um livro sobre o paralelo entre as artes visuais e
a literatura, inicia sua obra tratando sobre o quão intercaladas as duas
áreas sempre foram:
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
(...) a ideia de artes irmãs tem sido tão enraizada na mente dos
homens desde os tempos da antiguidade remota que deve haver
algo mais profundo do que uma especulação ociosa, algo provocador e que recusa ser dispensado levianamente, como todos os
problemas de origens. Poderia ser dito que, investigando esses
relacionamentos misteriosos, os homens pensam que se aproximam do fenômeno completo da inspiração artística.347 (PRAZ,
1967, p.3)
Herdeiros da forma de ensino das artes europeias, da circulação de ideias sobre pinturas e, certamente, dos esquemas compositivos estabelecidos nos séculos anteriores, como aponta Praz, os pintores
brasileiros do final do século XIX estavam cercados de referências que
foram o bastante para consolidar o papel da literatura como temática de
obras de arte. As “artes irmãs”, nesse período, adquiriram notoriedade
e não seria difícil encontrarmos suas manifestações desde os anos de
1840 no Brasil.
2. O CENÁRIO BRASILEIRO
É possível elencarmos muitos elementos que relacionam as
produções brasileiras com as europeias, afinal, os artistas aprendiam
com metodologias estrangeiras, tinham referências de artistas internacionais e muitos moravam por temporadas no exterior. Porém, junto
a tal exercício, devemos levar em conta que existem particularidades
relevantes no país que tornaram a produção artística uma manifestação
diferente, sendo duas das questões mais proeminentes o colonialismo
e a consolidação do país como uma nação. Mais especificamente no
âmbito artístico, também devemos considerar a formação de um mercado de arte, o estabelecimento da Academia Imperial de Belas Artes
e o sistema que possibilitava (ou não) o fomento às práticas artísticas.
Tendo em vista tais aspectos, é possível dividirmos as pinturas baseadas
347 Tradução livre feita pela autora. No original: “On the other hand, the idea of the
sister arts has been so rooted in men’s minds since times of remote antiquity, that
there must be in it something deeper than an idle speculation, something tantalizing
and refusing to be lightly dismissed, like all problems of origins. One might say that
by probing into those mysterious relationships men think to come closer to the whole
phenomenon of artistic inspiration.”
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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em literatura em duas categorias: as indianistas e as demais produções.
Trataremos sobre elas individualmente a seguir e explicaremos a razão
e o interesse por sua diferenciação.
2.1. INDIANISMO
O indianismo pode ser compreendido como uma corrente Oitocentista brasileira em que indígenas, interpretados de maneira idealizada, estereotipada ou ambas, tornaram-se inspiração para manifestações artísticas. Tais pinturas possuem comumente inspiração literária
de origem brasileira ou portuguesa, sendo essa segunda uma forma de
ainda assim tratar sobre o nacional, porque recupera o que era entendido como as “origens” do país. Tamanho foi o esforço dos pintores
de construírem uma narrativa de indígenas como símbolos que remeteriam ao Brasil que essas imagens sobreviveram e foram capazes de
propagar conceitos por vezes prejudiciais e fonte de preconceitos. Essa
longa fortuna imagética moldou a imagem de indígenas conforme fosse
adequado aos propósitos requeridos: submissos e ingênuos como na
Primeira Missa (1860) de Victor Meirelles, corpos sexualizados como
em Faceira (1880) de Rodolpho Bernadelli ou dignificados heróis representativos do país inteiro como em Alegoria do Império Brasileiro
(1872) de Francisco Manuel Chaves Pinheiro.
As várias faces do indianismo demonstram diversas narrativas construídas sobre indivíduos considerados como “outros”, mas
que nem sempre tinham intenções pejorativas. Na realidade, o indianismo é melhor lembrado pela sua junção de figuras indígenas com
ideais românticos, condensados em personagens literárias que perdem
seus interesses amorosos e são exaltadas como corpos ainda mais belos
por estarem tristes ou até mesmo mortos – esses últimos demonstrando releituras do clássico viés de exaltação ao suicídio, característico
desse período. Essas figuras apresentam intenções tão positivas quanto
poderiam ser: individualizadas por serem nomeadas e possuírem um
contexto detalhado, tais mulheres são exaltadas como heroínas dispostas a morrer por seus sentimentos. Meirelles foi o responsável, além de
iniciar a tradição indianista na pintura, por unir a temática com outro
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
estilo literário em voga, que costumava ser referente a heroínas romantizadas de origem medieval, pois em sua Moema (1866), ele apresenta
um corpo feminino suicida. A tática prova que os artistas brasileiros
não assimilaram somente modelos, mas criavam com agência histórias
novas para suas obras em diálogo com outras produções. A partir de
então, surgem outras mulheres indígenas que condensam valores análogos, como Iracema, Lindóia e Marabá, que compõem o corpus da pintura brasileira de maneira enfática, sendo exaltadas pelo quão tristes eram
seus dilemas, algo que só foi plenamente executado porque conhecia-se
suas histórias.
O capítulo indianista perdura348 e tem expoentes importantes.
Lembremos que ele trata de obras muitas vezes que circulam em esferas públicas, abordam a própria noção de nacional, foram compradas
pelo Estado e permanecem até hoje disponíveis ao público. Tais características são distintas de outras obras do mesmo período baseadas
em literatura, pois elas não cumprem as mesmas funções. Nem todas
as obras indianistas estão relacionadas com literatura e, as que estão,
em sua maioria possuem de forma demarcada um teor romântico, visto
numa uma idealização de questões relativas ao processo de consolidação do Brasil, como a problemática da miscigenação. As demais produções podem chegar a abordar questões semelhantes, mas isso ocorre
com menor frequência porque os temas são mais diversos. Não existe,
necessariamente, um tema em comum entre eles da mesma maneira que
ocorrera com as obras indianistas. É mais adequado agruparmos o restante das pinturas inspiradas pela literatura por suas semelhanças com
produções estrangeiras. Dessa forma, tratemos sobre essa outra vertente
que surge ao lado do indianismo e que não se comporta de forma contrária, mas diz respeito a outros propósitos.
348 Apesar de seu apogeu na pintura se concentrar na década de 1880, resquícios po-
dem ser vistos em décadas posteriores: a tela Iracema (1909) de Antônio Parreiras e
o esboço intitulado Moema de Rodolpho Amoêdo apresentado na Exposição Geral de
Belas Artes de 1921 são alguns exemplos.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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2.2 DEMAIS PRODUÇÕES
Alguns dos mesmos pintores que se ocuparam de temas de origem indígena também realizaram obras inspiradas por livros estrangeiros, dentre os quais podemos citar Rodolpho Amoêdo e Antônio Parreiras. Mesmo assim, as duas práticas nos parecem muito distintas, pois os
temas diferentes das histórias indígenas tratavam de questões para além
do mito de origem e refletiam um gosto internacionalizado que equiparava os artistas com as esferas internacionais. Não era incomum que os
próprios livros do período citassem romances estrangeiros – lembremos
por exemplo de Dom Casmurro e sua relação com Otelo ou a de Lucíola
com A Dama das Camélias – e a prática também existiu na pintura. Essas citações foram formas de demonstrar erudição, cativar o observador
e provar que os trabalhos eram tão atuais que facilmente poderiam ser
deslocados para outros momentos históricos sem perder suas relevâncias originais (ou, em muitos casos, até a ultrapassarem).
No período estudado, as constâncias de livros que aparecem
em pinturas traçam relações com temas que estavam também em voga
na Europa. Quadros muito populares principalmente em cidades como
Paris e Roma circulavam através de gravuras, menções em jornais ou
viagens e compunham repertórios de artistas brasileiros. Embora existam muitas fontes literárias que podem ser citadas como parte desse
fenômeno, destacaremos duas inspirações que foram constantemente
atualizadas e aparecem na produção brasileira: a Divina Comédia de
Dante Alighieri e as peças de Shakespeare.
A obra-prima de Dante Alighieri narra a jornada do
protagonista pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. As representações na
pintura da Divina Comédia foram feitas, em sua maioria, mostrando
o personagem principal e Virgílio ou Beatriz, mas outros personagens
também foram utilizados como inspiração. Em específico, lembremos
de duas passagens particularmente populares, isto é, as de Francesca
da Rimini e Paolo Maletesta e a do relato do Conde Ugolino, sendo
que, de acordo com Pedro Falleiros Heise, “(...) estas duas histórias da
Divina Comédia foram das mais apreciadas, mas, no Brasil, a trama de
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
Francesca e Paolo atraiu mais os tradutores.” (HEISE, 2007, p. 67) As
numerosas traduções se relacionam com a existência de pinturas, pois
no caso da passagem de Francesca, houve obras como Francesca da
Rimini (1883), de Aurélio de Figueiredo e Paolo e Francesca (s.d.), de
Décio Villares. Outros exemplos que se inspiraram no livro foram Saída
da vida pecaminosa (1896) e Dante e Virgílio ascendendo ao Paraíso
(1908) – ambos de Eliseu Visconti – e Dante (Canto V, do Inferno), de
Lúcio de Albuquerque, apresentado na Exposição Geral de Belas Artes,
em 1907.
As peças de Shakespeare também foram temas recorrentes.
Em seu país de origem, o revival da obra do inglês foi notável, especialmente a partir da produção da Irmandade Pré-Rafaelita. Durante o
século XIX, não era incomum que fossem vendidas edições das peças
e nem que elas fossem encenadas no Brasil, portanto, a transposição
para pinturas a óleo foi uma manifestação praticamente esperada. Nos
temas shakespearianos, muitos assuntos poderiam servir como inspiração, como os problemas em relacionamentos conjugais ou a loucura.
Como exemplos desse tipo de produção, temos Desdêmona (1892), de
Rodolpho Amoêdo, A visão de Hamlet (1893), de Pedro Américo, e
três quadros intitulados como Ofélia, expostos em 1906, 1916 e 1917,
pintados respectivamente por Auguste Petit, Álvaro Teixeira e Carlos
Oswald, nas Seções de Pintura das Exposições Gerais.
Verificaremos que os temas literários começam a aparecer ainda
nas décadas anteriores ao meio do século. Um dos primeiros exemplos
foi a obra apresentada em 1844 intitulada Desposada de Lammermoor
(referência ao romance de Walter Scott) de Louis Auguste Moreaux que,
nos anos anteriores já havia apresentado no Salon uma pintura inspirada
em Fausto (DIAS, 2020). O artista também faria outras obras literárias
no período: o Último Sono de Desdêmona (1848) baseada na tragédia
Otelo de William Shakespeare e Faustina e Siomara (1850), inspirada
pelo romance Mistérios do povo de Eugène Sue. Moreaux atuou nesse
período, além de sua produção retratista, apresentando temas literários
em locais públicos e ajudando, assim, para a consolidação desse tipo
de obra. Exceto sua obra referente à heroína de Shakespeare, as outras
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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menções às pinturas nos catálogos demarcam a importância da fonte
através de citações diretas dos trechos que serviram como inspiração
para o artista. É possível que esse tipo de produção no Brasil tenha se
iniciado com os esforços de Moreaux, assim como de outros artistas
estrangeiros, como Jules Le Chevrel, que foi professor da Academia
Imperial de Belas Artes e um dos que mais se valeu de inspirações literárias. Le Chevrel apresenta A rainha Elizabeth baseado no romance
Kennilworth de Walter Scott em 1850, uma cena de Henrique III de
Alexandre Dumas em 1852, Paraguaçu e Diogo Álvares Corrêa inspirados em Caramuru em 1862, uma passagem de A Dama de Montsoreau
também de Dumas em 1864, cenas de Os Lusíadas em 1866 e, em 1867,
uma cena da coleção de poemas de Victor Hugo intitulada La Legende
des Siécles. Novamente, ressaltamos o fato de que tais obras referenciam livros brasileiros (quando o fazem) em uma escala muito menor
que os estrangeiros, pois o aspecto internacional das próprias histórias,
que muitas vezes tratam sobre heroísmos ou tragédias amorosas, parece
ser algo importante para os artistas.
Logo, concomitantemente aos esforços dos artistas franceses,
apareceram mais expoentes brasileiros dessa prática. Além das obras
já mencionadas, temos, em 1850, uma tela de Francisco Elídio Pânfiro
representando a Ilíada e uma de Joaquim Lopes de Barros Cabral representando o romance Paulo e Virgínia de Bernadin Saint-Pierre – esse
último que também foi tema de uma cópia apresentada por Mariano
José de Almeida em 1875 e um quadro de Antônio Parreiras de 1905.
Em 1880, Pedro Américo pinta O voto de Heloíse e, uma década mais
tarde, Rodolpho Amoêdo realiza A narração de Filectas, inspirados, respectivamente, pela correspondência trocada entre Heloíse d’Argenteuil
e Pierre Abélard e pelo romance Daphnis e Chloé. Como um único expoente da literatura brasileira, mencionamos o quadro Lucíola (1899),
de Carlo de Servi, que pode ser uma referência ao romance de José de
Alencar de 1862, mas, como não localizamos sua reprodução, é impossível afirmarmos com certeza.
Por fim, lembremos do caso peculiar das obras inspiradas pelo
romance Atala, escrito por François-René Chateaubriand em 1801, já
580
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
que elas transitam entre o indianismo e as demais produções baseadas
em romances estrangeiros: trata-se de uma história escrita por um francês e que se passa nos Estados Unidos, mas com temática indígena. O
livro, que se tornou muito popular na França e no Brasil, foi inspiração
para pelo menos quatro pintores com produção nacional: Frederico Tirone e Leopoldino Joaquim Teixeira de Faria, que expuseram obras nas
Exposições Gerais sobre o tema; Augusto Rodrigues Duarte, que realizou a monumental Exéquias de Atala (1878) e Rodolpho Amoêdo que
pinta A morte de Atala, em 1883349. Com o caso de Atala, assim como
da maioria dos livros que retomamos, ocorre que as telas são criadas
muito depois dos lançamentos dos livros, o que só é possível porque os
temas utilizados ganham nuances apropriadas para as décadas posteriores. Isto ocorre, possivelmente, em razão do maior protagonismo para
as heroínas, da ênfase de cenas com apelo sentimental e da inserção de
elementos nos quadros que estavam em voga na época, como objetos
de decoração e vestuário. O uso de livros que já tinham um maior respaldo anterior também seria algo positivo para a aceitação das pinturas,
pois elas seriam prejudicadas, caso a fonte literária não fosse muito
conhecida ou tivesse causado controvérsias. Esses são alguns pontos
que contribuiriam para explicar a popularidade de romances de séculos
anteriores ou da primeira metade do XIX em pinturas.
Dentro deste âmbito, existe um gênero semelhante de pinturas
que aparecem nesse momento, embora em menor número. São retratos de atores e atrizes com seus figurinos de personagens, uma prática
que junta uma pessoa que de fato existiu incorporando um personagem
que a tornou aclamada, como é o caso do Retrato de João Caetano dos
Santos como Otelo de José Corrêa de Lima, apresentado na Exposição
Geral de Belas Artes de 1840 ou Retrato de Anna de Lagrange na ópera
Norma (1860) de Louis-Auguste Moreaux, sendo esse último tema de
349 A obra de Amoêdo foi tema de estudo da Iniciação Científica intitulada “A morte
de Atala de Rodolpho Amoêdo e os diálogos entre os romantismos francês e brasileiro”, orientada Profa. Dra. Elaine Dias, que contou com financiamento da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo FAPESP nº 2018/17618-0.
Um artigo referente à pesquisa pode ser acessado em <https://econtents.bc.unicamp.
br/eventos/index.php/eha/article/view/3391/3292>.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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um artigo da historiadora da arte Elaine Dias (DIAS, 2019). São casos
interessantes porque unem o rigor do retrato com as pinturas inspiradas
em literatura e acabam por transitar entre o espaço da ficção (representado no figurino) e da realidade (representada no rosto do ator ou
da atriz). Podemos ampliar ainda mais a discussão sobre esse tipo de
produção mencionando os retratos de literatos, escritores e poetas feitos
como homenagens ou encomendas. Figuras como Camões, Walter Scott e Victor Hugo são alguns exemplos que surgem em pinturas e bustos,
além das referências aos seus trabalhos, em obras de artistas como Alfredo Jorge Eugênio Seelinger, Antônio Firmino Monteiro, Louis-Auguste Moreaux, Leopoldo Heck e Carlos Oswald. Práticas como essas
duas também são ramificações da relação entre os dois campos e compõem o panorama que temos exposto até então.
Numa breve troca de meios, mencionamos a relação dos escritos literários com o universo artístico. Livros como Mocidade Morta de
Gonzaga Duque e História de um pintor contada por ele mesmo do próprio Antônio Parreiras mencionam as vidas de artistas e aparatos gerais
que se referem às “artes irmãs”, tornando o relacionamento recíproco.
Nesse sentido, ressaltamos a importância do ambiente de trabalho como
simbólico para tais relações, já que “arte e literatura compuseram a imagem do artista em uma profusão de representações e o ateliê foi, sem
dúvida, o lugar central destes enredos.” (DIAS; GOMES, 2021, p. 29)
Seria inclusive possível pensarmos que tais práticas se legitimam, isto
é, as diversas pinturas tratando de livros eram ainda mais justificadas
pelos livros sobre pinturas e o oposto também poderia ocorrer. Dentro
desse mesmo aspecto, ressaltamos a presença de livros ilustrados que
compunham mais um ponto importante nessa rede de conexões. O desenvolvimento das técnicas de gravuras, a presença maior de editoras
no país e a busca pela contraposição entre texto e imagem são alguns
dos fatores que contribuíram para que um número crescente de livros
ilustrados ocupasse as mãos de leitores brasileiros, o que acarretava
em uma circulação de imagens ainda maior. As gravuras nos livros poderiam ser originais, caso algum artista fosse incumbido do trabalho
(o que normalmente significava que o projeto de impressão daquela
tiragem tinha um incentivo fiscal maior), ou poderiam ser reproduções
582
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
de pinturas famosas. Muitos dos livros que mencionamos anteriormente como tendo sido inspirações para pinturas tiveram edições com, no
mínimo, uma gravura nas páginas iniciais, que surgem como provas de
como seus relacionamentos com as imagens eram muito proeminentes.
Por mais que tenhamos nos concentrado em um período específico, não existe propriamente um fim para esse tipo de produção. A
pintura retomaria seu diálogo com a literatura em diversas instâncias,
com representações que tomaram formatos ainda mais expansivos no
século posterior, com processos como a globalização, a expansão da liberdade de criação, a crescente democratização da leitura, entre outros,
que aumentaram as possibilidades para artistas. Mas tais fatores também contribuem para uma diferenciação dos temas de interesse dos artistas e as pinturas inspiradas por grandes clássicos, normalmente feitas
em rígidas técnicas figurativas, perdem seu apelo em contraste com as
inovações vanguardistas, pois podem ser consideradas, em muitos aspectos, como símbolos de ideais obsoletos. Embora a relação entre pintura e literatura não se finde, ela se modifica de forma considerável em
meados do século XX no Brasil, assim como um processo semelhante
ocorre com outras temáticas que também adquirem novas conotações,
como a mitologia, por exemplo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da observação e análise de pinturas baseadas em literatura presentes na arte brasileira na segunda metade do século XIX, é
possível verificamos como tal produção foi abundante e teve um caráter
versátil. A temática da literatura aparece em variados contextos com
funções como ratificar ideias sobre a construção do nacional, disseminar noções sobre determinadas personagens ou simplesmente ilustrar
um crescente gosto por determinado material. É possível constatarmos
como o uso da literatura aparece unido com questões relativas às produções particulares de cada artista, sendo, portanto, os trechos de livros
utilizados como suportes para inovações técnicas, exploração de outros
assuntos para além das figuras (como objetos e cenário) e novas composições.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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As pinturas mencionadas não constituem toda a produção sobre o assunto, mas podem oferecer um pequeno panorama sobre esse
tipo de obra e já são suficientes para que levantemos questionamentos
sobre o intercâmbio entre as duas esferas. Se temos evidências que, no
período, os artistas tinham conhecimento sobre os livros para criarem
seus trabalhos, a crítica tinha ciência de tais histórias já que as mencionavam muitas vezes com detalhamento e o público também reconhecia
o que estava sendo apresentado, parece proveitoso que o historiador da
arte também se debruce sobre os escritos literários com a devida cautela, a fim de verificar o que eles podem acrescentar às obras. Enfatizamos, portanto, a utilização de tal método como uma estratégia eficiente
para a aproximação ao objeto, criando estudos interdisciplinares que
considerem as particularidades dos dois campos.
Esta publicação não pretende propor noções totalizantes ou
definitivas. Buscamos, ao contrário, evidenciar a presença da literatura
na pintura brasileira Oitocentista e a importância em analisar a segunda,
tendo em vista a primeira. Com isso, esperamos contribuir para que haja
mais estudos nesse sentido e para que as análises temáticas elucidem aspectos das obras tanto quanto proponham novos questionamentos.
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RELAÇÕES ENTRE O GRAFITE E O
CONFLITO ISRAELO-PALESTINO: ASPECTOS
ESTÉTICOS, POLÍTICOS E COMUNICATIVOS
Vitória Paschoal Baldin350 - vitoria.baldin@unifesp.br / vitoria.pbaldin@gmail.com
Resumo: Esse trabalho objetiva analisar os grafites produzidos nas
duas primeiras décadas do século XXI (2000-2020) nas regiões da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, articulando-os com outras expressões de
arte de rua produzidas em outras localidades da região. Assim, busca-se compreender as correlações entre o contexto de conflito, exclusão
e a violência para com produção e a estética do grafite, explorando a
relação dessas expressões na vida diária nessas regiões. Para tanto, partiu-se do registro destas comunicações como documentação primária
e, a partir da descrição desses objetos e do levantamento bibliográfico,
realizaram procedimentos analíticos e comparativos para compreender
as temáticas e signos mais comuns e forma pela qual estes mobilizam
repertórios e transmitiam mensagens para seus espectadores. Esse processo objetiva documentar, descrever, analisar, comparar as práticas e
as estéticas, observando as diferenças, assim como, os pontos de similaridade nas produções desses grafites. Dessa forma, argumenta-se que a
arte de rua produzida em Gaza e na Cisjordânia são parte de um sistema
comunicativo e estético amplo, articulando tradições locais, demandas
sociopolíticas das populações locais e os repertórios internacionais ali
mobilizados. Além disso, o grafite não apenas é atravessado por questões socioculturais provenientes do panorama, mas ele, também, é um
importante mecanismo para mobilizações de ativismo, relembrando
diariamente a população do conflito e instruindo as novas gerações sobre as pautas coletivas, conectando passado e futuro em discursos que
350 Esta publicação faz parte da pesquisa de desenvolvida na graduação intitulada
“Comunicação, conflito e Arte: uma investigação sobre as produções de grafite em
regiões do Oriente Médio em contextos de guerra”, orientada pelo Prof. Dr. Youssef
Alvarenga Cherem, no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de
São Paulo. A pesquisa conta com financiamento PIBIC-CNPq.
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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
associam diretamente o indivíduo à nação.
Palavras-chave: Grafite; Conflito Palestino-israelense; Ativismo; Cultura pop; Conflito;
RELATIONS BETWEEN GRAFFITI AND THE ISRAEL-PALESTINIAN CONFLICT: AESTHETIC, POLITICAL AND COMMUNICATIVE ASPECTS
Abstract: This work intends to analyze the graffiti produced in the first
two decades of the 21st century (2000-2020) in the regions of the Gaza
Strip and the West Bank, articulating them with other expressions of
street art produced in other locations in the region. Thus, we seek to
understand the correlations between the context of conflict, exclusion
and violence towards the production and aesthetics of graffiti, exploring
the relationship of these expressions in daily life in these regions. To do
so, we started from the registration of these communications as primary
documentation and, based on the description of these objects and the bibliographical survey, they carried out analytical and comparative procedures to understand the most common themes and signs and the way in
which they mobilize repertoires and transmit messages to your viewers.
This process aims to document, describe, analyze, compare practices
and aesthetics, observing the differences, as well as the points of similarity in the productions of these graffiti. Thus, it is argued that street
art produced in Gaza and the West Bank is part of a broad communicative and aesthetic system, articulating local traditions, sociopolitical
demands of local populations and the international repertoires mobilized there. In addition, graffiti is not only crossed by sociocultural issues
arising from the panorama, but it is also an important mechanism for
activism mobilization, daily reminding the population of the conflict
and instructing new generations about collective agendas, connecting
past and future in discourses that directly associate the individual with
the nation.
Keywords: Graffiti; Palestinian-Israeli Conflict; Activism; pop culture;
Conflict;
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho analisa as relações entre comunicação, estética e política que atravessam o grafite — enquanto prática e produto
(CAMPOS, 2010) — produzido nos Territórios Palestinos Ocupados351
(TPO) ao longo das últimas décadas do século XXI (2000-2020). O
objetivo central é compreender as correlações entre o panorama de conflito, a violência, a exclusão e a produção artística do grafite contemporâneo.
Partimos da definição de Lewisohn (2008) a respeito do grafite,
compreendendo a prática a partir de dois pólos: a street art e a tagging.
O autor entende que diversos contextos e produções estão relacionadas
ao grafite a partir de interações e aproximações com tais macro-áreas.
Isto é, a pixação, o grafite de gangue norte-americano, as crews e o grafite ilegal tem uma relação mais íntima com a tagging. Enquanto a arte
de rua parte de um universo mais ligado com o mundo da arte legitimada, os murais e as carreiras artísticas. Ambos pólos possuem alguma
ligação com o grafite ancestral, as práticas de comunicação públicas
que ocupam nossas cidades há séculos, com a cultura Hip-hop e com
o registro e o compartilhamento das comunicações através da internet.
Assim, partiremos do entendimento do grafite como uma produção ampla, estando nela incluída práticas diversas.
Nesse sentido, Campos (2010) argumenta que a visualidade é
um elemento crucial de nossa história e cultura, refletindo as formas
pelas quais entendemos e agimos visualmente sobre a realidade. A
imagem é, para ele, o resultado de um processo de significação empreendido pelo sujeito enquanto elemento de identificação, imitação,
reprodução ou metáfora de um real que o sujeito — individual ou coletivamente — reconhece, produz e partilha. Portanto, a estética do grafite contemporâneo palestino não pode ser analisada de maneira apartada
à compreensão das violências e conflitos que ocorrem nesses espaços
cotidianamente.
351 Utilizamos o termo Territórios Palestinos Ocupados em referência à Faixa de
Gaza e a Cisjordânia — nomeada por Pappé (2007) como Palestina Política — em
decorrência da falta de soberania palestina em Jerusalém.
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Atualmente, a partir de um discurso de segurança, o Estado de
Israel impõe diversos cenários de violência para com os palestinos, em
que acesso à água, terras, postos de trabalhos, escolas são progressivamente restringidos (BACKMANN, 2012). A descontinuidade territorial,
associada a falta de mobilidade imposta aos palestinos, prejudica social,
psíquica e economicamente a vida de incontáveis sujeitos, em que a
construção do Muro na Cisjordânia agrava esse processo (HADDAD,
2020). Assim, como enfatizado por um artista palestino: “Se você mora
em uma zona de conflito, qualquer coisa pode ser usada como arma. (...)
Não é matar, mas conscientizar. Faz parte da luta” (JANNOL, 2018, s/p
apud ERAY, 2020, p. 60. Tradução nossa).
Neste trabalho, a dimensão comunicativa e cultural do grafite é
encarada de maneira intimamente associada ao panorama de conflito,
entendendo que a arte opera como um importante mecanismo político, possibilitando a compreensão das subjetividades presentes nesses
espaços. Como Haugbolle (2013) aponta, a arte tem grande potência
sociopolítica ao espelhar vidas, narrando histórias através de imagens
e imaginários, em simultâneo, familiares e estranhos. Assim, é importante encarar tais produções como reflexões e emoções do cotidiano de
sujeitos comuns. Analisamos a relação dessas produções com a coletividade e suas relações com o cidadão comum que examina, reflete e testemunha a obra e a realidade geradora de tais expressões. Entendemos,
dessa maneira, o grafite como uma expressão comum a lugares de conflito, resultado da necessidade de resistência, denúncia e crítica frente
ao poder, à dominação e ao silenciamento de minorias representativas.
1. METODOLOGIA
A observação e análise descritiva das produções estruturam a
base metodológica do trabalho. As imagens estudadas são provenientes
de periódicos, estudos e publicações em páginas da internet. Ao longo
da presente pesquisa, cerca de 180 registros fotográficos dos grafites
foram analisados. O registro destas comunicações foi utilizado como
documentação primária e, a partir da descrição desses objetos e do levantamento bibliográfico, foram realizados procedimentos analíticos
e comparativos para compreender temas e signos comuns, repertórios
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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mobilizados e as configurações adotadas para transmitir tais mensagens
a seus espectadores.
Para o processo descritivo utilizamos a combinação das metodologias propostas por Edmund Feldman (1980, 1981 apud BARBOSA,
2005) e Robert William Ott (1997) em que as imagens são observadas
em 4 etapas: (1) descrição da imagem a partir das primeiras impressões e sensoriais evocadas; (2) análise dos elementos da composição
visual, estabelecendo relações entre eles; (3) consideração do contexto
de produção, buscando mais informações sobre a obra e seu produtor,
fundamentando a análise; (4) constatação de como a obra encontra uma
linguagem para expressar sua mensagem, exprimindo o projeto estético
para o espectador.
Além disso, também utilizamos das proposições de Kress (2005)
a respeito da multimodalidade, considerando que diversos grafites são
compostos pela associação entre texto e imagem. Assim, os elementos
pautados em lógica sequencial, como textos, e lógica de simultaneidade, especialmente, as imagens, são estudados em tais perspectivas. O
local de suporte original do grafite também se configura como um elemento central para o estudo, compreendendo que tais espaços também
carregam significação e implicam na associação dessas comunicações
com outros elementos visuais e verbais.
2. RESULTADOS
O grafite se configura como uma importante ferramenta para
o ativismo artístico-cultural nos Territórios Palestinos Ocupados, em
que aspectos sociopolíticos ocupam uma posição central na estética e
na prática da arte de rua contemporânea. Diversas comunicações explicitam a transgressão e o desafio à ordem, tendo em vista que a visibilidade é uma forma de resistência352, negando os arranjos espaciais
que sufocam as comunidades palestinas e possibilitando que essas comunidades reafirmem seus valores e sua existência (JARBOU, 2017).
Assim, o grafite também opera como um gesto de solidariedade e cole352 Compreendemos a resistência como um fenômeno social e individual que articula
continuidade e mudança, em um ato orientado para a construção de um futuro imaginado (AWAD; WAGONER, 2017).
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tividade, possibilitando que diversos sujeitos lidem com a frustração, o
medo e a insegurança.
Como Karolak (2019) argumenta, no processo de socialização política há o desenvolvimento de uma identidade enquanto ativista, fomentando sentimentos relativos ao pertencimento, baseados em
imagens, linguagens, definições e entendimentos sobre a realidade,
oferecendo explicações, associações, soluções para a realidade cotidianamente enfrentada. Assim, os grafiteiros palestinos partem de um conjunto de símbolos possíveis, selecionando aqueles que melhor dialogam
entre os fundamentos culturais dos grupos aos quais eles apelam e as
suas próprias ideologias (TARROW, 1998 apud KAROLAK, 2019),
objetivando estruturar obras de potência política e comunicativa. O grafite é um ato político (LI; PRASAD, 2018) de retomada de voz aos palestinos segregados, possibilitando que eles disseminem suas próprias
narrativas e entendimentos sobre o atual conflito.
O conteúdo verbal e icônico presente em tais comunicações
carrega significado de maneira articulada com a transgressão da prática, diretamente articulado com o local escolhido como suporte para
tal grafite. Nesse cenário, o Muro é uma construção de grande significado — sociopolítico, simbólico e comunicacional (TOENJES, 2014;
SÁNCHEZ, 2016) —, apartando comunidades, recortando o território
da Cisjordânia e inviabilizando os palestinos dos israelenses que vivem nas fronteiras. Isto é, ele torna-se “um grande lembrete diário para
palestinos e judeus israelenses de um Outro perigoso e sem rosto, que
vive do outro lado” (TOENJES, 2014, p. 36. Tradução nossa). Portanto,
a especificidade do Muro enquanto suporte para os grafites decorre da
rede de relações sociais e de poder incorporadas naquele local (JARBOU, 2017).
A obra CTRL + ALT + DELETE353 de Filippo Minelli é um
exemplo significativo desse processo. A obra de Minelli se utiliza do
repertório proveniente da computação para demandar a queda do Muro,
utilizando a construção como suporte, potencializando a crítica. Na
obra podemos observar um grande escrito “CTRL + ALT + DELETE”
353 Veja em Zoghbi e Karl (2011, p. 67) ou em Wall in Palestine no Flickr. Disponível
em: <https://www.flickr.com/photos/43405897@N04/4325890917/> Acesso em: 19
de janeiro de 2021.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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produzido em azul-celeste sob a barreira na Cisjordânia. Os grafiteiros,
diversas vezes, produzem obras intrinsecamente ligadas a seu suporte
— um site specific — questionando e reimaginando a própria existência
dessa construção. A mobilização de uma linguagem vastamente conhecida facilita o alcance da mensagem e a transmissão da mensagem. De
maneira semelhante, pintar paisagens, vistas e recortes na barreira354
joga com a imaginação dos espectadores, renegociando as relações
entre o real e o ideal. Além disso, uma série de grafites enfatizam o
problema relativo à construção do Muro, evidenciando a anormalidade da vida cotidiana nesses locais, como os lambe-lambes espalhados
por Ron English na Cisjordânia em 2007 (PARRY, 2011, p. 60-61) que
articula o personagem Mickey Mouse, ressignificando-o para criticar o
contexto de violência presente nos TPO.
Ainda nesse sentido, outras incontáveis obras mobilizam repertórios provenientes do universo da cultura de massas e memes, em
que a circulação e rearticulação desses ícones planetários (CAMPOS,
2010) é uma ferramenta significativa para a difusão internacional desses grafites. Como Campos (2012) aponta, há um forte vínculo entre a
globalização e a cultura visual presente nas artes de rua. Nesse sentido,
grafiteiros como Taqi Spateen355, Cake$ Stencils356, Belal Khaled357 e
Lushsux358 mobilizam elementos da cultura pop, de memes nas redes
sociais, políticos internacionais e figuras de destaque em movimentos sociais — como Ghandi, Mandela e George Floyd — para discutir
questões específicas das demandas dos palestinos e dos problemas cotidianos enfrentados nos TPO.
354 Um dos primeiros registros desse tipo de signo se refere a uma série de obras
produzidas por Banksy na Cisjordânia ainda em 2005, em que Living room é um dos
mais icônicos representantes dessa atuação.
355 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https://
www.instagram.com/taqi_spateen/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021.
356 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https://
www.instagram.com/cakes_stencils/ > Acesso em: 19 de janeiro de 2021.
357 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https://
www.instagram.com/belalkh/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021.
358 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https://
www.instagram.com/lushsux/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021.
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Em um grafite registrado em Gaza por Lora Lucero (2012)359
podemos observar a mobilização desses repertórios em repertórios relativos à aprendizagem. Na obra temos a representação de um ambiente
escolar, algumas crianças estão sentadas em carteiras e com o rosto
voltado à professora que aponta com uma régua ao quadro. Sob a lousa,
Gandhi, Mandela e Martin Luther King estão representados. Tais sujeitos foram figuras importantes para movimentos populares de libertação
de reconhecimento transnacional, assim, o grafite denota a noção de
aprendizado com as experiências vividas por essas figuras, dialogando
com as demandas contemporâneas da região. A luta palestina é representada de maneira diretamente associada a lutas mais amplas, relativas
à conquista de liberdade e igualdade.
A mobilização massiva dessas figuras, bem como a utilização
sistemática da língua inglesa, é estratégica, representando a preocupação com o espectador transnacional. Dessa forma, os grafites com
elementos provenientes da cultura pop transnacional são utilizados de
maneira diretamente articulada com a causa palestina e as demandas
políticas mais concretas. Os grafites analisados neste trabalho, de maneira geral, operam como um lembrete diário do incômodo coletivo
com a ocupação israelense e seus elementos invasivos, demandam perseverança, liberdade e apoio internacional para a causa palestina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Argumentamos, portanto, que a arte de rua produzida em Gaza
e na Cisjordânia compõem um sistema sociopolítico, estético e comunicativo mais amplo que articula as demandas cotidianas com repertórios diversos, objetivando estruturar uma nova frente de ativismo. Tais
grafites relembram diariamente a população que vive nesses locais do
conflito, conectando o real e o ideal, e fortalecem sentimentos relativos à unidade e ao pertencimento. O grafite não opera apenas em uma
lógica de desafio à autoridade, refletindo as lógicas de poder presente
no espaço de suporte, mas, ao ser registrado e compartilhado nas redes
359 Veja em LUCERO, 2012. Disponível em: <https://loralucero.wordpress.
com/2012/12/18/gaza-street-art-rocks/#jp-carousel-1438> Acesso em: 19 de janeiro
de 2021.
ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021
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sociais, também representa uma importante ferramenta para a conquista de apoiadores internacionais. A configuração estética e linguística
dos grafites evidencia a crescente importância de expandir o alcance da
mensagem. Com um grupo de destinatários previamente idealizados,
sejam eles locais ou estrangeiros que consomem a esta produção de
forma virtual ou in loco, as obras dialogam diretamente com a realidade local palestina em aspectos diversos. Dessa forma, o sentido dos
grafites só pode ser identificado a partir da analisa dos diferentes elementos materiais, políticos e socioculturais que compõem a obra, tendo
em vista que questões relativas ao contexto palestino e a experiência do
cidadão comum nos TPO são centrais para o grafite.
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