Academia.eduAcademia.edu
COORDENAÇÃO DO EPHA Profa. Dra. Elaine Dias [Biênio 2020-2021] Coordenadora Profa. Dra. Angela Brandão [Biênio 2020-2021] Vice-coordenadora COMISSÃO ORGANIZADORA Bruna Aparecida Silva de Assis Davi Luis Galindo dos Santos Débora Fernandes Medeiros Érica Megumi Kodaira Ishikawa Fabriccio Miguel Novelli Duro Joyce Farias de Oliveira Laís Silva Amorim Livia de Seixas Torres Corigliano Natália Cristina de Aquino Gomes Natália Ferreira de Almeida Rachel Midori Sugo Miyagui Simone de Oliveira Souza Tarcísio Antonio da Silva Vivian Catarina Dias Wellington Souza Silva COMITÊ CIENTÍFICO Drª Ana Maria Cavalcanti EBA, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil Drª Angela Brandão EFLCH, Universidade Federal de São Paulo - Brasil Drª Carolina Vanegas Carrasco Universidad Nacional de San Martín - Argentina Drª Elaine Dias EFLCH, Universidade Federal de São Paulo - Brasil Drª Fernanda Mendonça Pitta Pinacoteca do Estado de São Paulo - Brasil Drª Isabel Plante CONICET, Universidad Nacional de San Martín – Argentina 157 Brenda H. M. Yoshioka | O MA: DIÁLOGOS COM A ESCRITURA BARTHESIANA 171 Camila Vitório Siqueira | CORPO, DISCURSO E REPRESENTAÇÃO: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O TRABALHO DE LETÍCIA PARENTE. 182 Carlos Henrique Nunes Costa | A ESTÉTICA DA SATURAÇÃO DE EDUARDO MONTELLI. 195 Cintya dos Santos Callado | PIERRE FRANCASTEL E GEORGES DIDI-HUBERMAN: UM DIÁLOGO ENTRE TEÓRICOS PARA PENSARMOS OBRAS DE PINTURA DA EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES DE 1890. 209 Clara Mourão Downey | CULTURA DE MUSEUS NO BRASIL: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE. 223 Débora Poncio Soares | ENTRE APAGAMENTOS E LEMBRANÇAS: SYLVIA MEYER E O MODERNISMO. 242 Grasiela Prado Duarte de Oliveira | REPRESENTAÇÃO SONORA NO INFERNO DE HIERONYMUS BOSCH: INSTRUMENTOS, TORTURA E NOTAÇÃO MUSICAL ORIGINAL DO TRÍPTICO JUÍZO FINAL DE VIENA. 258 Helena Ariano | EROS E MORTE: A LINGUAGEM DO CORPO NO CURTA YÛKOKU DE YUKIO MISHIMA. 272 Helena Wilhelm Eilers | TIEMPO DE MIRAR: IMAGEM, CORPO E EXPOSIÇÃO. 285 Isabela Ramos de Oliveira | PINTORAS E O ACERVO MUSEOLÓGICO: EMBATES SOBRE GÊNERO NA ARTE BRASILEIRA. 301 Jancileide Souza dos Santos | ARTE, CRIAÇÃO ARTESANAL E MEMÓRIA BIOCULTURAL. 317 João Paulo Ovidio | A FASE SOCIAL DE RENINA KATZ (1948-1956). 333 João Víctor Kurohiji Bonani | A RAIZ GEOGRÁFICA COMO “AUTENTICIDADE” DOS SUBSTRATOS PERIFÉRICOS: APROXIMAÇÕES ATRAVÉS DO ESCULTOR NAGARE MASAYUK. 351 Jovita Santos de Mendonça | AURA E AUTENTICIDADE: OS DESENHOS DE J.CARLOS PARA AS CAPAS DE PARA TODOS… 366 Julia Maria de Souza dos Santos | A PAISAGEM CARIOCA POR THOMAS GEORG DRIENDL: UM ESTUDO DE CASO. 375 Julia F. Zanon | CASA CORPO CORPO NINHO. 383 Lara Rossi Ambrozin, Mariana Abramo Fugagnolli | CORPOS QUE (NÃO) IMPORTAM: REGIMES DE INVISIBILIDADE E VIDAS PRECARIZADAS, UM CASO DE ESTUDO DE AI WEIWEI. 398 Luís Fernando Beloto Cabral | ARTE E ALTERIDADE EM JÚLIO BRESSANE E HÉLIO OITICICA. 414 Maria Ilda Trigo | WARHOL-FOTO-CINEMA: UM ENSAIO SOBRE AS RELAÇÕES DE ANDY WARHOL COM AS IMAGENS TÉCNICAS. 430 Matheus Corassa da Silva | LE ROI GOUVERNE PAR LUI-MÊME: O CORPO DO PODER NAS PINTURAS DE CHARLES LE BRUN (1619-1690) PARA A GRANDE GALERIE DE VERSALHES. 446 Natália Cristina de Aquino Gomes | DÂNDIS AQUÉM E ALÉM-MAR: AUTORREPRESENTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DE ARTISTAS ESTRANGEIROS E BRASILEIROS NO ENTRESSÉCULOS XIX E XX. 459 Nicoli Braga Macêdo | UMA VISÃO DO FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL. 471 Nina Ingrid C. Paschoal | REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA PINTURA ORIENTALISTA (SÉC. XIX): ANÁLISE DE DISCURSO E CARACTERÍSTICAS. 486 Rachel M. S. Miyagui | A GRAVURA COMO PRÁTICA COLETIVA: A EXPERIÊNCIA DE ATELIÊS COLETIVOS NA CIDADE DE SANTOS. 499 Ramsés Albertoni Barbosa | A BELEZA É O REINO ONDE AS LUTAS E AS MORTES ACONTECEM: OS RETRATOS E A CORRESPONDÊNCIA DE CÂNDIDO PORTINARI. 516 Roberta Mendes de Sá | AS CASASMUSEUS COMO DIMENSÃO PATRIMONIAL NA CONTEMPORANEIDADE: A FUNDAÇÃO EMA KLABIN E O MUSEU LASAR SEGALL COMO ARTICULADORES DA DINÂMICA DE PRESERVAÇÃO. 532 Tânia Kury Carvalho | CONJECTURAS ACERCA DE UMA INFLUÊNCIA DAS ARTES CÊNICAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE TICIANO DOS MITOS PARA FERRARA. 552 Tarcisio A. da Silva | O RESTAURO DA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO E AS INTERVENÇÕES DE PAULO MENDES DA ROCHA EM EDIFÍCIOS DE INTERESSE HISTÓRICO. 567 Vitoria Amadio de Oliveira | RELAÇÕES ENTRE PINTURA BRASILEIRA E LITERATURA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: APONTAMENTOS INICIAIS. 583 Vitória Paschoal Baldin | RELAÇÕES ENTRE O GRAFITE E O CONFLITO ISRAELO-PALESTINO: ASPECTOS ESTÉTICOS, POLÍTICOS E COMUNICATIVOS. APRESENTAÇÃO É com grande satisfação que apresentamos os Anais do VI EPHA - Encontro de Pesquisas em História da Arte (EPHA), evento anual do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (PPGHA - EFLCH/UNIFESP), que ocorreu entre os dias 6 a 10 de dezembro de 2021. O EPHA foi criado em 2016 pelos discentes de mestrado do referido programa, com o objetivo de divulgar as pesquisas desenvolvidas na Unifesp. Nos anos seguintes, o encontro conquistou espaço mais amplo, estendendo a proposta aos pesquisadores de outras universidades em níveis de pós-graduação e de graduação, permitindo a integração e troca de conhecimento entre os diferentes graus de formação acadêmica. O EPHA caracteriza-se, ainda, por um viés multidisciplinar, elemento fundamental das pesquisas em História da Arte, possibilitando um espaço de difusão e debate de diferentes trabalhos concluídos ou em desenvolvimento. Os anais que aqui se apresentam correspondem, portanto, ao evento ocorrido em 2021 que, em razão da pandemia de COVID-19 - enfermidade que assolou um grande número de vítimas no Brasil e no mundo - foi realizado de forma virtual através da plataforma Streamyard. Também o evento anterior, o V EPHA, realizado em 2020, transcorreu de forma remota. Contamos com a mesma comissão científica da última edição, sendo esta constituída por pesquisadoras nacionais e internacionais, a saber: professoras Ana Maria Cavalcanti (EBA-UFRJ - Brasil), Fernanda Mendonça Pitta (Pinacoteca do Estado de São Paulo - Brasil), Carolina Vanegas (UNSAM - Argentina) e Isabel Plante (UNSAM – Argentina), além de uma comissão organizadora formada por discentes do programa que trabalharam de forma intensa e dedicada até os dias de hoje. A programação contou com duas palestras, sendo aquela de abertura conduzida pela Profa. Dra. Marcela Drien (Universidad Adolfo Ibáñez - Chile) e intitulada “En la búsqueda de autenticidad: expertizajes y atribuciones de pintura europea en Chile”; a palestra de encerramento ficou a cargo da Profa. Dra. Claudia Valladão 10 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de Matos Avolese (UNICAMP - Brasil), sob o título “Uma História da arte para o antropoceno: novas abordagens a partir de uma perspectiva ecocrítica”. O encontro foi composto de 20 mesas de discussão e mais de 80 comunicações, reforçando a continuidade das trocas acadêmicas e ofereceu a oportunidade de participação de pesquisadores de todo o território nacional e internacional em decorrência de seu caráter virtual. Os anais do VI EPHA trazem, assim, uma coletânea de 38 textos originados das pesquisas de discentes de graduação e pós-graduação nos mais diferentes campos da História da Arte, confirmando sua relação com o universo das Artes, com o caráter multidisciplinar da área, abordando questões historiográficas, institucionais, metodológicas e curatoriais, tocando também em temáticas fundamentais para o debate contemporâneo, entre diversos outros caminhos interessantes e de necessária discussão. Elaine Dias e Angela Brandão Coordenadoras do EPHA (2020-2021) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 11 HIPER-REALISMO E SUBJETIVIDADE: PSICANÁLISE E ARTES VISUAIS1 Alan Ricardo Floriano Bigeli2 – alan.bigeli@unesp.br Gustavo Henrique Dionisio3 – gustavo.h.dionisio@unesp.br Resumo: Qual é o impacto das imagens artísticas nos modos de subjetivação da atualidade? Essa provocação direciona nosso viés de pesquisa e norteia os desejos do presente trabalho. Vivemos uma época estética em uma sociedade imagética. Seja nas mídias ou nas redes sociais, nos meios virtuais ou físicos, as imagens estão lá, sempre nos olhando e clamando para serem olhadas. Isso nos leva a pensar em como nos comunicamos e nos relacionamos, enquanto sujeitos, com essa recorrente visualidade encontrada em nosso dia-a-dia. Aqui encontra-se um breve ensaio reflexivo sobre o modo de produzir pensamento sobre as imagens no contemporâneo, sobretudo através de obras de artes visuais, e as relações que podem emergir desse contexto entre quem olha e quem é olhado, pois na medida em que lançamos nosso olhar para o mundo, somos invariavelmente olhados de volta. Nessa esteira, nos apoiaremos em obras de artistas que contemplam transversalmente aspectos do movimento hiper-realista. Artistas que, até a atualidade, não cessam de inscrever seus nomes na História da Arte e fomentar os mais diversos embates reflexivos. Na busca de desenvolver essa atividade de pensamento, abordaremos um estado de suspensão dos sentidos em que 1 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Imagens que falam, olhos que escutam: Psicanálise e poéticas visuais”, orientada pelo Prof. Dr. Gustavo Henrique Dionisio, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e Letras de Assis/SP. A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. 2 Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pela FCL-Unesp Assis. 3 Mestre e Doutor pelo IP-USP, é docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da FCL-UNESP Assis. É autor de “O antídoto do mal: crítica de arte e loucura na modernidade brasileira” (Ed. Fiocruz), “Pede-se abrir os olhos. Psicanálise e reflexão estética hoje” (Ed. Annablume/Fapesp), e organizador de “Políticas públicas e clínica crítica” (Cultura Acadêmica UNESP). 12 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 somos colocados frente às imagens, bem como os enlaces e desenlaces com que essa relação se faz para, ao final, dispararmos inquietações sobre arte, psicanálise e a abertura das imagens diante das relações afetivas que se dão pelos campos visuais no contemporâneo. Palavras-chave: Imagens; Hiper-Realismo; Psicanálise; Artes Visuais; Subjetividade. Abstract: What is the impact of artistic images on current modes of subjectivation? This provocation directs our research and guides the objectives of the present work. We live in an aesthetic age in an imagetic society. Whether in the media or social networks, in virtual or physical media, the images are there, always looking at us and clamoring to be seen. This leads us to think about how we communicate and relate, as subjects, with this recurring visuality found in our daily lives. Here is a brief reflective essay on the way of producing thought about images in the contemporary, especially through works of visual arts, and the relationships that can emerge from this context between who looks and who is looked at, because as we launch our gaze at the world, we are invariably looked back. In this way, we will rely on works by artists that transversally contemplate aspects of the hyperrealist movement. Artists who, up to the present, do not cease to inscribe their names in the History of Art and foster the most diverse reflective clashes. In the search to develop this activity of thought, we will approach a state of suspension of the senses in which we are placed in front of the images, as well as the links and denouements with which this relationship is made, in order to, in the end, trigger concerns about art, psychoanalysis and the opening of the images in the face of the affective relationships that take place through the visual fields in the contemporary world. Key-Words: Images; Hyper-Realism; Psychoanalysis; Visual arts; Subjectivity. IMAGENS, PSICANÁLISE E O HIPER-REAL Somos bombardeados por imagens a todo momento, e essas imagens possuem capacidades subjetivantes (RANCIÈRE, 2008; MONDZAIN, 2011). Nesse sentido, Muniz Sodré (2006), com base em ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 13 Perniola (1993), afirma que podemos considerar nossa inserção temporal em uma época estética, pois junto a essa disseminação visual caminha a potência do plano do sentir. Ou seja, a aisthesis seria o campo estratégico do pensamento diante de nossa atual sociedade. Contudo, segundo Emmanuel Alloa (2015), a exorbitante proliferação imagética de hoje corre, paradoxalmente, na contramão de nossa capacidade de atribuir uma definição unívoca a esses fenômenos imagéticos. Ou seja, ao tempo que estamos constantemente em interação sensível com as imagens, não saberíamos responder a uma perspicaz pergunta que nos exigisse explicar o que é, de fato, uma imagem. A resposta a tal indagação seria de extrema complexidade visto que estaríamos diante de um impasse em que explicar uma imagem pode correr o risco de delimitar suas inúmeras capacidades condenando-as à unificação e ao reducionismo, ou por outro lado, ao responder essa questão, cairíamos em uma investida ontológica da imagem (ALLOA, 2015). Esse contexto paradigmático é um meio proposto por Alloa (2015), amparado em Georges Didi-Huberman (1998; 2012), de produzir um posicionamento diferente da mera estagnação do espanto diante das imagens. É possível tomar uma atitude ativa, distanciando-se da imagem como um problema, incorporando-a mais aos moldes de um objeto para o pensamento, um enigma. Essa tal coisa enigmática não pertence propriamente a um espaço-tempo, “nem presente, nem ausente, mas iminente” (ALLOA, 2015, p. 16). Essa iminência dá às imagens capacidade de suspender tanto os signos como os significantes; suspender os objetos em função de representações (e vice-versa), adquirindo o sentido de por vir e garantindo a pluralidade que há de se criar dali a diante. Desde Immanuel Kant, é recorrente uma questão acerca de o que é orientar-se no pensamento, sobretudo nas condições que definem as faculdades de juízo, às quais podem ser lidas como uma experiência estética. Essa instrução mostrou-se profundamente atrelada às imagens e a seu papel no contemporâneo, reformulando essa orientação justamente para o campo do pensamento sensível sobre as imagens ou como imagens. Embora Kant proponha uma autonomia da estética como uma razão universalista, contemporaneamente podemos concordar com a reformulação de Gadamer que implica a integralização dos sujeitos em 14 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 relação à aisthesis do mundo; ponto central de um senso comum estético, residente no âmago também dos processos comunicacionais. Tal problemática relacional entre sujeito e imagens pode ser compreendida, segundo Georges Didi-Huberman (2012), como complexa e ardente. Complexa pela dificuldade de se encaminhar uma resposta e ardente pelo fato de continuar sempre e sempre em constante ação. O filósofo e historiador da arte francês destaca que o momento em que estamos conta com uma grande imposição da imagem em várias esferas: estética, política, cotidiana, histórica. Assim, comparativamente com outros momentos, a força da imagem está mais atual do que nunca. Seu caráter de mostração, de veracidade, de credulidade e, consequentemente, de destruição estão mais presentes do que nunca. Vemos isso, claramente, por meio do Hiper-Realismo; movimento que interroga nossas construções imaginárias e imagéticas inseridas entre o visível e o invisível. Abre-se, então, uma questão: como essas obras de arte provocam nossa subjetividade? Fazendo uma brevíssima contextualização sobre as provocações imagéticas nas artes, bastaria um pequeno exercício de percepção visual para que sejamos magicamente tocados pelos mistérios evocados nos processos criativos do pintor belga René Magritte (1898 – 1967). Ao mergulharmos em seu universo artístico e pessoal, nos encantaremos com seus métodos e procedimentos ao evidenciar a resolução pictórica de problemas da realidade - tal como ele próprio definia ser o objetivo de suas obras. Dentre as questões que Magritte suscita, encontramos campo para diversos debates: a implicação poética do olhar, representação e um certo estranhamento do familiar [no sentido freudiano]. Contudo, a provocação central se dá a respeito da problemática da realidade, que as imagens interrogam e confrontam. As imagens são capazes de enganar nossa percepção e de reter nosso olhar, abrindo inúmeras possibilidades de suspensão de nossos sentidos, provocando, de maneira bastante sensível, a nossa subjetividade. Esses questionamentos compõem também poéticas mais contemporâneas, sobretudo dos movimentos pós-modernos. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 15 O movimento Hiper-Realista surge nos Estados Unidos, na década de 1960, partindo de imagens amparadas na realidade, mas que evidenciam um algo a mais. Apoia-se em evoluções técnicas das artes visuais e experimentações híbridas. Buscando a hipertrofia da realidade, explorando ao máximo os limites representativos e provocando a mobilização de nossos processos mais íntimos, criando confrontos com a realidade habitualmente percebida, consciente e inconscientemente; através do excesso, o Hiper-Realismo força nosso olhar para os detalhes que essa mesma realidade tentaria esconder (LEVISKY, 2012). Em O Retorno do Real, Hal Foster (2017) propõe justamente uma leitura surrealista4 dessas poéticas visuais, a qual distancia-se do espírito Bretoniano, identificando-se mais com a ótica de George Bataille, em que o aspecto sur da realidade se encontra embaixo, nos meandros subterrâneos da realidade, podendo vir a eclodir a qualquer momento. Algo que muitos artistas contemporâneos possibilitam, tais como Cindy Sherman, Sherrie Levine, Bárbara Kruger e Richard Prince, seguindo com esse intuito de emergir uma hiper-realidade. Foster (2017), demonstra que, nos anos 1960, grande parte do métier artístico estava comprometido com as relações entre realismo e ilusionismo nas pinturas. Algo parecido com o que propunha Magritte em seu surrealismo belga, podemos afirmar. Desses movimentos sessentistas, temos como exemplo a Pop Art, Arte da Apropriação5 e o Hiper-Realismo. Foster (2017) explicita que as preocupações daquela época convergiam em dois sentidos básicos de representação: imagens ligadas aos ícones; e, por outro, imagens autorreferentes. Nesse aspecto, Foster propõe a leitura por um realismo traumático, apoiando-se em obras de Andy Warhol. Além disso, toda sua 4 Foster (2017) esclarece que sua leitura surrealista, ao exemplo de Georges Bataille, corresponde muito mais ao sub do que ao sur, ou seja, é um modo de olhar voltado para o subterrâneo, “no sentido do real que está embaixo” (p. 139), algo que, salvo diferenças, ainda se conserva no Hiper-realismo. 5 Segundo o crítico de Arte inglês Michel Archer (2013), a apropriação, ou seja, “as coisas tomadas oportunamente para nosso uso” (p. 165) seria uma característica a que todos estaríamos fadados sob a condição de pós-modernos, assim, ditando fortemente as tendências poéticas desse período. 16 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 discussão é adensada com ajuda da noção lacaniana de Real6, em consonância direta com a ideia de repetição em Freud, a qual o crítico se aprofunda para falar do trauma e de sua relação com a Arte. Essas imagens artísticas se apresentam plenas de repetições e, além de serem objetos de reprodução, também produzem algo – inicialmente um choque, mas que à posteriori deixam transparecer seu sentido traumático. Aprofundando sua leitura, Foster (2017) emprega o conceito de tiquê de Lacan (1998) e de punctum de Barthes (1984), como referentes ao ponto traumático, o detalhe inquietante presente nessas imagens. A seu ver, esse aspecto reside naquele detalhe que gera um incômodo ao nosso olhar, podendo assumir aspectos ímpares para cada sujeito. Olhar para o detalhe inquietante significa produzir: a) um recorte; b) uma aproximação; c) uma relação dialética, como define Georges Didi-Huberman (1998). Ampliando o trabalho de reflexão estética, nos deparamos com um paradigma indiciário e dois outros conceitos se apresentam: o caráter sintomático (sintomal) do detalhe; junto ao inconsciente estético na partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009; 2000). Segundo Rancière, com a modernidade surge um inconsciente estético, em que se inaugura um “regime do pensamento no qual haveria uma abertura total para a coexistência de paradoxos e contradições no modo de encarar a Arte” (DIONISIO, 2016, p. 89). Esses detalhes, contudo, jamais se darão de forma trivial e o que possibilitará chances para o Real [lacaniano] aparecer de forma traumática, será a sua repetição. Foster (2017) adverte que é preciso considerar que, mesmo com a possibilidade de choque disponível no mundo, o desenvolvimento do trauma dependerá do sujeito, contando com suas associações, vindas sempre à posteriori, e, aqui o crítico de Arte emprega o sentido freudiano desse efeito. De acordo com Lacan, esses lampejos provocam um furo onde o Real traumático quase pode ser vislumbrado. É o que expressa o termo troumatisme, em que trou se traduz por buraco. Tais aspectos abrem diferentes faces para a re6 A noção de Real na psicanálise lacaniana é bastante complexa de se definir brevemente, contudo destacamos que o Real está relacionado ao que escapa às nossas simbolizações e se contrapõe ao nosso imaginário; remetendo também aos aspectos traumáticos do psiquismo, ou mesmo, irrepresentáveis, ou seja, impossíveis de serem representados na vida cotidiana. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 17 petição, fixando ou encobrindo, e mesmo produzindo o realismo traumático. Desse ponto de vista, Foster (2017) busca demonstrar como o Real é encoberto nas imagens amparadas na realidade e exaustivamente repetitivas de Warhol, mas que insiste, ainda assim, em retornar. Foster (2017) indica também esse retorno através do Hiper-Realismo. Ao seu ver, o retorno do Real encontrado por meio dessa poética se dá pelo seu caráter ansioso em ocultá-lo, mas que acaba sendo evidenciado justamente por esse anseio. Foster (2017) destaca a necessidade de uma mediação entre a Arte e o Real, baseando-se em proposições sobre os aspectos psíquicos do Olhar, propriamente reunidas em O Seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise de Lacan (2008). Segundo essas premissas, o Olhar, tal como a linguagem, é preexistente ao sujeito inserido em um mundo especular e espetacular, que o olha de volta. Como constata Gustavo Dionisio (2012), neste seminário Lacan mostra como essa problemática olhar-real é paradoxal. Não se trata de um atributo exclusivo do olho; os órgãos sensoriais ajudariam a circunscrever essa experiência sensível visual que se dá no mundo. O olhar, segundo essas premissas, tal como a linguagem, é preexistente ao sujeito que se encontra jogado em um mundo especular e espetacular, que o olha de volta. Nesse sentido, “aquilo que vale para a linguagem também vale para o olhar”. Assim, o olhar sendo algo que vem de fora, instaura-se originariamente como “uma antecipação intrínseca ao desenvolvimento da espécie humana” (DIONISIO, 2012, p. 188), e por comportar, ao mesmo tempo, características persecutórias [justamente por residir fora do sujeito] e uma posição de objeto a, permite a inscrição do registro simbólico na subjetividade. Um exemplo disso é visto na formação do eu através do Estádio do Espelho. Nesta proposição, Lacan circunscreve essa antecipação da formalização imaginária de um corpo outrora fragmentário, resultante na distinção do eu [je – sujeito do inconsciente] e do eu [moi – eu-ego], através de um processo imagético. Podemos compreender, pela leitura de Foster (2017), como se dá a sobreposição dos cones no diagrama lacaniano do olhar – daquele que emana do sujeito e daquele que parte do objeto – evidenciando que o sujeito se encontra em uma posição dupla, isto é, ele é “visto vendo, 18 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 figurado figurando” (p. 133). Essa relação se dá [pois] tanto a pintura lança sua luz sobre o sujeito, fotografando-o, como este direciona seu olhar para o quadro. Do primeiro cone, que parte de um ponto geometral em direção ao objeto, encontramos a focalização da imagem. No segundo caso, em que parte do ponto luminoso ao quadro, como intermediário há o anteparo (ou tela). Da superposição deles, portanto, temos uma relação entre o olhar e o sujeito da representação, que comportam como intermediários, o anteparo imagem, que seria o mecanismo de mediação entre o olhar e o sujeito da representação (Figura 1). Como destaca Dionisio (2012), se Foster posiciona a imagem e a tela como anteparos do olhar é porque apresentam-se também como proteção contra um objeto-olhar. Essas defesas podem ser entendidas como as características mediadas pelo Simbólico e Imaginário, traduzidas e apresentadas ao nosso olho justamente através da produção poética das obras de arte. Sendo assim, configuram meios de proteção contra o olhar do Outro, isto é, de uma invasão do real - apresentando-se das maneiras mais complexas e enigmáticas. Essa proteção é permissiva em determinados aspectos, trabalhando na negociação com a violência que acompanha esse olhar invasivo. Tal mecanismo, dentre os seres humanos, possibilita que haja um escape através do imaginário, com o registro simbólico garantindo essa criação de imagens. Essa mediação angariada através do processo subjetivo do olhar consiste numa captura de suas funções mais incontroláveis que, ao fim e cabo, visará uma domesticação através da imagem. Assim, compreendemos como começam a se inscrever as relações entre o olhar e as imagens na subjetividade. Se nosso olhar é lançado ao mundo de um só ponto, o contrário não é válido. Somos observados de inúmeros perfis e de diversas maneiras correspondentes a uma alteridade. Esse endereçamento-outro traz consigo algo do nível relacional em aspectos transferenciais. Se algo me olha, dentro de tais configurações, possui afinidades comigo, mesmo que estas se desenvolvam a par de possíveis estranhamentos correlatos a uma falta constitutiva. Uma obra pode comportar consigo grande parte desses aspectos. Se uma pintura é apresentada ao olhar, a oferta feita pelo pintor é abundan- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 19 te: “Queres olhar? Pois bem, veja isso!” diz Lacan (1998, p. 99), como a demonstrar esse convite para que o espectador possa se demorar ali. Intrigante exemplo desse movimento é encontrado nas obras da artista e fotógrafa norte-americana Cindy Sherman. Aqui, é produzido um desvio que parte da realidade sendo efeito da representação e quase chega ao Real como coisa traumática. Foster (2017) demonstra que, ao dividir, ainda que a grosso modo, o trabalho de Cindy Sherman em três grupos, é possível relacionar cada período a um posicionamento específico entre sujeito e obra de arte. Em suas primeiras fotografias, Sherman coloca o sujeito como ser observado (Figura 2). Quem olha é também olhado por suas obras; esse olhar não vem só da tela, mas de dentro do sujeito. No segundo momento, a artista se coloca no lugar de anteparo/imagem provocando justamente a questão das representações, seja no mundo da moda, na história da arte ou em imagens de desastres. Sherman aposta em uma concepção psicótica representacional do corpo, demonstrando a matéria corpórea evidenciada como coisa plástica, descartável (Figura 3). Já o terceiro momento, herdeiro dos anteriores, parece romper o anteparo tal que o olhar-objeto invade e ultrapassa o sujeito-como-quadro, demonstrando o horror real da representação, à beira dos limites do abjeto, causando um revirão literalmente visceral ao apresentar cenas que remetem à escatologia humana, corpos feridos, excrementos e vísceras envolvendo a si mesma, chegando a dar pistas para o Real irrepresentável (Figura 4). Para Foster (2017), essa investida em ver aquilo que se coloca por detrás do quadro indica que lá poderíamos encontrar “o olhar, o objeto, o real” (p. 137). Contudo, em Lacan, “o real não pode ser representado” a não ser pela sua negatividade, ou seja, por aquilo que ele não é (DIONISIO, 2012, p. 199). Sendo assim, essa compreensão é de extrema importância para as correspondências entre experiência psicanalítica e recepção estética, pois essa falta está em direta correlação à incompletude do desejo. Se o Hiper-Realismo reprime o Real, inevitavelmente, ele retorna. Isso ocorre, segundo Foster (2017) na superfície dos signos hiper-reais. Nesse sentido, aparece a insurreição de uma ambivalência que, outra vez, nos leva a evocar esse Real. Na perspectiva de Dionisio (2012) em consonância a Foster (2017), vemos aparecer o 20 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 balizamento poético de um efeito representativo da realidade, buscando atingir o Real como coisa traumática. Esse deslizar nos coloca, justamente, em suspensão e configura um clamor por sua ressignificação, sobretudo nas poéticas visuais da Arte Contemporânea. Assim, temos alguns caminhos diante das obras do Hiper-Realismo, uma vez que sua configuração permita incomensuráveis aberturas nos sujeitos – possibilitando a mediação das subjetivações no espaço que se dá entre o olhar e sujeito, ou ainda, entre o Imaginário, o Simbólico e o Real. Instala-se uma espécie de alteridade da Arte e, também, uma identidade própria de suas formas relacionadas ao modo como a vida se deflagra. “O estado estético é pura suspensão, momento em que a forma é experimentada por si mesma. O momento de formação de uma humanidade específica” (RANCIÈRE, 2009, p. 34). Portanto, a configuração de um possível olhar psicanalítico para as obras de arte se dá inevitavelmente no âmbito sensível da percepção. Concordando com João Frayze-Pereira (2010), ainda que não seja fácil “manter os olhos abertos para acolher o olhar inquietante que nos interpela”, partir desse ponto é suficiente para “esquecer-se de si, para deixar-se surpreender”, emergindo dessa “desnorteante força da Arte” (p. 91), inúmeras questões e múltiplos estranhamentos. Nesse sentido, Umberto Eco (1991) afirma que as aberturas das obras de arte são possíveis de se dar em um nível de convite dirigido ao espectador para produzir a obra junto ao artista; de outro modo, em um nível mais amplo, de movimento e mudança do espectador, que implica a atualização intersubjetiva deste frente à manifestação estética; e, ainda, em um terceiro nível, no qual a obra é sempre e infinitamente reeditada e atualizada causando sua revitalização de acordo com as diversas associações lançadas a ela. Eco (1991) deixa claro que este é um movimento poético contemporâneo, tratando-se de aspectos contextuais da Arte, porém o autor diz que todo fenômeno artístico possui tais capacidades de abertura, sem se deixar fechar nas inúmeras interpretações que o passar do tempo e os diferentes contextos subjetivos e socioculturais poderão despertar. A seu ver, essa poética da abertura faz emergir novos problemas e pode adensar ainda mais as situações comunicativas entre espectador e obra de arte, sempre colocando em xeque ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 21 nossa atenção e nossa percepção visual, possibilitando novos meios e novas formas de contemplação das obras de arte, que se encontra sempre em movimento. REFERÊNCIAS ALLOA, E. Entre a transparência e a opacidade - o que a imagem dá a pensar. In: ALLOA (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BARTHES, R. La chambre claire. Notes sur le photographie. [A câmara clara: notas sobre a fotografia]. In: OEuvres complètes en trois volumes. t. III, 19741980. Paris: Le Seuil. 2003. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: DUARTE, R. (org). O belo autônomo. Textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica/Crisálida, 2017. BIGELI, A.; DIONISIO, G. 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Da pesquisa psicanalítica como estratégia do detalhe: ensaio sobre um “método”. In: FULGÊNCIO; BIRMAN et al. Modalidades de Pesquisa em Psicanálise: Métodos e Objetivos. São Paulo: Zagodoni Editora, 22 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 2008, pp. 179-191. ECO, Umberto. A Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. FOSTER, H. O retorno do real. São Paulo: Ubu Editora, 2017. FRAYZE-PEREIRA, J. Olho d’água: Arte e loucura em exposição. São Paulo, SP: Escuta, 1995. FRAYZE-PEREIRA, J. Arte, dor: Inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005. FREUD, S. (1919). O “Estranho”. In: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Editora Imago, Rio de Janeiro: 1996. v. XVII. GADAMER, H. Verdade e Método II. Complementos e Índice. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004. GADAMER, H. Hermenêutica da obra de arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. LACAN, J. 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Menschel - Object number: 811.1995 – Copyright© 2022 Cindy Sherman, courtesy of the artist and Metro Pictures, New York. Department - Photography ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 25 Figura 3: Untitled #183 - Cindy Sherman (1988) - Chromogenic print; 125.7 × 89.2 × 3 cm - Credit Line: Gift of Boardroom, Inc. Reference Number: 1992.716 Copyright© Cindy Sherman. Courtesy Metro Pictures, New York 26 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4: Untitled #190 - Cindy Sherman (1989) - chromogenic color prints (two panels) 245.11 x 185.42 x 6.67 cm – The Broad. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 27 O SANTUÁRIO NOSSA SENHORA DA SALETTE: HISTÓRIA DE UMA IGREJA NEOGÓTICA Alice Almico Saraiva7 - almicoalice@gmail.com Resumo: A presente pesquisa se debruça sobre o Santuário Nossa Senhora da Salette - edifício religioso e importante patrimônio arquitetônico Neogótico do bairro do Catumbi, região central da cidade do Rio de Janeiro - e sobre seu conjunto de objetos artísticos e mobiliário, com especial destaque aos elementos escultóricos da fachada, os altares e móveis que compõem o altar-mor e as capelas laterais e o grupo de vitrais franceses, originais de 1927, de autoria do renomado artista do vidro Jacques Gruber. Apresentaremos os resultados parciais da reconstituição da história da construção do templo e dos primeiros anos da presença da Ordem Saletina no Brasil, respeitando o recorte temporal que corresponde ao período entre 1902 e 1939 - momento no qual assistimos aos processos de idealização projetual, de construção, de aparelhamento social e da montagem de parte essencial do conjunto artístico-decorativo da igreja -, fruto do trabalho com as fontes documentais. Buscaremos também apresentar, a partir de uma revisão da historiografia dedicada ao fenômeno artístico Neogótico, algumas noções centrais a respeito deste estilo arquitetônico relacionando-o a diferentes fatores que determinavam a atmosfera cultural do início do século XX, evidenciando a relevância do Santuário de N. S. da Salette como parte deste complexo nacional de arquitetura de natureza eclética-revivalista, bem como elaborar uma análise do Santuário e dos objetos que constituem seu acervo previamente mencionado, além de apontar a recepção que essa edificação em estilo Neogótico teve na sociedade fluminense à época de seu erguimento. 7 Esta publicação faz parte do projeto de pesquisa em nível de graduação intitulada “O Neogótico religioso no Rio de Janeiro do século XX: Santuário Nossa Senhora da Salette”, orientada pelo Prof. Dr. Alberto Martín Chillón, desenvolvida no Departamento de História e Teoria da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa conta com financiamento da Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos - COPPETEC/UFRJ, bolsa em vigência desde outubro de 2021. 28 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Palavras-chave: Arquitetura neogótica; Arquitetura Religiosa; Século XX; Ecletismo. Abstract: The present research focuses on the Sanctuary of Our Lady of La Salette - a religious building and an important Gothic Revival architectural heritage in the Catumbi neighborhood, central region of the city of Rio de Janeiro - and on its set of artistic objects and furniture, with special emphasis on sculptural elements of the façade, the furniture that make up the main altar and the side chapels and the set of French stained glass windows, original from 1927, by the renowned glass artist Jacques Gruber. We will present the partial results of the reconstitution of the history of the construction of the temple and of the first years of the presence of the Missionaries of La Salette in the country, respecting the time frame that corresponds to the period between 1902 and 1939 - moment in which we witness the processes of design idealization, construction, of social equipment and the assembly of essential parts of the artistic-decorative ensemble of the church -, result of dealing with different sources. We will also seek to present, from a review of the historiography dedicated to Gothic Revival artistic phenomenon, some central notions about this architectural style relating it to different factors that determined the cultural atmosphere of the early 20th century, highlighting the relevance of the Sanctuary of Our Lady of La Salette as part of this national architectural complex of eclectic-revivalist nature, as well as an analysis of the Sanctuary and the objects that make up its previously mentioned collection, in addition to pointing out the reception that this religious Neo-gothic building had in the society of Rio de Janeiro at the time of its construction. Keywords: Gothic Revival architecture; Sacral architecture; 20th century; Eclecticism. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 29 INTRODUÇÃO Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 41) Erguido em estilo Neogótico a partir de variados esforços e de uma campanha pública de arrecadação de recursos entre a segunda e a quarta décadas do século passado, o Santuário Nossa Senhora da Salette do Rio de Janeiro se configura como um objeto de estudo complexo que deve ser abordado de maneira a interligar diferentes saberes, disciplinas e metodologias. Acreditamos que trazê-lo para os estudos da História da Arte atende à necessidade que o nosso campo tem de ampliar seu leque de objetos para melhor compreender as práticas e o debate arquitetônico brasileiro do século XIX e princípios do século XX, especialmente em relação aos estilos ecléticos. Esse resgate adquire importância renovada se entendermos que significativas correntes historiográficas dos estudos de artes tenderam a negligenciar essa herança artística-arquitetônica como objeto de estudo, pois partiam de uma literatura modernista marcada pela crítica a esses movimentos questão historiográfica que abordaremos ainda neste texto. Para o estudo do nosso objeto, justificada sua importância dentro dos estudos históricos da arquitetura brasileira, abordaremos no presente artigo algumas noções centrais a respeito do estilo Neogótico; logo pretendemos detalhar também os esforços e os resultados da tarefa de recuperação da história do Santuário e dos primeiros anos e atos da presença da Congregação dos Missionários de N. S. da Salette no Brasil, respeitando o recorte temporal proposto e expondo as especificidades do trabalho com as fontes primárias - sendo as principais utilizadas por nós o 1º Livro do Tombo da Paróquia, documentos diversos, esboços e projetos arquitetônicos e artísticos que formam o arquivo paroquial e periódicos que circularam no atual estado do Rio de Janeiro no período; então passaremos para a apresentação e análise do Santuário como objeto arquitetônico e das obras de arte e mobiliário que compõem o seu 30 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 acervo, mostrando como os já mencionados jornais e revistas ilustraram a recepção dessas peças e do próprio edifício na sociedade fluminense à época. 1. REVISÃO HISTORIOGRÁFICA Partimos do entendimento de que o Neogótico surgiu como um fenômeno localizado dentro do contexto das dinâmicas de reapropriação romântica do mundo medieval e também dos estilos arquitetônicos ecléticos típicos dos séculos XVIII, XIX e XX (BARROS, 2009, p. 180). De acordo com Pinheiro, o Ecletismo estaria, por sua vez, ambientado temporalmente entre a crise do cânone cultural classicista e a emergência das expressões modernistas de arte e arquitetura (2010, p. 438-439). Apesar da atitude eclética de revivalismo histórico ter sido considerada conservadora e retrógrada por alguns autores, outros contestam esse viés de interpretação, demonstrando que os agentes dessas escolas não se opuseram categoricamente à assim chamada modernidade dos séculos XIX e XX, ao contrário, integraram muitas vezes em seus projetos as tecnologias e os novos processos construtivos promovidos pelos avanços industriais e científicos do contexto, extraindo dessas novas técnicas grande potencial criativo (ARGAN, 1992, p. 28-29) e contextualizando o Ecletismo como parte constituinte de uma “cultura do modernismo”, fortemente marcada pela mudança na percepção temporal e pelas novas dinâmicas ditadas pela relação, não necessariamente dicotômica, entre tradição e modernidade (VELLOSO, 1996). É interessante frisar como essa modernidade não surgiu repentinamente com o advento do movimento de vanguarda normalmente tido como “modernismo” e seus marcos - no caso brasileiro, a Semana de Arte Moderna de 1922 e os artistas e arquitetos dessa geração -, sendo fruto na realidade de um processo de gestação anterior e que atravessa esses movimentos de vanguarda artística do século XX, perdurando até meados desse mesmo século8. 8 A pluralidade e a coexistência de diferentes modernidades no período de 1890 a 1945 é analisada profundamente por Rafael Cardoso, que cita “a existência de outras correntes modernizadoras [em relação ao modernismo antropofágico organizado ao redor da geração da Semana de 1922], subestimadas pela historiografia” (2022, p. 19). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 31 Além desses aspectos, é notável que a definição das tipologias e programas das construções do Ecletismo se dava muitas vezes a partir de associações simbólicas, ideológicas e históricas entre os tipos e as funções destinadas aos edifícios9 (FABRIS, 1993, p. 140) e, dentro do contexto dessas associações simbólicas, foi construída uma relação explícita entre a arte gótica e o cristianismo: o que colocou o Neogótico na posição de “arquitetura eclesiástica ideal” para o conturbado contexto da fé católica na virada dos séculos XIX e XX (DE OLIVEIRA NETO, 2015, p. 4-5). Sobre a complexidade que marca essa atitude de evocação histórica de estilos artísticos do passado, como o Neogótico, Maria Cristina Pereira nos diz: A Idade Média então reconvocada, em discursos e práticas artísticas, arquitetônicas, literárias, religiosas, filosóficas e políticas, estava longe de ser, em nosso entender, apenas um modismo ou uma via de escape. Ela era parte da complexa rede de representações que a sociedade [dos séculos XVIII e XIX] fazia para si mesma fazia [sic.] naquele momento, construindo sua identidade [...] (PEREIRA, 2011, p. 1) Na conjuntura brasileira, o Neogótico e essas outras tipologias reunidas sob o conceito de “Ecletismo” foram entendidas como propostas arquitetônicas representativas do progresso e do processo de industrialização e modernização do país nesse momento, tendo como principal modelo as experiências européias (FABRIS, 1995, p. 73). A promoção desses tipos também estava atrelada às reformas urbanas e à demolição de antigas estruturas e monumentos promovida nas cidades brasileiras ao longo dos séculos XIX e XX, e também à “construção” de novas cidades, como é o caso de Belo Horizonte10 (DIAS, 2008, p. 105). As edificações ecléticas surgem mais significativamente na arquitetura brasileira a partir da segunda metade do século XIX, em especial nas décadas de 1870 e 1880, e o mesmo se estende até as 9 Autores como Mattos (2004, p. 5) chamam atenção também para o papel do “gosto” na cons- trução estética eclética, bem como a importância que as possibilidades criativas e inovadoras promovidas por essas escolas arquitetônicas tiveram na sua aceitação e difusão por parte das camadas burguesas - paralelamente a característica associativa que frisamos acima. 10 A complexidade do processo de construção da nova capital do estado de Minas Gerais é objeto de análise de Heliana Angotti-Salgueiro (2020). 32 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 primeiras décadas do XX11 - momento de construção do Santuário da Salette. Temos a compreensão de que os estilos revivalistas, como é o caso do Neogótico, estavam localizados em um importante eixo dentro do debate arquitetônico brasileiro dos séculos XIX e XX12, movimentando diferentes agentes como engenheiros, críticos de arte e arquitetos em torno do debate acerca da aplicação dessas tipologias, cada vez mais populares, em projetos arquitetônicos13, tendo a imprensa e as revistas especializadas como plataforma para divulgação de opiniões contrárias e favoráveis ao Ecletismo e as suas implicações nas cidades brasileiras. A exemplo disto, Mário de Andrade, em artigo publicado na “Revista do Brasil” em 1920, dedica parte de seu comentário sobre arquitetura religiosa brasileira do período colonial para o desenvolvimento de uma crítica ao panorama arquitetônico do contexto no qual escrevia, marcado pela cultura eclética que discutimos anteriormente14. O intelectual diz: 11 Na capital federal, é marcante o projeto das torres da Igreja do Santíssimo Sacramento, de 1870. Assinadas por Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, muito aclamado à época pelo mérito de harmonizar uma construção de matriz classicista com torres-agulha de base piramidal retiradas do universo das tipologias arquitetônicas góticas (SOBRAL FILHA, 2018, p. 1), além de edifícios civis, também da cidade do Rio de Janeiro, como o neomanuelino Real Gabinete Português de Leitura e a já demolida sede da Tipografia Nacional - ambos projetos são desse mesmo contexto das décadas de 1870-1880. 12 Esse ambiente de intensa discussão a respeito das questões arquitetônicas que marca o momento inicial do século XX foi estudado por Marcelo Silveira e William Bittar a partir da figura de José Marianno Filho e de sua defesa da arquitetura Neocolonial (2013). 13 A participação de nomes como Manoel de Araújo Porto-Alegre, Félix Ferreira, Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, Ernesto da Cunha Araújo Viana e Antônio de Paula Freitas nesses debates é explorada por Doralice Duque Sobral Filha (2018). 14 Vale ressaltar que há também na imprensa uma grande repercussão positiva acerca do erguimento de edifícios neogóticos, como o Santuário da Salette; elogiado por que será “de estylo ghotico e se destacará, entre as demais egrejas ; pela suas bellas linhas architectonicas [...]” (A União, 20 de dezembro de 191, ed. A00102, pág. 2). Essas linhas de pensamento sobre a arquitetura são contemporâneas e configuram um importante debate que se infiltrou nos mais diversos espaços, como por exemplo no senado brasileiro onde, como registrado na seção “Caixa de Gazolina” da revista Fon Fon, o senador Victorino Monteiro discursou acerca da variedade de possibilidades estéticas promovida pelo ecletismo-revivalista: “A uns o estylo gothico é preferível ao romano, outros preferem o da época da da renascença italiana. Há ainda quem aprecie mais a architectura ingleza pela simplicidade de suas linhas. Entretanto, a nosso vêr, um dos melhores estylos é o manuelino.” (21 de maio de 1910, ed. 0021, pág. 31). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 33 Queríamos ser progressistas, reformadores, cubistas, fomos buscar o que não era nosso, imitamos sem altivez, copiamos sem engenho [...] O erro nosso de construir igrejas nos mais estrangeiros dos estylos propaga-se com rapidez perniciosa por todo o Brasil. Quebrou-se bruscamente a cadeia da arte religiosa nacional: todos os estylos penetraram a praça numa sarabanda de mistificações. Na Bahia, em Minas, na Capital Federal, no Rio Grande do Sul, em toda parte, si houver uma capellinha por construir, é preciso que seja helenica ou sessessionista. E o nosso barroco? … (ANDRADE, 1920, p. 109) Esse exemplo pontual é parte do que Annateresa Fabris (1995) nomeia como uma corrente modernista crítica à cultura do Ecletismo, um fenômeno historiográfico que não é particular da literatura artística brasileira15. Essa corrente do pensamento modernista legou aos historiadores e demais pesquisadores da arte do século passado uma crítica generalizada ao conjunto arquitetônico do oitocentos e princípio do XX, taxando suas construções como kitsch, desordenadas, falsas, provisórias, pastiche, de mau-gosto, etc. Em seu “Panorama da Arquitetura Ocidental”, publicado pela primeira vez na década de 1940, Nikolaus Pevsner diz: [...] encontramos, por volta de 1830, a mais alarmante situação social e estética na arquitetura. Os arquitetos acreditavam que qualquer coisa criada nos séculos anteriores à industrialização seria necessariamente melhor que qualquer obra que expressasse o caráter de sua própria era. (PEVSNER, 2015, p. 390) Esse trecho ganha maior importância quando se considera o peso que a publicação de Pevsner teve e tem sobre o entendimento histórico da arquitetura. Já nos anos de 1980, Yves Bruand escreve “Arquitetura contemporânea no Brasil” e declara: O panorama oferecido pela arquitetura brasileira por volta de 1900 nada tinha de animador. Nenhuma originalidade podia ser entrevista nos numerosos edifícios recém-construídos, que não passavam de imitações, em geral medíocres, de obras de maior ou menor prestígio pertencentes a um passado recente ou lon- 15 De fato, a própria autora explora como as críticas tecidas por certos intelectuais modernistas brasileiros guardam diversas semelhanças com as de diferentes pensadores internacionais cujos textos circularam no país, como por exemplo Adolf Loos (1995). 34 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 gínquo, quando não eram meras cópias da moda então em voga na Europa. (BRUAND, 1981, p. 33) Destacado o papel menor que muitas vezes coube ao Ecletismo no pensamento sobre arquitetura principalmente durante a primeira metade do século XX, frisamos também como, a partir dos mesmos anos de 1970 e 1980, surgiram mais e mais obras que reavaliavam esse conjunto despidas dos preconceitos críticos citados anteriormente16. Nesse contexto de tentativas de entendimento do patrimônio eclético a partir de suas teias de complexidades, Sonia Gomes Pereira articula que: [...] é possível observar, na prática arquitetônica do século XIX, um conjunto muito mais complexo, em que vários elementos estão interligados [...] coexistem técnicas, programas e estilos do passado e do presente, evidenciando a permanência da tradição colonial, entrelaçada ao desejo de modernização e à necessidade de construção imaginária da nova nação. 2. HISTÓRIA DO SANTUÁRIO DE N. S. DA SALETTE A partir da união de uma restrita bibliografia referente à Ordem Saletina17 com as fontes foi possível organizar uma linha do tempo dos primeiros anos da presença e dos atos dos Missionários da Salette no Brasil - e, portanto, entender como se deu a institucionalização da crença no país e, no Rio de Janeiro posteriormente, a criação da Paróquia de “Nossa Senhora das Dores da Salette”18, a campanha de construção do 16 Chamamos atenção aqui para o fato de que, como é comum nas ciências, correntes diferen- tes de pensamento coexistem no tempo. Essa retomada crítica da herança artística e arquitetônica do período entre os séculos XIX e XX não substituiu efetivamente a obra de pensadores como Bruand - que publicou sua “Arquitetura Contemporânea no Brasil” apenas seis anos antes do clássico “Ecletismo na Arquitetura brasileira”, organizado por Annateresa Fabris -, somente propuseram diferentes abordagens a um mesmo campo de estudos. 17 Grande parte das informações apresentadas nesta seção foram retiradas do título “Crônicas de uma Missão”, - livro publicado pelo Padre Ático Fassini em ocasião do centenário da chegada dos primeiros saletinos em Santos, São Paulo - e, quando não, será indicado. O título é embasado num extenso trabalho com diferentes documentos, os quais se encontram majoritariamente no arquivo central saletino, em Curitiba, mas também na transmissão oral de conhecimento e nas experiências do Padre Fassini como membro da Ordem. 18 Essa nomenclatura da paróquia, que faz referência à Nossa Senhora das Dores (uma forma de celebração da Virgem Maria anterior à saletina), foi utilizada pelos Missionários da Paróquia ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 35 Santuário Neogótico e o aparelhamento social da nova Matriz, respeitando o recorte temporal proposto entre os anos de 1902 e 1939. Cabe apontar que o trabalho com as fontes primárias ainda está em andamento e seus resultados são apenas parciais, sendo as principais fontes consultadas os periódicos disponibilizados na plataforma da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional19, o 1º Livro do Tombo da Paróquia do Catumbi e diversos documentos que se encontram no arquivo da própria igreja20. A partir da figura de Clemente Henrique Moussier, o primeiro saletino a vir para o Brasil, podemos alcançar uma narrativa resumida de como essa experiência inicial se deu: Em 1902, um missionário saletino norte-americano, padre Clemente Henrique Moussier, após insistências ao seu superior, foi enviado ao Brasil para a fundação de uma casa no País. [...] Em 15 anos, os saletinos fundaram uma revista de circulação nacional, iniciaram a construção do primeiro santuário na cidade do Rio de Janeiro e criaram seminários e escolas paroquiais. (LEONARDI; MAZOCHI, 2014, p. 102) Os padres saletinos - vindos do interior de São Paulo - se instalaram no Rio de Janeiro em 1912 e, já no ano seguinte, realizaram a compra dos terrenos onde a Matriz seria erguida posteriormente, no bairro do Catumbi. Os imóveis existentes aí foram reformados para acomodar os missionários e a igreja provisória. Em abril de 1914 é criada finalmente a paróquia de N. S. das Dores da Salette e, nos anos que se seguem, o projeto do Santuário, elaborado pelo engenheiro Paulo do Catumbi até o ano de 1972, postulamos que seja uma possível tentativa de aproximação da aparição mariana francesa com a realidade e os costumes religiosos brasileiros. 19 A pesquisa na Hemeroteca Digital nos permitiu não só avançar em relação à tentativa de entender a história do Santuário e da missão saletina, como também observar certos padrões e a reincidência de alguns grupos temáticos principais entre as ocorrências - como anúncios de atividades religiosas diversas, notícias relativas à associações, ligas e outros grupos religiosos, publicação de cartas e artigos informativos ou de opinião, sobre o processo de construção do templo e da sua campanha arrecadação de fundos, ações sociais, fatos da vida clerical, outras notícias e ocorrências não necessariamente relacionadas. 20 A maior parte da documentação referente aos Missionários de N. S. da Salette encontra-se no Arquivo Geral Saletino, em Curitiba, porém, algumas fotos, projetos, desenhos e outros tipos de registros ainda se encontram na Matriz do Rio de Janeiro, como também os Livros do Tombo e fotografias. 36 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Schroeder, é posto em prática. A sagração da pedra angular da construção se deu em janeiro de 1918, cerimônia conduzida pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Joaquim Arcoverde (A Epoca, 14 de jan. de 1918, ed. 02012, p. 4). Em 1919 as obras já estão consideravelmente avançadas e então é demolida a Matriz provisória: as atividades litúrgicas foram transferidas temporariamente para a cripta da igreja, um amplo salão no andar térreo que será dividido em três salas posteriormente, na década de 1930. Já em 1924, chega ao Rio de Janeiro o novo conjunto de sinos e o carrilhão portugueses e, depois, o grupo de vitrais franceses21. Em 1927, após a instalação dos vitrais, o Santuário é inaugurado, ainda com os movéis litúrgicos antigos e o exterior inacabado, a cerimônia de benção solene acontece em 13 de novembro desse mesmo ano. Em 1934 são instalados o retábulo de mármore do altar-mor e os três grandes afrescos originais, a cerimônia de sagração dessas obras se deu em 13 de abril (1º Livro do Tombo, 1934). A flecha da única torre e a cruz do topo são adicionadas e abençoadas posteriormente. Em 1939, o Santuário de N. S. da Salette comemora as bodas de prata da criação da paróquia. Em resumo, o processo de aparelhamento social da Paróquia no período estudado se dá principalmente pela abertura de grupos e associações religiosas; por diferentes formas de engajamento da população na campanha de arrecadação de fundos para a construção do santuário; pela disseminação nacional do periódico religioso “O Mensageiro de N. S. da Salette”22; com a criação de uma Associação de Escoteiros; a manutenção de um consultório de higiene infantil; e outros tipos de obras sociais. 21 Em abril desse mesmo ano de 1927 tinha sido publicada no Correio da Manhã a concessão da isenção de direitos na Alfândega do Rio de Janeiro para “obras de arte destinadas ao santuário de Nossa Senhora da Salette, matriz de Catumby” (Correio da Manhã, 15 de abr. de 1927, ed. 09890, pág. 9). 22 A importância desse periódico - lançado em janeiro de 1927 com redação instalada em sala anexa à própria Matriz carioca - para a difusão da fé saletina no Brasil é destacada por Leonardi e Mazochi (2014). Após a transferência de sua sede editorial para Marcelino Ramos (RS), a revista é publicada até os dias de hoje sob o título de “Salette”. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 37 3. ESTUDO DO SANTUÁRIO E DE PARTE DE SEU CONJUNTO ARTÍSTICO E MOBILIÁRIO A planta do Santuário de N. S. da Salette é basilical, formada por três naves - sendo a central projetada para o alto em relação às da epístola e do evangelho, o que cria um clerestório cortado por óculos com vitrais. O templo é elevado um andar acima da rua; entra-se por um portão à altura da cripta, onde há três portas para as áreas administrativas da paróquia, decoradas com relevos em formato de arcos conopiais23. O acesso ao andar superior se dá por duas escadas à esquerda e à direita. Há uma única torre sineira de base quadrada ladeada por dois pináculos, uma flecha e cruz ao topo. A entrada para o Santuário é única e centralizada e, após o nártex, a porta corta-vento é ornada com um vitral ao topo. Na parte externa, acima do portal, há um tímpano decorado com um mosaico colorido representando um campo com animais, nuvens e as duas crianças, testemunhas da aparição - cenário para a escultura branca de N. S. da Salette que há ali no meio. O arco ogival deste portal é composto de arquivoltas com ornatos florais dourados - como também são dourados outros elementos, como os capitéis decorados das colunas do interior e as que orlam o pórtico. No pequeno frontão, encimado por um florão ou crista, dispõe-se de maneira triangular esculturas da Santíssima Trindade; a figura de Deus Pai localizada ao topo, centralizada, a do Divino Espírito Santo abaixo à direita e a de Jesus Cristo do lado oposto a esta. Acima disto há uma grande rosácea que, internamente, ilumina a galeria superior, oposta ao abside. Fazendo conjunto com a citada imagem da Virgem da Salette no tímpano existem dois nichos com esculturas, cada um ao topo das duas escadas que levam ao nível da igreja - o grupo escultórico formaria uma representação completa da narrativa, dividida entre seus três momentos principais24. 23 O mesmo motivo decorativo em forma conopial se repete no interior; entre as janelas das naves, pequenas representações dos momentos da Via Sacra são emolduradas por relevos de arcos em amarelo. 24 Veremos que esse padrão de representação tripla da Aparição Saletina é repetido no Santuário por diferentes linguagens artísticas, e gostaríamos de relacionar o conjunto de esculturas do Santuário carioca com o feito em bronze que se encontra no adro do Santuário francês, erguido ainda no século XIX em estilo neo românico nas montanhas onde a aparição teria ocorrido. As esculturas francesas foram encomendadas pelo espanhol Conde de Peñalver (A União, 25 de 38 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Ambas as áreas interna e externa têm elementos decorativos florais, cogulhos, pináculos menores e relevos pintados em tons de amarelo, se tratando muitas vezes de formas comuns à arte gótica repensadas pela lente revivalista-eclética. Parte do conjunto de vitrais25 pode ser visto também de fora do templo, integrando os dois espaços - à exemplo da rosácea, dos óculos em ambos os lados do clerestório e das grandes composições ogivais que cortam as naves laterais. Este grupo é de autoria de Jacques Gruber, um mestre de vidro francês, e foram instalados para realização da missa inaugural do santuário em 13 de novembro de 1927. Por meio da imprensa, obtemos informações como seu custo - estimado em mais de 50 contos de réis (O Brasil, 06 de set. de 1927, ed. 01906, pág. 8). Contabilizamos cerca de quarenta peças no conjunto, divididas entre; a rosácea que contrasta dourado e azul com uma disposição circular de rosas cor de rosa; os grandiosos modelos ogivais com narrativas da mitologia católica26, que se dividem em dois grupos de seis entre as janelas das paredes das naves; peças retangulares e em formato de ogiva nas salas laterais anexas logo na entrada; vitrais ogivais menores nas duas capelas e no altar; e os óculos do clerestório somados out. de 1925, ed. 00086, pág. 4) e, como as posteriores que vemos na parte exterior do Santuário do Rio de Janeiro, se dividem entre a cena da Virgem chorando sentada; conversando com as crianças; e sua Assumpção. 25 Utilizamos aqui para categorizar os vitrais o conceito de “bem integrado”, uma definição que tenta dar conta de objetos que não são bens móveis nem imovéis mas que tem uma integração com o espaço arquitetônico, tendo suas dimensões e proporções relativas à superfície construída, o que dificulta, por exemplo, sua retirada sem danos e transferência do local de origem para um outro edifício (VIANA, 2015, p. 22). 26 Essas peças, um total de doze, têm os seguintes títulos gravados em suas bases (as dividimos numericamente no sentido da esquerda na entrada seguindo em direção ao altar e depois do altar para a entrada pela direita): (esq.) 1- “VIIº / IX Mystério do Rosário [...]” 2- “Xº / XIº Mystério do Rosário [...]” 3- “XIIº / XIIIº Mystério do Rosário [...]” 4- “XIVº / XVº Mystério do Rosário [...]” 5- “Sᵗᵃ Joanna D’Arc libertando Orleans / Offerta da colônia e da Missãa Militar Francezas” 6- “Apparição do Sᵈᵒ Coração / à Sᵗᵃ Margarita Maria” (dir.) 7- “Apparição de Nᵃ Sᵃ da Salette / Santuário de Nᵃ Sᵃ da Salette” 8- “São José / São Vicente de Paula” 9- “Sᵗᵃ Therezinha do Menino Jesus / Iº Mystério do Rosário [...]” 10- “IIº / IIIº Mystério do Rosário [...]” 11- IVº / Vº Mystério do Rosário [...]” 12- “VIº / VIIº Mystério do Rosário [...]”. Todas as composições têm uma parte inferior retangular basculante com motivos florais, à exceção da sétima, onde há uma representação das montanhas e do Santuário saletino de La Salette-Fallavaux, local da aparição. Além destas, outras peças do conjunto apresentam motivos florais decorativos e temas religiosos - como o batismo de Jesus Cristo, representações de santos como São Sebastião e de aparições marianas como de N. S. Aparecida. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 39 aos três que estão acima dos afrescos do altar27. Uma visão do interior do templo nos permite observar o efeito de policromia causado pelos coloridos e vibrantes vitrais, impressão que é acentuada pela iluminação natural intensa que a edificação recebe - muito devido à combinação de diversos artifícios construtivos como a elevação da nave central, a amplitude geral e claridade das paredes do salão e a disposição nordeste-sudoeste do edifício -, direcionada para as coloridas vidraças dispostas por toda sua extensão de diferentes formas ao longo do dia. O retábulo do altar-mor, que combina mármore rosado com um de tom mais claro, branco, foi instalado anos após a inauguração do templo, em conjunto com as pinturas murais, de autoria de um pintor identificado apenas como “Fantappi, de nacionalidade italiana”28 (1º Livro do Tombo, 1934). No arquivo paroquial constam, entre plantas baixas, aquarelas e projetos de móveis litúrgicos e do gradil da parte externa, o esboço de um dos nichos desse altar com características formais neogóticas com o carimbo de Bertozzi & Cia., uma empresa de marmoraria de São Paulo responsável pela obra, além de um projeto maior não-assinado do móvel como um todo na escala 10:100. Podemos ver no desenho do nicho - preenchido pela imagem do segundo momento da narrativa, no qual Salette comunica sua mensagem às crianças Melánie e Maximiliano - que pretende-se seguir a repetição do padrão de se representar separadamente os três momentos da Aparição Saletina, observado no grupo escultórico da parte externa e em um dos vitrais estudados, como também na capa da edição de março de 1917 do Mensageiro de N. S. da Salette (Leonardi e Mazochi, 2014, p. 109). CONSIDERAÇÕES FINAIS Para introduzir e melhor compreender nosso objeto foi preciso - em face da exigua literatura acadêmica sobre o Santuário e os objetos 27 O conjunto do altar mostra uma âncora, um crucifixo e o Sagrado Coração de Jesus Cristo, enquanto os outros repetem os seguintes motivos: um ostensório com hóstia, as chaves de São Pedro e as tábuas dos Dez Mandamentos. 28 Esses afrescos atualmente não podem ser mais vistos pois foram pintados novos por cima. Por meio da comparação de fotografias, podemos perceber que houve uma reforma no abside que reestruturou as janelas, diminuindo o espaço das pinturas e possivelmente afetando suas condições. 40 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 artísticos que compõem seu conjunto - fazer uma ampla revisão historiográfica, um levantamento inédito de fontes documentais e a análise do edifício e de seus objetos a partir de suas características construtivas e formais. Ressaltamos como, se tratando de um estudo de caso dentro de um panorama artístico-arquitetônico maior que convencionamos agrupar sob o Ecletismo, este trabalho se alinha com a tendência historiográfica de lançar luz sobre objetos que ficaram de fora das principais narrativas da História da Arte e Arquitetura. Pretendemos expandir ainda essa pesquisa, avançando nas três principais abordagens aqui apresentadas, considerando os limites impostos por um trabalho de pesquisa em nível de graduação. A partir do apresentado ao longo do artigo, pode-se considerar que a construção do Santuário transbordou temporalmente os anos de seu levantamento (1914-1927), posto que os esforços e negociações dos saletinos de ter sua própria paróquia na cidade do Rio de Janeiro datam ainda da primeira década do século XX, e como a campanha de financiamento popular e coletivo e as encomendas de obras de arte e mobiliário atravessaram esse período29. Além disso, traçamos relações entre a campanha de divulgação da fé saletina no país e a concessão de uma nova paróquia e Matriz aos missionários dessa ordem, visto que o próprio Santuário apresenta didática e repetidamente a narrativa da aparição mariana francesa, além de ter sido a primeira sede do periódico “Mensageiro de N. S. da Salette”30. É importante também destacar como o estudo do templo e de sua repercussão na sociedade carioca à época adiciona profundidade ao entendimento que temos da arquitetura eclética, pelo menos no tocante à forma como a mesma era recepcionada de maneiras plurais por diferentes agentes e grupos contemporâneos 29 Citamos anteriormente que seu conjunto de movéis e seu exterior ainda estavam incompletos nos primeiros anos dos anos 1930 e, mesmo depois da data da cerimônia de benção solene e inauguração do templo, ainda celebravam-se quermesses e outros tipos de atividades para angariar fundos para a finalização do templo, como também realizaram-se encomendas de obras e outros tipos de intervenções arquitetônicas ao longo dessa década. 30 Podemos também perceber, em face da criação da paróquia do Catumbi, um fluxo de publicações em diferentes periódicos de artigos e cartas apresentando a aparição, sobre a presença de seus missionários no Brasil, sobre o santuário francês e etc. É o caso do texto “A Apparição da Salette (a proposito da nova parochia)”, assinado por João Marques (Jornal do Commercio, 20 de maio de 1914, ed. 00147, pág. 3). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 41 e, posteriormente, pelas distintas correntes da historiografia arquitetônica. REFERÊNCIAS: JORNAIS A Epoca (RJ) - 1912 a 1919. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. A União (RJ) - 1905 a 1950. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Correio da Manhã (RJ) - 1920 a 1929. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Fon Fon : Semanario Alegre, Politico, Critico e Espusiante (RJ) - 1907 a 1958. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Jornal do Commercio (RJ) - 1910 a 1919. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. O Brasil (RJ) - 1922 a 1927. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. DOCUMENTOS PAROQUIAIS 1º Livro do Tombo (1914-1950). Arquivo da Paróquia de N. S. das Dores da Salette. Esboços projetuais do retábulo (c. 1934). Arquivo da Paróquia de N. S. das Dores da Salette. Plantas baixas (s/d). Arquivo da Paróquia de N. S. das Dores da Salette. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. A Arte Religiosa no Brasil: crônicas publicadas na Revista do Brasil. SP: Experimento: Giordano, 1993. ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. A Casaca do Arlequim: Belo Horizonte, uma Capital Eclética do Século XIX. 1. ed. São Paulo: Edusp, 2020. 608 p. 42 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 ARGAN, Giulio Carlo. O Romantismo Histórico. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 28-34. BARROS, José D’Assunção. O romantismo e o revival gótico no século XIX. Artefilosofia, Ouro Preto, v. 6, p. 169-182, 2009. BRUAND, Yves. Os estilos históricos. BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 33-59. CARDOSO, Rafael. Modernidade em preto e branco: Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. DE OLIVEIRA NETO, Diomedes. Arquitetura (neo) gótica e neocristandade: Experiência estética e formas de institucionalização e sociabilidade da Igreja católica no Brasil (1910-1930). Anais da X Jornada de Estudos Históricos Professor Manoel Salgado, Rio de Janeiro, v. 1, p. 1-20, 2015. DIAS, Pollyanna D’Avila. O século XIX e o neogótico na Arquitetura brasileira: um estudo de caracterização. Revista Ohun, Bahia, n. 4, pp. 100-115, 2008. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017. 112 p. FABRIS, A. A crítica modernista à cultura do ecletismo. Revista de Italianística, São Paulo, [S. l.], v. 3, n. 3, p. 73-84, 1995. FABRIS, A. Arquitetura eclética no Brasil: o cenário da modernização . Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 131-143, 1993. FASSINI, Atico. CRÔNICAS DE UMA MISSÃO: 100 anos de presença saletina no Brasil. Curitiba, 2002. LEONARDI, Paula; MAZOCHI, Letícia Aparecida. 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Instrumentos e técnicas para sistema de identificação e registro de vitrais. 2015. Dissertação (Mestrado Profissional em Projeto e Patrimônio) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. 44 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O PRAZER DO ENCONTRO: OS VISITANTES DE MUSEUS NAS FOTOGRAFIAS DE ALAIR GOMES Aline Ferreira Gomes31 – afgomes83@gmail.com Resumo: Esse artigo apresentará algumas das fotografias realizadas pelo fotógrafo Alair Gomes (1921-1992) quando visitou museus e galerias de arte em suas viagens aos Estados Unidos e à Europa. Seu olhar vigilante capturou os visitantes de espaços culturais, refletindo seu objeto de desejo, o corpo masculino, que jamais passou despercebido pelas lentes de sua câmera. No vasto acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, há dois trabalhos que apresentam esse tema: Glimpses of America (1975-76) e a série Viagens (c.1983-1991). Dentro da diversidade de temas desses conjuntos fotográficos encontramos imagens de rapazes visitando exposições de arte, muitos são registros furtivos, sem autorização dos fotografados, resultando capturas de momentos espontâneos, poses sinuosas de jovens que encaravam quadros e esculturas. Visitantes em salas de museus foram fotografados por célebres artistas como Henri Cartier-Bresson, Alécio de Andrade, Thomas Struth, Elliott Erwitt, entre outros. Cotejando as cenas de Alair Gomes com os trabalhos desses fotógrafos, percebe-se que seus registros vão além de meros flagrantes do público diante de obras de arte. Também operam como um espelho multiplicado, na medida em que são instantâneos forjados pelo olhar daquele que manipula a máquina. Ao capturar esse outro corpo que olha, se evidencia o objeto de admiração, escapando assim, desejos e afeições do próprio fotógrafo. Por detrás dessa visibilidade se libera uma poética fotográfica abandonada ao êxtase, um eco no imaginário de seu criador, o fotógrafo. 31 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Alair Gomes: A New Sentimental Journey”, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa conta com o financiamento da Fapesp, Processo no. 2018/05927-9. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 45 Palavras-chave: Alair Gomes; fotografia; visitantes de museu; corpo masculino; erotismo. Abstract: This article will present some photographs taken by Alair Gomes (1921-1992) when he visited museums and art galleries on his trips to United States and Europe. His vigilant gaze captured the cultural spaces visitors, reflecting his object of desire, the male body, which never went unnoticed by his camera’s lens. In the vast collection of the National Library, in Rio de Janeiro, there are two works that present this theme: Glimpses of America (1975-76) and the series Viagens (c.19831991). Within the diversity of themes of these photographic sets, we find images of young men visiting art exhibitions, many of which are furtive records, without the permission of those photographed, resulting captures of spontaneous moments, sinuous poses of young male facing paintings and sculptures. Museum visitors were photographed by famous artists such as Henri Cartier-Bresson, Alécio de Andrade, Thomas Struth, Elliott Erwitt, among others. Comparing the scenes of Alair Gomes with the works of these photographers, it is clear that his pictures go beyond mere snapshots of an audience in front of works of art. They also functioning as a multiplied mirror, insofar as they were forged by the gaze of the person who manipulates the camera. By capturing the other looking at works of art, the object of admiration becomes evident, thus escaping the photographer’s own desires and affections. Behind this visibility, a photographic poetics abandoned to ecstasy is released, an echo in the imagination of its creator, the photographer. Keywords: Alair Gomes; photography; museum visitors; male body; erotism. INTRODUÇÃO O fotógrafo carioca Alair Gomes (1921-1992) adquiriu certa notoriedade nos últimos anos, em razão de instituições renomadas projetarem seu trabalho na história da fotografia. Cito alguns exemplos mais recentes: houve uma importante exposição realizada em 2001 na Fundation Cartier pour L’arte Contemporain, em Paris, que destacou a 46 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 obra de Alair para o mundo da arte contemporânea; em 2012, a 30ª. Bienal de Arte de São Paulo apresentou um espaço exclusivo para expor as obras de Alair; em 2015, a Caixa Cultural realizou a mostra Alair Gomes: Percursos, exibida em algumas capitais do Brasil; além de colecionadores particulares, museus brasileiros também possuem no acervo algumas obras de Gomes e, em 2015, o MoMA de Nova York adquiriu parte da série Sonatina, Four Feet (1977)32. Considerando esse cenário atual, é possível arriscar que o público esteja mais familiarizado com os registros dos banhistas cariocas, tema que foi mais explorado pelos eventos citados acima. No entanto, A Coleção Alair Gomes mantida pela Biblioteca Nacional (BN) no Rio de Janeiro é vasta e possui uma diversidade de assuntos cultivados pelo artista.33 Esse artigo apresentará um dos numerosos temas que se encontram nesse acervo da BN. São fotografias realizadas em terras estrangeiras, durante as viagens de Alair ao exterior, portanto um ambiente menos habitual que o das praias do Rio de Janeiro. Em 1965 Alair Gomes realiza sua primeira viagem à Europa, retornando ao velho continente em 1983. Essas duas estadias estão registradas em dois suportes que estão presentes no acervo da Biblioteca Nacional. Um deles é um diário de viagem, cuja narrativa ele se dedicou até poucos meses antes de sua morte. O relato da viagem é intitulado A New Sentimental Journey (ANSJ), é um texto datilografado em inglês e infelizmente não foi publicado em tempo, logo é um documento inédito34. Nele Alair apresenta ao leitor apontamentos sobre locais, monumentos e exposições de arte que visitou. A narrativa possui caráter erótico, juntando reflexões sobre arte, corpo masculino e vivências em diversas instituições culturais. Em mais de quinhentas páginas, Gomes apresenta sua jornada pela Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Suíça. O outro documento sobre essa viagem é um conjunto fotográfico 32 Cf. https://www.moma.org/collection/works/180046 33 A Coleção Alair Gomes, é composta por 16 mil fotografias e 150 mil negativos, além de diversos registros realizados pelo fotógrafo como manuscritos referentes às suas atividades acadêmicas e artísticas, diários íntimos, estudos sobre matemática, física, filosofia e arte; planos de aulas, correspondências, recortes de jornais e impressos diversos. 34 Apenas uma parcela das fotografias de série Viagens e alguns trechos do texto de A New Sentimental Journey foram publicados em uma edição brasileira: GOMES, Alair. A new sentimental journey. Coautoria de Miguel Rio Branco. São Paulo, SP: CosacNaify, 2009. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 47 composto por aproximadamente 630 imagens. As fotografias da Europa acompanham a temática do diário, no entanto, não figuram como simples ilustrações ao texto, elas são por si um objeto artístico e refletem mais um aspecto do olhar poético da Alair sobre o universo masculino. Outra viagem do fotógrafo também possui registros semelhantes aos da Europa. Em 1962 Alair Gomes realiza sua primeira visita aos Estados Unidos, retornando ao país nos anos de 1975-76, momento em que realizou a série fotográfica Glimpses of America. As fotografias em terras americanas foram produzidas num período em que sua carreira na fotografia já havia se iniciado. Em dezembro de 1975 ele havia publicado seu trabalho em uma das edições da Artists Alamanac, uma edição coletiva de Nova York no formato livro de artista35. No ano seguinte, participou de uma mostra coletiva na galeria Walker Street. Assim, Glimpses of America possui registros da paisagem urbana e de outros cenários menos citadinos, como fazendas e praias, sem abandonar seu fascínio pela figura masculina, as composições se concentram no jovem branco americano. Em comum os diários fotográficos dos Estados Unidos e da Europa revelam um viajante explorador, na ânsia de tudo ver e conhecer Alair visitou muitos museus e galerias de arte. A busca por conhecimento o impeliu de fotografar muitas obras desses acervos, algumas vezes para compor e enriquecer seu próprio museu imaginário, como ele mesmo afirmou: “My first glimpse at the Antiken36 makes me realize I must take several photos; must pieces in display are not in books I have – and there’s no album of this museum either.” (GOMES, 1983-1991, p.111). Contudo, frequentar museus e galerias também poderia ter outro objetivo, além de enriquecer seu repertório iconográfico. 35 Sobre a participação de Alair Gomes em publicações americanas cf. PITOL, André Luis Castilho. Ask me to send these photos to you: a produção artística de Alair Gomes no circuito norte-americano. 2016. Dissertação (Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https:// www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-15032017-151252/pt-br.php. Acesso em: 10 jan. 2022. 36 Aqui Alair se refere ao Antikenmuseum Basel, o museu de arte antiga de Basileia, na Suíça. 48 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O PRAZER DO ENCONTRO Walter Benjamin ao refletir sobre a figura do colecionador, em seu livro Passagens (1982), traz um apontamento instigante. Para ele o colecionador articula sua busca para que o objeto de desejo sempre venha ao seu encontro: “Ora, é exatamente isso que se passa com o grande colecionador em relação às coisas. Elas vão de encontro a ele. Como ele as persegue e as encontra, e que tipo de modificação é provocada no conjunto das peças que se acrescenta, tudo isto lhes mostra suas coisas em fluxo contínuo.” (BENJAMIN, 2009, p. 240) O deslocamento de Alair é sempre orientado por espaços frequentados por rapazes, ele mesmo confessa buscar parques ou praças esportivas justamente para aumentar suas chances de encontrar jovens rapazes: “Lone morning walk towards the Parco Querino. I follow a roundabout way, to see more of the city, and increase my chances of coming across some open sports field, with young Vicentines showing their pilose thighs at their Sunday morning football or some other game.” (GOMES, 1983-1991, p. 141-142). Ou seja, Alair não esperava simplesmente o acaso operar em seu favor, havia um esforço do fotógrafo para encontrar os rapazes e seu olhar aguçado aproveitava qualquer oportunidade ou lugar para cultivar seu desejo. Novamente Benjamin observa que o verdadeiro colecionador é aquele que insere o objeto específico em um círculo pessoal de sentidos, o que não significa alienação, pelo contrário, cada objeto da coleção está diretamente ligado à rememoração de sua história. Nesse sentido, é sintomático que Alair Gomes tenha se dedicado com afinco em visitar museus e coleções: Living in Brazil, I would every two years make the pilgrimage from Rio de Janeiro to São Paulo, and stay there for several days for examination and fruition of the exhibits of modern art in the Biennale of the latter city, in its good times, rivaled its Venetian counterpart. I have also already meticulously visited every art corner in New York’s Soho and other neighborhoods. (GOMES, 1983, p.2) Frequentar acervos do Brasil e de outros países sublinha o caráter colecionador de Alair Gomes, ao explorar outros acervos ele passou ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 49 a conhecer distintas formas de coletâneas e adquiriu percepções sobre outras coleções. É nessa ânsia de um colecionador de imagens que a mirada vigilante de Alair também operava entre salas e corredores dos museus, capturando com sua câmera os visitantes que o atraiam. Essas fotos unem dois elementos caros ao artista: o homem jovem e as obras de arte. Temas que jamais passaram despercebidos pelas lentes de sua câmera. Alair registra momentos de jovens contemplando objetos artísticos ou apenas transitando pelos espaços museográficos. Estabelecendo um jogo complexo entre seus modelos, ora sequestrando cenas sem autorização dos fotografados, ora conseguindo que posassem para suas lentes. Gomes conseguiu captar gestos espontâneos, poses sinuosas de jovens que encaravam quadros e esculturas. Um desses momentos pode ser observado em sua passagem por Paris. Alair Gomes visita o Musée de l’Orangerie e fotografa um grupo pequeno de rapazes na sala do museu (figura 1). A sequência ilustra bem a capacidade que ele tinha de estabelecer alguma interação com seus modelos. Registrando seis momentos desse encontro, o observador é convidado a conhecer os modelos progressivamente. Embora não se tenha encontrado alguma indicação da ordem das fotografias e a organização apresentada aqui seja da escolha da autora, as capturas parecem seguir um breve enredo. As três primeiras imagens indicam que o fotógrafo avistou o pequeno grupo e, com certa hesitação, os fotografa discretamente (figuras 1.a, b e c). São registros distantes, quase tímidos. Na primeira cena (figura 1.a) há dois rapazes no banco do museu. Em seguida, (figura 1.b e c) um terceiro personagem se reúne ao grupo, mas evita se juntar aos outros no banco, permanecendo em pé. Possivelmente, até esse ponto, Alair não tenha recebido nenhum sinal de recusa da parte dos modelos e na quarta foto (figura 1.d) ele se aproxima do grupo. O trio também se movimenta. Dois deles se colocam de pé e o terceiro se agacha. Alair parece ter feito o mesmo gesto, pois o ângulo do registro também se modificou. Agora a câmera, próxima ao solo, mira levemente para o alto. Gomes já conquistou um cúmplice, o rapaz em pé no canto esquerdo, é atraído pela lente e cruza seu olhar com o de Alair. A quinta composição (figura 1.e) é um recorte do registro ante50 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 rior. No canto direito da cena continuam o rapaz do primeiro plano e no segundo plano, o jovem agachado. Comparando com a foto antecedente (figura 1.d), os dois modelos modificaram apenas alguns gestos: a direção do olhar do jovem em pé e as mãos que repousam sobre os sapatos do rapaz que se agachou. Na sexta cena (figura 1.f), um dos rapazes está sentado sozinho. Ele inclina o tronco para frente e sustenta a cabeça com as duas mãos. O olhar distante do modelo confere ao retrato introspecção e melancolia. Inevitavelmente, a postura rememora a célebre escultura de Rodin, O Pensador37 e, também a figura da Melancolia de Dürer38. O sétimo registro (figura 1.g) é o triunfo do fotógrafo. A lente se acerca dos três rapazes. Agora todos de volta ao banco da sala, posam mirando para Alair, legitimando a presença invisível do fotógrafo. Em destaque, há ainda a expografia do museu que rememora um palco. O formato oval da sala remete uma arquitetura teatral. A luminosidade que surge de cima se assemelha aos holofotes utilizados em espetáculos de dramaturgia e, para completar, as obras de Monet ao fundo figuram como peças de um cenário. Todos esses elementos, somando-se a ausência de outros visitantes na sala, reforçam a impressão de uma orquestração operada pelo fotógrafo sobre os garotos. É curioso notar que nas fotos do l’Orangerie Alair deixou o objeto artístico como segundo plano e quem protagoniza as cenas são os rapazes. Tal exercício lembra uma frase do célebre pensador francês: “Confesso que sou incapaz de me interessar pela beleza de um lugar se ali não houver pessoas (não gosto de museus vazios)” (BARTHES, 2004, p. 53). A afirmação de Roland Barthes publicada em uma revista francesa, em 1978, se coaduna ao olhar do fotógrafo carioca, onde o componente principal de suas fotos é a presença humana, em especial nos registros de suas viagens. As salas dos museus nunca estão vazias, salvo alguns momentos em o tema da foto é exclusivamente o objeto artístico. O mesmo destaque também se projeta no diário de viagem de 37 RODIN, Auguste. The Thinker, 1902-04, escultura. Acervo: Musée Rodin, Paris. Disponível em: https://www.wga.hu/cgi-bin/highlight.cgi?file=html/r/rodin/1gates/2thinke1.html&find=thinker 38 DÜRER, Albrecht. Melencolia I, 1514. Gravura, 239 x 189 mm. Acervo: Kupferstichkabinett, Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe. Disponível em: https://www.wga.hu/cgi-bin/highlight. cgi?file=html/d/durer/2/13/4/079.html&find=melancholy ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 51 Alair. Em sua estadia por Paris o fotógrafo caminha pelas salas de outro museu, desta vez o Louvre, ele avista dois rapazes que chamam sua atenção pelo comportamento e os corpos que possuíam: Quelles cuisses dont je viens de prendre quelques photos! Souvent je les vois encore plus dorées dans la plage à Rio – but this is gold enough for flesh in the Louvre. The boy displaying them talks with another – they speak English, are obviously from the other side of the Atlantic. The way they evince their entrancement with each other makes me guess they’ve just striken their acquaintance – avowed gays or still under disguise? Anyway, they seem to have enjoyed my photographing. The gym socks of the one with bare thighs have been half-swalled by his sneakers”. (GOMES, 1983-1991, p. 71) O trecho acima faz referência de uma fotografia que exibe as coxas dos rapazes, infelizmente esse registro não foi encontrado no acervo da Biblioteca Nacional, mas existem outras fotografias que se assemelham ao relato. É o caso da imagem que retrata um rapaz observando a obra de Giovanni Boncosiglio detto Marescalco (1465-1535), figura 2. Compianto su Cristo morto (1490-1495) é uma obra que pertence ao acervo do Museu Civico em Vicenza, na Itália. Na foto o rapaz se posiciona diante da obra, ocultando seu rosto. Os braços estão cruzados por de trás do corpo e ele segura na mão direita um pequeno livro. O modelo veste uma camisa de manga longa, shorts, tênis e meias. A pequena bermuda garante a exibição das pernas do rapaz, detalhe que dificilmente passaria despercebido por um observador tão atento como Alair. Embora o jovem não tenha um parceiro, como no caso da narrativa do Louvre, a foto exibe a mesma região do corpo que Alair destacou no seu relato, as coxas nuas. Voltando ao trecho do museu francês, Alair apresenta um ponto relevante quando nota a ausência de discrição dos garotos ao demonstrarem afetuosidade um pelo outro, indicando a relação amorosa entre eles. Tal liberdade sexual parece ter sido o motivo pelo qual os rapazes tenham consentido que Alair os fotografasse. Ele até percebe um certo prazer dos garotos ao posarem para ele: “they seem to have enjoyed my photographing” (GOMES, 1983-1991, p. 71), o que sugere uma relação 52 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de reciprocidade entre fotógrafo e fotografados. Sobre a fotografia do museu italiano, faltam as impressões textuais que provavelmente forneceriam mais informações comportamentais do modelo, como Alair o fez ao descrever os rapazes do Louvre. Infelizmente, sobre a foto de Vicenza, em razão do texto não apresentar seus detalhes, a interface entre fotógrafo e modelo se silencia e ficamos sem conhecer a enredo dessa relação. A narrativa dos garotos no Louvre remete ao trabalho de outro fotógrafo carioca. A partir de 1964, durante trinta e nove anos, Alécio de Andrade (1938- 2003) registrou os visitantes do mesmo museu. O fotógrafo que morou em Paris, produziu um conjunto de 12 mil imagens. Ele capturou flagrantes que destacam a relação dos visitantes com o acervo do museu. A diversidade desse trabalho possui cenas divertidas, outras poéticas e até mesmo teatrais. Esse grande conjunto fotográfico de Alécio revela as apropriações que o público fez do espaço museográfico. O mundo masculino também figura nesses registros, é o caso da fotografia de dois rapazes que olham para o quadro feito por Leonardo da Vinci (figura 3). Diante do retrato feminino, os visitantes vestem shorts curtos, camisetas e tênis com meias. As pernas estão expostas. Eles possuem as mesmas posturas estáticas, o peso dos corpos recai em uma das pernas. Essas características recordam tanto a descrição textual de Alair no Louvre, quanto a sua foto do jovem no museu de Vicenza. Outro ponto em comum entre as fotos de Alair e de Alécio, é a concentração que os modelos dedicam ao objeto artístico. Na imagem de Alécio ainda se percebe, mesmo que de maneira sútil, a interação entre os corpos masculinos no ponto em que as mãos da dupla se encontram e se tocam levemente. A fotógrafa e crítica de arte, Stefania Bril, escreveu em 1981 um texto analisando esse trabalho de Alécio de Andrade. Bril escreve: “A impressão é de um palco onde os atores representam sem jamais se repetir nem corrigir a sua atuação. Que peça mais fascinante!” (BRIL, 1981, p. 18). Embora o comentário de Bril seja sobre a obra de Andrade, ele também poderia ser remetido aos registros do l’Orangerie de Gomes. Tanto Alécio como Alair atuam como diretores de esquetes teatrais, manipulam ângulos e luminosidade, operam a máquina fotográfica como diretores de seus atores-modelos, desvelando um universo sensível que só existe a partir do contato com a obra de arte. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 53 Anos antes das imagens realizadas na Europa, Alair visitou os Estados Unidos. Essa viagem também foi registrada pelas suas lentes produzindo outro conjunto de fotografias, a série Glimpses of America. O hábito de visitar museus e galerias já existia e os seus visitantes não escaparam de seu olhar atento. Mais uma vez, Gomes aproveitou os momentos em que o público se concentrava nas obras e seu modo de atuar já se dava como ocorreu no território europeu: a máquina fotográfica operava como armadilha, roubando cenas, compondo flagrantes, manifestando nuances da relação dos rapazes com as coleções. Tratando-se dessa temática, duas fotos se destacam. Dessa vez o cenário é o Museu de Arte Moderna de Nova York (figura 4). Os protagonistas circulam pelas salas com seus corpos menos expostos, pois estão mais cobertos pelas roupas de inverno. Seus olhares se desviam das obras de Henri Rousseau e Robert Delaunay. Este último olha para a janela, mira as árvores despidas de folhagens no jardim do museu. Já sobre o rapaz próximo ao quadro de Rousseau, pouco se pode supor sobre o motivo de seu olhar ter abandonado a tela. As duas composições retratam a introspecção dos rapazes. Apesar de estarem em um ambiente público, as fotografias capturam um momento intimista, conferindo um caráter invasivo da lente fotográfica. As cenas reforçam o interesse de Alair que se rende mais ao visitante do que a peça artística em si, mesmo em momentos como esse em que um frequentador distraído do museu deixa de contemplar o objeto artístico. Retomando a série realizada na Europa, encontramos momentos em que Alair conseguiu alinhar o registro da obra de arte com a mirada dos jovens visitantes. A fotografia do gaulês moribundo é um desses momentos extraordinários (figura 5). A imagem registra ao mesmo tempo o dorso da escultura e um jovem observador. Novamente recorremos ao texto de Alair que traz a descrição desse encontro: Standing just to his front, altogether absorbed in his figure, a youth of delicate aspect – what and comely face - just for a moment I could see it, as he raised it, and turned his electric, but sweetly dazzled eyes from the dying man certainly from his eyes-catching genitals, which I know well, but do not yet see, to my camera – which I’d too promptly turned to him – but he instantly parted - just as if he’d been caught in a grave, double 54 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 delict: closely gazing in fascination at a man’s dick and balls, and for a split second acknowledging the obvious erotic interest of another man for him - and had thus to flee the place and the occasion of his flagrant faults – I had no time even for another click at him - anyhow, there was also unquestionable sympathy in his enquiring but fully informed glance at the one he had attracted. (GOMES, 1983-1991, p. 388-389) Se nas fotos dos rapazes do MoMA, citadas anteriormente, o flagrante de um momento introspectivo dos modelos indicava um aspecto voyeurístico, no trecho acima é o próprio Alair quem informa que sua prática fotográfica testemunhou uma cena que não deveria ser vista. Ao dizer que o garoto foi flagrado cometendo um duplo delito, primeiro por ter olhado para o sexo da escultura, depois por reconhecer o interesse erótico de outro homem por ele, que no caso era Alair. O caráter invasivo da lente se concretiza e Alair nos torna cúmplices de seu olhar sagaz. A cena do gaulês moribundo lembra a composição realizada pelo fotógrafo franco-estadunidense Elliott Erwitt. Na fotografia do museu grego (figura 6) quem encara a lente fotográfica é um homem mais velho. Vestindo um traje religioso, o personagem se apresenta no segundo plano, exatamente entre as pernas da escultura. O observador tem a visão da traseira da estátua que funciona como uma moldura ao retrato do religioso, dando um tom bem-humorado à cena. Lembrando o relato de Alair no qual o garoto do museu romano examinava as partes erógenas da figura masculina, somos contaminados com essa informação e passa a ser inevitável não fazer suposições sobre a direção do olhar desse homem diante da nudez da escultura masculina. A justaposição de universos tradicionalmente conflitantes: a austeridade da religião versus a voluptuosidade de um corpo masculino nu, são contrastes que ocupam o mesmo espaço reforçando o caráter, no mínimo, divertido da fotografia. Todas essas cenas revelam um universo onde arte e vida, invenção sublime e a existência mais trivial, misturam-se indissociavelmente. Um aspecto importante é o modo pelo qual esses artistas exploram o tema que se diferencia de um registro simplesmente documental. Isso se percebe se compararmos com trabalhos fotojornalísticos por exemplo. As imagens feitas por Luiz Carlos Barreto, publicadas na revista ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 55 O Cruzeiro, em 1953 (figura 7), fizeram parte de uma reportagem sobre obras do Museu de Arte de São Paulo expostas em Paris no museu l’Orangerie. O texto acompanha um conjunto de fotografias de personalidades que visitavam a mostra. Barreto utilizou ângulos que privilegiavam tanto as celebridades, quanto boa parte da dimensão das telas, assim eram identificados obras e visitantes. Além de revelarem os perfis desse grupo seleto, as fotos também traziam legendas que reforçavam a identificação: como o casal Bardi, funcionários do alto escalão do museu e André Marie (ministro da educação da França). Sem desconsiderar que o objetivo do trabalho de Barreto era de o fornecer informação para um veículo de comunicação em massa, se observa que as composições seguem os modos de um tradicional ensaio fotográfico: os modelos posam, as posturas são previsíveis, evita-se qualquer sugestão de espontaneidade e surpresa. A cena ensaiada é carregada de aspectos formais, sem espaço para a ambiguidades ou humor. De fato, Alair possuia objetivos distintos de Barreto, mas ele explorou o mesmo tema criando composições muito diversas das fotos do Cruzeiro. Muitas das capturas de Alair contam com o desconhecimento do modelo sobre sua ação fotográfica. Utilizando elementos que causam surpresa e ambiguidades, de alguma forma, suas fotos são capazes de revelar uma certa intimidade que existe no olhar de quem caminha pelos corredores de um museu. O jogo entre modelo e fotógrafo ganha outra perspectiva no trabalho da francesa Sophie Calle. A artista manipulou a ideia do fotógrafo que aproveita oportunidades e rouba cenas em salas de museus. Em sua obra de 1981, The Shadow (Detective), um detetive particular segue a própria artista e registra seus passos por um dia inteiro. No conjunto de imagens produzidas por essa perseguição, uma das fotos retrata Calle na sala do Louvre. Ela está diante do quadro de Ticiano39. O observador a enxerga de longe, talvez estivesse de braços cruzados, tampouco é possível afirmar muito sobre a direção do olhar da artista, pois o ângulo da foto oculta seu rosto. O distanciamento da cena corrobora o clima de espionagem. Ao trocar de lugar com o fotógrafo, se transformando em 39 CALLE, Sophie. La filature (The Shadow) 1981. KRAUSS, Rosalind. Two Moments from the Post-Medium Condition. October, vol. 116, The MIT Press, 2006, p. 61. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40368424. 56 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 modelo, Sophie Calle engendrou uma espécie de caça entre gato e rato. Ela subverteu o papel do fotógrafo, passando a ser o objeto de desejo e não mais aquela que deseja. Já a fotógrafa Louise Lawler pouco privilegia os frequentadores do museu, mas também deixa de destacar o objeto artístico. Na fotografia do Metropolitan Museum of Art de Nova York (figura 8), a escultura de Canova é deslocada do centro da fotografia, ocupando o canto direito da imagem. O enquadramento segmenta a figura de Perseu, vemos o corpo da cintura para baixo, garantindo a exibição do sexo masculino. Ao fundo, a escadaria do museu é habitada por alguns indivíduos que se direcionam para a sala de obras europeias. Esses visitantes se apresentam tão pequeninos que se parecem mais com bonecos utilizados em maquetes arquitetônicas. Tal distanciamento reforça a fantasia de que o segundo plano da fotografia funcione mais como um cenário do que como uma estrutura real. Enquanto na foto de Sophie Calle, adquirimos a posição do detetive, agora Lawler nos colocou na posição de quem deu o clique, somos mais que cúmplices desse sofisticado jogo de perspectivas. O efeito criado transforma o observador no próprio visitante do museu. Se ao se dedicar ao tema dos frequentadores de museus, a fotografia é capaz de manipular a posição do observador, talvez o cinema tenha conseguido ir além, desdobrando ainda mais esse jogo de arranjos entre o artista e aquele que observa a cena. Alfred Hitchcock explorou com maestria o fascínio íntimo que existe entre o autor, aquele que registra, e o observador. Em Vertigo (Um corpo que cai), filme de 1958, Hitchcock ofereceu ao espectador um lugar especial para participar de uma cena tão exclusiva. Em determinado momento da trama o detetive Scottie, protagonizado por Jimmy Stewart, persegue Madeleine, que é interpretada por Kim Novak. A situação inicia quando Madeleine entra num museu. O detetive a observa de longe, ela está sentada contemplando um quadro. Nesse ponto, Hitchcock cria uma espécie de espelho multiplicado: primeiro espionamos Scottie, que por sua vez olha para Madeleine. Em seguida, a câmera se aproxima e o espectador ganha a mesma visão do detetive que agora passa a observar Madeleine diretamente. Nesse momento, somos os olhos de Scottie, somos tão voyeurs quanto ele. Observamos em primeira mão a visitante solitária na sala ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 57 que se apresenta em tal grau de hipnose pelo quadro que observa que nem percebe que a espionamos. O esquema orquestrado pelo cineasta trata de um aspecto minucioso entre ver e ser observado, mas também entre a obra e o observador. Há algo enigmático que se desvela. É preciso lembrar que Scottie se apaixona por Madeleine. O enredo depois nos revela que se trata de um amor impossível. A cena de Hitchcock apresenta o museu como o lugar do amor inalcançável, dos desejos sorrateiros e de uma sexualidade reprimida. Se pensarmos nos rapazes dos museus fotografados por Alair Gomes, há também ali paixões sutilmente escondidas sob o verniz do amor pela alta cultura. Suas cenas de museus evocam uma estranha combinação entre tensão erótica e um desejo inatingível. CONSIDERAÇÕES FINAIS As obras apresentadas neste artigo permeiam a interação entre o observador e a obra de arte. O que existe nessa relação? Um texto de Jorge Coli sobre a importância do silêncio na história da arte nos auxilia a pensar sobre o assunto. Em determinado ponto de seu ensaio ele reflete sobre o silêncio entre o público do museu e o contato com a peça artística: “A solidão no museu é carregada de uma sensação de privilégio, já que nós não estamos com a multidão e que podemos entrar em interstícios que nos levam para além das aparências das obras, por meio de uma sintonia muito fina. É o silêncio que isola diante da obra.” (COLI, 2014). Contudo se o silêncio é capaz de sintonizar o observador com a obra, para Georges Bataille os acervos dos museus constituem a ligação com um universo que já não existe mais. Ao refletir sobre o tema, ele diz que as obras são objetos mortos e é a relação com público que as reaviva: Un musée est comme le poumon d’une grande ville : la foule afflue chaque dimanche dans le musée comme le sang été elle en ressort purifiée et fraîche. Les tableaux ne sont que des surfaces mortes et c’est dans la foule que se produisent les jeux, les éclats, les ruissellements de lumière décrits techniquement par les critiques autorisés. Les dimanches, à cinq heures, à la porte de sortie de Louvre, el est intéressant d’admirer le flot des 58 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 visiteurs visiblement animés du désir d’être en tout semblables aux célestes apparitions dont leurs yeux sont encore ravis. (BATAILLE, 1970, p. 239) As fotos dos rapazes nos museus realizadas por Alair Gomes apresentam a sensibilidade dos pontos tocados por Coli e Bataille. Percebemos nelas que o visitante confere uma outra perspectiva para as ‘coleções mortas’, como Bataille diz. E de certa forma, a fotografia e até o cinema foram atraídos pelo silêncio potencializador existente nessa relação. Tanto o diário como as fotos das viagens de Alair permitem acompanharmos seus percursos por entre salas e corredores dos museus. Registrando seu fascínio pelo corpo do homem, ele constrói uma certa cartografia do universo masculino. Essas capturas funcionam como o espelho multiplicado de Alfred Hitchcock. E ainda, se pensarmos que as cenas foram forjadas pelo olhar daquele que deu o clique, esses instantes significam mais do que um simples retrato do momento, tratam também de algo sobre o fotógrafo. Lembrando que Alair Gomes também é um visitante, essa perambulação pelos museus traduzem uma espécie de pacto mútuo entre a obra e observador. Esse outro corpo que olha traduz descobertas sobre um objeto de admiração. Os registros dos visitantes são capazes de apresentar desejos e afeições do próprio fotógrafo. E é por detrás dessa visibilidade que se libera uma poética fotográfica abandonada ao êxtase, um eco no imaginário de seu criador, o fotógrafo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. Incidentes. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BATAILLE, Georges. Œuvres complètes, Premiers Écrits, 1922-1940, tome I. Paris: Gallimard, 1970. BENJAMIN, Walter. O colecionador. In: Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Editora UFMG; IMESP, 2009. _____. Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 59 In: ______. Obras escolhidas: a rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987, v. 2. BRIL, Stefania. Paris marota e alegre nas fotos de Alécio de Andrade. O Estado de São Paulo. São Paulo, 20 nov. 1981. COLI, Jorge. A Inteligência do Silêncio. In: NOVAES, Adauto (org.). Mutações: O Silêncio e a prosa do mundo, 2014. Disponível em: https://artepensamento.com.br/item/a-inteligencia-do-silencio/?_sf_s=intelig%C3%AAncia+do+sil%C3%AAncio. Acesso em: 06 abr. 2020. DEUTSCHE, Rosalyn. Louise Lawler’s Rude Museum. Disponível em: http:// transform.eipcp.net/transversal/0106/deutsche/en.html#_ftnref21. Acesso em: 20 set. 2021. GOMES, Alair. A new sentimental journey. Coautoria de Miguel Rio Branco. São Paulo, SP: CosacNaify, 2009. _____. Introduction, fev. 1983, p. 2. Manuscrito de 4 páginas, datilografado, com inscrição a lápis na primeira página: “not published”. Acervo Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. _____. A New Sentimental Journey, 1983-1991 (texto inédito). Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. KRAUSS, Rosalind. Two Moments from the Post-Medium Condition. October, vol. 116, The MIT Press, 2006. Disponível em: http://www.jstor.org/ stable/40368424 Acesso em: 13 mar. 2021 PITOL, André Luis Castilho. Ask me to send these photos to you: a produção artística de Alair Gomes no circuito norte-americano. 2016. Dissertação (Mestrado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https:// www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-15032017-151252/pt-br. php. Acesso em: 10 jan. 2021 TRUFFAUT, François. Hitchcock Truffaut: entrevistas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004. 60 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Imagens: Figura 1: GOMES, Alair. Série Viagens. Fotografias s/d., sem título. Fotos realizadas no Musée de l’Orangerie, Paris. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 61 Figura 2: GOMES, Alair. Série Viagens. Fotografia s/d., sem título. Foto realizada no Musei Civici - Palazzo Chiericati, Vicenza, Itália. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 62 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 3: ANDRADE, Alécio de. Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519), dito Leonardo da Vinci, Retrato de mulher, dito A Bela Ferreira, c.1495-1500. Museu do Louvre, Paris, 1990 ADAGP, Paris. Fonte: http://aleciodeandrade.com/en/le-louvre-et-ses-visiteurs-en/ ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 63 Figura 4: GOMES, Alair. Newyorkness - XIX. Fragmentos da série Glimpses of America: a sentimental Journey (1975-76), EUA. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Figura 5: GOMES, Alair. Fotografia da série Viagens, s/d. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 64 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 6: ERWITT, Elliott. Greece, 1963. Acervo: Magnum Photos. Fonte: https://www. magnumphotos.com/arts-culture/art/elliott-erwitt-the-art-of-looking-at-art/ ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 65 Figura 7: Fotografias de Luiz Carlos Barreto. O maior sucesso da “grande saison”: o Museu de Arte de Arte de São Paulo expõe em Paris. O Cruzeiro, 7 nov.1953, p. 94-97. Fonte: http:// memoria.bn.br/DocReader/003581/83756 Figura 8: LAWLER, Louise. Statue before Painting, Perseus with the Head of Medusa by Canova, 1982. 66 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 POR UMA HISTÓRIA DA ARTE SINESTÉSICA: AS REIVINDICAÇÕES POÉTICAS DA SELEÇÃO DE OBRAS PARA A OFICINA DE PERCEPÇÃO AUDITIVA-VISUAL Ana Beatriz Acioli Mendes40 – anaacioli55@gmail.com Resumo: Esta comunicação analisa as cinco obras de arte escolhidas para o desenvolvimento da terceira e última atividade do projeto “Oficina de Sinestesia: Percepção Auditiva-Visual”. O presente trabalho pretende discutir a seleção de pinturas dentro do recorte temporal do século XIX até os dias atuais que se restringe a artistas que chegaram a mencionar no decorrer de sua carreira a sinestesia ou tópicos associados à temática. Temos como maior objetivo possibilitar reflexões e concepções introdutórias aos assuntos que permeiam arte, sinestesia e multissensorialidade diante das práticas de aprendizagem com base nas linguagens artísticas que fomentam o protagonismo do participante. Com a criação de oficinas dialógicas, desejamos estabelecer uma relação com objetos artísticos de forma horizontal e lúdica, gerando trocas de saberes e observações múltiplas as questões estéticas e de gosto. Nosso olhar para esta pesquisa é ressaltar a sinestesia no âmbito das artes, principalmente das artes plásticas, quando recorremos a condição como recurso de manifestação ou quando o público a experimenta de tal forma. É inegável a união de sensações e de comunicação que podem ser feitas com a aproximação sinestésica na arte, sendo até mesmo, busca as fusões de dois ou mais sentidos da mesma maneira de uma linguagem artística. Entramos em contato com a obra de arte em perspectiva da sinestesia no campo artístico ao escolher apenas uma obra para fazermos uma releitura. O ato de reler uma obra e criar outra, pautando em novas conexões, mostrar aos participantes como sentimos as artes. 40 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação intitulada “Ver o som: Oficinas de Sinestesia para Exercitar Percepções Auditivas-Visuais”, orientada pela Profa. Dra. Tania Cremonini de Araújo-Jorge, desenvolvida no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz na Fundação Oswaldo Cruz. A pesquisa conta com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 67 Palavras-chave: Sinestesia. Sentidos. Oficinas. Percepção. Abstract: This communication analyzes the five works of art chosen for the development of the third and last activity of the project “Workshop of Synesthesia: Auditory-Visual Perception”. The present work intends to discuss the selection of paintings within the temporal cutout of the nineteenth century until the present day that is restricted to artists who came to mention in the course of their career the synesthesia or topics associated with the theme. We have as our main objective, to enable reflections and introductory conceptions to the subjects that permeate art, synesthesia and multisensitivity in the face of learning practices based on the artistic languages that foster the protagonism of the participant. With the creation of dialogic workshops, we want to establish a relationship with artistic objects in a horizontal and playful way, generating exchanges of knowledge and multiple observations of aesthetic and taste issues. Our look at this research is to highlight the synesthesia in the field of the arts, especially the plastic arts, when we use the condition as a manifestation resource or when the public experiences it in such a way. It is undeniable the union of sensations and communication that can be made with the synesthetic approach in art, being even, seeks the fusions of two or more senses in the same way of an artistic language. We come into contact with the work of art in the perspective of synesthesia in the artistic field by choosing only one work to do a rereading. The act of rereading one work and creating another, based on new connections, shows the participants how we feel about the arts. Keywords: Synesthesia; Senses; Workshops; Perception. INTRODUÇÃO Este artigo apresenta um segmento da pesquisa de iniciação científica desenvolvida e apoiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz na Fundação Oswaldo Cruz (PIBIC/CNPq/LITEB/IOC/FIOCRUZ). Titulada “Ver o som: Oficinas de Sinestesia para Exercitar Percepções Auditivas-Visuais”, a pesquisa, ainda em andamento, vem estudando a condição chamada 68 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 sinestesia dentro de sua literatura médica e artística sem esquecer sua relevância na parte do estudo em artes e fruição de obras de artes. Para introduzir nossa discussão, compreendemos a sinestesia como neurológica, artística e desenvolvimental (CYTOWIC, 1989) ou constitutiva (BARON-COHEN, 1996). Ao adotarmos a explicação que existem inúmeras categorias diante do nosso assunto central, entendemos a sinestesia como um fenômeno-neurológico, na qual sua origem parte da percepção sinestésica das conexões e funções cerebrais do indivíduo, mas também distinguindo de metáforas e recursos linguísticos, ou até mesmo, como consequência do uso de drogas psicoativas (COSTA, 2018, p. 20). Isto é: A ligação cruzada entre os diversos sentidos da percepção humana está reunida no leque de sentidos da palavra sinestesia. No sentido estrito, a sinestesia é uma síndrome neurológica rara em que o estímulo de um sistema sensório-cognitivo é acompanhado de outra percepção automática e involuntária de um segundo mecanismo sensório-cognitivo (SOUZA, 2016, p. 18). Desse jeito, o olfato, o tato, a audição, o paladar e a visão fazem parte das manifestações artísticas, uns com mais frequência do que outros. Em nosso caso de estudo priorizamos a visão e a audição, interpretando-os suas ligações diretamente ao cérebro, já os demais sentidos, são entendidos como participantes de “uma classificação corpórea, sendo estimulados por atributos físicos, com conexões mais indiretas, em comparação à visão e à audição. Todavia, ainda são capazes de fornecer o contato com o cérebro, ao criar pensamento ou ‘quase-pensamento’” (SILVA, 2021, p. 17). Mas, quando estamos nos referindo a uma oficina de sinestesia, mesmo que indiquemos uma relação entre dois sentidos específicos, sabemos que estas relações só serão existentes a partir do que for desencadeado. Por isso, convidamos os participantes a aguçarem a visão e a audição sem negar os outros três. Outro ponto é que, ao ressaltar a sinestesia no âmbito das artes quando recorremos à condição como recurso de manifestação ou quando há a experiência do público e/ou artista, estamos afirmando o valor da condição como, segundo o artista e pesquisador de sinestesia, Dr. Hugo Heyrman, “sem uma forma sinestésica de ver o mundo, não haveria arte” (2005, n.p.). Desse jeito, “é o resultado de uma intenção ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 69 artística (uma forma de sinestesia feita pelo homem)” que está ligada a imagem, movimentação, cor e recursos poéticos e metafóricos (2005, n.p.). Temos por base o estudo de mestrado da pesquisadora Carla Patrícia Magalhães Presa, que nos informa que “a sinestesia é uma condição neurológica na qual o estímulo de um determinado sentido provoca uma percepção automática noutro sentido diferente” (PRESA, 2008, p. 12). Isto quer dizer que apontamos a existência de correspondência entre os modais sensório-cognitivo em teorias da literatura sobre a condição, tais como são citados por Laise Silva (2021, pp. 21-22): Teoria da Conectividade Neural Preservada (MAURER, 1997) e Teoria do Cruzamento das modalidades perceptivas (cruzamento cross-modal) (MARKS, 1994). Isso implica, no que diz respeito a origem e graus de intensidade, que a própria pode ser compreendida por diferentes tipos. Do nível mais baixo ao mais alto, devemos ter em mente que, mesmo que estejamos estudando a sinestesia em seus estágios, a condição neurológica pode ser tanto desenvolvida em seus primeiros dias de vida como pode ser adquirida por lesões e gatilhos artísticos - este último é destaque em nossa pesquisa. Trazendo para um lado mais da metáfora e da associação, “existe também a pseudo-sinestesia que é adquirida pela cultura, hábitos sociais e pela memória ao longo da vida” (BARON-COHEN & HARRISON, 1997; BASBAUM, 1999 apud. SILVA, 2021, p. 20). A sensação associativa é absorvida como se fosse uma tradução de signos (COSTA, 2018, p. 20). Por isso, a partir da literatura sobre o assunto, temos dois lados: um que é realmente a condição e outro que é mais metafórico do que “verídico” em níveis físicos e neurológicos. Não podemos esquecer que “a sinestesia na arte resulta em uma forma de comunicação, em um ambiente de múltiplas opções” (COSTA, 2018, p. 11) não sendo um fenômeno homogêneo e padronizado. A partir das explicações diante a sinestesia, a proposta inicial da pesquisa prática apresenta uma “Oficina de Percepção Auditiva-Visual” cuja atividades ressaltam a discussão e pontos vinculados ao estudo, como cores, sons e imagens, enfatizando assim a sinestesia artística. Mas o enfoque que iremos trazer no decorrer do texto se dará sobre a terceira atividade da oficina, ao trabalhar as ações e interpretações 70 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 diante de cinco obras de arte que foram escolhidas. Desse modo, a relevância diante das releituras é entendida como práticas de ensino-aprendizagem sobre a História da Arte e principalmente, sobre a Sinestesia. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA Além de todo o aspecto teórico, o projeto se expandiu de forma empírica, já que era necessário uma prática para estabelecer relações sinestésicas - o que ocorrem quando entramos em contato com algo até desenvolver oficinas dialógicas que pudessem de alguma forma evidenciar essas vivências e todo o referencial bibliográfico por trás dele. Uma oficina, principalmente dialógica, coloca em evidência a ação e a conversação articulando teoria e prática. Concordamos com as professoras Neires Maria Soldatelli Paviani e Niura Maria Fontana, que nos informam que a oficina “atende, basicamente, a duas finalidades: (a) articulação de conceitos, pressupostos e noções com ações concretas, vivenciadas pelo participante ou aprendiz; e (b) vivência e execução de tarefas em equipe, isto é, apropriação ou construção coletiva de saberes” (2009, p. 78). Sendo assim, nossa proposta é apresentar o que é a sinestesia e como ela se desdobra no campo artístico e, para fixarmos essas questões além de exemplos, convidamos os participantes a trazerem suas vivências e que cada um possa desenvolver algo que esteja relacionado a troca de sentidos. Pensando em pessoas e não em objetos científicos, a oficina quer humanizar esse estudo e propor reflexões, sendo o participante, promotor da sua própria aprendizagem. Classificamos nossa metodologia como ativa, pois “está centrada na aprendizagem, o que significa uma hegemonia do aluno sobre o professor, dispensando, de certa forma, o mesmo. O aluno seria um auto aprendiz.” (ARAÚJO, 2015, n.p.). Pretende-se trazer à tona uma parte dessa oficina que trata da seleção de pinturas dentro do recorte temporal do século XIX até os dias atuais, e que se constitui na atividade 3 da “Oficina de Percepção Auditiva-Visual”. Chamada de Releitura, a atividade com o cunho de “faça você mesmo” convida os participantes a aguçarem e trazerem ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 71 suas interpretações diante do que foi selecionado para a amostra. São imersões em 10 obras de arte que discutem aspectos importantes para a História da Arte e para a produção de arte pautada na sinestesia. As investigações se darão no espectro do ensino sobre arte, tais como as metodologias Pesquisa Baseada em Artes e a Proposta Triangular, sendo a produção de oficinas dialógico-pedagógicas como o principal fator. Temos com isso o principal objetivo de explorar o potencial das artes, especialmente as artes plásticas e música, como forma de ensino-aprendizagem não-formal e de conceber e elaborar oficinas de sinestesia trazendo a prática de releitura nas metodologias de arte-educação. Quanto à Art Based Research, a ABR, que em português é traduzida por alguns pesquisadores como Pesquisa Baseada em Artes, trata-se de um processo no fazer artístico como forma de saber, pensando em novas possibilidades dentro da pesquisa científica com intuições, emoções e experimentações. Salientando a materialização e a mentalização desses processos quando estudamos o decorrer de suas feituras, o objeto finalizado é importante, mas nos debruçamos mais ainda em como foi feito e por quê. Desse jeito, a pesquisa está relacionada à criação artística. [...] A partir dessa perspectiva o pesquisador tem a possibilidade de construir o conhecimento ao interagir com o material artístico. Dessa maneira o conhecimento se constrói a partir do fazer artístico. No desenvolvimento da prática artística, surgem questionamentos possíveis em torno de outras possibilidades para registrar os dados de pesquisa tais como a utilização de outras linguagens artísticas. [...] Esse diálogo, ao respeitar as especificidades de cada linguagem, abre espaço para a arte como um campo do saber, ou seja, de reflexão (STRATTNER, 2020, p. 48). Continuando com a proposta de estudar aquilo que é produzido nas oficinas, forma de abordar os participantes de maneira horizontal e com mais espaços de conversação, nos orientamos com as produções textuais de Paulo Freire e Ana Mae Barbosa, sobre a Educação Não-Formal e a Abordagem ou Proposta Triangular. Ao possibilitarmos socialização, conteúdo transdisciplinar e principalmente trazermos 72 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 exemplos cotidianos e expandimos para sentir antes de aprender algo de forma tradicional, nos sustentamos na ideia de conhecer a história, o próprio fazer artístico, e saber apreciar uma obra de arte. Essa aprendizagem “‘no mundo da vida’, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianos” (GOHN, 1999; FALCÃO, 2009, p. 18 apud. PAZ et al., 2011, p. 185) enquanto nos apropriamos das artes, “se faz necessário valer-se de vários conceitos para compreender a produção, veiculação, fruição e novas possibilidades como fazer e como saber fazer” (SANTOS, 2008, p. 328 apud. PAZ et al., 2011, p. 187). Segundo Paulo Freire, “uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 2002, p. 40). E ao alinharmos essa possibilidade de formação de tomada de consciência e de conexões sensitivas, como nossa oficina busca propor com a releitura, estamos nos apoiando no que Ana Mae Barbosa também se fundamentou: o projeto Discipline Based Art Education (DBAE) na década de 1980 formulado por J. Paul Getty Trust diante a Estética, Crítica de Arte, História da Arte e Produção de Arte. Quando compreendemos as contextualizações e as colocamos em prática a partir de tudo aquilo que adquirimos de conhecimento prévio e interpretativo com nossas construções paralelas criativas, evidenciamos o ensino das artes por meio das pessoas que fazem algo com a arte. “Elas produzem, elas veem, elas procuram entender seu lugar na cultura através do tempo, elas fazem julgamento acerca de sua qualidade’” (EISNER, 1988, p. 198 apud. BARBOSA, 1991, pp. 36-37). Portanto, acreditamos ser possível fazer a releitura ser uma ferramenta de aprendizagem artística significativa e não mera reprodução, indo além da apropriação e citação. A atividade exercita pois, ao abarcar na proposta inicial da oficina, entrar em contato com a obra de arte em perspectiva da sinestesia no campo artístico ao escolher apenas uma obra para uma releitura. Esse processo pedagógico pautado nas diversas formas de se expressar com base nas nossas intervenções sensitivas e interpretações artísticas, é mediado pela criatividade. O ato de reler uma obra e criar outra, pautando em novas conexões, mostra aos participantes como sentimos as artes. Isso se deve, ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 73 principalmente, se estivermos pensando no julgamento da materialização da ideia e da investigação do diálogo por ter sido iniciada por este mesmo diálogo com outra obra, não esquecendo que ambas estão inseridas em seus próprios cenários sociais, políticos, filosóficos e culturais. Para além da defesa das obras de arte como fontes, partimos de uma investigação poética ao criarmos narrativas únicas por meio das próprias quando entramos em contato. Releitura no âmbito do Fazer Artístico significa fazer a obra de novo, acrescentando ou retirando informações. Não é cópia. Cópia é a reprodução da obra. Reler uma obra subentende adquirir conhecimento sobre o artista e a contextualização histórica. É uma nova visão, uma nova leitura sobre a obra já existente, uma nova produção com outro significado. O produto final da releitura pode levar ou não ao reconhecimento da obra escolhida. Reler é interpretar a obra, é colocar sua visão de mundo, suas críticas, sua linguagem e suas experiências sobre a obra escolhida (RANGEL, 1999, p. 48). 2. SELEÇÃO DAS CINCO OBRAS DE ARTE Através dos questionamentos diante as origens da sinestesia, uma das questões direcionada para o produto de um sinesteta e para os entusiastas ao tema é a sua finalidade, isto é, uma obra de arte pode ser sinestesia por si só ou depende de algo para se tornar, e esse algo seria o que? Além disso, se ela não é sinestesia, ela pode ser gatilho para um outro sinesteta? Ao entendermos como uma experiência estética, o fenômeno acaba sendo um espectro que se alastra para demais outras implicações, tais como expor uma obra assim e como interpretá-las. Essas correspondências entre o público-obra, obra-obra, obra-artista e/ou artista-público, sem contar entre elementos de modalidades perceptivas distintas, pode ser visto de três maneiras: a metafórica, a mnemônica e como simulação (BERGANTINI, 2019, pp. 229-230). A “sinestesia é um efeito sensorial, em vez do que cognitivo ou baseado em associações de memória” (RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001, p. 7) mas quando se trata das artes, notamos que isso é visto como uma linha tênue de interesses comunicacionais e expressivos, já que os sinestetas não controlam sua condição. A questão 74 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 é apenas se eles irão expor isso a obra ou não, o que pode acontecer se distinguirmos suas práticas sinestésicas como parte do conceito ou como tema. Nas palavras de Heyrman, [...] Ela torna a arte comunicável e mistura uma visão pessoal de cada pessoa que a compartilha. Ao usar a sinestesia a intenção do artista é provocar, através da sua obra, sensações diferentes. É de extrema importância diferenciar o artista sinestésico daquele que não o é, mas utiliza o conceito em suas obras intencionalmente. Existe o artista que possui a sinestesia como condição neurológica e transmite para a sua obra sua própria experiência, assim como existe o artista cuja obra de arte é resultante de uma ‘intenção artística’, usando a união de sensações e metáforas com a intenção de proporcionar às pessoas o maior número possível de sensações (HEYRMAN, 2005 apud. COSTA, 2018, pp. 26-27). Em nossa oficina, são 10 obras de arte, contudo, neste artigo, iremos citar apenas as pinturas escolhidas juntamente com suas justificativas. 2.1. OBRA Nº 1: “COMPOSITION VII”, WASSILY KANDINSKY, 1913. No início do século XX, segundo a Professora Dorotéa Machado Kerr do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), as manifestações de criatividade humana, tais como criar imagens, gestos, sons, formas e palavras que eram relacionados com a religião, filosofia, poética, estética e sociedade passaram a serem manifestações dinâmicas, com discussões modernas sobre as práticas artísticas, se distanciando da arte dos tempos anteriores (KERR, 2010, p. 56). Para uma arte que quebrou modelos tradicionais, é impossível não citar Wassily Kandinsky (1866-1944) quando o assunto é cor e formas abstratas. As composições de Kandinsky feitas de 1910 até 1939, dialogando com o inconsciente, eram geradas por linhas, ângulos e formas que são construídas por nossa codificação da percepção em conjunto com cores variadas a fim de um equilíbrio. O artista é ainda uma incógnita aos estudos pois estamos falando de uma época que havia um interesse principal neste diálogo entre som e imagem. Então, alguns ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 75 pesquisadores afirmam ser um sinesteta de fato e outros, explicam ser um exemplo de pseudo-sinestesia - relembrando que o pseudo engloba questões de metáfora artística e associativa. 2.2. OBRA Nº 2: “NICHOLS CANYON”, DAVID HOCKNEY, 1980. Na década de 1980, temos David Hockney se utilizando de sua memória, porém, não somente dela. Hockney utiliza todas as suas lembranças, o cheiro da grama que remete a uma determinada cor e formato único que aparece só para ele. Todavia não se prende apenas a essa bagagem sensorial para criar um ambiente sinestésico para todos. Caminhamos pela estrada com os olhos e os demais órgãos, todos aguçados por essa paisagem hiper colorida da realidade. Como muitos, Hockney enfrentou a dificuldade do mundo acadêmico diante da sinestesia e as suas influências e correlações. “Somente a partir da década de 1980 foram criados testes para averiguar a genuinidade da condição, separando-a cada vez mais do âmbito das artes” (BERGANTINI, 2019, p. 228) mas ainda continua tendo um caráter subjetivo e experimental, o que inevitavelmente é um “flerte” com o mundo artístico. Enquanto ele explora a riqueza e potência das cores em seus quadros, fazendo com que o espectador seja transportado para um espaço retratado bem calmo e colorido, tal como no estilo fauvista no início do século XX, vemos sua paixão por Los Angeles e suas estradas. Essa exploração de cores estridentes é vista em seu processo criativo, resultado de suas excursões de carro, ruas a fora, pintando e conhecendo suas paisagens enquanto fugia da perspectiva. 2.3. OBRA Nº 3: “LITTLE WING - JIMI HENDRIX”, MELISSA MCCRACKEN, 2014. Melissa McCracken trabalha a autoexpressão com cores vibrantes e texturas vívidas relacionadas com suas canções favoritas. São inspirações sonoras que, depois de algumas pinceladas, se tornam grandes telas impulsionadas por sua alta dedicação em materializar toda sua 76 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 criatividade fazendo releituras. Ela transforma o que ela vê no sonoro em visual. A americana tem cromestesia, que segundo o dicionário da Associação Americana de Psicologia (em inglês American Psychological Association - APA): É um tipo de sinestesia em que a percepção de estímulos não visuais (por exemplo, sons, sabores, odores) é acompanhada por sensações de cor. Estritamente falando, a cromestesia não é uma justaposição consciente de duas percepções sensoriais diferentes: as duas percepções coincidem como respostas ao mesmo estímulo (CHROMESTHESIA, 2021). Na sua pintura-música, temos cores específicas que surgem no rock’n’roll psicodélico imprescindível de Jimi Hendrix (1942-1970). Como ela é brutalmente psicoativa, não precisamos nem ouvir a música completa para ela reagir em nosso organismo. Portanto, nesse caso, aborda uma sinestesia de uso de substâncias tóxicas e/ou alucinógenas do músico e do poder de sua guitarra. Essas drogas afetam nossas conexões cerebrais possibilitando esses “devaneios” das sensações dos sentidos trocados. 2.4. OBRA Nº 4: “TENOR SAX”, STEPHANIE DE PAULA, 2020. Stephanie de Paula, uma paranaense, dá vazão à sua própria mente com traços coloridos ao ouvir e ver qualquer coisa. A condição sinestésica está “traduzida” nas pinturas, que decidiu fazer, porque queria materializar as sensações de quando assistia a um concerto. Suas inspirações são nas cores e nas formas já que vemos vermelho, laranja, amarelo e azul dando as informações necessárias para que nosso cérebro crie o sentido. A brasileira é mais uma das sinestetas que se sente imersa a esse contexto e que não consegue simplesmente ignorar a condição que atravessa sua vida. Muitas das vezes são entendidos como: o(a) sinesteta, o(a) estranho(a). Eles pensam que todos enxergam da mesma forma e quando descobrem que não, se sentem diferente e acham que são esquisitos ou anormais (RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001, p. 4) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 77 fazendo com que não comentem com ninguém, já que eles têm medo de serem chamados de loucos ou coisa pior. 2.5. OBRA Nº 5: “SOMEBODY ELSE - THE 1975”, LAUREN MCCOIG, 2021. Por último, uma jovem novata nesse mundo do mercado de arte on-line que começou sua divulgação via aplicativo Instagram pintando aquilo que era habitual a ela: ouvir uma música e enxergar coisas além da melodia e ritmo. Lauren McCoig é uma menina como todas as outras que está se descobrindo e engajada em se estudar e entender a sua condição. Ela se considera uma artista abstrata na qual ela diz que há 7 formas diferentes de sinestesia, mas varia sua produção por músicas, signos e letras com cores. A sinestesia é uma parte fundamental de sua percepção, com ela as coisas acontecem no exterior, porém, os verdadeiros acontecimentos ocorrem na mente. “Para um sinesteta a condição neurológica não é algo passageiro que depois de algumas horas deixará de ocorrer” (CALAIS; CARMEN, 2020, n.p.), é “uma condição congênita, que se manifesta desde o nascimento e possui relação com a genética” (CALAIS; CARMEN, 2020, n.p.). CONSIDERAÇÕES FINAIS Com este traçado histórico de opções para a proposta de releitura dos participantes na oficina, fica claro que ela possui o intuito de mostrar a estes participantes como sentimos as artes, principalmente a troca entre a visão e audição. Entendemos que as oficinas sejam “instrumentos poderosos para transformar a prática docente” (GROSSMAN 2008, BARROS 2013, SAWADA, 2014 apud. COSTA, 2020, p. 10). Este trabalho, ainda em sua fase inicial, contribui para o desenvolvimento de novas habilidades e propostas diante a prática da releitura dentro das metodologias de Arte/Educação. Usamos cinco pinturas enquanto recurso, nos permitindo sermos criativos e inovadores. Patricia Leavy nos informa em seu livro “Method Meets Art: Arts-Based Research Practice” (2015), que “a pes78 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 quisa social interdisciplinar com as artes criativas [...] cultiva novos insights e ilumina aspectos do mundo social e experiência humana, assim como pesquisas quantitativas e qualitativas, mas de maneiras diferentes” (LEAVY, 2015, p. 21; 31). Por isso, entendemos que os cinco sentidos podem ser misturados com base no objeto. Ele será ressignificado a partir dos nossos sentidos, ou seja, mesmo que seja uma pintura ou uma composição musical, nós podemos ouvir a pintura e ver a música ao mesmo tempo. Com a elaboração de uma oficina, reiteramos que “atividades lúdicas e intelectuais a fim de trocar experiências e estimular a aprendizagem mais dinâmica, contextualizada e significativa” (SILVA; NEVES, 2015, p. 427) estimula uma “aproximação sinestésica à realidade [como] uma das fontes primárias da arte” (HEYRMAN, 2005; PRESA, 2008, p. 56 apud. POSCA; AGRELI, 2019, p. 11). Entender o papel da História da Arte dentro dessa pesquisa é primordial porque estamos estudando as práticas dos seres humanos nos decorreres dos séculos e toda a sua conjuntura de pensamento presente nas sociedades. Neste texto, seguimos a interpretação de uma abordagem pluridisciplinar fenomenológica da sinestesia nas artes e dentro das inúmeras possibilidades de se contar as Histórias das Artes, tais como: os métodos historicista, formalista, sociológico, marxista, iconológico, estruturalista e muitos outros. Os sinestetas - ou quase-sinestetas - citados na pesquisa são poucos dentro da vasta possibilidade de pessoas neste mundo que possam ter algumas dessas características. Como foi mencionado anteriormente, por ser considerado raro e diferente, as pessoas que fogem do perfil neurotípico, são difíceis de serem encontradas, já que possuem uma experiência emocional, sensorial e cognitiva diferenciada. “Dependendo do contexto sociocultural em que se encontra, o sinestésico pode optar por esconder as manifestações da sinestesia das outras pessoas para que possa inserir-se nos grupos” (CAETANO, 2015, p. 49). Mas com apoio da arte, elas podem se expressar e colocar no mundo suas visões e até mesmo seus gostos. Além disso, se formos olhar com mais cuidado, podemos salientar que essas pinturas também podem ser consideradas releituras devidas terem sido originárias pela evocação da percepção sinestésica ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 79 dos próprios diante aos sons e as cores, as formas, nos números, enfim, qualquer elemento suscitado em mente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, José Carlos Souza. Fundamentos da Metodologia de Ensino Ativa (1890-1931). In: 37a Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis. BARBOSA, Ana Mae Tavares de Bastos. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991. BERGANTINI, Loren Paneto. Sinestesia nas artes: relações entre ciência, arte e tecnologia. ARS, São Paulo, v. 17, n. 35, 2019. pp. 225-238. CALAIS, Beatriz; CARMEN, Gabriela Del. Viagem Sensorial. In: Canal VivaBem do site Universo Online (UOL), 21 de maio de 2020. 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Nessa prática artística procuro evidenciar o ritual do vestir e acionamento da construção da persona e dramatização como acontecimento que evapora sem justificativas, procedimentos regidos pela intuição e experimentação sensorial, usuais nos processos em arte moderna e contemporânea, de modo a identificar em minha produção artística o ritual e a memória como elementos propulsores e movente de novos trabalhos e que, desenvolvidos dentro do campo da educação com alunos do Ensino Fundamental II e Médio, podem ser objetos potencializadores e gatilhos para novas perguntas - tensões transformadoras. Palavras-chave: Educação; performance; ritual; memória; manto. Abstract: The main goal of this project is the investigation of elements of the process of creating a performance proposer object and work of art, for which I gave the name “O ‘Corpomanto’ e a Costura da Memória”, a hybrid work between three-dimensional object and performance, that I have been doing in this final stage of the course of Theater and Education - UFMG Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. In this artistic practice I seek to evidence the ritual of dressing and the activation of the construction of the persona and dramatization as an event that evaporates without justifications, procedures ruled by intuition and sensorial experimentation, usual in modern and contemporary art proANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 83 cesses, in order to identify in my artistic production the ritual and the memory as propulsive and moving elements of new works that, developed within the field of education with students from Elementary II and Secondary Schools ( Ensino Fundamental II e Médio ), can be potentiating objects and triggers for new questions - transforming tensions. Keywords: Education; performance; ritual; memory; mantle. 84 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 ‘Corpomanto’ Costuro, construo, costuro, construo, costuro, construo, costuro, construo... Roupa como Minh ‘alma Quase transparente. Suporte de quase tudo que suporto. Se a fé é pouca, não lhe cabe espaço maior. Tudo que está guardado dentro, somente segredos não poderás vasculhar e muito menos levá-los de mim. Por dentro sou maior que a mim mesma. Costuro, construo, costuro, construo, costuro, construo, costuro, construo, costuro... Ana Di Basso ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 85 AS PRIMEIRAS COSTURAS O projeto surge a partir de memórias familiares, de um experimento onde recolhi tecidos e objetos pessoais de meus pais que se tornaram marcas, vestígios, resíduos, cicatrizes, cortes que, permaneceram neste mundo, indicando a passagem e a vida que um dia já havia sido vivida e que remetem à minha infância na casa de meus pais, onde existia um ateliê de costura com muitos tecidos, recortes, formas, linhas e etc. O som da máquina de costura que trabalhava quase que sem parar naquele tempo e lugar, agora reivindicam suas marcas em meu trabalho atual por meio da própria costura e do desejo de unir partes, passado e presente, verdades e mentiras, intuição e lógica. Assim, dentro do processo de criação, faço o livro de artista. Assim Aleida Assmann, escreve lindamente sobre a memória em seu livro, Espaços da recordação: A tarefa da memória que reanima (..) é à força espiritual e ao carisma mnemônico do leitor que os mortos devem a vida. O pano de fundo dessa tarefa extenuante cria uma nova consciência sobre o caráter efêmero do passado. Para resgatar o que passou e torná-lo presente requer-se uma força necromântica de revivificação, cujo símbolo é a faísca. Platão escreveu na Carta sétima (341c 5) o significado da faísca; “De repente, assim como a faísca que salta desencadeia o fogo, surge na alma a imagem originária da coisa”. O fogo é símbolo de um conhecimento súbito e indispensável, que acende sobre o fundamento de uma recordação latente. Como símbolo da recordação, o fogo é tão ambivalente quanto a água, pois ele torna evidentes tanto esquecer e a devastação pelo tempo (“chama arrasadora”) quanto a memória e a renovação do que estava perdido. (ASSMANN, 2021. p.186) A partir do livro de artista, que quando fechado lembra um manto, sou levada a outra criação, o ‘Corpomanto’, palavra criada que sugere a união entre as palavras corpo e manto. O ‘Corpomanto’ já foi acionado em uma experiência a priori minha e que proponho ser utilizado em uma atividade voltada para a escola no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. 86 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O ‘CORPOMANTO’ Sobre esse processo de criação percebo que tudo vai se transformando conforme o trabalho vai sendo ativado por diferentes pessoas que os vestem. Todo o processo está no fazer e não na espera. Didi-Huberman bem nos explica como esse processo acontece: (...) que ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar. Joyce não fazia que senão pôr antecipadamente o dedo no que constituirá no fundo o testamento de toda fenomenologia da percepção. “Precisamos nos habituar”, escreve Merleau-Ponty, “a pensar que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre tangível e o visível que está incrustado nele”. Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios. “Se se pode passar os cinco dedos através, é uma grade, se não, uma porta”... Mas esse texto admirável propõe outro ensinamento: devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui. (DIDI-HUBERMAN, 2018. p.31) Dessa forma, como exposto, a proposta da obra ‘Corpomanto’ nasce por meio do objeto artístico tridimensional que é uma peça que cobre ou veste o corpo. Assim, na construção de um personagem, mantos como vestes e experiências para tais processos, transforma-se numa nova proposição para a elaboração da performance por parte daqueles que a experimentam. Portanto, esse trabalho foca no ritual do vestir e no acionamento para a construção da persona e dramatização. A PERFORMANCE E A PARTICIPAÇÃO DO OUTRO: Nos atos do projeto ‘Corpomanto’, conhecer na prática, o ser total, inteiro e com possibilidades que variam conforme muda a pessoa em seu interior, a pessoa que a veste trás consigo toda uma carga pessoal que vai sendo construída e caracterizada por seus diferentes movimentos. Compreender que a cada mudança de interlocutor o trabalho muda completamente. E quanto à forma, ela assume construções ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 87 distintas, metamorfoseia, se perde na cor, perde sentido e se materializa em pura energia do movimento. O espaço que envolve e apresenta o performer do projeto, questiona seu território limite e se expande até os limites que lhes são impostos pela tensão do tecido explorada pelo seu ativador convidado. A partir da oferta desse objeto para outras pessoas, evidencia-se no processo do trabalho, a importância da resposta física do outro envolvido pela peça. Assim, resolvi explorar artistas do corpo das áreas da dança, teatro e circo para que a experiência se tornasse mais rica na construção de novos movimentos que trazem como resposta a exploração contínua por parte desses interlocutores dos muitos e novos limites possíveis para a visualidade e sensorialidade do projeto. Com esse diálogo, procuro expandir minhas intenções preliminares para com esse objeto de forma que ele se construa no contato renovado com esses outros corpos, que nos apontam caminhos para refletir sobre o uso da razão, da intuição, e do ritual que toma forma, por meio de experimentações artísticas performáticas. Partindo deste pressuposto, ao todo, realizei duas experiências com oito performers, entre eles, dois bailarinos e seis acrobatas. Percebi que, cada artista que se propôs fazer a experiência da performance, apresentou em primeiro plano o uso da razão para tentar entender como o corpo reage ao objeto que os cobre. Em seguida entra em ação a experimentação caracterizadora da intuição que possibilita que se tentem movimentos novos e possíveis para aquele momento. Sobre estes momentos únicos de experimentação, a singularidade das formas construídas pelo corpo vestido pelo objeto evidencia-se única porque cada artista que pratica a performance traz elementos contidos em sua formação performática, ricos para minha pesquisa. A vestimenta é oferecida com o máximo de pesos (garrafinhas de água ou terra) possível em seus oito bolsos. A curiosidade da exploração do objeto pelo interlocutor foi a surpresa em que os próprios movimentos expulsaram tudo o que havia de peso nos bolsos pela força centrifuga dos movimentos executados em uma cama elástica que anulou até mesmo o peso do seu próprio corpo. 88 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Entretanto, é a união entre a minha consciência de artista produtor da obra e a consciência do interlocutor que é nas palavras de Pareyson, quando ele cita que o objeto de arte carrega elementos da subjetividade do autor elementos que não são necessariamente vistos, mas sentidos pelo performer: (...) a arte acolhe em si toda a vida espiritual de seu autor, torna-se realmente vida e razão de vida para o artista, em cuja consciência concreta os valores são indivisos. (Pareyson, 1997, p.40). Esta experiência relaciona-se com cada pessoa que aceita transportar para fora do corpo, as formas do movimento corporal de maneira intuitiva, movidas pela surpresa, por certa liberdade de experimentação sugerida pela proposição artística. O próprio MANTO traz consigo forças escondidas que são próprias de sua natureza e sobre essa qualidade do trabalho, novamente cito Pareyson em seu dedicado estudo sobre os problemas da matéria da arte: É necessário recordar que os materiais físicos já chegam à arte carregados de uma dimensão espiritual e artística a qual, unicamente, torna-os capazes de interessar a arte: a matéria da arte nunca é virgem e informe, mas já prenhe de uma carga espiritual e assinalada por uma vocação de forma, quer estas possibilidades lhe tenham sido oferecidas pela própria natureza, quer, pelo contrário, o homem já as tenha inserido nela, no decurso de uma tradição de manipulação artística. (PAREYSON, 1997. p. 157) Entretanto lembro-me do artista Flávio de Carvalho que em 1931, promove a Experiência nº 2, uma performance que torna o artista famoso e conhecido como o primeiro performer brasileiro. Nessa experiência, o artista caminha por uma procissão religiosa com uma postura desafiadora, indo na contramão das pessoas, uma atitude considerada extremamente desrespeitosa para com aqueles que participavam do ritual. A leitura mais atenta desse trabalho me ajuda a compreender que as energias invisíveis que permeiam uma obra de arte, tornam-se visíveis por meio das práticas que as materializam na vida concreta, neste caso pela execução programada de performances, dotadas de atos que indicam a intuição no próprio fazer. Vislumbro nesse compartilhamento com a experiência do outro, que os fragmentos do cotidiano de cada artista que vivencia a experiênANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 89 cia possam materializar-se pela força da intuição, trazendo outras novas sensações e percepções não previstas para o projeto, inicialmente. Gosto da ideia de partilhar a sensorialidade típica de projetos de arte que promovem o olhar que deixa a dúvida das coisas experimentadas pela primeira vez. A obra veste e dialoga criando perguntas e busca uma construção de imagens a partir de um acontecimento gerador de emoções. Sobre essas emoções Didi-Huberman diz que: Se a emoção é um movimento, ela é, portanto uma ação: algo como um gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos ...Jean-Paul Sartre dirá que, (…) ao contrário de nos afastar do mundo, a emoção é uma maneira de perceber o mundo. (DIDI-HUBERMAN, 2021. p.26) O processo todo me permite ainda, juntamente com os performers/alunos reorganizar ideias como, por exemplo: De que forma oferecer a vestimenta para a participação do outro? O que será ou não permitido fazer dentro desse objeto? Como abordar e informar ao performático uma proposta simples e com alguns limites de uso do objeto para se obter um resultado satisfatório? A IMAGEM FOTOGRÁFICA A fotografia foi o meio que escolhi para congelar o tempo e promover a contemplação do outro tanto quanto a análise de um processo que talvez eu não conseguisse em palavras dizer. Comungo nesse ponto, com a atenção dispensada por Joseph Beuys para com a imagem fotográfica citado por Antonio d’Avossa. A imagem fotográfica é, em essência uma informação de caráter visual que provém de um tempo passado”, escreve Jean Keim. Por outro lado é graças a ela que um fato pode ser contemplado por muito tempo, mesmo muito depois de ter acontecido. Esse tempo prolongado nos permite prolongar uma imagem visualmente de forma meticulosa e profunda. Para Beuys, porém, a imagem antes de mais nada, deve projetar uma contra imagem, ou seja, deve provocar a reflexão e pensamento, estimular-nos 90 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 para além da capacidade dos órgãos da visão. (D’AVOSSA, 2010 p.22). Observar os resultados visuais que outras pessoas conseguem provocar ao vestirem a obra de arte ‘Corpomanto’, tiveram dois alcances que gostaria de evidenciar: aquele promovido pela experiência ao vivo, à olho nu, e a outra forma mais delongada permitida pelo registro fotográfico. Essa segunda forma de registro, me faz captar variações que reveladas por meio das imagens congeladas pela fotografia e que estendem, de outra forma, o alcance sobre-humano do projeto. A partir desta ideia corroboro com os apontamentos de Walter Benjamin quando diz: “A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.” (1931. p. 94). Por isso, a imagem quer se desenvolver no espaço e no tempo, ainda mais, porque o processo está em constante transformação pela produção da performance que nunca se acaba. Ao perceber a construção da performance a partir das sequências fotográficas, me interessa identificar a percepção do interlocutor e do observador que podem se identificar como parte da mesma história e se ver na obra ou ainda, reproduzir-se na imaginação levada pela obra, refazendo ou reconstruindo memórias que passeiam no passado, no presente e no futuro. Sobretudo este procedimento, recupera sentidos que transcendem a matéria, tocando a aura que se constitui em criação a partir do olhar do acontecimento do ato de vestir que apontam para uma evolução humana sugerida pelas imagens. Ainda sobre a aura, Didi-Huberman nos mostra que: (…) aura, que é o de um poder do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante: “isto me olha”. Tocamos aqui o caráter fantasmático dessa experiência, mas, antes de buscar avaliar seu teor simplesmente ilusório ou, ao contrário, seu eventual teor de verdade, retenhamos a fórmula pela qual Benjamin explica essa experiência: “Sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de levantar os olhos” (DIDI-HUBERMAN, 2010. p.148) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 91 O ato de vestir ao longo da história da arte como um ato de dramatização que não são alegóricos, paramentos ou fantasia e sim, algo feito para uma realidade cultural. APROXIMAÇÃO COM OUTROS ARTISTAS Dentro da performance não poderia deixar de citar alguns artistas usaram elementos artísticos que também vestiam a figura humana e aqui abordarei, Daiara Tukano, Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, que iam de encontro com o rompimento das separações entre obra e experiência. Daiara Tukano (1982) Pertence ao clã Uremiri -Tukano, da região amazônica do Alto Rio Negro. ela produz imagens que evocam aspectos da existência. Na 34ª Bienal, Daiara apresenta dentre outra obras, um manto feito de penas que, deixaram de ser confeccionados com a invasão dos territórios, os assassinatos dos povos indígenas, a extinção das aves sagradas. Esta obra fala do sagrado, fala do luto vivido e perdas de anciões guardiões dessas histórias. Arthur Bispo do Rosário (1911-1988) A obra é o Manto da Apresentação, que Bispo deveria vestir no dia de seu enterro e se apresentar para no Juízo Final, encontro com Deus. Hélio Oiticica (1937-1980) Parangolés tinham que ser vestidos pelas pessoas da comunidade para que fossem ativados. De expectador o observador passa a ser interlocutor da obra inserindo sensações, emoções e memória como a alma da obra. Transmutação do corpo normal para o corpo dramatizado a partir da vestimenta. O trabalho abre novas maneiras de interpretação da Obra e os pilares das convenções da arte ficam abalados. 92 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Lygia Clark (1920-1988) Explora os sentidos do observador que veste e participa da obra. A obra “O eu e o tú: Série Roupa-Corpo-Roupa” um casal veste a roupa que possuem bolsos recheados com materiais ambíguos para o homem sensações femininas e para a mulher sensações masculinas e cada um explora os bolsos da roupa do outro. Lygia Pape (1927 - 2004) Sua obra é pautada pela liberdade com que experimenta e manipula as diversas linguagens e formatos, incorporando o espectador como agente e ativador de parte de suas obras performáticas. NOVOS ALCANCES PARA A OBRA CRIADA No princípio do processo, não tinha ideia clara sobre até onde o projeto poderia chegar e diante de cada nova experimentação, percebo que a ideia inicial vai sendo reformulada de acordo com as performances realizadas e as influências que o objeto causa nas pessoas que o vestem. Os pesos adicionados aos bolsos da peça, fazem parte da composição plástica da obra de arte. Ao colocar em prática as ideias para a realização do objeto ‘Corpomanto’, a escolha do material foi fundamental para a realização das possibilidades desse dinamismo do movimento. O tecido, os bolsos, os pesos dentro dos bolsos, os nós e a costura proporcionam um objeto propositor de performance. A ideia é dar forma plástica e artística ao imaterial e invisível que vive dentro da alma, de cada pessoa que o veste e que, por meio da ação performática pode agora tomar forma no lado de fora e passa a ser visível. Um manto que carrega em seus bolsos, qualquer coisa que tenha um peso causa resistência e incomoda. A arte tem que ser uma ferramenta para conectar ou questionar ou criar consciência no público, como qualquer outra coisa. Eu acredito que a performance também é uma ferramenta, e por isso os objetos, eles mesmos, não tenham valor. Quem tem valor é o processo e quando você passa por uma experiência, existe a transformação. Então a arte está completa. Mas para ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 93 mim, arte fora de contexto e sem propósito, arte pela arte não alcança ninguém. (IBRAMOVICH, Folha de São Paulo, São Paulo. 17 nov. 2010). Nesse projeto, ocupa o lugar de algo que carregamos em nosso interior pessoal como alegria, tristeza, fragilidade, na memória dos tempos presente, futuro e passado. Enfim percepções sinestésicas e simbólicas de memória. A PERFORMANCE ADENTRANDO O ESPAÇO ESCOLAR Portanto, ao colocar em prática as ideias para a realização do objeto ‘Corpomanto’, a escolha do material foi fundamental para a realização das possibilidades desse dinamismo do movimento. O tecido, os bolsos, os pesos dentro dos bolsos, os nós e a costura proporcionam um objeto propositor de performance. Sobre os estudos da performance, Richard Schechner aborda a performance com modelo para a educação “A educação precisa ser ativa envolver no todo ‘mentecorpoemoção’tomá-los como uma unidade. Os estudos da performance são conscientes dessa dialética entre ação e a reflexão.” (SCHECHNER, 2010. p.26) A vestimenta oferecida com o máximo de peso possível nos bolsos. A curiosidade da exploração do objeto pelo interlocutor, a surpresa, ocorre a cisão. Essa cisão aconteceu quando o interlocutor resolveu usar uma cama elástica que anulou por completo até o peso do seu próprio corpo. Sobre isso, Bachelard em seu ensaio sobre a imaginação do movimento, deixa claro que a leveza e o peso só pode ser percebido porque o movimento se cristaliza ou evapora. O elemento ganha corpo, se é que podemos dá-lo tamanha solidez, na medida em que só é possível com espaço entre os ossos. O desenho da brisa só se faz pela sustentação do peso da massa e pelo seu abandono. Seu movimento em várias direções, alcançando altitude e profundidades... em elevação e queda supera a substância. (BACHELARD, 1986, p. 10). A performance realizada por este artista acrobata especificamente, me remeteu a uma analogia do cotidiano da alma que carrega94 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mos e a da alma que um dia cedo ou tarde se libertará do corpo. Entretanto as performances realizadas com bailarinas foram um espetáculo aparte. No ambiente da dança, o peso toma conta e conduz os movimentos que parecem ser gerados a partir do próprio significado que a palavra peso tem e induz movimentos como a tristeza que abre uma luta constante contra a liberdade. O mais interessante foi que no decorrer da performance os pesos começaram a se deslocar para fora dos bolsos da vestimenta como num processo natural de libertação. ÚLTIMA COSTURA Todo movimento gera pontos de vista diferentes, provoca alterações na essência do ser que o experimenta, que o testemunha, que dele participa de alguma forma. A arte complexa da performance, viva e pulsante, estabelece-se, aos poucos, como elemento definitivo e definidor do projeto ‘Corpomanto’. Ato que potencializa a vida, impõe relações multifacetadas com o observador, o interlocutor e o artista provocando questionamentos da própria consciência. É a própria mistura de arte com vida que nos deixa uma experiência difícil de esquecer. Espero com este projeto, ampliar a visibilidade da performance dentro das escolas, da construção do manto, que o professor trabalhe da teoria à prática, para que a performance não seja vista apenas como um ruído do estranhamento, mas como algo potente que possa fazer parte do cotidiano do aluno como objeto de transformação e crescimento pessoal. REFERÊNCIAS ASSMANN, A. Espaços da recordação formas e transformações da memória cultural. Ed. Unicamp: Campinas, São Paulo, 2021. BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. A Danesi (Trad.). São Paulo: Martins Fontes,1986. D’AVOSSA, Antonio. A revolução somos nós. Ed. Sesc SP: São Paulo, 2010. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 95 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Ed. 34: São Paulo, 2010. DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção?. Ed. 34: São Paulo, 2021. DIVISOR. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. 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CorpoManto. 2015. Vestimenta em tecido elastano, 170cm x 120cm. Coleção Particular. Figura 5. Flávio de Carvalho apresentando seu New Look (Experiência nº 3) nas ruas de São Paulo, 1956. 100 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 6. Arthur Bispo do ROSÁRIO. Manto da apresentação. Sem data. 118,5×141,2×7 cm. Costura, bordado, escrita. Fotografia Ana Di Basso, 2012. Daiara TUKANO. Espelho da vida. 2020. Dimensões variadas. Plumária em seda e espelho. Fotografia Ana Di Basso, 2021 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 101 Figura 7. Hélio OITICICA. Nildo da Mangueira vestindo P15 Parangolé capa 11 - Incorporo a revolta.1967.Tecido-couro-esteiras-de-palha-90-x-60-x-10-cm. Fotografia Claudio Oiticica Coleção Projeto Hélio Oiticica 102 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 8. Lygia PAPE. Divisor. 1968. Tecido branco com aberturas para passar a cabeça, dimensões variadas. Foto Reina Sofia. Reencenado em Madri, 2011. Lygia CLARK. O eu e o tu. 1967. 170 x 68 x 8cm. Borracha, espuma, tecido, acrilon. Col. Família Clark. Foto: cortesia Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 103 NOSSO NORTE É O SUL: IDENTIDADE ARTÍSTICA LATINOAMERICANA EM CONSTRUÇÃO NAS OBRAS DE TORRES GARCÍA E NA EXPOSIÇÃO VIZINHOS DISTANTES André da Silva Torres41 - andre.torres@unifesp.br Resumo: A proposta neste artigo é discutir como a exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP dialoga com a obra de Joaquín Torres García, uma das suas principais referências. A mostra proporciona um campo fecundo para compreender de que maneira Torres García tornou-se um norte para os artistas engajados na produção de arte comprometida com o contexto sócio-político-cultural da América-Latina. Palavras-chave: Arte latino-americana; Universalismo Construtivo; Contexto político-social; Joaquín Torres García. Abstract: The purpose of this article is to discuss how the exhibition Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP dialogues with the work of Joaquín Torres García, one of its main references. The exhibition offers a fertile field to understand how Torres García became a guide for artists engaged in the production of art committed to the socio-political-cultural context of Latin America. Keywords: Latin American art; Constructive Universalism; Political-social context; Joaquín Torres García. INTRODUÇÃO A exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP, realizada em São Paulo desde junho de 2015 até a presente data, proporciona um espaço de análise e reflexão sobre como 41 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação de História da Arte da EFLCH da Universidade Federal de São Paulo sob orientação de Jens Michael Baumgarten. 104 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 a proposta de Joaquín Torres García seria basilar para os trabalhos de artistas contemporâneos latino-americanos comprometidos com o contexto sócio-político da região. A curadora da mostra, Cristina Freire, estabelece um diálogo entre a questão da identidade da arte latino-americana e as propostas de Torres García através da exposição e da publicação organizada por ela, Terra Incógnita, cujos textos são referências importantes sobre a relevância do artista no debate sobre o conceito de identidade da arte latino-americana. Torres García propôs o desenvolvimento de uma escola artística genuinamente latino-americana denominada Universalismo Construtivo, cujas bases construtivas essenciais incorporariam desde elementos das culturas ameríndias ao construtivismo. Segundo o artista, os símbolos, signos, figuras, formas e cores encontradas nas culturas ameríndias pré-colombianas se adaptam à regra de unidade base do construtivismo por causa de suas formas; se relacionam com a simbologia encontrada no mundo primitivo, antigo e moderno e aos ideais plásticos do Universalismo Construtivo. Ao considerar que “entre as culturas pré-colombianas as culturas pre-incaicas estariam mais relacionadas à América do Sul e, portanto, à proposta do Universalismo Construtivo como um movimento genuinamente autóctone latino-americano” (TORRES GARCÍA, 1939. p.3), Torres García afirma que esta nova arte caracterizada pelo compromisso com a definição de um conceito de identidade na arte latino-americana se relaciona intrinsicamente ao contexto político e social da região. Nessa perspectiva, cabe afirmar que a obra América Invertida sintetiza conceitos e ideias acerca da discussão sobre a identidade latino-americana e sua representatividade através de símbolos, signos, palavras, números e imagem cartográfica, elementos que compõe este emblemático desenho à caneta e tinta. Esta obra está diretamente relacionada ao manifesto de Torres García intitulado La Escuela del Sur, publicação primordial para a discussão acerca do conceito de identidade da arte e da cultura latino-americana pautada nas propostas do artista. La Escuela del Sur é o manifesto americanista onde se formularia a premissa que faria possível a criação de um movimento artístico autônomo no continente: a inversão da América do Sul com seu extremo mais ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 105 meridional apontando para o norte (TORRES GARCÍA, 1984, p.193). Nesse trabalho o artista propôs a construção da identidade cultural e artística latino-americana através de uma relação de proximidade e diálogo entre suas vanguardas e da integração regional entre os países. Torres García apresenta uma nova possibilidade para a arte na América Latina, onde os artistas se concentrariam em discutir o que seria uma produção artística genuinamente latino-americana. Segundo Torres García, o artista que está comprometido com a construção de uma nova arte representativa de sua identidade cultural deve considerar como elementos cruciais na sua produção artística a heterogeneidade da região onde a arte é desenvolvida, assim como as características, especificidades e singularidades de seu povo em constante interação entre si e com o outro. Portanto, a obra desse artista latino-americano, idealizado por Torres García, precisaria contemplar a realidade e os acontecimentos de sua época evocando a história do passado em diálogo com o presente em desenvolvimento numa perspectiva de produção artística capaz de afirmar-se como heterogênea e, ao mesmo tempo, consciente de sua importância no diálogo entre as diferentes produções artísticas no mundo em igual posição de relevância. Ao retornar a Montevideo em 1934, Torres García põe em pauta o debate sobre a perspectiva da história da arte ocidental e seu enquadramento anacrônico e parcial. Ele propõe uma resposta à imposição da cultura ocidental na América do Sul, rejeita os poderes coloniais e se contrapõe ao esquema de relação entre centro e periferia como manutenção do poder do eixo Estados Unidos-Europa sobre a história da arte. Sendo assim, o Universalismo Construtivo, essa nova escola cujas características seriam intrinsicamente relacionadas ao contexto social onde é desenvolvida, seria a contraposição aos poderes hegemônicos e coloniais, uma vez que não se limitaria a apresentar propostas étnicas ou marginais segundo modelos europeus, mas reivindicaria o reconhecimento da arte genuinamente latino-americana segundo uma nova perspectiva na história da arte. Ao universalismo42 encabeçado pela his42 Em seu livro O Fim da História da Arte Hans Belting propõe uma abordagem mais ampla da história da imagem onde anacronismo e supremacia seriam evitados e o uso da imagem na contemporaneidade seria amplamente discutido. Sobre o universalismo ele afirma: “A arte universal emerge finalmente como a quimera de uma cultura global pela qual a história da arte 106 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tória da arte europeia Torres García apresenta o Universalismo Construtivo desenvolvido na América do Sul, onde a iconografia ameríndia e de povos primitivos e símbolos e signos comuns em muitas civilizações são evocados a compor uma nova arte que pretende resgatar a imagem anterior à história da arte, quando a imagem fazia parte do cotidiano e integrava-se à cosmologia dos povos - da mesma forma como o Universalismo Construtivo intenta integrar o homem moderno ao universo através da transcendentalidade que a arte proporcionaria. Este artigo busca discutir como Torres García, ao relacionar elementos identitários dos povos latino-americanos contemporâneos e pré-colombianos com o contexto político e social da região, tornou-se referência para a exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP. A mostra foi escolhida por proporcionar um espaço de análise e reflexão sobre como a proposta de Torres García seria basilar para os trabalhos de artistas contemporâneos latino-americanos. A exposição, além de colaborar para o debate sobre o conceito de identidade na arte latino-americana, proporciona um campo fecundo para compreender de que maneira Torres García tornou-se um norte, uma referência fulcral para os artistas engajados na produção de arte comprometida com o contexto sócio-político-cultural da América-Latina. As obras que serão analisadas mais adiante possibilitarão contextualizar como os conceitos, teorias e ideias de Torres García contribuíram para o debate acerca das questões identitárias, estéticas e políticas na arte latino-americana, perseverando como cruciais para a construção de uma história da arte plural e democrática. Entre as obras que integram a exposição foram selecionadas Superfícies de Memórias de Sérgio Meirana e Violência de Juan Carlos Romero. Superfícies de Memórias faz uma referência mais direta e irreverente ao mapa invertido da América do Sul de América Invertida de Torres García enquanto Violência permite a análise dos conceitualismos latino-americanos a partir dos anos 1960 sob a ótica do diálogo entre a proposta de uma é desafiada como um produto da cultura europeia. Em contrapartida, as minorias reclamam sua participação numa história da arte de identidade coletiva em que não se veem representadas”. BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.18 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 107 arte latino-americana relacionada ao contexto da região, idealizada por Torres García, e a perspectiva das práticas conceitualistas latino-americanas de resistência na luta contra as ditaduras militares no Cone Sul via processos de decolonização e desobediência estética e epistêmica. Ainda sob esse viés, destacam-se as publicações Hexágono 71 CD de Edgardo Antonio Vigo e OVUM de Padín por dialogarem com a proposta da revista Círculo y Cuadrado, criada em 1936 por Torres García e a Asociación de Arte Constructivo. A PRESENÇA DE JOAQUÍN TORRES GARCÍA NA EXPOSIÇÃO VIZINHOS DISTANTES: ARTE DA AMÉRICA LATINA NO ACERVO DO MASP USP A exposição Vizinhos Distantes: Arte da América Latina no Acervo do MAC USP reúne 250 obras de artistas latino-americanos sob a proposta de dialogar sobre as aproximações entre as culturas heterogêneas do continente, a colaboração e o contato entre artistas e o rompimento de fronteiras entre países latino-americanos através da arte. A curadora Cristina Freire organizou a exposição a partir das pesquisas sobre arte latino-americana desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu MAC USP, do qual ela é coordenadora, em conjunto com os alunos do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, onde leciona como professora titular. Além da exposição, a pesquisa resultou na publicação em três volumes Terra Incógnita: Conceitualismos da América Latina e o acervo do MAC USP que apresenta os resultados da pesquisa de forma mais ampla para discussão e estudo do acervo, trazendo documentos, arquivos, imagens, fotos e registros fotográficos de performances. Todas as obras selecionadas para a exposição integram o acervo do museu. Não estão incluídos artistas brasileiros na exposição, todavia esse fato não exclui a presença da arte brasileira. Ao analisar e interpretar as obras o público é convidado a pensar sobre o que é a arte latino-americana e onde/como a arte brasileira está inserida nesse conceito. Desse modo, a exposição proporciona um espaço de reflexão sobre o conceito de identidade na arte latino-americana, seu protagonismo frente ao 108 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 combate à hegemonia do hemisfério norte e sua afirmação no campo cultural e artístico global43. Cristina Freire ressalta o fato de Torres García ser uma referência para a arte latino-americana desde sua proposta de um movimento construtivista genuinamente latino-americano até a produção artística contemporânea44. Os artistas, críticos, curadores e estudiosos da arte desenvolvida no continente - e a partir dele – se baseiam nas ideias, nas obras e nos escritos do artista como referências desta vez oriundas da América Latina para a discussão sobre o conceito de identidade da arte latino-americana. As obras de arte de Torres García, seus livros, publicações de artigos e contribuições em revistas, palestras e conferências inspiram e estimulam a incorporação, continuidade, assimilação e transformação de suas ideias pelos artistas que fazem parte da exposição, como também pelos artistas que integram acervos no mundo. Partindo do pressuposto que a categoria arte latino-americana torna-se insuficiente para reunir a diversidade e os contextos culturais da região, assim como contemplar os exílios e as migrações de artistas em trânsito pelo mundo e os efeitos da globalização, a exposição é organizada em núcleos temáticos não cronológicos: Identitários, Construtivos, Oníricos e Conceituais que apresentam os muitos perfis do acervo do MAC USP (FREIRE, 2015a. p.14). As práticas artísticas conceituais têm lugar privilegiado nesta exposição que expõe um conjunto específico de trabalhos de artistas latino-americanos das décadas de 1960 -70. 43 Ao excluir obras de artistas brasileiros e nomear a exposição de Vizinhos Distantes, a cura- doria propõe ao visitante refletir sobre por que o brasileiro não se identifica como latino-americano. Este não pertencimento talvez aconteça como efeito da economia globalizante e a tendência de aproximar-se mais dos países desenvolvidos que de seus vizinhos no continente, ao mesmo tempo em que expressa vontade de liderança econômica na América do Sul. Essa ambivalência se deve em parte pela sensação de não pertencimento à definição de América Latina pelo fato do Brasil ser o único país de língua portuguesa no continente e ter passado por um processo de independência e transição política da colônia ao império diferente de seus vizinhos que tiveram um histórico de guerras pela independência e heróis em comum contra o império espanhol. Entretanto, o Brasil e seus vizinhos na América Latina estão submetidos aos mesmos efeitos da globalização na economia e possuem histórias com características comuns: a hibridização cultural ameríndia, africana e europeia, a violenta colonização e um passado recente de golpes de estado e governos autoritários. 44 Figuras Sobre Uma Estrutura, única obra de Torres García que integrava a exposição, foi impedida de ser exposta por causa de questões judicias que culminaram na sua disponibilidade para leilão pela Sotheby’s. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 109 A obra Superfícies de Memórias, do artista uruguaio Sérgio Meirana, está em destaque ao lado do texto curatorial. Esse trabalho é permeado de humor por colocar figuras em situações inusitadas misturando a definição de arte e artesanato na escolha do suporte. As figuras são pequenas esculturas que extrapolam a moldura do quadro. Nessa obra é possível identificar reflexões sobre a procura da identidade do homem contemporâneo envolto em questões pessoais, culturais, sociais e políticas que fazem parte de sua história. Meirana faz referência à América Invertida de Torres García ao colocar uma de suas pequenas esculturas puxando uma corda presa ao mapa invertido da América do Sul que flutua no ar, fazendo alusão ao homem que carrega consigo seu contexto de origem pelo caminho que segue. A vontade construtiva de uma arte genuinamente latino-americana, discutida e proposta por Torres García em seu regresso ao Uruguai, foi desenvolvida pela Escuela del Sur que se constituiu como um modelo de fomento à discussão sobre o conceito de arte latino-americana e para a formação de coletivos de artistas como o Movimento Diagonal Cero, o Grupo de Los Trece / CAYC, o grupo Tanagra entre outros grupos e movimentos por todo o continente. As discussões propostas por estes e outros grupos são divulgadas pelas suas publicações. Cabe ressaltar a relevância da Asociación de Arte Constructivo formada em 1933 por Torres García em Montevidéu e sua revista Círculo y Cuadrado, que teve sete números lançados entre 1936 e 1938. Círculo y Cuadrado viabilizou um espaço para a discussão sobre o conceito de arte latino-americana, experimentações, formação de coletivos e circulação entre artistas tornando-se uma referência para publicações posteriores no continente como Removedor, Hexágono 71, Diagonal Cero, Las Moradas, Los Huevos del Plata, Ovum, entre outras que inclusive integram a parte da exposição dedicada às práticas artísticas conceituais. As ideias de Torres García estão presentes em discussões sobre a heterogeneidade da arte em desenvolvimento na América Latina e pelos artistas latino-americanos e a dificuldade de reunir todas as manifestações artísticas sob um mesmo grupo denominado arte latino-americana. Em contraposição ao poder hegemônico do eixo Estados Unidos-Europa no cenário artístico global que, não raramente, classifica a arte produzida na América do Sul como marginal e submissa aos movimentos e 110 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 escolas europeias, Torres García propôs resistência a essas relações de poder; propôs o desenvolvimento na América Latina de um movimento vanguardista marcado por características identitárias do continente, relacionando o abstracionismo e o concretismo com os contextos político, social e econômico na construção de uma arte que fizesse parte do cotidiano e que abrangesse a criticidade e a reflexão, a autonomia e o protagonismo latino-americano. Apesar da pluralidade de expressões e movimentos artísticos no continente e da proposta do Universalismo Construtivo não ter alcançado seu fim último, diversas produções artísticas desenvolvidas na América Latina abarcam engajamento político e comprometimento com o contexto social onde são desenvolvidas como características marcantes autênticas. Segundo Cristina Freire, destaca-se a importância de Torres García para a arte em construção no continente e entre as produções artísticas do conceitualismo latino-americano cujo contexto sócio-político é intrinsicamente relacionado. Segundo a autora, o mapa invertido da América do Sul em América Invertida “poderia ser até pensado como uma metáfora do desafio e do risco de um programa artístico e existencial, pautado na comunicação sem restrições, naqueles difíceis anos 1960 e 1970” (FREIRE, 2015b. p.38). As práticas conceituais de artistas latino-americanos nas décadas de 1960-1970 engajados politicamente contra a censura e a violência dos regimes autoritários estabelecidos na América Latina estão expostas num ambiente com paredes de cor preta que alude ao luto pela morte dos que se opuseram às ditaduras e regimes políticos opressores. Antes de se discutir esta parte da exposição dedicada ao conceitualismo latino-americano durante as décadas de 1960-1970 cabe ressaltar a importante contribuição de Walter Zanini frente à direção do MAC USP para o desenvolvimento das propostas dos artistas latino-americanos neste momento de cerceamento dos direitos civis na América Latina: ele os convocou para participarem de exposições disponibilizando o museu para a exposição de suas obras e abrindo espaço para experimentações e discussões sobre arte relacionada ao contexto político e social. Para a exposição foram pesquisados e organizados, além das obras, arquivos e documentos institucionais do MAC USP e de artistas que mantiveram contato com Zanini nesse período; são registros fotográficos de perforANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 111 mances realizadas no museu e em outros lugares, fotografias, arte postal, produções e publicações coletivas, arquivos, cartas, documentos, livros de artista, entre outros trabalhos e materiais. Para potencializar o sul do continente como polo centrípeto de produção e trocas artísticas no contrafluxo das correntes migratórias locais e das estruturas de poder e catalisar essa força criativa numa forma de comunicação capaz de resistir ao exílio, à ditadura, à censura e apta a ir além da indiferença e da incompreensão (FREIRE, 2015b. p.38), muitos artistas organizaram suas próprias editoras coletivamente e suas publicações estabeleceram uma rede de comunicação alternativa durante a política de repressão instituída pelos regimes autoritários. Dessa forma, desenvolveram uma rede de trocas onde arte também se torna meio de comunicação entre eles - vários artistas estavam no exílio por causa da perseguição política45. Desse modo, suas publicações tornaram-se uma forma de comunicação, divulgação e circulação de seus trabalhos e propostas, marginalmente rompendo fronteiras territoriais e barreiras impostas pelo mercado, pelos circuitos hegemônicos de circulação de arte e pela indústria cultural sob controle do governo. Estes circuitos subterrâneos de informação resultaram também em galerias alternativas para exposição dos trabalhos que, em conjunto com as publicações dos artistas, constituíram um meio de resistir às imposições e buscar outra forma de circulação da arte. Alguns trabalhos são de difícil manutenção no acervo devido à fragilidade do material e a precariedade dos meios e técnicas utilizadas para reprodução. A utilização desses meios e do material precário de fácil reprodução e baixo custo objetivava a circulação dos trabalhos produzidos pelos artistas atingindo o público em grande quantidade em contraponto aos meios de reprodução midiáticos regularizados e controlados pelos regimes autoritários. O uso desses meios de reprodução e circulação entre o público, as instituições e as pessoas envolvidas neste circuito de comunicação, propõe uma relação entre a arte e a sociedade transformadora do público em protagonista da criação em conjunto com 45 Padín se tornou desaparecido político durante alguns meses em 1977 e depois declarado oficialmente preso após a descoberta de seu cárcere pelo circuito alternativo artístico coletivo que mobilizou a pressão internacional contra sua prisão. Em 1979 o artista foi condenado à prisão domiciliar até 1984, sendo constantemente vigiado. 112 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 o artista. Esta proposta de coletividade integra o trabalho do artista argentino Edgardo Antonio Vigo46. Sua produção artística multifacetada e conceitual é composta por revistas, obras gráficas, arte postal e poesia visual. Fazem parte da exposição seus trabalhos Assinalamentos, Obras Incompletas e as publicações Hexagono’7147. São obras de caráter coletivo devido à circulação e a proposta de tornar o público participante na arte em referência à necessidade de participação na sociedade através de mobilização popular em prol da resistência contra as ditaduras (FREIRE, 2015d. p.146-205). Nesta parte da exposição destacam-se também a obra de arte postal A verdadeira Arte é Anônima e as publicações da revista OVUM do uruguaio Clemente Padín. Em A verdadeira Arte é Anônima, o artista critica através da arte postal o mercado formal de arte ao utilizar materiais mais simples nas suas obras, como envelopes, recortes de propagandas, entre outros materiais gráficos. Ao enviar os envelopes sugerindo a intervenção na obra até que não haja mais apenas um autor, ele propõe a produção coletiva e a circulação do trabalho (FREIRE, 2015c.). Padín foi um dos responsáveis pela publicação das revistas colaborativas Los Huevos del Plata (1965-1969), OVUM 10 (1969-1972) e OVUM 2º período (1972-1975) dedicadas às práticas de poesia visual e experimental, arte postal e crítica social e política. Através dessas publicações muitos trabalhos de arte postal de artistas latino-americanos foram divulgados, viabilizando assim um espaço para experimentações e circulação entre artistas. Integra também esta parte da exposição a instalação Violência do argentino Juan Carlos Romero, realizada primeiramente no CAYC em 1973 e posteriormente montada na 31ª Bienal de São Paulo. VIOLENCIA é composta por montagens gráficas de registros fotográficos da repressão brutal praticada pela ditadura argentina em conjunto com frases e textos que fomentam a reflexão do público sobre a necessi46 A trajetória de Vigo é marcada pelo desaparecimento de um dos seus filhos durante a dita- dura argentina. 47 Obras e textos de artistas argentinos e internacionais integravam a publicação Hexágono ’71 acompanhada pelo discurso de Vigo onde abordava ideias sobre arte experimental intercaladas às discussões sobre a repressão política na Argentina e na América Latina. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 113 dade de posicionamento frente aos acontecimentos. O artista faz uso das imagens violentas recorrentes nos registros fotográficos dos jornais que se tornaram triviais aos olhos da população; retira da imageria dos meios de comunicação os registros fotográficos da violência do regime opressor e, numa intervenção militante, problematiza essa brutalidade ao propor a reflexão no público relacionando o espaço expositivo com o espaço da rua. A presença ostensiva da palavra VIOLENCIA, impressa no cartaz produzido em imprensa tipográfica popular, e o jogo dialógico das frases e textos com as imagens trazem à tona a crueldade do regime autoritário para além dos registros. Romero manipula a imagem e as palavras para apresentar a violência em aspectos além da contemplação; mescla a apreciação estética à realidade dos acontecimentos presentes nas imagens enquanto estimula o papel do espectador como agente necessário da mudança social. A repressão durante os regimes ditatoriais vigentes na América do Sul forçaram muitos artistas ao exílio, marcando suas trajetórias e suas produções artísticas, levando-os à reflexão sobre a situação do artista latino-americano e o papel da arte no continente naquele período. Desta reflexão emergiram trabalhos coletivos cujas propostas incluíam engajar o público transformando seu papel na sociedade, sendo o artista o mediador destas relações através da arte como pesquisa, intervenção e conscientização – elementos-chave do conceitualismo latino-americano dos anos 1960 e 1970. Segundo Cristina Freire, “o mapeamento dos circuitos subterrâneos de trocas revela comunidades transnacionais pautadas em estratégias de comunicação e criação, organizadas em redes pré-digitais, como táticas de resistência artística e política” (FREIRE, 2015a. p.15). O relacionamento entre os artistas comprometidos com o contexto político e social, suas trocas de ideias, conceitos e teorias revelam “o espírito moderno e as práticas revulsivas austrais, reunidos na exposição, remetem à potência crítica originária desse Continente para seguir ativando outras visadas e vizinhanças” (FREIRE, 2015a. p.15). Não obstante, o conceito de transformação da sociedade através de uma arte intrinsecamente relacionada ao contexto social latino-americano onde é produzida fora discutido décadas antes por Torres García quando enfatizou seu ideal de arte integrada à vida e ao contexto da América Latina (KERN, 2013, p.90). Ao projetar a identidade cultural 114 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 e a arte da América do Sul, suas teorias tornaram-se referências para as discussões sobre o papel da arte e para a organização coletiva de artistas através de circuitos de comunicação alternativos num período cuja manifestação de ideias contrárias aos regimes vigentes custou vidas. Kern, ao afirmar que a missão de Torres García “não se condiciona ao seu país, mas à independência da arte e das sociedades latino-americanas em face dos grandes centros cosmopolitas” (KERN, 2013, p.96), evidencia que as ideias do artista ainda são basilares para artistas contemporâneos latino-americanos. CONCLUSÃO Artistas contemporâneos latino-americanos utilizam o repertório cultural disponível através dos meios eletrônicos, da internet e de circuitos internacionais de informações em suas produções artísticas cuja referência ao contexto social permeia tanto suas práticas quanto suas obras. Estes artistas latino-americanos inseridos - ou não - no circuito global apresentam ressignificações das influências culturais e artísticas do hemisfério norte segundo contradições entre a recepção da cultura hegemônica e a escolha de elementos dessa cultura que, em diálogo com o contexto e a experiência dos artistas, compõe o processo da sua produção artística envolvendo a antropofagia, transculturação e hibridez numa relação intercultural e conflituosa de insubordinação. Os artistas latino-americanos insubordinam-se contra a dependência dos conceitos da arte ocidental ao utilizarem a linguagem internacional para contestar a supremacia do hemisfério norte e a estrutura hegemônica do circuito global de arte. Desse modo, buscam “introduzir novas problemáticas e significados provenientes de suas experiências diversas, e infiltrar suas diferenças em circuitos artísticos mais amplos e até certo ponto mais verdadeiramente globalizados” (MOSQUERA, 1996. p.15). A arte latino-americana rebela-se contra o cânone artístico ocidental que a enquadra em um nicho derivado da arte oriunda da Europa e dos Estados Unidos ao apresentar linguagens e formas distintas de abordagem e observância dos fenômenos culturais no mundo e no continente - que apesar de ser formado por países heterogêneos, partilha acontecimentos históricos e lutas em comum. Sua relação com o contexto político e ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 115 social a distingue de outras produções artísticas, a diferencia da forma como a arte produzida no hemisfério norte aborda questões similares. Sua particularidade de abordagem da tensão entre o local e o global, do contexto político-social do continente e do papel da arte como meio de subversão, protesto, reflexão e ação caracterizam-se como componentes perceptíveis do que poderia ser um conceito da identidade artística latino-americana capaz de desenvolver relações geopolíticas que rompam os discursos eurocêntricos de acordo com o processo de decolonização e desconstrução da hegemonia econômica, política, cultural e simbólica do hemisfério norte. Pode-se afirmar apenas que, para pesquisar sobre o conceito de identidade da arte latino-americana é necessário debruçar-se sobre o contexto político e social do continente e investigar como os artistas relacionam suas produções artísticas, ideias e teorias às demandas da sociedade por mudanças. Enveredar por este caminho requer familiarizar-se com a produção artística e teórica de Torres García. Ao inverter a corrente, ao virar o mapa de ponta cabeça e estabelecer o sul como a direção para o desenvolvimento da arte genuinamente latino-americana, ele contesta a estrutura hegemônica e propõe as bases para debates acerca da arte como uma linguagem capaz de conectar o homem ao contexto em que está inserido numa relação de reflexão e ação transformadora. Apesar das discussões sobre as características da arte latino-americana demonstrarem a incompletude da definição do conceito proposto por Torres García, é inegável a riqueza de sua contribuição para o desenvolvimento de produções artísticas engajadas e fortemente relacionadas ao contexto político-social do continente, propostas que abordam a arte também como um meio de tornar o público agente transformador da sociedade. Sem dúvida a exposição Vizinhos Distantes buscou seguir por este caminho. 116 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. FREIRE, Cristina (Org.). Catálogo Vizinhos Distantes: arte da América Latina no Acervo do MAC USP. São Paulo: MAC USP, 2015. ______________ (Org.). Terra Incógnita: Conceitualismos da América Latina no acervo do MAC USP (Vol. 1). 1. ed. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da USP, 2015. ______________(Org.). Terra incógnita: conceitualismos da América Latina no acervo do MAC USP. (Vol. 2). São Paulo: MAC USP, 2015. ______________(Org.). Terra incógnita: conceitualismos da América Latina no acervo do MAC USP. (Vol. 3). São Paulo: MAC USP, 2015. KERN, M.L.B. O Construtivismo de Joaquín Torres García e Suas Projeções Estéticas Para a América Latina. Cadernos Prolam/USP 12 (23): p. 86-96, 2013. MOSQUERA, Gerardo. Contra el arte latinoamericano. In: Una nueva história del arte en América Latina. Oaxaca (México): UNAM, 1996. TORRES GARCÍA, Joaquín. Metafisca de la prehistoria indoamericana. 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Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-jtXstsLNb94/VBGAU1LaIGI/AAAAAAAAFvk/GVVYMOTyYtU/s1600/violencia1.JPG>. Acesso em: 21/07/2021. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 119 “O GROTESCO E O SUBLIME NA OBRA DE G. B. PIRANESI” Angela Rosch Rodrigues48 - angelarr@usp.br Resumo: Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) foi um arquiteto, antiquário e gravurista do século XVIII que difundiu a arquitetura e antiguidades romanas. O objetivo deste artigo é verificar em que medida os conceitos grotesco e sublime foram incorporados por Piranesi para compor suas gravuras em água-forte. Naquele contexto setecentesco, o significado do grotesco está atrelado à correspondência - ou a falta dela - entre as lições da natureza e a invenção de elementos nas artes. Giambattista não teorizou sobre o grotesco; mas se valeu dessa concepção a partir do estudo do aparato iconográfico da Roma Antiga que ele dispunha através de suas incursões às ruínas, tendo dedicado uma série exclusiva ao tema constituída por quatro Capricci. Além dessa série, há figuras grotescas inseridas em toda obra piranesiana que contribuem para potencializar a dimensão sublime associada às sensações de obscuridade, poder, privação, vastidão, infinidade e magnificência. O sublime no século XVIII é um tema amplamente debatido. Toda a obra de Piranesi, mas, principalmente, a série intitulada Carceri d`invenzione, suscitou interpretações associadas a um viés eminentemente “Romântico” entre fins do século XVIII e início do XIX, abordagens essas que foram revistas ao longo do século XX. Conclui-se que o grotesco e o sublime na obra de Piranesi são elementos trabalhados em conjunto para expressar a licença do gênio do artista que interpreta o problema espacial de modo atrelado à temporalidade, concebendo eloquentes invenções incisas onde o espaço é dinâmico, como é a imaginação, a memória e a história. 48 Esta publicação faz parte da pesquisa de Pós Doutorado intitulada “A lição das ´rovine parlanti´ e o legado de G. B. Piranesi para a história crítica da arquitetura - uma leitura sobre o ´Parere su l`architettura´”, supervisionada pela Profa. Dra. Andrea Buchidid Loewen, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP no Departamento: História e Estética do Projeto. A pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo: 2018/04931-2, processo BEPE: 2019/05236-9 e 2021/09340-5) 120 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Palavras-chave: Piranesi; ruínas; antiguidades; grotesco; sublime. Abstract: Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) was an architect, antiquary and engraver from the Eighteenth Century who spread Roman architecture and antiquities. The purpose of this article is to verify how Piranesi incorporated the grotesque and sublime concepts to compose his etchings. In that context of the Eighteenth Century, the meaning of the grotesque is linked to the correspondence - or lack of it - between the lessons of nature and the invention of elements in the arts. Giambattista did not theorize about the grotesque; but he took advantage of this conception from the study of the iconographic apparatus of Ancient Rome that he had available through his incursions into the ruins, and have dedicated an exclusive series to the theme consisting of four Capricci. In addition to this series, there are grotesque figures inserted in Piranesian work, which contributes to enhance the sublime dimension associated with the sensations of obscurity, power, deprivation, vastness, infinity and magnificence. The sublime in the Eighteenth Century was a widely debated topic. The whole work of Piranesi, but mainly the series entitled Carceri d`invenzione, gave rise to interpretations associated with an eminently “Romantic” bias between the late Eighteenth and early Nineteenth Centuries; these approaches were revised throughout the Twentieth Century. It is concluded that the grotesque and the sublime in Piranesi’s work are elements that were worked together to express the license of the artist’s genius, who interprets the spatial problem in a way linked to temporality, conceiving eloquent incised inventions where space is dynamic, as is the imagination, memory and history. Key words: Piranesi; ruins; antiquities; grotesque; sublime. INTRODUÇÃO Ao longo do século XVIII, o contato direto com os vestígios da antiguidade proporcionado pela visita a Roma e arredores (com as emergentes escavações em Pompeia e Herculano no Reino de Nápoles) é um ponto nodal para a decodificação das artes em função de uma aspiração em se estabelecer parâmetros mais racionalizados de inter- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 121 pretação do passado, numa chave eminentemente crítica em relação ao precedente século XVI. Contudo, a pretensa racionalização se funde a elucubrações; a obra do gravurista, antiquário e arquiteto vêneto Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) é um dos exemplos mais eloquentes desse amálgama: razão e sentimento no tempo da Ilustração. Como profícuo difusor da arquitetura e das antiguidades de Roma ao longo do século XVIII, na historiografia da arte, Piranesi passou a ser reconhecido como o “Rembrandt das ruinas”, alcunha instituída pelo biógrafo Giovanni Lodovico Bianconi (1779). Ao longo de sua carreira, Giambattista produziu em torno de 1000 (mil) gravuras catalogadas e grande parte desse material foi dedicada às ruínas de Roma, cidade onde ele viveu e desenvolveu sua carreira entre 1740 e 1778. O objetivo deste artigo é verificar em que medida os conceitos do grotesco e do sublime foram mobilizados por Piranesi para compor suas gravuras. 1. O GROTESCO Na Encyclopédie (ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers), editada por Jean le Rond d’Alembert (1717-1783) e Denis Diderot (1713-1784), o vocábulo “grotesque” (Tomo VII, p. 966-967) dispõe sobre um gênero nas artes convencionalmente constituído por excessos a serem evitados. Ao longo do verbete, a “Arte Poética” (Ars Poetica - c. 19 a.C.) de Horácio (c. 65-8 a.C.) é citada para elucidar que, nas artes, deveria prevalecer certo equilíbrio e sabedoria ao dispor da irracionalidade, que derroga a austeridade dos princípios: Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pedaço de cavalo, ajustar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrando para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? [...] A pintores e poetas sempre assistiu a justa liberdade de ousar seja o que for. Bem o sei; essa licença nós a pedimos e damos mutuamente; não, porém, a de reunir animais mansos com feras, emparelhar cobras com passarinhos, cordeiros com tigres. (HORÁCIO In: A poética clássica, 2014, p.55) 122 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Essas palavras de Horácio reverberam uma tópica também abordada pelo contemporâneo Vitrúvio (Marco Polião Vitrúvio - c. 80-15 a.C.) em seu tratado “De Architectura” (c. 25 a.C), quando este se refere às pinturas parietais do estilo pictórico pompeiano (c. 20 a.C.): Todavia, estes modelos que se retiravam de coisas reais são hoje considerados de mau gosto. Com efeito, nos estuques pintam-se mais monstros do que imagens determinadas de coisas concretas [...] sem falar dos caulículos que têm figurinhas partidas ao meio, umas com cabeças humanas, outras, com cabeças de animais. 4. Pois estas coisas não existem, nem se podem fazer, nem nunca existiriam. Por isso, os novos gostos levaram a que maus juízes negligenciassem a perfeição das artes. (VITRÚVIO, VII, cap. V, 3 In: MACIEL, 2006, p. 273) As asserções de Horácio e Vitrúvio - cunhadas no século I a.C. - refletem o que está no cerne do entendimento sobre o significado do “grotesco”, ou seja, a correspondência - ou a falta dela - entre as lições da natureza e a invenção de elementos nas artes. Essas reflexões se aplicam às pinturas que comporiam o Palácio Imperial de Nero (a chamada Domus Aurea) construído entre os anos de 64 e 68, cujas estruturas foram descobertas na Era Moderna em torno de 1480, na Collina Oppio em Roma quando se pensou que se tratavam das ruínas das Termas de Tito. Em 1496 apareceu pela primeira vez o termo “grotresche” denominado para definir essas pinturas antigas sepultadas nessas “grutas”. Será Rafael Sanzio (1483-1520) junto com seu colaborador Giovanni da Udine (1487-1564) que compreenderam mais profundamente a lógica desses sistemas decorativos reproduzindo-os organicamente em diversos afrescos49. No século XVIII, em meio a uma querela sobre o mérito das artes dos antigos, G. B. Piranesi articulou sua defesa aos romanos, enfatizando que os gregos se empenharam na busca de uma vã beleza concebendo toda sorte de ornamentos sugeridos à capricho, discrepantes dos elementos da natureza que os teriam inspirado. Nos textos que acompanham suas gravuras, Piranesi retomou as asserções de Horácio dispondo que tanto a poesia quanto a arquitetura, 49 Dentre eles na Loggia do Palazzo Apostolico (c. 1516) com a solicitação do Cardeal Bernardo Dovizi da Bibbiena (1470-1513). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 123 deveriam estar norteadas pelo dito: “Qualquer coisa deve ser simples e única” (apud PIRANESI, 1761, p. cxxix - trad. nossa). É o decoro - conforme o disposto na retórica de Cícero (106-43 a.C), bem como apregoado por Vitrúvio como um dos preceitos fundamentais da arquitetura - que deveria nortear a verdade arquitetônica e sua relação com os ornamentos. Atributos que, segundo Giambattista, os romanos conheciam por influência dos etruscos, e que superaram os gregos pela capacidade inventiva. É a partir dessa concepção do decoro - que promulga sobre a sintonia entre o todo e as partes -que Piranesi engenha suas “arquiteturas ideias”, produtos de sua fase de maior maturação teórica em meados dos anos 1760. Contudo, a licença na representação dos vestígios da antiguidade é um moto contínuo nas séries piranesianas. O nosso “arquiteto vêneto”, como Giambattista assinava, não teorizou sobre o grotesco; mas, para conceber suas “invenções”, ele se valeu dessa concepção a partir do estudo do aparato iconográfico da Roma Antiga que ele dispunha através das muitas incursões às ruínas e através de todo o material coletado em muitas escavações. Os estudos decorrentes desse contato com as antiguidades levaram-no a inserir elementos grotescos de modo diversificado (Figura 1) em suas invenções derivando-os também dos estudos das figuras humanas que tinha à sua disposição, conforme descrição do biógrafo G. L. Bianconi: [...] ao invés de estudar o nu e as mais belas estátuas da Grécia que temos aqui, e que são a única boa maneira de aprender, ele começou a desenhar os aleijados e corcundas mais descompostos, que via ao dia por Roma, [...], e quando encontrava um desses espetáculos nas igrejas, ele parecia ter encontrado um novo Apolo de Belvedere, ou um Laocoonte, e corria à casa para desenhá-lo. Qualquer pessoa que tenha visto esta coleção singular afirma ser essa a mais salutar meditação sobre as misérias humanas. (BIANCONI, 1779, p. 1) Piranesi dedicou uma série exclusiva ao tema grotesco, constituída por quatro Capricci Grotteschi concebidos nos primeiros anos de sua carreira: Gli scheletri; L`arco di trionfo; La tomba di Nerone e La targa monumentale. Essas gravuras foram realizadas durante o 124 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 retorno de Giambattista a Veneza entre 1745-1747 e foram concebidas para serem publicadas como uma série autônoma, pois conservam uma coerência iconográfica e uma uniformidade estilística. Elas somente publicadas no volume das Opere Varie 50 a partir de 1750, um compêndio que Piranesi elaborou com suas principais obras realizadas até aquele momento e que, posteriormente, teve outras edições. Há uma complexa linguagem artística que permeia a elaboração dessas pranchas. A princípio, pelos efeitos cenograficamente fantasiosos, denota-se uma evidente influência da pintura veneta coetânea, em particular de Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770) que explorava o efêmero mundo do capriccio barroco. A acepção de “capricho” naquele contexto aludia a composições artísticas de diversos campos (dentre os quais o da pintura, o da arquitetura e o da música) em que se privilegia o gênio do indivíduo em detrimento às regras. Segundo o expresso na Encyclopédie, o capriccio constitui: uma composição bizarra, embora engenhosa, mas distante dos preceitos da arte, como são as obras de Borromini, arquiteto da Itália, [...] & muitos, outros destes dias; por uma imaginação tão fértil quanto desregulada, valem-se das licenças que autorizam a maioria dos jovens arquitetos sem experiência e sem regras a imitá-los e, assim, tornar a arquitetura suscetível a variações, como roupas, modas, [...] (ENCICLOPÉDIE, 1751,Tome II, p. 637-638) No que tange ao complexo simbolismo dessas pranchas, Maurizio Calvesi51 (1967) propôs uma interpretação embasada na conexão de Piranesi com a maçonaria52; nessa chave, os princípios alquímicos e esotéricos delineiam a invenção dos caprichos. Ao verificar mais detidamente Calvesi (1967, p. XXVI-XXX), nos deparamos com uma leitura dos quatro capricci grotteschi piranesianos através do desen50 Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Embora a obra seja datada de 1750, houve várias versões posteriores com acréscimos de gravuras. 51 No texto introdutório de 1967 à versão em italiano da tese de Henri Foncillon dedicada a Piranesi. 52 Missivas enviadas a Robert Mylne e Thomas Hollis (respectivamente em 1760 e 1770) confirmam a filiação de G. B. Piranesi à maçonaria (respectivamente em 1760 e 1770 - ver BEVILACQUA, 2008, p. 69 - notas 34 e 35). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 125 volvimento cíclico de quatro tempos, vinculados aos quatro momentos dispostos na cultura hermético-alquímica de raízes Renascentistas que chegam à simbologia maçônica do século XVIII. Calvesi também faz associações com o ideário de Giambattista Vico (1668-1744), filósofo napolitano fundamental para o embasamento da concepção histórica desenvolvida a partir do Iluminismo. A historiografia crítica apresenta Vico como uma referência para compreender aspectos da obra de Piranesi, considerando a influência do napolitano no ambiente setecentesco, principalmente, a partir da publicação da obra “Scienza nuova” (1725). Acompanhando a explanação de Calvesi, a primeira prancha (Figura 2) corresponderia ao elemento terra, à estação do inverno, há uma massa confusa que alude à putrefação representada por esqueletos ou cadáveres. No alto à direita, aparece uma faixa zodiacal que corta o céu com o signo de escorpião, que astrologicamente remete à morte e tem uma indiscutível conexão com essa fase da “putrefactio”. O escorpião é um signo que está sob a influência do deus Marte, em efeito à esquerda se veem homens armados delineados em baixo relevo. Esse obscuro início da história consta na obra Vico e poderia compor uma imagem de lutas e de guerras, ou de alusão ao pecado original. A água sendo versada poderia remeter à destruição (ao dilúvio). O segundo Capriccio Grottesco (Figura 3), corresponderia à estação primaveril, uma fase historicamente mais evoluída. Há um processo de redução progressiva da densidade escura na gravura: o céu se abre, se delineia um arco triunfal, junto ao qual a figura de um rio, denotado pela ânfora que versa água; à esquerda uma palmeira e uma espécie de esfinge na qual se reconhece um dos dois leões egípcios dispostos na colina do Campidoglio em Roma. A simbologia egípcia sugerida pela palma e pela esfinge indica que o rio poderia ser identificado como o Nilo, associando a água com a purificação. Historicamente estamos diante da fase de revelação egípcia, cara à fantasia hermética e que nas sucessões de eras em Vico corresponderia à fase dos “heróis” que poderiam estar representados pelo grupo de homens no centro da cena; despostas as armas esses personagens parecem inspecionar as ruínas. No terceiro Capriccio (Figura 4), Calvesi vê uma correspondência com o elemento ar, pelos indicativos aéreos mais claros que nas pranchas precedentes: uma nuvem avança através do primeiro plano; 126 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 um delfim que salta (provavelmente símbolo do deus Mercúrio) concedendo uma ideia de leveza e vitória sobre o peso terrestre; o céu é límpido e a luz aparece mais intensa e vibrante. Estaríamos no dia pleno, no verão, com o triunfo do Sol. As serpentes simbolizam uma ideia de união, de aliança. Haveria uma relação com uma terceira fase da história, como idealizada por Vico: após a revelação egípcia, a idade romana teria alcançado o equilíbrio e a ordem civil com bases na justiça e paz. No quarto e último grottesco (Figura 5), haveria uma correspondência com o elemento fogo, com a hora do ocaso e da estação outonal. O líquido versado a partir de uma mão que segura um cálice seria o vinho, como símbolo do espírito que evapora ao tentar ser aprisionado numa garrafa. Abaixo, uma ampulheta e caveiras, símbolos da morte e do tempo vencidos pela ressurreição do espírito; mais embaixo, o caduceu com as serpentes entrelaçadas que testemunham a fase da liberação e ascensão do espírito de Mercúrio. O fogo é visível em primeiro plano; segundo Calvesi, esses elementos configuram uma clara alusão à conclusão do opus alquímico: a transmutação, o triunfo do espírito. Poderia haver ainda uma alegoria vinculada às ideias de Vico sobre o triunfo da história ideal eterna sobre a história entendida como contingência temporal. Com a finalização dessa abordagem, Calvesi considera que há nessa série de Piranesi um essencial aspecto ligado à sazonalidade do universo nos seus cursos e transcursos, aludindo à história como ciclo vital. No âmbito da historiografia crítica, a interpretação de Calvesi constituída por perscrutações de viés esotérico, embasadas na alquimia e na filiação maçônica de Piranesi, tem sido um ponto de divergência, sujeita a debates e revisões. Mais recentemente, Francesco Nevola (2009) apresentou outra abordagem sobre os temas narrativos das pranchas, mencionando o poema épico de Hesíodo (séc. VIII a.C) - Os trabalhos e os dias - de forte conotação moral; segundo Nevola (2009, p. 184-196), através desse poema, Piranesi teria elaborado o mito grego das eras históricas. O fato é que Giambattista visivelmente se apropriou do repertório derivado do contato com as ruínas para compor seus fantasiosos caprichos, em que as figuras grotescas se mesclam ao tema do memento mori. Essa tônica, contudo, não é exclusiva da série Grotteschi, mas é ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 127 perceptível na quase totalidade da produção piranesiana que teve início em 1743 com a obra Prima parte d`architetture e prospettiva e foi finalizada em 1778 com a obra póstuma sobre as Diferentes Vistas dos Templos de Pestum53. A confluência entre o espaço e o tempo dá o tom aos Grotteschi e as pranchas são sublinhadas pelas características técnicas da água-forte que, através do apropriado domínio das texturas incisas, permitem ampliar a percepção das nuances de claro e escuro. 2. O SUBLIME Em 1757, Edmund Burke (1729-1797) publicou A Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful. Para ele, o sublime estaria conectado com as ideias e sensações do terrível, do doloroso, do ameaçador e do tenebroso que podem ser desencadeadas a partir da visualização de elementos da natureza e do entendimento da condição de finitude do ser humano. Essa obra tornou-se paradigmática no ambiente “Romântico” de fins do século XVIII e início do XIX; nesse contexto a dimensão “sublime” tornou-se uma chave de leitura para a produção de Piranesi. Pelo teor das gravuras, é contundente como Giambattista estava perpassado pela ideia do sublime. Contudo, ele não chega a teorizar sobre o tema nos textos que acompanham suas pranchas, com exceção da breve passagem: “do medo, emana o prazer” (PIRANESI, 1769). A historiografia crítica não é consensual sobre a influência de Edmund Burke em Piranesi (ou ao contrário). Segundo Rykwert (1982, p. 292), não teriam sido os preceitos sobre o sublime articulados na teoria de Burke que influenciaram Piranesi, mas outras referências; dentre elas, a do abade Jean-Baptiste Du Bos (1670-1742) - Abbé Du Bos francês, ligado à Academia Francesa em Roma e defensor da ideia que do terror pode advir o prazer. Essa concepção sobre o sublime estaria vinculada à oratória, a partir de outro ensaio mais longevo, que fazia parte do repertório dos antigos com o qual Giambattista era familiarizado: o texto “Do Sublime” (séc. I) atribuído a Longino ou Dionísio. Se53 Differentes vues de quelques restes de trois grands édifices qui subsistent encore dans le milieu de l’ancienne ville de Pesto autrement Possidonia, et qui est située dans la Lucanie. 128 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 gundo M. Calvesi (1967, p. XVIII), com o ressurgimento desse tratado sobre o sublime a partir de 1674 - devido à tradução de Nicolas Boileau (1636 -1711) do texto em grego para o francês - a temática se expandiu na França e Inglaterra; a teorização de Burke seria o coroamento dos efeitos do contato com essa obra da antiguidade. Nessa passagem de Longino sobre a elocução é possível depreender a relação com a proposta pelas imagens de Piranesi: I. 4: Não é a persuasão, mas o arrebatamento, que os lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável com seu impacto, supera sempre o que visa a persuadir e agradar; o persuasivo, ordinariamente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam um poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte. A habilidade da invenção, a ordenação da matéria e sua distribuição, nós a custo as vemos emergir, não de um, nem de dois passos, mas do total da textura do discurso, enquanto o sublime, surgido no momento certo, tudo dispersa como um raio e manifesta, inteira, de um jato, a força do orador.” (LONGINO In: A poética clássica, 2015, p.72) A eloquência persuasiva das invenções piranesianas será um dos aspectos destacados na biografia de francês Jacques-Guillaume Legrand (1821)54: A verdade e o vigor de seus efeitos, a correta projeção de suas sombras e sua transparência, ou alegres licenças a esse respeito, a própria indicação dos tons de cor se devem à exata observação que ele ia fazer a cada dia, seja ao sol escaldante, seja ao luar, onde as massas arquitetônicas adquirem tanta força, e têm uma solidez, uma suavidade, uma harmonia, muitas vezes muito superior à luz bruxuleante que espalha o dia. (LEGRAND, 1821 In: MORAZZONI, 1920, p. 57) No início do século XIX, a difusão de uma interpretação sobre a obra de Piranesi pautada por um viés que enaltece o “sublime” se dissemina. As palavras do contemporâneo romancista inglês Horace Walpole (1717-1792) demonstram o impacto que alguns artistas e diletantes experimentavam com suas gravuras: 54 A biografia de Legrand foi produzida no início do século XIX sob encomenda dos filhos de Giambatttista Piranesi. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 129 Sonhos sublimes de Piranesi [...], ele imaginou cenas que abalam a geometria, [...]. Ele empilhou palácios e pontes, e templos em palácios, e escadas celestiais com montanhas de edifícios. Que gosto na sua ousadia! Que grandeza na sua impetuosidade! Que trabalho e pensamento tanto em sua imprudência quanto em seus detalhes. (WALPOLE, 1759 apud BEVILACQUA, 2008, p. 277) A sublimidade de Piranesi é alcançada através de um inescrutável amálgama entre a dimensão temporal e espacial que se materializa nos grandes maciços arruinados, nos fragmentos e nos ambientes pouco definidos de uma arquitetura (preferencialmente a dos romanos) de escala magnânima, envoltos por uma inexorável degeneração provocada pela passagem do tempo; o domínio da técnica da água-forte dá a tônica para o eloquente contraste entre os claros e escuros. Esses aspectos estão disseminados nas diversas séries de invenções piranesianas como as notórias Le Antichità Romane (Figura 6) - e Vedute di Roma; mas, as composições dos Carceri d`invenzione. (as Invenções sobre os Cárceres) talvez sejam os exemplos mais emblemáticos. As Carceri d`invenzione foram realizadas por Piranesi nos anos 1740 e retrabalhadas, do ponto de vista técnico e compositivo, em 1761 (Figura 7), reverberando as palavras de Burke sobre a percepção da arquitetura que, a fim de suscitar a ideia do sublime, deveria ser obscura e tétrica. Percebe-se a distensão dos planos de perspectiva que desdobram um espaço (Figura 8), concebido com base nos vestígios arqueológicos da antiga prisão de Roma - o Marmetino. Nessas gravuras, Giambattista insere referências aos suplícios através dos instrumentos de tortura e das figuras humanas que remetem aos opressores e aos cativos. Marguerite Yourcenar (1903-1987), no ensaio Le cerveau noir de Piranèse (1959-61) menciona que o destino dos Carceri foi diferente do restante da obra de Giambattista. As pranchas, pouco apreciadas em sua época, encantaram poetas a partir do século XIX. No círculo francês55, Víctor Hugo (1802-1885) mantinha um especial apreço por Piranesi; é do escritor francês a citação que compõe o título do ensaio de Yourcenar - “o negro cérebro de Piranesi”. Hugo remete aos Carceri 55 Os escritores Luzius Keller (1966) e Georges Poulet (2018) tratam mais profundamente da relação de Piranesi com os “Românticos” franceses. 130 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 como essas “espantosas torres de Babel que sonhava Piranesi” (apud YOURCENAR, 1985, p. 14). Não obstante a repercussão na França, na Inglaterra, a influência dos Carceri exerceu grande força sobre a imaginação dos artistas. O mesmo Walpole, citado acima, via nas gravuras das prisões “umas cenas caóticas e incoerentes onde a morte ri sarcasticamente” (apud YOURCENAR, 1985, p.14); essas imagens ressurgem na novela “The Castle of Otranto” publicada em 1764, três anos após a edição definitiva dos Carceri, e onde o cenário é uma imaginária fortificação italiana. O escritor William Beckford (1760-1844) também era um dos admiradores de Piranesi, e as espaçosas salas subterrâneas da sua obra Vathek, publicada em 1784, poderiam ser uma referência às prisões piranesianas. A despeito da relevância dos comentários de Walpole e Beckford, dois mestres da novela “gótica”, sobre a obra de Piranesi, a referência mais impactante sobre os Carceri aparece posteriormente. Thomas Penson De Quincey (1785-1859) escreveu em 1821 as Confessions of an English Opium-Eater onde menciona a referida obra de Giambattista através das impressões de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834): Um dia que eu estava olhando as `Antiguidades de Roma` de Piranesi, em companhia de Coleridge, este me descreveu uma série de gravuras desse artista intituladas ´Sonhos´, onde representava suas próprias visões durante um delírio produzido pela febre. Algumas dessas gravuras (as descrevo embasado unicamente na lembrança do que me contou Coleridge) representam uns amplos vestígios góticos, formidáveis artefatos ou máquinas: rodas, cabos, catapultas, etc., eles dão testemunho de um enorme poder posto em marcha ou de uma enorme resistência superadas. Vê-se uma escada, que se eleva ao longo de uma muralha, e a Piranesi tateando seus degraus. Um pouco mais acima, a escada acaba subitamente, sem nenhum tipo de corrimão e sem oferecer mais saída que a de cair no abismo. Seja o que for do desafortunado Piranesi, supõe-se que de uma maneira ou de outra suas fadigas terminaram aí. Mas eleve os olhos e vereis uma segunda escada, situada ainda mais acima, sobre a que encontramos de novo a Piranesi, desta vez de pé na borda externa do abismo. Levanta a vista mais uma vez e vislumbrareis uma série de degraus ainda mais vertiginosos e, em cima desses, o delirante Piranesi prosseguindo sua ambiciosa escalada, e assim sucessivamente, até que aquelas escadas infinitas, e aquele desesperado Piranesi se perdem juntos por entre ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 131 as trevas das regiões superiores. Com essa mesma capacidade de ilimitado desenvolvimento crescia a arquitetura de meus sonhos, multiplicando-se até o infinito [...] (DE QUINCEY, 1821 apud YOURCENAR, 1985, p.14-15) Yourcenar salienta como nessa passagem há simultaneamente uma fidelidade ao espírito da obra de Piranesi e pouca exatidão sobre a realidade. O título, em primeiro lugar é errôneo, já que as “Prisões” nunca se chamaram “Sonhos”. Em seguida, a imagem de vestíbulos góticos, introduzidas de modo inconsciente por esses dois grandes “Românticos” (De Quincey e Coleridge) num mundo arquitetônico especificamente romano. Mas, sobretudo, buscaríamos em vão nas pranchas que compõe a série completa dos Carceri essa escada que prossegue sua ascensão, interrompida, onde o próprio Piranesi reaparece cada vez um pouco mais acima. Essa interpretação de De Quincey em chave “Romântica” associa o nome de Piranesi a um universo onírico, labiríntico, de repetição infinita, norteando uma sensibilidade aos Carceri na literatura, já que serão inumeráveis as referências a essa página de De Quincey. Também é relevante considerar como que esses poetas removeram a temática da prisão, tão cara a outras interpretações artísticas e literárias, como, mais tarde no ensaio de Aldous Huxley Variations on the prisons (1949), mencionando que todas as pranchas evidenciam: “variações de um único símbolo, que se refere às coisas existentes nas profundezas físicas e metafísicas das almas e dos corpos humanos, à acídia e à confusão, ao pesadelo e ao medo, à incompreensão e ao pânico temeroso” (HUXLEY, 1949 apud POULET, 2018, p. 22). M. Calvesi em 1967 (p. XIX) propõe outra abordagem sobre os Carceri procurando se descolar dessas interpretações. Ele retoma o real interesse de Piranesi pela arquitetura romana, um tema expresso em tantas de suas obras, em especial na coetânea Della magnificenza ed architettura de` romani (1761). Segundo Calvesi, para Giambattista o sublime espetáculo da grandeza de Roma não é só material, mas é, principalmente, moral denotando uma fé “cívica”; assim, o que se evidencia com maior potência nas pranchas dos Carceri, é a obsessão de Piranesi pela grandeza do passado (de Roma), e seu desejo de tocar os vértices morais da civilização romana. 132 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em pleno século das Luzes, Giambattista Piranesi incorporou em sua trajetória artística os conceitos do grotesco e do sublime que remontam à antiguidade - seja através das pinturas que chegaram até a Era Moderna através do contato com os remanescentes da Domus Aurea, seja através do Tratado do Sublime, atribuído a Longino. Giambattista estabeleceu, portanto, para a historiografia um ponto de conexão entre os debates artísticos sobre esses dois conceitos (grotesco e sublime) que emergem a partir do século XV e repercute para os posteriores séculos XIX e XX. Com os elementos iconográficos grotescos, nosso artista vêneto concebeu um arsenal ornamental que, em suas invenções arquitetônicas, foi incorporado ao conjunto dos grandes maciços dos edifícios da antiguidade romana, na maioria das vezes em estado de ruína. As figuras grotescas também contribuem para a dimensão sublime da obra de Piranesi configurando as sensações de obscuridade, de poder, de privação, de vastidão, de infinidade e de magnificência. Mas, a constituição do sublime em Piranesi está associada, principalmente, à sua interpretação sobre a problemática espacial no âmbito temporal. Através das sensações provocadas pela sublimidade das invenções incisas, o espaço é alargado, mutável, dinâmico, rico de repentinos avanços e retornos, como é o espaço da imaginação e da memória. O grotesco e o sublime em Piranesi são, portanto, elementos trabalhados em conjunto constituindo os meios para expressar a licença do gênio do artista. A percepção, interpretação e representação do problema espacial e temporal atuam para ir além de uma mera cenografia característica do barroco; assim, Piranesi aceita e incorpora, definitivamente, a dimensão histórica estabelecendo um ponto de inflexão para os debates da modernidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEVILACQUA, Mario. Piranesi - Taccuini di Modena. Roma: Editoriale Artemide s.r.l., 2008. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 133 BIANCONI, Giovani Ludovico. Elogio Storico del Cavaliere Giovani Battista Piranesi - celebre antiquario ed incisore di Roma. 1779; e também em Opere, Milão, 1802. Disponível em: <https://art.torvergata.it/handle/2108/110389#. XhL8JUdKjIV> acesso em 06 jan. 2020. CALVESI, Maurizio; MONFERINI, Augusta (a cura di). Giovanni Battista Piranesi / Henri Foncillon. Bologna: Alpha Stampa, 1967. ENCICLOPÉDIE ou Dictonnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. Paris: s. edit., Tomos II e VII, 1751. Disponível em: https://fr.wikipedia. org/wiki/Fichier:Diderot_-_Encyclopedie_1ere_edition_tome_2.djvu Acesso em: 18 nov. 2021. HORÁCIO. A arte poética. In: A poética clássica - Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 2014, pp.55-56 KELLER, Luzius. Piranese et les romantiques français: le mythe des escaliers en spirale. Paris: Librairie Jose Corti, 1966. LEGRAND, G. G. Notice Historique sur la vie et les ouvrages de J. B. Piranesi - architecte, peintre et graveur. In: MORAZZONI, G. Giovan Battista Piranesi, architetto ed incisore (1720-1728). Cento tavole e notizie biografiche. Milano- Roma: Alfieri e Lacroix, 1920 (?). LONGINO ou DIONÍSIO. Do sublime. In: A poética clássica - Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 2014, pp.70-114. PIRANESI, Giovanni Battista. Diverse maniere d`adornare i camini. Roma : Stamperia di generoso Salomoni, 1769. ____________. Della magnificenza ed architettura de`romani. Roma: s. edit. 1761. ____________. Le Antichità Romane. Roma: Stamperia di Angelo Rotilj, 1756. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 20 nov. 21. ____________. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Roma: s. edit., 1750. Disponível em: http:// bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. RYKWERT, Joseph. Los primeros modernos - los arquitectos del siglo XVIII. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982 134 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 MACIEL, Justino M. Vitrúvio - Tratado de Arquitetura. Lisboa: Ist. Press, 2006 NEVOLA, Francesco. Giovanni Battista Piranesi. The Grotteschi, Roma: Ugo Bozzi Editore, 2009. POULET, Georges. Il mito di Piranesi nei romantici francesi. Luca Quattrocchi (a cura di). Edizioni Solfanelli: Chieti, 2018 YOURCENAR, Marguerite. The dark brain of Piranesi and other essays. New York: Farrar, Straus and Giraux Inc., 1985. Imagens: Figura 1: Giovanni Battista PIRANESI. Seis máscaras romanas (Six roman masks). S. data. Caneta e tinta em papel, 203 x 342 mm. Coleção The Morgan Library & Museum. Disponível em:https://www.themorgan.org/sites/default/files/images/collection/drawings/download/142432v_0001.jpg Acesso: 20 novembro 2021 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 135 Figura 2: Giovanni Battista PIRANESI. Gli scheletri. 1750. Gravura 390 x 547 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 26. Coleção: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. Figura 3: Giovanni Battista PIRANESI. L`arco di trionfo. 1750. Gravura 390 x 547 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 27. Coleção: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. 136 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4: Giovanni Battista PIRANESI. La tomba di Nerone . 1750. Gravura 390 x 547 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 28. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. Figura 5: Giovanni Battista PIRANESI. La targa monumentale. 1750. Gravura 388 x 540 mm. In:PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 29. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 137 Figura 6: Giovanni Battista PIRANESI. Veduta degli avanzi di fabbrica magnifica sepolcrale co`sue Rovine, 1756. Gravura 395 x 525 mm. In: PIRANESI, G. B. Le Antichità Romane. Roma: Stamperia di Angelo Rotilj, 1756, Tomo II, prancha LX, p. 60. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 20 nov. 21. 138 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 7: Giovanni Battista PIRANESI. Carceri d`Invenzione – frontispício (2. Estado),. 1761. Gravura 545 x 410 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 43. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 139 Figura 8: Giovanni Battista PIRANESI. Carceri d`Invenzione - Pilastro con catene e due busti nelle nichie, 1761. Gravura 400 x 550 mm. In: PIRANESI, G. B. Opere Varie di Architettura, Prospettive Grotteschi Antichità sul gusto degli antichi romani. Inventate, ed Incise da Gio. Batista Piranesi, Architetto Veneziano. Roma: s. Ed., 1750, p. 58. Coleção: Biblioteca Nacional Rio de Janeiro. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/ Acesso em 17 nov. 21. 140 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 DO ABSTRACIONISMO À VIRTUALIDADE. WILLYS DE CASTRO E CRISE DE EXPANSÃO DA MODERNIDADE Antonio Herci Ferreira Júnior56 - antonio.ferreira@usp.br Resumo: Este ensaio interpreta a transição para a contemporaneidade como um movimento de expansão — e não de esgotamento — da modernidade, com a reafirmação do construtivismo, do abstracionismo e a noção de virtualidade. Palavras chave: Continuidade; Radicalidade; Disruptura; Transcendência; Crise de expansão. Abstract: This essay interprets the transition to contemporaneity as a movement of expansion - rather than exhaustion - of modernity, with the reassertion of constructivism, abstractionism, and the notion of virtuality. Keywords: Continuity; Radicality; Disruption; Transcendence; Expansion crisis. INTRODUÇÃO Willys de Castro (1926-1988) transita por uma grande variedade de meios e linguagens — música, pintura, escultura, figurino e cenografia, poesia, design de moda, design gráfico e de produto. Além da diversidade de meios, desenvolve também diversas técnicas e diferentes abordagens criativas e originais: musicalização de poemas concretos; composição de poesia concreta com máquina de es56 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Transcendência do meio e estado artístico da obra: a trajetória construtiva de Willys de Castro”, orientada pelo Prof. Dr. Edson Leite, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 141 crever e datilografia sobre papel, mas também sofisticadas técnicas de design gráfico e diagramação; nas artes visuais utiliza-se de fundição, pintura em óleo, esmalte e acrílico sobre tela, madeira, papel e papelão, revestimento, encapamento e cobertura de material sólido; inovou em tingimento, artesanal e industrial, pigmentação de tecidos para design de moda, figurino e cenografia para Teatro e novas tecnologias do design gráfico de diagramação e composição, artística, jornalística, empresarial e publicitária. A relevância de ter transitado por diversas linguagens se revela no plano de longo prazo que caracteriza sua jornada criativa: a transcendência ou transbordamento do meio e a exploração sistemática dos limites entre as linguagens, formas expressivas ou classificatórias nas artes. Através dessa estratégia, mobiliza paradigmas que se tornarão eixos centrais nas décadas seguinte e na virada para o século XXI: o site específico, o campo expandido e a virtualidade. Mas, ao mesmo tempo, fortalece e reverbera alguns valores axiais da modernidade. A interpretação de sua produção nos permite uma abordagem crítica de alguns pontos teóricos que motivaram o debate estético marcado pela polêmica da pós-modernidade, particularmente oferecendo uma forma de interpretar essa crise da modernidade como uma crise de expansão, e não de esgotamento, através de um complexo movimento de continuidade, radicalidade, disruptura e transcendência. Continuidade no sentido moderno de afastar a estética de uma interpretação essencialista e incluí-la no rol da expressão intrínseca a um modo de vida e seu ambiente, na aproximação entre arte e vida, além da estetização do cotidiano. Radicalidade no minimalismo, abstracionismo geométrico, aprofundamento do projeto construtivista, fortalecimento da sintonia com o avanço tecnológico, de informação, design e exploração das técnicas de simulação, virtualização e seriação de obras. Disruptura no afastamento dos discursos generalizantes sobre os não lugares — as utopias — característica de certas vanguardas modernas e a vinculação a um projeto que coloca a obra de arte como algo que acontece de forma atual, isto é, tem um lugar próprio e aponta para uma territorialidade. 142 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 E, principalmente, transcendência, como uma suma das questões anteriores, indo além das dicotomias das tradicionais oposições, como entre o moderno e o contemporâneo e, ao invés de opor um pensamento novo contra ou arremessado para aniquilar um pensamento antigo e ultrapassado, vê-se dinamicamente situado em um espaço contemporâneo possibilitado, justamente, pela radicalidade da “inquietude dos esquemas formais modernos” (BRITO, 1980, p. 206), do minimalismo, desconfiguração ou desmaterialização do objeto — em seus objetos ativos, por exemplo (CASTRO, 1961) — e fugacidade das regras de produção simbólica ou julgamento estético. Um campo ampliado e expandido caracterizado por uma reflexão produtiva, viva e pulsante da obra moderna, não como uma “figura clara, com âmbitos plenamente definidos”, mas sim Um feixe descontínuo, móvel, a se exercer na tensão com os limites da modernidade, interessado na compreensão e superação desses limites. Não há uma diferença evidente entre o trabalho moderno e o trabalho contemporâneo válida por si; há, isto sim, démarches distintas agindo ‘dentro’ e ‘fora’ deles. (BRITO, 1980, p. 206, destaques do autor) Segundo Brito, “dentro” porque a arte contemporânea não é mais fundado em uma arte idealizada da modernidade, mas como ela “resultou assimilada e recuperada” e “fora” porque “os procedimentos são outros” (BRITO, 1980, p. 206–207). Nas palavras de Ricardo Fabbrini: “não se trata, porém, de decretar, sem mais, ‘a morte do novo’, mas de redefinir o sentido do ‘novo’” (FABBRINI, 2013, p. 178). Fabbrini afirma, ainda, que existe uma dialética “interna à modernidade que se manifesta no caráter afirmativo de certas vanguardas, e negativo, em outras”: De modo que se constituíram, ao longo do século XX, duas linhagens, ainda nos termos da historiografia. A primeira é a das vanguardas construtivas, positivas, afirmativas, compromissadas com o capitalismo industrial, como o futurismo, e a escola ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 143 da Bauhaus [...]. A segunda linhagem é a das vanguardas líricas, ou pulsionais, como no caso do sortilégio anarco-dadaísta, que, desde o início do século, fez a crítica desse compromisso com a racionalidade técnica ou instrumental. (FABBRINI, 2012, pág. 32) Essas duas linhagens, entretanto, mantém em comum o objetivo de aproximar a arte da vida comum e da “estetização do real”, ainda que com estratégias diferentes. Willys de Castro apresenta ambas as características, transitando do concretismo ao neoconcretismo: por um lado estando integrado ao sentido do progresso técnico e compromisso com o mundo do trabalho e industrial. Por outro, também portando um inerente e grande criticismo ao processo de massificação e exploração do trabalho e do aumento das contradições sociais, sabendo-se, quanto a isso, que ambos os movimentos aos quais esteve ligado, concretismo e neoconcretismo, tinham fortes ligações com movimentos de resistência à Ditadura Militar. O movimento que caracteriza o concretismo em sua passagem, metamorfose ou ruptura ao neoconcretismo, oferece muitas nuances que devem ser consideradas, para além de uma abordagem de ruptura. Willys de Castro coloca-se, ainda, no centro crítico de uma polêmica sobre a pós modernidade: por exemplo, antes de demonstrar uma submissão acrítica ao capitalismo, ou antes de se “transformar em farsa” (JAMESON, 1992, 2001): não apenas os pensamentos concretos e neoconcretos eram explicitamente ligados ou referenciados ao pensamento de esquerda, dos comunistas Ferreira Gullar ou Mário Pedrosa (MARI, 2001) como eram parte importante de um ativo discurso político de resistência contra a ditadura e, sem dúvida alguma, de uma estética e atuação artísticas extremamente inovadoras e criativas, mesmo que concretizadas com instrumentos da indústria do design ou sob a tutela da publicidade. Em diálogo também com a perspectiva Harvey (1998), Willys confirma uma alteração profunda no tratamento do tempo e espaço da obra, através dos conceitos de entropia e estado de coisas. Na de Lyotard (2008) poderia corroborar o diagnóstico da dissolução das grandes metanarrativas e sua pulverização em narrativas cada vez mais parti144 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 culares e subjetivas que não tem preocupação com o reconhecimento universal, mas com a construção de territórios conceituais. Isso mostrava que não existia apenas “um construtivismo” mas “construtivismos”, e que a sua radicalidade não passava simplesmente pela construtividade como submissão ao artefato industrial, mas sim a construtividade como possibilidade concreta de revelação ou desvelamento justamente da farsa da ditadura ou, generalizando, da farsa da ideologia, cuja característica é se auto ocultar nos hábitos e na vida comum, mas que pode ser desvelada pela dialética dos conceitos e pelo apelo concreto a uma arma impensada pelas próprias vanguardas tradicionais: a concretude da linguagem, literalmente o ponto de encontro da arte, da teoria, da ciência, do conhecimento e matéria bruta da ágora. 1. CONTINUIDADE Willys de Castro revela um processo construtivo que incorpora, como ideário, as questões colocadas acima como parte de um cuidadoso planejamento estético, temático e curatorial que envolve seus Objetos Ativos e seus Pluriobjetos. Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que apresenta uma continuidade do projeto de considerar a obra de arte fixada como estado de arte a partir de seu uso, e não como possuidora de uma essencialidade que a defina para além disso e que pode ser visto como uma mediação do movimento do concretismo ao neoconcretismo, como uma continuidade do projeto construtivista. Em um primeiro aspecto afirma-se que a criação artística de Willys de Castro se vincula a um ideário de si mesma, um conjunto de princípios ou preceitos teóricos ou conceituais que a CONCRETIZA como modelo, dando consistência à teoria da qual emana. Isso partindo-se do fato de que uma teoria é consistente na medida em que apresenta modelos. Nesse sentido, a CONCRETUDE dessa estética pode ser visto na expressão modelar de sua realização. Tal concretude depende, por outro lado, de um jogo de linguagem que pode constituir a partir de sua construtividade, isto é, de suas relações interativas de significação que demandam não do ideário de um objeto pronto e acabado, mas do ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 145 processo permanente de seu desvelamento, a construção do seu sentido acumula a virtualidade do planejamento, a construtividade do trabalho, o fundamento da matéria e o seu sentido estético como certeza habitual de uma percepção que, sabendo que é virtual, pode paramentar-se de certeza e verdade objetal. Por isso mesmo guarda, em sua significação, um aspecto que podemos chamar de construtivo, pois torna-se concreto na medida em que realiza um modelo segundo uma relação de significação que depende, em última instância, dos jogos de linguagem ou jogos de certezas habituais de um determinado modo de vida cultural. Reafirma-se como CONCRETA na medida em que não se vale de essências, de beleza ou sublimidade na constituição do valor, mas sim das relações concretas em que se insere como parte dessa humanidade compartilhada. Importante frisar que tal interpretação de CONCRETO é coextensiva e compatível com a interpretação de CONCRETO a partir da não referencialidade da linguagem ou representação autônoma de seus recursos, sejam sonoros sejam pinturas, sólidos ou palavras. No entanto, a linguagem não abarca a relação entre a concretude e a transcendência, dela mesma, em pura virtualidade, pois não pode descrever nem uma nem outra. Assim como o visível e o invisível, a linguagem não tem como expressar algo que é sendo ali mesmo uma percepção de mundo: ao falar dela, já não é percepção, mas uma cadeia textual que se volta para outra percepção, em outro momento completamente distinto do original. Uma imagem que vem na lembrança jamais será comparada a um texto que a descreva, a não ser por uma ligação que é, ao mesmo tempo, o elo de ligação entre um momento e outro do solipsismo de instantes presentes que, embora encadeados em uma crença de unidade, expõe um fosso inexpugnável de ontologias de serem no mundo coisas em seus instantes presentes como que objetos diferentes. 2. RADICALIDADE Tal concretude depende, por outro lado, de um jogo de linguagem que pode construir a partir de sua performatividade, isto é, de suas relações interativas de significação, o seu sentido estético como mensa146 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 gem. Performatividade de si como aspectos de seu processo para constituir o estado de arte e performatividade do ponto de vista do observador em seu processo de subjetivação, que será o resultado da imersão no mundo da obra, autônoma, mas agora inserida em uma significação relacional. Essa relação demanda uma radicalidade no aprofundamento da arte como um objeto fabricável, serializável e reprodutível, pois cada experiência será única, como a própria relação vital entre a vida e os objetos fabricados em série, padronizados, mas únicos quando imersos em uma relação pessoal com seu possuidor ou observador. Sob esse aspecto e segundo interpretação de Lyotard (2008) aproxima-se das formulações sobre a polêmica da pós-modernidade, ao expressar uma crise e esgotamento dos “grandes metadiscursos” transitando para um discurso intrínseco de si mesma, uma forma de, ao mesmo tempo, significar e oferecer, a partir do modelo da teoria, também os parâmetros de verificação e apreciação como valores ou conceitos. A obra “inaugura-se no mundo como um instrumento de contar a si próprio” (CASTRO, 1961). Segundo Lyotard (2008) esses metadiscursos passam por uma crise que se caracteriza justamente pela falta de credibilidade nos valores e falta de padrões de reconhecimento e verificação universais. Por outro lado, revelam sob novos aspectos a mesma arena cultural que, se antes travava-se predominantemente na “arena da produção”, passa a se espalhar “tornando a produção cultural uma arena de implacável conflito social” (HARVEY, 1998, p. 65) o que nos aponta, apesar da mudança da amplitude da “arena”, uma continuidade de sua presença marcante no cotidiano da vida, no primeiro caso como aspecto de sua difusão e produção, no outro como aspecto de sua participação direta nos conflitos sociais. Se a modernidade buscava padrões e critérios universais de interpretação estética, a pós-modernidade dissolve tais padrões em uma tendência cada vez mais individualizada e personalizada de constituição de padrões, pulverizando a certeza universal em horizontes fechados e construtivos de si como obra de arte. A obra não busca mais a universalidade em expressões técnicas e abstratas, mas sim na concretude com que provoca em cada um individualmente, reações significativas. No entanto, na obra de Willys, o estado artístico tem a pretenANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 147 são de ser reconhecido e percebido social e coletivamente, no entanto deslocando o tradicional conceito de aura para o de realização técnica: não passa mais pela apreciação de sua aura, mas sim pela excelência de sua técnica e pela sua capacidade de, efetivamente, provocar com sua reação um estado artístico que transcenda o objeto original. As ideias, conceitos e relações significativas desse processo dependem, portanto, de um paradoxo, contido outrossim em toda obra de arte: deve ser algo especialíssimo naquele momento enquanto mensagem e realização artística, mas também deve ancorar-se em algo habitual e cotidiano para sua realização, do contrário perde sua capacidade reativa que pode gerar esse novo estado de arte. A obra de Willys de Castro deve apresentar um equilíbrio entre a satisfação e a traição das expectativas habituais do entendimento, a informação nova e inédita e as habitualidades e redundância que compõe as certezas convencionais: se for pura novidade e informação, não tem lastro e não pode realizar-se como sentido e muitas vezes não pode ser entendida; se for pura redundância não atende ao lastro criativo que a atividade artística deve garantir para proporcionar de forma “cotidiana” e continuada o seu estado de arte. Por isso mesmo guarda, em sua significação, um aspecto que podemos chamar de performativo, pois torna-se concreto na medida em que realiza um modelo segundo uma relação de significação que depende, em última instância, dos jogos de linguagem ou jogos de certezas habituais de um determinado modo de vida cultural, a partir de uma autonomia minuciosamente garantida pela técnica artística na transcendência da matéria bruta para o estado artístico da obra. 3. DISRUPTURA Disruptura ao apresentar a obra como um discurso de si, fixado em sua própria atualidade e não como propositora de um não lugar idealizado. Tais debates podem ser reinseridos em um contexto de discussão sobre a “modernidade após a modernidade”, entretanto sem assumir o registro propriamente pós-modernos, ou suas teses. Ou seja, tais tendências de Willys de Castro nos permitem falar em resiliência 148 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 e fortalecimento de determinadas teses da modernidade, e não em seu esgotamento. Por outro lado, nos permite evidenciar alguns pontos de inflexão: o abandono das utopias discursivas e a assunção do discurso pontuado por coletivos e lugares próprios, que culminarão atualmente nas questões identitárias. E também em uma retomada da incorporação da arte na tecnologia, a radicalização das tendências visuais e estilísticas próprias da alta modernidade, por exemplo nos logotipos da Bauhaus, hoje presentes no cotidiano do design. Também na seriação de obras e no fortalecimento do design nas artes visuais, com incorporações de técnicas digitais em diversos trabalhos. A consequência é uma profunda inflexão sobre os espaços de arte, o papel do museu contemporâneo e as formas criativas que caracterizam uma reviravolta no papel do observador, tornando a observação ativa e o objeto de arte uma interação do ambiente que propicia a observação. Se a tendência moderna que vem desde Duchamp, passando por Andy Worrol é a de introduzir elementos do cotidiano e objetos triviais no espaço de arte (DANTO, 2002, 2005), a proposta de Willys de castro é trabalhar também com elementos ‘triviais’ e do ‘cotidiano’, mas não objetos do mundo — mictórios, caixas de sabão ou outros — mas objetos virtuais da própria razão ou do logos e da imaginação da geometrização do mundo: cubos, paralelepípedos, encaixes de formas, negativos e positivos. Nesse sentido, se a modernidade traz o objeto cotidiano para o museu, Willys faz uma imersão do próprio espaço do museu na trivialidade da percepção de mundo e do hábito transfigurando a própria obra, transcendendo o objeto original — quadro com tridimensionalidade (a tela tem as três dimensões) — e realizando uma virtualização de sua concretude perceptiva. Além disso torna patente a configuração da obra como um processo de produção e circulação (CAUQUELIN, 2005, 2008) Um objeto bruto transcende-se não pela interpretação ou observação, mas pela desmaterialização de si mesmo e pela realização de uma realidade potencial, que o trabalho do artista deixa impregnado no ser do objeto de arte e que torna este objeto dotado de uma capacidade ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 149 genuinamente humana: o trabalho. No objeto ativo, que inaugura a fase mais realizada de sua teoria, o objeto é ativo justamente por desempenhar, em modo de potência acumulada ou virtualidade ontológica, um trabalho cotidiano de dizer-se, recontar-se e desvendar-se. Willys de Castro insere em um componente particularmente promissor na interpretação da estética na contemporaneidade: esse trabalho, potencialidade e virtualidade citadas anteriormente só são possíveis por estarem imersas em jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 1999, p.ex. págs. 27, 57, 75, 290 etc.) que envolvem o planejamento, construtividade e fruição do objeto artístico, fruição em seu sentido epistemológico e como percepção sensível, estabelecendo algo como um sentir da mente, fundado em hábitos e imersos e possibilitados justamente pelos jogos praticados nos sentidos todos de um modo de vida que, ao dar sentido no conhecimento de algo, instaura também a materialidade da própria sobrevivência do corpo do qual o objeto torna-se alteridade. 4. TRANSCENDÊNCIA E VIRTUALIDADE Transcendência como processo do objeto bruto para a virtualidade de seu sentido, realizável como um trabalho estético que, impregnado pelo artista na matéria bruta, faz da perenidade do estado de arte uma função dessa transcendência do meio em que ocorre, realizável como um trabalho estético que, impregnado pelo artista na matéria bruta. As principais questões suscitadas fazem apelo à transcendência do meio e à estetização do modo de vida contemporâneo. A primeira é uma proposta de toda a trajetória do artista, que participa de um questionamento sobre a pintura e a tridimensionalidade. A segunda é uma tendência geral da pós modernidade, mas pode ser acompanhada em Willys de Castro em sua marcante atuação na área de figurino, moda e design. Ambas as vertentes, a concreta e a neoconcreta, seguem na afirmação do abstracionismo, divergindo, entretanto, em como se dá essa expressão do abstracionismo. Teoricamente continuam apresentando modelos e dando con150 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 sistência à atuação paradigmática do construtivismo artístico, continuam concorrentes em uma mesma teoria de não figuração como ligação ontológica. Entretanto, às vezes de forma clara, outras de modo menos explícito, questões ideológicas determinam de fato uma reproposição do concreto para vertentes concorrentes em termos propedêuticos. Haroldo de Campos, por exemplo, vê no movimento do concretismo ao neoconcretismo um movimento de “idiossincráticas polêmicas pessoais em torno de personalidades” (CAMPOS, 1996) e minimiza as polêmicas mais conceituais ou de fundo. Embora considere-se que a alternância foi muito além de desavenças pessoais, essa alternância dá menos ênfase a um movimento de ruptura, do que uma mudança de eixo que, malgrado uma profunda reavaliação de alguns pontos fundamentais de um mesmo paradigma — a arte construtiva — continuava exatamente no mesmo campo e na mesma ligação semântica que permitisse a ambos os grupos, o paulista e o carioca, manterem aspectos muito semelhantes, embora oferecendo modelos distintos conforme alguns operadores estéticos e ideológicos. Ou seja, as afirmações de ambas as teorias, concreta e neoconcreta, não eram contraditórias entre si, mas concorrentes, no sentido de ocorrerem juntas e competirem pela interpretação mais adequada a um mesmo paradigma construtivo, o da relação entre o concreto e o abstrato. Por outro lado, também se considera que a prática dos artistas dos dois grupos era também sistemicamente ligada à apresentação de modelos, características marcantes desde a poesia concreta paulista dos irmãos Campos, até as de Hélio Oiticica: obras que surgiam não de uma proposta de inspiração transcendental, mas de uma inspiração imanente a uma forma de planejar a mediação entre obra e mundo, seguindo um protocolo geral de retirar a figuração como centralidade da representação. Willys de Castro, malgrado discreta e sem alarde, esteve diretamente e ativamente envolvido nos debates, com atuação destacada tanto no concretismo quanto no neoconcretismo, o que nos permite identificar na análise de sua produção e incorporados na sua obra de forma construtiva, para além das divergências entre as duas escolas, alguns pontos centrais que motivaram o debate estético marcada pelo ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 151 esgotamento expressivo do modernismo e discussão sobre o caráter do novo, agora em um contexto que se abre particularmente a partir de possibilidade da virtualização de determinados procedimentos e da simulação e projeção de projetos, antes de sua realização material. Foca-se aqui as discussões e polêmicas que rugem nos anos 1960, entre o concretismo paulista, na abordagem dos poemas e reflexões de Augusto de Campos; e o neoconcretismo carioca, representando pelo poeta e escritor Ferreira Gullar. A mediação entre os dois movimentos e a compreensão da crise de modernidade podem ser compreendidos a partir da obra do multiartista Willys de Castro, que pertenceu aos dois movimentos e, de certa forma, o transcendeu, na medida em que não se fechou a um ou a outro e, justamente por extrapolar os dois, colocou-se diretamente no campo expandido da estética como forma de vida, que a partir das décadas seguintes marcaria a arte da virada para o século XXI. Tal transcendência pode ser observada no deslocamento da questão central que estava em jogo: o que é o concreto? Nem o concretismo nem o neoconcretismo se propõe como uma estética imitativa ou figurativa, mas sim com raízes na própria abstração geométrica. Além disso, se não imitam ou figuram objetos no mundo, a estética permite imitar imitações, sob forma de metalinguagem, comentários em contexto da própria obra ou sob formas de citações e recorrências. Dessa forma, o objeto ativo de Willys de Castro não figura um buraco ou fissura no mundo, mas sim a operação mental que concluiria que existe ali um e, de fato, constrói uma sensação da razão. O objeto de seu quadro é o próprio quadro que, mimeticamente, não teria como imitá-lo, pois inexiste ainda. Entretanto, sua mimese é a sincronia da presença do espectador, que ao interpretar parece entrar em uma espécie de vertigem, pois dá vasão não ao quadro como imitação da natureza, mas como uma sensação mental de que o quadro como pintura trai essa natureza pictográfica do próprio quadro. Não se trata de uma estética figurativa ou imitativa, mas sim de uma estética de sincronia, onde a forma ou o sentido não se restringem a uma imitação da natureza ou sua figuração, mas no compartilhamento do processo de criação ou da construção de sentido. 152 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Se a trajetória de Willys de Castro é trazida como paradigma do movimento histórico — depois da modernidade —, sua produção é aqui apresentada como uma sucessiva apresentação de aspectos de um tipo de prática criativa que tem por objetivo a apresentação de um resultado objetal de uma teoria de fundo que dá origem à prática continuada. Esse objeto resultante é também capaz de revelar os paradoxos que fazem parte do seu jogo de linguagem realizando um trabalho cotidiano, como obra, de manter o objeto bruto em estado de arte. O paradoxo reside no fato de que a materialidade do objeto é descontruída, na exata medida em que, desconstruído como objeto bruto, é matéria prima da concretude do objeto ativo, mais virtual do que efetivamente real, mas verdadeiro para o observador, ao mesmo tempo que o objeto bruto deixa de ser verdadeiro no sentido da percepção, para tornar-se duvidoso e encoberto por seu revestimento epistemológico. A obra de arte fundamenta-se em uma busca teórica e construtiva sobre a percepção como produtora de significados e conceitos e, levando-se em consideração o preceito geral da lógica de que “uma teoria é consistente se e somente se apresentar um modelo”, a própria obra final apresenta-se, para além de seu resultado estético e artístico propriamente dito, como modelo que dá consistência à teoria da qual emana. Segundo o artista, essa teoria deve ser “de ordem fenomenológica”(CASTRO, 1961), pois trata-se de buscar como a percepção da obra pode desencadear uma “torrente de fenômenos perceptivos e significantes”, disparados a partir do jogo de sentidos e suscitados da relação da obra com o mundo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Willys de Castro perseguiu, durante toda sua vida criativa, uma mesma teoria da obra, apresentando como modelos, nas mais diversas linguagens, os objetos que, considerando-se a linguagem artística, poderiam ser objetos musicais, plásticos, pelas de figurino ou tecidos estampados. A transcendência do objeto bruto ao estado de arte ocorre como uma desvelamento do objeto, realiza-se por sua vez como fruto ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 153 de um trabalho ativo de conhecimento, onde quem observa a obra, o sujeito da percepção, deve ultrapassar um obstáculo anteposto a ele, a face oculta do que seria um tridimensional, mas não o ultrapassa senão pela completude de ver o que não pode ver materialmente, isto é, completude habitual de ver como um todo o que esperaria que fosse um todo na vida cotidiana. Mas o sujeito que observa a obra também deve ultrapassar um obstáculo anteposto à própria obra, impedida intencionalmente de ser um quadro, mas impedida intencionalmente de ser um tridimensional. O objeto ativo não se transforma ou é ativo porque muda sua essência, é ativo porque transcende o hábito cotidiano do olhar dano outro sentido: o que é transcendido é a própria percepção não porque mude o objeto ou mude o ser de quem observa, mas por ocorre, naquele instante, a desmaterialização do seu fundamento e a materialização de sua potencialidade, isto é, a transcendência do objeto é a sensação dominante de uma imanência que, estando onde não deveria estar, porta-se como um questionamento de qualquer imanência que não pode estar onde presume que esteja. Dessa forma não é ativo o objeto, ativo é o seu conhecimento virtualmente transcendente e brutalmente virtual: o abstracionismo expressa-se mais do que geométrico: como virtualidade de sua razão de sentido, isto é, como uma imagem que apenas se expressa geometricamente por sua participação como virtualidade de sentido. Um cubo não existe geometricamente de fato, mas expressa-se virtualmente pela ideia de ser um cubo. A obra de Willys de Castro apresenta-se como uma mediação entre o concretismo e o neoconcretismo e remete a uma radicalidade e transcendência de determinados valores das vanguardas do século XX, configurando a crise da modernidade não como uma crise de esgotamento, mas de expansão e consolidação, principalmente em aspectos centrais e fundantes do pensamento vanguardista: o projeto de estetização da arte e sua integração ou expressão no cotidiano; a estética como valor relacional imanente (e não transcendental e essencial) dentro de um modo de vida; a elegia da tecnologia e do progresso; a consolidação do design minimalista e do abstracionismo, reafirmado como virtualidade. 154 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). In: FUNARTE (org.). Arte Brasileira Contemporânea. Caderno de Textos Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p. 202–2015. CAMPOS, Haroldo De. 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São Paulo: Nova Cultural, 1999. 156 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O MA: DIÁLOGOS COM A ESCRITURA BARTHESIANA Brenda H. M. Yoshioka57 – b.yoshioka@unifesp.br Resumo: Nosso objetivo é compreender a estética Ma e identificar seu possível uso na escritura58 barthesiana. Então, a partir do estudo acerca da cultura e comunicação japonesa realizado por Michiko Okano (2012) buscaremos acepções do Ma que se aproximem da linguagem literária. Dessa forma, realizaremos uma breve análise de alguns elementos da obra O Império dos Signos (1970), de Roland Barthes, com as lentes da estética Ma a fim de exemplificar como o ela pode permear o campo literário visando os seguintes aspectos: a espacialidade como experiência dos espaços construída pela percepção guiada pelos elementos culturais japoneses; e o intervalo como a pausa que dita o ritmo da leitura devido à disposição das imagens e texto. Palavras-chave: Roland Barthes; Ma; Escritura; Ensaio; Cultura japonesa. Abstract: Our objective is to understand the Ma aesthetic and identify its possible use in Barthesian writing. Then, based on the study of Japanese culture and communication carried out by Michiko Okano (2012), we will seek meanings of Ma that bring it closer to literary language. In this way, we will carry out a brief analysis of some elements of the work O Império dos Signos (1970), by Roland Barthes, with the lens of Ma aesthetics in order to exemplify how it can perme57 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação como iniciação científica, intitulada “O Ma: diálogos com a escritura barthesiana”, orientada pela Profa. Dra. Paloma Vidal, para os graduandos, no “Departamento de Literatura” da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), com número de processo 2021/08415-1. 58 Em um pequeno glossário do léxico barthesiano presente no livro Aula (1980), Leyla Perrone-Moisés explica o que seria a escritura para Barthes: o termo é usado para designar “todo discurso em que as palavras não são usadas como instrumentos, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes” (p.78). Com isso em vista, priorizamos o termo barthesiano para analisar justamente esses aspectos que fogem de um uso instrumental da língua, e que evidenciam uma poiesis especificamente barthesiana. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 157 ate the literary field aiming at the following aspects: spatiality as an experience of spaces built by perception guided by Japanese cultural elements; and the interval as the pause that dictates the pace of reading due to the arrangement of images and text. Keywords: Roland Barthes; Ma; Writing; Essay; Japanese culture. INTRODUÇÃO O que instiga a investigação que propomos nesta pesquisa são os tipos de produções de linguagens que nascem de diálogos entre Oriente e o Ocidente. Para isso elegemos dois objetos principais que percebemos construir essa ponte: o Ma e o livro de ensaios O Império dos Signos (1970), de Roland Barthes (1915-1980). Publicado originalmente com título francês de L’empire des Signes pela Éditions Albert Skira, em 1970, O Império dos Signos é uma encomenda de Maurice Pinguet, fruto de anotações de viagens59 feitas por Barthes ao Japão no ano de 1966. São no total 26 fragmentos de textos mesclados com imagens e anotações feitas à mão, que tecem vários aspectos da cultura japonesa. Sua primeira edição foi lançada no Brasil em 2007, pela Editora Martins Fontes e traduzido por Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade Estadual de São Paulo). Optamos por embasar a análise nos estudos de Michiko Okano, Ma: Entre-espaço de arte e comunicação no Japão (2012), para assimilação e contextualização do Ma, bem como para compreender os impactos e reverberações que a entrada deste elemento causou quando foi apresentado ao Ocidente. Do campo semântico vasto em que opera o Ma, Okano diz: O Ma é um elemento cultural especificamente nipônico que se apresenta como um modus operandi vivo no cotidiano dos japoneses e está presente em todas as suas manifestações culturais: na arquitetura, nas artes plásticas, nos jardins, nos teatros, na música, na poesia, na língua, na comunicação interpessoal, 59 Rodrigo Fontanari disponibiliza esta informação no ensaio “A concepção de vazio em Roland Barthes” (2018). 158 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 como os gestos do cotidiano ou o modo de se falar etc. (OKANO, 2012, p. 13, grifos da autora). Em seu livro, Okano retoma a exposição organizada por Arata Isozaki, no Musée des Arts Décoratifs, em Paris no ano de 1978. Na sequência, a autora reflete sobre as reverberações que a exposição causou no Ocidente, analisando vasta bibliografia de títulos orientais e ocidentais que empreenderam estudos na compreensão do Ma. Para além da contextualização histórica e cultural desta estética, Okano pauta sua argumentação sobre o conceito de quase-signo da semiótica peirceana para exemplificar que o Ma é reconhecível por meio de sua concretização: “Assim, pelo olhar semiótico, o Ma configura-se como um entre-espaço prenhe de possibilidades e, por esse caminho, permite-se uma aproximação, ainda que inicial, àquilo que expressa um japonês ao se referir ao Ma ou manifestá-lo” (OKANO, 2012, p. 24, grifos da autora). Partindo desse pressuposto, a pesquisadora analisa as diversas formas como o Ma se revela em obras, por exemplo, do arquiteto Ando Tadao (1941) e em filmes do diretor clássico japonês Ozu Yasujiro (1903 1963) e do cineasta e ator Kitano Takeshi (1947). Como foi salientado por Okano, o Ma é tido como um elemento particular da cultura japonesa, e está presente em várias linguagens artísticas, geralmente as relacionadas à música, à arquitetura, ao cinema, entre outras. No Brasil, pesquisas têm como foco essas linguagens, como por exemplo “O conceito Ma: o conceito Ma na conformação de espaços em Tadao” (2015), de Walkyria Tsutsumi Ferreira Coutinho, “Como Vestir o Intervalo” (2014), de Julia Valle Noronha, e “Ma e o Shôjô Mangá Clover” (2013), de Simonia Fukue Nakagawa. À primeira vista, este diálogo literário pode parecer complexo de elaborar. No entanto, ainda acreditamos que possa ser firmado, e a exemplo disso encontramos produções recentes que entram nessa discussão. Atualmente, a Editora UNIFESP em conjunto ao Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA), sediado na Universidade de São Paulo, lançou o livro digital Conceitos estéticos: do transtemporal ao espacial na arte japonesa (2021), o qual aborda diversas formas estéticas particulares à cultura japonesa, bem como a estética Ma. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 159 O livro conta com um rol variado de pesquisadores do grupo, e cada um trabalha temporalidades e espacialidades artísticas do Japão. O texto de Plínio Ribeiro Jr, “Figurações da espacialidade japonesa na vida e na obra de Wenceslau de Moraes” (p. 77-92) presente no livro do GEAA, desenvolve uma análise de obras do autor Wenceslau de Moraes e como este trabalhou a espacialidade em relação a sua vivência no Japão, com foco especial nos efeitos que podemos compreender como resultantes da experiência proporcionada pelo Ma em diálogo com os conceitos uchi e soto. A proposta de Ribeiro Jr. é, então, uma das que mais se aproxima do que queremos desenvolver nesta pesquisa e em território nacional, já que nosso objetivo é analisar de que forma a arte e cultura japonesa podem reluzir e compor, em certa medida, a escritura, porém, especificamente a barthesiana em O Império dos Signos. Dessa forma, a partir do contato com estudos precedentes, gostaríamos de investigar se a mescla entre as palavras e imagens não poderiam ser tão visuais e sensoriais quanto a arquitetura e a vestimenta, por exemplo. Assim, esta pesquisa pretende se inserir nas fronteiras dessas artes, inscrevendo um diálogo entre linguagens. 1. O MA: DIÁLOGOS COM A ESCRITURA BARTHESIANA O laço que ata esta estética ao livro O Império dos Signos é, de saída, o fato de que Roland Barthes demonstrou conhecimento sobre ele em seus seminários60 e presenciou a exposição mencionada, chamada “MA: Espace Temps du Japon”61, que apresentou o Ma para o Ocidente. Para levar adiante ele mesmo um diálogo entre Oriente e Ocidente, Barthes não apenas empreendeu seminários para discutir estéticas relacionadas à cultura japonesa, mas também incorporou em sua escritura estes aspectos, sendo O Império dos Signos (1970), segundo gostaríamos de mostrar, a obra que tem como operador estético e temático o Ma. 60 O Neutro (1977-1978) seminário em que Roland Barthes citou o Ma para exemplificar o que seria “la bonne distance”, e o autor também retoma o Ma em A preparação do Romance – Volume I (1978-1979) para compreender a importância da disposição das palavras na página em relação ao haicai. 61 Michael Lucken informa em seu texto, “The limits of ma. Returning to the beginning of a ‘Japanese’ concept” (2014), que Roland Barthes escreveu um pequeno artigo para Le Nouvel Observateur acerca da exposição, presente em Œuvres Completes (1995), em 23 de outubro de 1978, chamado “L’intervalle”. 160 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O Ma, por estar tão enraizado na sociedade japonesa, dificilmente se distingue de práticas cotidianas e socioculturais, e devido a essa diluição que naturaliza sua presença no país acreditamos que, com uma sensibilidade mais aguçada, é possível deixar-se entrar nesse fluxo. Assim, essa presença quando percebida, pode ser vivenciada. Dessa forma, nos ensaios de O Império dos Signos, Barthes guia seu leitor por meio de um processo que constrói sentidos nos deslizamentos entre textos e imagens, de forma que auxilia a experienciar espaços e intervalos vivenciados no Japão. Estes deslizamentos podem ser potencializados no desenvolvimento de compreensão da estética Ma. Isto posto, da grande sistematização de acepções do Ma que Okano faz, algumas delas parecem estar em diálogo com a escritura de Roland Barthes, como quando a autora diz que: A espacialidade Ma mostra-se assim, muitas vezes, de frágil visualidade, mas eminentemente comunicativa, ao convidar não só a participação perceptiva polissensorial e física do ser humano, que vivência a construtibilidade processual da espacialidade, mas também sua memória e seu pensamento, pela relação do homem com a sociedade e a cultura [...] (OKANO, 2012, p. 102, itálicos da autora). Nos ensaios de O Império dos Signos, Roland Barthes guia seu leitor por meio de algo similar a essa “construtibilidade processual da espacialidade” (OKANO, 2012, p. 102), para que são enxergue apenas textos e imagens, mas que possa experienciar por meios perceptivos as espacialidades que ele encontra no Japão. O que ajuda a compreender essa espacialidade é a forma como Barthes descreve o que experiencia, evidenciando elementos culturais japoneses. Um dos fragmentos do livro que encenam a experiência da espacialidade é “Centro da cidade, centro vazio”, no qual é dito: A cidade de que falo (Tóquio) apresenta este paradoxo precioso: possui certamente um centro, mas esse centro é vazio. A cidade toda gira em torno de um lugar ao mesmo tempo proibido e indiferente, morada escondida pela vegetação, protegida por fossos de água, habitada por um imperador que nunca se vê, isto é, literalmente, por não se sabe quem. Diariamente, em sua circulação rápida, enérgica, expeditiva como a linha de um ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 161 tiro, os táxis evitam esse círculo, cuja crista baixa, forma visível da invisibilidade, oculta o “nada” sagrado. Uma das duas cidades mais poderosas da modernidade é, portanto, construída em torno de um anel opaco de muralhas, de águas, de tetos e de árvores, cujo centro não é mais do que uma ideia evaporada, subsistindo ali não para irradiar algum poder, mas para dar a todo o movimento urbano o apoio de seu vazio central, obrigando a circulação a um perpétuo desvio. Dessa maneira, dizem-nos, o imaginário se abre circularmente, por voltas e rodeios, ao longo de um sujeito vazio (BARTHES, 2016, p. 46, grifos nossos). Segundo Okano, os espaços japoneses são caracterizados por aspectos como efemeridade, primazia do movimento, lococentrismo e descentramento (OKANO, 2012, p. 101). Partindo dessas características, a percepção da espacialidade urbana japonesa é construída no ensaio e este trajeto perceptivo é arquitetado pelo universo semântico que guia o efeito de sentido que oscila entre o concreto e o abstrato (centro vazio; o nada sagrado; ideia evaporada; vazio central; sujeito vazio), possibilitando uma experiência como o Ma, enquanto “passageira e em fluxos, porque sempre constituída pelas ações humanas” (OKANO, 2012, p.101), efeito garantido pelas escolhas semânticas e suas disposições que conotam movimento (circulação rápida; enérgica; expeditiva como a linha de um tiro; o movimento urbano; obrigando a circulação). Em certos fragmentos, o Ma se faz presente também como tematização de uma experiência de quem vive um vazio de fala necessário, que possibilita a escritura: A escritura é, em suma e à sua maneira, um satori (o acontecimento Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte (nada solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um vazio de fala. E é também um vazio de fala que constitui a escritura; é desse vazio que partem os traços com o Zen, na isenção de todo sentido, escreve os jardins, os gestos, as casas, os buquês, os rostos, a violência (BARTHES, 2016, p. 10, grifos do autor) Em entrevista feita por Guy Scarpetta à Promesse em 1971, presente no livro O grão da voz (2004), Barthes explica como compreende esse vazio: 162 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 [...] o vazio não deve ser concebido (figurado) sob a forma de uma ausência (de corpos, de coisas, de sentimentos, de palavra, etc.: o nada) – aqui somos vítimas da física antiga [...] O vazio é antes o novo, o retorno do novo (que é o contrário da repetição) (BARTHES, 2004, p.164, grifos do autor) A afirmação de Barthes na entrevista sobre como não conceber o vazio se aproxima do que Okano assinala sobre a compreensão do mesmo termo: Deve-se lembrar que, do ponto de vista nipônico, causa certo estranhamento a acepção mais comum do termo “vazio” na língua portuguesa: espaço onde não há nada a não ser ar. Ora, se o ar é elemento fundamental e necessário para nossa sobrevivência, considerar o vazio um lugar em que ele está presente, é praticamente desconsiderar um elemento essencial (OKANO, 2012, p. 27-28). Esse vazio de fala não impede que Barthes, de forma até mais experimental, aceite a língua estrangeira como desconhecida, de tal modo que não busca necessariamente uma comunicação efetiva pela fala, pois deixa-se envolver pela “massa rumorosa da língua desconhecida” (BARTHES, 2016, p. 17) para apreender “novas formas de enunciação” (BARTHES, 2016, p. 11) estando atento a: [...] respiração, a aeração emotiva, numa palavra, a significância pura, forma à minha volta, à medida que me desloco, uma leve vertigem, arrasta-me em seu vazio artificial, que só se realiza para mim: vivo nos interstícios, livre de todo sentido pleno. Como você se virou lá, com a língua? Subentendido: Como você garantia essa necessidade vital da comunicação? Ou mais exatamente, asserção ideológica que recobre a interrogação prática: só há comunicação na fala (BARTHES, 2016, p. 17-18, grifos do autor). Adentrar nesse sistema estranho é estar disposto a reconhecer e viver a diferença, sem o medo de não alcançar o sentido pleno do que se apresenta à frente. Okano nos indica essa necessidade de interação para compreender o Ma que permeia a cultura japonesa ao dizer que: E numa zona na qual as coisas permanecem “em suspensão”, os níveis de definição informacional e de descrição são baixos. Isso exige uma participação mais complexa do receptor, quer dizer, demanda o uso de relações analógicas e metafóricas, que ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 163 complementam as informações, de modo que as possibilidades se concretizem. Essas associações estão fortemente vinculadas a potenciais descobertas de outras, inéditas, o que viabiliza o estabelecimento de novas relações e torna viável uma correspondência com a estética. (OKANO, 2012, p. 126-127). Assim, pretende-se demonstrar que este trajeto tecido pelos ensaios que não fixa significação e está aberto para o deslizamento de linguagem pode ser compreendido como experiência estética proporcionada pelo Ma, que a escritura barthesiana busca acessar. É possível compreender ainda sob a lente do Ma o intervalo que opera nos ensaios, tal como uma pausa que dita o ritmo da leitura devido à disposição das imagens e textos. Esse intervalo constitui um ritmo de leitura que o aproxima da análise de Okano sobre cinema, feito na seção “Montagem Sequencial Construtiva” (OKANO, 2012, p. 142) em que estuda os filmes de Ozu, ao dizer que: O Ma no cinema, assim como na música, enfoca a questão da fronteira e do filtro, por meio da criação de uma espacialidade intervalar adaptativa e de passagem de um elemento a outro, em forma de vestígio. A fronteira, nesse caso, não é delimitadora de espaços, mas se apresenta como uma zona de contato que delineia um trânsito gradual entre dois ambientes (OKANO, 2012, p. 145). Essa “espacialidade intervalar” (OKANO, 2012, p. 145) é construída na obra de Barthes em momentos que, por exemplo, o autor intercala um trecho do ensaio “Naquele Lugar” (p. 7) com uma imagem do ideograma Mu (Figura 1), o vazio (BARTHES, 2016, p. 9). A imagem sugestiva do ideograma configura um ritmo para a leitura, é preciso uma pausa, “uma fissura” (BARTHES, 2016, p. 10) para experienciar o que virá adiante nas próximas páginas. Observa-se também que o corte, um quase kireji62, no conteúdo da página é feito, a “fissura” não é apenas a palavra grafada, “o vazio”, é a experiência de leitura “que delineia um trânsito gradual” (OKANO, 2012, p. 145). Este aspecto de intercalar imagens em meio aos textos reverberarão ao longo da obra proporcionando um ritmo descontínuo à leitura, de modo 62 Um dos elementos que compõem o haikai, o kireji pode ser traduzido como “palavra cortadora”, e a depender do local que se encontra no poema conota ritmo, pausa, emoção. 164 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 a influenciarem a construção de sentido dos ensaios. Outro aspecto que relaciona o livro de Barthes com a estética japonesa tem a ver com a ênfase no processo de um corpo que experiencia e traduz em escrita essa espacialidade. Para compreensão relacionada a corporeidade, salientamos a reflexão feita por Okano acerca do entendimento dos espaços japoneses ao fim de sua análise sobre arquitetura: No tocante à corporeidade, há, na espacialidade Ma de passagem, o desenvolvimento de uma construtibilidade que se faz em conjunção com a ação humana, por meio da participação não apenas da visualidade, mas de uma percepção polissensível, que inclui o corpo como elemento preponderante para se obter uma experiência fenomenológica (OKANO, 2012, p. 128). Desse modo, então, as pausas e ritmos evidenciados na escritura inscrevem um corpo no espaço que dialoga com a estética do Ma quando a compreendemos como um elemento que potencializa a escritura e suas possibilidades de sentido. E ainda que Barthes diga que “O texto não ‘comenta’ as imagens. As imagens não “ilustram” o texto” (BARTHES, 2016, p. 6), é preciso reconhecer o diálogo que ocorre entre os elementos verbais e os elementos plásticos nos ensaios. É, então, ainda dentro desse alerta que o autor nos permite firmar este diálogo pois em: [...] cada uma, foi para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escritura, e neles ler o recuo dos signos (BARTHES, 2016, p. 6). Nesta circulação à qual Barthes se refere é possível, por meio de um ritmo construído entre a imagem e o escrito, compreender o Ma como elemento organizador estético dos ensaios, ecoando não apenas de forma visual, mas, em alguma medida, na construção de sentido dos ensaios de tal forma que “[...] a espacialidade Ma pode ser entendida como fronteira, algo que separa e ata os dois elementos que intermedeia, criando uma zona de coexistência, tradução, diálogo” (OKANO, 2012, p. 27). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 165 Aqui investigamos como o diálogo entre texto, imagens e sentidos são construídos nos ensaios, e a forma como este movimento nos auxilia a experienciar espaços e intervalos sem pressa, com pausas e ritmos, como uma câmera lenta que desvela aos poucos o trajeto, e leva nossos olhos pelos espaços de múltiplas referências da cultura japonesa que se permeiam pelo Ma e reverberam na escritura barthesiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo que os tempos e lugares nos distanciem, viver no Brasil e estudar literatura ocidental através do pensamento japonês é uma forma de unir a prática de pesquisa com a sensualidade da experiência por meio da escrita e da leitura, e como resultado dessa união poder contribuir com o campo literário que se instiga pela escritura barthesiana e a investiga, bem como agregar mais esta discussão ao campo de contato com arte japonesa. Isso posto, podemos compreender, em alguma medida, que o resultado da experiência literária proposta nos ensaios emerge do “terceiro espaço” que o indiano Homi Bhabha, um dos estudiosos mais representativo dos estudos pós-colonialistas, aborda em seu estudo do discurso colonial britânico na Índia do século XIX: É o Terceiro Espaço que, embora em si irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que garantem que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo (BHABHA, O Local da Cultura, 2010, p. 67-68). Ainda assim, o seguinte questionamento pode ser levantado: por que estudar o Japão através de Barthes? A princípio, Mikhail Bakhtin (1895-1975), em Estética da Criação Verbal (1979), nos ajuda a refletir sobre essa pergunta e a necessidade dessa pesquisa, ao dizer que: A cultura alheia só se manifesta mais completa e profundamente aos olhos de uma outra cultura. [...] Dirigimos à cultura alheia novas perguntas que ela não havia se colocado, buscamos sua resposta a nossas perguntas e a cultura alheia nos responde descobrindo diante de nós seus novos aspectos, suas novas possibilidades de sentido... No encontro dialógico, as duas culturas não 166 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 se fundem, nem se mesclam, cada uma conserva sua unidade e sua totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente (BAKHTIN, 2003, p. 366). Contudo, o próprio Roland Barthes, em entrevista dada à Le Magazine littéraire feita por Jean-Jaques Brochier, em 1975, nos dá pistas para essa resposta também: Quanto as coisas que me interessavam no Japão - é por isso que falo de etnólogo -, eu estava absolutamente à cata de todas as informações que pudesse receber, e correspondia a todas. Se me falavam de um lugar que podia me instigar, mesmo de maneira vaga, eu não desistia antes de tê-lo encontrado. É a atitude do etnólogo: a exploração puxada pelo desejo (BARTHES, O grão da voz, 2004, p. 327). Então, devido a esse movimento intelectual muito característico de Barthes — de um “professor impuro”63— ele nos aproxima do Japão por meio de um exercício de sensibilidade. Este tipo de exercício nos permite, com um olhar mais abrangente, reconhecer o viver as experiências de espacialidade e intervalos culturais dentro da literatura, a partir de uma interpretação que aproxima linguagens artísticas de modo polissensível64 (OKANO, 2012, p.66). Uma das dificuldades da análise está na profusão de interpretações dos ensaios. Portanto, cabe ressaltar que alguns deles como “Pachinko” (p. 39) possa ser visualizado pelas lentes do Ma, mas também pelo seu oposto complementar Basara. Alguns dos ensaios voltados para o ambiente urbano possibilitam essa dupla leitura, que poderá ser analisada numa hora oportuna. 63 Essa expressão refere-se a forma como Leyla Perrone-Moisés retoma a fala de Roland Bar- thes presente no seminário Aula (1980), na qual Barthes diz: “É pois, manifestamente, um sujeito impuro que se acolhe numa casa onde reinam a ciência, o saber, o rigor e a invenção disciplinada. Assim sendo, quer por prudência, quer por aquela disposição que me leva frequentemente a sair de um embaraço intelectual por uma interrogação dirigida a meu prazer [...]” (p. 8) 64 Uma das formas que Okano exemplifica o termo polissensível é por meio da experiência proporcionada pela arquitetura, dizendo que: “Ao experienciar um espaço arquitetônico, o corpo, mais que o olhar, mede a distância entre o homem e os objetos e, entre os objetos, a pele lê a textura, o peso, a densidade e a temperatura [...] O nariz capta o aroma que qualifica o lugar e a sua lembrança parece ser, geralmente, mais forte que a visualidade” (p. 128). Compreendido o termo como algo que abrange vários sentidos perceptíveis pelo corpo, optamos por seguir a definição de Okano, ainda que a autora o relacione à arquitetura, pois essa é uma acepção que nos auxilia a aproximar o Ma à escritura nesta pesquisa. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 167 Por fim, tentamos observar o Ma como uma forma de fruição, de como podemos por meio dessa estética japonesa experienciar espaços/ lugares/situações/culturas mesmo que não estejamos presentes no contexto japonês. Tomando, dessa forma, a escritura de Roland Barthes como uma das vias para observar no fazer literário algo que nos ajude a chegar nesta estesia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAKHTIN, Mikhail. Os estudos literários hoje. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 359-366. BARTHES, Roland. O Império dos Signos. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARTHES, Roland. 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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 169 Imagem: Figura 1: Páginas 8, 9 e 10 de Império dos Signos (2016), Editora Martins Fontes. 170 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CORPO, DISCURSO E REPRESENTAÇÃO: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O TRABALHO DE LETÍCIA PARENTE Camila Vitório Siqueira65 - camilavitoriosiqueira@gmail.com Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar três videoartes da artista Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação 1” (1975) e “Tarefa 1” (1982), presentes na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985” buscando compreender como as obras são abordadas dentro do discurso curatorial da exposição. Palavras-chave: Videoarte; Letícia Parente; História da Arte, Feminismo, História das Exposições. Abstract: The present work aims to analyze three video arts by the artist Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação 1” (1975) and “Tarefa 1” (1982), present in the exhibition “Radical Women: Latin American Art, 1960-1985” seeking to understand how the works are approached within the curatorial discourse of the exhibition. Keywords: Videoart; Letícia Parente; Art History; Feminism; Exhibition Histories. O presente trabalho tem como objetivo analisar três videoartes da artista Letícia Parente - “Marca Registrada” (1975), “Preparação 1” (1975) e “Tarefa 1” (1982), presentes na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana nas décadas de 1960-1985” buscando compreender como as obras são abordadas dentro do discurso curatorial da exposição. Para tanto, precisamos estabelecer a exposição enquanto enqua65 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “A insurgência do corpo político: a virada iconográfica no Brasil sob a ótica do trabalho de Letícia Parente”, orientado pela Profa. Dra. Renata Cristina de Oliveira Maia Zago Mazzoni Marcato, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 171 dramento ou evento que toma novos contornos a partir do término da modernidade. Apesar do discurso de uma morte da historiografia artística, muitas vezes posta de forma apocalíptica e perigosa, é necessário lembrar conforme Hans Belting (2012) acentua que não houve um fim da história da arte, mas de determinado enquadramento da disciplina no campo, este relacionado a narrativa da arte ocidental, baseada até então numa “sucessão” de motivos e/ou estilos. Dito isso, as exposições tornaram possíveis novos enquadramentos, que por sua vez, traziam à tona conceitos e ideias, em consequência do processo de desmaterialização do objeto artístico que ocorre de forma acentuada a partir dos anos 1960/70 (MELLO, 2008). A narrativa da história da arte ligada a tríade aludida por Ive-Alain Bois (2012), arte modernista, museu como espaço público e história da arte como disciplina já não consegue dar conta da arte contemporânea - ou ao menos, não conseguiria. Nesse sentido, as exposições despontam como território importante na disputa e na confecção de outros discursos. No espaço expositivo, confluirão conforme afirma Franciely Dossin (2014, p.3): “diversos atores e fatores atuantes no mundo da arte: artistas e as novas produções, curadores, críticos, colecionadores, galerias e museus, patrocínio privado, políticas públicas de apoio a cultura e público. Por isso as exposições formam um importante objeto para a pesquisa em arte contemporânea”. No entanto, esse campo apresenta-se de forma complexa, tornando necessário questionar: como o discurso curatorial articula obras dentro da sua lógica interna? Quais novas possibilidades de leitura são trazidas à tona? E ainda, quais possibilidades de revisionismo da história da arte as exposições tornam possíveis? Obviamente, seria muito ambicioso responder a todas essas questões devido à complexidade/ velocidade desses eventos no contexto artístico, ademais, seria também incompatível tentar estabelecer um paradigma. No entanto, essa apresentação parte da tentativa de trabalhar obras dentro da lógica interna de um evento expositivo, entendendo como essa complexa rede de relações mobilizada por esse evento, tensiona, disputa e privilegia determinadas questões. 172 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Dessa maneira, na presente apresentação, nos deteremos a analisar as obras da artista Letícia Parente presentes na exposição “Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana (1960-1985)”. A exposição ocorreu no Brasil entre os meses de agosto e novembro de 2018. Anteriormente, a mostra esteve, entre setembro e dezembro de 2017, no Hammer Museum em Los Angeles, e, entre abril e julho de 2018, no Brooklyn Museum em Nova Iorque. A exposição é resultado do trabalho de pesquisa das curadoras Andrea Giunta e Cecília Fajardo-Hill. Durante cerca de sete anos, as curadoras viajaram pelos países latino-americanos e realizaram o levantamento das artistas que produziam nesses países, buscando assim preencher uma lacuna na historiografia da arte latino-americana no que tange ao trabalho e produção de mulheres artistas. A exposição trabalha com nove núcleos: “Autorretrato”, “Paisagem do corpo”, “Performance do corpo”, “Mapeando o corpo”, “Resistência e medo”, “O poder das palavras”, “Feminismos”, “Lugares sociais” e “O erótico”. Segundo as curadoras, a escolha por núcleos ao invés de categorias geográficas foi eleita, pois possibilita verificar questões que atravessaram o trabalho dessas artistas. Além disso, o presente trabalho partiu da análise dos seguintes documentos para estabelecer um panorama acerca do discurso curatorial da exposição: a análise dos textos de apresentação disponíveis nos sites das instituições, a análise das entrevistas concedidas pelas curadoras, a análise da produção acadêmica sobre a exposição, além da veiculação acerca da mesma nas mídias (artigos e resenhas presentes em jornais, periódicos e sites da web). A partir disso, algumas questões despontam como extremamente caras à concepção do discurso curatorial da exposição. No entanto, primeiramente, precisamos abordar dois aspectos da metodologia traçada pelas curadoras. A pesquisa acerca das lacunas na história da arte latino-americana no que tange a produção de mulheres artistas – tanto no território latino-americana ou em mulheres artistas radicadas no território norte-americano, como é o caso das artistas chicanas. Em segundo lugar, precisamos destacar a postura eleita pelas curadoras, ou ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 173 seja, a análise através do feminismo artístico – realizando assim uma leitura da história da arte por um viés feminista. Visão também partilhada no desenvolvimento deste trabalho. Na análise das fontes já mencionadas, algumas questões se demonstraram muito caras a idealização do discurso curatorial, sendo estas: a ideia de corpo político, a ideia de uma alteração radical na iconografia do corpo empreendida por essas artistas e a intensa experimentação de equipamentos e suportes mobilizada por novos conceitos e poéticas. Conforme a curadora Andrea Giunta expressa em entrevista: “Nós pensamos a noção de corpo político, que é um conceito muito rico e muito complexo, de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, porque muitas dessas obras foram realizadas em situações de vigilância extrema, durante a ditadura. (...) E também nos referimos ao corpo político porque elas atuaram sobre os acordos estéticos estabelecidos: as iconografias do feminino estavam predominantemente nas mãos dos artistas homens, que foram os que realizaram 99% dos nus que conhecemos na história da arte. Trata-se de um olhar externo, patriarcal, guiado pelo desejo masculino. O que a exposição faz é evidenciar que o corpo é observado, experimentado, conceitualizado a partir de um olhar interno, que navega o corpo, que o representa de uma maneira nova, quase sem precedentes. Por isso, no meu ensaio no catálogo me refiro a um giro iconográfico radical: temas que nunca haviam sido representados começam a sê-lo. Sob essa perspectiva, considero que essas artistas produziram a maior contribuição da arte pós-guerra até o presente. Por fim, o sentido político do corpo também reside no fato de utilizarem seus próprios corpos como ponto de partida e objeto de exploração e de investigação, levando-os a extremos inéditos, e recorreram, ademais, às linguagens mais experimentais: a performance, o vídeo, a fotografia (GIUNTA, 2018)”. Esse corpo, produzindo e se representando em um espaço extremamente delicado, com a ascensão e aprofundamento de contextos ditatoriais na América Latina, ocupa assim dois espaços bastantes marcados: o local em que sua subjetividade é atravessada e ferida - diante da esfera política, e os locais em que se transcrevem as questões do gênero, estabelecendo assim dois locais de violência que impactam e fomentam a produção dessas artistas. Esses trabalhos, extremamente relevantes para a construção de uma nova concepção do corpo, demonstram um lugar em que o corpo 174 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 feminino deixa de ser objeto de uma vista, ou objeto de prazer do olhar (MULVEY 1983). Se anteriormente o domínio das mulheres estava na função de agir como uma mera portadora de sentidos, essas obras demonstram um novo lugar em que as mulheres como produtoras de sentido se destacam. O corpo passivo transmuta-se em um lugar de ação. Justamente nessa transmutação de portadoras de sentidos para criadoras ocorre o profundo processo do que Giunta chama de “uma alteração radical na representação iconográfica do corpo”. O corpo ganha novas representações capazes de questionar visões essencialistas em relação ao gênero, denunciar as violências infligidas a esses corpos e mudar radicalmente como até então esses corpos haviam sido representados. A partir da reflexão acerca dos elementos em relevo na exposição – sendo estes, conforme falado, a ideia de corpo político, a ideia de uma alteração radical na iconografia do corpo empreendida por esses artistas e a intensa experimentação de equipamentos e suportes mobilizada por novos conceitos e poéticas, contrapomos agora em análise como as obras da artista Letícia Parente são envolvidas dentro desse discurso. Primeiramente, essa alteração radical numa iconografia da representação do corpo, fica nítida nos trabalhos de Letícia, quando observamos a ação exercida pelo corpo, muitas vezes realizando atos que inicialmente parecem comuns ao cotidiano e aparecem relacionados socialmente a ações ou tarefas femininas: o ato de costurar em “Marca Registrada” (1975), o ato de maquiar-se em “Preparação I” (1975) e o ato de passar roupas em “Tarefa I” (1982). No entanto, logo confrontados pela ação que excede o corriqueiro, em “Marca Registrada”, ela costura a sola do pé, marcando-se como um produto nacional, ação que logo demonstra-se absurda e dolorosa, levando-se em conta o período político em que ela realiza tal ação. Em “Preparação I”, Letícia utiliza símbolos da representação do feminino, ironizando a aplicação de maquiagem sobre esparadrapos, colocados sob seus olhos e boca, retratando o uso desse item como máscara. Por fim, em Tarefa I, o ato de passar roupas logo é tensionado, no lugar das roupas a serem passadas, vemos o posicionamento de um corpo que logo irá ser passado por uma outra figura. Há algo de absurdo nessa alteração das atividades até então visANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 175 tas como ordinárias. Conforme André Parente coloca – estabelecendo relações entre os trabalhos de Letícia e o grupo de pioneiros da videoarte dos anos 70: “O que importa mesmo nesses trabalhos é o fato da câmera e a filmagem agiram sobre os corpos e os personagens como um catalisador que deve fazer do vídeo um duplo processo de desocultação e desconstrução – no primeiro caso, dos processos de produção de subjetividade que incidem sobre o corpo; no segundo, dos dispositivos de representação audiovisuais. Dito de outro modo, tratava-se, antes de tudo, de pôr em crise a representação, seja esta a do corpo ou a da imagem audiovisual” (PARENTE, 2009, p. 105). A pesquisa e as indagações acerca do corpo encontravam desde os anos 1960 e 1970 solo fértil, essa discussão no contexto brasileiro colocava-se de forma até exaustiva, afinal já encontrava pesquisa e tensões desde as obras que interpelam o quase-corpo dos neoconcretos em meados dos anos 1950. No trabalho de Letícia encontramos para além dessa investigação empreendida quase que de forma empírica - levando em conta sua formação nas ciências naturais, a extensão dos territórios do corpo para locais de pesquisa e experimento. Segundo André Parente: “Esses vídeos guardam muitas características em comum: não só todos foram realizados no espaço doméstico, num plano-sequência e não contêm falas, como é a artista quem, à exceção da Tarefa I, realiza as ações, que sempre a ocupações femininas, como passar e guardar roupa, costurar e maquiar-se (PARENTE, 2009, 104)”. Nessas ações, ao despir as estruturas de seus fatores comuns, apresentando o absurdo, Letícia coloca em xeque o próprio lugar ocupado pelo feminino no social. Esse lugar das tarefas, das preparações, enfim, que evidencia a manutenção da mulher dentro da esfera privada, cabendo a ela cuidar dessa suposta ordem doméstica, mas logo esses pequenos atos que assegurariam essa manutenção, logo demonstram-se intoleráveis. Em Marca Registrada (1975), a performance do feminino através da costura e aqui também brincadeira comum ao seu lugar de origem, relembra esse instrumento que anterior ao enlace através da 176 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 costura, a linha e agulha ligadas à esfera do cuidado passam a figurar um universo doloroso, em que é necessário tornar-se produto de uma nacionalidade exacerbada, ter em seu corpo o “Made In Brazil” que anuncia sua procedência. O ato corriqueiro dos locais e ações ligados ao feminino, demonstra-se frágil, fica nítida a necessidade de mostrar-se mulher “prendada” e, além de tudo, insuflada de um grande orgulho nacional. A obra não trata do ato de perfurar a pele, mas desse ato presente que ecoa (PARENTE, 2010), ficando registrado no vídeo. Há uma desnormalização de ações ligadas ao feminino e associadas a uma ideia de nacionalidade vazia, pois nesse momento no Brasil via-se a consolidação e estreitamento do discurso militar. Na análise de Kátia Maciel para o catálogo da exposição “Arqueologia do Cotidiano” realizada em 2011 por ela e por André Parente como curadores, ela pontua: Sem qualquer hesitação Letícia tece na própria pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui propriedade estrangeira, o Brasil de 1975 estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da agulha que não para. No gesto não há violência, mas coragem e enfrentamento. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao mesmo tempo. (MACIEL, 2011, p. 53). Nos trabalhos de Letícia, o corpo que parece incialmente conformado a atos e atitudes que referenciam o local em que sua subjetividade se ancora no social, logo subverte ação e passa a ocupar um local de ação ao invés de passividade. Nas palavras de Christine Mello, esses trabalhos “remetem à destruição da noção de um corpo meramente passivo e que apontam para a urgência de um corpo ativo, que se propõe a intervir de forma crítica nas questões da atualidade (MELLO, 2008, p. 143)”. Nesse processo, a pesquisa de Letícia se dá de forma tão intensa sobre os territórios do corpo, que para além dessa alteração entre passividade e ação, ela também oferece uma transformação radical das visualidades do feminino. Afinal, as representações do feminino estiveram associadas a serem “objeto de uma vista”66 ou “objetos do 66 BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 177 prazer masculino”67, nas artes visuais e cinema. Letícia apresenta um novo paradigma, visto que através de suas ações, ela trabalha dentro das estruturas aceitas – dos gestos e tarefas cotidianos, e intervém sobre elas, possibilitando outras leituras acerca desse corpo. Em Preparação I (1975), Parente toma posse de seu corpo como agente colocando os esparadrapos no rosto antes da aplicação da maquiagem, como quem comprova que tal ato é incoerente, causando cegueira. A ação realizada no presente e comum ao cotidiano, faz questionar por quanto tempo a ação se perpetuará, mantendo essa privação de sentidos diante da performance que culturalmente convencionou-se a ser encenada. Esses atos – costurar, maquiar-se, passar roupas – comuns àquilo que se esperaria das ações ligadas ao feminino, poderiam seguir eternamente, nesse fragmento de presente que ecoa ainda contemporaneamente. Apesar do contexto de produção de Parente, as opressões e violências ligadas à ditadura a atravessarem, a atemporalidade desses trabalhos é incontestável, afinal, no presente ainda somos vistas como as únicas realizadoras de certas preparações e tarefas. No entanto, Parente propõe através dessas ações, o questionamento das estruturas, evidenciando a exclusão e desigualdade que as mesmas causaram, permitindo assim agir sobre elas e alterá-las. Conforme elucida André Parente (2010, p. 110), “O vídeo, portanto, somos nós no passado, no presente e no futuro, no sentido de um processo por meio nos tornamos outro”. Assim, não seria equívoco dizer que Letícia altera a potência do corpo e o coloca como agente, tornando possível outros olhares sobre a construção do feminino. Novamente, precisamos destacar que ao observamos esses trabalhos, principalmente através do discurso da exposição, nos orientamos por meio de um olhar feminista. Entretanto, apesar de a artista apresentar preocupações com questões femininas, seria um equívoco – ou um anacronismo – afirmar que seu trabalho era feminista. É inegável que tais preocupações estavam bastante presentes tanto em seus trabalhos quanto em alguns relatos sobre suas obras, e pelo fato de Letícia ocupar 67 MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 178 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 “local privilegiado” em relação ao conhecimento, já que era doutora em química e atuou academicamente como docente do ensino superior tanto no Brasil como no exterior, pode ter antecipado a discussão sobre a consolidação do feminismo no Brasil, ou melhor, de uma crítica feminista no país, que ocorreu tardiamente no país conforme aponta Roberta Barros no livro “Elogio ao Toque – ou como falar de arte feminista à brasileira” (2016). Isso deve-se, conforme aponta Barros, ao fato de que no momento de ascensão de tais questões, os anos 1970, no Brasil se dava o estreitamento dos regimes totalitários e a organização das pautas de luta das mulheres ocorrerem através de questões mais coletivas. Apesar disso, as preocupações de Letícia acerca de questões femininas, fez com que a artista estivesse presente em curadorias feministas assim como “Mulheres Radicais”, como foi o caso da exposição “Elles” (realizada no Centre Pompidou) em 2010 e a exposição “Manobras Radicais” realizada sob curadoria de Paulo Herkenhoff e Heloisa Buarque de Hollanda, em 2006, no Centro Cultural Banco do Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS O crescimento exponencial de novas abordagens no sistema artístico, considerando recortes de raça, gênero e classe há muito obliterados diante das narrativas canônicas ganham nas exposições novo local discursivo. Imerso em uma sistemática de relações, as narrativas negociadas no campo expositivo demonstram a complexidade de relações econômicas, políticas, sociais entre outros que são ali envolvidas. No caso das exposições feministas, vemos a possibilidade de elas evidenciarem narrativas trazidas na teoria, como é o caso das questões ligadas às teorias feministas, a um viés feminista da história da arte e que passam a ganhar relevo através da exposição. Cabe destacar a exposição como um outro momento de estabelecimento de relações. A exposição torna possível a disseminação de ideias para um público, já que este muitas vezes pode não ter contato com as teorias construídas em outros campos, mas através da experiência na exposição, questões mobilizadas pelos discursos que edificaram as exposições podem ser conhecidas e disseminadas pelo público. Não há dúvida que Letícia desloca o corpo, colocando-o sobre ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 179 intenso escrutínio e demonstra a fragilidade das estruturas ali erguidas – sejam elas do espaço doméstico, dos locais ocupados pelo feminino e da imensa repressão sofrida no período de estreitamento do regime militar. Nesse sentido, algumas questões continuam ecoando: podemos adotar o trabalho de Letícia como paradigmático na empreitada da confirmação de uma alteração iconográfica radical do corpo? E ainda, compreendendo a exposição como moldura, que segundo Ana Maria Albani de Carvalho, “(...) pode assumir diferentes formatos ou privilegiar determinados enquadramentos – que afeta de forma significativa o modo de visualizar e pensar a arte”. Assim, nessa empreitada enciclopédica realizada pelas curadoras, apresentada ao público através deste recorte, quais outros recortes possíveis acerca da produção da artista podem ganhar novas análises? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Roberta. Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 2016. BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2003 BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972. BOIS, Yve-Alain. Mudança de Cenário. In: HUCHET, Stephane (Org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte.São Paulo USP, 2012 CARVALHO, A. M. A. de. A exposição como dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico. Museologia &amp; Interdisciplinaridade, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 47, 2012. DOI: 10.26512/museologia. v1i2.12654. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/ article/view/12654. Acesso em: 28 abr. 2021. DOSSIN, Franciely Rocha. Exposições como problemas de pesquisa. Revista Ciclos, Florianópolis, v.1, n.2, p. 174-186, fev.2014. Disponível em: https:// www.revistas.udesc.br/index.php/ciclos/article/view/3559. Acesso em: 01 set. 2020 FAJARDO-HILL, Cecília. Mundo das artes é sexista, diz curadora de exposição sobre mulheres. Folha de São Paulo. Disponível em: < https://www1. folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/08/mundo-das-artes-esexistadiz-curadora-de-exposicao-sobre-mulheres.shtml>. Acesso em: 13 outubro de 2020. 180 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 FAJARDO-HILL, Cecilia; GIUNTA, Andrea (orgs.). Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana nas décadas de 1960-1985. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018. GIUNTA, Andrea. “O que buscamos é transformar critérios”: uma entrevista com Andrea Giunta. Entrevista concedida a Luiza Mader Paladino. Revista Figas. Disponível em: < http://www.editorafigas.com.br/revista/2018/10/15/o-que-buscamos-e-reformular-criterios-uma-entrevista-com-andrea-giunta/ >. Acesso em: 13 outubro de 2020. GIUNTA, Andrea. A virada iconográfica: a desnormalização dos corpos e sensibilidades na obra de artistas latino-americanas. In: FAJARDO-HILL, Cecilia; GIUNTA, Andrea (orgs.). Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana nas décadas de 1960-1985. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018. MACIEL, Kátia. A medida da casa é o corpo. In. PARENTE, André; MACIEL, Kátia. Letícia Parente. Arqueologia do cotidiano: objetos de uso. RJ: +2 Editora, 2011. p. 43 – 57. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008. MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983 PARENTE, André. Marca Registrada: Video e registro na obra de Letícia Parente. In: COSTA, Luiz Cláudio (Org.) Dispositivos de registro da Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Contra capa Livraria/ FAPERJ, 2009. PARENTE, André; MACIEL, Kátia. Letícia Parente. Arqueologia do cotidiano: objetos de uso. RJ: +2 Editora, 2011. PINACOTECA DE SÃO PAULO. Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960 – 1985. Disponível em: < https://pinacoteca.org.br/programacao/mulheres-radicais-arte-latino-americana-1960-1985/>. Acesso em: 11 outubro 2020. VÍDEOS CONSULTADOS: Marca Registrada, Letícia Parente, 1975, 10’19”. Disponível em: https://vimeo.com/106529888. Preparação I, Letícia Parente, 1975, 3’28”. Disponível em: https://vimeo. com/119148500. Tarefa I, Letícia Parente, 1982, 1’56”. Disponível em: https://vimeo. com/106539010. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 181 A ESTÉTICA DA SATURAÇÃO DE EDUARDO MONTELLI Carlos H. Nunes Costa68 – carloshnc@usp.br Resumo: A tecnologia é produto da inteligência humana. A cultura, e consequentemente a arte, são afetadas por essa relação. Andy Warhol, na década de 1960, e Eduardo Montelli, nos dias de hoje, são exemplos de artistas cujas obras evidenciam a sua cultura. Este artigo pretende analisar a produção artística contemporânea de Montelli, notadamente as obras pensadas com, criadas pela e veiculadas na internet, traçando um paralelo com as obras pop seriadas de Warhol, a fim de identificar aproximações e distanciamentos estéticos entre as produções desses artistas de momentos diferentes. Com isso, busca-se compreender como a saturação imagética de Montelli, fortemente marcada pela apropriação e pela repetição de imagens, permite pensar a cultura digital que vivemos. Palavras-chave: Arte contemporânea; Cultura digital; Pop art. Abstract: Technology is a product of human intelligence. Culture and, consequently, art are affected by this relationship. Andy Warhol, in the 1960s, and Eduardo Montelli, nowadays, are examples of artists whose artworks show their culture. This article intends to analyze the contemporary artworks of Montelli, notably those designed with, created by and published on the internet, drawing a parallel with the serial pop artworks of Warhol, in order to identify aesthetic approximations and distances between the productions of these artists of moments many different. Thus, we seek to understand how Montelli’s image saturation, strongly marked by the appropriation and repetition of images, allows us to think about the digital culture we live in. Keywords: Contemporary art; Digital culture; Pop art. 68 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Arte Hiperconectada: a so- lidão e os espaços digitais de convívio”, orientada pela Profa. Dra. Monica Baptista Sampaio Tavares, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de São Paulo. 182 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 INTRODUÇÃO A tecnologia é produto da inteligência humana. Ontologicamente, ela é parte do humano. Logo, não é possível falar de uma oposição entre ambos, mas de uma relação de aderência (ROCHA, 2019). A cultura que a cria, motivada por uma necessidade primária, é afetada sensivelmente por sua presença. Hoje, com a mobilidade e a conectividade, podemos falar de uma onipresença da tecnologia em nossas vidas. Ela afeta a todos, indistintamente, nas mais variadas faixas etárias, até mesmo aqueles que não possuem dispositivos sempre conectados à rede. A tecnologia está presente na comunicação, na economia, no trabalho, nas relações sociais, na formação do sujeito. A tecnologia desmaterializou a concretude dos documentos, da moeda, de objetos estéticos e das relações sociais, possibilitando que a sociedade contemporânea viva, efetivamente, o modelo social moldado pela ciência e por sua filha mais proeminente, a tecnologia (ROCHA, 2019, p. 63). A mobilidade física acrescida dos aparatos móveis com acesso ao ciberespaço dotou-nos de hipermobilidade. Em função desta, tornamo-nos ubíquos, pois estamos ao mesmo tempo em algum lugar e fora dele. Tornamo-nos pessoas presentes-ausentes. Os dispositivos móveis em rede oferecem a possibilidade de presença perpétua, de perto ou de longe, mas sempre presença (SANTAELLA, 2013). Assim, o ciberespaço não se apresenta como um espaço específico e “abstrato”. Não podemos pensar em dois mundos separados, o “natural” e o ciberespaço, pois este encontra-se entranhado na cultura, tornando-se um espaço social relevante. Não só a tecnologia é onipresente hoje, mas também a presença das pessoas em rede (ROCHA; AMARAL-SILVA, 2017). Os novos dispositivos móveis hiperconectados expandiram a presença das “imagens técnicas” na sociedade, apontadas por Flusser (2008) como uma revolução cultural a partir do surgimento e popularização da televisão, da fotografia, do cinema e do microcomputador. As imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano e transcenderam a figura indicial, mimética, da produção tradicional. Nosso olhar mudou com a manipulação das imagens nas telas táteis dos ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 183 aparelhos, expandindo-o dos olhos para outras partes do corpo. A cultural visual contemporânea é indissociável da produção imagética das redes digitais (BEIGUELMAN, 2021). A arte é profundamente afetada pelas formas de olhar e pensar do seu tempo, pois vinculada está à cultura que a criou e lhe deu sentido. Nessa perspectiva, artistas fazem experimentações com a tecnologia, testando as possibilidades criativas dos novos suportes e recursos técnicos disponíveis (SANTAELLA, 2005). Eduardo Montelli, artista visual gaúcho, desenvolve um trabalho no qual cria imagens digitais, estáticas e em movimento, para pensar a performatividade dos corpos nas redes. O artista tem a si mesmo como temática estruturante de sua produção – uma performance da vida pessoal. Este artigo analisará a instalação online “Só sei me transformar, apenas não sei em que”, de autoria de Montelli, realizada para a Pivô Satélite (MONTELLI, 2021). Interessa nesta obra a possibilidade de pensar criticamente a construção visual contemporânea nas redes digitais e de que forma ela sugere um modelamento da subjetividade. Para tanto, serão estabelecidos aproximações e distanciamentos com as obras pop de Andy Warhol, circunscritas no período inicial da pós-modernidade, caracterizada pela reprodutibilidade e distribuição em massa das “imagens técnicas”. 1. TELAS TÁTEIS, OLHOS SECOS E CORPOS DÓCEIS Um artigo da Revista Veja publicado em 2016 alerta para um problema ocular que se tornara comum, atingindo, segundo dados daquele ano, cerca de dezoito milhões de brasileiros. Trata-se da Síndrome do Olho Seco, uma queda na produção de lágrimas que impede a lubrificação adequada dos olhos. Um dos motivos relatados para o aumento de ocorrências da disfunção é o constante uso dos aparelhos eletrônicos. Andressa Basilio relata que “Normalmente, uma pessoa fecha e abre as pálpebras de 8 a 10 vezes por minuto. Entretanto, quando estamos fixados em uma telinha (ou mesmo em livros), essa frequência cai para cerca de três vezes” (BASILIO, 2019). Trabalho, aula, leitura, entretenimento, reunião com amigos, conversas. As telas mediam quase todas as atividades cotidianas. Até mesmo o descanso, momento de desanuviar a mente, tem a participação 184 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 dos dispositivos. Não tiramos os olhos das telas com suas imagens-movimento incessantes. Byung-Chul Han associa o ato de fechar os olhos a uma atividade interna, a um momento de apreensão ou formação de sentido. Ele defende que só é possível alcançar a subjetividade em estado de silêncio. Assim, fechar os olhos significa, nas palavras do próprio autor, “trazer a imagem à fala no silêncio” (HAN, 2021a, p. 15). Ele prossegue: As imagens digitais de hoje em dia são sem silêncio e, por isso, sem música, sim, sem aroma. Também o aroma é uma forma de conclusão. As imagens inquietas não falam ou contam, mas sim fazem barulho. Frente a essas imagens ‘ameaçadoras’, não se pode fechar os olhos. O olho fechado é o signo visual [Sichtzeichen] da conclusão. Hoje, a percepção é incapaz da conclusão, pois ela zapeia pela rede digital sem fim. A rápida alternância entre imagens torna impossível o fechar os olhos. Este pressupõe um demorar-se contemplativo. As imagens, hoje, são construídas de tal modo que não é mais possível fechar os olhos. Ocorre um contato imediato entre elas e o olho, que não permite nenhuma distância contemplativa. A coação por uma vigilância e visibilidade permanente dificultam fechar os olhos (HAN, 2021a, p. 15-16). O filósofo assinala como o ritmo acelerado do cotidiano afeta nossa experiência do tempo. Este lança-se incessantemente para frente, sem pausa. Com isso, “O presente se reduz à ponta da atualidade”, afirma Han (2021a, p. 27). Essa aceleração, sem direção e sem sentido, provém da incapacidade de concluir, de se deter, de demorar. Hoje, quando fechamos os olhos de algum modo, é por cansaço e exaustão. Diante da tela tátil, acessamos uma fonte inesgotável de imagens – também as produzimos e compartilhamos. A maior parte delas transmite uma informação simples, curta, rápida – quando não o vazio. Afinal, a “sociedade do cansaço” (HAN, 2021b) não pode parar. Novas informações nos aguardam. Movimentamos os dedos em busca da próxima, atualizamos o feed à espera de novidades. Ironicamente, o espaço de exibição das informações compartilhadas nas redes sociais digitais, como Facebook, Twitter e Instagram, chama-se linha do tempo. Publicado em 1999 por Jean Baudrillard, Tela Total apresenta uma análise do fenômeno da televisão e do computador na sociedade (BAUDRILLARD, 1999). O filósofo francês afirma que a interatividaANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 185 de proporcionada pelos dispositivos eletrônicos aboliu a distância. E, como consequência, toda informação se tornou irrefutável. Na fotografia, no cinema e na pintura há uma cena e um olhar; nos dispositivos eletrônicos, a imagem induz a uma imersão, cria uma relação umbilical, uma experiência tátil. “Entramos na substância fluida da imagem para, eventualmente, modificá-la”, insiste Baudrillard (1999, p. 146). Citando os reality-shows, afirma não haver “nada mais de separação, de vazio, de ausência: entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculo. Entramos na vida como numa tela. Vestimos a própria vida como um conjunto digital.” (p. 146). O zapping é mencionado por Baudrillard para descrever a ação de passar canais televisivos em busca frustrante por algo surpreendente. O movimento pode, então, ser atualizado para o deslizar dos dedos que incansavelmente passam para a próxima imagem nas telas sensíveis do século XXI. Embora seja um representante do pensamento dominante na década de 1990, isto é, a coexistência de um mundo real e outro “virtual”, heterogêneos e separados, e de ser possível notar grande apreensão quanto à presença cada vez maior da tecnologia no cotidiano, Baudrillard apontou uma direção para a qual caminhávamos a passos largos. O termo “tela total”, título da publicação, expressa uma dominação das telas. Podemos transpô-lo para a atualidade como uma onipresença das telas no nosso cotidiano. O que acontece por meio delas induz e molda os indivíduos. Beiguelman (2021) segue mesma linha de pensamento. Para ela, a imagem das telas sensíveis é cada vez mais palpável e caminha para a diluição do anteparo que separa receptor e mídia. Por isso, nossa relação com a imagem é íntima, percebida por todos os sentidos. Citando as redes sociais Instagram e Tik Tok, Beiguelman (2021, p. 32-33) dispara: “A tela foi canibalizada. Em todas as duas dimensões. Despejadas aos quinquilhões de bytes por segundo na internet, as imagens do século XXI tornam-se também espaços de sociabilidade.”. Não apenas o ciberespaço, mas também as imagens que nele circulam, configuram espaços de troca entre as pessoas. Não estariam as imagens, portanto, isentas de se tornar um mecanismo para o estabelecimento de relações de poder. 186 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Hoje, todos somos traduzidos para dados digitais. Intenções, ações, reflexos, sentimentos são transformados em dados coletados, processados, armazenados e interpretados para predizer novas ações, comportamentos e conhecimentos (coletivos ou individuais) em sistemas de inteligência algorítmica. Vivemos um capitalismo de dados ou de vigilância sob o poder de uma elite detentora desses sistemas (LEMOS, 2021). Por isso, não nos causa alvoroço a enxurrada de imagens homogêneas que circulam nas redes digitais. A câmera e a internet, presentes em dispositivos móveis, alteraram significativamente o espectro social e cultural dos registros imagéticos. A câmera foi convertida de dispositivo de captação a dispositivo de projeção do sujeito. A homogeneidade das imagens dá-se graças à “economia liberal dos likes” que padroniza ângulos, enquadramentos, cenas e estilos. Tudo para seguir as regras dos algoritmos que determinam o que é visto e o que não é visto por nossas bolhas. Na rede, encontramos uma “massa compacta de corpos formatados”, ávidos por mais visibilidade e que, para tanto, performam uma espetacularização de si (BEIGUELMAN, 2021). A “dataficação” do social e as regras de conduta ditadas pelos algoritmos modelam a subjetividade. A cultura digital contemporânea, com a ubiquidade das redes, criou formatos de padronização da imagem e do olhar. Os algoritmos tornam-se, dessa forma, o aparato disciplinar de nosso tempo. E as redes sociais consolidam as normas dos olhares e dos corpos dóceis (BEIGUELMAN, 2021). 2. A SATURAÇÃO DA INTIMIDADE DE EDUARDO MONTELLI A instalação online “Só sei me transformar, apenas não sei em que” (MONTELLI, 2021) é composta de forma a exacerbar a presença de imagens no espaço. A experiência fruitiva acontece numa janela de navegador da internet, na qual toda a extensão horizontal é tomada por imagens. Só é possível percorrer a instalação verticalmente, acionando a barra de rolagem. O percurso é unidirecional e o olhar fica preso a um espaço por onde brotam imagens estáticas e em movimento. A velocidade de rolamento da página não apenas interfere na visualização, mas também pode indicar esgotamento do usuário-observador. Na tentativa ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 187 de uma visita apurada à instalação online, leva-se mais do que dez minutos.69 Na obra de Montelli, as imagens são contínuas, não há intervalo entre elas. Os olhos são incessantemente estimulados. Por vezes, elas são dispostas para formar um espaço tridimensional, como paredes, que envolvem nosso olhar, dando a sensação de confinamento. Assim é apresentado o primeiro conjunto de imagens. Nas laterais, ambientes internos alternam-se rapidamente de forma a não conseguirmos reconhecê-los. No centro, uma área externa, em frente a uma casa cuja porta encontra-se aberta, é preenchida com objetos, que são empilhados. Todos esses objetos parecem ser retirados do interior do espaço e levados ao exterior. Na sequência seguinte de imagens, vemos um vídeo com fogos de artifício ocupar a maior parte da tela. Ao fundo deste, uma janela de microcomputador mostra arquivos, provavelmente da mesma pasta de onde foi executado o vídeo em destaque. As imagens de capa dos arquivos exibem um quadro de cada vídeo: o artista está em todas elas, em poses e espaços que desvelam sua intimidade. Os conjuntos iniciais de imagens não apenas abrem a instalação, mas declaram aberta a intimidade do artista. Os objetos e os espaços, então privados, são expostos; as pastas com arquivos pessoais são abertas. A partir desse momento, somos convidados a acessar a vida de Montelli – e com que facilidade costumamos aceitar tal convite – ou, ao menos, a performance algorítmica de si a que nos expõe. A instalação contém imagens do acervo do artista, obras que são reutilizadas integralmente ou com pequenas alterações; imagens apropriadas da internet e compostas para formar uma nova; e imagens produzidas que desvelam a intimidade do artista, seus ambientes de convívio, suas relações, seu corpo. De forma geral, a abordagem segue um tom irônico, crítico, por vezes ácido. Embora as imagens pareçam desconexas, é possível identificar em algumas sequências um tema específico. 69 Recomendo a visita à instalação online antes de prosseguir a leitura e a análise da obra. 188 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Numa dada série, são apresentadas críticas ao mundo da arte e a atual profusão de imagens. Lado a lado, uma janela da ferramenta paint, com um texto que muda para diferentes possíveis classificações para sua produção – digital art, web art, internet art, postinternet art – e, ao lado desta, a lista de lembretes cadastrados num aplicativo de celular, cujo conteúdo varia do conceito de readymade a pensamentos sobre imagem e identidade. Um deles diz: “não amar só as imagens e as palavras dos outros / amar mais as atitudes e os silêncios”. Uma rolagem adiante e nos deparamos com uma citação de Mallarmé: “No fundo, o mundo é feito para acabar num belo livro”, sendo a palavra “livro” revezada com “gif”, como uma referência a seu próprio trabalho e aos memes, febre viral imagética das redes sociais. As críticas políticas permeiam toda a obra. Questões relacionadas à gênero e sexualidade, à crise política brasileira, à sociedade de controle e vigilância, ao uso do telefone celular e às redes sociais e suas regras de conteúdo. Um papel escrito “Como faremos para desaparecer?” é amassado. Uma propaganda do Tik Tok do canal digital Globoplay é exibida. Um gif animado mostra o artista beijando seu celular em posições variadas. Imagens de todas as suas redes sociais são apresentadas. Em meio às críticas políticas, vemos imagens da intimidade do artista. Uma sequência delas mostra sua família, fotos de sua infância, sua mãe em atividades cotidianas, a si mesmo em diferentes idades. Aparecem também seus amigos, seu companheiro, todos em ambientes privados. Ao mesmo tempo que nos oferece a intimidade, as personagens parecem encenar a própria vida. Há, portanto, um jogo entre lugar e não-lugar, entre público e privado, ficção e realidade. Em meio a essas dúvidas, algo nos atinge de pronto: a ostensividade do “eu”. E sentimos um déjà-vu por sermos cotidianamente bombardeados por essas imagens nas redes sociais digitais, quando não somos nós os produtores delas. De algum modo, temos uma sensação de familiaridade dada a homogeneidade das imagens. A obra finda com a imagem de um rosto, cuja forma e cor remetem a uma goma mascada. À medida que percorremos a tela, esse objeto emborrachado disforme segue, rolando sobre o fundo preto, como se estivesse em queda livre. Já não vemos imagens em abunANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 189 dância, apenas o chiclete. Ele encara-nos e sua boca movimenta-se na tentativa de dizer algo. A massa humana mastigada, já desprovida de aroma e açúcar, parece ter sido descartada, lançada ao ar. Um corpo efêmero, sem serventia. De forma geral, a instalação é composta por imagens estáticas e dinâmicas que concorrem por nossa atenção. O movimento dos olhos é incessante na tentativa de ler tudo. Ao primeiro olhar, o conjunto de imagens da instalação é desprovido de sentido. É difícil encontrar uma narrativa que as una. Mesmo se tratando de imagens diferentes, em ambientes ou com objetos de cena diferentes, temos a impressão de visualizar um bloco de imagens análogas, frívolas, constantes. A instalação online de Montelli é, pois, autorreferente. Ela aponta para o universo imagético das mídias digitais da qual faz parte. 3. APROPRIAÇÃO, REPETIÇÃO E VAZIO COMO ESTÉTICA ARTÍSTICA Sabemos que o uso de imagens corriqueiras da cultura vigente não é novidade na arte. A arte pop norte-americana serviu-se desse expediente e abriu caminho para a consolidação da crítica ao tempo atual através da apropriação, da repetição e do aparente esvaziamento de sentido objetivo das imagens. Temos em Andy Warhol um importante exemplo dessa estética da saturação, que mobiliza até hoje pensamentos divergentes de filósofos e teóricos culturais. Essa arte, erigida nos anos 1960, utilizou os signos da cultura de massa, trazendo para o universo artístico o referencial visual dos quadrinhos, da publicidade, das personalidades da política e do cinema. Os materiais oriundos das mídias de massa figuravam como fonte iconográfica, técnica e de convenções de representação visual. As obras aludiam à banalidade urbana estadunidense, ao contexto social da qual eram parte. A arte pop deu-se, nesse sentido, como uma metalinguagem por apresentar representações da realidade encontradas na cultura popular (SANTAELLA, 2005). Há uma complexidade implícita na arte pop que precisa ser deslindada. Ao incorporar e traduzir a iconografia popular e 190 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mudar o modo de produção e distribuição da arte, os artistas não visavam simplesmente a se tornar parte da cultura de massas. Apoiados pelos críticos e curadores, pretendiam reafirmar o status de arte pop como arte, uma arte agora inserida em uma sociedade industrial, cuja produção artística deveria também ser industrializada, do que decorre que “arte industrial” poderia ser um outro nome para arte pop (SANTAELLA, 2005, p. 40). Warhol adquiriu grande notoriedade entre os artistas da estética pop. O processo mecânico da serigrafia possibilitava a produção serializada. Com isso, ele lançava mão da repetição de imagens para construir múltiplos que levantavam questões sobre originais e originalidade, sobre o processo duplicatório pelo qual o próprio ícone da cultura de massa surgia. Embora tenha sido bem-sucedido como artista, as obras de Warhol enfrentaram resistência no meio artístico por serem “comerciais demais, excêntricas demais, sem peso, frágeis demais” (LAING, 2017). Com efeito, a arte pop está distante de um consenso, mesmo entre estudiosos da estética e da cultura. Para Danto, Andy Warhol “encarnava uma concepção de vida que abraçava os valores da era em que ainda vivemos”. Ele foi o responsável por provocar uma revolução no “gosto” de sua época. Ainda que aponte qualidades na produção pop, o filósofo americano associa o uso de signos da cultura de massa à exaltação do estilo de vida norte-americano, pautado no consumo. Esse pensamento considera que a arte pop instaurou uma estética da arte comercial. Não à toa, o artista tenha adquirido o status de ícone cultural (DANTO, 2013). Foster (2005) critica os modelos representacionais a partir dos quais a arte pop é analisada. Em síntese, esses modelos buscam na “genealogia pop” uma ordem da representação: seja a uma realidade do mundo ou a uma imagem existente. Não encontrando correlação, definem-na como simulacro. O crítico de arte norte-americano considera essa linha de raciocínio, adotada por pensadores da linha pós-estruturalista, reducionista. É o caso de Jean Baudrillard e Roland Barthes, que fazem uma leitura da arte pop na chave do simulacro. Barthes reconhece que a arte pop rompe com a representação vanguardista moderna. Contudo, afirma que suas obras são superficiais, desprovidas de significado profundo. Mais do que isso, o artista pop promove seu próprio apagamento, não tendo ele mesmo qualquer ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 191 profundidade. Na arte pop, portanto, para o filósofo francês, não há significado, nem intenção. Baudrillard possui uma crítica ainda mais contundente. Para este filósofo, a arte pop constituiu o fim da subversão pela total integração das obras à economia política do signo de consumo (FOSTER, 2005). Ambos os filósofos não julgavam como princípio criativo a apropriação iconográfica e sua exposição direta, sem véus formais que a dotassem de sentidos aprofundados. Para eles, imagens sem um referente não passam de simulacros. Em contrapartida, Thomas Crow vislumbra nas produções da arte pop um estado crítico à cultura de massa. E associa Warhol ao rol de artistas pertencentes à tradição popular norte-americana do Truth Telling (FOSTER, 2005). Em sua análise, Crow faz uma leitura das obras de Warhol de cunho político explícito: as imagens das cadeiras elétricas e dos protestos contra o racismo institucional nos Estados Unidos. Em ambos os trabalhos, faz-se presente a repetição da imagem apropriada da mídia (a cadeira elétrica e a repressão policial a um protesto), em que variava apenas a paleta de cores sobre a imagem reproduzida, uma marca da estética de Warhol com uso da técnica da serigrafia. Foster (2005) apresenta uma leitura psicanalista da vida de Andy Warhol, suas obras e suas declarações públicas. Apoiado nos estudos de Lacan, ele afirma haver no artista uma subjetividade em choque e uma compulsão pela repetição. Esta não é reprodução no sentido de representação ou simulação. Ela serve para proteger o artista do real, tido como traumático. Essa necessidade de fuga, porém, aponta para o real. Nesse momento, não no conteúdo, mas no pipocar repetitivo das imagens, surge o punctum barthesiano. As obras contendo imagens de desastres, que remetem à morte, são utilizadas para enredar com maior veemência a tese do “realismo traumático” warholiano. Nelas, vemos, mais uma vez, imagens apropriadas da mídia, repetidas, com tonalidades variantes. De forma geral, Crow e Foster atribuem uma autonomia da imagem capaz de aproximar a arte do cotidiano das pessoas. Nesse sentido, ela passa, então, a se alimentar da realidade do seu tempo para questioná-lo. Retomando a nossa contemporaneidade, podemos, então, pensar as aproximações e afastamentos entre as produções de Warhol e Montelli. As repetições em ambos são fruto da técnica à disposição. 192 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Enquanto o artista pop dominava a serigrafia para reproduzir imagens, Montelli domina os softwares de edição e montagem para produzi-las, inserindo movimento. A saturação, no primeiro, está no uso da mesma imagem. No segundo, está na temática do comportamento das redes sociais digitais, encarnada nas muitas variações de seu corpo e das imagens apropriadas para compor a obra final. Individualmente ou agrupadas, as imagens oferecem o banal, um conteúdo presente na superfície, sem um sentido profundo. Diante dos aspectos que fazem convergir as produções dos dois artistas, podemos indagar se a dualidade de pensamento apresentada para as produções pop de Andy Warhol também pode ser aplicada à arte de Eduardo Montelli. As obras digitais de Montelli podem ser analisadas como exaltação à “economia liberal dos likes”? Certamente, pode haver quem situe apropriação, repetição e banalidade no campo da exaltação dos signos do seu tempo. Deixo esse debate em aberto. No entanto, há algo que não podemos negar: Warhol e Montelli são artistas que deflagram o mundo em que vivem e, por isso, suas produções nos permitem pensar a sociedade das quais são contemporâneas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASILIO, Andressa. Síndrome do olho seco aflige milhões de brasileiros. Revista Veja, São Paulo, 13 jun. 2019. Disponível em: https://saude.abril.com. br/medicina/sindrome-do-olho-seco-aflige-milhoes-de-brasileiros/. Acesso em: 13 out. 2021. BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Tradução Juremir Machado da Silva. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 1999. BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021. DANTO. Arthur C. Andy Warhol. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac-Naify, 2013. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 193 FOSTER, Hal. O retorno do real. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 8, p. 163-186, 2005. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ concinnitas/article/view/55332/35454. Acesso em: 7 out. 2021. HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo. Tradução Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021a. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2021b. LAING, Olivia. A Cidade Solitária: aventuras na arte de estar sozinho. Tradução Bruno Casotti. 1ª ed. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017. LEMOS, André. Dataficação da vida. Civitas: Revista de Ciências Sociais, v. 21, n. 2, p. 193-202, 24 ago. 2021. Disponível em: https://doi. org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638. Acesso em: 21 out. 2021. MONTELI, Eduardo. Pivô Satélite: Exposição “Só sei me transformar, apenas não sei em quê”, 2021. Disponível em: https://www.pivo.org.br/satelite/ eduardo-montelli/. Acesso em: 12 out. 2021. ROCHA, Cleomar; AMARAL-SILVA, Margarida do. Experiência social e ressonância cibernética: juventude e a onipresença na rede. In: ROCHA, Cleomar; SANTAELLA, Lucia. A onipresença dos jovens na rede. Goiânia: Gráfica da UFG, 2017. Disponível em: https://producao.ciar.ufg.br/ebooks/ invencoes/livros/3/capa.html. Acesso em: 12 set. 2021. ROCHA, Cleomar. Inquietações: sociedade, inteligência e tecnologia. Goiânia: Gráfica UFG, 2019. (Coleção Invenções). Disponível em: https://publica. ciar.ufg.br/ebooks/invencoes/livros/8/capa.html. Acesso em: 12 out. 2021. SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013. SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005. 194 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 PIERRE FRANCASTEL E GEORGES DIDIHUBERMAN: UM DIÁLOGO ENTRE TEÓRICOS PARA PENSARMOS OBRAS DE PINTURA DA EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES DE 1890 Cintya dos Santos Callado70 – cintya.callado@museus.gov.br Resumo: O presente trabalho pretende analisar a composição pictórica de algumas obras apresentadas na exposição geral de 1890, adquiridas e premiadas pela Escola Nacional de Belas Artes, a partir dos teóricos Pierre Francastel em seu trabalho Pintura e Sociedade, de 1990 e Georges Didi-Huberman, em Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens, de 2015. As pinturas em destaque são: Os bandeirantes, de Henrique Bernardelli, Caipiras negaceando, de José Ferraz de Almeida Júnior, Morro da Viúva (Rio de Janeiro, RJ), de Joaquim José da França Júnior; Praia Formosa (Rio de Janeiro, RJ), de Hipólito Caron; Turbínio, de Antonio Parreiras e Paisagem (de Barbacena, Minas Gerais), de Giambattista Pagani. Palavras-chave: Francastel; Didi-Huberman; Pintura; EGBA de 1890. Abstract: The present work intends to analyze the pictorial composition of a few paintings presented in the 1890 Salon, acquired and awarded by National School of Fine Arts, based on the theorists Pierre Francastel, in his 1990’s work Pintura e Sociedade and Georges Didi-Huberman, in Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens, 2015. The featured paintings are: Os bandeirantes, by Henrique Bernardelli, Caipiras negaceando, by José Ferraz de Almeida Júnior, Morro da Viúva (Rio de Janeiro, RJ), by Joaquim José da França Júnior; Praia Formosa (Rio de Janeiro, RJ), by Hipólito Caron; Turbínio, by Antonio Parreiras e Paisagem (de Barbacena, Minas Gerais), by Giambattista Pagani. Keywords: Francastel; Didi-Huberman; Painting; 1890 Salon. 70 Cintya dos Santos Callado é doutoranda do PPGAV (UFRJ), mestra pelo PPGHC (UFRJ) e graduada em História (UFRJ). Especializou-se em Cultura, História e Literatura Africanas (UCP). Trabalha no Arquivo Histórico do MNBA, onde realiza pesquisa sobre as EGBAs, coordena a oficina “O Arquivo Histórico do MNBA de Portas Abertas” e participa do grupo de Pesquisa “Artistas Negros e Representações do Negro do MNBA”. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 195 Francastel e Didi-Huberman procuram questionar a noção de temporalidade comumente utilizada para se fazer uma análise crítica de uma obra de arte, que costuma reduzi-la a um determinado estilo artístico. Francastel ressalta que, durante a primeira metade do Quattrocento, as experiências espaciais são diversas e não alinhadas, muitas vezes contraditórias, mas convivem neste mesmo espaço. As obras de pintura de Perugino (1446-1523) e Lippi (1406-1469), por exemplo, são construídas a partir de uma pluralidade de sistemas. Essa análise encontra correlação com Didi-Huberman, que verifica no afresco “Madona das Sombras”, de Fra Angelico (1395-1455), ideias múltiplas, de tradições pictóricas distintas. Ele identifica nesta obra três tempos heterogêneos, que são, portanto, anacrônicos entre si. Toda essa multiplicidade, segundo Francastel, evidencia o caráter, ao mesmo tempo, efêmero e permanente, da arte renascentista. A passagem de um estágio de desenvolvimento para o outro não elimina os anteriores. Quando acontece a passagem de um estágio para o seguinte, o domínio – que já havia sido adquirido na etapa precedente – do estágio alcançado não acontece de imediato. Quando esse domínio é atingido, o indivíduo “automatiza mais do que abandona” (Francastel, 1990, pp. 91-92) suas práticas, apropriando-se da sua experiência presente e das anteriores. Tal reflexão entre permanência e efemeridade encontra uma feliz correspondência em Didi-Huberman, quando ele destaca que “Só há história de sintomas” (2015, p. 43). O sintoma é o que surge, “aparece”, denotando um desequilíbrio, uma descontinuidade. Esconde um paradoxo visual (imagem-sintoma), o que se externaliza, tirando a normalidade das coisas, e um paradoxo temporal (sintoma-tempo), ao passo que desvela os anacronismos, interrompe o curso natural representado pelo tempo cronológico. Podemos falar em paradoxo pois, ao mesmo tempo que o sintoma denota uma descontinuidade do percurso natural das coisas, esse próprio percurso também continua fluindo, com seus anacronismos inerentes. Temos, portanto, a repetição e a diferença (2015, p. 50). Destarte, não haveria um único estilo nas obras de arte, ainda que algum possa ser predominante. Eles se sobrepõem ou se justapõem nelas, uma vez que os estilos artísticos não surgem abruptamente, mas 196 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 são resultado de um processo produtivo, que é influenciado pelo próprio tempo e espaço do artista e por suas interpretações de diferentes temporalidades e espacialidades. Trazendo essas reflexões para as pinturas da EGBA de 1890, temos algumas considerações que serão expostas a seguir. “Os bandeirantes” [Figura 1] foi feito por Henrique Bernardelli no ano de 1888 e recebeu a primeira medalha de ouro Exposição Geral de Belas Artes de 1890 (AI/EN 28.17). A obra é uma pintura de gênero histórico: ao mesmo tempo em que predomina uma apresentação de cena do quotidiano, numa concepção realista- naturalista, em que os bandeirantes “bebem água como os animais” (Christo, 2002, p. 34), ainda convive nele uma concepção romântica, que privilegia a narrativa e uma visão idílica dos índios, personagens retratados a partir de uma perspectiva exótica. “Caipiras negaceando” [Figura 2] é uma pintura de gênero feita por José Ferraz de Almeida Júnior, em 1888. É um exemplo de obra de modernidade, à época identificada com o movimento realista, que privilegia a realidade em sua crueza, procurando se distanciar dos idealismos românticos, o que notamos na própria escolha do artista de retratar duas personagens em atividades quotidianas. “Caipiras negaceando” e “Os bandeirantes”, foram avaliadas pela comissão julgadora da EGBA de 1890 em Rs 7:000$000 (sete contos de réis), cerca de R$ 861.000,00. Foram as obras melhor avaliadas na exposição. Para termos uma ideia do prestígio de ambas, o próximo quadro mais caro pertencia ao próprio Bernardelli, avaliado em 2:000$000 (AI/EN 53.18-16). Além dessas influências mais óbvias, nossa pesquisa buscou possíveis interfaces dessas obras com a iconografia da cerâmica mediterrânica antiga, mais precisamente as áticas, coríntias e ápulas. Pensando no contato visual, realizado presencialmente, desses pintores do século XIX com a arte greco-romana, remontamos às suas premiações na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Um artista brasileiro que recebesse o prêmio de viajar para a Europa para estudar pintura iria, de Bernardelli com as pinturas dos vasos mediterrânicos antigos, percebemos importantes correspondências: ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 197 a) a imponência dos caçadores de javali em relação aos animais e a imponência do índio em “Os bandeirantes”. Há uma idealização dessas personagens; b) os temas laborais, ou seja, as atividades rotineiras do homem, estão presentes tanto no quadro quanto nos vasos. A “profissão” é um tema de destaque: os fundidores de metal, os caçadores e os bandeirantes; c) há uma exposição da crueza do ofício, sem idealizações, tanto nos vasos quanto no quadro. Basta olharmos, por exemplo, para a posição de subalternidade dos bandeirantes, agachados, em meio à sede, e compararmos com o árduo trabalho dos fundidores; Comparando Caipiras negaceando com a iconografia dos vasos, temos: a) o “negacear” como ritual subjacente ao trabalho. É possível traçar um paralelo com os caçadores de javali [Figura 3]: todos, igualmente posicionados, com a sua lança na mão direita, para atacar o animal; b) em relação à crueza das atividades laborais, podemos comparar o risco do fundidor, ao inserir o metal na fornalha, com o risco de ataque aos caipiras em meio à mata. [Figura 4] O fogo, destacado na pintura da fornalha, nos remete a esse perigo, da mesma forma que as armas dos caipiras remetem a uma necessidade de proteção em sua prática laboral; c) a cooperação entre homens jovens e mais velhos no trabalho: entre os caçadores de javali, há homens barbudos e imberbes; os “caipiras”, um jovem e um homem mais velho, realizam a atividade juntos. Em ambas as pinturas do século XIX, vemos a importância da coletividade, do trabalho em grupo ou em dupla. É o que percebemos também nas imagens dos vasos: os fundidores trabalhando em dupla e os caçadores de javali, em grupo. Voltemo-nos agora para as paisagens. “Turbínio”, de Antônio Parreiras, foi feita em 1888, quando da estada do artista na Itália. “Praia Formosa, de Hipólito Caron, foi pintada em 1888. Giambattista Pagani pintou “Paisagem (de Barbacena)” em 1890. Os três artistas receberam 198 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 a segunda medalha de ouro na exposição de 1890. Joaquim José da França Júnior, com “Morro da Viúva”, recebeu uma menção honrosa. Parreiras, França Júnior e Caron compuseram, juntamente com outros artistas, sob a orientação do pintor alemão Georg Grimm, o chamado “Grupo Grimm”, de 1884 a 1886, que se ocupou da feitura de pinturas de paisagens ao ar livre. Em “Morro da Viúva” [Figura 5], é possível perceber a influência de Grimm sobre França Júnior, pois seu trabalho apresenta contornos nítidos e desenho definido. Muitas obras de Caron trazem essas duas características, no entanto, ao analisarmos “Praia Formosa” [Figura 6], percebermos que as massas coloridas, tanto na vegetação, quanto nas construções, estão se tornando cada vez mais densas, e alguns contornos já não aparecem delimitados. Trata-se de mais liberdade, mais poesia do artista, que não está tão preso a uma fidelidade da captação da realidade. Em “Turbínio” [Figura 7], palavra italiana que significa “redemoinho”, Parreiras se ocupa de representar um fenômeno natural em sua paisagem. A obra ainda traz a influência do seu antigo mestre George Grimm, com a fatura detalhista e os contornos bem evidentes, rigores dos quais ele vai se distanciar nas décadas seguintes, aproximando-se de trabalhos impressionistas, com pinceladas mais espessas. Essa tela traz uma maior dramaticidade, enfatizando um instante de movimento da natureza, com ventos intensos. Percebemos aproximações de “Turbínio” com “Agar e o Anjo”, de Nicolas Poussin. Apesar de os temas escolhidos pelos autores serem díspares – um se baseia numa passagem antiga da Bíblia, enquanto o outro se ocupa de representar um evento do presente –, o arranjo dos elementos nas obras nos faz perceber algumas semelhanças. As telas trazem uma ideia de movimento que se dá da direita para a esquerda, que é sugerido por Agar acompanhando o anjo e pela disposição das árvores e das nuvens, no caso de Poussin, e pelas palmeiras afetadas pelo vento, na tela de Parreiras. É possível que ambos os autores tenham lançado mão de traçados reguladores para atingir a proporcionalidade com linhas diagonais, que dão esse efeito de movimentação e sentido. Focando no arranjo das árvores nas telas, elas se encontram predominantemente à direita em ambas. As personagens estão na porção inferior da tela e à esquerda. Apesar de estarem em primeiro plano, ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 199 elas têm um tamanho muito menor em relação à natureza. No caso de Poussin, a imponência das árvores e das rochas e, no caso de Parreiras, a força do vento no redemoinho, a causar o movimento intenso das árvores, aliada à pequenez das personagens, sugere que a paisagem natural deva ser o destaque nas telas. Cabe também ressaltar o céu nestas duas obras: está evidenciado à esquerda das telas, ocupando toda a sua porção superior, com um clarão contrastando com nuvens mais escuras e densas, que se movimentam para o sentido esquerdo. Em ambas as telas, as nuvens carregadas anunciam o mau tempo, que remonta a períodos de turbulências. A presença dos rochedos em boa parte das telas e num primeiro plano também denota a escolha dos autores por enaltecer elementos naturais em sua crueza nas telas. Em “Paisagem” [Figura 8], de Pagani, permanece a pequenez humana diante da paisagem e os contornos nítidos. Contudo, a disposição da paisagem natural é outra. Ela circunda toda a imagem, o céu aparece meio que no vão entre as árvores, dirigindo o olhar do observador primeiramente para o centro da tela (perspectiva com um ponto de fuga). A iluminação caracterizada na tela também é diferente das demais analisadas. É possível perceber que a pintura foi realizada durante a manhã, com o sol a pino, que ilumina o céu, as árvores e a trilha. Ainda nos falta pesquisar a respeito do artista e de sua obra. Cabe ressaltar que este trabalho é parte de uma análise que prima pela multiplicidade de inspirações que sofre um artista para pintar suas telas. Não deixamos de perceber as diferenças entre as produções, tendo em mente que elas sempre dialogam com seu contexto histórico. No entanto, interessa-nos os diálogos que elas possam suscitar, a partir das comparações. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAVALCANTI, A. Antônio Parreiras, A Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e a pintura de paisagem. Artigo apresentado no XI Seminário Museu D. João VI, 2020. CHRISTO, M. Bandeirantes ao chão. Revista Estudos Históricos, Vol. 2. Nº 30, 2002 200 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 DIDI-HUBERMAN, G. Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015, pp. 15-57. DOSSIER DE L’ART. Poussin: Exposition au Grand Palais. Dijon: Editions Faton S.A., n. 21, outubro/novembro 1994. FRANCASTEL, P. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. PEREIRA, S. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. FONTES DIGITAIS GRUPO GRIMM. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo537095/grupo-grimm. Acesso em: 22 de janeiro de 2022. FONTES DOCUMENTAIS Acervo do Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes AI/EN 28.17 AI/EN 53.18-16 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 201 Imagens: Figura 1. Henrique BERNARDELLI. Os bandeirantes. 1888. Óleo sobre tela, 400 x 290 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. 202 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 2. José Ferraz de ALMEIDA JÚNIOR. Caipiras negaceando. 1888. Óleo sobre tela, 280 x 215 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 203 Figura 3. Caça a javalis. Cratera com colunas coríntia. Grupo Andromeda. Londres. British Museum. 1772,0320.6+. ©bristishmuseum.org 204 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4. Fundição de metal. Enócoa ática de figuras negras. Londres, British Museum. 1846,0629.45. ©bristishmuseum.org ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 205 Figura 5. Joaquim José da FRANÇA JÚNIOR. Morro da Viúva, Rio de Janeiro. 1888. Óleo sobre tela, 70 x 100,6 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. Figura 6. Hipólito CARON. Praia Formosa, Rio de Janeiro.1888. Óleo sobre tela, 38 x 54,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. 206 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 7. Antônio PARREIRAS. Turbínio, Veneza. 1888. Óleo sobre tela, 349 x 208 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 207 Figura 8. Giambattista PAGANI. Paisagem (de Barbacena). 1890. Óleo sobre tela, 74 x 110 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/MT. 208 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CULTURA DE MUSEUS NO BRASIL: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE Clara Mourão Downey71 - clara_downey@hotmail.com Resumo: O espaço museal no Brasil tem um histórico de afastamento e mesmo com os esforços atuais das instituições para reaproximar o público, essa questão continua sem uma solução. Por outro lado, a Bienal de São Paulo, idealizada por Ciccillo Matarazzo em 1951, obtém desde sua primeira edição grandes números de visitação; além disso, a cada edição a Bienal se renova e reflete o cenário brasileiro, promovendo polêmicas e debates artísticos no país e no mundo. O presente artigo propõe pensar a cultura de museus no Brasil a partir do conceito de “habitus” de Bourdieu e como ela se desdobra na contemporaneidade, a partir da relação das Bienais de São Paulo de 2006 a 2016 com seu público. Palavras-chave: Cultura de Museus no Brasil; História das Exposições; Bienal de São Paulo; Público. Abstract: The museum space in Brazil has a history of distance and even with the current efforts of institutions to bring the public closer, this issue remains unresolved. On the other hand, the Bienal de São Paulo, conceived by Ciccillo Matarazzo in 1951, has received large numbers of visitors since it’s first edition; Furthermore, with each edition, the Bienal renews itself and reflects the Brazilian scenario, promoting controversies and artistic debates in the country and in the world. This article proposes an analysis about the culture of museums in Brazil based on Bourdieu’s concept of “habitus” and how it unfolds in contemporary times, based on the relationship of the São Paulo Biennials from 2006 to 2016 with their audience. 71 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Cultura de Museus no Brasil: Um Estudo Através da 31ª e 32ª Bienais de São Paulo”, orientada pela Profa. Dra. Renata Cristina Oliveira Maia Zago Mazzoni Marcato, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora. A pesquisa conta com financiamento CAPES. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 209 Keywords: Culture of Museums in Brazil; Exhibition Histories; São Paulo Biennial; Public. Pierre Bourdieu, sociólogo francês, conduziu entre os anos de 1964 e 1965 um conjunto de pesquisas que pretendia, através de um método de amostra, sondagem e questionários, entender e equacionar a relação dos museus de arte da Europa com seu público. Essa pesquisa envolveu diversos pesquisadores e instituições, procurando comparar informações como: número de visitantes anuais, números de obras expostas, número de obras do acervo, tipo de obras, situação econômica da cidade onde o museu se situa, entre outras. Além disso, foram aplicados questionários ao público de cada uma das instituições, na intenção de entender o perfil social do visitante - classe econômica, nível de escolaridade, faixa etária, local de residência; bem como museus já visitados, tempo de duração da visita, tipo de arte favorito, entre outros - qualidade da visitação. A partir dessa pesquisa, foi possível a elaboração de um modelo matemático que fosse capaz de analisar a frequência das visitas aos museus. A conclusão dessa extensa pesquisa, não foi chocante, como aponta Bourdieu (2016) foi: “(...) a enunciação de algumas verdades evidentes (...)” (BOURDIEU, DARBEL, p.157, 2016), contudo foi essencial para entendermos como a perpetuação do sistema de classes está, não somente na economia como apontava Karl Marx, mas em uma estrutura estruturante que Bourdieu denominou de “habitus”. Esta estrutura se trata de um marcador de classe social, uma noção de identidade construída pelo indivíduo desde seu nascimento, onde o círculo social o insere nas práticas usuais de sua classe, estruturando suas atividades na sociedade e assim perpetuando o sistema de classe vigente. A cultura de visitação a museus reflete o habitus pois há uma estrutura oculta onde prazer estético experienciado no espaço museal está relacionado à perpetuação de um gosto culto, intelectual, que se opõem ao gosto bárbaro e faz parte de um plano de monopólio cultural. Assim como aponta Bourdieu (2016): 210 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O museu fornece a todos, como se tratasse de uma herança pública, os monumentos de um esplendor passado, instrumentos da glorificação suntuária dos grandes de outrora: liberdade fictícia já que a entrada franca é também entrada facultativa, reservada àqueles que, dotados da faculdade de se apropriarem das obras têm o privilégio de usar dessa liberdade e que, por conseguinte, se encontram legitimados em seu privilégio, ou seja, na propriedade dos meios de se apropriarem dos bens culturais ou, para falar como Max Weber, no monopólio da manipulação dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural. (BOURDIEU, DARBEL, p. 163, 2016) As conclusões feitas por Bourdieu, na França, em 1979 podem nos dizer algumas coisas sobre a cultura de museus no Brasil: desde o surgimento da primeira instituição museológica no país, o Museu Nacional em 1818, seu modelo foi importado da Europa a fim de agradar e presentear as elites europeias, monetárias e intelectuais aqui residentes. Foi somente no período pós-guerra, com Assis Chateaubriand e Ciccillo Matarazzo, que um olhar mais democrático para o acesso à cultura surgiu, com a criação de museus como o MASP, o MAM/SP e a Bienal de São Paulo. Entretanto, esse acesso foi concedido por se acreditar que era através do conhecimento e do enriquecimento cultural da população que se alcançaria o progresso no país, como parte de um projeto de industrialização do Brasil, e da transformação de São Paulo em uma metrópole. Essas instituições ganharam, portanto, uma “aura de inacessibilidade”, afastando o grande público. Isso se deu justamente pelo fato de que as instituições museológicas já adentraram o território brasileiro, permeando o habitus das elites e engessando-se em monopólio cultural que reflete e perpetua a estrutura de classes. O espaço museal no Brasil tem um histórico de afastamento e mesmo com os esforços atuais das instituições para reaproximar o público - tendo sucesso apenas em megaexposições e recortes curatoriais específicos, como a exposição Tarsila, realizada pelo Masp em 2019, que bateu recorde de visitação com 402.850 visitantes - essa questão continua sem uma solução. Por outro lado, a Bienal de São Paulo, idealizada por Ciccillo Matarazzo em 1951, obtém desde sua primeira edição grandes números de visitação; além disso, a cada edição a Bienal se renova e reflete o cenário brasileiro, promovendo polêmicas e debates artísticos no país e no mundo. Como afirma Terry Smith (2017): “As ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 211 bienais, tanto quanto as exposições itinerantes que promovem a arte de um país ou região, tem sido um local ideal para a crítica pós-colonial.” A Bienal de São Paulo, para além de números altos de visitações, possui estratégias educativas desde sua segunda edição, dedicando esforços para pensar a experiência do visitante à exposição. Portanto, o presente artigo se propõem a pensar a cultura de museus no Brasil a partir deste espaço expositivo que conquista os visitantes, assim como ressalta Silveira (2021): (..) é importante reafirmar o papel das instituições museológicas não apenas como locais de salvaguarda da memória de patrimônios da história da humanidade, mas como instituições de pesquisa científica, com caráter social e com equipes profissionais com competência para informar e educar a população, criando esses canais diretos com o público como uma forma de compartilhar conhecimento, mas também de ouvir e reconhecer o que o público quer ver e viver nos museus. (SILVEIRA, p. 51, 2021) Ela se apresenta, portanto, como um fenômeno à cultura de museus no Brasil e pode ser um excelente caminho para de fato entendermos a relação do público brasileiro com suas instituições artísticas. Apesar das problemáticas existentes na redução de um circuito artístico de um país de proporções continentais a apenas uma cidade, São Paulo, seria ingenuidade negar a centralização cultural presente na região sudeste - herança deixada pelas políticas públicas de incentivo à cultura desde a época do império, que visavam o desenvolvimento desta região para além das demais. Entretanto, para este artigo, essa concentração não será um fator negativo, pois é nela que podemos encontrar uma amostragem da pluralidade que as migrações à metrópole geraram, a expressividade com a qual se deu a construção das desigualdades, como o cotidiano popular se assemelha à grande maioria populacional e como se dão os impulsos artísticos e sociais. A fim de entender uma cultura de museus - habitus em Bourdieu - no Brasil contemporâneo através das Bienais de São Paulo faz-se necessário a realização de um panorama histórico da exposição, para que possamos compreender como a relação do público e da fundação se desenvolveu ao longo dos anos. Para tanto, um recorte temporal de um década foi escolhido para este panorama e ele tem seu início na 27ª 212 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 edição, realizada em 2006, curada por Lisette Lagnado e com a temática “Como viver junto”. Essa edição se caracterizou como uma grande virada para a Bienal, pois foi quando a curadora da edição, resolveu abandonar o modelo de representações nacionais importado da Bienal de Veneza e realizou uma curadoria autoral e experimental, inspirada em escritos de Roland Barthes e Hélio Oiticica, que pretendia abordar temáticas referentes à vivência e a convivência contemporânea, às relações entre tempo e espaço, ao nomadismo do ser humano e do artista e também sobre o nacional e o internacional. Essa decisão culminou em uma série de dificuldades para a fundação, mas permitiu que a exposição assumisse cada vez mais uma unicidade enquanto Bienal de São Paulo. A edição contou ainda com a participação de 118 artistas, de 51 países distintos, totalizando 645 obras; contou ainda com a participação dos co-curadores Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Roca, Rosa Martínez e do curador convidado Jochen Volz. A 27ª edição foi intensamente criticada, mas também bastante elogiada. As críticas vinham de um lugar contestador do que seria ou não arte e os elogios por ela suscitar e inserir o Brasil em um debate tão em voga no cenário internacional das artes. Da mesma forma que o abandono das representações nacionais permitiram que o debate “Como Viver Junto” pudesse se expandir à esfera econômica da edição, na expectativa de combater a periferização de nações que não dispunham de grande capital econômico; ela também refletiu nas ações do projeto educativo e nos programas realizados pela Bienal, como o “Programa Bienal-Escola” que contava com visitas escolares à exposição, bem como workshops para professores; ou o programa “Centro-Periferia” que levava arte-educadores às periferias da cidade de São Paulo, onde promoviam vivências e provocações artísticas. A curadora do projeto educativo, Denise Grispum, pretendia com seus programas, transformar as relações entre a arte e a sociedade, dedicando seus esforços à ressignificação do lugar que a cultura de museus possui no habitus das classes sociais brasileiras. Ciente das dificuldades relativas ao ensino de arte nas escolas, lugar em que este campo é inserido na vida do cidadão brasileiro, a curadora entendia a importância da mediação cultural devido ao fato de que muitos poderiam estar tendo seu primeiro contato com o espaço expositivo. Este se trata, portanto, ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 213 de um momento crucial, a experiência que esse visitante terá nesta visita estará ressignificando o lugar que a cultura de museus possui em seu habitus. A gratuidade de entrada na Bienal foi conquistada em 2004, na 26ª edição, através do projeto “Movimento Arte Democracia”. Gilberto Gil, à época Ministro da Cultura, suplicou às outras instituições culturais que se inspirassem na Bienal e garantissem o acesso gratuito em suas exposições. Assim como afirma Fabio Cypriano em uma reportagem publicada na Folha de São Paulo: “O ministro defendeu que a gratuidade é uma forma de democratizar o acesso à arte contemporânea, considerada por ele como ‘elitista’’’ (CYPRIANO, 2004). Em seu segundo ano de gratuidade, a Bienal de São Paulo atingiu o marco de 535 mil visitantes, iniciando um desenho decrescente em um gráfico histórico da gratuidade de acesso, devido ao recorde da edição anterior, que atingiu 880 mil visitantes. Dando continuidade ao panorama histórico, foi realizada em 2008 a 28ª edição da Bienal de São Paulo, com a temática “Em vivo contato”, curadoria assinada por Ivo Mesquita e curadoria adjunta por Ana Paula Cohen, esta edição contou com a participação de apenas 41 artistas - de 20 países - totalizando 54 obras; é também conhecida como a “Bienal do Vazio”. Como visto anteriormente, o abandono das representações nacionais trouxe à fundação uma série de dificuldades que puderam ser muito bem notadas na 28ª edição. Foi uma decisão curatorial deixar o segundo andar do pavilhão vazio e denominá-lo “Planta Livre”, o percurso longo e vazio pretendia incitar questionamentos sobre o lugar e os rumos da exposição, um momento de respiro e reflexão. Mas a realidade escondida por trás de um discurso tão ousado, eram as dificuldades financeiras pelas quais a fundação enfrentava. À época o jornal Folha de São Paulo interceptou um email enviado de Ivo Mesquita ao presidente da Bienal, Manoel Francisco Pires da Costa, em que o curador respondia ao corte de gastos relativos ao projeto educativo: Cortar o educativo é grave. Esta é uma instituição pública e que presta um serviço para a comunidade. Além do que, há no corpo da 28a Bienal projetos que estão sendo trabalhados especificamente para um programa educativo. O corte do mesmo seria 214 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 extremamente danoso para a imagem institucional da Fundação porque existem recursos alocados para a Bienal que contemplam especificamente o seu plano educativo, e se eu bem me recordo eles já até foram usados sob essa rubrica (Secretaria Municipal de Cultura e Votorantim). Acho que podemos reduzir algumas coisas, mas não podemos abrir mão deste setor. Se algum corte for feito por exemplo, atendimento às escolas públicas não podemos deixar de desenvolver trabalhos já em andamento como a formação de monitores específicos para o acompanhamento dos visitantes junto aos trabalhos dos artistas do 3o andar. Já que a mostra se propõe interativa com o público é preciso ter esse acompanhamento didático. O trabalho de formação de professores é outra peça fundamental, pois a Bienal de São Paulo é conhecida e respeitada pela sua qualidade como espaço dedicado ao conhecimento e difusão da arte contemporânea. Assim sendo, cada Bienal de São Paulo é uma ocasião muito especial para a formação desses profissionais que são propagadores da experiência oferecida pela Bienal. Também devo dizer que em vista da importância do trabalho também autorizei a continuação do projeto Centro-Periferia, iniciado em 2006 e que foi considerado uma das experiências mais bem sucedidas em arte educação de que se tem registro (MESQUITA, 2013, s/p, apud. NETO, 2014, p.200). Os cortes de verba afetaram toda a edição, mas com mais força o setor educativo. Entretanto mesmo com essas dificuldades ainda foi possível concretizar alguns programas como o “Educadores em Sala”, a formação de professores e o “Projeto Ambulante” (antigo Centro-Periferia). Além disso, novas estratégias como o website da exposição e a distribuição de um Jornal pela cidade se mostraram bastante efetivas na tentativa de atrair público, assim como afirma os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen (2009) no relatório da curadoria: O Jornal 28B, com edição de Marcelo Resende, tinha como objectivo levar a Bienal de São Paulo para um público novo, fora do circuito da grande imprensa. Para tanto, associou-se ao Jornal Metro, de distribuição gratuita pela cidade. O jornal trazia ao leitor desinformado sobre a Bienal o que acontecia semanalmente no pavilhão no Parque Ibirapuera, ao mesmo tempo em que funcionava como um catálogo, um registo, do processo da 28BSP. Segundo depoimentos de Educadores nos espaços expositivos, diversos visitantes vieram a Bienal pela primeira vez por terem recebido o jornal na rua. Isto indica um potencial de visitantes e frequentadores a ser explorado pelos novos projetos da FBSP, além do acerto na estratégia de aproximação. (MESQUITA, COHEN, p.2, 2009) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 215 A 28ª edição teve seu encerramento aclamado pela crítica internacional por sua ousadia e descredibilizada pelo cenário nacional. Com um total de 162 mil visitantes, o que foi considerado um sucesso para a Fundação, mas em um panorama histórico configura uma grande queda no número total de visitantes por edição. É possível perceber a intencionalidade de alguns agentes da fundação em democratizar a exposição, contudo, um evento ocorrido nesta edição, foi capaz de mostrar uma certa ambiguidade no discurso da mesma: o segunda andar, ou Planta Livre, foi “invadido” por artistas pixadores que, em vivo contato, preencheram o andar com suas intervenções, um prato cheio para a Fundação que visava a integração com a cidade e a aproximação com o público, mas radical (ou seria marginal?) demais para ser sustentada enquanto arte por um espaço historicamente elitista e, portanto, dois dias após a ação ela foi completamente apagada e a branquitude das paredes foi restabelecida. Seguindo o panorama, em sua 29ª edição, realizada em 2010, a Bienal se mostrou fortalecida, tendo seu pavilhão repleto por 850 obras, de 159 artistas, vindos de 40 países. A temática escolhida pelos curadores-chefes, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, tem origem em um poema de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. A edição contou ainda com a participação dos curadores convidados: Chus Martinez, Fernando Alvim, Rina Carvajal, Sarat Maharaj, Yuko Hasegawa. Esta edição caracteriza-se pela contratação de Stela Barbieri para a elaboração do projeto educativo e para a fundação do “Educativo Permanente”, que consolidou-se em 2011 na edição comemorativa de 60 anos da Bienal. Assim como destaca Pereira (2016): Até então, a Fundação não possuía um projeto continuo sendo a curadoria trocada a cada ano. A instabilidade dificultava a manutenção de um projeto ampliado, ou seja, que se realizasse não somente no período da exposição, mas promovesse um acompanhamento junto aos professores e alunos pré e pós-exposição. Nos últimos anos a sistematização de um Educativo na Bienal se tornou uma das prioridades dentro da gestão da instituição, que provavelmente reconheceu a competência do setor também como um agregador desse valor de barganha diante dos patrocinadores. (PEREIRA, 2016, p.5) 216 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O projeto educativo da edição, se dividiu em oito frentes que pretendiam realizar um trabalho antes, durante e após a exposição. Contava com a formação de professores de escolas pública e privadas; atividades em comunidades e ONGs; parceria com 24 instituições culturais da cidade de São Paulo, para a realização do curso de formação para educadores que receberam o público da exposição; recebimento e acompanhamento do público durante a exposição; o Seminário Internacional de Arte e Política; cursos para interessados e ações como performances e debates nos Terreiros - seis espaços conceituais criados pelos curadores, onde ocorreram cerca de 400 atividades. A 29ª edição encerrou com um número total de 535.356 visitantes, marcando um ponto de virada na década, onde a Bienal retoma sua popularidade e passa a valorizar o setor e as ações educativas, vendo seus efeitos positivos ao atrair público e propiciar uma visita de qualidade a todos. Em 7 de setembro de 2012 foi inaugurada a 30ª edição da Bienal de São Paulo, com a temática “A iminência das poéticas” e curada por Luis Pérez-Oramas, a edição contou com a participação de 111 artistas, vindos de 31 países e 3.796 obras. A equipe curatorial, composta também pelos curadores adjuntos André Severo e Tobi Maier, além da assistência de Isabela Villanueva, adotou a metáfora das constelações como sua proposta: Intitulada “A iminência das poéticas”, essa edição da Bienal adotou a metáfora da constelação como proposta curatorial e estabeleceu articulações discursivas entre passado e presente; centro e periferia; objeto e linguagem. Com grande número de obras de cada artista, a exposição privilegiou artistas latino-americanos e prestou homenagens a Arthur Bispo do Rosário e Waldemar Cordeiro. O projeto Mobile Radio montou uma estação de rádio no mezanino do pavilhão, com programação que se estendeu por todo o período da exposição. (30ª Bienal de São Paulo) Algumas estratégias para atrair o público foram aplicadas, como a inserção de outras instituições artísticas de São Paulo ao circuito da Bienal (como já foi feito anteriormente), além da instalação de obras em espaços públicos movimentados, como a Estação Luz e a Avenida ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 217 Paulista, mas que não surtiram grande efeito visto que poucos visitante alegaram ter vindo à exposição a partir dessas instalações. Apesar disso, a edição encerrou com um número de 520 mil visitantes, um pouco menor que do ano anterior, mas que não configura uma grande queda. Essa edição caracterizou-se como um estabelecimento da estrutura e estabilidade que a Bienal veio buscando nos últimos anos e seu sucesso enquanto evento artístico brasileiro, com repercussão mundial e grande expectativa do público. Entrando na análise da penúltima edição deste panorama, a 31ª edição aconteceu em 2014 contou - de forma inovadora - com um grupo de curadores, foram eles: Charles Esche, Pablo Lafuente, Nuria Enguita Mayo, Galit Eilat, Oren Sagiv; além de Benjamin Seroussi, Luiza Proença como curadores associados. A temática definida por este grupo foi “Como (...) coisas que não existem”, propondo debates acerca de virada, coletividade, conflito, imaginação, transformação, processo e jornada. A curadoria, na tentativa de ressignificar alguns conceitos propôs que a exposição fosse composta por 69 colaboradores (e não artistas), vindos de 34 países, totalizando 81 projetos (e não obras); evocando assim a ideia geral de coletividade. O projeto educativo da edição dedicou seus esforços a pensar a ideia de educação através de relação, expondo que os processos educativos se dão também de maneiro informal e não-formal e que podem ser muito transformadores ao se tratar de uma déficit na educação artística formal, como já vimos anteriormente ser o caso do Brasil. Portanto propõem que uma visita a exposição é também uma espécie de relação com todos os agentes que ali já se dispuseram, evocando assim um sensação de pertencimento ao visitante, que uma vez que se fez presente na exposição, também faz parte dessa relação e desse ambiente. A exposição encerrou com um total de 472 mil visitantes, configurando o segundo menor número de visitações da década, ficando atrás somente da Bienal do Vazio. Para finalizar o panorama proposto, em 2016 se deu a 32ª edição da Bienal. Com a curadoria geral assinada por Jochen Volz e com a participação dos co-curadores Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga, a edição contou com a participação de 81 artistas, de 33 países e 415 obras. Com a temática “Incerteza Viva” a 218 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 curadoria propôs um debate acerca das incertezas do mundo contemporâneo e como a arte pode promover estratégias para viver nele. O aquecimento global, a perda da diversidade biológica e cultural, a crescente instabilidade econômica e política, a injustiça na distribuição dos recursos naturais da Terra foram questões em discussão. Mulheres e artistas nascidos após 1970 formaram mais da metade dos artistas selecionados. Uma pista de skate, uma oca para conversas e rituais e um restaurante de comida orgânica estiveram entre as obras da exposição. (32ª Bienal de São Paulo) O projeto educativo da edição abordou a incerteza como uma forma de investigação, que leva ao questionamento e por consequência ao envolvimento. Promoveu também a publicação de um catálogo denominado “Dias de Estudo”, onde diversos pesquisadores se lançaram a campo a fim de investigar centros culturais, ateliês, comunidades tradicionais, reservas ecológicas e centro de pesquisas; a publicação final reúne diversos artigos e foi disponibilizada ao público especializado de forma física e a qualquer interessado, online. Essa edição contou com grande divulgação nos meios digitais e na imprensa alcançando o marco de 900 mil visitantes, o maior número da década, configurando-se como um fenômeno de visitação para a fundação. Desta maneira a Bienal encerra uma década de atuação, onde criou seu próprio modelo e o fundamentou dentro do imaginário nacional e internacional, alcançando ao final um grande fenômeno de visitação à uma exposição de arte contemporânea. CONSIDERAÇÕES FINAIS Até a 31ª edição o número de visitantes estava muito relacionado ao número de obras expostas em cada edição, assemelhando-se com as conclusões que Bourdieu obteve em suas sondagens; contudo a 32ª edição contou com o terceiro menor número de obras e a maior visitação da década, nos mostrando que esta análise não pode ser aplicada ao Brasil contemporâneo. Um segundo ponto a ser pensado é sobre a “novidade” e o “evento” enquanto estratégias para atrair o público. O pavilhão da Bienal, ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 219 projetado por Oscar Niemeyer, possui fortes características do arquiteto e que podem ser considerados “(...) como um dos signos da modernidade em arquitetura no Brasil.” (FREIRE, 1991, p.206). Portanto, a arquitetura do pavilhão alia-se à missão da Bienal de mostrar as novidades da arte contemporânea, evocando o signo de “modernidade” (logo “novidade”) ao visitante brasileiro. Para além disso, a 32ª edição soube explorar essa condição de evento, abarcando áreas como a gastronomia e através de instalações interativas com camas elásticas ou pistas de skate, proporcionando ao visitante diferentes formas de experimentar e se relacionar com o espaço da exposição e a arte. Por fim, uma característica interessante que pode ser pensada é a relação da exposição com o espaço urbano, assim como aponta a pesquisadora Márcia Eliane Rosa (2017): Lugares incertos, sujeitos incertos. Maffesoli (2010) afirma que, em tempos atuais, o sujeito perdeu a noção do individualismo para adotar a noção comunitária de sentir. Este sujeito se faz presente porque experimenta de forma conjunta. O seu lugar é aquele onde pode dividir experiências com outros. É o que o faz pertencente. “O lugar faz a ligação. A ligação, quer dizer o espaço, a natureza e os elementos primordiais que os compõem, tornam visível a força invisível da ligação que me une aos outros” (2010, p. 104). Assim, as manifestações artísticas em espaços urbanos suscitam a interação do transeunte, a integração do morador, mas também ascendem à possibilidade do não estar, do não lugar, das inconstâncias do “nomadismo” (MAFESOLI, 2001) urbano. (ROSA, 2017, p.3) A possibilidade da criação de um “não lugar” da arte em ambiente urbano se reflete na Bienal que se apresenta como um lugar - quase ficcional - passível de construção coletiva e pertencimento; passível da construção de um novo habitus onde a cultura de museus permeia todas as camadas da sociedade. A cada proposta curatorial o espaço se constrói de forma diferente e, aquela que se mantiver aberta à contribuição do espectador nessa construção, evocará o pertencimento do mesmo. Visto a trajetória da Bienal na última década, podemos perceber a construção de um “não-lugar”, um lugar onde se questiona certezas e hábitos, onde se constrói cultura, onde todos à ali, pertencem. 220 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Renata Almeida de. Arte contemporânea exposta nas bienais : um estudo sobre a percepção do público na 30ª Bienal de São Paulo. Recife: O autor, 2014. BOURDIEU, P.; DARBEL, A. Amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Porto Alegre: Zouk, 2016. Catálogo da 31ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2014. COSTA JUNIOR, Gilberto Garcia. 27ª Bienal de São Paulo: É possível viver junto? Os profissionais de bastidores e a arte contemporânea. São Paulo, 2008. CYPRIANO, Fábio. 26ª Bienal terá entrada gratuita. Folha de São Paulo, São Paulo, 08/05/2004. 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Porém, a maior abertura das escolas não foi suficiente para aliviar o patriarcado no campo, resultando no esquecimento de diversas artistas. Poucos nomes são conhecidos atualmente, resultado da dificuldade de encontrar obras dessas artistas expostas em museus e sendo adquiridas por eles. A artista carioca Sylvia Meyer, que viveu durante os anos de 1889 a 1955, foi uma das várias brasileiras que tiveram sua produção esquecida pela historiografia da arte. Mas em vida teve atuação intensa como pintora e professora. Deu aulas em diversos colégios e em seu ateliê particular, foi influente nos circuitos acadêmico e moderno, realizou exposições individuais quase anualmente. Porém, após sua morte, poucas vezes suas obras foram expostas e seu nome foi raramente mencionado em produções teóricas. Devido à falta de informações sobre a artista, sua biografia e carreira, foi necessário realizar uma investigação sobre Meyer. A pesquisa na base de periódicos da Hemeroteca Digital, e em arquivos e acervos de museus nacionais e internacionais, permitiu reconstruir seus caminhos buscando entender como se deu sua inserção nos circuitos artísticos acadêmico e moderno do início do século XX, e o motivo de seu esquecimento após sua morte. Palavras-chave: Sylvia Meyer; Arte Moderna; Século XX; Arte Brasileira; Mulheres Artistas. 72 Débora Poncio Soares é graduada em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou do projeto de pesquisa “Produção, circulação e recepção da arte entre Brasil e Europa (séculos XIX e XX)” da Prof. Drª Ana Maria Tavares Cavalcanti, com uma pesquisa sobre as Exposições de Arte Francesa do Brasil. Desenvolve também pesquisas sobre mulheres artistas com foco no período entre séculos XIX e XX. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 223 Abstract: After opening to female students at the Liceu de Artes e Ofícios in 1881 and at the Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) in 1893, the number of female artists has progressively increased over the years. However, the greater opening of schools was not enough to alleviate the patriarchy in the countryside, resulting in the oblivion of many artists. Few names are known today, because of the difficulty in finding works by these artists exhibited in museums and being acquired by them. The artist from Rio de Janeiro, Sylvia Meyer, who lived from 1889 to 1955, was one of several Brazilian women whose production was forgotten by art historiography. But in life she had an intense performance as a painter and teacher. She taught at several schools and in his private studio, was influential in the academic and modern circuits, held individual exhibitions almost annually. However, after her death, her works were rarely exhibited, and her name was rarely mentioned in theoretical productions. Due to the lack of information about the artist, her biography and career, it was necessary to carry out an investigation on Meyer. The research in the journals of Hemeroteca Digital, and in archives and collections of national and international museums, allowed to reconstruct her paths, seeking to understand how her insertion in the academic and modern artistic circuits of the beginning of the 20th century took place, and the reason for her oblivion after her death. Keywords: Sylvia Meyer; Modern Art; Twentieth Century; Brazilian Art; Women Artists. Durante o século XX, o número de artistas mulheres aumentou progressivamente dentro da Escola Nacional de Belas Artes. Segundo a historiadora da arte Ana Paula Simioni no documentário Mulheres Luminosas, 40% das obras do Salão de Belas Artes do ano de 1900 foram realizadas por mulheres. Seis anos depois, essa porcentagem aumentou para 50%. A quantidade de mulheres artistas era tão notável que várias notícias sobre elas saíram em jornais, como na Revista da Semana, o artigo “Eva no Salão de 1926” com autoria de Saul Navarro que homenageia a participação feminina no Salão de Belas Artes, onde destacou o nome de 30 participantes (Figura 1). Outro exemplo, é a notícia escrita por Ney Machado em 1948, para a também Revista da Semana. No 224 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 qual comentou que nesse ano, o alunato feminino totalizava 70% dos alunos da Escola. Apesar dos dados mostrarem um aumento na participação das mulheres dentro do ensino artístico, existindo uma quantidade notável de mulheres artistas ou mulheres que almejavam a profissão de artistas, poucos nomes chegaram até nós nos dias de hoje. E com isso, alguns questionamentos surgem: quantas delas sabemos o nome? Suas trajetórias? Suas obras? Quantas estão expostas em museus ou são adquiridas por eles? Por que a Historiografia da Arte brasileira circunscreve as artistas Anita Malfatti e Tarsila do Amaral como se fossem excepcionalidades? Ana Paula Simioni em seu livro “Profissão Artista: Pintoras e Escultoras Acadêmicas do Brasil” comenta como essa “excepcionalidade” e esse mito de “Heroínas Solitárias” encobre com uma névoa a lembrança de outras artistas anteriores a elas (e contemporâneas), desvalorizando assim, a produção feminina e apagando a própria misoginia do cânone (SIMIONI, 2008, p. 21). De forma semelhante, a autora Madalena Zaccara escreve em seu artigo “Decolonização da Memória: mulheres artistas brasileiras nos Salões parisienses”, como a colonialidade do olhar masculino apagou os rastros das mulheres (e de qualquer outro artista que não se encaixasse nos modelos europeus). As mulheres sempre estiveram nos espaços artísticos, porém, esse discurso naturaliza a arte como um processo masculino, ou como Madalena Zaccara afirma “se sempre foi possível para uma mulher entrar no mundo da arte e roçar o meio vanguardista, elas nunca foram percebidas por seus colegas como rivais” (ZACCARA, 2019, p. 2). Principalmente no século XIX, quando havia uma corrente de pensamento sobre as diferenças fisiológicas entre gêneros, na qual, as mulheres seriam menos capazes que os homens. Com isso, entendia-se as mulheres artistas como amadoras. O termo designa que a prática artística de uma mulher não era vista como profissão, mas como passatempo ou algo que a faria melhor dona de casa/ esposa, “uma extensão das capacidades concernentes ao âmbito do privado exibidas em público” (SIMIONI, 2008, p. 43). A arte era uma ocupação para a mulher burguesa que conseguia ter acesso a essa formação artística por ter condições financeiras e tempo disponível. Por isso as mulheres durantes anos foram levadas a se dedicar às ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 225 artes decorativas e aos gêneros menores da pintura e escultura, considerados mais delicados, leves, graciosos e ligados ao âmbito doméstico que combinavam com os “atributos” que uma mulher deveria ter. A questão que levantou Ney Machado, no artigo já mencionado, é a dificuldade de profissionalização das mulheres na ENBA, contrastando a porcentagem tão alta de alunas com as que realmente seguiam a profissão de artista e que conseguiam expor suas obras. Ele perguntou para as alunas da Escola o que elas pensavam sobre o assunto e as questões que encontrou para essa dificuldade foram: a oposição da família, casamento e proibição pelo marido. E as soluções para ultrapassar essa condição eram se manter solteira ou se casar com um homem também artista. Isso mostra que as mulheres enquanto artistas no século XIX e XX tinham três grandes dificuldades: Conseguir profissionalizar-se, manter-se no campo ativamente e serem lembradas pela posteridade. Sylvia Meyer (1889 - 1955) foi uma dessas várias artistas que teve sua produção esquecida durante a história, porém, durante as primeiras décadas de 1900, foi influente no circuito acadêmico e moderno, com trabalho intenso. Expôs quase anualmente suas obras e circulou por diversos espaços, não só do Rio de Janeiro, mas como também outros estados brasileiros e até mesmo internacionalmente. Os estudos de Meyer começaram em 1908 com o professor Rodolfo Amoedo (1857 - 1941) com o intuito de entrar na Escola Nacional de Belas Artes. Onde começou a estudar por volta de 1912. Meyer teve aulas com Zeferino da Costa (1840 - 1915), Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti (1866 - 1944), mas no ano seguinte, tornou-se discípula de Henrique Bernardelli (1857 - 1936) com quem permaneceu até final dos seus estudos (SIMIONI, 2008). Ela participou das Exposições Gerais desde 1910 (como aluna das aulas livres) até 1919 (já matriculada), recebeu premiação de menção de primeiro grau em 1912, candidata ao prêmio de viagem em 1913, recebeu menção de primeiro grau na exposição de 1914 e pequena medalha de prata em 1915. Porém, não se identificou com o ensino da Escola e sobre isso, ela comentou em uma entrevista para o jornal A Noite em 1946: 226 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Sou um espírito inteiramente emancipado de preconceitos estéticos. Sempre fui rebelde às limitações das escolas. Estudei, é certo, pelos compêndios clássicos. Fui aluna de Amoedo, de Bernardelli, de Visconti. Mas, depressa, libertei-me das cadeias da arte oficial que estandartiza e despersonaliza certas vocações. Pinto como acho que devo pintar. Cada instante, quero ser diversa, outra. Não me preocupam os cânones acadêmicos. Desejo permanecer eu mesma, enfim, com todas as minhas qualidades e defeitos (MEYER,1946, p. 7). Após os estudos na ENBA, resolveu se desprender dos compêndios clássicos se aproximando da arte moderna. Em 1930, aos 41 anos, juntou todas as economias e aproveitando a licença-prêmio após vinte anos de serviço público (MARQUES, 1948), decidiu ir para Paris. Assim como essa viagem ao exterior marcou os principais artistas desse período, como: Anita Malfatti (Berlim, 1910 a 1914), Tarsila do Amaral (Paris, 1920 a 1922), Candido Portinari (Paris, 1929 a 1931), Di Cavalcanti (Paris, 1923 a 1925), Meyer possuiu uma trajetória que se assemelhou a esses modernistas consagrados. Sua viagem a Paris em 1930 e sua volta, provavelmente no ano seguinte ou no final do ano, causaram uma grande mudança na sua estética, descrita por ela mesma em entrevistas e por notícias. Dentre essas mudanças, estava a da principal técnica de seu trabalho. Do pastel para a pintura a óleo, onde ela mesmo explicou para A Noite, “É que tenho fases. A gente precisa renovar-se. Até 1930 só pintava pastel, daí em diante não pintei mais um só” (MEYER, 1948, p.39). Outro artigo que mencionou essa mudança é o da jornalista Anna Amélia para o Diário de Notícias. Publicado no 9 de outubro de 1932, no qual a autora falou sobre o reflexo dessa viagem na segunda exposição da artista no Palace Hotel: Sylvia Meyer era uma brilhante pintora brasileira. Essa pintora, que todos conheciam e admiravam, resolveu, um dia, desaparecer. Mas não para deixar saudades. Pelo contrário, para aparecer de novo, mais viva do que nunca, inteiramente outra, inteiramente nova. Melhorou? Superou-se? E o que ella acaba de provar. A romântica dos pasteis muito finos, das nuanças muito tênues, acorda agora nas linhas fortes, nos óleos vigoro- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 227 sos, nas pinceladas nítidas, nos traços decisivos e penetrantes. Suas telas não são espelhos frios que reproduzem nitidamente a natureza: são representações palpitantes da vida, são interpretações especiais de coisas, são expressões de sentimentos e de ideas, encontrados em cada aspecto do mundo exterior por um temperamento singular (AMÉLIA, 1932, p. 7). A viagem também proporcionou a Sylvia Meyer a descoberta de novas inspirações. Como por exemplo, o pintor italiano Amedeo Modigliani (1884 - 1920). Ao longo da carreira de Sylvia Meyer, foi comum suas obras serem comparadas com as do pintor italiano pela crítica da época, categorizando-a com um estilo “Modiglianesco”. Essa categoria era dada porque a pintora brasileira também utilizava a principal marca de Modigliani, o alongamento extremo de suas figuras. Como é possível comparar nas obras Autorretrato73 de Sylvia Meyer (Figura 2) e na obra Madame G. van Muyden de Modigliani (Figura 3). Em uma entrevista para a jornalista Maria Wanderley Menezes, publicada na Revista Carioca em 1948, Sylvia mostrou surpresa e estranhamento que teve ao ver as obras de Modigliani: Assim, quando cheguei da Europa, em 1930, não consegui compreender inteiramente Modigliani e por isso discutia-o e estudava o. Depois outro e outros. O que tenho conseguido? Cheguei a me realizar? Os outros que o digam. Eu sigo meu caminho (MEYER, 1948, p. 12 e 13). Entretanto, Meyer não gostava de ser comparada com nenhum outro pintor nem colocada dentro de um “ismo”. Nessa mesma entrevista, a jornalista Maria Wanderley Menezes disse “Nem academismo, nem modernismo, nem futurismo. Ela não quer saber de nenhuma escola, acreditando que só os criadores de escolas possuem autêntico valor” (MEYER, 1948, p. 12). Por isso, a artista buscou uma expressão de arte exclusiva e inteiramente sua. E aplicou isso em suas aulas particulares, dando completa liberdade para suas alunas. 73 A obra foi doada pela família da artista, após sua morte, em 1955 para o acervo do MAM do Rio. Infelizmente foi perdida no incêndio que ocorreu em 1978. 228 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Em outro momento da entrevista, Sylvia Meyer comentou: “Fechar-se dentro de quaisquer fórmulas é uma limitação e todo artista deve ser inteiramente livre de preconceitos e limitações. Ser artista é ser completamente livre (MEYER, 1948, p.13). Meyer continua demarcando sua opinião quando responde às perguntas: Quais as preferências artísticas? E o que pensa da arte moderna? [...] Não compreendo as escolas ou mais cruamente os academismos [sic]. E, afinal, é o que mais vemos; pequenos grupos que trocam elogios e trancam-se dentro de uma corrente... Não sei ser filiada. Sem dúvida, nossa sensibilidade sempre renovada tem que ir amando, ao decorrer da vida artística, os mestres que têm mais afinidade com o sensível presente... Eu sigo meu caminho. Faço o que chamo cumprir meu destino sem reservas, sem literatura [...] Se é sincera é arte, se não, é cabotinismo. Gosto apaixonamente [sic] de tudo que tende a uma procura sincera, a um anseio de invenção, de criação. Chegar a criar alguma coisa dentro de sua época, seja de que modo ou por qual processo, é a isso que chamo arte moderna (MEYER, 1948, p. 12 - 13). As falas de Sylvia mostram não só um pensamento comum para a época de não mais se filiar a uma corrente artística, mas também, revelam seu espírito livre. E talvez por essa questão, de variar tanto sua produção, ora acadêmica, ora moderna que Sylvia não conste nos livros de história da arte brasileira. O estilo de Modigliani era disputado dentro do campo da arte brasileira nas primeiras décadas do século XX. Em 1932, Sylvia e Portinari realizaram exposições para mostrar o que tinham produzido após a viagem. Portinari, na Associação dos Artistas Brasileiros e Sylvia, no Palace Hotel, ambas amplamente comentadas pelos jornais. Uma das críticas, chamada “O Pintor Portinari”, escrita por Oswald de Andrade para O Jornal, em 28 de dezembro de 1934. Oswald teceu elogios ao pintor como: “Portinari pinta com uma inigualável consciência do officio”, “Seria um Modigliani, se não fosse mais” e “O Brasil tem em Cândido Portinari, o seu grande pintor”. O escritor também não deixou de mostrar seu ponto de vista sobre outros artistas modernos, inclusive sobre Sylvia Meyer: ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 229 Em meio dos esforços nacionais, Portinari caminha com a segurança de um trabalho vitorioso. Os que o seguem ficam subúrbios dele como Sylvia Meyer. Os que se destacam de sua róta caem no abstruso ou no impotente, Ismael Nery, mesmo em vida, foi pintura de centro espírita, com médium, crentes e receitas. Annita levou uma patada do Jéca Lobato, outra do puritanismo doméstico e a terceira do dr. Freitas Valle, que a fizeram tímida e má língua. Não quis reagir na direção das suas grandes qualidades iniciaes. Tarsila emprega hoje a sua inocência decorativa na luta de classes. Sem o resultado sério da phase pau-tinta. Sendo assim, o Brasil tem em Candido Portinari o seu grande pintor.Mais do que escola, que faça exemplo. Pintor iniciado na creação plástica e na honestidade do officio, homem de seu tempo banhado das correntes ideológicas em furacão. Não admitindo a arte neutra, construindo na tela as primeiras figuras do futuro titânico – sofredores e os explorados do capital (ANDRADE, 1934, p. 4). Aparentemente, como uma resposta para a crítica de Oswald de Andrade, em 6 de janeiro de 1935, o crítico e poeta Luís Martins escreveu também para O Jornal: Dizer-se, como se tem dito ultimamente, que Sylvia Meyer é um reboque artístico de Portinari, constitue, pelo menos, uma injustiça. A recente exposição dessa pintora no Rio desmente essa afirmação, assim tão simplesmente creada no ar. Si ha semelhança technica entre os trabalhos desses dois artistas, vem essa semelhança de influencias idênticas e do facto de ambos se dedicarem mais ao retrato. A influência mais ou menos fortemente marcada em Sylvia Meyer é a de Modigliani, ao passo que Chirico é o mestre que atualmente mais impressiona Portinari (MARTINS, 1935, p. 2). Essa semelhança que ambas as críticas apontam entre os dois artistas é perceptível na obra Retrato de Maria de Portinari (Figura 4) que circularam pelos jornais na década de 1930, na ocasião de exposições individuais. Nessa obra Portinari pinta um retrato feminino, sentada so- 230 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 bre um fundo liso, longilínea e utilizando tons terrosos, algo que Modigliani também realizava em suas obras com frequência, provavelmente por isso a comparação de Oswald entre os dois artistas. Outra semelhança que se-pode traçar entre Portinari e Sylvia Meyer é a temática social. Nas décadas de 1930 até 1970, foi comum o questionamento dos críticos de arte e dos artistas sobre como deveria ser o seu posicionamento perante a sociedade e a quem eles deveriam servir (AMARAL, 1987, p.3). Havia uma efervescência política na época, com a ascensão da União Soviética, as revoluções posteriores, ao mesmo tempo em que crescia um movimento contra os governos nazifascistas e ditaduras militares pelo mundo, gerando uma preocupação de realizar uma arte politicamente engajada nos artistas. A questão da arte social pode ser percebida na obra de Meyer, Morro Vivo (Figura 5), que está acervo do Museu Nacional de Belas Artes, categorizada como sem data, mas encontra-se uma reprodução da obra no O Jornal em 1946. Nessa obra, Meyer focou nas figuras femininas que são levemente alongadas, principalmente na área do pescoço, que descem o morro e que possuem corpos mais reais. Sylvia também ressaltou as várias cores e tonalidades da terra e seu movimento envolvente no final do quadro até o topo. É perceptível nessa obra e em outras, que mesmo com inspiração moderna, ela não se desprendeu do uso da profundidade. A partir da década de 1940, Meyer da outra guinada em sua carreira. Porém, agora não tão elogiada. Segundo o crítico Geraldo Ferraz para O Jornal em 1944, as obras da artista na Exposição na Casa do Jornalista (A.B.I) eram um retorno à ordem, porém, não tão bem-sucedido: Sylvia Meyer [...] arrostou corajosamente as coleras [sic] da tradição. Sua volta à ordem, hoje, faz16 Pintor e escultor inglês da era vitoriana, George Frederic Watts (1817-1904), vinculado ao movimento simbolista. 51 se dentro de inconformações que não me parecem ter encontrado a sua verdadeira medida (FERRAZ, 1944, p. 8). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 231 O Retorno a Ordem é um termo que designa a reação às conquistas experimentais das vanguardas e a recuperação do estilo realista e dos preceitos clássicos. Ferraz continua dizendo que “Sylvia refoge ao academismo, mas não encontra nenhuma solução, sem dúvida nenhuma - que satisfaça aos que desejarem percorrer de novo os caminhos que ela percorreu para chegar aos seus quadros agora expostos” (Ibidem, 1944, p.8). A crítica de Ferraz deixou claro que Meyer gostava da experimentação, e que para o crítico, fazer tentativas, mesmo que fracassando, era melhor do que ter a certeza absoluta (FERRAZ, 1944, p. 8). Além disso, mostrou que Sylvia Meyer escolheu voltar-se para os estilos mais acadêmico enquanto surgiram novas tendências da arte moderna que se desprenderam da figuração, como o abstracionismo e o construtivismo. Com isso, Sylvia Meyer se mostrou uma artista relevante para seu tempo e para o atual, não só pela qualidade de suas obras, mas também por seu caráter independente. Ela tentou criar em seu estilo, algo único, inspirando-se em várias vertentes, mas também não se resumiu-se a elas. Sua trajetória mostrou que ela própria não tinha medo da renovação e se arriscou em tentativas. Sua viagem à Europa aos 41 anos é um exemplo disso, pois sem depender de nenhuma instituição, foi para Paris de forma autônoma e com seu próprio dinheiro. A viagem ainda teve um grande impacto em sua técnica e estilo, levando-a para o lado modernista. É importante também, ressaltar que Sylvia Meyer está dentro de um grupo grande de artistas mulheres que não foram valorizadas o suficiente durante a vida e/ou pela posterioridade. A revisão do campo artístico atualmente torna-se fundamental para desvendar o que está escondido, e com destaque para os séculos XIX e XX por serem um momento de abertura das escolas e academias resultando na profissionalização das mulheres nas artes. Porém, a maior abertura das escolas não foi suficiente para aliviar o patriarcado no campo, resultando no esquecimento de diversas artistas, assim como Meyer, que produziram constantemente por todo esse tempo, mas que não constam nos livros de História da Arte brasileira e que possuem uma bibliografia escassa, sendo esse um grande desafio para essa pesquisa. A pesquisa atual não se propõe, portanto, dar conta de todas 232 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 as particularidades da artista, mas abrir portas para novos estudos sobre Sylvia Meyer e sobre outras artistas mulheres de sua época. Além de, com esse novo empenho, ajude a encontrar outras obras de Sylvia Meyer que possam estar em acervos públicos e privados no Brasil e no estrangeiro. E que possa servir para repensar a exclusão das artistas na historiografia da arte, como o sistema artístico se deu e quais foram as escolhas feitas para que elas fossem esquecidas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Aracy A. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34, 1998. _____. Arte para quê? a preocupação social na arte brasileira, 1930- 1970: subsídio para uma história social da arte no brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1984. AUDIOVISUAL MULHERES Luminosas. Direção de Pedro Pontes. Rio de Janeiro: Multi Arte Brasil, 2012. 1 Vídeo (33 min.). 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Retrato de Maria. 1932. Óleo sobre tela, 101.00 cm x 82.00 cm. Museu Nacional de Belas Artes. 240 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 5: Sylvia MEYER. Morro Vivo. s/d. Óleo sobre tela, 151 x 120,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 241 REPRESENTAÇÃO SONORA NO INFERNO DE HIERONYMUS BOSCH: INSTRUMENTOS, TORTURA E NOTAÇÃO MUSICAL ORIGINAL DO TRÍPTICO JUÍZO FINAL DE VIENA Grasiela Prado Duarte de Oliveira74 - grasidoliveira@hotmail.com Resumo: O estudo analisa um escrito partiturado contido especificamente no Inferno (painel lateral) do tríptico Juízo Final (1500-1505) de Hieronymus Bosch (1450 - 1516), e os aparentes efeitos de tortura que o som das vozes e instrumentos musicais dos demônios, causam à alma condenada. A pesquisa foi atualizada à luz de novos dados, bem como a própria visibilidade do trecho a ser analisado. A imagem cedida para nosso estudo foi cortesia do Bosch Research and Conservation Project. Como forma de contextualização, ilustraremos o castigo musical da forma como era presenciada e compreendida no século XV. A decifração do excerto musical é segundo trechos visíveis, ou seja, parcial, e assim, transcrevemos de forma que pudesse ser lido e executado em instrumento moderno, nesse caso, ao piano. Observamos também os instrumentos musicais encontrados neste painel lateral, manipulados pelos demônios, compreendendo a possibilidade de tormento físico, em termos de acústica. Palavras-chave: Inferno; partitura; tortura musical; instrumentos; Hieronymus Bosch. Abstract: This study analyzes a music score hold at Inferno (side panel) of the Last Judgment triptych (1500-1505) painted by Hieronymus Bosch (1450 - 1516), and we will also observe the apparent torture effects that the sound of the demons’ voices and musical instruments cause to the damned soul. The research was updated in light of new data, as well as the visibility of the section we analyzed. The image provided for our 74 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “a representação da figura do Diabo no tríptico Juízo Final de Hieronymus Bosch”, orientada pela Profa. Dra Flavia Galli Tatsch, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento da CAPES. 242 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 study was courtesy of the Bosch Research and Conservation Project. As a form of contextualization, we will illustrate musical punishment as it was witnessed and understood in the 15th century. The deciphering of the musical excerpt is according to visible excerpts, that is, partial, and thus, we transcribed it in a way that it could be read and performed on a modern instrument, in this case, on the piano. We also observe the musical instruments found in this panel, manipulated by demons, understanding the possibility of physical torment, in terms of acoustics. Keywords: Hell; music score; musical torture; instruments; Hieronymus Bosch. Seu nome era Jeroen van Anthoniszoon Aken, porém utilizava o pseudônimo Hieronymus Bosch. Há dúvidas a respeito da data de seu nascimento, estima-se que seja em meados do século XV (1450). Hieronymus Bosch nascera na cidade de ‘s-Hertogenbosch, de onde emprestou seu nome, também conhecida por Bois-le-Duc, localizada no Brabante. Bosch nascera numa família de pintores, e em 1481, aproximadamente, já trabalhava como autônomo. Alguns anos depois o pintor ingressou em um grupo, no qual permaneceu até sua morte, chamado irmandade de Nossa Senhora, filiada à Catedral São João, em ‘s-Hertogenbosch. Hieronymus Bosch morrera em 1516, como fora encontrado nos registros da irmandade de Nossa Senhora. Os trabalhos de Bosch colocam-se no divisor de águas entre a mentalidade religiosa da Idade Média e o Humanismo do Renascimento. Suas tendências moralizantes derivam da tradição popular dos séculos XII a XIV, e são uma expressão de fé completamente condicionada pelo medo da danação, e traduzida pelas mentes férteis dos artistas, numa representação de contínua luta entre o homem e seu reflexo pecaminoso, que aparece trajado numa infinidade de formas: o diabo, monstros, seres fantásticos, meio-homem e meio-fera, entre outros.75 O repertório essencial das obras Hieronymus Bosch consiste nas figuras de Deus, Diabo, anjos, e os demônios do inferno, especialmente no to75 BENEZIT. Dictionary of Artists. Vol. 2. Paris: Gründ, 2006, p. 906. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 243 cante ao Juízo Final76. Não há equilíbrio entre luz e trevas, a escuridão predomina no Juízo Final de Viena (1500-1505), e é um exemplo da expressão moralista de Bosch, uma humanidade sem chance de redenção, pois não há salvação de seu ponto de vista, praticamente todos os julgados têm destino certo para o tormento eterno, mesmo no volante correspondente ao Paraíso, pois vemos anjos caindo para o abismo, tentação Adão e Eva, seguido do pecado original e expulsão do Éden. O Paraíso num retábulo do Juízo Final era mais comumente retratado pela ascensão dos escolhidos aos céus, como é observado em obras similares de alguns de seus conterrâneos, Weyden, Memling, van Eyck. Nossa atenção se volta diretamente ao Inferno, observado no volante direito do tríptico Juízo Final, e mais especificamente aos castigos infligidos pelos demônios aos pecadores. Dentre as punições e torturas ali vistas, exploraremos as de caráter musical, por assim dizer. Segundo Robert Quist, os Infernos musicais de Bosch levam alguns a inferir que o artista desdenha da música e dos instrumentos seculares. Bosch, contudo, revela um intenso interesse pelos efeitos do mal e, neste contexto, o imaginário musical assume contornos sinistros. De fato, as imagens musicais de Bosch simbolizam o mal potencial que reside na raça humana. Embora influências da vida real, como menestréis, possam ser vistas afetando essas imagens musicais, Bosch parece mais interessado nas forças demoníacas que desencadearam o processo degenerado. O uso de Bosch pela imagética musical fantástica se expressa mais abstrata, e desta forma, uma temática mais simbólica, do que realidade física.77 [FIGURA 1]. Não há como dizer se de fato todos aqueles demônios representados tocando instrumentos de sopro e cordas estão com intuitos musicais, homenageando a Lúcifer, que se encontra no mesmo plano, mas podemos supor que sons emanam destes instrumentos, assim como a voz de uma das almas condenadas, que é compelida ao ato musical, em que lê e entoa uma partitura indicada por um dos demônios ao seu lado. Young refere-se a esta cena como o Concerto Infernal, e cita 76 SILVER. Jheronymus Bosch and the Issue of Origins. Journal of Historians of Netherlandish Art. Vol. 1, Issue 1. 2009, p. 02. 77 QUIST, Robert. The Theme of Music in Northern Renaissance Banquet Scenes. 2004, p. 180. 244 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 o enredo musical do momento como uma referência aos pecados da alma ali castigada, e a presença do alaúde simbolicamente faz o papel de instigar a luxúria, já que a condenada une-se ao demônio simiesco, demonstrando irracional apego. Nota-se que o dito demônio possui um chapéu de vermelho usado por Cardeais, aferindo à desconfiança do artista para com membros clericais do período.78 Certamente que, estando no Inferno, a vítima não canta ao seu bel prazer, é um ato de punição, e mesmo, tortura. Young cita este caráter punitivo da cena, mencionando que, aparentemente, não apenas a obrigatoriedade de execução e o som desagradável que emana deste grupo musical são aspectos repugnantes, mas também a dissonância e incongruência harmônica da música são destrutivos para a alma. A performance da condenada e dos demônios intentam não apenas para o mero incômodo auditivo, mas relembram que, a música que lhe dava prazer na terra, lhe ferirá a alma como a uma lâmina.79 Dentro deste parâmetro da punição/tortura musical, há o painel do Inferno também de Hieronymus Bosch, no tríptico “Jardim das Delícias Terrenas”, em que todas as funções de tortura e punições infligidas aos pecadores são de caráter musical. Hipóteses sobre o uso de instrumentos musicais como objetos de tortura em obras de Bosch sugerem, por exemplo, que tal punição é apropriada e destinada aos menestréis viajantes por sua discordante musicalidade. Outros autores, como Young, examinam a cena como a representação da Luxúria, “música da carne”.80 Segundo Holsinger a questão da punição musical é matéria amplamente conhecida no cotidiano medieval, e complementa que Bosch sequer utilizou as possibilidades mais radicais e espectaculares que essa prática poderia ter oferecido a ele81. Ian Pittaway, um músico e musicólogo especialista em música antiga, escreveu a respeito das re78 YOUNG, Liza. The Rise of the Sentient Musical Instrument: A Study of Hieronymus Bosch’s Musical Instruments and their Dissonant Revolution. Senior Projects Spring 2011. 229. https:// digitalcommons.bard.edu/senproj_s2011/229 p. 50. 79 Idem, p. 33. 80 HOLSINGER, Bruce. Music, Body, and Desire in Medieval Culture: Hildegard of Bingen to Chaucer. Stanford University Press. 2001, p. 255. 81 Idem, p. 257. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 245 presentações musicais em obras de Bosch, e comenta que, para compreendermos a real mensagem de Bosch é preciso relembrar que ele estava profundamente empenhado nos aspectos doutrinários da arte em pintura, portanto, suas representações musicais com instrumentos e mesmo notação musical, estão a serviço desta prática.82 Quanto à funcionalidade punitiva da música no fim do século XV e começo do XVI, utilizada então por Bosch, citamos o estudo de Herzfeld-Schild, que aborda a questão penal musical como parte do sistema judicial do período, em algumas regiões dos Países Baixos. A autora aborda obras de dois artistas, Peter Brueghel (1525 - 1569) e Hieronymus Wierix (1553 - 1619), os quais ilustraram a questão da tortura musical da forma como era conhecida no período, em carater de exibição e humilhação pública. Os punidos eram colocados em espécies de pequenas jaulas no alto de pilares, conhecidas também como pelourinhos, postas à vista de todos em ruas, e tinham instrumentos musicais presos a suas mãos e/ou pescoço. Para citarmos mais um exemplo passível de tal punição, Fischer expõe que a ação poderia ser vista como analogia à quebra da harmonia e equilíbrio dos sistemas legais existentes83, como Young também menciona. No exemplo da imagem pintada por Brueghel, vemos um homem num desses pelourinhos, atado a um instrumento de cordas que aparenta ser uma espécie de violino do século XVI. [FIGURA 2]. Já na gravura de Wierix, o punido encontra-se no pelourinho, preso a um instrumento de sopro que é aparentemente uma charamela, predecessora do oboé. [FIGURA 3]. Seguindo a análise, observamos as funções musicais no painel da tortura através dos executores demoníacos, que, neste caso, tocam instrumentos musicais e cantam, contribuindo para o tormento da alma banida. Os instrumentos visíveis na cena são uma charamela, um alaúde, uma espécie de gaita de foles, que em realidade é o prolongamento 82 PITTAWAY, Ian. Performable Music in Medieval and Renaissance Art. Artigo disponível em: <https://earlymusicmuse.com/performable-music-in-medieval-and-renaissance-art/ > (site visitado em: 20/08/2021, 23h50.) 83 HERZFELD-SCHILD. ‘He plays on the pillory’. The Use of Musical Instruments for Punishment in the Middle Ages and the Early Modern Era. Artigo Científico em Torture, volume 23, 2, 2013, p. 16. apud H. Fisher, 1971. 246 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 do próprio corpo do demônio que o toca, uma lira, um tambor e um clarim. Como se pode ver na imagem, a charamela está sendo tocada pelo sopro do ânus de um dos demônios certamente não com intuito de melodia agradável. Durante o século XIV, as charamelas maiores adquiriram o nome de bombardas ou bumbardas, do latim, bombus, referindo-se à peido, e bombinare, para ruído ou zumbido. Para a língua inglesa, bum note, por exemplo, é uma nota do traseiro, nota errada, que não deveria estar ali; nota tão musical quanto a um peido, segundo Pittaway. O flatus do latim, de onde deriva a palavra flatulência, era usado regularmente em tratados musicais como um termo para o ar soprado em um instrumento de sopro, palavra agora usada exclusivamente para gases intestinais. A fístula latina, que significa um tubo ou flauta, também é uma abertura anormal que conecta dois ou mais espaços ou órgãos do corpo. Uma fístula anal, por exemplo, é um canal que se desenvolve entre o final do intestino e a pele perto do ânus, onde ocorre a evacuação.84 A associação entre a música da boca e os sons da anal é ainda demonstrada pelos diabos do Inferno do século XIV de Dante Alighieri, que fazem del cul fatto trombetta, fazem “trombetas de suas bundas” , traduzido para o português na obra: “como a uma tuba, à roda, sopros dando”.85 Atentaremo-nos aqui aos instrumentos tocados próximos à mulher, caracterizando tortura, e consideraremos a execução da partitura, cantada pela alma condenada e por um dos demônios, como parte desse processo. Neste ínterim podemos agregar a charamela, a gaita de foles e as vozes dos demônios, que se encontram diretamente conectados à sentenciada, porém o alaúde não está sendo tocado naquele momento. Segundo Grout e Palisca, quanto aos instrumentos utilizados no medievo, a gaita de foles era o instrumento popular universal86, a charamela, com seu som dito “rude”, agudo e penetrante87, segue para o contexto 84 PITAWAY, Ian. A brief history of farting in Early Music and Literature. https://earlymusicmuse.com/a-brief-history-of-farting/ (visitado em: 29/08/2021, 22h30). 85 ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. 2006, Canto XXI, verso139; p. 233. 86 GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007. p. 92. 87 SUMMERS; O’ROURKE-JONES. Music: The definitive visual history. New York: 1st American Ed. 2013, p. 34. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 247 mais popularesco também. O alaúde, conhecido desde o século IX, foi trazido à Península Ibérica pelos conquistadores árabes, mas só se espalhou pelo restante da Europa pouco antes do Renascimento88. Considerando o caráter intenso dos sons da gaita e da charamela, e a posição em que observamos que a segunda se encontra no painel do Inferno de Bosch, direcionada bastante próxima ao ouvido da cantora, conclui-se que sua função de tormento está em progresso, visto que será um som persistentemente eterno. Abriremos um parêntese para abordarmos sucintamente a questão do incômodo físico causado pelos sons dos instrumentos e vozes. Podemos estimar o sofrimento de acordo com dados e elementos acústicos básicos. Segundo os estudos em saúde auditiva de órgãos profissionais, como o dangerousdecibels.org, existem padrões e tabelas com o tempo máximo recomendado de exposição a determinados sons com decibéis elevados. Por exemplo, não se recomenda a audição contínua de sons de 115 decibéis por mais de 30 segundos, pois a prática pode vir a prejudicar permanentemente o sistema auditivo, além de ser doloroso em certo ponto.89 Partindo destes elementos, podemos nos aproximar da provação à que esta alma está exposta. A gaita de fole pode chegar a 120 decibéis num pico de sonoridade90 (forte), o vocalista pode chegar a 94 decibéis91, não considerando gritos, e quanto à charamela, sendo precursora do oboé, utilizaremos a medição deste último, que seria de até 116 decibéis92. Considerando que uma britadeira chega a 120 decibéis, podemos associar o nível de ruído a que padece esta alma. Se calcularmos que, cerca de 3 decibéis são acrescentados a cada soma de instrumento (pois não se somam os decibéis individuais completos dos instrumentos quando em conjunto), como vemos num estudo de 2011, Music, noise 88 GROUT; PALISCA. 2007, p. 92. 89 <http://dangerousdecibels.org/education/information-center/decibel-exposure-time-guide- lines/> (site visitado em: 22/07/2021, 01h12) 90 <https://bagpipe.news/2019/05/24/we-dont-realise-how-important-our-hearing-is-until-we-start-to-lose-it/> (site visitado em: 23/07/2021, 23h13). 91 <https://gracenotepiano.com/blog/> (site visitado em: 23/07/2021, 23h24). 92 Idem 248 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 and Hearing,93 podemos ter cerca de 130 decibéis, apenas com sons de instrumentos e vozes próximas. Lembrando, novamente, que são sons, ou barulho, eternos, tornando o dano constante. Leva-se em conta ainda, que, estes instrumentos, próximos à cantora estejam, de certa forma, atrapalhando sua leitura e execução musical, o que causaria outro tipo de tormento também. 1. PARTITURA Nossa primeira análise da partitura se realizou com base no tríptico do Juízo Final, porém, até aquele momento não dispúnhamos de imagem com definição suficiente deste recorte do painel do Inferno, para visualizarmos e lermos os caracteres e notação musical. Desta forma, havíamos feito a análise com base na cópia do tríptico, pintada por Lucas Cranach, pois neste era visível e legível o excerto. Agora que dispomos de uma imagem bem definida do livro partiturado no tríptico original de Bosch, podemos completar com maior perícia a análise do painel do Inferno de Bosch. A imagem foi cortesia do Bosch Research and Conservation Project, que atualmente trabalha com a conservação e restauro de obras de Bosch, incluindo o Juízo Final de Viena. [FIGURA 4]. Ian Pittaway cita todas as notações encontradas nas pinturas de Bosch em seus estudos e as define como faux music, Strichnotation94, música falsa, notação de traço, simbólica. O autor critica avidamente qualquer tentativa de decodificação da escrita musical, inclusive do trecho do Inferno do Juízo Final de Viena, pois, para ele, a intenção musical, assim como em outras ocasiões representativas, é simbólica, alegórica: Ideologicamente, quando Bosch avisa seus espectadores sobre o pecado da luxúria, ele não pinta casais copulando, mas morangos simbólicos, cerejas e mãos colocadas sugestivamente 93 Music, Noise and Hearing: How To Play Your Part. A Guide For Musicians. BBC 2011. <http://downloads.bbc.co.uk/safety/documents/safety-guides/audio-and-music/Safety-Musician_noise_guide_Part_I.pdf> (23/07/2021; 22h37). 94 PITTAWAY, Ian. Jheronimus Bosch and the music of hell: The Garden of Earthly Delights <https://earlymusicmuse.com/bosch2/ > (site visitado em: 17/08/2021, 01h15). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 249 na coxa e no abdômen, para não incitar seus espectadores aos pecados sobre os quais ele adverte. Da mesma forma, é uma contradição impossível sugerir que Bosch pintaria pecadores musicais e então convidasse seus espectadores a cometer o mesmo pecado de que ele está alertando, pondo em perigo suas próprias almas ao pintar a música que levou esses pecadores para o Inferno. (PITTAWAY, 2021) 95 Ainda assim, tratamos o excerto musical inscrito no livro aos pés do Concerto Infernal como notação legível e decifrável, com base nos elementos visíveis na partitura. Trata-se de um excerto musical cujas pautas compõem pentagramas, de acordo com nossa forma de organização. A notação musical na pauta com cinco linhas já havia se estabelecido até o século XV, assim, vê-se a clave de Do na 5ª linha. Foi feita uma transcrição nos moldes de notação moderna para podermos visualizar mais facilmente o contorno melódico composto. Desta forma observamos determinadas passagens e intervalos96 relevantes para a análise. [FIGURA 5]. Na sequência de notas que foram transcritas, as passagens entre a décima terceira para a décima quarta, e da décima sexta para a décima sétima, há o intervalo conhecido como trítono, três tons inteiros, que neste trecho está escrito de forma melódica, ou seja, consecutivamente. E ao longo do excerto observamos o uso de intervalos diversos em saltos amplos, não comuns em composições vocais do período, menos ainda em cânticos litúrgicos, uma vez que, a maior parte das composições documentadas do medievo refere-se à música de caráter sacro, como o cantochão, por exemplo, e este era composto por passagens melismáticas, ou seja, graus conjuntos, sem maiores saltos em seus intervalos.97 O próprio suporte em que vemos a escrita musical nos remete a livros como códex litúrgicos e livros de serviço, que colocado na cena se diverge aos instrumentos seculares ali contidos, misturando componentes de ritos eclesiásticos com práticas mundanas, o que provavel95 PITTAWAY, Ian. Jheronimus Bosch and the music of hell: The Garden of Earthly Delights <https://earlymusicmuse.com/bosch2/ > (site visitado em: 17/08/2021, 01h15). (Tradução nossa) 96 Intervalo: espaço entre duas notas. 97 GROUT; PALISCA. 2007, p. 63. 250 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mente busca o choque desses elementos em desarmonia, resultando em vários conjuntos caóticos que compõem a anarquia Infernal. Desta forma, o visual do Concerto Infernal e as dissonâncias partituradas remetem à confusão, desordem, atribulação, contrariedade, visto que no período os intervalos eram de difícil execução para vozes, soando discrepantes harmonicamente. A imagem da pintura, mesmo com aproximação cuidadosa, não permite que enxerguemos todos os detalhes da partitura, desta forma nossa análise foi basicamente uma transcrição dos elementos visíveis em suas respectivas linhas. Relembrando a questão dos instrumentos, no plano central do painel, uma criatura sopra com seu traseiro um instrumento citado anteriormente como um clarim, ou trombeta, que tinha finalidade solene, usado apenas para a nobreza98, o que podemos relacionar ao anúncio e aparição do próprio Diabo surgindo de uma pequena construção no plano inferior do painel. Há uma inversão de papéis dos elementos litúrgicos nesta representação, que pode ser interpretada como a própria quebra da harmonia e da ordem civil e religiosa consumada com o visual infernal deste painel. Palisca cita que, considerando-se que a região onde hoje se encontra a Bélgica e o extremo noroeste da França, eram morada da maioria dos grandes compositores nortenhos de finais do século XV99, estima-se que houve o contato de artistas de outras guildas, como o próprio Bosch e Cranach, (autor da cópia do Juízo Final) com obras destes músicos e mesmo com obras mais antigas. O que poderia explicar elementos musicais presentes nas obras destes artistas, mas sem explicar qualquer questão do porquê da utilização de tão duras penas de caráter musical nas obras de Bosch. O que se sabe é que a Irmandade, como organização, não tinha proibição de música, pois não só participava do canto eclesiástico como tinha entretenimento musical em seu banquete anual músicos compositores contemporâneos de Bosch, dentre os quais estavam Nycasius de 98 Idem, p. 50. 99 Ibidem, p. 92. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 251 Clibano (? –1497), cujas obras sobreviventes creditadas são religiosas; seu filho, Jheronimus de Clibano (c. 1459-1503), cujas três prováveis obras que chegaram a nós são sacras; e Matthaeus Pipelare (c. 1450-c. 1515), que escreveu missas, motetos e canções seculares vernáculas, e cujo sobrenome sugere que ele ou seu pai eram flautistas.100 Para Pittaway, a notação gregoriana, conhecida por Bosch era a música escrita para o culto eclesiástico, composta para voz e órgão apenas, exercendo o louvor fiel e sóbrio a Deus. A Strichnotation, que ele pintou, segundo Pittaway, como uma tolice deliberada, era a notação musical do mundo secular, para a voz e com instrumentos pecaminosos, para exaltação desleal da maldade sensual. O autor conclui dizendo que, para Bosch, e para todos aqueles que pensavam como ele, Strichnotation e o que eles percebiam como instrumentos musicais seculares eram uma só peça: convites para focalizar a mente em coisas profanas, razões para inflamar os sentidos com paixões profanas, levando inevitavelmente às punições do inferno.101 Consideramos plausível a hipótese da faux music, porém, ainda assim nos colocamos na posição de espectador curioso, que viu os dados impressos nesta pequena miniatura num emaranhado Infernal, e se pôs a descrevê-lo. Os neumas, ou seja, notação antiga, estavam lá, uma pequena clave de Do, ainda que apenas no início da partitura, também é vista. Desta forma, se deu a transcrição e a execução melódica, com instrumento moderno, mas com som do Inferno Boschiano. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. 2006. BENEZIT, E. Dictionary of Artists. Vol. 2. Paris: Gründ, 2006. BOSCH, Grandes Mestres – Bosch. 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Figura 3 (Direita): Wierix, em torno de 1569 – detalhe de gravura. The Metropolitan Museum of Art. Imagem do artigo de Marie-Louise Herzfeld-Schild. 256 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4: Hieronymus Bosch (c. 1450 - 1516), O Juízo Final (c. 1500 - 1505). Òleo sobre madeira. Detalhe do painel direito, Inferno. Imagem concedida por cortesia do Bosch Research and Conservation Project: <http://boschproject.org/old_index.html#> Figura 5 (Esquerda): Transcrição das notas legíveis da partitura, em clave de Do, 5ª linha. Figura 6 (Direita): Transcrição da partitura em notação moderna, em clave de Sol. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 257 EROS E MORTE: A LINGUAGEM DO CORPO NO CURTA YÛKOKU DE YUKIO MISHIMA Helena Ariano102 - helena.ariano.92@hotmail.com Resumo: O presente ensaio, que refere-se à comunicação apresentada no EPHA, consiste em algumas considerações sobre a análise do curta Yûkoku - Ritos de Amor e Morte, do escritor Yukio Mishima, de 1965, que é minha pesquisa de mestrado em andamento. Yukio Mishima (1925-1970) iniciou sua carreira literária ainda na adolescência, sendo um dos mais importantes e polêmicos escritores japoneses do século XX. Alguns de seus aspectos mais significativos são o patriotismo, o erotismo e a morte, profundamente relacionados entre si e presentes no conto Patriotismo, de 1960, que deu origem ao curta. Nesta produção audiovisual, Mishima insere elementos japoneses e ocidentais, trazendo à tona certos aspectos essenciais de seu pensamento, tanto estéticos quanto ideológicos. Palavras-chave: Yukio Mishima; Japão pós-guerra; literatura japonesa moderna; cinema japonês Abstract: The following essay, which refers to the lecture conducted during the EPHA, consists of a few considerations on the analysis of Yûkoku - Patriotism or the Rite of Love and Death, a 1965 short film by author Yukio Mishima, which is my ongoing master’s research. Yukio Mishima (1925-1970) began his literary career in his teenage years, and is considered one of the most important and controversial Japanese writers of the 20th century. Among his most significant characteristics are patriotism, erotism and death, all profoundly interconnected and present in Patriotism (1960), the short story which originated the film. In this audiovisual production, Mishima inserts Japanese and Occidental elements, discussing certain essential aspects of his thinking, both aesthetic and ideological. 102 Este ensaio faz parte de minha pesquisa de mestrado em andamento em História da Arte na Unifesp, orientada pelo Prof. Dr. Jens Michael Baumgarten e co-orientada pela Profª. Drª. Michiko Okano Ishiki. 258 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Keywords: Yukio Mishima; post-war Japan; modern japanese literature; japanese cinema. 1. INTRODUÇÃO: Há três eixos principais que norteiam o presente trabalho: o corpo na modernidade, o corpo como existência política e o corpo como identidade. A modernidade, de forma geral, trouxe, junto a diversas mudanças de pensamento, valores e política, intensos questionamentos acerca da identidade humana. Tais questionamentos manifestam-se também na percepção e na representação do corpo, que muitas vezes na arte moderna é mostrado fragmentado, destruído, decomposto, e essa fragmentação, essa estética da destruição é fortemente percebida em Yukio Mishima e suas produções literárias e artísticas em geral103. Embora Mishima se encontre no contexto da modernidade, sendo atravessado fortemente por pensamentos ocidentais, é necessário fazer algumas considerações sobre o histórico japonês sobre o corpo, tendo-se em vista tratar-se esta de uma pesquisa distante histórica e geograficamente do contexto do Japão pós-guerra. Muitos pensamentos da tradição japonesa provém primariamente da medicina chinesa e do budismo Mahayana, inclusive conceituações sobre o corpo. O ser humano, nessa tradição, é visto como integrado ao todo e em relação não apenas com a natureza, mas também com a sociedade e a política, e o processo e a transformação são elementos constantes, não havendo nada que seja fixo ou constante. A própria representação do corpo nas artes japonesas antes dos primeiros contatos ocidentais104 contava com a figura humana sempre harmonizada ao ambiente, com todos os elementos possuindo a mesma importância e peso visual. Com a interação e a inserção da arte ocidental, novos estudos visuais passaram a ser realizados no Japão, contando inclusive com o uso da perspectiva e muitas vezes a centralização da figura humana. 103 Como será visto adiante, Mishima não apenas atuou na área de literatura, mas também no teatro, no cinema, na fotografia como modelo, e nas artes marciais. 104 Os portugueses chegaram no país no século XVI, havendo intensas trocas culturais. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 259 É inegável também que a coletividade sempre foi - e ainda na contemporaneidade é - um aspecto essencial do pensamento e vivência japoneses. Um termo que se relaciona com essa noção de coletivo é o kokutai, que pode ser traduzido como “essência nacional” ou “corpo nacional”, e se refere à posição e importância do corpo do indivíduo japonês em relação à sacralidade do Imperador e à lealdade e valorização da nação. Provindo da ideologia Yamato105, a importância do kokutai também estava intimamente ligada ao corpo político e místico do próprio Imperador, símbolo das virtudes morais do Japão. A lealdade à nação japonesa e um consequente controle dos corpos dos cidadãos passa a ser aplicada de forma intensa entre os anos 1930 e 1940. A importância do corpo é vista no seguinte contexto: um corpo saudável era considerado como o ideal para servir ao país, e portanto era um corpo patriota106. Havia no período da guerra programas governamentais para detectar possíveis enfermidades físicas ou mentais da população, e os corpos não saudáveis eram considerados anti-patriotas, marginalizados e muitas vezes violentados. Há uma significativa mudança na percepção do corpo e da política após a derrota do Japão, como veremos a seguir, e essa nova perspectiva afeta Mishima de maneira significativa. 2. DERROTA NA 2ª GUERRA E IMPLICAÇÕES: O período do pós-guerra trouxe importantes implicações políticas e sociais, não apenas nos corpos dos sujeitos anônimos, mas mesmo no corpo do Imperador. Em relação aos corpos dos cidadãos, houve uma espécie de “senso de libertação” após a derrota por conta da perda do controle do Estado japonês sobre esses corpos: não mais sob regulação política, os sujeitos muitas vezes passaram a se entregar a prazeres físicos como sexo e a comida - embora esta fosse escassa. No entanto, se por um lado havia a libertação do controle do Estado japonês, por outros esses corpos passaram a ser controlados por um novo poder: os EUA, durante a ocupação americana no país, que, com a justificativa 105 A ideologia do corpo nacional durou do ano 300 até o ano 1945, passando por períodos de menor ou maior resgate, dependendo do cenário político. 106 Interessante destacar que Mishima estabelecia uma íntima relação entre a saúde, a adequação do corpo e a devoção à nação e ao Imperador. 260 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 da produção de “corpos democráticos”, muitas vezes violentavam os cidadãos japoneses com intervenções sanitárias forçadas. Nesse contexto, também o corpo de Hirohito, o Imperador 107 Showa , passou por grandes mudanças. Havia uma importância, inclusive mítica, da figura do governante no Japão, percebido como um representante divino de toda a nação. Com a derrota do país, Hirohito foi humanizado: sua voz foi ouvida na rádio pela primeira vez, seu corpo visto em meio às ruínas pela população, sua figura posta lado a lado à do general Douglas MacArthur, se estabelecendo simbolicamente uma relação de poder. Houve inclusive uma sexualização metafórica entre ambos: o militar americano posto como viril e forte e Hirohito como uma figura feminina e frágil. Durante as décadas de 1950 e 1960, o Japão passou por um intenso crescimento econômico, em grande parte proporcionado pela ocupação pelos EUA no país. Nesse período, aspectos do modo de vida americano foram incorporados no cotidiano dos japoneses, como o consumo de eletrodomésticos, mudanças nas moradias e paisagens urbanas e incorporação massiva de vestimentas ocidentais108. Esse cenário propiciou uma brusca transformação nas condições do Japão: antes uma nação guerreira, o país tornara-se forçadamente pacífico. Não mais sob a tensão da guerra, os cidadãos vivenciavam a vida cotidiana. Juntamente com esse fator, ainda havia o fato de que a figura do tenno109 havia sofrido uma significativa mudança, perdendo grande parte de sua aura divina, ao mesmo tempo em que se isentava da responsabilidade política da guerra. O suposto processo de efeminação do homem japonês moderno e o pacifismo do pós-guerra foram dois aspectos severamente criticados por Mishima, que durante boa parte de sua vida buscou um retorno a um Japão tradicional, com um passado guerreiro e varonil110, e o retorno da importância da figura imperial, deixando claro seu forte patriotismo. O escritor perseguiu intensamente, também, a paixão e a tragédia, que só 107 A Era Showa durou de 1926 a 1989. 108 Este último acontecimento já se dava desde o Período Meiji (1868-1912), tendo aumentado durante a ocupação e democratização forçada. 109 Imperador, instituição imperial. 110 Interessante ter-se em mente que a visão do Japão tradicional por Mishima era idealizada. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 261 seriam possíveis em tempos de guerra, mesclando à sua ideologia aspectos tradicionais japoneses, fortes influências ocidentais, a linguagem da carne e o êxtase da morte. 3. YUKIO MISHIMA: PENSAMENTOS GERAIS Yukio Mishima, pseudônimo de Kimitake Hiraoka, foi um importante e polêmico escritor japonês nascido em 1925, tendo portanto vivenciado parte de sua juventude no período da guerra. Descendente de uma família de samurais por parte de sua avó paterna, Natsuko, que era profundamente ligada à tradição, ele apresentou uma saúde frágil durante a infância e adolescência, agravada por seu convívio excessivo com sua avó111. Esses fatos, trazidos brevemente, podem auxiliar a explicar a posterior intensidade de Mishima na busca por um corpo ideal, pela ação e pelo retorno a um Japão tradicional e guerreiro que o acompanhariam durante toda sua vida e obra. Mônica Setuyo Okamoto e Pedro Tinen, no artigo “Patriotismo, de Yukio Mishima: persona, autor e ator no cinema”, assinalam que as três bases presentes no escritor são o patriotismo (manifestado através da sacralidade do imperador112), o erotismo e a violência (que culminaria no ápice da morte). Esses elementos, somados à sua crítica ao Japão moderno, ao pacifismo de seu tempo e às ações de Hirohito, compõem o cerne de sua busca ideológica e estética, que ampliaria posteriormente sua atuação artística para diversas áreas além da literatura, dentre elas fotografia (como modelo), teatro e cinema. Mishima, após ter realizado diversos ensaios artísticos de sua própria morte, comete seppuku, o suicídio samurai por enventramento, em 25 de novembro de 1970, após um motim organizado juntamente com um grupo paramilitar, o Tatenokai (Sociedade do Escudo), com o objetivo de reconstruir a imagem e a importância imperial. 111 Natsuko, adoentada e controladora, tomou o neto para si quando ele tinha poucos dias de vida. O menino viveu durante muitos anos sob a atmosfera mórbida proporcionada pelo convívio excessivo, sendo privado, inclusive, de muitas brincadeiras ao ar livre e mais intensa fisicamente. 112 Cabe dizer que Mishima refere-se à instituição imperial e sua simbologia, não à figura pessoal de Hirohito. 262 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Para melhor compreender essas questões, cabem algumas considerações sobre a forma como Mishima enxergava sua própria vida, além de obras e influências filosóficas que lhe eram caras. No catálogo da Exposição Yukio Mishima, organizada pela loja de departamentos Tôbu em novembro de 1970, o próprio escritor se introduz dividindo sua vida em Quatro Rios: Rio do Livro, Rio do Teatro, Rio do Corpo e Rio da Ação. Nos dois primeiros, Mishima assinala a importância da literatura e do teatro para ele, destacando também a angústia e amargura acumulados nesses dois aspectos de sua vida. Já os dois últimos rios adquirem um caráter totalmente novo e vital para ele: insatisfeito com o universo limitado das palavras, ele transformaria seu próprio corpo em obra, a beleza “visível aos olhos” (MISHIMA apud KUSANO). O Rio do Corpo, a seu ver, o guiaria direto ao Rio da Ação, exclusivamente masculino, no qual há “lágrimas, suor e sangue”, movimento vital, intenso e apaixonado que resultaria no êxtase final da morte. Sua atração pela linguagem da carne, ou verdade do corpo, e a ligação entre o erotismo, a morte e o patriotismo, mostra-se em diversas obras suas, inclusive no curta Yûkoku - Ritos de Amor e Morte, objeto deste estudo. No entanto, antes de adentrarmos na breve análise dessa produção, cabe mencionar três importantes obras suas: Sol e Aço de 1968; O Hagakure: a ética dos samurais e o Japão moderno, de 1967 e o conto Patriotismo, de 1960, cujo enredo deu origem ao curta. Em Sol e Aço, que ele chama de “confidência crítica”, Mishima traça algumas reflexões sobre como as palavras corromperam a linguagem da carne, e narra seu processo em busca da verdade do corpo através do treinamento físico intenso, da construção dos músculos. Dentro desse processo está sua busca pela tragédia, que ele associa a um tipo físico ideal (viril) e ao coletivo, mostrando a importância do pertencimento a um grupo113. O sofrimento físico e o combate são vistos como qualidades do guerreiro, essas abordadas em seu O Hagakure. Nessa obra, que consiste na análise dos preceitos de Jôchô Yamamoto114, Mishima procura fazer um resgate das qualidades essenciais de um samurai aplicadas ao homem japonês moderno. O resgate, portanto, de um modelo masculi113 Depreende-se daí a importância do Tatenokai para ele. 114 Nome monástico de Tsunetomo Yamamoto, samurai que viveu de 1659 a 1719. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 263 no ideal é fortemente presente no pensamento do escritor, e um aspecto interessante dessa busca por um Japão masculinizado e guerreiro é perpassado também por pensamentos ocidentais, como o conceito de niilismo ativo de Nietzsche115 e sua força de destruição e o apreço pelo corpo belo e jovem encontrado nas esculturas gregas116. Esses aspectos mesclam-se no conto Patriotismo, de 1960, que posteriormente daria origem ao curta Yûkoku - Ritos de Amor e Morte. O conto é baseado no Incidente de 26 de Fevereiro de 1936117 e é considerado pelo próprio Mishima uma obra chave de sua produção, concentrando diversos elementos de seu pensamento, como a devoção ao imperador, o erotismo e a morte. O enredo consiste no suicídio duplo amoroso e patriota do tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko: o tenente teria que combater seus companheiros, que haviam realizado um motim, e, encontrando-se em conflito por conta de sua lealdade aos colegas e ao Exército Imperial, decide cometer seppuku, seguido pelo suicídio de sua leal esposa. A partir dessa premissa, o conto traça os momentos finais do casal, entregues ao prazer erótico antes de encontrarem a própria morte. 4. YÛKOKU: PATRIOTISMO, EROTISMO E MORTE O curta foi produzido e lançado em 1965, fruto de um intenso trabalho em equipe que durou três dias. Mishima assume nessa obra múltiplos papéis: roteirista, produtor, diretor, e, principalmente, ator principal. No papel do protagonista Shinji Takeyama, o escritor, já há cerca de dez anos praticando artes marciais e musculação, coloca seu corpo em evidência, seu físico poderoso e em porte da tão desejada virilidade em contraste com o delicado corpo de Yoshiko Tsuruoka, a atriz 115 Nietzsche destaca dois tipos de niilismo: o passivo, que seria a não ação, e o ativo, que traria a ação e a força destrutiva. Tais definições são aqui simplificadas e resumidas só para uma compreensão geral. 116 Mishima realizou em 1952 uma viagem à Grécia que auxiliou a construir sua visão de corpo ideal. 117 Jovens membros do Exército Imperial realizaram um motim em nome do Imperador com o intuito de combater os oficiais que viam como corruptos. Tal acontecimento fez parte de uma série de levantes dos anos 30 causados pelo faccionalismo no ambiente militar, e Mishima enxergou esse ato como honroso. 264 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 que representa o papel de Reiko. Assim como no conto, a ritualidade, o preparo meticuloso para a morte, os êxtases sexuais do casal e a potente e gráfica morte do tenente (fig. 4) são mostrados com maestria no curta, e Mishima utiliza recursos estéticos bastante significativos. O filme passa-se em preto e branco, utilizando forte contraste de luz e sombra e trazendo bastante expressividade. Também é um filme mudo, havendo apenas legendas colocadas estilisticamente em um kakejiku (pergaminho japonês). Aliado a isso, Mishima escolheu um palco de teatro nô para as filmagens, aplicando elementos dessa arte à obra, como a importância da gestualidade e o fantásmico. Visto que o filme não possui falas, o gesto e o corpo são essenciais para a narrativa e representação dos pensamentos, intenções e emoções, e em relação ao fantásmico, é importante ter em mente que o casal, no curso da narrativa, já encontra-se morto, e o que é mostrado são as reminiscências do que já ocorreu. Esse recurso de narrar um passado que não mais existe, com personagens que não pertencem ao mundo dos vivos é algo extremamente presente no nô. Além destes, outros aspectos do nô também se encontram presentes. Um exemplo é a estrutura chamada “tábua do espelho” em que se encontra o yogo, pinheiro sagrado, no fundo do palco, substituído pelos dizeres shisei, “sinceridade máxima” (fig. 3), denotando simbolicamente a lealdade do casal ao imperador.. Outro exemplo significativo é a Sala do Espelho (Kagami no Ma), local onde o ator de nô coloca a máscara e se transforma no personagem, sendo no curta destinado a Reiko, após a morte do tenente, se maquiar, construindo uma espécie de máscara mortuária para si. Outro uso simbólico da máscara é o quepe do tenente (fig. 1), mostrando a transformação de Mishima no personagem e trazendo a perda de uma individualidade por conta do foco ao pertencimento de um grupo (o Exército), representado também pelo uso do uniforme. Um outro elemento estético bastante importante é a trilha sonora. A música utilizada para acompanhar a trajetória do casal foi um trecho da ópera Tristão e Isolda (1859) de Richard Wagner. A utilização de Wagner interliga-se com a importância da tragédia no pensamento de Mishima, que em Sol e Aço a relaciona à “sensibilidade comum” e à “força física certa”, demonstrando a relação que fazia entre a adeANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 265 quação do corpo para o acontecimento trágico. Além disso, Wagner foi um importante objeto de estudo de Nietzsche em seu O Nascimento da Tragédia, que influenciou Mishima profundamente na formação de seus conceitos de corpo e de trágico. No que diz respeito em especial à ópera escolhida (Tristão e Isolda), é observada a importância da morte, em especial a morte amorosa transcendental, que no curta é posta nas figuras do tenente e de Reiko. As imagens a seguir possibilitam uma breve análise dos elementos principais presentes no curta e seus possíveis significados. As considerações sobre elas encontram-se nas próprias legendas: Fig. 1: A partir do gesto, o tenente demonstra para Reiko e para o público como pretende cometer seu seppuku. Na cena seguinte, Reiko utiliza-se do gesto para também mostrar como cometerá seu jigai (suicídio feminino). Fig. 2: A cena do êxtase sexual do casal é narrada através do uso da sombra e da sugestão imagética. A sequência é bastante delicada e sutil, trazendo metáforas visuais. Fig. 3: Os dizeres “Sinceridade Máxima” estão presentes na cena anterior e posterior ao ato sexual, mostrando a sujeição do casal à ideologia patriota. Além disso, a espada do tenente e a adaga de Reiko se encontram na cabeceira da cama, mostrando o vislumbre da morte e como esta e o erotismo coexistem. Fig. 4: A morte do tenente. Com um tom distinto da sutileza anterior, o acontecimento é mostrado de forma gráfica e crua, com os órgãos internos se espalhando pelas coxas de Takeyama. Toda a dor é representada de maneira intensa tendo Reiko como testemunha. Ao fim da ação, Reiko levanta-se e vai se preparar para sua própria morte. Fig. 5: Reiko maquia-se na Sala do Espelho. Após a intensidade da morte do tenente, que é acompanhada pelas lágrimas de Reiko, a mulher recompõe-se e através da maquiagem transforma seu rosto em sua máscara mortuária rumo ao seu destino trágico. Reiko, assim como o 266 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tenente, também é uma heroína, mostrando a complexidade das personagens femininas de Mishima. Fig. 6: A cena final. Após Reiko cometer o jigai, seu corpo tomba em cima do cadáver de seu amado, e ambos são mostrados em cima de um jardim zen japonês. Uma leitura possível da simbologia do jardim zen é a relação à transcendência da morte, visto que para Mishima o jardim representa a “imortalidade da própria morte”118. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Embora a presente pesquisa ainda se encontre em andamento, é possível perceber que no curta mesclam-se elementos japoneses e ocidentais, algo que se enxerga no próprio Mishima, mostrando a complexidade de seu pensamento. O uso da trilha sonora feita por Wagner, além de estar diretamente relacionada à questão da morte e da tragédia, destaca a importância da modernidade ocidental na construção identitária e estética de Mishima, que vivenciava um Japão híbrido, composto de múltiplos elementos. Ao mesmo tempo, a busca por uma identidade japonesa o faz recorrer ao teatro nô, que para o escritor é um dos maiores símbolos do Japão tradicional, que impede a “intromissão do homem contemporâneo” (MISHIMA apud STOKES). Além disso, a junção entre o corpo, o erotismo, a morte e sua profunda ligação com a devoção imperial e, consequentemente o patriotismo, são elementos centrais no curta, sendo essenciais para Mishima. O escritor buscou essa morte trágica e nacionalista em sua vida pessoal ao cometer seppuku da mesma forma que seu protagonista o comete, o que torna essa obra uma espécie de ensaio de morte. O curta, portanto, consiste em uma síntese conceitual e estética do pensamento de Mishima, sendo uma importante fonte para compreender seus elementos mais essenciais. 118 MISIMA apud KUSANO (2005). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 267 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: GREINER, Christine. Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. São Paulo: N-1 Edições, 2015. IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945-1970). Tradução de Marco Souza e Marcela Canizo. São Paulo: Annablume Editora, 2011. KUSANO, Darci. 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Nova York: Cooper Square Press, 2000. 268 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 TIEMPO DE MIRAR: IMAGEM, CORPO E EXPOSIÇÃO Helena Wilhelm Eilers – helenaweilers@gmail.com Resumo: Esta comunicação tem como objeto apresentar a exposição Tiempo de Mirar, do artista uruguaio Joaquín Torres García e, por meio dela discutir a ideia de “sobrevivência da imagem”, proposta pelo teórico alemão Hans Belting, no livro Antropologia da Imagem (2014). Realizada em 2018, a mostra exibiu, através de diferentes técnicas, as obras de Torres Garcia queimadas no incêndio do Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro, trazendo-as novamente à vida depois de 41 anos. As questões aqui levantadas surgem a partir da pesquisa que está sendo desenvolvida na minha tese de doutorado, na qual eu investigo de que maneira obras de arte destruídas materialmente podem sobreviver. Por ser um trabalho em andamento, mais do que trazer pontos demasiadamente fechados, quero também levantar algumas inquietações. Palavras-chave: Imagem; Corpo; Sobrevivência; Hans Belting; Torres García. Abstract: This paper presents the exhibition Tiempo de Mirar, by Uruguayan artist Joaquín Torres García and, through it, discuss the idea of “image survival”, proposed by the German theorist Hans Belting, in the book An anthropology of images: picture, medium, body. Held in 2018, the show exhibited, through different techniques, the works of Torres García burned in the fire at the Museums of Modern Art in Rio de Janeiro, bringing them back to life after 41 years. The questions raised here arise from the research being carried out in my doctoral thesis, in which I investigate how materially destroyed works of art can survive. As it is a research in progress, more than bringing closed ideas, I also want to raise some concerns. Abstract: Image; Body; Survival; Hans Belting; Torres García. Realizada em 2018, no Museu Torres García (MTG), em Montevidéu, a mostra Tiempo de Mirar reuniu 71 obras do artista uruguaio Joaquín Tores García (1874) , dentre elas, quadros construtivistas, mu272 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 rais e juquetes120. Diferente, entretanto, de outras exibições do artista, essa trazia uma peculiaridade: os trabalhos ali apresentados eram referentes exclusivamente às obras que foram destruídas 40 anos antes, no incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Na fatídica noite de 8 de julho de 1978, o fogo consumiu grande parte do acervo da instituição, atingindo quase mil obras de importantes artistas, entre eles Picasso, Matisse, Salvador Dalí, Portinari e Di Cavalcanti, porém, foi Torres García o mais prejudicado. Na época, o museu recebia a exposição coletiva Arte Agora II, América Latina: Geometria Sensível, da qual fazia parte uma retrospectiva da obra de Torres García. Estavam expostos na ocasião sete grandes murais pintados para o Hospital Saint Bois, 46 quadros construtivos, 20 esculturas, além de jogos e objetos de madeira. Desde então, essas peças sobreviviam apenas na memória de algumas pessoas. Chama a atenção o fato de que, ao longo dos anos, essas não foram as únicas obras destruídas de Torres García. Também grande parte dos murais pintados pelo artista foi perdida e, com ela, boa parcela da produção do início da sua trajetória. Das pinturas realizadas na igreja San Agustín (Barcelona), por exemplo, se conserva apenas um desenho, algumas fotografias e uma única descrição feita pelo uruguaio (MARTINÉZ, 2002, p. 106). Em outro caso, dos murais pintados no escritório da Câmara Municipal de Barcelona, em 1908, há apenas uma imagem do friso e textos publicados sobre eles no jornal El Poble Catalá, mas os trabalhos nunca mais foram encontrados. Os exemplos são inúmeros e o eventual resgate de algumas de suas obras ainda está em pauta. No final da década de 1960, foram recuperados murais localizados no Salão de Sant Jordi, do Palau de la Generalitat. Tal série foi pintada entre 1913 e 1917, a pedido de Prat de la Riba (1879 - 1917)121, porém cobertos com pinturas históricas durante a ditadura de Primo de Rivera (1870-1930)122. Já a possibilidade de montar Tiempo de Mirar, tantos anos de120 Como são chamados alguns objetos de madeira feitos por Torres García. 121 Enric Prat de la Riba, político nacionalista catalão. Foi o primeiro presidente da Manco- munitat das províncias catalãs. 122 Miguel Primo de Rivera y Orbaneja foi um militar e ditador catalão. Implantou um golpe militar em 1923, derrubando a constituição e se tornando presidente da Espanha até 1925. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 273 pois dos trabalhos terem sido destruídos pelo fogo, ocorre com a descoberta de alguns rastros do que anteriormente haviam sido essas obras. Em uma entrevista, realizada pela autora em dezembro de 2019, Alejandro Diaz, diretor do museu e idealizador da mostra, relata dois acontecimentos imprescindíveis para sua idealização. O primeiro diz respeito aos fragmentos de algumas pinturas destruídas que foram encontrados em 2005, no acervo do Museu Nacional de Artes Visuais de Montevidéu (MNAV). Eram seis pequenos pedaços de tela chamuscados que sobreviveram ao incêndio, vestígios do que haviam sido pinturas construtivistas de Torres García. Deixados ali por Angél Kalemberg123, possivelmente com a perspectiva de que não passariam de lembranças de uma tragédia, vieram à tona quando a nova diretora da instituição Jacqueline Lacassa124 realizou um inventário geral das peças do museu. Ao encontrar esses “restos mortais”, como classificou Diaz, Lacassa comunicou imediatamente à equipe do MTG para que fossem ver aquilo que “pareciam espólios de um homem morto”. A decisão sobre montar Tiempo de Mirar, todavia, foi tomada anos mais tarde com uma segunda descoberta. Também por acaso, foram encontradas todas as fotografias dos trabalhos queimados. As imagens estavam nos arquivos do Museu Torres García, porém perdidas entre outros materiais125. No presente texto, irei me deter principalmente nessas fotografias, já que os fragmentos abrem margem para outra discussão. Para poder apresentar essas obras ao público, foram fixados na parede de uma sala em branco, alguns retângulos de mesma cor. Cada um deles mantinha a dimensão dos quadros originais. Ao posicionar o celular em frente ao retângulo, o público conseguia visualizar as obras como no seu espaço real através da leitura de QR codes. No caso das pinturas em que foram encontrados restos materiais, optou-se por não trabalhar com a realidade virtual, apresentando apenas aqueles seis pedaços de tela emoldurados. Na abertura também foi possível visualizar os sete murais pintados no Hospital Saint Bois, esses com o auxílio de 123 Professor e crítico de arte, diretor do MNAV entre 1969 e 2007, chefe da exposição de Torres García no MAM. 124 Jaqueline Lacasa (1970) é artista, pesquisadora e docente. Foi diretora do MNAV (20072009), sendo a primeira mulher a ocupar o cargo. 125 Informações enviadas por e-mail em 23 dez. 2019. 274 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 óculos de realidade aumentada, que projetavam fotografias de época. Além dos quadros, a exposição incluiu reportagens e documentos da época, catálogos de outras mostras e fotografias da exposição de Torres García realizada em 1974, no Museu Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires. Assim, a partir desses resquícios e com a ajuda da tecnologia, foi possível dar vida às obras perdidas e convidar o público a conhecer parte da produção de Torres García, trazendo-a para o presente a partir de sua ausência. [FIGURA 1; 2]. Propomos aqui examinar essa exposição a partir do livro Antropologia da Imagem (2014), de Hans Belting, o qual tem como ideia central a divisão entre meio, imagem e corpo. Tal pensamento leva a compreensão de que, após ter seu corpo de origem destruído, as imagens não morreriam ou desapareciam com com ele, pois poderiam reencarnar em outros meios e assim sobreviver. Ou seja, considerando essa divisão, as imagens teriam a capacidade de migrar de um meio a outro, sendo de tal maneira nômades e não reconhecendo fronteiras que as imobilizem num determinado meio. Como consequência, as imagens podem viver numa obra de arte, mas não necessariamente precisam coincidir com ela, o que proporciona formas de sobrevivência da imagem após a destruição da matéria. A questão primordial neste enfoque medial das imagens é justamente essa separação entre elas e o meio, conjunção que por muitas vezes é ignorada e faz com a que a imagem seja compreendida como o próprio meio. Segundo Belting (2014, p. 43), a imagem “tem sempre uma qualidade mental e o meio sempre um caráter material, mesmo quando ambos formam par em uma unidade na impressão sensível”. Assim, compreende-se o meio como um agente, um dispositivo que funciona como suporte para que a imagem seja materializada. Esses suportes criam um corpo artificial que permite que as imagens sejam transmitidas. É mediante as diferentes técnicas ou programas elas se tornam visíveis, “independentemente de surgirem num único exemplar, como num quadro, ou em série, como na gravura ou na fotografia” (BELTING, 2014, p. 23). Tal distinção se torna mais nítida na língua inglesa, que ao contrário da alemã e também da portuguesa, diferencia as palavras image (imagem) e picture (quadro), local onde imagem pode existir. Conforme Belting (2006, p. 36), ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 275 O “o quê” de uma imagem (o problema ao qual a imagem serve como tal, ou ao que ela se refere como imagem) é guiado pelo “como” ela transmite sua mensagem. Na verdade, o “como” é freqüentemente difícil de distinguir do “o quê”; nisto repousa a essência da imagem. Mas o “como”, por sua vez, é em grande parte modelado por um dado meio visual no qual a imagem reside. Qualquer iconologia hoje em dia deve portanto discutir a unidade assim como a distinção entre imagem e mídia, a última entendida no sentido de meio transmissor ou portador. Não há imagem visível que nos alcance de forma não mediada. Sua visibilidade repousa em sua capacidade particular de mediação, a qual controla a sua percepção e cria a atenção do observador. Como exemplo, são citados os atos iconoclastia. Quando um monumento ou obra é atacado ou vandalizado, a destruição se dirige contra a imagem daquilo que ela representa, mas na realidade o que danifica é apenas a pedra ou bronze. Em outras palavras, o que se destrói é o meio, o suporte medial, isto é, seu aspecto tangível, material. A imagem, vai persistir, porém, habitando outros meios ou outros lugares. Ela pode seguir em outras obras, em fotografias, passar na televisão ou simplesmente se manter no imaginário individual ou coletivo. Para o autor, a destruição de uma peça é tão simbólica como a instalação da mesma em espaço público, mas a sua depredação não garante o esquecimento ou desprezo por aquela imagem na mente das pessoas (BELTING, 2015, p. 15). Como exemplo recente, cito a estátua de Borba Gato, incendiada em setembro de 2021 na zona sul paulista. Ao atear fogo no monumento, os manifestantes não destroem o corpo de Borba Gato, já falecido em 1718. Tampouco a imagem do bandeirante desaparece, pois apesar da destruição desse meio, ela segue incorporada e propagada em diversos outros locais. Entretanto, o ato de iconoclastia não deixa de reivindicar a indignação frente a uma figura histórica polêmica, responsável pela morte de negros, indígenas e destruição de aldeias no século XVII. Outro caso é o da obra Temer Vermelho (2017), do coletivo Tupinambá Lambido (RJ). Contam os integrantes do grupo, que depois de colarem os cartazes da campanha126 de 2017, sempre dotados de um forte viés políticos, uma senhora passou a jogar ácido na peça que trazia o rosto 126 São chamadas “campanhas” as séries de cartazes impressas e coladas em determinada época. 276 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de então presidente Michel Temer127. [FIGURA 3]. O que incomodava ela para que tomasse tal atitude era o presidente em atuação? Era a identidade diabólica que ele ganhou no cartaz? Apesar de não sabermos a resposta, podemos, através da teoria de Belting, afirmar que, como no caso anterior, o ácido era eficaz apenas contra o meio da imagem e não contra a imagem em si, pois essa seguiria a existir e, possivelmente circular. Apesar das imagens terem tal capacidade de se descolar do suporte, não podem, porém, existir desatreladas ao corpo, pois é ele o produtor e o receptor delas. Sejam as imagens endógenas, como Belting as designa, aquelas criadas por nós, ou as exógenas, as quais capitamos do mundo exterior, sempre são dependentes do corpo que as produz ou as capta, as dá sentido e as rememora. Conforme o autor, as “imagens não circulam de forma incorpórea, pois povoam nosso corpo” (2014, p.21), sendo esse uma “mídia viva” e exercendo um papel essencial dentro dessa tríade. Logo, a medialidade das imagens, explica Belting (2005, p.69), é originada da analogia ao corpo físico e, incidentalmente, do sentido em que nossos corpos físicos também funcionam como meios – meios vivos contra meios fabricados. As imagens acontecem entre nós, que as olhamos, e seus meios, com os quais elas respondem ao nosso fitar. Elas se fiam em dois atos simbólicos que envolvem nosso corpo vivo: o ato de fabricação e o de percepção, sendo este último o propósito do anterior. Uma característica interessante de Belting é buscar olhar as imagens pra além da História da Arte, ou seja, fora daquilo que é classificado como arte por uma disciplina criada e desenvolvida por uma escola europeia, da qual ele se coloca como parte. Nesse contexto, Belting (2014, p. 29) vai ressaltar a importância da imagem funerária na cultura ocidental para esse debate e criticar como ela ficou complemente soterrada pelo discurso da arte. Ao longo dos capítulos de Antropologia da imagem, o autor disserta sobre as relações entre corpo, meio e ima127 Segundo Fernandes (2017, p. 133), o cartaz se tratava da “reapropriação de uma polêmica capa da revista Veja, que apresenta sobre um fundo vermelho uma ilustração da cabeça do ex-presidente Lula sangrando. Na versão do Tupinambá Lambido, no lugar da cabeça de Lula figura a cabeça de Michel Temer. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 277 gem a partir de distintos elementos, desde os crânios de Jericó (2014, p. 185), que eram exumados, trabalhados e posto em local visível para representar familiar após sua morte, até fotografias de famosos. Nesses diversos diálogos, Belting (2014, p. 12), vai pontuar como muitas vezes um corpo que já não existe ou não pode ser exibido, será substituído por outro meio, o qual terá a função de representar aquele ausente, atuando como corpo artificial. O corpo e o meio estão implicados nos significados das imagens fúnebres, já que tais imagens são instaladas no corpo perdido do defunto. Mas estas, por seu turno, precisam de um corpo artificial a fim de poderem ocupar o lugar vago do defunto. Este corpo artificial pode denominar-se “meio” (e não apenas “material”), no sentido de que as imagens requerem um corporalização para adquirirem visibilidade. Para isso um corpo perdido é permutado pelo corpo virtual da imagem. Tal relação entre meio, imagem e corpo, traz à tona o paradoxo da imagem como presença de uma ausência. Com efeito, as imagens tornam visível a ausência física de um corpo, transformando- a em presença icônica. O retrato, a pedra, o bronze, possuiriam a única presença que é possível, que é a ausência do objeto real. A analogia do corpo entra de novo aqui em ação. A relação entre ausência, entendida como invisibilidade, e presença, apreendida como visibilidade é, em última instância uma experiencia corpórea. A memória é uma experiencia do corpo, porque engendra imagens de eventos ou de pessoas ausentes de outra época ou lugar que são recordados. Tendemos a imaginar como presente o que, de fato, esteve muito tempo ausente, e atribuímos a mesma capacidade aos retratos (como fotos do defunto) que fabricamos. A medialidade dos retratos é assim o elo entre imagens e nossos corpos. Aplicando o pensamento de Belting às obras de Tiempo de Mirar, de uma maneira pragmática podemos criar a seguinte trajetória. As telas, murais e objetos de madeira produzidos por Torres García atuam, de início, como suporte, um corpo artificial, que de certa forma dá vida àquilo que está internalizado no artista. Surgem aqui as obras originais. 278 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Com a destruição desse corpo de obras, a imagem delas poderia sobreviver somente na memória de algumas pessoas, como acontecia com grande parte dos trabalhos perdidos até os achados dos anos 2000. Com as fotografias, esboços, pedaços de tela entre outros vestígios encontrados, de um lado, há o que Lacassa chamou de “espólios de um homem morto”. Tal analogia se faz bastante pertinente por se tratar de fragmentos das telas de Torres García, que não deixam de ser, de certa maneira, os restos mortais do corpo da sua obra e da sua trajetória, rastros encontrados após o fatídico acidente. De outro lado, existem as fotografias, que servem com suporte para as imagens, que migraram para esse outro meio. Essas fotografias hoje representam parte das obras destruídas e, a partir dando a imagem deles um novo meio físico, criam presença para algo que está ausente. No caso da exposição, ainda há um outro desdobramento, pois as imagens não eram apresentados ao público o papel fotográfico em si, mas exibidas por meio da realidade virtual. Assim, era a tela do celular que servia como meio da imagem, ou seja, o corpo provisório necessário para que ela fosse captada pelo nosso corpo. Tal capacidade de “encarnação” das imagens é o que teria possibilitado que, após 40 anos do incêndio no Brasil, dezenas de obras de Torres García pudessem mais uma vez ser apreciada pelo público uruguaio. As imagens ali apresentadas, de certa forma, substituem a obra inexistente e fazem delas uma espécie de aparição. Entretanto, por mais que possa parecer simples, numa primeira mirada, é preciso trazer alguns questionamentos que vão surgindo desse desdobramento. Essa intrincada rede intermedial vai se tornando cada vez mais complexa, exigindo que as observações a cerca dessas obras não se reduzam simplesmente aos elementos formais. A primeira provocação que gostaria de levantar a partir dessa leitura, surge com obras como as abaixo. Essas imagens, habitando o papel fotográfico e se propagando no meio digital, são as sobrevivências de telas de Joaquín Torres García. Entretanto, elas apresentam de maneira bastante incompleta o que eram as obras originais: a qualidade das fotos é muito baixa, estão borradas e não possuem cor. O quanto daquela obra inicialmente produzida pelo artista sobrevive nesse novo meio? Até que ponto ela segue sendo aquela imagem que habitava a tela e até que ponto não é um só vestígio? Daquele corpo inicial das pintuANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 279 ras, parece que agora, nesses casos, só restam vultos. [FIGURA 4; 5]. Essa relação da representação do corpo ausente com os rastros é trazida por Hans Belting, mesmo que não de maneira direta. Por exemplo, Belting retoma uma das histórias de Plínio, o Velho, quando escreve sobre Cora, uma jovem que coríntia que traçou na parede o contorno da sombra projetada pelo rosto de um rapaz por quem estava apaixonada e que partia para o estrangeiro. Ali, entre sombra e luz, não restaram mais que vestígios do rapaz, entretanto lá estava a imagem, impressa no meio midiático da parede. Belting vai associar esse episódio com a fotografia, que hoje também imprime o objeto, paisagem ou pessoa ausente. No caso de Torres García fica no papel fotográfico a impressão da obra, porém me interessa aprofundar os discursos que elas carregam enquanto representação, seja em função da sua recepção estética ou da própria atribuição como obra ou como arquivo (que não necessariamente serão funções conflitantes). Outra questão é que Hans Belting trata no texto, principalmente, sobre corpos e imagens que possuem algum grau de representação mimética ou uma carga simbólica forte, por exemplo, as pinturas de santos ou estátuas de líderes políticos. No caso de Torres García, assim como outros artistas abstratos, havia a premissa da “não representação”, então a imagem que estava nas suas telas, não dizia respeito a um outro corpo, mas à pintura em si. A sobrevivência dessas obras expressa peculiaridades se comparado, por exemplo, a atos de iconoclastia em pinturas religiosas, nas quais santos ou a imagem de Jesus Cristo são destruídas, mas sobrevivem no imaginário e em outras produções artísticas, mesmo que não sejam exatamente como aquelas. Frente a tal particularidade, com o avanço da pesquisa busco entender as formas de sobrevivência de obras cujos corpos foram destruídos, o que tais imagens e meios podem nos dizer e quais as maneiras que elas podem voltar aos olhos do público. 280 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 REFERÊNCIAS: BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem Revista Concinnitas. Ano 6, v.1, n. 8, p.64-78, jul. 2005. BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia. Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, v. 8, p. 32-60, 2006. BELTING, Hans. Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. KKYM+ EAUM, 2014. DIAZ, Alejandro. Joaquin Torres-García Integridade da arte. In: DIAZ, Alejandro; PERERA, Jimena (Orgs.). Joaquín Torres-García: geometria, criação, proporção. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo Porto Alegre, 2011, p. 7-35. (Catálogo de exposição). DIAZ, Alejandro. Tiempo de Mirar. Dossier Prensa, 2018. Disponível em: <<https://www.torresgarcia.org.uy/exposiciones/tiempo-de-mirar/>>. Acesso em: 2 maio 2020. DIAZ, Alejandro. Entrevista por e-mail concedida à Helena Eilers. Porto Alegre, dez. 2020 FERNANDES. Thiago. Entre a (auto)destruição e a sobrevivência. Intervenção urbana, mídia tática e a performatividade do registro do efêmero Rio de Janeiro: UFRJ, 2019. Dissertação(Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 281 Imagens: Figura 1: Exposição Tiempo de Mirar. Fonte: Museu Torres García. Figura 2: Exposição Tiempo de Mirar. Fonte: Museu Torres García. 282 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 3: Temer Vermelho, Tupinambá Lambido, 2017. Fonte: Tupinambá Lambido. Figura 4: Garcia, Torres, Constructif symbolique, 1932. Fonte: Catálogo Raisonné, Museu Torres García. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 283 Figura 5: Garcia, Torres, Triangulo, 1946. Fonte: Catálogo Raisonné, Museu Torres García. 284 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 PINTORAS E O ACERVO MUSEOLÓGICO: EMBATES SOBRE GÊNERO NA ARTE BRASILEIRA Isabela Ramos de Oliveira128 – isaramosdeoliveira@gmail.com Resumo: A Arte Moderna brasileira teve mulheres artistas como protagonistas da pintura social e estas foram as primeiras a obter destaque na história da arte no país. Apesar deste fato, não se encontram obras de artistas mulheres em quantidades expressivas nos museus de arte. A partir desta indagação o presente trabalho pretende verificar a invisibilidade e/ou opacidade de artistas mulheres na exposição de longa duração da Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do Museu Nacional de Belas Artes, localizado no Rio de Janeiro. Mediante a pretensão de minimizar as desigualdades presentes no meio artístico e, quem sabe, na desigualdade que permeia a sociedade brasileira tem-se por objetivo compreender por que as pintoras estão ou não estão, e se estão, porque em menor quantidade se comparadas aos pintores na exposição. Com base na abordagem metodológica quantitativa apresentar-se-ão dados sobre obras da técnica óleo sobre tela expostas na galeria do museu e seus correspondentes criadores durante o período de 1920 a 1930 com base no Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009. Além disso, considera-se a problematização do pensamento do século XIX que considerava as mulheres como naturalmente incapazes de produzir gêneros artísticos elevados. Sendo assim, será discutida a questão da mulher artista e sua profissionalização, essencialmente na Escola Nacional de Belas Artes que deu origem ao referido Museu. Foram constatadas a partir do Catálogo cerca de 170 obras de diversas tipologias de acervo, entre elas pinturas, esculturas, fotografias, instalações, entre outras. O número de artistas do sexo masculino é aproximadamente 75% (125 artistas), já o número de artis128 Esta publicação resulta da pesquisa de trabalho de conclusão de curso desenvolvida na graduação intitulada “Artistas na Arte Moderna Brasileira de 1920 a 1930: o caso do Museu Nacional de Belas Artes”, orientada pela Profa. Dra. Junia Gomes da Costa Guimarães e Silva e pela Profa. Dra. Márcia Valéria Teixeira Rosa, desenvolvida Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 285 tas do sexo feminino é de aproximadamente 25% (42 artistas). Nota-se prontamente a divergência entre o número de artistas do sexo feminino e masculino a partir da seleção das obras em pinturas da técnica óleo sobre tela produzidas durante os anos de 1920 a 1930. Podemos obter o resultado de 13 obras, entre estas apenas 3 foram concebidas por artistas do sexo feminino e pertencem ao gênero de pintura de paisagem e de pintura de gênero. As pintoras Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral por serem as criadoras das obras anteriormente referidas terão suas biografias apresentadas. Buscando pela maior valorização de mulheres tanto nos espaços museais quanto na sociedade e na arte brasileiras faz-se justificável a relevância deste estudo. Palavras-chave: Arte; Gênero; Mulheres artistas; Pinturas; MNBA. Abstract: Brazilian Modern Art had women artists as protagonists of social painting and they were the first to be highlighted in the history of art in the country. Despite this fact, we cannot find works by women artists in significant quantities in art museums. Based on this question, the present work intends to verify the invisibility and/or opacity of women artists in the long term exhibition of the Gallery of Modern and Contemporary Brazilian Art of the National Museum of Fine Arts, located in Rio de Janeiro. With the intention of minimizing the inequalities present in the artistic environment and, who knows, in the inequality that permeates Brazilian society, the aim is to understand why the female painters are or are not in the exhibition, and if they are, why they are in a smaller quantity if compared to the painters in the exhibition. Based on the quantitative methodological approach, data will be presented about oil on canvas works exhibited in the museum gallery and their corresponding creators during the period from 1920 to 1930 based on the 2009 Catalogue Gallery of Modern and Contemporary Brazilian Art. In addition, we will consider the problematization of nineteenth century thinking that considered women as naturally incapable of producing high artistic genres. Therefore, the question of the female artist and her professionalization will be discussed, essentially at the National School of Fine Arts, which originated the aforementioned Museum. From the Catalog we can see about 170 works of various types of collection, including paintings, sculptures, photographs, and installations, among others. The number of male artists is approximately 75% (125 286 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 artists), while the number of female artists is approximately 25% (42 artists). The divergence between the number of female and male artists is readily apparent from the selection of oil-on-canvas paintings produced during the 1920s to 1930s. We can obtain the result of 13 works, among these only 3 were conceived by female artists and belong to the genre of landscape painting and genre painting. The painters Georgina de Albuquerque and Tarsila do Amaral, as the creators of the above mentioned works, will have their biographies presented. Seeking for a greater valorization of women both in museum spaces and in Brazilian society and art, the relevance of this study is justified. Keywords: Art; Gender; Women artists; Paintings; MNBA. INTRODUÇÃO A Arte Moderna brasileira teve mulheres artistas como protagonistas da pintura e foram as primeiras a obter destaque na história da arte no país. Apesar deste fato, não se encontram obras de artistas mulheres em quantidades expressivas nos museus de arte. A partir desta indagação o presente trabalho pretende verificar a invisibilidade e/ou opacidade de artistas mulheres na exposição de longa duração da Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do Museu Nacional de Belas Artes, localizado no Rio de Janeiro. Mediante a pretensão de minimizar as desigualdades presentes no meio artístico e, quem sabe, na desigualdade que permeia a sociedade brasileira tem-se por objetivo compreender por que as pintoras estão ou não estão, e se estão, porque em menor quantidade se comparadas aos pintores na exposição. Com base na abordagem metodológica quantitativa apresentar-se-ão dados sobre obras da técnica óleo sobre tela expostas na galeria do museu e seus correspondentes criadores durante o período de 1920 a 1930 com base no Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009. Além disso, considera-se a problematização do pensamento do século XIX que considerava as mulheres como naturalmente incapazes de produzir gêneros artísticos elevados. Sendo assim, será discutida a questão da mulher artista e sua profissionalização, essencialmente na ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 287 Escola Nacional de Belas Artes que deu origem ao referido Museu. Foram constatadas a partir do Catálogo cerca de 170 obras de diversas tipologias de acervo. O número de artistas do sexo masculino é aproximadamente 75% (125 artistas), já o número de artistas do sexo feminino é de aproximadamente 25% (42 artistas). Nota-se prontamente a divergência entre o número de artistas do sexo feminino e masculino a partir da seleção das obras em pinturas da técnica óleo sobre tela produzidas durante os anos de 1920 a 1930. Podemos obter o resultado de 13 obras, entre estas apenas 3 foram concebidas por artistas do sexo feminino, são estas, Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral que por serem as criadoras das obras anteriormente referidas terão suas biografias apresentadas. Buscando pela maior valorização de mulheres tanto nos espaços museais quanto na sociedade e na arte brasileiras faz-se justificável a relevância deste estudo. 1. AS MULHERES NA ACADEMIA Em 1816 é criada a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios que originou a Academia Imperial de Belas Artes 1826. Com Proclamação da República e o perecimento da instituição, o pedido de críticos de arte, professores e alunos por uma modernização de métodos de ensino, acaba servindo de alicerce para a criação da Escola Nacional de Belas Artes. Nos primórdios do século XX, durante o período das reformas urbanísticas do Prefeito Pereira Passos, foi construída a sede da Escola, finalizada em 1908. Apenas a partir de 1893, integrantes do sexo feminino foram legalmente admitidas na ENBA. Porém, eram exigidas dos alunos qualificações específicas. O que tornou a situação feminino ainda mais complicada, já que a grade curricular que cursavam no segundo grau era distinta dos homens, não havia disponibilidade de escolas públicas, a predominante tendência de educação na residência com currículos que destacavam as prendas do lar e aos “trabalhos classificados como femininos”, fez com que tivessem menos tempo para disciplinas profissionalizantes. Para ingressar nos cursos gerais da academia era preciso 288 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 se submeter a avaliações rígidas na Escola ou trazer exames do Colégio Pedro II - único curso admitido para esse fim. Tal fato fez com que nos cursos de livre frequência possamos notar a presença feminina, mesmo que em menor número com relação aos homens, por conta da simplicidade de ingresso. Ainda que aceitas nas instituições de ensino sofreram diversos preconceitos sociais, como a ideia de que seriam “eternas amadoras”, e a crença de que seriam incapazes de realizar obras em gêneros artísticos elevados, como a pintura histórica, por exemplo. Também havia o problema acerca do decoro que impedia o acesso ao ensino de modelo vivo por um período, privando-as de conhecimento pleno. A diferença de tratamento por alguns professores também fazia parte do cotidiano das alunas. Mesmo que tenham adquirido o estatuto de legalidade, as alunas permaneceram no anonimato por muito tempo. A lei que previa a separação entre gêneros nas salas de aula foi implantada no Brasil tardia e insuficientemente. Dessa forma, as mulheres puderam assistir às aulas ao lado de seus colegas e não foram imediatamente segregadas. No final de 1900 foi aberto o concurso para prêmio de viagem atribuído aos alunos de escultura, para este apresentou-se apenas um candidato, uma mulher: Julieta de França, que conseguiu viajar com bolsa de estudos para Paris. Não houve cogitação de exclusão, julgamento diferenciado, menção a candidata ser uma mulher e nem mesmo a necessidade de autorização do responsável familiar durante o processo de julgamento pelo conselho escolar. Com o início do século XX é possível notar a participação de mulheres na instituição e nas exposições gerais. Conquistaram o direito de se formarem no ensino superior, um local próprio na instituição, o direito à nomeação, o acesso pleno às aulas e o direito de concorrerem aos prêmios de viagem ao exterior. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 289 2. INFLUÊNCIA DA SEMANA DE ARTE MODERNA Mesmo nos primórdios do século XX, os pintores brasileiros prezavam pela tradicional representação pictórica. Com a virada do século XIX para o XX, a declaração da República, o desenvolvimento das cidades, a industrialização e a modificação da vida urbana e da sociedade, há o sentimento de mudança e progresso. Assim fez-se necessário traduzir e refletir a “vida moderna” através da arte. Contrários ao modelo acadêmico, os artistas modernistas estavam sem critérios preestabelecidos para instaurar sua linguagem. A arte moderna estimula a liberdade de expressão, assim como a criatividade, o que permitiu independência no desenvolvimento artístico pessoal de cada artista. O território nacional passa a ser o foco da arte, características nacionais são pesquisadas. A ideia era criar uma arte exclusivamente brasileira. Entre os anos de 1917 e 1921 os artistas modernos produzem as primeiras obras revolucionárias. Mas é a partir da Semana de Arte Moderna de 1922 que o movimento alcança seu apogeu. A partir da Exposição de Pintura Moderna de Anita Malfatti em 1917 se inicia o modernismo. Tornando-se protagonista de um momento de ruptura na arte brasileira, Anita pode ser considerada introdutora da arte moderna no país. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o primeiro evento estruturado que ocorreu no Brasil ao modo das vanguardas europeias pode ser considerado, em caráter simbólico, o “ato inaugural” da modernidade no país. A conquista por igualdade se iniciou de fato com a Semana de Arte Moderna de 1922 - não descartando as lutas e buscas por espaço/ reconhecimento nas artes antecedentes, essas artistas por mais importantes que fossem permanecem invisibilizadas na história da arte. Através das ideias modernistas foi possível ajudar a dar visibilidade à arte produzida por mulheres, tanto que Anita Malfatti e Tarsila do Amaral puderam ser reconhecidas como artistas mais importantes do 290 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 modernismo brasileiro. O que não quer dizer que o percurso realizado por elas não tenha sido árduo, do mesmo modo que sua tentativa de profissionalização. 3. PINTORAS MODERNAS NO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES Os dados da pesquisa foram obtidos através do Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009. De acordo com a tabela podemos observar os artistas e obras presentes na exposição, os critérios de seleção foram baseados, essencialmente, nas obras datadas entre o período de 1920 a 1930, levando em consideração os nomes dos artistas, suas datas de nascimento e morte, se estão designados ao sexo feminino ou masculino, além da data e do gênero de pintura da obra exposta. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 291 Tabela 1: Artistas e obras expostas na Galeria de Arte Moderna e Contemporânea do MNBA Nome Data Sexo Acervo Data da obra Antônio Gar- 1897-1929 M “Manhã no s/d cia Bento Armando Porto” 1897-1992 M Viana Augusto José “Primavera M “Vaso com Marques Flores” Júnior “No Espelho” Pintura Pintura de paisagem 1926 em Flor” 1887-1960 Gênero de Pintura de gênero s/d Natureza 1926 Pintura de morta gênero Cândido 1903-1962 M Portinari “Retrato de 1928 Retrato s/d Pintura de Olegário Mariano” Eliseu Vis- 1896-1944 M conti “A caminho da escola” “Igreja de gênero s/d Pintura de c.1920 Pintura de Santa Teresa” Georgina de 1885-1962 F “Raio de sol” paisagem Albuquerque gênero “Dia de c.1926 verão” Henrique 1892/1894- Cavalleiro 1975 João Timóteo 1879-1930 M “Vestido M “Paisagem” gênero 1921 Retrato 1926 Pintura de rosa” da Costa Lucílio de paisagem 1877-1939 M “Gávea Golf” c.1928 Albuquerque Tarsila do Amaral Pintura de Pintura de paisagem 1886-1973 F “Autorretrato 1923 Retrato ou Le manteau rouge” Fonte: Elaborada pela autora a partir do Catálogo Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea de 2009. 292 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 É indiscutível a maior presença de artistas homens com pinturas expostas, ocupando 80% (8 artistas) dos trabalhos, já as mulheres representam apenas 20% (2 artistas) da autoria de obras na Galeria, sendo possível comprovar a invisibilidade das mulheres artistas do período estudado na Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea do Museu Nacional de Belas Artes. Faz-se necessário contemplar as artistas Georgina de Albuquerque e Tarsila do Amaral, que são as únicas que possuem obras do período selecionado expostas no espaço em questão. 3.1 GEORGINA DE ALBUQUERQUE Georgina de Moura Andrade Albuquerque nasceu em Taubaté, interior de São Paulo em 4 de fevereiro de 1882. Aos 15 anos de idade, Georgina iniciou os estudos artísticos com o artista italiano Rosalbino Santoro. Como aluna dele, expôs na décima Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1903 pela primeira vez. Em 1904, se muda para o Rio de Janeiro e ingressa na Escola Nacional de Belas Artes. Lá ela foi aluna de Henrique Bernardelli e conheceu Lucílio de Albuquerque, seu futuro marido e aluno da instituição. Em 1905, participou da décima segunda Exposição Geral apenas com o nome de seu mestre. No ano seguinte casou-se com Lucílio e vivendo por cinco anos em Paris ingressou na Académie Julian e também na escola de belas artes, sendo “a única mulher compatriota a vencer as exigentes provas de ingresso no período estudado”, conforme Simioni em 2005. A artista adere ao impressionismo como estilo tanto na iluminação e movimento quanto na temática de representação. Voltando ao Brasil em 1911, participa regularmente de exposições também mantinha cursos de arte. Em 1922, é contratada para lecionar na ENBA. Já em 1927, se candidata ao concurso para ocupar o cargo de professora de pintura e apesar de se classificar em primeiro lugar pelo comitê julgador, é impedida de assumir o cargo, pois a Congregação da Escola enviou à presidência da república o nome do candidato que ocupou o segundo lugar. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 293 De 1927 a 1948 leciona desenho artístico na ENBA. De 1935 até 1939, é professora do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal lecionando artes decorativas. Em 1948 volta a fazer o concurso para lecionar pintura na ENBA e dessa vez, ocupando novamente o primeiro lugar, assume o cargo. Posteriormente, em 1952, é nomeada a primeira e única diretora da Escola Nacional de Belas Artes, ocupando o cargo por três anos, conforme mandato. Aos 70 anos de idade representou a Escola no Congresso da Associação Internacional de Artes Plásticas da UNESCO, sendo nomeada presidente da entidade. Com relação a exposições, a artista teve vasta participação ao longo dos anos em território nacional e até mesmo no exterior. Georgina de Albuquerque foi uma artista que recebeu diversos prêmios em salões nacionais, especialmente por conta das exposições da ENBA - onde marca presença desde 1903. Vindo a óbito em 28 de agosto de 1962. A temática da artista possui flexível repertório, porém tem a mulher como personagem principal em suas obras. Essa mulher representada pela artista não é sexualizada como objeto de desejo ou frágil à espera de salvação, pelo contrário, Georgina retrata a mulher republicana, trabalhadora e até mesmo heroína. Além desse traço inovador, Georgina foi a primeira artista brasileira a se dedicar à produção de uma pintura histórica até 1922, vista como gênero mais elevado das modalidades artísticas. Rompendo assim, com a crença do século XIX que mulheres eram incapazes de realizar gêneros de pintura elevados. Georgina, após o falecimento de seu marido, se dedicou a criação de um museu em homenagem ao mesmo, para evitar que suas obras se dispersassem, o Museu Lucílio de Albuquerque. Fundado em 1943, no bairro de Laranjeiras, Rio De Janeiro, em sua residência. No local, a artista além de diretora do museu, organizou um curso gratuito de desenho e pintura para crianças, fato inédito à época tendo em vista que o ensino das artes não era direcionado ao público infantil. 294 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 3.2 TARSILA DO AMARAL Nascida em 1° de setembro de 1886 em Rafard, à época distrito da cidade de Capivari, no estado de São Paulo. Tarsila de Aguiar do Amaral era descendente de uma família de gerações de cafeicultores, portanto ocupava uma condição social privilegiada. Em 1902 foi estudar em Barcelona, na Espanha, onde descobriu a pintura. Regressando ao seu país de origem em 1904, casou-se com André Teixeira Pinto e após dois anos tiveram a filha Dulce. O casamento terminou brevemente já que os interesses do casal divergiam. Em 1916 inicia as aulas de modelagem e um ano depois pratica desenho e pintura. Embarca para Paris em 1920. Matricula-se na Academia Julian e comparece aos ateliês de Émile Renard. Teve uma de suas telas de 1922 aceita no Salon Officiel des Artistes Français, intitulada Figura (Retrato de Mulher), a qual chamava de Passaporte, devido ao obstáculo vencido. Quatro meses após a Semana de Arte Moderna de 1922, a pintora chega ao Brasil. Mesmo que ainda não integrada à Arte Moderna, forma, a partir do contato desta com os modernistas, o Grupo dos Cinco, que tinha como participantes a própria Tarsila, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Em fevereiro de 1922, se instala em Paris junto a Oswald de Andrade e inicia efetivamente sua descoberta da Arte Moderna. No ano seguinte, retorna ao Brasil e se declara cubista. Em 1924 realiza, com Oswald e os amigos, a denominada viagem de redescoberta do Brasil, o que influenciou, principalmente, seus esquemas cromáticos. A chamada fase pau brasil perdurou de 1924 a 1927 e foi um marco da modernidade do país na época. Os elementos pictóricos das obras desse período encontram-se constantemente em tensão e acumulados no plano, o que produz novos sentidos para compreensão do alcance e limites de definição de uma identidade moderna brasileira na arte da época. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 295 Em 1926 inaugurou uma exposição na Galerie Percier em Paris. A pintora casou-se com Oswald de Andrade no mesmo ano. Dois anos depois o presenteia com a obra Abaporu - o homem que come gente. A partir de 1928, a artista concretiza em sua trajetória pictórica um novo momento, caracterizado pela monumentalização e redução em números dos elementos, a volumetria é padronizada no espaço, assim como a equivalência humano-vegetal. Somam-se a esses elementos, as deformações nos corpos que remetem ao Surrealismo e a representação de espaços livres abertos. Realiza sua primeira exposição no Brasil em julho de 1929. Separa-se de Oswald em 1931, no mesmo período assumiu o cargo de diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, dando início a seu catálogo. Tarsila viajou para a União Soviética em 1931 e expôs obras no Museu de Artes Ocidentais de Moscou. Na sua volta para França estava mergulhada no espírito de atividades operárias. Quando retorna ao Brasil, no ano seguinte, é presa durante um mês por razões políticas. Executou retrospectiva no Palace Hotel no Rio de Janeiro. Somado a isso, apresentou uma convenção acerca da arte do cartaz na URSS ilustrada por exemplares de sua coleção no Clube dos Artistas Modernos em São Paulo. No próximo ano, iniciou a escrita regular à imprensa. Em 1938 retoma os temas de infância na pintura. Regressa ao clima onírico da Fase Antropofágica em 1946 e nos anos de 1950 recupera da Fase Pau-Brasil a temática brasileira. No ano seguinte é afortunada com o Prêmio Aquisição da I Bienal Internacional de São Paulo. No ano de 1964 participou da trigésima segunda Bienal de Veneza. Vem a óbito em 17 de janeiro de 1973 em São Paulo. Tarsila do Amaral foi de suma importância para a arte brasileira e apesar de não ter participado da Semana de Arte Moderna tornou-se o ícone do movimento modernista. 296 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após aplicar a filtragem nas 170 obras do catálogo, encontramos 10 artistas no total. Apenas 20% (2) são mulheres. Confirma-se então, maior quantidade de artistas homens em exposição na Galeria o que comprova a hipótese de que as pintoras foram invisibilizadas. Como é possível verificar ao longo do trabalho e através deste compreender como as artistas foram tratadas na Galeria faz-se necessário considerar que a profissionalização das mulheres nas artes se deu tardiamente, de forma desigual e segregadora, isso sem mencionar o preconceito sofrido pelas alunas e a base curricular diferenciada, o que reduziu as chances de entrada na academia. Foram consideradas eternas amadoras, impedidas de frequentar aulas, mantidas no anonimato. Tais fatos também podem explicar o motivo das mulheres artistas estarem em menor número se comparadas aos homens na Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea. Apesar de o modernismo ter iniciado o reconhecimento das mulheres na arte brasileira, estas ainda não tiveram suas obras expostas na mesma quantidade que os artistas homens, sendo assim, invisibilizadas na galeria. Leva-se em consideração a data em que a exposição foi concebida, que apesar de próxima da atualidade, não apresentava essa discussão com a ênfase dos dias atuais, tendo em vista também a provável não intenção da curadoria em dar destaque à produção de pintoras. É preciso considerar também a influência dos impasses de profissionalização das mulheres artistas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Laura Maria Neves de. DIAS, Mariza Guimarães Dias. XEXÉO, Pedro Martins Caldas. Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea. Rio de Janeiro: MNBA, 2009. 268 p., Il color. ALVES, Caroline Farias. De princesa Leopoldina a Nair de Teffé: a construção de uma iconografia feminina por Georgina de Albuquerque. In: XI EHA– ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 297 Econtro de História da Arte Unicamp - UNICAMP, XI., 2015, São Paulo. Encontro [...]. [S. l.: s. n.], 2015. p. 84-93. Disponível em:<https://www.ifch. unicamp.br/eha/atas/2015/Caroline%20Farias%20Alves.pdf>. 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A produção artesanal feita com o barro e as fibras vegetais se desenvolve na região por meio do conhecimento que essas mulheres têm sobre a biodiversidade e da re-existência da memória biocultural. Mulheres que vivem em cidades e zonas rurais do Cerrado baiano conservam os saberes sobre modelagem do barro, extração da seda e palha de palmeiras para fazer tramas e urdiduras, produção de tintas a partir de cascas, entrecascas, folhas e raízes de plantas, tecnologias ancestrais de criação artística e que se constitui a base de sustento de muitas famílias que moram nessa região do país. A criação artesanal com esses materiais define as características sociais, ambientais e culturais de comunidades que ainda possuem uma relação de subsistência com o meio ambiente, mesmo com o avanço das atividades agroindustriais e a modernização do campo e sua consequente ameaça a sobrevivência de práticas, saberes e fazeres adquiridos durante séculos e que se transformam e se reinventam nos tempos atuais. Palavras-chave: Arte; Criação artesanal; Memória Biocultural; Cerrado baiano. 129 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Arte, Memória e Re-exis- tência: a criação artesanal das mulheres no Oeste baiano”, orientada pelo Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 301 Abstract: The present work is the result of a doctoral research developed by the author in the Postgraduate Program in Visual Arts at the Federal University of Bahia, and aims to reflect on the place of art by women who work with craft creation in Western Bahia, as well as their role in preserving the biodiversity of the Cerrado. These women have ensured the survival of craft-making rituals - beside innovations and recreations -, and of traditional procedures for the use and harnessing of natural resources. The handicraft production made with clay and vegetable fibres is developed in the region through the knowledge these women have about biodiversity and the re-existence of biocultural memory. Women who live in cities and rural areas of the Bahian Cerrado preserve their knowledge about modelling clay, extracting silk and straw from palm trees to make plaits and warps, and producing dyes from bark, inter bark, leaves and roots of plants, ancestral technologies of artistic creation that constitute the basis of sustenance for many families living in this region of the country. Craftsmanship with these materials defines the social, environmental and cultural characteristics of communities that still have a subsistence relationship with the environment, even with the advance of agro-industrial activities and the modernisation of the countryside and its consequent threat to the survival of practices, knowledge and skills acquired over centuries and which are transformed and reinvented in current. Key-words: Art; Handicraft Creation; Biocultural Memory; Bahian Cerrado. INTRODUÇÃO A arte produzida com fibras naturais e com o barro é uma expressão de origem ancestral herdada e atualizada por distintos povos na África, América Latina e o Caribe, principalmente os povos indígenas e afrolatinos. Essa arte re-existe nas mãos de artesãs que produzem trançados de fibras vegetais, potes, panelas, fogareiros, filtros e moringas de barro em distintas comunidades rurais do Brasil. Entretanto, na atualidade, muitas comunidades de artesãs que empregam a tecnologia artesanal originária de comunidades negras e indígenas não reconhecem 302 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 esse modo de fazer como uma tradição cultural herdada desses povos. No Cerrado baiano, as mulheres trabalham na roça, cultivam a terra, fazem medicamentos com plantas, produzem utensílios de uso doméstico e arte com fibras naturais e com o barro, protegem os rios e sabem gerir os recursos naturais de forma a não degradar a biodiversidade. Essas mulheres são as principais atingidas pelas ações predatórias na região, principalmente porque necessitam dos recursos naturais para sobreviver, uma vez que alimentam suas famílias com o que colhem e dependem dos rios e da vegetação nativa para produzir medicamentos, comida e arte. A monocultura, o extrativismo e a posse desigual de terras e águas no Cerrado têm mudado a realidade de vida dessas mulheres e de toda a comunidade. Essa região do Brasil tem uma história marcada por conflitos sociais e disputas incitadas pela concentração da propriedade fundiária. A partir do processo de modernização da tecnologia agrícola de grãos, introduzida no Oeste baiano no princípio da década de 1980, o meio ambiente começou a ser modificado, considerando que até então essa região era pouco explorada pelos grandes produtores rurais no que se refere ao desenvolvimento do agronegócio, como aponta o sociólogo Clóvis Caribé Menezes dos Santos (2008). De acordo com o pesquisador, esta situação mudou nas últimas décadas com a ocupação da região com a moderna agricultura de grãos, que se transformou na principal atividade econômica do setor agrícola do Oeste da Bahia. A perda e a destruição da vegetação do Cerrado baiano em decorrência da monocultura e da mecanização da agricultura podem levar ao fim da produção artesanal, que é realizada ainda hoje com base nas matérias-primas extraídas da natureza, a exemplo das fibras vegetais – com a diminuição da água e a morte dos rios, as plantas dos Cerrados tendem a desaparecer. 1. ARTE E MEMÓRIA BIOCULTURAL NO CERRADO BAIANO No Cerrado baiano, o uso de técnicas e procedimentos de criação artística com matérias-primas extraídas do meio ambiente é fruto de uma relação de vida das artesãs com o tempo e o espaço/território em que vivem. Essa relação ocorre no interior de um fluxo natural de muANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 303 danças ambientais, como a sazonalidade do tempo de colheita da vegetação nativa e os ciclos de baixas e cheias dos rios, assim como também acompanha o impacto dos efeitos nocivos da degradação humana ao meio ambiente, que tem provocado a destruição da biodiversidade. O modo de adaptação a essas mudanças não é similar em todas as comunidades que produzem arte na região, no entanto, independentemente da forma como essas mulheres trabalham, as técnicas e os conhecimentos herdados são muitas vezes adaptados ao seu meio externo. O trabalho dessas mulheres possui uma complexidade que envolve mecanismos biológicos, culturais, econômicos e sociais, um procedimento múltiplo que envolve distintos processos. A artesã que trabalha em povoados ou comunidades nas zonas rurais no Oeste baiano apropria-se do restante da natureza a partir do uso de determinadas estratégias, que podem ser definidas, segundo Víctor Toledo e Narciso Barrera-Bassols (2008), como os meios pelos quais cada família organiza, pensa e reconhece os recursos naturais, assim como o seu trabalho e a forma de manter e reproduzir a sua existência130. Os mecanismos de sobrevivência ou re-existência dessas comunidades transcorrem no tempo e no território. Milton Santos (1998, p.16) define território como o espaço usado (ações e objetos), apropriado, “sinônimo de espaço humano, espaço habitado”, o qual “pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede”. O território, segundo Haesbaert (2007, p. 22), é configurado a partir daqueles que o constroem, como os indivíduos, o Estado, as instituições religiosas e os grupos sociais. É a partir do território que emerge a territorialidade, ou seja, as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais que estabelecem as suas fronteiras. Maria Amélia Bulhões e Maria Lúcia Bastos Kern (2002, p. 9), definem a territorialidade como o “espaço de práticas culturais, nas quais se criam mecanismos identitários de representação a partir da memória coletiva, das suas singularidades culturais e das suas paisagens”. Nesse sentido, a territorialidade enquanto espaço de práticas culturais e identitárias é expressão de re-existência da memória biocultural e coletiva das comunidades tradicionais. 130 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 55 304 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 No território, as artesãs utilizam todos os recursos naturais disponíveis do seu entorno para a sua sobrevivência, além de encontrarem forças para resistir às formas de dominação desse espaço, como a expansão do agronegócio e os problemas decorrentes de tal processo, bem como a falta de incentivo e valorização da sua arte, que tem ameaçado a sobrevivência de práticas culturais ancestrais das comunidades. No que diz respeito à dimensão temporal, as artesãs buscam obter uma quantidade maior de materiais que a vegetação nativa ou os rios oferecem ao longo dos ciclos biogeográficos, para garantir a produção de artesanato e de alimentos básicos para a sua vida. Essas mulheres realizam atividades como a colheita de ervas para serem utilizadas como medicamento, a coleta e a separação da seda e da palha dos buritizais para a produção de redes, tapetes, esteiras e cestos, do capim dourado para a criação de biojoias, fruteiras, bolsas e chapéus, de resinas e corantes naturais para a pigmentação das fibras, assim como a retirada do barro para a produção de potes, panelas e objetos nos períodos de seca, os quais oferecem um material de melhor qualidade para a modelagem. A produção com fibras vegetais é a que mais se sobressai no panorama da atividade artesanal do Oeste da Bahia, devido à riqueza de matéria-prima vegetal procedente de palmeiras – buriti, carnaúba e babaçu – e de outras plantas, como a bananeira, a taboa e a palha de milho, que crescem na região. As técnicas e o estilo de produção com fibras vegetais foram herdados da tradição artesanal indígena e reexistem, por exemplo, em comunidades rurais do Cerrado baiano, como em Ilha do Vítor, situada na zona rural do município de São Desidério, onde as artesãs, a partir da seda e da palha retirada da folha da palmeira do buriti, produzem redes, cestos, balaios e chapéus. No município de Cocos, extremo Oeste da Bahia, na região dos Gerais que integram o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, há uma tradição de fiação e tecelagem de algodão e buriti. Artesãs das comunidades de Canguçu, Porcos e Cajueiro, zona rural de Cocos, produzem esteiras, redes de dormir, tapetes e bolsas, assim como criam jogos americanos e caixas. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 305 No processo de criação artística com a fibra do buriti, palmeira que cresce nas veredas do Cerrado, após a extração do broto ou olho dos buritizais, tem início a etapa de separação da seda e da palha pelas artesãs. A seda do buriti é uma fibra mais fina e lisa que reveste a palha. Com a ajuda de uma faca, usando as mãos e os pés, e sentadas no chão, as artesãs do município de Cocos separam as fibras. Primeiro, separam a seda da palha com a ajuda dos dedos, depois puxam a palha para baixo com a ajuda das mãos e enrolam o talo, em seguida colocam no sol. Tanto a seda como a palha são expostas ao sol ou permanecem na sombra para secar. Geralmente, essa etapa é realizada em um período de dois a três dias. A segunda etapa de trabalho com as fibras do buriti é o tingimento da seda, o qual é realizado a partir da aplicação de distintos pigmentos naturais extraídos do entorno onde residem as artesãs. As frutas do Cerrado e suas sementes, assim como as cascas, entrecascas e folhas, são utilizadas nesse processo. Em geral, as artesãs pintam as fibras com as tonalidades preta, roxa, amarela, marrom, vermelha e azul. A fibra, em sua cor natural, é tida como cor branca. As únicas cores que não são extraídas de pigmentos naturais são o azul e o vermelho – embora esta cor também seja tingida com pigmentos naturais, a escassez da planta que fornece o tom vermelho tem levado as artesãs a utilizar tinturas industrializadas. As artesãs utilizam diversas plantas do Cerrado para colorir as fibras, como a muçambé do brejo e a muçambé do Cerrado, e aproveitam as suas folhas para obter a tonalidade preta, assim como utilizam a fruta do pó-terra, a casca do pequi e a entrecasca da pacari para obter a mesma cor. Para obter uma tonalidade amarela, as artesãs utilizam a amarelinha do brejo. Sobre a produção da cor amarela com esta planta, Natalina Nogueira da Costa, artesã que trabalha com a criação de redes, esteiras e outros objetos com a fibra do buriti no povoado de Porcos na zona rural de Cocos (Bahia), comenta que, “você tem que pegar ela, põe no sol para secar, na hora que tiver seca você leva ela pro pilão, mói ela, bota na vasilha e põe para cozinhar”131. No processo de cocção da cor amarela, a artesã ainda coloca o barro, que tem função de mordente 131 Informação verbal. Natalina Nogueira da Costa. Depoimento oral em 9 de agosto de 2019. 306 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 (fixador). Segundo Natalina, “a gente pega o barro, coloca na água, põe para ferver e dá o caldo amarelo”. De acordo com a artesã, a amarelinha do brejo “rapidinho pega, no mesmo dia dá”. Natalina também diz que a semente do urucum é rápida para realizar o tingimento, e ainda conta que “a gente planta o urucum, as outras a gente tem que caçar”132. Nas comunidades tradicionais ou indígenas, segundo Toledo e Barrera-Bassols, os intercâmbios econômicos permitem que as populações rurais obtenham renda com a venda dos produtos ou com a troca de mercadorias, ao mesmo tempo em que se apropriam da paisagem e ainda favorecem a biodiversidade. Essa estratégia, de caráter de múltiplo uso, de acordo com esses autores, permite que esses produtores realizem o jogo da subsistência através da manipulação dos componentes geográfico, ecológico, biológico e genético (genes, espécies, solos, topografia, clima, água e espaço), e dos processos ecológicos (sucessão, ciclos de vida e movimento de materiais)133. De acordo com os pesquisadores, a diversidade de recursos disponíveis impulsiona as famílias a realizar uma produção especializada a partir do uso da vegetação nativa e da reciclagem de materiais integrada a práticas como a agricultura, a criação de animais e o artesanato134. Sobre esse aspecto, no processo de criação com a seda e a palha do buriti no Oeste baiano, as artesãs também realizam reciclagens de materiais. Tradicionalmente, a trama das redes de dormir e das esteiras é produzida com a palha do buriti, sem coloração, assim como também pode ser feita com pequenas varetas extraídas da folha do buriti. Na atualidade, a trama das esteiras e de outras peças também tem sido elaborada com a palha do buriti intercalada com papel laminado de tiras de embalagens recicladas de café, biscoitos e outros produtos industrializados, TNT (tecido não tecido) e tecidos de algodão. A arte das mulheres que trabalham com as fibras extraídas de palmeiras desvela a sobrevivência da memória biocultural dessas comunidades. Utilizo o conceito de memória biocultural do ecólogo Víctor M. Toledo e do geógrafo Narciso Barrera-Bassols (2008), em seus estudos sobre povos indígenas e comunidades tradicionais, e que deu 132 Informação verbal. Natalina Nogueira da Costa. Depoimento oral em 9 de agosto de 2019. 133 Cf. TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 57, nossa tradução. 134 Cf. TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 56-57, nossa tradução. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 307 fruto ao livro “A memória biocultural: a importancia ecológica das sabedorias tradicionais”. Esses pesquisadores afirmam que a memória da nossa espécie possui três distintas dimensões: a genética, a linguística e a cognitiva, as quais se manifestam na nossa diversidade de genes, línguas e conhecimentos. As dimensões genética e linguística demarcam a nossa história a partir de um determinado contexto espacial, ecológico e geográfico e configuram as relações dos sujeitos com o meio ambiente. A dimensão cognitiva sintetiza, interpreta e explica essa experiência histórica quando revela os mecanismos adotados pelas populações no processo de adaptação às condições de vida na Terra135. De acordo com os pesquisadores, a dimensão cognitiva permitiu à espécie humana manter uma relação de intercâmbio e coexistência com a natureza, e o resultado desse processo de assimilações, acumulações e experiências está contido, por exemplo, na memória e nos modos de criação artesanal das mulheres que herdaram de seus ancestrais o conhecimento e saberes das técnicas sobre o processo criativo com distintos materiais disponíveis em seu entorno. Essas três dimensões colocam a memória como o encontro entre o biológico e o cultural, de modo que a capacidade da espécie humana de conhecer e aproveitar os recursos naturais do seu entorno, consoante Victor Toledo e Narciso Barrera-Bassols, ocorreu graças à permanência dessa memória136. O capitalismo globalizado tem ameaçado a memória biocultural das comunidades tradicionais. Este projeto, nas palavras de Catherine Walsh (2017, p. 18), “capitalista-modernizador-extrativista com sua destruição e desapropriação da Mãe Natureza e dos modos de vida em / de relacionalidade”, caracteriza os processos sociais, políticos, tecnológicos e econômicos em que vivemos na atualidade. Para Walsh, as estratégias de resistência e de luta dos povos indígenas e africanos contra a dominação colonial são uma aposta pedagógica decolonial, isto é, um caminho de luta frente às imposições da matriz colonial de poder137. Sobre a importância da memória ancestral, o líder indígena Ailton Krenak (2019) reflete: 135 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 14 136 TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008, p. 15. 137 WALSH, 2017, p. 25-26. 308 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos138. A memória coletiva e biocultural tem um importante papel no processo de reafirmação e reinvenção de tradições, assim como abre um caminho para as lutas pelo direito de existir, ser, pensar, fazer e criar de distintas sociedades e culturas. 2. MULHERES RURAIS E MEMÓRIA BIOCULTURAL: UMA REFLEXÃO INTERSECCIONAL Em um momento em que o mundo enfrenta grandes impactos ambientais decorrentes da destruição da biodiversidade e da natureza, temos exemplos de ações de conservação e preservação do meio ambiente realizadas por mulheres em muitas comunidades do interior do país. Responsável por manter a tradição do cuidado com a terra, com os rios e com as plantas desde tempos imemoriais, a relação que as mulheres estabeleceram com a biodiversidade durante a história garantiu a sobrevivência de suas famílias, o equilíbrio dos ecossistemas e a preservação de todo o restante da natureza em diversas partes do mundo. As mulheres que trabalham como artesãs rurais, como agricultoras, por exemplo, detêm um conhecimento ecológico amplo sobre o manejo dos recursos hídricos, da terra e da vegetação. O atlas das mulheres rurais da América Latina e Caribe, publicado em 2017 (NOBRE; HORA, 2017), apresenta a situação das mulheres rurais em relação ao estado dos direitos delas, suas dimensões sociais e econômicas, sua segurança alimentar e nutricional e os principais desafios das políticas públicas. A publicação define a diversidade 138 KRENAK, 2019, p. 14. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 309 das mulheres, de todas as gerações, que vivem em campos, bosques, selvas e lugares próximos aos cursos de água, como mulheres indígenas, do campo e afrodescendentes, as quais exercem distintas atividades como agricultoras, coletoras de sementes, fibras e frutas139, pescadoras ou assalariadas, assim como aquelas que desempenham atividades não agrícolas, como o artesanato. O atlas destaca o papel das mulheres rurais como protagonistas na transmissão de conhecimentos, de mãe para filha, de tradições orais próprias de sua cultura, de práticas e saberes técnicos sobre a seleção de sementes, reprodução de plantas e usos medicinais de ervas, que são passados de geração em geração, além do trabalho de cuidado da família e dos filhos e de atividades de produção de artesanato e de utensílios. A publicação também coloca em evidência o papel das mulheres, assim como o dos homens, como viabilizadoras de suas histórias de resistência e de organização do trabalho e do território através de suas denominações, como os quilombos no Brasil, os palenques na Colômbia, os cumes na Venezuela e os garífunas na costa atlântica de Belize, Honduras, Guatemala e Nicarágua. De acordo com o atlas, os elementos comuns que caracterizam a vida das mulheres rurais na América Latina e no Caribe são a sobrecarga laboral, em decorrência da divisão sexual do trabalho, a falta de visibilidade do trabalho reprodutivo, produtivo e de autoconsumo, o baixo acesso aos meios de produção (água, terra, sementes e insumos), a baixa qualidade para a produção agropastoril das terras sob seu controle, as dificuldades para participar da vida política e a baixa autonomia econômica e de decisão, ao lado da escassa proteção social. Segundo o atlas, a divisão sexual do trabalho é organizada a partir do princípio de separação e hierarquia. Os trabalhos atribuídos aos homens estão associados à produção de bens e serviços para o mercado e são mais valorizados. Para as mulheres, são atribuídos os trabalhos domésticos, de cuidado e de reprodução da vida. De acordo com a pu139 O atlas revela que, no Brasil, mais de 300 mil mulheres trabalham como quebradeiras de coco babaçu em cinco diferentes estados. Essas mulheres coletam o coco das palmeiras que caem no solo e depois quebram as cascas do fruto. Segundo o atlas, a maioria das palmeiras babaçu estão localizadas em terras privadas, onde seus donos impõem humilhações e ameaças às mulheres coletoras. Muitas quebradeiras de coco estão organizadas no Movimento Interestatal de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e desenvolvem atividades de produção de óleo de coco, farinha e sabão. 310 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 blicação, o trabalho produtivo realizado por mulheres rurais é considerado como ajuda. Nesse contexto, o maior desafio reside em viabilizar e promover o reconhecimento do trabalho das mulheres, assim como dos conhecimentos associados a ele. Em relação à propriedade da terra, o atlas coloca que há uma distinção das condições de homens e mulheres. A desigualdade de acesso à propriedade dos meios de produção é um aspecto marcante das desigualdades de gênero nas zonas rurais, as quais podem ser vistas em mecanismos do mercado e nos costumes patriarcais que desrespeitam as legislações pelo direito à herança. De acordo com o atlas, as medidas adotadas para assegurar o acesso igualitário das mulheres à terra, como a reforma agrária e as políticas públicas de distribuição de terras, ainda têm um alcance muito limitado. O atlas também aponta um ritmo menor de diminuição da pobreza das mulheres na América Latina e no Caribe em relação aos homens. De acordo a publicação, a partir de um corte étnico, os povos indígenas e afrodescendentes tendem a ser mais pobres. Considerando as áreas geográficas, os residentes das zonas rurais têm menor acesso a bens e serviços. E, segundo grupos de idade, as maiores taxas de pobreza estão concentradas entre crianças e idosos. Em relação ao corte de gênero, a receita de homens que não são indígenas nem afrodescendentes é quatro vezes maior do que a de mulheres indígenas e duas vezes maior do que de mulheres afrodescendentes. Em 2014, para cada 100 homens que viviam em casas humildes na América Latina e no Caribe, havia 118 mulheres em situação similar140. O atlas alerta para a necessidade de promoção da cidadania, da proteção social e de ações de combate à violência contra a mulher e recomenda um avanço nas políticas públicas para a redução das desigualdades sociais das mulheres. O material também aponta a necessidade de melhorias no acesso das mulheres à água e à terra, por meio da efetivação das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável 140 De acordo com a FAO, a prevalência média da segurança alimentar severa e moderada, segundo gênero e região, atinge 30% das mulheres e cerca de 25% dos homens. No caso da obesidade, essa assimetria ainda é maior: a proporção de mulheres com obesidade é superior à dos homens, e, em mais de 20 países, a diferença é mais de 10 pontos percentuais maior em relação à obesidade masculina. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 311 da Terra. Recomenda também a melhoria na oferta de serviços e de apoio à produção e ao financiamento por meio da implementação da Estratégia de Gênero do Plano de Segurança Alimentar da Comunidade de Estados Latino-americanos (CELAC). O documento ainda enfatiza a necessidade da participação social das mulheres na política pública, assim como coloca a importância do monitoramento dessas políticas, e propõe que os países construam mecanismos e instrumentos em consonância com a Agenda 2030 para o avanço dos direitos das mulheres da América Latina e Caribe (NOBRE; HORA, 2017). O acesso a bens e serviços e a garantia dos direitos das mulheres rurais são fatores indispensáveis para o desenvolvimento social e ecológico. Mais oportunidades e reconhecimento do trabalho dessas mulheres são medidas eficazes para a diminuição das desigualdades sociais e de gênero e das discriminações de raça, pois sabemos que as condições de vulnerabilidade social em que se encontram as mulheres rurais na atualidade são fruto das experiências de opressão, dominação, exclusão e subordinação que sempre atravessaram essa categoria. Sobre esse aspecto, Lélia Gonzalez (2020) traz uma importante reflexão sobre a estrutura de opressão das mulheres na América Latina: É importante insistir que, no quadro das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está inscrita e muito bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter de sua condição biológica – racial e/ou sexual – as tornam as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Precisamente porque esse sistema transforma diferenças em desigualdades, a discriminação que sofrem assume um caráter triplo, dada a sua posição de classe: as mulheres ameríndias e amefricanas são, na maioria, parte do imenso proletariado afro-latino-americano141. Lélia Gonzalez considera as condições de subordinação e opressão das mulheres indígenas e afrodescendentes como o resultado da questão racial, sexual e de classe, e, por essa razão, essas mulheres são as mais atingidas pelas crises sociais, econômicas, culturais e políticas 141 GONZALEZ, 2020, p. 145-146. 312 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 em nosso continente. De acordo com Gonzalez, devido a essa condição, as mulheres são os sujeitos “que sofrem mais brutalmente os efeitos da crise. Se se pensa no tipo de modelo econômico adotado e no tipo de modernização que decorre dele – conservador e excludente, devido aos seus efeitos de concentração de renda e de benefícios sociais –, não é difícil concluir a situação dessas mulheres”142. Não é difícil concluir também que a falta de reconhecimento e de visibilidade do trabalho das artesãs que vivem em comunidades rurais também é fruto das interconexões das opressões de gênero, classe social, raça e território, uma vez que essas mulheres sofrem os efeitos históricos do colonialismo do poder, do ver e do racismo, de modo que o seu trabalho criativo não é visto como arte e sua produção é colocada às margens dos sistemas de arte e de cultura. Em relação à dominação patriarcal e o respeito à vida das mulheres rurais, Vandana Shiva (2004) argumenta: A recuperação do princípio feminino permite transcender os fundamentos patriarcais do mau desenvolvimento e transformá-los. Permite redefinir o crescimento e a produtividade como categorias vinculadas à produção – e não à destruição – da vida. De modo que é um projeto político, ecológico e feminista, ao mesmo tempo, que legitima a vida e diversidade e que remove a legitimidade do conhecimento e prática de uma cultura da morte que serve de base para a acumulação de capital143. Apesar de todas as ameaças à vida dos povos da América Latina, há um forte movimento popular de resistência ao sistema-mundo capitalista, colonial, racista, patriarcal e extrativista. No Brasil, cabe destacar a resistência de populações através de ações como a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e o movimento de mulheres trabalhadoras rurais que lutam por justiça social, igualdade, liberdade e em defesa das águas e da biodiversidade, como é o exemplo da Marcha das Margaridas, realizado desde 2000 na capital federal, entre tantos outros movimentos de luta. Muitas dessas mobilizações buscam alternativas para o Bem Viver144 das comunidades do campo e denunciam as 142 GONZALEZ, 2020, p. 146-147. 143 SHIVA, 2004, p. 10. 144 O Bem viver/Buen Vivir/Vivir Bien, segundo Alberto Acosta (2016, p. 31), “pode ser interpretado como sumak kawsay (kíchwa), suma qamaña (aymara) ou nhandereko (guarani), ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 313 condições de vida de populações ribeirinhas, quilombolas, geraizeiras, de Fundos e Fechos de Pasto e de quebradeiras de coco babaçu, além de fazerem oposição à tentativa de destruição da vida, da natureza e da democracia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da relação criativa que as artesãs estabelecem com o meio ambiente, a arte aparece como resultado de um processo de uso de técnicas que foram transmitidas de geração em geração por mulheres. A variedade de matérias-primas naturais disponíveis no entorno é um fator importante que tem garantido a continuidade do saber e fazer arte/artesanato em comunidades situadas nas zonas rurais, haja vista que as artesãs retiram da vegetação nativa os insumos básicos para a elaboração de redes, esteiras, cestos e outros objetos, obtêm tintas a partir de corantes vegetais e empregam ferramentas naturais, como o uso de taliscas de buriti, cuias de cabaça e sabugos de milho, para a criação de desenhos e a modelagem e o polimento de potes, panelas e outros objetos feitos de argila – uma tecnologia ancestral de criação artesanal de origem indígena, atualizada por mulheres afrodescendentes e afro-indígenas. O avanço do agronegócio tem provocado a destruição do meio ambiente e, como consequência, tem ameaçado modos de vida e culturas que tem como base o uso respeitoso e consciente da biodiversidade. As tensões socioambientais, a marginalização da criação plástica de mulheres negras, indígenas e afro-indígenas tem estreita relação com as desigualdades sociais e as questões raciais, de classe social, de gênero e território, uma vez que essas mulheres, em sua maioria negras, sofrem os efeitos históricos do racismo e do colonialismo do poder, do ser e do ver. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros e se apresenta como uma oportunidade para construir coletivamente uma nova forma de vida”. Acosta ainda afirma que o “Bem Viver é, essencialmente, um processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza” (ACOSTA, 2016, p. 32). 314 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos (org.). América Latina: territorialidade e práticas artísticas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 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Nesse período, as gravuras e desenhos possuíam um caráter figurativo, didático, documental e, principalmente, de denúncia. Com o presente texto, buscamos traçar um panorama de sua recepção, tanto na imprensa da época como nos livros e trabalhos acadêmicos, tendo como objetivo construir uma revisão para essa narrativa. Além disso, ressaltamos a pertinência de atualizar o debate a respeito das temáticas exploradas, deixando de restringir as imagens unicamente aos discursos do passado, uma vez que ainda suscitam questões nos dias de hoje. Palavras-chave: Gravura Moderna; Renina Katz; Fase Social; Xilogravura; década de 1940-50. Abstract: The artist Renina Katz is recognized for having dedicated years to visual arts, standing out for her contribution to the consolidation of engraving as an expressive artistic representation, a fact responsible for inserting her in the History of Art in Brazil. The social phase corresponds to the beginning of her artistic production, between the 1940s and 1950s, when she dedicated herself to social themes. During this period, the engravings and drawings had a figurative, didactic, documentary and, mainly, political character. With this paper, we seek to outline an overview of her reception, both in the press of the period and in academic works and books, aiming to build a review of this narrative. Furthermore, we emphasize the pertinence of updating the debate on the themes explored, not restricting the images solely to discourses from the past, since they still raise questions today. 145 Mestrando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV/ EBA/UFRJ e Bacharel em História da Arte pela mesma instituição. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 317 Keywords: Modern Engraving; Renina Katz; Social Phase; Woodcut; 1940s-50s. Com mais 70 anos dedicados às artes plásticas, a fase social de Renina Katz diz respeito aos seus trabalhos iniciais, realizados entre 1948 a 1956, ou seja, pouco mais de 10% de sua trajetória. O recorte histórico abrange desde o início de sua inserção no meio artístico, com as primeiras participações nos salões, até a sua afirmação, quando alcançou o reconhecimento dos pares, a atenção da mídia e a musealização de seus trabalhos. O fim dessa primeira fase é marcado por uma série de crises, motivadas por razões estéticas, temáticas, políticas e pessoais. Nesse momento, quando se pôs a reavaliar sua produção artística, percebeu que deveria abandonar a figuração em prol de novas experimentações plásticas, sobretudo porque já não conseguia transmitir as mensagens como gostaria, sendo por vezes incompreendida e mal interpretada. A denúncia teria perdido sua força ou nunca passou de atenuação da pobreza? A própria artista chegou a dizer em entrevistas quais foram as motivações que a levaram encerrar o projeto em questão e começar um novo, adotando novas técnicas e repertórios, bastante diferente do anterior. Sem aderir às tendências da abstração geométrica ou informal, como fizeram alguns de seus colegas, é visível como a ruptura contribuiu para que ela pudesse se reinventar, provando a todos que não estava limitada a um modo de fazer. Com o presente texto, buscamos discutir a recepção de sua fase social, bem como, a partir das ausências identificadas, propomo-nos analisar a singularidade de cada um dos eixos temáticos. Mas antes de prosseguirmos, devemos nos perguntar: Quem é Renina Katz? [FIGURA 1]. Artista fluminense, nasceu no dia 30 de dezembro de 1925, na cidade de Niterói, então capital do estado do Rio de Janeiro. É a primogênita de um casal de imigrantes poloneses, de origem judaica, que se refugiaram após o término da Primeira Guerra Mundial. Eles se conheceram no Brasil, se casaram e aqui fixaram residência (BECCARI, 1981, p. 8). Desde criança recebeu estímulo de seus familiares para as manifestações artísticas, especialmente no que diz respeito à música, chegando a estudar canto, piano e violino. Entretanto, diferente de seus 318 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 primos, que seguiram a carreira de musicista, optou por se dedicar a sua verdadeira paixão: as artes plásticas. Durante a sua infância gostava de desenhar, costumava fazer cópias das ilustrações presentes em livros infantis, como as histórias em quadrinhos e contos dos Irmãos Grimm (KATZ, 1997, p. 16). Quando concluiu o Ensino Secundário, disse ao seu pai que gostaria de ser artista e ouviu que havia escolhido “a melhor profissão para passar fome” (BITTENCOURT, 2008, p. 12). Para alguns, o comentário pode ser interpretado como pessimista, para outros, indica uma visão realista sobre as dificuldades enfrentadas pelos profissionais da arte em nosso país. De todo modo, ele aceitou sua escolha, mas com uma condição: para receber qualquer tipo de apoio, seja financeiro ou afetivo, deveria cursar uma universidade. A própria Renina Katz destacou como o pai atribuía importância em se obter uma formação sistemática, diferente da experiência autodidata, de ateliês ou de cursos livres. No início de 1945, matriculou-se no curso de Pintura da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), dando início a sua formação artística. Conhecida por sua militância política, participou ativamente do movimento estudantil, assumindo ao longo dos anos a função de representante da instituição na União Nacional dos Estudantes (UNE), no Diretório Central dos Estudantes (DCE) e na União Metropolitana dos Estudantes (UME). O engajamento também se manifestou diretamente nas temáticas escolhidas para sua obra gráfica, as quais abarcavam como repertório iconográfico a vida do povo brasileiro, sendo o principal interesse construir uma denúncia das mazelas sociais. Nesse período, frequentava o Café Vermelhinho, point da boemia carioca, considerado um importante espaço de sociabilidade para os intelectuais de esquerda, dos militantes políticos aos escritores e artistas (KATZ, 1997, p. 13; BITTENCOURT, 2008, p. 14). Eles se reuniam para beber, mas também para conversar sobre assuntos diversos e estabelecer parcerias. O convívio com diversas personalidades lhe garantiu indicações para ilustrar crônicas, poemas e reportagens, destacando-se os desenhos para o jornal Momento Feminino e a revista Esfera, no Rio de Janeiro, ambos periódicos vinculados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e fora do estado, a revista Joaquim, no Paraná. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 319 Apesar de ter se formado em Pintura, chegando até a participar de algumas edições do Salão Nacional de Belas Artes (SNBA) na seção destinada a trabalhos dessa técnica, adotou as artes gráficas como sua principal linguagem. Em 1946, simultaneamente ao ensino formal, cursou Desenho de Propaganda e Artes Gráficas na Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde recebeu orientação de xilogravura por Axl Leskoschek e gravura em metal por Carlos Oswald. Depois de concluir o curso, passou a frequentar o ateliê particular do primeiro e se aperfeiçoou com o último no Liceu de Artes e Ofícios (LAO). Entre as suas principais referências visuais se encontra a obra gráfica de Käthe Kollwitz, sendo possível identificar quais imagens foram usadas como modelo. Interessada na contribuição dessa artista no Brasil, a historiadora da arte Eliana de Sá Porto de Simone (2004) estabeleceu uma análise comparativa, não só entre as duas, mas também em relação a Carlos Scliar e Lívio Abramo. Em um curto intervalo, de 1947 a 1950, Renina Katz conseguiu se destacar entre os jovens artistas de sua geração, sem manifestar nenhuma dificuldade para conquistar as láureas do SNBA. Em 1951, recebeu o Prêmio de Viagem ao País, na Divisão Moderna, o que a permitiu conhecer diferentes recantos do Brasil e interpretar a realidade desses locais. O recorte a qual nos referimos como fase social corresponde a produção figurativa, em preto e branco, por vezes mais próxima do realismo social, outras do expressionismo. Na época, devido a associação aos Clubes de Gravura, seu nome era mencionado na imprensa como uma das representantes do realismo social. Todavia, anos mais tarde, na década de 1980, seus trabalhos passaram a integrar exposições sobre a tendência expressionista. O que houve foi uma revisão historiográfica ou um apagamento, no qual grupos foram diluídos e incorporados no guarda-chuva do expressionismo? Também não descartamos uma terceira hipótese, a de ter se inclinado mais para um lado e depois para outro, conforme o que buscava com cada trabalho, alternando entre a dramaticidade e o testemunho direto. Durante uma entrevista à Elaine Bittencourt, a artista se posicionou contrária ao uso de determinadas categorias, pois ainda que o objetivo seja “localizar um movimento historicamente”, e até mesmo “facilitar um pouco a compreensão”, essas também podem atrapalhar 320 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 a experiência do observador. Quando uma obra de arte é classificada como A ou B, espera-se que tal atenda certos preceitos, como o modo de fazer e o que representar. Em vista disso, ela contestou o uso do termo “realista”, afirmando que esse se aplicaria melhor à literatura, mas não às artes plásticas (BITTENCOURT, 2008, p. 27). Anteriormente, já havia dito à Leonor Amarante que em sua juventude “preferia muito mais [...] uma manifestação de caráter expressionista do que aquele realismo meio em banho-maria, requentado, que era o padrão da União Soviética” (KATZ, 1997, p. 20). Mas, independentemente disso, posteriormente afirmou à Radha Abramo que os trabalhos da década de 1950 não poderiam ser considerados expressionistas pela falta de sua típica contundência (ABRAMO, 2003, p. 291). Notamos então uma completa negação por ter sua produção enquadrada a partir dos movimentos artísticos. E, igualmente, ao negar o realismo, a tentativa de se desvencilhar de uma narrativa estritamente partidária. O nome de Renina Katz aparece com frequência em livros escritos por autores interessados na relação entre artistas e o PCB, por exemplo, Aracy Amaral (1984), Dênis de Moraes (1994) e Alberto Gawryszewski (2010). As discussões por eles fomentadas, especialmente os dois últimos, estão mais próximas da história social do que propriamente da história da arte, dado que as gravuras foram postas em segundo plano, encaradas como ilustrações da realidade ou, quando não, documentos históricos, deixando de lado os valores estéticos e formais. Uma gravura pode ilustrar um texto, mas não podemos esquecer que sua função primeira é outra, isto é, ser obra de arte. Nesse sentido, o artista não deve abrir mão de sua criatividade em favor de discursos políticos, limitando-se a uma representação pela representação. Foi a carência de uma análise dessa produção, a neutralidade diante da imagem, que nos motivou a iniciar uma pesquisa sobre a fase social, bastante conhecida, mas pouco estudada. A partir da década de 1960, seu nome passou a integrar livros e dicionários de História da Arte no Brasil, sendo o primeiro deles A Gravura Brasileira Contemporânea, escrito por José Roberto Teixeira Leite, em 1965. Considerado um esforço pioneiro no estudo da gravura moderna em nosso país, o autor foi responsável por estabelecer a divisão de três fases, sendo esse um modo de ressaltar as características ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 321 de cada recorte histórico. O trabalho de Renina Katz está inserido na segunda fase, denominada afirmação, que vai de 1945 até 1955. Nesse período, germinaram iniciativas de núcleos de ensino, locais onde se podia fazer e aprender os processos da gravura. Gradativamente, conquistou sua autonomia, deixando de ser vista como um exercício, hobby ou destinada à reprodução de imagens. O aumento do número de gravadores foi perceptível nos salões e bienais, nas conquistas dos prêmios, assim como nas colunas de artes plásticas. Embora a baixa familiaridade sobre o assunto, os jornalistas e críticos escreveram textos que nos permitem ter uma dimensão da recepção da época, sendo necessário no presente tecer uma análise minuciosa a respeito da produção desses gravadores. O nome da artista também consta no: Dicionário de Artes Plásticas no Brasil (1969), de Roberto Pontual; Dicionário de Artes Plásticas (1970), do Ministério da Educação; Dicionário Delta Larousse (1972); História da Arte Brasileira (1975), de Pietro Maria Bardi; Diário de Bolso (1977) de Walmir Ayala, entre outros. No entanto, somente no final do século XX, mais especificamente em 1997, foi lançado o primeiro livro inteiramente dedicado à sua obra. Mesmo com presença ativa no cenário artístico, com participação em eventos relevantes, levou quase 50 anos para que isso pudesse acontecer. E depois, passou mais uma década até a segunda publicação, com pouca ou quase nenhuma diferença de conteúdo. Os dois possuem a mesma estrutura: texto de apresentação, entrevista, seleção de imagens e currículo. Além disso, não há um recorte específico, uma vez que contempla uma visão panorâmica de sua trajetória. Mas, por outro lado, independentemente da originalidade, as respostas dadas as perguntas são únicas, pois foram ditas em contextos e a pessoas diferentes. Aliás, as repetições nos permitem tanto uma revisão do discurso, como do mesmo modo podem reforçar o posicionamento sobre determinado assunto. Entre os anos de 1940 e 50, os periódicos da imprensa comunista, como a Fundamentos, em São Paulo, e a Imprensa Popular, no Rio de Janeiro, desempenharam um papel fundamental na divulgação do trabalho de Renina Katz e de seus pares. O levantamento de material na Hemeroteca Digital Brasileira nos permitiu dimensionar a recepção e circulação de sua obra gráfica, tal como observar seu crescimento no 322 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 meio artístico. Após a conquista do Prêmio de Viagem, em 1951, multiplica-se o número de ocorrências, resultado da visibilidade alcançada. É a partir desse momento que passou a expor com maior regularidade, tanto individualmente como em mostras coletivas, dentro e fora do país. Tal condição também implicou uma maior cobrança, visto que não havia mais como passar despercebida nos eventos, pois estava em evidência. O envio de uma gravura para o Salão conseguia render comentários a respeito da escolha, referindo-se a ela como acertada ou equívoco. Semelhante ao caso do livro, é somente na década de 1990 que seu trabalho passou a ser adotado como objeto de pesquisa na academia. A ocorrência mais antiga é da tese de Eliana de Sá Porto de Simone, defendida em 1993, na Universidade de São Paulo (USP). Apesar da pesquisa ter como foco Käthe Kollwitz, uma atenção especial é dada à gravadora brasileira, contemplando o recorte de nosso interesse. Posteriormente, foi a vez de suas aquarelas e litografias serem estudadas por Ana Maria Netto Nogueira. Não obstante, essas dissertações abrangem outros nomes, investigados em conjunto, a fim de contribuir para o debate propostos pelas autoras. Desse modo, o trabalho de Gloria Cristina Motta, de 2007, seguido de Regiane Aparecida Caire da Silva, em 2009, ambos desenvolvidos no mestrado, são notáveis por trazer protagonismo à obra de Renina Katz. Mas infelizmente, só depois de uma década sua produção seria resgatada, despertando entusiasmo, pela primeira vez, no recorte da fase social. O que motiva João Paulo Ovidio, Ana Heloiza Albano, Gabriela Hermenegildo e Luana Medina Fortes escreverem sobre o mesmo objeto, quase concomitantemente? A fase social se caracteriza pela adoção do povo brasileiro como temática, sendo representados os camponeses, operários, pescadores, retirantes e as lavadeiras na favela, personagens recorrentes na arte moderna brasileira. O que nos contam as imagens? Quais são as referências visuais e/ou literárias? A produção de série limita ou expande as interpretações? Em síntese, o que conhecemos sobre essa fase está restrita às 45 peças que compõem o álbum Antologia Gráfica (1977), editado por Julio Pacello e com texto de apresentação de Flávio Motta. Lançado pela Editora Cesar, a publicação contou com 80 exemplares destinados à venda e mais 10, marcados de A a J, para colaboradores. As imagens estampadas nos livros, assim como as obras presentes nos acervos, são ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 323 praticamente as mesmas dos álbuns, com raríssimas exceções. Ao voltarmos nosso olhar para as gravuras, foi possível agrupá-las em quatro eixos, sendo eles: trabalhadores, favelas, retirantes e outras temáticas. No primeiro eixo, trabalhadores, observamos a representação homens e mulheres exercendo diversas atividades. Nos jornais da época, ainda encontramos títulos de desenhos e gravuras dos quais desconhecemos o paradeiro, mas que reforçam a frequência do assunto, como: Jornaleiro, Costureira, Verdureira. No campo, eles aparecem principalmente nos canaviais e cafezais, sempre de chapéus para se protegerem do sol e com suas ferramentas em mãos. No espaço urbano, as mulheres estão ausentes, vemos somente os homens, nas construções civis. Fortes, com braços torneados, transmitem vitalidade, mas, ao mesmo tempo, os pés descalços e as roupas surradas, a precariedade. Os trabalhadores [FIGURA 2] estão em ação, usam pás e enxadas, empurram carrinhos de mão, deslocam-se de um lugar a outro. Anônimos, eles se encontram em grupos, de perfil ou de costas, sem a abertura para o contato visual. Ao limitar os rostos a silhuetas, ela não só constrói um padrão, como também os nega individualidade. Nesse recorte, a artista deu mais atenção aos gestos, o movimento do corpo, do que propriamente o serviço por eles realizado. No canteiro de obra, há somente uma sugestão de arquitetura, traços verticais e horizontais que insinuam vigas, e nada mais. Em um país como Brasil, de herança colonial, o trabalho físico, manual e mecânico, exercido pela parte mais pobre da população, está associado aos valores escravocratas, como a exploração dos corpos e a desvalorização da mão de obra. A fase social de Renina Katz nos apresenta o retrato das desigualdades sociais, bem como, ao fazê-lo, indica a manutenção dos privilégios da elite, como o direito ao ócio. O fato de não ter sequer uma cena de descanso, nem mesmo para o almoço, evidencia a árdua realidade dos trabalhadores, que além da falta de boa estrutura e de uma remuneração justa, também enfrentavam longas jornadas de trabalho, sem dispor de tempo para o lazer. Como veremos adiante, a labuta reaparece em outros eixos, como é o caso da favela, no qual predomina os “serviços domésticos”. No eixo favela, como destacou Eliana de Sá Porto de Simone, o protagonismo é feminino, sendo raras as cenas com a presença 324 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 masculina, e quando essa aparece, costuma ser uma criança, o filho de alguém. Diferente de muitas pinturas da primeira metade do século XX no Brasil, como as de Di Cavalcanti, o corpo representado por Renina Katz não foi hipersexualizado. Mas, todavia, não podemos nos esquecer, que ainda assim são imagens de mulheres pretas, periféricas, mães solos, gravadas por uma mulher branca, de classe média, que lançou olhar etnográfico para um grupo a qual não pertence e pouco conhece a realidade, sendo então passível da reprodução de estereótipos. A artista começou a representar o morro na década de 1940, quando ainda morava no Rio de Janeiro, e o explorou durante toda fase social. Apesar disso, há poucos comentários a respeito dessa temática quando comparada as demais, talvez, por ter investido bem mais na divulgação da série Retirantes. Em ocasião da III Bienal de São Paulo, em 1955, expôs quatro xilogravuras sobre a temática favela no certame. À parte da sociedade, as mulheres pretas estão sempre inseridas no morro, sem nenhum tipo de contato com a vida no asfalto. Em vista disso, questionamo-nos se de fato há um protagonismo ou se ela apenas reforça a exclusão. Não podemos nos esquecer que é desse exato momento, dia 15 de julho, o primeiro relato do diário de Carolina Maria de Jesus, presente no Quarto de Despejo (1960). A leitura desse livro confirma a possibilidade de diálogo entre imagem e texto, uma vez que as gravuras vão de encontro à diversas passagens, como as idas até a única torneira da favela para buscar água. Duas mulheres, duas realidades distintas, porém, um assunto em comum. Enquanto a primeira assumiu a posição de observadora, ocupando-se de interpretar graficamente o que via, a segunda se dedicou a escrever sobre a sua vivência, compartilhando o olhar de quem está inserido naquela realidade. Selecionamos duas gravuras que conseguem resumir bem todo o eixo. Na primeira imagem [FIGURA 3], observamos uma cena aberta, com algumas cabras no primeiro plano e mais adiante mulheres carregando lenha na cabeça, rumo aos barracos, ao fundo. Em entrevista cedida ao historiador da arte Renato Palumbo Dória, a própria artista disse como a representação desses animais, devido à elegância do pescoço alongado, estava mais próxima de uma lhama do que uma cabra (DÓRIA, 1996, p. 313). Em todas as gravuras o animal aparece de cosANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 325 tas ou na diagonal, mas nunca na posição frontal. Os chifres, voltados para o lado, assemelham-se com a letra “v”. A paisana, não estabelecem nenhum contato físico com as pessoas. Na segunda imagem [FIGURA 4], uma mulher, com lenço na cabeça, lava as roupas em uma bacia apoiada sobre um caixote e as estende no varal. A silhueta de criança, sentada, a observa, enquanto uma outra chega com uma lata d’água na cabeça para ajudá-la. Paupérrimas, as mulheres trabalhavam como lavadeiras a fim de sustentar suas famílias. Diferente dos outros eixos, Camponeses em terra: os Retirantes foi o único pensado desde o início para formar uma série e, assim sendo, conseguimos identificar uma narrativa coesa. Quando adotamos uma organização sequencial, torna-se possível apresentar a trajetória das famílias que migravam do sertão nordestino rumo à metrópole, São Paulo (Figura 5). Constituída por 22 peças, a artista dedicou cerca de dois anos para a conclusão do projeto. São imagens de seca, fome e angústia. As pessoas caminham sob o sol escaldante, com seus pertences reunidos em trouxas e embrulhos, carregados nas mãos, ombros e às vezes no lombo de animais. À noite, depois de quilômetros percorridos, montavam acampamento, no relento, para continuar no dia seguinte. Os retirantes viajavam no pau-de-arara, um transporte irregular que os permitiam sair de sua terra natal em busca de uma vida melhor, em outro lugar. Acompanhamos até o desembarque do trem, a falta de abrigo e emprego, a necessidade de pedir esmolas, a exclusão nas ruas. Aos finais de semana, Renina Katz ia até a Estação do Norte, atual Estação Brás, para desenhar as pessoas que chegavam do Trem Baiano (SALLES, 1993, p. 8 apud GRAVURA, 2000, p. 86). No ateliê, os desenhos de observação auxiliavam na produção das gravuras, bem mais elaboradas. Em agosto de 1953, em ocasião de sua exposição individual no Diretório Acadêmico da ENBA, apresentou entre 40 trabalhos recentes as primeiras oito pranchas da série. Ainda incompleta, expor o conjunto inicial a permitiu ter um retorno da crítica, importante para avaliar se, e como, deveria continuar. Vale destacar que o texto de apresentação foi escrito por Candido Portinari, pintor conhecido por sua série de quadros sobre os retirantes, de 1944-1945. Nesse período, o sertão nordestino era um assunto que interessava não apenas os artistas plásticos, como 326 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 também profissionais do cinema e literatura, de modo que podemos citar como exemplo o filme O Cangaceiro (1953), dirigido por Lima Barreto, e na literatura o livro de poemas Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral de Melo Neto. Quanto à recepção das gravuras de Renina Katz, tanto Mário Barata, no Rio de Janeiro, quanto José Geraldo Vieira, em São Paulo, teceram comentários em suas colunas de artes plásticas, respectivamente no Diário de Notícias e na Folha de S. Paulo. As gravuras sobre essa temática participaram de várias exposições, merecendo destaque para a mostra internacional da XXVIII Bienal de Veneza, na Itália, em 1956. No quarto e último eixo, as gravuras reunidas não se enquadram em nenhum dos grupos anteriores. Em menor quantidade, se dividem em: paisagens, sem a presença de figuras humanas, nas quais as árvores, em primeiro plano, escondem a maior parte da visão da cidade (Figura 6); e as ilustrações para o livro de Jorge Amado, contemplando assuntos diversificados, como a brincadeira do pau de sebo. Embora seja possível identificar temáticas, como foi supracitado, elas não compõem uma unidade como as demais. Independentemente disso, a artista as selecionou para integrar seu álbum, o que indica que lhes atribuiu uma importância. Por fim, ressaltamos que existem diversas possibilidades de estudo para a fase social de Renina Katz, uma análise baseada na história, literatura ou na atualização dos signos, uma análise que abarque questões de classe, gênero e étnico-raciais, que problematize a qualidades estética e as escolhas temáticas. Por exemplo, enquanto Gabriela Hermenegildo pesquisa esse conjunto de trabalhos por estar interessada na produção de gravadoras mulheres na imprensa comunista, Luana Medina Fortes, por sua vez, está interessada na representação, tendo como proposta uma leitura feminista interseccional. O mesmo objeto, dois trabalhos, duas maneiras diferentes de abordar a questão de gênero. Quanto à Ana Heloiza Albano, sua monografia lança um olhar para o álbum, em vista disso, está mais preocupada em analisar as temáticas a partir do repertório história da arte. Anteriormente, durante a graduação, debruçamo-nos igualmente a esse conteúdo. Porém, nesse momento, compreendemos o quanto é importante escrever sobre à obra gráfica ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 327 de Renina Katz à luz da contemporaneidade, tanto quanto foi escavar o passado para entender o contexto histórico. Por esse motivo, em nossa pesquisa, defendemos a leitura de autores que compartilham uma nova perspectiva em relação aos personagens, cenários e histórias que constituem a fase social. As gravuras são atuais porque a desigualdade, o preconceito e a exclusão ainda são práticas vigentes em nossa sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, Radha. Renina Katz e sua arte. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, set/dez. 2003, p. 287-302. AMARAL, Aracy A. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Studio Nobel, 1984. BECCARI, Vera d’Horta. O Personagem na Semana: Renina Katz. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 04 out. 1981. Suplemento Cultural, p. 8-9. BITTENCOURT, Elaine. Renina Katz. 1ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. GAWRYSZEWSKI, Alberto. Arte visual comunista: imprensa comunista brasileira, 1945/1958. Londrina: LEDI/UEL, 2010. KOSSOVITCH, Leon; LAUDANNA, Mayra e RESENDE, Ricardo. GRAVURA: arte brasileira do século XX. São Paulo: Itaú Cultural: Cosac & Naify, 2000. KATZ, Renina. Renina Katz – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997 – (Artistas da USP 6) MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1 OVIDIO, João Paulo Brito dos Santos. Antologia gráfica, antologia crítica: os discursos críticos sobre as gravuras de temáticas sociais de Renina Katz (1948/1956). 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História da Arte) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. 328 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 SIMONE, Eliana de Sá Porto de. Käthe Kollwitz. São Paulo: Edusp, 2004. Imagens: Figura 1- Renina Katz em seu ateliê. Fonte: Acervo Cedoc / Pinacoteca de São Paulo. Foto: Ruy Santos, ca. 1949. Figura 2 - Renina Katz. Trabalhadores. Xilogravura, 19 x 26,5 cm. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 329 Figura 3 - Renina Katz. Favela. Xilogravura, 29,3 x 27 cm. Mulheres carregando lenha. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP). Figura 4 - Renina Katz. Favela. Xilogravura, 20,2 x 14 cm. Lavadeira. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP). 330 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 5: Renina Katz. Retirantes (Estação). Xilogravura, 19,5 x 24 cm. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 331 Figura 6: Renina Katz. Árvores. Xilogravura, 25,5 x 18 cm. Fonte: Acervo do Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP) 332 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A RAIZ GEOGRÁFICA COMO “AUTENTICIDADE” DOS SUBSTRATOS PERIFÉRICOS: APROXIMAÇÕES ATRAVÉS DO ESCULTOR NAGARE MASAYUKI João Kurohiji146 – joaokurohiji@usp.br Resumo: Escultor nascido em Nagasaki, Japão, os trabalhos de Nagare Masayuki (1923-2018) são majoritariamente baseados em um criar escultórico sobre a pedra. Termos associados a uma tradição ou cultura japonesa, ou do Leste Asiático, permeiam as descrições de sua vida e obra. Além disso, de forma geral, o próprio artista opta por dialogar em sua produção com formas e sensibilidades japonesas e/ou orientais. Sobre a obra do escultor, a historiadora da arte Joan Stanley-Baker (1984) afirma que sua autenticidade reside em seu comprometimento com suas raízes nacionais. Tendo isso em vista, o presente artigo teve por objetivo problematizar tal critério de originalidade ao realizar aproximações à noção, decorrente da obra de Nagare, de raiz geográfica enquanto “autenticidade” dos substratos periféricos. Essas aproximações ocorreram através do diálogo entre referenciais teóricos dos estudos decoloniais e da história da arte global, bem como outros autores que possuem afinidades com a questão debatida. Em consonância, também foram discutidos autores que escrevem a partir de um contexto japonês e/ou oriental. Consequentemente, buscou-se discutir as relações desiguais de poder sobre as quais a modernidade e a narrativa da arte moderna se constituíram em conjunto com suas implicações, como a constante e persistente necessidade de acessar as obras de artistas considerados periféricos por meio do que é tido como peculiar, ou autêntico, de suas origens geográficas, numa visão do mundo artístico pautada em diferenciações culturais e nacionais. 146 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “A Sobrevivência da Pedra”, orientada pela Profa. Dra. Michiko Okano, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 333 Palavras-chave: Estudos Decoloniais; História da Arte Global; Raiz Geográfica; Substratos Periféricos; Nagare Masayuki. Abstract: A sculptor born in Nagasaki, Japan, the works of Nagare Masayuki (1923-2018) are mostly based on a sculptural creation in stone. Terms associated with a Japanese or East Asian tradition or culture permeate the descriptions of his life and work. Furthermore, in general, the artist himself chooses to dialogue with Japanese and/or Oriental forms and sensibilities in his production. About the sculptor’s work, art historian Joan Stanley-Baker (1984) states that its authenticity lies in its commitment to its national roots. With this in mind, the present article aimed to problematize this criterion of originality by approaching the notion, arising from the work of Nagare, of geographical roots as the “authenticity” of peripheral substrates. These approximations took place through the dialogue between theoretical references from decolonial studies and the global art history, as well as other authors who have affinities with the issue debated. Accordingly, authors who write from a Japanese and/or oriental context were also discussed. Consequently, we sought to discuss the unequal power relations on which modernity and the narrative of modern art were constituted together with their implications, such as the constant and persistent need to access the works of artists considered peripheral through what is taken for granted as peculiar, or authentic, to their geographical origins, in a view of the artistic world based on cultural and national differences. Keywords: Decolonial Studies; Global Art History; Geographical Roots; Peripheral Substrates; Nagare Masayuki. 334 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 INTRODUÇÃO O escultor Nagare Masayuki147 (1923-2018) nasceu em Nagasaki, Japão. Seus trabalhos, majoritariamente em pedra, são comumente descritos como possuidores, além de sua modernidade, de sensibilidades ou formas japonesas tradicionais148. É também interessante nos atentarmos que Nagare alcançou maior reconhecimento artístico inicial nos Estados Unidos do que em solos japoneses (YAMASHITA, 1994), bem como que a obra Receiving (1959-60) foi a primeira escultura realizada por um artista de origem japonesa a ser integrada permanentemente ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1960 (Ibid., p. 279). Termos como Japão ou japonês, samurai, artes tradicionais, zen budismo, xintoísmo, yin-yang, entre outras, figuram as descrições de sua vida e suas obras149. Entretanto, coexistem e integram a modernidade artística de Nagare questões e sensibilidades japonesas que o artista opta por tratar e ser associado. Aproximado em método ao artista Isamu Noguchi (1904-1988) pela historiadora da arte Joan Stanley-Baker (STANLEY-BAKER, 1984, p. 199), Nagare foi considerado no início da década de 1970 pelo crítico de arte Ogawa Masataka uma figura que “[...] abriu portas no exterior para a escultura moderna japonesa” (OGAWA, 1972 apud YAMASHITA, 1994., p. 294, tradução nossa). Conjuntamente, as experiências e estudos de Nagare nas diversas esferas da vida e cultura japonesa local, sua experiência em artes marciais, a estadia em templos de Quioto, as aprendizagens das etapas da artesania tradicional de espadas na oficina de forja de espadas Ritsu147 Os nomes próprios de nativos do Leste Asiático estão escritos conforme o sistema de escrita convencional da Ásia Oriental, no qual o sobrenome precede o prenome. 148 Em exemplo, como também foi apontado em referência às denominadas “esculturas míticas” realizadas por Nagare a partir de motivos japoneses ao utilizar-se de um vocabulário moderno da arte (YAMASHITA, op. cit., p. 295-6). 149 Além da publicação Stone Crazy (1963) da revista Time e Yamashita (op. cit.), veja, por exemplo, um breve texto sobre Nagare disponibilizado pela casa de leilões Christie’s disponível em: https://www.christies.com/en/lot/lot-2401914. Acesso em: 18 jan. 2022, e a página para a obra Stone Riddle (1967) no site do Museu de Arte da Universidade de Princeton para obras do campus disponível em: https://artmuseum.princeton.edu/campus-art/objects/31575?lat=40.3505&lon=-74.6511. Acesso em: 18 jan. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 335 meikan enquanto frequentava a Universidade Ritsumeikan também em Quioto, e suas relações com as artes tradicionais japonesas, bem como o budismo e o xintoísmo, informam de certa forma sua prática artística, como comentado em descrições de sua vida150. Ademais, no seu texto para o documentário experimental Ishi no Uta (1963), o título pode ser traduzido ao português como Canção das Pedras, do realizador Matsumoto Toshio (1932-2017), Nagare identifica o louvor à pedra no trabalho dos artesãos da produção de granito da vila de Aji, situada na prefeitura de Kagawa, ilha japonesa de Shikoku. Local onde o artista envolveu-se e contribuiu para as atividades e as vidas dos trabalhadores locais ao reunir um grupo denominado de Sekishojuku (YAMASHITA, 1994, p. 280). Ademais, Nagare possui um estúdio em Aji. No documentário, o escultor evidenciou um senso de tradição e de significância da pedra no contexto da pedreira, assim como a atitude afetiva e de respeito que os trabalhadores possuem para com a mesma. Ainda a partir de Ishi no Uta (1963), o trabalho escultórico de Nagare aparenta confundir-se com o trabalho dos artesãos de Aji, uma confluência com o labor tradicional de trabalhadores da pedra também já apontada (YAMASHITA, op. cit., p. 275). Consonantemente, na matéria publicada em 1963 pela revista estadunidense Time, intitulada Stone Crazy, sobre Nagare, é associado ao material de sua escultura a “[...] antiga reverência japonesa pela textura e forma da pedra” (STONE..., 1963, n.p., tradução nossa). No texto, é dito que Nagare acredita que “as pedras devem registrar a mente da natureza [...]” (Ibid., n.p., tradução nossa) e, ainda de acordo com a matéria, seria através delas que um diálogo com a natureza é estabelecido, diálogo esse que o escultor afirma serem os orientais mais capazes de realizar do que os ocidentais. Nagare sinaliza um estado de diálogo entre a mente da natureza sedimentada na pedra e a sua própria na obra Mind to Mind (1965), do acervo do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), o que pode sugerir uma busca por um estado de união com a natureza no 150 Para maiores e outros detalhes acerca dos dados bibliográficos trazidos ao longo do parágrafo, leia Yamashita (op. cit.). 336 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 processo artístico. Na obra, é possível percebermos o encontro de duas técnicas pelas quais o artista é conhecido, o warehada (textura quebrada) – em que a superfície crua ou texturizada do mineral é mantida ou induzida em conjunção com uma face polida –, e o método tsutsuki migaki, no qual marcas registradas pela goivagem do cinzel do artista são mantidas mesmo após o polimento – as tatilidades áspera e polida, assim, coexistem numa mesma face da pedra (YAMASHITA, op. cit., p. 276). Com o diálogo entre o cinzelamento, a textura da pedra quebrada e o polido, a relação entre os diferentes estados da pele do corpo mineral se faz presente na sua forma escultural arredondada e incisiva, de contrastes entre declives e elevações. Isto posto, frente aos elementos e sensibilidades culturais locais tanto nas descrições feitas sobre sua obra quanto no próprio posicionamento de Nagare perante seu trabalho, Stanley-Baker afirma que suas “[...] obras nunca foram falsas às suas raízes Japonesas [...]” (STANLEY-BAKER, 1984, p. 199, tradução nossa). Ainda, em consonância com o reconhecimento inicial do escultor nos Estados Unidos mencionado anteriormente, a autora (Ibid., p. 199-200) demonstra-se insatisfeita com a negligência do “establishment artístico japonês” (YAMASHITA, op. cit., p. 292, tradução nossa) acerca da obra de Nagare. Tal insatisfação de Stanley-Baker e sua colocação em relação ao escultor também foram comentadas pelo autor Roy Starrs (2012, p. 1213). Ao atribuir autenticidade às obras do escultor devido a essa característica nacional de seu repertório, em contraposição ao que é entendido pela historiadora como simplesmente emulado da arte internacional, Stanley-Baker enraíza Nagare nos limites de seu caráter nativo, associando as produções que se aproximam em forma e conteúdo das do centro artístico como emulativas, e, portanto, sem originalidade. O uso da ideia da raiz pela autora é emblemático na medida que a raiz – assim como de certa forma atua em uma árvore ou ser vegetal, por exemplo – confina os artistas nativos de países periféricos em seus respectivos substratos esperados e ignora (ou minimiza) sua situacionalidade e inter-relacionalidade com outros seres e localidades. Dessa forma, nas linhas a seguir serão feitas aproximações às discussões presentes na história da arte global e decolonial em relação ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 337 às amarras geográficas dos artistas nativos das periferias do globo a partir do posicionamento da historiadora da arte Stanley-Baker acerca da obra do escultor Nagare Masayuki, apresentado nesta introdução. 1. DESENVOLVIMENTO Uma vez que, embora seja moderna, a obra de Nagare possui autenticidade devido à sua alteridade geográfica em comparação ao centro, internacional e produtor, ou a outras localidades, a afirmação de Stanley-Baker parece integrar a perspectiva marginalizante de que a modernidade artística é um fenômeno caracterizado pelo novo que ocorre particular e unidirecionalmente em substratos europeus e/ ou ocidentais, sucedendo-se nas partes periféricas do mundo de forma emulativa. De acordo com a teórica e curadora Ming Tiampo: A narrativa [da história do modernismo] assume duas coisas: (1) que o modernismo era um sistema fechado, localizado no Ocidente e implacavelmente disseminado em seus territórios sem troca recíproca, e (2) que uma vez “transplantado”, o modernismo foi replicado em torno do mundo, resultando em nenhuma contribuição original digna de inclusão em sua história151 (TIAMPO, 2011b, p. 3, tradução nossa). Consequentemente, as contribuições artísticas modernas dessas outras partes do globo tornam-se significativas no que tange sua autenticidade através da presença do exótico, de uma qualidade nacional. Tiampo (Ibid., p. 46) também se aproxima em parte de tal ponto de vista ao apontar a narrativa ocidental do modernismo enquanto uma entidade central ao redor da qual outras modernidades artísticas orbitam – quanto mais distantes, mais novas ou exóticas, quanto mais próximas, mais emulativas (ambas posições não deixam de nos levar à atitude comparativa para com um centro). Entretanto, apoiada no historiador da arte Inaga Shigemi, Tiampo segue ao indicar que a distância ou a di151 The narrative assumes two things: (1) that modernism was a closed system, located in the West and relentlessly disseminated to its territories with no reciprocal exchange, and (2) that once “transplanted”, modernism was replicated around the world, resulting in no original contributions worthy of inclusion in its history. 338 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 ferença plena em relação a essa narrativa ocidental do modernismo não é análoga à originalidade, uma vez que leva à irrelevância ou mesmo incompatibilidade com a ideia de arte dentro de sua história. A mesma lógica vale ao plenamente próximo, considerado, então, emulado. Segundo o pesquisador Yun Kusuk (2018), a busca por uma qualidade geográfica nativa – ainda esperada na produção de artistas originários em países à margem do centro artístico na contemporaneidade – está frequentemente baseada em estereótipos e clichés nos quais o exotismo está alicerçado, que atuam em divisões de culturas nacionais que dialogam entre si na alteridade. A dicotomia Ocidente e Oriente, por exemplo, permanece nas constantes diferenciações entre tais categorias. Assim, os esforços da História da Arte Global residem em, de acordo com os autores Béatrice Joyeux-Prunel (2019) e Thomas daCosta Kaufmann, Catherine Dossin e Béatrice Joyeux-Prunel (2016), articular uma narrativa global que se afaste de configurações hierárquicas sobre as circulações artísticas e das limitações geradas por essas compartimentalizações culturais e geográficas. Somada à fragmentação geográfica e cultural hierárquica de um mundo cada vez mais interconectado denunciada pela história da arte global, está a dinâmica unidirecional entre centro e periferia comentada inicialmente. Tais movimentos evidenciam relações políticas e de poder assimétricas, relações essas que não são limitadas somente às circulações artísticas, mas também perpassam as circulações de ideias: [...] o eurocentrismo funciona como um locus epistêmico de onde se constrói um modelo de conhecimento que, por um lado, universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir e, por outro, designa seus dispositivos de conhecimento como os únicos válidos (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019, p. 7). Associa-se a tal ideia do poder eurocêntrico universalizante e disseminado, o entendimento de que a modernidade é um fenômeno particularmente ocidental e/ou europeu, e, portanto, um modelo central para retorno comparativo com outras práticas artísticas relativamente adverso a uma particularidade nacional ou cultural - uma vez que, diANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 339 gamos, o grau da localização de Nagare entre um e outro “extremo” atribuiria ao artista a posição de mais verdadeiro ou falso às suas raízes. Existem, subjacentes à tal fragmentação e dinâmica da formação da modernidade, relações de poder que estão intimamente relacionadas à colonialidade, acusadas pelas discussões de perspectivas decoloniais ou da história da arte decolonial. Os estudos decoloniais discutem justamente a presença do poder envolvida nesses discursos: Os estudos decoloniais compartilham um conjunto sistemático de enunciados teóricos que revisitam a questão do poder na modernidade. Esses procedimentos conceituais são: [...] 3. A compreensão da modernidade como fenômeno planetário constituído por relações assimétricas de poder, e não como fenômeno simétrico produzido na Europa e posteriormente estendido ao resto do mundo; 4. A assimetria das relações de poder entre a Europa e seus outros representa uma dimensão constitutiva da modernidade e, portanto, implica necessariamente a subalternização das práticas e subjetividades dos povos dominados; [...] (Ibid., p. 5). A assimetria de poder presente nas relações entre os impérios europeus, e posteriormente o dos Estados Unidos, e os outros subjugados é também denunciada pelos estudos sobre o Orientalismo de Edward W. Said. Considerado um dos pioneiros dos estudos subalternos e pós-coloniais, embora não tenha se associado diretamente a eles (Ibid., p. 3-4), Said (2007) aponta para a ideia de uma realidade planetária que é permeada por inúmeras circulações culturais, interdependências, entre civilizações e que envolve muito mais complexidades e poderes em jogo do que simples essencializações derivadas de uma origem geográfica ou de polarizações territoriais genéricas. O Orientalismo, além de uma distinção geográfica, “[...] é um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e (na maior parte do tempo) o ‘Ocidente’” (Ibid., p. 29). Ao retomarmos o posicionamento de Stanley-Baker sobre a autenticidade da obra de Nagare residir em suas raízes nativas, tal afirmação pode ser reminiscente da natureza do Orientalismo moderno conforme entendida por Said (Ibid., p. 315-6), na qual a alteridade de 340 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 uma determinada localidade oriental é evidenciada através do enraizamento de toda sua modernidade em seus aspectos primitivos. Modernidade essa forçada a ser regredida à suas origens geográficas: Dessa estrutura coerciva, pela qual um homem moderno “de cor” é acorrentado irrevogavelmente às verdades gerais formuladas sobre seus antepassados linguísticos, antropológicos e doutrinários prototípicos por um erudito europeu branco, derivava a obra dos grandes conhecedores orientais do século XX na Inglaterra e na França. A essa estrutura, esses conhecedores também acrescentavam sua mitologia e suas obsessões privadas (Ibid., p. 320). Em consonância com a natureza do Orientalismo moderno recém comentada, a perspectiva marginalizante da modernidade artística discutida no início deste capítulo e os debates da história da arte global, segundo Joyeux-Prunel (2019, p. 434), as diferentes manifestações artísticas externas ao centro artístico internacional ainda são diferenciadas em categorias de caráter geográfico, como também aponta o estudo de Yun (2018), e delineadas aos seus passados – “A história da arte moderna é uma história de inovações sucessivas acontecendo em um centro, minimizando o passado e ofuscando periferias que estão sempre relegadas ao passado [...]”(JOYEUX-PRUNEL, op. cit., p. 434, tradução nossa). Uma estratégia orientalista para que diversos povos do amplamente denominado Oriente sejam “[...] de imediato compreensíveis em vista de suas origens primitivas [...]” (SAID, 2007, p. 316). Tal forma “primitivizante” de se interpretar uma manifestação oriental é também apontada por Yun a partir da citação de um artigo sobre o pintor Kim Whanki (1913-1974), na qual evidencia-se “[...] o ponto de vista do interlocutor na tentativa de compreender o assunto em questão por meio de uma abordagem cultural e religiosa da Ásia” (YUN, 2018, p. 370, tradução nossa). A arte de Nagare torna-se subjugada por suas raízes geográficas, primitivas, e é deixado de lado sua posição artística de agência e escolha - uma posição ativa que é negada ao outro pelo Orientalismo. Tal estado terminal original não é concretamente geográfico, como demonstra Said (2007) nas suas discussões sobre o Oriente enquanto ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 341 construção sobretudo cultural, histórica e política. As relações assimétricas de poder relativas à constituição da modernidade artística – que caracterizam os artistas nativos da periferia do mundo artístico como emuladores do centro na medida que se afastam de suas raízes geográficas, ou ainda geram comparações estilísticas marginalizantes que se voltam à um centro produtor de tendências – negam ou reduzem a capacidade de agência e escolha do outro. Tal unilateralidade também pode ser aproximada à denúncia da ideia de influência realizada pelo historiador da arte Michael Baxandall (2006), embora o autor não discuta a qualidade negativa da noção de influência dentro de uma perspectiva que examina o poder, como a dos estudos decoloniais. Para Baxandall, o ponto de vista da influência na constituição de um objeto artístico implica uma relação desigual entre um sujeito ativo influenciador e um outro passivo influenciado, assim como tal noção evidenciada pelo historiador da arte pode restringir a análise à centralidade do influenciador: [...] o termo [influência] já contém um viés gramatical que decide indevidamente sobre o sentido da relação, isto é, quem age e quem sofre a ação de influência: parece inverter a relação ativo/passivo que o ator histórico vivencia e que o observador, apoiado unicamente em suas inferências, deseja levar em conta. Quando dizemos que X influenciou Y, de fato parece que estamos dizendo que X fez alguma coisa para Y e não que Y fez alguma coisa para X (Ibid., p. 101-2). Com relação ao contexto cultural japonês, em sintonia com a noção de influência para Baxandall, a socióloga Tsurumi Kazuko (2014, p. 62) demonstra-se descontente com o estereótipo de que os japoneses são imitadores – uma concepção superficial da criatividade japonesa em relação às circulações culturais a partir da qual “a representação simbólica de tais trocas como formas de cópia muitas vezes levou a ideias essencializadas sobre cultura, tecnologia e a nação” (COX, 2008, p. 3, tradução nossa). Tsurumi reposiciona a criatividade local em uma posição ativa perante a formação da modernidade: 342 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 No caso de nações que chegaram tarde à modernidade como o Japão, os padrões pré-modernos [de pensamento] são principalmente endógenos (internos) à sociedade ou padrões exógenos (externos) indigenizados durante os primeiros estágios da história da nação. Muitos dos padrões modernos de pensamento foram recentemente introduzidos do exterior, principalmente da Europa. Portanto, quando discutimos “criatividade” no contexto japonês, estamos discutindo os processos de aceitação ou rejeição de padrões de pensamento estrangeiros em relação aos padrões de pensamento nativos152 (TSURUMI, op. cit., p. 66-7, tradução nossa). Assim como as pedras, as quais são o foco do trabalho de Nagare Masayuki, são corporealidades minerais sobreviventes em que diferentes tempos-espaços são nelas sedimentados, para Tsurumi, os “elementos nativos e estrangeiros são empilhados uns sobre os outros, como camadas geológicas. Dentro do mesmo indivíduo, essas diferentes camadas coexistem como partes de um eu [self] multicamadas” (Ibid., p. 67, tradução nossa). Ainda, a teoria do desenvolvimento endógeno de Tsurumi pode nos levar a entender a modernidade europeia enquanto fruto de um desenvolvimento local que se generalizou de forma negativa para outras localidades na forma de um desenvolvimento exógeno153. Tal entendimento é possível de ser aproximado à ideia dos estudos decoloniais citada anteriormente neste capítulo de que o eurocentrismo “[...] universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir [...]” (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019, p. 7). 152 In the case of late-comer nations to modernity like Japan, pre-modern patterns [of thinking] are mainly endogenous (internal) to society or exogenous (outside) patterns indigenized during the early stages of the nation’s history. Many of the modern patterns of thought were recently introduced from abroad, mainly from Europe. So, when we discuss “creativity” in the Japanese context, we are discussing the processes of accepting or rejecting foreign patterns of thinking in relation to native patterns of thinking. 153 A socióloga Shoko Yoneyama (2018, p. 119) vai de encontro com tal colocação ao afirmar que a “teoria da modernização”, é uma forma etnocêntrica dentre outras possibilidades de desenvolvimento, que exige que localidades se desenvolvam com base em padrões de um desenvolvimento endógeno ocidental. São, assim, exógenos e não condizentes com a vida e a ecologia locais, por exemplo. Possibilidades de desenvolvimentos locais, nas palavras de Yoneyama (Ibid., p. 143, tradução nossa), a teoria do desenvolvimento endógeno de Tsurumi consiste em “[...] um protótipo teorético que dá espaço discursivo para pessoas locais em cada lugar para decidirem seu próprio modo de desenvolvimento, baseado em tradições locais e na ecologia local”. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 343 Outro problema que perpassa a dinâmica de poder na modernidade a ser considerado é o entendimento confuso de que o moderno foi, e ainda pode ser, um sinônimo do ocidental no contexto japonês. Como exemplo, o filósofo Yanagi Sōetsu, no texto denominado A Perspectiva Japonesa e datado de 1957, demonstra sua insatisfação ao descobrir que o periódico e exposição intitulados A Perspectiva Moderna do Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio traziam tal perspectiva como um sinônimo da perspectiva ocidental (YANAGI, 2018, n.p.). Apesar da aparente confusão entre o moderno e o ocidental ou dessemelhança entre o moderno e o japonês, o filósofo e crítico literário Karatani Kōjin discute a dificuldade de se desvencilhar desses entendimentos: O conceito do “moderno” é extremamente ambíguo. Isso é verdade, não apenas para os japoneses, mas para os povos não ocidentais em geral, entre os quais o “moderno” e o “ocidental” costumam ser confundidos. Visto que, tanto no Ocidente quanto na Ásia, o moderno e o pré-moderno são distintos um do outro, parece lógico que a modernidade deva ser conceituada separadamente do Ocidente, mas uma vez que a “origem” da modernidade é ocidental, os dois não podem ser tão facilmente separados. É por isso que nos países não ocidentais a crítica da modernidade e a crítica do Ocidente tendem a ser confundidas. Muitos equívocos surgem disso. Um, por exemplo, é que a literatura moderna japonesa, por não ser ocidental, não é totalmente moderna. O outro lado dessa ideia é que, se os materiais e temas de uma obra são não ocidentais, a obra deve ser antimoderna154 (KARATANI, 1998, p. 192, tradução nossa). A atitude de medir o grau de modernidade e nacionalidade, ou de falsidade e originalidade, de uma produção artística periférica também pode ser aproximada ao que é esperado desses artistas outros, como a retórica da modernidade denunciada pelo semiólogo e professor de literatura Walter Mignolo: 154 The concept of the “modern” is an extremely ambiguous one. This is true, not only for Ja- panese, but for non-Western peoples generally, among whom the “modern” and the “Western” are often conflated. Since, in the West as well as Asia, the modern and premodern are distinct from one another, it stands to reason that modernity must be conceptualized separately from Westernness, but since the “origin” of modernity is Western, the two cannot so easily be separated. This is why in non-Western countries the critique of modernity and the critique of the West tend to be confused. Many misperceptions arise out of this. One, for example, is that Japanese modern literature, because it is not Western, is not fully modern. The flip-side of this idea is that, if a work’s materials and themes are non-Western, the work must be antimodern. 344 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 El “supposed to” (lo esperable, lo que debería ser) corresponde [...] a la retórica de la modernidad, la retórica que crea las expectativas de lo que debe ser. Son estas expectativas naturalizadas las que operan en la colonialidad del ser, del sentir (aesthesis) y del saber (epistemología). “Como debería ser” es el horizonte trazado por la fe puesta en la marcha hacia adelante; “como debería ser” es precisamente el horizonte de la colonialidad del ser y del sentir (MIGNOLO, 2010, p. 18). O esperado, na contemporaneidade, pode estar presente na idealização de um critério estético do exótico na inserção das obras desses artistas no cenário internacional, apontada pelos estudos de Yun (2018). Tal idealização, de certa forma, conforme o Orientalismo de Said (2007), pode ter como origem a construção cumulativa de conhecimento do que é o Oriente que o transforma num topos, e a consequente expectativa de conformidade oriental a dado conhecimento. Essa colonialidade também envolve um processo de conservar “[...] o Oriente seletivamente organizado (ou desorganizado)”, como comentado por Said (Ibid., p. 338) através do empreendimento europeu de transformar material e intelectualmente para si os frutos de sua relação de poder com um Oriente. Essa dinâmica desigual do imperialismo e do colonialismo, evidenciada por Said no Orientalismo, vai de encontro com a ideia de mercantilismo cultural da curadora e teórica Ming Tiampo (2011a, 2011b), caracterizada pelo uso europeu de “matérias-primas” de outras culturas – desconsideradas anteriormente, por exemplo, como a “infância da arte” e não como “[...] objeto válido da história da arte” (JOYEUX-PRUNEL, 2019, p. 420, tradução nossa) – em sua constituição da modernidade e a consequente marginalização da produção dos modernismos das mesmas como emulativas do centro exportador de inovações: Isso é modernismo enquanto continua a ser construído por meio do mercantilismo cultural: a periferia é vista tanto como um mercado de exportação cultural quanto como fonte de inspiração, a matéria-prima da arte. Apesar da transnacionalidade do modernismo e de sua confiança nas ideais, mercadorias e tráfico do imperialismo, o discurso sobre o período continua a ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 345 construir o centro como origem155 (TIAMPO, op. cit., p. 332, tradução nossa). Essas produções de outros modernismos seriam então de “segunda categoria”, para utilizarmos o vocabulário de Said, uma vez que foram exportadas do Ocidente para outras localidades. O mercantilismo cultural de Tiampo (2011a, 2011b) busca minar a relação unilateral de origem e universalização que é mantida na narrativa modernista na medida em que as inter-relações transnacionais são eclipsadas pelo poder europeu enquanto centro originário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Isto posto, o presente trabalho apresentou como ponto de partida a afirmação da historiadora da arte Stanley-Baker de que as obras do escultor Nagare Masayuki “[...] nunca foram falsas às suas raízes Japonesas [...]” (STANLEY-BAKER, 1984, p. 199, tradução nossa). De forma semelhante a como é esperado que uma raiz atue no substrato do qual se origina, o posicionamento da autora acerca da produção de Nagare enraíza-o ao que é esperado ser característica dos limites geográficos de seu substrato, considerado periférico, e entendido dentro de uma categoria ou tipo. Assim, os problemas da raiz geográfica enquanto autenticidade levantados aqui foram entendidos em relação à formação da modernidade e da narrativa da modernidade artística, nas quais estão em jogo poderes que estabelecem dinâmicas desiguais entre polarizações essencializantes ou diferenciações como centro e periferia, Ocidente e Oriente, moderno e japonês. Essas polarizações muitas vezes atuam com interesses políticos, nem sempre presentes de forma consciente (KAUFMANN; DOSSIN; JOYEUX-PRUNEL, 2016, p. 2). 155 This is modernism as it continues to be constructed through cultural mercantilism: peri- phery is envisioned both as a cultural export market and as the source of inspiration, the raw materials of art. Despite modernism’s transnationality and its reliance upon the ideas, commodities, and traffic of imperialism, discourse on the period continues to construct the center as origin. 346 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Ademais, é preciso reconhecer que o problema também se complexifica à medida que, por exemplo, o Oriente156 se orientaliza através de tais dinâmicas, como aponta Said (2007, p. 433). Essas relações desiguais também minimizam ou negam ao outro a posição ativa e consciente de sua escolha criativa ao articular determinados elementos que podem ser tidos como particulares de seu substrato geográfico – uma estratégia inclusive de inserção no cenário e mercado artístico internacional, conforme discute Yun (2018). Essas produções e criatividades são simplificadas na medida em que parecem necessitar de uma apreensão que as situe dentro de uma ou outra categoria, de difícil coexistência ou afinidade entre si. Numa realidade artística cada vez mais globalizada, distinções geográficas e culturais esperadas das produções de artistas nativos das margens do centro artístico internacional permanecem de forma proeminente como forma de autenticidade: Ser “exótico” frequentemente auxilia, encoraja e promove o trabalho de artistas não ocidentais na forma do kitsch, que então parece autêntico, específico e original na arte contemporânea internacional. O exotismo reencarna o mito da originalidade, autenticidade e singularidade artística e fortalece o sistema capitalista porque a “raridade” garante alto valor econômico e artístico. Observe que “ser exótico” não é simplesmente uma questão de gosto estético em relação aos países asiáticos; também, no final, levanta a questão da liberdade artística de artistas periféricos hoje condenados a falar quase apenas de seus ancestrais157 (Ibid., p. 384, tradução nossa). As questões discutidas ao longo deste trabalho permanecem 156 É importante nos atentarmos ao fato de que o Oriente tratado por Said não é exata e majoritariamente o Japão ou o Leste Asiático. Ainda, no caso nipônico específico, como podemos ver em sua anterior presença imperialista na atual Coreia do Sul, o país demonstra uma complexidade à delimitação dual dos papéis de sujeito/objeto, de colonizador/colonizado para a teoria do Orientalismo de Said (NISHIHARA, 2005). 157 To be “exotic” often assists, encourages, and promotes the work of non-Western artists in the form of kitsch, which then appears authentic, specific, and original in international contemporary art. Exoticism reincarnates the myth of originality, authenticity, and artistic uniqueness, and strengthens the capitalist system because “rarity” ensures high economic and artistic value. Note that “to be exotic” is not simply a question of aesthetic taste in regard to Asian countries; it also, in the end, raises the issue of the artistic freedom of peripheral artists condemned today to speak almost only of their ancestors. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 347 enraizadas na história da arte e no cenário artístico internacional, conforme demonstra autores como Joyeux-Prunel (2019) e Yun (op. cit.). Frente à urgência de se enfrentar tais relações de poder e particularizações geográficas, e a partir delas reimaginarmos as diversas esferas do mundo artístico, numerosos esforços teóricos e práticos foram e estão sendo empreendidos ao redor do globo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COX, Rupert (Ed.). The Culture of Copying in Japan: critical and historical perspectives. Abingdon, New York: Routledge, 2008. JOYEUX-PRUNEL, Béatrice. Art history and the global: deconstructing the latest canonical narrative. Journal of Global History, Cambrigde: Cambridge University Press, v.14, n.3, p.413–435, Oct. 2019. KARATANI, Kōjin. 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The role of exoticism in international contemporary art in the era of globalization – an empirical study of international art magazines from 1971 to 2010. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n.69, p.362388, abr. 2018. REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS ISHI NO UTA. Direção: Matsumoto Toshio. Roteiro: Nagare Masayuki. Japão: Tokyo TV Eiga (Tokyo Hōsō), 1963. 1 vídeo (25min). 350 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 AURA E AUTENTICIDADE: OS DESENHOS DE J. CARLOS PARA AS CAPAS DE PARA TODOS Jovita Santos de Mendonça158 – jovita@ufrj.br Resumo: Esse trabalho tem por objetivo analisar quatro desenhos preparatórios do caricaturista e ilustrador brasileiro J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-1950) produzidos entre os anos de 1925 e 1930 para publicação na revista carioca “Para Todos…”. Serão discutidas as relações de aura e autenticidade subjacentes a tais obras, tendo como base o clássico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), de autoria do filósofo alemão Walter Benjamin. Ainda que a criação destes originais se destinasse à múltipla reprodução para assim chegar em sua materialização e expressão final, o que essas obras podem nos comunicar, além das escolhas técnicas e estratégias visuais adotadas por J. Carlos? Palavras-chave: J. Carlos; Para Todos...; Revistas ilustradas; Ilustração. Abstract: This paper aims to analyze four preparatory drawings of the Brazilian caricaturist and illustrator J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-1950) produced between the years 1925 and 1930 for publication in the Rio de Janeiro magazine “Para Todos...”. The relationships of aura and authenticity underlying such works will be discussed, based on the classic essay “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (1936), by German philosopher Walter Benjamin. Even if the creation of these originals was destined to multiple reproductions to reach their final materialization and expression, what can these works communicate to us, besides the technical choices and visual strategies adopted by J. Carlos? Keywords: J. Carlos; Para Todos...; Illustrated magazines; Illustration. 158 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Origem, originais e originalidade em J. Carlos: os desenhos preparatórios para as capas de Para Todos… (1925-1931)”, orientada pela Profa. Dra. Marize Malta Teixeira, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 351 Caricaturista, ilustrador e designer gráfico, José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1884. É considerado como um dos maiores representantes da caricatura brasileira, sendo atuante na imprensa entre os anos de 1902 a 1950. Sua obra chegou ao público através das páginas de importantes revistas brasileiras da primeira metade do século XX, tais como “Careta”, “Para Todos...”, “O Malho”, “O Tico-Tico”, “Fon-Fon”, “Illustração Brasileira”, “Vida Moderna”, “A Cigarra”, “O Cruzeiro”, entre muitas outras. Foi o diretor de arte dos títulos publicados pelo grupo S.A. O Malho entre os anos de 1922 a 1931, período em que além de coordenar a atualização gráfica dos títulos distribuídos pela empresa, produziu ilustrações icônicas para as capas da revista “Para Todos…”, uma das principais referências de seu trabalho como artista gráfico. Veículos tão diversos em termos de assuntos e pautas, quanto apelativos à sensibilidade moderna, as revistas ilustradas materializavam um exercício dinâmico de visualidade. Considerando os processos de modernização da comunicação de massa no Brasil da Primeira República, tais publicações tiveram “papel estratégico e de grande impacto social. Articuladas à vida cotidiana, elas terão uma capacidade de intervenção bem mais rápida e eficaz, caracterizando-se como “obra em movimento.” (VELLOSO, 2010, p.43). Nesse sentido, a produção de J. Carlos para os periódicos está diretamente relacionada a um período de grandes mudanças urbanas no Rio de Janeiro, então capital do Brasil: ilustrando novos hábitos, modas e identificações, o artista solidificava e colocava em circulação os símbolos de uma cidade que passava a se entender como moderna. Partindo do contexto apresentado, esta pesquisa tem como objeto de análise os desenhos preparatórios de J. Carlos para publicação na capa da revista “Para Todos…”, que atualmente estão sob os cuidados do departamento de Iconografia do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Tais obras integram a coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha159, originada em parte pelo material reunido pelo artista durante 159 Eduardo Augusto de Brito e Cunha (1921-2012) foi o quarto dos seis filhos de J. Carlos. Tornou-se um dos administradores da obra de J. Carlos a partir da morte do artista. Seus cuidados com a administração e preservação da obra e da memória do pai foram incansáveis até o 352 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 sua vida e também por acréscimos feitos por seus filhos, que após a morte do pai recuperaram alguns desenhos nas oficinas da revista “Careta”. A coleção foi incorporada ao acervo do IMS no ano de 2015 e ao todo reúne 1185 itens, entre periódicos, desenhos preparatórios, pinturas a óleo e documentos pessoais. Apesar de figurarem em menor número em relação aos demais originais presentes na coleção (sendo 10 de 956 obras), as ilustrações para as capas de “Para Todos...” foram definidas como o objeto da pesquisa por formarem um universo coeso e por serem exemplos bem-acabados das estratégias visuais empregadas pelo artista no espaço de maior evidência da publicação. Ainda que este material não represente a totalidade da produção de J. Carlos em “Para Todos...”, encontram-se ali os principais temas e assuntos tratados pelo artista ao longo de sua carreira: a representação da mulher, do cotidiano urbano do Rio de Janeiro do início do século XX e de símbolos de nacionalidade. O presente texto irá se deter em quatro originais do artista, que foram produzidos entre os anos de 1925 a 1930160 . Para explorar as possibilidades de sentidos de uma imagem, a coisa imaterial, que tomava forma na mesa de trabalho e chegava até a banca de jornal, recorremos às ideias apresentadas pelo filósofo alemão Walter Benjamin no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, para refletir sobre as noções de aura e autenticidade subjacentes a essas obras, cuja expressão final se materializou no impresso de grande circulação. A esses princípios, podemos adicionar a ideia de anacronismo, conceito utilizado pelo historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, e que seria “a primeira aproximação, um modo temporal de exprimir a exuberância, a complexidade, a sobredeterminação das imagens”. (DIDI-HUBERMANN, 2015, p.22). Ainda que situadas fora do tempo de sua criação, as ilustrações de J. Carlos operam como agentes de sentidos e potências estéticas aos olhares atuais. Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin analisa o impacto social, cultural e político ocasionado pela seu falecimento em 2012. 160 Apesar de ter assumido a direção de arte do grupo S.A. O Malho em 1922, as capas de “Para Todos...” ilustradas por J. Carlos teriam circulação mais frequente a partir de dezembro de 1925, assim permanecendo até o final de sua parceria com a empresa em 1931. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 353 transformação dos meios de reprodução de imagens. Impulsionado pelo surgimento de técnicas de gravação e impressão, o status de reprodutibilidade de uma obra ganhou fôlego sem precedentes com o advento da litografia no século XIX, seguindo-se os avanços realizados pela fotografia, culminando no cinema e em sua capacidade de difusão entre as grandes massas. Com isso, o período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX vivenciou o crescimento das camadas urbanas junto à transformação dos meios de comunicação. Assim, é neste cenário, que, para Benjamin, se coloca em questão o estatuto das imagens produzidas a partir da associação entre agilidade de produção, qualidade de impressão e alta capacidade de circulação: O aqui e agora da obra original constitui o conceito de sua autenticidade, em cuja base se encontra a ideia de uma tradição que acompanhou esse objeto até os dias atuais como o mesmo e idêntico. Todo o âmbito da autenticidade escapa à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não apenas à técnica. Enquanto a obra autêntica conserva a sua autoridade frente a reprodução manual, rotulada, via de regra, como falsificação, o mesmo não ocorre com a reprodução técnica. Há uma dupla razão para tal. Primeiramente, a reprodução técnica se revela frente ao original como mais independente do que a reprodução manual. Ela pode, por exemplo, salientar na fotografia aspectos do original acessíveis apenas à lente ajustável, cujo ângulo de mira é escolhido arbitrariamente, mas não ao olho humano; ou ainda, graças a certos procedimentos como a ampliação ou a câmara lenta, é possível reter imagens que simplesmente se furtam à ótica natural. Essa é a primeira razão. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode ainda trazer a cópia do original a certas situações não acessíveis a ele. Acima de tudo, ela torna possível ao original se aproximar do receptor, seja na forma de fotografia ou da gravação. (BENJAMIN, 2015, p. 283) Mas, afinal, o que é autenticidade? Faz sentido falar em autenticidade de uma obra múltipla como um impresso? Partindo da definição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS, VILLAR, 2001, p. 348), autenticidade é a qualidade, a condição do que é autêntico, que por sua vez tem as seguintes acepções: cuja origem é comprovada, cuja autoria é atestada, reconhecido como legítimo, fidedigno. Levando-se em consideração que para Benjamin “a obra de arte reproduzida se torna cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada 354 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 para a reprodução” (BENJAMIN, 2015, p. 287), os desenhos preparatórios de J. Carlos estão exemplarmente situados nessa definição: são obras únicas, criadas em função de sua reprodução múltipla e fidedigna, com destino à apreciação coletiva. Em termos de materialidade, os desenhos originais podem ser encarados como um documento privilegiado das escolhas de J. Carlos: são um registro primordial, no sentido de primeiro, da habilidade técnica e visual de um artista em pleno potencial e segurança de suas habilidades. Registram orientações e anotações sobre cores e efeitos de impressão, pedidos para que a gráfica cuide bem do desenho, intervenções posteriores como carimbos e assinaturas, e sinais como manchas de cola e impressões digitais, marcas que evidenciam os usos e percursos vivenciados por essas obras. Para compreender a tônica visual das capas criadas por J. Carlos para a revista “Para Todos…”, é preciso, antes, esboçar a pauta geral da publicação. Abaixo, a professora da faculdade de Letras da UFRJ, Vera Lins, descreve o que poderia ser encontrado nas páginas da revista: Para todos é dirigida por Álvaro Moreyra, de parceria com J. Carlos, que faz as capas. Uma crônica ou poema de Álvaro abre todos os números de 1918 a 1930, tempo de vida da revista. O cinema é seu ponto forte. De resto, segue o modelo de Fon-Fon!, mas agora bem mais sofisticada. Muito ilustrada, cabe de tudo em suas páginas: crônicas (de um Drummond recém-chegado ao Rio, de Nelson Rodrigues e outros), crítica de teatro, muita fotografia de corridas de carros, as obras na cidade, figuras oficiais e estrelas americanas. Traz sempre o encarte sobre cinema, cujo redator-chefe é o “operador”. Imprime letra e música dos novos ritmos – jazz, foxtrote e tango. A cocaína é assunto constante de blague. Café, cigarro, álcool e cocaína ajudam a energizar a cidade, que procura acelerar seu ritmo no compasso da produção industrial. (LINS, 2010, p.33) “Para Todos...” se direcionava a temas como comportamento, literatura, moda e vida social. As capas não costumavam fazer referência aos assuntos abordados no interior da publicação, mas sim a estações do ano ou a datas comemorativas como o Natal e o Carnaval. Em geral, as imagens eram apelativas ao público feminino, representando cenas do cotidiano urbano, ou situações fantasiosas, geralmente protagonizadas por mulheres. Mônica Pimenta Velloso pontua que em geral, nas ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 355 revistas “o moderno configura-se através dos perfis femininos, inspirando-se tanto nos modelos e atributos clássicos da beleza, como no arrojo dos novos comportamentos e da nova moda.” (VELLOSO, 2010, p.44-46). Esse direcionamento foi representado de forma exemplar em “Para Todos…”, tendo em vista as frequentes aparições da melindrosa, uma das personagens mais desenhadas por J. Carlos, que moldava uma imagem-síntese da moda e comportamento da jovem mulher carioca dos anos 20. Além de produzir ilustrações visualmente alinhadas à pauta da revista, em “Para Todos...” J. Carlos também apresenta o seu o raciocínio enquanto diretor de arte, empregando nas capas combinações de cores que se repetiriam durante um determinado ciclo. Tal esquema de trabalho foi identificado por Julieta Sobral, designer e professora da PUC Rio, e seria um padrão ao longo da atuação de J. Carlos em Para Todos..., onde o já mencionado “descompasso” entre o tema da capa e o conteúdo da publicação: (…) permitiu a J. Carlos otimizar o uso do parque gráfico, rodando quatro capas por vez. A ‘paleta’ que criou em Para Todos é marcada pela ousadia na escolha dos matizes. Impressas em três, eventualmente em quatro cores, misturadas através da sobreposição de retículas, com o intuito de alterar o tom, ou obter novos matizes, tais capas constituem uma verdadeira aula de design gráfico. (SOBRAL, 2007, p.66) As figuras 1 e 2 foram publicadas em “Para todos...” com uma pequena diferença de tempo: a primeira saiu em 26 de dezembro de 1925 e a segunda em 03 de abril de 1926. Ambas representam uma cena de toalete protagonizada pelos mesmos personagens: uma jovem mulher e seu ajudante. Também apresentam soluções de composição semelhantes: as figuras são desenhadas sobre fundo branco, cujas sobras de espaço são aproveitadas para a inclusão de elementos gráficos como o título da publicação, a data, o número da edição e o preço de venda. Apesar do fundo vazio, a postura dos personagens em ambas situações sugere intimidade, dando a entender que estamos olhando para cenas que se passam num ambiente reservado, seja no interior de um quarto ou de um ateliê. São imagens que convidam um leitor indiscreto a entrar nessas privacidades, onde o tempo parece em suspenso. 356 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Ainda que semelhantes, é possível notar algumas diferenças entre essas duas imagens: o original publicado em dezembro de 1925 (figura 1), trata-se de uma capa referente ao Natal, o que é indicado pela data de publicação e pelo pinheirinho desenhado na tampa da caixa que é ofertada pelo pajem. Há espaços vazios à esquerda, reservados para o título da revista, preço, data e número da edição, incluídos à posteriori. O exotismo, temática que se tornaria cara a J. Carlos em anos posteriores, está assinalado nessa ilustração através do pajem. O personagem, alusivo à figura do rei mago Baltazar, tem suas origens orientais marcadas pelo corte, estampa e ornamentos caprichados de sua vestimenta. A jovem olha para baixo e observa o conteúdo da caixa. Consequentemente direciona sua visão ao pajem, mas não pode vê-lo pois ele está totalmente coberto pela enorme caixa de presente. Assinale-se também a diferença dos modos de representação dos personagens: a moça é branca, alta, esbelta, seu rosto foi desenhado com particular delicadeza. Já o pajem, negro e baixinho, tem feições genéricas e estereotipadas, sua pele foi preenchida em nanquim preto, ao contrário da jovem, que apresenta matizes de rubor nas bochechas. Ele se apresenta ao leitor em posição inferior à moça, boquiaberto, como se admirasse aquilo que, curiosamente, não pode ver. Sua posição é a de um servo. A agente da cena é mulher e seu gesto sugere o movimento de quem se prepara para pegar o presente. Já na ilustração publicada em abril de 1926 (figura 2), J. Carlos parece reinterpretar, à luz de sua contemporaneidade, o ideal de representação da Vênus e do Cupido. Aqui, moça é envolta em gentilezas: seus pequeninos pés repousam sobre uma grande almofada. A jovem está sentada em uma poltrona que não possui encosto, deixando em evidência suas costas nuas, assim como a ampla saia e o laçarote de seu vestido. A cena se desenrola em um ateliê, considerando os materiais dispostos na área inferior da ilustração. O cupido porta um conjunto de paleta e pincéis, que utiliza para maquiar a modelo. A imagem sugere que o cupido é o agente dessa cena, onde a moça, de olhos fechados, simplesmente se entrega a seus cuidados. Se na primeira capa J. Carlos capricha nos detalhes da roupa do servo, aqui ele se esforça nos cabelos do cupido, empregando diferentes tons de amarelo para simular nuances de iluminação. Enquanto ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 357 na ilustração anterior as feições do pajem estão praticamente cobertas, aqui podemos ver a expressão do cupido, admirado e concentrado em sua criação. Ele está posicionado sobre os joelhos da moça, encarando diretamente a sua modelo. Nas duas capas o artista coloca os personagens do pajem e do cupido diminutos em relação às damas, conferindo inequívoco destaque às figuras femininas. Em ambos os desenhos J. Carlos apresenta um traço firme, acentuado e limpo. Apesar do esmaecimento das cores dos originais, é possível notar que as imagens foram transpostas de maneira bastante fiel pela gráfica (figuras 3 e 4), garantindo sua expressão múltipla e final através do impresso. Segundo Cássio Loredano, caricaturista e pesquisador especialista na obra de J. Carlos, isso era possível pois: O desenhista estava liberado pela zincogravura de preparar originais na madeira, no metal ou na pedra, tendo que manipular goivas, enxós, pontas-secas, lápis graxos, ácidos. O traço, que o artista passara a gozar da comodidade de preparar sobre o papel, a tinta, era transferido fotograficamente para o clichê. Jornais e revistas reproduziam assim exatamente o que o caricaturista ou ilustrador fizera, numa atividade agora limpa, livre da esquizofrenia de imaginar uma coisa e desenhá-la invertida, de trabalhar sabendo que ao público chegaria espelhada a imagem que ele tinha diante de si, quase mais imaginando do que vendo o resultado final. (LOREDANO, 2019, p.163) Outro ponto importante dentro da produção de J. Carlos foi a representação de símbolos de nacionalidade. A ilustração publicada em 16 de novembro de 1929 (figura 5) faz alusão ao quadragésimo aniversário de Proclamação da República, onde o artista expõe o Brasão de Armas do Brasil interpretado à moda art-déco. Apesar de estilizado, os elementos que constituem o emblema são reconhecíveis: a constelação do Cruzeiro do Sul, a estrela de cinco pontas, a guirlanda formada pelos ramos de café e de fumo, o resplendor dourado. Ao contrário das capas discutidas anteriormente, aqui a suavidade das cores do original, onde prevalecem as cores da bandeira brasileira, ganha tons mais vibrantes e sólidos quando trabalhados pela gráfica (figura 6). J. Carlos inscreve inúmeras orientações nas margens do desenho indicando a utilização de retículas para obter em gráfica os efeitos de meio-tom desejados, também inclui manualmente o título da 358 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 publicação, formado por letras em afinidade com a composição, e os dados da edição. J. Carlos insere o Brasão no centro de um círculo, colocando o símbolo nacional em destaque, de onde partem pequenos feixes que sugerem luminosidade e vibração. Não há espaços em branco nesse impresso. A capa da revista é plenamente ocupada pelo símbolo de uma República que, na visão do artista, estava em esplendor. O cotidiano urbano aparece representado na capa de 31 de maio de 1930 (figura 7), onde vemos três jovens que conversam animadamente. Uma delas estende a mão e exibe um anel. A moça com o anel e a outra, posicionada no centro, sorriem, parecem entusiasmadas. Esta última, ocupa uma posição ambígua na imagem: ao mesmo tempo em que parece observar as mãos da companheira, também encara o espectador. Onde a cena acontece? Os padrões decorativos ao fundo sugerem que se passa ao ar livre, na rua. São formas abstratas, sinuosas que conferem sensação de movimento ao desenho e que sugerem nuvens, brisas, raios solares. É outono, e uma brisa sopra a barra do vestido da moça à esquerda. A composição se organiza de maneira a enfatizar a presença das jovens no centro da ilustração, e assim o conjunto sugere um convite ao leitor: “venha para a rua você também!”. São as três graças circulando numa cidade moderna, onde passear pelas ruas compreende o jogo de ver e ser visto. J. Carlos também desenhou o título dessa edição, que se dispõe em duas linhas e ocupa uma boa parte da margem superior do papel. Exceto pela letra “s”, o letreiro é formado por linhas retas, compensando o restante dos elementos que compõem a imagem. As consoantes P e T, além de preenchidas com cor, têm detalhes de frisos, quebrando a rigidez do traçado das letras e harmonizando com o padrão decorativo de fundo. A capa em si perde um bocado da sutileza de seu colorido original quando finalizada pela gráfica, tornando-se mais vibrante e contrastada (figura 8). As três moças vestem-se elegantemente e seguem a moda da época: usam chapéu cloche e os cabelos curtos. Altas, esguias, jovens e ligeiramente despreocupadas, são a imagem da melindrosa, por excelência. Ao contrário da representação de intenção mais realista das mulheres das duas primeiras ilustrações comentadas, aqui J. Carlos as ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 359 desenha de forma limpa e econômica, seja na expressão facial ou na postura corporal. Seja inspirando ou refletindo comportamentos, valorizando imagens de juventude e de nacionalidade, a produção de J. Carlos em “Para Todos…”, sendo compreendida como um objeto de recepção e difusão coletiva, pontuava e se articulava de maneira eloquente ao cotidiano do Rio de Janeiro, que, no início do século XX, passara por reformas urbanísticas como as do prefeito Pereira Passos (entre 1902-1906), que tinha entre seus objetivos conferir novos ares e hábitos a uma cidade que desejava se distanciar de seu passado de colônia e império. Sabemos que a imagem nos sobreviverá, e que o espectador é aquele que está de passagem. A imagem é aquilo que seguirá para o futuro, carregando em si duração, persistência, abrindo-se a questionamentos e interpretações. Nessa relação entre deslocamento e permanência, a aura se presentifica no contato entre a obra e o espectador, “pois a aura está ligada ao seu aqui e agora. Não há cópia dela.” (BENJAMIN, 2015, p. 297). Se a aura significa presença, as hoje quase centenárias ilustrações de J. Carlos experimentaram, através do impresso, a amplitude de seu aqui e agora nas mãos de seus inúmeros leitores, e permanecem abertas a novos encontros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: DUARTE, R (org). O Belo autônomo textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DIDI-HUBERMANN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. HOUAISS, A.; VILLAR, M de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LINS, V. Em revistas, o simbolismo e a virada de século. In: OLIVEIRA, C. de. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. 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Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles Figura 3: J. CARLOS. Revista Para Todos... 26.12.1925. Impressão tipográfica sobre papel. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles 362 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4. J. CARLOS. Revista Para Todos... 26.12.1925. Impressão tipográfica sobre papel. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles Figura 5. J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1929. Nanquim, guache e grafite sobre papel. 50,7 x 38cm. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 363 Figura 6. J. CARLOS. Revista Para Todos... 16.11.1929. Impressão tipográfica sobre papel. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles Figura 7. J. CARLOS. Ilustração para a capa de Para Todos…1930. Nanquim, guache e grafite sobre papel. 48,2 x 36,2 cm. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles 364 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 8. J. CARLOS. Revista Para Todos... 31.05.1930. Impressão tipográfica sobre papel. J. Carlos / Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Instituto Moreira Salles ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 365 A PAISAGEM CARIOCA POR THOMAS GEORG DRIENDL: UM ESTUDO DE CASO Julia Maria de Souza dos Santos161 - juliamaria@edu.unirio.br Resumo: O presente artigo consiste em apresentar uma produção particular do pintor Thomas Georg Driendl, intitulada “Vista da Baía de Guanabara”, bem como certos aspectos ligados ao pintor e ao contexto da pintura de paisagem do final do século XIX no Rio de Janeiro. Palavras-Chave: Thomas Georg Driendl; Pintura de paisagem; Século XIX; Grupo Grimm. Abstract: This article presents a particular production by the painter Thomas Georg Driendl, entitled “Vista da Baía de Guanabara”, as well as certain aspects related to the painter and the context of landscape painting in the late 19th century in Rio de Janeiro. Key words: Thomas Georg Driendl; Landscape painting; 19th century; Grupo Grimm. Diante de tantas produções executadas pelo artista Thomas Georg Driendl (1849-1916), no presente artigo optou-se discutir a questão da pintura de paisagem na produção do artista, tendo como estudo de caso a aquarela intitulada “Vista da Baía do Rio de Janeiro”, ca. 1888. [FIGURA 1]. Nesse contexto, para a pintura de paisagem, é necessário citar seu coleguismo com o artista Johann Georg Grimm (1846-1887). No ano de 1884, Grimm e Driendl se mudaram para Niterói, “ocupando parte de um grande casarão situado à Rua da Boa Viagem, [...] tendo como seu vizinho Thomas Georg Driendl” (PEIXOTO, 1989: 176). 161 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado, em desenvolvimento, a respeito da atu- ação do artista Thomas Georg Driendl no Rio de Janeiro, orientada pelo Prof. Dr. Rafael Denis Cardoso, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 366 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Driendl “[...] era o amigo inseparável” de Grimm, e “quem o substituía quando havia algum impedimento” (PARREIRAS, 1999, p. 51). “De acordo com Gonzaga Duque em seu livro “A arte brasileira” (1888), é possível notar os elogios a respeito das inovações trazidas pelo grupo Grimm em relação ao fazer artístico -pictórico- e ao ensino: uma fatura luminosa e a preferência d’après la nature. [FIGURA 2] Estar ao ar livre, até mesmo ligado à uma filosofia enquanto metodologia, faz com que o pintor crie uma relação detalhada entre o olho e a paisagem, acerca da mímesis que festeja no olhar do pintor e demonstram um comprazimento com o sentido estético. [FIGURA 3] À respeito do grupo Grimm, mais especificamente de sua paleta de cores, Avila (2019) elaborou, a partir de um documento de compras de tubos (1883), pertencente à Academia Imperial de Belas Artes, evidências em que menciona a paleta de cores enquanto resultado de uma “unidade estética coesa” do grupo (AVILA, 2019). Abaixo, tem-se dois exemplos de reprodução das cores utilizadas, sendo a segunda imagem com tons de verde adicionados [FIGURA 4 e 5]: Sabe-se que, no caso citado anteriormente, tratam-se de pigmentos à óleo, distinguindo-se da produção abordada em questão neste artigo, que foi produzida com aquarela. Não obstante, julga-se importante aproximar-se dessas informações para melhor compreensão do momento técnico em que Thomas Driendl estava inserido. Para efeito de possíveis comparações cromáticas, tendo em vista as diferenças entre técnicas e suportes, apresenta-se uma obra de Antônio Parreiras (1860-1937) intitulada como “Dois panoramas da Baía de Guanabara’’ e abaixo, novamente a “Vista da Baía de Guanabara”, por Driend [FIGURA 6 e 7]l: A “Vista da Baía de Guanabara” é um exemplo da vague romântica e realista produzida pelo viés artístico e filosófico alemão. O espírito de liberdade é propício à busca de sensações diversas, que caminharam em outros locais do mundo; na América do Sul como representante do Instituto de pintura religiosa de Munique (PEIXOTO, 1989, p. 187 e 188) e em diversos locais do Brasil atendendo trabalhos. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 367 Característica essa que Gonzaga Duque chamou de “nomadismo”, referindo-se ao pintor Johann Grimm (DUQUE-ESTRADA, 1995: 193). Em face das transformações que se desenrolavam na virada do século XVIII para o XIX, as concepções acerca da representação da paisagem também se alteravam. Não se tratava mais de pensar a paisagem a partir de um “cenário aprazível para cenas idílicas”. [...] Ao longo do século XIX, sob a inspiração dos textos de Goethe, originalmente nos espaços que atualmente correspondem à Alemanha, a pintura encontrou um modo particular de evidenciar as relações entre o homem e a natureza. [...] Inaugurava-se assim a “tragédia da paisagem”: um espaço propriamente sem limite, onde o homem é confrontado com sua expressão diminuta e quase insignificante. (ALBUQUERQUE e LOUREIRO, 2018: 150) Com relação aos contextos presentes na Alemanha, de certo pode-se afirmar que o artista possuía uma cultura visual vindoura da Akademie der Bildenden Künste München (Academia de Belas Artes de Munique) e o cenário artístico da cidade. Sua vivência e seu estilo pictórico é readequado na cidade e emulsificado com a presença de certas exposições na ENBA (Escola Nacional de Belas Artes). Ainda, Portela (2008) acrescenta que Em 1868, [...] o ambiente artístico alemão era essencialmente romântico. Inebriado pela sensação de liberdade que facilitava infindáveis pesquisas de efeitos novos, os artistas produziam em larga escala, procurando diferentes motivos. A geração de Grimm foi a de pintores plein air, ao mesmo tempo românticos e realistas, da segunda metade e fim do século passado. Na Europa Central, foram os que sucederam aos Nazarenos; na França foram os precursores do Impressionismo, com várias tendências, de Corot aos pintores da Escola de Barbizon. Mencionando uma de suas vivências no seu país de nascimento, 368 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 antes de ser naturalizado brasileiro, Driendl esteve com Grimm no combate da guerra Franco-Prussiana em 1870, conhecendo o pintor nesse cenário (PEIXOTO, 1989). “Essa mão de soldado-artista, tão firme e inteligente”162 impressionou o crítico de arte Gonzaga-Duque com sua fatura quente, sinuosa, iluminada, com “cores fortes, bem temperadas” (DUQUE-ESTRADA, p. 191). A respeito de sua movimentação pelo mundo, Carlos Maciel Levy comenta: [...] descendentes de Thomas Driendl [...] afirmam que teria ele viajado em busca de clima adequado para a convalescença de ferimentos e enfermidade decorrentes das campanhas da guerra de 1870; [...] Além disso, a unidade da Alemanha após a guerra caracterizou-se pela violenta perseguição religiosa que Bismarck desencadeou através do Kulturkampf, e não terá sido por acaso que Grimm e Driendl professavam o catolicismo (e Driendl chegou ao Brasil como representante do Instituto de Pintura Religiosa de Munique de Rietzler), quando o objeto da perseguição foram os católicos e seu partido. (PORTELA apud. LEVY, 2008) Ainda citando Baudelaire163, a partir de uma perspectiva do homem moderno, os artistas são pessoas que ancoram em seus corpos os diversos traços deixados pela ação da natureza - natureza como conceito, como espírito, etc. Podendo ser ladeada à ordem do sublime, da finitude da vida - o sublime como um cerne de beleza enquanto tema: “Cette végétation, apparemment et métaphoriquement indépendante, exprime certains aspects de la vie de l’intelligence, des aptitudes actives et passives de l’esprit humain [...]”. (FOCILLON, 1947: 7) Como se sabe, muitos artistas do entresséculos participaram de guerras e logo após voltaram à vida artística com novas mentalidades em relação à sua produção. A respeito da temática de paisagem, pode-se colocar que 162 Citando um trecho de O pintor da vida moderna, capítulo Os anais da guerra. BAUDELAIRE, 2010, p. 38. 163 BAUDELAIRE, Charles. Op. cit., p. 38. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 369 [...] o primeiro (o homem), através de sua razão, procura domesticar a paisagem – enquanto a segunda (a natureza), pelo sublime, se impõe – e, justamente por meio da razão, impele a refletir sobre sua humanidade. É nessa dialética que o homem moderno, fruto do Oitocentos, se relacionava profundamente com a capacidade de formar e fortalecer laços sociais, ou, em outras palavras, de (se) civilizar. (ALBUQUERQUE e LOUREIRO, 2018: 160) Para além de seus com Grimm, Driendl se posicionou socialmente em relação aos seus ofícios e demandas, expandidos para além da pintura de paisagem. Na pesquisa em questão, pode-se ter como exemplo uma publicação no Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ), encontrado na hemeroteca digital (Biblioteca Nacional), entre os anos de 1891 a 1940164, que também menciona Driendl como um pintor decorativo (grifo nosso): Art. 740 - Pintores scenographicos e de decoração Antonio Araujo de Souza Lobo, Acropolio, r. Conde d’Eu, 196, loja. Frederico Antonio Steckel, r. Lavradio 22. Giacomo Micheli, r. Silva Manoel, 13 A. Gonçalves, Rezende & C., r. Hospicio, 117 e 119. João Stallone, decorador, pr. Republica, 11. L de Wilde, pintor, r. Sete de Setembro, 102. Manoel Alves Corrêa de Azevedo, r. Ajuda, 45. Thomaz Driendl, r. Bôa Viagem, 11, Nitherohy. V. A. de Perini & E. Nasala, r. Ouvidor, 124, 2o andar Concluindo, observa-se na “Vista da Baía do Rio de Janeiro” um horizonte emoldurado por montanhas que se tornam suaves com as cores escolhidas para o céu e o mar. Essa escolha costura visualmente a natureza do quarto plano em diante. Barcos pontuais e distantes também estão na composição, distribuídos nos lados esquerdo e direito. A natureza, concebida pelas formas, remarca as forças sublimes, como 164 Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional. Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ) - 1891-1940. Ps. 951 e 952. 370 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Focillon cita: “La nature elle est aussi crée des formes, elle imprime dans les objets dont elle est faite et aux forces dont elle les anime des figures et des symétries [...]”. (FOCILLON, 1947: 3). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALBUQUERQUE, Fernanda Deminicis de; LOUREIRO, Marcello José Gomes. Edoardo De Martino e a representação da civilização na pintura de paisagem e de guerra. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, vol. 50, p. 141-166, 2018. AVILA, Bianca da Silva. A paleta do Grupo Grimm. Revista Visuais, Campinas, SP, v. 5, n. 2, 2019. DOI: 10.20396/visuais.v5i2.12363. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/visuais/article/view/12363. Acesso em: 02 jan. 2022. BAUDELAIRE, Charles. Écrits sur l’art. Livre de Poche: Librairie Générale Française, 1992. DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga. A arte brasileira. Rio de Janeiro: Mercado de Letras, 1995. p.193. FERREIRA, Félix. Belas Artes - estudos e apreciações. 2. ed. - Porto Alegre, RS: Zouk, 2012. Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional. Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ) - 1891-1940. Ps. 951 e 952. FOCILLON, Henri. Vie des Formes. Bibliothèque nationale de France, Gallica. 1934. PEIXOTO, Maria Elizabeth Santos. Pintores Alemães no Brasil Durante o Século XIX – Thomas Driendl. Biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Editora Pinakotheke, 1989. PORTELA, Isabel Sanson. Paisagem: um conceito romântico na pintura brasileira - George Grimm. 19&20, Rio de Janeiro, v. 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Esse ensaio pretende então apresentar os trabalhos artísticos Ninhos de Hélio de Oiticica e Casa de Abelha de Brígida Baltar para refletir como eles se apropriam da alegoria do ninho para pensar o corpo e resgatar a percepção original do habitar frente as desordens dos diferentes contextos sociais em que foram concebidos. Palavras-chave: arte contemporânea; percepção; habitar; corpo. Abstract: The fast pace of contemporary life and the difficulty of finding purpose and meanings leads to a devaluation of being because there is a human need/will for the symbolic. The experience of hostility and disorientation as a result of the alienation experienced by the contemporary individual takes place of the true meaning of inhabiting once the significance and social, cultural and spatial identification are compromised. If the body does not recognize itself in itself and in the world, there is no connection of belonging between them. This essay intends to present the artistic works Ninhos by Hélio de Oiticica and Casa de Abelha by Brígida Baltar to reflect on how they appropriate the allegory of the nest to think about the body and rescue the original perception of inhabiting in the face of the disorders of the different social contexts in which were designed. Keywords: contemporary art; perception; dwell; body. 165 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na pós-graduação intitulada “Casa Corpo, Corpo Ninho”, orientada pela Profa. Mara Kiel, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 375 INTRODUÇÃO No imaginário humano, a imagem do ninho invoca instintivamente impressões de segurança, primitividade, refúgio e consequentemente de bem estar. Segundo o filósofo francês Gaston Bachelard, o ninho se apresenta como o momento do habitar, permitindo uma pausa capaz de expandir o ser que ali se recolhe em descanso e assim retomando à ele a sensibilidade do poder da intimidade, hoje perdida para um sujeito apático que se contenta com pouco e cujas experiências deram lugar à vivências sem vínculos de afeto. Fisicamente, esse sentimento de refúgio incita em nós o bem estar primário e primitivo “testemunhando uma atividade de imaginação apenas refreada pela realidade dos objetos” (1993, p. 197). O estímulo da imaginação por essa imagem é então capaz de aprofundar lembranças e assim desprender-se do que é medíocre, rompendo com a experiência de um mundo interior indiferenciado, sem foco ou envolvimento emocional. Em outras palavras: inspira o habitar dos lugares inabitados. Pode-se dizer então, que o verbo habitar está intimamente ligado à imagem do ninho assim como está à imagem da casa. A casa-ninho nunca é nova. Poder-se-ia dizer, de uma maneira pedante, que ela é o lugar natural da função de habitar. A ela se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco. Este signo do retorno marca infinitos devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre o grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do sonho. Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente de íntima fidelidade. (BACHELARD, 1993 p. 261-262) O ritmo acelerado da vida contemporânea e a dificuldade de encontrar propósito e significados leva a uma desvalorização do ser pois existe uma necessidade/vontade humana pelo simbólico. A experiência da hostilidade e desorientação fruto da alienação vivida pelo indivíduo contemporâneo toma o lugar do verdadeiro sentido de habitar uma vez que a significância e identificação social, cultural e espacial é comprometida. Se o corpo não se reconhece em si mesmo e no mundo, não há ligação de pertencimento entre os mesmos. Esse breve ensaio pretende 376 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 então apresentar os trabalhos artísticos Ninhos de Hélio de Oiticica e Casa de Abelha de Brígida Baltar para refletir como eles se apropriam da alegoria do ninho para pensar o corpo e resgatar a percepção original do habitar frente as desordens dos diferentes contextos sociais em que foram concebidos. 1. CASA CORPO CORPO NINHO No Brasil moderno os movimentos artísticos passaram a contestar a funcionalidade da arte em um contexto sociopolítico ditatorial cheio de contradições. O crescimento da economia simultâneo à ampliação da produção dos bens de consumo em massa e dos meios de comunicação fazia parte de um cenário onde os sujeitos eram incentivados a não pensar diferente e não desenvolver uma consciência crítica. A censura, a violência e o cerceamento da liberdade alavancaram um debate cultural que questionava a opressão relacionando cada vez mais a ação artística à uma ação política. Inovações na área da saúde como os métodos contraceptivos, garantiram uma maior liberdade e domínio sobre o corpo e influenciaram o pensamento sobre uma nova consciência corporal, onde o corpo era responsável pela maneira do indivíduo perceber e estar no mundo. Entretanto, devido a esse contexto autoritário pensa-se o corpo como símbolo e agente de resistência, participando e sendo incorporado na obra como uma forma de romper com a passividade experimentada em sociedade e fortalecendo a ideia de um corpo social que pode (e deve) ser ativo e político. Hélio de Oiticica (Rio de Janeiro, 1937-1980) foi um artista que nesse contexto ampliou o lugar da arte trazendo e expandindo-a para a vida. Sua obra tem um forte caráter experimental e propositor, pressupondo a participação do público como fundamental. Integrante do Grupo Frente, sua arte transita entre a linguagem geométrica, a superação dos suportes tradicionais e a valorização da participação do espectador refletindo o que ele desejava para o indivíduo e para a sociedade brasileira: a transformação seguida pela vivência. Muito influenciado pelas vanguardas ele busca em sua produção uma nova forma de representar o homem e o mundo. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 377 Pensando então nas transformações necessárias para escapar das contradições vividas socialmente no cotidiano, Oiticica apresenta Ninhos (1969) como lugares de abrigo, onde é possível “reordenar e desestabilizar signos” (BRAGA, 2007), ou seja, estabelecer novas relações com o corpo, com o espaço e com a ação propriamente dita. Articuladas como células, ele cria uma grande estrutura coletiva de beliches separadas por cortinas, propondo uma atividade descondicionada ao fazer imposto. É um local de lazer, de diversão, no sentido de, diverso à realidade. A liberdade para uma ação despretensiosa é uma proposição inventiva onde o participante pode ocupar o tempo e o espaço de forma subjetiva e ativa. Esse refúgio que escapa da realidade remete assim, como o próprio título da obra, à essa imagem primitiva descondicionada, sem qualquer tipo de imposição contrastando então com a realidade social experimentada pelos sujeitos daquela época. Habitar um recinto é mais do que estar nele; é crescer com ele, é dar significado a casca-ovo166 (...) Os ‘estados de repouso’ seriam invocados como estados vivos nessas proposições, ou melhor, seria posta em cheque a ‘dispersão do repouso’, que seria transformado em ‘alimento’ criativo, numa volta a fantasia profunda, ao sonho, ao sono-lazer ou ao lazer-fazer não interessado. (OITICICA apud Braga, 2007, p. 131) Ao libertar os comportamentos, Oiticica permite aos participantes a proposição de novas possibilidades de si e de mundo. Segundo Braga (2007) a morfologia celular de estruturação desses espaços individuais dá aos ninhos “um caráter de organismo vivo” capaz de multiplicar, reproduzir e crescer, se transformando e gerando algo novo. Cada célula faz parte da oportunidade de criação de um novo mundo construído coletivamente. Apesar da física separação pelas cortinas, existe a consciência de uma presença comum. Se livre para ser o que ainda não é, os Ninhos de Oiticica também convocam uma nova modelagem da morada individual: o corpo, agora, habitado intencionalmente. E, “a medida em que o corpo incorpora novos papeis, altera-se comportamentos ético-sociais. ” (BRAGA, 166 Casca-ovo pode aqui ser relacionada à casa em Bachelard: “É o primeiro mundo do ser humano”, que nas lembranças de proteção acrescenta-se valores de sonho. (1993, p. 201) 378 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 2007) Como um animal recolhido em seu ninho, o corpo do participante pode experimentar a segurança de ser plural e livre em comunidade. A flexibilização da proposta se estende para o comportamento, logo, para a vida. Conterrânea de Oiticica, Brígida Baltar (Rio de Janeiro, 1959-) inicia seu trabalho como artista na década de 90. Sobre esse período no Brasil, é interessante destacar o que afirma Romão: As políticas sociais atuais remontam e são reflexos, ainda hoje, das opções feitas na década de 60 durante o regime militar, com o Estado assumindo papel central na economia e com as políticas sociais submetidas a um desenvolvimento baseado no consumo e sendo financiadas pelas contribuições sociais. (ROMÃO, 2003, p. 2) A modificação dos instrumentos culturais pela tecnologia, pelos novos meios de comunicação e a cultura de massa alteraram a nossa percepção do mundo, estetizando-a. O consumo se tornou um vetor importante para a afirmação identitária dos indivíduos e o bem estar do corpo passa a estar condicionado à produtos e técnicas de embelezamento, ou seja, está submetido à uma norma homogênea, se distanciando cada vez mais de uma autonomia subjetiva. Nesse contexto, Baltar incorpora diversas expressões artísticas e transita entre fotografia, vídeo, performance, desenho, instalação e escultura. Participante do Grupo Visorama, a artista integra as pesquisas e reflexões sobre arte contemporânea buscando relacionar suas próprias vivências corporais às narrativas ficcionais das fábulas. Suas investigações aproximam o corpo da natureza de forma intimista e híbrida, personificando animais para contar suas histórias. Em entrevista dada à Blank Tape (2010) a artista cita Freud para criticar a assepsia comportamental moderna e contemporânea, que amortece os nossos instintos: “quanto maior o grau de civilidade que atingimos, menos se observa os sinais de alguma relação com o mundo animal. ” Essa imagem do primitivo está então fortemente relacionada à essência original a qual ela busca retornar. Pode-se dizer portanto que, assim como em Oiticica há um distanciamento da realidade à qual se opõe para que a reflexão sobre a mesma se oportunize. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 379 Em Casa de Abelha (2002), assim como anteriormente em outros trabalhos167 Baltar parte de um cenário íntimo, a sua própria casa, para articular morada e coletividade. Em uma coletânea de vídeos, fotos, desenhos e textos, a artista se envolve sob uma roupa confeccionada sob o traçado de uma colmeia e num gesto poético coloca o seu corpo como o propositor de afetos: seu corpo é a casa que habita e é habitada, assim como o ninho “é uma casa de vida: continua a envolver o pássaro que sai do ovo” (1993, p. 258). Em um dos vídeos apresentados pela artista, seu corpo conduz o mel que é derramado sobre ele, para a estrutura da casa (escada) onde a artista senta em repouso. O mel compartilha o contato do seu corpo, que consequentemente, compartilha o contato com a casa. Mel-corpo-casa são um só, afetam e são afetados simultaneamente. A organização coletiva das abelhas nas colmeias constitui-se em abrigo e alimento, e consequentemente em sobrevivência. A organização em comunidade é o que estrutura e possibilita a capacidade de multiplicação, reprodução e crescimento das colmeias. Da mesma maneira que os participantes na proposição de Oiticica participam como cita Braga (2007) de um auto-teatro, ou seja, atuam como espectadores e performers – são o que são e não são – a artista descondiciona-se do que é sempre, no ato de transformar-se no seu próprio ninho. CONSIDERAÇÕES FINAIS Bachelard afirma que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa”. Quando esses trabalhos apresentam uma provocação que ativa os corpos como criadores de comportamentos ao invés de somente reprodutores, eles fazem um convite ao habitar consciente do corpo. O retorno ao bem estar primitivo é apresentado por ambas as obras como uma maneira de lidar com o que é estabelecido e experimentar “situações que disseminam dissonâncias diversas” (FABIÃO, 2008) colocando em visibilidade outras possibilidades, oportu167 Em Pó de Tijolo (1990-2000) a artista faz da casa o tema e a matéria para uma série de trabalhos que seguiria desenvolvendo. A partir desse lugar-imagem ela explora as ideias de lar, habitação, proteção e intimidade. 380 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 nidades de afeto. Ser ou estar em um ninho transforma e expande a ideia que vivemos no nosso próprio corpo, que por tantos meios externos é condicionado a todo momento para afetar/ser afetado de forma passiva e acrítica. Tanto Oiticica quanto Baltar, reforçam a ideia de uma percepção ativa, evidenciando e instigando a vulnerabilidade dos sujeitos e das suas relações com o corpo e o meio mas também nos convidando à uma tomada de posição que pode ser divergente e coletiva. Como afirma Fabião (2008), “nossas dramaturgias não apenas participam de um determinado contexto mas os criam”, a casa é corpo e o corpo é ninho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BALTAR, Brígida. Casa de abelha. 2002. Foto-ação e desenhos sobre madeira e papel, 25 x 36 cm. 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Abstract: Starting with Judith Butler, Michel Foucault and other author’s provocations regarding the role of determined discursive constructions in the establishment of normativities and its externalities (zones of abjection and precarity), the present article, result of a scientific initiation, investigates the application of this theoretical framework for the reading of part of the chinese artist Ai Weiwei’s work. Keywords: Contemporary art; Visibility regimes; Precarization. 168 Esta publicação faz parte da pesquisa desenvolvida na graduação de arquitetura e urbanis- mo, intitulada “Corpos que (não) Importam: Regimes de (in)visibilidade na Arte Contemporânea”, orientada pelo Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes, desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos de Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP) no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento do Programa Unificado de Bolsas. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 383 INTRODUÇÃO Partindo do conceito de assujeitamento de Foucault, que afirma que o processo de constituição do sujeito (sua inteligibilidade e materialidade corpórea) só pode ser entendido a partir de um determinado contexto histórico e discursivo, Judith Butler analisa tal formação na contemporaneidade. Para a autora as normatividades (enquadramentos) e performatividades criam zonas de inteligibilidade a partir das quais os corpos podem ser pensados e podem existir como vidas qualificadas. Ao criarem tais limites, criam, dialeticamente, também uma zona de exclusão/invisibilidade que extravasa os enquadramentos existentes, questionando os regimes normativos e de visibilidade que lhes correspondem. Dado o caráter histórico e social dos processos de assujeitamento e sua compreensão enquanto um conjunto de performances, é possível que se pense em práticas e regimes disruptivos, como os presentes, nas análises de Judith Butler, na corporeidade trans. Vários são os críticos que apontam a presença dessas temáticas na arte contemporânea e o quanto algumas obras constituem dispositivos de questionamento das normatividades em curso. Uma das formas de se analisar tal questão é por meio da discussão sobre as vidas precarizadas na sociedade contemporânea. Tal discussão, presente em várias obras de Butler, também norteia alguns trabalhos do artista chinês Ai Weiwei169, permitindo, portanto, que se possa verificar uma possível contribuição das análises butlerianas para a crítica de arte contemporânea. 1. FORMAÇÕES DISCURSIVAS, REGIMES DE (IN)VISIBILIDADE E VIDAS PRECÁRIAS A obra de Judith Butler dialoga com a de Michel Foucault em inúmeras ocasiões, sem que necessariamente concorde totalmente com o mesmo. Assim, embora a dimensão discursiva seja fundamental para 169 Embora nossa pesquisa e, portanto, o presente artigo, se limite ao trabalho de Weiwei, vá- rios teóricos e artistas vêm adotando a precariedade como a condição contemporânea a partir da qual não somente grandes parcelas da população são enquadradas, mas também como condição expressiva da própria arte. 384 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 ambos – e Foucault, por exemplo, nega uma existência a priori de sujeitos, visto que esses seriam criados discursivamente através do que sobre eles é dito. Ou seja, a partir de regras de formação que adquirem regularidades e estabelecem hierarquias morfológicas da linguagem, o discurso produz significados aos corpos que controla -, para Butler, (2019a) a formação do corpo não é posta integralmente pela linguagem, pois as necessidades corporais e seus significantes são construídas juntas com seus significados. Importa, pois, os processos performativos, constantemente reiterados, de produção de sentido dos corpos. Se, para Butler e, também, para Foucault, os regimes e práticas discursivas criam uma zona de inteligibilidade, um regime de verdade (um conjunto de regras, normas, modos de ver) a partir dos quais os corpos existem e são apreendidos, a existência de alguns corpos, como os corpos abjetos, ao não se deixarem apreender dentro dos limites das molduras sociais as tensionam, exigindo, portanto, a reconfiguração do existente. Essa matriz excludente pela qual os sujeitos são formados requer a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo do domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “não-vivíveis” e inabitáveis” da vida social que, não obstante, são densamente povoadas por aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito, mas cujo viver sob o signo do “inabitável” é necessário para circunscrever o domínio do sujeito. (BUTLER, 2019a, p.18) Essas “identificações” sociais são os denominados “enquadramentos de guerra” de Butler, presentes na obra Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto; (2017) enquadramentos, molduras, pois eles estruturam modos de reconhecimento e apreensão (inteligibilidade) sobre quais seres são considerados como “vidas”; a denominação “de guerra” se relaciona aos quadros políticos que essas vidas são relacionadas, visto que aos seres considerados como avariados, abjetos e insurgentes às normas, a “guerra” contra estes é o fator pelo qual a política é necessária para manter a paz aos “vivos”, aos indivíduos condizentes coercitivamente às normativas, àquelas “vidas que importam”. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 385 Esses enquadramentos geram ontologias discursivas específicas aos sujeitos, que determinam se esta vida importa às ações políticas ou se ela é um elemento dispensável de significação e assistência, existências invisíveis e não passíveis de luto, donde, portanto, a importância da discussão sobre as vidas precarizadas. É possível notar que esses “enquadramentos” não se referem somente ao seu sentido sinônimo como “moldura” ou categorização, esse termo também relaciona-se ao ato coercitivo policial de limitar as liberdades, de sujeitar algo à violência e à condições de violabilidade, uma maximização da precariedade. É um cenário político, uma política de formação diferencial do sujeito nos mapas de poder: “[...] não é a revogação ou a ausência da lei que produz precariedade, mas sim os efeitos da própria coerção legal ilegítima, ou o exercício do poder do Estado livre das restrições legais”. (BUTLER, 2017, p. 51) Ainda que, para Butler, a precariedade seja uma condição ontológica do ser vivo e social, são os enquadramentos sociais e os regimes políticos deles decorrentes que fazem com que determinadas parcelas da população estejam mais ou menos expostas às violações de seus direitos, à violência e à morte. (BUTLER, 2017) Suas vidas, não enlutáveis e precarizáveis, não importam. Essas populações abjetas representam, para Butler, o potencial de ressignificação das normatividades, uma forma de questionamento do status quo, visto que a mera existência e visibilidade desse conjunto pode disseminar oportunidades críticas contra matrizes hegemônicas. Neste sentido, que Butler procura, através da performatividade, entender esse funcionamento ontológico e, a partir dele, estabelecer novas formações discursivas, disruptivas dessas barreiras excludentes. Como a materialidade dos corpos é dada por efeitos originários de dinâmicas citacionais de poder, a performatividade destes agiria como um poder desestabilizador das normativas, a fim de rearticular os horizontes das matrizes simbólicas nas quais os corpos tornam-se materialidades inteligíveis e reconhecíveis. Ou seja, tornar corpos que antes eram inviabilizados, em forças de ruptura e instauração de novos regimes de verdade e visibilidade. 386 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A razão pela qual a repetição e a ressignificação são tão importantes para meu trabalho tem tudo a ver com o modo de eu conceber a oposição como algo que opera do interior dos próprios termos pelos quais o poder é reelaborado. A ideia não é baixar uma proibição contra o uso de termos ontológicos mas, ao contrário, usá-los mais, explorá-los e resgatá-los, submetê-los ao abuso, de modo que não consigam mais fazer o que normalmente fazem (BUTLER, 2002, p. 159) É a partir desse pensamento, que as obras de arte contemporâneas podem ser examinadas como tensionamentos, ou mesmo, como tornam-se as forças reacionárias descritas por Butler, surgentes a partir do compartilhamento em comum de precariedades dos indivíduos, representando vontades de vidas, corpos e sujeitos próprios, que desejam ter importância, reconhecimento e visibilidade. As obras são a superfície de inscrição e exposição da materialização das subjetividades individuais, e a partir de matrizes contra hegemônicas, a arte pode servir como forma instauradora de novos regimes ontológicos, como veremos no caso de estudo do artista chines Ai Weiwei. 2. AS “MÁQUINAS DE VER” DE AI WEIWEI 2.1. BIOGRAFIA E IMPORTÂNCIA DE AI WEIWEI PARA A ARTE CONTEMPORÂNEA Ai Weiwei (1957-) nasceu em Pequim, filho do poeta Ai Qing (1910-1996) e de Gao Ying (1934-). Durante a Revolução Cultural Chinesa, sua família foi enviada para campos de trabalho na província desértica de Xinjiang, devido ao discurso artístico questionador de Ai Qing. Com o fim da Revolução Cultural em 1978, Weiwei ingressou na Academia de Cinema de Pequim e participou do grupo Stars [Estrelas], contudo, devido a perseguições políticas ao grupo, o artista migrou para os Estados Unidos em 1983, onde incorporou ao seu trabalho referências da arte ocidental. (MENEZES, 2011) Em 1993 o artista voltou para Pequim e desenvolveu “uma observação cuidadosa da situação política e social vigente na China e na imersão em sua cultura material clássica”. (DANTAS, 2018, p.29) O artista criou obras como a série fotográfica Dropping a Han Dynasty Urn [Deixando cair uma urna da Dinas- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 387 tia Han] (1995) e a escultura Table with two legs on the Wall [Mesa com duas pernas na parede] (1997). Em 1999, Ai Weiwei iniciou seu trabalho arquitetônico com a construção de sua Casa-ateliê em Pequim e posteriormente trabalhou em edifícios como o China Art Archives and Warehouse (CAAW). Seu reconhecimento aumentou consideravelmente depois de 2005, quando o artista teve suas primeiras exposições individuais e trabalhos com curadoria. (DANTAS, 2018) Ai começou a atrair reconhecimento internacional cada vez maior como o artista chinês mais intelectualmente desafiador, cuja postura heterodoxa mesclava conceitualismo, profundo respeito pelas habilidades tradicionais e uma prática arquitetônica significativa. Essa fusão única de abordagens diametralmente opostas se tornou mais complexa pelo ativismo político crescente e uma mudança em direção à orquestração de obras de grande escala, as quais têm muito em comum com o conceito de “escultura social” associada a Joseph Beuys. (DANTAS, 2018, p.47) Em suas obras há uma constante preocupação com a liberdade de expressão e com a história material e cultural da China, além de um forte ativismo pelos direitos humanos. As temáticas abordadas por Weiwei carregam discussões a respeito de lutas sociais, identitárias e políticas que permitem uma leitura dos conceitos abordados por Judith Butler e Michel Foucault. Através das obras dos autores e do artista, busca-se refletir sobre a precariedade e o luto, os regimes de (in)visibilidade, além da apreensão e compreensão de vidas como corpos que importam. 2.2. A TEMÁTICA DE SICHUAN Em 12 de maio de 2008, um terremoto atingiu a província de Sichuan (China), e apesar de muitos prédios terem se mantido íntegros na região, as escolas primárias construídas pelo governo chinês desabaram. Não foi feita uma investigação oficial das causas dos desabamentos das escolas, ou uma contabilização dos estudantes mortos e de seus nomes, o que evidenciou a falta de transparência de dados e de informações, além do descaso com a população que buscava justiça pelas vidas perdidas. Frente a essa situação, Weiwei organizou a investigação dos 388 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 cidadãos “Citizens’ Investigation”, um coletivo composto pelo artista e por voluntários que fez um trabalho de pesquisa e de mapeamento nas regiões onde as escolas desabaram, conversando com as famílias das vítimas, com as autoridades e com a população local. Como resultado, o artista criou, dentre outras obras, o painel com com os dados dos estudantes vítimas da catástrofe Names of the Student Earthquake Victims Found by the Citizen’s Investigation [Nomes dos estudantes vítimas do terremoto encontrados pela Investigação dos Cidadãos] e o documentário Little Girls Cheeks170 [As Bochechas da Menininha], que demonstra que a catástrofe ocorreu devido a má qualidade e a insegurança dos edifícios públicos, além do desvio de dinheiro das construções pelo governo e pelas empreiteiras. (BECKER, 2011) Ai Weiwei também desenvolveu a instalação Straight [Reto], em um processo coletivo em memória às vítimas no qual o artista e um grupo de voluntários coletou manualmente os vergalhões dos destroços das escolas atingidas pelo terremoto e os endireitou individualmente no período de um ano. Em 2013, na Galeria de Arte de Ontário, Weiwei expôs a instalação junto ao painel resultante da investigação como um memorial às vítimas da catástrofe e organizou as barras de aço de forma que quando são olhadas perpendicularmente se assemelham ao gráfico da escala Richter do terremoto em Sichuan. (Ai Weiwei, 2008) As escolas desabaram sobretudo por causa da baixa qualidade da construção que o governo executara ali (...). Weiwei se engajou num projeto de recuperação para voltar com as barras empenadas à sua forma original - um longo e trabalhoso processo, necessário para restaurar a memória e entender a perda (...). (DANTAS, 2018, p.9) As obras, quando analisadas em conjunto, dão voz à comunidade e às famílias das vítimas cujas narrativas foram invisibilizadas pelo Estado. Por meio das entrevistas, vídeos e diálogos contidos no documentário, além de atos como o endireitamento dos vergalhões e sua exposição, os indivíduos se auto representam e contam sua história em 170 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HuK5pSfZ1LA>. Acesso em: 26 ago. 2021. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 389 busca de justiça e do tensionamento das estruturas de poder para que seus direitos sejam reconhecidos. Com base nos conceitos de Butler e Foucault, é possível afirmar que as obras tensionam com os regimes de visibilidade dos discursos oficiais, pois visibilizam as vidas que foram perdidas, as famílias, os corpos precarizados, suas falas, sentimentos e memórias. Quando consideramos as formas comuns de que nos valemos para pensar sobre humanização e desumanização, deparamo-nos com a suposição de que aqueles que ganham representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chance de serem humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande risco de ser tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de fato, nem serem mesmo vistos. (BUTLER, 2011, p.8) Em muitos momentos, é possível relacionar as obras de Sichuan com o conceito de luto abordado por Butler em suas obras. No documentário Little Girls Cheeks [As Bochechas da Menininha], o artista mostra a impossibilidade do luto, por parte das famílias, pelas vidas das crianças. Os sobreviventes não foram socorridos a tempo, foram dados como mortos antes de qualquer investigação, e muitos corpos não foram velados e enterrados. O artista também mostra as tentativas de luto pelas vidas das crianças através da construção de santuários próximos às escolas que desabaram, todavia, esses atos foram encarados pelo governo como uma afronta ao Estado, o que resultou na destruição dos memoriais e na prisão dos familiares. Para Butler, o luto tem fundamental importância na compreensão de uma vida que importa. Quando existe a impossibilidade do luto, como no caso da catástrofe em Sichuan, aquele corpo se torna “não enlutável”, “matável” e, portanto, não é reconhecido como vida. Através dos conceitos da autora, pode-se dizer que o descaso governamental com as vidas das crianças de Sichuan coloca esses corpos em uma condição precária, induzida pelo Estado ao se despir da responsabilidade de proteção dos direitos humanos. A investigação promovida pelo artista, além do memorial Straight [Reto] e do painel Name List Investigation [Investigação da Lista de Nomes], funcionam como formas de luto e portanto de apreensão das vidas perdidas como vidas que importam 390 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 apesar do descaso estatal. 2.3. A TEMÁTICA DOS REFUGIADOS Em 2015, Ai Weiwei estabeleceu um estúdio na ilha de Lesbos (Grécia) onde desenvolveu trabalhos com foco na crise migratória contemporânea e na situação dos refugiados, o maior êxodo desde a Segunda Guerra Mundial. Ai viajou por diversos locais onde pessoas estavam fugindo de conflitos e condições de vida precárias, passando por campos de refugiados pelo Mediterrâneo, África e Europa. Com base na viagem, o artista desenvolveu o documentário Human Flow [Fluxo Humano] (2016) e as exposições Safe Passage [Passagem segura] em Amsterdam (2016) e em Minneapolis (2020), na qual exibiu a instalação iPhone Wallpaper [Papel de parede do iPhone] (2016). (DANTAS, 2018) A partir de tais obras e das reflexões de autores como Butler, Foucault e Agamben, é possível refletir sobre a categoria política dos refugiados na contemporaneidade. De acordo com Agamben (apud SILVA, 2021), a guerra civil atua diretamente na subjetividade dos indivíduos, possui efeitos ontológicos nos corpos que a vivem. Segundo o autor, a partir da guerra há um processo de “dessubjetivação” (idem) dos indivíduos em que são retirados seus direitos, sua nacionalidade e suas identidades. Devido à guerra, os indivíduos são obrigados a fugir de seu lar para preservar sua vida e liberdade, afastando-se das terras de seus antepassados e de sua cultura. A guerra também produz novas subjetividades, novas formas de vida, que são, segundo Agamben, “vidas nuas” (idem), matáveis, despidas de direitos. Os migrantes e os refugiados são exemplos das subjetividades produzidas pela guerra civil, pois deixaram de ser protegidas pelo Estado e passaram a sofrer contínuas violações de seus direitos humanos. Agamben, analogamente a Butler e Foucault, afirma que os indivíduos são construídos a partir de um processo contínuo dos discursos de poder que criam e controlam os corpos e as identidades. Os corpos precarizados e despidos de direitos podem ser violentados e sua morte é tratada com descaso devido a sua condição precária induzida pelo Estado por meio da guerra civil. Segundo Butler, as vidas dos refugiados não são “passíveis de luto” devido ao não reconhecimento de seus corpos como seres humanos dignos de proteção. Em ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 391 um determinado momento do documentário, um entrevistado afirma: “Às vezes nos sentimos envergonhados quando nos chamam de pessoas apátridas, pessoas do barco, e muitos outros nomes. Nós também temos sentimentos. Nós também somos humanos”. (Ai Weiwei, 2016) Através da obra de Weiwei e das análises de Butler e Foucault, o observador reconhece que os refugiados são invisibilizados pelos regimes discursivos e pelas estruturas de poder. No documentário do artista é relatado que os Estados não só se absolvem de qualquer responsabilidade em proteger a vida dos refugiados, mas removem constantemente pessoas e agem com violência contra suas vidas. Com o movimento de visibilizar essas, dentre outras questões, o documentário atua de forma a contribuir para uma mudança de perspectiva sobre o assunto, pois tensiona os regimes discursivos que invisibilizam essa parcela da população. A partir da obra de arte, das entrevistas e dos vídeos, há a autorepresentação e uma consequente humanização dos corpos em condições precárias que buscam refúgio, condições de vida dignas e lutam em defesa de seus direitos humanos. Com base na viagem documentada pelo artista em Human Flow [Fluxo Humano], Weiwei desenvolveu as exposições Safe Passage [Passagem Segura] em 2016 na galeria de fotografia Foam em Amsterdam, e posteriormente em 2020, no Instituto de Arte de Minneapolis, em que o artista cobriu as seis colunas neoclássicas da fachada do instituto com 2400 coletes salva-vidas abandonados por refugiados sírios e afegãos nas praias da ilha de Lesbos na Grécia. Apesar da quantidade representar apenas 6% do total de refugiados que cruzaram a fronteira no período de um ano, a obra inspirou uma série de diálogos acerca da escala das migrações e da precariedade dos trajetos percorridos. (GRUMDAHL, 2020) O segundo grupo de fotografias exibidas na exposição #Safe Passage [Passagem Segura] em Amsterdam formam a instalação iPhone Wallpaper [Papel de parede do iPhone] (2016), dispostas cobrindo as paredes de duas salas da galeria, e no centro de cada uma há uma reprodução em mármore de bóias salva-vidas. (POLETTI, 2018) Quando o artista fundou seu estúdio em Lesbos, seu objetivo foi oferecer uma “passagem segura” dos refugiados para a cultura e mídia europeia. O artista auxiliou as pessoas que chegavam à fronteira oferecendo comi392 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 da, água e oportunidades de trabalho. Por meio da selfie, Ai Weiwei documentou a situação dos refugiados e migrantes, e deu visibilidade aos sujeitos, suas falas e narrativas, através de sua divulgação na internet e da exposição em suas obras. Com base nos conceitos de Butler (apud POLETTI, 2018), Ai Weiwei utiliza a selfie como uma forma de auto representação contemporânea, uma forma de narrar a vida e a história dos sujeitos invisibilizados pelos regimes discursivos institucionais. Segundo a autora, a fotografia tem um papel importante na delimitação de quais vidas são consideradas “matáveis” ou “enlutáveis”, e pode ser utilizada para tensionar essa normatividade e expandir o reconhecimento de mais vidas como importantes. Nesse sentido, a exposição de Weiwei como um todo, busca romper com o enquadramento institucional que determinou que as vidas dos migrantes que buscam refúgio em outros países devem ser mortas e invisibilizadas. (POLETTI, 2018) “O rosto do Outro chega até mim pelo lado de fora e interrompe esse circuito narcisista. O rosto do Outro me puxa para fora do narcisismo em direção a algo mais importante”. (BUTLER, 2019b, p.168) CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa demonstra, com base nas análises de Butler, que os discursos artísticos contemporâneos, como os do artista chinês Ai Weiwei, podem conferir “efeitos ontológicos” a corpos e vidas tidas como abjetas e não importantes. Por meio das obras do artista, os corpos refugiados, migrantes e das populações invisibilizadas por governos e instituições oficiais são visibilizados e auto representados. Nos trabalhos relacionados ao terremoto em Sichuan, o discurso artístico promoveu o luto de corpos “não enlutáveis”, e conferiu humanidade às vidas perdidas que não importavam perante o governo chinês. Sua performance artística questionadora gera discussões, trocas de informações e experiências de vida que causam efeitos ontológicos nos entrevistados, voluntários, espectadores e no público. As obras geram uma mudança de percepção sobre suas vidas e promovem a apreensão de seus corpos enquanto pessoas que importam. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 393 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKER, Tania. So Sorry––Never Sorry. Ai Weiwei’s Art between Tradition and Modernity. Asian and African Studies XV, 2011, pp. 113–126. BUTLER, Judith. Como os corpos se tornam matéria. 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Straight [Reto]. 2008-2012. Barras de Aço Reforçado, 600cm x 1200cm. Brooklyn Museum. Disponível em: <https://www.5122018.com/straight>. Acesso em: 31 jan. 2021. Figura 3: Ai WEIWEI. Human Flow [Fluxo Humano]. 2016. Fotografia, 1800px x 860px. Ai Weiwei Studio. Disponível em: <http://www.humanflow.com/gallery/>. Acesso em 30 jan. 2022. 396 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4: Ai WEIWEI. Iphone Wallpaper [Papel de Parede do Iphone]. 2016. Papel de Parede e Escultura. Fotografia de Anne Van Der Weijden, Fotografiemuseum Amsterdam. CHOY, Yoko. Ai Weiwei’s #SafePassage surveys global refugee crises at Foam Amsterdam. Wallpaper Magazine, 2016. Disponível em: https://www.wallpaper.com/art/ai-weiwei-refugee-photography-opens-at-foam-amsterdam. Acesso em: 30 jan. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 397 ARTE E ALTERIDADE EM JÚLIO BRESSANE E HÉLIO OITICICA Luís F. B. Cabral171 – lfbelotocabral@gmail.com Resumo: A presente publicação busca expor como as obras de Júlio Bressane e Hélio Oiticica trabalham a questão da alteridade, em seu interesse comum e similar pela relação com o outro enquanto cerne do processo criativo. Tanto os (anti)objetos de Oiticica quanto a câmera de Bressane dispõem-se à intervenção inventiva de um outro simultaneamente envolvido pelo que os artistas lhe apresentam, e é dessa dinâmica alteritária que se constituem suas experiências estéticas-vivenciais. Tal consciência do outro e de sua potencialidade abre pertinentes reflexões sobre o caráter da invenção artística, o artista-autor e as dimensões políticas da arte enquanto meio, corpo e expressão de um coletivo. E no que se refere a Júlio Bressane, a noção de alteridade, como desenvolvida pela (anti)arte de Oiticica, provê renovados instrumentos de leitura de sua rica filmografia, para além dos debates diegéticos da teoria cinematográfica. Palavras-chave: Júlio Bressane; Hélio Oiticica; Alteridade; Cinema; Arte contemporânea. Abstract: This publication seeks to expose how the works of Júlio Bressane and Hélio Oiticica develop the question of alterity, in their common and similar interest in the relationship with the other as the core of the creative process. Both Oiticica’s (anti)objects and Bressane’s camera are open to the inventive intervention of an ‘other’ who is simultaneously involved in what the artists present to him, and it is from this alteritarian dynamic that his aesthetic-living experiences are constituted. Such awareness of the other and of its potentiality opens re171 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Notas para uma tradução de Júlio Bressane por Hélio Oiticica”, orientada pela Profa. Dra. Yanet Aguilera V. F. de Matos, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), via processo de nº 88887.488216/2020-00. Luís F. B. Cabral é mestre e bacharel em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo e atual integrante do Grupo do Estudos MAAR e do Coletivo LuscoFusco. 398 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 levant reflections on the character of artistic invention, the artist-author and the political dimensions of art as an medium, body and expression of a collective. And with regard to Júlio Bressane, the notion of alterity, as developed by Oiticica’s anti-art, provides renewed instruments for reading his rich filmography, beyond the diegetic debates of cinematographic theory. Keywords: Júlio Bressane; Hélio Oiticica; Alterity; Cinema; Contemporary Art. A presente publicação integra a proposta ensaística de transcriação e interdisciplinaridade, desenvolvida na pesquisa de mestrado Notas para uma tradução de Júlio Bressane por Hélio Oiticica. Essa pesquisa buscou refletir aspectos e questões da filmografia de Júlio Bressane a partir de conceitos e proposições da obra de Hélio Oiticica, num exercício de leitura livremente inspirado nas traduções criativas de Haroldo e Augusto de Campos (os quais, referências muito caras tanto a Oiticica quanto a Bressane). Aqui, dadas as limitações de tempo e espaço, discutiremos especificamente a relação dos dois artistas com a alteridade e o que ambos, comum e similarmente, propõem acerca das potencialidades da arte enquanto uma relação com o outro. Na obra de Hélio Oiticica, tomemos o exemplo dos bólides e parangolés dos anos 60. Apesar de suas expressivas qualidades formais, tanto o bólide quanto o parangolé não se reduzem ao objeto estético em si: as obras só se realizam de fato quando esse mesmo objeto é apropriado e manipulado pelo espectador, que com ele encontra uma oportunidade de exprimir a sua criatividade recalcada. Transformado, nas palavras de Oiticica (2011), num participante, o espectador intervém direta e livremente na estrutura e configuração final da obra, a ponto de assimilá-la em seu próprio corpo e movimento. Os objetos estéticos tornam-se dispositivos para uma intervenção imaginativa e comportamental maior, que é, ao mesmo tempo, condicionada pelo que a estrutura dos bólides ou parangolés especificamente possibilita. Há, portanto, uma relação de mão dupla, na qual os objetos instigam, por suas virtualidades próprias, uma criação material e performática, enquanto são simultaneamente tensionados e desdobrados até o seu (des)limite. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 399 O parangolé, em especial, ainda conduz, como escreveu Oiticica, a uma manifestação coletiva fundada por vários participantes vestidos, que se veem mútua e simultaneamente. Segundo a autora Flávia Cera (2012), o parangolé acontece no espaço intercorporal existente entre a capa/estandarte e o corpo do participante e entre os corpos-capas dos participantes como um todo, uns em relação aos outros. Nesse fenômeno, um participante com a capa estimula outro espectador/participante a entrar na dança, fundando uma totalidade espaço-temporal coletiva de crescimento ilimitado, uma vez que tal tessitura pode sempre agregar mais espaços e pessoas circundantes, como num contágio ou reação em cadeia. O parangolé potencializa, portanto, não só o desdobramento dos objetos estéticos ou a criatividade dos participantes, mas as experiências coletivas no próprio espaço e cotidiano urbanos, motivo porque Oiticica estabelece que o museu agora era o mundo. Não semelhante, mas similarmente172, no jogo de cena dos filmes de Júlio Bressane, a câmera, em diversos momentos, interage diretamente com os atores e demais agentes cênicos, e estes reagem ativamente a essas intervenções, intervindo no aparato fílmico. Sem o menor pudor, os atores põem as suas mãos na lente, batem ou esbarram na câmera, usam-na como um cinzeiro, chutam-na ou jogam-na “de boca na areia”, tiram-lhe um espinho da cara, cobrem-na ou “pescam-na” com um véu, projetam-lhe uma imagem com um projetor ou interpõem sobre a lente um estandarte, um pergaminho, um disco de vinil ou um filtro escuro de papel. Os atores, equipe ou figurantes chegam enfim a tomar e manipular a filmadora com suas próprias mãos ou cordões, quando não lhe endereçam uma performance, um monólogo ou um olhar cúmplice, desafiador, intrigado ou até sedutor. Os filmes fazem-nos perceber que a câmera é ela mesma um corpo, um agente em relação com outros corpos, animados e até inanimados, num corpo a corpo experimental onde são possíveis até relações eróticas e sexuais com a filmadora. Esta possui, é claro, momentos-solo de performatividade, em que aparece lisonjeira e autônoma no tempo-espaço, fazendo toda a sorte de enquadramentos, angulações e movi172 Sobre a diferença entre semelhança e similaridade, Teixeira (2011). 400 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mentos. No entanto, mesmo nessas ocasiões, a câmera pode, a qualquer instante, se deparar com um outro que interrompe e redireciona o seu percurso e intervenção no ambiente. Parafraseando o próprio Bressane (vide Contracampo, 2003), o que se tem nessas e outras interações é uma experiência multipessoal e plurissubjetiva, na qual diferentes agentes fílmicos e extrafílmicos se encontram e se conjugam criativamente. A câmera, com suas virtualidades próprias e sua desinibida atuação no tempo-espaço, oferece perspectivas únicas e até inusitadas do mundo sensível, físico, material e social, mas este mesmo mundo reage e responde a tal intervenção, devolvendo à filmadora o seu próprio olhar, gesto e individualidade. Nesse sentido, os filmes de Bressane interessam-se e estruturam-se pela interação fundamentalmente dialógica entre a câmera e seus interlocutores. É dessa relação que surge ou se forma a imagem cinematográfica: a imagem final do filme começa a se constituir e a tomar corpo no momento em que os agentes fílmicos e extrafílmicos se topam, e a própria orientação e desenvolvimento da filmagem é determinada pelas diferentes reações e intervenções possíveis de um sobre o outro e vice-versa. Esse jogo de cena explicita aquilo que Spinoza já afirmava, no séc. XVII, sobre a imagem enquanto uma ideia originária da impressão que um corpo alteritário exerce sobre os nossos órgãos sensíveis. Em outras palavras, a imagem não surge por si mesma, mas com um outro: ela se origina dos afe(c)tos e impressões que este outro nos traz173. Similarmente, a imagem em Bressane advém de uma experiência interpessoal onde o que vemos em tela é resultado da ação concomitante de uma alteridade de cena. O próprio cineasta, inclusive, parece reconhecer o caráter coletivo ou multipessoal dessa criação, ao sempre pontuar seus filmes com “circuncenas” dos bastidores e da equipe de filmagem. Um dos marcos da carreira de Bressane foi justamente a experiência coletiva da Belair, produtora fundada em 1970 por ele, Rogério Sganzerla e Helena Ignez. A Belair foi uma confluência de forças e amizades que em poucos meses sacudiu o cinema experimental 173 Sobre Spinoza e a imagem, ver a palestra O poder dos afetos, ministrada por Oswaldo Giacoia Jr. e Vladimir Safatle no programa Café filosófico (disponível no canal homônimo do programa, no site YouTube). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 401 brasileiro, num senso realmente grupal e afetivo de produção, como se infere dos próprios filmes e de depoimentos póstumos. Bressane parece ter tentado preservar, em seus trabalhos, o espírito colaborativo e horizontal da Belair, vide não só as circuncenas ou making-offs dos filmes, mas os depoimentos de seus parceiros e parceiras de criação, compilados, por exemplo, em Contracampo (2003) e em Vorobow; Adriano (1995). Guardadas as evidentes diferenças entre um e outro (e o objetivo aqui não é forçar uma identificação ou algo parecido), Oiticica e Bressane propõem uma experiência artística alteritária, em que a obra se constitui e se forma necessariamente a partir de uma relação com um outro. Conforme escreve o poeta Waly Salomão (2003), a respeito do trabalho de Hélio Oiticica, este outro não é uma abstração descarnada, mas um corpo de carne e osso que opera uma transmutação no próprio corpo do artista ou da obra. Essa afirmação, embora dirigida a Oiticica, poderia ser perfeitamente utilizada para descrever uma cena recorrente nos filmes de Bressane, em que a câmera aparece coberta por um filtro escuro de papel, que é gradativamente recortado, no formato de um olho, pelo ator da cena. Aqui, é o ator, em sua intervenção externa e corpórea, física, sobre a câmera, quem determina a abertura da lente e o alcance de visão da filmadora, diretamente influenciando a captura final do enquadramento conforme vai desprendendo a película opaca do instrumento fílmico. Não muito distante, portanto, do estandarte cujo total desdobramento cromático e espaçotemporal é condicionado à manipulação da pessoa que o veste e que lhe dá movimento e dança. Essa disponibilidade da obra à alteridade culmina numa vivência multipessoal e plurissubjetiva, na qual, a certo ponto, não conseguimos mais distinguir um corpo do outro (ou quem é o mais determinante na experiência estética final). No parangolé, há uma continuidade vertiginosa entre o participante e a capa, onde o movimento de um se confunde com o desdobramento da outra numa única dança, e mesmo nos filmes de Bressane, são frequentes as cenas em que o corpo da câmera, numa espécie de subjetiva, coincide espaçotemporalmente com um outro corpo cênico visto em primeiro plano, com os gestos e percursos de um sendo continuados nos gestos e percursos do outro. 402 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Até nas intervenções no espaço cotidiano urbano os dois artistas se encontram. Os filmes da Belair - de Bressane e Sganzerla – caracterizam-se, dentre outras coisas, pelas intromissões da câmera, elenco e equipe de filmagem na paisagem e cotidiano da cidade, com as reações e intervenções dos transeuntes sendo incorporados à cena cinematográfica. Quase como os parangolés, as filmagens agregam os corpos anônimos (e curiosos) da cidade, numa experiência disruptiva de proporções muito maiores do que o núcleo atomizado da produção, em sentido realmente coletivo. Mesmo as intervenções de filmes posteriores de Bressane em recônditos afastados ou introspectivos da cidade do Rio de Janeiro (sobretudo o cenário-fetiche do Sétimo Céu), aproximam-se das deambulações de Oiticica no final dos anos 70, nos aterros, campos e demais espaços marginalizados da metrópole - e tanto um quanto outro realizam essas errâncias com um coletivo de pessoas em clima de farsa, festa, dança e brincadeira. Importante dizer que Bressane e Oiticica não só se conheceram como trabalharam juntos em mais de um filme, o principal deles sendo Lágrima-pantera, a míssil (1972), produzido nos Babylonests de Oiticica em Nova Iorque. Segundo conta Bressane, o filme foi inspirado no super-8 experimental amador do próprio Oiticica, que muito impressionou o cineasta na época. Em outro canto de seu trabalho, com uma câmera super-8, [Hélio] testava, testava a si. Não era cineasta. Queria sentir as dificuldades de filmar, de enquadrar, de improvisar, de espacializar corpos em movimento, em outro campo... Estes pequenos filmes (2, 3 minutos) chamaram a minha atenção, vi neles uma maneira de desaparecer, de desaprender, de desprender-me de mi, do clichê, de recomeçar... Encontrei nestes fotogramas incertos, tateantes, uma imprevista e ideal passagem... (BRESSANE, 2011, p.12) Mas voltando à alteridade, o que ela significa afinal? Vladimir Safatle (2019), ao discorrer sobre o mal-estar da civilização predicada, demonstra como, nas culturas ocidentais/patriarcais, as subjetividades acabam cristalizadas em um Eu individualizado e identitário, que reprime, sob constante estado de angústia, a polimorfia e fragmentação próprias da dinâmica psíquica inconsciente. Safatle defende como efetivo gesto político a despossessão desse Eu individuado, no sentido de uma ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 403 abertura ou disponibilidade do mesmo à contingência da vida psíquica e à permanente ou contínua possibilidade de transmutação de si próprio – e uma das principais maneiras de se chegar a esse desprendimento é, justamente, a relação com o outro. A alteridade é quem principalmente nos despoja de nossas identidades e predicados, e daquilo que entendíamos de nós mesmos e do mundo, forçando-nos a uma nova consciência e subjetividade. É a partir das “interferências” trazidas ou desencadeadas por esse outro que nossa psique se descobre múltipla e ilimitada, num ciclo constante de perturbação e rearranjo de si mesma, que é o que proporciona de fato a sua efetiva vitalidade. E em último grau, são essas experiências renovadas de individualidade e socialidade que contrariam as relações patriarcais de poder, até então beneficiadas pelo engessamento de um Eu neuroticamente fixo e estabilizado. Rosa Dias (2011), colaboradora de Júlio Bressane e especialista da obra de Friedrich Nietzsche, também demonstra como na filosofia nietzscheana o sujeito atinge sua plena potencialidade ou desenvolvimento no momento em que se torna um sujeito-artista experimentador de si mesmo, jamais concebido como substância dada, mas como forma a compor, permanente transformação de si, como o que está sempre por vir. E tamanha transmutação acontece necessariamente no ato da travessia, na experiência errante da passagem ao desconhecido, ao que está fora de si. É no acolhimento e assimilação das forças estrangeiras que o indivíduo amplia a sua potência, alcançando renovadas experiências ou percepções de vida e desenvolvendo-se indefinidamente, contra as forças conservadoras que o reprimem para a infelicidade e a mediocridade. É nesse sentido, inclusive, que Nietzsche valoriza o ato da educação como um cultivo permanente de si mesmo, necessariamente estimulado pelo agenciamento outro, alteritário, do mestre educador, que é quem leva seus educandos a uma melhor compreensão de si próprios e do mundo. Conforme também expõe Rosa Dias (1991), o ato criador, em Nietzsche, é um ato doador que não se fecha em si mesmo: ele continua e se propaga no outro, através, principalmente, da educação, e a maior fatalidade imaginável de um gênio ou mestre é o seu isolamento na sociedade, sem a possibilidade de transmitir as suas potencialidades. 404 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 É extremamente significativo, portanto, que a alteridade possua tanto espaço e protagonismo nos trabalhos de Oiticica e Bressane. Este último, não por acaso, refere-se várias vezes ao cinema como um forte instrumento de autotransformação. “[o cinema] tinha algum elemento, alguma força que me fazia, que preenchia algo que talvez eu buscasse intuitivamente, inconscientemente, que era a vontade de me autotransformar. A vontade de sair de si, de ir para fora de si” (CONTRACAMPO, 2003, p.09). Contra uma identidade autoral redutora, Bressane procura, no cinema, parafraseando Francisco E. Teixeira, um “vir a ser incessante, uma ilimitada combinatória de modos de subjetivação que não cessam de se inventar” (TEIXEIRA, 2011, p.348). Isso se expressa na própria experimentação cinematográfica do cineasta, que obsessiva e obstinadamente dobra e desdobra o aparato técnico cinematográfico, explorando todas as possibilidades imagináveis de movimento, angulação, enquadramento, luz, montagem, som e imagem que ele oferece. O cinema jamais é circunscrito a um escopo limitado de manuseios e invenções: o objetivo é sempre o deslimite do cinema, a (re)descoberta de tudo o que se pode e ainda se poderá fazer com ele, na mais absoluta liberdade. É o motivo, inclusive, porque Bressane se aproxima do primeiro cinema pré-Griffith ou, nas suas palavras, o “cinema inocente”, ainda não regulado pelo manual técnico do “bom e do mau cinema” (vide Camarneiro, 2016). Aqui já percebemos a evidente inspiração nietzscheana do cineasta, fruto da colaboração com Rosa Maria Dias, pela qual a invenção artística é continuidade de um gesto maior de potencialização da vida. A arte é o apêndice ou um dos resultados de uma exponenciação indefinida de si, do “vir a ser” nietzscheano que artisticamente vai modelando a si mesmo, contínua e indefinidamente, sem jamais chegar a um resultado último ou definitivo. Vida como obra de arte, como escreve Dias (2011). Mas como se percebe pelos filmes, este vir a ser, o sair do Eu predicado e individuado, acontece necessariamente com o outro. O cinema de Bressane é um cinema que se abre à contingência da alteridade: é na relação com o mundo, seja ele o mundo sensível, físico e social, que a câmera alcança o seu pleno deslimite ou desdobramento. Lembremos do ator que abre o olho da filmadora, que conjuga o seu ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 405 corpo com o dela ou interfere, até violentamente, no seu percurso e orientação. Como na experiência nietzscheana da travessia, é a alteridade do mundo que conduz ou desvia a câmera, o cinema e Bressane a uma nova experienciação do espaço e do tempo e a uma nova invenção da imagem. A experimentação cinematográfica advém necessariamente dessa contingência, desse corpo outro que estimula o cinema a ir além do que lhe foi imposto em termos de técnica e estética. E para além do jogo de cena aqui exposto, este senso de alteridade aparece nas próprias “traduções intersemióticas” de Bressane, que buscam, pela forma cinematográfica, traduzir ou transcriar as formas da pintura, da música, da dança, da literatura e da filosofia. Nesse exercício criativo de leitura, a alteridade das outras disciplinas e campos artísticos, traduzida em cinema, igualmente estimula, inspira, novos arranjos, manejos e compreensões da arte fílmica - esta mesma definida por Bressane como “organismo intelectual demasiadamente sensível que faz fronteira com todas as artes, ciências e a vida. Onde tudo se traduz, tudo se dobra e desdobra. Chega à borda e transborda!” (BRESSANE, 1996, p.42). O mais curioso, no entanto, é que tudo isso nos conduz diretamente de volta a Oiticica, pois foram os filmes amadores do artista que inspiraram Bressane, nos anos 70, a se desprender de vez do formalismo cinematográfico e a abraçar o experimental, como se depreende do relato do próprio cineasta. Oiticica, aparentemente, também representou, para o cineasta, essa alteridade condutora de novos entendimentos, experiências e percepções de si mesmo e de sua potencialidade criadora. E numa poética sincronicidade, Oiticica foi, ele mesmo, um artista marcado pela alteridade. Também ele propôs ir aos deslimites das artes plásticas e performáticas a partir da abertura radical ao outro, à contingência do mundo trazida ao seio da obra como eixo por excelência de sua estruturação e concretização final, experimental. E para além da estética, a obra de Oiticica integra, parafraseando a autora Tânia Rivera (2017), o gesto maior de uma subjetividade alteritária, que se constrói pela entronização no universo do outro e pelo deslocamento a lugares subjetiva e socialmente diversos dos do Eu atual, (re)fazendo-se em ato. “A obra de Hélio Oiticica nos põe em movimento. Mais precisamente, ela nos convida a realizar uma certa virada em nosso lugar no mundo 406 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 e em nossa relação com o Outro. A traçar deslocamentos” (RIVERA, 2020, p.71). O parangolé, por exemplo, como escreve a autora, desloca-nos e suspende-nos em um hiato ou brecha que nos faz haver com o mundo e com o outro, e é esse encontro magnético que suscita os novos e inesperados gestos, movimentos e visões da experiência artística. Hélio Oiticica, inclusive, traz novas dimensões à questão da alteridade, ao refletir o fenômeno maior do coletivo, para além da relação atomizada eu-outro descrita por Safatle e Dias, acima. Sintomaticamente, o artista possuía em sua coleção de escritos um ensaio de Viveiros de Castro (vide Stigger, 2017) intitulado O igual e o diferente, que descreve e comenta a fantasia carnavalesca no bloco Cacique de Ramos. Segundo Castro, era por meio da fantasia característica do Cacique de Ramos, composta por esparadrapos e pinturas faciais, que os foliões eram assimilados na massa anônima do bloco de carnaval, bastando vestir a roupa para serem integrados ao coletivo, dissolvendo-se na multidão. Contudo, cada folião podia, ao mesmo tempo, personalizar a sua fantasia ao pintar o rosto de um jeito próprio, combinando à sua maneira o conjunto previamente dado de elementos gráficos. Era, por fim, com a fantasia anonimizante do bloco que os participantes se permitiam a liberar seus impulsos mais íntimos e peculiares, dissolvendo-se no coletivo justamente para soltarem a folia interna. Castro identifica no carnaval duas concepções distintas da relação indivíduo-sociedade, coexistentes no bloco: o indivíduo como suporte ou médium dos significados coletivos da cultura ou sociedade, e a cultura ou sociedade como resultado da ação e vontade autônomas do indivíduo. Ambas se expressariam, de um lado, na absorção dos foliões no corpo maior e coletivo, desindividuado, do bloco, e, de outro, na criatividade e expressão individuadas de cada folião, manifestas na reelaboração ou rearranjo próprio da fantasia carnavalesca, e na liberação das folias recalcadas174. Comentando o bloco Cacique de Ramos com o fotógrafo Carlos Ferrara175, Oiticica muito se impressiona com a descrição de Ferrara 174 O ensaio de Viveiros de Castro pode ser lido no Arquivo Hélio Oiticica/Programa Hélio Oiticica (AHO/PHO), tombo nº0337/70, disponível no site do Itaú Cultural. 175 Vide Arquivo Hélio Oiticica/Programa Hélio Oiticica (AHO/PHO), tombo nº 0504/73. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 407 sobre o momento em que os foliões jogavam pedaços de suas fantasias para o alto, para que pessoas de fora pudessem vestir as peças e se juntar ao bloco. Essa projeção quase literal do corpo dos foliões pelo espaço, e sua propagação indefinida no espaço-tempo da cidade com a incorporação dos fragmentos pelos foliões circundantes, tornava o fenômeno coletivo uma experiência de absurda potencialidade. O participante atomizado do cortejo via-se radicalmente exponenciado pelo corpo maior e articulado do bloco, que num grande arrebatamento ou “ejaculação de grupo” o conduzia a uma dimensão inimaginável de si mesmo, integrando-o, em uma única totalidade, ao universo vital e absoluto da cidade e do próprio mundo. Fora de si. O fenômeno do coletivo não se reduz, portanto, a uma alienação do rebanho: Oiticica atenta-se, no exemplo do carnaval e de outras manifestações populares, à igual possibilidade do coletivo como experiência revitalizadora da cultura, da sociedade e da subjetividade e sensibilidade criadoras dos indivíduos alteritariamente articulados entre si. Como bem descrito por Viveiros de Castro, o bloco não implica a anulação do sujeito, pois se constitui e se potencializa pelo agenciamento mútuo e concomitante, metonímico, entre a parte e o todo. Oiticica traduziu muito bem essa experiência ao elaborar, em correspondência com Haroldo de Campos (vide Braga, 2013), o neologismo singultaneidade, mistura de ‘simultaneidade’ com ‘singularidade’. Na experiência alteritária do bloco de carnaval e da escola de samba, o pessoal, o singular, assim o é enquanto simultaneidade, continuidade com o outro, e vice-versa. O talento e a performatividade do folião ou da passista manifestam-se e desdobram-se, na sua virtualidade mais própria, enquanto partes do corpo maior e concomitante, potencialíssimo, do coletivo. Foi essa singultaneidade que Oiticica insistentemente invocou em sua obra, dos bólides e parangolés aos ninhos, cosmococas e deambulações ambulatórias. Tal entendimento do coletivo, inclusive, deve-se em muito à sua experiência na comunidade e escola de samba da Mangueira, ela própria uma alteridade para o então jovem artista de classe média. É o que conta, por exemplo, Waly Salomão: Revelou-me Hélio, certa vez, que sem essa imersão na vida densa comunitária do morro e do samba teria sido para ele quase impossível entender inteiramente o alcance e desdobramen- 408 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tos do “corpo coletivo” que a perpétua ponta de lança Lygia Clark propunha a partir de uma série de experiências com os alunos dela na Sorbonne, Paris. (SALOMÃO, 2015, p.31-32). ... Dobradinhas e dobradiças transformaram radicalmente o panorama e o panorama das artes brasileiras. A liberdade resulta do encontro da fome com a vontade de comer, é uma junção do exterior com o interior. Assumindo resolutamente o que lhe caiu no colo pelo acaso de um convite da dupla Jackson Ribeiro-Amilcar de Castro para vir se juntar à equipe e terminar a encomenda de pintar alegorias para o desfile de carnaval da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Hélio aproveitou a ocasião para se liberar de suas âncoras. Para ele foi uma mudança de pele, uma transvaloração radical. (Ibid, p.42) A arte contemporânea não inventou nada. A singultaneidade já era a realidade do samba, do carnaval, do futebol e de outras manifestações populares de dança, música e festa, seja da Mangueira ou de outras comunidades. A Oiticica só coube a tradução ou reelaboração própria desse fenômeno coletivo para as reflexões e práticas específicas da arte. E antes de finalizarmos, é bastante significativa a aproximação do artista com Viveiros de Castro, uma vez que este também encontrou nas cosmologias ameríndias um entendimento absolutamente alteritário do que é o sujeito e de como este se relaciona com o mundo. No perspectivismo ameríndio, a formação e autopercepção do indivíduo se dá necessariamente na sua relação com o outro. O corpo amazônico “recebe sua forma do olhar de outro sujeito” e depende enquanto imagem “das intenções e percepções cambiantes dirigidas a ele ou que nele encontram sua fonte” (vide Castro, 2017). Curiosamente, isso também é agenciado por uma fantasia ou roupa, pela aparência corporal externa, onde se expressa e se mostra, ao contrário do cristianismo, a singularidade mais essencial de cada indivíduo ou espécie. A roupa, no parangolé, também é o lugar por excelência de modelação, exposição e desdobramento da singultaneidade de quem a usa. Como bem analisa Flávia Cera, o parangolé não cobre ou oculta, mas despe, desvela, a virtualidade mais própria dos indivíduos-participantes e sua exponenciação subjetiva e performática no coletivo. A autora revela inclusive, por entrevista com Viveiros de Castro, que o antropólogo, amigo de Oiticica, se inspirou de fato no parangolé para elaborar a noção de rouANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 409 pa-corpo da teoria do perspectivismo. Mas o que tudo isso nos diz sobre Bressane? Ora, se o cineasta já utilizou Orson Welles e o cinema expressionista alemão para ler a obra de Antônio Vieira, e Francisco Alves e Noel Rosa para ler Machado de Assis, por que não podemos ler a sua filmografia, usando Hélio Oiticica (para mencionar apenas uma de várias possibilidades)? Ler o cinema pelo parangolé. Com Oiticica, percebemos que o cinema de Bressane é um cinema de singultaneidades, mesmo que a sua experiência de coletivo – o coletivo da filmagem – tenha uma escala muito menor do que a do bloco de carnaval, restringindo-se (num primeiro momento, pelo menos) às dinâmicas internas da equipe de produção176. Curiosamente, a vivência da filmagem é mais próxima das experiências coletivas de Oiticica nos anos 70, como as deambulações ambulatórias no Rio de Janeiro ou o cotidiano-lazer introspectivo dos ninhos, cosmococas e babylonests (registrado, inclusive, no filme Lágrima-pantera)177. No entanto, o fundamento da experiência cinematográfica em Bressane ainda é o bailado igualmente concomitante entre a filmadora e seus interlocutores. O jogo de cena é moldado e ritmado pelo encontro magnético desses dois (ou mais) corpos marcadamente distintos entre si, com seus gestos, humores e movimentos bastante próprios. Tal singularidade é simultânea à confluência desses mesmos corpos, e suas respectivas afecções, no gesto coordenado da invenção fílmica, na coreografia conjunta em que o (des)limite cinematográfico é apenas, 176 Como no efeito cascata do parangolé, espectadores do filme também podem ser inspirados e estimulados pela experimentação cinematográfica, dando-lhe continuidade em sua própria experiência criativa e propagando assim a invenção desse primeiro coletivo de filmagem. Mas essa é apenas uma das infinitas possibilidades de recepção da obra (e é bom lembrar que mesmo os parangolés e bólides, com toda o seu apelo participativo, se sujeitavam a essa contingência, pois uma das possibilidades de recepção dos objetos era justamente os espectadores não fazerem nada com eles – e o próprio Oiticica previa essa reação). 177 Os longas mais recentes de Bressane recuperam, inclusive, a vivência introspectiva de Lágrima-pantera, ao mostrarem casais ou pequenos grupos reclusos em apartamentos, casas e mônadas, vivendo uma experiência intersticial de intelectualidade e sexualidade (vide Camarneiro, 2016) - e é no seio de suas inusitadas afecções e interações que as personagens chegam a um arrebatamento dionisíaco de si mesmas (no sentido nietzscheano do termo). Nesse sentido, filmes como Filme de amor (2003), Educação sentimental (2013), Beduino (2016) e Sedução da carne (2018) aproximam-se muito do lazer-criador afectivo dos ninhos oiticicanos, em que a introspecção grupal nos espaços-tempos intersticiais e quase etéreos de Oiticica era condição e catálise de um desenvolvimento único e potencial da criatividade e da singultaneidade. 410 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 metonimicamente falando, a parte, o resultado, de uma revitalização maior, lúdica e total, do coletivo de filmagem. Partindo não de um, mas de todos, essa energização mútua é o que estimula todos os envolvidos a irem, artística e subjetivamente, além de si mesmos, ao vivenciarem juntos, mesmo que temporariamente, uma experiência ou percepção diferentes do mundo e de si próprios. Não à toa o carnaval é tão presente na filmografia de Bressane: é o evento intersticial e arrebatador da folia que desvela, por um relance, todas as maneiras ainda possíveis de se experienciar o museu do mundo. Essa singultaneidade lança, por fim, novas questões não apenas sobre Bressane mas sobre o cinema em geral. Se no Cão andaluz de 1929, a navalha de Luís Buñuel cortava o olho de Simone Mareuil, nos filmes de Bressane são os atores quem quase literalmente (re)cortam o olho da câmera. Os atores são muito mais que um objeto de visão passivo do diretor: a singultaneidade do jogo de cena demonstra como o fazer cinematográfico se dá não somente com o “homem com a câmera”, mas com os agentes sob sua mirada que o olham de volta. Quando os atores, e sobretudo as atrizes, encaram a câmera ou intervêm fisicamente sobre ela, o que se vê não é apenas uma “quebra da quarta parede”. Para além da denúncia demagógica e paternalista da suposta ilusão do público com a diegese cinematográfica, o que se celebra é o fenômeno multipessoal e plurissubjetivo, o encontro e a afecção reflexiva entre dois corpos que criam, afetiva e conjugalmente, a imagem. É bastante significativo que em entrevistas ao Canal Brasil (disponíveis no canal oficial da emissora na Internet), Bressane afirme, por exemplo, que Alessandra Negrini foi quem lhe deu as imagens que procurava em Cleópatra (2007), ou que tudo que Educação sentimental (2013) precisou fazer foi seguir Josie Antello, conduzido que foi pela performance da atriz. Reconhece-se a potencialidade maior do cinema enquanto intersubjetividade, singultaneidade, onde a invenção não é mérito exclusivo do autor-gênio do romantismo, ainda tão fetichizado pela teoria cinematográfica (e mesmo por nós, que ainda nos referimos aos filmes como obras de Bressane). Bressane por Oiticica é um convite para repensarmos o cinema pelo parangolé ou mesmo, em último caso, pelo perspectivismo, pela coreografia coordenada e total dos sambas, ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 411 passistas e blocos conforme o próprio Bressane sugere em seu último filme, Capitu e o capítulo (2021), cujas circuncenas finais com a equipe de produção são embaladas pelo Hino da Mangueira de Jamelão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA, Paula. Hélio Oiticica: singularidade, multiplicidade. 1. ed. São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2013 BRESSANE, Júlio. Alguns. Rio de Janeiro: Imago, 1996. BRESSANE, Júlio. Deslimite. Rio de Janeiro: Imago, 2011. CAMARNEIRO, Fabio Diaz. Cinema inocente: artes plásticas e erotismo em Filme de amor, de Júlio Bressane. 2016. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) - Escola de Comunicação e Artes, USP, São Paulo, 2016 CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo ameríndio. 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ARS: Dossiê Hélio Oiticica. São Paulo, vol.17, n.30, 2017. pp.75-85. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o 412 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: qual é o parangolé? E outros escritos. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. STIGGER, Veronica. O parangolé e a dança dos olhares. In.: STERZI, Eduardo; STIGGER, Veronica (orgs.). Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo. São Paulo: Sesc São Paulo, 2017. pp.22-27. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O cineasta celerado: a arte de se ver fora de si no cinema poético de Júlio Bressane. São Paulo: Annablume, 2011 VOROBOW, Bernardo; ADRIANO, Carlos (orgs.). Julio Bressane: Cinepoética. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 413 WARHOL-FOTO-CINEMA: UM ENSAIO SOBRE AS RELAÇÕES DE ANDY WARHOL COM AS IMAGENS TÉCNICAS Maria Ilda Trigo178 – m189757@dac.unicamp.br Resumo: Este ensaio trata da importância das imagens técnicas para o pensamento e a produção artística de Andy Warhol, para além dos estereótipos e dos consensos estabelecidos sobre certa concepção de Pop Art, que a resume basicamente ao uso de cores intensas e à apropriação de imagens do cotidiano, especialmente o midiático. Pretende-se expandir esse entendimento, explicitando o embate com as imagens técnicas não apenas como um “assunto” de Warhol, mas como fundamento de sua produção e, antes disso, de sua vivência no que ele próprio (ironicamente) nomeou de “América”. A ideia é descentrar a análise das obras mais referenciadas e estudadas de Warhol, dando espaço principalmente para seus comentários sobre fotografia, cinema (além de outras mídias), registrados em três de seus livros: A filosofia de Andy Warhol: (de A a B e de volta a A), publicado originalmente em 1975; Popismo: os anos sessenta segundo Andy Warhol, de 1980 e América, de 1985. Em relação ao cinema, daremos destaque à experiência EPI – Exploding Plastic Inevitable, compreendendo-a como um prenúncio do que se denomina desde então de cinema expandido. Apoiarão a discussão, além dos textos do próprio Warhol, o conceito de imagem técnica desenvolvido por Vilém Flusser e as reflexões de Hal Foster apresentadas em O retorno do real, além de outros autores. Palavras-chave: Andy Warhol; Imagens técnicas; Fotografias; Cinemas. Abstract: This essay deals with the importance of technical images for Andy Warhol’s thought and artistic production, beyond the stereotypes 178 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada Let your body move: narrativas de arquivo, multimeios e interatividade, orientada pelo Prof. Dr. Paulo César da Silva Teles, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas. A pesquisa conta com financiamento CAPES. 414 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 and consensus established on a certain conception of Pop Art, which basically summarizes it in the use of intense colors and the appropriation of images from everyday life, especially the mediatic. It is intended to expand this comprehension, explaining the clash with technical images not only as a “subject” of Warhol, but as the foundation of his production and, before that, of his experience in what he himself (ironically) called “America”. The idea is to decenter the analysis of Warhol’s most referenced and studied works, giving space mainly to his comments on photography, cinema (as well as on other media), registered in three of his books: The philosophy of Andy Warhol: (from A to B and back again), originally published in 1975; Popism: the Warhol sixties, from 1980, and America, from 1985. In relation to cinema, we will highlight the EPI – Exploding Plastic Inevitable experience, understanding it as a harbinger of what is now called expanded cinema. In addition to Warhol’s own texts, the discussion will be supported by the concept of technical image developed by Vilém Flusser and by Hal Foster’s reflections presented on the book The Return of the Real, as well as other authors. Keywords: Andy Warhol; Technical Images; Photographs; Cinemas. 1. INTRODUÇÃO A reflexão aqui proposta tem origem na necessidade – inerente a meu processo de pesquisa – de ampliar o entendimento de Pop Art, para além dos aspectos pictóricos geralmente enfatizados pela crítica. Em outras palavras, apoia-se na percepção de que o que se entende por Pop é insuficiente para sua compreensão, especialmente quando se tem em vista a prática de Andy Warhol. Dentre os aspectos que eu supunha serem pouco tratados pela historiografia e pela crítica, destacava-se a centralidade da imagem fotográfica, senão para a arte pop como um todo, pelo menos para muitos artistas, especialmente aqueles que eu pesquisava. Com centralidade, quero dizer não apenas que os artistas pop se apropriaram de fotografias (sobretudo veiculadas pelas mídias), mas que eram pop justamente por terem feito isso, sendo impossível separar a Pop da predominância ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 415 sócio-cultural desse tipo fundante de imagem técnica. O fato de o fotográfico ter sido negligenciado pela crítica não passou despercebido para Klaus Honnef, comentarista da obra de Andy Warhol que credita essa negligência à reduzida importância da fotografia para o sistema da arte no momento em que a Pop começava a ser por ele absorvida (HONNEF, 2005, p. 45). O autor, porém, não avança muito na reflexão, apontando apenas que “[...] Warhol deve ter notado logo muito cedo a influência dominante e sempre crescente da fotografia e do cinema sobre o espírito das pessoas na percepção da realidade” (Idem, ibidem). A dúvida sobre se Warhol teria ou não “notado” essa influência me fez buscar em suas próprias falas ou escritos referências à importância do fotográfico em sua produção artística. Para além de ele ter fotografado ou se apropriado de fotografias, interessava-me saber como ele compreendia o mundo já predominantemente fotográfico em que viveu e produziu arte. 2. A ESCRITA-FALA DE WARHOL Confrontar-se com a produção “escrita” de Warhol exige algumas de ressalvas. A primeira é que se deve tomar a palavra “escrita” em sentido ampliado. Isso porque ele não escrevia propriamente: ele gravava; e suas falas eram transcritas por datilógrafos contratados ou por sua assistente Pat Hacket179. Esse fato aponta para aspectos importantes, a saber, o caráter transmidiático de sua “escrita” e o performativo. O primeiro diz respeito ao fato de que raramente Warhol se “contentou” com apenas um meio, promovendo certa confusão entre eles180 e utilizando-se de todos os recursos tecnológicos a sua disposição. Já o caráter performativo – nossa segunda ressalva – tem um duplo sentido: ele mistura a performance oral e escrita e, além disso, 179 Pat Hacket ficou responsável pela transcrição de Popismo, do qual é coautora, e também dos diários, editados por ela e publicados originalmente em 1989, dois anos depois da morte de Warhol. 180 Note-se que Warhol tensionava as características próprias de cada meio. O exemplo mais emblemático são filmes como Empire (1964), que confundem as noções de cinema e fotografia (retrato). 416 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 “performa” no sentido de promover uma encenação que dificulta saber quando está falando seriamente e quando está sendo irônico181. Como se verá mais à frente, o artista performava/encenava inclusive em momentos em que se esperava que ele falasse seriamente, por exemplo, ao tratar de sua produção artística182. Era de se esperar, portanto, que essa performance ambígua se revelasse também em seus textos, nos quais muitas vezes nos deparamos com afirmações evasivas, contraditórias ou sugestivamente irônicas. De certa forma, Warhol coloca em cheque o caráter de verdade dos documentos produzidos por artistas, o que de maneira alguma invalida o contato com esses textos, mas certamente deve ser considerado durante a leitura. 3. REVENDO WARHOL Os desafios impostos pelos textos de Warhol parecem ser apenas um reflexo de desafio mais amplo que envolve toda sua produção – incluindo sua performance social, como veremos a seguir – e do qual o principal sintoma talvez seja a igualmente ambígua e até contraditória recepção de sua obra (CAUQUELAIN, 2005, p. 107). Ao mesmo tempo em que muitos o consideram uma farsa (INDIANA, 2010, p. 87), outros o veem como crítico do capitalismo, fato que o próprio artista não se cansa de negar. É conhecida a maneira como Warhol foi recebido na Europa, em especial na Alemanha e na França, como uma espécie de marxista (DANTO, 2012, p. 11; LARRATT-SMITH, 2010, p. 115). O mito ambíguo que o próprio artista se esforçou para construir e alimentar certamente contribuiu para que sua obra e sua persona artística continuassem vivas na contemporaneidade, ao lado de características de sua ampla atuação que, como já dito, não se resume às consagradas pinturas e serigrafias. E é também importante ingrediente das muitas revisões sobre o artista que, desde meados de 1990, têm sido 181 Muito poderia ser dito sobre a ironia de Warhol, perceptível em várias passagens de seus textos. Ironia que em muitos casos tende para o escárnio e o deboche, como se percebe no trecho a seguir: “Não consigo entender por que nunca fui um expressionista abstrato, porque com a minha mão que treme eu teria sido um talento natural.” (WARHOL, 2008, p. 171) 182 É bastante conhecido o fato de que Warhol costumava faltar a entrevistas e palestras ou enviar sósias em seu lugar, e até mesmo apresentar versões diferentes de um mesmo fato (Cf. WARHOL, 2008, p. 95). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 417 feitas183. Dentre essas revisões a que mais tem se mostrado proveitosa para compreender as questões levantadas por este ensaio é a de Hal Foster. Ao rever a Pop, juntamente com o minimalismo, em seu livro O retorno do real (2017), abdica da tarefa de resolver o paradoxo crítico-acrítico, busca por critérios outros para a compreensão do artista e de sua importância para a contemporaneidade, aceitando a contradição como uma das camadas de significado de seu trabalho. O autor reconhece em Warhol a ambiguidade que torna difícil distinguir o que nele é adesão ao way of life imperante e o que nele é crítica, mas atribui isso a uma simulação. Segundo o autor: “[Warhol] Certamente simulava a esquizofrenia como defesa mimética contra as exigências contraditórias dos vanguardistas na sociedade do espetáculo, mas é difícil distinguir sua defesa contra o espetáculo da sua identificação com ele” (FOSTER, 2017, p. 121), colocando essa dificuldade de distinção como o que nele causa fascínio (Idem, ibidem, p. 126) Inscreve Warhol entre os artistas dândi, conforme descrito por Benjamin quando fala de Baudelaire: um artista que performa em sua vida pessoal, assumindo posturas de adesão e distanciamento em relação à realidade social (Idem, ibidem, pp. 118-119). No caso de Warhol isso viria acrescido de um cinismo que se tornará característico das neovanguardas e, de maneira mais ampla, da produção artística contemporânea, em que há predominância de “Personas infantilizadas”, “parte paciente[s] psicótico[s], parte artista[s] de circo” (Idem, ibidem, p. 151). E não deixa de ser alusivo a essas reflexões o fato de ter se deixado fotografar com nariz de palhaço (figura 1). Assim, aderimos a essa visão de Foster, compreendendo a ambiguidade como um complexo fenômeno artístico184 e aceitando que essa performance cínico-irônica possibilita leituras da realidade, inclusive leituras críticas. 183 Nesse ponto, destacam-se as reflexões de Anne Cauquelain (2005), Arthur Danto (2012) e Hal Foster (2017). 184 Annateresa Fabris destaca a ambiguidade como uma característica intrínseca à Pop (FABRIS, 2007, p. 223). 418 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 4. IMAGEM TÉCNICA Diante das peculiaridades dos textos de Warhol e considerando ainda a imensa quantidade de informações de diferentes naturezas contidas nos livros selecionados, era necessário estabelecer parâmetros conceituais para a análise. Levando em conta o tipo de informação desejada, pareceu-me produtivo fazer uso de um importante conceito, frequentemente tomado como baliza para a compreensão do fotográfico: o de imagem técnica, conforme desenvolvido por Vilém Flusser inicialmente no conhecido livro Filosofia da caixa preta, cuja versão em português foi publicada originalmente em 1985185. É bastante referenciada a posição de Flusser sobre as imagens técnicas, aquelas, segundo o autor, “produzida[s] por aparelhos” (FLUSSER, 2009, p. 13). Para ele, o desafio do artista é “agir contra o programa dos aparelhos no ‘interior’ do próprio programa” (Idem, 2008, p. 28). De maneira similar atribui à crítica a tarefa de “desocultar os programas por detrás das imagens” (Idem, ibidem, p. 29). Desafio e tarefa que foram prontamente assumidos por vários artistas e pensadores e que cabe muito bem inclusive a alguns artistas da Pop, que adotaram uma postura mais crítica, visando questionar “a estabilidade dos esquemas de observação” (OSTERWOLD, 1999, p. 126) consagrados pela sociedade de consumo. Artistas como Martial Raysse, Richard Hamilton e Sigmar Polke – ligados ao pop europeu186 – são bastante claros na intenção de desmascarar a imagem fotográfica como resultado de um processo de construção que cumpre “desnaturalizar”187. O mesmo não acontece com Warhol. Além de ter sido evasivo e ambíguo em relação a esse e outros temas, mais de uma vez afirmou categoricamente não haver nenhum tipo de crítica em seu trabalho. Em vez de “lutar contra a automaticidade do aparelho”, como sugere Flusser (FLUSSER, 2008, p. 28), ele adere totalmente aos automatismos, sendo muito conhecida sua afirmação: “Quero ser máquina”. 185 A primeira versão do texto foi publicada em alemão, em 1983. 186 Em geral a pop europeia é considerada mais crítica em relação à sociedade de consumo que a estadunidense (DANTO, 2012, p. 10). 187 O percurso desses artistas está brevemente descrito em TRIGO, 2019, pp. 98-105. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 419 Em geral ele filmava e fotografava com equipamentos automáticos, muitas vezes com câmeras amadoras. É curiosa sua afirmação sobre a dificuldade de manusear uma câmera 35 mm manual: “Eu tinha comprado uma câmera fotográfica 35 mm e durante algumas semanas fiquei tirando fotos, mas era muito complicado para mim. Ficava impaciente com as aberturas, a velocidade do diafragma, a medição de luz, então desisti.” (WARHOL, 2013, p. 95) De maneira que a relação de Warhol com os aparelhos pode ser entendida como um elogio aos automatismos. Mais do que desafiar o aparelho, age como um perfeito “funcionário”188 do aparato. E o seu desejo de se fundir com a máquina pode ser lido em alguns de seus autorretratos, especialmente nos autorretratos com câmera (figura 2). Assim, pelo menos aparentemente, e seguindo o quase dogma flusseriano que associa o poder crítico de uma produção intelectual e ou artística a sua não adesão a programas maquínicos, somos quase que imediatamente forçados a concordar com um Warhol farsesco. O que nos obriga a buscar novas chaves para a leitura do artista. 5. THIS IS AMERICA Buscar novas chaves de leitura implica, no caso, além de considerar as revisões sobre o trabalho de Warhol, examinar também o contexto social não apenas do momento em que ele produziu, mas aquele em que nasceu e cresceu. Sua biografia, bastante referenciada e até fantasiada, é raramente levada em conta quando se trata de seus anos de formação e guarda algumas peculiaridades que em muito contribuem para a compreensão de sua prática artística. Warhol nasceu e cresceu numa sociedade de consumo massivo estabelecida nos Estados Unidos muito antes do que em qualquer lugar do mundo e na qual a presença dos aparatos e das imagens técnicas já estava bastante consolidada. Informações divulgadas pelo site do Museu Andy Warhol189, instituição da marca Warhol detentora de grande 188 Flusser define “funcionário” como “pessoa que brinca com aparelho e age em função dele.” (FLUSSER, 2009, p. 77). 189 The Andy Warhol Museum. Acessível em: https://www.warhol.org/. 420 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 parte do acervo do artista e cuja missão é preservar e divulgar sua obra, dão conta de um jovem bastante familiarizado com cenário que posteriormente se tornaria hegemônico190. Nascido em família pobre e vivendo numa época de depressão econômica, teve sua primeira câmera fotográfica com oito anos. Alguns anos mais tarde, seu irmão, John Warhola, e seu primo, John Preksta, mantiveram um estúdio fotográfico, o que por si só poderia ser compreendido como prova da presença do aparato e da imagem técnica em sua vida. O mesmo se deu em relação às imagens produzidas por dispositivos técnicos. Ele tinha acesso a histórias em quadrinho, revistas sobre estrelas de Hollywood e brinquedos de recorte (Idem, 2008, p. 35). Sua relação com as estrelas de cinema também foi muito intensa. Sistematicamente, escrevia a elas pedindo fotografias autografadas. A mais querida dessas fotos era a de Shirley Temple, colorida no estúdio de seu irmão e mantida até o fim de sua vida entre seus objetos preferidos. Essas informações nos permitem imaginar como, ainda em seus anos de formação, a experiência dos aparatos e das imagens técnicas foi muito viva. Andy misturava-se àquilo que ele mesmo assumiu como “América” (Idem, 2012, p. 17), num contexto que viria a se configurar apenas posteriormente na Europa e tardiamente na América Latina: o da sociedade de consumo massivo191, em que a presença dos aparatos e do universo gerado por eles, incluindo o das imagens técnicas, floresceu a ponto de tornar-se, para Warhol, sua geração e aquelas que viriam a seguir, a mais perfeita Natureza. 190 Cf. Biografia do artista em The Andy Warhol Museum. Disponível em: https://www.warhol.org/andy-warhols-life/. Acesso em 25 jan. 2022. 191 São várias as afirmações de Warhol sobre a sociedade de consumo estadunidense, nas quais se observa uma profunda consciência sobre suas características e, ao mesmo tempo, uma identificação total com elas, como se pode confirmar no trecho que segue: “Comprar é muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente americano. [...] Americanos não estão interessados em vender – na verdade eles preferem jogar fora a vender. O que eles realmente pensam é em comprar – pessoas, dinheiro, países.” (WARHOL, 2008, p. 255). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 421 6. UM NOVO ENGAJAMENTO Se a proposta de Flusser desenvolvida na Filosofia não ajuda a esclarecer a postura de Warhol, ou apenas reforça a convicção de um artista acrítico, o mesmo não se pode dizer das ideias propostas pelo autor num livro que, embora menos referenciado, aponta para outras possibilidades de compreensão do problema. Em O universo das imagens técnicas, publicado pela primeira vez em 1985, que tem o curioso subtítulo “elogio da superficialidade”, Flusser propõe outras possibilidades de atuação em relação às imagens técnicas, colocando o elogio à superfície como uma espécie de militância, um novo engajamento. Para o autor: O novo engajamento não acredita em tais relações ‘profundas’: acredita que tais ‘profundidades’ não passam de reflexos da superfície da sociedade. Acredita que quem mudou a superfície, mudou tudo, porque por detrás da superfície nada se esconde. Acredita que as relações superficiais, intra-humanas, são as únicas concretas. A atitude do novo engajamento é ‘fenomenológico’: elogio da superfície da superficialidade. (FLUSSER, 2008, p. 72) Em outras palavras, para além de enfrentar o aparato, sugere-se que os artistas enfrentem “as estruturas comunicológicas, as ‘superestruturas’” (Idem, ibidem) reveladas pelas superfícies. Esse ponto de vista muda completamente a leitura que se pode fazer de Andy Warhol, uma vez que elogios à superfície sejam talvez o que ele mais tentou fazer com seu trabalho. Frequentemente questionado sobre a melhor maneira de conhecer a ele e a sua obra, mais de uma vez respondeu: “Si vous voulez tout savoir sur Andy Warhol, contetez-vous de regardez à la surfasse de mes peintures et de mes films et de ma personne, cést là que que je suis. Il n’y a rien derrière”192 (Idem, 2005, p. 103). 192 “Se você quiser saber tudo sobre Andy Warhol, basta olhar para a superfície de minhas pinturas e de meus filmes e de minha pessoa, é onde estou. Não há nada por trás disso.” (Livre tradução) 422 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 7. POP TRANSMÍDIA Depois de ter sondado uma maneira satisfatória de (re)pensar a prática artística de Warhol, cumpre questionar quais seriam os impactos dessa compreensão na pesquisa realizada. Nesse ponto, voltamos à hipótese inicial – a sensação de que a Pop, especialmente em Warhol, não se resume aos aspectos pictóricos referenciados pela crítica e reconhecidos pelo público em geral. O que proponho é que se compreenda a Pop necessariamente como um fenômeno transmídia, inseparável da (oni)presença dos aparatos e das imagens técnicas, bem como de todas as implicações disso. Em seus livros, especialmente em Popismo (2013), Warhol fala da vontade dele e dos artistas do seu entorno de fazer tudo – e nesse caso fazer tudo significava lidar com muitos meios: “A ideia pop, afinal, era que todo mundo podia fazer tudo, então naturalmente estávamos tentando fazer tudo. Ninguém queria ficar em uma categoria; nós todos queríamos ramificar para todas as coisas criativas que pudéssemos [...].” (Idem, 2013, p. 165) Warhol acompanhava a intensa cena artística de Nova Iorque, o que incluía o circuito criativo de dança, cinema, literatura e artes visuais (Idem, ibidem, pp. 15, 37, 42, 68). Ele participou dessa cena de muitas maneira: como artista ao mesmo tempo estabelecido no sistema de arte e underground (ou independente, como ele preferia entender), como colaborador, fomentador, produtor e inclusive como espectador, no caso da poesia independente. Isso sem citar o papel da Factory como espaço de encontro e trabalho de muitos artistas de diversas áreas. Essa cena incluía experiências multimidiáticas. E Warhol teve uma participação muito importante naquilo que até hoje se reconhece como cinema expandido e que pode ser concebido como uma atividade fundamentalmente multi e/ou transmidiática. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 423 8. EXPANDED CINEMA O termo expanded cinema, que remete ao livro publicado por Gene Youngblood em 1970193, foi usado em 1966 por Jonas Mekas194, para nomear um projeto que ele estava organizando. De acordo com Warhol: “Ele estava no meio de uma série chamada Expanded Cinema, em que artistas como Jack Smith, La Monte Young e Robert Whitman combinavam imagens de cinema e projetores com ação ao vivo e música.” (Idem, ibidem, p. 178) Ao ser convidado a participar, propôs uma experiência com o Velvet Underground (Idem, ibidem), que acabou por se expandir para fora do projeto de Mekas, tendo havido várias apresentações, em diversas cidades dos Estados Unidos. O EPI – Exploding Plastic Inevitable – era um mixed media happening que incluía música ao vivo, projeções de filmes, dança e show de luzes estreboscópicas e globos de espelhos195. Em Popismo, Warhol descreve a preparação para o evento: Começamos a levar todo tipo de coisas da Factory para lá – cinco projetores de cinema, cinco projetores de slides tipo carrossel, em que a imagem muda a cada dez segundos e, no qual, se você põe duas imagens juntas, elas pulsam. Essas coisas coloridas iriam em cima dos cinco projetores de cinema, e às vezes deixaríamos as trilhas sonoras se sobreporem. Levamos também uma das grandes bolas de espelho giratórias daquelas dos bares clandestinos da lei seca – elas estavam jogadas na Factory e achamos que seria fantástico reviver aquilo. (Idem, ibidem, pp. 190, 191) 193 O livro de Youngblood (1942-2021), intitulado Expanded Cinema, é até hoje uma das principais referências para artistas multimidiáticos e ajudou a consolidar a expressão “cinema expandido” nos circuitos artístico e acadêmico. 194 Jonas Mekas (1922-2019) foi um cineasta lituano-estadunidense cuja atuação foi fundamental para a consolidação de uma vanguarda audiovisual nos Estados Unidos. 195 No link https://www.youtube.com/watch?v=HsR4ghMfq0U&t=353s pode-se ter uma ideia do que eram esses hapennings. 424 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A experiência era bastante inovadora e, também por isso, merece ser pensada como o trabalho mais emblemático de Warhol no sentido transmidiático. O artista produziu vários cartazes para divulgar o evento, no melhor estilo publicitário. Em todos eles, procura em maior ou menor grau alertar o público para o tipo de experiência que estava sendo proposto: “É onde entretenimento acontece”, “Estranhamente sedutor”, “É explosão de Andy Warhol!”, etc. (figura 4). Sobre a reação do público, Warhol afirma: Fizemos dois shows, para mais de 650 pessoas. Projetamos Vinyl, Lupe e também filmes de Nico e os Velvets, com eles tocando. Foi fantástico ver Nico cantando com um filme de seu rosto imenso atrás dela. [...] O público ficou hipnotizado – quando um universitário disparou o alarme de incêndio segurando um fósforo perto do sensor, ninguém prestou atenção. (Idem, ibidem, p. 187) Digno de nota é o fato de que a experiência do EPI ocorria paralelamente a outros eventos organizados por Warhol, como a exposição das almofadas prateadas na galeria Castelli e as projeções de filmes na Film Maker’s Coop, o que possibilitava ao artista ampliar seu público (Idem, ibidem, p. 197). Segundo Warhol: [...] nessa altura, com uma coisa e outra, estávamos atingindo pessoas em todas as partes da cidade, todos os tipos de pessoas: as que assistiam aos filmes ficavam curiosas com a exposição da galeria, e a garotada que dançava na Dom queria veros filmes; os grupos estavam todos se misturando – dança, artes plásticas, moda, cinema. (Idem, ibidem, p. 197) No EPI confluem diversos fatores que o colocam como experiência pioneira de um certo tipo de “arte” em que tudo se mistura: o experimental, o entretenimento, o publicitário. E não se pode negar que, especificamente nesse ponto, amplia uma das principais particularidades da Pop – a confusão das fronteiras entre alta e baixa cultura. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 425 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise apresentada permite constatar mais uma ambiguidade do fenômeno Warhol: um artista ao mesmo tempo superconhecido – um “superstar” – e em alguns aspectos ainda subexplorado. Sua ampla e diversificada atuação artística aponta para uma transmidialidade fundante, em geral desconsiderada pela crítica e pelo público. Essa atuação não pode ser separada da presença massiva dos aparatos e das imagens técnicas, devendo esses últimos serem compreendidos não apenas como tema dos artistas pop, mas – especialmente no caso de Warhol –, como condição da emergência de uma arte que, para além da forma como tem sido compreendida, ainda reverbera em muitos aspectos na arte atual. Especialmente em relação aos ambientes multimídias, em franco desenvolvimento na década de 1960, para os quais o EPI figura como exemplar: mais uma das faces da cultura pop – dessa cultura que aqui defendemos como intrinsecamente transmidiática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAUQUELAIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005. DANTO, Arthur C. Andy Warhol. São Paulo: Cosac Naify, 2012. FABRIS, Annateresa. “A ‘mensagem do meio’: Pop Art e fotografia”. In: COUTO, Maria de Fátima Morethy (org.). Cadernos de pós-graduação, v. 9, n. 1-2, pp. 219-224. FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu, 2017. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Sinergia Relume Dumará , 2009. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. 426 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 INDIANA, Gary. “O efeito Warhol”. In: LARRAT-SMITH, Philip (org.). Mr. America. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010, pp. 83-92. HONNEF, Klauss. Andy Warhol 1928–1987: a comercialização da arte. Colônia: Taschen, 2005. LARRAT-SMITH, Philip (org.). Mr. America. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010. OSTERWOLD, Tilman. Pop art. Colônia: Taschen, 1999. TRIGO, Maria Ilda. Tua pele, tuas palavras: o arquivo de fotografias de família numa visão intermidiática. 2019. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2019. WARHOL, Andy. América. Porto Alegre: L&PM, 2012. WARHOL, Andy. Entretiens: 1962-1987. Paris: Bernard Gasset, 2005. WARHOL, Andy. A filosofia de Andy Warhol: (de A a B e de volta a A). Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. WARHOL, Andy. Popismo: os anos 60 segundo Andy Warhol. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 427 Imagens: Figura 1: Christopher MAKOS. Andy Warhol com nariz de palhaço. 1982. 40,6 cm X 50,8 cm. Fonte: https://www.makostudio.com/gallery/3028. Acesso em: 11 fev. 2022. Figura 2: Andy WARHOL. Autorretrato com câmera (díptico). 1973. Fotografia polaroid. Fonte: https://www.artsy.net/artwork/andy-warhol-self-portrait-with-camera-diptych-1. Acesso em: 12 fev. 2022. 428 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 3: (À esquerda) John Warhola. Retrato de Andy Warhol um dia antes de ingressar na universidade. 1945. (À direita) Retrato de estúdio de Shirley Temple com dedicatória para Andy Warhol. 1941. Fonte: The Andy Warhol Museum/The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts. Disponíveis em: https://www.Warhol.org/andy-Warhols-life/ e em https://www. warhol.org/rest-in-peace-shirley/. Acesso em 25 jan. 2022. Figura 4: Cartazes de divulgação do EPI. Fonte: https://msmokemusic.com/blogs/mind-smoke-blog/posts/1966-any-warhol-s-plastic-exploding-inevitable . Acesso em: 25 jan. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 429 LE ROI GOUVERNE PAR LUI-MÊME: O CORPO DO PODER NAS PINTURAS DE CHARLES LE BRUN (1619-1690) PARA A GRANDE GALERIE DE VERSALHES Matheus Corassa da Silva196 - matheus.corassa@unifesp.br Resumo: Charles Le Brun (1619-1690) figura entre os grandes vultos da cultura visual do século XVII. Suas produções artísticas (como pintor e decorador) e acadêmica sintetizaram bem as contradições motivadas pelo contexto da Contrarreforma e do fortalecimento dos Estados nacionais absolutistas. Além disso, estavam relacionadas ao estabelecimento de um novo paradigma estético posicionado a meio caminho do classicismo renascentista e das inovações ditas barrocas. Os trabalhos desse peintre savant canalizavam a preocupação da sociedade seiscentista com o mundo extra-racional ao mesmo tempo em que eram sinais de seu esmero quase científico na elaboração das composições. Nessa perspectiva, é digno de nota o protagonismo que Le Brun deu às representações corpóreas tanto em suas pinturas quanto em suas reflexões teóricas. A proposta desta comunicação é apresentar as considerações preliminares de nossa pesquisa de doutorado, centradas nas manifestações estético-iconográficas da noção do corpo do poder na obra lebruniana. A figura do rei Luís XIV (1638-1715) ganha centralidade na produção do artista, que se propunha a enfatizar as representações do Rei Sol e de seus feitos, ampliar sua visibilidade perante os súditos e ritualizar os eventos e aparições em que sua majestade era manifesta. Nosso enfoque será a análise do conjunto de pinturas feitas por Le Brun para o plafond da Grande Galerie do Palácio de Versalhes, que ilustram feitos e realizações do monarca nos vinte primeiros anos de seu governo pessoal, estabelecido a partir de 1661 com a morte do primeiro-ministro Mazarino (1602-1661). Deste modo, é nossa intenção compreender o corpo do rei, a encarnação do Estado – direta ou indire196 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “Fisionomia, Expressões e Paixões: o corpo como argumento retórico em Charles Le Brun”, orientada pelo Prof. Dr. Jens Michael Baumgarten, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte (PPGHA) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). 430 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tamente representado – como um importante argumento retórico tanto nas obras de Le Brun quanto na própria cultura visual do século XVII. A fim de abrir caminho para reflexões e novos olhares sobre a iconografia, debruçar-nos-emos sobre a pintura Le Roi gouverne par lui-même que, num contexto mais amplo, pode ser entendida como sinal, muito mais que ilustração, do poder real encarnado no corpo de Luís XIV, o corpo do poder. Palavras-chave: Charles Le Brun; Luís XIV; Pintura; Corpo do poder; Retórica visual. Abstract: Charles Le Brun (1619-1690) is one of the great figures of 17th century visual culture. His artistic (as a painter and decorator) and academic productions well synthesized the contradictions motivated by the context of the Counter-Reformation and the strengthening of Absolutist National States. Furthermore, they were related to the establishment of a new aesthetic paradigm positioned midway between Renaissance classicism and the so-called baroque innovations. The works of this peintre savant canalized the preoccupation of 17th century society with the extra-rational world at the same time that they were signs of his almost scientific care in the elaboration of the compositions. From this perspective, it is worth noting the prominence that Le Brun gave to bodily representations both in his paintings and in his theoretical reflections. The purpose of this communication is to present the preliminary considerations of our doctoral research, centered on the aesthetic-iconographic manifestations of the notion of the body of power in Lebrun’s work. The figure of King Louis XIV (1638-1715) gains centrality in the artist’s production, which aimed to emphasize the representations of the Sun King and his deeds, increase his visibility before his subjects and ritualize the events and apparitions in which his majesty was manifest. Our focus will be the analysis of the set of paintings made by Le Brun for the plafond of the Grande Galerie of the Palace of Versailles, which illustrate the achievements and accomplishments of the monarch in the first twenty years of his personal government, established in 1661 with the death of the prime minister Mazarin (1602-1661). In this way, it is our intention to understand the king’s body, the incarnation of the State – directly or indirectly represented – as an important rhe- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 431 torical argument both in Le Brun’s works and in the visual culture of the 17th century. In the light of contemporary notions such as the body as a battleground and as a territory of the political, we will present the tensions, ruptures and continuities that this artistic motif assumed in Le Brun’s production. In order to open the way for reflections and new perspectives on iconography, we will focus on the painting Le Roi gouverne par lui-même which, in a broader context, can be understood as a sign, much more than an illustration, of royal power embodied by Louis XIV, the body of power. Keywords: Charles LeBrun; Louis XIV; Painting; Body of power; Visual rhetoric. INTRODUÇÃO Charles Le Brun (1619-1690) é considerado um dos principais nomes do Grand Siècle francês. Renomado pintor e decorador, teve papel de destaque na fundação da Académie Royale de Peinture et de Sculpture em 1648 – da qual se tornaria diretor em 1683 – e foi nomeado premier peintre du roi Luís XIV (1638-1715), o que lhe garantiu encargos grandiosos na decoração de palácios como o de Versalhes e o do Louvre. Notabilizou-se, enfim, como um peintre savant,197 isto é, um “pintor sábio” que, além de dominar o fazer artístico, dedicava-se ao estudo e à teorização do próprio ofício. Sob a proteção do próprio Rei Sol e do ministro Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), deu forma às artes de seu tempo e lançou as bases para a sistematização acadêmica do ensino artístico. Le Brun é peça-chave para a compreensão de um panorama artístico (no mais amplo sentido, incluídas aí a Literatura e a Arquitetura) que tinha como principal objetivo enfatizar as representações do rei Luís XIV e de seus feitos, ampliar sua visibilidade perante os súditos e ritualizar os eventos e aparições em que sua majestade era manifesta. 197 MONTAGU, Jennifer. Avant-propos. In: GADY, Bénédicte; MILOVANOVIC, Nicolas (dir.). Charles Le Brun (1619-1690). Paris: Musée du Louvre-Lens / LIENART Éditions, 2016, p. 10-11. 432 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Verificava-se, assim, um processo de verdadeira fabricação do rei,198 de construção simbólica de sua autoridade, que demandava das artes um caráter cada vez mais persuasivo e de artistas como Le Brun a capacidade de desenvolvê-lo com zelo, decoro e glória. Neste trabalho, pretendemos problematizar, mesmo que brevemente, parte da iconografia que constitui a decoração pictórica feita por Le Brun para o plafond da Grande Galerie (ou Galeria dos Espelhos) do Palácio de Versalhes. No conjunto, composto por nove pinturas grandes e dezoito menores,199 são retratadas cenas da Guerra Franco-Holandesa (1672-1678) e uma alegoria referente ao início do governo pessoal de Luís XIV, após a morte do cardeal Mazarino (1602-1661). Le Brun estabeleceu, assim, exemplares referenciais do que se convencionou chamar pintura discursiva,200 isto é, imagens envoltas por uma mística verbal e que, submetidas à atmosfera linguística da corte e da Académie, tinham o claro objetivo de persuadir espectadores e súditos da glória alcançada pelo gênio militar e político do rei. Dado o caráter ainda incipiente de nossa pesquisa, nosso enfoque será dirigido para uma das pinturas maiores da decoração, intitulada Le Roi gouverne par lui-même (O Rei governa sozinho), executada por Le Brun entre 1681 e 1684. Sua concepção está permeada por referências alegóricas que colocam conhecidas figuras como as de Minerva, Marte, Hércules, Saturno e as Três Graças como coadjuvantes de Luís XIV, encarnação do poder e do próprio Estado, “causa dos eventos, agente da história possuidor do poder de transformar as coisas”.201 A maior parte das análises já realizadas sobre a imagem citada ressaltam – corretamente, diga-se de passagem – a relação direta das alegorias e personificações com a construção de uma narrativa simbólica e elogiosa das conquistas político-militares de Luís. Nossa proposta, no entanto, é ir um pouco além dessa abordagem iconográfica mais tradicional, tra198 Tese longamente desenvolvida em BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 199 Ibid., p. 98. 200 BRYSON, Norman. Word and image: French painting of the Ancien Régime. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 31. 201 SCHMITTER, Amy M. Representation and the Body of Power in French Academic Painting. Journal of the History of Ideas, v. 63, n. 3, p. 399-424, 2002. p. 410. Disponível em: www. jstor.org/stable/3654315. Acesso em: 07 nov. 2021. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 433 zendo para o centro da reflexão a constituição pictórica do corpo do rei como um elemento per se, e não como a representação de uma ideia abstrata. Num contexto marcado pelo estabelecimento de uma cultura visual e literária que reforçava cada vez mais o discurso retórico-persuasivo, as artes visuais foram instrumentalizadas a favor de autoridades políticas, com os artistas a se utilizarem de elementos racionais (a pintura e a composição dos corpos retratados, por exemplo) com a finalidade de atingir objetivos extra-racionais.202 No caso de Le Brun, tal instrumentalização política se faz presente e abre caminho para uma estética do efeito em seus esquemas decorativos. Suas pinturas comunicam algo aos observadores, criam narrativas e legitimam discursos. São sinais, muito mais que ilustrações, do poder real encarnado no corpo de Luís XIV, o corpo do poder.203 Mais do que apontar conclusões ou interpretações fechadas, nosso objetivo é abrir caminho para reflexões e novos olhares, mesmo que ainda em vias de elaboração, no que diz respeito à análise das fontes iconográficas que elencamos acima. Para tal, partiremos dos referenciais metodológicos propostos por Daniel Arasse (1944-2003) no livro Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura.204 Nele, o autor questiona, dentre outros aspectos, a capacidade dos iconógrafos de esmagar os “incômodos” da pintura e de, como bombeiros, apagar o fogo que ilumina possíveis anomalias que saltam aos olhos do espectador e que fogem a toda e qualquer teorização ou hermetismo. A arte nos obriga a olhar mais de perto e “a constatar que não é tudo tão simples, tão evidente” quanto gostaríamos que fosse.205 É a partir dessa visão ampliada que começamos a delinear a hipótese central de nossa pesquisa, a ser, futuramente, desdobrada em nossa tese: mais do que simbolizar ou representar o poder, o corpo de Luís XIV, rigorosamente elaborado na pintura de Le Brun, encarna e se constitui como parte indissociável do poder real absoluto e transcende à 202 MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo: Edusp, 2009, p. 46. 203 SCHMITTER, op. cit. 204 ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora 34, 2019. 205 Ibid., p. 25. 434 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 mera condição de parte integrante de um discurso, ao tratamento como um corpo legível,206 sendo compreendido como o nó górdio da complexidade política e sede das tensões daqueles tempos. 1. A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA Para compreendermos melhor a atuação de Le Brun junto à decoração do Palácio de Versalhes, assim como a elaboração das imagens que figuram como objetos deste ensaio, precisamos retomar o contexto que cerca a estruturação de um sistema artístico, a partir de meados do século XVII, altamente centralizado e com objetivos muito claros: legitimar o poder do rei e contribuir para sua glória. Em seu leito de morte, em 1661, Mazarino teria aconselhado o jovem monarca a doravante governar sozinho, sendo o seu próprio primeiro-ministro, e a jamais deixar as questões políticas importantes aos cuidados de qualquer de seus auxiliares. 207 No mesmo ano, além de concentrar seus próprios poderes, Luís se livrou do último elemento que ainda o colocava sob a sombra da gestão do cardeal: o superintendente do Erário, Nicolas Fouquet (1615-1680). Acusado de vultosos desvios monetários, Fouquet foi preso e condenado à prisão perpétua, após três longos anos de julgamento.208 Após confiscar seus bens – aí inclusas vastas coleções artísticas e bibliográficas –, o monarca tornou Colbert (que fizera auditorias nas contas de Fouquet) seu novo homem das finanças. Mais que isso, o novo ministro acumulava as funções de conselheiro real e surintendant des bâtiments royales (superintendente das construções reais), o que fez com que se empenhasse no mecenato estatal à cultura, reestabelecendo a preeminência do rei como patrocinador das artes. Os esforços de Colbert ganham força num momento peculiar para as artes francesas, sobretudo para a pintura: uma crise político-institucional colocava em rota de colisão o domínio das guildas sobre a atividade nos meios urbanos e a ascensão de artistas independentes 206 BRYSON, 1981, p. 29-57; SCHMITTER, 2002, p. 408. 207 DURANT, Will & Ariel. A História da Civilização VIII. A Era de Luís XIV. Rio de Janeiro: Editora Record, 1963, p. 11. 208 Ibid., p. 17-18. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 435 que buscavam uma alternativa a esses detentores da maîtrise, isto é, da técnica. Para tal, apoiaram-se no patronato da Coroa e da corte, intensificado pela gestão colbertista, e tornaram-se a base de um sistema calcado no monopólio artístico estatal e na criação de instituições (como a própria Académie) que reforçasse esse controle. Paulatinamente, os homo faber das corporações de ofício foram substituídos pelos homo significans, espécie de “artistas-intelectuais”, que dominavam tanto as técnicas pictóricas quanto a narrativa que se queria transmitir.209 Charles Le Brun tornou-se, nesse contexto, um dos principais auxiliares de Colbert no gerenciamento do monumental sistema artístico francês, ficando encarregado da direção da Manufacture des Gobelins em 1663, mesmo ano em que foi nomeado premier peintre du roi (primeiro pintor do rei). Em 1675, ascendeu à condição de chanceler e reitor da Académie, tornando-se uma espécie de mentor (ou ditador, como preferiram alguns) de milhares de artistas a serviço do Estado. Nele, convergiam duas forças: a da burocracia estatal e a da narrativa que submetia a produção pictórica do período. A destacável posição de Le Brun na gestão de parte desse sistema avalizava, assim, que a forma do Estado e da estrutura institucional da pintura é que determinavam a forma do signo pictórico, não o contrário.210 Em outras palavras, as imagens não eram meras representações que cumulavam o rei de poder, mas eram sinais visíveis, materializações do poder que emanava da pessoa, e portanto do corpo, de Luís XIV. 2. A DECORAÇÃO DA GRANDE GALERIE EM VERSALHES Decidido logo após a Paz de Nijmegen (10 de agosto de 1678) – que colocou fim às hostilidades entre França e Holanda –, o programa iconográfico para o teto da Galerie des Glaces (Galeria dos Espelhos) de Versalhes constituiu uma verdadeira revolução na representação do rei. Sabemos por Claude Nivelon (1648-1720), o biógrafo do rei, que durante uma reunião do Conselho Secreto de 209 Discussão largamente abordada em WARNKE, Martin. O Artista da Corte. Os Antece- dentes dos Artistas Modernos. São Paulo: Edusp, 2001; também em BURKE, 2009, p. 61-63 e BRYSON, 1981, p. 29-30. 210 BRYSON, 1981, p. 30-31. 436 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Sua Majestade, em que Colbert participou entre o final do ano de 1678 e o início do ano de 1679 (talvez em setembro de 1678), Luís XIV decidiu modificar as pinturas anteriormente escolhidas a fim de santificar o fim da Guerra Franco-Holandesa e perpetuar suas vitórias. Inicialmente, Charles Le Brun havia concebido um ciclo de alegorias relacionadas a Apolo ou Hércules. Segundo o relato de Nivelon, no entanto, Sua Majestade resolveu que sua história sobre as conquistas deveria ser ali representada. Em dois dias, o pintor reformulou todo o projeto e apresentou um grande programa representando as campanhas militares do rei durante as guerras contra a Holanda e seus aliados de ocasião (como a Espanha e o Sacro Império). Recomendações reais foram feitas a Le Brun para “não incluir nada que não esteja de acordo com a verdade”.211 Mais que desempenhar a contento um papel que lhe fora incumbido pelo próprio rei, Le Brun tinha a oportunidade de, com esse programa iconográfico, ser lembrado como aquele que tornou visível e perene a glória de Luís XIV. Com a mudança de toda a Corte para o Palácio de Versalhes entre o fim da década de 1670 e o início da de 1680, suas pinturas iluminariam aquele novo mundo social e político, contribuindo para a ritualização da vida cotidiana do monarca. A pintura intitulada O Rei governa sozinho (figura 1) ocupa a primeira parte do painel central do plafond da Galeria e é a maior da série de vinte e sete executadas por Le Brun. O pintor substituiu a referência metafórica (Apolo) por Luís XIV em pessoa, sem renunciar à riqueza da composição cênica, misturando alegorias e deuses das histórias mitológicas. [Figura 1] O rei está no centro (ver detalhes na figura 2), sentado em seu trono, com o timão do Estado em sua mão direita. Perto dele, as Três Graças simbolizam os presentes que o Céu lhe concedeu. O rosto do rei é refletido no escudo de Minerva: Le Brun associou, habilmente, o símbolo da Prudência (o espelho) à deusa tutelar desta virtude, Minerva, que mais geralmente representa a Sabedoria real. A deusa aponta a 211 CORNETTE, Joël. Une représentation de Louis XIV. Histoire par l’image, 2012. Disponível em: http://histoire-image.org/de/etudes/representation-louis-xiv. Acesso em: 15 mar. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 437 Glória, que se senta em uma nuvem e oferece a coroa da imortalidade ao rei: um círculo dourado encimado por estrelas. A Glória também é indicada por Marte, o deus da Guerra, aqui entendido como o Valor real, demonstrando que a Glória passível de ser obtida pelo rei só pode ser o preço de sua sabedoria (simbolizada por Minerva) e de sua coragem (representada por Marte). Tal interpretação é confirmada pelo gestual: a mão esquerda do rei está levantada, palma aberta, em sinal de aceitação do caminho para a Glória designado a ele por Minerva e por Marte. Ao redor do trono, em primeiro plano, os Cupidos são figurados como os Génies des divertissements: eles escrevem, tocam música, jogam cartas, damas, divertem-se com máscaras teatrais; simbolizam os prazeres aos quais o rei renunciou quando decidiu assumir as rédeas do Estado, ao mesmo tempo que relembram o patronato real à cultura e às diversões da corte. O casamento do rei com Maria Teresa da Espanha (1638-1683) é evocado pelo deus Himeneu, filho de Apolo, carregando uma tocha acesa e uma cornucópia. Abaixo à esquerda, a França descansa sentada, revestida de seu manto azul ornado por flores-de-lis douradas. Ela segura descuidadamente um ramo de oliveira na mão direita, símbolo da paz, e está apoiada em uma viga que se identifica com a Justiça e a estabilidade que se impõem no reino.212 [Figura 2] A maioria dos estudiosos de Le Brun concorda que, naqueles tempos, o ato de pintar estava cercado por uma mística verbal. Se hoje os artistas preocupam-se, na pintura, com a noção de composição, isto é, o arranjo das formas que compõem a imagem, Le Brun trouxe para os estudos pictórico-acadêmicos a noção de disposição. Mais que o equilíbrio das formas, seu objetivo era o equilíbrio das mensagens com vistas à elaboração de um discurso belo e convincente.213 Aqui, Le Brun se vale dos princípios básicos da retórica clássica, na qual a dispositio (a ordenação do material e dos argumentos) é talvez a parte mais importante para que uma mensagem – eminentemente política, no caso da pintura acima descrita – repercuta nos corações e mentes dos súditos. 212 MILOVANOVIC, Nicolas. Le Roi gouverne par lui-même, 1661. Versailles, la Galerie des Glaces – catalogue iconographique, 2008. Disponível em: https://galeriedesglaces-versailles. fr/html/11/collection/c17.html. Acesso em: 15 mar. 2022. 213 BRYSON, 1981, p. 32. 438 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 3. UM NOVO OLHAR SOBRE A ICONOGRAFIA A breve análise da iconografia apresentada acima é tributária da tradição panofskyana214 que permanece ainda bastante presente como opção metodológica dos trabalhos que lidam com obras de arte figurativas, cuja produção seja anterior ao século XIX. Sem dúvida alguma, Panofsky (1892-1968) permitiu nossas primeiras incursões no campo da História da Arte e, certamente, as da maioria dos pesquisadores. De certo modo, a perspectiva de uma “leitura das imagens”, da busca de seu significado intrínseco, está na própria essência das pesquisas em nosso métier, embora não deva ser adotada como um norte definitivo, que fecha o campo das possibilidades de análise. Os verbos utilizados na descrição dos elementos da pintura remetem a essa quase onipresença do esquema panofskyano: “representar”, “indicar”, “simbolizar”, “associar”, “figurar”, etc. Embora não seja nossa intenção assumir uma postura iconoclasta em relação a esse clássico da História e Teoria da Arte, é preciso problematizar as limitações e insuficiências que sua metodologia impõe às imagens. Evidentemente, ela se apresenta bastante útil para esclarecer, por exemplo, representações alegóricas, significações mitológicas e simbolismos cromáticos. No entanto, ao propor uma análise que associa imagens e textos, há uma clara redução do processo de interpretação visual (no sentido mais amplo) à mera legibilidade das obras de arte, o que exclui, por vezes, aspectos afetivos, elaborações psicológicas e toda uma sorte de relações que podem ser estabelecidas entre o espectador/pesquisador e a(s) imagem(ns) objeto(s) de seu estudo. Nesse sentido, são iluminadoras as reflexões levantadas por Daniel Arasse ao questionar, por exemplo, os filtros (como textos, citações e referências externas) que, por vezes, queremos interpor entre nosso olhar e a obra, “uma espécie de protetor solar que protegeria do brilho da obra e preservaria os hábitos adquiridos nos quais a nossa 214 Referimo-nos, aqui, ao esquema metodológico dos três níveis de interpretação de Erwin Panofsky (1892-1968): a descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação iconológica. Cf. PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: ______. Significado nas Artes Visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 47-87. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 439 comunidade acadêmica se baseia e se reconhece”.215 Ou ainda as aparentes anomalias que se apresentam irrequietas às simplificações e/ou interpretações tradicionais dos iconógrafos. Arasse nos chama atenção, enfim, para as infinitas possibilidades da interpretação de obras de arte, que precisam ser perpassadas por bom humor, questionamentos e dispostas a explorar os limites (físicos e simbólicos) entre o espaço da pintura e o do espectador. Ao invés de “esmagar o caracol”, que continuemos a ser surpreendidos pela pintura e por sua presença.216 O entendimento de tais ideias coloca-nos em uma desconfortável posição, de duvidar e questionar concepções já consagradas e, aparentemente, invioláveis. Mas o que é a dúvida senão a própria razão de ser de qualquer especulação que se diga teórica ou científica?! Muitos questionamentos se apresentaram quando confrontamos a breve análise dos elementos de Le Roi gouverne par lui-même com as provocações de Arasse. Por exemplo, por que asseverar que Minerva, na composição, personifica a Prudência e a Sabedoria reais? Sabe-se que a rainha-mãe Ana da Áustria (1601-1666), regente da França até 1651, fora representada como Minerva no arco do triunfo efêmero instalado para a entrada triunfal de Luís XIV em Paris em 1660.217 Por que Minerva deve ser, então, alegoria de uma virtude e não de uma pessoa (primordial para a formação política do rei, diga-se de passagem)? Quando se trata do corpo do rei, a interpretação iconográfica tradicional é ainda mais problemática. No mais das vezes, as análises mais canônicas apresentam o corpo de Luís como uma representação do poder e do Estado francês. E se dissermos que a abordagem de seu corpo na pintura, na verdade, presentifica o monarca quase divino, perpétuo, onipresente e digno da veneração de sua corte e de seus súditos? Mais: marca a presença do rei no tempo, para além da duração de seu governo, d’ici à plusieur siècles (por vários séculos a partir de então). Que dizer então de suas vestes? Luís porta um traje militar que, diriam muitos, é a prefiguração de suas futuras conquistas bélicas. Mas é possível enxergar muito além: o vestuário nunca é um “invólucro 215 ARASSE, 2019, p. 7. 216 Ibid., p. 25-38. 217 BURKE, 2009, p. 56. 440 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 neutro e protetor”.218 É uma projeção do corpo, pois participa dos valores a ele atribuídos e transmite significados (hierarquias sociais, códigos de civilidade, dignidade). Mais que estar preparado para conflitos, o monarca é um guerreiro disposto a lutar por suas convicções, por seus domínios e por seu povo, sempre em condição de superioridade a seus congêneres europeus. Dessa pintura em diante, Le Brun se especializaria em cenas de batalhas que retratassem o rei, retomando a guerra como um dos mais antigos e, certamente, um dos mais poderosos topoi retóricos.219 Com toda a sua complexidade, o corpo não permanece – e nem pode – passivo e estável à legibilidade do esquema metodológico de Panofsky. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos ao final deste artigo com mais dúvidas que certezas. Os problemas e questionamentos aqui levantados permanecerão, por ora, sem respostas definitivas. Serão, contudo, importantes direcionamentos para o desdobramento de nossa pesquisa/tese, sempre pavimentada pela noção de que o poder estatal requer reconhecimento para existir e consciente do papel decisivo que as obras de Le Brun tiveram na formatação deste poder encarnado no corpo do rei.220 E, principalmente, sem deixar de lado as indagações e os questionamentos sobre o sentido da presença dessas imagens ante os nossos olhos.221 Nas palavras de Louis Marin: Qu’est-ce que re-présenter, sinon présenter à nouveau (dans la modalité du temps) ou à la place de... (dans celle de l’espace). Le préfixe re- importe dans le terme la valeur de la substitution. Quelque chose qui était présent et ne l’est plus est maintenant représente. A la place de quelque chose qui est présent ailleurs, voici présent un donné ici. Au lieu de la représentation donc, il est un absent dans le temps ou l’espace ou plutôt un autre et une substitution s’opère d’un même de cet autre à sa place.222 218 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo e o gesto na civilização medieval. In: BUESCU, A. I.; SOUSA, J. S. de.; MIRANDA, M. A (coords.). O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 20. 219 BRYSON, 1981, p. 36. 220 SCHMITTER, 2002, p. 399-400. 221 ARASSE, 2019, p. 31. 222 MARIN, Louis. Le Portrait du Roi. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981, p. 9. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 441 Isto é, as representações daqueles que detêm o poder são um sinal daquilo que está distante, ou que não mais existe, mas que se conserva em uma realidade abstrata. A relação desenvolvida ao se contemplar as imagens de Le Brun é a de recriar a presença de seu mais ilustre retratado, o rei Luís XIV. Mesmo ausente, torna-se presentificado; embora no passado, volta à atualidade; e já estando morto, revive. Em corpo e glória, d’ici à plusieur siècles. Que este artigo seja, enfim, uma primeira incursão à produção artística de Le Brun e à sua intenção de encarnar o poder real também a partir de suas tintas. Num contexto marcado pela centralização do sistema estruturado por ele e por Colbert, a supremacia do discurso favorável ao rei nas artes se fez plenamente presente, de modo que qualquer questionamento ou desvio àqueles rígidos padrões poderia ser tido como “heresia artística e traição política”.223 E, ao que parece, tal traição só seria possível a partir da compreensão de que Sua Majestade de fato se faz presente, corporeamente, nas pinturas que a representam. Este é, pois, o caminho que ainda temos a desbravar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora 34, 2019. BRYSON, Norman. Word and image: French painting of the Ancien Régime. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. CORNETTE, Joël. Une représentation de Louis XIV. Histoire par l’image, 2012. Disponível em: http://histoire-image.org/de/etudes/representation-louis-xiv. Acesso em: 20 nov. 2021. DURANT, Will & Ariel. A História da Civilização VIII. A Era de Luís XIV. Rio de Janeiro: Editora Record, 1963. 223 BRYSON, 1981, p. 34. 442 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 LANGMUIR, Erika; LYNTON, Norbert. Charles Lebrun. In: ______. The Yale Dictionary of Art and Artists. New Haven / Londres: Yale University Press, 2000, p. 394-395. MILOVANOVIC, Nicolas. Le Roi gouverne par lui-même, 1661. Versailles, la Galerie des Glaces – catalogue iconographique, 2008. Disponível em: https://galeriedesglaces-versailles.fr/html/11/collection/c17.html. Acesso em: 20 nov. 2021. GADY, Bénédicte; MILOVANOVIC, Nicolas (dir.). Charles Le Brun (16191690). Paris: Musée du Louvre-Lens / LIENART Éditions, 2016. MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo: Edusp, 2009. MONTAGU, Jennifer. Avant-propos. In: GADY, Bénédicte; MILOVANOVIC, Nicolas (dir.). Charles Le Brun (1619-1690). Paris: Musée du Louvre-Lens / LIENART Éditions, 2016. p. 10-11. PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: ______. Significado nas Artes Visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 47-87. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo e o gesto na civilização medieval. In: BUESCU, A. I.; SOUSA, J. S. de.; MIRANDA, M. A (coords.). O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 17-36. SCHMITTER, Amy M. Representation and the Body of Power in French Academic Painting. Journal of the History of Ideas, v. 63, n. 3, p. 399-424, 2002. Disponível em: www.jstor.org/stable/3654315. Acesso em: 07 nov. 2021. WARNKE, Martin. O Artista da Corte. Os Antecedentes dos Artistas Modernos. São Paulo: Edusp, 2001. Imagens: ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 443 Figura 1. Charles LE BRUN. Le Roi gouverne par lui-même. 1681-84. Pintura em tela apoiada sobre teto, 800 x 500 cm. Galeria dos Espelhos, Palácio de Versalhes, França. Fonte: https://artsandculture.google.com/asset/wd/sQEDfFRwHew6Kw. Acesso em: 15 mar. 2022. 444 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 2. Charles LE BRUN. Detalhe da pintura Le Roi gouverne par lui-même. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 445 DÂNDIS AQUÉM E ALÉM-MAR: AUTORREPRESENTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DE ARTISTAS ESTRANGEIROS E BRASILEIROS NO ENTRESSÉCULOS XIX E XX Natália Cristina de Aquino Gomes224 - natalia.gomes@unifesp.br Resumo: O que significava ser um dândi, o que os caracterizavam e quais foram os responsáveis por essa “tradição”, também absorvida por alguns artistas nacionais? Tais questionamentos serão abordados, a partir de duas fases de estudos. A primeira trará aspectos desenvolvidos na pesquisa de mestrado intitulada “Retrato de artista no ateliê: a representação de pintores e escultores pelos pincéis de seus contemporâneos no Brasil (1878-1919)”, defendida em 2019, no PPGHA-UNIFESP, sob orientação da Profa. Dra. Elaine Dias e financiamento da FAPESP e a segunda concerne à pesquisa de doutorado iniciada em 2021, sob mesma orientação e também realizada no PPGHA-UNIFESP. Neste texto, veremos breves considerações acerca dos dois artistas que compõem nossa análise. Olharemos, assim, para a representação do dândi e analisaremos como esse “personagem” esteve presente na imprensa, na literatura e nas artes plásticas em fins do século XIX e início do século XX. Esperamos, assim, que o olhar para o dândi nos permita entender como sua figura esteve imersa na cultura e na sociedade do século XIX mantendo-se em evidência também nas primeiras décadas do século XX, tendo em vista que importantes representantes estiveram presentes em segmentos como a literatura, assim como nas artes e ofereceram um 224 Esta publicação traz questões trabalhadas no mestrado intitulado “Retrato de artista no ateliê: a representação de pintores e escultores pelos pincéis de seus contemporâneos no Brasil (1878-1919)”, orientado pela Profa. Dra. Elaine Dias, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (processo n° 16/26221-1) e bolsa de estágio de pesquisa no exterior (BEPE-FAPESP, processo n° 2018/05802-1). Nesta publicação, também realizamos considerações vinculadas a pesquisa de doutorado “Mário Navarro da Costa e Rodolfo Pinto do Couto: produção artística e protagonismo nas relações entre Portugal e Brasil (1911-1945)” iniciada em 2021, sob mesma orientação e desenvolvida na mesma instituição. Até o momento, a pesquisa não possui financiamento. 446 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 modelo de elegância aos seus sucessores e admiradores, o qual também foi promovido na imprensa do período. Palavras-chave: Autorrepresentações; artistas, dândis; elegância; representações. Abstract: What did it mean to be a dandy, what characterized them and who were responsible for this “tradition”, also absorbed by some national artists? Such questions will be addressed, from two phases of studies. The first will bring aspects developed in the master’s research entitled “Portrait of an artist in the studio: the representation of painters and sculptors by the brushes of their contemporaries in Brazil (18781919)”, defended in 2019, at PPGHA-UNIFESP, under the guidance of Profa. Dra. Elaine Dias and funding from FAPESP and the second concerns the PhD research started in 2021, under the same guidance and also carried out at PPGHA-UNIFESP. In this text, we will see brief considerations about the two artists that make up our analysis. We will therefore look at the representation of the dandy and analyze how this “character” was present in the press, literature and visual arts at the end of the 19th century and the beginning of the 20th century. We hope, therefore, that the look at the dandy will allow us to understand how his figure was immersed in the culture and society of the 19th century, remaining in evidence also in the first decades of the 20th century, considering that important representatives were present in segments such as literature as well as the arts and offered a model of elegance to their successors and admirers, which was also promoted in the press of the period. Keywords: Self-representations; artists; dandies; elegance; representations. No mestrado em História da Arte (AQUINO GOMES, 2020), investigamos alguns retratos de artistas brasileiros em que os pintores recorreram à figura do dândi para representar seus pares no ateliê. Tal questão levou-nos a olhar primeiramente o significado dessa terminologia. Segundo o dicionário da língua portuguesa, a palavra dândi foi importada do “[...] ing. dandy ‘homem que tem preocupação exagerada ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 447 com a aparência pessoal’ [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 595), o que pode significar: “1 indivíduo que se veste com elegância e requinte; 2 [...] indivíduo que se veste e comporta com afetação e delicadeza.” (Ibidem). A palavra deriva o vocábulo “dandismo”, que é a “1 qualidade ou característica de dândi; 2 afetação no comportamento e/ou no modo de vestir [...] ing. dandyism ‘estilo ou comportamento de dândi’ [...].”(Ibidem). Por sua vez, o termo “dandy” teria origem no vocábulo francês “dandin”, datado de meados do século XVI, e mais tarde inserido na Inglaterra, transformando-se em “Dandy”. Existe a teoria de que o termo fora criação britânica e que “dandy” deriva do verbo “dandle”, que pode significar “balançar, embalar ou acariciar”; e no francês corresponderia a “dandiner” (SÉTAN apud SCHIFFER, 2011, p. 25)225. Ao olharmos novamente para a língua portuguesa, temos como correspondente a palavra “dandinar” que compreenderia ao “[...] movimentar-se para um lado e outro, gingando <ao cortejar as damas, dandinava (-se)> 2 [...] andar com trejeitos afetados 3 [...] mostrar com vaidade; ostentar, exibir [...] fr. dandiner ‘gingar, bambolear’” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 595). Nesse sentido, na língua portuguesa encontramos um intercâmbio entre Inglaterra e França no surgimento dos termos dândi ou dandismo. Acerca dessa consideração, Schiffer menciona o trecho do artículo Dandysme, da Encyclopédie Universalis, mostrando o intercâmbio entre França e Inglaterra na criação da palavra e a mútua contribuição para a constituição dos dândis do século XIX: “Seja como for, a palavra aparece na Inglaterra no final do século XVIII, e as etimologias atestam as trocas franco-britânicas que caracterizam o dandismo no século XIX.” (SHIFFER, 2011, p. 26. Tradução e grifo nossos)226. Com base nessas considerações, compreendemos o motivo de os mais famosos representantes do dandismo emergirem de ambos os países: os britânicos George Brummell e Oscar Wilde; e os franceses Charles Baudelaire e Barbey d’Auverilly. Jean-David Jumeau-Lafond 225 Shiffer tem por base a ideia discutida por Michel Sétan em seu site “Les Nouveaux Dan- dys”. Disponível em: <www.lesnouveaudandys.com>. 226 Trecho original: “Quoi qu’il en soit, le mot apparaît en Angleterre à la fin du XVIII ͤ siècle, et les étymologies attestent les échanges franco-britanniques qui caractérisent le dandysme au XIX siècle.”. 448 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 menciona que o primeiro representante de um dândi surgiu em Brummell e “[...] não se limita ao narcisismo e ao refinamento de estilo, mas inclui um importante elemento de ‘distinção’ no sentido forte do termo; é uma questão de distinguir-se dos outros, numa afirmação de si mesmo [...].” (JUMEAU-LAFOND, 2016, p. 75. Tradução nossa)227. Por esse ângulo, Brummell é encarado como “dândi fundador”. De acordo com Jumeau-Lafond, [...] Brummell é, portanto, um dândi na afirmação de si mesmo, mas ele não é nem escritor, nem colecionador, nem mesmo árbitro de outros esteticismos que o de sua pessoa. Este dândi fundador faz da sua vida uma obra de arte, mas não integra obras de arte à sua vida. (Idem. Tradução nossa )228 É interessante compreendermos que escritores do século XIX herdaram o legado de Brummell e aplicados por eles de acordo com a realidade de seu tempo. Segundo Jumeau-Lafond, Os escritos de Balzac, Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, sem renunciar aos fundamentos do dandismo brummelliano, confirmam suas virtudes sociais e morais, mas dá-lhe acima de tudo sua nobreza literária em um contexto propício; a revolução industrial e o triunfo da burguesia desencadeiam contra eles a vingança dos partidários da beleza e da arte. (Ibidem. Tradução nossa)229 Oscar Wilde correspondeu às características oriundas do dandismo expressas em sua vida e em sua obra como escritor, como no caso de O retrato de Dorian Gray (WILDE, 2004). Para Shiffer, “[...] Wil227 Trecho original: “Il ne se limite pas au narcisisme et au raffinement vestimentaire, mais comprend une importante part de ‘distinction’ au sens fort du terme; il s’agit bien de se distinguer des autres, dans une affirmation de soi.”. 228 Trecho original: “[...] Brummell est donc un dandy dans l’affirmation de lui-même, mais il n’est ni écrivain, ni collectionneur, ni même arbitre d’autres esthétismes que celui de sa personne. Ce dandy fondateur fait de sa vie une oeuvre d’art, mais n’intègre pas les oeuvres d’art à sa vie.”. 229 Trecho original: “Les écrits de Balzac, Baudelaire et Barbey d’Aurevilly, sans renier les fondamentaux du dandysme brummellien, confirment ses vertus sociale et morale mais lui conferente surtout ses lettres de noblesse littéraire dans un contexte propice; la révolution industrielle et le triomphe de la bourgeoisie déchaînent alors contre eux la vindicte des partisans du beau et de l’art.”. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 449 de, pela voz de seu herói, faz aqui implicitamente uma homenagem a Brummel.” (SHIFFER, 2011, p. 16. Tradução nossa)230. Nesse sentido, os dândis aparecem na literatura e se mostram importantes para o campo das artes que terá artistas partidários dessas características. Prova dessa relação pode ser vista no livro de Baudelaire, Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna, em que é evidente a presença do dândi na literatura. Para Alexander Sturgis e Michael Wilson, a definição de dândi de Baudelaire: [...] teve um efeito profundo sobre artistas mais jovens como Tissot, Whistler e Beardsley, assim como em escritores como os irmãos Goncourt, que adotaram uma pose de elegância indumentária e desdém aristocrático como expressão do culto da arte pela arte que eles perseguiram. Em sua rejeição à vulgaridade da vida moderna, eles celebraram o artífice, cultivando um prazer puramente estético nas belezas refinadas da arte japonesa e da arte francesa do século XVIII. (STURGIS, et al., 2006, p. 119. Grifo nosso. Tradução nossa)231 Na visão de Baudelaire, “[...] a palavra dândi implica a quintessência de caráter e uma compreensão sutil de todo mecanismo moral deste mundo [...].” (2007, p.20). E continua: Denominem-se eles refinados, incríveis, belos, leões ou dândis, não importa: têm todos uma mesma origem; são todos dotados do mesmo caráter de oposição e de revolta; são todos representantes do que há de melhor no orgulho humano, dessa necessidade, bastante rara nos homens de hoje, de combater e de destruir a trivialidade. (BAUDELAIRE, 2009, pp. 16-17) De acordo com Pierre Bourdieu, no que diz respeito ao entendimento de Baudelaire acerca do dandismo: 230 Trecho original: “[...] Wilde, par la voix de son héros, rend ici implicitement hommage à Brummel.”. 231 Trecho original: “[...] had a profound effect on younger artists such as Tissot, Whistler and Beardsley, as well as on writers like the Goncourt Brothers, who adopted a pose of sartorial elegance and aristocratic disdain as an expression of the cult of art for art’s sake which they pursued. In their rejection of the vulgarity of modern life, they celebrated artífice, cultivating a purely aesthetic pleasure in the refined beauties of Japanese art and French art of the eighteenth century.”. 450 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A própria estética de Baudelaire encontra sem dúvida seu princípio na dupla ruptura que ele realiza e que se manifesta especialmente em uma espécie de exibição permanente de singularidade paradoxal: o dandismo não é apenas vontade de aparecer e de impressionar, ostentação da diferença ou mesmo prazer de desagradar, intenção concertada de desconcertar, de escandalizar, pela voz, o gesto, a brincadeira sarcástica; é também e sobretudo uma postura ética e estética inteiramente voltada e a concentração das capacidades sensíveis e intelectuais. (BOURDIEU, 1996, p. 97) Para a nossa discussão, interessam os pontos que priorizam a elegância e a preocupação dos dândis com a aparência e vestuário, elementos que os artistas absorveram. Menções a alguns pintores apontam possibilidade no entendimento da representação do dândi no contexto brasileiro. Alexander Sturgis e Michael Wilson já mostraram a importância da figura do dândi a artistas como James Abbot McNeill Whistler (1834-1903), James Tissot (1836-1902) e Aubrey Beardsley (18721898). A esse respeito, Giuseppe Scaraffia aponta que Whistler “atraiu a atenção pública com sua elegante afetação no vestir [...]” (SCARAFFIA, 2009, p. 57. Tradução nossa)232, como podemos perceber em seu autorretrato de c. 1872, intitulado Arrangement in Gray: Portrait of the Painter233. Na obra, ele se representa em meio corpo olhando para o observador, mãos dois pincéis nas mãos e cercado pela tonalidade cinza, que aparece em seu paletó e no plano de fundo, o qual possibilita enxergarmos vivamente o delinear do chapéu preto sobre a cabeça de Whistler. No entanto, depreendemos que toda a elegância e o dandismo de Whistler não ficaram impressos de forma clara em seu autorretrato e que seu colega William Merritt Chase (1849-1916) é quem conseguiu captar e transportar para o retrato234, de 1885. Chase retrata Whistler de 232 Trecho original: “[...] atrajo la atención pública com su elegante afectación en el vestir [...]”. 233 Para publicação da comunicação, optamos por fornecer os links de acesso para visualização das imagens ao longo de todo o texto. James Abbott McNeill Whistler. Arrangement in Gray: Portrait of the Painter, c. 1872. Óleo sobre tela, 74.9 x 53.3 cm. Detroit Institute of Arts. Imagem disponível em: https://www.dia.org/art/collection/object/arrangement-gray-portrait-painter-64930 234 William Merritt Chase. James Abbott McNeill Whistler, 1885. Óleo sobre tela, 188.3 x ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 451 trata Whistler de corpo inteiro, vestindo-se integralmente de preto, sem menção ao ofício do pintor. Ele aparece posando com a bengala em sua mão direita e a esquerda repousando no quadril. Nesse sentido, é interessante notarmos como um pintor compõe a imagem de outro artista e desse modo realiza uma homenagem ao colega de profissão. Da mesma forma que William Merritt Chase representou toda a elegância de Whistler, encontramos correspondência em um retrato de Chase realizado por John Singer Sargent (1856-1926), em 1902. Na obra, vemos praticamente Chase de corpo inteiro, vestindo-se elegantemente e com os objetos do ofício em mãos. O pintor segura o pincel em sua mão direita e na esquerda a paleta, o tento e outros pincéis. O plano de fundo do retrato é totalmente escuro e não conseguimos identificar demais detalhes ou indícios de que Chase foi retratado elegantemente com os objetos de trabalho no ateliê. Já em seu Self Portrait in 4th Avenue Studio, datado dos anos 1915 a 1916, Chase se autorrepresentou no ateliê vestindo um jaleco para proteção de suas roupas, com os pincéis e paleta na mão esquerda e diante de uma tela, já com algumas pinceladas; próximo a ele vemos uma mesa onde outros objetos do ofício estão dispostos e observamos demais detalhes de seu ateliê. O artista se autorrepresenta em seu ateliê como se estivesse trabalhando e, nessa escolha, abre mão da elegância do vestuário em favor do ofício ao usar o paletó/jaleco para proteção de seu traje. Outros artistas se viram representados de forma extremamente elegantes, como dândis que realmente eram. É o caso de Aubrey Beardsley, que, de acordo com Scaraffia, era “Muito magro, com o rosto afundado sob os cabelos lisos, penteado para o lado, o jovem artista incorporou rapidamente o ideal do dândi a quem aspirava. Em sua breve vida, escondeu sob a elegância de sua aparência os sofrimentos causados por sua doença mortal.” (SCARAFFIA, 2009, pp. 62-63. Tradução 452 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 e grifo nossos)238. No seu retrato239 feito por Jacques-Emile Blanche240 (1861-1942), em 1895, observamos Beardsley sentado e olhando para o canto esquerdo, evidenciando seu perfil delgado; a vestimenta é composta integralmente pela tonalidade cinza, que contrasta com a gravata borboleta e a flor na lapela do paletó. Sua elegância é arrematada pela presença das luvas marrons e pela bengala na mão direita. Em 1890, de forma elegante e com um traje cinza, Blanche realizara cinco anos antes o retrato de Aubrey Beardsley, o Self-Portrait with Raphael de Ochoa241. Chamamos atenção que Blanche se autorretrata como um dândi segurando pincéis e paleta, tendo o indício de uma tela no canto direito da tela e avistamos, ao fundo, alguns quadros dispostos na parede, evidenciando sua presença no ateliê. Atrás de Blanche, vemos o pintor espanhol Rafael de Ochoa y Madrazo (1858-1935); ele é retratado com a mão direita sobre o ombro de Blanche e olhando para ele, representando certamente o apoio do pintor espanhol e a boa relação entre pintores de nacionalidades distintas e que deveriam ser próximos. Nesse sentido, vemos o pintor se autorrepresentando como um dândi no ateliê, ao lado de outro pintor, em uma mútua homenagem. Homenagem que pode ser vista em James-Jacques-Joseph Tis242 sot , de Edgar Degas (1834-1917), datado de 1867 a 1868. Na tela, vemos Degas representado Tissot no ateliê e o retrata com um dândi, elegantemente sentado numa cadeira, muito bem-vestido e segurando uma bengala na mão direita. Tissot está cercado por quadros pendura238 Trecho original: “Delgadísimo, com el rostro sumido bajo el cabelo liso, peinado a un lado, el joven artista encarnó rapidamente el ideal del dandi al que aspiraba. En su breve vida escondió bajo la elegancia de su aspecto los sufrimientos causados por su enfermedad mortal.”. 239 Jacques-Emile Blanche. Aubrey Beardsley, 1895. Óleo sobre tela, 926 mm x 737 mm. National Portrait Gallery, London. Imagem disponível em: https://www.npg.org.uk/collections/ search/portrait/mw00427/Aubrey-Beardsley 240 Da mesma forma que Sargent, Blanche se tornou responsável pela produção de outros retratos de dândis, entre eles mencionamos mais adiante o caso de Proust. 241 Jacques-Emile Blanche. Self-Portrait with Raphael de Ochoa, 1890. Óleo em tecido, 99.2 x 71 cm. Cleveland Museum of Art, EUA. Imagem disponível em: https://www.clevelandart. org/art/1980.230 242 Edgar Degas. James-Jacques-Joseph Tissot, c. 1867-1868. Óleo em tecido, 151.4 x 111.8 cm. The Metropolitan Museum of Art. Imagem disponível em: https://www.metmuseum.org/ art/collection/search/436144 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 453 dos na parede ou dispostos pelo ambiente e observamos uma obra num cavalete no canto direito da tela. A presença marcante do dândi é observada no Portrait d’Alfred Stevens243, de 1884, produzido por Henri Gervex244 (1852-1929). Na obra, observamos o pintor Alfred Stevens (1823-1906) trajando-se elegantemente, com indumentária completa, acompanhado de casaco e cartola; em sua mão esquerda, vemos uma luva calçada e o par direito que o pintor retirou, pois mantém na mão direita um cigarro, além da bengala. Dessa mesma forma, com pequenas modificações, vemos uma composição semelhante no Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro245, do pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, no ano de 1891, como no Estudo para o retrato de Felinto de Almeida246, de Rodolfo Amoedo, datado em 1896. Anos antes, em 1888, Amoedo realizou o Retrato de Gonzaga Duque247, em que o crítico de arte brasileira é retratado sentado com as pernas cruzadas, repousando em seu colo sob sua mão direita a bengala, enquanto a esquerda repousa sob os papéis em cima da mesa e próximos aos livros, em evidente menção à profissão do crítico. Não é possível afirmar que o pintor português ou o brasileiro tenham visto o retrato de Stevens, de Gervex. Sabemos que ambos circulavam pelo ambiente francês e em algum momento podem ter visto a tela, e a partir dela criaram suas próprias obras que homenagearam a elegância do caricaturista e irmão, como no caso de Columbano ou de Amoedo, ao 243 Henri Gervex. Portrait d’Alfred Stevens, 1884. Óleo sobre tela, 140 x 106. Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelles. Imagem disponível em: https://www.fine-arts-museum. be/fr/la-collection/henri-gervex-portrait-d-alfred-stevens# 244 Apontamos ainda que os dois pintores, Alfred Stevens e Henri Gervex, trabalharam juntos na realização do “Panorama du Siècle”, para a Exposição Universal de 1889. A monumental obra exposta em uma rotunda foi posteriormente separada e hoje suas “partes” estão espalhadas por coleções particulares ou públicas. Interessa-nos mencionar que em um trecho do panorama é possível ver Baudelaire e Barbey d’Auverilly, o que indica a importância destas figuras no contexto francês e a admiração que Stevens e Gervex nutriam por eles. Ver imagem disponível em: <http://lediteursingulier.blogspot.com/2011/07/le-panorama-du-siecle-henri-gervex. html>. 245 Columbano Bordalo Pinheiro. Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro, 1891. Óleo sobre tela. Museu Bordalo Pinheiro, Lisboa. Imagem disponível em: https://bit.ly/3mH269p 246 Rodolfo Amoedo. Estudo para o retrato de Felinto de Almeida, ca. 1896. Aquarela sobre papel, 20,5 x 27 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Sem assinatura, doação, 1941, Adelaide Amoedo. 247 Rodolfo Amoedo. Retrato de Gonzaga Duque, 1888. Óleo sobre tela, 50 × 40 cm. Coleção Jones Bergamim. Imagem disponível em: https://bit.ly/3e6JgUp 454 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 retratarem escritores e críticos de arte como dândis. Segundo Emilien Carassus, “O guarda-roupa do dândi é, sem dúvida, um sinal de riqueza [...] a roupa os situa na sociedade: eles não podem negligenciar este equipamento sem o qual não poderiam figurar no mundo.” (CARASSUS, 1971, p. 103. Tradução e grifo nossos)248. Os artistas claramente se preocupavam com a vestimenta. Cacilda Teixeira da Costa sublinha que a indumentária se associava “ao desejo de expressão da interioridade do artista” (COSTA, 2009, p. 8). De acordo com Honoré de Balzac: “O artista é sempre grande. Ele possui elegância e vida próprias porque, nele, tudo reflete sua inteligência e sua glória. [...] Neles, a fashion deve ser sem esforço: esses seres indomados moldam tudo à sua maneira.” (BALZAC, 2009, p. 43). Observamos que a elegância e o cuidado com os trajes constituem um ponto importante para os artistas, inclusive quando são representados por colegas de profissão. Essas noções de elegância também estiveram presentes na imprensa do período e a revista carioca Fon-Fon, de 31 de julho de 1909249, traz aos leitores uma espécie de passo a passo dos itens necessários para trajar-se como um dândi, mas carregado de bom-humor. Por fim, em nossa pesquisa de doutorado iniciada em 2021, buscamos compreender como o pintor e diplomata brasileiro Mário Navarro da Costa (1883-1931) e o escultor português Rodolfo Pinto do Couto (1888-1945) atuaram como importantes articuladores e protagonistas das relações artísticas entre Portugal e Brasil. A seguir, veremos como eles permitiram-se ser registrados para a posterioridade e em qual medida relacionam-se como a representatividade dos dândis. Iniciamos, então, com uma fotografia de grupo de artistas no Salão Nacional de 1913250, pertencente ao álbum de M. Nogueira da Silva. Entre os artistas estão Mário Navarro da Costa e o casal Rodolfo Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto. Navarro da Costa, neste período, ainda não havia iniciado a sua 248 Trecho original: “La garde-robe du dandy est sans doute signe de richesse [...] le vêtement les situe dans la société: ils ne peuvent négliger cette tenue sans laquelle il n’est pas question de figurer dans le monde.”. 249 POLYBIO, Fon-Fon, Rio de Janeiro, 31 de jul. 1909, ano III , n. 31, p. 19. 250 O Salão Nacional de 1913. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1913. 1 foto:, gelatina, p&b;, 9 x 14,2 cm em folha: 21,5 x 15,5 cm. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index. asp?codigo_sophia=13953 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 455 carreira diplomática, assunto que investigamos no doutoramento, sobretudo, sua passagem pelo Consulado de Lisboa. Chamamos atenção, então, para outras fotografias do álbum de retratos de Nogueira da Silva. Entre elas uma datada no ano de 1912251, antes da imersão de Navarro da Costa pelas embaixadas europeias, mas que talvez possua um paralelo com o Portrait of Marcel Proust252, de 1892, de autoria de Jacques-Emile Blanche. No famoso retrato do jovem escritor, então com 21 anos, o vemos em meio corpo, com trajes elegantes e de tonalidade escura muito próxima ao plano de fundo neutro do retrato; na lapela de seu terno encontra-se uma orquídea branca, de uma coloração tão clara quanto sua camisa e a própria tonalidade de sua pele alva. Tal aproximação pode sinalizar a admiração e homenagem do pintor brasileiro ao escritor e a preocupação com a sua imagem e vestimenta semelhante ao retrato de Proust. Nos anos que seguem Navarro da Costa se insere na diplomacia e o veremos entre reconhecidos artistas, críticos, políticos e demais figuras importantes no circuito cultural internacional, como é o caso da imagem de Grupo de artista253 que acreditamos se tratar de uma das exposições da Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa de 1916 ou 1917, a qual Navarro da Costa expôs suas marinhas. Em Portugal, também realizará exposições individuais e, igualmente, o veremos elegantemente entre as personalidades do período254. Desta mesma maneira, foi representado pelos pintores portugueses com os quais estabeleceu amizade, entre estes, destacamos o Retrato do pintor brasileiro Navarro da Costa255, de Arthur Alves Cardoso e o Retrato de Navarro da Costa256, de Carlos Reis. 251 NAVARRO da Costa, pint. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1912. 1 foto:, Cópia fotográfica de gelatina e prata, p&b;, 13,5 x 9cm em folha: 21,7 x 14,5cm. Disponível em: http://objdigital. bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276572_276573/icon1418931.jpg 252 Jacques-Emile BLANCHE. Portrait of Marcel Proust, 1892. Óleo sobre tela, 73.5 x 60.5 cm. Musée d’Orsay, Paris. Imagem disponível em: https://www.musee-orsay.fr/es/node/80645 253 [GRUPO de artistas]. [S.l.: s.n.], [191-?]. 1 foto:, gelatina, p&b;, 13,7 x 23cm em folha: 21 x 32cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/ icon276816/icon1421728.jpg 254 REVISTA DA SEMANA, Rio de Janeiro, Ano XVIII, 17 de março 1917, edição 6, p. 20. 255 Arthur Alves Cardoso. Retrato do pintor brasileiro Navarro da Costa. 14ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, p. 59. Imagem disponível em: https://issuu. com/63619/docs/0015_14_exposicao_1917 256 Carlos Antônio Rodrigues dos Reis. Retrato de Navarro da Costa, 1918. Óleo sobre tela, 456 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Voltando a fotografia de grupo de artistas no Salão Nacional de 1913, chamamos atenção para o casal Rodolfo Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto. Nicolina, a única mulher na reunião, aparece muito elegante, assim como fora retratada anos antes por Eliseu Visconti257, obra apreciada pela escultora e mantida em evidência em sua residência, conforme observamos na fotografia258 que também pertence ao álbum de M. Nogueira da Silva. Nela, vemos o casal no “Canto de atelier”, ao fundo o retrato está disposto em uma das paredes. Outras fotografias259 compõem o álbum e nestas o casal posam para o registro com um atencioso cuidado para com o vestuário. Da mesma forma são as imagens260 de Pinto do Couto divulgadas nos periódicos da época, seja em suas exposições ou nas reuniões organizadas em seu ateliê em que se destacam a presença de personalidades brasileiras e portuguesas. Como vimos, Navarro da Costa e Pinto do Couto buscaram ser representados com distinção e elegância, sendo herdeiros de uma tradição de representações de artistas vinculadas a figura dos dândis. Esperamos, assim, ter demostrado mesmo que brevemente que o olhar para a figura do dândi esteve presente na cultura e na sociedade do século XIX mantendo-se em evidência também nas primeiras décadas do século XX, tendo em vista que importantes representantes estiveram presentes em segmentos como a literatura, assim como nas artes e ofereceram um modelo de elegância aos seus sucessores e admiradores, o qual também foi promovido na imprensa do período. 67,5 cm x 92,5 cm. Imagem disponível em: https://www.catalogodasartes.com.br/obra/Btttt/ 257 Eliseu VISCONTI. Retrato da escultora Nicolina Vaz de Assis, 1905. Óleo sobre tela, 100 x 81 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Imagem disponível em: https:// eliseuvisconti.com.br/obra/p227/ 258 CANTO de atelier: R. Pinto do Couto e D. Nicolina Vaz P. do C. esculps. - E. Dr. Frontin. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1913. 1 foto:, Cópia fotográfica de gelatina e prata, p&b;, 17,1 x 12,1cm em folha: 21,7 x 14,5cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276572_276573/icon1418960.jpg 259 [RODOLFO Pinto do Couto e Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto]. [S.l.: s.n.], [1926]. 1 foto:, gelatina, p&b;, 19,7 x 13,6cm em folha: 31,7 x 20,5cm. Disponível em: http://objdigital. bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon276816/icon1421711.jpg e [RODOLFO Pinto do Couto]. [S.l.: s.n.], [1926]. 1 foto:, gelatina, p&b;, 22,5 x 16,2cm em papel: 31,5 x 20,5cm. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/ icon276816/icon1421715.jpg 260 A CIGARRA, São Paulo, Ano XVI, 1929, n° 359, p. 31. A NOITE, Rio de Janeiro, 2 de out. 1934, n° 244, p. 16. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 457 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A CIGARRA, São Paulo, Ano XVI, 1929, n° 359, p. 31. A NOITE, Rio de Janeiro, 2 de out. 1934, n° 244, p. 16. AQUINO GOMES, Natália Cristina de. Retrato de artista no ateliê: a representação de pintores e escultores pelos pincéis de seus contemporâneos no Brasil (1878-1919). Dissertação (mestrado em História da Arte) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História da Arte, Guarulhos, 2019. 250 f. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/51953 BALZAC, Honoré de. Tratados da vida moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. a modernidade: o pintor da vida moderna. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. BAUDELAIRE, Charles. Sobre ___________. “O dândi”. In BAUDELAIRE, Charles. BALZAC, Honoré de. D’ AUREVILLY, Barbey. Manual do dândi: a vida com estilo. 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Tendo por base a exposição do alicerce de minha tese de doutoramento, atualmente em desenvolvimento, ao colocar as principais considerações que circundam a hipótese deste trabalho, que visa a compreensão da mecânica de construção do corpo feminino e as modificações existentes dentro da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa e da Academia Portuense de Belas Artes, nas décadas finais do século XIX. Desaguando, consequentemente, na realidade do âmbito escultórico e da arte pública, entre 1880 e 1926, um período que marcou historicamente o início de uma nova mentalidade na representação do feminino e da própria mulher enquanto ser social em Portugal. Focar no importante trabalho de investigação dentro das instituições e o enriquecimento que a documentação ou até a falta dela, causam no decorrer de uma investigação. Pontuar a trajetória realizada até então, mostrando rupturas e continuidades no caminho de minha pesquisa, considerar dentro dos eixos temáticos da História da Arte e da História das Mulheres o contato que existitu com outras realidades europeias, através dos artistas pensionistas, e até que ponto a mudança de característica vista em solo português pode estar relacionada com estes intercâmbios. Analisar a narrativa e a compreensão de uma relação ideológica nos projetos e execuções da estatuária monumental, e a partir dela compreender a existência de um discurso imagético sobre a mulher e suas vicissitudes. Reforçando a tentativa de provar que a obra de arte é, sobretudo, um 261 Este artigo advém da pesquisa de doutoramento em História, ainda em desenvolvimento, intitulada “A Estatuária Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República”, orientada pelo Prof. Dr. Miguel Figueira de Faria e pela profª. Drª. Aline Gallasch-Hall de Beuvink, no Departamento de História, Artes e Humanidades da Universidade Autónoma de Lisboa. A pesquisa conta com financiamento da CEU - Cooperativa de Ensino Universitário - UAL. Doutoranda em História e investigadora integrada ao Departamento de História, Artes e Humanidades e ao Centro de Investigação em Ciências Históricas da Universidade Autônoma de Lisboa (DHAH/CICH-UAL). 460 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 aparato cultural mutável, e o seu resultado conota um significado para além de sua dimensão espacial, mas também uma dimensão cultural, política, temporal, geografica e social. Palavras-chave: Belas Artes; História da Arte; História das Mulheres; Escultura. Abstract: The purpose of this article is to present the dichotomy in the treatment between the male/female body, and the struggle of such anatomical exposure, by highlighting the border and abyss between them. Based on the exposition of the foundation of my doctoral thesis, currently under development, by placing the main considerations that surround the hypothesis of this work, which aims to understand the mechanics of the construction of the female body and the existing modifications within the Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa and the Academia Portuense de Belas Artes, in the final decades of the 19th century. Flowing, consequently, in the reality of the sculptural scope and public art, between 1880 and 1926, a period that historically marked the beginning of a new mentality in the representation of the feminine and the woman herself as a social being in Portugal. Focus on the important research work within the institutions and the enrichment that documentation, or even the lack of it, causes in the course of an investigation. To punctuate the trajectory carried out until then, showing ruptures and continuities in the path of my research, to consider within the thematic of the History of Art and the History of Women the contact that existed with other European realities, through the pensioner artists, and to what extent the characteristic change seen on Portuguese soil may be related to these exchanges. To analyze the narrative and understanding of an ideological relationship in the projects and executions of the monumental statuary, and from there to understand the existence of an imagery discourse about women and their vicissitudes. Reinforcing the attempt to prove that the work of art is, above all, a mutable cultural apparatus, and its result connotes a meaning beyond its spatial dimension, but also a cultural, political, temporal, geographical and social dimension. Keywords: Fine Arts; History of Art; History of Women; Sculpture. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 461 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este artigo advém como uma reflexão da investigação da tese de doutoramento, ainda em desenvolvimento, intitulada “A Estatuária Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República” a qual versa sobre dois eixos temáticos, o primeiro da História da Arte e o segundo da História das Mulheres. Uma junção que visará compreender as mudanças de tratamento plástico nas artes visuais em conjunção as questões da história social e das mentalidades. Pontuar como se deu essa trnasformação do ser feminino social e político na transição do século XIX para o século XX. Tal definição se faz necessária para entendermos os meandros da pesquisa e como a mesma está alicerçada no que é denominado como “paradigmas do feminino”. Estes são interpretados à luz de uma diversa documentação, desde desenhos, esboços, livros de matrícula até chegarmos na execucação da obra escultórica em si, no período cronológico correspondente entre 1880 e 1926. Um hiato temporal escolhido através da documentação encontrada. Em primeiro lugar a década de 1880 que marca o início da entrada efetiva de alunas mulheres nas escolas de belas artes, das cidades de Lisboa e do Porto, bem como, o surgimento dos primeiros desenhos de nu feminino em 1881262 no cerne das mesmas academias. Já na década de 1920, em que temos vários exemplos de esculturas públicas que possuem um tratamento estético/plástico diferenciado, no que diz respeito a imagética feminina, principalmente o ano de 1926 com a escultura denominada Maria da Fonte, localizada em Lisboa, executada pelo escultor Costa Mota (tio), que marca o ápice de uma nova análise da composição iconográfica e iconológica em comparação ao que vinha sendo feito em Portugal, até então. 262 Inventário Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Museu Virtual. Fevereiro, 2021. Nº de Inventário: FBAUL/337/DA. Disponível em: http://museuvirtual.belasartes.ulisboa.pt/. Acesso em: 01/02/2022. 462 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 1. UMA VISÃO DO FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL O contexto social feminino alterar-se-á na transição dos dois séculos, XIX e XX, no continente europeu. Uma mudança paulatina e sutil, com avanços e conquistas muitas vezes sentidos somente décadas à frente. Até então, um grande estereótipo marcava a diferença do tratamento dado aos artistas homens em comparação às artistas mulheres perante a sociedade. Enquanto os primeiros eram sempre retratados na boêmia vida de artista, seja na literatura ou na música, por exemplo, sempre de forma positiva, as mulheres quando se destacavam, o que por si só era já bastante dificultoso, eram questionadas na sua honra e moral, além de acusadas de agir dentro da esfera da masculinidade. Na linha desta realidade, o estudo e compreensão, aqui demonstrados, desta trajetória recai no entendimento também do chamado inconsciente coletivo que existia no âmbito da imagética do feminino, tendo então por objetivo primário demonstrar a existência de uma evolução seja da figura da artista mulher, seja de sua representação enquanto arte na escultura portuguesa, uma passagem que pode ser classificada em ambos os casos como uma verdadeira emancipação. Importante ressaltar que o conceito de emancipação é configurado no horizonte histórico geografico europeu, pois já existiam publicações destinadas e voltadas para uma análise do comportamento da mulher já nos séculos XV e XVII, como afirma a historiadora de arte espanhola Patricia Mayayo: La historia del movimiento feminista tiene ya (aunque muchas veces se pretenda ignorarlo) bastantes siglos de antigüedad. Ana de Miguel señala la existencia de lo que podríamos llamar de un feminismo ´premoderno´, que arranca con el surgimiento de las primeras ´polémicas feministas´: La Ciudad de las Damas (1405) de Christine Pizan (…) o el movimiento literario impulsado por las ´preciosas´ (les précieuses) en los salones parisinos del siglo XVII (…) Pero es con la publicación de ´La igualdad de los sexos´ del filósofo cartesiano Poulain de la Barre en 1673 y con el surgimiento de varios movimientos organizados de mujeres durante la Revolución Francesa cuando se sientan las bases del feminismo moderno. (MAYAYO, 2003, p.15). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 463 Ações que atuam no encontro de um movimento feminista, embora não possam ainda ser classificadas como tal, mas sim, o fertilizar de um solo do que viria futuramente conjugar em um movimento propriamente dito e que conhecemos atualmente como as “ondas feministas”, já no século XX e XXI. Uma destas ações que merece destaque foi a luta pelo sufrágio feminino na Europa e que mostra a efervescência de tais questões no estrangeiro e que obviamente tiveram impacto também em Portugal. Aqui, cabe recapitular a evolução cronológica da presença feminina no âmbito das academias portuguesas e como pouco a pouco elas foram ganhando o seu espaço em um universo até então dominado pelos homens. Os dados levantados e quantificado quantificados ao longo do texto correspondem a Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa (em sua denominação inicial) e a Academia Portuense, ambas fundadas em 1836 e que “(...) vão tentar importar para os seus estudos artísticos as bases acadêmicas vigentes nas congéneres de Roma e Paris, onde o acento no ensino do Desenho era primordial, tomando para si idêntico sistema de emulação dos estudantes (...)” (SERRÃO, 2016, p.1); o que permitiu a realização de uma ampla observação da inserção das mulheres neste universo acadêmico. Porém, antes de adentrarmos especificamente no universo do desenho e, falarmos da especificidade de alguns trabalhos, torna-se fundamental atentarmos para a formação artística a reforma das Academias de Belas Artes. Datada de 21 de Março de 1881, denominada como: “Reforma das academias de bellas artes de Lisboa e Porto”, evoca no título II, capítulo VIII o seguinte texto: “Dos alunos (...) Art. 54º Serão admitidos à matrícula em qualquer destas classes, os indivíduos de ambos os sexos que o requererem ao inspetor da academia.”. Segundo o disposto nos estatutos das Academias de Belas Artes, ao contrário do texto legal de 1823 que procurara criar a primeira instituição deste género no país, não se previa de forma explícita a abertura dos seus cursos a alunos do sexo feminino, todavia, também nenhuma disposição estatutária lhes impedia nem a matrícula nem a frequência dos seus cursos. Mais tarde, no texto da reforma de 1881, volta a explicitar-se que seriam admitidos alunos de ambos os sexos. (...). (LISBOA, p.137) 464 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A partir daí buscamos analisar a documentação de matrícula das academias de Lisboa e do Porto entre os anos de 1880 até 1926 e tentar reconstruir a presença feminina e de sua formação acadêmica. De um modo geral, foi possível constatar um número significativo de alunas a partir da década de 80, principalmente nas cadeiras de pintura e desenho de ornato, todavia, importante destacar que existe um maior número de alunas na cidade do Porto em comparação com a capital Lisboa, o que nos leva a crer em uma maior abertura na cidade nortenha na emanicapção social feminina. Outro factor que pode-se deixar evidenciado são as primeiras alunas da cadeira de escultura. Na cidade de Lisboa foi Mariana da Anunciação Leoni Pereira263, 25 anos, primeiramente no ano de 1917. Já no Porto os primeiros registos são mais antigos, com as alunas Lucilia Augusta Aranha (1889-1900) e Alice Adelaide Guilherme Moutinho (1890-1892)264. Através desta breve análise podemos entender outros elementos que conjugam o caminho desenvolvido pelas mulheres e, principalmente, estudarmos a mudança de uma hegemonia totalmente masculina e começarmos a observar a dicotomia dos olhare agora também femininos na arte. Pontuar como as mulheres entram, que aulas frequentam, quais as notas, e outros tantos dados quantitativos que auxiliam outras problematizações, as quais serão deixadas para o desenvolvimento da referida tese de doutoramento, na qual terá espaço para que sejam colocados outros pormenores quantitativos que possam esclarecer o desenvolvimento do feminino enquanto ser social e artístico na esfera profissional das academias. 263 Tanto nos livros de matrícula gerais quanto no livro de escultura e estatuária de 1883 a 1953 Mariana da Anunciação Leoni Pereira é a única mulher matriculada nesta cadeira. O primeiro registo é de 1917 quando tinha 20 anos e o último de 1921 com 24 anos. Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. 264 Livro de Matrículas - Aula Escultura Ordinários (1837-1907) - PT/APBA/F1-4/03-05 (Cota 18). Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 465 1.1 O DESENHO ANATÔMICO: DA PRIMAZIA MASCULINA AO GRADUAL FEMININO “O estudo do corpo humano, das suas proporções e anatomia, foi reconhecido pelos primeiros tratadistas do Renascimento, como Leon Batista Alberti (1404-1472), Leonardo da Vinci (1452-1519) e, entre nós, por Francisco de Holanda (c. 1517-1584), como princípio fundamental de qualquer artista.” (FARIA, 2008, p.126). Útil e primordial para o artista e a sua arte é então o estudo do modelo. Principalmente para o escultor o foco está na peculiaridade dos “três estados da representação escultórica, Desenhar/Modelar/Esculpir”, como foi concebido pelo célebre escultor português Joaquim Machado de Castro, enfatizanado a característica principal tridimensional da escultura e, consequentemente, toda a carga ideológica que a comporta, sem deixar de lado a primordial técnica do desenho, que aqui compreende-se pelo desenho anatômico especificamente. No caso da expressão através da natureza os artistas têm a sua tarefa facilitada pois podem livremente trabalhar com a paisagem, animais, plantas, etc., o que não ocorre no trabalho com o corpo humano. No panorama internacional, a historiadora de arte Linda Nochlin afirma que o uso de modelos masculinos era realizado pelas academias já no final do século XVI e início do século XVII, todavia, em um momento inicial em estúdios privados. Sobre os modelos femininos, nosso objetivo de análise, relata que embora fossem presentes também no âmbito particular as academias públicas proibiram a prática até 1850, o que não ocorreu no caso masculino. 466 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Em Portugal os desenhos de modelo feminino apareceram coincidentemente na mesma altura da presença das mulheres na academia, na década de 1880. Desenhos que, embora pertencentes às academias portuguesas, eram executados no estrangeiro, como por exemplo nas academias de Roma e Paris, o que reforça novamente a perspectiva de influência externa de diversas alterações, principalmente sociais, para com o universo feminino. Como exemplo, na academia de Lisboa, evocamos a existência de sete desenhos de nu feminino, dentre os quais apresenta-se dois abaixo inseridos (Figuras 1 e 2). É então a partir da década de 1880 que observa-se o trabalho através de modelos femininos ao natural, aos moldes que eram realizados já com os modelos masculinos. Através desta ação nos é possível concluir uma grande mudança de mentalidade que estava ocorrendo no continente europeu, seja para com a figura de representação feminina, seja para a sua inclusão também enquanto artista. Em concordância com a historiadora portuguesa Filipa Lowndes Vicente, que observa, no decorrer do século XIX, uma mudança do papel da mulher, agora de sujeito duplo, tanto como observadora, quanto observada: Uma diferença óbvia é que se, anteriormente, a mulher nua na pintura era historicizada, colocada numa narrativa que a retirasse das referências ao mundo contemporâneo do observador e à corporalidade do “real”, a partir da segunda metade do século XIX ela passa a ser a mulher “real” que, no estúdio do artista-homem, ocupa o espaço quer da musa artística, quer da sexualidade latente entre artista e modelo. (VICENTE, 2012, p.185). É exatamente na relação entre os sujeitos e os objetos acima referida que, apesar de muito discutida, ainda não está superada, pelo contrário, que recai a importância para a escolha desse tema de investigação. Compreender, principalmente, através das obras de arte, como se dá a viragem desta relação do e com o feminino e quais os reflexos e códigos intrínsecos, ao produzir artístico, que podem emergir enquanto fonte documental para os historiadores problematizarem a sua posição dentro das artes visuais. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 467 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo central foi trazer à tona provocações e dar voz as mulheres, contrapondo o esquecimento e o silêncio histórico que circundam a narrativa do feminino em sua grande maioria. Ajudar a problematizar a partir do presente, através desta temática atual, uma realidade do passado e que estava circunscrita em importantes mudanças sociais, políticas e ideológicas na transição entre os dois séculos em questão, no continente europeu, especificamente em Portugal. O debate sobre os grupos tidos como minoritários, entendendo tal conceito como os menos representados em termos historiográficos, visa a recuperação de personagens. Além de demonstrar que os processos históricos não são apenas constituídos por jogos de poder, que favorece os mais privilegiados, mas sim, alcançar também os elos frágeis que sofreram e ainda sofrem as consequências dos silêncios e omissões265, como acontece no caso das mulheres. Posto isto, há uma necessidade de fomentar a área de estudo da História das Mulheres em Portugal e a escassez de trabalhos que foquem tal temática foi um grande propulsor para o surgimento desta pesquisa. Um novo desafio, em é uma área em crescente desenvolvimento; há uma grande diferença na academia portuguesa e brasileira no âmbito da História das Mulheres, no Brasil estuda-se há mais tempo e de forma mais acentuada, enquanto em Portugal, existem trabalhos, porém ainda em uma crescente se comparadas com outras temáticas. Em suma, este artigo, bem como sua investigação doutoral torna-se uma mais valia. Principalmente por abrir caminhos para que outros trabalhos possam surgir. Questionar essas ausências do feminino na História e tentar dar voz a essas mulheres artistas, conhecendo desde 265 Nos últimos cinco anos em Portugal houve uma crescente em trabalhos académicos que vi- sam a perspetiva feminina na História da Arte, embora ainda seja uma área que precise de muito mais visibilidade. Ao pesquisarmos em títulos as palavras “arte e mulher”, entre 2015-2020, temos: 6 artigos e 2 dissertações de mestrado, ao alargarmos a mesma pesquisa para o início da base de dados 1822-2020 os números alteram-se muito pouco: 11 artigos, 6 dissertações de mestrado e 2 teses de doutoramento. Com as palavras “ arte e feminino” o mesmo repete-se, entre 2015-2020: 3 artigos, 4 dissertações de mestrado e 3 teses de doutoramento, ao alargamos para 1822-2020: 4 artigos, 9 dissertações de mestrado, 7 teses de doutoramento. Fevereiro, 2021. Disponível em: https://www.rcaap.pt/. 468 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 a sua formação profissional e pensar, sobretudo, a arte como problematização de estereótipos, concebendo as obras de arte como um mecanismo cultural mutável que precisa ser compreendido em suas especificidades, sejam elas sociais, culturais, políticas, geográficas ou temporais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Silvia Lucas Vieira. Forma e conceito na escultura de oitocentos. Lisboa:, 2012. (Tese de Doutoramento), FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2012. BERGER, John. Modos de Ver. Lisboa: Edições 70, 1987. CHADWICK, Whitney. Women, Art, and Society. Revised Edition. London: Thames and Hudson. Second Edition, 1996. CLARK, Kenneth. The Nude: A Study in ideal form. New Jersey: Princeton University Press, 1984. FARIA, Alberto Cláudio Rodrigues. A Coleccção de Desenho Antigo da Faculdade de Belas Artes de Lisboa (1830-1935): tradição, formação e gosto. 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Academia de nú feminino. 01/05/1881, Escola Nacional e Especial de Belas-Artes. Paris. França. Carvão e esfuminho s/papel, 61,3 x 47,2cm. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, FBAUL/337/DA ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 471 Figura 2: José Maria Veloso SALGADO. Academia de nú feminino. 27/03/1889, Escola Nacional e Especial de Belas-Artes. Paris. França. Lápis negro, sanguínea e giz branco s/papel creme, 61,8 x 47,4 cm. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, FBAUL/354/DA. 472 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA PINTURA ORIENTALISTA (SÉC. XIX): ANÁLISE DE DISCURSO E CARACTERÍSTICAS Nina Ingrid C Paschoal266 – nina_paschoal@hotmail.com Resumo: Durante o contexto de colonização do Oriente Médio, principiado pela campanha francesa ao Egito (1798), proliferaram as gravuras e pinturas que o retratavam. Muitas delas foram produzidas a partir de incentivo político e/ou científico explícitos, enquanto outras eram feitas no contexto das Belas Artes. Destas, grande número se deteve especificamente às mulheres orientais, retratando-as como metonímias do que seria o próprio Oriente no olhar ocidental: inferior, primitivo, letárgico, disponível, sem qualquer traço de evolução moral ou social, exótico e fetichizado. Tais características se alinham ao Orientalismo, segundo os estudos saidianos, constituindo um repertório visual e discursivo. Este artigo visa elencar e discutir as principais características da pintura orientalista, problematizando principalmente a representação das mulheres e de seus espaços de convivência, elucidando o caráter político presente em tais imagens. Palavras-chave: Orientalismo; pintura; representação. Abstract: In the frame of Middle East colonization, initiated by the French campaign to Egypt (1798), there was a proliferation of engravings and paintings depicting this country. Many of them were produced from explicit political and/or scientific encouragement, while others were made in the context of the Fine Arts. Of these, a large number focused specifically on oriental women, portraying them as metonyms of what the East itself would be in the Western gaze: inferior, primitive, lethargic, available, exotic, fetishized, and without any trace of moral 266 Nina Ingrid C. Paschoal é mestra e bacharel em História pela Pontifícia Universidade Ca- tólica de São Paulo, técnica em Museologia pela ETEC Parque da Juventude e arte educadora em espaços culturais desde 2013. Membra fundadora do Coletivo Hunna – Historiadoras que Dançam e colunista do portal Click Museus. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 473 or social evolution. These characteristics align with Orientalism, according to the studies of Edward Said, constituting a visual and discursive repertoire. This article seeks to list and discuss the main characteristics of Orientalist painting, problematizing mainly the representation of women and of their living spaces, thus elucidating the political character present in such images. Keywords: Orientalism; painting; representation. Aproveitando da fragilidade da administração otomana da época, ainda que enfrentando bastante resistência, os europeus conseguiram certo sucesso em seus empreendimentos coloniais no Oriente, garantindo a extração de diversos produtos comerciais, instalação de aparelhos governamentais e burocráticos, e um grande mercado consumidor por força da dominação e influência. O marco inicial foi a invasão de Napoleão Bonaparte e seu exército francês ao Egito, em 1798. As invasões representaram uma grande virada no processo histórico tanto das metrópoles quanto das colônias. Contudo, o projeto imperialista ainda precisava de mais um esforço para se afirmar nestes novos territórios conquistados, e este ultrapassava a dimensão militar: teria que adentrar a esfera da cultura. Por esta razão, o trabalho dos colonizadores europeus compreendeu relatar e compilar o maior número de informações sobre o Oriente, estudando tudo incessantemente – com todo o rigor acadêmico e científico que o período iluminista já exigia; é destas áreas especializadas nas características do Oriente que se retirou a alcunha de Orientalismo. Segundo Edward Said (1935-2003), estudioso seminal sobre o tema, o Orientalismo foi um discurso (FOUCAULT, 2008, p. 8-9), sendo “uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais” (SAID, 2007, p. 28). Este discurso é criado para justificar moralmente a invasão do Oriente se apoia em algumas máximas: a ideia de superioridade racial e intelectual, que opõe o racionalismo ocidental 474 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 com o instinto oriental, o reforço de uma relação de poder hierarquizada, e a constante afirmação de que esta seria uma “missão civilizadora”, o que fundamenta a subordinação do Oriente ao Ocidente, uma vez que teria um suposto grau inferior de evolução social, tornando seu povo incapaz de se auto organizar e representar. A ideologia e repertório orientalistas se ramificou também pelos meios artísticos: gravuras e pinturas carregavam essa ideologia pejorativo, homogeneizador e raso sobre o Oriente por meio de representações e alegorias. O Orientalismo, em sua dimensão das artes visuais, não se consolidou propriamente como um movimento, escola, vanguarda ou linhagem artística, mas sim um repertório visual repetido em diversos estilos da pintura, da escultura e da gravura. É mais correto, então, dizermos que o Orientalismo é tanto o assunto destas pinturas quanto o conjunto de enunciados discursivos ao qual elas se referem, levando em conta o seu período histórico de feitura e o contexto colonial em que estão inseridas. Tal produção artística é iniciada tão logo os europeus se assenhoram do Oriente, uma vez que desembarcaram muitos savants junto da caravana de Napoleão Bonaparte no Egito. Estes eram patronos, eruditos e artistas que compunham a ala burguesa e nata intelectual da França naquele momento. Suas intenções eram claras e alinhadas ao sistema colonial. O principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro — essas questões foram pensadas, discutidas e até, por um tempo, decididas na narrativa. Como sugeriu um crítico, as próprias nações são narrativas. (SAID, 2018, s/p.) Os artistas plásticos corriam ao Oriente motivados por seu interesse em conhecer mais a fundo as paisagens bíblicas, épicas e históricas que estavam entre as mais representadas no período, fazendo jus ao movimento romântico e neoclássico ensinado e produzido nas escolas de Belas Artes e nos ateliês de seus oriundos. Aos poucos, se interessaram por outros temas e passaram a incluir a gente, os costumes e os lugares do Oriente que presenciavam. Mas não sem certa “liberdade” artística. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 475 Nas pinturas, as pessoas orientais eram retratadas costumeiramente através de extremos: ou violentamente impulsivos ou preguiçosamente repousados; ou cobertos dos pés à cabeça por conta dos rígidos preceitos religiosos ou nus em mercados; ou donos de uma vastidão de riquezas ou acomodados em suas ruínas. Envolvendo esta descrição binária267 do Oriente, ainda temos uma outra contraposição frequente na qual a pintura Orientalista se ancorou: a questão do gênero. O Ocidente, com sua força e progresso, era visto como o lado masculino. O Oriente, misterioso e encoberto, como um feminino a ser desvelado (DIB. 2011, p. 148). Não à toa as mulheres orientais foram um dos principais temas explorados pelos artistas europeus durante o auge da colonização do Oriente, também afetando a produção que viria posteriormente. Diferentemente da passividade apresentada pelos artistas Orientalistas, as mulheres foram responsáveis por fazer grande resistência ao processo, buscando preservar seus costumes dentro dos ambientes familiares, onde a cultura europeia não podia infiltrar-se facilmente. A modernização teve um grande impacto na vida cotidiana e domiciliar das mulheres árabes, mas demorou a se mostrar. Ainda no século XIX, embora já houvesse um contingente considerável de mulheres exercendo papéis profissionais dentro da sociedade e no comércio, a grande maioria ainda se restringia aos afazeres domésticos e ao campesinato, e este último se interligava, quase exclusivamente, à vida das classes mais baixas. Mesmo com o processo de modernização do Oriente, a convivência das mulheres entre si não era apenas uma marca da diferença entre gêneros, mas principalmente de distinção social. Dentro dos ahadith268, era de bom tom que as mulheres convivessem o máximo possível somente entre si, pois assim evitariam a tentação masculina e o olhar dos não fiéis, os quais não deveriam profanar a mulher de fé. Por isso, os ambientes destinados às mulheres eram muito mais os internos, conservando costumes firmados com a religião islâmica e a sua necessidade de decoro. A importância do sentido de privacidade era clara para as sociedades árabes e turco-otomanas no geral 267 Sobre o assunto, ver: SCHMIDT, 2014, p. 147. 268 Tradições islâmicas que são entendidas como ditos de Maomé. Não são propriamente reve- lações divinas, mas um conjunto de práticas do profeta que devem ser tomadas como exemplo recomendável de conduta para os fiéis. 476 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 (DIB, 2016, s/p), uma característica ainda possível de ser notada por meio da própria arquitetura islâmica característica. Os espaços internos, fossem públicos como as mesquitas, ou privados como as residências, possuíam de fato áreas especificas para a convivência das mulheres e da família. Visto que o acesso a estes ambientes era restrito ou mesmo totalmente proibido, restou aos artistas – homens, europeus, invasores – adentrá-los, boa parte das vezes, através de descrições de terceiros, dos ambientes que podiam acessar, ou mesmo de sua imaginação e fantasias. Ainda que com doses exageradas de expectativas, curiosidade e fantasias, as mulheres presentes nas pinturas Orientalistas foram amplamente retratadas nos seus ambientes de intimidade. Este é o caso da representação delas nas mashrabeyas, nos haréns e nos hammans, os três locais que trataremos a seguir, com exemplos de obras orientalistas que os retratam. 1. MASHRABEYA A mashrabeya é uma espécie de janela das construções de mansões e palácios orientais de arquitetura tipicamente islâmica, e foi um elemento arquitetônico difundido principalmente entre o período de domínio turco-otomano e de líderes mamelucos. A mashrabeya, apropriado no Brasil como muxarabi, é um recorte projetado para o lado externo dos edifícios, como um balcão suspenso, uma janela que protubera da fachada. O que lhes caracteriza, além deste relevo, são seus gradis ou cobertura de treliças com padrões. Além de manter controle climático para a propriedade, a mashrabeya permite que do lado interno se possa ver o externo, mas não o contrário. Parte da arquitetura islâmica, esta janela pode ser lida metaforicamente como uma “porta de entrada para dois mundos diferentes” (SHOKRI, 2018, p. 253): o público e o privado. A partir da visão ocidental, a mashrabeya acabou sendo lida como símbolo da reclusão feminina oriental. Combinando com esta descrição, podemos citar como exemplo o quadro The Siesta, produzido em 1876 por John Frederick Lewis (1804-1876) [Figura 1]. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 477 O próprio Lewis descreveu as mashrabeyas com a ideia de permeabilidade velada, como vemos em: “The windows, which are often of an enormous size, are all covered with the finest carved wood-work, at a distance resembling lace, and which does not prevent the inmates from seeing all that is passing, while it effectively precludes the possibility of being seen from without”.269 Atentando-nos aos detalhes, vemos que animais ou partes deles são colocados nesta obra, assim como em muitas outras da temática Orientalista, para retratar o estado de proximidade ao selvagem, dos homens e mulheres orientais. Essa disposição de bichos ou partes deles na cena é uma espécie de animalização das figuras humanas orientais, especialmente das mulheres, ancorando a ideia de que elas e os bichos vivem nos mesmos ambientes ou tem uma relação de igualdade, como se estivessem mais próximos do “estado de natureza” a que os filósofos iluministas se referiam como sendo o estado anterior à construção de civilidade – posta pelo contrato social. Lewis utiliza o cachorro e o leque de penas de pavão, um objeto constantemente apresentado em cenas que se pretendem representativas do Oriente já desde o período barroco. O pintor inglês teve dois diferentes momentos de contato com o Oriente: visitando primeiro o Egito e, posteriormente, Constantinopla. Ainda assim, preferia utilizar de modelos europeias para compor seus quadros Orientalistas, fazendo sua esposa posar por diversas vezes para estas composições. O corpo oriental, em oposição direta ao ocidental, geralmente é representado em pinturas como amolengado, passivo, em repouso, sem grandes ações. A maioria das mulheres se encontra reclinada, quase letárgicas e apresentando uma preguiça desmedida numa espécie de dolce far niente. Quanto ao ambiente representado em The Siesta, este foi uma ilustração fiel da casa onde John Frederick Lewis morou quando esteve no Cairo. Vemos como os pintores procuraram muito mais exatidão nas representações dos ambientes e alegorias do que propriamente das tradições femininas destes lugares. Segundo a pesquisadora Linda 269 Disponível em: http://collections.vam.ac.uk/item/O40690/the-hhareem-cairo-watercolour-lewis-john-frederick/. Acesso em 04 de fev. 2021. 478 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Nochlin (1991, p. 38), havia a necessidade de exagerar a decoração dos ambientes para, assim, os artistas tornarem suas descrições visuais críveis, sendo possível associa-las instantaneamente ao Oriente, conferindo um ar de veracidade à pintura através da verossimilhança realista. A mashrabeya é, provavelmente, o ambiente mais visto pelos pintores ocidentais dentre os três apresentados neste artigo. Talvez por isso podemos ver mais detalhes verossímeis nas pinturas, que por muitas vezes eram de fato baseados em ambientes reais, tal qual o exemplo acima citado. Isto foi possível porque não eram ambientes exclusivos das mulheres, ainda que internos, mas notadamente um espaço de contato delas com o mundo público. 2. HARÉM O harém era um espaço reservado e interno dos palacetes, um ambiente específico da casa destinado para a convivência e a socialização das mulheres entre si. Longe de ser um espaço de mera exclusão social, o harém era, pelo contrário, uma área interna de extrema importância. Como vimos, os ambientes privados representavam a parte mais valorosa da vida oriental, pois continham a família e suas tradições, podendo até mesmo ter um importante cunho sociopolítico, uma vez que podiam ser lidos como símbolo de poder, riqueza e status social: quanto maior fosse o espaço do harém e maior o número de mulheres habitando-o, mais rica a família parecia ser, ou de fato era. Este espaço das residências se tornou interesse para o povo ocidental tão logo os primeiros foram conhecidos, como o de Topkapi, na atual Turquia, resultando em uma vasta produção de descrições, imagens e, principalmente, expectativas, não somente sobre o espaço em si, mas sobre as mulheres que lá conviviam. De forma semelhante às mashrabeyas, o espaço do harém era entendido como uma metáfora para as fronteiras e limites que separavam as mulheres do convívio geral. Ao mesmo tempo em que há um imaginário libidinoso sobre a convivência feminina neste espaço, ele também é lido como uma prova da construção estereotipada do despotismo oriental e otomano (JARMAKANI, 2008, p. 34). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 479 As fantasias ocidentais sobre as mulheres que habitavam o harém eram, em grande parte, munidas pela própria inacessibilidade que os pintores experimentavam, estimulando um mistério que esbarrava na fantasia e no imaginário de sua época, que visualizava o Oriente como um local permissivo e altamente sexualizado (ROBERTS, 2007. s/p). O construto imaginário criado por artistas e viajantes também foi do harém como local permissivo, reservado para as práticas poligâmicas dos sultões com suas inúmeras concubinas e servas. A nudez parecia dar conta de representar essa permissibilidade, bem como a forte disposição sexual das mulheres orientais. Na pintura de Giulio Rosati (1858-1917), Harem dance, quem, segundo as fontes encontradas, provavelmente nunca esteve no Oriente, vemos um espaço habitado somente por mulheres ociosas, exceto pelo corpo que dança, nu no torso [Figura 2]. De fato, as mulheres dos haréns costumavam receber educação e instrução artística e, quanto mais elas dominassem os saberes da dança, do canto, dos instrumentos musicais e da poesia, maiores eram suas chances de ascender hierarquicamente. Essas ocupações são representadas nas pinturas, por vezes, como alternativa às posições reclinadas das mulheres nas cenas orientais. Entretanto, não há qualquer fonte do período que revele que essas danças eram realizadas com o corpo descoberto, especialmente as que dançavam em ambientes internos. Isso revela o caráter fetichista que a dança oriental recebeu desde o período colonial (DE ASSUNÇÃO; PASCHOAL, 2022, p. 11). Fato é que a dança feminina acabou se tornando um tema recorrente na pintura Orientalista. É possível que os viajantes do Oriente tenham tido costumeiro contato com as ghawazee270, dançarinas públicas, especialmente no Egito, – que se apresentavam sob contratos e pagamentos, mas à margem da sociedade. Nas pinturas, pouca ou nenhuma distinção é feita na forma de representar mulheres que dançavam dentro das casas e dos haréns familiares e das bailarinas públicas: ambas eram retratadas em apresentações com homens em volta, com partes do corpo totalmente despidas, e com movimentos que parecem libidinosos em muitos dos casos. 270 Ver mais sobre as ghawazee em: DE ASSUNÇÃO, 2018. 480 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O harém funcionava como uma alegoria para o homem burguês europeu, pois ele via neste um ambiente livre de pudores, onde realizaria todas as suas fantasias e desejos de cunho sexual que eram reprimidas pelo século XIX: […] the category of the harem is the imaginative space through which to project masculinist and heteronormative fantasies of erotic desire and male power, as organized around male access to and possession of women (JARMAKANI, 2008, p. 3). Sendo uma parte reservada de um ambiente interno, o da residência pessoal, acredita-se que pouquíssimos estrangeiros de fato chegaram a conhecer um harém e presenciar a vivência feminina ali dada. Com isso, não é possível determinar com precisão o limite entre representações mais fiéis e outras mais fantasiosas, pois elas se mesclavam umas às outras na encarrilhada produção de imagens criadas e expostas pelos Orientalistas. 3. HAMMAN Outro espaço de convivência das mulheres e, logo, de fantasia ocidental sobre os corpos e a feminilidade foi a casa de banho, chamada em árabe de hamman. O espaço era dedicado à higiene, que para os muçulmanos ia além do aspecto físico, contemplando também a purificação da alma. Conforme o islamismo se expandiu, também o número de casas de banho cresceu, ultrapassando três mil estabelecimentos no século XVII (THORNTON, 1994, p. 66). Assim como no caso dos haréns, os primeiros hamman a serem visualizados pelos europeus foram os da Turquia e Constantinopla, ainda no início do processo de islamização do Oriente, época em que foram já descritos com alguma curiosidade, embora semelhantes espaços já existissem na Grécia e em Roma nos períodos antigos. O hammam era frequentado tanto pelas mulheres quanto pelos homens. Entretanto, por servir como parte de um ritual associado à religião e à pureza do corpo, os gêneros eram separados para o uso das banheiras e do espaço. Ideias sobre um suposto uso conjunto foram, por certas vezes, mostradas de forma errônea nas pinturas orientalistas; assim como também são generalizadas as várias representações que mos- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 481 tram os hamman como se fossem de uso exclusivo do gênero feminino. Vê-se, aí, uma afirmação de que havia sentido erótico nesse ambiente [Figura 3]. Em Le Bain Turc, Jean-Auguste Dominique Ingres (17801867) usa princípios da colagem para elaborar uma grandiosa reunião de mulheres, retalhadas de outras de suas obras e estudos para traduzirem mais informações e costumes que ele atribuía às orientais. Algumas delas são apresentadas ociosas, como mandava a tradição orientalista; já outras são mostradas se entregando às artes e ao entreter umas às outras. Temos uma ideia de que o hamman era também usado como ambiente livre, onde mulheres poderiam seduzir umas às outras e satisfazerem-se sexualmente entre si mesmas. Embora não estejamos descartando a presença de homossexualidade nos tempos e espaços a que nos referimos, a tradição orientalista da qual a pintura faz parte, junto do conhecimento sobre a moral da era moderna onde também estão inseridas, nos dão margem para inferir que a intenção não era de representar a homossexualidade, mas sim fazer surpreender a burguesia europeia expectadora das Belas Artes com a “promiscuidade perturbadora” (GALLET, 2019, p. 45) da mulher do Oriente. A figura que primeiro nos capta o olhar, mais centralizada e menos alva, parte de sua obra de 1808, La Baigneuse Valpinçon, e é representada desta vez segurando um instrumento musical, provavelmente um alaúde, inspirando outra, ao fundo, a dançar. Seu corpo, por si, já traz um formato semelhante ao cordofone. A anatomia destas mulheres é distorcida para satisfazer um olhar dúbio de beleza, contemplação e sensação de grotesco, lembrando os traços maneiristas. Ao contrário de outros artistas que, como vimos, apoiam-se numa representação opulenta da arquitetura, decoração, panejamento e outros detalhes do ambiente, Ingres recorre a uma descrição visual dos corpos para evocar o ar do Oriente, como se estes se movessem sempre de uma mesma repetida forma, caricata, desconjuntada, com profunda decomposição de cada uma das partes do físico, mas ainda assim sensual e voluptuosa. Além dos ornamentos como turbantes, bordados nas almofadas, colares, braceletes e coroas, a presença da temática oriental está marcada nos utensílios existentes para servir as bebidas, sendo compos482 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tos por jogos de louças azuis, brancos e dourados, remetendo às louças produzidas no Oriente. Le bain turc é um quadro no qual é marcante a concupiscência das formas femininas, representação muitas vezes obtida pela da distorção da anatomia dessas mulheres, que se contorcem de uma maneira desatarraxada e liberta, possuindo em seus corpos alvos um contraste com o ambiente no qual se encontram. Talvez o hamman seja o único dos três espaços citados neste artigo no qual as mulheres possivelmente circulavam com seus corpos realmente nus – mas ainda sendo assunto de debate na historiografia: alguns relatos de viagem do período diziam que as mulheres ficavam completamente nuas, outros não. Contudo, de modo geral, os artistas escolhiam retratar o corpo nu tanto pela questão do contraste com a cultura europeia, quanto pelo fato de usarem modelos de estúdio nuas e, ainda, por manter o ar fantasioso para a pintura (THORNTON, 1994, p. 77-78). A nudez em obras de arte permanecia um tabu para a sociedade da época dos oitocentos; entretanto quando eram mulheres orientais retratadas, esse impacto era atenuado, e os pintores europeus o usaram com frequência como um pretexto para retratar os corpos desnudos com ainda menos pudor. As cenas no hamman eram “um espetáculo que dava a sensação de penetrar com violência em um mundo proibido” (GALLET, 2019, p. 145). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos compreender o Orientalismo enquanto um discurso que também se deu pela via visual, sendo apropriado pelas Belas Artes e retroalimentando o imaginário dos europeus com pinturas e gravuras que delineavam o Oriente como um local de fantasia onírica, sensualidade e passividade. O Orientalismo busca, através de seus detalhes e apelos, produzir estereótipos do Oriente e, neste caso, de suas mulheres para fortalecer uma concepção ideológica de superioridade racial, que por sua vez justificaria e legitimaria a dominação das colônias e a firmação de protetorados nas terras orientais. O discurso orientalista, reforçado e encorpado pelas imagens, desconsiderou particularidades culturais, de ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 483 gênero, de regionalidades e de tempo. De forma reducionista, portanto, chavões e estereótipos ficaram inculcados no imaginário depois da Campanha do Egito empreendida pela França. As mulheres, como metonímias do Oriente, são retratadas de forma passiva, letárgica, inativas, exóticas, disponíveis, nuas, embranquecidas, fetichizadas e animalizadas. Além disso, são inseridas muitas vezes em ambientes específicos, a maioria dos quais não era facilmente acessível pelos pintores europeus ou mesmo pelos colonos que empreendiam o processo de dominação, que só teve seu fim nos meados do século XX. É importante, e talvez até necessário, ao observarmos pinturas, que possamos ver além: investigando suas camadas, tentando ler suas entrelinhas, esmiuçando suas particularidades, repetições e continuidades. Assim é possível utilizar a imagem enquanto fonte histórica, carregada de significados, produzidas por uma mentalidade específica, em contexto específico, que geralmente em muito acrescenta na leitura das obras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE ASSUNÇÃO, N. M. R; PASCHOAL, N. Orientalismo em movimento: representações da dança do ventre em pinturas e literatura de viagem (séc XIX). In: Revista Brasileira de Estudos da Presença, n. 12, v. 1, 2022. DE ASSUNÇÃO, N. M. R. Gomes. Entre Ghawázee, Awálin e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “dança do ventre”. 2018. 192 f. Dissertação (mestrado em história). Departamento de filosofia e ciências humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018. DIB, M. “Mulheres árabes como odaliscas: uma imagem construída pelo orientalismo através da pintura”. In: Revista UFG. Dezembro 2011. Ano XIII, nº 11. DIB, M. “O público e o privado na cultura árabe”. In: Museu da Dança, 2016. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 484 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 GALLET, V. Harem. Paris: Éditions Place des Victoires/Könemann, 2019. JARMAKANI, A. Imagining arab womanhood: the cultural mythology of veils, harems and belly dancers in the U.S. New York: Palgrave McMillan, 2008. NOCHLIN, L. “The imaginary Orient”. In: The Politics of vision: essays on nineteenth-century art and society. London: Thames and Hudson, 1991. 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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 485 Imagens: Figura 1: John Frederick LEWIS. The Siesta. 1876. Figura 2: Giulio ROSATI. Harem dance. 486 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 3: Jean-Auguste Dominique INGRES. Le bain turc. 1862. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 487 A GRAVURA COMO PRÁTICA COLETIVA: A EXPERIÊNCIA DE ATELIÊS COLETIVOS NA CIDADE DE SANTOS Rachel M. S. Miyagui271 – rachelmidori@gmail.com Resumo: Esta comunicação se propõe a apresentar a prática da gravura na cidade de Santos a partir da experiência de núcleos de produção coletiva. Serão analisados ateliês que estiveram em funcionamento entre os anos de 2000 e 2020. A produção desses núcleos nos ajuda a compreender peculiaridades sobre a dinâmica do trabalho artístico coletivo e como este dialoga com especificidades da linguagem da gravura. Palavras-chave: gravura, coletivo, ateliê. Abstract: This communication proposes to present the practice of engraving in the city of Santos from the experience of collective production centers. Studios that were in operation between the years 2000 and 2020 will be analyzed. The production of these centers helps us to understand peculiarities about the dynamics of collective artistic work and how it dialogues with specificities of the language of engraving. Keywords: engraving, collective, studio. INTRODUÇÃO A prática da gravura na cidade de Santos é um recorte de uma ampla produção que compõe a história da arte brasileira no século XX. De acordo com a historiografia sobre gravura brasileira, a tradição dessa prática na cidade teve início na década de 1950, período de grande produção entre artistas gravadores considerados de uma segunda geração 271 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado que está em desenvolvimento intitulada “A gravura em Santos a partir do estudo dos ateliês” orientada pela Professora Ana Maria Pimenta Hoffmann, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da Unifesp – Guarulhos. 488 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 no cenário da gravura artística no Brasil e do surgimento de núcleos de produção chamados Clubes de Gravura. O Clube de Gravura de Santos foi fundado em 1951 pelo artista Mário Gruber, sendo o segundo do país. Durante as décadas seguintes, a recepção da gravura em Santos foi constatada em diversas edições do Salão de Belas Artes, do Salão de Arte Moderna, do Salão de Arte Jovem do CCBEU e da Bienal de Artes Plásticas. A produção acontecia nos ateliês dos artistas e nos cursos de arte oferecidos por instituições privadas - como a Faculdade de Artes Plásticas - e públicas - como o Centro de Cultura Patrícia Galvão, administrado pela Secretária Municipal de Cultura. Mais tarde, entre as décadas de 2000 e 2010, a prática se manteve principalmente em torno de quatro núcleos de produção: o Grupo Gravura Mariana Quito, o Estúdio Valongo, o Gravurar e o Ateliê Cais. 1. O ATELIÊ DA SECRETARIA DE CULTURA A partir da década de 1980, a Secretaria Municipal de Cultura de Santos começou a oferecer cursos de artes, possibilitando uma formação artística fora da universidade, os cursos eram gratuitos e tinha entre seus professores artistas especialistas, como Sandra Regina Alves e Suzue Eizo, que ministraram oficina de gravura a partir da década de 1980, nesse período o ateliê funcionava em uma área lateral do Foyer do Teatro Municipal Bráz Cubas. Dentre os projetos desenvolvidos nessa época podemos citar o ‘Conexões’, uma exposição itinerante que passou pelas cidades de Santos, Londrina, Campo Mourão, São José dos Campos, Cascavel e Sertãozinho. A curadoria do projeto em Santos foi feita por Gilson de Melo Barros e Sandra Regina Alves. (Figura 01) Um ateliê de gravura exige um espaço físico com uma estrutura específica e prensas de difícil transporte, portanto o local deve ser planejado para que seja utilizado à longo prazo, muitas vezes prensas de artistas são passadas para outros artistas e podem atravessar gerações se mantendo em um mesmo espaço. Isso é algo que pudemos constatar na Secretaria de cultura de Santos, por exemplo, durante algum tempo esteve em uso a prensa de metal do artista Alex Vallauri e mais tarde a prensa da artista Mariana Quito. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 489 Durante a pesquisa percebemos que o ensino de gravura na Secretaria de Cultura assim como no curso de Artes da Universidade Santa Cecília entre as décadas de 1970 e 1980 foram essenciais para o surgimento de grupos que surgiram mais tarde. O ateliê da prefeitura deu origem a dois grupos, o Grupo Gravura Mariana Quito e o Ateliê Cais. Mais adiante falaremos de outros dois ateliês de gravura na cidade de Santos, o Estúdio Valongo e o Gravurar. A partir da história desses espaços de produção tentaremos entender como a experiência desses núcleos pode nos ajudar a entender questões em torno da prática coletiva da gravura e sua permanência na cidade. 2. GRUPO GRAVURA MARIANA QUITO No início dos anos 2000, a artista portuguesa Mariana Quito, que havia vivido seus últimos anos em Angola, passou a residir em Santos. A vontade de Mariana era concretizar no Brasil um projeto que foi iniciado em Angola, o Barracão, que consistia em um ateliê de Artes aberto ao público em geral e de todas as idades, onde seriam oferecidos cursos de diferentes segmentos artísticos, incluindo a gravura. Em Santos, o projeto não foi concretizado. Mariana entrou em contato com a Secretaria Municipal de Cultura de Santos e começou a dar um curso de Gravura no Centro de Cultura Patrícia Galvão, citado anteriormente como um espaço que oferecia cursos de arte desde a década de 1980. A artista disponibilizou seus equipamentos – mesas e prensas - com o intuito de montar um ateliê que proporcionasse as condições necessárias para um curso específico de gravura. As aulas aconteceram até 2003, ano em que Mariana Quito faleceu. Dentre as atividades que aconteceram durante o período em que Mariana Quito coordenava o ateliê de Gravura, podemos destacar a exposição Intercâmbio de Gravura: Portugal - Brasil, a mostra aconteceu em 2001 e foi uma realização entre a AGE - Associação dos Gravadores de Évora e o CCBEU - São Vicente, que receberam obras dos mestres Mariana Quito e Humberto Marçal junto do trabalho de seus alunos e outros gravadores das respectivas cidades. (Figura 02) Alguns anos pós o falecimento de Mariana Quito, a artista e gravadora Márcia Santtos que ministrava a disciplina de Gravura no curso 490 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de Artes Visuais da Universidade Santa Cecília em Santos, enviou um projeto à Secretaria Municipal de Cultura propondo o retorno das aulas no ateliê de gravura sob sua orientação. E assim, em 2006, o espaço retomou suas atividades. Durante os primeiros anos as aulas se limitavam às técnicas de relevo como a xilogravura e linoleogravura, pois a prensa de metal necessitava de manutenção, após sua manutenção passou-se a produzir as técnicas de côncavo como a água-tinta, a água forte e outros processos como colagravura e transferências. Formou-se um grupo de alunos bastante heterogêneo, composto por pessoas de diferentes profissões e aspirações, que encontraram na gravura uma maneira de desenvolver um trabalho artístico e poético. O grupo foi ganhando consistência e apesar de estarem em um espaço coletivo atuavam individualmente, enviando trabalhos para salões, participando de exposições, desse modo, percebeu-se a necessidade de se instituírem como um grupo de gravadores, desse modo, nasceu o Grupo Gravura Mariana Quito, em homenagem à artista. Apesar desse novo formato, o ateliê ainda recebia pessoas novas e interessadas em aprender gravura. Durante o período em que esteve em atividade, o Grupo participou de exposições nacionais e internacionais, projetos em parceria com outros grupos e artistas e realizou a produção de um álbum de gravura, em 2012. (Figura 03) O ateliê funcionou no térreo do Centro de Cultura Patrícia Galvão entre os anos de 2001 a 2009, depois mudou-se para a rua Antônio Bento onde ficou até 2012 quando se instalou no CAIS Vila Mathias, na Avenida Rangel Pestana. Todos eram espaços administrados pela Prefeitura de Santos. 3. ATELIÊ CAIS O grupo Gravura Mariana Quito esteve sob a coordenação de Márcia Santtos entre os anos de 2006 e 2013, quando mudanças na administração de diversos departamentos na Prefeitura de Santos - devido à mudança da gestão municipal - ocasionaram na descontinuidade de diversos projetos de oficinas e cursos, incluindo o Grupo de Gravura Mariana Quito. Integrantes do grupo reivindicaram a continuidade das ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 491 atividades no espaço e o uso do equipamento que havia sido doado pela artista Mariana Quito, foi então decidido que a artista Áurea Nogueira Lima, integrante do Grupo Gravura Mariana Quito, ficaria responsável pelo uso do ateliê que passou a funcionar em outro formato. A gravura deixou de fazer parte dos cursos oficiais da Secretaria Municipal de Cultura, mas foi permitido que os ex integrantes do grupo continuassem utilizando o espaço. Com o tempo, apenas alguns continuaram a produzir no espaço e durante esse processo de mudança, formou-se um pequeno grupo que ao sentir a necessidade de repensar sua identidade como grupo se definiram como Coletivo Santista de Gravura. Apesar de não haver oficialmente o curso de gravura, o grupo sob a orientação de Áurea, se manteve aberto a receber interessados em fazer gravura, pessoas que independente de terem uma formação artística começaram a frequentar o ateliê a fim de conhecer, aprender e praticar gravura, assim como alguns integrantes também deixaram o grupo, desse modo, os frequentadores do espaço passaram a se auto referir como Ateliê Cais, já que o espaço se mantinha no C.A.I.S. (Centro de Atividades Integradas de Santos). Dentre os trabalhos coletivos desenvolvidos pelo grupo, destacamos o ‘Projeto Herança Cultural: Marcando um espaço na cidade’, que aconteceu entre 2014 e 2015, quando o grupo ainda se definia como Coletivo Santista de Gravura. O projeto consistiu na produção de uma série de gravuras obtidas a partir da impressão de uma mesma matriz que figurava o mapa da cidade de Santos. Foi idealizado por Maria José Solorzano, artista Guatemalteca que no período que esteve residindo em Santos frequentou o ateliê de gravura da Secretaria de Cultura durante a transição do Grupo Mariana Quito para o Coletivo Santista de Gravura. A proposta surgiu como forma de discutir certas mudanças que a cidade vinha passando e as marcas que essas transformações deixam na arquitetura e na memória da cidade. (Figura 04) 4. ESTÚDIO VALONGO No ano de 2010, inaugurou-se em Santos o Estúdio Valongo, um ateliê coletivo de gravura que se propunha a produção, difusão e formação em artes visuais e que tinha como ênfase a gravura. O espaço 492 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 era administrado por três artistas residentes: Fabiola Notari, Fabrício Lopez e Márcia Santtos. O ateliê era compartilhado e estimulava o convívio entre os frequentadores. O espaço era aberto à associados que por meio de uma contribuição mensal frequentavam o ateliê em um dia da semana específico para desenvolverem seus projetos em gravura. Cada artista residente tinha um dia da semana em que ficavam disponíveis para orientações. O Ateliê localizava-se na rua Visconde de Vergueiro, no centro de Santos. Esteve em funcionamento de 2010 a 2012 e durante esse período promoveu diversas mostras, oficinas, funcionando como um espaço de convívio e produção de conhecimento em interação com a comunidade local e com iniciativas e artistas de diferentes localidades. Dentre as atividades que aconteciam no espaço, destacam-se as ações de intercambio entre artistas de diferentes cidades e regiões, e as ações coletivas que estimulavam o convívio entre os frequentadores e artistas de outros espaços. 5. GRAVURAR O Espaço Gráfico Gravurar é o ateliê da artista Márcia Santtos. Inicialmente o espaço teve como artistas residentes Fabiola Notari, Joyce Farias e Lídice Moura. O ateliê foi inaugurado em 2016 e situava-se na rua Anhanguera, no bairro Vila Mathias, hoje situa-se na rua Leonardo Roitman no mesmo bairro, em Santos. A proposta do espaço é fomentar a prática e difundir a gravura, por meio de cursos, oficinas, exposições e ações coletivas em parceria com outros artistas. O Gravurar desenvolveu diversos projetos de intervenção urbana no entorno do ateliê, dentre os projetos coletivos mais recentes desenvolvidos pelo Gravurar está o ‘Gravura no poste’ que consiste em uma ação em que gravuras impressas em papel foram coladas em postes por diversos locais da cidade. (Figura 05) 6. QUESTÕES ACERCA DA GRAVURA Apesar da gravura ter entrado na modernidade desvinculada de ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 493 uma funcionalidade a que esteve originalmente associada, e ainda ser relacionada à sua capacidade de reprodução, esses já não são fatores determinantes para sua prática. Se em outros tempos ela foi considerada ortodoxa em seus meios técnicos tradicionais apurados, a partir da década de 1960 ela passa por transições e rompe as fronteiras limitantes em relação ao seu suporte, modo de gravação, reprodução e edição. Embora a impressão de diversas cópias e a edição destas ser um recurso ainda bastante utilizado pela maioria dos gravadores, e que pode funcionar como uma maneira de documentar a obra, ele passou a não ser essencial. Isso nos leva a refletir sobre o que de peculiar há na gravura para que artistas de outras linguagens tenham encontrado nela e em sua materialidade um campo para o desenvolvimento poético. Carlos Martins, artista gravador e curador da exposição ‘Gravura em Campo Expandido’, que aconteceu na Pinacoteca do Estado em 2012, comenta que a partir da década de 1970, muitos artistas incorporaram em seus trabalhos o mecanismo de impressão, desenvolvendo um pensamento plástico em que os limites das técnicas tradicionais da gravura foram excedidos e o processo de impressão se tornou um recurso na construção de imagens em diferentes linguagens como pinturas, instalações, esculturas, objetos e arte pública. Se pensarmos em seus procedimentos técnicos e a escolha dos materiais, o tipo de papel, as tintas, a matriz utilizada, temos uma vasta possibilidade de escolhas. Portanto, percebemos que os artistas da gravura podem pensá-la como imagem que se multiplica tanto para alimentar exigências de um mercado como para subverter a mesma lógica. Isso nos indica que a gravura integra um circuito muito específico, diferente das outras linguagens como a pintura ou a escultura. Ainda que encontremos coleções de gravura nas galerias, no acervo de museus e instituições culturais, ela também circula por espaços menos institucionalizados, como o ateliê dos artistas, as feiras de publicações independentes, eventos de artes gráficas, bibliotecas, entre outros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a pesquisa, buscamos recuperar informações sobre a tra- 494 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 jetória desses grupos a fim de compreender o fenômeno artístico em torno da gravura, não apenas no que se refere à produção, mas também na experiência social dos indivíduos que criam e da interlocução dessa prática com a cidade. Os acontecimentos constatados nesta pesquisa a partir de relatos dos envolvidos nos mostrou que manter e democratizar o acesso a uma prática artística depende de políticas públicas culturais que reconheçam, estimulem e protejam os bens culturais. Em vista disso, abordar a história de um ateliê público que foi fundamental para a sobrevivência da gravura na cidade de Santos parece pertinente enquanto preservação de uma memória cultural da cidade da qual não temos muitos registros além da produção dos artistas locais. Portanto, escolhemos apresentar uma breve história desses grupos, citando algumas ações realizadas em que identificamos alguns aspectos comuns ao universo da gravura e do fazer coletivo. Apesar da reprodutibilidade estar quase sempre presente, a entendemos como uma questão da gravura que já está posta. Dessa maneira, ao citar algumas ações desses grupos, apontamos um potencial da gravura que se origina do seu caráter múltiplo e se desdobra em possibilidades de experimentação, circulação, intercâmbio e troca, ações que se potencializam quando praticadas em coletivo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMARÁ, Adamastor; FERREIRA, Heloísa Pires; TÁVORA, Maria Luisa. Gravura Brasileira Hoje. 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Foto da autora. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 497 Figura 2: Catálogo da exposição Intercâmbio de Gravura: Portugal – Brasil, 2001. Foto da autora. 498 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 3: Imagem de gravuras que integram o I Álbum de Gravura do Grupo Gravura Mariana Quito, 2012. Foto da autora. Figura 4: Imagens de gravuras que compõem o projeto Herança Cultural: Marcando um espaço na cidade, 2014/2015. Foto da autora. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 499 Figura 5: Imagem da intervenção Gravura no Poste realizada pelo Gravurar, 2022. Foto da autora. 500 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A BELEZA É O REINO ONDE AS LUTAS E AS MORTES ACONTECEM: OS RETRATOS E A CORRESPONDÊNCIA DE CÂNDIDO PORTINARI Ramsés Albertoni Barbosa272 – ramses.albertoni@ich.ufjf.br Resumo: O artigo investiga a correlação entre os retratos e a correspondência do artista brasileiro Cândido Portinari com os seus retratados, buscando compreender a fatura de parte da obra do artista por meio de sua correspondência no ambiente intelectual e político, pois temos à nossa disposição um vasto acervo epistolar em que podemos encontrar aspectos da sua personalidade, revelando-nos o espaço de “sociabilidade intelectual” em que viveu, porquanto o estudo da correspondência de artistas, escritores e intelectuais ajuda-nos a compreender os meandros de uma existência, revelando ações e intenções em que nos é possível entrever indícios de experiências sociais. Nessa rede epistolar, artistas, intelectuais, empresários e políticos trocavam experiências e adesões, no intuito de expandir as amizades e as influências. A sociabilidade intelectual construída por meio de uma rede epistolar caracteriza os interlocutores em duas categorias, uma definida como um “jogo de redes”, formais ou informais, em que os intelectuais ocupam posições sociais distintas, por isso, a carta é escrita com a finalidade de alcançar melhores posições ou de se integrar em determinado círculo; a segunda em que prevalece a amizade intelectual, que reforça o relacionamento, pois os missivistas ocupam a mesma posição social e se ligam por preocupações estético-ideológicas comuns. Dessa forma, os retratos de Portinari podem ser analisados como “imagens negociadas” em suas cartas, pois o pintor possui a característica de retocar os traços menos favoráveis dos retratados na intenção de dar “prestígio visual” ao retratado. Palavras-chave: Portinari. Retratos. Correspondência. Paisagem. 272 Professor de Língua Portuguesa. Mestre em Letras (UFRJ) e Comunicação (UFJF). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz Fora. Orientadora: Raquel Quinet. Bolsista Fapemig. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 501 Abstract: This paper investigates the correlation between the portraits and correspondence of the brazilian artist Cândido Portinari with his portrayed, seeking to understand the making of part of the artist’s work through his correspondence in the intellectual and political environment, as we have at our disposal a vast collection epistolary in which we can find aspects of his personality, revealing the space of “intellectual sociability” in which he lived, as the study of the correspondence of artists, writers and intellectuals helps us to understand the intricacies of an existence, revealing actions and intentions where it is possible for us to glimpse evidence of social experiences. In this epistolary network, artists, intellectuals, businessmen and politicians exchanged experiences and adhesions, in order to expand friendships and influences. Intellectual sociability built through an epistolary network characterizes interlocutors in two categories, one defined as a “network game”, formal or informal, in which intellectuals occupy different social positions, so the letter is written with the purpose to reach better positions or to join a certain circle; the second in which intellectual friendship prevails, which reinforces the relationship, as the writers occupy the same social position and are linked by common aesthetic-ideological concerns. In this way, Portinari’s portraits can be analyzed as “negotiated images” in his letters, as the painter has the characteristic of touching up the less favorable features of those portrayed with the intention of giving “visual prestige” to the portrayed. Keywords: Portinari. Portraits. Correspondence. Landscape. O artista Cândido Portinari (Brodósqui, São Paulo, 1903 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1962) foi um pintor, gravador, ilustrador e professor brasileiro cuja produção artística utilizou várias técnicas ao longo do tempo, mas que se manteve coesa em razão de algumas temáticas específicas, como o homem brasileiro e as questões sociais e históricas, exemplificadas nos quadros “O mestiço”, “Lavrador de café”, “Café”, “Os retirantes” e nos murais do Monumento Rodoviário da Estrada Rio-São Paulo e do prédio do Ministério da Educação e Cultura (MEC), no Rio de Janeiro, com temas dos ciclos econômicos do Brasil, incluindo os painéis da Biblioteca do Congresso em Washington D.C., Estados Unidos, com temas da história do Brasil. 502 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Portinari iniciou sua formação artística na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro, em 1920, e após ser premiado, viajou à Europa e estudou diversos estilos artísticos, principalmente as obras de Giotto, Piero della Francesca, Amedeo Modigliani e Pablo Picasso. O artista estreou no Salão de 1922 com o retrato do escultor Paulo Mazzucchelli, que fora premiado com a Medalha de Bronze da XXX Exposição Geral de Belas Artes da ENBA, com o Prêmio de Animação da Galeria Jorge e um prêmio em dinheiro de 500 mil réis. É preciso notar que, na pintura, o retrato está ligado à ideia de mimese, representação, e foi utilizado nas academias e escolas de arte para o aprendizado do ofício e do domínio da técnica. Ao longo de sua carreira Portinari pintou cerca de 680 retratos, retratando os semblantes dos diferentes segmentos da elite intelectual, econômica, cultural e política brasileira. Segundo o escritor Mário de Andrade, as criações de Portinari podem ser compreendidas [...] naquele desprezo por qualquer fantasia pessoal excitante, naquele respeito à verdade secular, naquela obediência ao modelo, naquele artesanato repetidor renascentista que, evitando os palpites de autor, ao mesmo tempo que expõe a realidade do retratado e a eterniza (função mesma do gênero), reconduz o retrato à pintura, a um problema de cor, de luz, de volume, primordialmente técnico. (FABRIS, 1995, p. 31) Na conferência pronunciada no salão do Instituto Francês de Estudos Superiores, em 26 de junho de 1947, Portinari fala da “qualidade intrínseca da pintura”, de valor inegável, portanto, segundo ele, é preciso analisar, não de forma isolada, a técnica e o espírito da obra de arte, pois é a partir da técnica que o artista transmite sua sensibilidade. Para facilitar minha expressão, vou usar uma maneira um tanto arbitrária para expor meu pensamento. Vou desdobrar a sensibilidade em duas categorias: uma que denominarei sensibilidade artística, e a outra, sensibilidade coletiva. A sensibilidade artística só é sentida – em geral – por aqueles que nascem e educam-se com ela. Educa-se com museus, conferências etc. [...] Nem a pintura circunstancial nem a pintura pela pintura bastam para se dirigir às massas. Talvez com a fusão das duas se possa alcançar esse fim. [...] Penso que a segunda sensibilidade poderá ser desenvolvida ao entrar em contato com as massas, auscultando seus desejos. Todos possuem, em maior ou ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 503 menor grau, tanto uma como outra sensibilidade; é claro que os que na vida demonstram vocação devem educar-se para poder atuar. Um pintor não é pintor social simplesmente porque tem vontade de sê-lo, e sim por razões de sensibilidade e educação. (FABRIS, 2011, p. 58) De acordo com o artista, as atividades humanas se relacionam com os acontecimentos históricos, políticos e econômicos. O crítico Mário Pedrosa (2019) pontua, em artigo de 1935, que caso Portinari superasse certos impasses e conseguisse acoplar à preocupação com a linguagem o compromisso com o social, ele representaria a possibilidade de empreender no país uma arte moderna, porquanto os problemas “amadurecem” na mão do artista. Na interpretação marxista de Pedrosa, seria necessário, por meio da técnica e da tradição, que os artistas modernos revolucionários arquitetassem uma “nova arte integral”, síntese do conteúdo e da forma. Esses artistas deveriam se inspirar socialmente no proletariado e guiar-se pelo sentido do materialismo dialético ao manejarem a matéria, as formas e o ritmo de suas criações. Segundo Pedrosa, Portinari Recorreu ao mundo exterior, à tradição do passado e à tradição do presente, modestamente, pacientemente. Trabalhou como um modesto artesão obscuro, atento às regras, obediente ao mestre, das corporações medievais. Não principiou com a morgue do gênio. Não se deixou arrebatar exclusivamente pela soberba da pura intuição. O anjo da inspiração continuou a ser para ele o que é na realidade – uma alegoria emulativa, provavelmente necessária. Um signo corporativo. Ele bateu em todas as portas antigas e modernas. Aos velhos clássicos italianos, para a fatura dos retratos das damas da alta sociedade. Dos mestres antigos holandeses aprendeu a pastosidade das tintas, utilizou-se de grande parte dos componentes do ideal pictórico deles [...] Correu a Chirico, apanhou-lhe certos tons claros, certo desembaraço de fatura, certos jogos de sombras produzidas para dar a distância, formular o espaço, isolar as coisas. Chegou-se a Picasso e assimilou o segredo de seu modelado ciclópico. Rivera, e a amplidão para o afresco. (PEDROSA, 2019, p. 41-43) De acordo com o autor, por meio desse longo percurso, Portinari não imitou outros artistas, mas se deixou influenciar em sua “vontade criadora”, por isso, o maior elogio que poderia fazer ao artista seria 504 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 constatar que diante deste “drama moderno”, Portinari armou a questão, cabendo aos artistas da revolução resolvê-lo. Todavia, Chiarelli (2019) argumenta que Nessa complexa reflexão sobre as contradições da arte burguesa (ou de determinada parte dessa produção, aquela que buscava, mas que não alcançava a síntese desejada), Pedrosa culparia justamente a “vontade criadora” do artista que, ao buscar tal síntese, acabava por isolar um ou outro elemento de sua arte. [...] Mário Pedrosa teria finalizado seu artigo justamente nessa apologia do materialismo dialético aplicado à arte, se não se sentisse obrigado a voltar à figura de Candido Portinari, reapresentando-o ao leitor, agora, como um dos “artistas da revolução”. (CHIARELLI, 2019, p. 31-32) No entanto, a revolução defendida por Pedrosa não viria, pois o percurso de Portinari e do país seriam outros, por isso, o artista construiu uma “modernidade possível”. No Salão de 1931, Mário de Andrade foi ao Rio de Janeiro e conheceu a obra e a pessoa de Portinari: Numa das salas menores havia outro retrato de Manuel Bandeira, sem grande parecença talvez e nenhum brilho; todo em tons baixos, de grande segurança na obtenção dos valores, obra muito boa. Folheei o catálogo. Era um tal de Candido Portinari, artista de que nunca tinha ouvido falar, naturalmente um “novo”. Ao lado havia um outro retrato, Violinista, do mesmo autor; era já uma obra admirável pela composição e a firmeza extraordinária do desenho, e me deixei arrastar pelo entusiasmo. [...] Minha vaidade é a de ter sido dos primeiros a descobrir o valor deste grande artista. Sua obra, ainda que muito cuidada, procurada na técnica e muito afirmativa, obtinha então um respeito passivo e silencioso, mais que uma verdadeira admiração. Por certo não passou por minha imaginação todo o variado e extraordinário caminho que Portinari iria percorrer em seguida, porém o Violinista já era uma obra por si mesma excepcional em nosso meio. Havia nela uma “necessidade” interior impossível de confundir-se com o prazer da novidade e as preocupações de originalidade. E depositei no pintor uma confiança sem reservas. (Revista da Semana, ano XLVII, nº 17, 27/04/1946, p. 15-16) No último artigo que escreveu sobre a obra de Portinari antes de morrer, Mário de Andrade apontou que o artista se tornara antitradicional. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 505 Já com a carreira consolidada, Portinari afirmará que a pintura não deveria copiar o real, ser fotográfica, mas deveria ser composta pela visão que o pintor tem dessa realidade. Quando Portinari afirma que os detalhes, os tipos e os grupos de seus quadros são “arrancados” da realidade e que o conjunto é composto pela sua visão dessa realidade, nos aproximamos da formulação heideggeriana a respeito da origem da obra de arte, haja vista que a obra de arte tem sua origem na verdade como alétheia, porquanto ela é uma consagração e um abrigo cuja claridade permite a visão da essência do homem. Dessa forma, a origem da obra estaria na arte enquanto um acontecer da verdade como des-velamento, um deixar-ser. Heidegger (2001) propõe que a arte deve ser um modo de pensamento original que agencie outro protocolo de leitura das coisas e do mundo, por isso, o autor aborda a criação artística como um ente cujo caráter peculiar se propõe a des-vendar, pois a obra de arte existe de modo tão natural como uma coisa, esse caráter de coisa é o primeiro com que nos esbarramos ao enfrentarmos uma obra de arte. Sendo assim, ao analisarmos a correlação entre os retratos e a correspondência de Portinari com os seus retratados, iremos buscar compreender a fatura de parte da obra do artista por meio de sua correspondência no ambiente intelectual e político, pois temos à nossa disposição um vasto acervo epistolar em que podemos encontrar aspectos da sua personalidade, revelando-nos o espaço de “sociabilidade intelectual” em que viveu, segundo formula Trebitsch (1992). Ao pesquisar a correspondência de Portinari, Arêdes (2015) observou que o fluxo da correspondência do artista aumentou significativamente durante o período do Estado Novo, demonstrando como ele foi se integrando no disputado ambiente artístico-intelectual da década de 1930. É visível o maior número de missivas da década de 1930 se comparado com a década anterior, principalmente entre os anos de 1936 e 1945. É justamente em 1936 que Portinari é convidado pelo então ministro Gustavo Capanema para pintar vários painéis para o novo prédio do MEC, no Rio de Janeiro, com temas dos ciclos econômicos do Brasil. Dessa forma, 506 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 No campo das artes e da arquitetura, o ministério liderado por Gustavo Capanema decidiu fazer da área da cultura um negócio de Estado, atribuindo-lhe um orçamento que permitia a realização de encomendas e criando uma intelligentzia, um corpo tecnicamente qualificado para dar vazão a suas realizações. Inaugurou-se um campo frutífero de possibilidades para intelectuais, artistas e arquitetos – vários dentre eles de orientação modernista –, os quais foram chamados a participar de um regime claramente autoritário. (SIMIONI, 2013, p. 6) Sendo assim, o estudo da correspondência de artistas, escritores e intelectuais ajuda-nos a compreender os meandros de uma existência, revelando ações e intenções em que nos é possível entrever indícios de experiências sociais. Um dos grandes interlocutores de Portinari foi o escritor Mário de Andrade, porém, Miceli (1996) denuncia certo narcisismo por parte do escritor, que não dava tréguas em sua compulsão de desejar sempre novas representações de si. Em carta de 25 de março de 1935, o escritor comenta sobre o seu retrato, pintado por Portinari, comparando-o com o realizado por Lasar Segall, como se divertiu no carnaval paulista e descreve o início do outono em São Paulo, comentando como se sente feliz nesta época do ano. Nessa carta, Mário fala de seus dois pintores preferidos, Portinari e Segall, que retrataram o seu lado angélico e o seu lado diabólico, respectivamente. Nos primeiros meses de 1944, Portinari, assim como fez com o escritor Manuel Bandeira, irá propor a Mário de Andrade a pintura de um segundo retrato durante sua temporada em Petrópolis, pois acha “[...] que o retrato do Manuel ficou bom – é bem o retrato d’ele. Eu gostaria de fazer você; aqui a luz é muito boa para retrato. [...] Gostaria muito de fazer seu retrato aqui” (CP/MA, 26.3.44. Arquivo IEB: CO5804). Contudo, impossibilitado de sair de São Paulo por problemas de saúde, em carta de 6 de abril de 1944, Mário de Andrade escreve a Portinari falando de sua saúde e do excesso de trabalho, que o impedem de ir a Petrópolis, para ter o retrato feito pelo artista, como o do escritor pernambucano. É necessário ressaltar que esse retrato jamais será realizado. A correspondência de Portinari não se limitava apenas aos intelectuais brasileiros. Em março de 1940, a jornalista norte-americana ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 507 Florence Horn escreveu a Portinari informando sobre a exposição da coleção de Helena Rubinstein, em Washington, D.C., que incluía os trabalhos de Portinari, especialmente o retrato de Helena Rubinstein. Essa coleção era constituída por uma coleção de pinturas de artistas franceses modernos e algumas esculturas africanas. Horn comenta que a obra “Morro” fora reproduzida na revista Vogue, e relatou as artimanhas efetuadas para que a obra pudesse ser comprada pelo MoMA de Nova York, que primeiramente fora enviado a um museu no Canadá. Horn prevê que os trabalhos alcançariam grande repercussão, despertando o interesse de museus e galerias em expô-los. Em 18 de julho de 1940, Helena Rubinstein, um dos grandes nomes da indústria de cosméticos, apreciadora e colecionadora de obras de arte, inclusive do trabalho de Portinari, nos Estados Unidos, escreveu uma carta ao artista, acusando o recebimento das fotos dos retratos de Arthur Rubinstein, sua mulher e filhos, diz estar enviando recorte da revista Vogue, onde está reproduzido seu retrato, pintado por Portinari, lamentado que ele não fora impresso em cores na edição, pergunta sobre uma possível exposição, em agosto ou setembro, em Nova York, e por fim, comenta sobre o livro de reproduções de obras do artista, publicado pela Chicago University Press. Rubinstein deixou transparecer, nesta carta, o tom de carinho e admiração que nutria pelo artista brasileiro e seu trabalho. Nessa rede epistolar, artistas, intelectuais, empresários e políticos trocavam experiências e adesões, no intuito de expandir as amizades e as influências. De acordo com Trebitsch (1992), a sociabilidade intelectual construída por meio de uma rede epistolar caracteriza os interlocutores em duas categorias, uma definida como um “jogo de redes”, formais ou informais, em que os intelectuais ocupam posições sociais distintas, por isso, a carta é escrita com a finalidade de alcançar melhores posições ou de se integrar em determinado círculo; a segunda em que prevalece a amizade intelectual, que reforça o relacionamento, pois os missivistas ocupam a mesma posição social e se ligam por preocupações estético-ideológicas comuns. Parte dos assuntos tratados nas cartas trocadas com Portinari dizia respeito à produção de retratos. Mário de Andrade era o mais exigente nas novas representações de si, colecionando vários retratos pin508 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tados por diversos artistas. Sobre o seu retrato, pintado por Portinari, Mário escreverá à poetisa Henriqueta Lisboa para falar sobre o assunto, em 11 de julho de 1941: O Portinari quando se propôs fazer o meu retrato já me queria muito bem e éramos já bem camaradas. E além disso ele tinha por mim um especial e muito agradecido carinho porque no Salão de 1930 [sic], no Rio, [...], eu, depois de um pequeno e passageiro engano com um retrato do Manuel Bandeira, estupefaciente de parecença física feito por um alemão, “descobri” colombicamente e com firmeza descobri o Portinari. Ainda não conhecia o Portinari mas logo, no meio dos sucessos obtidos pelo Cícero Dias e outros, fui afirmando sem discrepância que o bom, que o forte mesmo era o Portinari e o retrato do Borghert o melhor quadro da exposição. É uma coisa aliás de que ele nunca se esquece e conta sempre. (SOUZA, 2010, p. 51-52) O retrato se tornara, em algumas épocas, a principal fonte de renda para alguns artistas, dentre eles Portinari, cujos clientes eram geralmente indivíduos da elite urbana brasileira. Em 1928, Portinari concorreu ao Prêmio de Viagem na XXXV Exposição Geral de Belas Artes, e amealhou o prêmio com o retrato do poeta Olegário Mariano. De acordo com Fabris, os retratos pintados por Portinari, entre 1925 e 1929, trazem a marca de um duplo registro, pois Se, no desenho datado de 1925, o poeta estava sob o signo de Ingres, em sua representação quase de corpo inteiro (1926), os modelos são outros: os retratos de Théodore Duret e Antonin Proust, realizados por Édouard Manet em 1868 e 1880, respectivamente, e os retratos mundanos de James Whistler, John Singer Sargent e Giovanni Boldini. Enquanto no desenho o modelo ganha um aspecto intemporal, na tela de 1926 o centro de interesse está numa visão altamente contemporânea, haja vista o destaque dado ao traje do poeta e a seu penteado. Intemporais também, e marcadas por uma concepção sintética do rosto do modelo, são as representações de Olegário Mariano em 1926, 1927 e 1929. O desenho de 1926 parece servir de molde aos óleos de 1927 e 1929, nos quais o poeta é captado com uma pincelada mais enxuta, embora não isenta de certa densidade matérica, como no caso da obra que integra o acervo da Academia Brasileira de Letras. (FABRIS, 2011, p. 11) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 509 No retrato premiado de Olegário Mariano, Portinari encontrou uma “solução de compromisso”, conforme a autora, cujo modelo é idealizado e segue as regras acadêmicas, tendo em conta que o pintor precisava responder às demandas acadêmicas da ENBA, cumprindo assim as etapas necessárias ao seu reconhecimento artístico. A esse respeito, em artigo publicado no jornal A Província, Manuel Bandeira comentou sobre a má qualidade das obras que foram apresentadas no Salão, ressaltando, porém, as qualidades de Carlos Oswald e de Portinari. Bandeira comenta igualmente a respeito dos critérios injustos adotados pelo júri da ENBA, que não premiou Portinari, anteriormente, em razão das tendências modernas do artista, mas concedeu-lhe a premiação, agora, graças a algumas concessões que o artista fez. É preciso ponderar, apesar disso, que esse reconhecimento artístico é uma via de mão dupla, pois se o artista o almejava, a elite política e intelectual retratada buscava, outrossim, a sua legitimação visual. À vista disso, os retratos de Portinari podem ser analisados como “imagens negociadas” em suas cartas, na conceituação de Miceli (1996), pois o pintor possui a característica de retocar os traços menos favoráveis dos retratados na intenção de dar “prestígio visual” ao retratado. O escritor Mário de Andrade pontua, no entanto, que os retratos de Portinari derivam “[...] dos afetos do artista, das suas amizades, não parte de nenhuma preocupação financeira. [...] Distribui quadros como nenhum outro artista, da mesma forma como recusa remunerações” (ANDRADE, 1984, p. 72). Nada obstante, a questão não é tão simples como parece. Ao estudar os retratos de Portinari, Miceli (1996) assinala que foi possível aclarar o relacionamento de um paradigmático artista brasileiro moderno com as elites, deslindando as mediações da produção dos retratos e interpretando o [...] sistema de mediações entre as necessidades e investimentos das elites em matéria de representações artísticas e as modalidades de expressão simbólica elaboradas pelos artistas profissionais em resposta às energias sociais canalizadas para esse domínio especializado da produção de bens culturais. (MICELI, 1996, p. 139-140) 510 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 É mister ressaltar que a elite urbana brasileira era constituída, na época, por representantes do “capitalismo dependente” brasileiro, de acordo com Fernandes, que se inicia por volta de 1880, pois “[...] graças ao café e à associação direta com o capital financeiro mundial, os homens de negócios transformaram a oligarquia paulista em uma complicada floração do capitalismo competitivo dependente” (FERNANDES, 1975, p. 221). Dessa forma, os setores arcaicos dessa oligarquia eram tão burgueses quanto os setores mais liberais. Sendo assim, o equacionamento desse esquema compositivo da “fórmula portinaresca” (MICELI, 1996) vai se dar por meio da capacidade do artista em atender aos anseios de representação simbólica da elite brasileira que se converteram em chancela de prestígio e requinte, cuja “mágica do retrato” fundiu na mesma representação os conteúdos particulares do artista às significações de um projeto político nacional da burguesia urbana em ascensão. Por isso, é essencial que se compreenda a experiência dos artistas para com as novas formas de dominação às quais se defrontaram a partir segunda metade do século XIX, na Europa, e início do século XX, no Brasil. Nesse mercado de bens culturais, a imprensa era um ator importante, como foi possível perceber pelos textos publicados nos jornais e revistas da época, sobre Portinari, por Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Mário Pedrosa. Segundo Bourdieu, O desenvolvimento da imprensa é um indício, entre outros, de uma expansão sem precedente do mercado dos bens culturais, ligada por uma relação de causalidade circular ao afluxo de uma população muito importante de jovens sem fortuna, oriundos das classes médias ou populares da capital e, sobretudo da província, que vêm a Paris tentar carreiras de escritor ou de artista, até então mais estreitamente reservadas à nobreza ou à burguesia parisiense. (BOURDIEU, 1996, p. 70) Coube à imprensa a tarefa de exercer os efeitos daquilo que Bourdieu (2013) qualificou como “dominação estrutural”, pois a abordagem bourdiana de classe incorpora sua compreensão relacional da vida social, haja vista que a realidade social consiste de relações materiais e simbólicas que existem sob duas formas principais, quais sejam, os conjuntos de posições objetivas que os atores sociais ocupam, deterANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 511 minando sua percepção e ação; e os esquemas mentais de percepção e apreciação do mundo vivido, articulados em camadas que compõem o habitus. Os grupos sociais, e notadamente as classes sociais, existem de algum modo duas vezes, e isso antes mesmo de qualquer intervenção do olhar científico: na objetividade de primeira ordem, aquela registrada pela distribuição das propriedades materiais; e na objetividade de segunda ordem, aquela das classificações e das representações contrastantes que são produzidas pelos agentes na base de um conhecimento prático das distribuições tal como se manifestam nos estilos de vida. Esses dois modos de existência não são independentes, ainda que as representações tenham certa autonomia em relação às distribuições: a representação que os agentes se fazem de sua posição no espaço social [...] é o produto de um sistema de esquemas de percepção e de apreciação (habitus) que é ele mesmo o produto incorporado de uma condição definida por uma posição determinada quanto à distribuição de propriedades materiais (objetividade 1) e do capital simbólico (objetividade 2) e que leva em conta não somente as representações (que obedecem às mesmas leis) que os outros têm dessa mesma posição e cuja agregação define o capital simbólico (comumente designado como prestígio, autoridade, etc.), mas também a posição nas distribuições retraduzidas simbolicamente no estilo de vida. (BOURDIEU, 2013, p. 111) Assim sendo, é preciso reconhecer que as classes sociais moldam a sua representação através da injunção de categorias de percepção que contribuem para forjar a realidade social. Miceli (1996) aponta que os retratos de Portinari parecem dois quadros, já que possuem uma superposição de duas regiões distintas, em que a área do retratado obsta a visão da paisagem ao fundo, em que a figura do retratado se localiza num “lugar de passagem”, uma “estação de repouso”, cujo olhar nos convida a observar o cenário ao redor. A respeito da presença da paisagem em seus retratos, Portinari explicou que ela possui [...] íntima relação com o retrato, de que é elemento essencial. Zuloaga, o grande pintor espanhol, o maior pincel do mundo, reproduz, continuamente em suas telas de figura trechos regionais, onde faz viver a alma da Espanha. Aqui, em que o sol é vibrante e as cores são de belíssima intensidade, o fator paisagem seria primoroso em qualquer retrato. (“O momento na pintura”, A Manhã, 3/7/1926) 512 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A palavra paisagem vem da palavra francesa paysage, derivada do latim pago; pagus, termo que significava distrito, cantão, província ou o país, designando uma unidade territorial. De acordo com Maderuelo (2005), a palavra paisagem aparece primeiramente na China, no século VIII, espalhando-se pelo Oriente. Na Europa, o conceito e sua noção surgem no século XV, durante o Renascimento, e está ligado ao surgimento da subjetividade moderna, uma vez que ao observarem o seu entorno, os artistas começaram a representá-lo em suas pinturas por meio de uma “escola do olhar”. À vista disso, A paisagem não é […] o que está aí, diante de nós, é um conceito inventado ou, melhor, uma construção cultural. A paisagem não é um mero lugar físico, e sim o conjunto de uma série de ideias, sensações e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e seus elementos constituintes. A palavra paisagem […] reclama também algo mais: reclama uma interpretação, a busca de um caráter e a presença de uma sensibilidade. […] A ideia de paisagem não se encontra tanto no objeto que se contempla como na mirada de quem contempla. Não é o que está a sua frente e sim o que se vê. (MADERUELO, 2005, p. 38) Cauquelin (2007) pontua de que maneira a paisagem fora idealizada e reproduzida como o equivalente da natureza, inaugurando uma prática pictórica que influenciou nossas categorias cognitivas e espaciais, principalmente com a longa elaboração das leis da perspectiva, cujo tecido reticular é ao mesmo tempo frágil e resistente, por isso, O “tema” do quadro bem que poderia ser a própria pintura, e, particularmente, o vínculo que a cor e a forma introduzem entre objetos: simples disposição das “coisas da natureza” numa moldura. Os olhos dos personagens pintados se desviam para deixar a natureza se expressar. Não temos necessidade deles para “ver” a paisagem, doravante nós mesmos a veremos. Ela foi descoberta. (CAUQUELIN, 2007, p. 91) É preciso ressaltar que, para que a paisagem ocorra, são necessárias duas operações, quais sejam, o “enquadramento”, subtraindo ao olhar parte da visão, e o “jogo de transportes” entre os 4 elementos da natureza. Ao vermos o nosso entorno como paisagem acabamos sabendo coisas profundas sobre nossa cultura, haja vista que as técnicas de ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 513 representação são um marco em nossa cultura visual, o mundo ocidental anterior à perspectiva renascentista não é o mesmo desde o século XV. Segundo a autora, Parece que se deu um salto que leva mais longe que a mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e dos objetos, que é um salto de outra espécie: uma ordem que se instaura, a da equivalência entre um artifício e a natureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com efeito, justamente “da natureza”. A imagem, construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que ela seria a imagem. Legítima, a perspectiva também é chamada de artificial. O que, então, é legitimado é o transporte da imagem para o original, uma valendo pelo outro. Mais até: ela seria a única imagem-realidade possível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a natureza. (CAUQUELIN, 2007, p. 38) Sendo assim, a perspectiva paisagística é uma “forma simbólica” que não se limita tão-somente à arte, mas envolve o conjunto de nossas construções mentais e todas as atividades humanas. Contra os ataques que sofrera, Motta (1970) faz a defesa da paisagem nos retratos de Portinari, especificamente no retrato de sua avó, Maria Torquato, de 1957, obra que foge do padrão portinaresco de retrato. Segundo o autor, nesse quadro, o fundo e a roupa da retratada são compostas de áreas geométricas coloridas e superpostas, exceção nas pinturas de Portinari, por isso, Motta identifica um sistema de “fechamentos que se abre como totalidade”, considerando-se que O exame da realidade (construtiva) dessa tela nos mostra que figura e fundo, homem e meio, espírito e natureza, forma e conteúdo, não precisam, necessariamente, de coexistirem pela “fusão”, onde as coisas se borram, diluem-se, integram-se. Seria esta a tendência mais a gosto dos naturalistas, interessados apenas num único elemento, a luz, por exemplo, como entidade capaz de tudo fundir na indeterminação. Na verdade, elementos aparentemente desligados, coexistem pela comunicação de caráter estrutural, dinâmica e de significação humana. Não são realidades independentes que vivem isoladas; são elementos de passagem, onde o fundo participa da figura e a figura do fundo, dialeticamente. (MOTTA, 1970, p. 14) 514 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O clima “poético e onírico” de algumas telas de Portinari será um estilo a ser incorporado em seus retratos, inclusive desde as individuais do artista em 1934, preenchendo o fundo da composição com fragmentos de paisagens constantes em suas obras “populares” que agradavam os seus clientes, oriundos da elite urbana. Esses fragmentos constituem, consoante Cauquelin, “[...] uma operação a priori, isenta de toda intenção particular. Ela é patente, porque é condição de satisfação do enunciado ‘paisagem’”(CAUQUELIN, 2007, p. 138). Esses fragmentos remetem à natureza domesticada, cuja paisagem coloca entre o retratado e o espectador o análogon civilizado, preenchendo a satisfação retórica de notabilidade da elite retratada. Por fim, foi-nos possível perceber, ao longo desse estudo, que os retratos de Portinari são mais que uma simples coisa, no formular heideggeriano, já que a realidade se apresenta para o artista como algo complexo que exige decifração. Dessa forma, a obra põe em presença um mundo que é a consciência do homem de sua existência e de sua posição no meio de outros seres existentes, o homem faz-se consciente de seu destino histórico, e a paisagem de fundo nos retratos de Portinari é a apresentação cultural daquilo que nos envolve, porquanto a obra de arte não é completa por si mesma, separadamente, só existe dentro de um conjunto de relações que transcendem sua entidade concreta, para integrá-la no mundo que a rodeia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A MANHÃ. Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Disponível em: http://memoria.bn.br. Acesso em: 2 mar. 2021. ANDRADE, M. Cândido Portinari – um estudo inédito. Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 20, 1984, p. 67-88. 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Acesso em: 2 fev. 2021. 516 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 SOUZA, E. M. (org.). Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Editora Peirópolis: Edusp, 2010. TREBITSCH, Michel. Correspondances d’intellectuels: les cas de letters d’Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947). Les Cahiers de l’IHTP, nº 20, mars 1992. s/p. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 517 AS CASAS-MUSEUS COMO DIMENSÃO PATRIMONIAL NA CONTEMPORANEIDADE A FUNDAÇÃO EMA KLABIN E O MUSEU LASAR SEGALL COMO ARTICULADORES DA DINÂMICA DE PRESERVAÇÃO Roberta Mendes de Sá273 - roberta.msa@hotmail.com Resumo: A presente pesquisa pretende analisar as casas-museus como fontes de preservação histórica e artística e como devem se articular como instituições culturais para manter a tradição e acompanhar a dinâmica do cenário contemporâneo. Este Projeto de Pesquisa tem como objetivo geral analisar as casas-museus Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall, localizados na cidade de São Paulo, com relação às suas trajetórias biográficas e culturais, histórias de suas personalidades e coleções. Os objetivos específicos são: compreender a importância das casas-museus para a preservação do patrimônio histórico e artístico; refletir sobre as questões que interferem no desenvolvimento das mesmas; relacionar a dinâmica da contemporaneidade e suas mutações com a preservação das casas-museus e sua memória. A Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall se transformaram em museus pela importância histórica e artística e são também remanescentes dos antigos estilos de moradia na cidade de São Paulo. A metodologia utilizada empregou a pesquisa bibliográfica referente aos conceitos de casa-museu e preservação do patrimônio; histórico sobre a Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall; pesquisas de campo com entrevistas qualitativas junto aos responsáveis pelas instituições analisadas e observações de como se reestruturam no cenário cultural. Palavras-chave: Casas-Museus; Contemporaneidade; Fundação Ema Klabin; Museu Lasar Segall; Tradição. 273 Esta publicação faz parte da pesquisa de Mestrado em História da Arte intitulada “As casas-museus como dimensão patrimonial na contemporaneidade: A Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall como articuladores da dinâmica de preservação”, orientada pela Prof.ª Dra. Ilana Seltzer Goldstein e pela Prof.ª Dra. Ana Letícia Fialho, desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. 518 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Abstract: This research intends to analyze the house-museums as sources of historical and artistic preservation and how they should be articulated as cultural institutions to maintain tradition and follow the dynamics of the contemporary scenario. This Research Project has as general objective to analyze the Ema Klabin Foundation and Lasar Segall Museum house-museums, located in the city of São Paulo, in relation to their biographical and cultural trajectories, histories of their personalities and collections. The specific objectives arte: to understand the importance of house-museums for the preservation of historical and artistic heritage; reflect on the issues that interfere with their development; relate the dynamics of contemporaneity and its mutations with the preservation of house-museums and their memory. The Ema Klabin Foundation and the Lasar Segall Museum were transformed into museums due to their historical and artistic importance and are also remnants of the old styles of housing in the city of São Paulo. The methodology used used bibliographical research referring to the concepts of house-museum and heritage preservation; background on the Ema Klabin Foundation and the Lasar Segall Museum; field research with qualitative interviews with those responsible for the analyzed institutions and observations of how they are restructured in the cultural scenario. Keywords: Contemporary; Ema Klabin Foundation; Houses-museums; Lasar Segall Museum; Tradition. INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo estudar as características da Fundação Ema Klabin e do Museu Lasar Segall, fazendo parte da dissertação de Mestrado em História da Arte, considerando-se os históricos, trajetórias e como se desenvolvem, permitindo ao público a percepção de suas personalidades fundadoras e como este legado é transmitido às novas gerações. O cenário contemporâneo em constante transformação constitui-se como um desafio para a sobrevivência das casas-museus, que devem integrar o passado e o presente em suas ações de forma a dialogar com os diferentes públicos. O problema de pesquisa é: “Como as casas-museus Fundação ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 519 Ema Klabin e Museu Lasar Segall se articulam como instituições culturais para manter a tradição e acompanhar a dinâmica do cenário contemporâneo, considerando-se as suas semelhanças e particularidades?” As hipóteses se concentraram no fato de que ao se analisar as casas-museus Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall percebeu-se a possibilidade de investigar como a preservação do patrimônio e das coleções artísticas foi integrada ao ambiente contemporâneo por meio de práticas que unissem a museografia às demandas de um ambiente cultural e social em transformação. O objetivo geral desta Pesquisa é analisar as casas-museus Fundação Ema Klabin e Museu Lasar Segall, localizados na cidade de São Paulo, com relação às suas trajetórias biográficas e culturais, estrutura, gestão educativa, histórias de suas personalidades e coleções, assim como as contribuições destas instituições para a História da Arte no Brasil. Os objetivos específicos são: compreender a importância das casas-museus para a preservação do patrimônio histórico e artístico; refletir sobre as questões que interferem no desenvolvimento das mesmas; relacionar a dinâmica da contemporaneidade e suas mutações com a preservação das casas-museus e sua memória; articular alternativas de sobrevivência das casas-museus que preservem a essência original. A metodologia utilizada compreende a pesquisa bibliográfica referente aos conceitos de casa-museu e preservação do patrimônio; histórico sobre a Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall; desdobramentos da dinâmica das casas-museus no ambiente contemporâneo, através da observação dos projetos que realizam. As pesquisas de campo com entrevistas qualitativas junto aos responsáveis pelas instituições analisadas compreendem a dinâmica das casas-museus no ambiente contemporâneo, através da observação dos projetos que realizam e de como se reestruturam no cenário cultural. 1. AS CASAS-MUSEUS A Fundação Ema Klabin e o Museu Lasar Segall conservam as características principais dos imóveis de seus antigos moradores, contendo a atmosfera da época em que lá viveram, tendo sido adaptados 520 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 como casas-museus para a visitação pública. Dentro dos grupos dos museus, existem os museus-casas, que se referem à moradia de uma personalidade que contribuiu para a cultura de um determinado lugar, havendo a preservação de suas características principais, como mobiliário e objetos, e a memória de quem o representa. No caso específico dos museus-casa, o desafio do discurso expositivo será o de conciliar a celebração, a evocação e a memória de seus moradores com a vinculação que esses personagens estabeleceram com seu tempo e seu território. Assim, a concepção de um museu-casa não deve privilegiar apenas e tão somente a reverência biográfica a seus moradores, mas muito além disso, por intermédio dos objetos, agora ressignificados como objetos históricos, referenciar-se a problemas históricos inerentes aos vetores de significação que lhes são atribuídos como expressões materiais que reproduzem os conflitos e as condições sociais que nos permitem (re)conhecer a estruturação, funcionamento e, sobretudo, as permanências e transformações de uma sociedade. (KASEKER, 2014, p. 24-25) Kaseker (2014) acredita ainda que o museu-casa deve conter em seu perfil institucional as conexões com o território em que habita, construindo uma memória coletiva para a compreensão da memória social. Afonso e Serres (2016) ressaltam que uma casa-museu deve manter viva a memória de seu homenageado. O primeiro objeto de estudo é a Fundação Ema Klabin, uma instituição cultural privada, que foi a residência da empresária e colecionadora Ema Klabin. O segundo objeto de estudo é o Museu Lasar Segall, que é uma instituição cultural pública, antiga residência do artista Lasar Segall. É importante compreender que a instituição cultural busca ressignificar o espaço que já foi uma antiga residência, que se modificou para dar espaço a este novo ambiente e que possui o desafio de evocar a personalidade fundadora em suas ações. 2. A FUNDAÇÃO EMA KLABIN 2.1 HISTÓRICO DE EMA KLABIN E DA FUNDAÇÃO ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 521 Costa (2007) narra que Ema Klabin nasceu em 25 de janeiro de 1907, no Rio de Janeiro, filha de Hessel Klabin e Fanny Gordon Klabin, imigrantes lituanos de origem judaica. Era sócia-gerente da empresa Klabin Irmãos & Cia, e possuía um gosto por viagens e pelo colecionismo de obras de arte, que se iniciou em 1947. Ema não se preocupava com as convenções sociais ainda destinadas às mulheres no início do século XX, como casamento, filhos e cuidados com o lar, dedicando-se aos projetos sociais, aos negócios da família e possuía grande interesse pela literatura, obras de arte, viagens e apresentações musicais. A Figura 1 apresenta Ema Klabin com seu estilo aristocrático e o destaque dos cabelos pretos com a mecha branca, sendo perceptível a sua personalidade inquieta e aberta aos novos conhecimentos. Com o falecimento da mãe de Ema, D. Fanny, em 1926, e o casamento da irmã Eva em 1933, esta passou a acompanhar o pai nos negócios e viagens e a cultivar o gosto pela decoração. (Ibid., 2007). No início da década de 1950, teve início a construção da casa no Jardim Europa, com Ema se dedicando ao colecionismo, realização de jantares e recepção de personalidades em sua residência. (Ibid., 2007). Em companhia da irmã, Eva, Ema realizava viagens pelo mundo, compartilhando do gosto pelo conhecimento de diversas culturas e aquisição de obras de arte. Ema Klabin faleceu em 27 de janeiro de 1994, aos 87 anos, permitindo em seu testamento que a residência e a coleção se transformassem em uma instituição cultural aberta ao público. Costa (2017), explica que em 1997 a Fundação Ema Klabin iniciou as suas atividades, possibilitando o estudo e difusão do acervo, sendo aberta à visitação somente em 2007. A Fundação Ema Klabin, localizada na Rua Portugal, no bairro dos Jardins, na cidade de São Paulo, possui uma área total de 4.000 m², sendo que a casa tem cerca de 900 m² de área construída, conforme Costa (2007). Há uma liberdade na mistura de épocas, estilos e materiais, seguindo o modelo das residências luxuosas europeias e com inspiração no Palácio de Sanssouci, em Postdam, Alemanha. 522 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A casa-museu Fundação Ema Klabin é formada pela galeria, biblioteca, sala de jantar, sala de estar, quarto de hóspedes, quarto de dormir e o jardim, com diversas espécies de plantas. O jardim, conforme elucida Costa (2014), foi projetado pelo paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), em 1956, sendo modificado para se adequar ao gosto de Ema. As espécies também eram trazidas das viagens realizadas, o que influenciou nas adaptações realizadas neste espaço ao longo dos anos. Costa (2007) caracteriza a coleção de Ema Klabin em quatro diferentes períodos na trajetória das aquisições: tradição clássica europeia; peças do Brasil colonial e imperial; obras do modernismo brasileiro em sua maior parte; última fase composta por peças de grande valor que voltam para temas anteriores, especialmente o europeu, e trazendo um novo direcionamento para a coleção. Costa (2021) comenta que, de acordo com o Estatuto da Fundação Ema Klabin, o acervo não pode ser descartado e nem alterado, sendo opção da casa-museu preservar os ambientes. Assim, a coleção é fechada e não inclui novas aquisições. Assim, houve todo o processo de catalogação do acervo e adaptação dos espaços para a abertura da casa-museu, que forma uma tríade cultural na região dos Jardins, nas proximidades com o MIS (Museu da Imagem e do Som) e o MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e da Ecologia). 2.2 A FUNDAÇÃO EMA KLABIN NA CONTEMPORANEIDADE Durante a entrevista realizada, Costa (2021) explicou a adaptação da residência para a casa-museu: “Alguns objetos pequenos foram removidos, proteções de acrílico foram colocadas e os tapetes foram removidos para circulação. A parte de serviços foi adaptada para a casa-museu; o canil, a caldeira e a copa não foram preservados. Havia um pátio externo, que recebeu a cobertura e o piso.” A área que atualmente é a sala do educativo era a antiga garagem, enquanto que a sala dos cursos era a área de serviços da residência. Costa (2021) explica que a Fundação apresenta os seguintes ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 523 dados: Biblioteca com 3.554 volumes; arquivos com 7.000 documentos e 2.133 fotografias. A Reserva Técnica possui itens do acervo, mas grande parte permanece em exposição, mantendo os ambientes de forma original. A Figura 2 apresenta a fachada da Fundação Ema Klabin, após a reabertura para as visitas presenciais em 2021, encerradas em março de 2020, devido à pandemia causada pelo vírus da COVID-19. Dessa forma, as ações passaram a ser realizadas de forma online, sendo que os cursos, palestras e espetáculos aumentaram devido a esse formato, mas Costa (2021) acredita que não surgiram novos públicos, sendo os mesmos que já conheciam a casa-museu, permitindo que pessoas de outras regiões tivessem acesso aos eventos. A Figura 3 apresenta a galeria da Fundação Ema Klabin em 2021, sem os tapetes que ficavam em todo o corredor. Há uma diversidade dos objetos presentes na coleção, com a galeria estabelecendo uma comunicação entre todos os ambientes do imóvel, que é totalmente térreo. Costa (2021) afirma que: “Os recursos para manutenção foram deixados por Ema, recebendo doações da empresa Klabin para a Fundação Ema Klabin e Fundação Eva Klabin; editais e leis de incentivo, além dos recursos de ingressos e locação do espaço, que ocorre mais para eventos empresariais, seguindo regras específicas para o uso externo, que pode incluir também a visitação à casa-museu”. Assim, a casa-museu pode ampliar a sua atuação, não apenas para a aquisição de recursos, como também para a descoberta de novos usos do espaço, permitindo a exploração por diferentes públicos. Para Silva (2021), a presença de Ema Klabin é evocada de todas as maneiras, havendo a domesticidade abordada de diversas formas, ressaltando-se a biografia nas visitas, com o cuidado de não serem tecidos elogios à fundadora, transmitindo a origem da casa-museu e a atuação desta, trazendo para o presente a sua personalidade e atuação. Percebe-se a importância do Educativo para inserir os públicos no contexto da casa-museu, permitindo que Ema Klabin possa ser conhecida e evocada dentro do ambiente, assim como seus hábitos e estilos, trazendo assim a percepção a respeito de sua personalidade. 524 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 3. O MUSEU LASAR SEGALL 3.1 HISTÓRICO SOBRE LASAR SEGALL E A FORMAÇÃO DO MUSEU Beccari (1984) narra que Lasar Segall nasceu em 21 de julho de 1891, na cidade de Vilna, capital da Lituânia. Filho de Abel Segall e Esther Ghodes Segall, Lasar cresceu em um ambiente tradicionalmente judaico. Hoffmann (2017) relata que Lasar Segall, ainda com 15 anos, saiu de Vilna para estudar em Berlim, de 1906 a 1910. Fundou a Secessão de Dresden de 1919. Mudou-se com a primeira esposa Margarete para o Brasil, em 1924. Em São Paulo, participou intensamente da vida artística e cultural da cidade entre 1920 e 1930. Em 1924, Segall e Margarete se separaram, sendo que esta não se adaptou à vida em São Paulo e retornou à Alemanha. Em 1925, Segall naturalizou-e brasileiro e casou-se com Jenny Klabin, sendo um momento que influenciou a sua forma de pintar, com paisagens coloridas, formas arredondadas e um expressionismo mais sereno, identificando-se também com a marginalidade social e racial do negro brasileiro, segundo Beccari (1984). A Figura 4 traz a obra “Encontro” (1924), que para Schwartz e Monzani (2010), representa um autorretrato com um símbolo da integração de Segall à vida brasileira. É provável que esta obra tenha se originado a partir de uma fotografia de 1919, do dia do casamento de Segall com Margarete, em Dresden. A pele do artista representa o negro brasileiro, havendo uma síntese entre a Europa e o Brasil. Segall costumava se personificar em suas obras, parecendo trazer as sensações vivenciadas pelos grupos apresentados, como se percebesse as mesmas dores, angústias e expectativas, havendo uma identificação com os indivíduos marginalizados. Na Figura 5 observa-se Lasar Segall e Jenny Klabin durante a lua-de-mel em Poços de Caldas (MG), em 1925. A cumplicidade e o apoio eram evidentes entre ambos, perdurando durante toda a vida. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 525 Beccari (1984) conta que de 1928 a 1932, Segall e Jenny residiram em Paris junto aos filhos Mauricio e Oscar. Ao regressarem, fixaram residência em São Paulo, na casa da Rua Afonso Celso, projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, casado com Mina Klabin (irmã de Jenny). Um momento marcante para a carreira de Segall foi a formação da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), com o intuito de reaproximar os artistas e o público da arte moderna, sendo um de seus fundadores e principal animador, incluindo outros artistas e intelectuais da sociedade paulistana. A SPAM durou de 1932 a 1934, de acordo com Beccari (1984). A partir da década de 1940, Segall, M. L. A. (1991), analisa que, após a extinção da SPAM, Segall se volta para a sua obra pictórica, incluindo as angústias da condição humana e temas que afetavam o povo judeu, como o nomadismo e o Holocausto. No final da vida, como que se afastando “das dores do mundo”, Segall concentrou-se no bucolismo das florestas de Campos do Jordão e na placidez serena dos retratos: o refúgio final de quem vivenciara e expressara as vicissitudes e percalços da condição humana neste atribulado século XX. (SEGALL, M. L. A., 1991, p. 35) Em 02 de agosto de 1957, Segall faleceu em sua casa da Rua Afonso Celso, em São Paulo, conforme Beccari (1984). Segall (2001) explica que sua mãe, Jenny Klabin, muito abalada após o falecimento de Segall, decidiu por catalogar as obras e documentos no ateliê, se preocupando também em resgatar as obras que estavam desaparecidas. Assim, surgiu a vontade em transformar a residência da família em uma casa-museu aberta ao público. A vontade de Jenny Klabin em difundir a obra de Lasar Segall envolveu não apenas a fundação da casa-museu, mas também a recuperação e aquisição das obras, o cuidado com o acervo e legado do artista, acreditando que merecesse ser reconhecido por sua importância na História da Arte pelos temas abordados e formas de expressão. Jenny Klabin Segall faleceu em 05 de agosto de 1967, de acordo com Beccari (1984), após ter organizado e acompanhado uma turnê 526 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de exposições sobre as obras de Lasar Segall pelos principais museus europeus. Idealizado por Jenny Klabin Segall, viúva do artista, o Museu foi criado pelos filhos Mauricio Segall e Oscar Klabin Segall em 1967. O acervo atual teve início com a doação da família à Associação Museu Lasar Segall que, em dezembro de 1984, se transformou no Museu Lasar Segall, hoje uma entidade do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), órgão do Ministério da Cultura. (SCHWARTZ; MONZANI, 2010, p. 5) Segall, M. L. A. (1991) comenta que o Museu Lasar Segall foi efetivamente aberto ao público em 22 de setembro de 1973, contendo o cinema, biblioteca e o oferecimento de cursos. Durante a década de 1970, foram realizadas parcerias para a exibição de filmes e cursos destinados aos colégios da região, funcionários das empresas próximas, operários do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, e para os internos da unidade da Febem (Fundação do Bem Estar do Menor) que havia nas proximidades do museu. Caires (2021) informa que as obras no imóvel duraram cerca de 30 anos, pois não era propício para virar um museu, necessitando da estruturação técnica. O ateliê quase não se alterou, pois foi refeita a estrutura mais própria do original. O desafio em preservar o imóvel da forma como a personalidade fundadora o habitou, transformando-o em instituição cultural aberta aos diferentes públicos, permite que cursos, espaços expositivos e atividades educativas, de pesquisa e culturais evoque a presença da personalidade que ali habitou. Segall (2001) compreende que o Museu Lasar Segall propiciou o desenvolvimento do potencial criativo de seus visitantes, muitas vezes com suas potencialidades alienadas, fazendo com que o exercício da sensibilidade artística tornasse o ser humano mais completo. Caires (2021) opina que: “O museu é um dispositivo de comunicação, que é ativado a cada visita de um espectador: exposições, mediação, cursos de gravura, visitantes do museu. Mauricio Segall acreditava que o museu ajudaria a que o espectador ampliasse a sua visão e sensibilidade, permitindo uma democracia entre todos os funcionários a cada reunião”. Percebe-se a importância de dar voz aos funcionários, conforANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 527 me a proposta de Mauricio Segall, fazendo com que o museu se transformasse em um organismo vivo, formado por pessoas e não apenas pelo acervo. Camargo (2021), em seu depoimento para a pesquisa, afirma: “Mauricio fez o museu pelo amor que ele tinha pelo pai e pelo amor que a mãe tinha pelo pai.” 3.2 O MUSEU LASAR SEGALL NA CONTEMPORANEIDADE Entre 2020 e 2021, devido à pandemia causada pelo vírus da COVID-19, o museu permaneceu fechado por diversos meses, contando com a programação online de palestras, cursos, divulgação de materiais para serem baixados através do site do Museu Lasar Segall (www. mls.gov.br), informações a respeito da instituição e obras do artista. Foi possível atingir a uma maior quantidade de públicos, que não poderiam participar presencialmente dos eventos, conforme Caires (2021). Caires (2021) acredita que: “A imagem de Lasar Segall e suas obras tratam a todo momento de sua personalidade. Há obras na Reserva Técnica que ainda não foram expostas. O curador constrói uma narrativa sobre Lasar Segall a cada exposição, aberta a interpretações. É um museu que engloba a arte, o modernismo brasileiro e permite questionar estas narrativas, pois Segall deixou a casa-museu, mas outros artistas não tiveram esse privilégio.” Assim, as casas-museus são reinterpretadas a cada visita e a cada exposição, mostrando aos públicos aquela personalidade que lá habitou e a sua importância histórica e social. Camargo (2021) destaca que, por decisão do museu, as exposições de Segall deveriam ser de longa duração, não sendo caracterizadas como permanentes. Os diretores contemporâneos abriram espaços para as exposições temporárias de outros artistas no Museu Lasar Segall. A Figura 6 apresenta a fachada do Museu Lasar Segall em 2021, após a abertura para os eventos presenciais. Percebe-se que a casa mantém as características da arquitetura modernista, mas foi adaptada para se tornar uma instituição cultural aberta ao público, evocando a memória e a arte de Lasar Segall. 528 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa está em andamento, mas pode-se observar a importância do desenvolvimento de ações da curadoria, educativo e cursos em cada instituição, assim como o estabelecimento de canais com outras casas-museus, através do empréstimo de obras, participação em encontros e debates sobre os rumos das mesmas. Dessa forma, a evocação da personalidade que residiu no imóvel é feita através destas ações, considerando-se que não é mais uma residência, mas sim uma instituição cultural aberta ao público e que deve estar atenta aos diversos públicos e possibilidades de atuação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, Micheli Martins; SERRES, Juliane Conceição Primon. 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Fonte: ALMEIDA (2014, p. 56) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 533 Figura 5: Lasar Segall e Jenny em Poços de Caldas (MG), 1925. Fonte: BECCARI (1984, p. 7) Figura 6: Fachada do Museu Lasar Segall em 2021. Fotografia realizada em 25 set. 2021, através do celular. Fonte: Acervo pessoal, 2021. 534 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 CONJECTURAS ACERCA DE UMA INFLUÊNCIA DAS ARTES CÊNICAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE TICIANO DOS MITOS PARA FERRARA Tânia Kury Carvalho274 – taniakury@yahoo.com Resumo: Esta comunicação baseia-se em um estudo sobre a possibilidade da influência da linguagem corporal das artes cênicas sobre as representações mitológicas de Ticiano. O questionamento é justificável porque a figuração das mitologias para o Gabinete de Alabastro, feita por Ticiano de 1518 a 1524, apresenta características muito diferentes tanto de suas pinturas anteriores, quanto das mitologias pintadas por outros artistas para a família Este. A questão parece conveniente porque as pinturas para o Gabinete foram o primeiro contato de Ticiano tanto com temas mitológicos, quanto com as descrições literárias de imagens. Por isso, este trabalho propõe como possibilidade que a concepção mais realista e teatral dos movimentos e afetos percebidos nas pinturas possa ter sido inspirada na observação de peças, danças e outros espetáculos, tanto em Veneza quanto em Ferrara que, ao colocarem diante de Ticiano referências gestuais e corpóreas em ação real, teriam complementado as referências iconográficas fornecidas pelas obras inspiradas na antiguidade clássica, como as esculturas e relevos, tanto na coleção de Alfonso, quanto as conhecidas por Ticiano por meio de gravuras. Palavras Chave: Pinturas mitológicas, Ticiano, Ferrara, Alfonso d’Este, Artes cênicas. Abstract: This communication is based in a study about the possibility of an influence of the body language in the performing arts upon Titian´s mythological representations. The questioning is justifieble be274 Esta publicação faz parte da pesquisa de doutorado intitulada “A iconografia mitológica à antiga de Ticiano e um possìvel reflexo do ambiente cultural de Ferrara, sob Alfonso d’Este”, orientada pelo Prof. Dr. José Geraldo Costa Grillo, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte, na Universidade Federal de São Paulo. Mestra em História da Arte pela Univesridade Federal de São Paulo. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 535 cause the figuration of the mythologies for the Cabinet of Alabaster, done by Titian from 1518 to 1524, presents very different features from both his previous paintings and the mythologies painted by other artists for the Este family. The question seems convenient because the paintings for the Cabinet were the Titian’s first contact, both with mythological themes, and with the literary descriptions of images. For this reason, this work proposes as a possibility that the more realistic and theatrical conception of the movements and affections percieved in the paintings might have been inspired by the observation of plays, dances and others spectacles, both in Venice and in Ferrara which, by putting before Titian the gestual and corporeal references in real action, would have complemented the iconographic references provided by the artworks inspred in classical antiquity, as sculptures and reliefs, both in the collection of Alfonso, and those known by Titian through engravings. Keywords: Mythological Paintings, Titian, Ferrara, Alfonso d’Este, Performing Arts. 1. INTRODUÇÃO Esta comunicação é baseada em um estudo acerca da possibilidade de um reflexo da linguagem corporal das artes cênicas sobre a representação mitológica de Ticiano. Este estudo está inserido em uma investigação mais ampla, para uma tese de doutorado, sobre a influência do ambiente cultural de Ferrara, sob o comando de Alfonso d’Este, sobre a reformulação da iconografia mitológica feita pelo artista. O questionamento se justifica porque a figuração das mitologias para o Gabinete de Alabastro, feita por Ticiano entre 1518 e 1524, apresenta características muito diversas, tanto de suas pinturas anteriores, quanto das mitologias pintadas por outros artistas para membros da Família d’Este. A indagação parece oportuna porque as pinturas para o Gabinete foram o primeiro contato de Ticiano com os temas mitológicos e com as descrições literárias de imagens. Sem experiência anterior na figuração da mitologia, e considerando que as interpretações de artistas como Giovanni Bellini e Andrea Mantegna diferiram muito do caminho que adotou, a referência nas esculturas e relevos antigos, não é suficiente para explicar o novo tom nas interpretações. 536 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Por esta razão, este trabalho coloca como possibilidade que esta concepção mais realista e teatral dos movimentos e afetos presentes nas obras possa ter sido inspirada na observação de peças, danças e outros entretenimentos, tanto em Veneza, quanto em Ferrara, que teriam colocado o artista perante referências gestuais e corporais em ação real, o que complementaria a referência iconográfica fornecida pelas obras de inspiração clássica, como as esculturas e relevos presentes na coleção de Alfonso, ou que Ticiano conhecia por gravuras. Dado o grande envolvimento de Ferrara com as artes cênicas desde a gestão de Ercole d’Este, a qual será continuada sob o comando de Alfonso, esta hipótese parece plausível. Em função do espaço disponível, esta comunicação será centrada sobre a Bacanal dos Andros e constitui apenas um panorama inicial sobre o assunto. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO Quando Ticiano muda-se para Veneza, a cidade experimentava uma renovação urbana e vivia um período cultural rico, manifesto nos mais diversos domínios como o teatro e todas as atividades relacionadas à encenação dos espetáculos: a música, a cenografia, os figurinos etc. Além dos teatros, havia performances e atrações dia e noite, as quais os espectadores assistiam nas praças, ou das janelas e balcões de suas casas [Figura 1]. Eram competições inusitadas, como montaria em touros; ou provocação de ursos; ou entretenimentos mais amenos como danças de grupo. Havia também jogos, como o futebol da época, reservado para cidadãos nobres de nascimento. Era possível ainda ver apresentações de música, de mágica, de encantadores de serpentes etc... (WILLIAMS, 1972). Inicialmente, Ticiano será aprendiz do mosaicista Sebastiano Zucatto, fazendo amizade com seus filhos, sobretudo com Valério, que era casado com uma famosa atriz de teatro. A amizade permitirá a Ticiano conhecer pessoalmente, em cena e nos bastidores, os mais famosos atores e músicos dos palcos Venezianos (CAROLI; ZUFFI, 1990). Sobre estas vivências, Flavio Carol e Stefano Zuffi comentaram que: “O hábito da mise em scène e da mímica dos atores parecem ter sugerido ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 537 a nosso pintor [Ticiano] soluções peculiares para suas composições” (CAROLI; ZUFFI, 1990, p. 24). 3. SOBRE ALFONSO D’ESTE Alfonso d’Este era o filho mais velho de Ercole. Teve uma criação principesca mas, ainda assim, desenvolveu gostos pouco usuais para um regente: gostava de carpintaria, de pintar cerâmicas, de moldar bronzes, além de fazer e tocar vários instrumentos musicais. Sua principal paixão e expertise era o armamento de guerra, que ele colecionava, desenhava e ajudava a construir (HALE, 2012). Aos 29 anos tornou-se Duque de Ferrara. Apreciava a literatura, e à noite, além de jogar xadrez e cartas, desfrutava da música e da leitura de romances. Muito apreciada era a poesia de Boiardo, e o primeiro rascunho de Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, que era frequentemente chamado para lê-lo para o duque (NICHOLSON, 1914). 4. SOBRE AS COMÉDIAS, A ESTRÉIA DE ARIOSTO, E UM POSSÍVEL REFLEXO DO GOSTO TEATRAL SOBRE AS OBRAS DE TICIANO O interesse de Ferrara pela comédia foi resultado de uma iniciativa de Ercole d’Este, pai de Alfonso. Uma encenação dos Menecmos, de Plauto, em 25 de janeiro de 1486, como parte das comemorações do noivado entre Francesco Gonzaga e Isabella d’Este, marcou a primeira encenação teatral em Ferrara, cujo texto, em latim, havia sido traduzido para a língua vernácula para a performance (HARDIN 2003). A comédia teve enorme sucesso e foi encenada novamente durante as festividades do casamento de Alfonso d’Este e Anna Sforza, em 1491 (HARDIN, 2007). A sociedade da época havia se dado conta do valor de entretenimento da comédia romana encenada nos palcos. Francesco Robortello, escrevendo sobre a comédia em 1548, retomou o conceito da comédia como uma “arte que imita ações humanas consideradas ordinárias e vis’”; e acrescentou que: a Nova Comédia, em particular, “[...] imita comportamentos observados no dia-a-dia, nas relações comuns entre os homens” (HARDIN, 2007, p. 791). Era uma 538 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 comédia de costumes; tratava de fatos corriqueiros, engraçados, entre pessoas pertencentes a classes sociais distintas (CARDOSO, 2011). Robortello teria comentado, ainda, que parecia que “Nada era sagrado no mundo da comédia: nem o amor marital, nem o romance, nem as autoridades políticas ou religiosas” (HARDIN, 2007). Em março de 1508, Ariosto estreia a primeira comédia de sua autoria: La Cassaria, encomendada por Ippolito d’Este (HARDIN 2003; STTOPINO, 2015). No ano seguinte, teve sucesso ainda maior com Os supostos, a primeira comédia em forma de prosa e ambientada na própria Ferrara. Edmund Gardner (1906) comentou que ela havia despertado ainda mais risadas com sua trama de enganos e substituições de pessoas. O argumento teria sido recitado pelo próprio Ariosto, os interlúdios tiveram música e canto e, ao final da comédia: Vulcano e os Ciclopes forjaram flechas ao som de flautas, marcando o tempo com seus martelos e com os pequenos guizos que tinham nas pernas; e enquanto forjavam as flechas e empurravam seus foles, eles dançaram a mouresca ainda com os martelos (GARDNER, 1906, p. 326) Este tipo de espetáculo, que combinava teatro, música e dança estabeleceu uma tradição com continuidade e expansão para outras cortes, e segue o costume das encenações das peças latinas originais, em Ferrara. Uma encenação dos Anfitriões, de Plauto, por exemplo, de 3 de fevereiro de 1479, foi encerrada com um cortejo alegórico sobre Os Trabalhos de Hércules (GRADNER, 1906). Em 1502, Lucrezia Borgia, foi recebida em Ferrara com comédias e interlúdios semelhantes (GARDNER, 1906). Um tipo de entretenimento que produzirá em sua própria corte, com recursos destinados ao seu financiamento, os quais eram administrados pela própria duquesa (PRIZER, 1985). Gardner (1906) comentou que em suas comédias posteriores Ariosto foi além na modernidade das personagens que trouxe para o palco, incorporando, nos comentários que fazia durante os intervalos, temas da vida contemporânea. O autor acrescentou: “Que este ramo da comédia italiana é satírica, foi apontado com frequência. Por vezes, no entanto, a sátira está mais em evidência do que aquelas epístolas poéticas fascinantes às quais o nome de Sátira havia sido dado” (GARD- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 539 NER, 1906, p. 323). Um aspecto destacado pelos autores, no que se refere às comédias de Ariosto, é que embora baseiem-se em tramas e personagens dos textos latinos de Plauto e Terêncio, ele realoca a trama para o momento contemporâneo e para locações com as quais os espectadores têm familiaridade, o que colaboraria na criação de uma impressão de realidade. Os autores comentaram que em suas comédias, Ariosto reimaginou a geografia do Mediterrâneo, fazendo com que seus protagonistas se movessem em espaços conhecidos do comércio Veneziano. Em paralelo a este “redesenho” do mapa, as personagens receberam identidades étnicas e nacionais, com frequência fora de sincronia com o passado grego imaginado pelos modelos Plautinos (STTOPINO, 2015). Sttopino escreveu: Fica claro que em Cassária, Ariosto constrói uma geografia que não é abstrata, que não se propõe apenas a imitar os espaços dos modelos de Terêncio e Plauto, e cujo exotismo é limitado ao uso dos nomes. De fato, este é o mundo do Império marítimo veneziano e de seus espaços comerciais. Mesmo o uso dos estereótipos, os quais são baseados na percepção dos habitantes contemporâneos [da época] do Mediterrâneo, não é apenas eficaz do ponto de vista da comédia, mas participa da produção do efeito de realidade (STTOPINO, 2015, p. 399). Sobre este aspecto, Gardner acrescentou que, desta forma, Ariosto repetia a maneira dos autores latinos. Zelia Cardoso explicou que “[...] as histórias narradas na comédia latina se passam, em geral, em cidades da Grécia; as personagens têm nomes gregos e as próprias roupas utilizadas pelos atores imitavam as vestes helênicas” (CARDOSO, 2011, p.27). Ticiano buscará um efeito semelhante usando o mesmo artifício: incluindo nas pinturas mitológicas elementos que remetem à Ferrara contemporânea, como a moda, e os gostos particulares do comitente. Certamente estas encenações das comédias, seguidas pelas danças mourescas com temas mitológicos interpretadas por dançarinos caracterizados, ainda estavam em voga na época em que Ticiano trabalha para Alfonso e se hospeda em Ferrara por vários períodos, durante quase 10 anos. Sobre as danças e encenações dos episódios mitológicos no final das apresentações, é claro que não é possível saber como era 540 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 feita a dramatização – no que se refere à pantomima e à caracterização propriamente dita das personagens mitológicas, mas é sabido que estas eram convincentes, e que o convencimento era obtido por meio de figurinos e aparatos cênicos, como navios e simulações de naufrágios, entre outros, cujos efeitos e impressões foram documentados por escrito em cartas e, em outras cortes, tempos depois, registrados em gravuras que mostraram a complexidade e o nível de detalhe da construção visual em termos de maquinários e figurinos. É bem possível, portanto, que Ticiano tenha visto algo semelhante, se não em Ferrara, na própria Veneza – uma vez que mesmo em obras mitológicas posteriores, como as Dianas, para Felipe II, a associação das representações com características das cenas da ópera Veneziana é frequente (BRION, 1985). 5. SOBRE O GABINETE DE ALABASTRO Por volta de 1516 Alfonso começou projetar seu Gabinete de Alabastro onde concentraria obras de arte dos maiores artistas do seu tempo. A primeira pintura adquirida para este conjunto, que deveria ter como tema Os prazeres do amor e do vinho, havia sido uma Bacanal pintada por Dosso Dossi, que ilustrava uma passagem dos Fastos, de Ovídio. Na sequência, adquiriu O Festim dos Deuses [Figura 2], de Giovanni Bellini, também inspirado nos Fastos. Definiu temas para mais três obras que foram encomendadas, inicialmente, a Fra Bartolomeo e a Rafael, que não conseguiram entregá-las, e as três pinturas – Adoração à Vênus; Bacanal dos Andros e Baco e Ariadne – terminarão por ser pintadas por Ticiano. Antes de pintar as mitologias, Ticiano teria feito trabalhos menores para Alfonso e, entre eles, teria desenhado um poço (provavelmente para um cenário) e figurinos para bailado, algo já feito por Leonardo da Vinci, para o duque de Milão (BRION, 1985). A Bacanal dos Andros [Figura 3] foi a terceira pintura que Ticiano realizou para o Gabinete, e trata da chegada de Baco à ilha de Andros, cuja iconografia também reflete um texto das Imagens de Filóstrato (WILLIAMS, 1972) que teria sido, de acordo com David Jaffé ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 541 (2003), complementado por um trecho dos Fastos que descrevia a Festa de Ana Perene. Considere, no entanto, o que deve ser visto na pintura: O rio repousa sobre um leito de cachos de uva, derramando sua corrente, um rio não diluído e de aparência agitada; os tirsos crescem a sua volta como o junco em torno de correntes de água, e se alguém percorrer esta terra e os grupos que bebem dela [...] chegará aos Tritões na foz do rio, os quais estão enchendo conchas com vinho. Uma parte do vinho eles bebem, outra eles assopram [formando] correntezas; quanto aos Tritões, uns estão bêbados e outros dançando. Dioniso também navega para festa em Andros e, com seu navio agora atracado no porto, lidera uma multidão mista de Sátiros e Bacantes, e todos os Silenos. Ele lidera riso [Como] e orgia [Gelos], dois dos espíritos mais animados e que mais gostam de bebedeira, aqueles com os quais ele pode colher a safra do rio com maior deleite. ( PHILOSTRATUS, 1931, p.98, acréscimos da autora). O texto sobre a Festa de Ana Perene, nos Fastos, menciona em algumas passagens: [...] O povo vem, bebe deitado em verdes ervas, E cada qual recosta com seu par. [...] Ao sol e ao vinho eles se aquecem, pedem de anos O número de cálices que bebem. [...] Cantam ali o que aprenderam nos teatros, E acompanham com mímica as palavras. [...] Deposto o cráter, rudes coros são dançados [...] (OVÍDIO, Fastos, III, 525-537) A música, o canto e a dança são inseparáveis do culto de Dioniso e figuram com destaque na representação de Ticiano. A ondulação dos tecidos das vestes não apenas reforça, mas intensifica as ideias de dança e de movimento, em geral, que caracterizam o conjunto. Reforça, também, a presença da música. As mulheres com roupas contemporâneas em primeiro plano [Figura 4] têm flautas e uma partitura com o trecho de uma canção em francês que diz: “[...] quem bebe e não bebe mais, não sabe o que é beber” (SAXL, 1989, p. 199). 542 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 A obra tem uma organização espacial complexa, em vários planos, onde há ações diversas acontecendo simultaneamente. Sobre esta disposição, os textos não dizem muito, portanto é justo atribuir a solução compositiva que definiu a hierarquia da visibilidade à Ticiano. Nem todos os personagens mitológicos descritos por Filóstrato estão presentes. Na verdade, o artista suprimiu a grande maioria. Filóstrato menciona: os deuses dos rios: Aquelôo, Peneu e Páctolo; os Tritãos, os Sátiros, as Bacantes, os Silenos, as personificações Como e Gelos, e o Deus, Dioniso. O deus rio [Figura 5]– o único que Ticiano representa entre os três mencionados por Filóstrato – encontra-se sem nenhum atributo, reconhecível apenas porque está deitado sobre num leito de cachos de uva, rodeado por parreiras; deitado, nu, ao longe e, ao que parece, completamente embriagado e absorto em relação ao restante da cena. Não apresenta nem um único traço da dignidade esperada de um deus. É apenas um humano, idoso e entregue aos efeitos do vinho. Não há tritões, ou sátiros, ou Silenos; nem mesmo Como ou Gelos – as personificações da orgia e do riso – são identificáveis. Ticiano também não representa Dioniso, o deus de onde flui todo o deleite e alegria, em função da transformação da água do rio em vinho, central para o tema da pintura. Aparentemente somente seus efeitos sobre os participantes são retratados. É possível identificar características mais genéricas: “os homens coroados com hera e briônia”; “esposas e crianças” e “pessoas dançando”. Fritz Saxl viu na figura barbada meio cambaleante, vestida de amarelo, o indício de uma dança solitária, ao deus Dioniso; neste trabalho, acredita-se que a postura se relacione mais à instabilidade e ao desequilíbrio esperado de um estado de embriaguez. Existe uma espécie de divisão entre personagens vestidas – algumas com roupas contemporâneas – e um grupo de personagens nus à esquerda que, a julgar pelos tipos de algumas das jarras que carregam (hídrias e crateras), recolhem água (provavelmente para misturar ao vinho, conforme era costume na Antiguidade) [Figura 6]. Desempenham as ações atribuídas por Filóstrato aos Tritões. Embora não demonstrem os atributos esperados dos sátiros, talvez Ticiano tenha pensado neles como o tíaso de Dioniso, auxiliando na festa, recolhendo o vinho do ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 543 rio, transportando-o, bebendo direto de grandes jarras, e servindo aos demais, uma vez que toda a interpretação é muito mais humana que mitológica. A figura feminina nua adormecida em primeiro plano teria sido uma solicitação do comitente [Figura 7]. No contexto da obra, a posição também faz referência ao sono decorrente da embriaguez. Esta figuração seria uma “resposta” à figuração de Giovanni Bellini da Vesta, no Festim dos Deuses, que não teria agradado Alfonso e que ele teria pedido a Bellini que alterasse o caimento do tecido a fim de deixar a figura mais sensual. Apesar das alterações, a representação de Billini continua pouco sensual, principalmente quando comparada à figura feminina pintada por Ticiano, em primeiro plano (HALE, 2012). De fato, A Bacanal dos Andros apresenta bem menos figuras mitológicas identificáveis do que Baco e Ariadne. O que se vê na imagem são os personagens humanos, vários vestidos com roupas contemporâneas, representados em estágios e reações diversas decorrentes dos efeitos do vinho. O único deus, o Deus Rio, é representado despido de toda a sacralidade, o que nos lembra uma característica da comédia, (na qual, segundo Robortello, nada é sagrado, nem mesmo os deuses)... as atitudes de todos expõem as relações e reações comuns entre os homens, sem idealizações ou aprimoramentos, às vezes até enfatizando estados anormais, de pouco autocontrole, outra característica relacionável à comédia. O conjunto é inquieto, a movimentação das personagens é exagerada, suas posturas estão fora do “eixo”, instáveis, características de estados de embriaguez. A personagem à esquerda, com a calça amarela atrás da árvore veste roupas características de Ferrara [Figura 8]: há quem defenda que ele estava presente mas não podia ver nada, porque a bacanal estaria acontecendo num domínio não visível aos humanos (JAFFÉ, 2003b), outros defendem que ele é um habitante local presenciando a cena. Neste trabalho, em função do alinhamento com o já mencionado artifício de Ariosto, será defendido que ele é, de fato, um habitante, e que está realmente presente na cena, que no geral, é muito mais humana do que mitológica. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 544 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Embora as ações sejam as esperadas para uma bacanal, a interpretação de Ticiano as traz para o aqui e agora, retratando personagens “reais”. As ações nas cenas têm caráter “vivido”, e não evocado, e parece que alguns dos pressupostos da comédia podem ter sido levados em conta na figuração mais naturalista do texto de Filóstrato. Terísio Pignatti parece concordar com uma influência da linguagem cênica da comédia sobre as figurações. Com relação às duas Bacanais (Bacanal dos Andros e Baco e Ariadne), comentou que em Ticiano: [...] o pastoral, o encontro poético de música sentimento e natureza, é transformado em uma festa agressiva de figuras femininas e masculinas, mais de acordo com o teor erótico do século XVI, da comédia de Calmo a Ruzzante, do que da contemplatividade refinada de Bembo [...] (PIGNATTI, 1979, p. 19). No início desta comunicação, uma citação de Caroli e Zuffi também já haviam permitido conjecturar sobre a possibilidade desta influência, ao sugerirem que a familiaridade com a mise em scène e com a mímica dos atores poderia ter sugerido a Ticiano soluções peculiares para suas composições. Ainda com relação ao contato quase permanente de Ticiano com o universo das artes cênicas, é relevante mencionar que Ariosto, Aretino e Dolce, todos muito próximos ao artista, foram dramaturgos e escreveram comédias e sátiras; e que Sebastiano Serlio – também próximo ao artista – estudou os tipos de cenários relacionando-os aos gêneros cômico, trágico e satírico, e que Ticiano esteve a par de suas reflexões e realizações. Ainda que esta seja uma investigação preliminar, reproduzida em termos muito sumários em função do tempo do espaço disponível, parece haver indícios que permitem defender a existência de uma influência da linguagem corporal das artes cênicas sobre as representações mitológicas de Ticiano para o Gabinete de Alabastro de Alfonso d’Este. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRION, Marcel. Ticiano. Lisboa: Editoral Verbo, 1985. CARDOSO, Zelia de Almeida. A literatura latina. 3a ed. rev. 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Londres. https://www.nga.gov/collection/art-object-page.1138.html ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 549 Figura 3: TICIANO. Bacanal dos Andros. 1523-24. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org 550 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 4: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe com instrumentos e partitura. 152324. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 551 Figura 5: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhes com o Deus Rio: 1523-24. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org Figura 6: Detalhes das figuras femininas para comparação. Em cima: Giovanni BELLINI, e TICIANO. Festim dos deuses. 1514/1529. Óleo sobre tela. 170.2 x 188 cm. Galeria Nacional. Londres. https://www.nga.gov/collection/art-objectpage.1138.html e embaixo: TICIANO. Bacanal dos Andros. 1523-24. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org 552 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Figura 7: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe: Possível Tíaso de Dioniso. 152324. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 553 Figura 8: TICIANO. Bacanal dos Andros. Detalhe da personagem com roupa da moda contemporânea de Ferrara. 1523-24. Óleo sobre tela. 175 x 193 cm. Museu do Prado. Madri. https://co.wikipedia.org. 554 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 O RESTAURO DA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO E AS INTERVENÇÕES DE PAULO MENDES DA ROCHA EM EDIFÍCIOS DE INTERESSE HISTÓRICO Autor: Tarcisio A. da Silva275 – E-mail: tarcisio.antonio@unifesp.br Resumo: A pesquisa se propõe a estudar o restauro da Pinacoteca do Estado de São Paulo, de autoria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e do escritório de arquitetura Ricoy Torres e Colonelli, e relacionar as obras de intervenção de Mendes da Rocha em arquiteturas preexistentes por meio de sua atuação no campo do restauro. A Pinacoteca do Estado de São Paulo ocupa o edifício que foi, originalmente, a sede do Liceu de Artes e Ofícios, de autoria do escritório do arquiteto Ramos de Azevedo. Os trabalhos de intervenção em arquiteturas de interesse histórico do arquiteto Paulo Mendes da Rocha remontam aos anos 70. Entre os primeiros trabalhos estão o projeto da Fazenda Ipanema para a implantação do Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA) e o projeto de intervenção da Casa das Retortas para a Companhia de Gás de São Paulo – COMGAS. Nos dois projetos Paulo trabalhou em parceria com Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), que dedicou sua carreira à defesa do patrimônio cultural seja na academia ou seja em órgãos de preservação. A compreensão da forma com que Paulo Mendes da Rocha propõe a interlocução entre as novas e as antigas estruturas, a metodologia projetual que o arquiteto utiliza quando trata de projetos de restauro, as parcerias profissionais que Paulo estabeleceu durante a elaboração de tais projetos e as discussões acerca do restauro são fundamentais para um melhor entendimento sobre a sua produção arquitetônica quando a mesma trata de intervenções em arquiteturas 275 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado em andamento intitulada “O restauro da Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Octógono como espaço expositivo”, orientada pela Profa. Dra. Manoela Rossinetti Rufinoni desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A pesquisa conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O autor é arquiteto e urbanista titulado pela Universidade Paulista (UNIP) e atualmente também cursa a graduação em História da Arte na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 555 preexistentes de interesse histórico. Palavras-chave: Restauro, História da Arquitetura, Patrimônio, Arquitetura, Arte. Abstract: The research proposes to study the restoration of the Pinacoteca do Estado de São Paulo, authored by the architect Paulo Mendes da Rocha and the architecture office Ricoy Torres e Colonelli, and relate the works of intervention by Mendes da Rocha in preexisting architectures through its performance in the field of restoration. The Pinacoteca do Estado de São Paulo occupies the building that was, originally, the headquarters of the Liceu de Artes e Ofícios, designed by the office of architect Ramos de Azevedo. The intervention works in architectures of historical interest by the architect Paulo Mendes da Rocha date back to the 70s. Among the first works are the Ipanema Farm project for the implantation of the Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA) and the intervention project for Casa das Retortas for the Companhia de Gás de São Paulo – COMGAS. In both projects, Paulo worked in partnership with Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), who has dedicated his career to the defense of cultural heritage, whether in academia or in preservation agencies. The understanding of the way in which Paulo Mendes da Rocha proposes the dialogue between the new and the old structures, the design methodology that the architect uses when dealing with restoration projects, the professional partnerships that Paulo established during the elaboration of such projects and the discussions about restoration are fundamental for a better understanding of its architectural production when it deals with interventions in pre-existing architectures of historical interest. Keywords: Restoration, History of Architecture, Heritage, Architecture, Art. 556 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 INTRODUÇÃO Os projetos de intervenção em preexistências de autoria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha remontam aos anos 70. Apesar de menos destacado quando comparado ao restante de sua produção arquitetônica, esse campo de trabalho adotado logo no início de sua carreira representa grande parte de seu trabalho. O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola (CENEA) na Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema em Iperó, de 1976276, e o projeto para a nova sede da Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS, na Casa das Retortas, em São Paulo, de 1977277, serão analisados em paralelo com o projeto da Pinacoteca do Estado de São Paulo, também na cidade São Paulo, de 1993278, devido à importância desses trabalhos na carreira do arquiteto, pela relação proposta com o patrimônio edificado e devido às parcerias profissionais de Paulo Mendes da Rocha nesses projetos. 1. PAULO MENDES DA ROCHA E SEUS PROJETOS DE INTERVENÇÃO Nascido em Vitória no ano de 1928, Paulo Mendes da Rocha concluiu o curso de arquitetura em 1954 na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, cidade em que se estabeleceu profissionalmente279. Além de exercer o ofício de arquiteto, Mendes da Rocha lecionou na Faculdade de Arquitetura da USP a partir de 1961 e também recebeu diversos prêmios internacionais devido a sua produção arquitetônica, como o Prêmio Pritsker em 2006280. Entre suas obras de destaque estão 276 ROCHA, Paulo Mendes da. Centro Nacional de Engenharia Agrícola Fazenda Ipanema – Iperó – SP. Revista Módulo, n. 46. Rio de Janeiro: Editora Módulo, 1977, p. 50. 277 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 49. 278 PAULO Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli: Reforma, restauro e adaptação da Pinacoteca, São Paulo. Revista Projeto, São Paulo, n. 220, mai. 1998. Disponível em: <https:// revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-e-eduardo-colonelli-reforma-restauro-e-adaptacao-da-pinacoteca-sao-paulo/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 279 CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANSIMO – CAU. O pai engenheiro e Vilanova Artigas, esteios da formação do arquiteto. Disponível em: <https://www.caubr.gov.br/paulomendesdarocha/?page_id=32>. Acesso em: 01 abr. 2022. 280 PRITSKER PRIZE. The Pritsker Architecture Prize. Disponível em: <https://www.pritzkerprize.com/laureates/2006>. Acesso em: 01 abr. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 557 o Ginásio do Clube Atlético Paulistano281; a Casa Gerassi282; e o MuBE – Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia283. Apesar de extensa, é menos divulgada e estudada a produção de Paulo Mendes da Rocha que dialoga com o patrimônio edificado. Na Tabela 1 estão relacionados, de forma preliminar, os projetos que possuem a autoria atribuída a Mendes da Rocha que se interligam com restauro, patrimônio e memória, totalizando, assim, 40 projetos. Além disso, estão descritos também a relação de parceiros profissionais que participaram de tais projetos e o local onde se encontram os trabalhos. Foram utilizadas fontes diversas para compor a lista, como sites de parceiros profissionais de Mendes da Rocha e a publicação de projetos em revistas e sites especializados. Tabela 1: Relação dos projetos de intervenção em preexistências de Paulo Mendes da Rocha Id. Projeto 1 Centro Cultural Georges Pompidou (Beaubourg)284 2 3 Reurbanização da região da Grota do Bexiga285 CENEA (Centro Nacional de Engenharia Agrícola)286 Data Parceiros Local Tipo de Projeto 1971 Abrahão Sanovicz, Osvaldo Corrêa Gonçalves e Cláudio Gomes Paris, França Intervenção em sítio histórico 1974 Flávio Motta, José Cláudio Gomes, Benedito Lima de Toledo, M. Ruth do Amaral Sampaio, Samuel Keer, Koiti Mori e Klara Kaiser São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 1976 Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), Roberto Leme Ferreira, Cesar Luiz Mazzacorati e Roberto Burle Marx Iperó / SP Intervenção em sítio histórico 281 ARTIGAS, Rosa. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 80. 282 Ibidem, p. 178. 283 Ibidem, p. 86. 284 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 263. 285 Ibidem, p. 263. 286 Ibidem, p. 264. 558 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 4 Sede da COMGÁS287 1977 Antônio Luiz Dias de Andrade (Janjão), Roberto Leme Ferreira e Cesar Luiz Mazzacorati 5 Biblioteca Pública do Rio de Janeiro288 1984 Eduardo Colonelli Eduardo Aquino Rio de Janeiro / RJ Intervenção em sítio histórico 6 Urbanização e conjunto de habitações na área do antigo Hospital Padre Bento289 1986 - Guarulhos / SP Intervenção em sítio histórico Campos do Jordão / SP Intervenção em sítio histórico São Paulo / SP Restauro e intervenção São Paulo / SP Restauro e intervenção 7 Capela de São Pedro290 1988 Eduardo Colonelli, Alexandre Delijaicov, Carlos José Dantas Dias e Geni Takeuchi Sugai 8 Ampliação do Teatro Oficina - Uzina Uzona291 1991 - São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 9 Renovação Urbana Praça do Patriarca e Viaduto do Chá292 1992 Eduardo Colonelli, Katia Pestana, Marcelo Laurino, Giancarlo Latorraca, Silvio Oksman, Martin Corullon e Luciana Fukimoto Itikawa 10 Pinacoteca do Estado de São Paulo293 1993 Escritório Ricoy Torres e Colonelli São Paulo / SP Restauro e intervenção 11 Terminal rodoviário Parque Dom Pedro II294 1996 MMBB São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 12 Centro Cultural SESI no Edifício FIESP295 1996 MMBB São Paulo / SP Restauro e intervenção 13 Sede do Centro Geral do Sistema de Vigilância da Amazônia em Brasília296 1998 MMBB Brasília / DF Intervenção em sítio histórico 287 Ibidem, p. 264. 288 Ibidem, p. 265. 289 Ibidem, p. 265. 290 Ibidem, p. 265. 291 Ibidem, p. 266. 292 Ibidem, p. 266. 293 Ibidem, p. 267. 294 Ibidem, p. 267. 295 Ibidem, p. 267. 296 MMBB. CCG SIVAM. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/view/42>. Acesso em: 01 abr. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 559 14 Casa da Música297 1999 - Porto, Portugal Intervenção em sítio histórico 15 OCA (Pavilhão de Exposições Lucas Nogueira Garcez)298 2000 MMBB São Paulo / SP Restauro e intervenção 16 Museu da Língua Portuguesa299 2000 Pedro Mendes da Rocha São Paulo / SP Restauro e intervenção 17 Piscina da Praça da República300 2001 - São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 18 Escola de Cinema Darcy Ribeiro301 2001 Martin Corrullon Rio de Janeiro / RJ Restauro e intervenção 19 Monumento Rodoanel302 2001 MMBB São Paulo / SP Monumento 20 Paço da Alfândega303 2001 MMBB Recife / PE Restauro e intervenção 21 Fachada do Banco Safra S/A, Agência Augusta304 2002 Eduardo Colonelli São Paulo / SP Restauro e intervenção 22 SESC 24 de Maio305 2002 MMBB São Paulo / SP Restauro e intervenção 23 Residência em Florença306 2003 MMBB Florença, Itália Restauro e intervenção 297 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 268. 298 MMBB. Oca, Parque do Ibirapuera. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/ view/38>. Acesso em: 01 abr. 2022. 299 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269. 300 ITAÚ CULTURAL. Proposta para a Praça da República. Disponível em: <https://www. itaucultural.org.br/ocupacao/paulo-mendes-da-rocha/concepcao-de-cidade/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 301 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269. 302 MMBB. Monumento Rodoanel. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/ view/62>. Acesso em: 01 abr. 2022. 303 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 269. 304 Ibidem, p. 270. 305 Ibidem, p. 270. 306 MMBB. Residência em Florença. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/ view/49>. Acesso em: 01 abr. 2022. 560 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 24 Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro307 2005 Metro Arquitetos Rio de Janeiro / RJ Restauro e intervenção 25 Capela de Nossa Senhora da Conceição308 2005 Escritório Paulistano de Arquitetura Recife / PE Restauro e intervenção 26 Engenho Central de Piracicaba309 2005 José Armênio de Brito Cruz, André Dias Dantas, Fabiana Terenzi Stuchi e Joana Maia Rosa Rojo Piracicaba / SP Restauro e intervenção 27 Museu das Minas e do Metal310 2006 Pedro Mendes da Rocha e Escritório B Arquitetos Belo Horizonte / MG Restauro e intervenção 28 Casa Daros311 2006 Pedro Mendes da Rocha, B Arquitetos e Maria Regina Pontin de Mattos Rio de Janeiro / RJ Restauro e intervenção 29 Universidade de Cagliari312 2007 MMBB Cagliari, Itália Intervenção em sítio histórico 30 Museu dos Coches313 2008 MMBB Lisboa, Portugal Intervenção em sítio histórico 31 Casa Quelhas314 2010 Inês Lobo Lisboa, Portugal Restauro e intervenção 307 RIOS, Maria Francisco. Intervenção na Preexistência - O projeto de Paulo Mendes da Rocha para Transformação do Educandário Santa Teresa em Museu de Arte Contemporânea. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo. Orientação: Helena Aparecida Ayoub Silva. São Paulo, 2013, p. 42. 308 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 270. 309 CAMPAGNOL, Gabriela. Redefinindo o espaço do açúcar: Patrimônio, reutilização e arquitetura industrial. In: VI COLÓQUIO LATINO-AMERICANO SOBRE RECUPERAÇÃO E PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL, 2012, São Paulo. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/VI_coloquio_t1_redefinindo_espaco. pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. 310 MELENDEZ, Adilson. Paulo e Pedro Mendes da Rocha: Museu das Minas e do Metal. Revista Projeto, n. 366, São Paulo, 2010. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/ paulo-mendes-rocha-pedro-mendes-rocha-museu-belo-horizonte-13-10-2010/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 311 RIOS, Maria Francisco. Intervenção na Preexistência - O projeto de Paulo Mendes da Rocha para Transformação do Educandário Santa Teresa em Museu de Arte Contemporânea. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo. Orientação: Helena Aparecida Ayoub Silva. São Paulo, 2013, p. 51. 312 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, cidade e natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2021, p. 270. 313 Ibidem, p. 270. 314 INÊS LOBO. Quelhas House. Disponível em: <https://www.ilobo.pt/Quelhas.html>. Acesso em: 01 abr. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 561 32 MAM Santos315 2010 Metro Arquitetos Santos / SP Intervenção em sítio histórico 33 Nova Pinacoteca316 2011 Eduardo Colonelli São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 34 Axel Springer317 2013 Metro Arquitetos Berlim, Alemanha Intervenção em sítio histórico 35 Museu de Arte Contemporânea de Ouro Preto318 2014 - Ouro Preto / MG Restauro e intervenção 36 Sous-Station Voltaire319 2015 MMBB Paris, França Restauro e intervenção 37 Museu do Século 20320 2015 Metro Arquitetos Berlim, Alemanha Intervenção em sítio histórico 38 Parque Ibirapuera321 2016 - São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 39 Banco Trianom322 2018 Nadezhda Rocha São Paulo / SP Intervenção em sítio histórico 40 Monumento Lastras323 2020 Nadezhda Rocha Tijucas / SC Monumento Na Tabela 1 os projetos foram subdivididos nas seguintes categorias: “restauro e intervenção” que contempla os projetos em que um prédio preexistente e historicamente importante sofreu alguma inter315 METRO ARQUITETOS. MAM Santos, Santos, 2010. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/mam-santos-santos-2010/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 316 ROCHA, Paulo Mendes da; COLONELLI, Eduardo. Pinacoteca do Estado - Ampliação. Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca do Estado de São Paulo, jun. 2011. 317 METRO ARQUITETOS. Axel Springer, Berlin, 2013. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/axel-springer-berlim-2013/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 318 CALDAS, Bruno Tropia. Paulo Mendes da Rocha, poesia de uma linha só: o Museu de Arte Contemporânea de Ouro Preto. In: 5º SEMINÁRIO INTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E ARQUITETURA DE MUSEUS, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA 2016, Rio de Janeiro, p. 1. 319 SERAPIÃO, Fernando; CONSÓRCIO URBEM/TRITYQUE. Sous-station Voltaire. Revista Monolito, n. 32, São Paulo: Editora Monolito, 2016. Pag. 65. 320 METRO ARQUITETOS. Museum of 20th Century, Berlim, 2015. Disponível em: <https://metroarquitetos.com.br/projeto/museum-of-20th-century-berlim-2015/>. Acesso em: abr. de 2022. 321 PAULO Mendes da Rocha encabeça reforma do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Revista Projeto. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-rocha-encabeca-reforma-ibirapuera/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 322 SAI do papel Banco Trianon, de Nadezhda e Paulo Mendes da Rocha. Revista Projeto. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/noticias/sai-do-papel-banco-trianon-de-nadezhda-e-paulo-mendes-da-rocha/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 323 ARCHTRENDS Summit: os melhores momentos do tributo a Paulo Mendes da Rocha. Archtrends. Disponível em: <https://archtrends.com/blog/tributo-a-paulo-mendes-da-rocha/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 562 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 venção do arquiteto, os projetos descritos como “intervenção em sítio histórico” correspondem às obras inseridas em contextos urbanos historicamente reconhecidos e os projetos classificados como “monumento” são obras que dialogam com um sentido memorial da arquitetura e da história. Durante os anos 70, Paulo estabelece parceria com Antônio Luiz Dias de Andrade em alguns de seus primeiros projetos de intervenção. “Janjão” como era conhecido, dedicou grande parte da sua carreira profissional à defesa do patrimônio na atuação junto ao CONDEPHAAT e ao IPHAN324. 2. AS INTERVENÇÕES: CENEA, COMGÁS E PINACOTECA O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola – CENEA e o projeto para a Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS foram selecionados por serem alguns dos primeiros trabalhos relacionados ao patrimônio com que Paulo Mendes da Rocha teve contato ainda quando jovem. Além disso, os projetos têm a contribuição do arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade como colaborador. O projeto da Pinacoteca do Estado de São Paulo é um projeto de destaque na trajetória do arquiteto pelo reconhecimento que Paulo Mendes da Rocha recebe no campo do restauro. 2.1 CENTRO NACIONAL DE ENGENHARIA AGRÍCOLA – CENEA O projeto para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola – CENEA compõe o conjunto arquitetônico histórico da Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema que se localiza na cidade de Iperó / SP. O início da construção do conjunto data do ano de 1811325, e o seu tomba324 TOLEDO, Benedito Lima de. Janjão, um patrimônio da nossa memória. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n.8. São Paulo: FAUUSP, 2000, p. 254. 325 INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICM BIO. Floresta Nacional de Ipanema: Patrimônio Histórico e Arqueológico, 2020. Disponível em: <https://www.icmbio.gov.br/flonaipanema/images/stories/Encarte_Hist%C3%B3ri- ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 563 mento por parte do IPHAN ocorreu no ano de 1964, tornando-se, assim, o primeiro exemplar da arquitetura industrial brasileira que obteve algum tipo de proteção por parte do estado326. Já o tombamento ex-officio pelo CONDEPHAAT ocorreu no ano de 1974327. A Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, localizada na Floresta Nacional de Ipanema, foi construída para ser um complexo industrial pioneiro no Brasil destinado ao desenvolvimento da metalurgia328. Entre os anos de 1963 e 1967, o arquiteto Luís Saia, chefe da regional paulista do IPHAN, concebeu o restauro do conjunto construído da Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema visando somente à preservação dos prédios mais deteriorados329. Em 1970, Paulo Mendes da Rocha foi contratado para desenvolver o plano de ocupação da Fazenda Ipanema para o Centro Nacional de Engenharia Agrícola – CENEA. O conjunto arquitetônico possui diversas edificações dispersas entre si construídas em períodos diferentes, e o programa arquitetônico está dividido em seis áreas: histórica e cultural; intermediária; habitacional; clube; laboratórios e oficinas; e a área destinada à administração e ao ensino330. O projeto completo não foi levado a termo. Sendo assim, os únicos prédios efetivamente construídos por Paulo Mendes da Rocha para o CENEA foram o edifício do alojamento e o edifício administrativo331. co_2020.cdr.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. 326 KUHL, Beatriz Mugayar. Algumas questões relativas ao patrimônio industrial e à sua preservação. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/algumas_questoes_relativas_ao_patrimonio. pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. 327 SÃO PAULO (Estado), CONDEPHAAT. Processo de Tombamento n. 00372/73. Resolução de tombamento Ex-Officio em 11/09/1974 (Sem Publicação no D.O.E.). Livro do Tombo Histórico: Nº inscr. 88, p. 10, 11/9/1974. 328 SANTOS, Nilton Pereira dos. A fábrica de ferro São João de Ipanema: economia e política nas últimas décadas do Segundo Reinado (1860-1889). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. Orientação: Miriam Dolhnikoff. São Paulo, 2009, p. 19. 329 FERREIRA, Camila Corsi. Luís Saia e o restauro da Real Fábrica de Ferro Ipanema em Iperó / SP. Revista Restauro, São Paulo, v. 4, n. 7, 2020. Disponível em: 330 RODRIGUES, Júlio Cezar Macedo; SOUZA, Gisela Barcellos de. Requalificação da Floresta Nacional de Ipanema: análise do projeto parcialmente executado de Paulo Mendes da Rocha. In: 7º seminário do Do.co.mo.mo Brasil, 2007, p. 3. 331 RODRIGUES, Júlio Cezar Macedo; SOUZA, Gisela Barcellos de. Requalificação da Floresta Nacional de Ipanema: análise do projeto parcialmente executado de Paulo Mendes da Rocha. In: 7º seminário do Do.co.mo.mo Brasil, 2007, p. 12. 564 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 2.2 COMPANHIA DE GÁS DE SÃO PAULO – COMGÁS A Casa das Retortas faz parte do Complexo do Gasômetro na cidade de São Paulo. Sua construção data do ano de 1870, e o ano da intervenção proposta por Paulo Mendes da Rocha é 1977 332. O tombamento da Casa das Retortas por parte do CONDEPHAAT ocorreu no ano de 2010333, e o tombamento ex-officio pelo CONPRESP se deu no ano 2012334. O complexo industrial construído pela The São Paulo Gas Company era dedicado à produção de gás destinado à iluminação da cidade de São Paulo. Em 1968 a prefeitura expropriou o imóvel e o destinou para uso da Companhia de Gás de São Paulo – COMGÁS. Durante os anos 70, as atividades na Casa das Retortas são completamente desativadas, e o prédio, abandonado. Assim, foi encomendado o projeto de intervenção da Casa das Retortas para o arquiteto Paulo Mendes da Rocha para a Sede da COMGÁS. O arquiteto, então, utiliza-se da principal edificação do conjunto para o atendimento ao público. Novas edificações destinadas ao uso administrativo da COMGÁS são propostas, compondo um conjunto construído com as edificações históricas, que, devido a sua monumentalidade, destacam-se na paisagem urbana da cidade de São Paulo. É notável a ênfase dada pelo arquiteto quando se refere à intervenção como um pensamento que está de acordo e alinhado às discussões acerca do patrimônio, referindo-se àquilo que consta das cartas patrimoniais emitidas pelos órgãos internacionais ICOMOS e UNESCO335. Ainda que não citada diretamente por Mendes da Rocha, a Carta de Veneza336 é o documento máximo quando se trata da conservação e preservação do patrimônio histórico. 332 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 49. 333 Número do Processo: 46662/03-Vol1. Resolução de Tombamento: Resolução SC 20, de 26/03/2010. 334 Resolução de Tombamento: Resolução 09/12. 335 ROCHA, Paulo Mendes da. Novo uso do Gasômetro de São Paulo, um exemplo de respeito ao bem cultural. Revista CJ. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro: FC Editora, 1978, p. 50. 336 CARTA DE VENEZA. In: Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, 1964. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%20 1964.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 565 Somente parte da intervenção proposta por Paulo Mendes da Rocha para a Casa das Retortas foi concluída337. Atualmente encontra-se em andamento o projeto para o Museu do Estado de São Paulo, que tem autoria do filho de Paulo, o arquiteto Pedro Mendes da Rocha338. 2.3 PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO A Pinacoteca do Estado de São Paulo foi construída pelo escritório de Ramos de Azevedo com desenho de Domiziano Rossi, inicialmente para ser a sede do Liceu de Artes e Ofícios. Sua construção se inicia no ano de 1885 e é finalizada no ano de 1900339. É tombada pelo CONDEPHAAT em 1987340, pelo CONPRESP em 1991 (tombamento ex-officio)341 e pelo IPHAN em 2016 como parte do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Bairro da Luz342. As constantes mudanças de uso descaracterizaram a arquitetura original do prédio projetado pelo escritório de Ramos de Azevedo. Assim, durante os anos 90, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha foi contratado para a intervenção na Pinacoteca343. Uma das principais mudanças foi a nova entrada principal, até então à Avenida Tiradentes344. 337 MEMÓRIA: Casa das Retortas. Revista Projeto, 2007. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/memoria-casa-das-retortas-01-09-2007/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 338 ROCHA, Pedro Mendes da. Arquitetura de Museus. In: WORKSHOP ARQUITETURA E TÉCNICAS MUSEOGRÁFICAS 2016 - ICAMT. Disponível em: <https://icamt.mini.icom. museum/wp-content/uploads/sites/13/2019/01/PALESTRA_04_Pedro_Mendes_da_Rocha. pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. 339 UMA instituição benemérita: O Lyceu de Artes e Officios: Seu historico – Trium- pho da iniciativa particular – 800 a 900 alunos beneficiados. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 2 ago. 1910. 340 SÃO PAULO (Estado), CONDEPHAAT. Processo de Tombamento n. 00215/79 e 00341/73 (Acervo). Resolução de Tombamento 24 de 05/05/1982. 341 SÃO PAULO (Município), CONPRESP. Resolução de tombamento 05, de 05/04/1991. 342 INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Processo n. 1.463-T-00. Livro Histórico - Volume 3 Fl. 135 / Inscrição 707. 343 SÃO PAULO (Estado). Pinacoteca do Estado: A História de um Museu. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2007, p. 89. 344 PAULO Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli: Reforma, restauro e adaptação na Pinacoteca, São Paulo. Revista Projeto, n. 220. São Paulo, 1998. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-e-eduardo-colonelli-reforma-restauro-e-adaptacao-da-pinacoteca-sao-paulo/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 566 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 As passarelas que atravessam os vazios laterais criam uma nova lógica de circulação, e o elevador que permite a circulação vertical dos visitantes da Pinacoteca. O teto de vidro que recobre os pátios laterais cria um espaço de articulação no projeto de Ramos de Azevedo. O espaço Octógono, no primeiro pavimento, é utilizado como área expositiva e é recoberto por um teto de vidro que permite que a luz solar adentre a Pinacoteca. Por fim, um auditório foi constituído no pavimento térreo do Octógono. 2.4 APROXIMAÇÃO ENTRE AS INTERVENÇÕES Em alguns dos primeiros projetos de intervenção nos anos 70, Janjão, especialista em patrimônio histórico, era parceiro profissional de Paulo Mendes da Rocha; enquanto que, na Pinacoteca, a equipe de Paulo era composta por arquitetos. Tal dado pode explicar as justificativas projetuais que estão apoiadas nas recomendações dos órgãos de proteção do patrimônio internacionais na intervenção da Casa das Retortas, que teve a colaboração de Janjão, e a não utilização das mesmas recomendações nas justificativas relativas à Pinacoteca, que são embasadas na estabilização da edificação, no ajuste da implantação e na criação de novos espaços. Os projetos em colaboração com Janjão também possuem grandes magnitudes, com intervenção em sítios históricos de origem industrial e com a proposição de novas edificações. Na Pinacoteca a intervenção é menor, não inclui a construção de novas edificações, ficando mais restrita ao interior do prédio existente. Os usos propostos para dois dos primeiros projetos de intervenção em preexistências de Paulo são muito distintos dos usos iniciais para os quais as edificações existentes foram construídas, que era o uso industrial. No caso do Centro Nacional de Engenharia Agrícola - CENEA, construções de diversos usos foram propostas para compor o funcionamento do órgão. A Casa das Retortas, que também foi concebida para o uso industrial, foi destinada a um uso administrativo da Companhia de Gás de São Paulo - COMGÁS. O uso da Pinacoteca é o que mais se aproxima ao uso original da construção, que foi o de ensino. Ao observar a Tabela 1, após os projetos do CENEA e da ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 567 COMGÁS, a produção do arquiteto passou por um período de queda na quantidade de projetos que dialogam com o patrimônio edificado, retomada anos depois com a construção da Capela de São Pedro, em Campos do Jordão, em 1988345. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para o CENEA, Paulo propôs um grande número de edificações integradas ao conjunto histórico construído, e para a COMGÁS, um projeto de restauro para o conjunto histórico fabril construído acrescentado de novas edificações. A não conclusão dessas obras projetadas durante os anos 70 pode ter feito com que Paulo Mendes da Rocha se voltasse a outro tipo de produção arquitetônica, distanciando-se, dessa forma, de projetos que dialoguem com o patrimônio histórico e, consequentemente, da parceria profissional estabelecida com Janjão. Por meio do levantamento dos dados apresentados no decorrer do presente estudo e considerando os momentos vividos por Paulo Mendes da Rocha em sua carreira, observa-se um grande aumento no número de trabalhos relacionados ao campo do restauro e das intervenções em preexistências após a intervenção realizada na Pinacoteca em 1996. É possível, então, identificar, a partir disso, um marco na carreira do arquiteto, que se tornou uma referência não só no campo da arquitetura, mas também quando se trata de intervenções em construções preexistentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARCHTRENDS Summit: os melhores momentos do tributo a Paulo Mendes da Rocha. Archtrends. Disponível em: <https://archtrends.com/ blog/tributo-a-paulo-mendes-da-rocha/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 345 PAULO Mendes da Rocha: Capela de São Pedro, Campos do Jordão, SP. Revista Projeto, n. 128. São Paulo, 1989. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/acervo/paulo-mendes-da-rocha-capela-de-sao-pedro-campos-do-jordao-sp/>. Acesso em: 01 abr. 2022. 568 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 ARTIGAS, Rosa. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. CALDAS, Bruno Tropia. Paulo Mendes da Rocha, poesia de uma linha só: o Museu de Arte Contemporânea de Ouro Preto. In: 5º SEMINÁRIO INTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E ARQUITETURA DE MUSEUS, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA 2016, Rio de Janeiro. CARTA DE VENEZA. In: Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, 1964. Disponível em: <http://portal. iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%20 1964.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2022. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 569 RELAÇÕES ENTRE PINTURA BRASILEIRA E LITERATURA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: APONTAMENTOS INICIAIS Vitoria Amadio de Oliveira346 – amadio.vitoria@gmail.com Resumo: Trataremos das relações entre literatura e artes visuais no Brasil durante o final do século XIX, explorando como tal produção foi fundamental para criar um diálogo com tendências estrangeiras e evidenciar um crescente gosto por representações com aspectos contemporâneos que referenciavam obras literárias já consolidadas. Intenciona-se traçar considerações sobre os diálogos estabelecidos entre as duas instâncias a partir da perspectiva da história da arte, evidenciando as obras de alguns pintores importantes do período, como Pedro Américo, Rodolpho Amoêdo e Aurélio de Figueiredo. Esta publicação busca iniciar uma discussão mais ampla sobre a arte baseada em literatura, através de análises sobre suas funções e suas popularidades. Tais aspectos da pesquisa trarão à tona a hipótese de que a popularização das pinturas inspiradas pela literatura está relacionada com a flexibilização dos gêneros artísticos e com as crescentes liberdades que os artistas experimentavam em seus trabalhos. Palavras-chave: Pintura brasileira; Literatura; Século XIX. Relations between Brazilian painting and literature in the second half of the 19th century: initial notes 346 Esta publicação faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Romances em pin- turas: representações de personagens femininas literárias no Brasil (1880-1920)”, orientada pela Profa. Dra. Elaine Dias, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa conta com financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2020/13472-1. 570 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Abstract: We will discuss the relations between literature and visual arts in Brazil during the late 19th century, exploring how that production was fundamental to create dialogues with foreign tendencies and demonstrate an ongoing taste for representations with contemporary aspects that evidenced already canon literary works. We intend to draw considerations on the dialogues established between the two instances through the perspective of art history, evidencing the works of important painters from the period, such as Pedro Américo, Rodolpho Amoêdo, and Aurélio de Figueiredo. Such aspects of the research will bring the hypothesis that the flexibilization of the artistic genres and the crescent liberty experienced by the painters are related to the popularization of literature-inspired paintings. Keywords: Brazilian painting; Literature; 19th century. INTRODUÇÃO A pintura brasileira da segunda metade do século XIX dentro do cenário acadêmico possuía uma gama variada de assuntos que lhe serviram como temática, já que ela era descendente de tradições anteriores consolidadas em países europeus. Dentre esses diversos assuntos, a literatura foi apenas um dos temas possíveis, utilizada para que se adequasse com as intenções dos artistas. No Brasil, esse tipo de obra foi utilizada tanto para explorar um caráter de formação do país quanto para inserir os artistas dentro da esfera artística mais atual no período. Abordaremos a seguir algumas minúcias sobre pinturas brasileiras inspiradas por literatura e suas relações com o contexto Oitocentista. Este texto é uma ramificação da dissertação de mestrado em andamento que trata sobre algumas personagens femininas literárias estrangeiras que foram representadas por pintores brasileiros, a partir de comparações de análises das possíveis intenções dos artistas e suas relações com as descrições e narrativas propostas por seus textos de origem. Nossos objetos de estudo são obras como Francesca da Rimini (1880), de Aurélio de Figueiredo, Desdêmona (1892), de Rodolpho Amoêdo e A morte de Virgínia (1905), de Antônio Parreiras. O primeiro capítulo ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 571 da dissertação, cuja temática origina esta publicação, contextualiza os objetos de estudo através da proposição de um estudo introdutório sobre pinturas inspiradas em literatura no Brasil no entresséculos XIX e XX, um exercício que objetiva uma melhor compreensão das condições que tornaram tais obras possíveis. É necessário que nos perguntemos se existe alguma coisa em comum nas pinturas baseadas em literatura, além do fato de se referirem a um texto. Observaremos se elas abordam assuntos semelhantes ou se estariam concentradas em um determinado período, por exemplo. Enfatizamos que tais considerações tratam-se de apontamentos iniciais, pois a vasta produção deste período necessita de estudos que contemplem uma gama maior de assuntos. Nesta publicação, nos restringiremos a tratar sobre obras que circularam em exposições públicas, que foram compradas pelo Estado e/ou que foram feitas por artistas muito presentes na produção do período. Utilizaremos como fonte prioritária os catálogos digitalizados por Carlos Roberto Maciel Levy das Exposições Gerais de Belas Artes (LEVY, 2003), evento realizado pela Academia Imperial de Belas Artes que tomava espaço central no cenário artístico da segunda metade do século XIX. É importante ratificarmos que essa esfera não resume esse tipo de produção, sendo as obras de circulação no âmbito privado igualmente relevantes. No mesmo sentido, reiteramos a importância de outros suportes, como gravuras e esculturas, para esse tipo de produção, embora tais meios não sejam contemplados com profundidade nesta publicação. Para fazer jus ao propósito introdutório, devemos delimitar o que será considerado como uma pintura baseada em literatura. De maneira mais ampla, nos referimos às pinturas que podem ser entendidas como representações de passagens específicas de livros. São obras que, através da cena representada e do título (geralmente) nos oferecem um reconhecimento imediato de uma passagem literária de que tenhamos o conhecimento prévio. Sendo assim, a pintura pode ser compreendida de maneira individualizada, mas ela ganha maior densidade quando analisada junto de sua referência anterior. Para este texto, nos limitaremos às obras que podemos relacionar com uma passagem específica, pois se 572 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 trata de um gênero muito comum, já que tais pinturas por vezes vinham acompanhadas de citações ou seus títulos indicavam de qual cena tratavam. Soma-se a isso o fato de que, comumente, vários artistas pintavam os mesmos temas literários, o que se unia à bagagem do observador e lhe possibilitava um número ainda maior de conexões. 1. ORIGENS O que os pintores brasileiros estavam realizando no período só foi possível em decorrência de uma longa tradição anterior que unia as duas artes através de comparações e hierarquizações. Uma das primeiras vezes que a ideia de as comparar foi formulada está contida na Epístola aos Pisões, escrita por Horácio na Antiguidade. O poeta escreve um documento que condensa orientações sobre como escrever poesia, endereçado a uma família patrícia. Sua noção sobre a relação entre a pintura e a poesia fica condensada na célebre Ut pictura poesis – a tradução da frase almeja equiparar a poesia à pintura, já que a segunda era mais prestigiada em sua sociedade. Ela acaba se transformando em um tipo de ideologia para artistas e poetas. Jacqueline Lichtenstein aponta sobre como o conceito adquiriu um sentido inverso no Renascimento, que submete as artes visuais à literatura, e como tal hierarquia prevaleceu até o século XIX. A autora discorre sobre como ela influencia aspectos importantes sobre as artes visuais, como a consolidação da visão da pintura como atividade liberal e desvinculada de seu aspecto manual. A abundância de pinturas inspiradas pela literatura possui, para autora, um vínculo explícito com essa tradição: Como no século XVIII seria infatigavelmente repetido, o pintor deve saber ‘narrar com o pincel’. Desde então, pintar consiste em transpor uma seqüencia narrativa, e portanto temporal, para o espaço de visibilidade que é o do quadro; em descobrir os meios de representar fielmente uma história respeitando um certo número de exigências próprias à composição pictórica. A pintura de história, que assinala ao mesmo tempo o triunfo do Ut pictura poesis e da estática de imitação, seria, a partir de então e durante séculos, considerada como a mais alta expressão da arte de pintar. (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13) ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 573 A menção da autora à “sequência narrativa, portanto temporal” é um ponto importante para tratarmos sobre outra diferença que deve ser bem delimitada: entre pintura baseada em literatura e pintura histórica. Não é incomum que uma pintura histórica tenha tema literário, produzida em grandes dimensões e representações exacerbadas ou dramatizadas de fatos reais. Mas, como sabemos, nem toda pintura de história possui um aparato literário e, da mesma forma, nem toda pintura inspirada pela literatura pode ser considerada como uma pintura de história. Para exemplificarmos tal noção, sugere-se a lembrança do quadro Fausto e Margarida (s.d) de Pedro Américo que, com suas pequenas dimensões, funciona como um engrandecimento muito discreto da história de Goethe. Apesar disso, é impossível negarmos que as duas categorias estão interligadas e que a notoriedade da pintura histórica, por mais que nesse período começasse a perder seu espaço que outrora fora tão absoluto na hierarquia dos gêneros, surge ainda como uma legitimação para as obras baseadas em literatura. Vale ressaltar que os temas ditos históricos ainda tinham um distanciamento maior do observador, sendo cenas muitas vezes jamais vistas, enquanto os literários poderiam sugerir um conhecimento mais profundo, considerando a forte presença dos livros no ambiente doméstico burguês daquele período e que elas poderiam ter sido vistas representadas em palcos. Tal discussão proposta por Lichtenstein sobre a importância do Ut pictura poesis e sua permanência também é mencionada por Mário Praz. Praz, ao dedicar um livro sobre o paralelo entre as artes visuais e a literatura, inicia sua obra tratando sobre o quão intercaladas as duas áreas sempre foram: 574 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 (...) a ideia de artes irmãs tem sido tão enraizada na mente dos homens desde os tempos da antiguidade remota que deve haver algo mais profundo do que uma especulação ociosa, algo provocador e que recusa ser dispensado levianamente, como todos os problemas de origens. Poderia ser dito que, investigando esses relacionamentos misteriosos, os homens pensam que se aproximam do fenômeno completo da inspiração artística.347 (PRAZ, 1967, p.3) Herdeiros da forma de ensino das artes europeias, da circulação de ideias sobre pinturas e, certamente, dos esquemas compositivos estabelecidos nos séculos anteriores, como aponta Praz, os pintores brasileiros do final do século XIX estavam cercados de referências que foram o bastante para consolidar o papel da literatura como temática de obras de arte. As “artes irmãs”, nesse período, adquiriram notoriedade e não seria difícil encontrarmos suas manifestações desde os anos de 1840 no Brasil. 2. O CENÁRIO BRASILEIRO É possível elencarmos muitos elementos que relacionam as produções brasileiras com as europeias, afinal, os artistas aprendiam com metodologias estrangeiras, tinham referências de artistas internacionais e muitos moravam por temporadas no exterior. Porém, junto a tal exercício, devemos levar em conta que existem particularidades relevantes no país que tornaram a produção artística uma manifestação diferente, sendo duas das questões mais proeminentes o colonialismo e a consolidação do país como uma nação. Mais especificamente no âmbito artístico, também devemos considerar a formação de um mercado de arte, o estabelecimento da Academia Imperial de Belas Artes e o sistema que possibilitava (ou não) o fomento às práticas artísticas. Tendo em vista tais aspectos, é possível dividirmos as pinturas baseadas 347 Tradução livre feita pela autora. No original: “On the other hand, the idea of the sister arts has been so rooted in men’s minds since times of remote antiquity, that there must be in it something deeper than an idle speculation, something tantalizing and refusing to be lightly dismissed, like all problems of origins. One might say that by probing into those mysterious relationships men think to come closer to the whole phenomenon of artistic inspiration.” ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 575 em literatura em duas categorias: as indianistas e as demais produções. Trataremos sobre elas individualmente a seguir e explicaremos a razão e o interesse por sua diferenciação. 2.1. INDIANISMO O indianismo pode ser compreendido como uma corrente Oitocentista brasileira em que indígenas, interpretados de maneira idealizada, estereotipada ou ambas, tornaram-se inspiração para manifestações artísticas. Tais pinturas possuem comumente inspiração literária de origem brasileira ou portuguesa, sendo essa segunda uma forma de ainda assim tratar sobre o nacional, porque recupera o que era entendido como as “origens” do país. Tamanho foi o esforço dos pintores de construírem uma narrativa de indígenas como símbolos que remeteriam ao Brasil que essas imagens sobreviveram e foram capazes de propagar conceitos por vezes prejudiciais e fonte de preconceitos. Essa longa fortuna imagética moldou a imagem de indígenas conforme fosse adequado aos propósitos requeridos: submissos e ingênuos como na Primeira Missa (1860) de Victor Meirelles, corpos sexualizados como em Faceira (1880) de Rodolpho Bernadelli ou dignificados heróis representativos do país inteiro como em Alegoria do Império Brasileiro (1872) de Francisco Manuel Chaves Pinheiro. As várias faces do indianismo demonstram diversas narrativas construídas sobre indivíduos considerados como “outros”, mas que nem sempre tinham intenções pejorativas. Na realidade, o indianismo é melhor lembrado pela sua junção de figuras indígenas com ideais românticos, condensados em personagens literárias que perdem seus interesses amorosos e são exaltadas como corpos ainda mais belos por estarem tristes ou até mesmo mortos – esses últimos demonstrando releituras do clássico viés de exaltação ao suicídio, característico desse período. Essas figuras apresentam intenções tão positivas quanto poderiam ser: individualizadas por serem nomeadas e possuírem um contexto detalhado, tais mulheres são exaltadas como heroínas dispostas a morrer por seus sentimentos. Meirelles foi o responsável, além de iniciar a tradição indianista na pintura, por unir a temática com outro 576 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 estilo literário em voga, que costumava ser referente a heroínas romantizadas de origem medieval, pois em sua Moema (1866), ele apresenta um corpo feminino suicida. A tática prova que os artistas brasileiros não assimilaram somente modelos, mas criavam com agência histórias novas para suas obras em diálogo com outras produções. A partir de então, surgem outras mulheres indígenas que condensam valores análogos, como Iracema, Lindóia e Marabá, que compõem o corpus da pintura brasileira de maneira enfática, sendo exaltadas pelo quão tristes eram seus dilemas, algo que só foi plenamente executado porque conhecia-se suas histórias. O capítulo indianista perdura348 e tem expoentes importantes. Lembremos que ele trata de obras muitas vezes que circulam em esferas públicas, abordam a própria noção de nacional, foram compradas pelo Estado e permanecem até hoje disponíveis ao público. Tais características são distintas de outras obras do mesmo período baseadas em literatura, pois elas não cumprem as mesmas funções. Nem todas as obras indianistas estão relacionadas com literatura e, as que estão, em sua maioria possuem de forma demarcada um teor romântico, visto numa uma idealização de questões relativas ao processo de consolidação do Brasil, como a problemática da miscigenação. As demais produções podem chegar a abordar questões semelhantes, mas isso ocorre com menor frequência porque os temas são mais diversos. Não existe, necessariamente, um tema em comum entre eles da mesma maneira que ocorrera com as obras indianistas. É mais adequado agruparmos o restante das pinturas inspiradas pela literatura por suas semelhanças com produções estrangeiras. Dessa forma, tratemos sobre essa outra vertente que surge ao lado do indianismo e que não se comporta de forma contrária, mas diz respeito a outros propósitos. 348 Apesar de seu apogeu na pintura se concentrar na década de 1880, resquícios po- dem ser vistos em décadas posteriores: a tela Iracema (1909) de Antônio Parreiras e o esboço intitulado Moema de Rodolpho Amoêdo apresentado na Exposição Geral de Belas Artes de 1921 são alguns exemplos. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 577 2.2 DEMAIS PRODUÇÕES Alguns dos mesmos pintores que se ocuparam de temas de origem indígena também realizaram obras inspiradas por livros estrangeiros, dentre os quais podemos citar Rodolpho Amoêdo e Antônio Parreiras. Mesmo assim, as duas práticas nos parecem muito distintas, pois os temas diferentes das histórias indígenas tratavam de questões para além do mito de origem e refletiam um gosto internacionalizado que equiparava os artistas com as esferas internacionais. Não era incomum que os próprios livros do período citassem romances estrangeiros – lembremos por exemplo de Dom Casmurro e sua relação com Otelo ou a de Lucíola com A Dama das Camélias – e a prática também existiu na pintura. Essas citações foram formas de demonstrar erudição, cativar o observador e provar que os trabalhos eram tão atuais que facilmente poderiam ser deslocados para outros momentos históricos sem perder suas relevâncias originais (ou, em muitos casos, até a ultrapassarem). No período estudado, as constâncias de livros que aparecem em pinturas traçam relações com temas que estavam também em voga na Europa. Quadros muito populares principalmente em cidades como Paris e Roma circulavam através de gravuras, menções em jornais ou viagens e compunham repertórios de artistas brasileiros. Embora existam muitas fontes literárias que podem ser citadas como parte desse fenômeno, destacaremos duas inspirações que foram constantemente atualizadas e aparecem na produção brasileira: a Divina Comédia de Dante Alighieri e as peças de Shakespeare. A obra-prima de Dante Alighieri narra a jornada do protagonista pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. As representações na pintura da Divina Comédia foram feitas, em sua maioria, mostrando o personagem principal e Virgílio ou Beatriz, mas outros personagens também foram utilizados como inspiração. Em específico, lembremos de duas passagens particularmente populares, isto é, as de Francesca da Rimini e Paolo Maletesta e a do relato do Conde Ugolino, sendo que, de acordo com Pedro Falleiros Heise, “(...) estas duas histórias da Divina Comédia foram das mais apreciadas, mas, no Brasil, a trama de 578 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Francesca e Paolo atraiu mais os tradutores.” (HEISE, 2007, p. 67) As numerosas traduções se relacionam com a existência de pinturas, pois no caso da passagem de Francesca, houve obras como Francesca da Rimini (1883), de Aurélio de Figueiredo e Paolo e Francesca (s.d.), de Décio Villares. Outros exemplos que se inspiraram no livro foram Saída da vida pecaminosa (1896) e Dante e Virgílio ascendendo ao Paraíso (1908) – ambos de Eliseu Visconti – e Dante (Canto V, do Inferno), de Lúcio de Albuquerque, apresentado na Exposição Geral de Belas Artes, em 1907. As peças de Shakespeare também foram temas recorrentes. Em seu país de origem, o revival da obra do inglês foi notável, especialmente a partir da produção da Irmandade Pré-Rafaelita. Durante o século XIX, não era incomum que fossem vendidas edições das peças e nem que elas fossem encenadas no Brasil, portanto, a transposição para pinturas a óleo foi uma manifestação praticamente esperada. Nos temas shakespearianos, muitos assuntos poderiam servir como inspiração, como os problemas em relacionamentos conjugais ou a loucura. Como exemplos desse tipo de produção, temos Desdêmona (1892), de Rodolpho Amoêdo, A visão de Hamlet (1893), de Pedro Américo, e três quadros intitulados como Ofélia, expostos em 1906, 1916 e 1917, pintados respectivamente por Auguste Petit, Álvaro Teixeira e Carlos Oswald, nas Seções de Pintura das Exposições Gerais. Verificaremos que os temas literários começam a aparecer ainda nas décadas anteriores ao meio do século. Um dos primeiros exemplos foi a obra apresentada em 1844 intitulada Desposada de Lammermoor (referência ao romance de Walter Scott) de Louis Auguste Moreaux que, nos anos anteriores já havia apresentado no Salon uma pintura inspirada em Fausto (DIAS, 2020). O artista também faria outras obras literárias no período: o Último Sono de Desdêmona (1848) baseada na tragédia Otelo de William Shakespeare e Faustina e Siomara (1850), inspirada pelo romance Mistérios do povo de Eugène Sue. Moreaux atuou nesse período, além de sua produção retratista, apresentando temas literários em locais públicos e ajudando, assim, para a consolidação desse tipo de obra. Exceto sua obra referente à heroína de Shakespeare, as outras ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 579 menções às pinturas nos catálogos demarcam a importância da fonte através de citações diretas dos trechos que serviram como inspiração para o artista. É possível que esse tipo de produção no Brasil tenha se iniciado com os esforços de Moreaux, assim como de outros artistas estrangeiros, como Jules Le Chevrel, que foi professor da Academia Imperial de Belas Artes e um dos que mais se valeu de inspirações literárias. Le Chevrel apresenta A rainha Elizabeth baseado no romance Kennilworth de Walter Scott em 1850, uma cena de Henrique III de Alexandre Dumas em 1852, Paraguaçu e Diogo Álvares Corrêa inspirados em Caramuru em 1862, uma passagem de A Dama de Montsoreau também de Dumas em 1864, cenas de Os Lusíadas em 1866 e, em 1867, uma cena da coleção de poemas de Victor Hugo intitulada La Legende des Siécles. Novamente, ressaltamos o fato de que tais obras referenciam livros brasileiros (quando o fazem) em uma escala muito menor que os estrangeiros, pois o aspecto internacional das próprias histórias, que muitas vezes tratam sobre heroísmos ou tragédias amorosas, parece ser algo importante para os artistas. Logo, concomitantemente aos esforços dos artistas franceses, apareceram mais expoentes brasileiros dessa prática. Além das obras já mencionadas, temos, em 1850, uma tela de Francisco Elídio Pânfiro representando a Ilíada e uma de Joaquim Lopes de Barros Cabral representando o romance Paulo e Virgínia de Bernadin Saint-Pierre – esse último que também foi tema de uma cópia apresentada por Mariano José de Almeida em 1875 e um quadro de Antônio Parreiras de 1905. Em 1880, Pedro Américo pinta O voto de Heloíse e, uma década mais tarde, Rodolpho Amoêdo realiza A narração de Filectas, inspirados, respectivamente, pela correspondência trocada entre Heloíse d’Argenteuil e Pierre Abélard e pelo romance Daphnis e Chloé. Como um único expoente da literatura brasileira, mencionamos o quadro Lucíola (1899), de Carlo de Servi, que pode ser uma referência ao romance de José de Alencar de 1862, mas, como não localizamos sua reprodução, é impossível afirmarmos com certeza. Por fim, lembremos do caso peculiar das obras inspiradas pelo romance Atala, escrito por François-René Chateaubriand em 1801, já 580 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 que elas transitam entre o indianismo e as demais produções baseadas em romances estrangeiros: trata-se de uma história escrita por um francês e que se passa nos Estados Unidos, mas com temática indígena. O livro, que se tornou muito popular na França e no Brasil, foi inspiração para pelo menos quatro pintores com produção nacional: Frederico Tirone e Leopoldino Joaquim Teixeira de Faria, que expuseram obras nas Exposições Gerais sobre o tema; Augusto Rodrigues Duarte, que realizou a monumental Exéquias de Atala (1878) e Rodolpho Amoêdo que pinta A morte de Atala, em 1883349. Com o caso de Atala, assim como da maioria dos livros que retomamos, ocorre que as telas são criadas muito depois dos lançamentos dos livros, o que só é possível porque os temas utilizados ganham nuances apropriadas para as décadas posteriores. Isto ocorre, possivelmente, em razão do maior protagonismo para as heroínas, da ênfase de cenas com apelo sentimental e da inserção de elementos nos quadros que estavam em voga na época, como objetos de decoração e vestuário. O uso de livros que já tinham um maior respaldo anterior também seria algo positivo para a aceitação das pinturas, pois elas seriam prejudicadas, caso a fonte literária não fosse muito conhecida ou tivesse causado controvérsias. Esses são alguns pontos que contribuiriam para explicar a popularidade de romances de séculos anteriores ou da primeira metade do XIX em pinturas. Dentro deste âmbito, existe um gênero semelhante de pinturas que aparecem nesse momento, embora em menor número. São retratos de atores e atrizes com seus figurinos de personagens, uma prática que junta uma pessoa que de fato existiu incorporando um personagem que a tornou aclamada, como é o caso do Retrato de João Caetano dos Santos como Otelo de José Corrêa de Lima, apresentado na Exposição Geral de Belas Artes de 1840 ou Retrato de Anna de Lagrange na ópera Norma (1860) de Louis-Auguste Moreaux, sendo esse último tema de 349 A obra de Amoêdo foi tema de estudo da Iniciação Científica intitulada “A morte de Atala de Rodolpho Amoêdo e os diálogos entre os romantismos francês e brasileiro”, orientada Profa. Dra. Elaine Dias, que contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo FAPESP nº 2018/17618-0. Um artigo referente à pesquisa pode ser acessado em <https://econtents.bc.unicamp. br/eventos/index.php/eha/article/view/3391/3292>. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 581 um artigo da historiadora da arte Elaine Dias (DIAS, 2019). São casos interessantes porque unem o rigor do retrato com as pinturas inspiradas em literatura e acabam por transitar entre o espaço da ficção (representado no figurino) e da realidade (representada no rosto do ator ou da atriz). Podemos ampliar ainda mais a discussão sobre esse tipo de produção mencionando os retratos de literatos, escritores e poetas feitos como homenagens ou encomendas. Figuras como Camões, Walter Scott e Victor Hugo são alguns exemplos que surgem em pinturas e bustos, além das referências aos seus trabalhos, em obras de artistas como Alfredo Jorge Eugênio Seelinger, Antônio Firmino Monteiro, Louis-Auguste Moreaux, Leopoldo Heck e Carlos Oswald. Práticas como essas duas também são ramificações da relação entre os dois campos e compõem o panorama que temos exposto até então. Numa breve troca de meios, mencionamos a relação dos escritos literários com o universo artístico. Livros como Mocidade Morta de Gonzaga Duque e História de um pintor contada por ele mesmo do próprio Antônio Parreiras mencionam as vidas de artistas e aparatos gerais que se referem às “artes irmãs”, tornando o relacionamento recíproco. Nesse sentido, ressaltamos a importância do ambiente de trabalho como simbólico para tais relações, já que “arte e literatura compuseram a imagem do artista em uma profusão de representações e o ateliê foi, sem dúvida, o lugar central destes enredos.” (DIAS; GOMES, 2021, p. 29) Seria inclusive possível pensarmos que tais práticas se legitimam, isto é, as diversas pinturas tratando de livros eram ainda mais justificadas pelos livros sobre pinturas e o oposto também poderia ocorrer. Dentro desse mesmo aspecto, ressaltamos a presença de livros ilustrados que compunham mais um ponto importante nessa rede de conexões. O desenvolvimento das técnicas de gravuras, a presença maior de editoras no país e a busca pela contraposição entre texto e imagem são alguns dos fatores que contribuíram para que um número crescente de livros ilustrados ocupasse as mãos de leitores brasileiros, o que acarretava em uma circulação de imagens ainda maior. As gravuras nos livros poderiam ser originais, caso algum artista fosse incumbido do trabalho (o que normalmente significava que o projeto de impressão daquela tiragem tinha um incentivo fiscal maior), ou poderiam ser reproduções 582 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 de pinturas famosas. Muitos dos livros que mencionamos anteriormente como tendo sido inspirações para pinturas tiveram edições com, no mínimo, uma gravura nas páginas iniciais, que surgem como provas de como seus relacionamentos com as imagens eram muito proeminentes. Por mais que tenhamos nos concentrado em um período específico, não existe propriamente um fim para esse tipo de produção. A pintura retomaria seu diálogo com a literatura em diversas instâncias, com representações que tomaram formatos ainda mais expansivos no século posterior, com processos como a globalização, a expansão da liberdade de criação, a crescente democratização da leitura, entre outros, que aumentaram as possibilidades para artistas. Mas tais fatores também contribuem para uma diferenciação dos temas de interesse dos artistas e as pinturas inspiradas por grandes clássicos, normalmente feitas em rígidas técnicas figurativas, perdem seu apelo em contraste com as inovações vanguardistas, pois podem ser consideradas, em muitos aspectos, como símbolos de ideais obsoletos. Embora a relação entre pintura e literatura não se finde, ela se modifica de forma considerável em meados do século XX no Brasil, assim como um processo semelhante ocorre com outras temáticas que também adquirem novas conotações, como a mitologia, por exemplo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da observação e análise de pinturas baseadas em literatura presentes na arte brasileira na segunda metade do século XIX, é possível verificamos como tal produção foi abundante e teve um caráter versátil. A temática da literatura aparece em variados contextos com funções como ratificar ideias sobre a construção do nacional, disseminar noções sobre determinadas personagens ou simplesmente ilustrar um crescente gosto por determinado material. É possível constatarmos como o uso da literatura aparece unido com questões relativas às produções particulares de cada artista, sendo, portanto, os trechos de livros utilizados como suportes para inovações técnicas, exploração de outros assuntos para além das figuras (como objetos e cenário) e novas composições. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 583 As pinturas mencionadas não constituem toda a produção sobre o assunto, mas podem oferecer um pequeno panorama sobre esse tipo de obra e já são suficientes para que levantemos questionamentos sobre o intercâmbio entre as duas esferas. Se temos evidências que, no período, os artistas tinham conhecimento sobre os livros para criarem seus trabalhos, a crítica tinha ciência de tais histórias já que as mencionavam muitas vezes com detalhamento e o público também reconhecia o que estava sendo apresentado, parece proveitoso que o historiador da arte também se debruce sobre os escritos literários com a devida cautela, a fim de verificar o que eles podem acrescentar às obras. Enfatizamos, portanto, a utilização de tal método como uma estratégia eficiente para a aproximação ao objeto, criando estudos interdisciplinares que considerem as particularidades dos dois campos. Esta publicação não pretende propor noções totalizantes ou definitivas. Buscamos, ao contrário, evidenciar a presença da literatura na pintura brasileira Oitocentista e a importância em analisar a segunda, tendo em vista a primeira. Com isso, esperamos contribuir para que haja mais estudos nesse sentido e para que as análises temáticas elucidem aspectos das obras tanto quanto proponham novos questionamentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIAS, Elaine (org.). Artistas franceses no Rio de Janeiro (1840-1884). Das Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes aos ateliês privados. Fontes primárias, bibliográficas e visuais. Prefácio: Jacques Leenhardt. Guarulhos: EFLCH-UNIFESP, 2020. __________. O retrato de Anna de La Grange como Norma, de Louis-Auguste Moreaux: a retratística teatral e a circulação de modelos no Brasil do século XIX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, p. 170-193, 2019. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/161913/155860>. Acesso em 09 de março de 2022. 584 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 DIAS, Elaine; GOMES, Natália Cristina Aquino. 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ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 585 RELAÇÕES ENTRE O GRAFITE E O CONFLITO ISRAELO-PALESTINO: ASPECTOS ESTÉTICOS, POLÍTICOS E COMUNICATIVOS Vitória Paschoal Baldin350 - vitoria.baldin@unifesp.br / vitoria.pbaldin@gmail.com Resumo: Esse trabalho objetiva analisar os grafites produzidos nas duas primeiras décadas do século XXI (2000-2020) nas regiões da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, articulando-os com outras expressões de arte de rua produzidas em outras localidades da região. Assim, busca-se compreender as correlações entre o contexto de conflito, exclusão e a violência para com produção e a estética do grafite, explorando a relação dessas expressões na vida diária nessas regiões. Para tanto, partiu-se do registro destas comunicações como documentação primária e, a partir da descrição desses objetos e do levantamento bibliográfico, realizaram procedimentos analíticos e comparativos para compreender as temáticas e signos mais comuns e forma pela qual estes mobilizam repertórios e transmitiam mensagens para seus espectadores. Esse processo objetiva documentar, descrever, analisar, comparar as práticas e as estéticas, observando as diferenças, assim como, os pontos de similaridade nas produções desses grafites. Dessa forma, argumenta-se que a arte de rua produzida em Gaza e na Cisjordânia são parte de um sistema comunicativo e estético amplo, articulando tradições locais, demandas sociopolíticas das populações locais e os repertórios internacionais ali mobilizados. Além disso, o grafite não apenas é atravessado por questões socioculturais provenientes do panorama, mas ele, também, é um importante mecanismo para mobilizações de ativismo, relembrando diariamente a população do conflito e instruindo as novas gerações sobre as pautas coletivas, conectando passado e futuro em discursos que 350 Esta publicação faz parte da pesquisa de desenvolvida na graduação intitulada “Comunicação, conflito e Arte: uma investigação sobre as produções de grafite em regiões do Oriente Médio em contextos de guerra”, orientada pelo Prof. Dr. Youssef Alvarenga Cherem, no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa conta com financiamento PIBIC-CNPq. 586 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 associam diretamente o indivíduo à nação. Palavras-chave: Grafite; Conflito Palestino-israelense; Ativismo; Cultura pop; Conflito; RELATIONS BETWEEN GRAFFITI AND THE ISRAEL-PALESTINIAN CONFLICT: AESTHETIC, POLITICAL AND COMMUNICATIVE ASPECTS Abstract: This work intends to analyze the graffiti produced in the first two decades of the 21st century (2000-2020) in the regions of the Gaza Strip and the West Bank, articulating them with other expressions of street art produced in other locations in the region. Thus, we seek to understand the correlations between the context of conflict, exclusion and violence towards the production and aesthetics of graffiti, exploring the relationship of these expressions in daily life in these regions. To do so, we started from the registration of these communications as primary documentation and, based on the description of these objects and the bibliographical survey, they carried out analytical and comparative procedures to understand the most common themes and signs and the way in which they mobilize repertoires and transmit messages to your viewers. This process aims to document, describe, analyze, compare practices and aesthetics, observing the differences, as well as the points of similarity in the productions of these graffiti. Thus, it is argued that street art produced in Gaza and the West Bank is part of a broad communicative and aesthetic system, articulating local traditions, sociopolitical demands of local populations and the international repertoires mobilized there. In addition, graffiti is not only crossed by sociocultural issues arising from the panorama, but it is also an important mechanism for activism mobilization, daily reminding the population of the conflict and instructing new generations about collective agendas, connecting past and future in discourses that directly associate the individual with the nation. Keywords: Graffiti; Palestinian-Israeli Conflict; Activism; pop culture; Conflict; ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 587 INTRODUÇÃO O presente trabalho analisa as relações entre comunicação, estética e política que atravessam o grafite — enquanto prática e produto (CAMPOS, 2010) — produzido nos Territórios Palestinos Ocupados351 (TPO) ao longo das últimas décadas do século XXI (2000-2020). O objetivo central é compreender as correlações entre o panorama de conflito, a violência, a exclusão e a produção artística do grafite contemporâneo. Partimos da definição de Lewisohn (2008) a respeito do grafite, compreendendo a prática a partir de dois pólos: a street art e a tagging. O autor entende que diversos contextos e produções estão relacionadas ao grafite a partir de interações e aproximações com tais macro-áreas. Isto é, a pixação, o grafite de gangue norte-americano, as crews e o grafite ilegal tem uma relação mais íntima com a tagging. Enquanto a arte de rua parte de um universo mais ligado com o mundo da arte legitimada, os murais e as carreiras artísticas. Ambos pólos possuem alguma ligação com o grafite ancestral, as práticas de comunicação públicas que ocupam nossas cidades há séculos, com a cultura Hip-hop e com o registro e o compartilhamento das comunicações através da internet. Assim, partiremos do entendimento do grafite como uma produção ampla, estando nela incluída práticas diversas. Nesse sentido, Campos (2010) argumenta que a visualidade é um elemento crucial de nossa história e cultura, refletindo as formas pelas quais entendemos e agimos visualmente sobre a realidade. A imagem é, para ele, o resultado de um processo de significação empreendido pelo sujeito enquanto elemento de identificação, imitação, reprodução ou metáfora de um real que o sujeito — individual ou coletivamente — reconhece, produz e partilha. Portanto, a estética do grafite contemporâneo palestino não pode ser analisada de maneira apartada à compreensão das violências e conflitos que ocorrem nesses espaços cotidianamente. 351 Utilizamos o termo Territórios Palestinos Ocupados em referência à Faixa de Gaza e a Cisjordânia — nomeada por Pappé (2007) como Palestina Política — em decorrência da falta de soberania palestina em Jerusalém. 588 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Atualmente, a partir de um discurso de segurança, o Estado de Israel impõe diversos cenários de violência para com os palestinos, em que acesso à água, terras, postos de trabalhos, escolas são progressivamente restringidos (BACKMANN, 2012). A descontinuidade territorial, associada a falta de mobilidade imposta aos palestinos, prejudica social, psíquica e economicamente a vida de incontáveis sujeitos, em que a construção do Muro na Cisjordânia agrava esse processo (HADDAD, 2020). Assim, como enfatizado por um artista palestino: “Se você mora em uma zona de conflito, qualquer coisa pode ser usada como arma. (...) Não é matar, mas conscientizar. Faz parte da luta” (JANNOL, 2018, s/p apud ERAY, 2020, p. 60. Tradução nossa). Neste trabalho, a dimensão comunicativa e cultural do grafite é encarada de maneira intimamente associada ao panorama de conflito, entendendo que a arte opera como um importante mecanismo político, possibilitando a compreensão das subjetividades presentes nesses espaços. Como Haugbolle (2013) aponta, a arte tem grande potência sociopolítica ao espelhar vidas, narrando histórias através de imagens e imaginários, em simultâneo, familiares e estranhos. Assim, é importante encarar tais produções como reflexões e emoções do cotidiano de sujeitos comuns. Analisamos a relação dessas produções com a coletividade e suas relações com o cidadão comum que examina, reflete e testemunha a obra e a realidade geradora de tais expressões. Entendemos, dessa maneira, o grafite como uma expressão comum a lugares de conflito, resultado da necessidade de resistência, denúncia e crítica frente ao poder, à dominação e ao silenciamento de minorias representativas. 1. METODOLOGIA A observação e análise descritiva das produções estruturam a base metodológica do trabalho. As imagens estudadas são provenientes de periódicos, estudos e publicações em páginas da internet. Ao longo da presente pesquisa, cerca de 180 registros fotográficos dos grafites foram analisados. O registro destas comunicações foi utilizado como documentação primária e, a partir da descrição desses objetos e do levantamento bibliográfico, foram realizados procedimentos analíticos e comparativos para compreender temas e signos comuns, repertórios ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 589 mobilizados e as configurações adotadas para transmitir tais mensagens a seus espectadores. Para o processo descritivo utilizamos a combinação das metodologias propostas por Edmund Feldman (1980, 1981 apud BARBOSA, 2005) e Robert William Ott (1997) em que as imagens são observadas em 4 etapas: (1) descrição da imagem a partir das primeiras impressões e sensoriais evocadas; (2) análise dos elementos da composição visual, estabelecendo relações entre eles; (3) consideração do contexto de produção, buscando mais informações sobre a obra e seu produtor, fundamentando a análise; (4) constatação de como a obra encontra uma linguagem para expressar sua mensagem, exprimindo o projeto estético para o espectador. Além disso, também utilizamos das proposições de Kress (2005) a respeito da multimodalidade, considerando que diversos grafites são compostos pela associação entre texto e imagem. Assim, os elementos pautados em lógica sequencial, como textos, e lógica de simultaneidade, especialmente, as imagens, são estudados em tais perspectivas. O local de suporte original do grafite também se configura como um elemento central para o estudo, compreendendo que tais espaços também carregam significação e implicam na associação dessas comunicações com outros elementos visuais e verbais. 2. RESULTADOS O grafite se configura como uma importante ferramenta para o ativismo artístico-cultural nos Territórios Palestinos Ocupados, em que aspectos sociopolíticos ocupam uma posição central na estética e na prática da arte de rua contemporânea. Diversas comunicações explicitam a transgressão e o desafio à ordem, tendo em vista que a visibilidade é uma forma de resistência352, negando os arranjos espaciais que sufocam as comunidades palestinas e possibilitando que essas comunidades reafirmem seus valores e sua existência (JARBOU, 2017). Assim, o grafite também opera como um gesto de solidariedade e cole352 Compreendemos a resistência como um fenômeno social e individual que articula continuidade e mudança, em um ato orientado para a construção de um futuro imaginado (AWAD; WAGONER, 2017). 590 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 tividade, possibilitando que diversos sujeitos lidem com a frustração, o medo e a insegurança. Como Karolak (2019) argumenta, no processo de socialização política há o desenvolvimento de uma identidade enquanto ativista, fomentando sentimentos relativos ao pertencimento, baseados em imagens, linguagens, definições e entendimentos sobre a realidade, oferecendo explicações, associações, soluções para a realidade cotidianamente enfrentada. Assim, os grafiteiros palestinos partem de um conjunto de símbolos possíveis, selecionando aqueles que melhor dialogam entre os fundamentos culturais dos grupos aos quais eles apelam e as suas próprias ideologias (TARROW, 1998 apud KAROLAK, 2019), objetivando estruturar obras de potência política e comunicativa. O grafite é um ato político (LI; PRASAD, 2018) de retomada de voz aos palestinos segregados, possibilitando que eles disseminem suas próprias narrativas e entendimentos sobre o atual conflito. O conteúdo verbal e icônico presente em tais comunicações carrega significado de maneira articulada com a transgressão da prática, diretamente articulado com o local escolhido como suporte para tal grafite. Nesse cenário, o Muro é uma construção de grande significado — sociopolítico, simbólico e comunicacional (TOENJES, 2014; SÁNCHEZ, 2016) —, apartando comunidades, recortando o território da Cisjordânia e inviabilizando os palestinos dos israelenses que vivem nas fronteiras. Isto é, ele torna-se “um grande lembrete diário para palestinos e judeus israelenses de um Outro perigoso e sem rosto, que vive do outro lado” (TOENJES, 2014, p. 36. Tradução nossa). Portanto, a especificidade do Muro enquanto suporte para os grafites decorre da rede de relações sociais e de poder incorporadas naquele local (JARBOU, 2017). A obra CTRL + ALT + DELETE353 de Filippo Minelli é um exemplo significativo desse processo. A obra de Minelli se utiliza do repertório proveniente da computação para demandar a queda do Muro, utilizando a construção como suporte, potencializando a crítica. Na obra podemos observar um grande escrito “CTRL + ALT + DELETE” 353 Veja em Zoghbi e Karl (2011, p. 67) ou em Wall in Palestine no Flickr. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/43405897@N04/4325890917/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 591 produzido em azul-celeste sob a barreira na Cisjordânia. Os grafiteiros, diversas vezes, produzem obras intrinsecamente ligadas a seu suporte — um site specific — questionando e reimaginando a própria existência dessa construção. A mobilização de uma linguagem vastamente conhecida facilita o alcance da mensagem e a transmissão da mensagem. De maneira semelhante, pintar paisagens, vistas e recortes na barreira354 joga com a imaginação dos espectadores, renegociando as relações entre o real e o ideal. Além disso, uma série de grafites enfatizam o problema relativo à construção do Muro, evidenciando a anormalidade da vida cotidiana nesses locais, como os lambe-lambes espalhados por Ron English na Cisjordânia em 2007 (PARRY, 2011, p. 60-61) que articula o personagem Mickey Mouse, ressignificando-o para criticar o contexto de violência presente nos TPO. Ainda nesse sentido, outras incontáveis obras mobilizam repertórios provenientes do universo da cultura de massas e memes, em que a circulação e rearticulação desses ícones planetários (CAMPOS, 2010) é uma ferramenta significativa para a difusão internacional desses grafites. Como Campos (2012) aponta, há um forte vínculo entre a globalização e a cultura visual presente nas artes de rua. Nesse sentido, grafiteiros como Taqi Spateen355, Cake$ Stencils356, Belal Khaled357 e Lushsux358 mobilizam elementos da cultura pop, de memes nas redes sociais, políticos internacionais e figuras de destaque em movimentos sociais — como Ghandi, Mandela e George Floyd — para discutir questões específicas das demandas dos palestinos e dos problemas cotidianos enfrentados nos TPO. 354 Um dos primeiros registros desse tipo de signo se refere a uma série de obras produzidas por Banksy na Cisjordânia ainda em 2005, em que Living room é um dos mais icônicos representantes dessa atuação. 355 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https:// www.instagram.com/taqi_spateen/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021. 356 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https:// www.instagram.com/cakes_stencils/ > Acesso em: 19 de janeiro de 2021. 357 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https:// www.instagram.com/belalkh/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021. 358 Para conhecer o trabalho do artista, acesse sua página. Disponível em: <https:// www.instagram.com/lushsux/> Acesso em: 19 de janeiro de 2021. 592 ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 Em um grafite registrado em Gaza por Lora Lucero (2012)359 podemos observar a mobilização desses repertórios em repertórios relativos à aprendizagem. Na obra temos a representação de um ambiente escolar, algumas crianças estão sentadas em carteiras e com o rosto voltado à professora que aponta com uma régua ao quadro. Sob a lousa, Gandhi, Mandela e Martin Luther King estão representados. Tais sujeitos foram figuras importantes para movimentos populares de libertação de reconhecimento transnacional, assim, o grafite denota a noção de aprendizado com as experiências vividas por essas figuras, dialogando com as demandas contemporâneas da região. A luta palestina é representada de maneira diretamente associada a lutas mais amplas, relativas à conquista de liberdade e igualdade. A mobilização massiva dessas figuras, bem como a utilização sistemática da língua inglesa, é estratégica, representando a preocupação com o espectador transnacional. Dessa forma, os grafites com elementos provenientes da cultura pop transnacional são utilizados de maneira diretamente articulada com a causa palestina e as demandas políticas mais concretas. Os grafites analisados neste trabalho, de maneira geral, operam como um lembrete diário do incômodo coletivo com a ocupação israelense e seus elementos invasivos, demandam perseverança, liberdade e apoio internacional para a causa palestina. CONSIDERAÇÕES FINAIS Argumentamos, portanto, que a arte de rua produzida em Gaza e na Cisjordânia compõem um sistema sociopolítico, estético e comunicativo mais amplo que articula as demandas cotidianas com repertórios diversos, objetivando estruturar uma nova frente de ativismo. Tais grafites relembram diariamente a população que vive nesses locais do conflito, conectando o real e o ideal, e fortalecem sentimentos relativos à unidade e ao pertencimento. O grafite não opera apenas em uma lógica de desafio à autoridade, refletindo as lógicas de poder presente no espaço de suporte, mas, ao ser registrado e compartilhado nas redes 359 Veja em LUCERO, 2012. Disponível em: <https://loralucero.wordpress. com/2012/12/18/gaza-street-art-rocks/#jp-carousel-1438> Acesso em: 19 de janeiro de 2021. ANAIS DO VI EPHA - ENCONTRO DE PESQUISAS EM HISTÓRIA DA ARTE | 2021 593 sociais, também representa uma importante ferramenta para a conquista de apoiadores internacionais. A configuração estética e linguística dos grafites evidencia a crescente importância de expandir o alcance da mensagem. Com um grupo de destinatários previamente idealizados, sejam eles locais ou estrangeiros que consomem a esta produção de forma virtual ou in loco, as obras dialogam diretamente com a realidade local palestina em aspectos diversos. Dessa forma, o sentido dos grafites só pode ser identificado a partir da analisa dos diferentes elementos materiais, políticos e socioculturais que compõem a obra, tendo em vista que questões relativas ao contexto palestino e a experiência do cidadão comum nos TPO são centrais para o grafite. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACKMANN, René. Um muro na Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2012. BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação: leitura no subsolo. Cortez editora, 2018. CAMPOS, Ricardo. A pixelização dos muros: graffiti urbano, tecnologias digitais e cultura visual contemporânea. 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UMA VISÃO DO FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL Nicoli Braga Macêdo1 - nbraga@autonoma.pt Resumo: O objetivo do presente artigo é apresentar a dicotomia no tratamento entre o corpo masculino/feminino, e a luta de tal exposição anatómica, ao evidenciar a fronteira e abismo existentes entre eles. Tendo por base a exposição do alicerce de minha tese de doutoramento, atualmente em desenvolvimento, ao colocar as principais considerações que circundam a hipótese deste trabalho, que visa a compreensão da mecânica de construção do corpo feminino e as modificações existentes dentro da Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa e da Academia Portuense de Belas Artes, nas décadas finais do século XIX. Desaguando, consequentemente, na realidade do âmbito escultórico e da arte pública, entre 1880 e 1926, um período que marcou historicamente o início de uma nova mentalidade na representação do feminino e da própria mulher enquanto ser social em Portugal. Focar no importante trabalho de investigação dentro das instituições e o enriquecimento que a documentação ou até a falta dela, causam no decorrer de uma investigação. Pontuar a trajetória realizada até então, mostrando rupturas e continuidades no caminho de minha pesquisa, considerar dentro dos eixos temáticos da História da Arte e da História das Mulheres o contato que existitu com outras realidades europeias, através dos artistas pensionistas, e até que ponto a mudança de característica vista em solo português pode estar relacionada com estes intercâmbios. Analisar a narrativa e a compreensão de uma relação ideológica nos projetos e execuções da estatuária monumental, e a partir dela compreender a existência de um discurso imagético sobre a mulher e suas vicissitudes. Reforçando a tentativa de provar que a obra de arte é, sobretudo, um aparato cultural mutável, e o seu resultado conota um significado para além de sua dimensão espacial, mas também uma dimensão cultural, política, temporal, geografica e social. Palavras-chave: Belas Artes; História da Arte; História das Mulheres; Escultura. Abstract: The purpose of this article is to present the dichotomy in the treatment between the male/female body, and the struggle of such anatomical exposure, by highlighting the border and abyss between them. Based on the exposition of the foundation of my doctoral thesis, currently under development, by placing the main considerations that surround the hypothesis of this work, which aims to understand the mechanics of the construction of the female body and the existing modifications within the Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa and the Academia Portuense de Belas Artes, in the final decades of the 19th century. Flowing, consequently, in the reality of the sculptural scope and public art, between 1880 and 1926, a period that historically marked the beginning of a new mentality in the representation of the feminine and the woman herself as a social being in Portugal. Focus on the important research work within the institutions and the enrichment that documentation, or even the lack of it, causes in the course of an investigation. To punctuate the trajectory carried out until then, showing ruptures and continuities in the path of my research, to consider within the thematic of the History of Art and the History of Women the contact that existed with other European realities, through the pensioner artists, and to what extent the characteristic change seen on Portuguese soil may be related to these exchanges. To analyze the narrative and understanding of an ideological relationship in the projects and executions of the monumental statuary, and from there to understand the existence of an imagery discourse about women and their vicissitudes. Reinforcing the attempt to prove that the work of art is, above all, a mutable cultural apparatus, and its result connotes a meaning beyond its spatial dimension, but also a cultural, political, temporal, geographical and social dimension. Este artigo advém da pesquisa de doutoramento em História, ainda em desenvolvimento, intitulada “A Estatuária Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República”, orientada pelo Prof. Dr. Miguel Figueira de Faria e pela profª. Drª. Aline Gallasch-Hall de Beuvink, no Departamento de História, Artes e Humanidades da Universidade Autónoma de Lisboa. A pesquisa conta com financiamento da CEU - Cooperativa de Ensino Universitário - UAL. Doutoranda em História e investigadora integrada ao Departamento de História, Artes e Humanidades e ao Centro de Investigação em Ciências Históricas da Universidade Autônoma de Lisboa (DHAH/CICHUAL). 1 Keywords: Fine Arts; History of Art; History of Women; Sculpture. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este artigo advém como uma reflexão da investigação da tese de doutoramento, ainda em desenvolvimento, intitulada “A Estatuária Feminina em Portugal. Práticas e Representações da Monarquia Constitucional à Primeira República” a qual versa sobre dois eixos temáticos, o primeiro da História da Arte e o segundo da História das Mulheres. Uma junção que visará compreender as mudanças de tratamento plástico nas artes visuais em conjunção as questões da história social e das mentalidades. Pontuar como se deu essa trnasformação do ser feminino social e político na transição do século XIX para o século XX. Tal definição se faz necessária para entendermos os meandros da pesquisa e como a mesma está alicerçada no que é denominado como “paradigmas do feminino”. Estes são interpretados à luz de uma diversa documentação, desde desenhos, esboços, livros de matrícula até chegarmos na execucação da obra escultórica em si, no período cronológico correspondente entre 1880 e 1926. Um hiato temporal escolhido através da documentação encontrada. Em primeiro lugar a década de 1880 que marca o início da entrada efetiva de alunas mulheres nas escolas de belas artes, das cidades de Lisboa e do Porto, bem como, o surgimento dos primeiros desenhos de nu feminino em 18812 no cerne das mesmas academias. Já na década de 1920, em que temos vários exemplos de esculturas públicas que possuem um tratamento estético/plástico diferenciado, no que diz respeito a imagética feminina, principalmente o ano de 1926 com a escultura denominada Maria da Fonte, localizada em Lisboa, executada pelo escultor Costa Mota (tio), que marca o ápice de uma nova análise da composição iconográfica e iconológica em comparação ao que vinha sendo feito em Portugal, até então. 1 UMA VISÃO DO FEMININO NAS BELAS ARTES EM PORTUGAL O contexto social feminino alterar-se-á na transição dos dois séculos, XIX e XX, no continente europeu. Uma mudança paulatina e sutil, com avanços e conquistas muitas vezes sentidos somente décadas à frente. Até então, um grande estereótipo marcava a diferença do tratamento dado aos artistas homens em comparação às artistas mulheres perante a sociedade. Enquanto os primeiros eram sempre retratados na boêmia vida de artista, seja na literatura ou na música, por exemplo, sempre de 2 Inventário Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Museu Virtual. Fevereiro, 2021. Nº de Inventário: FBAUL/337/DA. Disponível em: http://museuvirtual.belasartes.ulisboa.pt/. Acesso em: 01/02/2022. forma positiva, as mulheres quando se destacavam, o que por si só era já bastante dificultoso, eram questionadas na sua honra e moral, além de acusadas de agir dentro da esfera da masculinidade. Na linha desta realidade, o estudo e compreensão, aqui demonstrados, desta trajetória recai no entendimento também do chamado inconsciente coletivo que existia no âmbito da imagética do feminino, tendo então por objetivo primário demonstrar a existência de uma evolução seja da figura da artista mulher, seja de sua representação enquanto arte na escultura portuguesa, uma passagem que pode ser classificada em ambos os casos como uma verdadeira emancipação. Importante ressaltar que o conceito de emancipação é configurado no horizonte histórico geografico europeu, pois já existiam publicações destinadas e voltadas para uma análise do comportamento da mulher já nos séculos XV e XVII, como afirma a historiadora de arte espanhola Patricia Mayayo: La historia del movimiento feminista tiene ya (aunque muchas veces se pretenda ignorarlo) bastantes siglos de antigüedad. Ana de Miguel señala la existencia de lo que podríamos llamar de un feminismo ´premoderno´, que arranca con el surgimiento de las primeras ´polémicas feministas´: La Ciudad de las Damas (1405) de Christine Pizan (…) o el movimiento literario impulsado por las ´preciosas´ (les précieuses) en los salones parisinos del siglo XVII (…) Pero es con la publicación de ´La igualdad de los sexos´ del filósofo cartesiano Poulain de la Barre en 1673 y con el surgimiento de varios movimientos organizados de mujeres durante la Revolución Francesa cuando se sientan las bases del feminismo moderno. (MAYAYO, 2003, p.15). Ações que atuam no encontro de um movimento feminista, embora não possam ainda ser classificadas como tal, mas sim, o fertilizar de um solo do que viria futuramente conjugar em um movimento propriamente dito e que conhecemos atualmente como as “ondas feministas”, já no século XX e XXI. Uma destas ações que merece destaque foi a luta pelo sufrágio feminino na Europa e que mostra a efervescência de tais questões no estrangeiro e que obviamente tiveram impacto também em Portugal. Aqui, cabe recapitular a evolução cronológica da presença feminina no âmbito das academias portuguesas e como pouco a pouco elas foram ganhando o seu espaço em um universo até então dominado pelos homens. Os dados levantados e quantificado quantificados ao longo do texto correspondem a Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa (em sua denominação inicial) e a Academia Portuense, ambas fundadas em 1836 e que “(...) vão tentar importar para os seus estudos artísticos as bases acadêmicas vigentes nas congéneres de Roma e Paris, onde o acento no ensino do Desenho era primordial, tomando para si idêntico sistema de emulação dos estudantes (...)” (SERRÃO, 2016, p.1); o que permitiu a realização de uma ampla observação da inserção das mulheres neste universo acadêmico. Porém, antes de adentrarmos especificamente no universo do desenho e, falarmos da especificidade de alguns trabalhos, torna-se fundamental atentarmos para a formação artística a reforma das Academias de Belas Artes. Datada de 21 de Março de 1881, denominada como: “Reforma das academias de bellas artes de Lisboa e Porto”, evoca no título II, capítulo VIII o seguinte texto: “Dos alunos (...) Art. 54º Serão admitidos à matrícula em qualquer destas classes, os indivíduos de ambos os sexos que o requererem ao inspetor da academia.”. Segundo o disposto nos estatutos das Academias de Belas Artes, ao contrário do texto legal de 1823 que procurara criar a primeira instituição deste género no país, não se previa de forma explícita a abertura dos seus cursos a alunos do sexo feminino, todavia, também nenhuma disposição estatutária lhes impedia nem a matrícula nem a frequência dos seus cursos. Mais tarde, no texto da reforma de 1881, volta a explicitar-se que seriam admitidos alunos de ambos os sexos. (...). (LISBOA, p.137) A partir daí buscamos analisar a documentação de matrícula das academias de Lisboa e do Porto entre os anos de 1880 até 1926 e tentar reconstruir a presença feminina e de sua formação acadêmica. De um modo geral, foi possível constatar um número significativo de alunas a partir da década de 80, principalmente nas cadeiras de pintura e desenho de ornato, todavia, importante destacar que existe um maior número de alunas na cidade do Porto em comparação com a capital Lisboa, o que nos leva a crer em uma maior abertura na cidade nortenha na emanicapção social feminina. Outro factor que pode-se deixar evidenciado são as primeiras alunas da cadeira de escultura. Na cidade de Lisboa foi Mariana da Anunciação Leoni Pereira 3, 25 anos, primeiramente no ano de 1917. Já no Porto os primeiros registos são mais antigos, com as alunas Lucilia Augusta Aranha (1889-1900) e Alice Adelaide Guilherme Moutinho (1890-1892)4. Através desta breve análise podemos entender outros elementos que conjugam o caminho desenvolvido pelas mulheres e, principalmente, estudarmos a mudança de uma hegemonia totalmente masculina e começarmos a observar a dicotomia dos olhare agora também femininos na arte. Pontuar como as mulheres entram, que aulas frequentam, quais as notas, e outros tantos dados quantitativos que auxiliam outras problematizações, as quais serão deixadas para o desenvolvimento da referida tese de doutoramento, na qual terá espaço para que sejam colocados outros pormenores quantitativos que possam esclarecer o desenvolvimento do feminino enquanto ser social e artístico na esfera profissional das academias. 3 Tanto nos livros de matrícula gerais quanto no livro de escultura e estatuária de 1883 a 1953 Mariana da Anunciação Leoni Pereira é a única mulher matriculada nesta cadeira. O primeiro registo é de 1917 quando tinha 20 anos e o último de 1921 com 24 anos. Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. 4 Livro de Matrículas - Aula Escultura Ordinários (1837-1907) - PT/APBA/F1-4/03-05 (Cota 18). Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. 1.1 O DESENHO ANATÔMICO: DA PRIMAZIA MASCULINA AO GRADUAL FEMININO “O estudo do corpo humano, das suas proporções e anatomia, foi reconhecido pelos primeiros tratadistas do Renascimento, como Leon Batista Alberti (1404-1472), Leonardo da Vinci (1452-1519) e, entre nós, por Francisco de Holanda (c. 1517-1584), como princípio fundamental de qualquer artista.” (FARIA, 2008, p.126). Útil e primordial para o artista e a sua arte é então o estudo do modelo. Principalmente para o escultor o foco está na peculiaridade dos “três estados da representação escultórica, Desenhar/Modelar/Esculpir”, como foi concebido pelo célebre escultor português Joaquim Machado de Castro, enfatizanado a característica principal tridimensional da escultura e, consequentemente, toda a carga ideológica que a comporta, sem deixar de lado a primordial técnica do desenho, que aqui compreende-se pelo desenho anatômico especificamente. No caso da expressão através da natureza os artistas têm a sua tarefa facilitada pois podem livremente trabalhar com a paisagem, animais, plantas, etc., o que não ocorre no trabalho com o corpo humano. No panorama internacional, a historiadora de arte Linda Nochlin afirma que o uso de modelos masculinos era realizado pelas academias já no final do século XVI e início do século XVII, todavia, em um momento inicial em estúdios privados. Sobre os modelos femininos, nosso objetivo de análise, relata que embora fossem presentes também no âmbito particular as academias públicas proibiram a prática até 1850, o que não ocorreu no caso masculino. Modelo vivo, neste contexto, quer eufemisticamente dizer modelo nu o que levantava óbvias questões de ordem social de especial consequência para as mulheres que pretendessem uma formação artística séria. Era dado adquirido que o modelo vestido não poderia substituir o nu, uma vez que o trabalho escultórico verdadeiramente sério teria necessariamente que assentar num profundo conhecimento do corpo humano. Habitual, era a execução prévia da figura nua, a fim de assegurar uma estrutura sólida e uma representação do corpo correcta, que só numa fase final se vestia de acordo com os requisitos da personagem a representar.” (MATOS, 1998, p.24) Em Portugal os desenhos de modelo feminino apareceram coincidentemente na mesma altura da presença das mulheres na academia, na década de 1880. Desenhos que, embora pertencentes às academias portuguesas, eram executados no estrangeiro, como por exemplo nas academias de Roma e Paris, o que reforça novamente a perspectiva de influência externa de diversas alterações, principalmente sociais, para com o universo feminino. É então a partir da década de 1880 que observa-se o trabalho através de modelos femininos ao natural, aos moldes que eram realizados já com os modelos masculinos. Através desta ação nos é possível concluir uma grande mudança de mentalidade que estava ocorrendo no continente europeu, seja para com a figura de representação feminina, seja para a sua inclusão também enquanto artista. Em concordância com a historiadora portuguesa Filipa Lowndes Vicente, que observa, no decorrer do século XIX, uma mudança do papel da mulher, agora de sujeito duplo, tanto como observadora, quanto observada: Uma diferença óbvia é que se, anteriormente, a mulher nua na pintura era historicizada, colocada numa narrativa que a retirasse das referências ao mundo contemporâneo do observador e à corporalidade do “real”, a partir da segunda metade do século XIX ela passa a ser a mulher “real” que, no estúdio do artista-homem, ocupa o espaço quer da musa artística, quer da sexualidade latente entre artista e modelo. (VICENTE, 2012, p.185). É exatamente na relação entre os sujeitos e os objetos acima referida que, apesar de muito discutida, ainda não está superada, pelo contrário, que recai a importância para a escolha desse tema de investigação. Compreender, principalmente, através das obras de arte, como se dá a viragem desta relação do e com o feminino e quais os reflexos e códigos intrínsecos, ao produzir artístico, que podem emergir enquanto fonte documental para os historiadores problematizarem a sua posição dentro das artes visuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo central foi trazer à tona provocações e dar voz as mulheres, contrapondo o esquecimento e o silêncio histórico que circundam a narrativa do feminino em sua grande maioria. Ajudar a problematizar a partir do presente, através desta temática atual, uma realidade do passado e que estava circunscrita em importantes mudanças sociais, políticas e ideológicas na transição entre os dois séculos em questão, no continente europeu, especificamente em Portugal. O debate sobre os grupos tidos como minoritários, entendendo tal conceito como os menos representados em termos historiográficos, visa a recuperação de personagens. Além de demonstrar que os processos históricos não são apenas constituídos por jogos de poder, que favorece os mais privilegiados, mas sim, alcançar também os elos frágeis que sofreram e ainda sofrem as consequências dos silêncios e omissões5, como acontece no caso das mulheres. Posto isto, há uma necessidade de fomentar a área de estudo da História das Mulheres em Portugal e a escassez de trabalhos que foquem tal temática foi um grande propulsor para o surgimento 5 Nos últimos cinco anos em Portugal houve uma crescente em trabalhos académicos que visam a perspetiva feminina na História da Arte, embora ainda seja uma área que precise de muito mais visibilidade. Ao pesquisarmos em títulos as palavras “arte e mulher”, entre 2015-2020, temos: 6 artigos e 2 dissertações de mestrado, ao alargarmos a mesma pesquisa para o início da base de dados 1822-2020 os números alteram-se muito pouco: 11 artigos, 6 dissertações de mestrado e 2 teses de doutoramento. Com as palavras “ arte e feminino” o mesmo repete-se, entre 2015-2020: 3 artigos, 4 dissertações de mestrado e 3 teses de doutoramento, ao alargamos para 1822-2020: 4 artigos, 9 dissertações de mestrado, 7 teses de doutoramento. Fevereiro, 2021. Disponível em: https://www.rcaap.pt/. desta pesquisa. Um novo desafio, em é uma área em crescente desenvolvimento; há uma grande diferença na academia portuguesa e brasileira no âmbito da História das Mulheres, no Brasil estudase há mais tempo e de forma mais acentuada, enquanto em Portugal, existem trabalhos, porém ainda em uma crescente se comparadas com outras temáticas. Em suma, este artigo, bem como sua investigação doutoral torna-se uma mais valia. Principalmente por abrir caminhos para que outros trabalhos possam surgir. Questionar essas ausências do feminino na História e tentar dar voz a essas mulheres artistas, conhecendo desde a sua formação profissional e pensar, sobretudo, a arte como problematização de estereótipos, concebendo as obras de arte como um mecanismo cultural mutável que precisa ser compreendido em suas especificidades, sejam elas sociais, culturais, políticas, geográficas ou temporais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Silvia Lucas Vieira. Forma e conceito na escultura de oitocentos. Lisboa:, 2012. 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