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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS DOUTORADO Iberê Camargo. Influência é desenho. Vinícius Oliveira Godoy Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Artes Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte. Orientadora: Prof.ª Dra. Mônica Zielinsky Porto Alegre, outubro de 2009. 2 Vinícius Oliveira Godoy Iberê Camargo. Influência é desenho. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Artes Visuais com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte. COMISSÃO EXAMINADORA _______________________________________________ Professora Doutora Mônica Zielinsky (Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Artes _______________________________________________ Professora Doutora Vera Beatriz Siqueira Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Instituto de Artes _______________________________________________ Professora Doutora Patrícia Lessa Flores da Cunha Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Letras _______________________________________________ Professora Doutora Blanca Luz Brites Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Artes _______________________________________________ Professor Doutor Flávio Roberto Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Artes Porto Alegre, 5 de outubro de 2009. 3 Para meus pais e irmãos, primeiras influências desenhadas. 4 Agradecimentos Agradeço às seguintes instituições: Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por aceitar este projeto de pesquisa. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por tornar possível esta pesquisa, através de seu imprescindível apoio financeiro. À Fundação Iberê Camargo, por franquear seu arquivo sem nenhum impedimento para esta pesquisa. À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que me proporcionou um ensino gratuito e de qualidade desde meu ingresso como aluno de graduação, em 1995. Agradeço às seguintes pessoas: À minha orientadora, Prof.ª Dra. Mônica Zielinsky, por ter acolhido esta pesquisa com entusiasmo, atenção e cuidado e por criar um espaço de trabalho em que a franqueza e a absoluta liberdade intelectual estiveram sempre presentes. A ela, minha imensa gratidão. À Prof.ª Dra. Blanca Brites, que acompanhou esta pesquisa desde o início, através de suas estimulantes disciplinas por mim cursadas, pelas importantes observações feitas no momento da qualificação. Ao Prof. Dr. Flávio Gonçalves, que acompanhou minha caminhada por este Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais desde o início e a quem devo uma pergunta que norteou boa parte do desenvolvimento dessa pesquisa a partir da qualificação: “por que o desenho?”. À Prof.ª Dra. Patrícia Lessa Flores da Cunha, por sua fundamental contribuição no momento da qualificação desta tese, através da indicação segura do caminho a percorrer nos estudos de Literatura Comparada. À Prof.ª Dra. Vera Beatriz Siqueira, por ter aceitado o meu convite e o de minha orientadora para a participação nesta banca; através de suas análises da modernidade brasileira, contribui para o entendimento do panorama a partir do qual nossas questões se assentam. À Profa Dra. Lenora Rosenfield, por sua importante contribuição durante a banca de qualificação, através de sua leitura atenta e suas precisas observações. 5 Aos meus professores desse Programa de Pós-Graduação, os quais, ainda que não citados nominalmente, representam parcela importante na construção desta tese. Aos membros do Comitê Editorial da Revista Porto Arte, de cujo grupo de apoio fiz parte, pela oportunidade de aprendizado e colaboração acadêmica. Ao meu orientador de mestrado, Prof. Dr. Edson Luis André de Sousa, por ter proporcionado meu ingresso neste Programa de Pós-Graduação e ter acolhido questões, muitas delas desenvolvidas agora no doutorado. Ao meu orientador de graduação do Bacharelado em História, José Augusto Avancini, por ter mostrado, naquela época, que era possível estudar arte. Aos meus queridos colegas do doutorado, pelo debate franco e fraterno e pela amizade surgida a partir dessa convivência. Aos meus amigos, pela constância, apesar dos meus momentos de ausência por conta desta pesquisa. 6 Este verso, apenas um arabesco em torno do elemento essencial - inatingível. Carlos Drummond de Andrade 7 Resumo Esta tese investiga a obra de desenhos de Iberê Camargo, a partir de seu acervo na Fundação Iberê Camargo. A obra e as análises historicamente construídas sobre ela são vistas no contexto da modernidade brasileira, em um entrelaçamento dos discursos elaborados por sua crítica e pelas próprias declarações do artista. Salientamos um tipo de discurso moderno que é marcado pela exaltação da solidão artística e que conduz a um encobrimento das relações estabelecidas com outros artistas. Em conjunto com essa obra, é estudado o desenho como questão teórica específica, entendido em sua autonomia. Analisa-se, ao estudarmos a relação com outros artistas, o problema da influência como questão teórica particular, tendo origem nos estudos da Literatura Comparada e procurando estudar sua especificidade no campo da arte. Finalmente, procura-se elaborar uma teoria da influência, articulada com as teorizações sobre o desenho, que seja capaz de constituir-se em uma ferramenta útil para o estudo da obra desse artista, vista sob a perspectiva de sua relação com outras obras de outros artistas. Palavras-chave: Iberê Camargo, desenho, influência, modernidade brasileira. 8 Abstract This thesis investigates the drawing work by Iberê Camargo, with reference to the collection at the Iberê Camargo Foundation in Porto Alegre. His work and the historical analyses constructed about him are seen in the context of Brazilian modernity, in function of the interlacing of discourses elaborated in criticism of his work and through the artist’s own statements. We stress a type of modern discourse which is marked by the exaltation of artistic solitude and which leads toward the concealment of relationships he maintained with other artists. In conjunction with this artwork, drawing itself is studied as a specific theoretical subject, understood in its autonomy. In studying his relationships with other artists, we analyze the problem of influence, which is a particular theoretical issue having its origin in the studies of Comparative Literature, seeking its specificity in the field of art. Finally, we seek the elaboration of a theory of influence linked to theorizations about drawing which is capable of establishing a useful tool for the study of this artist’s work seen through the perspective of his relationships with other artists and their artwork. Keywords: Iberê Camargo, drawing, influence, Brazilian modernity. 9 Índice de Ilustrações Imagem 1 - D2592 “O olho caminha sobre a linha”, 1987, caneta esferográfica sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Acervo FIC. p. 159 Imagem 2 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. p. 169 Imagem 3 - D0414 “Estudo para 'no tempo”, 1991, caneta esferográfica sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC. p. 177 Imagem 4 - D2030 [Boca do Monte], 1927, lápis sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC. p. 188 Imagem 5 - D0136 Sem título, 1928, lápis sobre papel, 15,5 x 25 cm. Acervo FIC. p. 189 Imagem 6 - D1756 Sem título, 1938, carvão sobre papel, 27,7 x 22,4 cm. Acervo FIC. p. 190 Imagem 7 - D2326 Sem título, 1939, carvão sobre papel, 55,2 x 48,4 cm. Acervo FIC. p. 191 Imagem 8 - D2324 Sem título, 1939, carvão sobre papel, 63,2 x 48 cm. Acervo FIC. p. 192 Imagem 9 - D0527 Sem título, 1940, lápis sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC. p. 193 Imagem 10 - D2328 Sem título, 1940, carvão sobre papel, 63 x 48 cm. Acervo FIC. p. 194 Imagem 11 - D1444 Sem título, 1940, carvão sobre papel, 20,9 x 24,8 cm. Acervo p. 195 FIC. Imagem 12 - D3228 Sem título, 1940, lápis sobre papel, 20,5 x 22,2 cm. Acervo FIC. p. 196 Imagem 13 - D0520 Sem título, 1940, nanquim sobre papel, 30,5 x 21,3 cm. Acervo FIC. p. 197 Imagem 14 - D1492 Sem título, 1940, nanquim sobre papel, 26 x 22,5 cm. Acervo p. 198 10 FIC. Imagem 15 - D1809 “À beira do rio Jaguari”, 1941, lápis sobre papel, 27,2 x 22,1 Acervo FIC. p. 199 Imagem 16 - D1830 Sem título, 1941, giz sobre papel, 15,1 x 20,4 cm. Acervo FIC. p. 200 Imagem 17 - D2597 Sem título, 1941, giz sobre papel, 22 x 17,5 cm. Acervo FIC. p. 201 Imagem 18 - D1094 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 63 x 48 cm. Acervo FIC. p. 202 Imagem 19 - D1103 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 62 x 48 cm. Acervo FIC. p. 203 Imagem 20 - D0047 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 27,7 22 cm. Acervo FIC. p. 204 Imagem 21 - D1089 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 63,7 x 48,3 cm. Acervo p. 205 FIC. Imagem 22 - D0533 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 30,2 21,8 cm. Acervo FIC. p. 206 Imagem 23 - D1780 Sem título, 1942, giz sobre papel, 24,3 x 19,5 cm. Acervo FIC. p. 207 Imagem 24 - D1770 Sem título, 1942, giz sobre papel, 28,9 x 22 cm. Acervo FIC. p. 208 Imagem 25 - D1775 Sem título, 1942, giz sobre papel, 25 x 20,7 cm. Acervo FIC. p. 209 Imagem 26 - D1277 Sem título, 1942, lápis sobre papel, 22,5 x 15,9 cm. Acervo FIC. p. 210 Imagem 27 - D1754 Sem título, 1942, nanquim sobre papel, 23,6 x 32,2 cm. Acervo FIC. p. 211 Imagem 28 - D1755 “Orla e Pão de Açúcar”, 1942, caneta sobre papel, 13,1 x 16,8 cm. Acervo FIC. p. 212 Imagem 29 - D1164 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 31,7 x 16,4 cm. Acervo p. 213 FIC. Imagem 30 - D1301 Sem título, 1943, aquarela sobre papel, 29,5 x 18,5 cm. p. 214 11 Acervo FIC. Imagem 31 - D0008 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 39,5 x 29,7. Acervo FIC. p. 215 Imagem 32 - D2012 Sem título, 1943, lápis sobre papel, 48 x 33 cm. Acervo FIC. p. 216 Imagem 33 - D2168 Sem título, 1943, nanquim e aquarela sobre papel, 34,9 x 39 cm. Acervo FIC. p. 217 Imagem 34 - D2234 Sem título, 1943, carvão sobre papel, 64 x 41,5 cm. Acervo FIC. p. 218 Imagem 35 - D1184 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 22 x 21 cm. Acervo FIC. p. 219 Imagem 36 - D1161 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 27,5 x 20 cm. Acervo p. 220 FIC. Imagem 37 - D1169 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 28,3 x 21,3 cm. Acervo p. 221 FIC. Imagem 38 - D1411 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 20,7 x 29,5 cm. Acervo FIC. p. 222 Imagem 39 - D1890 Sem título, 1944, lápis sobre papel, 21,6 x 28,1 cm. Acervo FIC. p. 223 Imagem 40 - D2238 Sem título, 1944, carvão sobre papel, 57,5 x 42,3. Acervo FIC p. 224 Imagem 41 - D1233 Sem título, 1944, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 24,8 x 30. Acervo FIC. p. 225 Imagem 42 - D1168 Sem título, 1945, nanquim sobre papel, 21,4 x 15. Acervo FIC. p. 226 Imagem 43 - D0018 Sem título, 1946, lápis sobre papel, 62,4 x 47. Acervo FIC. p. 227 Imagem 44 - D2197 Sem título, 1947, lápis sobre papel, 62 x 40,5. Acervo FIC p. 228 Imagem 45 - D1750 Sem título, 1947, lápis sobre papel, 28,9 x 21,8. Acervo FIC. p. 229 Imagem 46 - D2165 Sem título, 1947, nanquim sobre papel, 32,5 x 22. Acervo FIC. p. 230 12 Imagem 47 - D1098 Sem título, 1948, giz sobre papel, 63,4 x 48,6 cm. Acervo FIC. p. 231 Imagem 48 - D1553 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 24 x 20,3 cm. Acervo p. 232 FIC. Imagem 49 - D0853 Sem título, 1948, aguada de nanquim sobre papel, 18,5 x 23 p. 233 cm. Acervo FIC. Imagem 50 - D0857 Sem título, 1948, aguada de nanquim sobre papel, 22 x 27 cm. Acervo FIC. p. 234 Imagem 51 - D0858 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 23,3 x 32 cm. Acervo FIC. p. 235 Imagem 52 - D1261 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 32 x 23,3 cm. Acervo p. 236 FIC. Imagem 53 - D1403 Sem título, 1949, nanquim sobre papel, 24 x 20 cm. Acervo FIC. p. 237 Imagem 54 - D1636 Sem título, 1949, nanquim sobre papel, 20,8 x 17,3 cm. Acervo FIC. p. 238 Imagem 55 - D1630 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 19,5 x 26 cm. Acervo FIC. p. 239 Imagem 56 - D1638 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 18,5 x 19,5 cm. Acervo FIC. p. 240 Imagem 57 - D1623 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 31,5 x 22 cm. Acervo FIC. p. 241 Imagem 58 - D1625 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 28 x 28,6 cm. Acervo FIC. p. 242 Imagem 59 - D0730 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 24,2 x 33 cm. Acervo FIC. p. 243 Imagem 60 - D1608 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,5 x 25 cm. Acervo FIC. p. 244 Imagem 61 - D0541 Sem título, 1952, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 31 x 22,7 cm. Acervo FIC. p. 245 13 Imagem 62 - D1366 Sem título, 1952, lápis sobre papel, 25,2 x 17,8 cm. Acervo FIC. p. 246 Imagem 63 - D1191 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 247 Imagem 64 - D0820 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 17,2 x 25 cm. Acervo FIC p. 248 Imagem 65 - D1289 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 249 Imagem 66 - D1189 Sem título, 1954, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25,2 cm. Acervo FIC. p. 250 Imagem 67 - D0721 Sem título, 1954, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 24,2 x 35,2 cm. Acervo FIC. p. 251 Imagem 68 - D1004 Sem título, 1954, giz sobre papel, 22,5 x 31 cm. Acervo FIC. p. 252 Imagem 69 - D1195 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 253 Imagem 70 - D1194 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,3 x 25 cm. Acervo FIC. p. 254 Imagem 71 - D2228 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 63 x 48,5 cm. Acervo FIC. p. 255 Imagem 72 - D2227 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 63 x 48,5 cm. Acervo FIC. p. 256 Imagem 73 - D2228 Sem título (Rio), 1956, nanquim sobre papel, 33 x 44 cm. Acervo FIC. p. 257 Imagem 74 - D2109 Sem título (Rio), 1956, nanquim sobre papel, 32,7 x 44 cm. Acervo FIC. p. 258 Imagem 75 - D1408 Sem título, 1957, giz sobre papel, 12,5 x 21 cm. Acervo FIC. p. 259 Imagem 76 - D0999 Sem título, 1959, aquarela sobre papel, 22,5 x 9,2 cm. Acervo FIC. p. 261 Imagem 77 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. p. 262 14 Imagem 78 - D0535 Sem título, 1959, caneta de nanquim sobre papel, 23,5 x 32,3 cm. Acervo FIC. p. 263 Imagem 79 - D2983 Sem título (Rio), 1959, caneta de nanquim sobre papel, 24,3 p. 264 x 42 cm. Acervo FIC. Imagem 80 - D0535 “Guerreiros”, 1959, giz e aquarela sobre papel, 35,1 x 25 cm. p. 265 Acervo FIC. Imagem 81 - D1477 Sem título, 1959, caneta de nanquim sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. p. 266 Imagem 82 - D1436 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 17 x 23,6 cm. Acervo p. 267 FIC. Imagem 83 - D1430 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 20,5 x 26 cm. Acervo p. 268 FIC. Imagem 84 - D1427 Sem título, 1961, nanquim sobre papel, 15,7 x 23,6 cm. Acervo FIC. p. 269 Imagem 85 - D0632 “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, 1962, giz e caneta sobre papel, 25 x 35 cm. Acervo FIC. p. 270 Imagem 86 - D1475 Sem título, 1962, giz sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. p. 271 Imagem 87 - D1421 Sem título, 1962, aquarela sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. p. 272 Imagem 88 - CR-099/G-083 "Presença de Carretel", 1960, água-tinta (processo do açúcar e lavis) 29,8 x 49,5 cm/ 45,2 x 56,6 cm. Acervo FIC. p. 273 Imagem 89 - D1041 Sem título, 1963, aquarela sobre papel, 90 x 60 cm. Acervo FIC. p. 274 Imagem 90 - D1080 Sem título, 1963, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 70 x 50,2 cm. Acervo FIC. p. 275 Imagem 91 - D1082 Sem título, 1963, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC. p. 276 Imagem 92 - D3102 Sem título, 1964, nanquim sobre papel, 17,6 x 25,4 cm. Acervo FIC. p. 277 15 Imagem 93 - D3103 “Karapebunda”, 1964, nanquim sobre papel, 22,1 x 32,2 cm. p. 278 Acervo FIC. Imagem 94 - D3100 “Cemeadores”, 1964, nanquim sobre papel, 20 x 25,1 cm. Acervo FIC. p. 279 Imagem 95 - D1121 Sem título, 1965, guache sobre papel, 65,8 x 51 cm. Acervo FIC. p. 280 Imagem 96 - D0655 Sem título, 1966, guache sobre papel, 31,7 x 21,7 cm. Acervo FIC. p. 281 Imagem 97 - D1118 Sem título, 1966, guache sobre papel, 60,5 x 39 cm. Acervo FIC. p. 282 Imagem 98 - D2051 Sem título, 1966, guache e caneta sobre papel, 30,5 x 41,8 cm. Acervo FIC. p. 283 Imagem 99 - D3072 Sem título [Genebra], 1966, nanquim sobre papel, 25,5 x 35 cm. Acervo FIC. p. 284 Imagem 100 - D3165 Sem título [Genebra], 1966, caneta sobre papel, 40,4 x 42,3 cm. Acervo FIC. p. 285 Imagem 101 - 3245 Sem título, 1967, caneta hidrocor sobre papel, 65,8 x 51 cm. p. 286 Acervo FIC. Imagem 102 - D3093 Sem título [Rio], 1967, guache sobre papel, 25 x 21 cm. Acervo FIC. p. 286 Imagem 103 - D1218 Sem título, 1968, lápis sobre papel, 32,8 x 47,6 cm. Acervo p. 287 FIC. Imagem 104 - D1034 Sem título, 1968, guache sobre papel, 56,8 x 76 cm. Acervo p. 287 FIC. Imagem 105 - D1453 Sem título, 1969, caneta sobre papel, 15,8 x 22,5 cm. Acervo FIC. p. 288 Imagem 106 - D2067 Sem título, 1969, lápis sobre papel, 46 x 31,8 cm. Acervo FIC. p. 289 Imagem 107 - D2417 Sem título, 1969, caneta sobre papel, 32 x 22,1 cm. Acervo p. 289 FIC. 16 Imagem 108 - D2989 "A Noiva", 1969, guache sobre papel, 31,7 x 22 cm. Acervo p. 290 FIC. Imagem 109 - D2057 [Para Maria do Iberê], 1970, guache sobre papel, 33,5 x 48 p. 291 cm. Acervo FIC. Imagem 110 - D0440 Sem título, 1970, guache sobre papel, 22 x 32,2 cm. Acervo p. 292 FIC. Imagem 111 - D1123 Sem título, 1970, guache sobre papel, 36,3 x 50,4 cm. Acervo FIC. p. 292 Imagem 112 - D1127 Sem título, 1970, caneta hidrocor sobre papel, 43 x 51,5 cm. Acervo FIC. p. 293 Imagem 113 - D3134 "Estudo circo-cenário", 1970, giz e caneta sobre papel, 25 x p. 294 35,1 cm. Acervo FIC. Imagem 114 - D2147 “Cenário”, 1970, guache sobre papel, 22 x 32 cm. Acervo FIC. p. 294 Imagem 115 - D2060 Sem título, 1971, guache sobre papel, 37 x 50,6 cm. Acervo p. 295 FIC. Imagem 116 - D2814 Sem título, 1971, giz sobre papel, 50,4 x 35 cm. Acervo FIC. p. 296 Imagem 117 - D0005 Sem título, 1971, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 42,4 x 29,5 cm. Acervo FIC. p. 297 Imagem 118 - D2816 Sem título, 1971, giz sobre papel, 50,3 x 35,2 cm. Acervo FIC. p. 298 Imagem 119 - D1479 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,4 cm. Acervo FIC. p. 299 Imagem 120 - D2135 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC p. 300 Imagem 121 - D2046 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47 cm. Acervo FIC p. 300 Imagem 122 - D2137 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,5 cm. Acervo FIC p. 301 Imagem 123 - D0666 Sem título, 1974, guache sobre papel, 50,7 x 72,7 cm. p. 302 17 Acervo FIC Imagem 124 - D0669 Sem título (Rio), 1974, guache sobre papel, 50,7 x 72,7 cm. p. 302 Acervo FIC Imagem 125 - D1502 Sem título, 1974, guache e nanquim sobre papel, 32,4 x 47,4 cm. Acervo FIC p. 303 Imagem 126 - D2131 Sem título, 1974, caneta sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC p. 304 Imagem 127 - D1031 Sem título, 1975, guache sobre papel, 50,6 x 72,6 cm. Acervo FIC p. 305 Imagem 127B – D1032 Sem título, 1975, nanquim sobre aguada, 50 x 64,7 cm. Acervo FIC. p. 306 Imagem 128 - D1547 Sem título, 1976, nanquim sobre papel, 47,2 x 32,4 cm. Acervo FIC p. 307 Imagem 129 - D2120 Sem título (Rio), 1977, nanquim sobre papel, 35 x 49,5 cm. p. 308 Acervo FIC Imagem 130 - D0002 Sem título, 1977, nanquim sobre papel, 51 x 36,5 cm. Acervo FIC p. 309 Imagem 131 - D0043 Sem título, 1977, nanquim sobre papel, 50,9 x 36,5 cm. Acervo FIC. p. 310 Imagem 132 - D2702 Sem título (Restinga Seca), 1977, lápis sobre papel, 36,4 x p. 311 51 cm. Acervo FIC. Imagem 133 - D2704 Sem título (Restinga Seca), 1977, giz sobre papel, 36,5 x 51 cm. Acervo FIC. p. 311 Imagem 134 - D3094 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,5 cm. Acervo FIC p. 312 Imagem 135 - D1180 Sem título, 1978, guache sobre papel, 51 x 72,8 cm. Acervo p. 313 FIC Imagem 136 - D2146 Sem título, 1978, giz sobre papel, 32,5 x 47 cm. Acervo FIC p. 314 Imagem 137 - D2760 Sem título, 1978, giz sobre papel, 32,5 x 24 cm. Acervo FIC p. 315 18 Imagem 138 - D2124 Sem título, 1978, giz sobre papel, 47,2 x 32,5 cm. Acervo FIC p. 316 Imagem 139 - D0474 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,3 cm. Acervo FIC p. 317 Imagem 140 - D2761 "A árvore, a mulher e a criança”, 1978, nanquim sobre papel, 36,3 x 25,2 cm. Acervo FIC p. 318 Imagem 141 - D3225 Sem título, 1979, giz sobre papel, 25,5 x 36,5 cm. Acervo FIC p. 319 Imagem 142 - D3232 Sem título [Poa], 1979, giz sobre papel, 35 x 25,1 cm. Acervo FIC. p. 320 Imagem 143 - D2649 "A casa de Antonieta", 1979, giz sobre papel, 22,5 x 31,2 cm. Acervo FIC p. 321 Imagem 144 - D3196 Sem título [Santa Maria], 1979, giz sobre papel, 22,5 x 31,4 p. 321 cm. Acervo FIC Imagem 145 - D3149 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 31,7 x 44,2 cm. Acervo FIC p. 322 Imagem 146 - D0463 Sem título, 1980, giz sobre papel, 25 x 36 cm. Acervo FIC p. 323 Imagem 147 - D1220 Sem título [Rio], 1980, guache sobre papel, 50,5 x 72,7 cm. p. 323 Acervo FIC Imagem 148 - D0031 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 36,3 x 25,2 cm. Acervo FIC p. 324 Imagem 149 - D3185 "Maria", 1980, giz sobre papel, 47,3 x 31,2 cm. Acervo FIC. p. 325 Imagem 150 - D0445 Sem título, 1981, guache sobre papel, 36,2 x 25,5 cm. Acervo FIC p. 326 Imagem 151 - D2813 Sem título [Poa], 1981, giz sobre papel, 47 x 35 cm. Acervo p. 327 FIC Imagem 152 - D1512 Sem título, 1981, giz sobre papel, 40,4 x 29,7 cm. Acervo FIC p. 328 Imagem 153 - D2142 Sem título [Poa], 1981, guache sobre papel, 35,6 x 36,3 cm. Acervo FIC p. 329 19 Imagem 154 - D1423 Sem título, 1982, guache sobre papel, 31,6 x 44,3 cm. Acervo FIC. p. 330 Imagem 155 - D1154 Sem título, 1982, giz e lápis Stabilotone sobre papel, 25,3 x p. 331 36,3 cm. Acervo FIC. Imagem 156 - D0453 Sem título, 1983, nanquim sobre papel, 25 x 35,5 cm. Acervo FIC. p. 332 Imagem 157 - D0704 Sem título, 1983, lápis e guache sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 333 Imagem 158 - D1054 Sem título, 1984, guache e lápis Stabilotone sobre papel, 75,7 x 55,7 cm. Acervo FIC p. 334 Imagem 159 - D2661 Sem título, 1984, caneta sobre papel, 23,7 x 32,6 cm. Acervo FIC. p. 335 Imagem 160 - D0044 Sem título, 1985, giz sobre lixa de papel, 22,5 x 27,1 cm. Acervo FIC. p. 336 Imagem 161 - D0390 Sem título, 1985, caneta sobre papel, 25,2 x 13 cm. Acervo p. 337 FIC. Imagem 162 - D0404 Sem título, 1985, lápis sobre papel, 28 x 13,5 cm. Acervo FIC p. 338 Imagem 163 - D0382 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 16,6 x 24,3 cm. Acervo p. 339 FIC Imagem 164 - D2667 Sem título [Poa], 1986, lápis sobre papel, 17,6 x 25,2 cm. Acervo FIC p. 339 Imagem 165 - D2990 Sem título [Poa], 1986, nanquim sobre papel, 23,2 x 33 cm. p. 340 Acervo FIC Imagem 166 - D0188 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 32,5 x 24,5 cm. Acervo p. 341 FIC Imagem 167 - D0237 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 33 x 23,4 cm. Acervo p. 342 FIC Imagem 168 - D0374 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 16,4 x 27,1 cm. Acervo FIC p. 343 20 Imagem 169 - D0380 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 16 x 26,8 cm. Acervo p. 343 FIC Imagem 170 - D0811 “Estudo para Fantasmagoria II”, 1986, caneta sobre papel, 33,2 x 23 cm. Acervo FIC. p. 344 Imagem 171 - D0955 [Cubista 31], 1986, lápis Stabilotone sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC. p. 345 Imagem 172 - D0956 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC p. 346 Imagem 173 - D2676 Sem título [Poa], 1987, giz sobre papel, 22,2 x 32 cm. Acervo FIC p. 347 Imagem 174 - D0048 Sem título, 1987, caneta de nanquim sobre papel, 30,5 x 20,5 cm. Acervo FIC p. 348 Imagem 175 - D0274 Sem título, 1987, lápis e giz sobre papel, 17,2 x 25 cm. Acervo FIC p. 349 Imagem 176 - D0327 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 14,5 x 19,8 cm. Acervo FIC p. 350 Imagem 177 - D0486 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32,6 x 21,8 cm. Acervo FIC p. 351 Imagem 178 - D0815 Sem título, 1987, nanquim sobre papel, 25 x 16 cm. Acervo p. 352 FIC Imagem 179 - D0807 “Estudo para Fantasmagoria IV”, 1987, caneta sobre papel, p. 353 32 x 17 cm. Acervo FIC Imagem 180 - D2751 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32 x 21,2 cm. Acervo p. 354 FIC Imagem 181 - D0961 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 21,5 x 10 cm. Acervo p. 355 FIC Imagem 182 - D1065 "Manequim (44/87)", 1987, giz sobre papel, 62,9 x 55,2 cm. p. 356 Acervo FIC Imagem 183 - D1067 "A bandeira (10/87)", 1987, guache e giz sobre papel, 98,7 x 68,9 cm. Acervo FIC p. 357 Imagem 184 - D0738 Sem título, 1987, caneta e giz sobre papel, 24,5 x 31,5 cm. p. 358 21 Acervo FIC Imagem 185 - D0745 Sem título, 1987, lápis Stabilotone sobre papel, 21 x 31,7 cm. Acervo FIC p. 358 Imagem 186 - D0734 Sem título, 1987, nanquim sobre papel, 22 x 32 cm. Acervo p. 359 FIC Imagem 187 - D0795 “O rato”, 1988, nanquim sobre papel, 32,8 x 21,9 cm. Acervo FIC p. 360 Imagem 188 - D0028 Sem título, 1988, nanquim sobre papel, 33 x 22,7 cm. Acervo FIC p. 361 Imagem 189 - D1470 Sem título nº 54/80, 1988, carvão sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. Acervo FIC p. 362 Imagem 190 - D3027 “Acidente em Angra”, 1988, guache sobre papel, 32,2 x 22 cm. Acervo FIC p. 363 Imagem 191 - D0391 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 25 x 18,1 cm. Acervo p. 364 FIC Imagem 192 - D0392 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 15,5 x 35,3 cm. Acervo FIC p. 365 Imagem 193 - D0393 Sem título [Série ciclistas], 1989, caneta sobre papel, 15 x 27,4 cm. Acervo FIC p. 365 Imagem 194 - D0420 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 23,5 x 32,5 cm. Acervo FIC p. 366 Imagem 195 - D0063 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC p. 367 Imagem 196 - D0834 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC p. 368 Imagem 197 - D0499 Sem título, 1990, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC p. 369 Imagem 198 - D2075 Sem título, 1990, caneta sobre papel, 23 x 24 cm. Acervo FIC p. 370 Imagem 199 - D0021 "Para minha querida Maria", 1991, guache e caneta sobre p. 371 22 papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC Imagem 200 - D0414 “Estudo para 'no tempo", 1991, caneta sobre papel, 24 x 32 p. 372 cm. Acervo FIC Imagem 201 - D0633 Estudo para o quadro nº 5/91, 1991, caneta sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC p. 373 Imagem 202 - D0706 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC p. 373 Imagem 203 - D0712 “Estudo para a série 'Idiotas", 1989, caneta sobre papel, 30,5 x 23,4 cm. Acervo FIC p. 374 Imagem 204 - D2069 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Acervo FIC p. 375 Imagem 205 - D2641 Sem título, 1991, caneta sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC p. 376 Imagem 206 - D1482 Sem título nº 6/91, 1991, guache e nanquim sobre papel, 35,2 x 50,3 cm. Acervo FIC p. 376 Imagem 207 - D0646 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 23 x 34 cm. Acervo FIC p. 377 Imagem 208 - D3214 Sem título [Poa], 1991, guache sobre papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC p. 378 Imagem 209 - D0410 “Série 'Tudo te é falso e inútil", 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC p. 379 Imagem 210 - D1472 Sem título, 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32,1 p. 379 cm. Acervo FIC Imagem 211 - D1044 “O Homem da Flor na Boca – (Um ato de amor à vida)” (43 p. 380 A/92), 1992, guache sobre papel, 100,2 69,9 cm. Acervo FIC Imagem 212 - D1043 “O Homem da Flor na Boca – (Um ato de amor à vida)” (43 p. 381 A/92), 1992, guache e caneta sobre papel, 100 x 69,9 cm. Acervo FIC. Imagem 213 - D1271 Sem título, 1992, nanquim sobre papel, 15,1 x 21,5. Acervo p. 382 FIC. Imagem 214 - D2678 “Martim”, 1993, nanquim sobre papel, 21,6 x 31,6 cm. p. 383 23 Acervo FIC. Imagem 215 - D2680 “Martim”, 1993, nanquim sobre papel, 21,6 x 31,5 cm. Acervo FIC. p. 384 Imagem 216 - D0879 Sem título (6/94), 1994, nanquim sobre papel, 29,6 x 41,8 cm. Acervo FIC. p. 385 Imagem 217 - D0881 Sem título (5/94), 1994, guache e nanquim sobre papel, 29,5 x 41,9 cm. Acervo FIC. p. 385 Imagem 218 - D0883 Sem título [30/93], 1993, nanquim sobre papel, 35 x 50,3 cm. Acervo FIC. p. 386 Imagem 219 - D0025 Sem título, 1994, nanquim sobre papel, 31 x 23 cm. Acervo p. 387 FIC. Imagem 220 - Francis Pelichek - “Figura Humana”, 1929, pastel sobre papel, 45 x p. 488 32 cm. Acervo do Instituto de Artes da UFRGS. Imagem 221 - D1089 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 63,7 x 48,3 cm. Acervo FIC. p. 489 Imagem 222 - João Fahrion - “Retrato de Nori”, 1939, pastel sobre papel, 117 x 62 cm. p. 491 Imagem 223 - D1780 Sem título, 1942, giz sobre papel, 24,3 x 19,5 cm. Acervo FIC. p. 494 Imagem 224 - Benito Castañeda - Sem título, 1933, pastel 30 x 33 cm, Acervo do p. 495 Instituto de Artes da UFRGS. Imagem 225 - Benito Castañeda - Sem título, s/d, carvão 30 x 33 cm, Acervo do Instituto de Artes da UFRGS. p. 496 Imagem 226 - D2234 Sem título, 1943, carvão sobre papel, 64 x 41,5 cm. Acervo p. 498 FIC. Imagem 227 - Cândido Portinari - “Homem”, 1938, carvão e sépia sobre papel, 69 x 42 cm. Coleção Particular, São Paulo/SP. p. 499 Imagem 228 - D1164 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 31,7 x 16,4 cm. Acervo FIC. p. 501 Imagem 229 - Cândido Portinari - “Mulher com criança no colo”, 1940, Desenho a p. 502 24 sépia e pincel seco sobre papel, 66,5 x 51,5 cm, Coleção particular, São Paulo/SP Imagem 230 - D1608 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,5 x 25 cm. Acervo FIC. p. 504 Imagem 231 - Tiepolo - “A deposição”, 1749, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 18 x 16 cm. Fine Arts Museum of San Francisco p. 505 Imagem 232 - Giorgio de Chirico - “Solitude”, 1917, lápis sobre papel, 22.4 x 32 p. 507 cm. Acervo MoMa/Nova Iorque Imagem 233 - André Lhote - “Le Nile”, 1952, Aquarela sobre papel, 38.6 x 57.9 cm. Coleção Particular, Nova Iorque p. 508 Imagem 234 - D1289 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 509 Imagem 235 - D1004 Sem título, 1954, giz sobre papel, 22,5 x 31 cm. Acervo FIC p. 510 Imagem 236 - Milton Dacosta - “Mulher sentada”, 1952, óleo sobre tela, 112 x 81. p. 511 Coleção Particular. Imagem 237 - D1408 Sem título, 1957, giz sobre papel, 12,5 x 21 cm. Acervo FIC. p. 512 Imagem 238 - “Garrafas”, 1957, óleo sobre tela, 65x100 cm. Col. Roberto Marinho, RJ. p. 512 Imagem 239 - Maria Leontina - “Da paisagem e do tempo”, c. 1955, óleo sobre tela, 60 x 80 cm, Coleção Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro. p. 513 Imagem 240 - Nicolas de Stael - “A Prateleira”, 1955, óleo sobre tela, 88 x 116 cm, Acervo do Museu Ludwig, Colônia. p. 514 Imagem 241 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. p. 515 Imagem 242 - D1436 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 17 x 23,6 cm. Acervo FIC. p. 516 Imagem 243 - Karel Appel - Sem título, 1958, litogravura, 57 x 51 cm, Museu de Belas Artes de São Francisco, Califórnia. p. 518 Imagem 244 - D0632 “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, 1962, giz e caneta p. 519 25 sobre papel, 25 x 35 cm. Acervo FIC. Imagem 245 - D1475 Sem título, 1962, giz sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. p. 520 Imagem 246 - William Gear - “Black Tree”, 1950, litogravura, 50 x 37. Coleção Tate Gallery, Londres. p. 521 Imagem 247 - D1041 Sem título, 1963, aquarela sobre papel, 90 x 60 cm. Acervo p. 522 FIC. Imagem 248 - D1121 Sem título, 1965, guache sobre papel, 65,8 x 51 cm. Acervo p. 523 FIC. Imagem 249 - Hans Hartung - Sem título, 1958, guache e nanquim sobre papel, 162 x 114 cm. Coleção Particular. p. 524 Imagem 250 - D2051 Sem título, 1966, guache e caneta sobre papel, 30,5 x 41,8 p. 525 cm. Acervo FIC. Imagem 251 - D2989 "A Noiva", 1969, guache sobre papel, 31,7 x 22 cm. Acervo p. 527 FIC. Imagem 252 - Pablo Picasso. “Um jovem fauno tocando uma serenata para uma jovem”, 1938, óleo sobre tela. Coleção MoMa, Nova Iorque. p. 528 Imagem 253 - D0440 Sem título, 1970, guache sobre papel, 22 x 32,2 cm. Acervo p. 530 FIC. Imagem 254 - D3134 "Estudo circo-cenário", 1970, giz e caneta sobre papel, 25 x p. 531 35,1 cm. Acervo FIC. Imagem 255 - Rubem Gerchman - “Futebol”, 1965, tinta industrial sobre madeira compensada, 100 x 70 cm. Coleção Particular, Rio de Janeiro/RJ. p. 533 Imagem 256 - Jorge de la Vega, Sem título, 1963, óleo sobre tela, 195 x 128 cm. p. 534 Coleção Particular. Imagem 257 - D0005 Sem título, 1971, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 42,4 x 29,5 cm. Acervo FIC. p. 535 Imagem 258 - D2135 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC p. 536 Imagem 259 - Rubem Gerchman - “Futebol”, 1965, tinta industrial sobre madeira p. 537 26 compensada, 100 x 70 cm. Coleção Particular, Rio de Janeiro/RJ. (Detalhe) Imagem 260 - D2137 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,5 cm. Acervo FIC. p. 538 Imagem 261 - Jean Dubuffet - “Sooty Nude”, 1944, 97 x 162 cm, óleo sobre tela, Coleção Privada. p. 539 Imagem 262 - D1502 Sem título, 1974, guache e nanquim sobre papel, 32,4 x 47,4 cm. Acervo FIC p. 540 Imagem 263 - Picasso - “Fauno desvelando uma mulher dormindo”, 1936, água- p. 541 tinta, 31,6 x 41,7 cm. Museu Picasso, Paris. Imagem 264 - D0474 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,3 cm. Acervo FIC p. 542 Imagem 265 - D2142 Sem título [Poa], 1981, guache sobre papel, 35,6 x 36,3 cm. Acervo FIC p. 543 Imagem 266 - D3149 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 31,7 x 44,2 cm. Acervo FIC p. 544 Imagem 267 - D0704 Sem título, 1983, lápis e guache sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. p. 545 Imagem 268 - D0044 Sem título, 1985, giz sobre lixa de papel, 22,5 x 27,1 cm. Acervo FIC. p. 547 Imagem 269 - D2990 Sem título [poa], 1986, nanquim sobre papel, 23,2 x 33 cm. p. 548 Acervo FIC Imagem 270 - D0955 [Cubista 31], 1986, lápis Stabilotone sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC. p. 549 Imagem 271 - D0048 Sem título, 1987, caneta de nanquim sobre papel, 30,5 x 20,5 cm. Acervo FIC p. 550 Imagem 272 - Matisse - “Visão de um nu de costas com colar”, Matisse, 1906, 45x27 cm. Baltimore Museum. p. 551 Imagem 273 - D1161 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 27,5 x 20 cm. Acervo FIC. p. 552 Imagem 274 – F0228 Sem título, 1994, Fotografia sem autoria conhecida, 15 x p. 556 27 10,5 cm. Acervo FIC. Imagem 275 - Manequim de madeira. p. 558 Imagem 276 - D2751 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32 x 21,2 cm. Acervo p. 560 FIC Imagem 277 - Hans Bellmer - “La Poupee”, Fotografia, 1935. Revista Minotauro. p. 561 Imagem 278 - Hans Bellmer - “La Poupee”, Fotografia, 1935. Revista Minotauro. p. 562 Imagem 279 - Hans Bellmer - Sem título. (verso), 1954, Caneta e tinta branca sobre papel preto, 50 x 70 cm. Coleção Particular. p. 563 Imagem 280 - Iberê Camargo - [Manequim e Ciclista], matriz, 1992, água-forte, 24,6 x 29,5/35 x 39,3 cm. Acervo FIC p. 564 Imagem 281 - Cindy Sherman - “Untitled # 188”, Fotografia, 1989 (Disasters), MoMa, Nova Iorque. p. 565 Imagem 282 - Cindy Sherman - Sem título, 1992, fotografia, 68 x 45 polegadas. Metro Gallery. p. 566 Imagem 283 - D0745 Sem título, 1987, lápis Stabilotone sobre papel, 21 x 31,7 cm. Acervo FIC p. 568 Imagem 284 - Andy Warhol - Car Crash CA, 1978, 88 x 114 cm. Coleção privada. p. 569 Imagem 285 - D1065 "Manequim (44/87)", 1987, giz sobre papel, 62,9 x 55,2 cm. p. 571 Acervo FIC Imagem 286 - William De Kooning - “Seated Woman”, 1952, giz sobre papel, 30 x p. 572 24 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. Imagem 287 - D1470 Sem título nº 54/80, 1988, carvão sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. Acervo FIC p. 573 Imagem 288 - William De Kooning - “Seated Woman”, 1953/4, carvão sobre papel, 35 x 30 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. p. 574 Imagem 289 - D0410 “Série 'Tudo te é falso e inútil", 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC p. 576 Imagem 290 - Georg Baselitz - “Retrato de Antonin Artaud”, 1963, nanquim sobre p. 578 papel, 30 x 50 cm, Coleção particular. 28 Imagem 291 - George Baselitz - “Female Nude on Kitchen Stool”, 1979, linóleo, 22,0 x 15,8 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. p. 579 Imagem 292 - D1472 Sem título, 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32,1 p. 580 cm. Acervo FIC 29 Sumário Introdução p. 34 Capítulo I - Iberê Camargo e a modernidade: os discursos do artista e do p. 52 crítico 1. Recapitulando: dos antigos aos modernos – o problema da tradição e a p. 54 novidade na história do pensamento artístico dos séculos XVII e XVIII. 2. Arte moderna: a tradição na ruptura e a obsessão pela originalidade. p. 59 2.1 Baudelaire e a substantivação do novo. p. 61 2.2 Adorno: il faut être absolument moderne. p. 64 2.3 Greenberg: a influência como afirmação da Modernidade. p. 67 2.4 Rosalind Krauss e o mito da originalidade. p. 71 3.Iberê: o discurso da crítica e o discurso do artista. p. 74 3.1 Iberê e o discurso da crítica: homines nati non fecerunt. 3.1.1 Arte moderna brasileira: a construção de um ideário no Prefácio p. 76 p. 76 Interessantíssimo e no Manifesto Pau-Brasil. 3.1.2 Crítica de arte moderna no Brasil. p. 79 3.1.3 Iberê Camargo: a formação do discurso crítico sobre um artista p. 87 original. 3.1.3.1 As décadas de 1940 e 1950: a construção crítica de uma obra p. 89 nascente. 3.1.3.2 As décadas de 1960 e 1970: a afirmação de um grande artista p. 91 brasileiro. 3.1.3.3 A década de 1980: a consolidação artística e a aproximação p. 93 com a 'geração 80'. 3.1.3.4 A década de 1990: os textos clássicos e as conversações com p. 96 Iberê Camargo. 3.1.3.5 A década de 2000: os estudos críticos acadêmicos e as p. 101 reflexões sobre influência. 3.1.4 Iberê Camargo: o discurso do artista. 3.1.4.1 A afirmação da tradição e a influência das teorias de André p. 124 p. 126 30 Lhote. 3.1.4.2 A crítica à vanguarda como afirmação da tradição e do p. 130 3.1.4.3 A solidão artística e a aversão às teorias. p. 134 3.1.4.4 Influências: negações, silêncios e reticências. p. 136 moderno. Capítulo II - Iberê Camargo e o desenho p. 143 1. Considerações gerais sobre o desenho de Iberê Camargo. p. 143 1.1 A circulação dos desenhos de Iberê: considerações gerais sobre as p. 145 exposições e os textos dedicados aos seus desenhos. 2. Por que o desenho? p. 148 2.1 Definindo o campo: o que é o desenho? p. 148 2.2 O desenho como linguagem autônoma. p. 151 2.2.1. A autonomia do desenho no Brasil. p. 154 2.3 A autonomia do desenho como objeto de estudo. p. 155 2.4. Características do desenho. p. 156 2.4.1 O desenho no tempo: diacronia e sincronia. p. 159 2.4.2 Desenho: objetividade e subjetividade, razão e emoção. p. 169 2.4.3 O desenho, a representação e a representação dos desenhos. p. 177 3. O desenho de Iberê Camargo: metodologia para o estudo das influências. 3.1 Esclarecimento dos três níveis de análise dos desenhos de Iberê p. 183 p. 184 Camargo. 3.2 O segundo nível de análise: mapeando mudanças e identificando os p. 187 desenhos-chave para a análise. 3.3.1 Os anos de 1928 a 1942. p. 187 3.3.2 Os anos de 1942 a 1947. p. 210 3.3.3 Os anos de 1948 a 1950. p. 231 3.3.4 Os anos de 1951 a 1959. p. 245 3.3.5 Os anos de 1960 a 1964. p. 267 3.3.6 Os anos de 1965 a 1969. p. 279 3.3.7 Os anos de 1970 a 1982. p. 291 3.3.8 Os anos de 1983 a 1986. p. 332 3.3.9 Os anos de 1987 a 1990. p. 346 3.3.10 Os anos de 1991 a 1994. p. 370 Capítulo III – Iberê Camargo: influência é desenho. p. 389 31 1. Os estudos sobre influência. p. 389 1.1 Influência na literatura comparada. p. 391 1.1.1. O surgimento do conceito: século XVIII, a escola francesa e a p. 392 pesquisa "genética". 1.1.2 Os desvios conceituais: o conceito de tradição em T. S. Eliot e a p. 394 influência em Paul Valéry. 1.1.3 Claudio Guillén e a interioridade do conceito de influência. p. 400 1.1.4 A renovação do conceito de influência e a busca de sua especificidade. p. 404 1.1.5 Mudança de foco: o conceito de intertextualidade e a morte do autor. p. 409 1.1.6 A angústia da influência e suas influências. p. 414 1.1.7 A renovação dos estudos de influência: a integração dos conceitos e a p. 425 contribuição brasileira para esses estudos. 1.2 Influência nas artes visuais: análise crítica de seus principais estudos. p. 435 1.2.1 Proximidades conceituais – semelhanças e dessemelhanças. p. 437 1.2.2 A influência – moeda gasta na arte: o caso Matisse-Picasso. p. 449 1.2.3 A influência como conceito operativo da arte: Göran Hermerén e a p. 455 constituição do campo de estudos. 1.2.4 A crítica do conceito de influência: Michael Baxandall. p. 461 1.3 Comentário: influências em outros campos. p. 467 2.Influência é desenho: proposta teórico-metodológica. p. 469 2.1 Influência é desenho no tempo: diacronia e sincronia. p. 472 2.2 Influência é desenho: objetividade e subjetividade, razão e emoção. p. 477 2.3 Influência é desenho: representação e representação da influência. p. 482 3. Análise da influência na obra de desenhos de Iberê Camargo. p. 485 3.1 Os anos de 1928 a 1942. p. 487 3.2 Os anos de 1942 a 1947. p. 497 3.3 Os anos de 1948 a 1950. p. 503 3.4 Os anos de 1951 a 1959. p. 506 3.5 Os anos de 1960 a 1964. p. 516 3.6 Os anos de 1965 a 1969. p. 523 3.7 Os anos de 1970 a 1982. p. 529 3.8 Os anos de 1983 a 1986. p. 544 3.9 Os anos de 1987 a 1990. p. 550 3.10 Os anos de 1991 a 1994. p. 575 Conclusão p. 582 Referências bibliográficas p. 587 32 Anexo: breve cronologia biográfica e artística de Iberê Camargo p. 600 33 34 Introdução Esta tese estuda a obra de Iberê Camargo considerando seus desenhos sob a perspectiva das influências que essa obra é capaz de indicar e abordando o problema da influência na arte a partir do desenho desse artista. Se pudéssemos criar uma imagem, um desenho que definisse esta tese, seria o de um triângulo no qual, em cada um de seus ângulos, teríamos respectivamente a obra de Iberê Camargo, a arte do desenho e o problema da influência. Esta tese ficaria, assim, no centro, procurando estabelecer um ponto de equilíbrio e articulando esses três problemas centrais em suas variadas combinações. Ao redor desse triângulo, teríamos, por um lado, questões mais gerais que a tese aponta, como as definições gerais dos conceitos tratados, e, por outro lado, as questões contextuais do tema, como a inserção de Iberê Camargo no panorama histórico da modernidade de modo amplo (e da modernidade brasileira de modo mais particular) e o discurso do artista a partir dessa inserção. Nossas questões de pesquisa articulam-se a partir desse eixo triplo. Pensando a tese como problema, surge uma série de indagações. Como pensar um conceito de influência nas artes visuais? De que forma esse conceito pode ser suficientemente geral para, a partir dele, podermos fazer ilações mais amplas sobre a arte (ou seja, com uma abrangência que possibilite sua utilização como ferramenta para outros estudos, desde que adequadamente adaptado) e específico o suficiente para responder a nossos problemas específicos? Qual a importância da modernidade na formação das concepções de influência de modo geral e especificamente na crítica da obra de Iberê Camargo e em sua visão particular sobre sua obra e sobre a arte no que tange ao problema da influência? É o desenho um caminho apropriado para o estudo das influências? Se o é, quais as características que o indicam como caminho para o entendimento dessas questões de modo geral e particularmente na obra de Iberê Camargo? As indagações expostas, no decorrer do desenvolvimento da tese, tornam-se hipóteses de trabalho. Tais hipóteses são testadas, descartadas, mantidas ou retomadas de modo mais complexo, segundo o conjunto de informações que nossa pesquisa vai acrescentando, a partir da relação entre teorias e análise das obras. Desse modo, consideramos como principais hipóteses de trabalho: (1) o fato de Iberê Camargo possuir 35 em seu acervo um conjunto de desenhos suficientemente extenso e organizado que nos permita estudá-lo e a partir dele inferir características gerais de sua poética; (2) a existência de um conjunto de relações não amplamente estudadas no campo da arte, que identificamos com o termo de “influência” e que pode contribuir para a análise de obras de arte; (3) a possibilidade de essas relações de influência serem estudadas a partir da obra de desenhos de Iberê Camargo, apesar do aparente silêncio sobre essas questões, tanto nas reflexões atualmente existentes sobre o artista quanto nas declarações de Iberê; (4) o enriquecimento da análise da obra de Iberê Camargo a partir do estudo de suas influências; (5) a importância do contexto histórico e artístico para o estudo dessas relações na obra de Iberê Camargo, tendo como hipótese de explicação dos silêncios sobre essa questão a inserção do artista e de sua crítica em tal contexto; (6) a integração do conceito de influência com o de desenho na constituição de uma ferramenta suficientemente precisa para o estudo da influência na obra de Iberê Camargo; finalmente, (7) a possibilidade de se inferirem possíveis relações de influência nos desenhos de Iberê Camargo a partir do encontro dessa ferramenta analítica, construída na tese, com a obra desse artista. Partindo das questões (dos problemas) e das hipóteses apresentadas, nosso objetivo delimita-se pela (1) busca de um conceito que (2) articule a questão da influência vista sob a perspectiva do desenho, construindo-se (tal conceito assim articulado) como (3) ferramenta para o estudo da (de parte selecionada da) obra de Iberê Camargo (4) dentro do (e atravessado pelo) cenário da modernidade, de sua ideologia e de seu discurso. Consciente da exiguidade dos estudos sobre o desenho de Iberê Camargo, um objetivo prévio se apresenta: (0) apresentar essa obra, em uma perspectiva temporal ampla, capaz de acompanhar desde sua origem até seus últimos trabalhos. Justificam-se os temas desta tese - e a investigação dos problemas já elencados – fundamentalmente por três grandes motivos. Tais motivos relacionam-se com os três grandes eixos da tese: a obra de desenhos de Iberê Camargo, o desenho como campo teórico de estudos e a influência estudada como um conceito com valor em si mesmo e articulado com o desenho (de modo geral) e (particularmente) com a obra de desenhos de Iberê. Nossa primeira justificativa é a carência de estudos acadêmicos sobre Iberê Camargo e a quase ausência de estudos específicos sobre seu desenho. Tal justificativa faz desta tese não apenas um lugar para a investigação da obra desse artista a partir de questões específicas, mas também uma oportunidade para a apresentação de (parte) de seu vasto acervo de desenhos, de modo sistemático e abrangente, buscando cobrir sua 36 longa trajetória artística. A segunda justificativa, a da atenção específica ao problema do desenho (de modo geral), ocorre por ser ele (o desenho) o que torna possível pensarmos os problemas de influência para a onda de Iberê Camargo. Sendo assim, a reflexão teórica sobre o desenho estabelece um campo em que convergem os problemas de influência com a obra desse artista, formando, portanto, uma base que é condição necessária para o estabelecimento das questões e que por isso se justifica. A terceira justificativa é a necessidade de estudarmos o problema da influência, dada a exiguidade de estudos no campo das artes e mais ainda no que se refere à obra de Iberê Camargo. Afora essa ausência de estudos sobre a influência, tal conceito, quando utilizado, muitas vezes o é sem grande esclarecimento de seu significado ou então é negado (ou criticado) pelo desconhecimento de sua longa trajetória de construção teórica. Justifica-se, portanto, o estudo da influência pela necessidade de apresentarmos um panorama de seu desenvolvimento conceitual, o qual surge a partir de um campo distinto: o da Literatura Comparada. Indicamos, por esse motivo, as principais correntes teóricas do conceito de influência, visto que tal exame não é recorrente em nosso campo (o da arte). Como qualquer investigação de fundo heurístico, esta tese constrói-se pela conjunção de fatos, de conceitos e de nossas intuições sobre os problemas. A partir desses fundamentos básicos, desenvolve-se de forma progressiva e busca evidenciar em sua própria estrutura essa construção, ao contrário de apresentar questões preestabelecidas. Com tais pressupostos, procuramos gerar um conhecimento que seja um entrelaçamento de objetividade factual com trabalho interpretativo. Busca-se, assim, a apresentação de resultados concretos em relação aos temas tratados e, ao mesmo tempo, a indicação da possibilidade de novos estudos, bem como o aguçamento das ferramentas que possam corrigir suas possíveis falhas. Walter Benjamin, na introdução de sua obra Origem do Drama Barroco Alemão, escreve que “método é caminho indireto, é desvio”1. Esta tese constrói-se também a partir de vários desvios, e por meio deles construímos nosso método de trabalho. Entendemos o desvio não como mal-entendido ou distorção (tal como o desvio de Harold Bloom, o qual será analisamos no último capítulo), mas com um sentido quase topográfico de deslocamentos, recuos, avanços e mudanças de trajetórias ao longo de um caminho. O principal desses desvios é nossa escolha por não tratar da obra de desenhos de Iberê Camargo já no primeiro capítulo da tese, mas apresentar um conjunto de reflexões 1 BENJAMIN, Walter. “Questões introdutórias de crítica do conhecimento”. In: __________. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 50. 37 ligadas a uma estrutura geral de pensamento que condicionou o discurso do artista e de sua crítica. Está implícita nesse desvio nossa convicção de que, se tal estrutura geral, que é a da modernidade e de sua visão encobridora da influência, condicionou o discurso do artista, não definiu sua produção no sentido de ausentar dela tais influências. Ao mesmo tempo, através desse desvio, ressaltamos a importância de tal estrutura pelas consequências que acarreta ao seu estudo: o problema de se estudar um tema que se estruturou a partir de uma tentativa de ocultamento. Nosso segundo desvio é o de apresentar o desenho como questão genérica, extraindo dessa linguagem artística os elementos que permitem pensá-la como um campo privilegiado para refletir sobre a questão da influência. A partir dessa reflexão genérica sobre o desenho, fazemos uma primeira apresentação da obra de Iberê Camargo, o que também se constitui em um desvio, já que, neste estudo preliminar, não analisamos os problemas de influência, mas refletimos sobre a trajetória de seu desenho ao longo dos anos sob a perspectiva ainda genérica de suas modificações, sem uma interrogação dos porquês dessas mudanças. Finalmente, nosso último “caminho indireto” é construído a partir de um estudo do conceito de influência. Começamos esse estudo a partir de um plano geral, o dos estudos literários, passando em seguida para o campo das chamadas “artes visuais”. Chegamos finalmente ao campo do desenho, onde é o próprio conceito de influência que se desvia no sentido de adequar-se à nossa questão e finalmente apresentar-se como uma ferramenta para a análise da obra de desenhos de Iberê Camargo, parte final desta tese. Assim, essa metodologia de trabalho, estruturada através de tais desvios, estabelece-se a partir de uma série de cotejos e confrontos críticos, os quais seguem um nível de aprofundamento crescente: (1) entre teorias de um mesmo tema (por exemplo, as várias teorias sobre o problema da influência); (2) entre teorias de temas distintos (por exemplo, as teorias da influência em conjunção com as teorias do desenho); (3) entre teorias e obras (as teorias do desenho e da influência vistas sob a perspectiva da obra de desenhos de Iberê Camargo); (3) entre obras distintas e teorias também distintas (as obras de Iberê Camargo e dos artistas que identificamos como suas possíveis influências vistas à luz dos conceitos de desenho e de influência, por sua vez entendidos como uma ferramenta de análise na perspectiva de sua conjunção). Ter como metodologia a apresentação das teorias estudadas e da obra de Iberê Camargo em graus de aprofundamento crescente permite-nos um desvelar relativamente seguro e gradual dos problemas. Ao mesmo tempo, serve-nos também como um testemunho de nossa própria 38 trajetória de pesquisa. Sendo assim, permite-nos fazer desta tese um documento de nosso percurso. É dessa forma, como desvio e caminho indireto, que pretendemos que esta tese seja capaz não apenas de tratar dos problemas a que se dedica, mas também de espelhar, em sua estrutura, esses mesmos problemas. Assim, ao não tomarmos um caminho direto, buscamos a mesma sinuosidade da linha do desenho no desenvolvimento das questões, ora traçando seus contornos exteriores, ora buscando, a partir de seu interior, a configuração estruturante de sua forma. Do mesmo modo, a apresentação das questões teóricas, sob a perspectiva a mais ampla possível, e seu desenvolvimento em direção a uma especificidade articulada com escolhas também específicas das teorias e dos pensamentos que consideramos mais pertinentes é um modo de tornar explícitas nossas próprias influências na redação desta tese. Ainda que seguindo uma trajetória sinuosa e indireta, é importante ressaltarmos que nosso objeto central, a obra de Iberê Camargo, está presente, em diferentes níveis, nos três capítulos da tese. Esses níveis, conforme indicamos anteriormente, são os do discurso do artista e da crítica, de sua obra de desenho vista de modo genérico e, finalmente, aquele da análise de sua obra junto à ferramenta conceitual que apresentamos, a influência em convergência com o desenho. Esses três níveis de análise de Iberê articulam-se com os três níveis de análise da questão da influência: o discurso moderno em relação à influência, o desenho como campo de estudos para a influência e a influência como ferramenta de análise dos desenhos de Iberê Camargo. Assim, podemos notar que há um espelhamento entre problemas teóricos e questões de análise de obras, os quais se complementam na mesma medida em que se refletem em um as questões do outro. Os marcos teóricos que fundamentam os problemas apresentados são múltiplos e, assim como o método de Benjamin, percorrem um caminho indireto. Entretanto, esse caminho indireto e desviante segue rumo a uma convergência. Tal convergência diz respeito, por um lado, a um ponto em comum estabelecido entre as teorias (sobretudo aquelas da influência e do desenho, tendo como perspectiva histórica a modernidade e suas questões) e a obra que estudamos (os desenhos de Iberê Camargo). Por outro lado, essa convergência faz referência a um dos objetivos desta tese, a saber: que ela seja o sítio a partir do qual convirjam as várias reflexões teóricas, dos vários autores apresentados, para a formação de uma ferramenta teórica que possa unir dois eixos de reflexão: influência e desenho. 39 Consideramos também como marcos teóricos desta tese os textos críticos e ensaísticos sobre a obra de Iberê Camargo que contribuíram para a formação de um pensamento e um discurso público dominante sobre esse artista. Além de marcos teóricos que fundamentam muitas das nossas concepções a respeito da obra de Iberê, tais textos também são vistos (a partir de uma visão metacrítica) como documentos (ou fontes primárias) dos problemas que aqui investigamos, sobretudo em relação à questão da influência frente à modernidade e ao elogio feito por esta ao novo e ao original. De outro modo, é importante ressalvar que não consideramos as reflexões de Iberê Camargo sobre sua própria obra como marcos teóricos de referência. Estas nos servem como fontes primárias, como documentos a serem analisados, e não propriamente como teorias a partir das quais referenciamos nossas reflexões (ainda que nelas identifiquemos teorias de onde extraímos referências que são postas em análise em nosso estudo). No que se refere ao panorama geral que apresentamos sobre a modernidade, ele é apresentado no intuito de entender o momento histórico em que se inserem nossas questões e as implicações dessa inserção. Seus marcos teóricos referenciais são, em primeiro lugar (cronologicamente falando), os estudos sobre a disputa entre antigos e modernos, sobretudo as análises de Joan DeJean sobre a Querelle, em seu livro Antigos e Modernos. As Guerras Culturais e a construção de um fin de siècle2. Em seguida, no que se refere à “tradição da ruptura” na modernidade, sua obsessão pela originalidade e o isolamento criativo dos artistas, tomamos como referências gerais as obras de Octávio Paz (sobretudo o capítulo “Tradição da ruptura”, em seu livro Os Filhos do Barro) e Harold Rosenberg (em seu livro The Tradition of the New). Nas análises de caso de Baudelaire, Adorno, Greenberg e Rosalind Krauss, como representantes desse pensamento moderno, além das obras dos próprios autores, valemo-nos de alguns estudos que se dedicam à análise de Baudelaire e Greenberg. Dentre esses estudos, destacamos, para Baudelaire, as reflexões de Teixeira Coelho, em sua introdução à coletânea de textos de Baudelaire por ele organizada e intitulada A Modernidade de Baudelaire. Quanto à Greenberg, é importante ressaltar a importância da análise de Jonathan Harris, em seu artigo 2 As referências bibliográficas completas estão presentes nas notas de rodapé dos capítulos desta tese, além, é claro, de constarem da bibliografia. Por estarmos, nesta introdução, apresentando apenas um panorama introdutório de nossos marcos teóricos principais, não faremos as referências bibliográficas completas, mas apenas a citação dos autores e do título de suas obras. É importante destacar também que não apresentaremos aqui toda a bibliografia utilizada, mas apenas aqueles textos que foram centrais para o desenvolvimento teórico da pesquisa. Nesse sentido, é impossível destacarmos, por exemplo, todos os pequenos trechos de textos, breves excertos, que encontramos ao longo da pesquisa e que muitas vezes desencadearam reflexões e deram origem a novos caminhos de análise, muitos deles já bem distantes dos trechos e excertos inicialmente encontrados. 40 “Modernismo e Cultura nos Estados Unidos, 1930-1960”. Quanto ao panorama da modernidade no Brasil, no que se refere ao elogio da originalidade e ao isolamento artístico, foram fundamentais as reflexões de Vera Beatriz Siqueira, sobretudo em seus dois artigos, “Individualidade e cultura. Apreensão crítica das poéticas de Goeldi, Segall e Iberê Camargo” e “A Forma Excessiva da Falta. Retórica Nacionalista e pensamento plástico”. Ainda que não façamos muitas citações desses dois textos, eles embasaram e deram início a muitas das reflexões gerais sobre o problema da modernidade artística brasileira contidas neste capítulo. As reflexões sobre Mário e Oswald de Andrade têm como referência os textos que analisamos dos próprios autores (Manifesto Pau-Brasil e Prefácio Interessantíssimo). Quanto à crítica de arte moderna no Brasil, no que se refere a Mario de Andrade, utilizamos as análises de José Augusto Avancini, em sua obra Expressão plástica e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade, e de Tadeu Chiarelli, em sua obra Pintura não é só beleza. A crítica de Arte de Mário de Andrade. No que se refere a Mário Pedrosa, contamos (como não poderia deixar de ser) com as reflexões de Otília Arantes, a partir de sua organização da publicação das obras desse crítico. Quanto ao problema da crítica da obra de Iberê Camargo, optamos por um panorama geral, salientando os temas que nos interessavam (o silêncio quanto às influências, o elogio do isolamento e da originalidade sem par desse artista). A partir dessas questões, pudemos encontrar autores que se aproximavam de nossos pontos de vista (no que se refere à busca das influências de Iberê e à crítica do ideal de isolamento e originalidade absoluta). Dentre esses autores, destacamos os estudos de Lisette Lagnado, em sua obra Conversações com Iberê Camargo, o ensaio de Lorenzo Mammì intitulado “Iberê Camargo e a pintura europeia do pós-guerra”, a análise da obra de Iberê feita por Sônia Salzstein em seu artigo “Anos 60/um marco na obra de Iberê Camargo” e, finalmente, os estudos de Mônica Zielinsky (não por acaso afinados com os temas desta tese), sobretudo o texto introdutório do Catálogo Raisonné de Gravuras de Iberê Camargo. Já no que se refere às reflexões de Iberê Camargo a respeito de sua obra e da arte de modo geral, é importante fazermos referência a um marco teórico que, se não foi referência para a construção teórica de nossa tese, é referência e marco teórico para o próprio artista. Trata-se da obra teórica de seu mestre, André Lhotte, em especial sua obra Les Invariants Plastiques, origem provável de muitas das ideias de Iberê Camargo. Para os problemas relativos ao desenho como campo de análise, objeto teórico específico e técnica artística particularmente analisada, procuramos apresentar uma visão 41 geral das teorias sobre desenho. Dentre essas teorias, estabelecemos alguns teóricos como marcos referenciais a partir dos aspectos do desenho que elegemos como os fundamentais na (posterior) articulação com a questão da influência. No que se refere ao desenho no Brasil, destacamos as análises sobre o desenho moderno brasileiro presentes na obra de Reynaldo Roels Jr. intitulada O desenho moderno no Brasil e no texto “Doze notas sobre o desenho”, de Frederico Morais. Quanto a uma reflexão geral sobre o desenho, dentre todos os textos analisados, sobressaem-se como marcos referenciais deste trabalho dois autores: Patrick Maynard, em seu livro Drawing distinctions. The varieties of graphic expression, basicamente uma análise filosófica sobre o desenho; e as reflexões de Flávio Gonçalves sobre sua própria poética artística e, a partir dela, sobre o problema do desenho como linguagem artística, com ênfase na relação estabelecida entre desenho e constelação, em sua tese Où se Trouve le Dessin? Une idée de Dessin Dans L'Art Contemporain, e na relação do desenho com o solo em seu artigo "Um percurso para o olhar: o desenho e a terra". Quanto ao problema da influência, esse conceito é o que apresenta um número maior de marcos teóricos referenciais. Isso não é sem motivo, já que se trata do problema teórico por excelência desta tese. Sendo assim, a partir de nossa opção por apresentar um amplo panorama dos estudos de fontes e influências a partir do campo da Literatura Comparada, seguindo pela análise da influência no campo específico das artes visuais, destacam-se algumas referências teóricas fundamentais. O estudo da Literatura Comparada trouxe-nos referências teóricas fundamentais para este trabalho; dentre elas, destacamos aquelas que mais contribuíram para o desenvolvimento desta tese. Primeiramente, temos as reflexões sobre tradição na obra de Eliot (principalmente em seu texto “Tradition and The Individual Talent") e sobre influência em Valéry (dispersas em seus muitos aforismos). Os dois textos, por divergirem das noções regularmente aceitas sobre a influência, contribuíram para pensarmos em uma teoria da influência de matiz mais heterodoxa. As reflexões de Claudio Guillén (presentes especialmente em sua obra Literatura como Sistema) foram-nos importantes para testarmos os limites desse conceito e de sua operacionalidade. Autores como Ihab H. Hassan e Haskell M. Block auxiliaram-nos a afinar o conceito e a entendê-lo como uma ferramenta que deve ser compreendida a partir de sua especificidade. Os estudos divergentes do conceito de influência expuseram-nos os problemas desse conceito ao mesmo tempo em que, ao entendermos sua dinâmica e seus próprios problemas, nos reaproximaram do primeiro conceito, agora já informado e acrescido das novas teorizações (referimo-nos aqui 42 principalmente às teorias sobre a intertextualidade, sobretudo nos estudos de Julia Kristeva). A reflexão de Harold Bloom sobre o tema da influência (fundamentalmente presente nas obras A Angústia da Influência e Um Mapa da Desleitura), origem de muitas de nossas reflexões iniciais sobre esse conceito, agora lidas em contexto com as outras teorias de influência (e a par da teoria de W. J. Bate, por sua vez origem provável de muitas das concepções de Bloom), foi-nos importante por seus insights – em muitos momentos, mais poéticos do que estritamente teóricos – para o estudo de nosso problema. O estudo de Susan Stanford Friedman intitulado “Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of Author” mostrou-nos a possibilidade de trabalhar com a figura do autor após a declaração de sua morte por uma parte da escola pós-estruturalista francesa, do mesmo modo que a obra de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux (Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura) reafirmou nossa certeza da validade contemporânea do conceito de influência. Por fim, encontramos na obra de Antônio Cândido as referências teóricas fundamentais para pensarmos nosso conceito para a especificidade brasileira. O percurso dessa trajetória conceitual, ainda que temerário (por constituir-se na incursão por um campo que não é – ou era – inicialmente o nosso), teve o providencial apoio de obras de referências gerais, entre as quais salientamos o livro Literatura Comparada, de Sandra Nitrini, e as obras e artigos de Tânia Carvalhal dedicados ao tema da influência. No estudo do conceito de influência no campo mais específico da arte, além de nossas críticas ao uso irrefletido desse conceito ou nossa apresentação e crítica aos detratores desse conceito (em especial, a crítica empreendida por Michael Baxandall), e também nossa indicação dos conceitos correlatos (mas não idênticos) ao conceito de influência nesse campo, pudemos identificar uma referência teórica específica na obra de Göran Hermerén, Influence in Art and Literature. Tal referência, derivada dos estudos analíticos da filosofia da arte3, serve-nos como uma estrutura lógica geral que nos indica condições necessárias e suficientes (principalmente condições necessárias) para a presença da influência nos trabalhos artísticos aqui analisados. Finalmente, na convergência dos campos teóricos da influência com o desenho, temos a parte que poderíamos chamar de mais autoral dentro das reflexões teóricas. A partir dos marcos teóricos anteriormente expostos, fazemos um exercício de aglutinação e 3 A filosofia analítica é uma corrente de pensamento importante na construção desta tese, sobretudo por seu rigor formal na análise dos conceitos e pelo método de abordagem dos problemas, ainda que não seja nosso trabalho uma reflexão analítica stricto sensu, já que não procuramos nos restringir a esta forma de análise, muitas vezes – e deliberadamente – restritiva no que se refere à análise crítica das obras. 43 reordenamento dessas ideias, conceitos e concepções gerais, agora vistos junto aos conceitos de desenho anteriormente expostos, procurando um conceito que tenha a especificidade necessária para tornar-se uma ferramenta à altura de uma análise da obra de Iberê Camargo. Por último, é importante salientarmos que, ao falarmos de nossos marcos teóricos, nos referimos às nossas próprias influências. Sendo assim, é natural que estejamos sujeitos a um tipo semelhante de dinâmica que a influência traz ao artista. Portanto, nossa provável falha em descrevermos todas as nossas variadas fontes, marcos ou referências teóricas explica-se na mesma medida (ou em uma medida semelhante) em que conseguimos explicar os intrincados problemas da influência. Esta tese constrói-se a partir de níveis (ou camadas) de análise. O primeiro nível de análise, que corresponde ao primeiro capítulo da tese, investiga de que forma a modernidade construiu uma noção de influência fundamentada como contraponto a um de seus valores principais: a importância do novo, entendido como original. Apresentamos, portanto, o plano histórico geral (a modernidade) e específico (a modernidade brasileira) a partir do qual se assentam nossos problemas. É a partir desse seu contraponto que apresentaremos o problema da influência: através da análise da importância da originalidade na modernidade. Em busca do início dessa concepção, recuamos aos inícios da modernidade, na virada do século XVII para o XVIII. Investigamos como, a partir da disputa entre antigos e modernos e da vitória destes últimos, forjou-se a concepção do novo como valor fundamental e do original como critério de excelência da obra de arte. Através dessa perspectiva, vemos de que modo a influência passou a ser vista como elemento perturbador dessa visão e, portanto, como algo a ser evitado, negado ou encoberto. Mapeando essa estrutura geral de pensamento, passamos a investigar os ecos dessa concepção na crítica de arte brasileira, em seguida detendo-nos sobre a interpretação crítica da obra de Iberê Camargo. Estudamos sua fortuna crítica sob a perspectiva desses problemas de influência, mostrando de que modo se construiu sobre a obra de Iberê e sobre sua persona artística um discurso que ressalta a individualidade e a solidão artística de ambos (artista e obra). Indicamos também uma crítica mais recente, que tem, sob perspectivas teóricas distintas daquelas da modernidade, procurando identificar a importância do estudo da obra de Iberê em comparação a outras obras e em suas relações de influência. 44 Em conjunto com esse discurso exterior ao artista, mostramos também o discurso público de Iberê, através de seus textos, entrevista e depoimentos, que corroboram essa visão solitária, não engajada e não predisposta às influências em seu trabalho, mas que, de forma aparentemente contraditória, porém encontrando sua explicação ao final da tese, faz o elogio à tradição e aos mestres. As duas visões, de Iberê e da crítica, estabelecem, por sua vez, uma relação de influências mútuas. A personalidade “solar” e magnética de Iberê (que encarna os valores individualizantes e heróicos do artista moderno) influi sobre sua crítica (na imensa maioria das vezes, como não é raro na crítica nacional, composta por amigos e pessoas muito próximas ao artista e, portanto, predisposta a essas influências) na construção dessa persona. Por outro lado, vemos como o discurso da crítica auxilia na formulação do discurso público do artista sobre sua obra, ao ressaltar (Iberê) os principais aspectos apontados por aquela no que se refere à solidão e ao aspecto ímpar de sua obra no contexto artístico nacional e internacional. Do mesmo modo, ao mostrarmos um brevíssimo panorama do desenvolvimento da crítica de arte no Brasil, indicamos as razões específicas (para o Brasil) desse discurso, fundamentado na necessidade de construção de valores artísticos nacionais. A partir dessa necessidade é que não analisamos a construção crítica da obra de Iberê, que muitas vezes encobre os problemas de influência, como uma espécie de falha ou incapacidade analítica daqueles que vieram antes da análise que ora apresentamos. Ao contrário, entendemos e apresentamos as razões dessa construção e, ao apresentá-las ao longo de muitas páginas, prestamos também nossa gratidão a esses estudos, que influenciaram a própria construção desta tese – influência exercida seja por nosso engajamento nas análises críticas, seja por nossa contraposição a elas. Procuramos, do mesmo modo, ver Iberê situado em um jogo de afastamentos e aproximações, e não meramente isolado: nessa rede complexa de relações, incluem-se influências, mas ao mesmo tempo não-aderência (explícita) aos grupos ou movimentos dos quais recebeu influências. Se Iberê Camargo reflete a solidão modernista do artista único que o afasta, por exemplo, de uma maior proximidade com os grupos abstracionistas concretos ou gestuais, sua aderência aos princípios fundantes da modernidade o aproxima. Se não há por parte do artista um engajamento estético declarado, ele se engaja na política das artes, com sua luta pela qualidade dos materiais artísticos. O segundo nível de análise (em nosso segundo capítulo) trata primeiramente de uma reflexão sobre o desenho de modo amplo. Estudamos essa linguagem artística e 45 seus elementos constituintes buscando responder a uma das indagações centrais desta tese no que se refere ao estudo da influência na obra de Iberê Camargo. Tal indagação resume-se a uma pergunta aparentemente simples: porque o desenho? Tal pergunta tem como resposta uma série de análises sobre o desenho que o mostram como terreno privilegiado ao estudo das influências. Essa série de análise inicia-se com uma reflexão das relações que o desenho estabelece com o tempo. Seja entendido em sua sucessão (diacronia), seja em uma simultaneidade (sincronia), indicamos o quanto esses dois aspectos do tempo encontramse articulados (entrelaçados) nas linhas do desenho riscadas sobre a presença (espacial) do suporte. Em seguida, essa análise investiga as relações do desenho com seus aspectos objetivos e subjetivos. Indicamos, a partir da história das reflexões sobre o desenho, os momentos em que ora ele é definido como um tipo de linguagem extremamente racional que identifica a linha com aspectos geométricos, de planejamento e racionalização do mundo, ora é definido como aquela linguagem que mais se aproxima da intimidade do artista e que, por tal proximidade, é capaz de revelar sua subjetividade. Terminamos nossa reflexão sobre o desenho com uma investigação das relações entre desenho e linguagem e do modo como o desenho constitui-se como linguagem – o modo da representação. Numa breve exposição do problema da representação, indicamos também sob qual perspectiva podemos pensar no desenho como representação de si mesmo. Esses três momentos de análises sobre o desenho articulam-se com o problema da influência. Indicamos nesse capítulo de que forma essas articulações acontecem, sem, no entanto, nos concentrarmos na influência especificamente, mas sim nos elementos do desenho que nos parecem mais apropriados a essa aproximação do problema da influência, estudado especificamente no último capítulo da tese. Em segundo lugar, nossa análise no terceiro capítulo corresponde a uma apresentação da obra de desenhos de Iberê Camargo. Nessa apresentação, mostramos uma trajetória da obra, desde os primeiros desenhos até as obras dos últimos anos do artista. Iberê Camargo desenhou incessantemente até seus últimos momentos de vida, em seu leito de morte. Nossa intenção, portanto, é a de apresentar alguns desses desenhos sob a perspectiva dos desenhos presentes em seu acervo pessoal, que atualmente constitui o acervo da Fundação Iberê Camargo. A eleição da pesquisa desse acervo deve-se ao fato de ele guardar a maior coleção de seus desenhos, desde sua produção de garatujas de infância até suas últimas obras (graças, entre outras coisas, à 46 guarda dos trabalhos por sua esposa, Maria Coussirat Camargo). Como apresentação geral, não nos concentramos na análise a partir do problema específico da tese (a influência), mas de um panorama genérico de sua obra, o que consideramos essencial para a posterior análise específica da influência, visto seu desconhecimento, já referido anteriormente. Cumprimos, nessa parte da tese, portanto, nosso objetivo de apresentar a obra de desenhos de Iberê em uma perspectiva temporal que abranja toda a sua trajetória artística. Essa análise preliminar do acervo de desenhos de Iberê Camargo diz respeito também a uma série de delimitações que consideramos pertinentes para a análise de sua obra. Essas delimitações correspondem primeiramente à escolha apenas daqueles desenhos que são datados, por permitirem uma análise histórica de sua obra a partir da progressão de seu trabalho ao longo do tempo. Em segundo lugar, restringimo-nos à escolha dos desenhos que apresentam mudanças mais significativas frente aos desenhos anteriores e que, por isso, podem indicar mudanças de rumo de sua poética passíveis de serem relacionadas a influências sofridas. Assim, a segunda parte do segundo capítulo trata basicamente da eleição de um corpus prévio de (parte de) trabalhos em desenho que aparecerão no último capítulo, quando de fato constatarem-se questões de influências identificáveis. Tal eleição também procurará desfazer alguns mitos formados sobre a obra de Iberê Camargo, ao mesmo tempo em que indicará alguns elementos que são frequentemente desconsiderados nas análises e comentários de sua produção. Entre esses elementos, destacamos a emergência de trabalhos tendo como motivo naturezasmortas e temas do interior de sua casa e de seu ateliê, bem anteriores ao surgimento do carretel, portanto, desligados do mito biográfico fundador desse surgimento. Outro elemento que surge da análise de seus desenhos é o fato de, nessa produção, o artista não ter abandonado (a não ser por um par de anos) a figuração stricto sensu. A figuração humana, conforme podemos comprovar, aparece de forma bastante significativa anteriormente ao que se costuma indicar em alguns textos críticos como "volta à figura humana" em sua obra e, portanto, destaca-se dos aspectos biográficos que costumam se relacionar a esse suposto retorno. O terceiro e último capítulo da tese e terceiro nível de análise trata especificamente do problema da influência. Nossa análise sobre a influência constrói-se na mesma medida em que construímos um conceito de influência, o que é feito a partir da apresentação da trajetória mesma desse conceito e de seus encontros e desencontros com a arte, até finalmente o apresentarmos à obra de Iberê Camargo. Construir um conceito a partir de 47 uma construção prévia torna-se aqui uma metáfora da própria ideia de influência (uma construção que acontece sempre a partir de algo prévio que nos afeta) e nosso modo de lidar com nossas próprias influências, construindo um campo a partir do qual elas podem ser delineadas. Em nossa exposição da trajetória do conceito de influência, iniciamos nossa análise no campo em que o conceito teve sua origem e no qual tem encontrado uma reflexão mais sistemática: o campo dos estudos de Literatura Comparada. A partir de uma reflexão ampla (ainda que sintética), mostramos a transformação desse conceito e sua incorporação dentro dos estudos comparatistas como uma ferramenta útil aos estudos literários. Dividimos nossa análise da influência dentro dos estudos comparatistas em seis momentos, os quais correspondem aos marcos mais importantes no desenvolvimento do conceito, de suas transformações ou mesmo da negação desse conceito pela tentativa de sua substituição por outros instrumentais teóricos (tal como o conceito de intertextualidade). Sempre quando possível e necessário, procuramos situarmo-nos sob uma perspectiva crítica, posicionando-nos em relação aos problemas tratados, ainda que eles digam respeito a um campo (o da Literatura Comparada) que não é originalmente o nosso. Conduzindo o conceito de influência para o campo da arte (ou das chamadas “artes visuais”, termo que, embora ainda seja discutível na contemporaneidade, permanece com sua validade quando estudamos a arte moderna), partimos para a análise dos momentos e modos em que esse conceito se apresenta neste que é o nosso campo de estudos. Assim, passamos nesste momento a analisar o conceito de influência na arte, seus problemas e equívocos, bem como as críticas a que foi submetido. Nossa análise é também informada pelo conhecimento do conceito previamente analisado no estudo dentro da Literatura Comparada. Os estudos literários sobre a influência apresentam-se, assim (por sua profundidade e amplidão), como instrumentos críticos e corretivos das teorizações e mesmo de suas ausências no campo da arte. Analisamos primeiramente os conceitos e concepções gerais sobra a arte que são correlatos ao conceito de influência sem, no entanto, se identificarem com este. Em seguida, passamos a examinar o uso do conceito de influência, sem que represente uma utilização consciente ou preocupada com a reflexão sobre o conceito e seu uso – esse exame é feito a partir das análises que foram realizadas a respeito das relações entre as obras de Matisse e Picasso. Passamos, depois, à análise de uma teorização específica construída para as artes visuais: o estudo de Göran Hermerén sobre a influência na arte e 48 na literatura. Por último, apresentamos o que consideramos a crítica mais severa ao uso do conceito da influência na arte, presente nas reflexões de Michael Baxandall 4, indicando a seguir nossos principais pontos de crítica aos argumentos desse autor. Na última parte de nossa construção conceitual, propomos um encontro entre o desenho, a partir de suas características analisadas no capítulo segundo, e o conceito de influência, tal como foi analisado nesse capítulo. Sendo um encontro, buscamos um campo comum no qual possamos estabelecer relações entre a linguagem do desenho e o conceito de influência. Nosso objetivo é estabelecer uma convergência que seja responsável pela mudança e incorporação tanto de elementos do conceito nos aspectos analisados sobre a linguagem do desenho quanto dos elementos do desenho, por sua vez transformando, com esse encontro, o conceito de influência. É a partir dessa convergência que surge o conceito segundo o qual “influência é desenho”. Dessa forma, buscamos apresentar um conceito que seja construído a partir dos problemas suscitados pela arte e que não seja uma mera aplicação mecânica de um instrumental teórico sobre o objeto de estudo. Construindo-se a partir dessa relação, esses encontros entre influência e desenho acontecem em três momentos, que espelham os três momentos anteriormente analisados em relação ao desenho e com os quais se articulam. Assim, em um primeiro momento de encontro entre o desenho e a influência, estes são estudados sob a perspectiva do tempo, indicando as relações que ambos estabelecem com a temporalidade, tanto sob a perspectiva diacrônica quanto sincrônica. A influência passa a ser vista em uma dinâmica de distâncias e aproximações temporais que nos leva a questionar a ideia da “angústia da influência” como uma característica ligada à tradição artística e a pensá-la, sobretudo, como algo ligado à proximidade sincrônica do tempo. No segundo encontro entre influência e desenho, examinamos a relação que ambos estabelecem com a subjetividade e a objetividade. Investigamos, nessa dupla relação, os aspectos objetivos e subjetivos que se apresentam no fenômeno da influência e no momento de sua análise por parte do pesquisador de arte. Finalmente, o último encontro entre influência e desenho trata dos problemas da representação. Nossa reflexão dirige-se, nesse momento, ao entendimento da influência como uma representação que o artista faz, em sua obra, da obra dos outros artistas e de sua própria obra. Nesse sentido, caracteriza-se tanto por sua semelhança com a obra a que faz referência quanto por uma essencial diferença que é característica de toda a 4 BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção. A explicação histórica dos quadros. (1986) Tradução: Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 49 representação (entendida como algo outro que é posto no lugar do representado). O conceito de influência, construído a partir de sua articulação com o desenho, pretende ser uma ferramenta útil para a análise da obra de desenhos de Iberê Camargo. Essa análise ocupa a segunda parte de nosso último capítulo. Com esse conceito entendido como ferramenta analítica, através de sua utilização, apresentamos novas possibilidades de análise da obra de Iberê. Na construção desse conceito, que tem presente a obra do artista ao longo de toda a tese, optamos, entretanto, pela aproximação objetiva do conceito de influência junto à análise de sua produção apenas ao final da tese. Isso se deve a algumas razões. A primeira delas é que, como ferramenta analítica, precisou primeiramente ser aperfeiçoada para mostrar-se apta e própria à análise da obra. Um estudo, portanto, que desde seu início apresentasse a análise das influências de Iberê seria provavelmente falho em ao menos um entre dois problemas: ou não apresentaria um instrumental conceitual adequado a essa análise, ou, se os apresentasse desde o início, iria fazê-lo sem evidentemente indicar o trajeto de análise do próprio conceito que o fez se tornar ferramenta propícia para tal análise. A segunda razão, que se relaciona mais a uma questão de estilo, é a do nosso entendimento de que a apresentação prévia dos conceitos nos liberta da necessidade de conjunção da análise crítica com a análise teórica. Com isso, nossa abordagem da obra de Iberê Camargo, ainda que evidentemente sustentada pelos conceitos construídos, pode desenvolver-se de modo mais ensaístico e, portanto, ligado a uma sensibilidade crítica que, em sua liberdade formal, melhor se harmoniza com os desenhos do artista. Este trabalho sustenta-se na convicção de que a obra de Iberê Camargo, mais do que esta tese ou seus conceitos, através de um olhar atento e abrangente (abrangência que a disponibilidade da organização do acervo atualmente permite e que as posteriores publicações de seu Catálogo Raisonné permitirão de forma ainda mais significativa), é capaz de desfazer muitos dos mitos que foram criados sobre ela. Dentro dessa obra, enfatizamos a importância fundamental dos desenhos para a compreensão de seus trabalho como um todo (de sua poética e de suas escolhas). Apresentar, portanto, sua obra de desenhos – inexplicavelmente pouco estudada e exposta, portanto, pouco conhecida – pode por si só sustentar-se (caso sejamos falhos de todas as nossas hipóteses apresentadas) como um mérito desta tese. Nossa identificação de uma série de influências na obra de Iberê Camargo, ao longo de toda a sua carreira, constrói-se a partir de um delicado tracejar de relações, as quais, como uma metáfora, identificamos com a atividade de constelar (apropriando-nos 50 aqui de um conceito previamente desenvolvido, conforme veremos). Essa atividade, entendida como aquele exercício dos primitivos astrônomos/astrólogos de identificar constelações no céu, era fruto tanto do exercício da razão quanto de engenho e arte. Ainda que fundamentada em dados concretos (as estrelas), fazia-o a partir da construção de um desenho que guardava algo de aleatório. A partir disso, construíam-se ou identificavam-se relatos mitológicos que emprestavam sentido àquela realidade, a qual era identificada à medida que era construída e transmitida aos povos que reconheciam seu sentido e que com ele comungavam. Identificar influências guarda algo de aleatório ou ao menos (para não usar uma palavra tão forte) de subjetivo em sua análise. Essa subjetividade é constitutiva não apenas do trabalho histórico, teórico e crítico da arte que se direciona às influências, mas de todo trabalho que tenha como um de seus elementos a crítica de arte. Ousamos dizer: de todo trabalho que tenha como objeto de estudo a arte. Essa subjetividade fundamentase no fato de que todo trabalho crítico se estabelece através de um exercício de convencimento do seu leitor ou interlocutor. Acercar-se do maior número de dados contextuais e fundamentalmente de aproximações formais entre obras as mais relevantes possíveis é a forma que encontramos, não de nos livrar das subjetividades inerentes à análise, mas ao menos de torná-las compartilháveis a um número o maior possível de pessoas que possam então nela reconhecer algum sentido. Os dados e análises formais que apresentamos conjugam-se em um trabalho no qual comparecem as análises teóricas, críticas e históricas da arte, e essa é justamente uma das características do trabalho com a questão das influências. Tal análise exige o trabalho conjunto de vários campos do conhecimento sobre arte, agenciando saberes distintos e não prescindindo também de um conhecimento humanístico, que, na falta de termo mais apropriado, denominamos genericamente de "erudição". Nossas falhas, portanto, na identificação das influências indicarão muitas vezes não um problema dessa ferramenta, mas da carência pessoal que possamos ter quanto a esta última qualidade exigida no trabalho com esse conceito. Nenhuma tese que lide com as coisas e os fatos do mundo prescinde daquilo que Karl Popper chamou de falseabilidade, ou seja, da possibilidade de encontrarmos fatos ou novos elementos da realidade que neguem ou corrijam as teorias que aqui apresentamos. No que se refere ao estudo dos desenhos de Iberê Camargo e das relações de influência, ambos temas pouco estudados, torna-se não apenas provável, mas recomendado, que novos estudos apontem novas possibilidades e venham a corrigir as hipóteses aqui 51 apresentadas. A intenção em relação a seu alcance e recepção é, portanto, de torná-la uma teoria progressiva, que se desenvolva a partir da inserção de elementos empíricos novos e de novas relações que apontem novas possibilidades de influência (ou mesmo que neguem as aqui indicadas). A influência é uma hipótese que lançamos em direção a um conjunto de obras e contextos artísticos. Nessa perspectiva, é ela uma espécie de desenho que fazemos ao ligar uma série de pontos no espaço, os quais ganham seu sentido ao serem traçados, mas que também dão sentido ao conjunto que é traçado. Nossa esperança é sempre que esse tracejar acompanhe, redesenhando, uma linha mais tênue feita pelo próprio artista, composta dos desenhos que expressam suas relações de influência. Como um rio profundo, a influência corre no interior do artista e pode ser identificada quando se expressa em sua obra. Podemos falar sobre o curso, a força, os elementos do rio que com ele são arrastados e acompanhar seu trajeto, ou seja, podemos falar sobre o que ele é e como se comporta. No entanto, os porquês da influência – os porquês de um rio – é algo que nos escapa. Portanto, não se trata nesta tese de uma definição de por que Iberê Camargo foi influenciado, como uma espécie de explicação das motivações íntimas de um artista. Sobre isso, guardamos um silêncio que é o da impossibilidade do teórico e de respeito ao artista, lembrando-nos da lição do filósofo: “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”5. 5 “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes do Santos. São Paulo: Edusp, 2001. p. 281. 52 Capítulo I Iberê Camargo e a modernidade: os discursos do artista e do crítico Não é em Montaigne mas em mim mesmo que eu encontro tudo o que eu vejo nele. Blaise Pascal, Pensamentos. A arte moderna funda-se sob o signo cruel de uma impossibilidade – o da originalidade absoluta. Para ser plena, a arte moderna considera que deve fundar um novo modo de fazer arte. Mais que isso (e de modo ainda mais radical): um novo modo de ver e compreender o mundo. Dessa forma, por abrigar-se nessa frágil habitação, a de uma contradição, construir-se-á a partir de um discurso que necessitará ser forte e altissonante o suficiente para tentar calar as vozes de sua própria verdade – a verdade de que não é possível ser original se entendermos a originalidade da perspectiva do surgimento de algo novo nas cinzas de uma terra arrasada. Essa terra é a história da arte, onde a modernidade necessariamente se insere e a partir da qual ela toma sentido. Pensamos, no que tange à originalidade, algo próximo do que, para Foucault, se refere à origem, ou seja, que: “é sempre sobre um fundo do já começado que o homem pode pensar o que para ele vale como origem”6. Artista moderno por excelência (ainda que tardio), Iberê Camargo afirmará com o mesmo ímpeto tal originalidade em sua obra, afirmação ainda que a contrapelo: negação de influências artísticas e construção de uma “persona” artística afastada das modas e dos movimentos, solitária em sua busca artística (mesmo solidarizada às outras questões dos artistas, como, por exemplo, a luta pela diminuição de impostos ou pela qualidade dos materiais de trabalho). A essa negação e a essa construção, juntar-se-ão os críticos de sua obra, seja por aderência ao ideal imanado da personalidade do próprio artista, seja pela filiação aos próprios pressupostos da arte moderna sob os quais esses críticos constroem sua reflexão. Tais relações, aliás, não podem ser entendidas como apenas surgidas de Iberê em direção à crítica, mas construídas na complexa relação estabelecida 6 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 456. 53 entre os dois. Sendo assim, a própria crítica de arte tem influência sobre o pensamento de Iberê Camargo sobre a arte, já que é ela parte construtora desse ideal de modernidade, o qual é o foco geral em que nos detemos agora (sob a perspectiva particular de Iberê e de sua fortuna crítica). Este capítulo trata desses dois discursos: o da crítica e o do artista no que diz respeito à defesa da originalidade da obra de Iberê Camargo. Será, portanto, um capítulo como que entre parênteses no conjunto desta tese. Far-se-á aqui uma pausa naquilo que tratamos (as relações entre influência e originalidade na formação do estilo de Iberê Camargo, a partir de sua formação artística) para mostrar aquilo de que discordamos. Essa pausa é necessária para expor um pensamento que não é o desta tese, mas que é fundamental para compreender a obra de Iberê, já que é aquele declarado publicamente pelo próprio artista e balizado por boa parte de sua crítica. Tal suspensão permitirá também analisarmos, através do discurso da crítica e do artista, o próprio conceito de originalidade que a modernidade constrói e o que vê como seu contraponto, a influência. Assim, essa será antes uma “história das ideias” do que uma história ou uma crítica da arte propriamente dita. Do mesmo modo, a parte autoral deste capítulo da tese far-se-á presente não tanto pelas teorias expostas quanto pelo posicionamento crítico que tomaremos frente a elas. Questionamos, sobretudo, por que a qualidade de um artista – e especificamente de Iberê Camargo – deve ser afirmada a partir de uma diferença fundamental, e não a partir de suas semelhanças, afinidades e, por fim, influências de outros artistas. Aproximamo-nos, desse modo, da estrutura mental a partir da qual foram forjadas as concepções de influência de Iberê, estruturas essas que, conforme demonstraremos, se inserem de modo mais particular a partir da influência teórica exercida por seus mestres e, em seguida, num plano mais geral, dentro da modernidade. É desse plano mais geral que iniciamos a trajetória conceitual. Exploraremos, a seguir, como o conceito de ruptura da tradição, de importância do novo e da identificação desse novo com a originalidade surgiu no cenário mental da arte, na transição do séc. XVII para o séc. XVIII. Será visto, ainda, como esse ideário de elogio do novo consolidou-se nos séculos XIX e XX, considerando-se uma recapitulação crítica de seus principais formuladores. 54 1. Recapitulando: dos antigos aos modernos – o problema da tradição e a novidade na história do pensamento artístico dos séculos XVII e XVIII A importância do novo em arte, da novidade como condição da criatividade artística e, sobretudo, a importância maior dos artistas e da arte atual sobre a arte antiga são uma invenção que pode ser datada no final do século XVII, em uma disputa na busca da afirmação e hegemonia dos critérios artísticos dentro do campo da arte que ficou conhecida como a “querela dos antigos e dos modernos”. Conforme será aqui apresentado, se foi a vitória dos modernos que pautou a ideia da modernidade e da novidade como critério artístico fundamental, foram ambos, modernos e antigos, cada um à sua maneira, os responsáveis pela concepção da influência como característica negativa e a ser evitada. Em torno do ano de 1687, dois grupos, surgidos das discussões do campo da literatura, viram-se envolvidos em um confronto que teve repercussões tão largas que hoje se consideram como a primeira grande crise fin de siècle7. Liderados por Charles Perrault e Fontenelle, reuniram-se aqueles que ficaram conhecidos como modernos. Advogavam que a arte do seu tempo era a melhor já produzida, melhor que toda a arte anterior. Na disputa entre a língua latina e o francês, defendiam a última e encontraram apoio em Colbert e na Academia Francesa. Atacavam a noção de autoridade emanada dos antigos, de onde já podemos antever a origem de sua concepção contrária à ideia de influência como tributo aos que vieram antes. A autoridade negada pelos modernos no campo da literatura tinha alcance também na ciência, com a negação da autoridade aristotélica sobre o pensamento científico moderno. A autoridade aristotélica era comparada à autoridade literária de Homero. Tal negação da autoridade científica abriu caminho para o progresso da ciência e o surgimento do iluminismo. Rejeitando toda a forma de autoridade antiga, também é característica desses primeiros movimentos iluministas a crítica à autoridade religiosa e política, o que abriu caminho para os sistemas deístas na religião e para a democracia na política. Ao conceito de autoridade, os modernos contrapuseram o conceito de razão e 7 Ideia defendida por Joan DeJean, em DEJEAN, Joan. Antigos e Modernos. As Guerras Culturais e a construção de um fin de siècle. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 55 natureza. Segundo um dos pensadores que defendiam a modernidade, o Abade Terrason, em sua Disertation critique sur “L'Iliade”, de 1715, a literatura não deveria ser julgada de acordo com a reputação que ela granjeou no passado, mas de acordo com sua conformidade à razão e à natureza. A crítica literária, portanto, deveria adotar o espírito filosófico que foi responsável pelo progresso nas ciências naturais8. De outro lado, os antigos, assim definidos a partir da contraposição com os modernos, tinham apreço pelas obras do passado, pelos critérios tradicionalmente estabelecidos. Defendiam a soberania de Homero frente aos escritores contemporâneos e a preeminência do latim. Os antigos tinham como líderes Boileau e La Bruyère. Seus defensores encontravam-se entre os jesuítas e os clérigos da Universidade. Além de uma disputa a respeito de qual época possuiu os maiores gênios e o maior conhecimento, o embate entre antigos e modernos expõe uma questão ainda mais crucial: o aumento do conhecimento significa progresso? Segundo os antigos, a natureza humana permanece sem modificações, e o homem é o mesmo que sempre foi. Sendo assim, não se pode dizer que os modernos, por acúmulo, seriam mais sábios que os antigos. É essa negação de uma sabedoria estratificada ao longo das eras o que identifica também por parte dos antigos a negação da importância da influência na formação de uma obra, ainda que La Bruyère, defendendo os antigos, dissesse em seu Caractères (1687), que os modernos são como crianças que sugaram o nutritivo leite de suas amas e depois se revoltaram e bateram nelas. Alessandro Tassoni, um dos teóricos que cerra coluna ao lado dos antigos, em sua obra Dieci libri di pensieri diversi (1620), ataca a ideia do conhecimento como algo cumulativo e, curiosamente, traz ideias novas para o campo das discussões críticas, como a concepção de que o progresso não é estabelecido através de uma linha reta, ocorrendo aos saltos. Em que a disputa entre antigos e modernos afeta nossa questão? Primeiramente, porque surge aí a primeira oposição, dentro do pensamento sobre a arte, entre tradição e progresso. Mais do que oposição, vemos aí o início de uma “tradição do progresso”. Por 8 ALDRIDGE, A Owen. “Ancients and moderns in the eighteenth century. In: WIENER, Philip P. (org). Dictionary of the History of Ideas. New York: Charles Scribner's Sons, 1973-4. Vol. I, p. 77. 56 primeira vez, o progresso e a novidade surgiram como critério artístico, como maior valor da melhor arte, o primeiro momento em que uma arte hodierna será considerada o padrão da arte a ser feita. A arte então atual (contemporânea, em seu sentido mais literal) irá se contrapor a tudo o que foi feito anteriormente, não de modo inferiorizado, mas a partir dessa perspectiva de superioridade do moderno. Entretanto, se os modernos criaram as bases para a recusa da preeminência da arte antiga e, portanto, da influência sobre a arte atual, uma interessante questão, paradoxal, surge, conforme vimos, também em relação aos antigos. Ao defender a ideia de que o conhecimento não é cumulativo, de certa forma os antigos contradizem a ideia de influência, se tomarmos a influência justamente como esse acúmulo de camadas de saber ao longo das eras. Outro interessante paradoxo é aquele do filósofo inglês Francis Bacon, que o expressa do seguinte modo em latim: Antiquitas saeculi juventus mundi, que podemos traduzir como: “tempos antigos, mundo jovem”. Nosso tempo é o tempo antigo, já que o mundo, passados todos esses anos e eras, é antigo. Seria, portanto, um sofisma de ordine retrogado chamar de antigo um tempo em que o mundo ainda era jovem. Como afirmará Thomas Paine, fazendo um uso político dessa concepção, em The Rights of Man (1791), “aqueles que viveram séculos ou milênios atrás foram então os modernos, tal como somos agora”. Tal paradoxo servirá principalmente para os defensores dos antigos caracterizarem nossa época não como uma época jovem e promissora, mas como um tempo de senilidade e decadência se comparado ao frescor da juventude dos primeiros tempos. Por último, outra curiosa metáfora, utilizada por ambos os lados da disputa, é aquela do gigante que sustenta em seus ombros um anão. A imagem foi utilizada pela primeira vez no século XII, por Bernardo de Chartres, que assim a expressou: “somos como anões sentados nos ombros de gigantes. Portanto, vemos mais coisas do que os antigos e mais distantes, não pela penetração de nossa própria vista ou pela elevação de nossa estatura, mas porque eles nos erguem e nos alteiam de toda a sua gigantesca altura”9. 9 CHARTRES, Bernardo de. Apud GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 315. 57 Tal imagem foi retomada no século XV por Juan Luis Vives e no século XVI por Ben Jonson. Na disputa entre antigos e modernos, foi reintroduzida por Fontenelle. Os defensores dos antigos utilizaram a metáfora para salientar o anão como signo da decadência dos tempos modernos, enquanto que os modernos consideraram a posição vantajosa dos modernos como um símbolo de sua superioridade. A reiteração dessa imagem é uma das responsáveis pela posição paradoxal dos antigos negando a importância do acúmulo de conhecimento como formador do pensamento moderno, já que isso colocaria os modernos em posição de vantagem, sobre os ombros dos antigos. Ao mesmo tempo, por parte dos modernos, há justamente uma recorrência, há algo que poderíamos denominar como uma primeira aproximação do conceito de tradição, tal como expressado por T. S. Eliot em seu texto “Tradition and the Individual Talent”, de 1919 (conforme veremos no último capítulo desta tese), como uma justificativa do conhecimento superior desse anão que se coloca acima do gigante-passado – gigante, pode-se dizer, mais por ser uma multidão de ombros sobre ombros do que propriamente por existir como um ser único e superior ao qual os defensores dos antigos são tão devotados. Não apenas na França, mas também na Inglaterra, o debate entre antigos e modernos causou grande polêmica. Tal debate emerge em 1690, com o ensaio de Sir William Temple, intitulado “An Essay upon Ancient and Modern Learning”. Nesse escrito, Temple afirma a superioridade dos antigos sobre os modernos. Sua argumentação faz-se no sentido de negar qualquer vantagem dos modernos por uma suposta herança recebida dos antigos. Segundo o autor: “tal como um homem que apenas traduz não poderia jamais ser um poeta, nem um pintor que apenas copia, nem um nadador que nada sempre com bóias”.10 Mais uma vez, o que nos chama a atenção é que, na defesa dos antigos, a ideia de uma influência destes (tomada como cópia) é entendida não como algo abonador da qualidade dos modernos, mas como enfraquecedor de seu gênio, retomando, de certa forma, a concepção platônica de cópia como degeneração do 10 No original: “So a Man that only Translates, shall never be a Poet, nor a Painter that only copies, nor a Swimmer that swims always with Bladders”. Apud: ALDRIDGE, A Owen. “Ancients and moderns in the eighteenth century”. In: WIENER, Philip P. (org). Dictionary of the History of Ideas. New York: Charles Scribner's Sons, 1973-4. Vol. I, p. 80. Minha tradução. 58 original. Assim, parece haver, nos defensores dos antigos, o germe da concepção da influência como algo a ser evitado ou que, justamente por ser inevitável, os torna menores, enquanto que, para os modernos, essa concepção surge como uma afirmação superlativa do valor dos modernos como os “novos antigos”, ou seja, aqueles que, tais como os antigos, fundam um momento artístico único e tão elevado quanto o dos velhos clássicos. Assim, chegamos à curiosa conclusão de que, por razões distintas, derivadas da defesa de um ou de outro lado da questão, antigos e modernos criaram ambos as bases para um pensamento contrário às influências. Qual seria então a saída para os modernos? Dado que a imitação dos antigos seria desabonadora, o que deveriam eles imitar? A partir desse impasse, surge a noção segundo a qual os modernos não devem imitar as obras dos antigos, mas sim ir à fonte destes: antes de imitá-los, imitar seu método. O conselho dado pelos defensores dos antigos é que os artistas modernos devem imitar a natureza. Conforme expressa Edward Young: “beber aonde eles beberam, no verdadeiro Helicon, ou seja, no seio da natureza”11. Surge, então, um novo paradoxo: quanto menos se imita os antigos, mais nos parecemos com eles. Paradoxo e admirável saída para os adversários dos modernos, já que evita a contradição entre a defesa dos antigos como superiores aos modernos e a exigência de não tomar os modernos como herdeiros de um passado que se desenvolve progressivamente (o que os tornaria maiores do que os antigos). Assim, ao final do século XVIII, temos cristalizada a concepção de originalidade como a busca da origem primeira, que se identifica com a fonte mais genuína: não os próprios artistas, mas a natureza em si mesma. A busca pela imitação da natureza e a negação da imitação dos artistas antigos será a tônica do pensamento artístico doravante. Um pensamento que, de certo modo, abrirá caminho para a filosofia estética kantiana e sua tônica no sublime ligado à natureza e para o próprio pensamento romântico, com seu apego a uma originalidade subjetiva, contrária às regras clássicas; ainda que buscando uma influência do passado, não se pode deixar de notar que essa também é uma influência exótica, já que apela, na maioria das vezes, para as tradições e ao folclore do 11 No original: “drink where he drank, at the true Helicon, that is, at the breast of nature”. YOUNG, Edward. Conjectures on Original Composition (1752). Apud: ALDRIDGE, A Owen. “Ancients and moderns in the eighteenth century. In: WIENER, Philip P. (org). Dictionary of the History of Ideas. New York: Charles Scribner's Sons, 1973-4. Vol. I, p. 83. Minha tradução. 59 que propriamente às obras de arte do passado. Foram os estudos de historiadores da arte, já em meados do século XX, como Ernst Gombrich, que procuraram demonstrar que, ao contrário do que se pensa, um artista nunca imita diretamente a natureza, uma vez que seu olhar em direção à natureza já é um olhar educado pelo olhar das obras dos artistas anteriores. No entanto, antes de olhar para o século XX, é preciso que estudemos o impacto dessas ideias na formação da modernidade, a partir do século XIX, analisando a contribuição de seus teóricos e artistas para a busca de uma originalidade absoluta e a recusa de influências do passado. 2. Arte moderna: a tradição na ruptura e a obsessão pela originalidade A modernidade, a partir de sua defesa do novo, parece ter sido a cristalização da vitória dos modernos sobre os antigos. Conforme afirma Vera Beatriz Siqueira, “o tema do isolamento é, desde o Romantismo, central para a qualificação do artista moderno”12. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que a modernidade é neta dos ideais daqueles modernos do século XVII e filha do romantismo da segunda metade do século XVIII, ainda que essa filiação tão tradicional pareça contraditória ao próprio pensamento de ruptura e da necessidade de uma novidade e de um isolamento absolutos. No entanto, e isso é uma das questões desta tese, é importante perceber o quanto o ideal de novidade está fundamentado em uma “tradição da novidade”, o quanto a originalidade de um pensamento (teórico e artístico) funda-se na influência, ou seja, na transmissão e consolidação dessa tradição, a partir de sua adoção e releitura. Fundados no velho discurso do novo e da necessidade de rompimento com os velhos padrões estéticos, os teóricos da arte moderna construirão o ideário da arte de seu tempo. É importante esclarecer que se trata aqui dos velhos padrões estéticos europeus, já que os artistas da 12 SIQUEIRA, Vera Beatriz. “Individualidade e cultura. Apreensão crítica das poéticas de Goeldi, Segall e Iberê Camargo”. In: Revista Concinnitas, ano 4 nº 5, dezembro de 2003. Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. p. 95. 60 modernidade buscarão o exótico, aquilo que se encontra fora da Europa, mesmo que esse exótico seja algumas vezes ainda mais antigo, como é o caso da arte asiática ou da arte africana. Marc Jimenez, ao analisar as rupturas na modernidade, observa que a definição das rupturas do século XIX como recusas da tradição é insuficiente, pois poderíamos considerar a história da arte como uma sucessão de sobressaltos e oposições às épocas anteriores, em que cada época inventaria sua própria modernidade. No entanto, apesar de insuficiente, é importante observar que, em seu ideário, ainda que não correspondente ao que de fato acontecia (é impossível destacar a modernidade de toda uma narrativa da história da arte que vem se construindo desde sempre), a ruptura é uma palavra-chave, um mote que será repetidamente encenado ao longo de todo o período – busca de quebra com o período anterior e ruptura interna, dentro de seus variegados estilos que faz da ruptura modus operandi e elemento estrutural e estruturante do ser e do agir moderno. Forma e conteúdo, conjuntamente, direcionam-se para o novo: as temáticas das obras dizem respeito ao que acontece, à exaltação do presente, ao mesmo tempo em que a forma de representação nas obras traz essa novidade. Ao fazer da ruptura um de seus marcos definidores, a modernidade funda-se sob uma ambivalência. Só é possível pensar a ruptura a partir da permanência daquilo com que a modernidade pretende romper. Se pensássemos que toda a herança da história da arte deixasse de existir, completamente substituída pela modernidade, a modernidade entendida como momento de ruptura deixaria de ter sentido. Assim, para que possa constantemente recriar-se como ruptura, é preciso carregar consigo aquilo que ela própria considerara um constrangedor cadáver escondido no armário, o qual é posto em cena cada vez que se faz necessário ao discurso da ruptura. Na verdade, não se trata de um cadáver nem se encontra no armário, mas é algo intrínseco à própria arte moderna, seu fundamento, aquilo que faz dela não só dissociação do passado mas também tradição (“tradição da ruptura”, como diria Octávio Paz): é a influência justamente esse drama que se encena, pelos modernos, como uma oposição trágica entre tradição e ruptura. É justamente essa contradição que funda a modernidade sob a perspectiva da história da arte: um momento em que a transmissão se dá através da ruptura mesma. Tal contradição estará presente, ainda que veladamente, nos discursos da crítica moderna e 61 dos artistas modernos, conforme veremos mais adiante. Ao contrário de considerar a tradição e a modernidade como conceitos antitéticos, ao não considerar a ruptura como contraditória à tradição, apesar de aparecer assim ao discurso moderno, a tradição surge como parte integrante da modernidade. Como afirma Harold Rosenberg, com sua ironia crítica: “Sob o slogan: POR UMA NOVA ARTE, POR UMA NOVA REALIDADE, as mais antigas superstições foram exumadas, os mais primitivos ritos reencenados”13. Um lugar privilegiado para vislumbrarmos como essas ideias foram forjadas e qual a importância da afirmação do novo na modernidade é aquele situado a partir do ponto de vista de alguns de seus principais formuladores: os críticos e teóricos da modernidade. Localizados em três tempos distintos desse mesmo período histórico e artístico, Baudelaire, Adorno e Clement Greenberg são casos exemplares desse elogio do novo, da ruptura e da negação de um tributo em relação ao passado que ultrapasse a importância do novo ou mesmo que a este se equivalha. Por não ser o objetivo desta tese o estudo aprofundado desses teóricos, a visualização dessas teorias artísticas não terá a profundidade de um estudo específico sobre o tema. Veremos, portanto, as teorias desses três pensadores a partir do tema proposto para a tese e segundo nossas exigências específicas. Entendemos esses três autores como, cada um a seu tempo e a partir de suas questões particulares, inauguradores de momentos (ou marcos) da modernidade. Sob esse entendimento é que os elegemos para a nossa análise. Por fim, será examinado o pensamento de Rosalind Krauss, alguém já às portas da modernidade tardia ou da pós-modernidade, que por isso mesmo possui as condições históricas necessárias para examinar essas questões sob um ponto de vista crítico ao momento anterior. Nesse sentido, veremos as reflexões de Rosalind Krauss sobre o “mito da originalidade” na arte moderna. 2.1 Baudelaire e a substantivação do novo A arte moderna teve em Charles Baudelaire (1821-1867) seu primeiro grande 13 ROSENBERG, Harold. The Tradition of The New. New York: Horizon Press, 1960. p. 10. 62 teórico – o teórico mais sensível a esse momento artístico que se caracterizou pela profusão de movimentos e escolas, numa ânsia crescente de novidade, com esse “desfile ininterrupto e precipitado, das escolas, das tendências e dos movimentos ébrios de novidades, de modernidade e de rupturas”14, como caracteriza Marc Jimenez. Temos aqui a herança romântica do ideal do artista dono de seu próprio destino, genial e solitário, elevada agora a categoria estética a critério artístico: “O artista somente depende de si mesmo. Promete aos séculos apenas suas próprias obras. Só responde por si mesmo. Morre sem filhos. Foi seu rei, seu sacerdote e seu Deus”.15 Em um mundo em que o turbilhão da tecnologia, da ciência, do crescimento exponencial das grandes cidades modificava paisagens e homens, o artista/teórico Baudelaire parece ser o dínamo capaz de concentrar e difundir todas essas mudanças ao dar-se conta de que na modernidade estávamos diante de uma mudança tão radical quanto a da renascença e ao ser capaz de definir que a própria mudança seria a tônica dali por diante. Baudelaire é o primeiro a apontar que o novo, com a modernidade, se substantivava ao fazer da novidade sua substância principal. Substância de difícil definição, fluída, caracterizada justamente pela incapacidade de ser definida de modo estático, cristalizado, mas que tem na metamorfose e na recusa de um padrão, principalmente se esse padrão for definido como aquilo que veio antes, sua principal característica. No entanto, não é sem censura que Baudelaire analisa o novo. Sua polêmica dirige-se, sobretudo, em direção à fotografia, por seu caráter conservador. Diversão burguesa, a fotografia busca o realismo absoluto em um momento no qual, segundo o autor, a arte se encaminhava justamente para a libertação da representação entendida como espelhamento da realidade. A fotografia quebraria, assim, esse percurso ascendente que a arte havia percorrido, desde sua necessidade de exatidão em relação à natureza até seu libertamento na modernidade. Conforme observa Teixeira Coelho: “não 14 JIMENEZ, Marc. O Que é Estética? São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999. p. 276. 15 BAUDELAIRE, Charles. Critique d'art suive de Critique musicale. In: Exposition universalle de 1855. Paris: Gallimard, 1992. p. 241. 63 havia na fotografia nada que entrasse num diálogo com a tradição, e por isso Baudelaire a excluía da Modernidade”16. Tal diálogo, parece claro, não se dá por referência ao passado nas obras do presente, mas justamente por superação criativa. Conforme escreve Baudelaire: “Sem dúvida, é excelente estudar os antigos mestres para aprender a pintar, mas isso pode ser tão-somente um exercício supérfluo se o nosso objetivo é compreender o caráter da beleza atual”17. Mais do que isso, trata-se na modernidade de suplantar a própria tradição antiga, substituindo-a por uma nova: “É verdade que a grande tradição se perdeu e que a nova ainda não nasceu”18. Essa nova tradição irá surgir ao identificarmos o lado épico da vida moderna, ou seja, retirar da moda (e para Baudelaire aqui está, na moda, a etimologia do moderno), aquilo que ela tem de superior, belo e heróico. E mesmo que não encontremos essa beleza, o presente vale por si mesmo: “o prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente”.19 Assim, a originalidade define-se, para Baudelaire, justamente como nossa identificação com o tempo presente, é ela nossa consciência de sermos contemporâneos ao nosso tempo. Se a tradição nos dá as chaves para compreender o método, o métier artístico, é na presentificação desse fazer, em sua atualização, que ele se torna arte. Em uma exortação aos artistas, Baudelaire assim escreve: “Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método geral. De tanto se enfronhar nele, perde a memória do presente; abdica do 16 TEIXEIRA COELHO, José Roberto. “Texto de Apresentação” In: BAUDELAIRE, Charles. A Modernidade de Baudelaire. Textos inéditos e selecionados por Teixeira Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 16. 17 BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da Vida Moderna” In __________________. A Modernidade de Baudelaire. Textos inéditos e selecionados por Teixeira Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 175. 18 BAUDELAIRE, Charles. “Do heroísmo da vida moderna” In __________________. A Modernidade de Baudelaire. Textos inéditos e selecionados por Teixeira Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 23. 19 BAUDELAIRE, Charles. “O Pintor da Vida Moderna” In __________________. A Modernidade de Baudelaire. Textos inéditos e selecionados por Teixeira Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 160. 64 valor dos privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem da inscrição que o tempo imprime às nossas sensações”20. Talvez seja possível dizer sobre Baudelaire, portanto, que, ao escrever sobre as relações entre modernidade, originalidade, tradição e ruptura, deixa transparecer sua concepção de influência como algo, por um lado, ligado ao aprendizado da técnica própria do ofício artístico, ao ensino do métier, e, por outro lado, no que diz respeito ao tema e à busca do método, em que o particular é transformado em universal e original ao tornar-se propriamente artístico, é algo a ser evitado, já que é na atualidade que a verdade do artista deve ser buscada. Dentro desse desenvolvimento do discurso da necessidade do original, entendido como novo e nunca visto, é interessante notar que, em termos práticos, nas artes visuais, foi apenas ao final do período vitoriano, ou seja, às portas do séc. XX, que as réplicas começaram a perder seu valor comercial. Até aquele tempo, os patronos dos artistas pagavam o mesmo preço tanto por versões originais quanto por réplicas feitas pelo mesmo artista, como informa a obra de Dianne Sachko Macleod21. Será, portanto, no alto modernismo que a originalidade atingirá um estatuto crucial tanto por seus idealizadores quanto pela disseminação dessas ideias nas práticas mais corriqueiras, como a comercialização das obras. É do auge do modernismo que tratamos a seguir. 2.2 Adorno: il faut être absolument moderne Se Baudelaire é o primeiro a exaltar essa nova obra que une forma e conteúdo em seu elogio do novo e da ruptura, pensamento construído com um caráter poético, ensaístico e crítico, Theodor W. Adorno (1903-1969) será o filósofo dessa modernidade já madura e consciente de si mesma. Defensor da experimentação levada ao seu paroxismo e, portanto, do novo por excelência, é possível considerar Adorno o último formulador de 20 Idem. p. 176. 21 MACLEOD, Dianne Sachko. Art and the Victorian Middle Class. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 320. 65 uma grande e abrangente teoria artística da modernidade europeia. Sem nos atermos ao seu pensamento como um todo, por ser demais abrangente para os espaços desta tese, mas concentrando-nos naquilo que de específico nos fala às questões aqui propostas, tracemos, em linhas gerais, suas ideias. Indicaremos a importância do novo em sua concepção da modernidade e quais os reflexos dessa novidade em sua relação com o passado, a tradição, a arte anterior e as possíveis influências artísticas desses momentos anteriores. Para Adorno, o novo tem um duplo sentido para a modernidade – o sentido de perspectiva do futuro e de fundamento histórico da condição de ser moderno. Como perspectiva do futuro, o novo aparece como um destino do moderno, a partir de uma ideia de “vir a ser”. O moderno deve ser novo para cumprir seu destino histórico de anunciador do que virá, como prenúncio do futuro. Ainda que dentro do estilo aforístico e enigmático em que compõe sua Teoria Estética, isso parece evidente a partir de algumas de suas reflexões em sua obra póstuma Teoria Estética, como transparece nas seguintes linhas do autor: “A definição do que é a arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se”22. Mais do que apontar para o futuro, a arte, mesmo surgindo do passado, contrapõese a este ao ser história da arte e simultaneamente ter por tarefa a necessidade de ser presente e apontar em direção ao futuro: “é impossível projectar uma teoria da história da arte sem contradições: a essência da história da arte é em si contraditória”23. A contradição, aqui, faz parte da própria dinâmica histórica, sob a perspectiva marxista. Contradição como modus operandi histórico, ainda que Adorno, ao identificar tese e antítese, não aponte para uma síntese possível. O autor prefere permanecer com uma 22 ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, p. 13. 23 Idem, p. 237. 66 dualidade permanentemente contraditória, servindo como uma espécie de motor (para usar outro termo da linguagem materialista dialética) da história da arte. Não apenas contradição – segundo Adorno, necessidade mesma de esquecer o passado: “Os inovadores raramente são mais senhores do mais antigo do que os seus predecessores; muitas vezes, dominam-no menos. Não há nenhum progresso estético sem esquecimento.”24 O progresso da arte, segundo expressão de Adorno, não se dá por uma continuidade histórica, mas a partir de rupturas. Não há transição e continuidade, mas uma “estrutura descontínua”, constituída por essas rupturas e esses esquecimentos, estrutura essa que é “(...) tão pouco necessária causalmente como contingente e discordante”25. Por último, como fundamento histórico da condição de ser moderno, o novo apresenta-se como a necessidade que toda obra de arte tem, para Adorno, de ser atual. Apesar de não ser fruto do seu tempo, numa condição causal mecanicista, como o velho marxismo assim defendia, a arte é o seu tempo: “a história é imanente às obras, não é nenhum destino exterior, nenhuma avaliação flutuante”26. A arte, “historiografia inconsciente”, obriga-se a ser moderna: “a afirmação rimbaudiana – il faut être absolument moderne –, também moderna, permanece normativa”27. Assim, para Adorno, o novo é necessidade, destino e essência mesma da modernidade. Necessidade, ao fazer do novo, da busca dos suportes mais inovadores e dos desafios mais coerentes com o momento presente, uma questão essencial, um compromisso programático que Adorno assume e encarrega o artista de assumir. Destino quando pensa o novo a partir da perspectiva futura: o novo como possibilidade do que virá e a busca pelo novo ainda não alcançado, promessa (redentora ou messiânica) do 24 25 26 27 Idem, Ibid. Ibid. p. 236. Ibid. p. 217. Id., Ibid. 67 que está por vir. Essência, ao constituir na substância definidora da arte, atual em si mesma. A partir dessas concepções, a influência, ainda que não dito de forma clara pelo autor, aparece em Adorno, pode-se dizer, como uma sombra. E a necessidade de ser novo é o que dá luz às obras; não é inverossímil afirmar que dessa luz se projeta uma sombra ou um silêncio. Esse não-dito é eloquente da própria condição adorniana de ser moderno. Se o novo, por todos esses aspectos aqui expostos, aparece como fundamento da obra de arte moderna, a reminiscência (e, portanto, a influência) é a sombra que ronda a necessidade de esquecimento proclamada pelo frankfurtiano. 2.3 Greenberg: a influência como afirmação da Modernidade Clement Greenberg (1909-1994), com sua teoria estadunidense da modernidade, é o responsável pela última grande reflexão teórico-normativa desse período artístico. Com uma espécie de “canto de cisne” do moderno, Greenberg, partindo da defesa dos artistas abstratos norte-americanos dentro do chamado expressionismo abstrato, reformulará os critérios da modernidade (sobretudo na pintura). Ele defenderá a originalidade desses artistas, inserindo-os na tradição artística ocidental, ainda que pela ruptura com alguns pressupostos desta. Formará, assim, um pensamento que irá pender da defesa da originalidade dos artistas abstratos dos EUA à inserção deles em uma tradição. Embora a a palavra “influência” não surja com recorrência em sua obra, a partir de alguns de seus muitos textos é possível apreender alguns conceitos correlatos ou referências mais discretas dessa questão. Como um moderno no limite, Greenberg teve de lidar com algumas das questões que tratamos aqui de forma mais aguda, principalmente no que se refere à relação entre originalidade e tradição, como quando de suas considerações sobre as conexões entre convenção e inovação. Ainda que tenha buscado uma última grande 68 fuga ao problema da influência artística, fuga geográfica, deslocando a questão da modernidade para o novo continente, não pôde furtar-se a essa consideração, em um momento em que a modernidade, em seu declínio, sentia os efeitos da crise que a fazia rever seus pressupostos. Clement Greenberg não tem dúvida da superioridade da arte americana sobre a arte europeia. Como afirma Jonathan Harris sobre os escritos de Greenberg de fins dos anos 1940: “ele observa também que isso está relacionado com a supremacia econômica e política dos Estados Unidos após a Guerra”28. Nessa época, a superioridade estadunidense ainda é vista sob a perspectiva econômica e social, dentro de um debate em que o marxismo (com tais pressupostos contextuais) ainda era um marco fundamental do pensamento de Greenberg. No entanto, tal concepção irá se transformando ao longo dos anos 1950 para uma reflexão cada vez mais formalista em sua explicação dessa superioridade. Conforme observa Jonathan Harris, para Greenberg, o Modernismo na pintura não significou uma ruptura com o passado. Arte, para ele, é continuidade: “Mais que uma ruptura, é essa continuidade que caracteriza a história da arte, uma 'história' cujo desenvolvimento e coerência são erigidos como valores a serem reconhecidos e defendidos”29. Assim, ao contrário de ver o expressionismo abstrato estadunidense como um movimento absolutamente novo, Greenberg nota um processo de absorção e superação da arte europeia. Embora sob uma perspectiva interpretativa teleológica, própria das teorias normativas que buscam explicar a lógica do desenvolvimento histórico, Greenberg irá identificar, por exemplo, Manet como o primeiro a pintar quadros Modernistas 30, “em virtude da franqueza com que [seus quadros] expunham a superfície sobre a qual eram pintados”31. 28 HARRIS, Jonathan. “Modernismo e Cultura nos Estados Unidos, 1930-1960 – Segunda Parte: o Expressionismo Abstrato e a Política da Crítica”. In: WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em Disputa. A Arte Desde os Anos Quarenta. São Paulo: Cosac & Naify Edições, p. 57. 29 Idem, p. 58. 30 Utilizamos, assim como Jonathan Harris, o termo Modernismo, com inicial maiúscula, quando fazemos referência ao tipo de modernismo especificamente defendido, definido e/ou identificado por Greenberg. 31 GREENBERG, Clement. “Modernist Painting” (1960). In: _____________ . The Collected Essays and Criticism, Volume 4: Modernism with a Vengeance, 1957-1969. Chicago: University Of Chicago Press, Essa perspectiva teleológica na obra do autor é fundamental 69 para compreendermos a sua ideia de tradição, a importância da continuidade e mesmo a referência indireta à influência artística presente na reflexão de Greenberg. No processo de legitimação artística e de afirmação do Modernismo, inserir os artistas estadunidenses na tradição artística é a estratégia (ou uma das estratégias) adotadas pelo autor. Essa inserção, entendida como continuidade, é realizada através da identificação de traços artísticos comuns. Esses traços são buscados a partir dos pressupostos definidores do Modernismo. Assim, a partir da identificação (ou da construção dessa identificação) da recorrência desses traços já na Europa, Greenberg traça as continuidades e filiações que permitem inserir a arte estadunidense em questão na tradição artística europeia. É desse modo que podemos entender sua recorrência a uma concepção de influência a partir de uma estratégia de reconhecimento e afirmação de sua Modernidade. Greenberg escreverá, por exemplo, que Gorky “continua a ser um cubista tardio até o fim” ou que De Kooning propõe “uma síntese do Modernismo e da tradição... em um estilo grandioso equivalente ao do passado” ou, ainda, que Still “retomou Monet – e Pissarro, tal como os cubistas haviam retomado Cézanne”32. É em um artigo de 1976, intitulado “Convenção e Inovação”, que podemos perceber com maior clareza as sutilezas das concepções de tradição e influência, intrínsecas em seu pensamento, ainda que nem sempre explícitas sob essas designações. Para Greenberg, a convenção define a própria concepção de arte: “ Na maior parte das vezes, não podemos deixar de lado a noção de convenção, assim como não podemos abandonar a noção de arte, isto é, como algo reconhecível, mas não definível de maneira satisfatória. Essas noções fazem parte do que torna a arte essencialmente arte (...)”33. 1995. Org.: John O'Brian. p. 86. No original: “Manet's became the first Modernist pictures by virtue of the frankness with they declared the flat surfaces on which they were painted”. 32 GREENBERG, Clement. “Pintura à americana”, pp. 48, 55, 56 e 95. Apud. HARRIS, Jonathan. “Modernismo e Cultura nos Estados Unidos, 1930-1960 – Segunda Parte: o Expressionismo Abstrato e a Política da Crítica”. In.: WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em Disputa. A Arte Desde os Anos Quarenta. São Paulo: Cosac & Naify Edições, p. 59. 33 GREENBERG, Clement. “Convenção e Inovação”. In: ____________. Estética Doméstica – observações sobre a arte e o gosto. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Trad. André Carone. p. 100. 70 No entanto, o avesso da convenção, a inovação, é condição de existência da tradição: “uma tradição artística permanece viva enquanto mantém uma inovação relativamente constante”34. A tradição é, portanto, o palco onde acontece o embate entre inovação e convenção. Greenberg não avança em direção a uma concepção tal como a de uma “tradição do novo” (tal como Rosenberg defende) ou a uma “tradição da ruptura” (conceito formulado por Octávio Paz), ou seja, de que existiria um tipo de tradição ela própria caracterizada e definida a partir da inovação e da ruptura. O argumento da necessidade de inovação para manter a tradição viva remete à ideia de que a tradição seria algo, em princípio, tendente à estabilidade e que a inovação seria um elemento externo a ela que viria a oxigenar a tradição: o artista, a partir do domínio da convenção, e inserido na tradição a partir do conhecimento dessas convenções, seria capaz de romper com a convenção. É justamente a consciência, por parte do artista, dessas convenções aquilo que mais se aproxima de um conceito de influência na obra de Greenberg. Esse conceito é chamado pelo autor de “erudição artística”. A erudição artística para o autor: “é menos uma questão de conhecimento do que de gosto, de consciência desenvolvida em determinada direção”35. Nesse sentido, Greenberg fará uma distinção, por um lado, entre aqueles “livrescamente” eruditos, aqueles que dominam através do conhecimento teórico os artistas, as escolas, os movimentos artísticos, e, por outro, entre os artisticamente eruditos, ou seja, aqueles que dominam, através de um conhecimento mediado pelo gosto, pela capacidade artística de conhecer a arte, as convenções de sua época. É a partir dessa erudição artística que surge o embate entre as convenções, na medida em que o artista as modifica ou abandona. Embate que não significa para Greenberg o abandono das convenções ou sua substituição de forma absoluta, mas que, ainda que fosse buscado seu descarte, “permaneciam lá, como fantasmas, e como fantasmas governariam”36. Essa última frase é um sinal bastante evidente da importância da influência dentro de sua teoria e mesmo de uma aproximação do conceito de “angústia da influência”, tal como formulado por Harold Bloom: o que seriam os “fantasmas” que “governam” senão o conjunto de artistas e de obras que, ao projetarem-se, desde o 34 Id. Ibid.. p. 101. 35 Id. Ibid., p.102 36 Id. Ibid. 71 passado, sobre as obras e desafio dos artistas do presente, os influenciam? Ao estudarmos o conceito de influência, no terceiro capítulo, veremos com mais cuidado de que forma essas “sombras” e “fantasmas” se articulam dentro de um pensamento específico sobre o problema das influências. Por enquanto, basta-nos indicar o modo, às vezes silencioso e às vezes não claramente declarado, através do qual é enunciado o problema. 2.4 Rosalind Krauss e o mito da originalidade Rosalind E. Krauss (1941- ), escrevendo sua obra na segunda metade do século XX, será responsável por uma das primeiras críticas frontais ao conceito de originalidade tal como fundamentado dentro da modernidade. É em seu célebre artigo “The Originality of the Avant-Garde: A Postmodernist Repetition”37 que seu ataque ao conceito de originalidade fica mais evidente. Como esse é considerado um dos principais artigos no debate da arte moderna e contemporânea, vamos apenas recapitular algumas de suas principais questões antes de entrar nas questões aqui mais pertinentes. Rosalind Krauss em seu texto discute a originalidade da obra A Porta do Inferno, de Rodin. Segundo a autora, Rodin não teria conhecido a atual disposição desse trabalho escultórico, deixado apenas em projeto e só montado após sua morte a partir de anotações feitas pelo artista, anotações essas muitas vezes díspares quanto à colocação de cada um dos elementos no conjunto da obra. Krauss sustenta que o fato de Rodin não ter sido artífice de sua montagem, além de estar ausente quando do processo de fundição do bronze, faz com que a obra não possa ser considerada plenamente genuína ou original. Afora a discussão da originalidade ou não dessa obra 38, que abrange uma discussão do próprio conceito de originalidade, o que nos interessa são os aspectos da 37 KRAUSS, Rosalind. “The Originality of the Avant-Garde: A Postmodernist Repetition”. In: WALLIS, Brian (org.). Art After Modernism: Rethinking Representation. New York: The New Museum of Contemporary Art in association with David R. Godine, Publisher, Inc., Boston. 1992. 38 Sobre uma crítica à tese de Krauss, ler ELSEN, Albert E. & HASS, Walter, “On The Question of Originality: A Letter”. Revista October, Vol. 20 (primavera de 1982), pp. 107-109. Massachusetts: MIT Press, 1982. 72 crítica do elogio ao original construído pela vanguarda39. É essa crítica que colocará Krauss como uma analista inserida em um momento além da modernidade (não importando como chamemos esse momento outro, se pertencente à contemporaneidade ou a uma modernidade tardia). Para a autora, surge em torno de Rodin um “culto da originalidade” que será incentivado pelo próprio artista: “Rodin cortejava a ideia dele próprio como um gerador de formas, criador, crisol de originalidade”40. A originalidade é, não apenas para Rodin, um elemento da construção discursiva sobre o artista, mas o constante atributo reclamado por toda a vanguarda, talvez o único princípio unificador comum a toda ela. A originalidade não apenas vista como necessidade de novo mas, segundo Krauss, levada à radicalidade de sua acepção, como origem, início a partir de um grau zero, nascimento – um nascimento desprovido de ancestralidade, a autocriação absoluta, tal como presente nos manifestos futuristas. Rosalind Krauss chegará a afirmar que “a própria noção de vanguarda pode ser vista como uma função do discurso da originalidade”41. Como conceito complementar à originalidade, Krauss apresenta o conceito de repetição, termos interdependentes que se sustentam mutuamente. A repetição, o termo desvalorizado em contraposição ao valor dado à originalidade, é encontrada, dentro da vanguarda, através da recorrência do uso da grade (grid) nos trabalhos artísticos. Utilizado pela autora como chave explicativa da arte, esse elemento é identificado ao longo de toda a modernidade, sendo constantemente introduzido pelos artistas, condenados a reproduzi-lo ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, buscam sua singularidade como garantia da originalidade de suas criações. Assim, através da descoberta dessa recorrência (ou de sua criação), Krauss coloca o próprio conceito de originalidade em cheque. Se considerarmos tal conceito com a radicalidade buscada pelos primeiros modernos, temos uma impossibilidade. Pela primeira vez, essa impossibilidade não é apenas conceitual (uma impossibilidade teórica), mas é identificada 39 “Vanguarda” é um termo que pode ser entendido aqui como correlato, senão sinônimo, da arte moderna. Isto porque se refere às modernidades históricas, surgidas no início do século XX e com seu nadir no momento de assunção da assim chamada pós-modernidade, no terceiro quartel do século XX. 40 No original: “Rodin courted the notion of himself as form-giver, creator, crucible of originality”. In KRAUSS, Op. Cit. p. 15. Conforme veremos mais adiante, o mesmo culto à originalidade, típico do pensamento moderno, foi a base de muitas afirmações críticas sobre a obra de Iberê Camargo. 41 No original: “(...) the very notion of the avant-garde can be seen as a function of the discourse of originality”. In KRAUSS, Op. Cit. p. 18. 73 através de uma repetição encontrada ao longo da trajetória histórica das vanguardas: a grade, elemento recorrente da modernidade, guarda sua origem em um passado impossível de ser identificado (tal é sua antiguidade). O artista é condenado a repeti-la sob o signo de uma dupla repetição: repetição da própria tradição artística (recorrência aos outros artistas: Sol LeWitt constrói sua série de cubos modulares após a construção de grades feitas por Mondrian) e repetição de si mesmo, recorrência da grade como repetição de seu próprio trabalho (McCollum repete à exaustão seus quadros monocromáticos em suas instalações). Mas tal repetição é reprimida e encoberta sob o discurso da originalidade. O modernismo, para Krauss, depende justamente da repressão dessa tarefa e desse discurso complementar à originalidade, aquele da cópia42. A recorrência ao discurso da originalidade, para Rosalind Krauss, é algo que serve a interesses mais amplos e é fortalecido pelas mais diversas instituições, não apenas os artistas e críticos, mas também os historiadores, os museus e galerias de arte. Isso porque essas instituições estão interessadas em encontrar “(...) um marco, uma garantia, um certificado do original”43. A reflexão de Rosalind Krauss sobre originalidade e cópia termina perguntado o que ocorreria se o conceito de cópia não fosse reprimido. Sua resposta, que já está além dos objetivos deste capítulo, no qual nos dedicamos a pensar a originalidade e a ruptura na modernidade, já que nos lança para uma produção artística muito mais ligada à arte contemporânea, é dada através da citação de obras como as de Rauschenberg e Sherrie Levine, que trabalham justamente as questões de cópia, reprodutibilidade. Essas práticas artísticas, junto com um complexo de práticas culturais, serviram para pôr fim à vanguarda de tipo moderna ao expor sua condição fictícia no que se refere ao mito da originalidade. . . . 42 Ao analisarmos a produção de Iberê Camargo, veremos o quanto, apesar do discurso da originalidade, a prática da cópia foi constante em seu processo de aprendizagem, principalmente a cópia das obras dos grandes museus da Europa. 43 Id. Ibid. p. 22. 74 Terminamos, assim, observando que Baudelaire, Adorno e Greenberg, ainda que tenham se aproximado da questão da influência, cada um deles, de modo particular, buscou escapar dessa mesma questão – escape frente à necessidade de defender a novidade como característica do período artístico no qual estavam inseridos e do qual foram os defensores44. Podemos resumir, metaforicamente, tal recusa a partir da ideia de três grande fugas. Em Baudelaire, localizamos sua fuga no tempo: ao trazer a modernidade para um presente simultaneamente absoluto e refeito a cada instante, foge do passado, onde se encontram a tradição e a influência. Em Adorno, a fuga dá-se através do esquecimento. É no terreno da memória, sob a perspectiva de sua ausência, que o autor se distancia dos problemas da influência. Por último, Greenberg, moderno às portas do ocaso desse período, é aquele que realiza a fuga mais literal e desesperada: fuga geográfica. É deslocando seus artistas ao identificar o nascimento de uma nova modernidade (sua Modernidade), não mais europeia, mas estadunidense (ainda que tributária da anterior), que o autor irá encontrar a última possibilidade de escape do peso da influência. 3.Iberê: o discurso da crítica e o discurso do artista Os atores do teatro romano davam o nome de persona à máscara que usavam em seus espetáculos. Com ela, apresentavam-se diante do público; ela lhes conferia o caráter próprio pelo qual pretendiam ser reconhecidos pelo espectador. A persona não apenas conferia ao ator a aparência que o papel exigia, mas auxiliava na ampliação de sua voz. É dessa característica, sua capacidade de ressoar e ampliar a voz, que pode derivar seu nome: o verbo latino personare quer dizer “soar através de”. Mais remotamente, derivaria da própria máscara, já que temos a palavra etrusca phersu com o significado de máscara45. Por extensão, persona passou a designar o próprio papel que era interpretado pelo 44 Ao contrário de Krauss, que, conforme vimos, serve como contraponto à defesa de originalidade até então realizada. 45 Esta segunda acepção, segundo o Archiv für Lateinische Lexicographie. O significado, de qualquer modo, permanece em disputa. 75 ator e, mais amplamente, o papel social exercido pelas pessoas. Aliás, a palavra pessoa é justamente derivada de persona, o que mostra a identificação entre o indivíduo e o papel social que cumpre. O objetivo deste subcapítulo é estudar a criação dessa máscara social e artística (persona) que se confunde com o próprio indivíduo (pessoa). Analisaremos os discursos, paralelos e convergentes, de Iberê Camargo e da fortuna crítica que se formou a partir de suas obras. Serão focadas especificamente as recorrências ao tema da originalidade, a importância dada à tradição e o silêncio a respeito da influência em sua obra (aparentemente contraditório em relação à importância dada à tradição) que ajudaram a criar sua persona artística. Ao vermos a formação dessa persona, pensamos ser possível entender a importância que ela teve na amplificação altissonante da voz artística de Iberê Camargo. Estudaremos, portanto, a “fala ideológica”46 que cerca Iberê e que o atravessa, mostrando através desse viés sua relação com o sistema de arte brasileiro. Para fins metodológicos, entenderemos discurso como a prática social de produção de textos. Como prática social, deve ser analisado segundo o contexto em que é produzido e a partir da visão de mundo a que se vincula(m) seu(s) autor(es). O objeto empírico da análise do discurso é o texto, e sobre ele nos debruçamos para analisar os discursos em questão. O contexto é aqui entendido como a situação histórico-social de um texto. Pensamos que não é possível nem derivar o texto apenas de seu contexto (por uma espécie de determinismo histórico-social), nem abranger todos os aspectos de um contexto (problema já apontado por Karl Popper em A Lógica da Pesquisa Científica47). No entanto, defende-se aqui que é possível extrair, sob aspectos específicos, questões contextuais que dialoguem com questões outras também específicas do texto e que lhes tragam luz, a fim de melhor compreendermos, sob esses aspectos particulares, por que tais discursos foram construídos, sua função e objetivos. Justifica-se a análise dos discursos da crítica e do artista Iberê Camargo porque esses formam parte de um conjunto de conceitos que ajudaram a construir interpretações 46 Termo utilizado por Vera Beatriz Siqueira In: SIQUEIRA, Vera Beatriz. “Individualidade e cultura. Apreensão crítica das poéticas de Goeldi, Segall e Iberê Camargo”. In: Revista Concinnitas, ano 4 nº 5, dezembro de 2003. Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. p. 96. 47 POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2000. 76 que influenciam a recepção e as expectativas a respeito de sua obra. Nesse sentido, pensar sobre o problema da influência em sua obra significa também pensar a ativa construção teórica que foi feita ao longo de toda a sua trajetória artística e que segue sendo realizada na polifonia de discursos relativos ao artista e à sua obra. Pensamos que os discursos que foram construídos pelo artista e sua crítica, em um diálogo constante e sofrendo influências mútuas, ajudaram a construir uma persona artística que correspondeu às necessidades conjunturais de um período artístico, para inserção dessa produção nesse período, a partir da origem do artista e segundo os próprios anseios e objetivos desse artista. Esse aspecto, da inter-relação entre crítica e discurso do artista, é importante, sobretudo, para entendermos os mecanismos que fazem um discurso tornar-se uma verdade dentro do sistema das artes. Essa persona artística, segundo aqui defendemos, foi construída a partir da ideia de extrema originalidade, solidão e não-engajamento artístico48 tanto no cenário artístico nacional quanto no mundial. Começaremos a análise a partir do mais geral, ou seja, pensando a inserção desses discursos dentro do cenário da moderna arte brasileira e de sua crítica. A partir disso, seguiremos para a análise que foi feita por parte da crítica brasileira sobre a obra de Iberê Camargo, para finalizarmos com as declarações que o próprio artista fez, em textos escritos por ele mesmo e em entrevista, a respeito de sua obra, dentro da esfera conceitual que estamos trabalhando. 3.1 Iberê e o discurso da crítica: homines nati non fecerunt49 3.1.1 Arte moderna brasileira: a construção de um ideário no Prefácio 48 Importante aqui é a distinção entre engajamento artístico e engajamento político/social dentro do campo da arte. Iberê Camargo foi um lutador e mobilizador dos artistas no que se refere às lutas de sua categoria; exemplo disso é sua batalha pela qualidade dos materiais artísticos, luta sem tréguas chamada pelo artista de “Guerra dos Cem Anos”. 49 Homens nascidos não o fizeram. 77 Interessantíssimo e no Manifesto Pau-Brasil Dos textos fundadores do modernismo brasileiro, é possível afirmar que dois deles apresentam a essência das concepções de originalidade, influência e tradição e suas contradições. Tais textos são o Prefácio Interessantíssimo, escrito em 1922 por Mário de Andrade, e o Manifesto Pau-Brasil, redigido por Oswald de Andrade em 1924. Esses textos mostram os dilemas entre tradição e ruptura, originalidade e influência e a tentativa de conciliá-los. Comuns às modernidades dos dois lados do Atlântico, tais questões aqui tomam características específicas, conforme veremos. Por serem textos referenciais para qualquer reflexão sobre a modernidade brasileira e por seu conteúdo programático bastante evidente, nossa estratégia é buscarmos através deles pontuar, ainda que brevemente, alguns dos aspectos da modernidade brasileira no que tange aos temas que aqui estamos tratando, antes de estudarmos com mais especificidade a crítica de arte moderna e seus fundamentos. O Prefácio Interessantíssimo, abertura da obra Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, é um dos textos fundantes da modernidade brasileira. Nele o autor expõe sua defesa do verso livre, da importância do lirismo frente ao esquematismo do verso parnasiano brasileiro, e a necessidade de reformular o cenário artístico nacional a partir da construção de uma nova identidade nacional. Mario de Andrade não nega a influência e importância da tradição artística. Seu objetivo, como o objetivo do modernismo brasileiro, não é fazer “terra arrasada” do passado artístico nacional ou europeu. No entanto, o rompimento com o passado é uma necessidade premente naquele momento artístico, dentro dos objetivos que o modernismo brasileiro se propõe. Essas duas situações, ao confrontarem-se, conduzem o autor à busca de uma conciliação desses dois aspectos, para o modernismo, contraditórios. O Prefácio Interessantíssimo afirma: “Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que 78 ainda não compreende bem”.50 Assim, é preciso pagar o tributo necessário à arte do passado. Não é possível libertar-se “de uma só vez”. É importante reter esse aspecto: a libertação é necessária, e o texto de Andrade é, por seu estilo, por si só a tentativa dessa libertação. No entanto, ao mesmo tempo, a própria proliferação de citações ao longo do texto mostra as teorias-avós das quais ainda não se pode libertar. Tradição e ruptura em convivência conturbada. O passado é para o autor “lição para se meditar, não para reproduzir”. Está nele (no passado) o fundamento de uma sabedoria que não pode ser desconsiderada. “Não sou futurista (de Marinetti)”, afirma o autor, mostrando, portanto, que a busca do novo pelo novo e a rejeição absoluta do passado não está em questão. No entanto, a afirmativa moderna está lá também bastante clara: a reprodução do passado é coisa reprovável. Entre a necessidade de conhecer o passado e a busca pelo novo, pelo não-repetido, onde se encontra o original? Para Mário de Andrade, ele está consigo mesmo. É em si que encontra sua originalidade: a autorreferência parece ser a alternativa na busca do novo: “Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha”51. Conhecimento do passado parece, assim, uma espécie de mola propulsora que levará o autor a uma busca interna de sua própria originalidade. O autor surge quase como um crisol das influências recebidas, capaz de transformá-las segundo seu lirismo particular. “Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo, é contrabandista”. Esse “contrabando”, metáfora interessante para o próprio conceito de influência, além de ser particular e íntimo, é também solitário: “não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho”. “Bebo no copo dos outros”. A influência aqui surge como uma espécie de furto (ou 50 ANDRADE, Mário de. “Prefácio interessantíssimo” In: _______. Paulicéia Desvairada (1922). São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2003. p. 60. 51 Idem, p. 62. 79 roubo?) do alheio. A influência, além de ato íntimo e solitário, é fora da lei: contrabandista e ladra. O prefácio-manifesto de Mário de Andrade apresenta, portanto, alguns dos fundamentos do modernismo brasileiro no que concerne aos problemas que nos dizem respeito. A modernidade brasileira é um momento de mudança. Essa mudança não surge como ignorância do passado. Esse passado deve ser refletido, no entanto, deve ser superado. A originalidade é pessoal e intransferível, prende-se ao lirismo pessoal do artista. A influência está presente como uma espécie de insurgência, através da metáfora do contrabandista. Dois anos depois, em 1924, Oswald de Andrade publica o Manifesto Pau-Brasil 52. O Manifesto clama por uma renovação da cultura nacional a partir da síntese entre uma cultura moderna e um primitivismo de base nacional. Esse primitivismo nativo é a base de sua concepção de originalidade, sintetizado na expressão “ver com olhos livres”. Oswald critica a cópia, o “reproduzir igualzinho” dos quadros naturalistas, ao mesmo tempo em que defende a “invenção, a surpresa, uma nova perspectiva”. A tradição, para o autor, que deve ser mantida, é a tradição popular, nativa, o que de certa forma significa o recurso à uma anti-tradição, já que aquilo que havia sido caracterizado como tradição até agora é a da grande corrente erudita europeia. O que está em jogo aqui, segundo as próprias palavras do autor, é “o contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica”. Sendo assim, o lugar da influência parece ser, pelo lado da tradição ocidental, de sua recusa. A recusa à cópia, o acento na “originalidade nativa” e, por outro lado, o recurso novo a uma recorrência popular (não tão novo assim, é claro, se pensarmos no ideal romântico). Pode-se pensar, nesse sentido, o texto de Oswald de Andrade como uma radicalização no ideário de 22. 3.1.2 Crítica de arte moderna no Brasil Tendo estabelecido de forma sucinta alguns dos pressupostos básicos da 52 ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Pau-Brasil (1924). In: Correio da Manhã, São Paulo, 18 de março de 1924. 80 modernidade no Brasil no que concerne às questões atinentes à tese, é necessário agora vermos de que forma tais pressupostos se articularam na crítica de arte brasileira. Para tal, iremos focar nossa análise em alguns críticos que estabeleceram as bases da crítica de arte moderna nacional. São eles Mário de Andrade e Mário Pedrosa, críticos que irão, nos primeiros vinte anos do modernismo brasileiro, sedimentar algumas questões da crítica nacional que permanecerão ao longo do século XX como paradigmas, influenciando a crítica de arte no Brasil. Mário de Andrade não escreveu sobre a obra de Iberê Camargo, e Mário Pedrosa dedicou não muitas páginas ao artista, mas esses dois críticos balizam muitas das questões tratadas pela crítica dos anos seguintes no Brasil. Os principais nomes dessa crítica posterior aos dois Mários em questão, inserida nas décadas de 1960 até 1990, terão atenção à obra de Iberê Camargo e serão objeto de nossa atenção específica em seguida a este subcapítulo introdutório. Mário de Andrade, além de um dos fundadores do modernismo brasileiro, é também um de seus primeiros críticos, responsável, portanto, por alguns pressupostos da moderna crítica brasileira. Conforme salienta José Augusto Avancini, a crítica praticada até então “era o que chamamos de nota social”53. Mário de Andrade inova os estudos críticos: “(...)procurando interpretar as obras, basear suas interpretações numa ampla e atualizada informação bibliográfica, sustentando suas opiniões num consistente arcabouço teórico”.54 Se Mário de Andrade é, como vimos, o construtor de um ideário modernista de renovação da arte nacional, em sua crítica vemos diversos indícios de uma posição favorável à atenção com o passado. Inserido em um momento em que a arte se voltava para o passado, recusando o mote do modernismo vanguardista de destruição do passado (o período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial), começa a considerar 53 AVANCINI, José Augusto. Expressão plástica e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998. p. 24. 54 Id. Ibid. 81 com mais atenção o passado do século XIX. Aqui também veremos essa atitude, segundo as próprias palavras de nosso autor, “passadista”. Conforme observa Tadeu Chiarelli, Mário de Andrade não representa essa vertente vanguardista que dá as costas para o passado, mas, “preso a essa busca ou construção de uma determinada tradição brasileira”55, acaba buscando no passado brasileiro (em Aleijadinho, por exemplo), essa tradição e esse passado que chega ao presente (na obra de Portinari, herdeiro, segundo Mário de Andrade, da tradição barroca brasileira). Assim, é possível entender que a tradição entra na obra crítica de Mário de Andrade como a necessidade de formação de uma tradição. Assumindo a missão dessa identificação ou construção, Mário deve recorrer necessariamente para o passado, para essas camadas de artistas que sedimentam, ainda que sem muita ordem, uma história da arte brasileira. Conforme observa Vera Beatriz Siqueira, no que se refere à modernidade brasileira: “na ausência da história, precisamos reinventar continuadamente a origem, desconfiar dos marcos originários, tentar achar o fio que conduza a uma ordenação plausível, apenas para novamente duvidar dele”56. De outro modo, o posicionamento de Mário de Andrade em relação às rupturas artísticas e às vanguardas, na sua tarefa crítica, é reticente. Mário de Andrade entende a tarefa das vanguardas, em sua função revolucionária, de quebra de paradigmas, mas não recomenda seu seguimento por parte dos artistas brasileiros. Em diversos textos e cartas endereçados a alguns artistas modernos seus amigos, deixa isso claro. Como destaca Chiarelli, Mário de Andrade, em 1932, escrevendo sobre Di Cavalcanti, assim expressa seu pensamento sobre as vanguardas: “(...) Também essa fidedignidade ao mundo objetivo, e esse amor de significar a vida humana em alguns dos seus aspectos detestáveis, salvaram Di Cavalcanti de perder tempo e se esperdiçar durante as pesquisas do Modernismo. As teorias cubistas, puristas, futuristas, passaram por ele, sem que o desencaminhassem. Di Cavalcanti soube aproveitar delas o que lhe podia enriquecer a técnica e a faculdade de expressar a sua visão ácida do mundo (...) Nacionalizou-se conosco (...) Sem se prender a nenhuma tese nacionalista, é sempre o mais exato pintor das coisas nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagem; em vez de Pão de 55 CHIARELLI, Tadeu. Pintura Não é Só Beleza. A Crítica de Arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007. p. 25. 56 SIQUEIRA, Vera Beatriz. “A Forma Excessiva da Falta. Retórica Nacionalista e pensamento plástico”. In: Acervo. Revista do Arquivo Nacional. Volume 12, número ½. jan/dez, 1999. pp. 194-5. 82 Açúcar, nos dá sambas, em vez de coqueiros, mulatas, pretos e o carnaval (...)57. Assim, podemos ver que a ruptura do modernismo, para Mário de Andrade, tem uma função instrumental. Deve ser algo a ser seguido apenas como aprendizado, mas que deve ser abandonada em seguida. Muito menos que algo programático, a vanguarda europeia serve ao projeto nacional do autor. Como afirma José Augusto Avancini, em sua obra dedicada à crítica desse autor: “[Mário de Andrade] Buscou aqueles movimentos que se adaptassem ao legado cultural existente e o alargassem, configurando uma nova produção cultural que, deitando raízes no passado, apontaria ao mesmo tempo para um presente e futuro renovados por uma visão claramente nacional.”58 Do mesmo modo, através das duas últimas citações acima, é possível aproximarmo-nos das concepções de Mário de Andrade a respeito da influência. A Europa, com seus movimentos, serve como fonte de influências no que diz respeito à técnica, entretanto, não é recomendado “desencaminhar-se” pelo modernismo europeu. Ou seja: é preciso que a influência não aja no artista ao ponto de fixá-lo em um dos estilos ao qual deliberadamente se exporá em busca de tais influências. É necessário que se conserve certa pureza – poderíamos dizer –, algo de um nacionalismo autóctone que, ao se preservar das influências de fora, faz do artista um brasileiro genuíno e constrói essa nacionalidade. Junto dessa construção está a recuperação também de uma influência propriamente nacional. Essa influência brasileira é buscada nessa espécie de genealogia artística que Mário de Andrade identifica (ou constrói) e que liga o barroco brasileiro de Aleijadinho com o modernismo de Portinari. É nessa continuidade histórica, que filia os artistas modernos aos artistas do século XVII brasileiro, que se encontra o aspecto tradicional da concepção de influência no pensamento de Mário de Andrade, próxima àquela de Eliot. Não na amplitude e profundidade da concepção de Eliot, conforme 57 ANDRADE, Mário de. “Di Cavalcanti”, Diário Nacional, São Paulo, 8 de maio de 1932. Apud. CHIARELLI, Tadeu. Pintura Não é Só Beleza. A Crítica de Arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007. p. 29. 58 AVANCINI, José Augusto. Expressão plástica e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998. pp. 24-25. 83 veremos no capítulo terceiro, de uma presença do passado no presente, da constituição das obras como um todo vivo composto de todas as obras do passado, mas no que se refere à tradição como algo necessário na identificação e análise crítica de uma obra. Mário Pedrosa representa a afirmação de um pensamento reflexivo sobre a arte brasileira e a crítica de arte, sendo considerado o grande pensador da modernidade brasileira de matriz vanguardista, principalmente a partir de sua defesa do abstracionismo em um tempo (anos 40 e 50 do século XX) quando esse tipo de arte não era plenamente aceito no cenário nacional. A partir de sua importância, torna-se claro que sua influência sobre o pensamento crítico brasileiro foi exercida também no que concerne às questões que aqui tratamos. Vejamos, portanto, quais suas ideias sobre tradição, ruptura, importância do novo e sua visão a respeito da influência. Pedrosa, em um texto de 1964 intitulado “Panorama da Pintura Moderna”, estabelece algumas diretrizes de seu pensamento sobre a história da arte e, através dele, de suas concepções a respeito de tradição e ruptura. Seu “Panorama” é construído como uma espécie de revisão da história da arte moderna europeia, dos impressionistas aos abstracionistas, chegando até os primeiros experimentos de arte cinética e op art. O autor entende a arte moderna como uma revolução, “revolução espiritual de maior profundidade”59. Essa história da arte revolucionária é construída de sucessivas rupturas. A noção de ruptura é fundamental para Pedrosa. Ela corresponde ao projeto em que se insere seu discurso: o de afirmação de uma nova arte brasileira, com a defesa do abstracionismo, que vai de encontro ao modernismo anterior, defendido por Mário de Andrade. É assim que o autor irá falar dos homens que na França do início do século XX estavam “(...) destruindo uma arte exangüe para substituí-la por outra mais rica, mais viva e, sobretudo, mais acorde com o tempo”60. Essa ideia de ruptura e, mais radicalmente ainda, de destruição da arte do passado, evidencia-se em seu texto, como quando escreve que “o prestígio secular da estética naturalista da Renascença foi destruído. Uma 59 PEDROSA, Mário. “Panorama da Pintura Moderna” (1964). In: ______________. Arte, Forma e Personalidade. 3 Estudos. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1979. p.144. 60 Idem, p. 120. 84 nova concepção se está delineando paulatinamente”61. Essa ruptura, no caso brasileiro, é facilitada, segundo Pedrosa, por nossa vocação ao novo: “estamos condenados ao moderno”, diz a famosa boutade do autor. Essa “condenação” surge do caráter incipiente de nossa história artística: “nunca tivemos passado nem rastro por trás de nós”62, conforme afirma Pedrosa. E é essa falha em nossa história - “civilização-oásis”63, onde tudo é feito a partir de transplantes culturais – que nos traz também a possibilidade de criação do novo, visto aqui como uma vocação/condenação. O conceito de civilizaçãooásis acaba por banir, inclusive, uma ideia de tradição cultural. Segundo nosso autor, nossa vocação para o moderno através do tipo de civilização que constituímos é capaz de desterrar esse elemento, “que só admite a evolução histórica como fruto espontâneo e orgânico de fatores naturais e da tradição”64. Assim, de modo indireto, aparece sua concepção de influência e a natureza como a entende no caso nacional, assim como o entendimento sobre esse “novo”. Tal novo é visto como qualidade positiva, a partir de sua possibilidade de ruptura e de construção utópica de uma arte afinada com os problemas de nosso tempo (não esqueçamos o sentido ideológico em que seus escritos estão também fundamentados, a partir da influência do marxismo, sobretudo, de Trotski em seus escritos). Ao mesmo tempo, o novo surge por meio do enxertamento de culturas exógenas – fundamentalmente de matriz europeia – na cultura nacional. Tal enxertamento não é essencialmente bom ou ruim, sendo preciso analisar tais transplantações caso a caso. Esse enxertamento e o emprego do conceito de civilização-oásis parecem ser o que mais próximo temos de uma ideia de influência. Transparece, nessa concepção, primeiramente a ideia causal/mecânica de influência com seu ponto de vista de cultura mais importante (central) influindo sobre 61 Ibid, p. 126. 62 PEDROSA, Mário apud ARANTES, Otília. “Prefácio” In: PEDROSA, Mário/ARANTES Otília (org.). Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos 3. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 21 63 Conceito empregado por Mário Pedrosa a partir de sua formulação feita por Worringer em que, escrevendo sobre o Egito, descreve o caso de civilizações que surgiram de modo artificial. Tal conceito é utilizado por Pedrosa para falar da fundação de Brasília e, a partir dela, da cultura nacional. v. PEDROSA, Mário. “Reflexões Sobre a Nova Capital” (1957). In: PEDROSA, Mário/ARANTES Otília (org.). Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos 3. São Paulo: EDUSP, 2004. pp. 389-404. 64 PEDROSA, Mário. “A Cidade nova, Síntese das Artes”, intervenção no Congresso da AICA, 1959, publicada nos Anais do Congresso, pp. 8-10 e 165-167. Republicado em Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, p. 355-363; p. 358. Apud ARANTES, Otília. “Prefácio” In: PEDROSA, Mário/ARANTES Otília (org.). Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos 3. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 22. 85 cultura menos importante (periférica). O autor parece não trabalhar com uma ideia mais complexa de influência, a qual poderia ter surgido inclusive por sua formação marxista, que lhe daria o instrumental teórico para trabalhar a questão de um ponto de vista dialético, de luta de forças complexas, e não de mera subordinação de culturas centrais sobre culturas periféricas (esta última concepção estando mais próxima do chamado marxismo vulgar que, se não é a tônica do pensamento do autor, parece incidir sobre esse aspecto específico de sua obra). Em alguns momentos, inclusive, o autor toma a influência como um elemento apenas ligado à formação de jovens artistas e não compatível com os grandes mestres, plenamente formados, que devem permanecer impermeáveis a ela. Este último aspecto fica evidente em seu texto “O Momento Artístico”, escrito para o catálogo da Exposição de Artistas Brasileiros do MAM do Rio de Janeiro, de abril de 1952. Nesse texto, descreve o “impacto do grande certame internacional sobre os artistas e escultores do país”65. Tal impacto é entendido como influência, no entanto, “essa influência é mais visível, naturalmente, nos jovens, ainda em processo de formação”66. Não apenas os mestres não mudaram, como também o autor considera que seria “grotesca” (termo utilizado por ele) tal mudança. Usando uma metáfora bastante cruel, Pedrosa assim se refere a uma possível influência das “novidades” artísticas sobre os mestres consagrados: “O espetáculo seria estranho, e algo humilhante e melancólico como quando vemos uma velha sair de sua dignidade para vestir-se de roupinhas leves, graciosas e curtas, esportivamente de perna de fora e com penteado de cabelos cacheados ou tosquiados forçando a comparação ou a companhia das jovens”.67 Mário Pedrosa demonstra, assim, de maneira bastante evidente, sua concepção de influência como algo que está apenas na primeira formação de um artista e defende, inclusive, a intransigência dos artistas consolidados. Sua ideia de influência afina-se, 65 PEDROSA, Mário. “O Momento Artístico” In: PEDROSA, Mário/ARANTES Otília (org.). Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos 3. São Paulo: EDUSP, 2004. p.241. 66 Id. Ibid. 67 Id. Ibid. 86 portanto, com pensamento tradicional que até aqui foi esboçado. Ao chamado “projeto construtivo”68, capitaneado no campo da crítica por Pedrosa, corresponde também uma nova maneira de se fazer crítica de arte. A crítica de arte, que até então era fundamentada em um projeto ideológico nacionalista, de uma defesa em que se salientava o brilhantismo retórico (algumas vezes ufanista) de seus críticos, voltase para as questões formais, internas à obra, e, com isso, a uma ideia de universalização da arte brasileira que uma análise formal (e não presa às contingências sociológicas locais) permite, mesmo que, como salienta Glória Ferreira, a ideia de um projeto nacional ainda se faça presente: “(...) em prol de uma linguagem universal da arte, não regionalista ou subordinada às tradições nacionais, comprometida, contudo, com a construção do país”69. O "verde-amarelismo" é deixado de lado ao se defender o caráter universal da arte moderna. Se a ruptura parece ser um elemento fundamental na concepção de história da arte na obra de Mário Pedrosa, parece menos evidente seu pensamento a respeito da influência, permeado pelos preconceitos modernistas sobre esse conceito. O que se pode notar por sua trajetória crítica é que, ao universalizar a crítica nacional, a partir de suas análises formalistas, muito influenciadas pela gestalt dos anos 1940/50, tende a valorizar a arte de vanguarda europeia. Com isso, não temos mais o crítico de arte com a missão de resgatar os valores nacionais a partir de uma história artística nacional que remonta às origens da própria nacionalidade brasileira, mas um crítico preocupado em sintonizar a arte nacional com a grande arte feita nos centros artísticos mundiais, embora essa sintonia se dê por meio de transplantes culturais e subordinações (ao menos até Lygia Clark, que o autor considera a artista brasileira que, pela primeira vez, influiu sobre a arte dos países centrais70). No momento em que escreve, o modernismo dos anos 1920 já faz parte da (incipiente) história artística nacional e, por isso mesmo, é passível de ser rompido. Essa ruptura dá-se justamente na defesa da abstração. 68 Termo utilizado por Glória Ferreira in: FERREIRA, Glória (org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. 69 FERREIRA, Glória (org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p. 19. 70 Especificamente sobre Iberê, Mário Pedrosa escreveu ao menos um texto relevante, que será analisado quando estudarmos a crítica de arte sobre o artista. 87 A crítica de arte brasileira, principalmente a de tendência modernista, conforme veremos na crítica à obra de Iberê Camargo, parece pender entre, por um lado, a tradição “andradiana” de respeito à tradição como fonte interessante de técnicas e aprendizado e de ênfase na brasilidade e originalidade nacionais e, por outro, a ruptura com a tradição figurativa e o elogio da radicalidade vanguardista do alto modernismo, tal como apresentado por Pedrosa. Em qualquer um dos casos, vemos a importância da constituição de uma originalidade ou novidade brasileira, bem como ou uma reticência em apontar questões de influências, ou sua formulação a partir de um conceito causal de transplantamento, características que a aproximam dos ideais modernistas europeus, conforme vimos nos subcapítulos anteriores. É necessário, portanto, vermos como o ideário modernista brasileiro se manifestou na crítica construída sobre a obra de Iberê Camargo, com atenção às questões de originalidade e influência em sua obra. 3.1.3 Iberê Camargo: a formação do discurso crítico sobre um artista original Será visto agora, com mais atenção, o discurso da crítica sobre a obra de Iberê Camargo71 no que diz respeito aos problemas concernentes a esta tese. Examinaremos, assim, os aspectos referentes à influência e seu contraponto moderno examinado neste capítulo, o elogio da originalidade, nesta construção crítica. A crítica de Iberê Camargo é corresponsável pela elaboração de um imaginário específico sobre o artista em que se salientam os aspectos de gênio individual, artista solitário, criador imune às influências do ambiente artístico em que estava inserido e 71 Aliás, crítica não apenas da obra de Iberê, já que muitas vezes na construção crítica desse artista obra e personalidade foram tomadas conjuntamente. É desse modo que em muitos momentos do texto usaremos o termo “crítica de Iberê” e não especificamente “crítica da obra de Iberê”, salientando esse aspecto. 88 criador originalíssimo (entendendo-se a originalidade a partir dos pressupostos que examinamos até aqui). Tais características emprestadas à obra e ao artista fundamentamse, como vimos até agora, em uma construção que está nas bases da própria concepção do ser moderno e que tem uma trajetória de construção conceitual no Brasil que ficou evidenciada no subcapítulo prévio. É importante, então, que seja vista e analisada tal construção. Mais do que isso, é importante entender, afora os problemas da modernidade, a importância que esta dá ao novo e sua rejeição à influência, por que é fundamental que esse artista específico, Iberê Camargo, seja original. Sendo assim, veremos as especificidades dessa construção em seu caso, questionando o porquê de tais necessidades e negações. Por notarmos uma diferença significativa entre as críticas e textos sobre Iberê Camargo das primeiras décadas de sua trajetória artística e os textos que analisam suas obras escritos nas últimas décadas, nossa análise será dividida por períodos. Compreendemos que essa divisão tornará mais claro o desenvolvimento crítico sobre a obra de Iberê Camargo, fundamentalmente no que se refere aos temas estudados nesta tese. Podemos notar a presença de uma defesa (mais do que isso, conforme estamos buscando evidenciar: uma construção) da figura do artista como solitário e imune às influências nos primeiros textos sobre ele, escritos nas décadas de 1940 e 1950, que respondem às necessidades de construção crítica de uma obra então nascente. Tal defesa é reafirmada nos anos 1960 e 1970, quando Iberê se afirma como um dos grandes artistas nacionais. A década de 1980 é marcada pela aproximação crítica da obra de Iberê com a dos jovens artistas expoentes da chamada “Geração 80” da pintura, mas também pela cristalização de sua obra como ímpar frente à produção artística de sua geração. Seguindo o exame da crítica sobre a obra do artista, vemos que textos surgidos a partir dos anos 1990 seguem a afirmação de sua obra como solitária, com o surgimento de alguns textos que serão considerados clássicos dentro da fortuna crítica sobre Iberê Camargo. Também nessa mesma época, um importante trabalho, a entrevista realizada e publicada por Lisette Lagnado, começa a questionar a solidão tão absoluta da produção do artista em comparação à arte brasileira e internacional contemporâneas ao trabalho de Iberê Camargo e inquire sobre o problema da influência. Finalmente, é possível identificar, 89 a partir de meados dos anos 1990, e fundamentalmente nos textos surgidos na primeira década do século XXI, a busca de uma reflexão sobre a obra de Iberê a partir da contextualização dessa obra, explorando questões de influências até então não examinadas pela crítica anterior. 3.1.3.1 As décadas de 1940 e 1950: a construção crítica de uma obra nascente Já nos primeiros textos críticos sobre Iberê, datados de inícios da década de 1940, salienta-se a originalidade do jovem artista através de alguns dos epônimos que lhe serão emprestados ao longo de toda a sua carreira artística: “Iberê trabalhava sozinho, afastado dos nossos meios artísticos, sem professor, sem orientação, procurando por si mesmo a solução dos problemas que se lhe deparavam”72. Examinando essa afirmação junto à trajetória biográfica de Iberê à época, sabemos que, no ano de 1939, o artista passa a estudar no Curso Técnico de Arquitetura, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, onde permanecerá até 1941. No Curso do Instituto de Belas Artes, Iberê terá aulas com nomes das artes do Rio Grande do Sul, como Ângelo Guido, Fernando Corona, João Fahrion, José Lutzemberger e Oscar Boeira. O artigo cita o acompanhamento da obra de Iberê por Fahrion quando de sua produção para a exposição de 1942 no Palácio do Governo, o que lhe renderia naquele mesmo ano sua bolsa de estudos no Rio de Janeiro: “(...) orientado pelo conhecimento e experiência de João Fahrion, que o aconselhava e lhe criticava os trabalhos”73. Afora isso, nesse mesmo ano de 1942, Iberê montou seu primeiro ateliê, na Rua Lima e Silva (um pequeno galpão de madeira, nos fundos de sua casa) – não um ateliê solitário, mas construído junto com um amigo, o artista Vasco Prado. Se as contradições são evidentes ao compararmos o texto crítico com a realidade vivida pelo artista, ao mesmo tempo tornam-se justificadas ao acompanharmos o ideário moderno em que tais reflexões estavam apoiadas. Mais do que isso, talvez seja possível pensarmos que a nomeação de Iberê como artista original e solitário responda à necessidade de construção de um grande artista gaúcho, de projeção nacional (e, 72 “Assim começa a história de um pintor”. Revista do Globo, 12 de setembro de 1942, p. 24. Artigo não assinado. 73 Id. Ibid. 90 futuramente, internacional)74. Como voz de certo modo divergente na crítica a Iberê Camargo nessa época, um texto crítico de Roberto Alvim Corrêa, datado de 1946, portanto já no período da estada de Iberê no Rio de Janeiro, irá salientar as influências de sua obra. No entanto, é com certo temor de com isso deixar de salientar a originalidade do artista que o crítico escreverá: “se, digo, Iberê Camargo sofre e ainda há de sofrer influências, não merece por isso a mínima dúvida a sua futura e em parte já presente originalidade”75. Logo em seguida, o autor escreverá de modo bastante inovador para o pensamento crítico da arte, criticando a ideia de originalidade absoluta, imune às influências: “Assemelha-se a originalidade à ignorância – e a isso se reduz o receio das influências – seria o meio mais radical para suprimir toda a possibilidade de mensagem. O fato provaria a arte dos poderes nos quais empenharam o que possuíam de melhor civilizações inteiras que, graças à cultura – a mais forte das influências –, admitiram o ato criador como um dos poucos capazes de entreter nos homens esse tônus qualitativo sem o qual tudo acaba por ser traição, miséria e morte”76. Antônio Bento, em sua coluna “As Artes”, do Diário Carioca, também no ano de 1946, ressaltará a originalidade de Iberê. “O artista limpou sua palheta e não seguiu os modelos tradicionais”. “Não há dúvida que Iberê Camargo descobriu um filão novo (...) dum refinamento bem carioca dando uma interpretação original da paisagem do Rio (...)”77. Assim, podemos notar que, desde os primeiros anos dos escritos sobre Iberê Camargo, as ideias de originalidade, distanciamento e solidão foram aderindo à obra e à persona de Iberê através da crítica (influenciada pela personalidade do próprio artista e de suas declarações, como veremos no próximo subcapítulo, ao analisarmos o discurso do artista). Seguindo a trajetória de construção da fortuna crítica de Iberê, encontramos 74 É provável que o último grande artista gaúcho com tal projeção tivesse sido Araújo Porto Alegre, ainda no século XIX. 75 CORRÊA, Roberto Alvim. “Os nossos: Iberê Camargo”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10/11/1946. Colunas de Artes Plásticas. Apud. BERG, Evelyn et alii. Iberê Camargo. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. p.81. 76 Id. Ibid. 77 BENTO, Antônio. “Iberê Camargo”. Coluna “As Artes”. Diário Carioca, 1946. 91 poucos textos falando explicitamente da questão da tradição, originalidade ou influência em sua obra na década de 1950. Identificamos um texto sobre tais assuntos, proveniente do catálogo/convite de sua exposição no IBEU, em 1954. Nele, um pequeno trecho do crítico de arte Marc Berkowitz assim descreve a experiência solitária do artista: “Entre os pintores contemporâneos do Brasil, Iberê Camargo ocupa uma posição toda especial: sem ser filiado a escolas, correntes ou "ismos", ele produz obras de cunho fortemente pessoal.”78 3.1.3.2 As décadas de 1960 e 1970: a afirmação de um grande artista brasileiro Nos anos 60 e 70, percebe-se uma produção crítica mais presente sobre a obra de Iberê Camargo, principalmente a partir de catálogos e textos em jornais brasileiros. Dada a enormidade de textos, selecionamos os mais significativos para analisá-los, tendo sempre como foco as questões que dizem respeito diretamente a esta tese. As décadas de 60 e 70 serão aquelas em que a obra de Iberê Camargo se consolidará e se consagrará de forma, podemos assim dizer, definitiva no cenário nacional. Dentro dessa consolidação, podemos observar como se salientará o caráter de originalidade solitária em sua busca artística e no resultado dela: sua obra. Também podemos perceber, conforme será demonstrado na análise da crítica dessas décadas e, posteriormente, da década seguinte, que esses serão os últimos anos em que a crítica de Iberê Camargo será construída como voz uníssona sob essa perspectiva (da originalidade e da solidão), sem salientar os aspectos de influência e inserção em relação às grandes correntes artísticas nacionais e internacionais. Uma das flagrantes expressões de um discurso que acentua o caráter solitário e original da obra de Iberê nesse período é o texto de Mário Pedrosa para a exposição de Iberê na Petite Galerie do Rio de Janeiro em 1963. O texto, publicado no Diário de 78 BERKOWITZ, Marc. Texto para o catálogo da exposição “Pinturas e Gravuras – Iberê Camargo”. Agostosetembro 1954, Rio de Janeiro. IBEU – Instituto Brasil-Estados Unidos. 92 Notícias, termina com o seguinte parágrafo: “Continua Iberê Camargo a ser, no nosso panorama, uma individualidade solitária e cativante e que, se faz pintura da moda, o faz a sua maneira insólita egocêntrica, e para a qual o único ingrediente consciente que entra é uma deliberada vontade, mas sem medidas, de inortodoxia.”79 Mário Pedrosa, amigo de Iberê e companheiro na aventura de desbravar os segredos da gravura (aventura tão evidenciada nas trocas de cartas entre os dois), mais uma vez, como boa parte da crítica, acentua o caráter solitário do artista. Mesmo quando está falando de sua relação com os pintores da época, principalmente no que se refere à obra que o pintor realiza naquele período (uma explosão dos carretéis, que se tornam figuras tendentes à abstração e à gestualidade, consonantes à vaga abstrata dos anos 60), o faz a partir não de sua similitude, mas procurando buscar nessa similitude uma diferença que o coloque como pintor solitário e centrado em seu próprio ego artístico (“egocêntrico”, conforme escreve). Quando um crítico compara Iberê com outros artistas, por sua técnica ou temática, é para realizar, a partir dessa comparação, uma distinção essencial que o coloque como artista de uma originalidade essencial. Vejamos, nesse sentido, o texto de Israel Pedrosa: “Os que assistiram aos happenings de Mathieu e conhecem os trabalhos de Hartung ou de Pollock, ou foram informados a respeito do ímpeto ‘sagrado’ do toucher dos mestres do passado, constatam facilmente as particularidades de Iberê Camargo no ato de criação”80. É nesse mesmo sentido que Pierre Courthion, em 1979, irá salientar o caráter isolado da busca artística de Iberê, ao escrever sobre o “artista corajosamente independente”81 e descrevê-lo como “um isolado”82, ainda que o compare, na questão da gestualidade, aos artistas gestuais estadunidenses Pollock e Kline: “mas, assim como foi concebido recentemente pelos americanos, e conforme aparece nos óleos de Camargo, o gestual é um ensaio de autoparticipação física no ato mesmo de pintar”83. 79 PEDROSA, Mário. “Mostra de Iberê Camargo”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, junho de 1963. Coluna Notas de Arte. 80 PEDROSA, Israel. Catálogo da exposição, outubro de 1976. Galeria Bonino, Rio de Janeiro. 81 COURTHION, Pierre. “Nascimento de um Artista” (1979). In: IBERÊ CAMARGO. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. p. 65. 82 Idem, Ibid. 83 Idem, p. 67. 93 Mais uma vez, é curioso observar como, mesmo apresentando as semelhanças com outros artistas, os autores que se dedicam a escrever sobre a obra de Iberê ressaltam seu caráter solitário. O que transparece nesses textos é uma estrutura teórica muito mais ampla, em que estão inseridos (e, por que não dizer, constrangidos) os autores dessa época, o que os obriga, ao elogiar a obra de Iberê, a fazê-lo a partir do que, para os modernos, mais do que uma característica, é justamente um elogio e uma marca de talento: a originalidade advinda do caráter solitário da busca artística. 3.1.3.3 A década de 1980: a consolidação artística e a aproximação com a “geração 80” Seguindo nos anos 80, passados 40 anos de trajetória artística e de textos críticos sobre o artista, apesar de a crítica seguir ressaltando o caráter original solitário da obra de Iberê, podemos ver os primeiros esboços de uma análise dos aspectos de sua obra que se prendem não apenas ao caráter interno, solitário, egocêntrico e originalíssimo desse trabalho, mas a uma abertura para o contexto histórico-artístico em que essa obra se insere e do qual recebe influências. Essas reflexões histórico-contextuais terão como base, segundo pudemos identificar, um texto do também pintor Jorge Guinle, seguido de outro texto, influenciado pelo primeiro, de Paulo Herkenhoff. Nesse sentido, como esses dois textos dos anos 80 marcam uma divergência do que até então se construiu criticamente sobre Iberê Camargo, ao mesmo tempo em que inauguram uma nova possibilidade crítica (o que estamos também buscando nesta tese), serão eles que veremos com mais atenção, não sem antes vermos alguns textos que seguem essa longa tradição crítica sobre a obra do nosso artista. Seguindo o “discurso do novo”, podemos identificar a declaração de Lidia Vagc a respeito da obra de Iberê dos anos 80, marcada pelos primeiros movimentos de sua “volta” à figuração84: “As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas pela percepção vigente”85. Esse mesmo discurso sobre o ineditismo, 84 Colocamos o termo “volta” entre aspas porque, apesar de sua obra dos anos 70 remeter o olhar do espectador para seu caráter abstrato e sua obra dos anos 80 ter a presença da figura de forma bastante evidente, Iberê sempre afirmou que nunca foi um pintor abstrato. Nesse sentido, respeitando a vontade do artista, não afirmamos esta volta. 85 VAGC, Lidia. “Iberê Camargo: pulsão e estrutura”. Revista Gávea nº 1, 1984. 94 a originalidade e a solidão criativa do artista está presente no texto de Wilson Coutinho, “Melancolia do Moderno”, em que escreverá que Iberê possui uma “carreira e estilo marginais na pintura brasileira”86. Em seu texto, Coutinho expõe algumas relações da obra de Iberê com as obras e movimentos da arte nacional e internacional, mas, ao aproximálos da obra de Iberê, imediatamente os afasta, como a mostrar mais uma vez que a diferença é a fundadora da originalidade, do tipo de originalidade que até aqui é o lastro que valora as obras e personifica o talento artístico. Utrillo, o grupo COBRA, os impressionistas, o trabalho construtivo de Dacosta ou o colorismo de Volpi, todos eles apresentam-se como comparações com a obra de Iberê, mas são distanciados à medida da necessidade de afirmação de uma obra original e de um artista essencialmente solitário e sem par. É em 1984 que surgirá uma das primeiras reflexões sobre a obra de Iberê questionando essa originalidade até aqui enfatizada (e, nessa medida, construída) pela crítica. Publicado na revista Módulo, o texto “Os dois tempos de Iberê Camargo”87, de Jorge Guinle (Jorge Eduardo Guinle Filho), defende a relação da obra de Iberê com a transvanguarda italiana88. A relação com a transvanguarda é evidenciada, segundo Guinle, por dois aspectos principais: a dimensão do quadro, “horizontalmente longo”, e a presença simultânea de dois tempos na tela, “dois tempos culturais diversos”. Na obra de Iberê dos anos 80, ainda segundo o autor, esses dois tempos seriam primeiro o do fundo do quadro, caracterizado por um tempo de um saber pictórico já cristalizado, essa “pele experimentada (cansada de um saber pictórico)”. O outro tempo é aquele dos elementos pintados89 sobre essa “pele”, marcados pela figuração humana e pela presença de 86 COUTINHO, Wilson. “Melancolia do Moderno” (1985). In: IBERÊ CAMARGO. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. p. 77. 87 GUINLE, Jorge. “Os Dois Tempos de Iberê Camargo”. Revista Módulo, nº 82, setembro de 1984. pp. 5763. 88 A transvanguarda é um movimento artístico do início dos anos 1980 na Itália, que teve como teórico o crítico de arte italiano Achille Bonito Oliva. É marcada por uma reação à arte minimalista e caracteriza-se por uma pintura de cunho neo-expressionista, marcadamente gestual e livre, com a presença da figuração humana. Seus representantes mais conhecidos na Itália são Francesco Clemente, Mimmo Palladino, Enzo Cucchi, Sandro Chia e Nicola de Maria. 89 Ainda que se trate de pintura, esses elementos ali representados parecem mais da ordem do desenho do que da pintura, já que são construídos a partir de linhas sobre esta superfície previamente pintada, estruturando-se mais a partir do desenho. Esse fato é mais evidenciado quando comparamos desenhos da mesma época e com a mesma temática, nos quais a mesma tensão entre dois tempos se faz presente. Nos desenhos, essa tensão é construída entre as aguadas de fundo e as linhas estruturantes do desenho figurativo na frente. 95 objetos, representados de forma mais livre, “causalidade espontânea, por vezes caricatural”90. É importante notar que o texto de Guinle cumpre um propósito. Ao ligar Iberê à transvanguarda – movimento formador de boa parte da chamada “geração 80” da pintura brasileira, sobretudo a partir da visita de seu principal teórico ao Brasil, Achille Bonito Oliva -, aproximava-o também desses jovens artistas brasileiros, os quais eram liderados por Jorge Guinle. Assim, a semelhança com um velho mestre da pintura nacional servia também ao propósito de chancelar essa nova pintura. Assim como esse propósito é algo que nos parece evidente, também é evidente que tal intenção não desqualifica a análise de Guinle. Isso porque não nos parece que um texto, qualquer que seja ele, esteja desprovido de um algum propósito político ou programático (pensando esses termos não de forma restrita, mas no aspecto mais largo possível). A partir do texto de Guinle, e utilizando-se de sua leitura dos dois tempos de Iberê, tomando-os agora como metáfora, Paulo Herkenhoff escreverá o que consideramos o texto mais importante, na década de 1980, sobre as questões de influência, originalidade e tradição na obra de Iberê Camargo. O texto intitula-se “Alguns do Múltiplo Iberê” 91 e foi publicado no ano seguinte ao do texto de Guinle, ou seja, em 1985. Os dois tempos de Guinle serão a metáfora para falar, por exemplo, dos “conflitos e contradições vividos pelo artista sob o discurso unificante do rigor”92. Contradições apontadas no caso em que Iberê fala da importância de sua formação junto a Guignard, sem falar da influência que teve do artista mineiro: “antes aponta sua contradição” 93, ainda que preso ao ideário criado em torno de Iberê, como quando afirma que “Iberê mantevese distante do projeto construtivo da arte brasileira tanto quanto do informalismo sem programa”94. No entanto, Herkenhoff consegue avançar mais que seus predecessores ao afirmar que os retratos de Iberê são registros dos tempos da própria História da Arte: “retrato que congela o tempo pessoal do autor, mas que se condena a viver o embate de 90 Todas as citações desse parágrafo a partir de GUINLE, Jorge. “Os Dois Tempos de Iberê Camargo”. Revista Módulo, nº 82, setembro de 1984. pp. 57-63. 91 HERKENHOFF, Paulo. “Alguns do Múltiplo Iberê” (1985). In: IBERÊ CAMARGO. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. pp. 57-64. 92 Op. cit. p. 57 93 Id. Ibid. 94 Op. Cit. p. 61-2. 96 outro tempo: a história da arte”95. É a partir dessa reflexão sobre o tempo, sobre os dois tempos, do artista e da História da Arte, que o autor falará das relações entre tradição e influência na obra de Iberê. Na justa “junção entre a história da arte e a história do artista”, segundo Herkenhoff, Iberê une o passado pessoal com a referência (diríamos nós: influência) do contexto artístico daquele momento: “Ocorre nas telas dos anos 80 a junção entre o passado (as suas preocupações anteriores) e o atual contexto artístico. Iberê não pratica o d'après ou a citação histórica. Toda a referência (a Chia, Kiefer, Schnabel, Penck, Salle) é tempo da simultaneidade. Ou indício do vigor universal da pintura”96. Conforme podemos constatar nessa citação, o autor aponta uma série de influências, não apenas dos mestres do passado, mas do contexto artístico contemporâneo ao artista naquele momento. Ao fazer isso, busca preservar a originalidade artística de Iberê, ao apontar as ressalvas a respeito da citação histórica e da cópia. Voltaremos a algumas dessas influências no último capítulo desta tese. 3.1.3.4 A década de 1990: os textos clássicos e as conversações com Iberê Camargo Seguindo nossa trajetória a respeito dos textos escritos sobre Iberê Camargo, examinaremos agora a década de 1990, década da morte de Iberê. Nesse período, há um grande número de textos sobre o artista, a maioria deles acompanhando os catálogos de suas exposições (grande parte delas a partir do ano de seu falecimento). Começaremos com os autores que seguem a defesa da originalidade de Iberê Camargo, sine peccata, e terminaremos com o texto de Lisette Lagnado, o qual marca a tentativa mais contundente de inquisição sobre as influências de Iberê, tanto em seu texto monográfico quanto na 95 Id. p. 62. 96 Id. p. 63. 97 entrevista realizada com ele (a qual será objeto de nossa atenção quando estudarmos a fala do próprio artista). Ronaldo Brito, no clássico texto sobre Iberê datado de 1994, “Trágico moderno”, registra o “progresso moderno da sintaxe expressionista de Iberê Camargo em relação ao expressionismo modelar de Goeldi 97 . No entanto, ao fazer esse paralelo, desde logo deixa claro: “nem de longe cogitar comparações”98. Ainda que o autor permita designar a pintura de Iberê dos anos 60 e 70 como expressionista-abstrata e com afinidades ao grupo COBRA, deixa claro que, “de toda maneira, o impulso que o conduz a repor em questão a figura-no-mundo (...) era um lance de sua poética”. Ressalta-se, portanto, mais uma vez, a excentricidade criadora do artista. Perguntamo-nos, no entanto, se não é a própria filiação de Iberê à modernidade, inserida já no título do artigo de Ronaldo Brito, a marca segundo a qual, ao ligar-se a uma tradição, se filia também à corrente de influências surgidas a partir dela. Esse pertencimento à tradição moderna será enfatizado em outro texto desse que é um dos mais prolíficos críticos da obra de Iberê (e um dos mais próximos ao artista), Ronaldo Brito, também publicado em 1994 e intitulado “O Eterno Inquieto”99. Segundo o autor, Iberê, em suas obras a partir dos anos 80, “resgata e repotencializa” 100 a tradição moderna. Esta última seria de cunho marcadamente expressionista, com uma improvisação que, no entanto, remontaria a Picasso e a uma preocupação com a “erosão do tempo” do mesmo tipo da de Giacometti. Em outro texto da mesma publicação, “Ciclistas Metafísicos”, Ronaldo Brito fará uma lúcida reflexão sobre a condição de Iberê como artista periférico e de modernidade tardia em seu embate entre tradição e independência solitária. Dessa forma, não apenas identificará Iberê dentro dessa tradição, mas também o fará a partir dessa contradição entre a necessidade de um aprendizado da tradição ocidental, dentro da aspiração do artista à uma condição de “pintura culta” e universal e sua vocação moderna, que o coloca como o pintor do “eu” e, segundo as próprias palavras de R. Brito, “o adepto da lírica da angústia pessoal e da independência solitária”101. Assim, para Brito, o recurso à tradição 97 BRITO, Ronaldo. Mestre Moderno. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 4 98 Idem. Ibid. 99 BRITO, Ronaldo. “O Eterno Inquieto”. In: ________. Iberê Camargo. São Paulo: DBA, 1994. 100 Idem, p. 17. 101 BRITO, Ronaldo. “Ciclistas Metafísicos”. In: __________. Iberê Camargo. São Paulo: DBA, 1994. p. 49. 98 não surge por uma experiência de influência, mas como um aprendizado necessário ao domínio de uma tradição, domínio esse que inseriria o artista na história da pintura ocidental. Sua “independência solitária” seria, ao que parece, justamente o elemento que o imunizaria de tais influências. É dessa mesma forma que o autor, no texto “Carretéis”, inserirá a trajetória de Iberê dos carretéis até sua “abstração” como um caminho que segue à “margem das ideologias construtivas que influíram decisivamente na formação das duas obras de pintura mais importantes da década de 50 [no Brasil], as de Volpi e Dacosta”102. Mais uma vez, surge a caracterização do artista com uma produção desenvolvendo-se ao largo das grandes correntes artísticas nacionais. E quando surgem referências de semelhanças, essas sugerem os grandes nomes da tradição artística ocidental. Ronaldo Brito ainda afirmará, em entrevista para a Revista Aplauso, que “ele [Iberê Camargo] queria se ver parte da tradição pictórica ocidental. Admirava Picasso, Matisse, Goya, Appel. Em sua obra, dialoga com todos os mestres da arte, mas sua poética é a do eu solitário, daquele que não se parece com ninguém” 103. Mais uma vez, transparece o cuidado em resguardar o talento original e solitário do grande artista moderno. Em texto escrito em 1993 e publicado em 1994 como um posfácio do livro de entrevistas com Iberê Camargo, Conversações com Iberê Camargo, Lisette Lagnado fará uma das primeiras reflexões – e sem dúvida a mais sistemática e objetiva – sobre os problemas de influência na obra de Iberê escrita até então. Sob o título de “Tempo Imemorial”, esse ensaio faz referência a várias das questões que aqui estamos tratando. Sendo assim, iremos examinar com mais atenção tais reflexões. A reflexão de Lagnado estrutura-se a partir de três grandes temas: (1) o problema da tradição e a necessidade de desaterro desta, (2) a questão da memória e sua potencialização como motor para os trabalhos do artista e (3) o desespero de cunho baudelairiano pós-romântico como laitmotif do discurso e dos temas do artista. Esses três grandes temas surgem a partir do diálogo com Iberê nas entrevistas, sendo que o primeiro deles é o que mais nos interessa nesta tese. Segundo a autora, a linguagem de Iberê é construída a partir da análise da história da arte, fundamentalmente quando de sua estada na Europa, no final dos anos 40 (1948102 BRITO, Ronaldo. “Carretéis”. In: __________. Iberê Camargo. São Paulo: DBA, 1994. p. 67. 103 BRITO, Ronaldo. Entrevista concedida a Fernanda Albuquerque. Revista Aplauso, nº 47, maio de 2003. 99 50). Os principais artistas citados são Ticiano, El Greco, Rubens, Velazques, Vermeer, Goya e Ingres. Novamente, a citação aqui é a dos grandes mestres do cânone artístico ocidental. No entanto, a autora nega alguma forma de “angústia da influência”, tal como entendida por Harold Bloom. Segundo a autora, “o artista desvia-se de seus precursores (de Goya principalmente) para cair no seu próprio abismo feito das contradições exasperantes entre a vontade de existir singularmente e a dor dessa existência”104. Afirmando mais uma vez a solidão criativa de Iberê, escreve que “solidão, falta de interlocutores e uma irascibilidade buliçosa irão pontuar essa trajetória”105. A partir dessa solidão, mas buscando algum paralelo com sua obra ou ao menos com seus pontos de vista, irá buscar uma comparação de Iberê com Giacometti no que se refere ao peso que a tradição desempenhou sobre cada um dos artistas. A autora identifica não uma iconoclastia, tal como a instalada na arte a partir de Duchamp, mas um respeito à tradição em ambos os artistas. Em seguida, Lagnado vê semelhanças de Iberê com De Kooning no jogo entre figuração e abstração presente nesses dois criadores. Se Iberê, segundo Lagnado, não sofre da “angústia da influência”, o mecanismo de criação de Iberê é para a autora um terreno fértil para o capítulo em que Bloom analisa a complementação e a antítese em relação ao precursor. Essa antítese e complementação abrangeriam a “parcela rejeitada na obra do outro”; assim, temos uma espécie de leitura a partir das avessas, do que Iberê rejeita, em sua análise da influência. Como não é ainda nosso objetivo analisar a influência na obra de Iberê, mas apenas aquilo que seus críticos disseram (bem como o que não disseram) sobre ela, não iremos testar a hipótese de Lagnado, mas apenas apontamos que a autora já buscava um meio para compreender os problemas de influência no artista. Essa negação se daria também a partir da hipótese de Iberê como sendo um “artista de ação”106, através do esquecimento. Esquecer o que veio antes seria um dos ingredientes necessários para a atitude de pintar, no caso de artistas que são dotados de tal elemento de ação nas suas pinturas. Mais do que isso, pensamos nós, a própria velocidade da ação seria uma necessidade para atingir esse fundamental 104 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 96 105 Idem, Ibid. 106 A autora expõe a citação que Bloom faz sobre Nietzsche, segundo a qual “o esquecimento é uma propriedade de toda ação”. Pensamos que, quando Lagnado fala em artista de ação, esteja se referindo tanto ao método de Iberê, próximo ao da action painting no que diz respeito a seu “ataque” à tela, bem como a esta propriedade do esquecimento no que se refere a seus precursores e a prováveis influências sofridas. 100 desmemoriamento que o artista pretende atingir na sua busca da originalidade, conforme veremos posteriormente. A autora ainda faz algumas ressalvas, como a comparação da pintura de Iberê com a de Francis Bacon, argumentando que, enquanto o primeiro constrói a figura, o outro a dissolve. Lagnado termina essa parte de seu ensaio lançando uma pergunta: “como Iberê se insere nessa genealogia, ou seja: o que dela devora, acrescenta e rejeita?”. Essa questão é justamente uma das questões centrais desta tese e será nosso foco no capítulo terceiro. Por último, no que tange aos anos 90, Ferreira Gullar, em seu ensaio “Do Fundo da Matéria”, citará brevemente as influências sofridas por Iberê no início de sua carreira. Sobre as influências, assim escreve Gullar: “A essa altura [à época do grupo Guignard, nos anos 40], Iberê, disposto a seguir a trilha correta da arte moderna, procurava refrear seu temperamento impulsivo e abrira-se a influências várias: de Lasar Segall, de Cândido Portinari, de Guignard e mais tarde do francês Maurice Utrillo. Iberê tateava, buscava-se a si mesmo, mas duvidava se essa fidelidade não era um resto de provincianismo que o afastaria da nova arte. Ao mesmo tempo quando pintava à la Portinari ou Utrillo, fazia-o como um desafio, para mostrar a si mesmo que era capaz de pintar como eles”107. Mais uma vez, notamos a ressalva na hora de citar as influências, mostrando sempre que o pintor original, mesmo quando pinta “à maneira de”, o faz não como uma influência, mas como um desafio. Qual seria a base para Gullar fazer semelhante afirmação? Uma declaração do próprio Iberê? Seria essa declaração uma fonte segura para distinguir entre desafio e influência? E mesmo que o fosse, não será o desafio a própria marca de uma influência? 107 GULLAR, Ferreira. “Do Fundo da Matéria”. Piracema: revista de arte e cultura. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Funarte, nº 4, ano III, 1995. Republicado In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 11. 101 3.1.3.5 A década de 2000: os estudos críticos acadêmicos e as reflexões sobre influência Por último, analisaremos a última década de textos críticos sobre Iberê Camargo. Essa década é marcada por uma profusão de textos, muitos surgidos a partir da criação da Fundação Iberê Camargo (1995), seguida do projeto de organização de seu acervo e de catalogação de sua obra (2000), com o incentivo à reflexão crítica sobre a obra do artista que essas iniciativas propuseram. Tais textos terão um caráter mais inquisitivo no que concerne às questões de influências. Parece-nos que esse caráter mais analítico surge do fato de esses textos não servirem mais ao propósito de elaboração de catálogos ou de convites para exposições nos periódicos brasileiros, mas por surgirem no contexto de seminários dedicados a uma análise mais aprofundada sobre a obra de Iberê. Além disso, é importante notarmos o novo cenário crítico brasileiro, de crítica aos pressupostos da modernidade, os quais permaneciam vigentes até então, conforme procuramos demonstrar ao longo deste capítulo. Tal cenário fará, inclusive, com que os mesmos autores que antes negavam ou silenciavam a respeito das influências de Iberê passem a falar de forma mais aberta sobre o tema. Sendo assim, veremos a seguir alguns dos textos mais significativos surgidos dessas publicações e desses debates sobre a obra de Iberê Camargo na década dos anos 2000. Em 2001, foi publicado pelo Banco Pactual, em conjunto com a Fundação Iberê Camargo, um livro intitulado Iberê Camargo – Desassossego do Mundo. A obra contém textos de análises da obra de Iberê escritos pelo professor e crítico de arte Paulo Venâncio Filho. O autor traça algumas relações da obra de Iberê com a de outros artistas, buscando aproximações entre elas. Ao mesmo tempo, ressalta o caráter individualista de seu trabalho, salientando mais uma vez a recusa do artista às influências, principalmente dos artistas do pós-guerra. Já no início do texto, o autor escreve: “Iberê é um solitário na arte brasileira”, ainda que esteja “próximo, sem dúvida, de Goeldi no nosso expressionismo (...)”108. Como explicar a aproximação com Goeldi, dada a sua (de Iberê) 108 VENANCIO FILHO, Paulo. Iberê Camargo: desassossego do mundo. Rio de Janeiro: S. Roesler: The Axis Instituto Cultural, 2001. p. 18. 102 característica solidão? Eis a resposta do autor: “é de si próprio que Iberê fala quando fala de Goeldi”109. Sob o contexto artístico, no início da trajetória de Iberê, o autor nos diz que Iberê ignorava o cubismo, bem como o expressionismo abstrato, sendo que as suas paisagens desse período chegam a ser “modernamente tardias, mesmo para o tardio modernismo brasileiro”.110 No que diz respeito aos mestres de Iberê, aqueles que lhe ensinaram o ofício de artista, são justamente mestres do métier, mas não são, segundo Venancio Filho, influências: “Guignard e depois Lhote, De Chirico – os mestres instrutores de Iberê – são etapas que não configuram influências, apenas o itinerário do ofício de pintar e da revogação do sentimento interno de incultura que devia existir, apesar da absoluta convicção de seu destino artístico”111. “Iberê é um solitário na sua convicção da pintura, na sua crença na tradição como base fundamental, sem a qual nada pode se fazer em pintura, muito menos aniquilá-la integralmente”112. Mesmo no que se refere à tradição, Iberê permanece caracterizado como um solitário. No momento em que a aproximação com a tradição poderia indicar semelhanças e influência, o artista é visto como um solitário. E assim é visto justamente por sua crença na tradição artística, em um contexto no qual o centro artístico do mundo (a Europa e os EUA) questiona essa tradição. Dá-se valor à tradição; para o autor de “Desassossego do Mundo”, Iberê Camargo não se interessa pelas novidades artísticas, silencia quando a questão dirige-se para seus contemporâneos: “É rara qualquer palavra sobre os contemporâneos. Pouco quer saber do que fazem os modernos; quase nunca pergunta por Picasso, Miró ou Giacometti, ou ainda Morandi, que parecem não lhe dizer respeito, na sua orgulhosa e solitária ocupação febril”. A consciência desse silêncio parece-nos muito pertinente; ela é a base do ideário e da estratégia construída por Iberê (e sua crítica moderna) para a construção institucional de um grande artista moderno, conforme veremos no subcapítulo seguinte (aquele em que analisaremos o discurso do artista). Entretanto, não nos parece – e esse é justamente 109 Idem. Ibid. 110 Idem, p. 19. 111 Idem. Ibid. 112 Idem, p. 32. 103 um dos pontos centrais desta tese – que esse silêncio signifique de fato a ausência das influências em seu trabalho. Ao contrário, conforme veremos no capítulo terceiro, uma das chaves para o entendimento das relações de influência está na relação entre tradição e silêncio sobre os seus contemporâneos. A proximidade com o Grupo COBRA é ressaltada pelo autor, bem como com a action painting dos EUA, a pintura de Giacometti, a arte bruta de Jean Dubuffet e com artistas como Hans Hartung, Pierre Soulages, Alberto Burri e Alan Davie. Essas proximidades são citadas, mas não analisadas no texto em questão; serão retomadas ao analisarmos as influências de Iberê Camargo. Segundo Paulo Venancio Filho, Iberê silencia também em relação aos abstratos. Quando enumera os grandes artistas da modernidade, o faz a partir das “figuras mais que convencionais da modernidade”113: Picasso, Chagall, De Chirico. Seu “abstracionismo informal” (é dessa forma que Venancio Filho caracteriza o período de rompimento com a figura do carretel) vai de encontro ao informalismo de sua época: “anti-dripping, antitachismo, anti-informal”114. Mais uma vez, o que parece transparecer no texto é o jogo entre aproximações e recuos presentes ao longo da trajetória crítica sobre o artista: aproxima-se Iberê de alguns artistas ou movimentos para, em seguida, a partir dessa aproximação, mostrar sua genuína diferença. Por fim, na retomada da figura humana, nos anos 80, Venâncio Filho identifica a semelhança da pintura do velho mestre com a jovem pintura da chamada “geração 80” da pintura brasileira. “Por uma dessas ironias da história, sua trajetória artística solitária e isolada entra na ordem do dia”115, no entanto, “sem que as influências recíprocas dessas afinidades estabeleçam relação de causa e efeito”. Parece-nos problemática a afirmação de influências recíprocas sem causa e efeito. Aparentemente, mais uma vez entra em causa a necessidade de estabelecer divergências entre a obra de Iberê e a de seus contemporâneos, mesmo que esse argumento se localize em um limite próximo ao da contradição. Publicado em 2003, em sua coletânea de ensaios críticos sobre arte, o texto inédito de Ferreira Gullar aponta algumas questões interessantes no que se refere às influências 113 Idem, p. 36. 114 Idem, p. 37. 115 Idem, p. 49. 104 na obra de Iberê. Escrevendo sobre a experiência “abstrata” deste artista, Gullar faz uma lúcida reflexão sobre as influências sofridas com a entrada do informalismo e do tachismo no Brasil: “É certo que sua aventura começa nesse período quando o tachismo e o informalismo invadem o país. Seria falso afirmar que esses movimentos não tenham influído sobre a sua arte. Creio que influíram, junto com outros fatores de caráter pessoal, estético e biográfico”116. Parece-nos um dos primeiros momentos em que influências são objetivamente identificadas e nomeadas. Mais do que isso, essas influências não são de obras dos grandes mestres, da “tradição artística” - nomeação que parece mais identificar um todo sem rosto do que algo concreto e passível de reconhecimento –, mas de obras contemporâneas à trajetória do artista, inseridas no fim do modernismo, dentro da pintura do pós-guerra. Entretanto, uma ressalva é feita na análise de Gullar, uma “diferença fundamental”, segundo as palavras do poeta e crítico de arte: “aquelas novas tendências artísticas, possivelmente, tenham suscitado nele a possibilidade de reorientar sua procura poética; e mais que isso, tenham revelado a seus olhos o esgotamento de uma certa linguagem figurativa e o estimularam a mergulhar em busca de seus fundamentos. Ele não adere à nova moda: parte dela para uma indagação radical que o tornará um dos recriadores dessa mesma linguagem – o sujeito de uma aventura estética que, por seu radicalismo, não tem equivalente na pintura brasileira”117. Se é importante observarmos a indicação das influências feita por Gullar, do mesmo modo notamos novamente a necessidade de ressaltar o caráter singular da experiência artística de Iberê. Passadas cinco décadas de sua trajetória artística, não apenas a ressalva de suas características singulares é um lastro a comprovar o valor de sua arte, como também tal resguardo de sua singularidade nos textos parece ser a garantia de valor do próprio texto crítico a respeito do artista – ao menos até que uma revisão crítica desses aspectos começasse a ser realizada nos primeiros anos desta década. Entre esses textos reflexivos, destaca-se o seminário “Iberê Camargo/ A dimensão 116 GULLAR, Ferreira. “Pintura de Iberê: Essa Lama Estelar. In: ____________. Relâmpagos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 117 Idem. Ibid. 105 experimental da pintura”, organizado pela Fundação Iberê Camargo, nos dias 4, 5 e 6 de dezembro de 2002, que resultou em uma publicação, organizada por Sônia Salzstein em 2003, intitulada “Diálogos com Iberê Camargo”. Dentre a série de artigos, destacamos aqueles que dão atenção mais particular à questão da tradição e da influência na obra do artista. Entre esses artigos, notamos ainda a presença de alguns que seguem a antiga tradição de recusa à influência na obra de Iberê, de apego ao ideal de artista solitário e original por sua característica solidão. Ao lado desses artigos, identifica-se uma maioria de textos que trabalham a partir da inquirição sobre as influências sofridas por Iberê, buscando tais influências, discutindo e questionando o ideário moderno de um artista imune a influências. Afora essas duas caracterizações de textos, há também aqueles que não se dedicam, em absoluto, ao problema da influência ou da tradição, seja para negá-la ou para buscá-la; esses textos não serão objeto de nossa atenção, já que evidentemente fogem aos objetivos da tese. Comentaremos primeiramente, de forma breve, os textos daqueles autores ainda apegados à tradição moderna de análise da obra de Iberê, para depois analisarmos com maior cuidado os autores que trazem contribuições relevantes aos estudos de influência na obra de Iberê Camargo. O primeiro desses textos que elogia e salienta os aspectos solitários da produção de Iberê é o de Luiz Camilo Osório, intitulado “Iberê Camargo e a dimensão experimental da pintura”. O autor dedica-se, em parte de seu texto, a “discutir a singularidade da obra de Iberê dentro do contexto histórico do modernismo, sua posição solitária e consistente ante as diretrizes poéticas hegemônicas (...)”118. Segundo Osório, a obra de Iberê dos anos 60 é distinta da de seus contemporâneos, isso porque, para o autor, Iberê mergulha na pintura, no “interior da matéria pictórica”, enquanto todos tentavam “levar a pintura para fora dela mesma”119. Citando Paulo Venâncio Filho, ressaltará a solidão dessa pintura, que não saía do ateliê para as ruas e que ia de encontro ao ideal desenvolvimentista da época, permanecendo essencialmente pessimista. Se uma aproximação é possível com os artistas do mesmo momento artístico de Iberê, poderia ser, segundo Osório, com Giacometti, por aquilo que denomina como uma “retomada 118 OSÓRIO, Luiz Camilo. “Iberê Camargo e a dimensão experimental da pintura”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 66. 119 Idem, p. 72 106 trágica da figuração”120, ou seja, essa figura que, após o abstracionismo, surgia como resposta ao desespero humano coletivo e individual. O outro texto que ainda se prende à perspectiva que até aqui mostramos é o de Icléia Borsa Cattani, intitulado “Figuras e Lugares na pintura de Iberê”. Nesse texto, se há algum espaço de diálogo com outros artistas, este se dá através de identificações genéricas, como é o caso da afirmação de que, na obra de Iberê, tal diálogo é estabelecido “com o próprio campo da pintura ocidental em sua história, desde o Renascimento até a contemporaneidade”121. A autora cita a contribuição de artistas como Guignard, Portinari, Segall e Utrillo no que se refere à mudança da figura em sua obra. No entanto, a influência desses mesmos artistas é desde logo rechaçada: “Certamente, as obras dos artistas mencionados foram importantes como modelos. Não configuram influências, mas elementos reveladores de poéticas que fariam parte, de modos variados, da trajetória da obra do artista (...)”122. Ainda que a autora escreva que o artista se considerava “um elo entre os artistas que o antecederam e os que estavam por vir”123, ela não indica a partir de quais referências compartilhadas esses elos se estabelecem. Pelo contrário, parece insistir no isolamento criativo do artista, indicando uma solidão que torna a obra mais propícia a uma circularidade interna a si mesma do que pertencente a um elo inserido em uma corrente artística que comporia com outros artistas, a partir de semelhanças e influências recíprocas. Dentre os textos que discutem a premissa da solidão criativa do artista, é fundamental examinarmos o artigo que Sônia Salzstein escreve nesse livro que organiza, intitulado “Anos 60/ um marco na obra de Iberê Camargo”. A autora chama a atenção para a imagem de solidão que aparece desde o final dos anos 50 nos depoimentos e escritos de Iberê Camargo. Segundo Salzstein, tal imagem acaba por marcar a obra do artista e o modo como o seu reconhecimento institucional foi construído. A partir disso, escreve a autora: “Não era de admirar, então, que acabasse percebida [a obra de Iberê] como 120 Idem, p. 75. 121 CATTANI, Icleia Borsa. “Figuras e Lugares na pintura de Iberê”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 82. 122 Idem, p. 85. 123 Idem, p. 93. 107 ocorrência excepcional e solitária na história da arte brasileira”124. Essa construção se dá, segundo a autora, principalmente a partir do início dos anos 80, através da produção crítica sobre o artista, sobretudo nos ensaios de Ronaldo Brito. Tais ensaios de Brito, para Salzstein, tiveram “o papel inaugural de reafirmar publicamente a originalidade da produção de Iberê Camargo no universo da arte brasileira”125. Mesmo quando surgiam comparações com a obra de Goeldi, estas eram apresentadas como uma espécie de “revelação”, e não como análise das obras em seu contexto, ou seja: “como procedimento crítico, capaz de problematizar o vínculo histórico entre ambas e, afinal, abrir as comportas de um ramo importante e difuso da arte brasileira, que frutificara silenciosamente, à margem da hegemônica vertente construtiva”126. Dentre esse ramo, a autora irá destacar os trabalhos inaugurais de Anita Malfatti e Lasar Segall, seguidos pelas obras de Ismael Nery, Lívio Abramo, Flávio de Carvalho, Maria Leontina, Milton Dacosta, Arthur Luiz Piza, Ivan Serpa, Mira Schendel, além dos próprios Iberê e Goeldi. Essa ligação entre Iberê e Goeldi, sem uma análise do contexto brasileiro, remontando a uma referência longínqua, como o expressionismo, fortalecia ainda mais a “aura de inefabilidade que passou a envolver a produção de Iberê”127. Seguindo sua análise, a autora apresenta um panorama do contexto artístico internacional, indicando que, a partir da mesma tradição expressionista, haviam surgido artistas que, desde meados dos anos 50, buscavam uma representação baseada na gestualidade, em uma subjetividade que contrariava o racionalismo moderno, desencantado com suas utopias e um mergulho na empiria. Dentre eles, destaca o Grupo CoBrA, bem como Alberto Burri, Piero Manzoni, Lucio Fontana, Yves Klein e Jean Dubuffet, além de Giacometti e Morandi. A seguir, cita os franceses do nouveau-realisme e o expressionismo abstrato na obra de De Kooning e a action painting de Pollock. O paralelo com a pintura desse mesmo período de Iberê Camargo faz-se ao revelar seu progressivo desempenho corporal nas obras dessa época, a partir de uma “gestualidade 124 SALZSTEIN, Sônia. “Anos 60/ um marco na obra de Iberê Camargo”. In: _____________. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 44. 125 Idem. Ibid. Nota 2. 126 Idem, pp. 44-5. 127 Idem, p. 45. 108 desenvolta e energética”128. Sendo assim, para Salzstein, a obra de Iberê no período ressoava tanto o cenário internacional quanto o debate artístico nacional, este último através da “busca neoconcreta de uma dimensão fenomenológica do espaço” 129, ressaltando a importância da experiência estética. Da mesma forma, a autora salienta a recusa de Iberê no que se refere à abstração construtiva, seu posicionamento antagônico e, mais uma vez, a busca da solidão que o faria ímpar frente a essas produções. A autora também salienta a influência que a antiarte e a antiforma tiveram sobre Iberê. Não é possível, segundo Salzstein, que “a emergência da cultura de massas no coração mesmo da alta cultura”130 não tivesse efeitos na obra de Iberê, mesmo que esses efeitos acontecessem através da resistência do artista. No entanto, ao contrário de ter uma posição absolutamente reativa, sua própria relação com o informe e o imaginário escatológico presente em sua matéria pictórica (bem como em sua atividade como escritor, evidenciado no conto “O relógio”, como observa a autora) o aproximava às experimentações contemporâneas com os materiais heterodoxos e com o rompimento da forma moderna. Uma análise mais aprofundada ainda é feita em relação aos contatos estabelecidos entre a obra de Iberê e a de Mira Schendel (artista de quem, não por acaso, Salzstein é uma das principais estudiosas). No período do final dos anos 50 e início dos 60, Schendel começa uma busca que culmina com a dissolução da grade cubista e o surgimento de uma pintura densa, matérica e gestual, presente em trabalhos como as Monotipias e nas experiências espaciais de 1966 e o ambiente apresentado na X Bienal de São Paulo, de 1969. Nos dois artistas, a década levou-os a trabalhos nos quais a ação assume papel primordial. Seguindo sua análise, Sônia Salzstein questiona o refinamento da obra de Iberê e sua atitude contrária à arte de seu tema, vinculada sobretudo ao culto de Iberê à grande tradição artística, aos mestres do passado. A explicação da autora a esse apego à tradição seria a de uma necessidade do artista de pertencer a tal tradição. Essa necessidade surgiria, aos olhos da autora, de um desejo de não renunciar às formas por ele criadas – não transformar sua pintura em mera ação, fazendo dessa ação, do 128 Idem, p. 47. 129 Idem, Ibid. 130 Idem, p. 49. 109 procedimento em si, o único conteúdo de seu trabalho. A não-renúncia à “plasticidade da matéria” marcaria seu apego à tradição em um momento no qual a pintura ocidental parecia abdicar da experiência da pintura entendida como ofício ou artesania e incorporava procedimentos mecânicos e, em algumas vezes, se caracterizava como pintura performática. Além desse aspecto, Salzstein também busca explicar o apego à tradição a partir da dissolução dessa mesma tradição, sob a perspectiva de uma tradição europeia, em um momento de emergência da cultura estadunidense. Iberê, como um herdeiro dessa cultura europeia, a defendia no momento de sua descentralização como uma forma de resistência da alta cultura contra o mainstream representado pelos EUA. É a partir desse ponto de vista, analisando a relação da obra de Iberê em conjunto com o panorama artístico nacional e o contexto artístico internacional, mas ao mesmo tempo falando dos silêncios de Iberê e de suas recusas, que Salzstein contribui de forma decisiva para os estudos contextuais sobre a obra do artista. Uma obra que “silenciosamente alerta aos acontecimentos mais decisivos que marcaram a arte brasileira e internacional do século XX”131 deve ser vista a partir de sua historicidade, “mesmo sob os protestos mais veementes de sua a-historicidade”. O entendimento desses vínculos históricos da obra de Iberê Camargo, “a um só tempo uma operação teórica e crítica”, pode fazer dessa obra, segundo a autora, “um objeto de indagação da situação contemporânea, uma ferramenta viva de compreensão do presente”. Nessa busca de entendimento de suas relações históricas (relações de influências, segundo a perspectiva que estamos tomando nesta tese), cabe, como escreve Salzstein: “deslindar a complexidade de mediações culturais, de artistas maiores e menores que se entrecruzaram na pavimentação da notável trajetória de Iberê, e que certamente serão capazes de revelá-la como fruto inconfundível de uma singular história da arte brasileira”. Conforme visto, portanto, o texto de Salzstein parece inaugural no que se refere às reflexões contextuais da obra de Iberê. Ainda que dedicado à análise dos anos 60, sua abertura teórica possibilita que, a partir dele, surjam questões a serem analisadas em toda a produção artística de Iberê Camargo. É importante ainda salientar, no âmbito dos trabalhos de Sônia Salzstein nesse seminário (e em sua posterior publicação), sua 131 Idem, p. 60. 110 entrevista com o artista José Resende. Nessa entrevista, a autora frequentemente inquire Resende a respeito das influências de Iberê Camargo, questionando a posição de aparente distanciamento do artista no que se refere ao contexto artístico nacional e internacional. Tal entrevista, portanto, é um exemplo das preocupações da organizadora desse seminário quanto aos problemas de influência e contexto da obra de Iberê e uma demonstração clara de seu posicionamento frente a essa questão. Entre suas perguntas (afirmativas), destacamos um trecho que nos parece significativo de tal tomada de posição: “Parece necessário, então, propor novos termos ao debate dessa obra: já não basta explicá-la à luz da universal solidão expressionista – é preciso deslindar o ambiente cultural em que ela surge, descobrir-lhe as conexões mais finas com o debate das ideias que marcou sua formação, tentar compreender como interagiu (mesmo que frequentemente pela recusa) com essas ideias...”132. Seguimos nossa análise dos textos que, no livro Diálogos com Iberê Camargo, tomam partido de uma análise mais contextual e histórica da obra de Iberê, inquirindo sobre possíveis influências e analisando o contexto em que essa obra se insere. Um desses importantes textos é o de Mônica Zielinsky, intitulado “A pintura de Iberê Camargo: um processo para sempre inacabado”. O texto analisa a obra de Iberê sob a perspectiva temporal, tendo presente o trabalho de catalogação de sua obra, organizado e publicado pela autora. No texto, ressalta-se que a consciência de uma abordagem da obra de Iberê a partir de seu contexto é algo fundamental: “pensar o lugar que essas obras ocupam no mundo da arte”133 e ainda pensar a obra a partir de sua gênese, dos “momentos de gestação e processo produtivo”134. E é a partir desta última perspectiva que o texto irá examinar a obra de Iberê, e é daí que surge a questão do tempo na obra de Iberê, segundo tal análise. Esse tempo torna-se duplo, pois, se as obras nos interrogam a partir do lugar de onde surgiram, isto é, do passado, ao mesmo tempo apresentam-se em um momento que é presente – da sua recepção. A lição de Didi-Huberman135 é tomada como 132 SALZSTEIN, Sônia. “Entrevista. José Resende”. In: _________________. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 165. 133 ZIELINSKY, Mônica. “A pintura de Iberê Camargo: um processo para sempre inacabado”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 98. 134 Idem, Ibid. 135 DIDI-HUBERMAN, Devant le temps. Paris: Les Editions de Minuit, 2000. Citado pela autora à página 99. 111 exemplar para a análise de Iberê Camargo, fazendo-nos lembrar, ainda, que há uma perspectiva de futuro, já que a obra também nos interroga a partir de seu devir, de sua resistência a nós mesmos (de sua capacidade de permanecer além de nós mesmos). Apesar de reconhecer o caráter solitário do artista e sua independência frente à produção nacional e internacional, a autora finaliza seu texto com uma importante ressalva: “não podemos esquecer de sermos vigilantes para que a obra de Iberê Camargo seja preservada de uma mediação fundada no mito e afastada da conduta ética, artística e existencial que esse importante artista dispôs a todos nós”136. No que concerne às duas perspectivas apontadas por Mônica Zielinsky, a perspectiva contextual e o estudo a partir de sua gênese, podemos adiantar, segundo a concepção que defendemos nesta tese, que o trabalho de estudos de influência se situa justamente entre esses dois lugares: em uma investigação das influências a partir de sua formação, mas tendo em seu estudo contextual os elementos que permitem sua comprovação e seu cotejo. Essas ideias serão desenvolvidas quando estudarmos nossa concepção de influência suscitada pela obra de Iberê Camargo. Uma substancial reflexão sobre o papel da tradição na obra de Iberê nos é apresentada no texto de Paulo Venâncio Filho nessa mesma publicação, intitulado “Iberê Camargo: uma trajetória através da pintura moderna e além”. Nesse texto, além de apontar semelhanças e influências, Paulo Venâncio Filho irá salientar a aparente contradição na obra de Iberê estabelecida entre o respeito à tradição e a busca de inovação em seu fazer artístico. No que se refere às afinidades, Venâncio Filho primeiramente destaca duas: a de Iberê com De Kooning e com Morandi. Entre os três artistas, destaca-se o repeito pela tradição artística. Além deles, o autor também chama atenção para as relações, ainda que tardias, entre a obra de Iberê e a de Jorge Guinle. Essa possibilidade, segundo Venâncio Filho, só se faz possível no Brasil, onde uma “disfuncionalidade histórica”137 não permite o mesmo tipo de hierarquização cronológica presente em outros cenários artísticos, como o europeu. 136 ZIELINSKY, Mônica. “A pintura de Iberê Camargo: um processo para sempre inacabado”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 111. 137 VENÂNCIO FILHO, Paulo. “Iberê Camargo: uma trajetória através da pintura moderna e além”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 129. 112 No que diz respeito às influências, Paulo Venâncio Filho cita Guignard, a Escola de Paris, Giorgio De Chirico, perspectivas experimentadas por Iberê, entretanto, “sem se abalar”138. Aproxima-se também da jovem pintura alemã dos anos 80 de Anselm Kiefer. No que se refere à aparente contradição entre sua busca pela inovação e o respeito à tradição, Venâncio Filho irá argumentar que se explica fundamentalmente pela compreensão, por parte de Iberê, de que a arte é continuidade, ou seja: “não há separação entre pintura moderna e os grandes mestres da tradição” 139. Tal pintura necessita do acúmulo de conhecimento de todos os mestres do passado para o perfeito domínio do métier, daí o respeito pelos mestres. Desses mestres, Iberê irá se referir exclusivamente à pintura europeia. No entanto, os mestres não são apenas aqueles que ensinam, a partir do passado, suas técnicas, mas, para o artista - segundo a análise do autor -, são “matéria viva – desafio e estímulo”140. Vemos, portanto, que um autor como Paulo Venâncio Filho, que havia, em textos anteriores, ressaltado o caráter solitário da produção de Iberê frente ao cenário artístico nacional e internacional, nesse estudo volta sua atenção para os aspectos contextuais de sua obra. Essa mudança de foco tem a ver com o contexto das novas produções sobre o artista e, da mesma forma, responde aos problemas trazidos pelo seminário dentro do qual seu texto foi apresentado. Dando prosseguimento à análise dos textos que apresentam o problema das influências e da importância da tradição e do contexto artístico na obra de Iberê Camargo, temos o texto de Cecília Cotrim. Seu ensaio intitula-se “Selvageria Pictórica”. A autora principia sua análise defendendo a análise histórica das obras, a partir da citação do texto de Frank Stella, Working Space141, no qual o autor salienta a relação entre a arte do passado e as obras do presente, bem como a relação entre uma obra do presente com toda a história da arte. A antecipação de sua concepção denota a importância que o contexto da história da arte tem para a autora na análise que fará da obra de Iberê. A autora concentrar-se-á nas figuras de Iberê a partir dos anos 80. Sua análise traçará comparações entre essas figuras e aquelas de De Kooning e de Jean Dubuffet. 138 Id. Ibid. 139 Idem, p. 130. 140 Idm, p. 131. 141 STELLA, Frank. Working Space. Cambridge: Harvard University Press, 1986. 113 Essa relação vincula-se a um ponto em comum: o processo da pintura como dissecação (já presente em Ticiano), a apresentação do próprio processo pictórico através das figuras e a dificuldade do artista moderno em lidar com a figura. A autora trabalha a partir da ideia de semelhanças entre as obras. Não aponta, a partir dessas semelhanças, questões de influência. Entretanto, ainda que não aponte influências, o texto é importante por traçar pontos comuns entre a obra de Iberê e a de outros artistas, a partir de problemas que são comuns à arte moderna, e por inserir sua obra em uma reflexão da história da arte, não mais isolada como caso sui generis. Carlos Zilio, em seu texto “Iberê Camargo: um episódio, um comentário e algumas considerações”, apresenta algumas contribuições para as questões de influência e a importância que o contexto artístico tinha para Iberê. O texto é escrito como uma espécie de relato pessoal de sua amizade com o artista. Esse relato é permeado, como o próprio título apresenta, de algumas considerações sobre Iberê e sua obra. Explorando algumas questões do processo criativo de Iberê, Zilio descreve uma das pinturas do artista em seus primeiros estágios. Segundo o autor, o trabalho em seu estágio inicial lembrava Matisse. Essa lembrança surgia principalmente pelos contrastes entre os campos de cor que acentuava sua luminosidade. A obra lembrava trabalhos de Matisse como Vista de Collioure e Natureza-morta com berinjelas. A partir dessa comparação, Zilio faz uma interessante observação: “Iberê vinha, digamos, curiosamente, na época desse nosso encontro, falando contra Matisse e conseqüentemente contra o sucesso que a retrospectiva do pintor estava obtendo no MoMA. Um hedonista, dizia dele Iberê, com certo desdém”142. É bastante significativo o “desdém” de Iberê para com um artista que, segundo Zílio, representava uma influência bastante objetiva em sua obra naquele momento. Significativo também é o fato de que tal influência surgia, ao que parece, não como uma reminiscência do passado, como uma lembrança de sua viagem à Europa, passados quarenta anos dessa experiência. Ao contrário, a presença de Matisse em sua obra apresentava-se justamente quando de sua famosa exposição retrospectiva (em 1992). Zilio ressalta o fato de Iberê considerar a pintura de Matisse como fundamental e 142 ZILIO, Carlos. “Iberê Camargo: um episódio, um comentário e algumas considerações”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 174. 114 lembra suas aulas no Instituto de Belas Artes da Guanabara (atual Escola de Artes Visuais do Parque Lage), quando as apresentava como exemplo do emprego da cor. A resposta do autor a essa contradição é a da certeza de Iberê quanto à relevância de sua obra junto ao fato de ela não receber um reconhecimento internacional, reconhecimento obtido por Matisse. Afora essa resposta, que parece indicar mais uma inveja de reconhecimento, parece-nos que há mais questões que precisam ser examinadas (e que serão, nos capítulos posteriores). A relação de Iberê com Matisse e com outros pintores é explicada por Zilio a partir da concepção baudelairiana segundo a qual a “arte é uma mnemotécnica do belo”. Ou seja, uma espécie de capacidade de guarda e absorção da tradição pela memória, em um nível subliminar, com a capacidade de transformar essa mesma tradição a partir de sua obra. Negando a ideia de que Iberê seria um iconoclasta, Zilio define sua obra dentro de uma trajetória de retorno às suas características de origem. A partir de um aprendizado dentro do qual tais características iniciais foram abandonadas em prol do aprendizado histórico e técnico da pintura, a obra de Iberê seguiria posteriormente, em sua maturidade, em direção a tal retorno. Seguindo as relações da obra de Iberê com a de seus contemporâneos, Zilio observa que seria interessante comparar a “volta” de Iberê à figuração humana com o mesmo retorno realizado pelo expressionista abstrato Philip Guston. Outra comparação evocada por Carlos Zilio é aquela entre os manequins de Iberê e os de seu mestre De Chirico e dos surrealistas. Sobre essa última comparação, faremos uma análise específica no último capítulo. Finalmente, Zilio encerra seu texto ressaltando a importância de uma visão da arte a partir de seu sentido trans-histórico, considerando a obra de Iberê em sua relação dinâmica com a tradição. Sob tal perspectiva, a obra de Iberê seria capaz de reelaborar o passado, situando-se simultaneamente tanto no presente quanto no passado. Ressaltando esses dois aspectos, do presente e do passado, Zilio encerra seu texto afirmando que a potência da obra de Iberê “está concentrada na capacidade de conter em si o acúmulo da cultura e a consciência da ruptura”. Essa dupla característica demonstra o apego de Iberê à tradição artística, seu contínuo diálogo com ela – ainda que muitas 115 vezes, como no caso de Matisse, um diálogo áspero – e sua busca de reelaboração dessa mesma tradição a partir de sua obra. Terminamos nossa análise dos textos surgidos por ocasião do seminário “Iberê Camargo/ A dimensão experimental da pintura” com o texto de Lorenzo Mammì. Tal texto apresenta-se como o estudo mais abrangente e sistemático no que se refere às influências sofridas por Iberê Camargo e a relação de sua obra com um contexto artístico específico. O texto intitula-se “Iberê Camargo e a pintura européia do pós-guerra”. O texto de Mammì começa afirmando a relação dúplice de Iberê Camargo com os movimentos artísticos nacionais e internacionais: por um lado, a busca pelos mestres (Guignard, Goeldi, De Chirico, Lhote) e, por outro lado, em seus escritos e entrevistas, “um silêncio quase absoluto sobre os movimentos que evidentemente o influenciaram, como o informalismo ou o tachismo”143. O respeito para com os mestres acontece no âmbito do aprendizado da técnica, nunca acontecendo como uma influência em sua poética. Sobre essa (sua poética), “Iberê reivindica uma autonomia absoluta”.144 Essa dupla característica irá motivar o autor a inquirir a respeito desses silêncios, questionando o quanto neles há de verdade, no que se refere à obra. Esse posicionamento, a que Mammì chama de “individualismo orgulhoso”, é para o autor uma postura tomada pelo artista a partir da avaliação que faz sobre o momento artístico no qual estava inserido, seu posicionamento nesse contexto e seu desejo de reconhecimento artístico. Para Mammì, não bastava a Iberê “se atrelar ao carro dos grandes movimentos internacionais para ter ingresso garantido na História Universal”145. Essa consciência faz com que o artista deliberadamente recuse tal atrelamento, numa atitude que irá conduzir-se ao radicalismo dessa postura de negação da arte de seu tempo. Era preciso, portanto, em um país que não possuía uma história artística, ancorarse naquilo que chama de uma “memória individual”, para a partir disso encontrar elementos de linguagem que fossem análogos aos que os artistas europeus estavam buscando à época. 143 MAMMÌ, Lorenzo. “Iberê Camargo e a pintura européia do pós-guerra”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 151 144 Id. Ibid. 145 Id. Ibid. 116 Ao justificar o isolamento de Iberê, Lorenzo Mammì corre o risco de naturalizar tal característica, tornando-a um fato artístico mais do que uma característica presente tão somente no discurso do artista. No entanto, o autor deixa claro que o silêncio de Iberê “não significa que ele fosse cego e surdo àquilo que estava acontecendo ao seu redor” 146. Para Mammì, o historiador da arte tem como tarefa justamente esclarecer, segundo suas próprias palavras, “possíveis influências e convergências”147. Mais do que isso, ressaltando o aspecto de originalidade que existe nessas convergências e influências, escreve que: “é apenas a partir de uma rede de relações que é possível avaliar a originalidade de um artista”148. Consciente da importância dessa análise do ambiente artístico que cercava (e atravessava) a produção artística de Iberê, o autor buscará nesse artigo reconstruir parte da trajetória artística de Iberê Camargo. O período de sua produção escolhido para a análise é o da década de 1950, período de amadurecimento da poética do artista e a partir do qual se dará o “abandono da figuração e a criação de uma linguagem informal e especificamente sua”149. O autor, primeiramente, fará um recuo a partir do período a que pretende se dedicar, para falar do momento em que Iberê vive em Porto Alegre (1936 – 1942). Datam desse período algumas paisagens, como Jaguari (1941). Comparativamente, Mammì cita a obra de Benito Castañeda, professor do Instituto de Belas Artes, onde Iberê estudou, e autor de algumas paisagens caracterizadas por uma matriz expressionista. Castañeda fará sua primeira individual em Porto Alegre justamente no ano em que Iberê pinta a tela Jaguari. Retornaremos à relação entre Iberê e Castañeda no último capítulo da tese. Após o período em Porto Alegre, Iberê vai morar no Rio de Janeiro em 1942, quando então tomará contato com uma pintura que já não é mais janela para o mundo, mas que se constitui em anteparo para a matéria pictórica, ou seja, o artista tem seu encontro com a modernidade. Iberê viaja para a Europa em 1948. É desse período de aprendizagem na Europa que Mammì fará sua análise, concentrando-se no ambiente artístico europeu da época. 146 Idem, p. 152. 147 Id. Ibid. 148 Id. Ibid. 149 Id. Ibid. 117 O ano de 1948 na Europa é aquele em que surgem as poéticas informais e tachistas. No entanto, segundo o autor, Iberê não tem contato direto com essas obras, com as quais terá uma aproximação apenas quando de sua volta ao Rio de Janeiro, principalmente a partir das participações dos informalistas nas Bienais de São Paulo. A Roma de 1948 era marcada pelas discussões sobre novas formas de abstração. Mammì lembra que Fontana havia retornado à Itália em 1947. No entanto, para o autor, o formalismo de Fontana ou o engajamento do grupo Forma não parecem ter influenciado Iberê Camargo. Para Lorenzo Mammì, é preciso investigar em outra direção, na direção de uma corrente expressionista surgida na Itália dos anos 1920, conhecida como Scuola di via Cavour. Dos artistas dessa escola, Mammì destaca Gino Bonichi, o Scipione, artista influenciado, por sua vez, pelo surrealismo e pela pintura de De Chirico do período neobarroco, bem como pela pintura do douanier Rousseau. Pintor de um expressionismo “atormentado”, Scipione será tributário principalmente da tradição pictórica barroca do séc. XVIII (sobretudo, Magnasco e Salvator Rosa). Junto de Scipione, outro importante artista desse movimento é Mario Mafai, que expõe em 1934 uma série de “Demolições”: uma crítica às demolições que estavam sendo conduzidas por Mussolini para a abertura das grandes vias romanas da época. O posicionamento ético dos membros da Scuola (sua “espessura moral” frente ao fascismo), junto à importância dada à tradição pictórica, somado ao peso do mêtier, tal como era salientado por De Chirico, parece formar os elementos a partir dos quais se marcou a tendência de Iberê a ser influenciado por esse grupo, segundo escreve Mammì. Elementos, como podemos ver, que são construídos pelo autor mais como pressupostos éticos, de uma “visão de mundo” mais ampla, do que propriamente analisados em termos comparativos da pintura de Iberê com as do artistas apontados. Seguindo o desenvolvimento das influências de Iberê mais de um posicionamento ético frente ao ofício artístico do que de marcas visíveis em sua obra, Mammì desenvolve sua análise a partir da mudança de Iberê para Paris, em 1949. Lá, torna-se aluno de André Lhote. Lhote, como relata Mammì, era um ótimo professor, mas não um artista importante (ao contrário de De Chirico). Em 1950, Lhote publica uma coletânea de textos intitulada Parlons peinture (Falemos pintura). Essa obra traz textos publicados entre 1917 e 1935. Um dos textos dessa coleção trata de uma homenagem a um dos mestres de 118 Lhote, Rouault. O título do livro, como observa Lorenzo Mammì, é praticamente o mesmo do livro de Rouault: Parler Painture (Falar pintura). Mammì fará uma significativa comparação entre expressões desses textos e declarações de Iberê: “Nesse texto, Iberê, que mais tarde costumaria dizer que pintava 'porque a vida dói', pode ter encontrado frases como essa: 'A pintura, para mim, não é senão um meio como outro qualquer para esquecer a vida”150. Tanto Rouault quanto Lhote são para Mammì mais modelos morais do que formais, e ele indica que “o estudo da obra de Picasso deve ter sido bem mais proveitoso, do ponto de vista do desenvolvimento do estilo”151. Conforme veremos, ao analisar as influências de Iberê, Lhote considerava Picasso não somente um dos grandes artistas da modernidade, como também dedicou a ele alguns textos críticos. No que diz respeito a Picasso, Mammì observa que a obra do artista à época em que Iberê se encontra em Paris é marcada por “uma pintura espessa e soturna, melancólica, diferente da grande oratória modernista desenvolvida na década de 30” 152. Esse tom sombrio, o “traço mais sofrido”, se não apresenta influências diretas na obra de Iberê (Mammì escreve não saber se Iberê tomou contato com essas pinturas à época), ao menos denotam para o autor o clima artístico daquele momento – mais ensimesmado, menos engajado em movimentos políticos coletivos e sem o otimismo construtivo anterior - que certamente deve ter influenciado o jovem Iberê Camargo. No entanto, Mammì observa que a Paris do final dos anos 1940 não era apenas de Picasso e Lhote. Outros artistas destacavam-se no período e foram importantes influências para Iberê Camargo. Dentre esses artistas e movimentos, o autor salientará o informalismo, em seus inícios, com o tachismo e a art brut francesa. O informalismo, segundo o autor, pode ter influenciado a linha de obras como os Ciclistas, dos anos 80, a partir de obras como a tela de Dubuffet Árabes com rastros de passos, de 1948, bem como as sobreposições de cores diferentes, as quais são reveladas através do trabalho com a espátula e o escavar do pincel sobre as camadas da tinta que lembram a obra Touring Club, de 1946, também de Dubuffet. Ambas as obras haviam sido expostas entre 1947 e 1949 no sótão da galeria Drouin de Paris. 150 Idem, p. 159. 151 Id. Ibid. 152 Id. Ibid. 119 Mammì sugere a hipótese de que a influência de Dubuffet, um iconoclasta distante da reverência à tradição tal como entendida por Iberê, tenha sido exercida de forma indireta, através da obra de Karel Appel, do Grupo. Appel havia exposto na V Bienal de São Paulo em 1959. Conforme lembra Mammì, a semelhança entre Iberê e as obras do Grupo CoBrA já haviam sido salientadas por Ronaldo Brito em seu texto de 1994. Ao finalizar seu texto, Lorenzo Mammì faz algumas ressalvas. A primeira delas é que as influências exercidas pelo clima artístico de uma cidade (como Paris) são muitas vezes recebidas de forma intuitiva e não racionalmente: “as escolhas se dão instintivamente, antes mesmo de se saber o que está se escolhendo” 153. Mais do que isso, no caso especifico de Iberê Camargo, dado o extremo rigor a que o artista se submete: “a metabolização [das influências] é extremamente lenta: influências afloram anos, mesmo décadas depois, quando já são plenamente absorvidas e podem ser extraídas da memória, sem nenhuma referência externa”154. Sobre essas “metabolizações” lentas, veremos, ao analisar a distância temporal entre as influências e sua expressão na obra de Iberê Camargo, em nosso último capítulo, o quanto elas são significativas para o processo de influência e explicitação destas em sua obra. Muitas vezes, tais influências acontecem de forma indireta, oblíqua. Dessas influências oblíquas, o autor destaca a obra de Morandi. A obras do artista italiano haviam sido enviadas para o Brasil na III e na V Bienal de São Paulo (em 1953 e 1957, respectivamente). Os trabalhos mais “morandianos” de Iberê, segundo Mammì, são os de 1957-58: Garrafas, de 1957, e Mesa azul com carretéis, de 1959. Tais obras de Iberê, para o autor, são mais morandianas em sua composição e espírito do que propriamente em sua pincelada ou em sua cor: “como se Iberê tivesse absorvido Morandi através das gravuras, e o tivesse então repassado para a pintura” 155. Por fim, Mammì aventa ainda uma última hipótese de influências na obra de Iberê, influência também oblíqua: a partir da paixão de Iberê pelo cinema mudo, principalmente pelo expressionismo alemão. O autor se pergunta quanto das Idiotas ou dos Ciclistas, no que se refere ao tratamento da figura e à luminosidade difusa e prateada, não seriam influências indiretas de filmes como 153 Idem, p. 161. 154 Id. Ibid. 155 Id. p. 162. 120 O gabinete do doutor Caligari, de Robert Wiene (1920) e A última risada, de Murnau (1924). Terminamos nossa série de textos críticos sobre Iberê, no que se refere aos problemas contextuais de sua obra, especificamente ao peso da tradição e da influência em sua obra, com um texto de Mônica Zielinsky. Trata-se do texto monográfico do Catálogo Raisonné de gravuras do artista, coordenado pela autora. Nesse texto, teremos uma análise aprofundada das questões de influências (entre outras questões, já que é um texto geral, de apresentação e análise da obra de gravuras do artista em sua totalidade) e do contexto artístico no qual Iberê está inserido. O primeiro momento do texto em que surge uma reflexão sobre influência e relações contextuais da obra de Iberê é quando é feita a descrição do ambiente artístico do Rio de Janeiro à época da chegada de Iberê. Em um ambiente de crescente internacionalização da arte brasileira, com a formação de alguns importantes museus e a criação da Bienal de São Paulo, Iberê primeiramente toma contato com a obra de Portinari, a qual, segundo a autora, apesar de alguma aproximação em sua produção inicial, não terá influência relevante à medida que Iberê se liga a outros artistas. Surge, então, a aproximação com Guignard e o contato com o escultor italiano Lelio Landucci. No entanto, a autora não sugere uma influência desses dois artistas, mas apenas o diálogo estabelecido com o escultor e o aprendizado com o mestre Guignard. É em Goeldi que vemos no texto a primeira aproximação de uma influência mais objetiva: “não resta dúvida de que Iberê deixa-se impregnar pela ambiência solitária e trágica das produções gráficas desse artista”156. A seguir, uma importante relação é feita com a obra de outros artistas, a partir de um elemento comum: o uso dos mesmos modelos para a figuração. A autora observa que os modelos não são apenas “temas de trabalho”, mas também referências artísticas e possibilidades de diálogo com outros artistas – aproximações, ainda que inconscientes, “com obras que circulam no meio artístico brasileiro daquele momento” 157. Comparar-seiam, então, obras como a água-forte Mulatas, de Iberê, com Festa de São João, de 156 ZIELINSKY, Mônica. “O sentido da alquimia de Iberê Camargo”. In: __________. Iberê Camargo – Catálogo Raisonné: volume 1/Gravuras. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 43 157 Idem, p. 45. 121 Portinari; Mulheres com crianças, de Iberê, com Mãe Preta, de Portinari; ou, ainda, a água-forte Retrato com “as rígidas faces encontradas nos modelos de Segall”158. De Segall, também surgem comparações com seu Pogrom, de 1937, e as obras de Iberê Figuras e Figuras I. Tais relações, observa Zielinsky, dizem respeito a obras que não são de importância dentro do conjunto de gravuras de Iberê, mas momentos de experimentação do artista. Tal tema – o da relação entre modelos comuns e influências será um dos pontos centrais desta tese no que se refere à busca de uma metodologia para o entendimento da influência, ao analisarmos o modelo sob a perspectiva de “documento de trabalho” do artista, em nosso último capítulo. Sobre o silêncio de Iberê, a autora também tece considerações importantes, citando, inclusive, o estudo de Mammì, já aqui analisado. Retrocedendo em relação ao período analisado por Mammì, a autora observará obras realizadas por Iberê na época do Grupo Guignard que remetem à Suíte Vollard, de Picasso: “Mulher sentada e menina” (CR-019) e “Menina e mulher sentada” (CR-308) evidenciam a mesma preocupação de limpidez no emprego da linha que se reconhece nessa série de gravuras do artista espanhol, ao representar seus modelos, minotauros e violações159. A autora infere que Iberê não tenha tido acesso àquelas obras de Picasso nesse momento, dada a inconsistência do meio artístico local. Pensamos que essa impossibilidade seja algo a ser discutido, já que ao menos as publicações (livros e catálogos de Picasso) poderiam circular no centro do país, dada a facilidade de sua aquisição e o frequente deslocamento das elites cariocas à Europa na época. Do mesmo modo, as gravuras e desenhos de Picasso das décadas de 1900 e 1910 já continham essa sobriedade da linha e economia do traço encontradas na Suíte Vollard (sendo que, desses trabalhos, já existiam obras que circulavam pela Europa ao menos desde o final da década de 1910, como é o caso da obra de Maurice Raynal, Picasso (Bruxelas: L'Art Libre, 1919), entre outras. Por último, seria de se considerarem também obras brasileiras que já refletiam essa sobriedade da linha, derivada de Picasso, como os trabalhos de desenho de Anita Malfatti, de meados dos anos 1920. Nesse sentido, parece-nos acertada a posição da autora ao identificar tais influências picassianas já no início da 158 Ibid. p. 46. 159 Ibid. p. 47 122 produção de Iberê (antes de sua viagem à Europa), conforme analisaremos ao estudarmos objetivamente tais relações (ainda que não as identifiquemos, no caso de Picasso, a relações de influências). Em sua viagem de aprendizado na Europa, é destacado o ensino das técnicas artísticas e o aprendizado adquirido na visita aos museus e pelas cópias dos artistas que realiza em tais museus. Sobre o mestre De Chirico, a autora salienta a influência no que diz respeito aos relevos e à profundidade da imagem. É importante salientarmos que, com isso, se destaca um aspecto importante da influência: que ela é um elemento não apenas relacionado a temas ou a poéticas como algo abstrato, mas que, a partir do aprendizado de técnicas específicas, estas, ao comporem o trabalho artístico, trazem elementos que influem na obra do artista. Além da influência dos professores (na qual também é relatada a influência de Lhote, através da concepção de pintura desse professor, que entende as questões da pintura como presentes em todas as épocas, como um elemento agregador comum à arte), o texto também destaca a importância do tachismo e do movimento CoBrA na obra de Iberê, principalmente pelo aspecto “existencial” e trágico presente nessas obras. Esse elemento motivador comum seria responsável pela semelhança entre as obras. A autora também avança na identificação da obra de Iberê com a de Morandi apontada (mas não analisada em relação através do cotejo de obras) por Lorenzo Mammì no texto anteriormente analisado. São comparadas algumas obras, como a água-tinta Composição 1, de Iberê Camargo (1956), e a água-forte de Morandi Natureza-morta (1933), por suas estruturas geométricas e pelas áreas de luz e sombra bem demarcadas. No que se refere à arte contemporânea e à arte internacional do tempo de Iberê, Mônica Zielinsky mostra em seu texto tanto as conexões da obra do artista com algumas obras de seu tempo bem como o silêncio do autor em relação aos trabalhos mais experimentais da contemporaneidade. Um dos exemplos dessas aproximações é o dos expressionistas abstratos estadunidenses (Pollock e De Kooning, sobretudo), pela vitalidade e a ênfase na ação desses trabalhos. Apesar do silêncio de Iberê em relação a estes artistas, a autora afirma que sua obra: “mostra confluências com diversas produções e indica que Iberê possui referências na arte de seu tempo e naquele que o 123 precedeu”160. No que diz respeito à arte contemporânea, a autora mostra o nãorelacionamento do autor com esse movimento. Mesmo com produções como o concretismo, Iberê não se pronuncia, como afirma Zielinsky. Se pensarmos, então, nos questionamentos artísticos produzidos nos anos 1970 no Brasil, a distância de Iberê é ainda mais olímpica. Como afirma a autora: “nessa absoluta independência e atrelado aos princípios que a tradição da arte lhe oferece, Iberê alcança respeitabilidade nacional e participação progressiva na arte internacional”161. Pensamos que, no que concerne às questões desta tese, dois aspectos são fundamentais no texto de Mônica Zielinsky: é o primeiro texto a analisar a questão das influências de Iberê em uma perspectiva de sua obra como um todo, cobrindo todos os períodos artísticos de Iberê Camargo (ao menos, no que concerne à gravura), e apoiando-se nos estudos de períodos específicos de sua obra que até então haviam sido feitos, como é o caso do texto de Lorenzo Mammì anteriormente analisado; o outro aspecto diz respeito ao fato de essa análise de influência vir acompanhada de exemplos concretos de obras específicas de Iberê Camargo e de outros artistas, já que até então as (poucas) análises das influências dos artistas se fundamentavam em citações genéricas de artistas, relacionadas a comparações genéricas sobre períodos artísticos de Iberê (como a citação das “bicicletas”, dos “carretéis” ou das “idiotas”). Desse modo, esse texto inaugura um modelo de análise que, nesses dois aspectos apontados, serve de referência para esta tese. Surgidos primeiramente no contexto de catálogos de exposição do artista ou de textos jornalísticos com o caráter de divulgação de sua obra, os textos sobre Iberê contiveram um caráter mais laudatório do que crítico. Ancorados nas perspectivas da modernidade, de elogio da originalidade como condição para a excelência artística, tais textos respondiam aos anseios de sua época. Mais do que isso, dada a forte personalidade do artista, a crítica sobre sua obra muitas vezes fundamentou-se não apenas no que sua obra dizia, mas na influência que o caráter de Iberê produzia naqueles que com ele conviveram e escreveram os textos sobre o artista. Ao longo dos anos, 160 Ibid. p. 71. 161 Ibid. p. 92. 124 principalmente a partir do final da década de 1980, novos textos críticos (agora, de fato críticos e analíticos da obra do artista) surgiram, buscando questionar algo que até então permanecia inabalável em relação ao artista. O caráter solitário de Iberê começou, então, a ser questionado, e os silêncios do artista começaram a ser observados não como sinal de uma verdade em si, mas como indicativos de algo que estava além desse silêncio. Esse “algo”, conforme buscaremos demonstrar nesta tese, respondem às questões contextuais, especificamente nas relações de influência que sua obra sofreu, ao longo de toda a sua trajetória artística. Os textos das últimas décadas são a base segundo a qual tais questões começaram a ser analisadas e evidenciadas, sob um outro outro aspecto de sua produção. É interessante notarmos, na introdução do livro de entrevistas de Iberê Camargo realizado por Lisette Lagnado, Conversações com Iberê Camargo, escrita por Paulo Herkenhoff, uma observação bastante significativa para as questões que estamos investigando: “é inescapável que tudo que aqui se afirme como a fala de Iberê também fale de Iberê mais que de outros. A outra leitura é a de seu silêncio e interdito” 162. É esse silêncio, sobretudo o silêncio a respeito de suas influências (talvez o interdito moderno por excelência), o que devemos ouvir ao estudar a palavra do artista no próximo subcapítulo, ao analisarmos o discurso de Iberê sobre sua obra. Analisar, sob a perspectiva de seu discurso, “o artista que Iberê inventou para si“, conforme escreve Paulo Pasta, 163 é o que pretendemos fazer a seguir. 3.1.4 Iberê Camargo: o discurso do artista O artista deve ser um diferenciado. Nisso está a sua afirmação e sua importância. Iberê Camargo 162 HERKENHOFF, Paulo. “Introdução”. In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 9. 163 PASTA, Paulo. “Memória e matéria na pintura de Iberê Camargo”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 119. 125 É possível afirmar que Iberê foi um artista bastante prolífico quanto à sua fala pública. São diversas as entrevistas concedidas pelo artista ao longo de sua trajetória. Tais entrevistas tiveram ampla divulgação nacional, principalmente quando Iberê Camargo capitaneou o movimento em prol da diminuição de impostos na importação de tintas, que resultou, entre outras iniciativas, no famoso Salão Preto e Branco (1954). Dessas entrevistas, algumas se destacaram pela profundidade da abordagem dos problemas mais propriamente artísticos na obra de Iberê. Entre elas, ressalta-se a concedida a Lisette Lagnado (1993), que resultou na obra Conversações com Iberê Camargo. Além de entrevistas, Iberê também nos legou textos escritos por seu próprio punho, alguns de caráter ficcional, outros refletindo sobre sua própria obra e participando ativamente no debate artístico contemporâneo (através de vários artigos publicados em jornais brasileiros), além de uma extensa documentação epistolar (da qual foram publicadas a correspondência com o amigo e também artista Mário Carneiro). Aliás, mesmo nos textos ficcionais (contos), transparecem, inevitavelmente, questões de sua produção. A seguir, acompanharemos algumas dessas entrevistas, textos e cartas escritos por Iberê, concentrando-nos naqueles aspectos que dizem respeito mais objetivamente a esta tese. Tais aspectos são: a questão da influência, a importância da tradição e (no que se refere a este capítulo) o problema da originalidade da obra do artista. Buscaremos ver em que momento o artista fala sobre essas questões, assim como daremos um valor de escuta aos silêncios expressos por Iberê Camargo. Consideramos que essas declarações e entrevistas constituem a imagem pública que Iberê procurou construir sobre si mesmo, mas também pensamos que elas refletem – quando conseguimos obter êxito no exercício de ver além dessa persona pública - suas angústias e dúvidas mais profundas. Iberê é um artista muito coerente quanto à afirmação de suas ideias. Ao longo de toda a sua história pública, através de suas declarações, textos e entrevistas, não notamos uma mudança significativa em seu discurso sobre a arte. Sendo assim, optamos por dividir este subcapítulo não no mesmo formato diacrônico do subcapítulo anterior, que 126 analisava a mudança do pensamento crítico ao longo das décadas, mas a partir de alguns grandes temas que respondem aos problemas desta tese. Dividimos, portanto, o conjunto dos discursos de Iberê em quatro grandes temas. O primeiro tema é a questão da tradição, a importância que lhe é dada por Iberê com a citação dos grandes nomes do cânone artístico ocidental e daqueles considerados importantes pelo artista no Brasil. Articulado a esse tema, está o segundo, a crítica à vanguarda164, a qual, conforme veremos, é considerada por Iberê como opositora da tradição e não tributária do passado artístico (entendido como o grande cânone artístico europeu). O terceiro tema trata das declarações do autor em que afirma (e exalta) sua solidão artística e criativa, seu não-pertencimento a grupos e sua aversão aos movimentos artísticos de sua época (ao longo de toda a sua trajetória artística) e às teorizações sobre a arte. Relacionado a esse terceiro tema, temos então o último, que diz respeito às questões de influência em seu trabalho, seu silêncios, sua afirmações reticentes e suas negações de caráter mais explícito. 3.1.4.1 A afirmação da tradição e a influência das teorias de André Lhote Iberê, em várias declarações, indica a relevância que dá à tradição artística. Sua busca constante pela aprendizagem formal, o convívio com os mestres, a viagem à Europa, são indícios na sua vida que provam a verdade das suas palavras. É preciso, no entanto, que compreendamos o que Iberê Camargo entende por “tradição” e quais os pressupostos teóricos de tal entendimento. Em 1949, no seu caderno de anotações da viagem de estudos à Europa, Iberê Camargo escreve: “copiando Ticiano é que posso compreender a sua magnífica simplicidade”165. A Europa mostrava-se para Iberê como o repositório dessa tradição que o artista buscava com grande ânsia, principalmente quando sabemos da penúria dos museus brasileiros no que se refere à arte internacional nessa época166. Assim, Iberê fazia 164 Denominação utilizada pelo autor referindo-se não às chamadas “vanguardas históricas”, mas à arte contemporânea, principalmente dos anos 1960 a 1970, e seus experimentos: happenings, instalações, objetos, etc. 165 CAMARGO, Iberê. Caderno de Anotações (manuscrito), 1949. 166 O MASP havia sido inaugurado em 1947, com uma coleção ainda insipiente, em que se destacavam 127 cópias daqueles que considerava os grandes artistas, prática consagrada no ensino de artes europeu, mas já em franco desuso nessa época. A importância da cópia e da visita aos museus é repetidamente enfatizada pelo artista, que não teme, por esse conhecimento, perder sua “originalidade”: “o Conhecimento, uma sólida cultura plástica como entendo, jamais poderá sufocar a originalidade de um artista, se ele realmente a tem”167. Mais do que isso, mesmo o exercício das cópias também é justificado pela própria tradição: “No museu do Prado, encontram-se, lado a lado, cópias e originais de mestres: Delacroix après Rubens; après Tiziano. Cézanne estudava os velhos mestres. A sua meta era refaire Poussin sur nature.”168 Escolhas artísticas também são explicadas tendo a tradição – os mestres do passado – como “álibi”: “há quem diga que minha gravura é pictórica. Sei que é, mas que tem isso? As gravuras de Goya e Rembrandt também o são”169. Goya e Rembrandt, dois mestres do passado. O passado tem papel central no pensamento de Iberê sobre a arte, justamente por ser o repositório da tradição à qual faz tantas referências. “Nós não poderíamos testemunhar o hoje se não tivéssemos por dentro o ontem, porque seríamos uns tolos a olhar as coisas como recém-nascidos, como sacos vazios”170. Esse passado, do qual não se pode descuidar sob pena da tolice, é elemento de sua própria obra: “Me parece que minha pintura procura resgatar o passado, reencontrar as coisas que foram soterradas e ficaram perdidas no pátio. Desapareceram no chão, parece que é isso. Tanto que eu fazia uns quadros terrosos, como se tivesse uma busca num garimpo que supostamente jazem, não sei”. O resgate do passado pode ser visto como o resgate ou a busca da própria tradição artística, como a tentativa de filiar-se a essa corrente contínua de mestres do passado. Conforme afirma Vera Beatriz Siqueira: “só a inserção na tradição histórica da pintura, iniciada no Renascimento, pode permitir ao artista, nascido no Rio Geande do um autorretrato de Rembrandt, um busto de Picasso e, no ano seguinte, um Van Gogh (O Escolar). 167 CAMARGO, Iberê. Entrevista In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 21. 168 Id. Ibid. 169 Depoimento de Iberê Camargo a Anna Letycia de Quadros, In: QuADROS, Anna Letycia de. “Só há um Salão: o Salão Moderno”, Para Todos, 1958. 170 CAMARGO, Iberê. “Gaveta dos Guardados”. In: ______________. /MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 34. 128 Sul, alcançar alguma ordem de universalidade.” 171 Ao mesmo tempo, como metáfora, poderíamos pensar esse garimpo como a tentativa, ainda que velada e não explícita para o próprio artista, de um duplo processo de desenterrar e soterrar aquilo para ele inominado: suas influências172. Além do respeito ao passado, marcado sobretudo pela reverência aos grandes mestres dos centros artísticos, deferência típica daqueles vindos de áreas periféricas (“sou um europeu aguaipecado”173, dizia o artista), é preciso vermos qual o fundamento teórico da importância dada à tradição e o que está por trás dessa palavra no pensamento de Iberê Camargo. O respeito pela tradição artística e seu entendimento como um conceito específico será fundamentado a partir do contato de Iberê Camargo com o professor André Lhote. Conforme declara Iberê Camargo, em depoimento à jornalista francesa Jacqueline Tesnière, em 1969: “Lhote, como nenhum outro, fez me ver as identidades na solução de cor, de valor, de ritmo, enfim, de todos os elementos da linguagem pictórica no mundo da pintura, que abrange todas as épocas”174. O pensamento de André Lhote, influenciador da concepção de arte defendida por Iberê, está bem claro em seus escritos. Além de artista, Lhote foi um pensador e teórico da arte, tendo publicado diversas obras em que expunha suas concepções artísticas. Entre essas obras, destacamos – no objetivo de entender melhor as ideias de Iberê Camargo – o livro Les Invariants Plastiques, principalmente um de seus ensaios, intitulado “À la recherche des invariants plastiques”, escrito em 1948 (portanto, fazendo parte das reflexões de Lhote no exato ano em que Iberê viaja para a Europa e um ano anterior ao início de seus estudos com o mestre francês). O termo “invariantes plásticos”, cunhado 171 SIQUEIRA, Vera Beatriz. “Individualidade e cultura. Apreensão crítica das poéticas de Goeldi, Segall e Iberê Camargo”. In: Revista Concinnitas, ano 4 nº 5, dezembro de 2003. Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. p. 112. 172 Sobre a questão do soterramento e a do desenterramento e sua relação com a influência, as veremos com mais atenção ao estudarmos a importância específica do desenho como elemento revelador das influências na obra de Iberê Camargo. 173 CAMARGO, Iberê. Entrevista In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 40. Aguaipecado é um regionalismo do Rio Grande do Sul, derivado de guaipeca, este último significando cachorro, principalmente de rua, sem raça definida; por extensão, aplica-se também às pessoas com sentido pejorativo, algo como “joão-ninguém”. 174 Depoimento de Iberê Camargo a Jacqueline Tesnière, 1969. In: CAMARGO, Iberê/MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 179. 129 por Lhote, refere-se àqueles elementos comuns a toda a arte (ao menos, a toda arte ocidental) através dos quais se pode pensar em uma linha de continuidade, de afinidade, de participação comum entre a arte de todas as épocas. Valores absolutos, “sans considération de lieu ni d'époque, ce qui constitue l'essentiel de leur texture”175, é isso que constituem para Lhote seus “invariantes plásticos”. Tais valores, segundo André Lhote, são sete: ornamento, cor, valores, ritmo, caráter decorativo, inversão sobre o plano e monumentalidade176. É a partir desse eixo comum que se estrutura a ideia de tradição no pensamento de Lhote e, consequentemente, no pensamento de Iberê Camargo. Os invariantes plásticos seriam a marca visível e a sustentação dessa linha ininterrupta que vai dos antigos aos modernos, das covas de Altamira a Picasso, e que se entende por Tradição. Tal concepção fica clara no pensamento de Iberê Camargo, principalmente em um texto que escreve em 1968, intitulado “Fiel à arte”, fundamental para entendermos suas concepções teóricas gerais sobre a arte e específicas sobre a tradição. Nele, os ecos de Lhote se fazem ouvir de forma altissonante. Sobre o papel da tradição, Iberê declara: “a arte só se pode renovar incorporando a tradição, que assegura a sua identidade. A ninguém é dado avançar sem que um pé fique atrás”. Mais do que esse “pé atrás”, a própria ideia da invariabilidade da arte é expressa quando afirma que: “a forma da arte é permanente e imutável no espaço e no tempo”177. “Convencemo-nos disso percorrendo as galerias do mundo: da pintura rupestre a Giotto, de Giotto a Goya, de Goya a Braque”178. É a essa tradição que Iberê pretende se filiar. Sua referência diz sempre respeito a uma linha sucessória de artistas que do passado chegam até o presente (“venho do Renascimento”, diz em entrevista a Juarez Fonseca), como uma espécie de filiação genealógica. É desse modo que Iberê Camargo nos diz: “eu permanecerei fiel à arte e à geração de grandes pintores que me antecederam”179. Que grandes pintores são esses? Léger, Michelângelo, Picasso, Braque, Goya, Rembrandt. Os grandes nomes da pintura 175 LHOTE, André. “À la recherche des invariants plastiques” (1948). In: _____________. Les Invariants Plastiques. Paris: Hermann, 1967. p. 87. 176 “ornement, couleur, valeurs, rytme, caractère décoratif, reinversement sur le plan, monumentalité”. Id. p. 91. 177 CAMARGO, Iberê. “Fiel à arte” (1968) In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 141. 178 Id. Ibid. 179 Id. p. 140. 130 europeia. Sobre os artistas de sua época, um imenso silêncio, quando não uma crítica explícita, conforme veremos no capítulo seguinte. Se podemos falar de influência na visão de Iberê sobre sua obra, ela se dá mais como uma influência da tradição à qual se filia e de que pretende ser co-participante do que uma referência direta a esse ou aquele artista. Ao lançar mão de um passado distante ou de um conjunto consagrado (ou sagrado) de artistas como referências de sua obra, procura-se resolver dois problemas. Sem indicar com precisão aspectos, características ou nomes, escapa-se do problema da influência, a grande sombra pairando sobre a arte moderna. Ao mesmo tempo, filiar-se a esses grandes nomes significa assegurar-se de sua inserção na história da arte ocidental – resposta tipicamente moderna que possibilita, simultaneamente, originalidade e reconhecimento. 3.1.4.2 A crítica à vanguarda180 como afirmação da tradição e do moderno Um aspecto que se relaciona diretamente à questão da tradição e também às reticências e silêncios de Iberê em falar de suas influências (fundamentalmente de suas influências no que diz respeito aos artistas de sua época, e não à grande tradição europeia de forma genérica, conforme já vimos), é sua frontal crítica aos experimentalismos que caracterizam a arte contemporânea nos anos 1960 e 1970. Antes da crítica à arte contemporânea, já no ano de 1957, em carta dirigida a Mario Carneiro, Iberê Camargo criticava a arte de sua época. Em uma espécie de desdém com o abstracionismo geométrico, Iberê assim escrevia a respeito de uma obra que lia à época: “Estou lendo um livro intitulado Contre l'art abstrait, de Robert Rey, da Flammarion. É um livrinho pequeno, sessenta páginas apenas. Curioso que não traz prefácio, nem uma palavrinha ao menos. Parece o grito de alguém que se encheu e que fugiu do círculo dos donos do pensamento e do negócio, para falar e dizer o que pensa. Pelo jeito parece que 180 Vanguarda segundo o conceito de Iberê, conforme já advertimos. 131 ninguém lhes quis fazer companhia nessa empresa perigosa que é falar contra os quadradinhos e redondinhos”.181 A crítica de Iberê contra a arte abstrata especificamente geométrica (como deixa claro no uso dos termos “quadradinhos e redondinhos”) acontece justamente no momento em que o artista realizava obra bastante geometrizada, através de naturezas-mortas e composições de objetos do cotidiano de sua casa, conforme atestam algumas gravuras e desenhos desse período182. É dessa mesma época, o final dos anos 1950, a consciência que o artista começa a ter de estar fora daquilo que denomina vanguarda. Por certo, a referência de suas declarações dirige-se, principalmente no caso brasileiro, à experiência do movimento concretista e ao radicalismo do movimento, que se daria com a Exposição Nacional de Arte Concreta (São Paulo, 1956, e Rio de Janeiro, 1957) e encadearia o movimento neo-concreto de 1959. No mesmo ano de 1957, Iberê escreve em outra carta endereçada a Mario Carneiro: “(...) não me queixo por não estar entre os que se dizem vanguarda”183. A partir daí, essa consciência de sua separação das vanguardas torna-se cada vez mais não somente uma constatação, mas uma atitude frontalmente contrária aos experimentalismos dos anos seguintes. Iberê, já no final dos anos 1960, plenamente consciente de sua trajetória artística e negando as novas experiências que fugiam dos suportes tradicionais, escreverá que “a arte não é conceito nem experimento”184. Sentindo-se excluído das exposições e do debate crítico da época, declarará no mesmo texto que: “(...) as obras que não são participantes e comunicantes (participação e comunicação no sentido dado pela referida crítica) são sumariamente expurgadas dos salões, seu julgamento torna-se rigoroso”185. Ainda dentro de sua crítica à arte contemporânea, o artista utilizar-se-á de termos como “consagração do vale-tudo” e “imposturas”, tradicionais termos utilizados pelos defensores da arte moderna. 181 Correspondência de Iberê Camargo par Mario Carneiro. Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1957. In: CAMARGO, Iberê/ CARNEIRO, Mario. Correspondência. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Centro de Arte Hélio Oiticica/RioArte, 1999. p. 119. 182 As obras serão oportunamente estudadas nos capítulos posteriores, mas não agora, quando nosso objetivo é analisar o discurso do artista. 183 Correspondência de Iberê Camargo par Mario Carneiro. Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1957. In: CAMARGO, Iberê/ CARNEIRO, Mario. Correspondência. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Centro de Arte Hélio Oiticica/RioArte, 1999. p. 123. 184 CAMARGO, Iberê. “Fiel à arte” (1968) In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 132 185 Id. Ibid. 132 Em 1969, Iberê voltaria a atacar a arte contemporânea, dessa vez em artigo publicado no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Novamente, sua crítica dirige-se aos experimentos que têm por base a exploração dos sentidos humanos: “O artista com os seus “happyning” [sic], segura o transeunte pelas abas do casaco, como fazem certos vendedores de roupas feitas. O apelo a todos os sentidos do homem, na experiência da obra de arte, apenas consegue transformá-la em objeto lúdico.”186 O radicalismo de seu libelo contra a experimentação dos anos 1960/70 o levará a recuperar categorias artísticas clássicas, como a velha separação wölffliniana entre clássico e barroco: “Não obstante negar-se a tradição com ênfase e, às vezes, até com arrogância, a arte continua estruturada nos ritmos do barroco, com seus contrastes de planos no abismo dos ocos ensombrados, ou, então, na serenidade da linha helenística, ou ainda nos moldes dos antigos totens.”187 Fora essa rememoração da teoria do linear e do pictórico de Wölfflin, é importante notarmos que temos aqui provavelmente a chave de um dos problemas de Iberê em relação ao experimentalismo contemporâneo. Mais do que um problema de uso de novos materiais, novos meios de expressão, novos suportes e novos sentidos convocados para a experiência estética, o que parece estar em questão é novamente o problema da tradição. Conforme o texto supracitado deixa transparecer, o pecado maior da arte contemporânea, segundo Iberê, é seu abandono da tradição. Ainda que a modernidade tivesse sido estruturada sob a “tradição da ruptura”, não obstante era de tradição que falávamos até então e não do “rompimento da tradição”, tal como ele define ao se referir já ao final de sua vida – ao contemporâneo: “agora que se rompeu a tradição, que o conceito de Arte está em jogo, merda virou arte”188. O momento da arte contemporânea para Iberê, portanto, é justamente o do abandono da tradição. No entanto, parece-nos que a visão de Iberê não é a da consciência de uma ruptura essencial surgida a partir da arte contemporânea, tal como 186 CAMARGO, Iberê. Sem título. Texto publicado no Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 24 de dezembro de 1969. 187 Id. Ibid. 188 CAMARGO, Iberê. Entrevista In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 44. 133 defendem teóricos como Arthur Danto, o que aportaria um momento artístico novo, com novos desafios e possibilidades. O que notamos em seu discurso (e é importante salientarmos, mais uma vez, que se trata aqui do discurso do artista e não de seu trabalho artístico - este último em constante diálogo com a contemporaneidade, conforme veremos no capítulo final) é fundamentalmente um apego à modernidade que não o faz compreender a narrativa da história da arte, o que lhe possibilitaria estabelecer elos entre a arte anterior e a arte contemporânea, tal como Noel Carroll define o problema da impopularidade da arte contemporânea. É isso (essa falta de estabelecimento de tais elos) o que provavelmente o fará responder, ao fim de sua vida, em entrevista a Lisette Lagnado, quando perguntado sobre as instalações contemporâneas: nada me dizem”189. Uma falta de elos históricos no entendimento de que mesmo o que ele via como novo, de certo modo (e pensamos que esse “certo modo” se chama, entre outros nomes, de influência), estava ancorado no velho é o que o fazia exclamar que “a vanguarda de cadeira cativa vai clamar pelo novo, sempre novo, supernovo”190. Seu ataque ao que chama de vanguarda, portanto, é justamente a afirmação, uma vez mais, de seu compromisso com a tradição, com o ensinamento dos mestres do passado, com a técnica tradicional e com o métier artístico legado pela cultura ocidentaleuropeia. Mas não nos parece que seja apenas isso. A crítica de Iberê Camargo à arte contemporânea, afora as questões de defesa da tradição e da sua posição de artista moderno, parece deixar encoberta uma questão mais profunda. Ao afastar de seu campo de interesses a arte que se fazia em sua época, de certa forma, Iberê também procurava afastar (ainda que isso não esteja explícito no discurso do artista) a possibilidade de “contaminação” por essa arte e, portanto, de exposição às influências de seus contemporâneos. Essa parece também ser a causa não aparente da recorrente necessidade de afirmação da sua solidão artística e de seu não-pertencimento a grupos ou movimentos, conforme veremos a seguir. 189 Idem, p. 45. 190 CAMARGO, Iberê. “Fiel à arte” (1968) In: LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 140. 134 3.1.4.3 A solidão artística e a aversão às teorias Identificamos no discurso de Iberê, ao longo de toda a sua vida, paralelamente à sua defesa da tradição, uma constante reivindicação de sua característica como criador solitário. Conforme observa Vera Beatriz Siqueira, tal reivindicação apresenta-se em muitos momentos como uma “posição de independência quase fanática”191. A solidão artística de Iberê diz respeito fundamentalmente a um não-engajamento a grupos e movimentos artísticos que surgem ao longo de sua trajetória. Já em 1945, o artista assim declarava: “não me filio a nenhum pintor ou escola simplesmente porque há muito tempo estou filiado a mim mesmo”192. O artista é enfático em relação a isso, o que deve ter contribuído sobremaneira ao estabelecimento também por parte da crítica, como já vimos, dessa sua qualidade distintiva como um padrão nos textos sobre o artista. Também é verdade que essa relação entre o discurso do artista e do crítico se estabelece como uma relação complexa, onde os dois polos a todo instante intercomunicam-se, causando influências mútuas. Dessa maneira, é possível também que o discurso de Iberê tenha contribuído para a construção do discurso crítico, mas simultaneamente tenha sido construído por ele. É desse modo que Iberê Camargo fará declarações incisivas, do tipo: “não nasci em cacho. Nasci só e morrerei só”193. Sua solidão, a importância desta para o discurso construído em torno de sua originalidade e a consequente (segundo o discurso moderno) imunidade quanto às influências ficam mais claras quando o artista assim se manifesta: “sempre fui um caminhante solitário. Toda a minha relação com essa ou aquela tendência foi temporária ou mera coincidência”194. Essa tentativa pública de criar um hiato entre sua obra e a dos outros artistas e movimentos é que o fará também declarar, por exemplo: “nunca me aproximei de pintores geométricos. Não aceito limitações de linguagem” 195. 191 SIQUEIRA, Vera Beatriz. “Individualidade e cultura. Apreensão crítica das poéticas de Goeldi, Segall e Iberê Camargo”. In: Revista Concinnitas, ano 4 nº 5, dezembro de 2003. Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. p. 109. 192 Entrevista concedida à Revista do Globo, Porto Alegre, 13 de outubro de 1945. 193 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 42. 194 Id. Ibid. 195 Id. p. 20. 135 Conforme veremos, essa declaração, se tem sua validade no que diz respeito ao fato de Iberê Camargo não ter tido uma participação no movimento abstrato geométrico brasileiro, não encontra pleno amparo em sua produção artística. O que aparentemente poderia ser visto como meramente uma característica de personalidade ou, quem sabe, uma dificuldade de engajamento no cenário artístico do centro do país, para Iberê, é uma necessidade artística. Necessidade não apenas pessoal, mas que Iberê Camargo também generaliza como condição à excelência artística. Em entrevista concedida a Claudio Mello e Souza, publicada no Jornal do Brasil em 1958196,Iberê assim declara: “Ao contrário de repetir ou copiar, o artista deve procurar a si mesmo, buscar o que nele difere dos outros. O artista deve ser um diferenciado. Nisso está a sua afirmação e sua importância. Mais vale ser um verme que aparentar ser um leão”197. Em entrevista a Anna Letycia Quadros, na revista Para Todos, em 1954, declara: "em arte, há um só caminho, solitário e próprio de cada artista, que se fecha com ele mesmo, como acontece com o sulco que o barco deixa sobre a água à sua passagem"198. Essa solidão, defendida e aparentemente praticada pelo artista, em alguns momentos esbarra em certo ar rempli de soi-même, característica que identificamos também como fundamentalmente moderna. É assim que o artista declarará: “ainda não sofri impasse no meu fazer de pintor”199. Ou ainda: “dúvidas não me assaltam”200. Prováveis ecos do "Je ne cherche pas. Je trouve" picassiano. Essa atitude, que o fará dizer também: “como referi, sigo meu caminho sem olhar para os lados. Tenho a visão fixa na minha visão interior. Sou um ermitão, cuja religião é a arte”, permite-nos entender o arcabouço mental201 a partir do qual o artista também 196 Esta entrevista é parte de uma série de entrevistas sobre gravura brasileira, que contou com nomes como Oswaldo Goeldi, Faya Ostrower, Lygia Pape, Edith Behring, Darel Valença, Marcelo Grassmann e Livio Abramo. 197 Entrevista de Iberê Camargo concedida a Claudio Mello e Souza. Jornal do Brasil, 05 de janeiro de 1958. Apud. CAMARGO, Iberê/ CARNEIRO, Mario. Correspondência. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Centro de Arte Hélio Oiticica/RioArte, 1999. p. 184. 198 “Só há um salão: o salão moderno”. Entrevista de Iberê Camargo para Anna Letycia Quadros. Revista Para Todos, Rio de Janeiro, 1958. 199 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 23. 200 Idem, p. 43. 201 O arcabouço mental público. Como nunca é demais repetir, estamos fazendo um estudo dos discursos 136 afirmará sua rejeição às teorias da arte. Já vimos o quanto a crítica contemporânea não o interessava, mas, além disso, havia em Iberê uma rejeição às teorizações sobre arte. Respondendo a uma indagação feita por Lisette Lagnado a respeito das teorizações de Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica, assim escreve: “as teorias não me seduzem, são armaduras que imobilizam. Elas esterilizam a arte”. Dentro do tema que estamos estudando, é possível supor que essa fuga a teorizações responda também a uma necessidade análoga à da declaração de sua solidão artística. O que provavelmente essa negação acoberta (entre outras questões aqui não relevantes) é a necessidade de não-esclarecimento teórico das questões de influência em seu trabalho. Um trabalho no sentido de deixar velado esses problemas a partir da não-necessidade de investigação teórica. É evidente que Iberê Camargo reflete, de modo muito profundo, sobre sua obra. Obra que é o eixo no qual se estruturou toda uma vida. Mas nos referimos aqui a uma reflexão específica – a busca de uma teorização que poderia revelar aspectos contraditórios ao universo discursivo criado pelo artista e sua crítica. Assim, a ênfase em um fazer que “ama as formas e as cria, sem outra intenção que objetivá-las”202, cria uma distância dos problemas que provavelmente o artista, em sua condição histórica e contextual, não conseguiria resolver de maneira teórico-discursiva (ainda que as tenha resolvido em sua própria obra, conforme indicaremos ao analisar seu trabalho). 3.1.4.4 Influências: negações, silêncios e reticências “Há gente caminhando dentro de mim”203. Assim começa um conto, de mesmo título, escrito por Iberê Capítulo. “Há vozes, há gente falando dentro de mim” 204, diz em e seu impacto na construção de sua persona pública, e não uma investigação psicanalítica. 202LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 23. 203 CAMARGO, Iberê. “Há gente caminhando dentro de mim”. In: _____________. /MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 69. 204 Idem p.71 137 outro trecho de sua narrativa. Narrativa sentimental, lembrando dos lugares de sua infância e escrita no final de sua vida. Se nos é permitido explorar a prosa além do caráter memorialista imprimido pelo autor e pensarmos no artista, caberia perguntar que gente e que vozes são essas. Ouvir essas vozes, identificar essa gente que caminha dentro do artista é objetivo desta tese. No entanto, neste momento, é preciso ver não a “gente que caminha”, mas o véu que foi criado por Iberê Camargo entre ela (a “gente”) e o seu discurso. Em diversas declarações, Iberê afirma-se não-influenciado por artistas específicos cujos trabalhos eram objeto de comparação com os seus. Assim, afirma sobre o mestre Lhote, ao referir-se sobre a influência teórica que sofreu: “não que minha obra tenha influência da pintura de André Lhote – esta só se fez sentir nos trabalhos executados na Academia”205. O mesmo fala de outro mestre, Guignard: “a sua obra teve breve influência sobre o meu trabalho, mas marcou-me para sempre a pureza do seu espírito (...) A minha sensibilidade era muito diversa da do Guignard”206. Sobre Portinari, o mestre moderno por excelência no Brasil, é ainda mais enfático. Ao ser perguntado sobre o artista que exerceria na atualidade a mesma presença que teve Portinari (professor, ainda que brevemente, de Iberê), assim se refere: “não vejo no pintor de Brodósqui a figura que a pergunta insinua. Mitos também se fabricam. Os nossos, poderíamos etiquetá-los: ‘made in Brazil’”207. Assim, uma a uma, vão-se desconstruindo as influências mais diretas dos mestres sobre o seu trabalho, restando apenas essa influência vindo do aprendizado do métier, das técnicas de pintura, de um arcabouço teórico-prático que é sempre posto como uma questão não relacionada com sua poética específica. Apenas com De Chirico reconhecerá alguma semelhança: “com De Chirico, sinto afinidade porque também expressa a solidão e o mistério que envolve as coisas”208. O problema da influência de modo geral, como questão genérica em seu trabalho, foi alvo de inquirição da entrevista de Lisette Lagnado. Algumas declarações de Iberê Camargo são significativas para compreendermos seu posicionamento frente a essa 205 Depoimento de Iberê Camargo a Jacqueline Tesnière, 1969. In: CAMARGO, Iberê/MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 197. 206 Declaração de Iberê Camargo In: HERKENHOFF, Paulo. “Alguns do Múltiplo Iberê”. In: BERG, Evelyn et alii. Iberê Camargo. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. p.57. 207 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 19. 208 Id. p. 21. 138 questão. Em dois momentos em que é questionado mais diretamente, o artista silencia ou se esquiva de responder de forma objetiva. Primeiramente, Lagnado pergunta a Iberê Camargo sobre “contaminações retinianas” sobre seu trabalho, especificamente se essas contaminações seriam menos importantes quando o artista chega à maturidade (a entrevista estava explorando a importância de sua viagem à Europa e o conhecimento das obras de artistas in loco, no seu período de formação). A resposta de Iberê é provavelmente a mais lacônica de toda a longa entrevista: “não sei” 209. Mais adiante, a autora volta a tocar no tema, agora chamado por ela de “coincidências”. Pergunta Lagnado: “O que você acha de 'coincidências' que ocorrem frequentemente entre artistas? Seriam 'sincronicidades'?” Iberê responde: “O círculo, o quadrado, o triângulo, o homem, o cavalo, tudo enfim que povoa o mundo é tema das artes plásticas, sem dono exclusivo”210. As “coincidências” ou “sincronicidades” são tomadas, portanto, como questões que dizem respeito mais ao mundo do que à arte, afastando, portanto, a possibilidade de discussão artística desses problemas. Finalmente, questionado de modo ainda mais direto sobre tais coincidências, quando Lagnado sugere que ciclistas também foram assunto pictórico de outros artistas, Iberê Camargo responde: “tenho por princípio não emitir opinião sobre a produção de colegas. Um quadro é forma, somente forma. Assunto, motivo, nada diz para o pintor”. No entanto, como Iberê Camargo escreve, em 1964, referindo-se à aprendizagem das técnicas da gravura: “sei que não é fácil fazer seu o que é de todos, mas é exatamente isso que faz existir Rembrandt, Goya, Piranesi e todos os outros que conhecemos”211. Essa consciência da dificuldade parece mais evidente dado o conhecimento que o artista possuía a respeito da arte de seu tempo, conhecimento considerado imprescindível por ele: “se não sintonizasse com o que ecoa no mundo da arte, estaria artisticamente morto”. Ainda que essa “sintonia” seja um fato importante para Iberê, o artista segue negando as influências ou semelhanças com os artistas de sua época. Quanto a Francis Bacon, declara: “minha afinidade com Francis Bacon é por ambos sermos figurativos (...) Meu caminho é outro”212. No que diz respeito aos expressionistas abstratos, é taxativo. 209 Id. p. 22 210 Id. p. 56. 211 Carta a San Yu Kim, datada de 9 de junho de 1964. Apud ZIELINSKY, Mônica. Iberê Camargo Catálogo Raisonné: volume 1/Gravuras. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. p. 52. 212 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 31. 139 Sobre Pollock e De Kooning, declara: “[os carretéis] estão solidamente interligados por linhas de força, como os corpos celestes no sistema planetário. Por isso não sinto nenhuma afinidade com Pollock ou De Kooning”213. Ainda sobre De Kooning, tomando como justificativa sua condição de artista sul-americano, escreve: “como sou um pintor latino-americano, amanhã dirão que eu estou imitando a maneira do pintor De Kooning. Cada um de nós paga o preço de nosso nascimento” 214. Entretanto, é curioso notar que o artista se diz um “expressionista abstrato” em declaração datada de 1964: “o expressionismo abstrato, onde me situo, nos conduz ao nascedouro da forma. Com ele penetramos na cratera e vamos à profundidade do vulcão que existe dentro de nós, onde a emoção se agita como lava”215. Essa indicação de sua filiação artística a um movimento (expressionismo abstrato) é algo bastante raro e nos conduz ao último ponto deste subcapítulo: os momentos em que podemos identificar as manifestações de Iberê, ainda que veladamente, de alguma influência em sua obra. Ao estudarmos os discursos de Iberê, não identificamos uma clara referência às suas influências, a não ser em um caso; no entanto, pensamos que algumas referências indiretas a artistas parecem articular a enunciação desse interdito. Sobre a citação direta ao recebimento de influências, apenas em uma entrevista, concedida a Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale, em 1987, para a obra Abstracionismo Geométrico e Informal: a Vanguarda Brasileira nos Anos Cinqüenta, 216 vemos a citação de influências. Tais citações surgem sempre em uma perspectiva negativa e ligadas à sua primeira formação. Assim, o artista dirá, em relação à sua chegada ao Rio de Janeiro nos anos 1940: “quando cheguei ao Rio, fiquei muito perdido e sofri influências”217. A respeito desse mesmo período, relata: “pintei um quadro que pareceu com Portinari, até que era mais que Portinari. Mas pintei!”218. Sobre as influências na Europa, comenta sobre seu retorno e a necessidade de livrar-se das influências lá recebidas: “eu tinha chegado da 213 Id. p. 27. 214 CAMARGO, Iberê. Carta de 1984. Apud: CARNEIRO, Gilmar. “As Cartas de Iberê”. In: Jornal do MARGS, setembro de 2002. 215 In: “Uma chave para abrir o mundo mágico do quadro”. Correio do Povo, 8 de abril de 1965. Apud: ZIELINSKY, Mônica. Iberê Camargo - Catálogo Raisonné: volume 1/Gravuras. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. p. 71. 216CAMARGO, Iberê. Entrevista, In: COCCHIARALLE, Fernando e GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal. Rio de Janeiro: Funarte, 1987 (reimpressão, 2004), pp. 180 - 186. 217 Idem, p. 183. 218 Ibid., p. 184. 140 Europa com muita influência e queria reencontrar as cores da minha palheta”219. Ressaltase, em todas essas afirmações, o ponto de vista negativo da influência e o fato de esta ser caracterizada com um momento inicial de aprendizado. Esse momento é sucedido pelo encontro das “cores de sua própria palheta”, o que corresponde a uma ideia de expurgo das influências recebidas. No que concerne à referência indireta de outros artistas, parece-nos significativo um texto que Iberê dedica a Guignard. O texto, escrito em 1992, descreve algumas características do mestre que parecem ecoar as próprias características de Iberê. Assim, vemos frases como “ele é um moderno descendente dos primitivos italianos” 220, ou quando se refere a seu desenho, falando de uma “linha incisiva”221. A importância do conhecimento do ofício e o desdém pelas teorias parecem também refletir características do próprio Iberê: “artesão exigente, preparou suas telas, seus vernizes e seus instrumentos de trabalho, como faziam outrora os velhos mestres”222. “Desdenhava as teorias. Sua bússola era a intuição, essa estrela que norteia o artista”223. Aos ler essas caracterizações, parece-nos que o que estamos vendo é a escolha de um artista como veículo para expôr as próprias características pessoais de Iberê. Ao mesmo tempo, essa escolha não é casual. Ao eleger Guignard, o que transparece em suas palavras é a identificação necessária a essa escolha, identificação que, vindo de uma experiência de ensino, revela afinidades passíveis de serem caracterizadas como a declaração, ainda que encoberta, de suas influências. Do mesmo modo, ao falar de Goeldi, transparecem características análogas. Iberê Camargo escreverá sobre o artista, em homenagem fúnebre datada de 1965: “dono de uma visão trágica e silenciosa dos homens e das coisas”224, ou: “às vezes, ele nos dá o sortilégio dos pátios abandonados e das ruas desertas”225. Tais referências lembram a visão de mundo pessimista de Iberê, bem como seus “pátios da infância”, tantas vezes relatados e retratados pelo artista. Descreve também características formais, como “a 219 Id. Ibid. 220 CAMARGO, Iberê. “Guignard” In: ______________./MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 129. 221 Idem, p. 131. 222 Idem, Ibid. 223 Id. Ibid. 224 CAMARGO, Iberê. “Oswaldo Goeldi”. In: ______________./MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 125. 225 Idem, p. 127. 141 linha nervosa, incisiva, esquemática, quase bárbara, cria figuras que pertencem ao seu próprio mundo”226. Estará falando de Goeldi ou de si mesmo? Mesma dúvida quando o vemos escrever que: “a sua força expressiva está em permanecer autêntico, fiel a si mesmo, indiferente à crítica que largo tempo o relegou”227 – frase que é quase um resumo da visão pessoal que Iberê possui a respeito de sua condição como artista. Esses são os dois únicos textos sobre artistas específicos escritos por Iberê. Neles, transparecem relações com seus mestres que podem ser vistas, conforme procuramos evidenciar, como possibilidades de uma enunciação velada de suas influências. No entanto, parece mais importante atermo-nos aos seus silêncios. Falar apenas de seus mestres – de certo modo, mais uma recorrência ao seu conhecido respeito à tradição – revela-nos a importância daquilo de que não se fala. Notemos, por exemplo, os silêncios ou a negação em relação aos pintores expressionistas abstratos, ao Grupo CoBrA ou, ainda, ao tachismo, este último apenas com uma breve – ainda que significativa referência: “na minha opinião, o tachismo devolveu à pintura a supremacia da intuição, do sentimento. Com sua aparente desorganização, destruiu a rigidez geométrica do concretismo”228. Em 1994, Iberê escreve um conto intitulado “O Duplo”229. O texto, escrito em primeira pessoa, relata a experiência do narrador/personagem ao ver sua própria imagem pelo retrovisor do ônibus onde se encontra, ainda que com trajes e gestos diferentes dos seus. O outro parece impassível e alheio à presença do narrador: “ele não me terá visto? Impossível, estamos próximos”230. Mais do que isso: “parece nem se importar em ser réplica”231. O personagem apavora-se com “a ideia do indivíduo ser dois” 232. Nesse pavor, salta do ônibus: “falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim” 233. Faltaria coragem para Iberê, o artista, ver os outros que habitavam sua obra? Buscamos demonstrar neste capítulo os fundamentos que fizeram Iberê refugiarse, em seu discurso público, na pretensa ideia de o indivíduo ser um em seu processo 226 Id., Ibid. 227 Id. Ibid. 228 LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 20. 229 CAMARGO, Iberê. “O Outro”. In: ______________./MASSI, Augusto (org.). Gaveta dos Guardados. São Paulo: EDUSP, 1998. pp. 37-8. 230 Idem, p. 37. 231 Id. Ibid. 232 Id. p. 38. 233 Id. Ibid. 142 criativo. Esses fundamentos encontram-se na importância que a modernidade conferiu à originalidade, somada ao entendimento dessa originalidade como uma característica contrária à influência. Iberê, “mestre moderno” por excelência, identificou-se com esse discurso e, a partir dele, forjou sua visão de mundo. Acrescenta-se a isso o seu empenho em construir-se como grande artista frente à adversidade que sua condição periférica lhe infligia. Conforme declara em entrevista a Anna Letycia Quadros, perguntado sobre o que considera um artista criador, assim responde: “No sentido exato da palavra, seria aquele que dá um ponto de vista novo na arte e não aquele que traz um elemento formal usado nessa ou naquela escola e os emprega numa variação temática, seja ela de ordem figurativa ou abstrata e nesse sentido, sem citar nomes, nem exemplos, não surgiu ninguém no Brasil. Se se admitir, porém, que o criador também é o artista que derivando seus elementos de uma escola se diferencia pela temática, pelo exótico, etc, etc, seremos forçados a admitir ainda que nenhum entre nós está adiante do seu contemporâneo, no sentido de arte de "avantgarde"234. É provável que Iberê Camargo tenha escolhido para si a tarefa de ser esse artista criador de que fala em sua resposta. Para isso, teve como guia para essa empreitada a visão de mundo moderna sobre a qual ergueu sua obra. Não há dúvida de que o artista atingiu, como poucos, a tarefa de ser um artista criador. No entanto, não nos parece que o objetivo alcançado tenha se dado sob as mesmas premissas segundo as quais pensava estar atingindo. “Os outros” sempre habitaram a obra do artista, ainda que tenha sido difícil para este vê-los ou mesmo reconhecer a sua existência. Ver “os outros” que vivem na obra de Iberê Camargo, explicar como se engendram a partir de seu desenho, será o objetivo de nosso último capítulo. 234 “Só há um salão: o salão moderno”. Entrevista de Iberê Camargo para Anna Letycia Quadros. Revista Para Todos, Rio de Janeiro, 1958. 143 Capítulo II - Iberê Camargo e o desenho Voici une ligne qui pense. Henri Michaux 1. Considerações gerais sobre o desenho de Iberê Camargo O desenho está presente na produção artística de Iberê desde seus primeiros passos até seu último momento. Os primeiros registros que possuíamos datam da infância e sabemos que, em seu leito de morte, em delírio, buscava com desespero traçar seus últimos desenhos. Sendo assim, pensar o desenho na produção artística de Iberê Camargo é lançar-se no que é provavelmente o campo mais vasto de estudos de sua obra ao pensarmos tal obra de uma perspectiva histórica (diacrônica). Os trabalhos em desenho de que dispomos para a análise são aqueles presentes no acervo da Fundação Iberê Camargo, o qual se constitui do espólio do artista a partir da guarda dessas obras por sua viúva, Maria Camargo. Dado que ainda não possuímos a catalogação completa de sua obra de desenhos, com o conjunto de sua obra, incluídos os trabalhos vendidos pelo artista a coleções públicas e privadas ao longo de sua longa trajetória, esta pesquisa concentra-se no acervo acima referido235. O acervo da Fundação Iberê Camargo é constituído de cerca de três mil e quatrocentos desenhos. Esses desenhos datam de 1928 até 1994, portanto, abrangendo da infância do artista até o ano de sua morte. Uma breve análise quantitativa de seus desenhos permite-nos inferir algumas 235 Esta catalogação está em andamento na Fundação Iberê Camargo, sob a coordenação de Mônica Zielinsky. Uma série de catálogos raisonnés deverão ser publicados nos próximos anos. 144 características importantes dessa obra (bem como algumas surpresas). Dentro da variedade de temas presentes na obra, destacamos o caráter figurativo da imensa maioria desses desenhos. Podemos identificar trabalhos de caráter abstrato em menos de seis por cento de sua obra (cerca de cento e noventa e três abstrações). Já a figura humana desempenha um papel central dentro de sua obra de desenhos, representando cerca de oitenta por cento de toda a sua obra figurativa e cerca de setenta e cinco por cento de toda a sua obra de desenhos. Surpreende-nos, desde já, um número tão significativo de desenhos de figura humana, se pensarmos que a figura dentro da obra mais conhecida de Iberê Camargo costuma ser identificada ocupando algum lugar no início da trajetória do artista, com suas obras em Porto Alegre, e em alguns poucos retratos quando de sua estada no Rio de Janeiro, antes da viagem para a Europa (ou seja: nos anos 1940), e a partir daquilo que se convencionou chamar de seu retorno à figuração, no início da década de 1980. Dos anos 50 até o final da década de 70, portanto, na maior parte da trajetória de Iberê, costumamos identificar seu trabalho com as imagens das naturezasmortas, que conduzirão aos carretéis, os quais, por fim, se transformam em figuras beirando o abstrato. É preciso, portanto, que examinemos essa “persistência da figura”236 em sua obra menos conhecida, principalmente se levarmos em conta que o desenho também é para Iberê – mais do que isso, é da natureza do próprio exercício do desenho – o lugar de experimentação, projeto e ensaio para as obras que têm uma circulação maior no circuito da arte (ainda que nosso propósito aqui não seja a análise do desenho como projeto para outra coisa que não o próprio desenho, já que não acreditamos que o devamos subordinar a outra técnica). Ainda que elemento fundamental na obra de Iberê, atestado pela quantidade de trabalhos e pela dedicação que devotava a essa prática de desenhar, o desenho não é visto pelo circuito da arte do qual Iberê participa como técnica de importância primeira em seu trabalho. No intuito de identificarmos essa pouca presença do desenho de Iberê em sua trajetória artística pública, é importante que vejamos, antes de começarmos a análise propriamente dita dessa obra, a inserção desse trabalho através de sua circulação em exposições e pelos textos que foram escritos sobre eles. Essas considerações 236 “Persistência do Corpo” é o título de uma exposição da obra de Iberê Camargo realizada em setembro de 2008, com curadoria de Ana Maria Albani de Carvalho e Blanca Brites, que já tratava desta característica, apresentando obras não apenas de desenho, mas também de gravura e pintura. 145 demonstrarão o hiato existente entre a importância do trabalho (para o próprio artista e para a compreensão de sua obra) e sua consideração pública. Tal diferença é uma das justificativas de um estudo do desenho de Iberê tal como fazemos nesta tese, razão pela qual se torna necessário, ainda que muito brevemente, analisarmos tal problema. 1.1 A circulação dos desenhos de Iberê: considerações gerais sobre as exposições e os textos dedicados a seus desenhos Quando investigamos o conjunto das exposições realizadas ao longo da vida de Iberê e mesmo após sua morte, notamos a presença do desenho compondo essas exibições como um elemento acessório à pintura e à gravura. Seguindo o modelo de apresentação dos desenhos como ensaio para outras obras (tal como forjado no século XIX) e como obra menos relevante – principalmente menos relevante do que a pintura –, o desenho tem pouco destaque específico e individual. Se procuramos exposições nas quais o desenho tenha tido uma atenção específica, ou seja, em que esteja apresentado individualmente, sua raridade é marcante. De todas as exposições individuais e coletivas da obra de Iberê Camargo, conseguimos identificar apenas treze exposições específicas de seu desenho, dentre as mais de setecentas exposições do artista listadas no extenso inventário do seu Catálogo Raisonné de gravuras. São estas as exposições, em ordem cronológica: * Guaches (Galeria Aliança Francesa, Rio de Janeiro, 1974). * Caderno de desenhos (Galeria Iberê Camargo da Universidade Federal de Santa Maria, RS, 1977). * Iberê Camargo: guaches (Christina Faria de Paula Galeria de Arte, São Paulo, 1978). * Caderno de desenhos (Museu de Artes do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, Porto Alegre 1979). * Iberê Camargo: pastéis (Galeria de Arte do Centro Comercial/ Galeria Tina Presser, Porto Alegre, 1980). * Iberê Camargo: retrospectiva de desenhos (Museu Guido Viaro, Curitiba, 1980). * Iberê Camargo – desenhos da série As criadas de Jean Genet (Galeria Usina, Vitória, 1986). * Iberê Camargo e Mariza Carpes: desenhos (Instituto Goethe, Porto Alegre, 1991). * Guaches (Instituto Goethe, Porto Alegre, 1991). 146 * Guaches (Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 1991) * Guaches (Galeria Iberê Camargo, Usina do Gasômetro, Porto Alegre, 1992). * Iberê Camargo: projetos e desenhos 1938-1941 (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Porto Alegre, 1995). * Iberê Camargo: um exercício do olhar (Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2001). O que se pode apreender dessa lista é que, além da importância menor dada pelo “mundo da arte” aos desenhos de Iberê no conjunto de sua obra, esses desenhos começam a ter um destaque apenas na década de 1970. Tal destaque coincide com a importância que o desenho começa a ter, como linguagem autônoma, a partir das exposições que passam a ocorrer nos principais centros artísticos mundiais. Como exemplo disso, lembramos que o Departamento de Desenhos do MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque) é criado em 1971, e sua primeira grande exposição de desenhos ocorre em 1976: “Drawing Now”, com curadoria de Bernice Rose. Se examinarmos os textos que tratam especificamente sobre os desenhos de Iberê, também notamos uma ausência de preocupação da crítica sobre essa extensa obra. Os textos que encontramos que têm como tema particularmente o desenho são os que seguem: Em catálogos individuais: * AYALA, Walmir. Guaches. Rio de Janeiro: Aliança Francesa, 1974. * BRITO, Ronaldo. Guaches. Porto Alegre: Galeria Iberê Camargo. * BRITO, Ronaldo, ROCHA, Luis Antonio. Iberê Camargo – Projetos e desenhos 1938-1941. * GONÇALVES, Flávio. Iberê Camargo: um exercício do olhar. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2001. Em artigos de jornais: * CANONGIA, Ligia. “Iberê expõe desenhos”. O Globo, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1980. * VERAS, Eduardo. “Desenhos inéditos de Iberê Camargo”. Zero Hora, Porto Alegre, 23 de outubro de 1999. Em exposições coletivas: 147 * Aquarelas, Porto Alegre: Center Park Hotel, 1994. O que mais nos chama a atenção nessa lista, afora sua exiguidade, é seu último tópico: as exposições coletivas. O que se nota é a ausência da obra de Iberê nas principais exposições brasileiras de desenhos. Se pensarmos em exposições que foram fundamentais para a reflexão sobre o desenho brasileiro, como “O Desenho Moderno no Brasil” (Coleção Gilberto Chateaubriand, Galeria de Arte do Sesi, São Paulo, 1993. Curadoria de Denise Mattar e Reynaldo Rols Jr.) ou “Caminhos do Desenho Brasileiro” (Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 1986. Curadoria de Evelyn Berg Ioschpe), ou em obras bibliográficas sobre o desenho brasileiro, como Mestres do Desenho Brasileiro, organizada por Jacob Klintowitz em 1983, Iberê Camargo encontra-se ausente de todas elas. Essa ausência leva-nos a refletir sobre a consideração que a obra de desenhos de Iberê Camargo tinha junto à dos outros grandes artistas brasileiros. O que nos parece é que, acima de tudo, o artista sempre foi visto como um homem da pintura e um mestre da gravura, mesmo quando o desenho já alcançava autonomia que lhe permitia ser apresentado por si mesmo. Além disso, essa pouca consideração nos conduz também à constatação do pouco conhecimento da crítica de arte a respeito dessa produção e às implicações que esse pouco conhecimento pode haver trazido para um entendimento mais aprofundado da obra de Iberê como um todo. Sendo assim, é possível tecermos algumas conclusões, a partir dessas breves considerações gerais sobre o desenho de Iberê Camargo. O desenho é constante ao longo de toda a sua trajetória artística. Mesmo em seu período de maior diálogo com a abstração, a figuração humana sempre esteve presente. No que se refere à sua circulação no circuito de arte, esse desenho não era tido como um elemento primordial em sua obra, já que poucas exposições foram feitas dando realce ao desenho, além da pouca participação do desenho de Iberê nas grandes exposições coletivas sobre o tema e da escassa bibliografia dedicada especificamente a seus desenhos. É justamente esse descompasso entre a importância dessa obra e seu pouco conhecimento e atenção por parte do “mundo da arte” a justificativa, sob um ponto de vista genérico, da necessidade de um estudo específico sobre esses trabalhos. Examinar a pertinência do desenho dentro dos problemas específicos desta tese será nosso objetivo a seguir. 148 2. Por que o desenho? Pensamos que o desenho, como técnica e meio de expressão artística, possui qualidades que nenhuma outra arte possui para analisar os problemas que ora trazemos nesta tese. Veremos a seguir algumas características gerais do desenho e como elas se articulam para a resolução das questões desta tese. Ao inquirir os desenhos de Iberê Camargo em busca de suas influências específicas e na reflexão mais genérica do problema da influência, pensamos nesse trabalho artístico não apenas como nosso objeto de estudo, ao qual dirigimos nossa atenção perscrutadora. O desenho, se é o nosso problema central, é também a explicação desses problemas. Se o desenho é emaranhado de interrogações, é bem verdade que também é fio condutor de suas próprias respostas. Não é possível ler o desenho como se lê um texto, ainda que a prática do desenhar seja talvez a mais próxima, na arte, daquela de escrever. No entanto, seguir seus traços é possível, e sua marca, tal como as pegadas daquele que se afastou, pode ser vista como o vestígio de algo à primeira vista ausente. O desenho é a marca deixada por essa própria ausência, a evidência inegável de uma passagem. É sinal de algo, mas também é esse próprio algo em si mesmo e no movimento de vir a sê-lo – ou, ao menos, aquilo que o artista nos deixa ver dele. A série de considerações gerais sobre o desenho que a seguir são elencadas servem, cada um delas ao seu modo, conforme veremos, como justificativas genéricas para a presença do desenho nesta tese. No subcapítulo terceiro, veremos as justificativas específicas do desenho em sua articulação com a questão da influência. No subcapítulo que segue imediatamente (2.1), faremos uma breve definição do que consideramos o desenho, antes de entrarmos nas justificações gerais propriamente ditas (presentes nos subcapítulos 2.2, 2.2.1 e 2.3) . 2.1 Definindo o campo: o que é o desenho? Viemos até aqui falando sobre o desenho. No entanto, parece-nos importante, 149 antes de nos aprofundarmos em seus problemas, que saibamos primeiramente o que ele é. Nesse sentido, para o estudo das características do desenho, especificamente do desenho de Iberê Camargo na investigação das relações de influência em sua obra, é necessário que definamos, ainda que de forma bastante genérica, o que entendemos quando falamos em desenho. Apontaremos algumas definições do conceito de desenho de forma breve e atendendo aos objetivos desta tese. Nossa intenção é indicar algumas definições suficientemente genéricas e objetivas que possam conter os principais aspectos do desenho, sem, no entanto, enclausurá-lo em uma especificidade que tolheria a liberdade de seu próprio caminho e de suas escolhas. Não falaremos também de características mais específicas ou sutis do desenho, já que elas serão descritas mais adiante e constituem o fundamento mesmo da importância do desenho para esta tese. O que queremos neste subcapítulo é definir um campo que possa ser um ponto de partida relativamente seguro a partir do qual poderemos prosseguir para áreas mais densas de significado na mesma medida em que são menos precisas e seguras. As definições mais genéricas sobre o conceito de desenho não diferem muito. A Enciclopédia Britânica define desenho (drawing) como "a arte ou técnica de produzir imagens sobre uma superfície, usualmente de papel, por meio de marcas, usualmente de tinta, grafite, carvão ou giz [crayon]"237. Do mesmo modo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa informa-nos, ainda de modo mais genérico, que desenho é a "representação de seres, objetos, ideias, sensações, feita sobre uma superfície, por meios gráficos, com instrumentos apropriados"238. As dificuldades de definir o desenho são expostas por Deanna Petherbridge, no artigo "Nailing the Limial: The Difficulties of Defining Drawing", em que escreve justamente sobre "a problemática questão de definir o que é o desenho"239. Por sua caraterística de ser "mais uma imanência, sempre apontando para um outro lugar"240, definir o desenho de forma absoluta é, para a autora, não apenas impossível, mas também algo inútil. Petherbridge opta, portanto, por não definir de forma cabal o desenho, deixando a 237 "drawing." Encyclopædia Britannica. 2009. Encyclopædia Britannica Online. 16 de Abril de 2009. <http://www.search.eb.com.w10048.dotlib.com.br/eb/article-9106184>. Tradução do autor. 238 "desenho". Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Ver. 1.0 Dezembro de 2001. 239 PETHERBRIDGE, Deanna. "Nailing the Limial: The Difficulties of Defining Drawing". In: GARNER, Steve. Writing on Drawing: Essays on Drawing Practice and Research. Chicago: The University of Chicago Press, 2008. p. 27. 240 Idem, p. 32. 150 questão em aberto. Esse parece o posicionamento atual das teorias sobre desenho, a evitação de qualquer definição que possa representar o represamento de algo que é por natureza fluído. No entanto, pensamos que, mesmo assumindo seu caráter aberto, algumas delineações gerais são possíveis. Em um clássico artigo, datado de 1920, Alfred M. Brooks define o desenho como: "Algo que é deixado quando um instrumento, caneta ou lápis, é arrastado [drag] sobre um pedaço de papel. Esse algo é uma linha. O que pensamos quando falamos de um desenho no sentido de uma figura é uma figura feita de linha. Em outras palavras, a soma de todas as linhas - a charge de um jornal ou uma cabeça de crayon por Rubens - a soma de todas a linhas, a figura, nos leva à compreensão do que é um desenho"241. Segundo a definição proposta por Patrick Maynard, algo semelhante, embora mais analítica que a anterior e com uma abordagem a partir do campo da filosofia, o desenho é "uma entidade espacial que significa ou representa basicamente relações espaciais" 242. Essas entidades espaciais, segundo Maynard, são unidimensionais, e trata-se das linhas. "Desenhar uma linha", para o autor (o que significa para ele o mesmo que simplesmente "desenhar"), acontece quando: "um objeto tal como a ponta do dedo, um pedaço de giz, lápis, agulha, caneta, escova [brush] (das de tipo pequeno, formalmente denominadas de "pincéis" [pencils]), possuem algo como uma extremidade [tip] a qual por conseguinte chamamos de "uma ponta" [a point] é intencionalmente movimentado (arrastado [draw]) por uma rota uniforme e contínua em uma superfície. Essa ação deixa como traço de seu trajeto um tipo de marca e isso é feito de propósito"243. Como podemos ver, as definições que aqui elegemos definem o desenho de modo bastante geral como a marca específica de uma ação (ainda que bastante genérica), sem nos atermos (por enquanto), às suas características artísticas. No entanto, tais definições nos servem por apresentarem alguns elementos que serão essenciais para nossa reflexão. Dentre esses elementos, é importante destacar dois: (1) a ação, ou seja, a consciência de que o desenho se refere a um fazer específico e (2) sua marca, ou seja, 241 BROOKS, Alfred M. "Drawing". In: The Art Bulletin, vol. 2, nº 3 (março de 1920), New York: College Art Association, p. 137. 242 MAYNARD, Patrick. Drawing distinctions. The varieties of graphic expression. Ithaca: Cornell University Press, 2005. p. 62. Trad. do autor. 243 Id. Ibid. Tradução do autor. Os termos de tradução mais dúbia foram deixados no corpo do texto, em seu original em inglês. 151 aquilo que essa ação estabelece no momento em que é realizada, a saber: a linha. Segundo o que nos propomos, esses, por enquanto, são os elementos gerais necessários para partirmos em busca daquilo que o desenho tem a nos mostrar. Como um viajante que faz uma longa caminhada por um território desconhecido, acreditamos que é necessário não sobrecarregarmos de muito peso nossa bagagem, ao mesmo tempo em que é essencial escolhermos com extremo cuidado aqueles elementos básicos que assegurarão nossa sobrevivência ao final do percurso. É sob essa perspectiva que pensamos a definição breve e genérica de alguns elementos vitais do conceito de desenho. 2.2 O desenho como linguagem autônoma A segunda justificativa desta tese fundamenta-se na consideração artística do desenho como linguagem autônoma e, portanto, a partir dessa evidência, na possibilidade de seu estudo não subordinado a outra expressão ou técnica artística ou como meio para explicação de qualquer forma de arte que não ele mesmo. Sendo assim, evidenciaremos aqui sua autonomia a partir da descrição, de forma sucinta, da história de seu caminho em direção a tal autonomia. A história dessa autonomia será também um elemento para entendermos as modificações do desenho na produção de Iberê Camargo a partir do ambiente artístico em que ele se insere (o qual é atravessado justamente pelos momentos em que essa autonomização se constitui) e do qual recebeu suas influências. Se o desenho sempre representou um elemento imprescindível na prática artística, é a modernidade a responsável por sua autonomia, como linguagem não tributária a nenhuma outra244. Se podemos pensar numa trajetória da autonomia do desenho desde que este começou a ser definido segundo suas características específicas (o que nos faria remontar aos escritos sobre desenho de Vitrúvio, no século I a.C., seguido pelas definições clássicas de Alberti, Da Vinci, Piero de la Francesca e Vasari, nos séculos XVXVI), foi, entretanto, em meados do século XIX, curiosamente a partir da pintura e do 244 Este subcapítulo deve muito de seus elementos históricos ao texto de Reynaldo Roels Jr, "O desenho moderno no Brasil". In: ROELS Jr., Reynaldo. O desenho moderno no Brasil. Sâo Paulo: SESI, 1993. 152 começo de sua trajetória rumo à autonomia de seus meios específicos, que a autonomia do desenho se constitui. É nessa época, em que a pintura começa a ser entendida como a aplicação de tinta sobre um suporte bidimensional, que, ao mesmo tempo, com o surgimento do impressionismo, o desenho perde sua importância como esboço ou estudo prévio para a pintura. O impressionismo, com seu elogio da pintura o mais próximo possível de seu objeto, o exercício da pintura a plein air, acaba por tirar do desenho sua importância. O próprio resultado dessa pintura é a do desaparecimento dos contornos nítidos, característicos da pintura fundamentada no desenho. A desvinculação do desenho em relação à pintura, se traz a diminuição de sua importância no que se refere a esta que era considerada a primeira entre as artes, ao mesmo tempo traz para o desenho uma independência até então não experimentada. Começa aí a experimentação do desenho como técnica válida por si mesma (identificamos, na história da arte, alguns exemplos dessa autonomia que são anteriores ao modernismo, mas são esparsos, como os desenhos de Dürer ou dos pintores holandeses do século XVIII, praticando o desenho sem uma relação direta com sua pintura, ou ainda em Bruegel, o velho245), como um exercício poético específico e não tributário a outra técnica (principalmente à pintura). Data-se dessa mesma época o grande surto de desenvolvimento industrial, que seria fundamentado pelo desenho técnico, base de toda projeção de maquinários industriais; portanto, esse desenho passa a ter uma validade até então não alcançada, ligada à racionalidade e à ideia de projeto. Ainda no século XIX, desenvolve-se outra prática de desenho autônoma: a caricatura, que tem em Daumier seu principal representante no período. Mesmo assim, ainda que com uma importância maior, que se refletia nas exposições públicas de desenhos (como os trabalhos de Toulouse-Lautrec, Van Gogh ou Seurat) e no seu colecionismo privado e público mais generalizado (mesmo que tenhamos exemplos esparsos de colecionismo anteriores a esse momento e sob 245 A obra de Charles de Tolnay, Bruegel Zeichnungen, publicada em 1925, buscava justificar que boa parte do desenho de Bruegel se constituía em um trabalho autônomo. Do mesmo modo, a obra do mesmo autor, History and Technique of Old Mater Drawings, publicada em 1943, já ressaltava que o desenho plenamente acabado e com o estatuto autônomo foi uma característica dos artistas do Norte da Europa (flamengos, holandeses e alemães) dos séculos XV, XVI e XVII e dos franceses dos séculos XVIII e XIX. No entanto, parece-nos que sua autonomia como um pensamento generalizado por parte dos artistas e dos teóricos da arte em todo o Ocidente é algo que começa a ser alcançado fundamentalmente a partir da modernidade e plenamente atingido nos anos 1960, conforme veremos. 153 outras condições246), o desenho seguia sendo uma arte considerada menor frente a artes mais importantes, como a pintura e a escultura. Duas características exemplificam sua menor importância. A primeira delas é que, considerado a partir de sua qualidade de incompletude, tornava-se ou um elemento de outra obra, como a pintura, ou um objeto para o estudo e a compreensão de obras acabadas, como a pintura ou mesmo a escultura. Surge, assim, o valor documental do desenho – documento que, então, é sempre dirigido ao entendimento de outras obras que não o próprio desenho. A outra característica é a do incentivo do exercício do desenho e de sua aprendizagem por parte de não-artistas, principalmente a partir da publicação da obra de John Ruskin, "Elements of Drawing", em 1857, em que o autor encorajava o exercício do desenho como forma de educar o olhar, através de sua prática e do estudo e cópia dos mestres do passado. Quanto à pintura, Johh Ruskin a reservava apenas aos artistas. É no século XX que o desenho alcançará sua autonomia completa. O desenho está presente em praticamente todos os movimentos artísticos modernos do século XX. Essa presença também é marca de sua importância para o modernismo, ao ponto de não ser possível entendermos a obra de artistas fundadores da modernidade no século passado, como Kandinsky, Matisse ou Picasso, sem conhecermos seu trabalho como desenhistas. Mais do que isso, alguns de seus trabalhos em desenho atingem uma autonomia plena, desligada de qualquer referência a outro meio de expressão artística. O caminho para a autonomia do desenho será ainda marcado pelas grandes exposições conjuntas de desenho, as quais servirão de análise do desenho ao mesmo tempo em que afirmarão sua condição como obra autônoma. Dentre essas exposições, destaca-se a já citada "Drawing Now", sob curadoria de Bernice Rose, em 1976. Essa exposição foi fundamental principalmente como reflexão sobre o desenho, não apenas em sua autonomia, mas pensado como uma linguagem 246 O colecionismo de desenhos surge no final da Renascença, primeiramente feito pelos próprios artistas, como material de estudo e cópia. Os colecionadores organizavam os desenhos em livros de desenhos, sendo famosos os libri dei disegni colecionados por Vasari, um de seus primeiros colecionadores (seus cinco livros formam a base de duas das principais coleções públicas de desenho, as coleções do Louvre e do Ufizzi). No século XVIII, na França, as coleções de desenhos deixam de ser organizadas em livros, e os desenhos começam a ser apresentados individualmente. Sobre a história do colecionismo de desenho e o surgimento das grandes coleções, ver: TOLNAY, Charles de. "Survey of the development of great public and private collections". In: __________. History and Technique of Old Mater Drawings. New York: Hacker Art Books, 1983 (1ª edição: 1943), pp. 76-86. 154 própria, lembrando a provocação de Richard Serra no ano seguinte ao da exposição, o que reflete seu espírito: "Drawing is a verb"247. Ainda que a exposição não tenha sido de desenhos de artistas emergentes, mas de obras dos anos 1950 e 1960 de artistas já então consagrados, como Joseph Beuys, Jasper Johns, Robert Rauschemberg, Frank Stella e Andy Warhol, ela marcou um momento de afirmação do desenho contemporâneo248. 2.2.1. A autonomia do desenho no Brasil As primeiras aulas públicas de desenho no Brasil surgiram ainda no século XVIII, com a formação da "Aula de Desenho Público e Figura", de Manuel Dias de Oliveira, em 1800, no Rio de Janeiro. Em seguida, com a chegada da missão francesa e a fundação da Academia de Belas Artes, em 1826, o desenho de base neoclássica sedimenta-se no país como o modelo artístico e o padrão para o ensino do desenho 249, com suas influências sendo percebidas até o início da modernidade artística. É a partir dos artistas da década de 1930 e 1940 e, sobretudo, na década de 1950, com os abstracionistas geométricos, que o desenho alcançará sua autonomia. Ainda que artistas do modernismo de 22 tenham o desenho como um elemento importante em seus trabalhos, muitos desses desenhos são exercícios para suas obras, principalmente pictóricas. Esse é o caso de artistas como Lasar Segall e Anita Malfatti, introdutores do desenho moderno no Brasil, mas cujos desenhos são subordinados à pintura, por seu caráter de estudo em relação a ela. Entre os primeiros artistas a imprimir um caráter autônomo ao desenho estão Di Cavalcanti, já na década de 1930, e Guignard, na década de 1940 (duas influências importantes na formação de Iberê Camargo). Entretanto, será na década de 1950 que o desenho brasileiro adquirirá seu amplo caráter de arte insubordinada e autônoma, através do abstracionismo geométrico. Corroboram essa interpretação (a respeito da autonomia 247 BORDEN, Lizzie. "About drawing: an interview" (1977). In: SERRA, Richard. Writings/Interviews. Chicago: Chicago University Press, 1994, p 51. 248 Sobre a exposição "Drawing Now", além de seu próprio catálogo, para uma análise crítica, ver o texto de Jordan Kantor, "Drawing from the Modern: After the Endgames". In: KANTOR, Jordan. Drawing from the Modern 1975-2005. New York: The Museum of Modern Art, 2005. 249 Dadas as características da pintura neoclássica, marcadamente linear, o ensino do desenho adquirirá importância fundamental nas aulas de Belas Artes durante todo o século XIX, refletindo-se ainda no século XX. 155 com o abstracionismo dos anos 50) Reynaldo Roels Jr., em seu estudo "O desenho moderno no Brasil", e Frederico Morais, em seu ensaio "Doze notas sobre o desenho"250. Como escreve Frederico Morais, é nos anos 1950 que "o desenho bate em salões e Bienais outras linguagens artísticas, como a pintura e a escultura" 251, com os trabalhos de desenhos geométricos de Volpi e os metaesquemas de Oiticica, quando ainda vinculado aos artistas concretos, ou ainda a fase geométrica de Milton da Costa e Ivan Serpa. Por seu caráter de obra acabada e sua ênfase no desenho por si mesmo, não vinculado a outro meio de expressão, essas obras modernas brasileiras da década de 1950 afirmam, de forma definitiva, o caráter autônomo do desenho brasileiro. O uso do papel como suporte para a obra (a obra autônoma, e não o exercício ou ensaio) terá no concretismo seu primeiro grande expoente brasileiro. Nas décadas posteriores, outros elementos seriam agregados a esse caráter autônomo, como a dissolução da ideia de completude, de obra finalizada com perfeição acabada, na consideração de seu caráter autônomo, quando trabalhos que lidam justamente com a incompletude, o rabisco, o traço aparentemente não finalizado, surgem como obras por si mesmas, em trabalhos como os de Ana Maria Maiolino, Anna Bella Geiger, Tunga, Carlos Zilio e Mira Schendel, entre tantos outros, situados nas décadas de 1960 e 1970 (principalmente). 2.3 A autonomia do desenho como objeto de estudo Assim como o desenho, como arte autônoma, é um filho da modernidade, da mesma forma a reflexão específica sobre o desenho a partir da consideração teórica de sua autonomia é algo recente na história da arte. É importante esclarecer que estamos pensando nessa reflexão não como sendo as definições do desenho, de suas especificidades e características próprias tal como desde o início da história da arte já ocorriam. Por sua própria qualidade, de disciplina, de exercício, o desenho sempre ocupou as reflexões teóricas da arte, entretanto, como prática auxiliar (ou ao menos conjunta) à pintura. Falamos aqui de uma reflexão sobre o desenho que o tome justamente como objeto autônomo, reflexão particular e não vinculada a nenhum outro 250 MORAIS, Frederico. Doze notas sobre o desenho. São Paulo: Galeria de Arte Nara Roesler, 1995. 251 Idem, p. 2. Sobre o desenvolvimento do desenho brasileiro em sua caminhada rumo à autonomia, além das obras supracitadas de Roels e Morais, consultar também: RAMOS, Adriana Sottomaior Ramos e. Desenho brasileiro - quatorze artistas contemporâneos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2006. Orientadora: Profª. Drª Loris Graldi Rampazzo. 156 meio. Deanna Petherbridge, no artigo supracitado "Nailing the Limial: The Difficulties of Defining Drawing", situa o início dessa reflexão autônoma sobre o desenho (principalmente separado da pintura) no livro de Philip Rawson, intitulado Drawing, de 1969. É interessante lembrarmos que a data de sua publicação possui proximidade com a criação do Departamento de Desenho do MoMa (1970), o que parece indicar que de fato data dessa época a preocupação com o desenho em sua especificidade. Ainda que possamos identificar autores preocupados com o desenho de forma específica desde a modernidade, como as reflexões de Kandinsky sobre a linha, ou os textos da Bauhaus sobre o desenho, ou ainda as páginas sobre desenho escritas por Matisse, parece-nos que as reflexões teóricas sobre desenho como arte autônoma e central são mais recentes. Além de Rawson, é importante lembrarmos textos surgidos nos anos 1980 e 1990, como o Dossier: Le dessin, a série de livros organizada por Gómez Molina (Las lecciones del dibujo, Los nombres del dibujo, Estrategias del dibujo, etc.), o livro sobre desenho contemporâneo Vitamin D: New Perspectives in Drawing, de Emma Dexter, a Histoire de la ligne, de Brusatin, ou ainda reflexões filosóficas sobre o desenho, como na obra Drawing distinctions - the varieties of graphic expression, de Patrick Maynard252. A fecunda produção atual de reflexões sobre o desenho aponta a importância dessa arte e a conquista plena de sua autonomia também no campo teórico. Essa característica apresenta-se então como nossa terceira justificativa para a importância de seu estudo, a partir da obra de Iberê, não como um trabalho tributário a outros trabalhos do autor em pintura ou gravura, mas que, visto em sua especificidade, indica a necessidade de uma reflexão teórica. 2.4. Características do desenho Até aqui, as justificativas elencadas indicam a importância e necessidade de um estudo do desenho de Iberê a partir de questões gerais. Este subcapítulo irá concentrarse no desenvolvimento de questões específicas do desenho que se articulam com as questões específicas desta tese. Assim, nossa análise aqui parte daqueles elementos do 252 No Brasil, podemos apontar, entre outros, o livro Disegno. Desenho. Desígnio, organizado por Edith Derdyk, ou ainda o dossiê Desenho, publicado pela Revista Porto Arte, organizado por Icléia Catani. 157 desenho que são chaves explicativas para as questões da influência e que, portanto, justificam não apenas por que o desenho pode servir como um importante meio para este estudo, mas, mais do que isso, pretendem mostrar que o desenho é o meio por excelência para estudarmos esses temas. Duas considerações são importantes para esclarecer este subcapítulo. Primeiro, as caraterísticas do desenho que aqui elencamos não pretendem abranger o rol de todas as propriedades que ao longo da literatura sobre o tema foram identificadas. Nossa intenção é apontar, entre essas qualidades, aquelas que mais se conformam ao nosso tema: o da influência. Em segundo lugar, as características provavelmente não abrangem todos os elementos passíveis de serem listados e examinados quanto às questões que pretendemos analisar, mas apenas aqueles que consideramos mais pertinentes e, sobretudo, os que fomos capazes de identificar. Certamente, novos estudos poderão descobrir novas possibilidades do desenho na reflexão sobre nosso problema. As características do desenho que aqui estudamos foram examinadas por autores anteriores a esta tese, analisadas em profundidade ou, em certos momentos, apenas citadas ou vagamente intuídas, necessitando, portanto, de uma análise mais complexa. Além disso, nenhuma de tais características foi examinada a partir das questões específicas que esta tese se propõe a considerar, precisando, desse modo, de uma "tradução" e de um deslocamento para o campo de nossa investigação. Além das características já identificadas dentro dos escritos sobre desenho, estão também aquelas surgidas da reflexão durante o percurso de elaboração desta tese, fundamentalmente quando em face desse objeto vivo de estudo que são os desenhos de Iberê Camargo. Dividimos as características a serem analisadas em três grandes grupos temáticos. O primeiro deles analisa as relações do desenho com o tempo e o espaço, seus aspectos diacrônicos e sincrônicos, refletindo sobre questões como o acúmulo, a linha diante do tempo, o desenho como documento para si mesmo. O segundo faz uma reflexão sobre dois elementos que frequentemente são apontados como características do desenho e que aparentemente são antagônicos: o fato de a linha representar a ordem e o estudo racional na arte e o desenho como revelador da intimidade criativa do artista, ou seja: a duplicidade de razão e emoção presente no desenho. O terceiro e último tema estuda o desenho a partir de sua característica de signo, refletindo sobre questões como a 158 representação, a linguagem, a narração e os problemas em pensarmos o desenho como objeto absolutamente autônomo. Esses três grandes temas estabelecem-se a partir da relação do desenho com os problemas da influência. Antes de começarmos essa análise, já que aqui será utilizado frequentemente o termo "influência", embora não seja estudado em profundidade, para que fique esclarecido a que faz referência, consideramos importante apresentarmos uma brevíssima definição do conceito. Essa definição é provisória e serve-nos para uma utilização neste capítulo e de nenhum modo pode ser entendida como a definição que estamos buscando nesta tese (o que será estudado no capítulo terceiro). Entendida como definição instrumental, cumpre uma função análoga à da escada de Wittgenstein, podendo (e devendo), portanto, ser descartada quando nos aproximarmos desse conceito com maior profundidade. Sendo assim, por influência, entendemos provisoriamente o efeito de uma coisa ou pessoa sobre outra coisa ou pessoa, sem aparente uso da força. Quando nos referirmos ao termo "influência", estaremos indicando o fenômeno, ou seja, a relação como um todo, que inclui tanto o "influenciado" quanto a "fonte de influência" (o "influenciador"). Do mesmo modo, estaremos fazendo referência tanto ao fenômeno particular e íntimo em que se sofre uma influência quanto aos reflexos visíveis dessa influência nas obras de arte, portanto (por enquanto), sem uma separação precisa nem uma discussão sobre esses momentos. 159 2.4.1 O desenho no tempo: diacronia e sincronia Imagem 1 - D2592 O olho caminha sobre a linha, 1987, caneta esferográfica sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Acervo FIC. 160 Em um desenho datado de 1987, D2592253, intitulado "O olho caminha sobre a linha", Iberê Camargo apresenta-nos a construção de um pensamento sobre a linha, o olhar e o tempo das imagens através dessa forma específica de pensamento que é o desenho. A figura (boa parte dela) é traçada através de uma linha contínua, a qual, sem se afastar do papel, vai formando em seu trajeto o rosto desenhado. Iberê nos “fala”, assim, sobre o desenho e sobre o ato de olhar para o desenho. A frase "o olho caminha sobre a linha" nos é desnecessária, já que é o desenho quem nos afirma irrefutavelmente, à sua maneira, o enunciado. Nesse sentido, o título serve apenas para indicarmos redobradamente essa evidência e para nos convidar ao exercício dela. O desenho nos diz, portanto, sobre o seu fazer e sua apreciação. A linha contínua, que forma o olho da figura em seu trajeto nos convida a acompanhá-la, a sermos esse olho que caminha. Desse modo, a apreciação particular do desenho é também um convite a um modo outro de desenhar - vê-lo é desenhar com o desenho, é desenhar com o olho, a partir do desenho. Esse percorrer da linha e do olho é um caminhar que se faz no tempo, ao retomarmos o tempo de seu fazer expresso no espaço do suporte. Nossa reflexão a seguir, portanto, trata da relação entre o desenho sob seus aspectos espaciais e temporais, na medida em que esses aspectos nos apresentam questões que justificam o desenho como lugar privilegiado para o estudo das questões de influência. Conforme vimos na definição prévia do conceito de desenho, as linhas que constituem o desenho são a marca de uma trajetória. Essa trajetória, se é traçada no espaço do suporte, inscreve-se fundamentalmente como a marca de uma passagem no tempo. Conforme escreve Philip Rawson, "um traço, mesmo um ponto, leva tempo para ser feito"254 e, mais do que isso: "mostra ao espectador seu início e seu fim" 255. Assim, a linha não apenas está contida no tempo, mas é sinal dele mesmo, é o indício de sua existência. A linha apresenta-se então com um duplo aspecto: ao mesmo tempo em que é traçada no tempo, traça o próprio tempo - tal como os ponteiros do relógio, que giram 253 Utilizaremos aqui os códigos de tombamento da Fundação Iberê Camargo. Quando possuírem títulos, tal como esse desenho possui, também serão nomeados. 254 RAWSON, Philip. Seeing through Drawing. Londres: British Broadcasting System, 1979. p.24. (minha tradução) 255 Id. Ibid. 161 dentro do tempo e simultaneamente são o sinal de sua passagem. Esse tempo, marcado pelo gesto que faz a linha, ao ser realizado, transforma-se em memória do gesto. Conforme afirma John Elderfield, "um desenho é intrinsecamente o registro do movimento no tempo"256. É dessa forma que todo desenho é memória de um acontecimento: memória do traço da linha, o que significa dizer, em última instância, que o desenho também é memória de si mesmo. Ainda que não seja possível fugir do tempo, ao traçar esse tempo à sua maneira, ao delineá-lo, a linha constitui-se em um modo original de se pensar o tempo. Podemos dizer, a partir dessas observações, que o desenho, sendo constituído de um acúmulo de linhas, é, portanto, um acúmulo de memórias e de tempos. Assim, o desenho é a marca de vários tempos distintos, na medida em que é constituído dessas muitas linhas, cada uma com a inscrição de sua temporalidade específica. No entanto, o desenho curto-circuita a noção de um tempo regular, contínuo ou, como dizemos (quem sabe como forma de uma recordação do próprio desenho): unilinear. Estão as linhas, em sua conjunção (formativa do desenho), presentes em uma simultaneidade; a conjunção simultânea de todas as linhas é a conjunção de muitos tempos em um tempo único – o da presença do desenho (entendido como unidade: o desenho) no suporte. Temos aqui não propriamente um anacronismo, tal como entendido por Didi-Huberman a partir de Carl Einstein257, mas algo que poderíamos chamar de um sincronismo complexo. Um sincronismo que não se constitui apenas por sua característica de um evento inscrito no presente, mas que é composto pela coexistência de várias diacronias: a marca de vários tempos em um mesmo espaço, vistos na perspectiva de um outro tempo, tempo do espectador, que se assemelha àquele "sub specie aeternitatis" - o tempo de Deus, que, segundo os medievais, seria capaz de, "sob a perspectiva da eternidade" (fora do tempo), ver a sucessão de nossas vidas em uma simultaneidade (como um rolo de película cinematográfica, esticada à nossa frente). Desde já, portanto, notamos que falar do desenho é falar de algo que é temporal, mas ao mesmo tempo dotado de uma sincronia marcada pela justaposição das linhas 256 ELDERFIELD, John. The Drawings of Richard Diebenkorn. New York: Museum of Modern Art, 1988, p. 9. (minha tradução). 257 Carl Einstein e Didi-Huberman (a partir do primeiro) defendem que a arte possui como característica a anacronia, já que as obras no presente remetem a questões do passado e do futuro, a partir de suas configurações na história da arte anterior e suas projeções na arte do porvir. 162 sobre o suporte. Como nos lembra Teresa Poesser, "a pintura, de um ponto de vista técnico, se faz, geralmente, pela superposição de manchas a partir do fundo, aceitando várias camadas. O desenho se constrói, sobretudo, por justaposições"258. Assim, marcamos mais um aspecto original do desenho: a propriedade de apresentar um tempo distinto daquele comumente experimentado por nós, que se articula com o espaço. Como escreve Mário de Andrade em seu clássico texto sobre o desenho: "é como que uma arte intermediária entre as artes do espaço e as do tempo"259. Ser uma memória a partir de uma simultaneidade será uma característica do desenho fundamental para pensarmos os problemas da influência, em nossa proposição de um conceito de influência a partir dos desenhos de Iberê Camargo, conforme veremos no último capítulo desta tese. Basta, por enquanto, que retenhamos essa curiosa característica do desenho e que vejamos sua especificidade. A especificidade dessa característica no desenho - ou seja, não presente em outras formas de arte - é dada por duas características distintivas do desenho. A primeira delas é a distinção entre justaposição e sobreposição, já referida. O desenho, ao justapor, marca-se como uma simultaneidade, uma presença em um mesmo tempo, de seus elementos constitutivos: as linhas. A segunda característica é a de que esse tempo, mais do que em qualquer outro meio, é visível no desenho. A linha tem a propriedade de deixar uma marca 260 em sua passagem, na qual é visível sua característica de marca no tempo: ao olharmos um desenho, notamos, com uma clareza própria dele, as marcas do tempo. Reconhecer a presença do tempo faz do desenho um objeto muito mais dinâmico do que outras artes, como a pintura ou a escultura. Nesse sentido, é provável que o argumento crítico ao ut pictura poesis formulado por Lessing261 não teria uma validade tão evidente se, ao invés 258 POESSER, Teresa. "Sobre o desenho". In: Revista Porto Arte nº 23. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2008. p. 57. 259 ANDRADE, Mário de. "Do desenho". In: ______________. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. São Paulo: Martins/MEC, 1975. p. 71. 260 Apesar de este não ser um estudo semiótico do desenho, é importante deixarmos claro que, quando estamos falando em “marca”, estamos nos referindo ao aspecto indicial do desenho, o qual é coexistente com sua característica de ser um símbolo. Não nos interessa aqui a discussão específica da semiose do desenho, mas pensar como esses aspectos indiciais e simbólicos, como esse signos se articulam com o tempo. Voltaremos a esses conceitos ao examinarmos o desenho como signo no subcapítulo 2.4.3 deste capítulo. 261 Resumidamente: a obra de Lessing, Laocoonte, ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766), buscava estabelecer as diferenças entre a literatura e as artes visuais, contrariando a clássica noção da Arte Poética de Horácio, segundo a qual literatura e artes visuais eram passíveis de serem estudadas a partir de um mesmo arcabouço teórico. Começando sua análise a partir do grupo escultural 163 de ter estudado a arte a partir da escultura, como o fez, o tivesse feito a partir do desenho, onde, como vimos, a simultaneidade convive com a consciência da presença do tempo262. A relação do desenho – em seus aspectos formais – com o tempo é o primeiro dos aspectos relacionados com a influência que trazemos à consideração na análise. Os problemas da influência são fundamentalmente problemas do tempo. A influência ocorre dentro de uma relação que é estabelecida entre um antes e um depois. Tem ela como marca essa complexa rede de congruências colocadas no tempo. Sendo assim, parecenos que é o desenho o meio por excelência, no campo das artes visuais, para estudarmos essa questão, que é sobretudo questão dirigida ao tempo: as relações de influência263. O desenho, tomado a partir de sua relação complexa com o tempo, fundamentalmente com a memória e a história, é objetivo da reflexão que Flávio Gonçalves, em seu artigo "Um percusso para o olhar: o desenho e a terra"264, faz sobre seu próprio trabalho (e, a partir dele, sobre o desenho de maneira mais ampla). Cartografia e arqueologia. O desenho traça linhas que se apresentam em uma contiguidade, uma justaposição, o que indica no desenho seu aspecto cartográfico, como um mapa de linhas dispostas em um mesmo nível - sobre o mesmo plano, um aspecto "que nos permitiria caminhar sobre ele"265. Além desse ponto de vista planificado, o desenho inscreve-se também em uma profundidade: "uma metáfora tanto geológica quanto arqueológica que evoca a latência, na gênese, do processo, de tudo aquilo que foi adicionado, recoberto, revirado ou apagado nos trabalhos"266. O autor retoma o texto de juventude de Walter Benjamin, "Pintura e Grafismo, da que dá nome ao seu livro, Lessing afirma que o artista, ao realizar sua obra escultórica, optava por não apresentar a ação dos personagens em seu paroxismo, já que, por ser uma obra estática (estruturada no espaço), não permitiria o livre curso da imaginação do espectador, que deveria completar em sua mente a cena que via. Ao contrário, a literatura, por desenvolver-se não no espaço, mas através do tempo, permitiria que seus autores mostrassem todas as cenas até seu ápice. 262 Outra simultaneidade do tempo no desenho é aquela que acontece no ato de desenhar, a simultaneidade entre a concepção e a execução, que será explorada no tópico 2.4.3. 263 Não entraremos ainda nos aspectos específicos da influência, questão pertinente ao capítulo terceiro. Entretanto, como apontamos neste presente capítulo algumas considerações que, a partir do desenho, permitem pensar nesse conceito, será natural que alguns elementos desse conceito aqui se apresentem. 264 GONÇALVES, Flávio. "Um percusso para o olhar: o desenho e a terra". In: Revista Porto Arte nº 23. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2008. 265 Idem, p. 34. 266 Ibid., p. 32. 164 pintura ou o signo e a marca" (1917)267, para indicar essa característica arqueológica do desenho, de estratificação de camadas. Em seu texto, Benjamin defende que o desenho deve ser apresentado no plano horizontal, e não no vertical (este último, próprio da pintura). Os desenhos postos em sua horizontalidade, segundo a ideia de Benjamin, que de certo modo retoma o modo de exposição presente nas primeiras coleções de desenhos268 (e que parece ser também a ideia de Mario de Andrade, em seu famoso texto sobre o desenho, quando diz que "os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente folhear (...)"), têm, segundo Flávio Gonçalves, um efeito: "os desenhos, quando apresentados no plano horizontal, reencontrariam sua neutralidade original"269. A linha deposita-se sobre a superfície – mais uma razão de sua horizontalidade – e faz o plano na medida em que estabelece a relação entre o que se deposita e o que é depositado, segundo aquilo que Flávio Gonçalves chama de "dialética linha gráfica/fundo"270. A horizontalidade original do desenho e necessária à sua própria apresentação é característica também da produção do artista: "Trabalhar rente ao chão é um exercício que permite ao artista compreender a capacidade do plano horizontal de atrair todo tipo de elemento e de lhes incorporar à sua história nascente, com a mesma indiferença que a terra atrai todas as coisas para o seu centro"271. Essa capacidade magnética do desenho posto em sua horizontalidade, no chão, incita-nos a pensar nessas incorporações de elementos também sob um aspecto nãoliteral/físico. Propomos que as estratificações presentes no desenho também são da ordem de linhas que se fazem em um tempo mais largo. A arqueologia, nesse sentido, também seria uma metáfora interessante para pensarmos nesse tempo que, por sua grandeza, nos escapa de forma individual/biográfica - uma vida apenas não comporta a história inscrita nas várias camadas estratigráficas de que a arqueologia se constitui. A incorporação de elementos, pensada dessa maneira mais ampla, pode ser também o depósito de outros desenhos, outras linhas: em sua horizontalidade, o desenho parece 267 BENJAMIN, Walter. "Peinture et Graphisme, De la peinture ou le signe et la marque. Publicado e traduzido para o francês por Pierre Pénisson In: La Part de l'oeil nº 6: dossier le dessin. Bruxelas: Press de l'Académie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles, p. 13-15, 1990. 268 Ver nota 246 deste capítulo. 269 GONÇALVES, Flávio. "Um percurso para o olhar: o desenho e a terra". In: Revista Porto Arte nº 23. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2008. p. 33. 270 Id., p. 36 271 Ibid., p. 39. 165 ser o campo propício à precipitação dos elementos da influência - linhas que, sob a perspectiva da influência, são elementos de memória e ao mesmo tempo atributos físicos. Sob essa perspectiva de sua fisicalidade, a arqueologia também se torna uma metáfora interessante de ser pensada na relação com o desenho por ser ela uma ciência auxiliar à história que trata justamente dos vestígios físicos deixados pelos homens - história a partir da materialidade, da marca, mas também daquela (marca) de uma ausência, como a da pegada pré-histórica. O acúmulo e a estratificação também nos remetem à característica de síntese que o desenho possui. O desenho caracteriza-se por ser o meio em que as formas são apresentadas em sua essencialidade, a ponto de o "bom desenho", como diria Kandinsky, ser "aquele que não se pode alterar em absoluto sem que se destrua sua vida interior"272. Entretanto, não parece ser essa síntese a de mesmo tipo daquela "arte de eliminar", como escreve Paul Klee273, referindo-se também ao desenho, mas antes uma síntese que aglutina, que concentra imagens. Assim, o desenho, em sua síntese feita de acúmulos precisos, é a arte que é capaz de concentrar em si mesma camadas de outros desenhos. Que são esses outros desenhos senão suas influências? Como última imagem do desenho em sua complexa relação com o tempo e o espaço, tomamos uma que nos permite pensar a respeito dessas questões junto à linha e o ponto (origem da linha). Essa imagem tomamos emprestada das reflexões que Flávio Gonçalves realiza em sua tese de doutorado274 ao relacionar o desenho com a antiga tarefa da astronomia/astrologia: o trabalho de constelar (no sentido de identificar/dar forma às constelações). Segundo Flávio Gonçalves, a atividade de constelar estabelece "as ligações necessárias entre o terrestre e o divino" 275, e constelar torna-se uma operação coincidente com o desenho quanto à sua dimensão conceitual. Como operação do desejo, a atividade de constelar é aquela de "costurar os pontos dispersos no 272 KANDINSKY, W. Lo spirituale nell’arte. Milano: SE ed., 1911 (1989) p. 87. 273 KLEE, Paul. "Acerca del arte moderno". In: KLEE, Paul. Teoria del arte moderno. Buenos Aires: Calden, 1971. Apud: GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 600. 274 GONÇALVES, Flávio. "6. Consteller et Dessiner". In:__________. Ou se Trouve le Dessin? Une idee de Dessin Dans L'Art Contemporain. Tese de Doutorado. Paris: Sorbonne, 2000. Orientadora: Eliane Chiron. 275 Idem, p. 167. 166 firmamento"276, reunir esses pontos, fazendo com que, "uma vez que essas imagens estejam projetadas, o céu nunca será mais o mesmo"277. Apropriamo-nos de modo mais ou menos livre dessa ideia apresentada por Flávio Gonçalves, propondo também que desenhar é o exercício de criar linhas a partir do movimento de sua estrutura básica, o ponto, construindo significados a partir delas. Essa formação de linhas assemelha-se ao trabalho dos sábios da antiguidade, que buscavam identificar, a partir da posição das estrelas, as ligações entre elas que conformavam constelações, que se tornavam formas significativas e a partir das quais se construíam narrativas e significados. Como escreve Mondrian: "já o disse: ainda que o ponto seja em si uma coisa vaga, esses diversos pontos luminosos (as estrelas) lhe conferem uma determinação ao indeterminado do céu"278. Lançados no espaço, os pontos que formam as linhas do desenho e as constelações dos astrônomos também são vistos a partir de um espaço que nos remete à profundidade. Por último, é ainda relevante lembrarmos que o próprio conceito de influência tem uma origem ligada a essa antiga ciência: deriva dos influxos que os astros, segundo o pensamento antigo, derramariam sobre o mundo terreno. Vistos também sob o prisma da influência, podemos pensar esses pontos como a individualidade de cada um dos desenhos. Nesse sentido, o trabalho de constelar/desenhar seria aquele de criar sentidos novos (ou identificá-los), ao relacionar esses desenhos, em um espaço que é topográfico, mas ao mesmo tempo possui profundidade (ou seja: está inscrito tanto no espaço quanto no tempo): espaço das articulações e encontro das influências - do mesmo modo que o ponto também é o espaço de encontro de duas linhas. Do mesmo modo, assim como aquele que investiga as influências, ao olhar para o desenho, vê nele o tempo, do mesmo modo que aquele que desenha as constelações, ao olhar para o firmamento, tem diante de si um tempo que é presente (em sua visão) e passado (sob a perspectiva material, daqueles objetos que são as estrelas, em sua trajetória de luz até a retina do observador humano)279. 276 Idem, p. 169. 277 Idem, Ibid.. 278 MONDRIAN, Piet. Realidad natural y realidad abstrata (1919-1920). Barcelona: Barral, 1973. Apud: GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 607. 279 Sobre a relação entre desenho e constelação, ver também: AUERBACH, Anthony W. Structural Constellations. Excursus on the drawings of Josef Albers c. 1950-1960. Slade School of Fine Art, University College London, 2003. Nesta tese, o autor desenvolve a concepção de constelação tal como presente no pensamento de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno e, a partir de tais concepções, investiga a obra de Josef Albers. 167 Em sua articulação com o tempo e o espaço, o desenho pode também ser pensado como território privilegiado para o estudo dos problemas de influência se o considerarmos a partir de sua condição de documento. Como vimos anteriormente, o desenho frequentemente é visto como documento para o estudo da obra do artista em outros meios considerados mais "nobres". Sob essa perspectiva, o desenho é registro do artista de seus ensaios, tentativas, erros/acertos e escolhas, realizados em última instância em sua obra principal (seja ela pintura, escultura ou gravura). Como escreve Cristina Freire: "Como projeto, o desenho, assim como a linguagem (escritura), é índice de uma obra ausente e ocupa um lugar híbrido, intermediário entre a obra de arte e sua documentação"280. No entanto, se estamos pensando o desenho a partir de sua autonomia, não devemos tomá-lo como documento de um outro meio. Ao mesmo tempo, não nos parece que sua perspectiva documental, bem como sua posição indicial, deva ser desconsiderada. Assim, o que propomos é que o desenho seja aqui considerado como documento de si mesmo, em diálogo, portanto, com o campo que lhe é próprio. Entendido como documento de si mesmo, ou seja, a partir dessa inter-relação com outros desenhos, pode ser visto como o lugar propício para o estudo das influências: torna-se assim, ao ser um registro, a evidência da influência por ser o lugar de sua ação. Sob essa perspectiva, ao estudarmos a obra de Iberê Camargo, veremos que os desenhos, na mesma medida em que têm um essatuto de obra por si mesmos, servirão também como documentos das influências, ou seja, de como a partir de sua própria obra ocorre o fenômeno da influência. Tal fenômeno ocorre tanto no caso de trabalhos antigos de Iberê Camargo influenciando trabalhos novos (o que poderíamos chamar de uma espécie de "influência interna") quanto no caso de desenhos sendo o registro de influências externas recebidas pelo artista. Desse modo, temos os desenhos vistos como documentos agindo no tempo, na medida em que constroem uma rede de relações históricas a partir das questões de influência, e, em suas inter-relações sincrônicas com outros documentos e desenhos, podem ser tomados também sob a perspectiva do 280 FREIRE, Cristina. "O desenho como partitura na arte contemporânea". In: DERDYK, Edith (org.). Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo: Editora Senac, 2007. p.141. 168 espaço, uma vez que o desenho é capaz de topografar/mapear/desenhar suas próprias influências. Conforme veremos, as relações de influência no desenho já surgem no momento em que este é desenhado, sob a perspectiva do tempo, já que, conforme afirma Gómez Molina: "El dibujo es esa operación compleja que le lleva a compreender y articular elementos de visión, ya como recuerdo, con experiencias de otras obras, em miles de decisiones precisas (...)"281. 281 GÓMEZ MOLINA, Juan José. "El concepto de dibujo" In: ______________ (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 139. 169 2.4.2 Desenho: objetividade e subjetividade, razão e emoção Imagem 2 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. 170 O desenho D1476, de 1959, é um dos primeiros registros datados que temos, em seu acervo, do carretel como tema de sua obra. O que são carretéis senão objetos que têm a função precípua de conter linhas? Para Iberê Camargo, são formas feitas de sua própria linha. Surgem em seu trabalho de desenho justamente quando o artista passa a tratar sua obra e os objetos que ela representa como objetos pertencentes ao universo interno da representação. Sendo assim, os carretéis são fundamentalmente figuras geométricas simples, que têm na sua simplicidade e na precisão de suas formas sua característica formal mais importante. Mas, para o artista, não são apenas formas geométricas e formas do desenho. São o registro material de sua memória da infância. Nesse sentido, o carretel é uma forma dotada de sentimento, uma forma significativa e íntima, uma forma capaz de traduzir também uma emoção. Ao longo da já extensa história dos escritos sobre desenho, vemos com frequência o apontamento de duas características em princípio antagônicas. De um lado, o desenho, principalmente quando referido à linha, é caracterizado como o elemento ordenador e racional na arte. Por outro lado, é assinalada no desenho a propriedade de revelar a intimidade criativa do artista, algo que ele poderia esconder em todos os outros meios artísticos, mas que aqui se revela – ou seja, o desenho parece ser portador de uma qualidade pendular: ora tendendo à razão, ora à emoção. Curiosamente, à primeira vista, ambas as características parecem afastar do desenho sua possibilidade de ser um campo propício ao estudo da influência. Se vista a partir de sua racionalidade, a linha parece ser um elemento por demais "asséptico" e impessoal para a identificação das influências (elementos tão ligados à intimidade poética). Se estudado sob a perspectiva da capacidade reveladora do interior do artista, o desenho parece afastar qualquer elemento estranho, tal como também parecem ser (ao menos em uma primeira mirada) os elementos ligados à influência. Nosso objetivo neste subcapítulo, portanto, será entender como se coaduna a influência a partir das duas características historicamente apontadas para o desenho. Mais do que isso, será entender de que forma essas características são chaves justificatórias do estudo da influência a partir do desenho. 171 "Os desenhistas puros são filósofos e abstracionistas por natureza", "desenham por razão". As palavras de Baudelaire no Salão de 1846 ecoam a ideia, amplamente estendida, do desenho como o lugar da racionalidade, do pensamento exato, quase matemático (geométrico). A partir dessa mesma concepção racional é que Alfred M. Brooks escreverá, em 1920, que "o bom desenho significa um 'pensamento cristalino' que se faz evidente em linhas"282. Já no século XIII, Villard de Honnecourt nos dá uma das primeiras definições medievais do desenho. Nela, podemos ver o caráter racional dessa definição: "neste livro pode ser encontrado bom conselho sobre a arte de desenhar conforme a geometria dirige e ensina"283. A generalização dessa concepção do desenho está no desenvolvimento de um discurso crítico e teórico na Itália entre os séculos XIV e XVI, que elevou o desenho, conforme escreve John Ederfield, "à mais alta fase da criação artística através de sua identificação com a 'ideia' em si mesma"284, ao ponto de podermos afirmar, conforme Lino Cabezas, que "a teoria renascentista da arte é, em consequência, uma teoria da arte do disegno"285. É a partir desse contexto, portanto, que o desenho será relacionado com o princípio do disegno interno, tal como formulado por Zuccari em 1607. Segundo Zuccari, por disegno interno entende-se "o conceito formado em nossa mente para poder conhecer qualquer coisa e obrar externamente conforme a coisa entendida" 286. O desenho propriamente dito, para Zuccari, seria o disegno externo, o qual se constituiria na transposição física das ideias formadas pelo disegno interno. Esse disegno externo derivado do interno é uma atividade essencialmente intelectual: "e esse corpo do desenho e suas operações, de qualquer maneira que estejam formadas, são faculdade do juízo e operação do intelecto"287. Surge daí, portanto, a concepção do desenho como exercício do 282 BROOKS, Alfred M. "Drawing". In: The Art Bulletin, vol. 2, nº 3 (março de 1920), New York: College Art Association, p. 146. 283 HAHNLOSER, H. R. Villard de Honnecourt. Vienna, 1935. Apud: TOLNAY, Charles de. History and Technique of Old Mater Drawings. New York: Hacker art books, 1983 (1ª edição: 1943), p. 2. 284 ELDERFIELD, John. "Drawing as suspended narrative". In: Leonardo, vol. 4, nº 1 (inverno de 1971), p. 13. 285 CABEZAS, Lino. "Las Palabras del Dibujo". In: GOMES MOLINA, Juan José, CABEZAS, Lino e COPÓN, Miguel. Los nombres del dibujo. Madrid: Cátedra, 2005. p. 231. 286 ZUCCARI, Federico. La ideia de los pintores, escultores y arquitetos (1607). In: Garriga, Fuentes..., t. IV, Barcelona: G. Gil, 1983. Apud: GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 574. 287 Id. Ibid. 172 pensamento racional, aplicação de um juízo lógico, "essencialmente uma arte intelectual"288, conforme as palavras de Mário de Andrade. As definições generalizadas ao longo dos séculos XIV, XV e XVI começam a ser modificadas no século XVII e (sobretudo) no XVIII. No final do século XVII, Roger de Piles escreverá que: "Os desenhos indicam mais o caráter do mestre, e permitem observar se seu gênio é vivo ou pesado, se suas ideias são elevadas ou comuns e finalmente, se tem bom estilo e bom gosto em todas as partes que se podem expressar sobre o papel. (...) quando faz um desenho se abandona a seu gênio e se mostra tal como é"289. Semelhante a Roger de Piles, o conde de Caylus, em seu “Discours sur les dessins", de 1732, proferido na Academia Real, assim irá se expressar: "O que pode ser mais agradável do que seguir um artista na primeira ideia em que ele foi tocado; de aprofundar as diferentes mudanças que suas relexões lhe fizeram fazer, antes de serem capturadas em sua obra". Como se vê, um salto na concepção do desenho apresenta-se aqui. Embora os autores ainda falem na "ideia", é a ideia do artista que está em questão. A concepção dos autores é a do desenho como forma de uma proximidade com a intimidade do criador. A linha começa a ser considerada como a expressão subjetiva do temperamento do artista. Ao longo do século XIX, essa concepção ligada à espontaneidade e menos ao caráter racional do desenho irá se estender. Albert Sensier assim descreverá o desenho: "Aonde o artista é pego ao vivo, aonde ele se mostra nu em toda sua franqueza, é onde o podemos surpreender em seus primeiros gestos, em suas notas, os desenhos, os estudos primordiais sobre a natureza, no impulso súbito de seu cérebro. Lá se apresenta um homem que jamais se supôs"290. Max Klinger, no final do século XIX (1895), na busca de uma teorização do 288 ANDRADE, Mário de. "Do desenho". In: ______________. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. São Paulo: Martins/MEC, 1975. p. 71. 289 PILES, Roger de. Idea del perfecto pintor (1699). In: ARENAS, F. e BASSEGODA, B. Fuentes..., t. V, Barcelona: G. Gili, 1983. Apud. GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 575. 290 SENSIER, Albert. Étude sur Georges Michel. Paris: Lemerre, 1873. p. 69. 173 desenho como uma categoria de arte específica, distinta da pintura e da escultura por ser capaz de expressar coisas que nenhuma dessas duas artes seriam capazes, escreve que: "o desenho revela a forte subjetividade do artista; suas observações pessoais sobre os eventos que o cercam"291. Do mesmo modo, Matisse descreverá seus desenhos, em 1939, como a expressão de seus sentimentos íntimos na mesma medida em que afirmará a qualidade autônoma deles: "Meu desenho é a tradução direta e mais pura de minha emoção. A simplicidade do meio o permite. No entanto, esses desenhos são mais completos do que talvez pareçam a alguns, que poderiam considerá-los simples esboços"292. Assim, vemos uma trajetória da concepção do desenho que parte da radical definição como elemento racional à também extremada definição como reveladora da subjetividade do artista. Exterioridade e interioridade, visão objetiva e subjetiva. Na trajetória pendular de sua definição, o desenho encontra, na segunda metade do século XX e no século XXI, um ponto de equilíbrio. É a partir desse ponto que pretendemos partir, mostrando, primeiramente, quando e como ele foi alcançado para, em seguida, indicarmos por que esse local se apresenta particularmente propício para o estudo do conceito de influência. John Elderfield, em seu texto "Drawing as suspended narrative", de 1971, é um dos primeiros a identificar o aspecto conciliatório (entre aquilo que estamos denominando de razão e emoção) do desenho. Em seu texto, Elderfield escreve que o desenho revela "como o pessoal começa a se fazer público" 293. Sob essa perspectiva, o desenho definese como uma articulação que "inquire o pessoal e o histórico" 294, ou seja: o desenho começa a ser considerado justamente como o lugar de encontro entre o pessoal e o público, como a convergência entre o íntimo e o histórico, entre a individualidade e aquilo que se partilha socialmente. 291 KLINGER, Max. Malerei und Zeichnung. Leipzig: Insel-Bücherei,1895. p. 26. (nossa tradução do inglês, a partir da tradução do alemão feita por Charles de Tolnay). 292 MATISSE, Henri. "Notas de um pintor sobre o seu desenho". In: _________. Escritos e Reflexões sobre a arte. São Paulo: Cosac Naify. p. 177. Obs.: é importante repararmos que, apesar da autonomia declarada em sua afirmação, o próprio título de seu texto parece ressaltar o estatuto superior da pintura sobre o desenho, na medida em que o artista se considera, sobretudo, um pintor. 293 ELDERFIELD, John. "Drawing as suspended narrative". In: Leonardo, vol. 4, nº 1 (inverno de 1971), p. 13. 294 Idem, p. 16. 174 Voltando ao texto de 1920, de Alfred M. Brooks, o autor define que o desenho consiste em "retratar [to picture forth] ideias por meio de linhas", no entanto, "cada grande artista desenha algo do que vê e algo do que ele pensa a respeito do que vê". O desenho, portanto, parece estabelecer-se em uma posição entre a "objetividade"295 do que é visto e sua interpretação. Sabemos que essa visão é compartilhada não apenas pelo desenho, mas que ao menos desde a estética expressionista já se defende a ideia da arte como expressão subjetiva (ou seja: tal como vista pelo artista) da realidade (entendida como realidade objetiva). Entretanto, o desenho possui características próprias que lhe permite situar-se nesse local intersticial mais do que qualquer outra forma de arte. Passamos a examinar agora quais são essas características. Conforme escreve Gómez Molina, "A ideia que vai ser fundamental em todo o desenvolvimento de toda a teoria do desenho desde os inícios do Renascimento até hoje em dia, passando, é claro, por todos os movimentos renovadores desse século é que desenhar corresponde a pensar"296. Vários são os fatores que asseveram essa afirmação: o fato de ser ligado tradicionalmente à ideia de projeto, por traçar esquemas mentais, organogramas que auxiliam na ordenação do pensamento, devido à sua utilização como exercício e estudo de formas ou à educação da mão e do olhar. E assim o é (uma forma de pensar) por uma característica, afirmada por Teresa Poesser da seguinte maneira: "o caráter provisório do desenho possibilita a anotação do pensamento"297. E essa provisoriedade do desenho, por sua vez, deve-se, sobretudo, ao fato de sua fatura ser aparente. Conforme afirma Tolnay: "porque a artesanalidade e a rusticidade do material são sempre aparentes, o desenho parece ser um documento mais íntimo"298. Assim, podemos dizer que o desenho permite o exercício de um pensamento desenhante por dar-se como marca aparente. No entanto, é uma forma de pensar específica, distinta do pensamento puramente abstrato: 295 Sabemos que não se trata exatamente de uma objetividade em sentido estrito, já que estamos falando a partir da subjetividade de quem vê, mas queremos distinguir, com esse termo, aquilo que é visto da interpretação mais pessoal do que é visto. 296 GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 44. 297 POESSER, Teresa. "Sobre o desenho". In: Revista Porto Arte nº 23. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2008. p. 58. 298 TOLNAY, p. 15. 175 trata-se de um pensamento construído a partir da materialidade da linha e da ação física do gesto. Uma implicação surge por conta dessa fisicalidade/materialidade característica do pensar do desenho e é expressa da seguinte forma por Gómez Molina: "o desenho, ao mesmo tempo que configura uma ideia, comunica e informa da estrutura com a qual cada pessoa capta o fenômeno, refletindo ao mesmo tempo o valor simbólico que assume"299. Assim, a própria materialidade do desenho, ao mesmo tempo em que capta a ideia, faz-se ela própria pensamento desenhado na medida em que o exercício de desenhar é o exercício de um pensar desenhante. Esse pensamento que é desenho adquire, reflete, comunica, faz ver, por sua faculdade de ser desenho, a interioridade daquele que desenha. Assim, o pensamento torna-se pensamento objetivo e íntimo ao mesmo tempo, ou seja, "enquanto que a estruturação do desenho o dirige à objetivação, o gesto o reintegra com a individualidade"300, o que faz com que o desenho se transforme justamente em um "nó entre os fenômenos objetivos e subjetivos"301. É sob o aspecto de confluência ou nó entre o objetivo e o subjetivo que pensamos estar a chave para entendermos por que o desenho é o lugar privilegiado para o estudo da influência. A partir dessa "sua caprichosa habilidade de traduzir o mundo interior para o mundo exterior e vice-versa"302, faz com que, a partir de sua objetividade, o desenho permita-nos tomá-lo como objeto de análise rigorosa de um fenômeno que é histórico e socialmente delimitado, como o é a influência (também uma espécie de nó ou confluência entre artistas). Entretanto, a partir da intimidade em que se funda, permite-nos considerálo como o lugar em que a influência se encontra mais evidenciada, menos capaz de se esconder sob algum disfarce outro que não diga respeito à poética profunda do artista. E é sob a perspectiva da revelação dessa poética íntima que a influência, no desenho, pode ser pensada como essencialmente original. Assim, estudar "os modos em que a prática do desenho atravessa o pedregoso terreno entre o si mesmo [self], a história e o mundo"303 significa, nesta tese, estudar as relações que ele estabelece com a influência. 299 GÓMEZ MOLINA, Juan José. (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006, p. 18. 300 Id., Ibid. 301 Id., Ibid. 302 NAGINSKI, Erika. "Drawing at the Crossroads". Representations, nº 72 (outono de 2000), California: University of California Press, p. 68. 303 Idem p. 78. 176 Sob essa perspectiva intersticial, voltando ao problema de Zuccari, a influência apresenta-se como um lugar intermediário entre o disegno interno e o disegno externo, na medida em que as relações que estabelece são ao mesmo tempo da ordem da objetividade histórica e das relações artísticas socialmente estabelecidas, mas se estabelecem na fisicalidade da linha, do traço, do gesto desenhador. Assim, o desenho, em sua perspectiva sistêmica, "não importando o quão escondido ou preliminar ele seja, é menos a evidência de um refúgio do que um meio para o desejo de inserir-se [work its way] no mundo"304. Ver essa inserção sob a perspectiva relacional proposta pelo conceito de influência é nosso objetivo. Ao mesmo tempo, sob a perspectiva de sua intrincada relação de pensamento, de um pensamento desenhante, podemos afirmar, junto com Erika Naginski, que: "o que faz o desenho um atrativo objeto de estudo - o que alimenta tanto sua fragilidade quanto seu lirismo - é a colisão dinâmica da mão e da mente de que ele continuamente dá testemunho"305. Essa colisão, entendida como encontro, mostra a relação entre o que está fora e o que está dentro que também caracteriza a aparente contradição entre influência e originalidade (vista no capítulo primeiro), para a qual não encontramos imagem metafórica escrita melhor do que aquela de Valery, quando nos diz que: "o que há de mais profundo no homem é a sua pele"306. 304 Id. Ibid. 305 Idem, p. 79. 306 "Ce qu'il ya de plus profond dans l'homme, c'est la peau" In: VALERY, Paul. "L'Idée fixe ou deux hommes à la mer" (1932). Oeuvres II, Paris: Gallimard, 1975, p. 216. 177 2.4.3 O desenho, a representação e a representação dos desenhos Imagem 3 - D0414 “Estudo para 'no tempo”, 1991, caneta esferográfica sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC. Em um desenho de 1991, D0414, intitulado “Estudo para 'no tempo”, Iberê Camargo apresenta-nos uma cena em que uma figura dirige seu olhar para uma série de objetos dispostos em uma mesa. A figura, pelos traços, aparenta uma idade avançada. Os objetos dispostos sobre a mesa são um conjunto de carretéis e a figura em miniatura de um ciclista em uma paisagem que é reduzida ao tamanho dessa mesa. Ao final da vida, Iberê Camargo reapresenta os objetos que marcaram sua produção: os carretéis, a paisagem e os ciclistas, os temas mais caros de sua extensa produção. Mais que isso, esses temas estão no desenho justamente a partir de sua propriedade de serem temas, e a figura que os contempla assim os vê: "no tempo", em uma visão retrospectiva, que é a 178 visão do próprio artista. Sendo assim, o desenho de Iberê torna-se não apenas a representação daqueles objetos, mas a representação da própria representação daqueles objetos e, nesse sentido, o desenho surge como representação do próprio desenho. Curiosamente, essas formas que adquiriram autonomia plástica nas obras de Iberê Camargo (que foram os veículos dessa independização), ao serem representadas como representações delas mesmas e, portanto, fazendo referência ao conjunto de sua obra, passam a participar de um laço de dependência interpretativa em relação a essas outras obras. "O desenho fala". A afirmação de Mário de Andrade diz respeito à sua concepção do desenho como a arte que "chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica". Examinar essa noção do desenho, da linha, como uma arte que expressa um pensamento através de uma linguagem específica é o objetivo deste subcapítulo. Analisaremos o que significa dizer que o desenho fala, de que forma essa fala é constituída e qual o "discurso" apresentado em suas palavras. A partir dessa análise, veremos por que o desenho, considerado sob essa perspectiva, é um oportuno campo a partir do qual se pode estudar as questões de influência. Desenho e escrita possuem uma relação histórica. Essa relação identifica-se com a origem da escrita. Se a origem histórica do desenho não é clara, cabendo ao mito o relato de sua criação307, sabemos, entretanto, que a escrita tem origem justamente no desenho tendo-se originado entre os sumérios, cerca de 3200 anos antes de Cristo, conforme afirma Jean Bottero: "Para fazer essa descoberta bastou-lhes desenvolver os processos de seus artistas e seus contadores e tirar daí, num rasgo genial somado ao acréscimo de diversas figurações convencionais, uma coleção ampliada de desenhos e figuras esquemáticas. Esses sinais tinham traçados uniformes o suficiente para permitir uma identificação imediata e eram virtualmente capazes, por seu número e distribuição, de transmitir, fixando-as, todas as mensagens, todo o conteúdo do pensamento"308. 307 É conhecido o relato mítico sobre a filha do ceramista de Corinto, Dibutades, e que vendo partir o jovem pelo qual está apaixonada, delineia sua sombra buscando guardar sua presença, dando origem ao desenho. 308 DERDYK, P. 23. & BOTTERO, Jean. "A escrita e a formação da inteligência na Mesopotâmia antiga", em Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995, p. 12. 179 Assim, está na base da escrita seu fundamento como um desenho309. Essa reação primordial leva, por seu turno, a considerarmos o desenho como uma expressão que contém a escrita. Seus traços, portanto, incluem, a partir de uma memória ancestral, o fundamento segundo o qual a comunicação escrita foi fundada. É Paul Klee quem escreve que “escrever e desenhar são, no fundo, o mesmo”310. Esse fundamento assentase em um elemento comum a partir do qual foi possível ao desenho dar origem à escrita. Tal elemento comum é a linguagem, entendida em seu sentido mais amplo, não restrito aos códigos especificamente criados para a linguagem escrita. Também a visão renascentista de disegno, por seu turno, deriva, senão do texto escrito, ao menos do discurso. O termo disegno foi retirado da estrutura tripartite do discurso na retórica: inventio, dispositio e elocutio, que, no caso das artes plásticas, se tornarão disegno, compositio e colorito. Assim, do mesmo modo que o orador inventava a ideia que iria falar, organizava as frases e as apresentava oralmente, o pintor concebia a ideia da pintura, compunha seus elementos e finalmente pintava sua tela311. A partir dessa visão mais alargada da linguagem 312, seria possível analisar a semiose do desenho, buscando compreender se ele, sendo um signo, poderia ser interpretado como índice, ícone ou símbolo. No entanto, nosso foco não é o aspecto semiótico do desenho, mas a busca de uma "fala" específica do desenho, reconhecendo, entretanto, sua complexidade como signo. A partir desse reconhecimento, em todas as situações em que o desenho nos comunica algo, o faz através de um elemento que é comum a todas as artes: o desenho fala-nos por ser representação de algo. Serão feitas, a seguir, algumas considerações sobre o conceito de representação, para esclarecer seu sentido e identificar as especifidades da representação no desenho que o fazem um campo fértil para a análise das questões de influência. Por representação, entendemos313 aquilo que, conforme analisado por Arthur 309 Estudos no campo da literatura têm procurado reaproximar a escrita com o desenho, como é o caso do nº 84 (1994) da Revista Yale French Studies, intitulado "Boundaries: Writing & Drawing" , dedicado às relações entre desenho e escrita. O que pretendemos aqui é indicar esta aproximação partindo do desenho. 310 KLEE, Paul. Théorie de l'Art Moderne. Paris: Folio, 1999. p. 58. 311 PEREZ-ORAMAS, Luis Enrique. "Disegno" In: HAUPTMAN, Jodi. Drawing from the modern 18801945 (vol. I). New York: The Museum of Modern Art, 2004. p. 18. 312 A arte como linguagem é questão amplamente explorada no terreno da estética por teóricos como Nelson Goodman, sobretudo em sua obra Languages of Art. 313 Esse parágrafo dedicado à representação retoma questões trabalhadas em minha dissertação de 180 Danto, tem seu surgimento histórico nos rituais dionisíacos, em que o Deus, no momento do clímax ritualístico, se fazia presente diante dos celebrantes. Acreditava-se que o Deus, como escreve o autor: “estava literalmente presente em cada ocasião, e esse é o primeiro sentido de representação: aquele de ser uma re-presentação”314. O surgimento do que entendemos por representação dá-se quando essa presença real do Deus é substituída pela mesma ação, agora simbolizada (o que equivale ao surgimento da encenação trágica entre os gregos). Esse, portanto, é o segundo sentido da representação, “algo que está no lugar de outra coisa, igual a nossos congressistas, que nos representam por delegação de poderes”315. Uma mudança de vínculo se estabelece entre o ritual/a arte e a realidade. No caso primitivo, temos uma relação de identidade, vendo na reapresentação a epifania da coisa mesma. No caso artístico, já estamos sob a égide de uma relação de designação. Uma brecha é aberta, a partir da representação artística, entre a realidade e seus representantes. Brecha de tipo semelhante àquela que separa a linguagem da realidade no que diz respeito à capacidade descritiva daquela (a linguagem) para com esta (a realidade). Assim, representar acaba sendo um meio de trazer à presença aquele objeto do real, mas por outros meios que não o próprio objeto, o que “implica transformação” e “uma segunda presença”316. O objeto ali disposto, a obra de arte, é representativo quando se comporta como substitutivo de uma realidade ausente e vai além desta também pela possibilidade de criar para o espectador, em sua relação com a obra, de colocar-se em outro lugar, em uma outra realidade, “um outro mundo, no qual imerge e esquece de si e do real entorno”317. Esse distanciamento em relação a esse “real entorno” permite à arte falar sobre essa mesma realidade, ser leitura criativa desse mesmo mundo. Destaca-se novamente aqui a arte como linguagem. Não se nega, ao falar desse caráter representativo da arte, sua presença real no mundo. É justamente a partir de sua materialidade, desse “aqui e agora que constitui o conteúdo da sua autenticidade”, como mestrado. Conf.: GODOY, Vinícius Oliveira. Violência e Tragédia: a arte na margem do dizível. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/UFRGS, 2002. Orientador: Prof. Dr. Edson Luis André de Sousa. 314 DANTO, Arthur. La Transfiguración del Lugar Común. Una Filosofia del Arte. Barcelona: Paidós, 2002. p. 45. 315 Idem, 46. 316 SQUEFF, Maria Ozomar Ramos. Mímesis da arte: os limites da crítica. In: ZIELINSKY, Mônica (org.). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p. 101. 317 Idem, o. 105. 181 também nos lembra Walter Benjamin318, que a obra fala do real. Essa concretude é, sobretudo, visível no desenho, onde podemos ver não apenas a representação dos objetos do mundo a que ele faz referência mais ou menos direta, mas também a concretude das linhas, sempre aparentes319, o que mostra, nesse sentido, a contiguidade, no desenho, entre signo e coisa, tema estudado no texto clássico de Rosalind Krauss, "Notes on the Index: Seventies Art in America"320. Mas esse falar representativo a partir do concreto da obra não se reduz, repetimos, a esse concreto, dado esse caráter duplo a que a arte parece sempre indicar no momento de sua recepção. Duplicidade também notada por Gombrich321 e Wollheim322, em que o espectador vê – falando ambos os autores da pintura, mas podendo ser perfeitamente pensado em relação ao desenho – uma coisa no quadro e uma coisa no mundo real, ao olharmos para uma tela. Duas experiências distintas ocorrendo simultaneamente, no caso da análise de Wollheim. Duas experiências distintas ocorrendo distintamente, segundo Gombrich. De qualquer forma, simultânea ou não, a experiência de duplicidade funda-se em algo que poderíamos chamar de uma “analogia imprecisa” em que, se temos elementos que permitem fazer a ponte (metafórica) entre real representado e objeto artístico que o representa, um “elemento discordante também é essencial, pois é nele que se funda a distância entre representante e representado”323. É necessário, então, junto com a parecença, uma dessemelhança entre arte e realidade. Fundamental, ainda, é salientar que o “outro” a que a representação faz referência não é necessariamente um outro concreto facilmente indicado na natureza e 318 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” In: _______________ . Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. p. 167. 319 Poderíamos dizer que esta concretude também está na pintura, por exemplo, a partir da presença da pincelada aparente. No entanto, se na pintura esta aparência da pincelada é uma conquista históricamente alcançada, no desenho esta concretude é constituinte do meio e sempre presente, desde seu início. 320 KRAUSS, Rosalind. "Notes on the Index: Seventies Art in America" (parte I e II). In: October, volumes 3 e 4, verão e outono de 1977. Massachusetts: The MIT Press. É importante observar que a contiguidade analisada por Krauss em algumas produções artísticas dos anos 1970, principalmente no campo da pintura, são já constituintes do próprio desenho desde sua formação (conforme afirmamos na nota anteior). 321 Fundamentalmente em: GOMBRICH, Ernst. The Image and the Eye. Further studies in the psychology of pictorial representation. New York: Phaidon Press Inc, 1994 (reedição do original de 1982). 322 O posicionamento de Wollheim sobre a questão da duplicidade em: WOLLHEIM, Richard. A Pintura Como Arte. São Paulo: Cosas & Naify, 2002. 323 SQUEFF, Maria Ozomar Ramos. Mímesis da arte: os limites da crítica. In: ZIELINSKY, Mônica (org.). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p. 109. 182 que a mímesis não é cópia da realidade natural. A representação comporta a marca de uma presença do mundo, seja uma ação, uma cor, um objeto, enfim, algo que remete para a realidade, sem que essa realidade seja necessariamente identificada com facilidade. É dessa forma que podemos identificar como representativas, por exemplo, obras abstratas, não claramente referenciais324. Defendendo a representação na arte, Adorno expressa ser a arte “o mundo uma vez mais, a ele tão semelhante como diferente”325. É, para o autor, a representação (o termo utilizado por Adorno é “mímesis”) momento inalienável e característica substancial da arte. Um dos fundamentos do distanciamento da arte com a realidade é justamente que aquela é linguagem, embora “linguagem sui generis ”. Sendo a representação algo que remete para a realidade, ainda que não necessariamente identificável, é possível pensarmos, entre os aspectos que o desenho representa, um que diz respeito diretamente a esse extrato da realidade que é contido pelos próprios desenhos. Esse aspecto é particularmente tornado evidente no caso do desenho por algumas características específicas que este possui. Entre essas características, está a de que, ainda que o desenho tenha adquirido autonomia artística plena, por sua histórica incompletude ligada às questões já referidas, como seu caráter de projeto, faz com que ele traga consigo a capacidade de ser um objeto autônomo que, entretanto, não é fechado em si mesmo. Essa abertura, que se objetiva no suporte através da exibição da marca da linha e de sua trajetória, do não-ocultamento de seus momentos de incerteza e da hesitação do gesto, indica que sua autonomia foi justamente alcançada a partir da consciência do valor que a incompletude possui. Tal abertura a partir da incompletude é particularmente rica para o estudo das influências, quando vista sob a perspectiva da representação. Sob tal perspectiva, o desenho representa não apenas os objetos do mundo a que faz referência mais ou menos direta, mas também pode ser pensado como uma representação da própria arte. Nesse sentido, em seu caráter aberto, sua incompletude, que é caracterizada pela aparência de sua fatura "provisória", faz do desenho o lugar em que a ausência representada é de todos os outros desenhos a que o desenho faz referência. Assim, as linhas passam a ser vistas em contexto com todas as 324 Entende-se aqui como claramente referenciais aquelas obras que são facilmente reconhecidas quando confrontadas aos objetos do mundo. 325 Adorno, Theodor. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 370. 183 linhas já traçadas, na medida em que o traço se transforma em signo de sua relação com outros traços "alheios". É nesse sentido que o desenho pode ser entendido, finalmente, como uma representação da própria influência. Ainda que autônomo, todo desenho estabelece uma relação de dependência quando pensado em sua relação com os outros desenhos, sobre os quais projeta suas influências. É desse modo que, conforme afirma Najinski, "o desenho desestabiliza sua própria autonomia"326. Retornando à questão do desenho como projeto, podemos dizer que ele, sob a perspectiva de uma representação das influências, se torna projeto para si mesmo ao passar a projetar suas influências e que, finalmente, voltando à afirmação de Mário de Andrade, entre suas falas, o desenho tem a capacidade de nos falar de suas próprias influências, mais do que qualquer outra arte visual, por sua proximidade com a linguagem escrita. É justamente na escrita, nos estudos literários, conforme veremos no terceiro capítulo, que surgem os chamados "estudos de fontes e influências". 3. O desenho de Iberê Camargo: metodologia para o estudo das influências A seguir, apresentaremos a obra de desenhos de Iberê Camargo contida no acervo da Fundação Iberê Camargo. Serão expostas as estratégias de abordagem desse acervo a partir das quais serão identificadas as obras mais significativas para o esclarecimento das questões teóricas desta tese. O método de abordagem do acervo de desenhos de Iberê Camargo utilizado para o estudo das questões de influência, surgido ao nos debruçarmos sobre essa obra, apresenta-se como um método específico para a obra, mas, visto em uma perspectiva mais geral, caso mostre-se frutífero a esta análise, pode servir como metodologia para o estudo das questões de influência no campo mais ampliado das artes visuais. Essas duas perspectivas (geral e particular), segundo nossa própria concepção desse conceito (de influência), são inseparáveis, conforme veremos no terceiro capítulo desta tese. 326 NAGINSKI, Erika. "Drawing at the Crossroads". Representations, nº 72 (outono de 2000), California: University of California Press, p. 68. A autora refere-se ao desenho na medida em que é entendido como visualização de um conceito. 184 3.1 Esclarecimento dos três níveis de análise dos desenhos de Iberê Camargo A abordagem do acervo da Fundação Iberê Camargo foi realizada através de três níveis de análise. Esses níveis não são fechados em si mesmos, mas comunicam-se constantemente. Sendo assim, muitas vezes, ao realizarmos, por exemplo, o terceiro nível de análise, este nos apresentava problemas que nos faziam retornar ao primeiro nível. Configura-se esta análise, portanto, como um circuito que constantemente se retroalimenta de todas as suas etapas. O primeiro nível de abordagem do acervo de desenhos teve início por aquilo que foi descrito na primeira parte deste capítulo ("1. Considerações gerais sobre o desenho de Iberê Camargo"). Nesse nível, fizemos um mapeamento geral de sua produção, procurando identificar basicamente alguns padrões quanto às temáticas presentes em sua obra. Conforme já salientamos, a primeira consideração a ser feita é a da onipresença do desenho de figuração humana ao longo de toda a trajetória artística de Iberê Camargo – presença que, além de sua constância ao longo dessa trajetória, se mostra com significativa predominância quando comparada, em seu número, aos outros temas. Rigorosamente, o período em que não encontramos desenhos de figuração humana datados (e em que encontramos outros desenhos datados - já que há alguns poucos períodos em que não encontramos desenho algum), são o ano de 1965 e o período entre 1967 e 1968. Os outros temas, ordenados aqui pela quantidade encontrada em seu acervo, são: as paisagens, o tema dos carretéis e seus desdobramentos ligados à "abstração", figurações de animais e a representação de naturezas-mortas e objetos dispostos em cenas de interiores. O segundo momento desse primeiro nível de análise concentrou-se na identificação de todos os desenhos que eram datados, a partir do tombamento realizado pela equipe de catalogação da Fundação Iberê Camargo327. A escolha da análise dos desenhos datados deve-se a uma razão bastante evidente: a possibilidade, a partir desses desenhos que possuem data, de acompanharmos a trajetória criativa do artista ao 327 Consideramos apenas os desenhos datados com exatidão ao menos de ano, desconsiderando os desenhos com imprecisão do tipo "cerca de" ("c.", segundo o código de tombamento) no que se refere ao ano de sua realização. Todos os desenhos que tinham o ano de forma precisa mas não tinham o dia ou o mês de sua realização foram incluídos em nossa seleção. 185 longo do tempo e em confronto com o contexto artístico nacional e internacional. A restrição da análise ao conjunto dos desenhos datados já fez com que fossem reduzidos de um conjunto inicial de três mil e quatrocentos desenhos para mil quinhentos e sessenta e três desenhos. Uma provável consequência derivada da escolha dos desenhos datados é que estes possivelmente estavam entre aqueles a que Iberê dedicou maior atenção em sua finalização e que foram mais importantes para o artista à época, razão pela qual resolveu datá-los (além da consideração que todos os outros desenhos possuem pelo próprio fato de terem sido guardados pelo artista ao longo dos vários anos, passando pelos vários lugares onde o artista viveu). Junto a esse momento, houve também a opção por considerar como desenho o trabalho de aquarelas e incluí-las, portanto, em nosso estudo. Essa decisão deu-se por alguns motivos fundamentais, dos quais destacamos: o fato de as aquarelas (e especialmente as aquarelas na obra de Iberê Camargo) apresentarem elementos materiais característicos do desenho (o suporte em papel e o material utilizado na confecção da linha: nanquim e caneta, por exemplo); a presença de elementos formais típicos do desenho (e nos referimos aqui fundamentalmente à linha), ainda que guardem relações com a pintura (como a importância da mancha e da cor); o fato de as aquarelas serem colocadas junto aos desenhos (1) nas exposições de Iberê Camargo, (2) na conservação que o próprio artista fazia dessas aquarelas e, por último, (3) na própria catalogação de sua obra; a tradição histórica e crítica sobre o desenho, que costuma colocar em contiguidade as aquarelas e os desenhos; finalmente, nosso entendimento particular de que a inclusão das aquarelas em nossas análises trariam uma riqueza interpretativa maior do que se elas fossem excluídas, sem a perda da especificidade do nosso objeto de estudo (ou, caso haja alguma perda, esta é compensada por essa riqueza a que nos referimos). O segundo nível de abordagem do acervo de Iberê Camargo, e a que este subcapítulo diz respeito de forma mais direta (subcapítulo 4, a partir de sua subseção 4.2 e seus desdobramentos), trata de uma primeira reflexão a partir dessa seleção prévia. Sendo assim, esse nível faz um mapeamento dos desenhos, sob a perspectiva de seu desenvolvimento328 ao longo do tempo, procurando identificar momentos nos quais as 328 Desenvolvimento, bem entendido, como um desenrolar ao longo de um percurso passível de ser identificado no tempo, e não (necessariamente) sob a perspectiva de mudança qualitativa, tal como o termo adquiriu a partir do século XIX, sobretudo através das ideologias progressistas da história. 186 mudanças estilísticas e/ou temáticas se mostram mais evidentes. A partir dessa identificação, marcamos aqueles desenhos que exemplificam melhor tais mudanças e a data em que tais modificações ocorrem. Identificaremos essa datação segundo o contexto específico da trajetória biográfica de Iberê Camargo, sem, contudo, nos determos em uma análise mais aprofundada desses contextos, nem nos atermos ao contexto artístico mais amplo. Acompanhando os momentos de mudança significativa da produção de desenhos de Iberê Camargo, optamos por agrupá-los em períodos, os quais são marcados pelas subdivisões dos subcapítulos (4.2.1 a 4.2.10). Dessa forma, a análise permitirá ver o desenvolvimento interno de seu trabalho, sob uma perspectiva formal e temática, sem ainda nos atermos a referências diretas às influências. Espera-se que essa descrição e análise, construída a partir das razões internas da obra em seu desenrolar, ou seja, engendradas a partir de sua dinâmica interior através de seu desenvolvimento cronológico, sejam essencialmente incompletas quanto à compreensão de seu desenvolvimento e de suas mudanças. Essas incompletude e incompreensão, caso sejam alcançadas e evidenciadas nas entrelinhas desta análise, serão por si mesmas a primeira e mais importante justificativa do estudo das influências, em uma perspectiva contextual/formal329, como pretendemos realizar no capítulo terceiro. Finalmente, o terceiro nível de abordagem dos desenhos de Iberê Camargo, a que nos dedicaremos no capítulo terceiro, será o da análise desses desenhos previamente identificados, segundo os contextos resumidamente definidos. Esses desenhos serão analisados sob a perspectiva da influência tal como esse conceito será teoricamente analisado na primeira parte do terceiro capítulo, sob uma dupla perspectiva de análise cronológica: aquela ligada de forma mais íntima à biografia artística de Iberê Camargo (como, por exemplo, seus estudos, suas viagens e suas exposições) e a relacionada ao contexto histórico mais amplo em que o artista e sua obra se localizam. Interessa-nos principalmente as intersecções dessas duas perspectivas. A análise, portanto, colocará em prova as hipóteses teóricas apresentadas. Ao mesmo tempo, caso se mostrarem métodos coerentes de análise dos temas da tese, esclarecerão o problema da influência 329 Entendemos por contextual/formal a análise que dá relevância ao contexto da obra, mas que não pensa esse contexto a partir de determinismos econômicos, sociais ou políticos, porém compreende e analisa tal contexto a partir das relações que as obras, o olhar e as práticas dos artistas estabelecem entre si. 187 na obra de desenhos de Iberê Camargo, objetivo último de nossa investigação. Por último, a análise apontará para a possibilidade de alargar seu alcance como teoria e método de pesquisa dessas questões de modo geral nas artes visuais. É importante salientarmos que não foi possível fazermos um subcapítulo específico sobre as falas de Iberê e da crítica sobre seus desenhos (tal como fizemos no capítulo primeiro, quanto às falas sobre influência e originalidade). Essa impossibilidade decorreu do fato de não termos um conjunto significativo de textos para essa análise, mas apenas citações esparsas do artista (o qual sempre foi convocado a falar sobre sua pintura e, em menor grau, sobre sua gravura) ou textos muito pontuais em pouquíssimos catálogos dedicados a esse assunto (conforme vimos no subcapítulo 1.1. do atual capítulo, ao estudarmos a circulação dos desenhos de Iberê Camargo). Sendo assim, optamos por inserir essas poucas referências ao longo da análise de sua obra, sobretudo no último capítulo desta tese. 3.2 O segundo nível de análise: mapeando mudanças e identificando os desenhoschave para a análise 3.3.1 Os anos de 1928 a 1942 “Comecei a desenhar com quatro anos de idade. Sentado no chão, debaixo da mesa, passava horas a fio a rabiscar”330. Iniciamos nossa análise a partir dos primeiros registros de desenhos de Iberê Camargo. Esses desenhos datam de 1927 e 1928, compreendendo, assim, o período de inícios da adolescência do artista (13-14 anos)331. Esse período coincide, no que se refere ao ano de 1928, ao início de sua aprendizagem artística formal, na Escola de Artes e Ofícios da Cooperativa da Viação Férrea de Santa Maria/RS. São desenhos que nos servem mais como registro histórico de seus primeiros traços do que propriamente para uma análise de suas qualidades artísticas; no entanto, em contraposição aos desenhos posteriores, servem para salientar as diferenças entre estes últimos332. São trabalhos marcados pela economia dos traços, pela síntese dos elementos compositivos das figuras, basicamente compostas por figurações humanas. 330 CAMARGO, Iberê. No andar do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1998. p. 75. 331 Não temos registro destas primeiras garatujas do artista, quando de seus quatro anos de idade. 332 É importante registrar que recusamos nesta tese uma concepção teleológica de análise, que faria com que os desenhos mais antigos fossem explicados a partir dos desenhos posteriores. O que queremos é apenas acompanhar as mudanças e apontar suas características. 188 Entre essas figuras esquemáticas, destacamos no ano de 1927 (portanto, antes de seu ingresso na Escola de Artes e Ofícios), o desenho D2030 pela compreensão aparentemente bastante madura para sua idade dos elementos constitutivos da figura. Pelos trajes e posição da figura e em comparações a outros desenhos da mesma época, parece tratar-se de cópia de algum desenho presente provavelmente em alguma revista a que o menino tinha acesso à época. Imagem 4 - D2030 [Boca do Monte], 1927, lápis sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC. Como não possuímos a data exata de todas as figuras de 1928 (com dia e mês), não podemos afirmar se as imagens são desenhos feitos já como exercícios da Escola de Artes e Ofícios, ou se são de desenhos imediatamente anteriores a seu ingresso. O que notamos, entretanto, é a persistência na figuração de caráter sintético, como, por exemplo, na imagem de um animal vacum em D0136. 189 Imagem 5 - D0136 Sem título, 1928, lápis sobre papel, 15,5 x 25 cm. Acervo FIC. Os desenhos de 1928 são de um caderno de desenhos, de edição esmerada, com folhas de papel manteiga entre as folhas de desenho. Iberê anota na fronte do caderno: “Boca do Monte”, indicando a cidade em que aqueles desenhos foram feitos (antiga denominação do município de Santa Maria/RS) e o ano: “1928”. Entre os anos de 1928 e 1938/9, interrompe-se o registro de desenhos do artista. Dessa forma, temos uma lacuna grande que abrange desde seu desligamento da Escola de Artes e Ofícios, em 1929, passando por seu trabalho como desenhista técnico do escritório do Primeiro Batalhão Ferroviário, em 1932, até sua chegada em Porto Alegre, em 1939. Do ano de 1938, temos apenas dois desenhos datados. Trata-se de dois esboços de retrato de um mesmo modelo. Notamos nesses esboços o domínio da figuração, a continuidade do acento sintético do traço, mas com uma linha que se mostra bastante diferente das dos desenhos de adolescência: marcada agora pela 190 descontinuidade e pelo traço rápido da figura em geral e mais detido e contínuo no tracejar dos elementos internos do rosto (olhos, nariz e boca), como podemos ver em D1756. Imagem 6 - D1756 Sem título, 1938, carvão sobre papel, 27,7 x 22,4 cm. Acervo FIC. 191 Considerando que esses desenhos são os primeiros do artista adulto (jovem adulto, com 23/24 anos), é a partir deles que vemos com clareza as mudanças em seus desenhos posteriores. Os desenhos de 1939, portanto, são os que marcam a primeira grande mudança do artista. Feitos durante seu primeiro ano como estudante do Curso Técnico de Desenho de Arquitetura no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, são estudos marcados pelo academicismo tanto na temática quanto no modo da figuração. Seguindo a tradição clássica de representar esculturas através do desenho, os desenhos são de três cabeças, das quais destacamos D2326, uma cópia do "Êxtase de Santa Teresa", de Bernini, marcado pelo estudo dos volumes, de luz e sombra, de um traço mais difuso, menos delineado e mais composto desse jogo de claro e escuro. Imagem 7 - D2326 Sem título, 1939, carvão sobre papel, 55,2 x 48,4 cm. Acervo FIC. 192 O mesmo exercício é visto no desenho de um ramo de flores, D2324, o qual, pelo trabalho de luzes e sombras, de busca de caracterização do volume, adquire um aspecto escultórico (ainda que não necessariamente se trate originalmente de uma escultura). Imagem 8 - D2324 Sem título, 1939, carvão sobre papel, 63,2 x 48 cm. Acervo FIC. 193 O ano de 1940 não apresenta uma mudança significativa na produção do jovem artista no que se refere à figuração humana. Esses trabalhos são marcados por uma série de retratos de sua esposa Maria (Iberê Camargo e Maria Coussirat haviam se casado em 1939), seguindo a mesma configuração já vista nos retratos de 1938, como em D0527. Imagem 9 - D0527 Sem título, 1940, lápis sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC. 194 Seguem também os desenhos de esculturas, como D2328, uma reprodução de um mármore do Instituto de Belas Artes (a cópia da Vênus de Milo que se encontra no saguão do atual Instituto de Artes) em que anota junto à assinatura: "II ano", mostrando claramente que se trata de um exercício das aulas de desenho do curso técnico. Imagem 10 - D2328 Sem título, 1940, carvão sobre papel, 63 x 48 cm. Acervo FIC. 195 Como marco diferencial do ano de 1940, notamos uma série de paisagens e alguns desenhos de interiores (tanto da casa do artista quanto do ateliê que o artista constrói, nos fundos do terreno de sua casa, na Rua Lima e Silva, e que divide com o colega do curso técnico, Vasco Prado). Quanto às paisagens, nota-se o exercício de esboços em que é marcante o traço rápido e, ao contrário dos desenhos de figuração humana em que a economia dos traços era marcante, a necessidade de ocupação de todo espaço compositivo, recobrindo de linhas o suporte, como em D1444 ou em D3228. Imagem 11 - D1444 Sem título, 1940, carvão sobre papel, 20,9 x 24,8 cm. Acervo FIC. 196 Imagem 12 - D3228 Sem título, 1940, lápis sobre papel, 20,5 x 22,2 cm. Acervo FIC. No que se refere aos interiores, notamos também o mesmo horrror vacui de suas paisagens, com uma diferença que parece bastante significativa: a consciência geométrica que parece surgir na composição desses interiores, principalmente a partir da tensão estabelecida entre as linhas ortogonais e as linhas diagonais, como pode ser visto em D0520 e D1492 – consciência que é ensejada pelo próprio ambiente retratado. 197 Imagem 13 - D0520 Sem título, 1940, nanquim sobre papel, 30,5 x 21,3 cm. Acervo FIC. 198 Imagem 14 - D1492 Sem título, 1940, nanquim sobre papel, 26 x 22,5 cm. Acervo FIC. 199 O ano de 1941 marca mudanças significativas na produção de desenhos de Iberê. No que se refere às paisagens, seu traço fica mais solto e, ao mesmo tempo, mais objetivo. A composição volta-se a uma síntese maior do que as anteriores, numa demonstração clara de seu avanço do entendimento da representação de paisagens e da compreensão da relação entre o suporte e a linha, como demonstra o desenho D1809 e, mais marcadamente ainda, o D1830. Imagem 15 - D1809 À beira do rio Jaguari, 1941, lápis sobre papel, 27,2 x 22,1 Acervo FIC. 200 Imagem 16 - D1830 Sem título, 1941, giz sobre papel, 15,1 x 20,4 cm. Acervo FIC. Ao mesmo tempo, composições como D2597, ainda que busquem preencher quase todos os espaços do suporte, mostram um traço mais livre e seguro, onde a mancha convive de forma harmônica com o traço e os espaços não preenchidos, que ativam e iluminam essa paisagem que beira à abstração. 201 Imagem 17 - D2597 Sem título, 1941, giz sobre papel, 22 x 17,5 cm. Acervo FIC. No tocante aos desenhos de figuração humana, Iberê inicia uma série que é a mais 202 conhecida e mais significativa desse primeiro período, os desenhos dos moradores do asilo "Sopa do Pobre". Esses desenhos prosseguem no ano de 1942, ao menos até sua partida para o Rio de Janeiro nesse ano. A série da Sopa do Pobre marcará um momento de clara inflexão em sua trajetória, que nesse período parece ser fundamentalmente a trajetória da aquisição e domínio de um arsenal representativo e dos primeiríssimos passos em busca de um modo próprio de representar. A face das figuras está disposta em frontalidade ou semifrontalidade, algumas vezes também acompanhadas da frontalidade de seus corpos, como em D1094. Imagem 18 - D1094 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 63 x 48 cm. Acervo FIC. 203 Tal frontalidade parece expressar a franqueza com que o artista procura retratar essas figuras. O traço é marcado por um trabalho de composição de luzes e sombras não-naturais que parecem partir do interior da composição em direção ao exterior. A pobreza dos retratados não faz com que o artista perca de vista a altivez com que busca mostrá-los, como vemos em D1103 ou D0047. Imagem 19 - D1103 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 62 x 48 cm. Acervo FIC. 204 Imagem 20 - D0047 Sem título, 1941, carvão sobre papel, 27,7 22 cm. Acervo FIC. No ano de 1942, imediatamente antes de sua viagem ao Rio de Janeiro, ainda encontramos os retratos da Sopa do Pobre. Os traços continuam basicamente os mesmos. A única mudança que encontramos é a da temática: as figuras antes altivas agora parecem mais ensimesmadas, vencidas, entregues à sua própria sorte, na mesma medida em que perdem sua inicial frontalidade, como vemos em D1089 e D0533. 205 Imagem 21 - D1089 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 63,7 x 48,3 cm. Acervo FIC. 206 Imagem 22 - D0533 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 30,2 21,8 cm. Acervo FIC. Tal mudança talvez reflita a perda de um idealismo inicial que essas figuras podem ter causado no artista quando de seus primeiros contatos, ao mesmo tempo em que pode ser reflexo do próprio esgotamento do ambiente artístico gaúcho para Iberê Camargo. Quanto às paisagens de seu último período no Rio Grande do Sul, em 1942, 207 encontramos desenhos como o feito no dia 15 de fevereiro daquele ano, D1780, curiosamente distinto dos anteriores, marcado pelo colorido, uma cor claramente subjetiva, e pelo esquematismo das imagens semiabstratas. São paisagens urbanas que retratam o cotidiano das ruas da cidade, aglomerações humanas (D1770) e, em alguns momentos, suas festas (o carnaval, como em D1775). Imagem 23 - D1780 Sem título, 1942, giz sobre papel, 24,3 x 19,5 cm. Acervo FIC. 208 Imagem 24 - D1770 Sem título, 1942, giz sobre papel, 28,9 x 22 cm. Acervo FIC. 209 Imagem 25 - D1775 Sem título, 1942, giz sobre papel, 25 x 20,7 cm. Acervo FIC. Os outros desenhos que encontramos em 1942, por sua temática e brusca 210 mudança, são claramente já de sua estada no Rio de Janeiro, razão pela qual nos faz colocá-los no subcapítulo seguinte. 3.3.2 Os anos de 1942 a 1947 Os desenhos de 1942 feitos no Rio de Janeiro não mostram uma significativa mudança dos trabalhos do mesmo período em Porto Alegre. No que se refere à figuração humana, temos, por exemplo, um perfil de Guignard, com quem começa a estudar nesse ano, em D1277, onde notamos uma contenção maior nas linhas em um trabalho de composição de luz e sombra e dos contornos da figura que parte de um emaranhado de linhas, o qual forma como que uma grade para representar os volumes. Imagem 26 - D1277 Sem título, 1942, lápis sobre papel, 22,5 x 15,9 cm. Acervo FIC. 211 O mesmo também é visto na cena íntima representada em D1754. Imagem 27 - D1754 Sem título, 1942, nanquim sobre papel, 23,6 x 32,2 cm. Acervo FIC. Tal emaranhado de linhas que sustenta a composição e lhes dá volume vemos em paisagens, como D1755, a seguir. 212 Imagem 28 - D1755 “Orla e Pão de Açúcar”, 1942, caneta sobre papel, 13,1 x 16,8 cm. Acervo FIC. O ano de 1943, ano da fundação do Grupo Guignard (A Nova Flor do Abacate 333), será caracterizado por profundas mudanças no desenho de Iberê Camargo. Esse ano sem dúvida marca um ponto de inflexão em sua produção, tanto em seus temas quanto no modo de composição e no seu traço. A figuração humana é a que apresenta as 333 Em 1943, Guignard, junto com um grupo de alunos (entre eles, além de Iberê Camargo, Elisa Byington e Geza Heller), descontente com o ensino tradicional de artes, funda o grupo Guignard, também conhecido como “A Nova Flor do Abacate”. “A Flor do Abacate” era o título de uma uma gafieira alugada pelo grupo para ser a sede de suas classes (o nome do grupo foi dado por Manuel Bandeira). O grupo tinha aulas de desenho, aquarela e guache e fez apenas uma exposição (no diretório acadêmico da ENBA). O Grupo Guignard dissolveu-se com a mudança de Guignard para Belo Horizonte. 213 mudanças mais significativas. Entre essas mudanças, notamos uma série de estudos a partir do tema das figuras humanas de grandes volumes, retratando um tipo bastante característico: o da negra/mulata brasileira. Temos o desenho de uma mãe negra com seu filho em D1164, onde é marcante o contorno das figuras. Imagem 29 - D1164 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 31,7 x 16,4 cm. Acervo FIC. A mesma cena é trabalhada em diferente técnica, como é possível ver em D1301, onde mais uma vez notamos a linha do contorno, bem como a busca de compreensão dos volumes através não apenas da linha, mas, nesse caso (tratando-se de um guache), também pela cor. 214 Imagem 30 - D1301 Sem título, 1943, aquarela sobre papel, 29,5 x 18,5 cm. Acervo FIC. A figura da mulher negra aparece também sozinha em D0008, onde o traço alcança uma delicadeza maior na mesma medida em que o diálogo da linha com o suporte parece se evidenciar mais, mesmo caso da figura retratada em D2012. 215 Imagem 31 - D0008 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 39,5 x 29,7. Acervo FIC. 216 Imagem 32 - D2012 Sem título, 1943, lápis sobre papel, 48 x 33 cm. Acervo FIC. 217 A imagem simbólica da negra brasileira aparece também em D2168, onde notamos a relação entre mancha e linha e entre linhas finas marcando os volumes interiores da figura (junto com as manchas) e as linhas mais espessas, presentes nos contornos. Imagem 33 - D2168 Sem título, 1943, nanquim e aquarela sobre papel, 34,9 x 39 cm. Acervo FIC. Esses desenhos apresentam características formais distintas, tendo como ponto em comum, além do tema, a exploração do volume das figuras e a busca da compreensão das relações de grandeza das formas, com uma tendência ao agigantamento delas, também claro na figura masculina retratada em D2234. 218 Imagem 34 - D2234 Sem título, 1943, carvão sobre papel, 64 x 41,5 cm. Acervo FIC. 219 Quanto às paisagens, poucas nos chegaram do ano de 1943. Temos, por exemplo, o desenho D1184, em que a forma das árvores parece acompanhar as mesmas preocupações presentes na forma das figuras, principalmente no que se refere ao estudo de volumes e relevos. Imagem 35 - D1184 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 22 x 21 cm. Acervo FIC. A clareza da linha na formação das figuras e o seu contorno contínuo e sintético 220 são vistos nesse período em toda a sua potência em desenhos como D1161, D1169 e D1411. Imagem 36 - D1161 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 27,5 x 20 cm. Acervo FIC. 221 Imagem 37 - D1169 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 28,3 x 21,3 cm. Acervo FIC. 222 Imagem 38 - D1411 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 20,7 x 29,5 cm. Acervo FIC. Dos desenhos que nos chegaram do ano de 1944, temos alguns estudos que seguem com o problema dos contornos na representação das figuras, como em D1890, além de desenhos em que a linha trava diálogo com sombras de características próximas 223 às da pintura: massas de sombra e linhas, como vemos em D2238. Imagem 39 - D1890 Sem título, 1944, lápis sobre papel, 21,6 x 28,1 cm. Acervo FIC. 224 Imagem 40 - D2238 Sem título, 1944, carvão sobre papel, 57,5 x 42,3. Acervo FIC 225 Um interessante desenho dessa época é D1233, marcado pela contiguidade, amontoamento de figuras - animais e homens, num mesmo espaço comprimido, desenhado sobre um fundo de aguada, o que nos dá a impressão de um cenário onírico. Imagem 41 - D1233 Sem título, 1944, nanquim e água de nanquim sobre papel, 24,8 x 30. Acervo FIC. O ano de 1945 é marcado na vida de Iberê Camargo pela instalação de seu ateliê na Lapa, logo após o fim do Grupo Guignard no ano anterior. Dos pouquíssimos desenhos datados desse período (identificamos apenas três), destacamos o desenho D1168, uma figura ensimesmada, absorta em seus pensamentos, em uma posição que foge do naturalismo das representações anteriores (note-se a colocação desajustada tanto da perna quanto do braço esquerdo da figura), com o delineamento de um rosto que está 226 entre a máscara e o caricatural. Imagem 42 - D1168 Sem título, 1945, nanquim sobre papel, 21,4 x 15. Acervo FIC. O acervo de desenhos da Fundação Iberê Camargo tem apenas oito desenhos dos anos de 1946 e 1947 - os dois últimos de Iberê no Brasil. Quanto à sua produção de modo mais amplo, o catálogo de gravuras não registra nenhum trabalho nesse período, o que indica que de fato não se trata de uma não-conservação de trabalhos desse período, 227 mas sim de uma produção bastante pequena, ao menos no que se refere às artes gráficas334. O único desenho de 1946 no acervo, D0018, retrata uma menina, representada de maneira bastante acadêmica – um desenho que não apresenta nenhuma mudança que indique uma busca ou desafios importantes para o artista. Imagem 43 - D0018 Sem título, 1946, lápis sobre papel, 62,4 x 47. Acervo FIC. 334 A futura publicação do Catálogo Raisonné de Pinturas indicará se esse é um padrão em toda a produção de Iberê Camargo. 228 Quanto aos desenhos de 1947, além de figuras que seguem alguns dos padrões dos anos imediatamente anteriores já descritos, como D2197, destacamos D1750 e D2165 por um curioso trabalho de geometrização das figuras. Imagem 44 - D2197 Sem título, 1947, lápis sobre papel, 62 x 40,5. Acervo FIC. 229 No desenho D1750, vemos a formação da figura através de linhas nada sinuosas, mas composta por traços retos, principalmente na roupa, nas mãos e no formato do cabelo, o qual tem seu primeiro delineamento redesenhado para acentuar a construção das linhas retas. Imagem 45 - D1750 Sem título, 1947, lápis sobre papel, 28,9 x 21,8. Acervo FIC. 230 No desenho D2165, temos a formação geométrica da figura e da cena de modo ainda mais evidente, na mesma medida em que a economia de linhas na formação da figura, ainda que se trate aqui de linhas descontínuas e sobrepostas (quase agressivas), se mostra evidente: o alcance do espaço moderno no desenho no mesmo ano em que participa da divisão moderna do salão de belas artes. Imagem 46 - D2165 Sem título, 1947, nanquim sobre papel, 32,5 x 22. Acervo FIC. 231 3.3.3 Os anos de 1948-1950 Dos desenhos de 1948, encontramos duas figurações humanas. A primeira, do período ainda no Brasil, D1098, de 17 de fevereiro, é um nu que não apresenta grande diferença formal das imagens anteriores (v. D0018), marcado pelo contorno visível e pelo colorido que dá o volume interno e que marca parte da constituição do fundo da imagem. Imagem 47 - D1098 Sem título, 1948, giz sobre papel, 63,4 x 48,6 cm. Acervo FIC. O outro desenho, D1553, já realizado em Roma, acompanha a estrutura dos 232 desenhos com traços retos do ano anterior (v. D1750 e D2165). Imagem 48 - D1553 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 24 x 20,3 cm. Acervo FIC. Não notamos, portanto, mudanças significativas nesses desenhos. Será nos desenhos das paisagens italianas que notaremos as mudanças mais significativas, não 233 apenas pelo tema, obviamente diferente, mas por uma mudança do traço, o que parece iniciar a partir desses desenhos. O tema da paisagem havia sido interrompido dos registros de seu acervo desde 1943 e retorna em desenhos desse ano, como D0853, em que as manchas da aquarela buscam a compreensão da luz italiana, principalmente através da construção no primeiro plano à esquerda, mesmo caso de D0857. Imagem 49 - D0853 Sem título, 1948, aguada de nanquim sobre papel, 18,5 x 23 cm. Acervo FIC. 234 Imagem 50 - D0857 Sem título, 1948, aguada de nanquim sobre papel, 22 x 27 cm. Acervo FIC. Por outro lado, nos nanquins que realiza em Veneza, notamos a delicadeza de um traço quase oriental em que a síntese e o detalhamento convivem em harmonia, como vemos em D0858 e D1261. 235 Imagem 51 - D0858 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 23,3 x 32 cm. Acervo FIC. 236 Imagem 52 - D1261 Sem título, 1948, nanquim sobre papel, 32 x 23,3 cm. Acervo FIC. 237 Não encontramos figuração humana datada precisamente no ano de 1949335, com exceção de uma imagem de interior, o que é por si mesmo uma mudança significativa na produção de Iberê, ao mesmo tempo em que notamos o surgimento de um tema que será retomado em sua volta ao Brasil: o da natureza-morta. Esse é o último ano de Iberê na Itália, transferindo-se ainda em 1949 para Paris. Em D1403, vemos o início de um padrão (no que se refere ao tema) de outros trabalhos bem posteriores: uma mesa, com alguns objetos dispostos e junto a uma fonte de luz - nesse caso, uma janela que deixa ver parte de uma paisagem. Imagem 53 - D1403 Sem título, 1949, nanquim sobre papel, 24 x 20 cm. Acervo FIC. 335 Entre os desenhos datados como "cerca de", encontramos algumas cópias de museus. As cópias são de pinturas clássicas, todas elas figurativas. Vemos, por exemplo, cópias de Rafael. Essas cópias não apresentam mudanças significativas dentro da obra de Iberê, a não ser no sentido em que buscam adequarse ao estilo de cada copiado, sem no entanto representar nenhuma mudança significativa no conjunto dos desenhos feitos no período. Por não apresentarem datação precisa, não foram incluídas em nossa análise. 238 O desenho se constrói pelo ziguezaguear de linhas e como enxadrezamento delas, interrompido na superfície da mesa, que por tal interrupção se banha da mesma luminosidade que vem da janela aberta. O interior figurado em D1636 mostra o exercício da construção da figura a partir de pequenos traços. Imagem 54 - D1636 Sem título, 1949, nanquim sobre papel, 20,8 x 17,3 cm. Acervo FIC. 239 A constrição da figura nesse quase pontilhismo também vemos em paisagens, como D1630 e D1638. Imagem 55 - D1630 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 19,5 x 26 cm. Acervo FIC. 240 Imagem 56 - D1638 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 18,5 x 19,5 cm. Acervo FIC. No entanto, no que se refere às paisagens (produção mais numerosa desse ano), notamos também o estudo da estruturação das imagens a partir da sombra e da superfície do papel, como em D1623 e D1625, nas quais o diálogo da mancha com a superfície se evidencia. 241 Imagem 57 - D1623 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 31,5 x 22 cm. Acervo FIC. 242 Imagem 58 - D1625 Sem título (Roma), 1949, nanquim sobre papel, 28 x 28,6 cm. Acervo FIC. 243 O acervo de desenhos da Fundação Iberê Camargo cobrindo o ano de 1950, quando de sua estada em Paris, é muito pequeno. Temos apenas quatro desenhos precisamente datados336. Trata-se de duas naturezas-mortas e duas paisagens. Os desenhos mais significativos, por marcarem mudanças, são as naturezas-mortas (as paisagens são esboços retirados de um bloco de desenhos e retratam o trajeto de Paris a Madri). A natureza-morta D0730 é um nanquim com aguada em que pela primeira vez o tema da natureza-morta aparece em sua especificidade, em primeiro plano e sem referência a nada mais. Imagem 59 - D0730 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 24,2 x 33 cm. Acervo FIC. A outra natureza-morta é D1608, também uma aguada de nanquim, em que parte 336 No que se refere às gravuras, não encontramos nenhum trabalho desta época, conforme nos informa seu Catálogo Raisonné. 244 da mesa e do que parece ser uma janela são também representados. Imagem 60 - D1608 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,5 x 25 cm. Acervo FIC. A linha estabelece parte dos contornos das figuras, cumprindo também a função de energizar, dar certo movimento ou dinamismo aos objetos, em certa tensão com a mancha da aguada. 245 3.3.4 Os anos de 1951 a 1959 O ano de 1951, seguinte ao do retorno de Iberê Camargo ao Brasil, não apresenta registros, no acervo da FIC, da produção em desenhos 337. Em 1952, registram-se apenas dois desenhos: uma paisagem em aguada de nanquim, D0541, sem grandes mudanças em relação às anteriores, e o esboço de uma natureza-morta, D1366, no qual se nota a simplicidade formal e a busca pela configuração de um espaço não-naturalista, mas onde os elementos do desenho dizem respeito a universo de forças próprias a ele mesmo. Imagem 61 - D0541 Sem título, 1952, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 31 x 22,7 cm. Acervo FIC. 337 Do mesmo modo, não há registro de gravuras nesse ano. 246 Imagem 62 - D1366 Sem título, 1952, lápis sobre papel, 25,2 x 17,8 cm. Acervo FIC. Em 1953, temos uma figuração humana e duas naturezas-mortas. A primeira, D1191, trata-se de um perfil em que se destaca a configuração clássica e, mais uma vez, o jogo que a aguada de nanquim estabelece com a linha. 247 Imagem 63 - D1191 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. As duas naturezas-mortas, D0820 e D1289, duas aguadas de nanquim, seguem a investigação de Iberê sobre o espaço, ressaltando-se o processo crescente de 248 geometrização das formas, que já mostrava seus primeiros passos antes de sua viagem à Europa. Imagem 64 - D0820 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 17,2 x 25 cm. Acervo FIC. 249 Imagem 65 - D1289 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. 250 Há também uma evidente reflexão sobre esses objetos colocados sobre a mesa não apenas a partir das relações que estabelecem entre si e com o espaço (veja-se, por exemplo, em D0820, a sombra do jarro, a partir de linhas horizontais que invadem o espaço ao lado), mas em suas singularidades específicas. O ano de 1954 é marcado por um mergulho nos trabalhos de natureza-morta. Temos o registro de uma figuração humana, D1189, muito semelhante à do ano anterior também um perfil de características classicistas. Imagem 66 - D1189 Sem título, 1954, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25,2 cm. Acervo FIC. 251 Quanto às naturezas-mortas, destacamos dois desenhos que indicam o prosseguimento de sua formalização do espaço e de uma geometrização crescente das formas. No desenho D0721, notamos a formalização desse espaço, tornado evidente pelas linhas que estabelecem as figuras em uma disposição geométrica que diríamos de cunho renascentista, não fosse a busca de disposição moderna das figuras, que buscam escapar à tridimensionalidade clássica338. Imagem 67 - D0721 Sem título, 1954, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 24,2 x 35,2 cm. Acervo FIC. 338 Apesar de as linhas serem marcas de referência para a transposição do desenho para a matriz da gravura e, portanto, não fazerem parte de uma reflexão do desenho, notamos o quanto elas organizam as figuras ali dispostas. 252 Geometrização mais radical teremos no desenho D1004, onde notamos algo que parecia em gestação nos desenhos anteriores: a mesa surgindo como a figura geométrica por excelência na composição (v. D1403 e D1289). Imagem 68 - D1004 Sem título, 1954, giz sobre papel, 22,5 x 31 cm. Acervo FIC. Se o ano de 1954 foi marcado pelo trabalho das naturezas-mortas, 1955 será o ano de um retorno à figuração humana nos desenhos na mesma medida em que se interrompem as naturezas-mortas. Seguem-se alguns perfis com a mesma disposição 253 vista nos anos anteriores, como vemos em D1195 ou D1194. Imagem 69 - D1195 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. 254 Imagem 70 - D1194 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,3 x 25 cm. Acervo FIC. 255 No entanto, algumas obras apresentarão uma significativa mudança. Entre elas, destacamos trabalhos como D2227 e D2228, característicos dessa diferença. Nota-se a liberdade compositiva do traço das figuras, que passam a conviver com o fundo, sem diferenciação tridimensional, em um claro avanço da compreensão moderna do espaço. Em D2228, notamos com clareza essa fusão entre o traço da figura e o da cadeira. Imagem 71 - D2228 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 63 x 48,5 cm. Acervo FIC. 256 Em D2227, vemos o estudo da figura humana isolada em sua bidimensionalidade radicalmente simplificada por sua silhueta. O trabalho construtivo das naturezas-mortas anteriores dá lugar a uma reflexão sobre a linha em sua função de delimitadora e criadora da forma orgânica e em sua relação com o fundo. Uma reflexão que também é sobre o espaço da composição, só que sob perspectiva diferente da anterior. Imagem 72 - D2227 Sem título, 1955, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 63 x 48,5 cm. Acervo FIC. 257 O ano de 1956 não será especialmente caracterizado por mudanças significativas no trabalho de Iberê Camargo. Vemos, por exemplo, a primeira presença documentada e datada do desenho de um gato em seu trabalho, o que é significativo se pensarmos nos vários desenhos de gatos que Iberê fará nos últimos anos de sua produção, quando desenhará o seu gato Martim. Temos o retorno das naturezas-mortas, segundo a mesma concepção anterior, de investigação da tridimensionalidade e dos objetos em sua singularidade (como vemos em D0731), com exceção do desenho D2112, um nanquim que apresenta um traço mais sinuoso e orgânico (mais semelhantes, portanto, aos traços das figurações humanas do ano anterior). Imagem 73 - D2228 Sem título (Rio), 1956, nanquim sobre papel, 33 x 44 cm. Acervo FIC. Notamos também o retorno ao tema da paisagem, com desenhos que se 258 comunicam com as mesmas formas naturais das figurações humanas e da naturezamorta D2112 supracitada, como podemos notar em D2109. Imagem 74 - D2109 Sem título (Rio), 1956, nanquim sobre papel, 32,7 x 44 cm. Acervo FIC. Em 1957, encontramos apenas um desenho de Iberê Camargo. Trata-se do desenho D1408, uma natureza-morta que, pelo que vemos das marcações do desenho, serviu de estudo para uma gravura, embora não tenhamos registro de gravura tal como o desenho, mas tenhamos um óleo desse mesmo ano (Garrafas, 1957, óleo sobre tela, 65x100 cm. Col. Roberto Marinho, RJ, que será visto no último capítulo desta tese) muito semelhante ao desenho. O desenho apresenta uma série horizontal de objetos dispostos sobre uma mesa; deles, notamos, além do extremo esquematismo das figuras (próprio de um esboço), a diversidade de planos presentes: o fundo azul, a base da mesa marrom, as garrafas ao fundo em preto e formas circulares em um plano entre a mesa e as garrafas. 259 Imagem 75 - D1408 Sem título, 1957, giz sobre papel, 12,5 x 21 cm. Acervo FIC. Não encontramos desenhos datados de 1958 em seu acervo. Esse ano é comumente associado à emergência da forma do carretel339 em sua pintura e na gravura. O episódio é relatado como consequência de uma hérnia de disco que teria deixado Iberê impossibilitado de trabalhar fora de seu ateliê, obrigando-o a representar formas presentes em seu interior. Conforme vimos, esse relato não guarda conformidade com os fatos, ao menos em sua produção de desenho, na qual, como vimos, as naturezas-mortas e trabalhos de uma intimidade maior já eram vistos há alguns anos antes de seu mito fundador. O ano de 1959 inaugura a presença documentada dos carretéis em seu acervo de desenho. Nesse ano, também vemos uma temática muito variada em sua obra, retomando alguns motivos ausentes nos últimos anos, como a figuração humana e a paisagem. 339 Os carretéis serão referidos nesta tese de maneiras distintas. Quando se tratar de figuras que guardem uma semelhança formal claramente identificável com o que conhecemos como carretéis, serão chamados simplesmente de "carretéis". Quando as formas apresentarem estruturas formais que derivam das formas dos carretéis, mas que apresentam uma dessemelhança com a forma original, serão denominadas de "forma-carretel", "figura-base do carretel" ou de "carretel ibereniano". 260 Os carretéis de 59 ainda compõem a estrutura formal básica das naturezas-mortas anteriores, ou seja: trata-se de objetos dispostos em uma mesa, como eram as garrafas, objetos domésticos e as frutas dos trabalhos mais antigos. No entanto, algumas modificações cruciais são vistas nesses desenhos. A mesa toma uma forma quase abstrata, praticamente só podendo ser reconhecida em comparação aos desenhos anteriores, como vemos em D0999 e - com não tanta intensidade - em D1476, onde a demarcação do limite entre a base e a parede e a indicação dos pés da mesa nos deixa supor a sua tridimensionalidade. A planificação da superfície (tampo) da mesa indica o pleno alcance da bidimensionalidade moderna, e os carretéis são signos do desenho, quase uma escrita em D0999, ou, em D1476, formas geométricas comunicando-se com a forma-mesa. 261 Imagem 76 - D0999 Sem título, 1959, aquarela sobre papel, 22,5 x 9,2 cm. Acervo FIC. 262 Imagem 77 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. 263 As paisagens de 1959 (encontramos três) não apresentam grandes modificações dos desenhos anteriores, sendo bastante tradicionais, como podemos ver em D0535. Imagem 78 - D0535 Sem título, 1959, caneta de nanquim sobre papel, 23,5 x 32,3 cm. Acervo FIC. Como exceção, temos um desenho que nos parece uma paisagem, ainda que bastante estilizada, em D2983, onde a liberdade gestual e a informalidade do traço (que é mais pincelada do que traço) são o que mais se evidencia nessa aquarela e o que temos de novo comparado à sua produção anterior. 264 Imagem 79 - D2983 Sem título (Rio), 1959, caneta de nanquim sobre papel, 24,3 x 42 cm. Acervo FIC. Quanto à figuração de 1959, temos uma série de personagens feitos para o que seria provavelmente o figurino de uma peça de teatro, conforme indicam os títulos dos desenhos, como D3112 ("guerreiros - 1ª cena"). 265 Imagem 80 - D0535 “Guerreiros”, 1959, giz e aquarela sobre papel, 35,1 x 25 cm. Acervo FIC. No entanto, tais desenhos, afora o motivo, não apresentam modificações significativas, ficando mesmo bastante aquém de trabalhos anteriores, o que nos leva a pensar que foram feitos mais como meios para outro motivo (a peça de teatro) do que 266 criações pensadas em sua autonomia, segundo os problemas próprios do desenho. Outra figura desse período é D1477, em que notamos como diferença a ingenuidade do tema, sem no entanto apresentar novas questões, o que nos leva a entender que são as naturezas-mortas com carretéis os trabalhos que de fato concentravam o maior desafio artístico de Iberê nesse ano. Imagem 81 - D1477 Sem título, 1959, caneta de nanquim sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. 267 3.3.5 Os anos de 1960 a 1964 Em 1960, encontramos apenas dois desenhos datados em seu acervo. No entanto, apesar de tal exiguidade, esses dois desenhos apresentam de forma clara um momento fundamental de mudança em sua obra. É o momento de abandono da natureza-morta e do lançamento das formas em um espaço não mais reconhecível. Como vemos em D1436 e D1430, Iberê caminha em direção à “abstração”, na medida em que as referências com a realidade praticamente desaparecem. Imagem 82 - D1436 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 17 x 23,6 cm. Acervo FIC. 268 Imagem 83 - D1430 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 20,5 x 26 cm. Acervo FIC. Essa série de formas, ainda que não nomeadas nos desenhos, terão o nome de "estrutura em movimento" nas várias gravuras e telas que faz sobre o mesmo tema nesse período. Trata-se basicamente de formas estruturadas a partir de sua singularidade como formas do desenho - ligadas por linhas de força, planando sobre o plano da grade em D1430 ou, em D1436, sobre linhas de características informais, que diríamos se tratar quase de um dripping de linhas. 269 O ano de 1961 segue com a mesma estrutura formal da série "estrutura em movimento" de 1960, como podemos ver em D1427. Imagem 84 - D1427 Sem título, 1961, nanquim sobre papel, 15,7 x 23,6 cm. Acervo FIC. Em 1962, Iberê realizará alguns desenhos que investigarão a estrutura das formas no espaço bidimensional a partir de novas perspectivas. Em D632 e D1475, notamos praticamente uma indistinção entre figura e fundo - supomos um fundo a partir do desenho do retângulo, o que na mesma medida nos sugere que os espaços não coloridos que são rabiscados compõem a figura. O desenho D0632 intitula-se “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, e o que nos chama atenção nessas estruturas é principalmente uma tentativa de organização do espaço do desenho, um ordenamento que, estabelecido na contraposição entre a mancha 270 do giz e o risco da caneta, estabelece uma tensão que é a estrutura do trabalho: uma tensão estruturante. Imagem 85 - D0632 “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, 1962, giz e caneta sobre papel, 25 x 35 cm. Acervo FIC. Em D1475, as formas parecem não compartir a mesma tensão do desenho anterior e estruturam-se antes em um equilíbrio harmônico. Esse equilíbrio, entre outros fatores, parece advir da colocação nada casual dos pontos azuis no interior das formas, os quais indicam justamente o baricentro das formas triangulóides. Esses pontos têm origem na forma do carretel, como pode ser visto em gravuras com o tema nesse período (em sua origem, representam o seu interior vazio), o que mostra que a referência ao tema do carretel segue presente mesmo nessas formas tendentes à abstração. 271 Imagem 86 - D1475 Sem título, 1962, giz sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. Outro desenho desse mesmo ano que tem como uma de suas origens o carretel, mas que, visto em sua singularidade, não faz nenhuma referência clara à essa forma que contribui para a sua origem é o desenho D1421. 272 Imagem 87 - D1421 Sem título, 1962, aquarela sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. A gravura CR-0099, de 1960, mostra com clareza a base do carretel sobre a qual Iberê desenhou essa forma (embora não esclareça a trajetória de sua mudança). A figura resultante possui formas que lembram uma figura alada, tendo como eixo o traço central. Por último, é importante observar que as marcas do guache indicam a pincelada, da mesma forma que o forte apelo às cores e à mancha parece colocá-la mais como um problema pictórico do que propriamente do desenho. 273 Imagem 88 - CR-099/G-083 "Presença de Carretel", 1960, água-tinta (processo do açúcar e lavis) 29,8 x 49,5 cm/ 45,2 x 56,6 cm. Acervo FIC. Em 1963, segundo o acervo de Iberê, registra-se um desenho de tendência abstrata, D1041, e duas representações de pássaros, D1082 e D1080. É possível inferir, pela forma de D1041, sobretudo pelos pontos no interior dela, que se trata de derivações dos carretéis (guarda alguma relação também com a forma do ano anterior, D1475). 274 Imagem 89 - D1041 Sem título, 1963, aquarela sobre papel, 90 x 60 cm. Acervo FIC. Esse guache, pelas formas vermelhas em contraposição ao fundo, retorna ao problema da figura. O formato cruciforme remete-nos à concepção de uma forma orgânica (no sentido de ser um organismo vivo), assim como o desenho (design) da forma superior, 275 ligada por dois apêndices à figura em forma de cruz, também nos lembra de algo vivo (animal ou vegetal). A forma apresenta um grande dinamismo, tanto pela composição do fundo que ativa o movimento da figura quanto pela própria figura, em sua forma e por seus traços internos, que lhe emprestam movimento. As duas aguadas de nanquim, D1082 e D1080, figuram pássaros. Nos dois desenhos, também o dinamismo das figuras é bastante claro, efeito alcançado tanto pelo fundo, com a convulsão da pincelada da aguada, os traços evidentes e em sentidos diversos, quanto pela composição da figura. Em D1080, notamos a utilização daquelas linhas paralelas que dinamizam a figura, já encontradas em desenhos anteriores. Imagem 90 - D1080 Sem título, 1963, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 70 x 50,2 cm. Acervo FIC. 276 Em D1082, o traço rápido que compõe o pássaro - principalmente na composição de suas asas - torna a figura um elemento dinâmico, auxiliando na representação desse momento de alçar voo que o desenho parece indicar. Imagem 91 - D1082 Sem título, 1963, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC. É interessante voltarmos ao desenho de tendência mais abstrata, D1041. Comparado agora com os pássaros que sabemos que Iberê compôs no período, parece 277 que essa forma toma um sentido até então não tão evidente: é possível ver na figura cruciforme algo muito próximo também da figura de um pássaro alçando voo, com a figura em meia-lua que formaria sua cabeça assemelhando-se a um bico aberto. Na mesma medida, o fundo toma um aspecto celeste, e a figura superior, ligada pelos dois apêndices, se aproxima de um formato solar. Os desenhos do acervo de Iberê Camargo datados de 1964 indicam uma interrupção nas figuras mais claramente abstratas. Temos três desenhos nesse período. O desenho D3102 segue com a representação de figuras aladas. Imagem 92 - D3102 Sem título, 1964, nanquim sobre papel, 17,6 x 25,4 cm. Acervo FIC. Ainda que quase abstrato, é possível vermos o perfil desse pássaro, com sua asa, a pata comprida e o formato da cabeça, na qual se destaca o bico da figura. Uma figura 278 que surge nesse ano, como vemos em D3103, é aquela denominada de "karapebunda". Imagem 93 - D3103 “Karapebunda”, 1964, nanquim sobre papel, 22,1 x 32,2 cm. Acervo FIC. Trata-se também de figuras aladas, ou melhor, figuras que voam, ainda que não possuam asas. Essas figuras, claramente representativas, assemelham-se, em sua forma geral, à forma de 1962, D1421, principalmente se tomarmos esta última como derivada da forma presente na gravura CR-099. Um retorno ao formato cruciforme (uma cruz de Santo André), que faz referência ao formato base dos carretéis, mas ao mesmo tempo remete ao formato da figura alada de D1421, inserindo uma figuração de base (quase) humana. "Cemeadores" (sic), título do desenho D3100, mostra o mesmo padrão da cruz de 279 Santo André, com uma forma no centro superior mais à esquerda que lembra um rosto, semelhante àqueles vistos em D3103. Imagem 94 - D3100 Cemeadores, 1964, nanquim sobre papel, 20 x 25,1 cm. Acervo FIC. 3.3.6 Os anos de 1965 a 1969 Em 1965, temos um guache com formas distintas das anteriores. Trata-se de um trabalho bastante gestual e livre, ainda que vejamos a busca de um equilíbrio a partir dos campos de cores que se harmonizam - o branco puro que é quebrado pelo círculo vermelho com os traços cruzados ou o vermelho que é matizado pelo ponto amarelo em seu interior. Não encontramos referências às formas anteriores, o que nos faz supor que 280 se trata de um exercício de liberdade do gesto e das formas mais do que a reflexão sobre algum esquema formal específico. como vínhamos vendo até aqui. Dentro do mesmo exercício de liberdade, encontramos outro desenho datado de 1965 (encontramos apenas esses dois nesse ano); trata-se de D1121, onde o gesto exaltado e impetuoso é a grande marca. Imagem 95 - D1121 Sem título, 1965, guache sobre papel, 65,8 x 51 cm. Acervo FIC. Há de se notar também o traço feito a lápis, que procura delimitar um espaço de 281 "tela" na folha de papel, espaço que não é respeitado pelos traços do guache, como que buscando mostrar que essa liberdade gestual do braço não conseguisse se limitar ao trabalho do espaço do desenho, que é menos de um gestual do braço e é mais contido pela mão e pelo pulso. O ano de 1966 é marcado pela continuidade desse exercício de liberdade gestual das formas, como pode ser visto em D0655 e D1118, ao mesmo tempo em que notamos o retorno da forma-carretel, em D2051. Imagem 96 - D0655 Sem título, 1966, guache sobre papel, 31,7 x 21,7 cm. Acervo FIC. 282 Imagem 97 - D1118 Sem título, 1966, guache sobre papel, 60,5 x 39 cm. Acervo FIC. 283 Imagem 98 - D2051 Sem título, 1966, guache e caneta sobre papel, 30,5 x 41,8 cm. Acervo FIC. Como marco diferencial desse ano, temos a retomada da figuração humana através do desenho D3072, realizado quando de sua estada em Genebra, no período em que fazia seu grande painel da Organização Mundial de Saúde (OMS). A figura guarda pouca relação com as figuras anteriores e nenhuma relação com os trabalhos do período e representa um homem e uma mulher de frente um ao outro, tendo entre eles um emaranhando de formas cujo significado nos escapa. 284 Imagem 99 - D3072 (Genebra), 1966, nanquim sobre papel, 25,5 x 35 cm. Acervo FIC. Outro desenho importante nesse período é o projeto para o painel da OMS, D3165, que indica um estudo prévio para aquelas formas e a estrutura segundo a qual elas foram construídas. 285 Imagem 100 - D3165 Sem título (Genebra), 1966, caneta sobre papel, 40,4 x 42,3 cm. Acervo FIC. Em 1967, não registramos desenhos no acervo de Iberê Camargo que indiquem alguma mudança significativa em sua trajetória. Temos cartões de Natal com o tema do carretel, como D3245, e uma aquarela, D3093, na qual não reconhecemos um valor específico para nossa análise. 286 Imagem 101 - 3245 Sem título, 1967, caneta hidrocor sobre papel, 65,8 x 51 cm. Acervo FIC. Imagem 102 - D3093 Sem título (Rio), 1967, guache sobre papel, 25 x 21 cm. Acervo FIC. 287 O ano de 1968 não é significativo em termos de descobertas artísticas/formais nos desenhos de Iberê Camargo. Vemos basicamente a continuidade dos desenhos com o tema do carretel, segundo as diferentes formas já tratadas, como em D1218 e D1034. Imagem 103 - D1218 Sem título, 1968, lápis sobre papel, 32,8 x 47,6 cm. Acervo FIC. Imagem 104 - D1034 Sem título, 1968, guache sobre papel, 56,8 x 76 cm. Acervo FIC. 288 O ano de 1969 segue com o tema dos carretéis, como vemos em D1453, e a figuração humana em dois perfis, D2067 e D2417, os quais não apresentam mudanças significativas em relação aos trabalhos anteriores ou questões formais importantes. Imagem 105 - D1453 Sem título, 1969, caneta sobre papel, 15,8 x 22,5 cm. Acervo FIC. 289 Imagem 106 - D2067 Sem título, 1969, lápis sobre papel, 46 x 31,8 cm. Acervo FIC. Imagem 107 - D2417 Sem título, 1969, caneta sobre papel, 32 x 22,1 cm. Acervo FIC. 290 Outra figuração, D2989, marcará uma diferença em relação à produção desse período. Trata-se de um nanquim no qual o branco do suporte configura as formas em torno do negro do nanquim. O trabalho intitula-se "A noiva", e as formas sugerem seres mitológicos, faunos com chifres, tendo os corpos nus (o tema será retomado nos anos 80). Imagem 108 - D2989 "A Noiva", 1969, guache sobre papel, 31,7 x 22 cm. Acervo FIC. 291 3.3.7 Os anos de 1970 a 1982 Em 1970, notamos algumas mudanças significativas na produção de Iberê Camargo. Apresentam-se modificações na figura-base do carretel, a partir de alguns guaches do período. Entre essas mudanças, vemos o surgimento de uma forma que se assemelha à de um cometa, como vemos em D2057 ou D0440, ou que se assemelha a um peixe, como em D1123. Imagem 109 - D2057 [Para Maria do Iberê], 1970, guache sobre papel, 33,5 x 48 cm. Acervo FIC. 292 Imagem 110 - D0440 Sem título, 1970, guache sobre papel, 22 x 32,2 cm. Acervo FIC. Imagem 111 - D1123 Sem título, 1970, guache sobre papel, 36,3 x 50,4 cm. Acervo FIC. 293 A figuração humana também é recorrente nos desenhos de 1970, como podemos ver nos trabalhos com temática circense, em D1127 e D3134, além de uma curiosa paisagem (assim a supomos) em D2147, tendo como um dos elementos constitutivos uma das configurações encontradas nos carretéis do período, como é possível notar naquilo que entendemos como sendo a cabeça de uma figura, à esquerda. Imagem 112 - D1127 Sem título, 1970, caneta hidrocor sobre papel, 43 x 51,5 cm. Acervo FIC. 294 Imagem 113 - D3134 "Estudo circo-cenário", 1970, giz e caneta sobre papel, 25 x 35,1 cm. Acervo FIC. Imagem 114 - D2147 “Cenário”, 1970, guache sobre papel, 22 x 32 cm. Acervo FIC. 295 O ano de 1971 no acervo de desenhos é marcado por um forte retorno à figuração clássica. Com exceção de seu guache D2060, de características informais, dentro da perspectiva da informalidade a que já havia se dedicado, os outros trabalhos do período têm a presença da figura humana de forma não apenas evidente, mas de um claro retorno a uma perspectiva pré-moderna. Imagem 115 - D2060 Sem título, 1971, guache sobre papel, 37 x 50,6 cm. Acervo FIC. Esse aspecto apresenta-se em desenhos como D2814 e D0005, onde é possível supor uma busca de uma referencialidade com a figura representada. 296 Imagem 116 - D2814 Sem título, 1971, giz sobre papel, 50,4 x 35 cm. Acervo FIC. 297 Imagem 117 - D0005 Sem título, 1971, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 42,4 x 29,5 cm. Acervo FIC. 298 Ou em D2816, em que o perfil da figura lhe empresta um ar classicista não visto desde os desenhos dos anos 1950. Imagem 118 - D2816 Sem título, 1971, giz sobre papel, 50,3 x 35,2 cm. Acervo FIC. 299 Em 1972, não encontramos nenhum desenho precisamente datado. A ausência de desenhos desse ano é compensada por uma nova série de desenhos em 1973. Além de desenhos que têm como base o carretel, como D1479, notamos uma série de desenhos a partir de um tema que voltará algumas vezes nos anos seguintes: a presença dos temas de seus quadros, fundamentalmente os carretéis, como uma espécie de símbolo de sua própria arte, colocados junto com figuras humanas. Imagem 119 - D1479 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,4 cm. Acervo FIC. A essa altura, o artista, que se aproxima dos 60 anos de idade, parece começar a enxergar sua obra retrospectivamente, inserindo os símbolos que construiu ao longo de sua carreira como símbolos de seu próprio trabalho. Assim, vemos em D2135 a figura central com um chapéu que não é nada mais do que um carretel "ibereniano". 300 Imagem 120 - D2135 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC O mesmo tema é visto em D2046. Essa tomada de consciência de seus próprios temas e a representação dos mesmos em sua obra (representações de representações) serão questões importantes no seu trabalho da maturidade. Imagem 121 - D2046 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47 cm. Acervo FIC 301 Outro tema que Iberê passa a explorar nos desenhos dessa época e que aparecerá nas gravuras apenas dez anos depois é o da representação erótica. Entre esses trabalhos eróticos, destacamos D2137, pela frontalidade da figura, que será recorrente em trabalhos posteriores. Imagem 122 - D2137 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,5 cm. Acervo FIC Em 1974, Iberê segue com os guaches de carretéis, como vemos em D0666 e D0669. 302 Imagem 123 - D0666 Sem título, 1974, guache sobre papel, 50,7 x 72,7 cm. Acervo FIC Imagem 124 - D0669 Sem título (Rio), 1974, guache sobre papel, 50,7 x 72,7 cm. Acervo FIC 303 Algumas figurações humanas são significativas de novas buscas temáticas e formais; entre elas, destacamos o tema do minotauro ligado ao erotismo, visto em D1502, e apenas do minotauro em D2131. Vemos um traço diferente na representação dessas figuras: uma linha que se reitera, que repisa no mesmo espaço (principalmente nos contornos da figura). Imagem 125 - D1502 Sem título, 1974, guache e nanquim sobre papel, 32,4 x 47,4 cm. Acervo FIC 304 Imagem 126 - D2131 Sem título, 1974, caneta sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC O ano de 1975 é marcado novamente pela presença do carretel em D1031 e pela temática erótica. 305 Imagem 127 - D1031 Sem título, 1975, guache sobre papel, 50,6 x 72,6 cm. Acervo FIC Esta última temática apresentará algumas inovações formais, como o desenho D1032, em que o desenho de nanquim sobre a aguada nos dá a impressão do fundo como se fora uma espécie de pergaminho antigo sobre o qual a figura é desenhada, figura que possui uma configuração bastante clássica, o que remete novamente à ideia de antiguidade "arqueológica" do desenho. 306 Imagem 127B – D1032 Sem título, 1975, nanquim sobre aguada, 50 x 64,7 cm. Acervo FIC. Em 1976, seguem os carretéis, além dos trabalhos mais abstratos-gestuais, dentro do que Iberê já estava fazendo. O acervo também possui duas figurações humanas datadas de 1976, as quais, apesar de distintas entre si, não trazem novas questões dentro do conjunto de seu trabalho, como vemos em uma delas, D1547. 307 Imagem 128 - D1547 Sem título, 1976, nanquim sobre papel, 47,2 x 32,4 cm. Acervo FIC 308 Em 1977, não notamos uma mudança significativa nos desenhos de Iberê. O acervo de sua obra possui uma coleção significativa de desenhos com o tema dos carretéis nesse ano, como, por exemplo, D2120. Imagem 129 - D2120 Sem título (Rio), 1977, nanquim sobre papel, 35 x 49,5 cm. Acervo FIC Identificamos mais uma vez a figuração humana, a qual é caracterizada por linhas sóbrias e sintéticas em D0002 e D0043, portanto, diferentes das de figurações mais recentes, mas de acordo com algumas figurações de anos anteriores. 309 Imagem 130 - D0002 Sem título, 1977, nanquim sobre papel, 51 x 36,5 cm. Acervo FIC 310 Imagem 131 - D0043 Sem título, 1977, nanquim sobre papel, 50,9 x 36,5 cm. Acervo FIC. A paisagem é vista em uma série de desenhos retratando sua terra natal, a partir da visita que faz a Restinga Seca e a Santa Maria nesse ano, como vemos em D2702 e D2704, nos quais a busca por reter as memórias materiais da infância parece ser o componente principal. 311 Imagem 132 - D2702 Sem título (Restinga Seca), 1977, lápis sobre papel, 36,4 x 51 cm. Acervo FIC. Imagem 133 - D2704 Sem título (Restinga Seca), 1977, giz sobre papel, 36,5 x 51 cm. Acervo FIC. 312 Mais do que desenhos em que a preocupação artística/formal seja evidente, tratase de anotações sentimentais, um diário íntimo na forma de desenhos, desses lugares da infância, ainda que sua trajetória artística também se faça evidente no modo de representar essas formas. No ano de 1978, notamos uma variedade maior nos temas abordados, com a retomada de temas que há alguns anos Iberê não trabalhava. Temos um guache de características claramente pictóricas, em D3094, no qual notamos a necessidade de expensão pictórica no suporte do papel, completamente tomado e ultrapassado pelo pigmento, principalmente visto nas asas negras, que seguem além do suporte. Imagem 134 - D3094 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,5 cm. Acervo FIC 313 A realidade quase obsessiva do tema do carretel parece caracterizar obras como o guache D1180, em que o tema é representado à exaustão. Imagem 135 - D1180 Sem título, 1978, guache sobre papel, 51 x 72,8 cm. Acervo FIC O mesmo acontece em alguns trabalhos em que o carretel parece quase se apagar, como em D2146. 314 Imagem 136 - D2146 Sem título, 1978, giz sobre papel, 32,5 x 47 cm. Acervo FIC Ou, ainda, em trabalhos onde o carretel parece riscado, como em D2760. 315 Imagem 137 - D2760 Sem título, 1978, giz sobre papel, 32,5 x 24 cm. Acervo FIC 316 Figurações humanas mais urgentes e desesperadas surgem em desenhos como D2124 ou mesmo em figurações de caveiras, como D0474. Imagem 138 - D2124 Sem título, 1978, giz sobre papel, 47,2 x 32,5 cm. Acervo FIC 317 Imagem 139 - D0474 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,3 cm. Acervo FIC Encontramos uma paisagem nesse período, D2761, a qual se apresenta sob uma perspectiva elevada (provavelmente, feita a partir da janela de seu apartamento no Rio de Janeiro). Ainda que sem apresentar um desafio formal para o artista, notamos o estabelecimento de certa relação poética entre o título, o tema e o desenho das linhas, sinuoso e poético, que acompanha com harmonia e relaciona as formas humanas, a árvore e o ductus da escrita (essencialmente diferente da assinatura e da data, colocada mais abaixo). 318 Imagem 140 - D2761 "A árvore, a mulher e a criança”, 1978, nanquim sobre papel, 36,3 x 25,2 cm. Acervo FIC 319 Em 1979, notamos mais uma vez a presença constante dos carretéis, como em D3225, onde parecem empilhar-se no espaço compositivo desse guache. Imagem 141 - D3225 Sem título, 1979, giz sobre papel, 25,5 x 36,5 cm. Acervo FIC Entre as figurações humanas do período, destaca-se o autorretrato D3232, realizado em Porto Alegre – um soberbo exercício de figuração em que se destacam as camadas multicoloridas de giz em um exercício compartido entre a habilidade do colorista e a do desenhista. 320 Imagem 142 - D3232 Sem título [Poa], 1979, giz sobre papel, 35 x 25,1 cm. Acervo FIC 321 Algumas paisagens, sobretudo de Santa Maria e Porto Alegre, também de giz (ou lápis Stabilotone), como D2649 e D3196, também mostram esse exercício entre cor e linha. Imagem 143 - D2649 "A casa de Antonieta", 1979, giz sobre papel, 22,5 x 31,2 cm. Acervo FIC Imagem 144 - D3196 Sem título (Santa Maria), 1979, giz sobre papel, 22,5 x 31,4 cm. Acervo FIC 322 O ano de 1980 é considerado paradigmático na produção de Iberê por ser aquele do retorno à figuração humana em sua pintura e gravura. Novamente, notamos um mitofundador dessa mudança do artista, tal como a hérnia de disco que o teria feito iniciar os carretéis. Após o episódio trágico em que Iberê matou um homem (seria absolvido por legítima defesa), teria tido início esse retorno à figuração. Conforme estamos vendo até aqui, a figura já estava presente desde há muito tempo e sem interrupção em seu desenho, o que não faz desse ano uma efeméride particularmente significativa nessa sua produção específica (e, se considerarmos o desenho como um dos elementos fundamentais de sua poética, conforme consideramos, podemos generalizar sua desimportância). Se aquele episódio pessoal representou uma mudança em seus desenhos, ela só será sentida nos anos posteriores, com uma única exceção (entre o conjunto de desenhos datados em seu acervo) em que o artista parece claramente se referir ao episódio: o nanquim D3149, uma clara referência, contada praticamente como uma sequência de fatos-imagens e na qual o negrume do nanquim carrega tragicidade. Imagem 145 - D3149 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 31,7 x 44,2 cm. Acervo FIC 323 Sendo assim, o ano de 1980 é marcado pela continuidade da figura do carretel, como podemos ver tanto no giz D0463 quanto no guaches D1220. Imagem 146 - D0463 Sem título, 1980, giz sobre papel, 25 x 36 cm. Acervo FIC Imagem 147 - D1220 Sem título (Rio), 1980, guache sobre papel, 50,5 x 72,7 cm. Acervo FIC 324 O tema da paisagem segue sendo significativo, como vemos no desenho feito a partir de sua cela no Regimento Caetano de Faria (onde Iberê foi preso até seu julgamento), o qual segue com muita proximidade as paisagens anteriores. O tema da figuração humana também continua a apresentar-se em seu trabalho. Dessas figurações, destacamos o autorretrato D0031, que se aproxima do autorretrato de 1979 a que nos referimos anteriormente (D3232), pelo posicionamento da figura, por sua expressão e pelo que de desenho havia naquele trabalho em giz anterior: um emaranhado de linhas que, a partir do interior do rosto, constrói e sustenta os volumes (podemos falar de volumes, já que se trata claramente de uma representação da tridimensionalidade), mas que ao mesmo tempo é extremamente competente quando busca a síntese e a economia das linhas, como podemos ver pelo delineamento da face direita da figura. Imagem 148 - D0031 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 36,3 x 25,2 cm. Acervo FIC 325 O retrato de sua esposa Maria, D3185, mantém extrema proximidade formal com seu autorretrato de 1979. Imagem 149 - D3185 "Maria", 1980, giz sobre papel, 47,3 x 31,2 cm. Acervo FIC. 326 Em 1981, registram-se trabalhos de Iberê com a forma-carretel, como vemos no guache D0445, o qual segue basicamente as configurações anteriores (ou pequenas modificações que também fazem parte do processo dos carretéis, já visto anteriormente). Imagem 150 - D0445 Sem título, 1981, guache sobre papel, 36,2 x 25,5 cm. Acervo FIC 327 As figurações do período seguem também os padrões anteriores já vistos, como podemos ver nos desenhos D2813 e D1512. Imagem 151 - D2813 Sem título [Poa], 1981, giz sobre papel, 47 x 35 cm. Acervo FIC 328 Imagem 152 - D1512 Sem título, 1981, giz sobre papel, 40,4 x 29,7 cm. Acervo FIC 329 Como exceção entre essas figurações, temos o desenho D2142, em que notamos essa grande mancha negra de guache que serve de base para o delineamento da figura com traços em branco. Imagem 153 - D2142 Sem título [Poa], 1981, guache sobre papel, 35,6 x 36,3 cm. Acervo FIC A mancha cumpre papel representativo, já que marca um primeiro contorno da figura e se comunica com as linhas brancas mais precisas que terminam por dar forma à figura. Seguem também algumas paisagens do Regimento Caetano de Farias, sem 330 mudanças formais significativas. Em 1982, encontramos o que aparentemente é figura do carretel, mas um pouco modificada. Na aquarela D1423, vemos uma estruturação tridimensional que estava até então ausente. Imagem 154 - D1423 Sem título, 1982, guache sobre papel, 31,6 x 44,3 cm. Acervo FIC. Uma tela do mesmo ano com esse tema será chamada de "Dado cor-de-rosa" (P0187), o que nos indica não se tratar do carretel, mas de uma forma aparentemente derivada dele (visto sua evidente semelhança). A forma do carretel parece ter sido encontrada por Iberê justamente como uma forma do desenho (ou da pintura, ou da gravura) que é sobretudo autônoma e que faz 331 parte da bidimensionalidade do quadro. A referência, portanto, nessa aquarela, de dados semelhantes à forma-carretel com o formato de sólidos geométricos (cubos) é muito significativa e supõe, assim nos parece, não um retorno à mímese tradicional, mas um entendimento do problema da representação, da relação entre bidimensionalidade e tridimensionalidade em um nível mais elevado do que o anterior. Outro carretel desse período, D1154, mostra a forma do cubo (à esquerda) em conjunto com os carretéis com as formas já conhecidas, notando-se também um diferenciamento mais acentuado entre o fundo de caráter pictórico e a forma com características do desenho. Essa diferenciação entre fundo e figura estará presente nas telas com figurações humanas pintadas por Iberê nos anos 80 e 90. Imagem 155 - D1154 Sem título, 1982, giz e lápis Stabilotone sobre papel, 25,3 x 36,3 cm. Acervo FIC. A figuração desse período não apresenta mudanças significativas. 332 3.3.8 Os anos de 1983 a 1986 O ano de 1983 é marcado em seu acervo datado pela ausência definitiva do carretel nos desenhos como figura-base específica para seus trabalhos. O carretel aparecerá apenas compondo outros desenhos, como uma espécie de representação dos temas de sua pintura, vistos e desenhados pelo artista de uma perspectiva retrospectiva (conforme já havia aparecido, ainda que de modo germinal, em D2135, de 1973). O fim do dos carretéis como questão de seu trabalho parece acompanhar um esgotamento do tema, que já vínhamos acompanhando desde 1979. Registramos nesse ano algumas figurações, como o desenho de seu gato, em D0453, o qual chama a atenção pela simplicidade dos traços e pelo jogo estabelecido pela marca da pegada do gato e o desenho da figura. Imagem 156 - D0453 Sem título, 1983, nanquim sobre papel, 25 x 35,5 cm. Acervo FIC. 333 Registra-se também um autorretrato em perfil feito a lápis, D0704, sobre uma mancha de guache. A mancha e o suporte formam uma espécie de pele do desenho sobre a qual se delineia um traço que pende entre a firmeza do risco único e a incerteza da repetição do gesto. Imagem 157 - D0704 Sem título, 1983, lápis e guache sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. 334 Em 1984, seguem algumas figurações humanas, entre as quais registramos o desenho D1054, que marca a presença do tema da bicicleta, que será amplamente figurado nos anos posteriores. Imagem 158 - D1054 Sem título, 1984, guache e lápis Stabilotone sobre papel, 75,7 x 55,7 cm. Acervo FIC. 335 O desenho é marcado por uma construção nova das linhas. Sobre uma base neutra de aguada, uma profusão de traços constrói a figura e confere-lhe uma estrutura sólida e naturalista (note-se, por exemplo, o padrão de zigue-zague do desenho da manga esquerda da figura perfeitamente representado), ao mesmo tempo em que uma noção de movimento está presente junto com as várias alternativas buscadas na representação (como é possível ver nos vários posicionamentos da mão da figura, todos presentes no desenho). Outro desenho que registramos é D2661, no qual é importante destacar o rosto da figura maior, mais à direita, em uma figuração semelhante a uma máscara, o que irá marcar muitas figuras nos anos posteriores. Imagem 159 - D2661 Sem título, 1984, caneta sobre papel, 23,7 x 32,6 cm. Acervo FIC. 336 Do ano de 1985, destacamos o autorretrato D0044 em giz sobre lixa no qual Iberê se figura junto aos dados, que (surgidos a partir da figura-base do carretel) se apresentam justamente como o símbolo de seu trabalho de artista, como falamos anteriormente. Imagem 160 - D0044 Sem título, 1985, giz sobre lixa de papel, 22,5 x 27,1 cm. Acervo FIC. O ano de 1985 marca também o surgimento do tema do manequim em seus desenhos datados. Dois desenhos registram esse surgimento: D0390, feito no Rio de Janeiro, e D0404, este último um estudo para outra técnica, realizado em Porto Alegre. 337 Imagem 161 - D0390 Sem título, 1985, caneta sobre papel, 25,2 x 13 cm. Acervo FIC. 338 Imagem 162 - D0404 Sem título, 1985, lápis sobre papel, 28 x 13,5 cm. Acervo FIC Em 1986, registramos uma curiosa série de desenhos tendo como tema cavalinhos do tipo encontrado em parques de diversão, conforme podemos ver em D0382 e D2667. 339 Imagem 163 - D0382 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 16,6 x 24,3 cm. Acervo FIC Imagem 164 - D2667 Sem título (Poa), 1986, lápis sobre papel, 17,6 x 25,2 cm. Acervo FIC 340 Os desenhos são marcados pela simplicidade característica dos esboços, parecendo, sobretudo, anotações para trabalhos posteriores (não é difícil supor terem sido realizados durante seus passeios no Parque Farroupilha, em Porto Alegre). Outro desenho que registramos nesse ano é D2990, que retoma o tema mitológico do fauno, presente já em 1969, e no qual o enquadramento salienta a característica de cena teatralizada em que as figuras estão dispostas. Imagem 165 - D2990 Sem título (poa), 1986, nanquim sobre papel, 23,2 x 33 cm. Acervo FIC Em 1986, Iberê seguirá com a série de manequins. Não se trata ainda da representação daquele manequim que o artista irá adquirir e que permaneceria em seu ateliê por toda sua vida, mas ainda dos manequins que desenha a partir de sua exposição nas vitrines (da Rua da Praia, em Porto Alegre), como é possível ver em D0188 e D0237. 341 Imagem 166 - D0188 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 32,5 x 24,5 cm. Acervo FIC 342 Imagem 167 - D0237 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 33 x 23,4 cm. Acervo FIC A série dos manequins não traz grandes mudanças formais em seu desenho, com exceção de trabalhos como D0374 e D0380, em que uma investigação da estrutura dos corpos através da estrutura da linha se evidencia. 343 Imagem 168 - D0374 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 16,4 x 27,1 cm. Acervo FIC Imagem 169 - D0380 Sem título, 1986, caneta sobre papel, 16 x 26,8 cm. Acervo FIC 344 No entanto, apesar de ter o mesmo tema, sabemos que alguns desses desenhos não são feitos a partir dos manequins entendidos como aquelas figuras inanimadas e articuladas que são utilizadas para a exposição de roupas, mas de modelos vivos que desempenham o papel de manequins em seu outro sentido: o de seres humanos que são utilizados para a exposição de roupas. É provavelmente esse jogo de distinção/indistinção do termo "manequim" um dos motivos para Iberê chamar parte dessa série de "fantasmagorias", como vemos em D0811. Imagem 170 - D0811 “Estudo para Fantasmagoria II”, 1986, caneta sobre papel, 33,2 x 23 cm. Acervo FIC. 345 Por último, o ano de 1986 é também marcado por um curioso trabalho: o retorno da natureza-morta, ao menos em dois desenhos precisamente datados, D0955 e D0956. Imagem 171 - D0955 [Cubista 31], 1986, lápis Stabilotone sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC. 346 Imagem 172 - D0956 Sem título, 1986, lápis sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC O desenho D0955 é significativamente nomeado de "cubista" e mostra uma mesa com algumas frutas, desenhadas de modo bastante sintético e rápido, talvez com a intenção (não concretizada) de ser um esboço para outro trabalho. 3.3.9 Os anos de 1987 a 1990 O ano de 1987 marca um momento de mudança na obra de desenhos de Iberê Camargo. Essas mudanças referem-se a novos temas e à abordagem da figura a partir de novas configurações da linha, mostrando uma reflexão contínua da 347 questão representativa desse já experiente artista, com mais de setenta anos. Esse é um ano particularmente rico entre o acervo datado da FIC, contando-se mais de cento e oitenta desenhos, o que nos chama atenção quando lembramos que o artista passou todo o ano de 1987 envolvido com a construção de seu ateliê no bairro Nonoai, em Porto Alegre. Iniciado em 1986 e terminado em 1988, o espaço foi planejado em cada detalhe pelo artista, que não apenas desenhou as plantas do ateliê, como também acompanhou cada fase do trabalho de construção desse que foi seu último ateliê (e sua última residência). Entre os muitos desenhos desse ano, destacamos alguns que indicam significativas mudanças de temáticas, novas pesquisas formais, desafios novos do artista. Os desenhos de seu gato ocupam uma presença importante, entre os quais temos D2676, onde notamos uma grande harmonia entre o fundo e a figura, que estabelecem um equilíbrio e uma série de correspondências muito distante do tipo de tensão entre figura e fundo vistas em obras anteriores. Imagem 173 - D2676 Sem título [Poa], 1987, giz sobre papel, 22,2 x 32 cm. Acervo FIC. 348 Destacam-se também nesse desenho os toques de giz branco no rosto do gato, os quais serão uma característica de trabalhos posteriores. A figura humana segue também ocupando um espaço fundamental em sua produção. Entre as características dessa figuração, está a crescente busca pela síntese da forma através do exercício da rapidez do gesto, como podemos ver em D0048 ou D0274. Imagem 174 - D0048 Sem título, 1987, caneta de nanquim sobre papel, 30,5 x 20,5 cm. Acervo FIC 349 Imagem 175 - D0274 Sem título, 1987, lápis e giz sobre papel, 17,2 x 25 cm. Acervo FIC A resolução da figura acontece através de um exercício da mão que procura alcançar a velocidade de um pensamento, como se o desenho da figura fosse a anotação de uma ideia que estivesse na iminência de escapar, tal como nos parece em D0327. 350 Imagem 176 - D0327 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 14,5 x 19,8 cm. Acervo FIC No entanto, essa rapidez do pensamento é acompanhada pela competência do gesto, que não perde sua capacidade representativa, visível na ágil composição de autorretratos que guardam perfeita semelhança com o representado, como em D0486 ou D0815. 351 Imagem 177 - D0486 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32,6 x 21,8 cm. Acervo FIC 352 Imagem 178 - D0815 Sem título, 1987, nanquim sobre papel, 25 x 16 cm. Acervo FIC Segue nesse período a série das figuras surgidas no ano anterior denominada "fantasmagoria", que tem em comum a representação da figura humana numa espécie de armadura de linhas que a sustentam, como vemos em D0807 ou D2751, as quais, como se fossem construídas por fios de arame, parecem sempre passíveis de ser 353 desestruturadas se esticadas em suas extremidades - caso que parece acontecer em desenhos como D0961. Imagem 179 - D0807 “Estudo para Fantasmagoria IV”, 1987, caneta sobre papel, 32 x 17 cm. Acervo 354 Imagem 180 - D2751 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32 x 21,2 cm. Acervo FIC 355 Imagem 181 - D0961 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 21,5 x 10 cm. Acervo FIC 356 Outra característica que não se pode deixar de notar entre as figuras humanas desse período é a predominância de figuras femininas e o quanto essas figuras sofrem um processo de distorção, de desestruturação e, por fim, de reestruturação no espaço do desenho, algo visível em todos esses desenhos que indicamos, além de outros, como D1065 ou D1067. Imagem 182 - D1065 "Manequim(44/87)", 1987, giz sobre papel, 62,9 x 55,2 cm. Acervo FIC 357 Imagem 183 - D1067 "A bandeira (10/87)", 1987, guache e giz sobre papel, 98,7 x 68,9 cm. Acervo FIC Finalmente, o ano de 1987 é marcado por uma série específica de trabalhos, a partir de um tema até então não explorado pelo artista. Essa série irá se restringir a esse ano especificamente, apesar de sua significância, pela quantidade de trabalhos de um tema tão específico: vinte desenhos datados e conservados. Trata-se de uma série sobre 358 carros acidentados. As imagens, em técnicas diversas, como o lápis de cor, o giz e o nanquim ou caneta preta, exploram as deformações dos carros acidentados, sob os mais diversos ângulos, como vemos em D0738, D0745 ou D734. Imagem 184 - D0738 Sem título, 1987, caneta e giz sobre papel, 24,5 x 31,5 cm. Acervo FIC Imagem 185 - D0745 Sem título, 1987, lápis Stabilotone sobre papel, 21 x 31,7 cm. Acervo FIC 359 Imagem 186 - D0734 Sem título, 1987, nanquim sobre papel, 22 x 32 cm. Acervo FIC Os desenhos são uma brilhante afirmação da profunda compreensão que Iberê possuía do comportamento dos corpos no espaço tridimensional e de sua estruturação em desenho no espaço do papel. São um exemplo ao mesmo tempo de seu virtuosismo como desenhista e de sua busca pelo entendimento do mistério subjacente à forma. O ano de 1988 não é particularmente importante na produção de desenhos de Iberê Camargo. Destacam-se algumas poucas e sutis mudanças criativas, um hiato natural após a profusão criativa e a abertura de novas questões no ano anterior que possibilitavam sua exploração e investigação mais detalhada nos anos seguintes. Em uma série de desenhos de animais, destacamos o mais significativo em termos formais, D0795, intitulado “O rato", que representa o animal a partir de uma mancha de nanquim e de alguns poucos traços que completam a figura. 360 Imagem 187 - D0795 “O rato”, 1988, nanquim sobre papel, 32,8 x 21,9 cm. Entre os trabalhos de figuração humana, destacam-se o autorretrato D0028, um nanquim que, à semelhança de “O rato", também é construído a partir da relação entre o traço mais grosso que traça a base da figuração e as linhas finas que completam a semelhança da figura (também visto no outro autorretrato D0029) e alguns nus femininos caracterizados pela frontalidade e pela economia dos traços, como D1470. 361 Imagem 188 - D0028 Sem título, 1988, nanquim sobre papel, 33 x 22,7 cm. Acervo FIC 362 Imagem 189 - D1470 Sem título nº 54/80, 1988, carvão sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. Acervo FIC 363 Finalmente, temos também uma série de desenhos intitulada "Acidente em Angra" (referência óbvia ao acidente nuclear ocorrido no mesmo ano na usina de Angra dos Reis/RJ), que se caracteriza por uma temática que se aproxima do surrealismo, como vemos na figura dos pés no primeiro plano do desenho, em D3027. Imagem 190 - D3027 “Acidente em Angra”, 1988, guache sobre papel, 32,2 x 22 cm. Acervo FIC 364 Em 1989, o que mais chama a atenção nos desenhos de Iberê é a presença quase exclusiva, nas suas figurações humanas, de ciclistas. O tema, que já havia aparecido em seus desenhos datados desde 1984, torna-se agora o leitmotiv de suas figurações. Entre as principais características dos ciclistas, estão as linhas sintéticas que os compõem (característica geral de sua obra, também presente aqui), um fascínio pela forma circular das rodas (talvez um dos motivos da escolha do tema), que é vista sob diversas configurações, e os rostos das figuras humanas, que passam a ser representados segundo aquelas características que já havíamos apontado em 1984, na figura D2661, como uma espécie de máscara. Esses três grandes aspectos aparecem, por exemplo, em desenhos como D0391, D0392, D0393. Imagem 191 - D0391 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 25 x 18,1 cm. Acervo FIC 365 Imagem 192 - D0392 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 15,5 x 35,3 cm. Acervo FIC Imagem 193 - D0393 Sem título (Série ciclistas), 1989, caneta sobre papel, 15 x 27,4 cm. Acervo FIC 366 Destacamos, entre esses ciclistas de 1989, o desenho D0420, que marca a primeira aparição datada nos desenhos da figura da "idiota", ou ao menos sua primeira aproximação reconhecível dessa figura, motivo de vários desenhos posteriores, representada em sua característica posição frontal. Imagem 194 - D0420 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 23,5 x 32,5 cm. Acervo FIC O ano de 1989 também é marcado por uma série de paisagens - sobretudo desenhos de árvores -, as quais acompanham o traço das figuras humanas do período: sintéticas, com a estrutura de grade/arame das linhas estruturando as formas, como vemos em D0063 e D0834. 367 Imagem 195 - D0063 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC 368 Imagem 196 - D0834 Sem título, 1989, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC O ano de 1990 prossegue com os desenhos dos ciclistas e de algumas paisagens, ambos segundo as configurações do ano anterior, não significando, portanto, nenhuma mudança importante em seu trabalho, como podemos ver em D0499 e D2075. 369 Imagem 197 - D0499 Sem título, 1990, caneta sobre papel, 32,5 x 23,5 cm. Acervo FIC 370 Imagem 198 - D2075 Sem título, 1990, caneta sobre papel, 23 x 24 cm. Acervo FIC 3.3.10 Os anos de 1991 a 1994 Em 1991, Iberê Camargo fará algumas mudanças significativas em sua produção de desenhos. Tais mudanças retomam questões presentes em desenhos de anos anteriores ou apresentam novas possibilidades representacionais. A harmonia e o diálogo entre fundo e figura mostrar-se-ão ainda mais bem resolvidos, como vemos em desenhos como o retrato de sua esposa, D0021, intitulado "Para minha querida Maria". Vemos nesse desenho o quanto as linhas que desenham sinteticamente o rosto (bastante naturalista) comunicam-se com o fundo, que, por sua vez, é também parte constituinte da figura a partir da diferença de tons da aguada. 371 Imagem 199 - D0021 "Para minha querida Maria", 1991, guache e caneta sobre papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC Os carretéis aparecem mais uma vez como símbolo de sua arte, junto com um ciclista, agora já também tomado como símbolo, no desenho D0414, intitulado “No tempo (estudo)", uma síntese alegórica de seu trabalho. 372 Imagem 200 - D0414 “No tempo (estudo)", 1991, caneta sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC A figura da "idiota" aparece de forma definitiva e recorrente em sua obra de desenho a partir desse ano, em obras como D0633 , D0706 e D0712. 373 Imagem 201 - D0633 Estudo para o quadro nº 5/91, 1991, caneta sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC Imagem 202 - D0706 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC 374 Imagem 203 - D0712 Estudo para a série "Idiotas", 1989, caneta sobre papel, 30,5 x 23,4 cm. Acervo FIC Uma figura sempre caracterizada em sua singeleza, nua e frontal, na maior parte das vezes, sentada. Um interessante estudo de rosto da idiota é o desenho D2069, indicativo da busca constante do artista pela resolução do problema da representação. 375 Imagem 204 - D2069 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 31,5 x 21,5 cm. Acervo FIC Seguem-se também nesse período a série de bicicletas, embora muitas vezes não se tratem mais de ciclistas já que a bicicleta passa a ser colocada com mais frequência ao lado da figura, como vemos em D2641 e D1482. 376 Imagem 205 - D2641 Sem título, 1991, caneta sobre papel, 23,5 x 30,5 cm. Acervo FIC Imagem 206 - D1482 Sem título nº 6/91, 1991, guache e nanquim sobre papel, 35,2 x 50,3 cm. Acervo FIC 377 O manequim de seu ateliê, que já havia aparecido em desenhos anteriores de forma não-sistemática (a não ser no caso das fantasmagorias), também passa ser figura constante de seus trabalhos, como vemos em D0646 e D3214. Imagem 207 - D0646 Sem título, 1991, caneta de nanquim sobre papel, 23 x 34 cm. Acervo FIC 378 Imagem 208 - D3214 Sem título (Poa), 1991, guache sobre papel, 70 x 50 cm. Acervo FIC O ano de 1992 será marcado, no acervo de desenhos de Iberê Camargo, pela continuidade da série com a figura da "idiota" junto à bicicleta ou solitária - em uma nova série de trabalhos, denominada "tudo te é falso e inútil" -, pela diminuição do número de ciclistas em seus desenhos, além de uma série nova de imagens: a série dos atores da peça teatral "O Homem da Flor na Boca". As imagens da "idiota" nesse ano possuem as características já apresentadas anteriormente - apresentação nua e frontal das imagens, desenhos de linhas como uma grade estruturante e representação sintética e esquemática das imagens, sem perder a verossimilhança com o retratado, como é possível ver em D0410, mesma configuração presente na série "tudo te é falso e inútil": D1472. 379 Imagem 209 - D0410 Série "Tudo te é falso e inútil", 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC Imagem 210 - D1472 Sem título, 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32,1 cm. Acervo FIC 380 "O Homem da Flor na Boca" constitui uma série de desenhos (e pinturas) que Iberê fará com os artistas da peça de Pirandello, especialmente do artista Manoel Aranha. É possível ver, nessa série, o mesmo equilíbrio da relação entre aguada e nanquim dos desenhos anteriores, como vemos em D1044. Imagem 211 - D1044 “O Homem da Flor na Boca – (Um ato de amor à vida)” (43 A/92), 1992, guache sobre papel, 100,2 69,9 cm. Acervo FIC 381 Essa série, além de figuras, trará também desenhos do cenário, conforme pode ser visto em D1043, caracterizado pela síntese formal dos objetos representados. Imagem 212 - D1043 “O Homem da Flor na Boca – (Um ato de amor à vida)” (43 A/92), 1992, guache e caneta sobre papel, 100 x 69,9 cm. Acervo FIC. 382 Chama-nos a atenção nesse ano uma paisagem que Iberê realiza em Porto Alegre, provavelmente retratando o arroio dilúvio e seu entorno, D1271. Imagem 213 - D1271 Sem título, 1992, nanquim sobre papel, 15,1 x 21,5. Acervo FIC. A paisagem foge dos padrões de todos os desenhos do artista na época. Parecenos, sobretudo, uma espécie de revisitação das paisagens dos anos 1940 e 1950, revisitação informada por todo o conhecimento artístico da época em que é feita. O traço retorna a um realismo aparentemente anterior a todo o aprendizado de quebra dos padrões representativos empreendida por Iberê Camargo nos anos 1950 e 1960, surgindo como uma espécie de "licença poética" frente ao conjunto de sua produção no período e um exercício de demonstração de sua maestria representativa. Em 1993, os temas trabalhados por Iberê em seus desenhos seguem os mesmos: a figura da "idiota", a presença do manequim, as bicicletas, alguns desenhos retratando 383 seu gato (Martim). A principal característica desses desenhos é o contínuo trabalho de síntese da linha, que se torna nesse ano ainda mais precisa em um desenho condensado em poucos traços. O trabalho de síntese é perfeitamente visto nos desenhos do gato Martim, como D2678 e D2680. A linha contínua traça a figura de modo límpido e preciso – limpidez e precisão tornadas ainda mais evidentes pela relação do suporte – sem nenhuma cobertura de aguada, exposto em sua alvura – com a linha – um traço de nanquim dotado de uma precisão caligráfica. Imagem 214 - D2678 “Martim”, 1993, nanquim sobre papel, 21,6 x 31,6 cm. Acervo FIC. 384 Imagem 215 - D2680 “Martim”, 1993, nanquim sobre papel, 21,6 x 31,5 cm. Acervo FIC. As representações humanas desse ano de 1993 são marcadas também pela síntese das figuras e por uma característica específica: um afinamento da base das figuras - os traços que compõem as pernas desses corpos humanos vão se adelgando até transformar-se em uma linha ao chegarem aos pés, como vemos em D0879 e D0881. 385 Imagem 216 - D0879 Sem título (6/94), 1994, nanquim sobre papel, 29,6 x 41,8 cm. Acervo FIC. Imagem 217 - D0881 Sem título (5/94), 1994, guache e nanquim sobre papel, 29,5 x 41,9 cm. Acervo FIC. 386 Tocam o solo quase como agulhas, o que aumenta o caráter metafísico dessas figuras, que com tão poucos pontos de contato com o solo, em seu equilíbrio provisório, parecem não pertencer ao espaço terrenal, com vemos também em D0883. Imagem 218 - D0883 Sem título [30/93], 1993, nanquim sobre papel, 35 x 50,3 cm. Acervo FIC. Iberê Camargo desenhou até seus últimos momentos de vida. Em seu delírio, à beira da morte, pedia material para desenhar, o que mostra a importância que o artista sempre concedeu a essa expressão. Tal importância é atestada em seu acervo, que possui desenhos significativos em seu último ano de vida, 1994. Os desenhos datados não são em grande número (identificamos cerca de dezesseis desenhos precisamente datados), mas trazem questões importantes quanto às suas últimas escolhas340. 340 "As Últimas Escolhas de Iberê Camargo" é o título do texto escrito por Mônica Zielinsky e publicado no jornal Zero Hora no dia 24 de agosto de 2002, tendo como tema a última exposição de Iberê em vida (em agosto de 1994), a qual, significativamente, foi composta de desenhos e gravuras. 387 Entre os desenhos de 1994, destacamos um autorretrato, D0025, que mostra o trabalho de síntese das figuras acompanhado da extrema verossimilhança com o retratado. Imagem 219 - D0025 Sem título, 1994, nanquim sobre papel, 31 x 23 cm. Acervo FIC. A linha, ainda que trêmula, mostra a segurança de um traço que é a síntese da busca de uma vida inteira. Não podemos dizer que Iberê alcançou, no final de sua vida, a a compreensão da forma que sempre buscou. E isso não é possível dizer porque, na perspectiva de sua obra de desenhos, dada a constante mudança do traço, dos temas, 388 dos diversos caminhos formais trilhados pelo artista, é muito provável que, se o artista tivesse vivido mais anos, novas escolhas teriam surgido, em uma busca incessante. Como afirma Flávio Gonçalves a respeito dos desenhos de Iberê: "reencontramos nessas linhas que ‘amarram’ a composição, o trabalho de Sísifo, a aventura sem fim do ato de criação"341. 341 GONÇALVES, Flávio. "Iberê Camargo: um exercício do olhar". Texto curatorial. Fundação Iberê Camargo, agosto de 2001. 389 Capítulo III – Iberê Camargo: influência é desenho 1. Os estudos sobre influência Influência, o “instrumento o mais delicado, o mais falível de toda a crítica” 342. Não seria essa delicadeza e essa falibilidade justamente sua principal qualidade? Vimos até aqui (no capítulo primeiro) procurando indicar os desvios da influência. Desvios de um discurso que, em um plano mais geral, se fundamenta na (e a partir da) modernidade. Na particularidade de um artista, Iberê Camargo, esse discurso evidencia-se, por um lado, pela construção, mais ou menos deliberada, de um silêncio (sobre as influências). Por outro lado, manifesta-se na elocução claramente firmada através de um laço que une originalidade e solidão artística. Tais discursos, conforme vimos, constroem-se na relação complexa entre o discurso do artista e aquele de sua fortuna crítica. A falibilidade desse instrumento, portanto, parece fundamentar-se na construção de sua falha pela tentativa de seu apagamento – como a tentativa de apagar uma linha que, quando mal conduzida, deixa um falho tracejado. Conforme observa Arthur Nestrovski, “observações de poetas sobre a influência, quando não francamente fantasiosas, tendem a ser ambivalentes e irônicas”343. Essa fantasia, ambivalência e ironia advêm da complexa relação que o fenômeno da influência estabelece com a poética do artista. Muitas vezes essa elocução diz respeito mais ao universo íntimo do criador, a partir do qual esse falar sobre influências se torna mais um falar de si do que do outro, perdendo uma referência mais objetiva com o objeto artístico, contribuindo assim para a delicadeza dessa linha. Retraçar tal linha é o objetivo deste subcapítulo. Nele veremos como a influência foi construída como um conceito/instrumento em seus vários campos. Primeiramente, no 342 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira (1959). Belo Horizonte: Itatiaia, 1981 (6ª ed.). 2 vols. Vol. I, p. 37. 343 NESTROVSKI, Arthur. “Influência”. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 213. 390 campo da literatura comparada, no qual ela possui uma longa tradição de estudos e de onde se originam suas principais reflexões. Em seguida, veremos esse conceito no nosso campo mais geral de trabalho, a arte (entendida como as assim chamadas “artes visuais”), procurando indicar os principais estudos surgidos nesse campo. Finalmente, pensaremos na possibilidade de um pensamento que una desenho e influência na busca de um conceito próprio para nossa área específica de trabalho, informados pela história conceitual até então delineada, mas ao mesmo tempo à procura de sua especificidade. A separação desses três momentos é motivada não apenas pela necessidade de uma maior clareza na apresentação dos argumentos e das teorias, como também pelo desejo de que se possa ver a ação gradual de um conceito em sua trajetória de cercar o seu objeto com a contribuição específica de cada um dos três momentos. Aliás, se nos fosse possível, gostaríamos mais de falar de um “cortejar” do que de um “cercar”, já que aquele permite ao “objeto cortejado” a recusa do conceito que o “galanteia”, mantendo assim a delicadeza que tomamos aqui, muito mais do que como um problema, como uma qualidade positiva. Dito isso, é preciso também advertir que o subcapítulo 1.1 (Influência na literatura), por se tratar de nossa investida em um campo que não é o de nossa formação específica, tratará mais de uma apresentação do conceito com alguns momentos de “atrevimento” crítico, mas principalmente de busca e acompanhamento dessa história conceitual. Tal subcapítulo, mais a partir de suas escolhas de autores e correntes teóricas do que de uma reformulação crítica (à qual não nos sentimos autorizados), trata de um primeiro nível de estabelecimento da questão teórica e de identificação e aquisição das ferramentas de trabalhos. Sendo assim, se este subcapítulo possui algo de autoral, essa autoria diz respeito mais à formação de nosso conhecimento, em alfabetizarmo-nos no conceito e na área de estudos da Literatura Comparada. O subcapítulo seguinte, 1.2, detém-se na identificação (nem sempre muito clara) do conceito de influência no campo da arte e principalmente na discussão de sua validade como instrumento conceitual nesse campo. Dessa forma, este subcapítulo possui um grau maior de autoria, ligada ao nosso posicionamento em relação à formação desse conceito e à nossa discordância em relação a seus detratores. Por fim, o subcapítulo 1.3 (Influência é desenho: proposta teórico-metodológica) 391 pretende ser nossa contribuição teórica e metodológica para um campo que se constrói na mesma medida em que contribuímos para ele, o da confluência entre desenho e influência. Retomando algum dos pressupostos conceituais dos dois subcapítulos precedentes, unidos agora às nossas hipóteses de trabalho sobre o desenho apresentadas no segundo capítulo da tese, propomos uma conjunção entre influência e desenho que sirva tanto como fundamento teórico quanto como metodologia de trabalho para o estudo da obra de Iberê Camargo. Pensamos que assim ficamos aptos para, na segunda parte deste capítulo terceiro, aproximarmo-nos definitivamente da obra de Iberê Camargo em busca das suas influências, o que (a partir dessa conjunção) será também a busca por seu desenho. Por último, essa conjunção deverá indicar também que o “conceito” que buscava cortejar seu “objeto” acaba também sendo seduzido por ele, e o resultado desse delicado encontro amoroso é a mudança tanto de um quanto de outro. 1.1 Influência na literatura comparada “Ne sutor ultra crepidam” Plínio, o velho As reflexões sobre as questões de influência têm sua origem nos estudos literários. Foi a partir dos estudos da literatura comparada que se formou o arsenal teórico ligado ao problema da influência e a partir do qual foram formulados novos conceitos que buscaram suplantá-lo por outros conceitos, como o de tradição e o de intertextualidade. Sendo assim, torna-se necessário examinarmos esses conceitos nesse campo de estudos. Esperamos que esse exame indique em linhas gerais suas principais questões e principalmente aquelas que alcançam nosso campo de estudo. Não faremos uma discussão aprofundada e específica dos problemas da influência na literatura, já que essa discussão foge aos problemas específicos desta tese, no entanto, a abordagem dessa recapitulação do(s) conceito(s) de influência na literatura será marcada por um ponto de vista crítico, a partir do qual procuraremos explicitar nossas posições, concordâncias e 392 divergências. Esperamos que este subcapítulo seja capaz de esclarecer os problemas fundamentais da questão da influência nesse campo, com suas principais definições ao longo da história dessa disciplina. O esclarecimento da questão da influência no campo dos estudos literários permitirá também que vejamos nesses estudos a fonte a partir da qual muitos dos estudos em nosso campo das artes visuais buscaram a munição tanto para a defesa do conceito de influência quanto para sua crítica mais severa. Isso porque não é apenas na sua construção positiva, mas também em sua capitulação frente a conceitos mais operativos (bem como em seus ressurgimentos, quando da emergência de novas questões ou novos objetos de estudo), que um conceito tempera o aço de sua validade e aguça o fio de sua precisão. Pensamos que é a partir do conhecimento desses problemas e do reconhecimento de sua importância no plano mais ampliado dos estudos humanistas344 que é possível pensar um conceito de influência na especificidade das artes visuais, dos desenhos e, particularmente, da obra de Iberê Camargo. É sobretudo a partir desta última questão que se encontra a justificativa deste subcapítulo: ele representa um primeiro nível de análise e de construção de nossa concepção de influência, realizado através de nosso posicionamento frente a essa questão, tomada a partir do lugar de sua origem. Por último, é preciso lembrar que o campo da literatura comparada, origem do conceito de influência, se constitui por si só em uma disciplina que tem por característica fundamental, por sua “especificidade”, justamente a “possibilidade de atuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, próprios aos objetos que ela coloca em relação”345. Essa abertura a outras fronteiras é o que não apenas nos autoriza o atrevimento “ultracrepidário” 346, como faz dessa disciplina uma espécie de salvo-conduto teórico para a travessia do conceito de influência rumo a nosso território específico, o do desenho, e ao lar palpitante de nossas incertezas: os desenhos de Iberê Camargo. 1.1.1. O surgimento do conceito: século XVIII, a escola francesa e a pesquisa 344 Ou seja, das chamadas “humanidades” ou ciências humanas. 345 CARVALHAL, Tania Franco. “Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 1, Niterói, 1991. p. 10. 346 Sobre a utilização desse termo em língua portuguesa e sua relação com o mote latino colocado no início deste subcapítulo, ver: <http://www.sualingua.com.br/02/02_ultracrepidarios.htm> (consultado em maio de 2009). 393 "genética" O conceito de influência tem sua origem no latim medieval influentia, significando "fluir para", e carrega consigo uma definição astrológica: os fluidos derramados pelas estrelas e pelo céu sobre os homens, fluidos esses que seriam capazes de modificar seu destino e suas características. É no século XVIII que o termo influência passa a ter as características que ele comumente carrega até hoje: "ação ou efeito de influir(-se); poder de produzir um efeito sobre os seres ou sobre as coisas, sem aparente uso da força ou de autoritarismo; ação de um agente físico sobre alguém ou alguma coisa, suscitando naquele ou nestas modificações; ação que se exerce sobre as disposições psíquicas, sobre a vontade de determinada pessoa; autoridade, prestígio, crédito desfrutado por alguém numa sociedade ou num determinado campo"347. Não é por acaso que o termo será definido no século XVIII, já que, conforme afirma W. J. Bate, "o século XVIII é o primeiro período na história moderna a encarar o problema de o que significa vir imediatamente depois de um grande empreendimento criativo"348. Conforme vimos no primeiro capítulo, é justamente nesse século em que os problemas ligados à originalidade têm seu surgimento. O conceito de influência, portanto, surge como seu contraponto, como aquilo que se deve evitar no sentido de permanecer original, ou de outro modo aquilo que se deve exercer como prova (inversa) de sua originalidade sobre os outros. Conforme afirma Susan Stanford Friedman, esse conceito "sugere um princípio de causalidade, em que uma pessoa (ou coisa) como resultado da ação de uma outra força, prévia e mais poderosa, presume uma fonte, uma origem e uma agência (...)"349. Nesse sentido, a influência, segundo essa definição, é um conceito hierárquico e se estabelece em uma relação em que um dos elementos é o agente ativo, enquanto o outro é o receptor passivo – um conceito que em sua origem será fundamentalmente valorativo e desde já centrado na figura do autor. Os estudos sistemáticos da influência têm início na primeira metade do século XX, na chamada "Escola Francesa" de estudos comparativos350. Temos em Van Tieghem seu 347 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Ver. 1.0 Dezembro de 2001. 348 BATE, Walter Jackson. "The Second Temple". In: PRIMEAU, Ronald (org.). Influx: essays on literary influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. p. 107. 349 FRIEDMAN, Susan Stanford. "Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of the Author". In: CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 152. 350 Os estudos de Literatura Comparada têm sua origem no século XIX, com Hugo Meltzl de Lomnitz, 394 principal expoente, através de sua obra La Littérature Comparée, de 1931. A característica da Escola Francesa será o estudo "forense" de fontes e influências, numa perspectiva positivista (ou seja: da busca da verdade objetiva a partir de evidências concretas) e empiricista, focada nas influências exercidas entre obras de diferentes nações. Como ressalta Tânia Carvalhal, “(...) a receita era pesquisar influências, buscar identidades, ou diferenças, restringindo o alcance da literatura comparada ao terreno das aproximações binárias e à constituição de famílias literárias"351. Esse trabalho de busca das influências sofridas e exercidas entre nações fazia parte do exercício de um imperalismo cultural em que, conforme afirmam Clayton & Rothstein: "uma obra, um movimento ou toda uma literatura nacional era exaltada ao nível no qual era capaz de exercer uma hegemonia sobre a literatura de outros países"352. Derivando suas concepções teóricas das definições estabelecidas no século XVIII, o conceito de influência desses primeiros anos dos estudos comparativos segue com sua visão binária do influenciador como agente e do influenciado como paciente das ações de influência. Do mesmo modo, o conceito ainda guarda sua função valorativa e sua característica hierárquica. A busca "genética" da influência (ou seja: o estudo de sua gênese, confirmado pela identificação de suas fontes) procurava acompanhar os processos de recepção, sucesso e influência exercidos na passagem do emissor (ou seja: o escritor, a obra ou a ideia) para o transmissor (por ex.: uma tradução) e por este para o receptor. A escala de valores do estudo comparativista, de busca das fontes e influências, é diferente daquela da história da literatura nacional, preocupada (esta última) com os grandes escritores. Como observa Sandra Nitrini, a literatura comparada “considera importante o estudo de escritores menores, em geral menosprezados pela história literária”353. 1.1.2 Os desvios conceituais: o conceito de tradição em T. S. Eliot e a influência em fundador da revista Acta Comparationis Litterarum Universarum (1877), e com H.M. Posnett em sua obra Comparative Literature (1886), podendo ainda remontar aos conceitos de "literatura mundial" (Weltliteratur) de Goethe e aos formalistas russos, na figura de Alexander Veselovsky. Entretanto, no que se refere ao estudo específico da influência, encontramos na Escola Francesa sua origem. 351 CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986, p. 20. 352 CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric. Figures in the Corpus. In: _________________. (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 5. 353 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 33. 395 Paul Valéry Os poetas e teóricos da literatura T. S. Eliot e Paul Valéry, apesar de não integrarem o grupo de scholars dedicados especificamente ao campo da literatura comparada, contribuíram conceitualmente à questão da influência a partir de suas visões sui generis sobre ela. O pensamento dos dois autores será o fundamento de muitas teorias posteriores sobre a questão da influência. A importância dessas concepções e sua precedência histórica, aliada ao não-engajamento aos grupos comparatistas, permite-nos analisá-los separadamente. Já em 1919, um texto foi fundamental para o questionamento de muitas questões que tocavam os problemas da influência: "Tradition and Individual Talent", de T. S. Eliot. Por essa contribuição marcar um desvio da concepção conceitual, ainda que não contemporânea aos outros desvios que analisaremos neste subcapítulo, pareceu-nos apropriado situá-la aqui. No entanto, a primeira aproximação de Eliot especificamente com o termo influência ocorre um ano antes de seu "Tradition and Individual Talent". Em um texto de 1918, o ensaio intitulado "In Memory of Henry James", Eliot caracteriza a influência com predicados que veremos no ano seguinte em seu conceito de tradição. É essa aproximação o que nos permite entender seu texto sobre tradição como uma resposta ao conceito de influência tal como entendido desde o século XVIII. No ensaio de 1918, Eliot assim escreve: "A 'influência' de James pouco importa: ser influenciado por um escritor é ter a oportunidade de ser inspirado por ele; ou de se tomar o que se quer; ou de ver coisas que são negligenciadas; haverá sempre umas poucas pessoas inteligentes para entender James, e ser entendido por umas poucas pessoas inteligentes é toda a influência que um homem necessita"354. Notamos duas características importantes na definição de Eliot. A primeira delas é a da pouca importância dada à influência, o que permite pensarmos em uma nova estrutura conceitual que daria conta das questões da inter-relação entre artistas ou entre as obras. A segunda característica é que a definição de Eliot para a influência a situa em uma função ativa, e não na posição passiva em que até então o termo era determinado. Essa posição ativa da influência irá ajustar-se e, desse modo, precipitar o surgimento do conceito de tradição, conforme passaremos a ver a seguir. 354 ELIOT, T. S. "In Memory of Henry James". In: Egoist 5 (1918), p. 1. 396 Avançando em sua reflexão, o texto do ano seguinte, "Tradition and the Individual Talent", trata basicamente da relação do poeta com a tradição que o precedeu. Ao contrário da concepção até então em voga da influência, a relação que Eliot estabelece não acontece a partir do binômio atividade-passividade, em que o poeta situado no presente apenas sofreria a ação exercida dos poetas do passado. O autor salienta que "o que acontece quando uma nova obra de arte é criada é algo que acontece simultaneamente com todos os trabalhos que a precederam"355. A estratégia de Eliot para salientar uma relação não-unilateral, mas de simultaneidade entre a arte do presente e a do passado, é pensar a história sobre uma nova perspectiva. O "sentido histórico" (historical sense) requerido por Eliot involve "a percepção não somente da qualidade de passado do passado [pastness of past], mas de sua presença"356. A ruptura de um ponto de vista histórico linear (tal qual o do positivismo histórico, sobre o qual o conceito de influência da Escola Francesa foi construído) permite a Eliot conceber toda a literatura da Europa desde Homero inserida em "uma existência simultânea e compondo uma ordem simultânea"357. É a partir desse novo paradigma que o artista passa a ser não aquele que herda a tradição do passado, mas que a conquista através de um trabalho ativo. Essa simultaneidade também passa a exigir do crítico um trabalho comparativo não no sentido de buscar as fontes e influências, mas de entender que "nenhum artista de arte alguma pode ter seu sentido completo solitariamente"358. A diferença entre o passado e o presente, para Eliot, seria apenas que o presente possui uma consciência do passado que este não possui em relação a si mesmo. Outro desvio importante empreendido por T. S. Eliot é o do foco do poeta para a poesia. O conceito de tradição para Eliot é fundamentalmente impessoal, direcionado para a poesia, e não para a personalidade do poeta. Sua concepção de poesia (e coextensivamente de tradição) é a de "um todo vivo formado por todas as poesias que já foram escritas", enquanto que, no que se refere ao artista, entende que seu progresso é feito por "um contínuo autossacrifício, uma contínua extinção de sua personalidade"359, a 355 ELIOT, T. S. "Tradition and The Individual Talent" (1919). In: PRIMEAU, Ronald (org.). Influx: essays on literary influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. p. 16. 356 Id. Ibid. 357 Id. Ibid. 358 Id. Ibid. 359 Idem, p. 18. 397 ponto de tornar-se o perfeito veículo físico onde acontece a química dos elementos da poesia (e a metáfora utilizada pelo autor é justamente da química). O "talento individual" de um artista seria então aquela habilidade em conectar-se com a tradição e de criar algo capaz de fazer parte dela, por conseguinte, modificando-a. Muito longe de ser um problema, a aquisição da tradição passa a ser a característica da grande poesia. Uma das principais consequências dessa mudança de foco e da concepção da poesia como essa simultaneidade presente da tradição é que a relação entre antecessor e sucessor não apenas passa a ser questionada como aquilo que anteriormente era entendido como uma herança (em um movimento passivo em relação ao passado), passando a ter um valor ativo. A influência, para T. S. Eliot, como salienta A. Nestrovski, “é o fator que organiza a tradição”360. As relações entre os poetas ou, melhor falando, entre as poesias, portanto, passa a não ter o aspecto pejorativo e hierarquicamente delimitado. Paul Valéry, não tão sistemático quanto T. S. Eliot, tem em suas cartas e aforismos o modo através do qual revela um pensamento singular sobre o problema da influência. Os textos de Valéry que dizem respeito a esse problema situam-se sobretudo entre 1924 e 1927361. Em sua “Carta sobre Mallarmé”, Valéry estabelece alguns dos principais pressupostos de sua visão do conceito de influência. A influência é para o autor “a mais vaga entre as vagas noções que compõem o armamento ilusório da estética”362. No entanto, “no exame de nossas produções”, não há nada que “interesse mais filosoficamente o intelecto e que deva excitá-lo mais à análise que essa modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro”363. Vemos aqui que, para Valéry, o conceito de influência tem duas propriedades importantes: sua vaguidade e o fato de fazer parte daquele conjunto de operações que são realizadas no espírito de um autor. Ou seja, como afirma Nitrini, “o essencial dessa relação é o caráter emocional” 364. A relação 360 NESTROVSKI, Arthur. “Influência”. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, pp. 215-216. 361 Nossa reflexão sobre Valéry acompanhará, além dos textos originais do autor, as reflexões, informações e indicações bibliográficas presentes In: NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 131-136, da qual reconhecemos nosso débito em boa parte destas reflexões. 362 VALÉRY, Paul. “Lettre sur Mallarmé”. In: ___________. Oeuvres. Vol I. Paris Gallimard, 1960. p. 634. 363 VALÉRY, Paul. “Lettre sur Mallarmé”. In: ___________. Oeuvres. Vol I. Paris Gallimard, 1960. p. 634. 364 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 133. 398 de contato entre o influenciado e o influenciador é a da natureza de um choque: “À idade ainda bastante tenra de vinte anos, e no ponto crítico de uma estranha e profunda transformação intelectual, eu sofri o choque do trabalho de Mallarmé; eu conheci a surpresa, o escândalo íntimo instantâneo; e o deslumbramento; e a ruptura de meus vínculos com meus ídolos daquela idade”365. O choque tem não apenas de operar a influência no espírito do autor, como também de remover as influências anteriores, sendo que a originalidade, para Valéry, conforme também afirma em sua “Carta”, é ignorância a respeito dessa alquimia interior: “Dizemos que um autor é original quando estamos na ignorância das transformações escondidas que alteraram os outros nele; queremos dizer que a dependência do que faz em relação ao que foi feito é demasiadamente complexa e irregular”366 Avançando mais em sua reflexão, Valéry escreve que a originalidade não é apenas essa ignorância do que foi assimilado pelo artista (o que seria uma definição da originalidade através da ingenuidade do artista que não se dá conta de suas influências), mas (e sobretudo) é composta por essa própria assimilação. Essa concepção surge de duas de suas mais famosas expressões sobre o tema da influência e da originalidade. A primeira delas é a firmação que “o leão é feito do carneiro assimilado” 367 , o que expõe não apenas a ideia de que a formação de um artista se dá através da assimilação de outros artistas, mas também de que a formação de um grande artista (leão) não depende necessariamente da influência/assimilação de outros grandes artistas, mas que é feita dessa digestão dos “carneiros”, ou seja: daqueles outros menores. A partir disso, temos a outra definição célebre de Valéry: “a originalidade, questão de estômago”368. Não apenas uma questão de estômago por se tratar desses “carneiros” digeridos pelo “leão”, mas também porque é justamente sua perfeita digestão o que lhe confere a originalidade enquanto que a digestão incompleta seria a causa do plágio: “plagiário é aquele que digeriu mal a substância dos outros: ele torna os pedaços reconhecíveis”. Como podemos ver, temos em Valéry, especialmente a partir de sua “Carta sobre 365 VALÉRY, Paul. “Lettre sur Mallarmé”. In: ___________. Oeuvres. Vol I. Paris Gallimard, 1960. p. 637. 366 Idem, p. 635. 367 Idem, p. 478. 368 VALERY, Paul. Tel Quel. Paris: Gallimard, 2006. p. 332. 399 Mallarmé”, mas também nos pensamentos aforísticos que escreveu, uma reflexão complexa tanto dos problemas de influência quanto sobre as questões de originalidade e plágio. Todas essas questões estão relacionadas no pensamento do autor, ainda que as encontremos dispersas em seus escritos. A influência surge como esse choque entre autores, choque positivo que não apenas traz transformações relevantes no espírito do poeta, como também é formador dele mesmo. A influência passa a ser a formadora do grande artista, e sua assimilação plena é o seu lastro de originalidade. Por último, Valéry também apresenta uma concepção de um tipo particular de influência: aquela que o artista exerce sobre si mesmo369. Assim escreve Valéry: “Imitar a si mesmo. É essencial ao artista que saiba imitar a si mesmo. Esse é o único meio para construir uma obra - que é necessariamente uma empresa contra a mobilidade, a inconstância da mente, do vigor e do humor. O artista utiliza como modelo o seu melhor. O que ele faz de melhor (em seu julgamento) lhe serve como um padrão de valor”370. O artista deve imitar a si mesmo. A afirmação do autor relaciona-se àquele conceito-chave apontado por Nitrini, “o orgulho, que também poderia ser um descontentamento permanente consigo mesmo”371. Esse orgulho, essa “necessidade de se distinguir”, que faz com que Baudelaire deseje “ser um grande poeta, mas não ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset”, parece corresponder ao mesmo mecanismo aparentemente circular que gera a imitação de si mesmo. Dizemos aparentemente porque, se endendermos que aquilo que é próprio ao artista não é apenas singular a ele, mas faz parte dessa construção feita de digestões, imitar a si mesmo não deixa de ser também imitar o que de si mesmo lhe é alheio – ou ao menos o que tem origem alheia. Assim, nessa relação entre “o próprio e o alheio”372, a afirmação orgulhosa de si mesmo faz do poeta um inquiridor de si mesmo na busca de suas influências, naquilo que Nitrini chama de “recusa de uma influência”373. Esse espelhamento faz retornar, através de si, 369 Questão citada por Nitrini, mas não desenvolvida pela autora, razão pela qual passamos a desenvolvêla a partir apenas de nossa leitura do texto de Valéry e das questões que nesta autora nos parecem correlacionadas ao tema. 370 VALERY, Paul. Tel Quel. Paris: Gallimard, 2006. p. 257. 371 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 136. 372 Sempre que utilizarmos o termo “alheio” junto a termos como “próprio” ou “próximo”, estaremos fazendo referência à obra de Tania Franco Carvalhal. In: CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio. Ensaios de Literatura Comparada. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003. 373 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 136. 400 aquelas influências dos outros, onde também a impossibilidade de um também é a do outro, segundo as próprias palavras do autor: “o que é em um homem inimitável pelos outros é precisamente o que ele não pode imitar de si mesmo. O que ele tem de inimitável o é para si”374. 1.1.3 Claudio Guillén e a interioridade do conceito de influência A Escola Francesa teve sua hegemonia até o início da Segunda Guerra Mundial, quando então novos estudos questionaram o conceito de influência predominante, apresentando alternativas teóricas a ele. Muitos desses estudos passam a concentrar-se na investigação, como afirma Nitrini, não mais de “um modelo internacional, vinculado à história, e tendo como pano de fundo o conceito de 'nacionalidade” 375, mas – sobretudo a partir da escola americana – passam a se interessar por “um modelo supranacional, ligado às questões mais gerais das literaturas, à crítica e à teoria literária”. Como representante do pensamento americano, encontramos Claudio Guillen (que, apesar de ser espanhol, desenvolveu boa parte de sua vida acadêmica nos Essados Unidos). Passaremos, a seguir, à análise desse teórico. Claudio Guillén, em seu artigo "The Aesthetics of Influence Studies in Comparative Literature"376, de 1959, complementado por seu artigo posterior “A Note on Influences and Conventions”377, de 1963, apresentará um novo enfoque para o conceito de influência. Conforme buscarei demonstrar, ainda que o autor defina as características do conceito de influência, acaba por descaracterizar a operacionalidade do conceito de influência tal como entendido até aqui. Essa nossa tese sobre o pensamento de Guillén vai ao encontro 374 VALERY, Paul. Tel Quel. Paris: Gallimard, 2006. p.257. 375 Idem, p. 31. 376 GUILLÉN, Claudio. "The Aesthetics of Influence Studies in Comparative Literature". In: Comparative Literature. Proceedings of the Second Congress of the International Comparative Literature Association, ed. Werner P. Friederich (Chapel Hi, N. C., 1959), I, pp. 175-192. Utilizaremos aqui sua publicação In: GUILLÉN, Claudio. Literature as System. Essays Toward the Theory of Literary History. New Jersey: Princenton University Press, 1971. pp. 17-52. 377 GUILLÉN, Claudio. “A Note on Influences and Conventions”. In: Comparative Literary Studies, I (1963), pp. 149-151. Utilizaremos aqui sua publicação In: GUILLÉN, Claudio. Literature as System. Essays Toward the Theory of Literary History. New Jersey: Princenton University Press, 1971. pp. 5368. 401 do que Sandra Nitrini afirma quando escreve que: “sua [do conceito de influência] operacionalidade pode ser questionada, na medida em que o estudioso entrar num terreno extremamente escorregadio, ao se dispor a realizar uma tarefa praticamente impossível, qual seja a de verificar se uma influência realmente ocorreu e avaliar seu papel na gênese de uma obra literária”378. No entanto, apesar de nossa concordância com Nitrini, buscaremos demonstrar que a inoperacionalidade do conceito de Guillén se encontra não apenas no problema de verificação de conceitos subjetivos, mas também na própria descaracterização do momento de investigação como um momento de estudo de influências (já que esse segundo momento, o da investigação, não parece fazer parte do universo das influências, já que estas não se revelam necessariamente como questão na obra). Segundo Guillén, a influência é um processo que ocorre dentro do processo criativo do artista. É algo que faz parte de sua gênese criativa. Conforme escreve Guillén: "O método comparativo é insuficiente em tais casos. A questão da possível influência de A sobre B não pode ser estabelecida por uma simples comparação entre A e B. Cada estudo de influência é inicialmente um estudo da gênese de uma obra de arte e deve ser afirmado sobre o conhecimento e a interpretação dos componentes dessa gênese". Sendo uma ação que ocorre no artista e não na obra, a influência não trata de características visíveis no trabalho do artista. Guillén, com isso, procura excluir o papel desempenhado pelos tradicionais estudos de fontes e influência, o de caça às fontes a partir dos vestígios encontrados nas obras. Conforme escreve Ronald Primeau, em sua introdução ao texto de Guillén, "influência torna-se uma Gestalt na qual ligações genéticas ordinárias são irrelevantes ou secundárias"379. Tratando dos componentes que fazem parte do artista, de seu universo pessoal (ainda que relacionado à poesia), surge o problema da escolha dos elementos importantes dentro dessa subjetividade. Como não a tornar uma mera questão de foro íntimo ou um conjunto indeterminado de experiências impossíveis de serem apreendidas? A alternativa de Guillén para a resolução desse problema (que se identifica ao problema 378 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. p. 137. 379 PRIMEAU, Ronald "Part Two: an Aesthetic of Origins and Revisionism". In: _______________. Influx: essays on literary influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. p. 47. 402 apontado por Nitrini) é a de tornar a identificação da influência um juízo de valor estabelecido pelo crítico: "Averiguar uma influência é fazer um juízo de valor, não é medir um fato. O crítico é obrigado a avaliar a função ou abrangência do efeito de A na formação de B, porque ele não estará listando a soma total desses efeitos, que são legião, mas ordenando-os"380. Uma outra consequência da mudança desse eixo de atenção da obra para a intimidade criativa do artista é que os estudos passam a ser dominados (ou, ao menos, passam a necessitar de) por um instrumental mais psicológico do que por conceitos artísticos/formais para a sua análise. Esta última mudança gerará uma longa e consistente tradição de análise do problema da influência através do viés psicológico e psicanalítico381. Conforme afirma Guillén: "O valor de uma influência não é estético, mas psicológico. Ao avaliar uma influência, nós estamos engajados no julgamento de sua função genética. O acréscimo da presença ou da ausência de um paralelismo é uma questão diferente, porque a ordem do estético - a área do poema - é colocada à parte do domínio das influências".382 Qual, então, a relevância estética desse conceito para o autor? Segundo Guillén, ela reside no fato de a influência ser "uma parte reconhecível e significante da gênese de um trabalho de arte"383. A influência para Guillén é, sobretudo, o impacto384 que o artista sofre, de maneira mais imediata, durante sua gênese criativa. Sendo assim, seu estudo deve ter como primeiro objetivo a identificação desse impacto, a partir dessa valoração crítica do que é mais relevante. Aquilo que Guillén chama de "segundo passo", que se refere ao "estudo textual e comparativo" e que lida com "paralelismos e ecos", já não é propriamente um estudo da influência. Não se trata mais de sua gênese, mas de seus possíveis impactos. Admitindo que tais impactos não são, para o autor, condição 380 GUILLÉN, Claudio. "The Aesthetics of Influence Studies in Comparative Literature". In: ___________________. Literature as System. Essays Toward the Theory of Literary History. New Jersey: Princenton University Press, 1971. p. 38-9 381 Conforme já vimos, esta questão íntima e psicológica já estava evidente na conceituação de influência realizada por Paul Valéry. 382 Idem, p. 39. 383 Idem, p. 30. 384 Termo também presente na concepção de influência de Paul Valéry. 403 suficiente para a presença de uma influência, nem sequer uma condição necessária – segundo Guillén, não apenas as similitudes entre obras não são identificáveis com influência, como mesmo a ausência de similitudes não descaracteriza o efeito de uma influência –, acabamos por admitir também que a análise de influência passa a não fazer sentido dentro da estrutura teórica construída pelo autor. Essa parece ser também a opinião do crítico Haskell M. Block quando diz, a respeito do conceito de Guillén: “o conceito de influência é virtualmente descartado, limitado a uma parte do fundo psicológico de expressão estética e sem interesse direto à Literatura Comparada”385. A partir dessa "via negativa" de definição da influência, ou seja, definindo aquilo que ela não é, Guillén encontra os conceitos de convenção e de tradição como mais específicos do que o de influência no que concerne às relações estéticas da obra de arte no campo mais ampliado da arte e de suas relações (sistêmicas, sociais, históricas). A "tradição", para Guillén, não é nada além do que uma convenção vista sob a perspectiva de uma sequência histórica (diacrônica). Convenção e tradição seriam capazes de dar conta dos problemas da influência quando estes são entendidos não como problemas individuais, de artista para artista, ou de obra para obra, mas em seu uso coletivo, além de serem elementos que não se estabelecem apenas a partir daquele primeiro impacto da gênese, mas que são vistos operando no campo artístico. De outro modo, caberia ao conceito de influência um uso mais imediato, de relação pessoal, próxima, entre um e outro artista: "Mas se um romance sobre guerra nos lembra de Homero, é um corpo comum de premissas culturais e tradições, ao contrário de um tête-à-tête de influência, o que está em jogo".386 O problema para Guillén é que esse tête-à-tête a que a influência faz referência e que é responsável por fundamentais mutações no espírito do poeta, conforme vimos, muitas vezes não deixa traços em sua obra acabada. Conforme salientam Tânia Carvalhal e Eduardo Coutinho, refletindo a partir do conceito de Guillén, "seus efeitos, na verdade, cessam ou desaparecem, freqüentemente, dentro da própria dimensão da 385 BLOCK, Haskell M. “The Concept of Influence in Comparative Literature” In: PRIMEAU, Ronald. Influx: Essays on Literary Influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. p. 78. 386 GUILLÉN, Claudio. "A Note on Influence and Conventions". In: ___________________. Literature as System. Essays Toward the Theory of Literary History. New Jersey: Princenton University Press, 1971. p. 60. 404 consciência do escritor"387. Como podemos ver, Guillén conduz o conceito de influência aos limites de sua operacionalidade. Afirmamos, aliás, que ficamos frente a uma inoperacionalidade do conceito dentro da prática comparativa. Esse conceito passa a fazer parte mais do universo particular do artista, desse momento de impacto pessoal (e, nesse sentido, retoma a concepção de Valéry), do que propriamente das evidências a que o teórico poderia ter acesso através não de um estudo biográfico de um particularismo nem sempre possível de se ter acesso, mas através da obra. O conceito passa a ficar sob uma espécie de suspensão, entre um incômodo "entre parênteses", ao mesmo tempo em que parece apontar, em suas entrelinhas, para novas possibilidades de estudos frente ao esgotamento ou carência a que leva esse conceito. 1.1.4 A renovação do conceito de influência e a busca de sua especificidade Se os anos 1950 identificaram-se com a crítica ao alcance demasiado largo do conceito de influência e dos estudos “policialescos” de identificação das fontes e influências, também foram responsáveis por análises que procuraram definir com mais exatidão esse conceito, buscando devolver-lhe sua agudez analítica. Entre esses estudos, destacam-se as análises de Ihab H. Hassan, a partir de seu artigo de 1955 “The Problem of Influence in Literary History: Notes Toward a Definition” 388, e de Haskell M. Block, com o artigo “The Concept of Influence in Comparative Literature”389, de 1958. Ihab H. Hassan principia seu texto com uma constatação: o problema da influência necessita de uma definição mais precisa. A partir dessa constatação, descreve quatro 387 COUTINHO, Eduardo F. e CARVALHAL, Tânia Franco (Org.). Literatura Comparada. Textos Fundadores. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.p. 162. 388 HASSAN, Ihab H. “The Problem of Influence in Literary History: Notes Toward a Definition”. In: Journal of Aesthetics and Art Criticism 14 (1955), pp. 66-76. Utilizaremos aqui sua publicação In: PRIMEAU, Ronald. Influx: Essays on Literary Influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. pp. 34-46. 389 BLOCK, Haskell M. “The Concept of Influence in Comparative Literature”. In: Yearbook of Comparative and General Literature (1958), pp. 30-37. Utilizaremos aqui sua publicação In: PRIMEAU, Ronald. Influx: Essays on Literary Influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. pp. 74-81. 405 etapas a partir das quais esse conceito pode ser aguçado: 1. a delimitação do conceito; 2. a revelação da dependência desse conceito com uma concepção ontológica da literatura390, com os problemas advindos disso; 3. a necessidade de uma visão intercultural da influência que articule a história, a sociologia, a psicologia e a estética; 4. a utilização dos conceitos de tradição e de desenvolvimento como alternativas ao conceito de influência. No que respeita à sua delimitação, o autor salienta a diversidade de usos que o conceito de influência tem sofrido, como suas variadas fontes (obras, autores, costumes, eventos históricos, convenções literárias, etc.), suas variadas formas (falsificações, empréstimos, interações, entre outros) e seus vários receptores (tradições, movimentos literários, autores, obras, eras), variando também nos modos de sua relação, abrangem um amplo espectro que vai da mera casualidade à causalidade mais estrita. Entre as delimitações de seu escopo, o autor indica também o problema de sua característica: por ser uma questão basicamente de relacionamento (entre autores e obras, entre obras, etc.), não existe a possibilidade de um método rigoroso, já que não se podem precisar com exatidão os relacionamentos em geral. Entretanto, não se deve resignar-se a um completo relativismo, e a estratégia do autor, portanto, é a de delimitar o conceito, focando em um tipo específico de influência: o da relação entre a obra de um autor e a obra de outro autor ou outra tradição. Dentro desse limite, um erro observado por Hassan é o do ponto de vista biográfico, referindo-se aos estudos que buscam similaridades entre autores. O erro da ênfase biográfica, segundo Hassan, é que esta tende a tomar a obra como expressão objetiva do autor em uma relação causal simples que identifica o autor com sua obra (e identifica a intenção de um autor com a sua obra, sem atentar para as relações ilógicas e irracionais presentes nessa relação). A partir dessa relação direta, e tomando-a como uma constante, ou seja, entendendo que a relação de um autor 'A' com sua obra 'Wa' é igual à relação de um autor 'B' com sua obra 'Wb', surge o erro de identificar a influência como algo que ocorre entre um autor A sobre a obra de outro autor Wb. Segundo Hassan, o correto seria pensar no trabalho de um autor Wa agindo sobre um autor B. 390 O autor não define o que significa esta “concepção ontológica”, mas ela parece indicar uma ideia da literatura como ente autônomo, como um ser em si mesmo, sem dependência de outros campos, tal como a concepção aristotélica de ontologia indica (o “ser enquanto ser”). 406 A resposta a esse problema, conforme relata Hassan, foi buscada pelos neoformalistas, ao darem ênfase à obra acabada e às relações de similaridade entre obras, destituindo a importância tanto da relação causal para o entendimento desses problemas quanto da intencionalidade (ao destituir o autor da obra como centro da análise). No entanto, Hassan, um defensor importante do autor nos estudos de influência, não acha que se devam rejeitar por completo as relações de intencionalidade, encontrando, portanto, alguma correlação entre a intenção do autor e a obra acabada (ainda que não da forma estrita e causal na qual essa relação era até então entendida). Essa correlação deve acontecer a partir de várias coordenadas e necessita ser entendida em sua complexidade. É preciso, para Hassan, conhecer os contatos entre os autores, a relação dialética entre obra e seu “ambiente”, a correlação de evidência, tudo isso a partir de uma análise, uma avaliação e uma recriação imaginativa dessas múltiplas correlações e múltiplas similaridades. Dentro da complexidade dessas correlações, a especulação e a incerteza são inevitáveis. Finalmente, no sentido de limitar o conceito de influência e apresentar uma nova perspectiva para ele, Hassan fará uso de um “deus ex machina” conceitual: a inserção, em sua estrutura teórica, dos conceitos de tradição e de desenvolvimento – o conceito de tradição como ponto de referência para as relações de similaridades encontradas entre as obras; o conceito de desenvolvimento, por seu turno, como alternativa ao conceito de causalidade, entendido (aquele) como as modificações complexas dentro de uma tradição. A principal contribuição de Ihab H. Hassan é a de ter buscado um maior refinamento e especificidade do conceito, ao mesmo tempo em que aponta os problemas das relações causais simples e diretas, as quais eram uma constante nos estudos comparativistas, principalmente da Escola Francesa dos anos 1930. No entanto, ao optar pela inserção de outros conceitos (como o de tradição), ainda que no sentido de limitar o alcance do conceito de influência, transfere para outro conceito os problemas inerentes à questão da influência. 407 O texto de Haskell Block centra-se na necessidade de uma redefinição instrumental do conceito de influência que exclua dele aquilo que não é capaz de responder, bem como da indicação dos pressupostos básicos a partir dos quais futuramente se poderá construir um conceito de influência. Block inicia primeiramente uma crítica ao conceito de influência derivado de concepções cientificistas do século XIX, que, dentro do espírito positivista da época, buscavam relacionar os conceitos das ciências humanas (ou mais exatamente “ciências da literatura”, Literaturwissenschaft, conforme termo que utiliza) com os das ciências exatas (ou “ciências da natureza”: Naturwissenschaft), na busca de um rigor comum entre elas. A partir disso, o autor busca o rigor próprio do conceito dentro dos estudos literários na mesma medida em que faz a crítica às relações diretas de causa e efeito a que os estudos de influência até então diziam respeito, apoiado também na já extensa trajetória de crítica a esse contexto (o autor cita os estudos de Eliot, Valéry, Hassan, Guillén, entre outros). O primeiro elemento positivo defendido por Haskell Block é o da necessidade de aproximar-se do estudo do texto a partir de sua individualidade, buscando unir história literária à crítica literária, ou seja, à sensibilidade do leitor/crítico a seus valores estéticos intrínsecos. Portanto, temos aqui uma crítica à redução do texto a mero documento ou rapport de fait que apenas se insere em uma história mais ampla da literatura em uma comparação que se limita aos rapports extérieurs (aos diversos fatos que são externos à obra literária). Fazendo uma revisão do conceito de influência e de seus críticos, Block afirma que, além dos problemas em relação a esse conceito derivados de suas definições mecânicas e de seu uso a partir de um instrumental cientificista, “muito da insatisfação é devido, em primeira instância, ao fato de o conceito de influência ter sido obrigado a carregar mais do que ele poderia propriamente comportar” 391, sendo que, na mente de muitos críticos, “a noção mesma de influência é ilícita, sugerindo uma dependência imprópria e uma falta de originalidade”392. A partir da constatação da largueza de seu uso, maior do que seria capaz de 391 BLOCK, Haskell M. “The Concept of Influence in Comparative Literature”. In:PRIMEAU, Ronald. Influx: Essays on Literary Influence. New York/London: Kennikat Press, 1977. pp. 78. 392 Id. Ibid. 408 comportar (ou do que deveria comportar), Block passa a definir algumas diretrizes básicas à aplicação do conceito mais do que à sua definição teórica, embora em Block essas características se identifiquem, já que ele toma o conceito a partir de sua função, como ferramenta ou conceito operativo. Na busca de sua operacionalidade, faz, portanto, um primeiro e ockhamista corte: a influência da literatura do passado sobre um escritor não diz respeito a toda a literatura do passado (tal como o conceito de tradição em Eliot supunha), mas ao menos a parte dela. Os escritores e artistas aprendem de outros escritores e artistas – um aprendizado que não é apenas técnico, de vida e de arte, como parte da vida: “[ainda que] a influência literária seja frequentemente nominal e incidental, também é verdade que às vezes as influências são forças operativas que moldam e direcionam atividades artísticas subsequentes”393. A navalha de Block segue no sentido de cortar os chamados “rapports extérieurs” como objeto primário de investigação da influência, dando acento ao que chama de “rapports intérieurs”, ou seja: “no qual o movimento da influência não é simplesmente de escritor para escritor mas de obra para obra”394. Informações exteriores podem reforçar tais relações internas e por isso não devem ser negligenciadas, entretanto, a importância primária é a da “interação estética”. Usado, portanto, de forma correta, esse conceito “pode prover o discernimento do caráter estético de obras individuais e ao mesmo tempo clarificar e definir suas relações históricas”395. Tomado nesse sentido, não há porque, segundo Block, utilizar conceitos como o de tradição em determinadas relações entre autores que não tratam apenas da afinidade pertencente a uma tradição comum, mas de uma relação em que uma determinada obra de um determinado autor ilumina a de outro (e não apenas estabelece uma relação de reciprocidade). O autor termina seu artigo sugerindo, a partir da citação de Henri Peyre, que os melhores temas para a investigação da influência ainda não foram tocados. Do mesmo modo, sugere que o conceito de influência necessita de uma redefinição e que é um conceito por demais essencial para ser descartado. Essa redefinição dar-se-á a partir de alguns pressupostos fundamentais: 393 Id. Ibid. 394 Id. Ibid. 395 Id. p. 79. 409 “a necessidade de uma leitura imaginativa e sensível unida a uma concepção viva da história literária e baseada em uma consciência da interdependência entre história e crítica”396. 1.1.5 Mudança de foco: o conceito de intertextualidade e a morte do autor A partir dos anos 1960, novos estudos dentro do campo literário buscaram substituir o conceito de influência por novos conceitos. A busca de novos conceitos satisfazia a necessidade da abordagem de questões não tratadas pelo conceito anterior. Ao mesmo tempo, essas novas teorias procuravam superar determinadas características do conceito de influência que eram vistas como problemáticas, seja por sua imprecisão teórica, seja por uma visão segundo a qual, nos revolucionários anos 60, eram tidas como conservadoras. Essas novas teorias respondiam a uma gama de novos pensamentos que surgiam à época e que eram definidos genericamente por sua geografia, ligada (tal como no início do conceito de influência) à França, e pelo genérico conceito de “pósestruturalismo”. Por se mostrarem como respostas ao conceito de influência e se contraporem a ele nesse debate teórico, consideramos importante discutirmos esses novos estudos, mostrando suas diferenças, semelhanças e mesmo as influências do conceito de influência sobre esses novos estudos. Do mesmo modo, muitas das ideias surgidas a partir desses estudos influirão nas redefinições do conceito de influência a partir dos anos 1970. Julia Kristeva, juntamente com Tzvetan Todorov, teóricos vindos da Bulgária para a França, são responsáveis por apresentaram o pensamento do teórico russo Mikhail Bakthin ao pensamento francês e, por extensão, inseri-lo no debate internacional, em meados dos anos 1960. O conceito de Bakhtin apropriado por Kristeva é basicamente o de dialogismo. O conceito de dialogismo (contraposto ao monologismo) define-se como o contínuo diálogo estabelecido entre uma obra literária e outras obras literárias. O enunciado, segundo Bakhtin: 396 Id., p. 81. 410 “é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica”397. Estendendo-se em ambas as direções, a obra dialógica não apenas é influenciada ou influencia outra obra, mas estabelece uma relação em que as obras prévias também são modificadas pelas obras posteriores. Esse conceito, para Bakhtin, não é entendido apenas para obras literárias, mas para toda a linguagem, onde tudo o que é dito ou escrito existe em relação ativa e em resposta a tudo o que já foi dito ou escrito. Essa coexistência não é hierárquica (tal como a influência o é ou parece ser), já que não supõe uma síntese, tal como o processo dialético. O núcleo da análise de Bakhtin centra-se na “palavra literária”, “a unidade mínima da estrutura literária”398. Essa “palavra literária”, em constante diálogo e em contínua mutabilidade em sua relação com as outras “palavras literárias”, situa o texto na sociedade399. Kristeva, a partir de sua leitura do texto “La Poétique de Dostoïevski”, de Bakhtin, apoiada no conceito de dialogismo desse autor, elabora seu conceito, o de intertextualidade. O conceito de intertextualidade surge em seu texto "Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman"400, de 1966, e define-se por sua estrutura dialógica ampliada: todo texto literário é formado por uma rede de múltiplas conexões com outros textos. O texto, portanto, “é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados vindos de outros textos cruzam-se e neutralizam-se”401. Conforme afirma Nitrini sobre a intertextualidade: “o texto literário se insere no conjunto dos textos: é 397 BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina G. G.Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 320. 398 NITRINI, p. 159 399 Relacionado a esse conceito, está o de heteroglossia, que diz respeito às diferentes falas presentes em um texto. Examinando uma obra literária, Bakhtin identifica a fala dos personagens, a fala do narrador, a fala do escritor. Estas diversas falas estabelecem um conflito entre si, e sua presença no romance moderno é o que o define como um gênero literário específico. A heteroglossia estabelece relações de poder, onde nenhuma fala é desprovida de sua posição social e toda fala tem um componente social e ideológico que deve ser levado em conta. A heteroglossia, por não prescindir da presença de um ator da enunciação, será um conceito não tão considerado quanto o de dialogismo nos estudos de Kristeva, os quais primam pela ausência do autor. 400 KRISTEVA, Julia. “Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman”. In: Critique, XXIII, 239, Abril de 1967, pp. 438-65. 401 KRISTEVA, Julia. “O texto fechado”. In: BARTHES, Roland et al. Lingüística e literatura. Trad. Isabel Gonçalves e Margarida Barahona. São Paulo: Martins Fontes, 1968. p. 143. 411 uma escritura-réplica de um outro (outros textos)”402. Desse modo, escrever é sempre reescrever, em uma rede sem fim de reescrituras. A radicalização da ideia da validade de quaisquer tipos de texto e da quebra de qualquer estrutura hierárquica entre eles conduz à diminuição da importância do autor, ao ponto de este se tornar anônimo. Essa concepção de um texto ou de vários textos que estabelecem um diálogo entre si sem a presença do autor afina-se com um conceito que é fundamental a essa época e que irá frontalmente de encontro à ideia de influência: a chamada “morte do autor”. O conceito de “morte do autor” foi cunhado por Roland Barthes. Segundo Barthes, o autor é uma invenção do humanismo pós-renascentista e fundamenta-se no individualismo e no capitalismo. O momento da “morte do autor” é aquele em que se revelaria a natureza própria do texto, isto é, a consciência de que ele é puramente linguístico, radical em sua intertextualidade, anônimo. A escritura seria justamente a destruição de cada voz particular e de cada ponto de origem. O autor passa a ser, para Barthes, um “scriptor”, um escriba através do qual passa a multiplicidade de textos anônimos. Tanto para Barthes quanto para Kristeva, a intertextualidade posiciona a noção de texto como um mosaico de citações sem um marco, uma origem, um autor preexistente exercendo uma ação na construção do texto. As relações e intersecções passam a ser relações de textos, e não de pessoas, em um jogo intertextual estabelecido na ausência (ou morte) de qualquer autoria. Emerge dessas reflexões a concepção de um “sujeito textual”, o qual, segundo o instrumental psicanalítico lacaniano adotado pela autora, passa a ser entendido na sua relação com uma psique própria: o texto como psique, que “é o corolário da noção de Lacan da psique como texto”403. Conforme observa Susan Stanford Friedman, a respeito do contexto em que as ideias de intertextualidade surgiram: “a anonímia e a morte do autor em Kristeva e Barthes – central para a sua concepção de intertextualidade – é parte geral de uma crítica pósestruturalista do sujeito convencional (unificado, autoritário, agente) do 402 NITRINI, p. 162. 403 FRIEDMAN, Susan Stanford. ”Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of the Author”. In: CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 150. 412 humanismo e do existencialismo Ocidental”404. De fato, a crítica ao humanismo parece ser o texto subjacente ao conceito de intertextualidade de Kristeva, o que se evidencia ao lembrarmos o contexto francês (e Europeu) dessa época. O pessimismo em relação ao projeto humanista, iluminista e progressista (que havia dominado a Europa até as vésperas da Primeira Grande Guerra) abate-se sobre o pensamento francês, principalmente após a derrocada nacional na Segunda Grande Guerra e o conhecimento dos horrores nazistas. As incertezas a respeito do 'Eu' e de seus discursos levará a um “relativismo epistêmico” que dominará o pensamento francês a partir dos anos 1960, prosseguindo (ao menos) ao longo dos anos 1970 e 1980. Do mesmo modo, as concepções de Kristeva terão desdobramentos posteriores, em trabalhos como “Stratégie de la forme”405, de Laurent Jenny, e em novos conceitos derivados da intertextualidade, como o de transtextualidade, de Gérard Genette. O artigo de Laurent Jenny, “Stratégie de la forme”, publicado em 1976, é um dos primeiros trabalhos a trazerem para o campo específico dos estudos comparativos o conceito de Kristeva. Uma das principais características da definição de intertextualidade como propõe Jenny é pensar esse conceito a partir de um texto focal que guarda o controle do significado. A partir do texto central, os intertextos circulam, penetram, dialogam, através de uma série de modificações descritas pelo teórico: Paranomasia, Elipse, Amplificação, Hipérbole e Inversão. O foco em um texto único a partir do qual são vistas essas transformações parece-nos fazer retornar, ainda que a partir de um silêncio reprimido, essa palavra-tabu do pós-estruturalismo: a influência. Além disso, sua insistência em figuras como a de Burroughs, como quando afirma que, “ao longo das produções intertextuais de autores literários, William Burroughs ocupa um lugar todo seu, no qual sua fé na transitividade do discurso não conhece limites”406, parece também fazer retornar o tabu por trás dessa palavra-tabu: o autor. Gérard Genette apreentará seu conceito de transtextualidade em 1982, em sua 404 Idem, p. 156. 405 JENNY, Laurent. “Stratégie de la forme”. In: Poétique, 27. Paris: Seuil. 1976, pp. 257-81. Em nossa análise, utilizaremos a sua tradução inglesa publicada: _____________. The strategy of form. In: TODOROV, Tzvetan. French Literary Theory Today. A Reader. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. pp. 34 – 63. 406 Op. Cit. p. 61. 413 obra “Palimpseste; la littérature au second degré” 407. Utilizando-se da metáfora do palimpsesto, definirá a transtextualidade como tudo o que coloca em relação um texto com outro texto. Genette caracteriza a intertextualidade como uma das categorias da transtextualidade, a saber: aquela que diz respeito à presença identificável de um texto em outro texto, tendo como exemplos o plágio, a citação e a alusão. Outras quatro categorias fazem parte de sua construção teórica. São elas a paratextualidade, a metatextualidade, a arquitextualidade e a hipertextualidade. A paratextualidade diz respeito às “bordas” do texto, à sua periferia, como o título, o prefácio ou as suas notas. A metatextualidade refere-se ao ponto de vista crítico, às relações estabelecidas entre os textos através de comentários críticos. A arquitextualidade designa as categorias ou classes a que o texto pertence, como o gênero literário ou seu modo discursivo. Finalmente, à hipertextualidade corresponde toda relação que une um texto a outro texto anterior e que não se define como uma relação de mero comentário. Nesse sentido: “Para Genette (1982), todas a obras literárias seriam hipertextuais. Não há, na sua concepção, obra literária que não reclame, de alguma forma, uma outra obra. Assim como, para Kristeva (1968), todo texto literário seria marcado pela intertextualidade, para Genette (1982) toda obra literária é atravessada pela hipertextualidade”.408 Se o pensamento de Kristeva e Barthes deixa transparecer sua crítica ao humanismo iluminista, através das teorias da “morte do autor”, é preciso dizer também que nossa exposição, neste subcapítulo, do conceito de intertextualidade reflete, do mesmo modo, ao menos em suas entrelinhas, nossos pontos de discordância. Passaremos agora das entrelinhas às linhas em nossos pontos de divergência. Ao descrevermos a história desse conceito a partir primeiramente de seu precursor (Bakhtin) e depois daqueles que influíram sincronicamente (Barthes e Lacan) no pensamento da autora Kristeva, ressaltamos a figura dos autores como formadores do próprio pensamento que procura construir-se como uma teoria do não-autor. Ao contrário dos estudos de influência, que têm uma tradição de quase anonimato entre seus operadores, 407 GENETTE, Gérard. Palimpseste; la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. 408 OLIVEIRA, Maria Angélica de. “Dialogismo: a Ordem do Enunciado”. In: Graphos Revista da PósGraduação em Letras.. v. 9 n. 2 . João Pessoa: Ed. UFPB, 2007. p. 76. 414 entre outros motivos, inclusive por uma tradição que toma esse conceito quase em seu sentido do senso comum, a construção do conceito de intertextualidade é fundamentalmente centrada nas figuras “solares” de seus autores. Kristeva, ao excluir o autor de sua teorização, não apenas ressalta a importância do estudo relacional entre os textos (algo fundamental), mas, junto a isso, parece (utilizando-me de uma linguagem psicanalítica) reprimir a figura do autor, que retorna através de seu próprio criador. Se o autor é desnecessário à análise intertextual, não o parece ser, entretanto, à análise da própria formação do conceito de intertextualidade. Ou seja, o que queremos ressaltar aqui é que o discurso (ou o texto) da intertextualidade pode e deve cruzar-se e dialogar com o discurso (ou o texto) da influência. Conforme aponta Susan Stanford Friedman: “os discursos de influência e intertextualidade não têm sido e não podem ser tomados de forma pura ou imaculados um pelo outro”409. A concepção de um diálogo entre textos (ainda que não utilizando o conceito de intertextualidade), a partir da presença do autor, está presente nas reflexões de influência tal como elaboradas por Harold Bloom, conforme veremos no subcapítulo que segue. 1.1.6 A angústia da influência e suas influências A teoria de Harold Bloom sobre a influência é não apenas a principal contribuição sobre o tema a partir dos anos 1970, como também a única estruturada de forma a abranger uma teorização completa do problema e, portanto, a mais comentada – sobretudo pelas polêmicas que causou desde o lançamento de sua obra A Angústia da Influência, em 1973. Antes de estudá-la, entretanto, veremos a teoria de Walter Jackson Bate, que antecipa (em três anos) algumas das questões apresentadas por Bloom. Em comum a ambos os teóricos, está uma visão que se opõe ao olhar formalista do New Criticism estadunidense, sobretudo pela importância que aqueles dois emprestam ao 409 FRIEDMAN, Susan Stanford. “Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of the Author”. In: CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 154. Devemos muito de nosso posicionamento crítico em relação a estas questões a esse texto de Friedman, que, conforme veremos no subcapítulo 1.1.6, procura aliar o conceito de intertextualidade à presença do autor, a partir de uma crítica feminista ao desaparecimento deste no pós-estruturalismo francês. 415 autor – no caso de Bate, na relevância dada à biografia410 e à história, consideradas fatores extrínsecos irrelevantes para essa corrente crítica dos EUA; em H. Bloom, pela relevância dada à identificação de um cânone formado por grandes poetas (“poetas fortes”). A obra de W. J. Bate será estudada aqui como uma das influências de Bloom e, a partir de suas contribuições próprias e de Bloom, não como uma simples derivação de seu precursor, mas com a relevância de seus próprios insigths sobre a questão da influência. Em 1970, W. J. Bate publica sua obra The Burden of the Past and the English Poet411. O seu livro, como observam Clayon & Rothstein, “é menos sobre o problema da influência do que sobre o período quando a influência pela primeira vez tornou-se um problema”412. Essa “primeira vez” Bate identifica (na poesia inglesa) como sendo os últimos três séculos. O autor esclarece que o problema com as dívidas em relação ao passado e com sua questão central, “o que sobrou para ser feito?” 413, é um problema constante na humanidade (o autor cita as preocupações de um escriba egípcio concernentes ao peso do passado). Entretanto, é a partir do século XVIII que a autoconsciência do legado do passado passa a ser o problema central dos poetas, e a preocupação de que não há nada original a ser escrito torna-se sua principal angústia (o autor utiliza o mesmo termo, anxiety, que será utilizado por Bloom). Bate estabelece uma relevante diferença entre o peso do passado e a sensação de angústia sentida pelo poeta e pelo crítico. Essa diferença é a reposta, por um lado, à longa tradição de estudos de influência por parte da crítica e, por outro, ao silêncio incômodo em relação a esse problema por parte do artista. Para o teórico, o número de teorias que precisa superar ou de que necessita se diferenciar, no sentido de se estabelecer como um teórico importante, é substancialmente pequeno e temporalmente limitado (segundo Bate, a não mais do que os últimos cinquenta anos em relação ao presente). Além disso, as teorias são, por definição, provisórias e passíveis de ser 410 Além de teórico da literatura, Bate foi um dos maiores biógrafos desse campo, escrevendo as biografias de Keats e Samuel Johnson, ambas ganhadoras do prêmio Pulitzer. 411 BATE, Walter Jackson. The Burden of the Past and the English Poet. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1970. 412 CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric. Figures in the Corpus. In: _________________. (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 8. 413 BATE, Walter Jackson. The Burden of the Past and the English Poet. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1970. p. 3. 416 superadas. Para o poeta e o artista em geral, “a Ilíada ou o Rei Lear não são desalojados com a mesma facilidade”414. Esses textos permanecem com a mesma relevância ao longo do tempo, e o artista precisa lidar com eles, o que significa que tem de lidar com toda a tradição artística. Portanto, ainda que “o escritor ou o artista possa ser bastante autorrevelador de outras maneiras”415, essa diferença explica não apenas o peso de sua angústia, como as razões de ele escondê-la. A partir disso, desses silêncios (e da consciência de suas razões), Bate defende uma análise que não seja uma espécie de lista dos problemas (das influências), mas que procure olhar nas entrelinhas e pesar o contexto das negações e das manifestações autodefensivas. Seguindo, portanto, essa metodologia de análise, o autor identificará nessas entrelinhas algumas características que revelam esse problema. Entre essas características, Bate destaca a utilização do humor, um aparente desprezo em relação ao passado (a Questão dos Antigos e dos Modernos é lembrada pelo autor) e à busca de uma fonte de um passado ainda mais distante (“remota o suficiente para ser melhor manejável na busca de sua própria identidade”416) e a concepção de que a única alternativa frente à impossibilidade de fazer frente ao passado é a de tornar-se uma paródia de si mesmo e de seu passado. Nesse último aspecto, Bate cita o Dr. Fausto, de Mann, e a antiarte, entendida como a arte que se volta contra si mesma. Qual seria então o único conforto do artista angustiado pelo passado? Lembrar que essa angústia também ocorreu com os artistas do passado. O projeto de Bate segue uma dupla intenção: a primeira é apresentar o problema, tornar explícita essa questão; a segunda, buscar estabelecer uma ideia mais clara dessa questão ao retroceder ao início desse “drama”. A partir disso, o autor passa a analisar seu objeto de estudo central, o neo-classicismo como sendo a herança dos poetas ingleses do século XIX, buscando ver a influência dessas ideias e as recíprocas influências entre essas ideias e a arte do período. Estudando por essa via negativa, nas entrelinhas, a partir daquilo que é escondido ou negado, Bate chega à conclusão de que: “aquilo de que nós tentamos desesperadamente nos diferenciar pode dizer muito sobre não somente o que estamos fazendo mas por que o estamos, e 414 Op. Cit., p. 8. 415 Id. Ibid. 416 Id., p. 22. 417 que um movimento pode frequentemente ser melhor entendido pelo que ele concretamente se opõe do que por seus slogans teóricos”417. Walter Jackson Bate, a partir de sua análise, observa um paradoxo que será amplamente explorado por Harold Bloom: o fato de que a pressão dos artistas do passado foi sentida de modo mais agudo pelos escritores e artistas “maiores”, justamente pela inteligência que estes tiveram para ver onde as oportunidades se encontravam, o que os levou a ser aqueles que deram o tom do novo estilo, principalmente satírico, que Bate analisa. Nas elaborações teóricas de Harold Bloom (grandemente legadas de Bate), o confronto entre “artistas maiores”418 do presente e do passado é a questão central em seus estudos sobre a “angústia da influência”, razão pela qual passamos agora à análise desse autor. Paul De Man escreveu uma resenha à principal obra de Harold Bloom sobre a influência, A Angústia da Influência419 (“Anxiety of Influence”), de 1973, no ano de seu lançamento420. Esse texto é a primeira análise crítica sobre essa obra e será tomado como um dos guias de nossa leitura e análise. Junto ao texto de De Man, seremos acompanhados da análise feita por Arthur Nestrovski, que, em seu artigo “Influência”421, se dedica basicamente ao estudo desse conceito na obra de Bloom (Nestrovski é o tradutor da primeira edição da obra supracitada de Bloom na língua portuguesa); do texto de Louis Ranza intitulado “Influence”422, que também lida basicamente com a influência “bloominiana”, fazendo uma crítica à ideia de autoridade presente nessa concepção (entre 417 Id., p. 21. Salientamos aqui nossa concordância com o pensamento do autor, através de nossa análise dos silêncios de Iberê e da crítica sobre a influência, conforme visto no capítulo primeiro. 418 Na verdade, artistas fortes – strong é o termo utilizado pelo autor. 419 BLOOM, Harold. The Anxiety of Influence - A Theory of Poetry. New York: Oxford University Press, 1973. Utilizaremos a tradução brasileira: _______________. A Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição). Serão utilizados os conceitos principais em inglês e suas possíveis outras traduções quando esses e estas apresentarem uma precisão maior. 420 DE MAN, Paul. “The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry by Harold Bloom”. In: Comparative Literature, Vol. 26, No. 3 (Verão de 1974). Durham: Duke Univ. Presss, 1974. pp. 269-275. 421 NESTROVSKI, Arthur. “Influência”. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, pp. 213-230. 422 RANZA, Louis A. “Influence”. In: LENTRICHIA, Frank & MCLAUGHLIN, Thomas (orgs). Critical Terms for Literary Study. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1995 (segunda edição), pp. 186202. 418 outras questões); e do ensaio de Clayton e Rothstein423, que procura aproximar o conceito de influência de Bloom com o conceito de intertextualidade. Antes dessas leituras específicas, veremos de modo mais sistemático os principais aspectos do pensamento de Bloom, apoiados, além de na leitura direta de A Angústia da Influência, na apresentação dessa obra feita por Sandra Nitrini424. O pensamento de Harold Bloom sobre a influência constrói-se a partir de uma apaixonada defesa do chamado “cânone ocidental”. Essa visão do cânone retorna à figura do autor, da visão humanista da literatura, em contraposição à ideia francesa da morte do autor. Aliás, essa necessidade de contraposição ao pensamento “hexagonal” é bastante clara em sua segunda introdução a seu A Angústia da Influência, em 1997, ao escrever sobre Shakespeare: “os franceses jamais valorizaram a originalidade, e até a chegada de um tardio romantismo à França, jamais gostaram muito das peças de Shakespeare”425. A obra de Bloom constrói-se como uma análise fundamentalmente estética, que dá valor à autonomia da obra, propondo-se a ser uma “crítica prática”. Essa concepção de crítica é apresentada no “intercapítulo” de sua obra, o qual nos parece uma chave para entendermos a obra de Bloom. Nesse capítulo (ou melhor, “intercapítulo”, conforme o autor o chama para distingui-lo dos outros capítulos, onde trata dos seis movimentos revisionários pelos quais o poeta passa), Bloom escreve seu manifesto crítico, o “Manifesto pela Crítica Antitética” (conforme o subtítulo do intercapítulo). A crítica antitética seria aquela construída a partir “de uma série de desvios após atos únicos de malentendido [misunderstanding] criativo”426. Essa série de desvios por mal-entendidos inicia com a leitura de um grande poeta do mesmo modo que seus descendentes (os outros grandes poetas posteriores) o fizeram. O segundo é ler esses descendentes como se fosse seu discípulo, “e assim obrigarmo-nos a aprender onde temos de revisá-lo se queremos ser encontrados por nossa própria obra”.427 O terceiro momento é o de identificar o desvio praticado pelos poetas posteriores sobre os poetas anteriores, passando-se a aplicar esse desvio como “leitura corretiva” daqueles poetas antigos – o 423 CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric. Figures in the Corpus. In: _________________. (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. pp. 3 – 36. 424 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. pp. 145-156. 425 BLOOM, Harold. “Prefácio” (1997). In: ___________. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), pp. 15-16. 426 Op. Cit., p. 141. 427 Id. Ibid. 419 que explica o engajamento do crítico como discípulo dos poetas jovens. Essa teoria da leitura que se evidencia no intercapítulo de A Angústia da Influência tem consequências importantes para o entendimento de sua obra. A primeira delas é que o texto de Bloom passa a ser visto como a leitura de um poeta através de outros poetas: “apenas lemos um poeta em outro poeta, ou mesmo levando a outro poeta” 428. A segunda delas é que a leitura (ou seja, o trabalho crítico empreendido por Bloom) passa ser ela mesma uma leitura poética: “o significado de um poema só pode ser outro poema”.429 Para Bloom, a redução do poema no trabalho crítico é inevitável: seja uma redução a ideias, reduções psicológicas, morais, entre outras tantas. A opção de Harold Bloom é pela redução do poema a outro poema, sendo a crítica essa “arte de conhecer os caminhos ocultos que vão de um poema a outro”430, ou seja: onde o próprio texto crítico é um poema. A partir do entendimento dessas questões subjacentes ao próprio pensamento crítico do autor (ao seu pensamento de como um pensamento crítico deva ser constituído) podemos ver como se desenvolve a questão da influência, para Bloom, dentro dessa relação entre poetas. A influência, para Bloom, é influenza, ou seja: é doença. Essa doença toma a forma de uma angústia. Tal angústia não é uma espécie de resultado do contato com outros autores e tem sua resolução na construção de um novo poema. Na verdade, para Bloom, a angústia é o novo poema, sendo que o que se trata aqui é da relação entre os poemas (bem esclarecido: a relação estabelecida entre os poemas dos “poetas fortes”: a escolha de uma excelência na formação de seu cânone é seu parti pris) e que a angústia se identifica a eles. A angústia da influência, portanto, é ao mesmo tempo a dinâmica, o motor do cânone, e sua definição. Como definição, desse modo, “tem-se a história poética como indistinguível da influência poética”431. Como dinâmica, esta se desenvolve em seis etapas, seis desvios. Os poetas fortes estabelecem uma luta que se evidencia por “movimentos revisionários”, os quais acontecem como “leituras equivocadas” (misreadings432) dos poemas anteriores. Passamos a descrever, ainda que brevemente 428 Op. Cit. p. 142. 429 Id. Ibid. 430 Id., p. 144. 431 Id., p. 55. 432 O termo misreading foi traduzido para o português como desleitura. A utilização do prefixo “des” 420 (apoiados, além do próprio texto, no providencial resumo que delas fez Sandra Nitrini), essas seis etapas de desvios, as quais dão título aos seis capítulos de A Angústia da Influência. A primeira delas, Clinamen (termo derivado de Lucrécio que corresponde ao desvio dos átomos), diz respeito à ideia de desvio propriamente dita, o ato de desviar-se do poema precursor e, com isso, de apropriar-se dele: “os poetas, quando já se tornaram fortes, não lêem a poesia de X, pois os realmente fortes só podem ler a si mesmos”433. Tessera é o termo utilizado primeiramente nos mistérios religiosos antigos, “onde a reunião de dois pedações quebradiços de cerâmicca servia como sinal de reconhecimento entre os iniciados”. Mais tarde, será apropriado por Lacan como uma metáfora do discurso do analisando, a partir de sua leitura do termo em Mallarmé, que “compara o uso da Língua à troca de uma moeda cujo verso e reverso trazem apenas efígies gastas, e que as pessoas passam de mão em mão 'em silêncio’” 434 . Em H. Bloom, significa o segundo momento de desvio, marcado pela “tentativa de qualquer poeta que vem depois de convencer-se (e a nós) de que a Palavra do precursor estaria gasta se não redimida como uma Palavra recém-enchida e ampliada do efebo” 435. Ou seja, a tessera seria esse momento de “complementação antitética” através da tentativa de apagamento da palavra poética de seu antecessor. O terceiro momento chama-se Kenosis (termo utilizado por São Paulo para o processo em que Cristo se humilha para passar à condição humana) e diz respeito a um esvaziamento necessário por parte do poema novo no sentido de libertar-se do poema anterior através de uma descontinuidade. Uma “anulação da força do precursor em nós mesmos”436, mas que também termina por evidenciar, por seu avesso, que “todo poeta é um ser colhido numa relação dialética (transferência, repetição, erro, comunicação) com responde à influência que as teorias de Jacques Derrida sobre a descontrução exerceram no Brasil. Conforme observou a Prof.ª Dra. Patricia Lessa Flores da Cunha (nas observações ao texto apresentado à banca de qualificação desta tese, às quais devemos esta análise), o “prefixo mis, em inglês, implica a noção de equívoco; des implica oposição e reversibilidade”, sendo, portanto, conceitos distintos. Optamos, assim (segundo estas indicações feitas na banca de qualificação), pela utilização do termo “leitura equivocada” com a intenção de preservar maior proximidade ao termo misreading. 433 BLOOM, Harold. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), p. 69. 434 Op. Cit. p. 114. 435 Id. Ibid. 436 Id., p. 135. 421 outro poeta ou poetas”437. O quarto momento é denominado Demonização. O termo, que tem sua origem na “tradição neo-platônica em geral, designa um ente intermediário entre o divino e o humano, incorporando-se ao adepto para ajudá-lo”438. O processo de demonização do poeta forte significa que ele se torna o próprio demônio (e não é passivamente possuído por ele), na mesma medida em que humaniza o poeta antecedente. A batalha mais uma vez é descrita por Bloom como sendo não “a dialética entre arte e sociedade, mas a dialética entre arte e arte”439. Nessa dialética (nessa luta), o poeta demonizado passa a fazer uma leitura do poeta anterior (poeta-pai) de uma maneira genérica, desprezando as características do poeta-pai. O quinto momento é Askesis, a sublimação poética. O termo faz referência a ascese e, para Bloom, designa um processo de purgação e isolamento. Nesse processo, o poeta reduz radicalmente tudo o que é externo e, depois de demonizar-se, é capaz de “voltar sua energia contra si mesmo”440, a partir dessa redução criativa. Levada ao extremo, a ascese/Askesis significa uma luta final com o poeta predecessor, ao se tornar morto com os mortos e ao se transformar em uma “derrota da própria poesia”441 . Finalmente, “Apophrades, ou o retorno dos mortos”, designa o último movimento desviante. O termo originalmente indicava na Antiguidade os dias de má sorte, nos quais os mortos de Atenas voltavam às casas onde haviam vivido. De modo semelhante, apophrades indica o momento em que os poetas antecessores retornam através dos poemas dos poetas sucessores, já na maturidade destes últimos. Esse “retorno dos mortos”, entretanto, não acontece como uma volta intacta dos poetas mortos no caso dos poetas mais fortes, mas por “um grande e final movimento revisionário, que purifica até mesmo este último influxo”442. Ocorre então a “mais astuciosa relação revisionária”443: subvertendo a tirania do tempo, passa-se a acreditar, por alguns momentos, que os poetas predecessores estão sendo imitados por seus ancestrais. Esse movimento, 437 Id., p. 139. 438 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997, p. 151. 439 BLOOM, Harold. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), p. 69. 440 Op. Cit, p. 164. 441 Idem., p. 186. 442 Idem., p. 191. 443 Id. Ibid. 422 conforme Bloom, é distinto daquele de Borges, segundo o qual os artistas criam seus precursores444, já que ainda mais drástico. No caso de Apophrades: “determinados trechos da obra dele parecem ser não presságios de nosso advento, mas antes devedores de nossa realização, e até mesmo (necessariamente) diminuídos por nosso maior esplendor”445. Se os mortos retornassem em seu esplendor próprio, a vitória seria deles. Assim, nesse movimento de inversão, os poetas predecessores passam a ser os escritores dos poemas de seus antecessores. Nesse sentido, podemos dizer que a concepção de Bloom é menos próxima da de Borges e mais próxima (se pensadas de forma não restrita) daquela de Wordsworth, retomada por Machado de Assis, segundo a qual “o menino é pai do homem”446. As principais contribuições de Paul de Man para nossa leitura de Bloom são sua sugestão de que o pensamento de Bloom é construído a partir de uma linguagem poética, e não por meio de métodos acadêmicos tradicionais (algo enunciado pelas próprias palavras de Bloom, mas que se evidencia na crítica de Paul de Man), e de que sua leitura do encontro entre o poeta novo e seu precursor como sendo uma versão deslocada do encontro intratextual. A primeira contribuição citada explica por que o autor não se engaja, por exemplo, em um debate teórico específico do conceito de influência junto à tradição acadêmica de estudos desse problema. Segundo essa leitura, é possível entender o texto de Bloom como uma reflexão que diz respeito mais à angústia e às formas encontradas pelo poeta de lidar com ela do que propriamente à influência e seus modos de aparição em um autor e/ou em sua obra (ainda que a mecânica de seu funcionamento seja explicada através dos seis momentos descritos por Bloom, não se trata aqui da identificação de fontes e influência). Conforme indica Nestrovski: “O reconhecimento das alusões de um poema a outro não é, em si, de interesse para Bloom. Pode-se dizer que, de certa forma, o que lhe interessa 444 “El hecho es que cada escritor crea sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro.” BORGES, Jorge Luis. “Kafka y sus precursores”. In: ______________. Otras Inquisiciones. Madrid: Alianza Editorial, 1997. (1951/1952). 445 BLOOM, Harold. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), p. 192. 446 “The Child is father of the Man”, verso do poema intitulado “My Hearth Leaps up When I Behold" e tomado de empréstimo por Machado de Assis como título do capítulo onze de Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual cita que “um poeta dizia que o menino é pai do homem”. 423 é justamente o que um poema consegue deixar de fora (...)”447 A segunda contribuição, sua leitura do encontro entre o poeta novo e seu precursor como sendo uma versão deslocada do encontro entre leitor e texto, apresenta a hipótese segundo a qual, excluídos os psicologismos de Bloom, sua teoria sugere uma concepção intratextual em que textos geram textos e que esses encontros textuais prescindem de eventos ou informações biográficos. Essa visão é compartilhada por Nestrovski quando observa que “dizer que a literatura 'é influência' é dizer que ela é intertextual”448. Clayton & Rothstein dedicam parte de seu ensaio “Figures in the Corpus”449 justamente à relação entre influência e intertextualidade na obra de Bloom. Segundo esses autores, Bloom parece muito mais um teórico da intertextualidade do que da influência quando escreve, por exemplo: “o significado de um poema só pode ser outro poema”450, “a crítica é a arte de conhecer os caminhos ocultos que vão de um poema a outro”451 ou, ainda, em seu outro livro, Um Mapa da Desleitura, quando escreve que “a influência, como a concebo, significa que não existem textos, apenas relações entre textos”452. Entretanto, sua centralidade no autor o distancia das teorias da intertextualidade. Conforme Bloom escreve em Um Mapa da Desleitura: “a influência permanece centrada no sujeito, um relacionamento de pessoa a pessoa, irredutível à problemática da linguagem”453. Nessa relação conflitiva com as teorias da intertextualidade, ora se aproximando delas, ora se afastando, três aspectos são salientados por Clayton & Rothstein. O primeiro deles é sua insistência no sujeito: “Bloom urge pela prioridade da vontade no ato poético contra seus pais, os Novos Críticos, que negam a relevância da intenção do poeta nos poemas acabados e seus irmãos rivais, os pós-estruturalistas, os quais negam a própria existência da intenção como alguma coisa mais do que uma 447 NESTROVSKI, Arthur. “Influência”. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 224. 448 Op. Cit., p. 223. 449 CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric. Figures in the Corpus. In: _________________. (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. pp. 3 – 36. 450 BLOOM, Harold. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), p. 142 451 BLOOM, Harold. Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição), p. 144 452 BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura. (1975). Rio de Janeiro: Imago, 2003 (segunda edição). p. 23. 453 Idem, p. 91. 424 torção/dobra na cadeia de significados”454. Entretanto, como já vimos, a ênfase não é biográfica, o que nos conduz ao segundo aspecto: a teoria de Bloom é resolutamente não-referencial. Ou seja: o significado de um poema é outro poema, e não seu assunto. O drama central de um poema não reside nos eventos que ele possa relatar, mas no drama central das influências poéticas: “poesia não é sobre nada que não seja o ato de se escrever poesia”455. Por último, o terceiro aspecto é que Bloom emprega o conceito de influência para construir seu cânone, severamente limitado, onde poetas fortes competem apenas com poetas fortes: “ecos de poetas menores, alusões a outros competidores contemporâneos ou empréstimos de fontes não literárias não podem figurar no cômputo do poeta qua poeta”456. Essas características, como podemos ver, parecem estabelecer no texto de Bloom um jogo de aproximações e afastamentos com o conceito de intertextualidade, um jogo que, segundo a própria concepção teórica de Bloom, parece fazer parte de seu misreading desse conceito. Quanto à última questão apontada por Clayton & Rothstein, o cânone limitado segundo o qual Bloom funda sua teoria, é ela a mais frequente crítica encontrada em relação às suas teorias. Como ressalta Sandra Nitrini, “tal objeto revela-se por demais restrito para a construção de uma teoria abrangente”457, característica que talvez explique o fato de o autor não ter aplicado seu modelo de influência como uma metodologia em uma análise sistemática de um corpus poético. Em uma crítica mais severa, Claudio Guillén escreve que sua teoria “pouco ou nada tem a contribuir para o estudo comparativo de poesia”458. A crítica ao cânone de Bloom é ampliada em Louis A. Renza a uma crítica da autoridade. Segunda Renza, “a teoria de Bloom não apenas parece deslocar a fonte da produção e da recepção da angústia literária de circunstâncias ideológico-culturais específicas para o teatro de forças psíquicas atemporais como também parece relutante 454 Id. p. 9 455 Id. Ibid. 456 Id., p. 10. 457 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997, p. 156 458 GUILLÉN, Cláudio. Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada. Barcelona: Editorial Crítica, 1985. p. 376. Apud: NITRINI, p. 156. 425 em purgar suas próprias presunções ideológicas”459. Mais do que isso, sua “cegueira patriarcal” e “sexista” não apenas o impede de situar uma tradição de escritoras em sua história literária do Ocidente, como também expõe sua incapacidade em aceitar o senso de autoridade tal como descrito por Hannah Arendt. Segundo Arendt (apud Renza), a ideologia da autoridade expõe o desejo de preservar o momento ancestral de fundação de uma cultura particular através da contínua reprodução de exemplos de grandeza para cada geração sucessiva. Trabalhando a partir de uma perspectiva do autor, mas descentralizando sua figura patriarcal a partir de uma crítica do seu ponto de vista sexista, ao mesmo tempo fazendo uso do instrumental intertextual, novos estudos buscarão pensar os problemas de influência, informados também pelas teorias da recepção, conforme veremos no subcapítulo que segue. 1.1.7 A renovação dos estudos de influência: a integração dos conceitos e a contribuição brasileira para esses estudos Seguindo a trajetória do conceito de influência, analisaremos agora as principais contribuições surgidas nos últimos anos (principalmente a partir dos últimos vinte e cinco anos) e a contribuição específica do pensamento nacional para esse conceito. No intuito de dar um panorama genérico a essas contribuições, mas ao mesmo tempo concentrarmo-nos naquelas que consideramos as mais expressivas, optamos por analisar o pensamento de três autores (de fato, quatro, já que, em um dos casos, se trata de um trabalho a quatro mãos) a partir de seus aportes para uma renovação (ou retomada) da conceituação de influência e pela afirmação de sua validade na atualidade. Analisaremos primeiramente a influência dos estudos feministas sobre influência, os quais fazem emergir a figura do autor e integram o conceito de intertextualidade através da autora (já citada nesta tese) Susan Stanford Friedman. Prosseguiremos nossa análise com os 459 RENZA, Louis A. “Influence”. In: LENTRICCHIA, Frank and MCLAUGHLIN, Thomas (Eds). Critical Terms for Literary Study. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. p. 195. 426 estudos comparatistas de Álvaro Manuel Machado em conjunto com Daniel-Henri Pageaux, que, já inseridos no nosso século, mantêm a importância do conceito de influência, ao mesmo tempo estabelecendo um diálogo com conceitos como os de recepção e intertextualidade. Finalmente, para mostrar a importância de se estudar esse conceito de um ponto de vista periférico (em relação aos grandes centros de cultura e pensamento ocidentais) e também a partir das questões brasileiras (mas em diálogo com os estudos europeus e estadunidenses), estudaremos os aportes ao conceito de influência na obra de Antônio Cândido. Em nenhum dos três casos, os estudos de cada um desses autores abrange todas as questões a partir das quais eles se inserem, e muito menos nosso resumo crítico é capaz de mapear em sua inteireza o complexo pensamento de cada um desses autores. Entretanto, acreditamos que cada um deles, a partir de nossa leitura, é capaz de exemplificar algumas das principais questões em que os estudiosos da influência vêm se detendo, tanto na perspectiva temporal (no caso de Friedman e de Machado & Pageaux) quanto em sua perspectiva geográfica (no caso de Antônio Cândido). Sobretudo, o que indicamos através da deliberação dessas escolhas específicas – como de resto vem sendo feito ao longo de toda esta tese – são os caminhos teóricos a que nossa pesquisa é devedora. Susan Stanford Friedman, no artigo já referido aqui, “Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of Author”460, faz a seguinte pergunta: “é a 'morte' do autor como escritor a precondição para o 'nascimento' do crítico como leitor?”461. A partir dessa pergunta, a autora investiga de que modo a intertextualidade influiu sobre (ou transformou intertextualmente) o pensamento crítico estadunidense nesse contexto em que o autor insiste em retornar. Ao mesmo tempo, sugere, a partir de uma análise da obra de Joyce, que a morte do autor dentro do debate crítico evidencia o desejo de reprimir a mulher como sujeito da fala. A partir dessas premissas, a autora apresenta uma história do surgimento do conceito de intertextualidade (a qual não precisamos repetir), insistindo na diferença entre esse conceito e o de influência. A intertextualidade, segundo Friedman, 460 FRIEDMAN, Susan Stanford. “Weavings: Intertextuality and the (Re)Birth of the Author”. In: CLAYTON, Jay & ROTHSTEIN, Eric (orgs). Influence and Intertextuality in Literary History. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1991. p. 154. 461 Idem, p. 146. 427 adaptando vários discursos pós-estruturalistas, introduz uma nova metodologia da leitura de textos em relação a outros textos. Entretanto, subjaz nessa diferença uma necessidade de se diferenciar qual é supervalorizado e que resiste na pureza (nãocontaminação) desse conceito ao mesmo tempo em que nega seus precursores. Essa diferença é construída a partir de um mecanismo binário que coloca em um dos polos os conceitos de origem, filiação, autor, fontes e influências e, no outro, os conceitos de ausência de origem ou de filiação, anonímia, scriptor e intertextualidade. Um juízo de valor é feito, de acordo com o qual, o polo valorizado é o último que recebe também a qualidade de “novo” ao mesmo tempo em que o primeiro polo passa a ser visto como “antigo” ou “tradicional”. Negando essas polarizações simples, Susan Stanford Friedman passa a indicar o quanto o conceito de intertextualidade e as práticas intertextuais têm relação ou inspiramse no conceito e nas práticas dos estudos de influência. Cita, por exemplo, a ideia de Barthes de que os textos se chocam entre si, ideia essa que nos leva a pensar que também as teorias de intertextualidade se chocam e estabelecem trocas entre elas. Do mesmo modo, olhando-se a questão pelo ângulo da influência, Stanford mostra o quanto o discurso da intertextualidade já estava implícito nos estudos de influência como uma metodologia destes. Os estudos de influência, para a autora, não são tão hierárquicos ou unidirecionais, e seus autores têm frequentemente focado a ação do receptor da influência tanto quanto a ação de sua “fonte” originária. Nesse sentido, os críticos que trabalham a partir do campo da influência têm procurado entender como o autor influenciado “adaptou, assimilou, reviu, transformou e alterou seu precursor”. A partir de sua visão de um campo não dominado pela pureza conceitual, mas pelas contaminações, Friedman procura entender a inserção do conceito de intertextualidade neste lado do Atlântico a partir de um conjunto de discursos divergentes, incluindo aquele de seu precursor, a influência. Dentre esses discursos, destaca-se a tendência da crítica estadunidense de recusar a chamada “morte do autor” como precondição da leitura intertextual. Se, como já vimos, a “morte do autor” corresponde na Europa a uma situação histórica de pessimismo ligado ao pós-guerra, nos EUA, a euforia da vitória e da extensão do poder global estadunidense, aliada a uma tradição individualista historicamente marcada nessa sociedade (incluídas nela um pensamento 428 filosófico), não permite que a “morte do autor” se insira com relevância em seu pensamento crítico. Ao mesmo tempo, as questões referentes à luta política francesa que auxiliaram a constituição da teoria da “morte do autor” são distintas nos EUA, onde o final dos anos 1960 são marcados por um tipo de contestação fundamentalmente ligado a uma redefinição do 'Eu' (e não à sua dissolução), através de movimentos como o das lutas feministas, de gays e lésbicas e de minorias raciais. É a partir dessas lutas e, sobretudo, da luta feminista, que a presença do “autor” terá um papel central. É através da identificação da presença ou ausência da autora, da busca da construção de um cânone feminista (em contraposição ao cânone de Harold Bloom), que retornam as vozes biográficas reprimidas. É através disso que Susan Stanford Friedman advoga por uma intertextualidade que não prescinda do autor. Curiosamente, se Harold Bloom aponta para a introdução dos problemas intertextuais no campo dos estudos humanistas (ou seja, fundamentados no autor), obras como a de Susan Stanford indicam a emergência (o retorno) do autor a partir do campo dos estudos intertextuais. Ambos mostram (ainda que, no caso de H. Bloom, veladamente) que não apenas algum nível de contaminação mútua entre estudos de influência e de intertextualidade é inevitável, como também é bem-vindo ao enriquecer a análise teórica e incluir novos sujeitos em seus estudos462. A obra de Álvaro Manuel Machado e de Daniel-Henri Pageaux que iremos analisar e que mostra suas contribuições para o conceito de influência é o livro Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura463. O livro foi revisto e ampliado em 2001 (originalmente publicado sob esse título em 1988 e sob o título de Literatura Portuguesa, Literatura Comparada e Teoria da Literatura em 1981), mostrando, portanto, que o projeto luso-francês mantém suas questões e as desenvolve já no nosso século. A obra de Machado & Pageaux, um estudo introdutório à Literatura Comparada, é marcada por uma defesa do valor dos estudos fundamentados nos conceitos de fontes e influências. Junto a essa defesa, dialoga com outros conceitos, os quais, se são competidores nos debates 462 Não analisaremos o estudo específico de Joyce feito pela autora, já que se trata de tema específico da literatura, fugindo tanto ao tema desta tese quanto às nossas competências. 463 MACHADO, Álvaro Manuel & PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 2001 (2ª edição, revista e aumentada). 429 intelectuais contemporâneos, parecem coexistir em harmonia nas análises dos autores, como o conceito de intertextualidade e as reflexões da Escola de Constança sobre a estética da recepção. Identificando nos contatos a “realidade básica dos estudos comparatistas”464, estes acontecem quando há influência, essa “palavra tantas vezes injustamente malvista hoje em dia...”465. Por esse descrédito, segundo os autores, conceitos como o de recepção substituíram “por comodidade 'influência' ou 'fortuna’”466. No entanto, o conceito de recepção não é visto com o mesmo descrédito na obra de Machado & Pageaux. Por sua inserção um tanto brusca nesta tese, cabe aqui uma breve exposição do conceito de recepção, tendo como base a explanação de Machado & Pageaux (já que, afinal, é deles ou por meio deles que estamos tratando desse conceito). A estética da recepção surge fundamentada nas reflexões de Hans George Gadamer (por sua vez, oriundas do pensamento de Heidegger) e desenvolve-se a partir dos trabalhos de Jauss e de W. Iser. Basicamente, o objetivo dessa teoria é “esclarecer a relação complexa entre texto/destinatário”467. Jauss irá salientar o papel do destinatário e suas reações ao texto. Sendo assim, a trajetória dos estudos literários que havia passado pela ênfase no estudo do autor (estudos de fontes e influências) para depois concentrar-se no texto (estudos de intertextualidade) chega agora ao leitor (receptor). A partir disso, o texto literário passa a ser visto como uma resposta a uma expectativa do leitor (expectativa literária, ligada à sua língua, cultura literária, etc.), que é denominada de “horizonte de expectativa”. Ainda que a noção de recepção esteja presente nos estudos comparatistas desde seu início (a Escola Francesa, lembremos, já procurava acompanhar os processos de recepção, sucesso e influência de uma obra), os estudos de recepção são importantes para Machado & Pageaux principalmente como um instrumental na compreensão da recepção de obras estrangeiras. Os autores destacam como principal qualidade da estética da recepção, se não uma originalidade desses estudos, ao menos a importância da ênfase que tais estudos passaram a dar ao receptor e, a partir desse instrumental de estudo, descrevem vários níveis de análise da recepção de uma obra, nos quais não nos 464 Op. Cit, p. 28 465 Idem, p. 29. 466 Idem, p. 68. 467 Id. Ibid. 430 aprofundaremos aqui. Se o conceito de influência sofreu um descrédito que o fez ser substituído por outras ferramentas conceituais, segundo nossos autores, isso se deve à natureza desse conceito, que se apresenta sempre como hipótese de trabalho e de leitura: “é o seu caráter hipotético que repudia ao investigador”468. A influência, para Machado & Pageaux, guarda, assim, em sua característica de ser uma hipótese, uma qualidade importante, já que direciona o foco da análise para a obra. Uma influência, desse modo, não deve ser entendida como uma explicação: “A explicação que o investigador deve procurar, sem a qual se arrisca a cair na erudição gratuita ou no impressionismo, encontra-se no próprio texto e numa situação cultural e histórica susceptível de caucionar, de autenticar, uma ligação possível entre um texto 'influente' e um texto 'influenciado', entre uma 'fonte' e a conseqüente 'influência”469. Dessa maneira, entendendo a influência como uma hipótese de trabalho e evitando uma relação mecânica de causa e efeito, ao mesmo tempo que precavidos do “demônio da analogia”, os autores encontram na influência um instrumental importante para os estudos comparativistas. A influência define-se, portanto, como a expressão dessa troca de ideias, dessa comunicação, desse encontro a partir do qual o processus cultural é constituído. Afora essas definições (talvez seja melhor chamá-las de burilações e aguçamentos, antes de definições) que Machado e Pageaux apresentam, os autores recorrem a outro teórico para definir de modo mais sistemático a influência. O autor que terá uma longa citação nessa obra, com a “definição de influência”, é Jacinto do Prado Coelho. O que salientamos da citação feita pelos autores é o aspecto de originalidade da influência a que Prado Coelho faz referência. Segundo Jacinto Prado Coelho (Apud Machado e Pageaux): “O estudo das influências literárias visa dois objetivos: promover a história e a análise dos fenômenos de exressão e pôr em destaque a originalidade que se revela na maneira como a influência é recebida (…). A distância entre os 'significados conceptuais' e os 'significados referenciais' (para utilizar a terminologia de Lefèbvre) e a mudança de direção devida ao sistema da 468 Idem, pp. 75-76. 469 Idem, p. 76. 431 língua podem ser traços de originalidade no autor influenciado”470. As relações intertextuais também não são ignoradas pelos autores, já que eles entendem a revitalização que o conceito de intertextualidade pode trazer para os estudos das “fontes”, quer dizer, “das referências textuais inscritas mais ou menos explicitamente num texto e que contribuíram para a sua produção”471. Desse modo, esses autores integram as contribuições contemporâneas dentro dos estudos comparatistas (ou mesmo em estudos paralelos, como os da estética da recepção) e ao mesmo tempo conservam a influência como um conceito operativo importante, além de renovar esse conceito através de correções quanto a seu alcance e graus de certeza. Terminamos nossa revisão crítica do conceito de influência com o pensamento de Antônio Cândido. As formulações do teórico, crítico e ensaísta brasileiro respondem questões fundamentais a esta tese que até aqui estavam ausentes nas preocupações dos teóricos que vimos acompanhando. Essas preocupações dizem respeito ao problema da influência em países periféricos, mais especificamente o nosso (ainda que sua análise também alcance a América Latina). Conforme salienta Nestrovski, “no que concerne a uma tradição eminentemente importadora como a do Brasil, a questão da influência é particularmente crucial”472. Nesse sentido, o problema da influência em Antônio Cândido aproxima-se mais intensamente dos problemas da influência não apenas para o Brasil, mas também para a obra de Iberê Camargo, ao se estudar essa relação complexa entre lá e aqui, situando-se no mesmo lugar de Iberê Camargo, este de aqui. Nossa aproximação ao conceito de influência no pensamento de Antônio Cândido será feita a partir da análise de sua obra maior, Formação da Literatura Brasileira473 470 COELHO, Jacinto Prado. “Influence française dans quelques textes de poètes pré-symbolistes et symbolistes portugais”. In Actes du VIIème Congrès de lAssociation Internationale de Littérature Comparée. Stuttgart, 1979. Apud: MACHADO, Álvaro Manuel & PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 2001 (2ª edição, revista e aumentada), p. 75. 471 MACHADO, Álvaro Manuel & PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Editorial Presença, 2001 (2ª edição, revista e aumentada), p. 68. 472 NESTROVSKI, Arthur. “Influência”. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 226. 473 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira (1959). Belo Horizonte: Itatiaia, 1981 (6ª ed.). 2 432 (1959), e de seu artigo “Literatura e Subdesenvolvimento”474 (1969), ladeando-nos também, e precavidamente, dos estudos que Sandra Nitrini475 e Tânia Franco Carvalhal476 realizaram sobre o autor477. Se Formação da Literatura Brasileira apresenta suas ressalvas quanto ao conceito de influência, seu artigo indica a validade desse conceito a partir de sua readequação. A escolha de Antônio Cândido entre os teóricos da literatura comparada no Brasil deve-se, além de sua inconteste relevância no campo, ao fato de esse pensador ter dado relevo ao conceito de influência e principalmente ter apresentado uma teoria com aportes fundamentais para o problema da influência no caso específico do Brasil. Formação da Literatura Brasileira foi publicado em 1959 e analisa basicamente os primeiros períodos da literatura brasileira, mostrando o quanto essa literatura está vinculada a modelos externos (europeus) e de que forma essa literatura foi capaz, a partir dessas mesmas vinculações, de construir suas especificidades. Sobre o conceito de influência, Antônio Cândido apresenta suas ressalvas na obra que estamos analisando: “é preciso reconhecer que ele é talvez o instrumento o mais delicado, o mais falível de toda a crítica”478. A delicadeza desse instrumento deve-se primeiramente a dois problemas de distinção. O primeiro deles é o da distinção de outros termos semelhantes, como coincidência ou plágio, e o segundo, pertencente ao processo de criação, refere-se à impossibilidade de distinguirmos o que é voluntário e o que é inconsciente. Afora essas distinções, a influência também apresenta problemas quanto à sua identificação, com um gradiente que varia desde influências que não se manifestam visivelmente até aquelas nas quais as fontes são ignoradas. Por último, temos ainda problemas referentes aos modos de integração à obra, onde a influência se apresenta em alguns casos como transposição mal assimilada e em outros, ao contrário, se integra “na estrutura, que adquire um sentido orgânico e perde seu caráter de empréstimo”479. Afora vols. 474 CANDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento" (1969). In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. pp. 140-162. 475 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997. 476 CARVALHAL, Tânia Franco. “Antônio Cândido e a Literatura Comparada no Brasil”. In: Anais do 1º Congresso Abralic. Porto Alegre: Abralic, 1988, vol I, pp. 13-16. 477 À primeira, devemos as indicações no que se refere à influência; à última, sobre um panorama crítico desta obra. 478 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira (1959). Belo Horizonte: Itatiaia, 1981 (6ª ed.). 2 vols. Vol. I, p. 37. 479 Op. Cit., p. 38. 433 os problemas apontados por Antônio Cândido, é interessante notarmos que o autor caracteriza a influência como “um instrumento”, o que sugere a possibilidade de sua melhor afinação. É em “"Literatura e subdesenvolvimento", publicado em 1969, que Antônio Cândido afinará o instrumento da influência, tornando-a uma ferramenta útil para o estudo dos problemas da literatura brasileira e latino-americana. A influência passa a ser vista como um elemento inevitável e constituinte da própria condição de país colonizado e subdesenvolvido. Aliás, não apenas os subdesenvolvidos a sofrem, já que também a literatura estadunidense constitui, junto com a latino-americana, “galhos das literaturas metropolitanas”480. Estudando a “condição de difusão das obras”481 nos casos brasileiros e (de forma mais estendida) latino-americanos, ou seja, nesse “continente sob intervenção”482, Antônio Cândido enfatiza a necessidade de entendermos as influências à luz dessa nossa dependência cultural, compreendendo que ela constitui um fato indiscutível e inevitável. A partir dessas constatações, aparentemente óbvias, mas muitas vezes negadas (Cândido irá citar os movimentos nativistas radicais, que negavam essas influências, sem se darem conta de que sua própria língua é uma língua europeia), o autor passa a examinar os vários tipos de influência: “boas e más, inevitáveis e desnecessárias”483. O reconhecimento da inevitabilidade da influência permite que entendamos os processos de dependência como parte de nossa participação no universo cultural a que pertencemos. Entendendo esse processo assim, de modo mais amplo, Cândido permite também assistir aos momentos inversos, em que passamos a influir sobre os europeus. Não se trata aqui de uma influência de coisas inventadas por nós (mais uma vez, vemos a crítica de uma originalidade absoluta, fundadora), mas “um afinamento dos instrumentos recebidos”484. A abordagem do problema da dependência por Antônio Cândido e da busca de uma originalidade de tipo específico surgida a partir da constatação dessa dependência 480 CÂNDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento" (1969). In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 151. 481 Op. Cit. p. 141 482 Idem, p. 144. 483 Idem, p. 148. 484 Idem, p. 152. 434 permite que o autor formule uma teoria da influência articulada à originalidade. A partir do modernismo, teríamos um primeiro momento de superação da dependência (superação de seus aspectos negativos, de mera cópia dos modelos europeus). Esse “modo peculiar de os nossos países serem originais” é concebido como “processos de fecundação criadora da dependência”. O segundo momento na superação dessa dependência seria aquele em que obras de valor passam a ser produzidas a partir não diretamente de modelos estrangeiros, mas através de modelos nacionais. Esse segundo momento passa a ser então o de uma influência interna. O fato da dependência também gera fenômenos de ambivalência no seio da cultura nacional, como aqueles “impulsos de cópia e rejeição” 485, fenômenos que parecem antitéticos, mas que são complementares quando entendidos a partir desse fato. De um lado, temos a cópia de todos os modismos que vêm do exterior, ao ponto do próprio escritor sentir a sedução da imigração, a qual por vezes toma a forma de “migração interior, que encurrala o indivíduo no silêncio e no isolamento”. 486 Por outro lado, temos o impulso da rejeição, que leva a nativismos e regionalismos que, ao exaltarem as populações rurais e idealizá-las, acaba sendo produto de exportação ao leitor europeu ou europeizado, fechando assim a roda-viva da relação cópia-rejeição e do movimento exterior-interior-exterior. Ancorado em uma crítica de tendência marxista, em um momento (1969) em que o posicionamento político engajado era uma obrigação do intelectual de esquerda, Antônio Cândido não foge às tradicionais críticas ao colonialismo e à dependência latinoamericana. Ao mesmo tempo, não inserido na camisa-de-força da ortodoxia, é capaz de ver com precisão os exageros a que uma defesa cega dos “nacionalismos patrioteiros” (palavras suas) pode levar. Dentro dessa perspectiva, é capaz de formular uma teoria da influência a partir de sua constatação da dependência latino-americana, articulando essa literatura a um sistema mais amplo e identificando seus aspectos positivos e as originalidades que dela podem surgir. Como observa Tânia Franco Carvalhal: “sua visão do conceito de influência nos permite considerá-la sob um ângulo novo, espécie de influxo positivo que pode agir, segundo ele, como ‘instrumento libertador’”487. 485 Idem, p. 157. 486 Idem, Ibidem. 487 CARVALHAL, Tânia Franco. “Antônio Cândido e a Literatura Comparada no Brasil”. In: Anais do 1º 435 Essa teoria parece útil, sobretudo, ao estudo de contextos mais amplos ou da inserção de autores específicos em tais contextos, na medida em que sua mirada, nesse artigo, é menos de uma crítica de tipo ensaística e mais de uma constatação e análise de uma situação estrutural, ainda que ancorada em alguns exemplos específicos (ao contrário de Formação da Literatura Brasileira, obra marcada pelo estudo analítico das obras particulares, ainda que sob vista mais geral). Como aponta Sandra Nitrini a respeito desse conceito de influência: “revela-se pertinente para o estudo da literatura comparada pós-colonial brasileira e latino-americana e, certamente, tem um alcance teórico mais amplo”488. Permite, assim, entendermos relações gerais de influência sofridas por autores geograficamente, economicamente e politicamente periféricos, ainda que não se concentre na especifidade e singularidade de cada um (ou no caso de apenas um) deles. Tais autores, sob tais especifidades e analisados também por um autor (Antônio Cândido) inserido nesse mesmo contexto, formam um conjunto de elementos que permite a formulação de uma teoria da influência que, sob seu ponto de vista positivo, passa a ser vista também como uma teoria de nosso modo próprio de originalidade489. 1.2 Influência nas artes visuais: análise crítica de seus principais estudos As teorias da influência no campo da arte têm uma trajetória distinta da dos estudos comparatistas na literatura. Essa distinção, por um lado, indica que não se trata de um pensamento tributário da literatura comparada, mesmo que, em alguns momentos, como veremos, se inspire nos estudos comparatistas. Por outro lado, apesar de haver um pensamento que é independente ou busca marcar sua independência de outros campos de estudo, é nítida a diferença na quantidade de estudos sobre o tema da influência na Congresso Abralic. Porto Alegre: Abralic, 1988, vol I, p. 14. 488 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997, p. 210. 489 A relação entre cópia e originalidade foi retomada por Roberto Schwarz no artigo “Nacional por subtração”, segundo a mesma crítica à dicotomia que “opõe o nacional ao estrangeiro e o original ao imitado”, apoiado na obra de Antônio Cândido (e defendendo esse apoio dentro de uma crítica mais ampla às importações teóricas que não surgem por esgotamento das teorias ou conceitos anteriores, mas por simples modismo). O autor, a partir disso, aponta a impropriedade de suposições que “não permitem ver a parte do estrangeiro no próprio, a parte do imitado no original, e também a parte original no imitado”. In: SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: Folha de São Paulo, 07/06/1986, reproduzido em _____________. Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1987 e em ___________. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 436 arte, claramente em menor número. É possível que essa diferença surja do fato de os estudos comparatistas específicos da arte nunca terem constituído um campo de conhecimento específico – uma Arte Comparada – tal como se constituíram nos estudos literários, com a Literatura Comparada. Em outras palavras: conceitos (que são como respostas) surgem a partir de problemas específicos, e os problemas explicitam-se segundo a formulação de perguntas que, em cada época, são feitas às coisas ou fatos do mundo. Não tendo surgido como problema na arte, o uso dessa ferramenta conceitual – a influência – ocorre como aquela tessera descrita por Bloom, a partir de Lacan (por sua vez, a partir de Mallarmé), ou seja, como “aquela moeda cujo verso e reverso trazem apenas efígies gastas, que as pessoas passam de mão em mão 'em silêncio’”490. Esse uso, portanto (esse é o uso que estamos fazendo aqui da metáfora da tessera), deriva, na maior parte das vezes, de uma prática fundamentada no senso comum – aliás, mesmo senso comum que gera sua crítica (fundamentada, além disso, nos pressupostos modernos, conforme já vimos no primeiro capítulo). Dar relevo ao conceito, ou seja, recuperar a figura dessa efígie gasta e, ao mesmo tempo, mapear essa passagem (“de mão em mão”) do conceito de influência no campo da arte é o objetivo a que nos dedicamos neste subcapítulo. Iniciaremos observando o uso de conceitos e concepções (estas mais genéricas que aqueles) correlatos ao de influência dentro da historiografia da arte. Em seguida, veremos a utilização do conceito de influência em estudos que aplicam essa ferramenta sem reflexão sobre suas características (a partir, portanto, de uma pré-teorização implícita tal como é característica do senso comum), procurando identificar de que forma é utilizada e que relação ela estabelece com sua utilização (mais consciente) nos estudos comparatistas da literatura. Veremos, após, um uso mais consciente desse conceito, no qual a influência surge como ferramenta pensada a partir de um conjunto de características próprias para o campo da arte. Finalmente, veremos como o conceito foi criticado recentemente, examinando a tentativa de excluí-lo do campo da arte. Os exemplos tomados, apesar de não serem exaustivos, estabelecem um mapa consistente da questão (e de sua ausência) no campo da arte. Optamos por apresentar no primeiro 490 BLOOM, Harold. A Angústia da Inflluência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002 (segunda edição). p.114. 437 tópico (1.2.1: os conceitos correlatos) uma série de exemplos de conceitos e concepções que se assemelham ao conceito de influência e que por isso fazem parte de um campo mais geral de preocupações sobre as relações estabelecidas entre os artistas e as obras de arte. Nos outros tópicos, veremos alguns autores e casos específicos que exemplificam cada um dos problemas estudados. 1.2.1 Proximidades conceituais – semelhanças e dessemelhanças Veremos neste tópico alguns conceitos e concepções da teoria e da história da arte que estabelecem relações com o conceito de influência, sem, entretanto, corresponder precisamente a este conceito. Nossa intenção, a par de estabelecer diferenças que permitem identificar com mais rigor nosso conceito (por uma espécie de “via negativa”, que se desenvolve apresentando aquilo que o conceito não é), é também mostrar a importância de pensamentos correlatos na constituição de uma concepção de influência que, apesar de genérica, é operante na artes. Faremos referência, então, a uma análise dos seguintes conceitos e concepções: - o conceito de imitação e a prática da cópia, a partir dos estudos recentes sobre o desenho surgidos da exposição “Creative Copies”; - a concepção de história da arte na obra de Ernst Gombrich (sua dinâmica própria e sua semelhança à ideia de influência) e a definição filosófica da arte a partir do conceito de narração no pensamento de Noël Carroll; - o conceito de museu imaginário de André Malraux e sua relação com Working Space, de Frank Stella, e as concepções expostas na obra Francis Bacon: Lógica da Sensação, de Gilles Deleuze. Como se trata de uma série de diferenças e aproximações gerais, não será necessário nos aprofundarmos em cada uma delas, mas apenas indicar, em suas linhas gerais, as definições de cada uma. Não concebemos essa série como um rol definitivo de todas as concepções que, na história e na teoria da arte, têm se aproximado do conceito de influência, mas como um exercício de observação de algumas analogias teóricas e 438 suas implicações, o que, por último, serve também para indicar nossa busca pela especificidade desse conceito. O conceito de cópia, que define uma prática artística que diz respeito não apenas à aprendizagem, como também à poética, e que é historicamente marcado em praticamente todos os períodos artísticos, tem sido reabilitado em alguns estudos nos últimos vinte anos, sobretudo pela ênfase dada a seu aspecto criativo. Analisaremos essa questão a partir de duas publicações originadas de uma mesma exposição que tematizou a cópia dentro do nosso campo específico de trabalho, o desenho, a partir da relação entre a noção clássica de imitação e a sua capacidade inovadora e criativa. Trata-se do ensaio de Richard Thomson, “The creative copy in late nineteenth-century French art”491, publicado em 1992, e “The Creative Copy”492, de Egbert Haverkamp-Begemann, de 1988. O estudo de Richard Thomson abrange um período artístico particularmente rico em cópias, o século XIX, e em um país que é o berço do academicismo artístico, que tem como fundamento a emulação da antiguidade e da alta Renascença. Sendo assim, o exercício regular de cópias nas Academias é o padrão do ensino no século XIX francês. Mais do que exercício acadêmico, a cópia torna-se para o artista nessa época “um processo que irá condicionar sua imaginação, sua maneira de ver e, sobretudo, sua carreira”493. Entretanto, junto a essa prática, a modernidade e suas ideias de progresso e de novidade, em contraponto às ideias de continuidade e de repetição, são a tônica do período (em um desenvolvimento, conforme já vimos no capítulo primeiro desta tese, que remonta a finais do século XVII). Sendo assim, a cópia e fundamentalmente a possibilidade de uma “cópia criativa” surgem como questão nesse período e serão a tônica da análise de Thomson. O autor cita Ingres como a voz dos problemas criativos da época: 491 THOMSON, Richard. “The creative copy in late nineteenth-century French art”. In: DETHLOFF, Diana (org.) Drawing: Masters and Methods – Raphael to Redon. London: Royal Academy of Arts, 1992. pp. 1937. 492 HAVERKAMP-BEGEMANN, Egbert. “The Creative Copy”. In: _____________. Creative Copies. Interpretative Drawings from Michelangelo to Picasso. NewYork: The Drawing Center, 1988. 493 THOMSON, Richard. “The creative copy in late nineteenth-century French art”. In: DETHLOFF, Diana (org.) Drawing: Masters and Methods – Raphael to Redon. London: Royal Academy of Arts, 1992. p. 19. 439 “Há alguma coisa nova? Tudo foi feito, tudo foi encontrado. Nossa tarefa não é inventar, mas continuar, e nós temos o suficiente a fazer... interpretar... [a natureza] … com genuína sinceridade, seguindo o exemplo dos mestres. Como é absurdo pensar que o temperamento natural e as faculdades de alguém estão compromissadas com o estudo ou mesmo a imitação das obras-primas clássicas!” As inquietações de Ingres mostram um dos problemas dos artistas da segunda metade do século XIX: a necessidade de conciliar o respeito pelo passado (pelos mestres) com uma arte verdadeiramente moderna. Em um momento em que as convenções do ensino acadêmico ainda são importantes, mas em que se apresentam questões modernas, como conciliar a cópia com a necessidade da mudança? É o próprio Ingres que aconselha Degas, durante seu aprendizado (em 1855) a copiar. Os primeiros estágios da aprendizagem artística no período são dominados pelo treino da cópia, principalmente (no caso francês aqui analisado) por visitas ao Louvre dedicadas à análise e cópia das grandes obras. Segundo Richard Thomson, a cópia cumpre com o objetivo de “imbuir o estudante com a ideologia da tradição acadêmica” 494. A partir dessa meta, tal exercício cumpria uma tripla função prática: (1) “aclimatizar o estudante com as 'formas ideais' da antiguidade e da Alta Renascença”, (2) “treinar o estudante a emular a técnica de um determinado mestre” e (3) “explorar a prática compositiva de um mestre” (estudo da pose, da massa e do ritmo da composição). Essas funções, principalmente a terceira, exigiam do estudante uma capacidade interpretativa ao estudar o modo específico de um grande mestre, analisar suas escolhas e uma capacidade imaginativa ao buscar, a partir de sua emulação, apresentar o mesmo tipo de resposta expressiva ao tema proposto. Assim, segundo o autor, uma cópia pode ser sempre extrapolada além da questão imediata da cópia: é a consciência dessa emulação o que a constitui como uma cópia criativa. A cópia, além de seu valor de ensino aos jovens artistas, também encontra nos artistas maduros uma prática constante. Thomson cita as cópias feitas por Degas, ao sessenta e três anos, de uma obra de Mantegna, e o último trabalho de Ingres: uma cópia de Giotto feita aos oitenta e sete anos. A cópia passa a ser, no caso desses artistas maduros, um diálogo entre grandes mestres. Afora o caso dessas cópias feitas na 494 Id. p. 23. 440 maturidade, o autor interessa-se também pela relação entre aquelas feitas na juventude, durante o período de aprendizado, e suas ressonâncias em obras maduras. Curiosamente, Thomson não utiliza até aqui o termo “influência”; entretanto, descrevendo essas relações, observará que “a lição que foi aprendida tornou-se uma parte instintiva de seu repertório. Há instâncias, podemos sugerir, do treino e da cópia sendo assimiladas de maneiras mais sutis”495. Outros termos utilizados pelo autor na descrição dessa recorrência dos temas, formas, linhas, expressão, que foram aprendidas nas cópias da juventude e que retornam em trabalhos maduros são: “relações que continuam estimulando [o artista]” a “prestar homenagem à tradição do passado, ecoá-la e estendêla”, “assimilações”. A partir dessa terminologia, o autor apresenta uma polaridade entre “assimilações integradas”, ou seja, obras que assimilam as cópias do passado sob uma perspectiva renovadora, e “citações institucionalizadas”, ou seja, trabalhos caracterizados por uma cópia mais passiva do que adaptativa. No entanto, Thomson interessa-se pelas chamadas “áreas cinza” presentes entre essas duas polaridades. É justamente a partir da análise dessas áreas cinza, quando, por exemplo, analisará uma composição de banhistas de Cézanne, a qual é desenhada tanto a partir de modelos vivos presentes no ateliê do artista quanto por uma cópia feita na juventude de um nu de Signorelli, que a questão da influência surge para o autor. A questão que surge é a seguinte: “Em que medida podemos traçar a influência, a presença, de uma cópia em um trabalho independente de um artista maduro? Quando é que a lembrança de algo visto, aprendido, copiado, tornar-se tão fraca a ponto de tornar-se uma parte intrínseca da imaginação do artista?”496 Essas são as questões justamente daquilo que o autor chama de “cópia criativa” ou da “transformação do original”. No entanto, Thomson não nos apresenta uma resposta do problema. O autor caracterizará a cópia, na arte francesa do século XIX, a partir de seu papel formador do jovem artista e atuando como uma ligação com a arte do passado, tanto como uma assimilação inconsciente do ofício da representação quanto como um ativo marco da qualidade artística. A cópia provocando questões que se entrecruzam como a relação entre imaginação e emulação, inovação e conservadorismo, a capacidade 495 Id. p. 30. 496 Id. p. 34. 441 de transformar e de citar, mostrando as relações complexas estabelecias pela vanguarda com a tradição. O texto de Thomson a apresentará como uma prática criativa. Trabalhando em um território muito próximo dos problemas da influência, sobretudo ao refletir sobre o problema da cópia na perspectiva da criatividade, não se insere em uma discussão específica sobre a influência. O texto de Egbert Haverkamp-Begemann traça a questão da cópia na arte, especificamente no desenho, em uma perspectiva histórica dessa prática. Ainda que aparentemente contraditórios, segundo esse autor, os conceitos de criação e cópia são capazes de uma convivência ao estudarmos o modo como artistas delinearam sua própria visão a partir da absorção do passado. Mesmo no século XX, quando os conceitos do “novo” e “diferente” são pressupostos fundamentais, a cópia seguiu sendo utilizada. A cópia, para Haverkamp-Begemann, constitui-se em “um diálogo entre o intérprete e o interpretado”497 – diálogo que sempre apresenta novas soluções e que é feito segundo diversos propósitos, como o registro, a interpretação, a crítica e a aprendizagem, e a partir não apenas de cópias da geração anterior, como também de toda a arte do passado. No que se refere à sua especificidade, o desenho, para esse autor, é o meio mais apropriado ao diálogo com o passado, e o é próprio por sua imediaticidade e informalidade498. Tais características do desenho, mais do que qualquer outro meio, “iluminam a ligação do artista com o passado, bem como sua ambição para modificar o futuro”499. A partir disso, Haverkamp-Begemann dedica-se a apresentar um quadro histórico da questão da imitação e sua relação com a cópia artística. O autor parte de Alberti, no século XV, e sua transferência do conceito aristotélico de imitação do terreno da poesia para a pintura. Segue, então, através das concepções de Leonardo da Vinci, segundo o qual o artista deve iniciar sua aprendizagem através do desenho e copiando em primeiro lugar os outros artistas. O estudo apresenta a seguir o século XVI como o século por excelência da imitação, que, pelo desenvolvimento do conceito de maniera,500 497 Id. p. 13. 498 Características que, sob outros pontos de vista, desenvolvemos no capítulo segundo desta tese. 499 THOMSON, Richard. “The creative copy in late nineteenth-century French art”. In: DETHLOFF, Diana (org.) Drawing: Masters and Methods – Raphael to Redon. London: Royal Academy of Arts, 1992. p. 14. 500 Refere-se aqui à concepção segundo a qual a arte e o estilo são gerados a partir da (cópia da) arte preexistente. 442 tem na cópia dos grandes mestres não apenas o grande método de aprendizado artístico, mas torna-se também um fim em si mesmo. O século XVII, por sua vez, é marcado pela crítica à maniera do século anterior. O reflexo dessas novas concepções no trabalho de cópia será o de uma cópia que procura ser uma transposição ao vocabulário próprio do artista das obras e do vocabulário artístico anterior. Como exemplo desse novo modo criativo de cópia, o autor cita as cópias feitas por Rubens de obras renascentistas – cópias que são interpretações das obras do passado. Rembrandt será o outro exemplo dessa prática, descrita por Haverkamp-Begemann como sendo a da incorporação da arte italiana, bem como de outras culturas, com uma importância “mais como catalisadores do que como exemplos”501 a serem copiados. As concepções de imitação, dispersas e vagas, serão codificadas, a partir do historiador da arte barroca Gian Pietro Bellori, com a fundação da Academia Francesa, em 1648, por Colbert e Lebrun. O curso preliminar da Academia Francesa é o do desenho, iniciando-se com a cópia dos desenhos dos mestres. Ainda que o final do século XVII e o início do XVIII marquem o início da “Querelle des anciens et des modernes” (conforme vimos no capítulo primeiro), isso, segundo o autor, pouco afetou o trabalho de cópia da Academia. Segundo Haverkamp-Begemann, o que houve a partir da “Querelle” foi um alargamento dos modelos a partir dos quais eram realizados as cópias. Do mesmo modo, a concepção de “gênio original” surgida na transição do século XVIII ao XIX tampouco debilitou o trabalho acadêmico da cópia, que passou, sob esse novo paradigma, a ser vista como uma prática da imaginação artística interpretativa. Finalmente, o texto chega ao século XX, mostrando a continuidade da cópia, salientando a diferença estabelecida por Picasso. Segundo o autor, Picasso passa a copiar não somente para aprender a partir dos artistas anteriores, mas também como um modo consciente de vincular-se à tradição histórica e impondo sua própria visão e estilo não como cópia, mas em recriações dos trabalhos de seus predecessores. Tanto em Thomson quanto em Haverkamp-Begemann, o conceito de cópia aparece como uma prática que, tributária do exercício do olhar sobre a obra de outros artistas e do diálogo com o passado, busca estabelecer-se como um exercício criativo dessa aproximação. Visto sob essa perspectiva, copiar parece ser uma das práticas da 501 THOMSON, Richard. “The creative copy in late nineteenth-century French art”. In: DETHLOFF, Diana (org.) Drawing: Masters and Methods – Raphael to Redon. London: Royal Academy of Arts, 1992. p. 19. 443 influência. Deve-se entender, porém, que se trata de uma prática específica, enquanto a influência faz parte de um terreno mais amplo de afinidades, relações e encontros; ainda que a cópia, sob a perspectiva do diálogo e da interpretação dos trabalhos anteriores, possa ser incorporada como parte desses processos, não se identifica de forma estrita com a influência (entendida tanto como o conceito quanto como o fenômeno). Semelhantemente à cópia, as concepções de história da arte e do próprio conceito de arte tal como entendidos respectivamente por Ernst Gombrich e Noël Carroll, ainda que guardem importantes semelhanças com o conceito de influência, não se confundem com ele. Embora diferentes entre si, as ideias desses dois pensadores guardam uma semelhança por serem conceitos que procuram compreender a relação estabelecida entre as obras de arte ao longo do tempo em um panorama mais geral e histórico. De forma muito sintética, podemos dizer que a concepção de arte e de História da Arte em Gombrich é a de uma ciência e uma técnica com métodos específicos e internos. Tais métodos, seu desenvolvimento e seu aprendizado são adquiridos não através da observação da natureza por parte do artista, mas da observação das obras de arte do passado. Assim, a história da arte é constituída fundamentalmente a partir desse diálogo entre o artista e suas questões, a partir das questões lançadas pelos artistas do passado. Toda arte individual passa a ser vista, segundo a análise de Gombrich, a partir dessa relação mais geral com outros artistas e desse comungar artístico constituído por aquilo que chama de schemata e que se identifica com as técnicas e instrumentos da tradição. Conforme o autor observa: “é porque a arte opera com um estudo estruturado, governado pela técnica e pela schemata da tradição, que a representação pôde tornar-se o instrumento que é, não só da informação, mas também da expressão”502. Cada geração responde a questões (através daquilo que chama de correções à schemata) que, assim como as descobertas científicas, passam a fazer parte de uma espécie de patrimônio comum dos artistas. No entanto, esse diálogo, por se dar justamente a partir dessa perspectiva científica (lembremos da influência que Popper exerceu nas teorizações de Gombrich, sobretudo nessa ideia de avanço do conhecimento artístico que é correlata ao avanço do conhecimento científico), não temos em Gombrich propriamente uma teoria da influência, mas uma teoria das interações artísticas no plano histórico da arte, sob a 502 GOMBRICH, Ernst. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 330. 444 perspectiva das contribuições ao avanço da representação pictórica que acontece através da linguagem específica da arte503. O filósofo da arte Noël Carroll vê justamente nas relações entre as obras e os artistas, sob uma perspectiva histórica, sua definição de arte. Inserido em um debate contemporâneo ligado à estética analítica estadunidense, Carroll está interessado em uma definição filosófica da arte que responda aos problemas da arte surgida após a década de 1950, identificada de modo geral como “arte contemporânea”. A definição de arte, para Carroll, é possível a partir daquilo que chama de “narrativas identificadoras”. Tal como expõe em seu artigo “Historical Narratives and the Philosophy of Art”504, essas “narrativas identificadoras” compõem-se de narrativas históricas que conectam candidatos à arte contestados (aqueles de que não se tem certeza se podem ser definidos como arte) para dentro da história da arte. Esses “candidatos” são conectados de um modo que expõem essas mutações em questão como parte daquilo que chama de “a evolução das espécies da arte”505. Dessa forma, a definição da arte em Carroll procura ser uma definição não-essencialista (ou seja: não dizendo o que torna um objeto em si mesmo, por suas propriedades específicas como tal, uma obra de arte), mas que se constrói a partir de uma relação que busca integrar o “candidato” a arte dentro de uma corrente narrativa da história da arte. Assim, a arte (e a história da arte) passa a ser vista como uma espécie de narração em que dois aspectos são essenciais: tal como em um diálogo, espera-se que cada artista-conversador faça uma contribuição original à discussão, mas essa contribuição não pode ser original de forma absoluta, devendo guardar sua pertinência com o assunto em discussão. Mesmo que o autor não cite a questão da influência, é interessante notarmos a semelhança com algum dos pontos vistos no subcapítulo anterior, como a relação entre originalidade (novidade) e pertinência (como passado). Além disso, as relações de semelhança, segundo Carroll, não dizem respeito apenas a uma identificação de similaridades, mas no entendimento de que “o velho desempenha 503 Tão importante quanto as concepções de Popper na obra de Gombrich é sua inserção na Escola de Warburg. Marcada pela investigação da importância da arte clássica e do pensamento clássico na arte e no pensamento moderno, as reflexões da Escola de Warburg são a base para esta reflexão próxima à influência em Gombrich. 504 CAROLL, Noël. “Historical Narratives and the Philosophy of Art”. In: ____________________. Beyond Aesthetics. Philosophical Essays. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. pp. 100-118. 505 Op. Cit. p. 103. 445 um papel generativo na produção do novo”506. Esse aspecto parece guardar relação com aquela definição de influência que vimos na chamada Escola Francesa de literatura comparada, do início do século XX, ou seja, uma visão que subordina a arte nova à arte antiga e que vê a influência agindo sobre um influenciado passivo. A definição de Carroll, entretanto, toma a narrativa também do ponto de vista do artista novo (ou, melhor dizendo, do candidato a artista). Assim, Carroll identifica, no processo de constituição das narrativas, as avaliações que os novos artistas fazem sobre o contexto no qual pretendem se inserir. Essas avaliações, que se constituem em posições ativas do novo sobre o antigo, motivam resoluções em mudar tal contexto. São essas mudanças na própria estrutura da história da arte a partir de uma análise avaliativa do novo que se insere nessa história aquilo que o filósofo identifica como a relação entre pertinência e originalidade. Tanto a pertinência e a originalidade de Carroll quanto as schematas e correções de Gombrich guardam semelhança com as concepções e as práticas gerais de influência tal como vimos no subcapítulo anterior. Entretanto, nenhum dos dois teóricos trabalha a partir dessa perspectiva (dos estudos de influência). Os focos de ambos direcionam-se a questões mais amplas: em Gombrich, a uma definição da imagem artística e da questão da representação como uma linguagem; em Carroll, a busca de um conceito filosófico não-essencialista da arte, fundamentado na história e na narração. O nosso último grupo de concepções correlatas às concepções de influência diz respeito a um núcleo comum de problemas a partir do qual agrupamos (ainda que de forma um tanto generalizante, mas com vistas a entendermos suas relações com as concepções de influências) algumas ideias desenvolvidas por Malraux, com algumas considerações mais gerais (partindo de Malraux) de certas concepções encontradas em Deleuze e Frank Stella. O que une essas concepções é a relação que esses autores estabelecem entre um objeto artístico individual ou um artista e sua articulação/inserção no conjunto dos outros objetos artísticos. O museu, segundo André Malraux, impôs ao espectador “uma relação totalmente 506 Op. Cit. p. 108. 446 nova com a obra de arte”507. Os retratos tornam-se nos museus não mais retratos de homens específicos, mas as obras de Rembrandt ou de Velazquez. Extirpa-se, portanto, a função original daqueles objetos: um tríptico deixa de ser um objeto religioso para se tornar um objeto artístico. Mais do que isso, a sucessão de períodos, obras, estilos, épocas, em um mesmo espaço, convoca nossa fruição e nossa imaginação a uma ideia de unidade. Unidade de todas as obras, períodos, estilos e épocas. Essa inclinação à unidade expande-se em direção não apenas às obras que estão presentes no museu específico em que o espectador estiver presente, mas à unificação em seu imaginário, de todas as obras de todos os museus. Forma-se, aí, um “museu imaginário” que apela “para o todo possível”508. Esse museu completa-se no século XX a partir da reprodução das obras. Até o século XIX, um artista, historiador ou crítico de arte tinha acesso a dois ou três museus em toda a sua vida, tendo contato com as obras que estudava e completando o estudo com gravuras monocromáticas de outras obras. A partir do século XX, temos uma profusão de reproduções de obras: “dispomos de mais obras significativas, capazes de colmatar as falhas da memória, do que as que um grande museu é capaz de conter”509. Esse museu sem muros, composto das reproduções a que temos acesso, é capaz de influir na criação artística a partir dessa heterodoxia encontrada no museu. Assim, a arte moderna explicaria parte de sua recorrência à arte de todos os tempos e sua abertura a uma ampla heterodoxia artística a essa presença no século XX do ecleticismo desse museu imaginário, tal como descrito por Malraux. Em Malraux, à ideia de um museu imaginário, entendido como museu composto pelas imagens, por suas reproduções, agrega-se a ideia de um museu imaginário entendido como museu da imaginação, um espaço imaginário que está presente em cada um de nós. Esta última ideia nos é mais cara quando pensamos nas relações do conceito de influência com o conceito de “museu imaginário”. Isso porque esse museu da nossa imaginação pode ser entendido como a base imaterial a partir da qual se constroem as influências. Nesse sentido, o museu imaginário de Malraux, ainda que não se identifique com a influência, forma uma espécie de condição necessária para sua existência. Em seu livro La Tête d'Obsidienne, Malraux escreve que: "o museu imaginário é necessariamente 507 MALRAUX, André. O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 11. 508 MALRAUX, André. O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 13. 509 MALRAUX, André. O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 14. 447 um lugar mental. Não o habitamos, ele nos habita" 510. Esse museu, mais do que anacrônico, é atemporal e, sendo o produto de nosso trabalho imaginativo, é conformado segundo a articulação particular de cada imaginação. Indo além dos cânones e da tradição, é visto por Malraux como uma espécie de aventura pessoal: Esse museu não é uma tradição, mas uma aventura. Não apela para nenhuma hierarquia, sobretudo para a do espírito, pois engloba todas as outras. Ignora o diálogo maniqueísta que a Europa praticou durante tanto tempo511. Sendo uma aventura, como observa Edson Rosa da Silva, “posso interpretar o museu imaginário como uma "aventura", adventura, aquilo que vai acontecer, ainda e sempre em processo de enunciação, o que o particípio futuro ativo latino me leva a compreender”512. A partir do conceito de influência, podemos pensar também essa aventura como o que vai acontecer em termos da construção de uma obra. Nesse sentido, o museu imaginário é também o lugar em que se geram as obras a partir de sua articulação com o conjunto de todas as outras obras. É o próprio Malraux que, em obra posterior, irá ligar a concepção do museu imaginário com a ideia da criação do jovem artista, articulada então ao problema da influência. Escreve ele: Não há pintor que tenha passado de seus desenhos de criança para a sua obra. Os artistas não vêm da sua infância, mas do seu conflito com maturidades estranhas: não do seu mundo informe, mas da sua luta contra a forma que outros impuseram ao mundo.513 Duas noções aparecem nessa frase de Malraux. Uma delas é algo muito próximo da concepção de história da arte de Gombrich, a ideia segundo a qual os autores não copiam a natureza (aqui, a infância), mas os outros artistas. A segunda concepção é uma espécie de antecipação da ideia de “angústia da influência” em Bloom, que se evidencia pela identificação dessa “luta” e desse “conflito” estabelecido entre os artistas. Essa 510 MALRAUX, André. La Tête d'Obsidienne. Paris: Gallimard, 1974. p. 123. 511 Idem, p. 234 512 SILVA, Edson Rosa. “O museu imaginário e a difusão da cultura” In: Revista Semear, n o. 6. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002, p. 190. Nossas reflexões sobre o pensamento de Malraux devem muito a esse artigo. 513 MALRAUX, André. Les Voix du Silence, Paris: Gallimard, 1951p. 279. 448 relação conflituosa, entretanto, não recebe a nomeação clara de “influência” na obra de Malraux. Mas é claro que as formas artísticas, para Malraux, se engendram a partir de formas artísticas anteriores e que essa criação a partir do outro (anterior) acontece sob a forma de um conflito: O mais inocente escultor da alta Idade Média, bem como o pintor contemporâneo obsedado pela história, quando inventam um sistema de formas, não o tiram nem da submissão à natureza, nem unicamente do próprio sentimento, mas o devem a um conflito com uma outra forma de arte. Em Chartres como no Egito, em Florença como na Babilônia, a arte só nasce da vida através de uma arte anterior514. Partindo, portanto, do museu imaginário como museu da imaginação, Malraux articula essa concepção com uma teoria da criação artística, indicando a importância do conjunto de obras presentes no espírito do artista – principalmente do artista a partir do século XX, com a universalização das reproduções artísticas – na formação de sua obra, que se estabelece como luta e superação em relação às obras anteriores. É sob esses aspectos que sua teoria do museu imaginário se constitui em um conjunto de concepções importantes para pensarmos o conceito de influência na arte, que se articula a este último, sem, entretanto, dizer especificamente dele. Duas concepções paralelas às formuladas por Malraux que se apresentaram no debate contemporâneo da arte são as de Frank Stella, em sua obra Working Space515, e a de Gilles Deleuze, em Francis Bacon: lógica da sensação516. A ideia desenvolvida por Frank Stella na série de leituras públicas proferidas na Universidade de Harvard em 19834 e publicada em sua obra Working Space trata basicamente da importância dos artistas (pintores) da tradição pictórica ocidental (Stella concentra-se fundamentalmente nos pintores a partir da Renascença) para a formulação das questões da arte abstrata. A pintura abstrata, portanto, seria uma sucessora tanto de Rubens quanto de Mondrian. Através de uma análise que conjuga o conhecimento profundo das obras com um trabalho de livre associação, Stella põe lado a lado Michelangelo e Kandinsky, mostrando a contribuição daquele para a obra deste. A relação entre a pintura abstrata com a pintura 514 MALRAUX, André. La Création Artistique. Genebra: Skira, 1948. p. 309. 515 STELLA, Frank. Working Space. Cambridge, Massachusetts & London: Harvard University Press, 1986. 516 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. (2002) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. 449 renascentista e barroca constitui-se em um contraponto a tentativa de clivagem estabelecida por Greenberg e sua “planaridade” como contraponto ao figurativismo anterior. Essa interligação das obras de todos os períodos também se apresenta nas reflexões de Deleuze em Francis Bacon: lógica da sensação, sobretudo nos capítulos 14 (“Cada pintor resume à sua maneira a história da pintura...”) e 15 (“A travessia de Bacon”). Nesses dois capítulos, Deleuze procura entender e caracterizar, a partir da obra de Bacon, a presença de todas as outras obras na obra de um artista. Segundo o filósofo francês, essa recapitulação da história da pintura “nunca é puro ecletismo” 517 e não se dá de modo simples, tal como uma colagem de estilos. Como uma espécie de internalização da história da arte, o pintor resumiria – à sua maneira – essa história da pintura, desde a arte egípcia, “como um espaço percorrido na unidade de um mesmo gesto simples”518. A partir de perspectivas distintas, tanto Stella quanto Deleuze retomam questões centrais do pensamento de Malraux. Ao pensarem nas relações entre obras individuais (e artistas específicos) em sua relação com o corpus artístico ocidental, seja através do conflito, seja como retomada, os autores tangenciam os problemas da influência e apresentam aportes teóricos importantes para nossa formulação de um conceito de influência operacional para os problemas desta tese. No que respeita especificamente ao problema da influência, falta a esses autores mostrar como a incorporação da tradição artística acontece, gradualmente, na obra de um artista específico. Parece-nos que é justamente essa incorporação gradual o que indica mudanças entre a produção anterior e posterior de um mesmo artista. De outro modo, se a tradição fosse um fato dado em uma obra que apareceria a cada traço ou pincelada, não notaríamos a diferença fundamental existente entre o conjunto da obra de um artista e o que parece desenvolver-se em delimitações mais ou menos precisas do espaço e do tempo em que esse artista se insere. 1.2.2 A influência – moeda gasta na arte: o caso Matisse-Picasso 517 Op. Cit, p. 135. 518 Id. Ibid. 450 Após analisarmos os conceitos e as concepções que são paralelos ao conceito de influência, veremos a utilização deste conceito na arte em estudos que, no entanto, não privilegiam sua análise. Assim, é a partir de sua circulação não-refletida, de um uso segundo uma concepção do senso comum que a influência será aqui observada. Conforme veremos, o uso de um conceito a partir de seu senso comum não significa a ausência de uma teorização imanente ao conceito, mas apenas a inconsciência desta por parte daquele que articula o conceito de forma irrefletida. A consequência disso é que frequentemente esse conceito guarda características ligadas à suas definições mais antigas, portanto, não informadas do desenvolvimento do conceito. Justamente por essas características, o conceito passa a ser visto de forma negativa, principalmente quando surgem conceitos novos, carregados de um conjunto de definições coerentes e afinadas com as teorizações mais recentes. O contraponto que acaba sendo feito, então, é entre um pré-conceito (ou um conceito pouco preciso e desatualizado) e um conceito moderno. Analisaremos, então, a utilização “preconceitual” do conceito de influência na arte e o faremos a partir de uma análise de caso que nos parece paradigmática: os estudos surgidos nos últimos dez anos que buscam relacionar a obra de Matisse e de Picasso, estudos esses motivados sobretudo pela exposição “Matisse - Picasso”, que percorreu os principais museus dos dois lados do Atlântico Norte. Consideramos esse exemplo paradigmático por ser capaz de apresentar o uso do conceito por (a) diversos autores, através de uma utilização (b) genérica e não atenta ou (c) pela aplicação mecânica de um determinado conceito de influência da Literatura Comparada, sem a devida transposição do conceito a partir das especificidades da arte e dos trabalhos específicos (e sob o ponto de vista relacional) de Matisse e de Picasso. Em um artigo intitulado “Encontros na travessia”519, Tania Franco Carvalhal inicia suas reflexões a partir da análise de duas exposições que tinham como tema a obra de Picasso em relação à obra de outros dois artistas. A primeira delas intitula-se “Picasso Ingres”, ocorrida em 2004 no Museu Nacional Picasso em Paris, confrontando as obras dos dois artistas. A segunda, “Matisse e Picasso - Uma gentil rivalidade”, é aquela que teve seu início em 1999 no Kimbell Museum no Texas e que, posteriormente, em 2002, foi 519 CARVALHAL, Tania Franco. “Encontros na travessia”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. Nº 7. Porto Alegre, 2005. pp. 169-182. 451 vista no Grand Palais de Paris e finalmente no MoMa de Nova Iorque, em 2004 – a ela nos dedicamos agora. Ao analisar a terminologia do catálogo, a partir do texto de Yves-Alain Bois, Tania Franco Carvalhal observa “a natureza agressiva dessas palavras como se a relação entre os dois pintores (Picasso e Matisse) não fosse amena nem da mesma natureza daquela que ele estabelecera com Ingres”520. As palavras-chave em questão destacadas pela crítica são (segundo sua tradução): “Diálogo”, “Desprezo” (misprision), “Rivalidade” e “Chess” (xadrez). Conforme observa Carvalhal, as palavras utilizadas remetem ao pensamento de Harold Bloom em Angústia da Influência. A identificação dos termos utilizados pelo autor com as teorias de Bloom feita por Tania Franco Carvalhal não apenas é pertinente, como nos incita a examinar o texto de Yves-Alain Bois no que se refere à questão da influência e de outros conceitos da literatura comparada. Em seguida, ainda dentro da questão Matisse-Picasso, veremos o livro de Jack Flam, Matisse and Picasso. The Story of Their Rivalry and Friendship521. Os quatro termos utilizados por Yves-Alain Bois dão título às quatro partes da introdução de sua obra, a qual apresenta os princípios teóricos que norteiam sua análise sobre a relação entre Matisse e Picasso. O primeiro termo, Diálogo (dialogue) faz referência ao conceito de diálogo na obra de Bakhtin. O autor sugere a substituição do termo “elocução/enunciado” (utterance) por “obra de arte” e do termo “falante” (speaker) por “artista” no sentido de examinar a produção completa de Matisse e de Picasso sob a perspectiva de uma relação entre os dois. Assim, as obras de arte (as suas elocuções) apareceriam como respostas das obras de arte (“elocuções”) prévias. Segundo o autor, o conceito de diálogo seria útil, entre outras coisas, porque evitaria o uso do conceito de influência. A noção de influência, segundo Yves-Alain Bois, possui implicações de passividade que a tornariam uma ferramenta insatisfatória para compreender a relação estabelecida entre os artistas. O conceito de Misprision é derivado da obra de Harold Bloom, A Angústia da Influência: seu primeiro capítulo, Clinamen, tem o subtítulo de “Or Poetic Misprision” 520 Op. Cit., p. 172. 521 FLAM, Jack. Matisse and Picasso. The Story of Their Rivalry and Friendship. Cambridge: Westview Press, 2003. (traduzido na edição brasileira como “ou Apropriação Poética”522), e 452 Yves-Alain Bois caracteriza esse termo como uma “incompreensão propositalmente desejada” 523. Segundo o autor, o termo de Bloom pode ser utilizado como um modelo para examinar as relações de Matisse e Picasso, no sentido que essa “incompreensão propositalmente desejada” pode servir como uma estratégia para os dois artistas. Entretanto, ao contrário de Bloom, que vê o fenômeno de Misprision exercido em uma relação que se direciona para o passado (a partir da relação entre os poetas fortes do presente ou os “efebos” com os poetas fortes do passado), Bois o caracteriza como “mais útil quando aplicado às relações de dois contemporâneos, principalmente quando esses contemporâneos podem alterar seus papéis, podem às vezes ser o pai esmagador e algumas vezes ser o filho rebelde”524. A partir dessa visão da influência como Misprision, Yves-Alain Bois tece algumas considerações sobre a visão da influência no pensamento de Matisse e como esse pensamento e o conceito de Misprision são uma crítica à própria ideia de influência. Segundo Bois, Matisse sempre evitou as suas influências, não cansando de repetir a recomendação de Cézanne: “cuidado com os mestres influentes”. Do mesmo modo, evitava também seus grandes influenciadores, como o próprio Cézanne, a quem, por exemplo, nunca visitou em Aix. Assim, para o autor, a influência deve ser vista como algo que só existe negativamente. É algo que o artista combate. O terceiro conceito é o de Rivalidade (Rivalry). Esse conceito é mais uma vez retirado dos estudos literários, tal como proposto por René Girard em sua obra Deceit, Desire and the Novel525. A obra de Girard trata da relação de rivalidade estabelecida não entre autores (ou artistas), mas entre personagens de ficção. Girard preocupa-se com a estrutura de desejo nas obras literárias, nas quais ele detecta uma relação triangular: “eu 522 O conceito de misprision é de difícil tradução, já que, mesmo na língua inglesa, se trata de uma palavra recuperada por Bloom, mas de uso quase exclusivamente jurídico e, mesmo assim, bastante estrito nessa área, referindo-se de modo geral aos “crimes por omissão”. Tem origem no francês mesprendre. Conforme vimos, Tania Franco Carvalhal opta por traduzir como “desprezo”, e a tradução brasileira de Bloom o traduz como “apropriação”. Alguns autores ainda traduzirão como “encobrimento” (na trad. portuguesa da obra de Bloom), “desapropriação” ou ainda “malversação”. O dicionário Michaelis traduz o termo como 1. conivência, cumplicidade, 2. negligência e 3. prevaricação. Optamos por apresentar estas variadas traduções, mas mantendo o termo original no corpo do texto. 523 BOIS, Yves-Alain. Matisse e Picasso. Paris: Flammarion, 2001. p. 17. 524 Ao estudarmos o conceito de influência a partir do desenho (na segunda parte deste capítulo), apresentamos uma concepção semelhante a esta, mas nos referimos ao entendimento da própria ideia de “angústia” (da influência) como mais apropriada às relações entre contemporâneos. 525 O autor segue a tradução inglesa desta obra originalmente em francês: GIRARD, René. Deceit, Desire and the Novel. Trad. Yvonne Freccero. Baltimore: John Hopkins University Press, 1966. 453 apenas desejo o que o outro deseja, eu somente desejo através do desejo do outro, a quem, então, eu tento imitar”526. Por último, Yves-Alain Bois apresenta o conceito de Xadrez (Chess), a partir da reflexão, agora já no campo da arte, de Hubert Damisch, em Moves: Playing Chess and Cards with the Museum527. O modelo do xadrez (para que fique claro: a referência aqui é ao jogo de tabuleiro e seu emprego por Damisch como conceito para a arte) é útil para Bois por apresentar tanto a diacronia quanto a sincronia. Em seu aspecto diacrônico, o xadrez diz respeito a todos os movimentos que as peças fizeram para constituírem-se nas posições que ocupam. Sob a perspectiva da sincronia, refere-se à posição atual das peças no tabuleiro. Ao mesmo tempo, diz respeito a um determinado campo governado por determinadas regras e o quanto essa estrutura é derivada de uma história (a dos movimentos das peças). Esse jogo, para Bois, seria um instrumento útil para a análise das relações entre Matisse e Picasso por ser um modelo comparativo dinâmico, capaz de envolver tanto a história quanto a situação sincrônica e indicar os movimentos de cada um dos artistas no jogo estabelecido entre eles, com suas regras próprias (como, por exemplo, a exclusão da abstração em seus trabalhos). Como podemos observar, os conceitos de Yves-Alain Bois procuram sustentar a relação bilateral entre Matisse e Picasso. Todos eles tentam dar conta de uma noção dinâmica e bilateral, um jogo olho por olho (“tit-for-tat”) entre os dois artistas modernos. Desse jogo, estão excluídos, por exemplo, as diferentes relações estabelecidas por cada um deles com outros artistas. Nesse sentido, os conceitos utilizados por Bois são suficientemente apropriados, já que cobrem com exatidão essa relação que Bois procura definir como simétrica entre os dois artistas. Entretanto, faz um uso dos conceitos que não busca uma relação mais profunda destes junto às obras dos artistas e aos problemas específicos da visualidade, capaz de modificar esses conceitos, capaz de indicar os efeitos desse contato – sob esse aspecto é que vemos os conceitos como “moeda gasta”. Ao buscarmos as assimetrias e principalmente se examinamos as definições de influência apresentadas pelo autor, alguns problemas surgem. 526 BOIS, Yves-Alain. Matisse e Picasso. Paris: Flammarion, 2001. p. 20. 527 DAMISCH. Hubert. Moves: Playing Chess and Cards with the Museum. Rotterdam: Museum Boijmans Vans Beuningen, 1997. 454 Quanto às assimetrias, o modelo de Yves-Alain Bois (ou melhor, os modelos tomados pelo autor, da perspectiva em que são tomados) não responde a essas questões, na medida em que partem sempre do princípio de uma relação entre dois artistas estabelecida em um nível de igualdade e de relação dialética que não parece ter uma origem ou um fim. Estabelece-se, portanto, num contínuo relacional que não apresenta, por exemplo, os momentos em que a relação mostrou uma desigualdade, o que equivale ao momento em que houve um influenciado e um influenciador (ainda que esses possam inverter seus papéis). No que se refere às caracterizações sobre a influência, primeiramente vemos o useiro apontamento de sua pecha, ao caracterizá-lo como passivo. Sobre sua passividade, voltaremos a essa questão quando estudarmos a crítica ao conceito realizada por Michael Baxandall (no subcapítulo 1.2.4 deste capítulo). Basta dizermos, por enquanto, que essa afirmação dá conta apenas da etimologia primeira do conceito, entendida como os influxos dos astros sobre os seres terrestres, e desconhece a longa e complexa história do desenvolvimento desse conceito. No que se refere a uma definição negativa do conceito de influência, tal como o autor propõe, parece-nos que ela só teria validade se, no exame das obras, não encontrássemos relações de semelhança que apontam para influência, mas apenas relações de dessemelhanças em contraponto direto com as outras obras (algo como as peças que se unem em um jogo de quebra-cabeça ou os pinos e as cavidades de duas peças de um encaixe). No entanto, ainda que as dessemelhanças sejam importantes na caracterização das influências (voltaremos a esse ponto no subcapítulo 2.3 deste capítulo), elas o são na mesma medida em que as semelhanças também o são, o que indica que a influência existe positivamente – ainda que queiramos vê-la como uma leitura propositalmente equivocada, o que nos parece ser mais um ponto de vista sobre as relações de semelhança estabelecidas pela influência do que propriamente a negação delas. Desse modo, embora o Misprision seja caracterizado pelo autor como uma estratégia para livrarse do conceito de influência, ele acaba por reintroduzir-se, ainda que sob um olhar comparativo que (incomodamente) procura ver as semelhanças a partir de seus equívocos. Do mesmo modo, as próprias declarações de Matisse parecem afirmar a influência como um dos grandes “espinhos” da modernidade. Ao examinarmos o livro de Jack Flam, também sobre a relação Matisse-Picasso, 455 encontramos um uso do conceito de influência bastante casual e irrefletido. Se não temos uma crítica que busca negar a influência, também não vemos propriamente um uso refletido do conceito. Nesse aspecto, de um uso não-pensado em sua especificidade (ou mesmo em sua generalidade), a obra de Flam nos é interessante por mostrar de que modos a influência circula como “moeda gasta” na arte. A primeira constatação no texto de Jack Flam é o raro uso do termo “influência” para analisar a relação entre os dois artistas. Na introdução de seu livro, vemos os termos: “rivalidade”, “amizade”, “inspirados um pelo outro”, “provocados um pelo outro”, “resposta ao outro”, “afetado” (pelo trabalho do outro), “interações”. Uma referência mais direta ao termo é encontrada apenas à página 102, quando o autor fala que “o novo vocabulário, no qual Picasso mistura os elementos decorativos básicos de Matisse com os planos fraturados do Cubismo Sintético, também exerceram uma influência recíproca sobre Matisse”528. O termo é usado sem análise, tomado a partir da assunção de um sentido compartilhado do que seja influência. As interações dos dois artistas são tomadas no texto de Flam basicamente como respostas, algo próximo à ideia de Yves-Alain Bois (ao tomar o conceito de diálogo a partir de Bakhtin). Curiosamente, o autor faz uso de uma obra de Harold Bloom como marco referencial teórico de sua análise; trata-se da obra Wallace Stevens: The Poems of Our Climate529. Esse uso diz respeito mais às características das obras de Picasso ou de Matisse individualmente do que a seu aspecto relacional. Passando, portanto, ao largo das discussões sobre influência na obra de Bloom ou em outras obras de referência quando se utiliza do termo no estabelecimento da relação entre Matisse e Picasso ou evitando a terminologia, pode-se caracterizar a obra de Flam como um bom exemplo do uso da influência como “moeda gasta” na arte. 1.2.3 A influência como conceito operativo da arte: Göran Hermerén e a constituição do campo de estudos 528 FLAM, Jack. Matisse and Picasso. The Story of Their Rivalry and Friendship. Cambridge: Westview Press, 2003. p. 102. 529 BLOOM, Harold. Wallace Stevens: The Poems of Our Climate. Ithaca and London: Cornell University, 1977. 456 Vimos acompanhando até agora concepções ou que tangenciavam o conceito e os estudos de influência, ou que tomavam esse conceito a partir de seu sentido comum, sem uma reflexão específica. Veremos agora um estudo que (segundo podemos identificar) é a única obra que se dedicou especificamente a refletir sobre a questão da influência na arte. A obra Influence in Art and Literature530, de Göran Hermerén, é o primeiro (e único) estudo sistemático do conceito no campo da arte que, como o próprio título já indica, o considerou em conjunto com a tradição de estudos no campo da literatura. A obra é baseada em análises descritivas nas quais o autor torna explícito o que é dito ou implicado sobre a influência nos estudos de arte e literatura531. No que se refere a uma análise filosófica geral e abrangente sobre o problema da influência na arte e na literatura, a obra de Hermerén abrange seus principais problemas e distinções. Em um estilo filosófico e uma abordagem que evidencia sua filiação à filosofia analítica, a obra disseca o problema da influência de maneira sistemática com a intenção de esclarecer o conceito. Por sua amplitude e importância, o livro de Hermerén será analisado acompanhando as principais questões desenvolvidas em cada um de seus capítulos. A obra é dividida em quatro partes: (1) Problemas e Distinções, (2) Condições para a Influência, (3) Medidas de Influência e (4) Consequências e Conclusões. A primeira parte, Problemas e Distinções, trata basicamente da definição conceitual de “influência artística”. Segundo o autor, a “influência artística” refere-se a uma relação causal que é definida do seguinte modo: “se 'X' influenciou a criação de 'Y' no que diz respeito a 'a' e se 'Y' foi criado por 'B', então o contato de 'B' com 'X' é uma condição necessária e parte da condição suficiente para a criação de Y”. A definição de Hermerén acima pode ser entendida para qualquer tipo de influência. No sentido de definir de forma precisa a “influência artística”, o autor então estabelece treze requisitos (R1 – R13). Esses requisitos buscam responder a três problemas básicos: (a) O que todos os tipos de influência, entendidas de um modo geral, têm em comum? (b) O que distingue influências, entendidas de um modo geral, de cópias, esboços, paráfrases, entre outros? 530 HERMERÉN, Göran. Influence in Art and Literature. Princeton: Princeton University Press, 1975. 531 Apenas para situar o autor: Göran Hermerén é professor de filosofia da universidade de Lund, na Suécia. É autor, entre outras obras, de Representation and Meaning in the Visual Arts (Lund, 1969). Atualmente, segundo pudemos averiguar, dedica-se ao campo da ética filosófica na mesma Universidade. 457 (c) O que distingue influências genuínas de outros tipos de influências, como empréstimos ou modelos? Dessa forma, os treze requisitos são os que seguem: R1 – se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então 'a' é uma característica relevante para o entendimento e apreciação de X e de Y. R2 – Se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então X e Y são obras de arte visuais ou literárias ou, alternativamente, certos tipos de ações. R3 – Se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', e se B criou Y, então o contato de B com X foi uma causa que contribuiu para a criação de Y com respeito a 'a'. R4 – Se X influenciou a criação de Y de algum modo, então traços da influência de X devem ser manifestos (visíveis ou reconhecíveis) em Y. R5 – Se X influenciou a criação de Y de algum modo, então a afirmação disso tem implicações normativas de um modo a ser discutido em breve. R6 – Se X influenciou a criação de Y de algum modo, então o artista que criou Y pode ser consciente disso, mas não necessita sê-lo. R7 – Se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então as similaridades entre X e Y com respeito a 'a' são mais sutis e mais difíceis de serem descobertas do que se fossem cópias, esboços, paráfrases, etc. R8 – Se X genuinamente influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então 'a' não é um detalhe emprestado de X, mas algo de características mais difusas, tais como um estilo ou uma expressão, e que concerne a Y como um todo. R9 – Se X genuinamente influenciou a criação de Y, então a influência de X é difusa no sentido de que o artista que criou Y assimilou X. R10 – Se X genuinamente influenciou a criação de Y, então há uma continuidade entre Y e outros trabalhos da pessoa que criou Y; a influência afetou diversos trabalhos, e Y não é um fenômeno isolado em sua produção. R11 – Se X genuinamente influenciou a criação de Y, então a influência de Y é duradoura no sentido de que afetou a pessoa que fez Y durante um período consideravelmente longo de tempo. R12 - Se X genuinamente influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então não há 458 nenhuma necessidade da descoberta de nenhuma similaridade óbvia ou simples entre X e Y a esse respeito. R13 – Se X influenciou a criação de Y de um modo particular 'a', então a pessoa que criou X não é idêntica à pessoa que criou Y. O capítulo primeiro da obra de Hermerén abrange cerca da metade de seu livro e constitui-se não apenas no mais extenso, mas também no mais importante, por fazer distinções filosóficas fundamentais para o conceito de influência. Os tópicos acima elencados resumem suas principais definições e distinções, embora não substituam a leitura da obra para todo interessado em estudar a questão da influência sob uma perspectiva filosófica. Entretanto, por sua própria linguagem analítica, permite o seu resumo a partir desses tópicos. O segundo capítulo, “Condições para a Influência”, procura esclarecer as condições que precisam ser satisfeitas se a hipótese sobre influência artística está para ser considerada verdadeira. São cinco condições básicas para a influência artística: 1 – A condição temporal A. Essa condição estabelece que, se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então Y foi feito depois de X com respeito a 'a'. 2 – A condição de contato. Essa condição estabelece que, se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então a pessoa que criou Y era familiar com X ao menos no que respeita a 'a'. 3 – A condição temporal B. Essa condição estabelece que, se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então Y com respeito a 'a' foi feito depois de C, onde C é o primeiro contato entre X e o criador de Y. 4 – A condição de similaridade. Essa condição estabelece que, se X influenciou Y com respeito a 'a', então X e Y são (notavelmente) similares com respeito a 'a'. 5 – A condição de mudança. Essa condição estabelece que, se X influenciou a criação de Y com respeito a 'a', então Y com respeito a 'a' seria diferente do que é se não tivesse sido influenciado. O terceiro capítulo, intitulado “Medidas de Influência”, como seu título sugere, trata da complexa e discutível questão de se medir o alcance da influência artística. Se o primeiro capítulo é dedicado ao significado das expressões que afirmam a influência de 459 um trabalho artístico sobre o outro e o segundo capítulo buscou estabelecer os diferentes tipos de motivos que apóiam ou refutam tais afirmações, esse capítulo terceiro busca estabelecer a relação de influência de vários trabalhos sobre um determinado trabalho artístico, elencando os graus de força exercida por cada um deles. Não apresentaremos aqui as fórmulas que o autor utiliza para a tentativa de uma mensuração clara e objetiva dos diferentes graus de influência sofridos por uma obra, já que, após a série de enunciados quase matemáticos, o autor chega à conclusão de “quão difícil é graduar e medir a influência artística e literária de uma maneira clara e não-arbitrária”532. O autor também observa a necessidade de analisar os trabalhos artísticos e seu contexto a partir de vários pontos de vista. A questão da possibilidade de uma medida dos diferentes graus de influência sofridos por uma obra continua um problema em aberto e parece indicar mais um trabalho do campo estatístico e matemático do que propriamente dos estudos de história, teoria e crítica de arte. Estudos nos campos da matemática e estatística indicam a vocação às ciências exatas na busca de resolução de tais problemas, como o artigo “On Directed Graph Models on Influence in Art Theory”533, de Juliusz A. Chroscicki e Vladimir P. Odinec, de 1981, o qual, apesar de ter sido publicado em uma publicação de história da arte, lida basicamente com modelos matemáticos. O último capítulo, “Consequências e Conclusões”, avança em algumas discussões, principalmente a partir de um contraponto entre suas definições teóricas e as teorias clássicas de influência como as das obras de Hassan, Guillén, Block e Bloom. Essas questões dividem-se em quatro grupos, que são os que seguem: - A crítica à substituição do conceito de influência pelo conceito de tradição, referindo-se fundamentalmente ao trabalho de Hassan, que analisamos anteriormente. Segundo Hermerén, os conceitos não são incompatíveis, apesar de não serem os mesmos, e sua diferença e compatibilidade permitem que o conceito de influência siga cumprindo um papel importante nos estudos sobre arte. - A crítica ao conceito de “misinterpretation” (“interpretação equivocada”) na obra de Harold Bloom. Para Hermerén, um trabalho influenciado por uma obra anterior é uma interpretação (consciente ou inconsciente) dessa obra influenciadora. No entanto, essa 532 Op. Cit. ;p. 300; 533 CHROSCICKI, Juliusz A. & ODINEC, Vladimir P. “On Directed Graph Models on Influence in Art Theory”. In: Artibus et Historiae, vol. 2 nº 3. Veneza: IRSA, 1981. pp. 113-130. 460 interpretação não é necessariamente uma “interpretação equivocada”, mas um comentário criativo a respeito da obra anterior, capaz de transformá-la sem incorrer nesse tipo de “equívoco”. - A crítica à concepção de Claudio Guillém segundo a qual a influência não é uma questão de fato, mas uma questão de valoração (de juízo de valor por parte do crítico ou do historiador da arte). Ainda que afirmações sobre influência tenham implicações normativas (avaliativas), são avaliações de fatos concretos para Hermerén. - A crítica a uma tentativa de reinterpretação do conceito de originalidade no sentido de acomodar o conceito de influência, evitando as implicações normativas que esse conceito estabelece em relação à (diminuição da) originalidade do artista influenciado. Hermerén sustenta que a definição de originalidade correta deve ser aquela dicionarizada534. Mais do que isso, sustenta também que esse uso não diminui a qualidade de uma obra, desde que entendamos que a influência sobre um aspecto específico não implica que a obra influenciada é de menor qualidade, e que, sobretudo, o mais importante é como essas influências foram utilizadas. O livro de Göran Hermerén termina apontando a importância dos estudos de influência a partir de quatro grandes motivos. O primeiro deles é que, se os estudos não ficaram confinados a uma caça de fontes superficiais, mas se forem combinados com análises da gênese dos trabalhos envolvidos, podem fornecer insigths importantes sobre o processo criativo e mostrar como a imaginação artística funciona. Em segundo lugar, se combinados com investigações sociológicas e psicológicas, estudos desse tipo podem ensinar-nos como os contatos culturais são feitos e como as ideias se espalham de pessoa a pessoa ou de tradição a tradição. Em terceiro lugar, os estudos de influência podem indicar em que sentido um artista é original, se a atenção é focada não apenas sobre o que influenciou um artista, mas como esse artista utilizou essas influências, bem como em que aspecto ele não foi influenciado por trabalhos aos quais ele tinha acesso conhecido. Por último, se a história da influência de um trabalho artístico pode ser dita como sendo a história dos comentários criativos sobre esse trabalho, então a história da influência de grandes obras ao longo dos séculos pode lançar interessantes luzes tanto sobre os artistas envolvidos quanto sobre o gosto desse período. 534 Estratégia recorrente da filosofia analítica que busca a resolução dos problemas a partir do uso comum da linguagem. 461 Como podemos ver, a obra de Hermerén é uma tentativa de conceitualizar a influência sob a perspetiva rigorosa da filosofia. Apesar de sua obra indicar uma análise tanto da literatura quanto da arte, a abrangência de seu trabalho é fundamentalmente a da integração conceitual desses dois campos sob o escopo conceitual da filosofia, e não de uma especificidade conceitual artística junto a outra especificidade conceitual da literatura. Desse modo, ainda que o estudo de Hermerén, por seu rigor analítico e pela abrangência dos problemas estudados, não tenha sido superado no campo dos estudos de influência, o que ao seu trabalho parece faltar é uma análise mais específica a partir do campo da arte. Os conceitos genéricos desenvolvidos por Hermerén não parecem nem estabelecer distinções entre o campo da literatura e o campo da arte, nem (e talvez por isso mesmo) ser tocados pelas obras que analisa, muitas delas surgindo como exemplificações de suas categorias filosóficas, e não como elementos modificadores de seus próprios conceitos. Falta, portanto, um trabalho mais próximo às obras, que seja capaz de transformar tanto as obras quanto os conceitos em um diálogo não-hierárquico entre uns e outras. Importa observar que o trabalho de Hermerén, embora não apareça de forma explícita em nossa análise das influências na obra de Iberê Camargo, se insere em muitos momentos como uma estrutura lógica implícita. Nesse sentido, seu trabalho de esclarecimento lógico/conceitual nos é importante para o estabelecimento de condições lógicas necessárias para o levantamento das hipóteses de influências. 1.2.4 A crítica do conceito de influência: Michael Baxandall Terminamos nosso subcapítulo com esta que podemos considerar como provavelmente a mais importante crítica recente, no campo específico da arte, ao conceito de influência. Analisaremos primeiramente a crítica feita por Baxandall e em seguida faremos nossa análise crítica dos problemas apontados pelo autor. O historiador da arte inglês Michael Baxandall faz sua crítica ao conceito de influência em seu livro Padrões de Intenção. A explicação Histórica dos Quadros535. É no segundo capítulo, dedicado a Picasso, “II. O interesse visual intencional: o retrato de 535 BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção. A explicação histórica dos quadros. (1986) Tradução: Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 462 Kahnweiler, de Picasso”, em seu tópico sexto, “Digressão contra a noção de influência”, que desenvolve sua crítica. Identificando a influência como uma “pedra no caminho” de sua análise, dedica-se então nesse subtópico ao trabalho de tentar “chutar a pedra para bem longe, de modo a desimpedir o caminho”536. Vejamos de que forma Baxandall desenvolve essa tentativa de expulsão do conceito de influência das reflexões sobre arte. Primeiramente, o autor critica o “viés gramatical” da palavra influência, essa que segundo Baxandall é “uma das pragas da crítica de arte”537. Tal viés inverteria o sentido da relação de influência, ou seja, de quem age e quem sofre a ação: “quando dizemos que X influenciou Y, de fato parece que estamos dizendo que X fez alguma coisa para Y e não que Y fez alguma coisa para X. Mas, quando examinamos um quadro de qualidade ou um grande pintor, notamos que a segunda reação é sempre a mais ativa e forte”. A impropriedade do vocábulo, “de fundo astrológico”, vai de encontro à dinâmica do fenômeno, bastando, portanto, que se atribua “a ação a Y e não a X para que o vocábulário se torne mais rico, diversificado e muito mais interessante”. A partir disso, segue um longo rol de palavras que Baxandall sugere como mais próprias do que a influência: “inspirar-se em, apelar a, fazer uso de, apropriar-se de, recorrer a, adaptar, endender mal, referir-se a, colher em, tomar a, comprometer-se com, reagir a, citar, diferenciar-se de, fundir-se com, assimilar, alinhar-se com, copiar ou imitar, remeter a, parafrasear, incorporar, fazer uma variação de, ressuscitar ou fazer reviver, dar continuidade a, recriar, mimetizar, emular, parodiar, fazer pastiche de, extrair, deformar, prestar atenção em, resistir a, simplificar, reconstituir, aperfeiçoar, desenvolver, defrontar-se com, dominar, subverter, perpetuar, reduzir, promover, responder a, transformar, atacar...”538 Dizer que X influenciou Y, segundo Baxandall, é “antecipar a conclusão sobre uma causa ainda não provada”539. Ao dizermos que X influenciou Y, damos a X uma determinada propriedade (a de ser influente) e, a partir dela, não nos perguntamos sobre os porquês de ter agido sobre Y. No caso do uso de algum dos termos elencados pelo autor, como o de “recorrer a”, há motivos para isso ter acontecido: Y fez uma escolha intencional, a partir de sua profissão e sua história, escolha essa motivada por causas 536 Op. Cit, p. 101. 537 Id. Ibid. 538 Id., p. 102. 539 Id. Ibid. 463 específicas. Em seguida, Baxandall utiliza-se de uma metáfora do jogo de bilhar para explicar a causalidade na arte, onde a bola de bilhar Y (que seria, segundo a terminologia antiga, a influenciada) é a que impulsiona a bola X, toda vez que se reporta a X, modificando então toda a estrutura do jogo (movendo as outras bolas, por conseguinte). Assim, é a partir de Y, e não de X, que o jogo se reestrutura: “as artes são jogos de posição e cada vez que um artista sofre uma influência reescreve um pouco a história de sua arte”540. Baxandall toma a relação entre Picasso e Cézanne como um exemplo dos problemas que está tratando. Segundo o autor, Picasso via Cézanne de várias maneiras: como um grande nome da história da arte, como um “modelo épico de indivíduo determinado”, a partir de suas declarações sobre a pintura, “como parte do problema que Picasso resolvera enfrentar”541 (como é visto nas relações entre a composição e certas poses de Les demoiselles d'Avignon e a série de banhistas de Cézanne), como uma fonte de recursos pictóricos. Resumir todos esses aspectos como sendo a influência de Cézanne sobre Picasso “é confundir referências muito diferentes e negar o elemento ativo e intencional do olhar de Picasso sobre Cézanne”542. Na verdade, segundo Baxandall, “Picasso exerceu uma ação muito determinante sobre Cézanne”543, reescrevendo a história da arte e colocando nela como figura central a obra de Cézanne. Do mesmo modo, sua visão muito particular da obra de Cézanne, e em conjunção com outras referências, como a escultura africana, acaba mudando nosso modo de ver Cézanne: “nunca mais veremos Cézanne sem as alterações que nossa tradição deve ao trabalho realizado sobre sua obra pelas gerações que o sucederam”. O autor ainda faz algumas considerações muito breves sobre o conceito de tradição, “mas de influência não quero falar”544. Falemos, portanto, da crítica de Baxandall, analisando-a ponto a ponto. A primeira questão apontada por Baxandall é sobre o “viés gramatical” da influência. Baxandall parece preocupado em dar preeminência, na relação entre X e Y, ao segundo, ou seja: àquele que viria historicamente depois. Parece-nos evidente que, na relação entre influenciador e influenciado, não apenas o influenciado sofre a ação, mas 540 Idem, p. 103. 541 Idem, p. 104. 542 Idem, p. 105. 543 Id., Ibid. 544 Id. Ibid. 464 também a exerce na medida em que sua obra, tornada pública, ao apresentar as influências, modifica o panorama histórico, teórico e crítico. No entanto, não nos parece que o fenômeno da influência não se dê em primeira instância em uma relação na qual Y (o influenciado) sofre uma ação a partir de X (a influência), que o motiva posteriormente a agir no sentido de fazer uma obra. Por sua vez, essa obra tem como consequência justamente uma outra influência, a saber, a que ela (tornada X) exerce na mudança do panorama histórico, teórico e crítico (que passa a ser o Y da questão). Em segundo lugar, a visão da influência apresentada por Baxandall, tomada a partir de uma relação mecânica e unilateral da influência, “vocábulo de fundo astrológico tão impróprio” 545, parece desconsiderar todos os estudos recentes sobre a influência (não apenas os recentes, mas os que têm contribuído para o conceito desde os anos 1950, conforme vimos). Mais do que isso, identifica esse conceito a partir de uma conceituação que não é sequer aquela antiga, da chamada Escola Francesa, de início do século XX, mas uma visão grosseira dessa escola, desconsiderando as relações dinâmicas entre influenciado e influência que desde há muito tempo estão estabelecidas. Desse modo, a inversão proposta por Baxandall é desnecessária, se considerarmos que os estudos de influência atentam para a importância da obra influenciada como agente influenciador posterior da obra influente. Tal inversão também é, além de desnecessária, equivocada, já que encobre a ação exercida (primordialmente) pela influência sobre o influenciado ao considerar tal ação de uma perspectiva preconceituosa (ou seja: como se houvesse algum problema em ser influenciado, sob alguns aspectos, por uma obra – ecoando, portanto, o dilema moderno). O segundo aspecto da crítica de Baxandall ao conceito de influência realiza-se a partir da sugestão de um conjunto de termos capazes de substituir o conceito de influência. São quarenta e seis os termos sugeridos por Baxandall (se considerarmos que os conceitos de cópia e imitação são coincidentes, assim como os de ressuscitar ou fazer reviver). Todos eles, segundo o autor, seriam capazes de substituir o conceito de influência de modo a torná-lo “mais rico, diversificado e interessante”546. Sem dúvida, os conceitos apresentados por Baxandall são mais ricos e diversificados, mas de uma riqueza e diversificação tal que dizem respeito a um conjunto de características tão 545 Idem, p. 102. 546 Id. Ibid. 465 distintas que não apenas estabelecem relações entre obras além e aquém do conceito de influência, como também são, em sua riqueza, contraditórios entre si. Como substituir o conceito de influência, por exemplo, pelo de cópia (“copiar”, para sermos mais precisos)? Ou como pensar na relação de “fundir-se com” com a de “diferenciar-se de” e pensá-los não apenas como uma coerência entre os dois, como também na possibilidade de serem substitutos do conceito de influência? Ao que nos parece, de todo o rol conceitual elencado por Baxandall, a única questão comum é que todos os conceitos remetem à ação exercida, procurando afastar-se daquela sofrida. Cada um dos conceitos aproximase, distancia-se ou mesmo contrapõe-se ao conceito de influência ou, ainda, faz referência a conceituações como a de H. Bloom, portanto, dentro dos estudos de influência, sem, no entanto, se referir a ele, como no caso de “entender mal” (misunderstand, no original). O terceiro aspecto da crítica de Baxandall ao conceito de influência é que este, novamente por um vício gramatical, anteciparia uma conclusão ainda não provada. Para Baxandall, dizer que X influenciou Y implica não nos perguntarmos sobre as relações estabelecidas a partir disso. Se entendemos propriamente a crítica de Baxandall, ela diz respeito à crítica que nós mesmos fazemos nesta tese, ou seja: a do uso do termo “influência” como, conforme o termo que adotamos a partir de um livre uso da terminologia de Bloom, “uma moeda gasta” na história, teoria e crítica de arte. Ou seja: a palavra “influência” é utilizada para estabelecer relações sem a devida reflexão sobre o seu significado e sobre as relações que ela estabelece. Entretanto, parece-nos que não decorre daí que o problema seja do conceito, mas de um tipo de utilização incorreta, irrefletida, não-consciente, referente a um senso comum descontextualizado das discussões que ao longo de um século vêm sendo realizadas. Desconsiderar, portanto, as pesquisas (principalmente no campo da literatura comparada) que refletem com profundidade e pertinência sobre as relações de influências é não apenas ignorar um conjunto de reflexões pertinentes, como também tomar partido pelo mal uso do conceito como estratégia para desqualificá-lo e “chutar a pedra para bem longe”. Algo que está pressuposto na crítica de Baxandall é sua defesa da intencionalidade, que aliás dá título a seu livro. Ao inverter a relação, o objetivo do autor é destacar a intenção do agente, 466 entendida como “uma condição geral de toda a ação humana racional 547”, mostrar que este faz uma escolha, motivada por causas específicas e determinada a partir de sua profissão, da história, da época, enfim: inserido em uma grade contextual, entendendo que “todo ator histórico e, mais ainda, todo objeto histórico têm um propósito” 548. Uma das características do conceito de influência é justamente sua capacidade de descrever um conjunto de relações que não estão necessariamente inseridas no horizonte intencional do artista influenciado ou de sua obra, dentro do panorama da escolha entre propósitos determinados. Ao contrário, a influência age, muitas vezes, através de mecanismos subterrâneos, inconscientes, se quisermos utilizar a terminologia psicanalítica, que vão de encontro às inclinações e aos intentos do agente (se assim não o fosse, não poderíamos, por exemplo, falar na influência sofrida por artistas que recusam as influências, como é o caso de Iberê Camargo). Essas relações, portanto, fogem de um padrão passível de explicações objetivas e completas a partir de um mapeamento das relações entre o artista, sua obra, seu contexto, suas ferramentas e seus problemas, tais como se estruturam os “padrões de intenção” de Baxandall. A influência, por sua delicadeza, é uma ferramenta mais sútil que dá conta de relações mais complexas que aquelas cobertas pela intencionalidade. Entende-se, portanto, a necessidade de “não querer falar” da influência, ainda que curiosamente ela retorne no discurso pessoal do autor quando, na introdução do seu livro, diz que sua obra “alude vez por outra a questões muito gerais, e eu não poderia esperar agradecer a todos os que tiveram influência nas minhas ideias nessas áreas”549. O quarto ponto da crítica de Baxandall ao conceito de influência estrutura-se a partir de sua metáfora do jogo de bilhar. Mais uma vez, parece haver um problema no entendimento de quando X (a influência) age e quando Y (o influenciado) age. Baxandal parece ignorar que, anteriormente à ação de Y sobre X e sobre o conjunto das bolas, na mudança ou reestrutura da história da arte, há a ação prévia de X (a influência) sobre Y, que desencadeia processos de reação em todo o campo (ou mesa, no caso da metáfora). Aliás, é conscientes desse desencadeamento ocorrido a partir da influência que podemos repetir as palavras (contraditórias no panorama de seu penamento?) de Baxandall: “as 547 Idem, p. 80. 548 Id. Ibid. 549 Op. Cit, p. 30 (grifo nosso). 467 artes são jogos de posição, e cada vez que um artista sofre uma influência reescreve um pouco a história de sua arte”550. Finalmente, a quinta e última questão apontada por Baxandall parte do exemplo da relação entre Picasso e Cézanne. Como vimos, o autor elenca uma série de relações de Picasso com a obra de Cézanne, para nos dizer que não podem ser resumidas como influência. De fato, a série de relações elencadas não podem ser resumidas como a influência de Cézanne sobre Picasso, desde que entendamos “resumir como” no sentido de condensar em poucas palavras e, a partir disso, afirmar tratar-se de uma mesma coisa, ou seja, fazer uma identificação desse conjunto de coisas e a influência (colocar um sinal de igualdade entre esse conjunto de coisas e a influência). No entanto, não seria legítimo pensarmos que esse conjunto de coisas, ou seja, a visão que Picasso tinha de Cézanne “como um expoente da história da grande pintura”, como “um modelo de indivíduo determinado”, como alguém que fez declarações fundamentais sobre a pintura (”tratar a natureza por meio do cilindro, da esfera, do cone”), como um artista criador de uma obra que “fazia aparte do problema que Picasso escolhera enfrentar” ou como uma “fonte de recursos pictóricos”, todas essas coisas contribuíram para que Picasso fosse possivelmente influenciado por Cézanne? Elencar todas essas questões, parece-nos, significa dizer, entre tantas outras coisas interessantes de serem analisadas a partir da variedade dessas afirmações, que há suficientes indícios históricos, contextuais (e mesmo intencionais!) para afirmar que muito provavelmente a hipótese de que Picasso sofreu influências de Cézanne é uma conjectura com indícios contextuais fortes que, por isso, merece ser analisada (não de outro modo a não ser) a partir do cotejo entre as obras de Cézanne e Picasso (na busca de indícios que a confirme ou que sugiram hipóteses novas551). São essas basicamente as questões de Baxandall contra a influência e nossas divergências em relação a elas. Acreditamos que, sobre esse ponto, não é necessário falarmos mais sobre Baxandall. 1.3 Comentário: influências em outros campos 550 Idem, p. 103. 551 Hipóteses como, por exemplo, não uma influência, mas justamente uma contraposição consciente e deliberada que buscou e encontrou outros caminhos pictóricos para responder aos problemas propostos por Cézanne. 468 De forma breve, pensamos ser necessário comentar a respeito do uso da influência como conceito em outros campos, distintos dos da literatura e das artes. Isso mostra, se não a validade, ao menos o alcance e a insistência de seu uso em diversas áreas, o que indica que os estudos de influência não são (apenas) uma obstinação específica de nossa área de trabalho, mas uma “teimosia” compartilhada em um variado espectro de pesquisas. Já tivemos a oportunidade de indicar sua utilização no campo dos estudos matemáticos e probabilísticos, através do artigo de Chroscici e Odinec. Da mesma forma, na arquitetura, encontramos um estudo que analisa a utilização sistemática do conceito, o artigo de Paula Young Lee intitulado “Modern Architecture and the Ideology of Influence”552. O artigo de Paula Young Lee fundamenta-se em uma visão bastante crítica do conceito, partindo de seu uso relacionado às ciências naturais e a um positivismo do conceito (que já tivemos também a oportunidade de criticar). Nos estudos sobre design, o artigo de Kara Olsen Theiding, “Anxieties of Influence: British Responses to Art Nouveau, 1900–04”553, estuda as influências da Art Nouveau nas artes decorativas britânicas. Conforme o título indica, a autora faz uso (bastante genérico) da terminologia de Bloom em sua análise sobre o impacto da Art Nouveau entre os ingleses. Na área das ciências políticas e da história do pensamento político em particular, o conceito de influência também encontra seu uso contemporaneamente, como vemos no artigo de Francis Oakley, “Anxieties of Influence': Skinner, Figgis, conciliarism and early modern constitutionalism”554, que aliás faz um empréstismo, já em seu título, do conceito tal como desenvolvido por Harold Bloom. Basicamente, o artigo de Oakley procura demonstrar a validade da afirmação segundo a qual “o movimento conciliatório e as ideias conciliatórias de finais do século quinze exerceram uma influência importante e demonstrável na formação do pensamento político e constitucional no início da 552 LEE, Paula Young. “Modern Architecture and the Ideology of Influence”. Assemblage, nº 34. Massachusetts: MIT Press, dezembro de 1997. pp. 6-29. 553 THEIDING, Kara Olsen. “Anxieties of Influence: British Responses to Art Nouveau, 1900–04”. In: Journal of Design History Vol. 19 No. 3. Oxford: Oxford University Press (The Design History Society), 2006. 554 OAKLEY, Francis. “Anxieties of Influence': Skinner, Figgis, conciliarism and early modern constitutionalism”. In: Past & Present nº 151. Oxford: Oxford University Press, maio de 1996. pp. 60-110. 469 modernidade”555. Ele o faz alinhando-se ao “recente corpo metodológico de escritos concernentes à viabilidade do modelo da influência como tática explanatória na história das ideias e na história da literatura e da arte”556. Do mesmo modo, nos estudos filosóficos sobre causalidade, a influência é um conceito estudado, criticado e defendido. Exemplo disso é o artigo de Davis Lewis, “Causation as Influence”557 (2000), e o debate a partir deste, nos artigos de Igal Kvart, “Lewis's Causation as Influence”558 (2001), de Jonathan Schaffer, “Causation, influence, and effluence”559 (2001), e de Paul Noordhof, “In defence of influence”560 (2001). Muito resumidamente, podemos indicar que Lewis procura formular um conceito de influência que seja capaz de explicar relações causais. Esses breves exemplos indicam a atual discussão do conceito de influência em diversos campos de estudos. O estudo de cada um deles demonstra que esse conceito, por sua universalidade, é capaz de estabelecer inter-relações nesses campos. Isso revela que, se a literatura comparada não é apenas “um caso particular da crítica de influência”, como G. Rudler, o comparatista francês, afirmou em 1923, ao menos a influência transformou-se ela mesma em um conceito suficientemente genérico e capaz de transitar, em sua vocação comparatista, por diversos campos de estudos, contribuindo para o enriquecimento particular de cada um deles. O modo particular de sua contribuição para o nosso problema é o que passamos a analisar no subcapítulo que segue. 2.Influência é desenho: proposta teórico-metodológica 555 Op. Cit. p. 61. 556 Idem, Ibid. 557 LEWIS, David. “Causation as Influence”. In: The Journal of Philosophy XCVII. Nova Iorque: Columbia University, 2000. pp. 182-197. 558 KVART, Igal. “Lewis's Causation as Influence”. In: Australian Journal of Philosophy, vol. 79 n. 3. Crawley: The University of Wessern Australia, setembro de 2001. pp. 409 – 421. 559 SCHAFFER, Jonathan. “Causation, influence, and effluence”. In: Analysis, vol. 61, n. 1. Oxford: Oxford University Press, Janeiro de 2001. pp. 11-19. 560 NOORDHOF, Paul. “In defence of influence”. In: Analysis, vol. 61, n. 4. Oxford: Oxford University Press, Outubro de 2001. pp. 323-327. 470 Este subcapítulo constitui-se em nosso aporte a uma teoria e a uma metodologia para o estudo da influência a partir do desenho. A ideia que permeia este subcapítulo – como de resto toda esta tese – é que a influência é uma ferramenta de análise da arte que deve se adequar à especificidade de seu objeto de estudo. Com esse sentido é que procuramos aqui a especificidade dessa ferramenta teórica e metodológica no campo específico do desenho. Se a ferramenta se adapta e se conforma para a análise do desenho, também o desenho, por sua vez, não permanece intocado e imune às contaminações do conceito. É, portanto, a partir dessa conjunção entre desenho e influência que trabalharemos, ou seja: no entendimento dessa mútua transformação da ferramenta para satisfazer as especificidades do objeto e do objeto561 (no que se refere à sua interpretação) sob a ação da ferramenta. É a partir dessa relação de transformações mútuas que deve ser entendido o título deste subcapítulo: “influência é desenho”. O que buscamos é uma conjunção (lógica) entre dois termos, e não uma identificação, isto é: não pretendemos dizer que todos os aspectos do desenho se identificam com a influência, tampouco que todos os aspectos da influência se identificam com o desenho, mas sim que existe um campo comum entre ambos e que pretendemos, ao identificá-lo ou, o que é o mesmo, construí-lo ao delimitá-lo conceitualmente, trabalhar inseridos nele. Outra consideração importante é que, nesse sentido de ser uma conjunção e um campo comum, tanto poderíamos dizer que “influência é desenho” quanto que “desenho é influência” (e, ao longo desses subcapítulos, veremos a utilização ora de um, ora de outro, quando quisermos salientar um ou outro aspecto dessa conjunção, ainda que tenhamos optado por apresentar nos títulos o termo “influência é desenho”, para dar mais ênfase ao tema mais dominante neste capítulo – do mesmo modo que o capítulo anterior foi mais dedicado ao desenho, embora também fazendo referência à influência). Essa conjunção, dentro da estrutura desta tese, é formada das análises sobre o desenho feitas no capítulo segundo, das análises sobre a influência feitas na primeira parte deste capítulo terceiro e dos aportes novos surgidos dessa mesma conjunção. 561 Quando utilizamos a terminologia “objeto”, “objeto de estudo” ou “objeto de trabalho”, não estamos caracterizando os desenhos como objetos no sentido de entidades simplesmente passivas (a própria relação ativa destes com a ferramenta metodológico-conceitual é evidência disso). Referimo-nos, ao fazê-lo, a uma terminologia comum à investigação em geral, tal como um historiador, por exemplo, refere-se à “Civilização Egípcia” como seu “objeto de estudo”. Não pensamos que os desenhos sejam objetos de estudo menos (ou mais) importantes que a civilização egípcia, razão pela qual não consideramos inapropriado o uso do termo, desde que bem entendido. 471 Sendo formadas a partir das análises já realizadas sobre as teorias de influência e de desenho, desenvolvidas ao longo das tradições teóricas desses campos de estudo, faremos referência a tais teorias na formulação de nossa contribuição particular. Entretanto, é preciso advertir que, entendendo esses estudos prévios como uma espécie de patrimônio teórico/cultural adquirido e apresentado nesta tese, tomaremos a liberdade de, a partir daqui, não repetirmos a cada momento de nossa formulação as questões teóricas já apresentadas. Serão indicadas tais formulações, quando pertinentes, a partir de sua validade ou negação já apresentadas previamente, mas deixando um espaço de liberdade criativa que não sobrecarregue as formulações a seguir com repetições desnecessárias do que já foi desenvolvido, criticado e analisado previamente. Entendemos, nesse sentido, que não será necessário, por exemplo, voltarmos a explicar que, quando estivermos utilizando o termo “angústia da influência”, que ele se refere às teorizações desenvolvidas por Harold Bloom. Partindo dessa conjunção entre influência e desenho, identificamos três grupos de características que abrangem um conjunto de relações que nos parecem significativas tanto para distinguir essa conjunção “influência é desenho” quanto para instrumentalizá-la no sentido de ela mesma tornar-se, por sua vez, ferramenta de trabalho para o estudo da obra de Iberê Camargo, a que nos dedicaremos no subcapítulo final desta tese. Essa tríade de características não abrange o conjunto de todas as relações possíveis da influência entendida como (sob a perspectiva do) desenho, nem do desenho entendido como (sob a perspectiva da) influência. Não sendo abrangente (absolutamente abrangente), também não se constitui em um método mecânico de análise, fechado em si mesmo e aplicável a quaisquer desenhos, nem prescinde de novas pesquisas que identifiquem novas características além dessas três. No entanto, essas três características, ao espelharem as três características do desenho estudadas no capítulo II, são as que mais se harmonizam com o plano geral desta tese, com os temas tratados e, sobretudo, tendo sempre a presença, ora tácita, ora explícita, da obra de Iberê Camargo, são aquelas (assim esperamos) mais relevantes na análise de sua obra de desenhos. Segue-se, então, a análise dessas três características. 472 2.1 Influência é desenho no tempo: diacronia e sincronia O primeiro encontro do desenho e da influência acontece nas relações que ambos, conjuntamente, estabelecem com o tempo, seja na perspectiva de sua sucessão diacrônica, seja na simultaneidade complexa de sua sincronia. Em sua perspectiva diacrônica, a influência desenha-se a cada momento em que, na passagem visível da linha sobre o suporte (que evidencia e conforma o tempo, como vimos no capítulo segundo), o tempo a que ela se refere não é apenas daquele compreendido pelo tempo preciso do gesto da mão que traça a linha. Um tempo passado se reproduz na simultaneidade daquele gesto, ao conter nele a busca de um gesto que é influência anterior. Assim, desenho é influência ao dirigir-se ao passado constituído por outros desenhos – suas influências – anteriores a ele. Influência é desenho ao ser a memória daquele gesto e um dos elementos que o desencadeia, mas mais do que isso: ao ser desenho daquele passado. A influência, assim, como elemento ativo do artista influenciado, é formada pela reformulação e criação daquele passado que se desenha /designia pelo artista. Em sua perspectiva sincrônica, já vimos que o desenho é acúmulo de tempos distintos tornados presentes e simultâneos no espaço do suporte. Desse modo, ao ser a memória de várias linhas (tempos) a partir de uma simultaneidade, o desenho é influência sob a perspectiva sincrônica ao apresentar, em um tempo único, as variadas influências surgidas em tempos distintos e a partir de fontes também de origens temporais distintas. A influência é desenho sob a perspectiva da sincronia, na medida em que o artista torna aquela reformulação do passado marca simultânea de suas influências no suporte: no momento em que as influências sofridas se apresentam como desenho. Em sua intrincada relação com o tempo, desenho e influência encontram-se na medida em que são, ambos, uma memória a partir de uma simultaneidade – seja como linhas (do tempo, portanto, marcando uma memória), no caso do desenho, seja como lembrança de outras obras (portanto, referindo-se também ao tempo e à memória), no caso da influência. Em ambas, a simultaneidade ocorre a partir do artista, como “cadinho” que reúne os tempos distintos de suas várias fontes de influência, na simultaneidade de 473 sua existência atual, e se expressa na simultaneidade do seu desenho (depósito de vários desenhos que se precipitam como vestígios de suas influências), que por sua vez é constituído da simultaneidade das linhas que são a marca de tempos diversos. Se o desenho é capaz, conforme declaramos no capítulo segundo, de concentrar em si mesmo camadas de outros desenhos, os quais são suas influências, e se essas camadas (ponto nodal da influência e do desenho) apresentam-se sob a perspectiva dupla de uma sincronia e de uma diacronia, é preciso vermos de que formas elas ocorrem, ou seja, é preciso que investiguemos a dinâmica dessas precipitações de desenhos no desenho. O que sugerimos é que essa dinâmica entre influência e desenho ocorre a partir de um diálogo entre proximidade e distanciamento. A influência, quando vista sob a perspectiva do desenho, ocorre tanto como uma proximidade quanto como uma distância. Por distanciamento, entendemos a recorrência a fontes de influência distantes historicamente e geograficamente, que por isso são próprias das características diacrônicas. Por proximidade, entendemos as relações que um artista estabelece com suas fontes de influência próximas tanto geográfica quanto temporalmente, que por isso são características de relações sincrônicas. Existe uma diferença fundamental na relação do artista com esses dois tipos de influências que procuraremos definir, mostrando suas características específicas. A influência vista sob a perspectiva diacrônica diz respeito à influência do passado e de sua distância. Referimo-nos aqui àquelas fontes que influenciam o artista quando em contato com a tradição artística. É nesse aspecto que a influência é vista ligada ao conceito de tradição, tal como vimos em T. S. Eliot, a relação criativa estabelecida pelo artista com seus influenciadores do passado e sua inserção na tradição artística ao deixar-se influenciar. Esse deixar-se influenciar é ativo não apenas por uma entrega do artista a essas influências do passado, mas também por sua busca. O artista, em seu desejo por inserir-se na tradição, busca ser seu herdeiro. Anseia por isso. A “angústia da influência” desse passado distante é, portanto, segundo nosso ponto de vista, uma “angústia pela influência”. Ao contrário de Harold Bloom, não vemos, em relação aos grandes artistas do passado, angústia no sentido de diferenciar-se deles, buscá-los negando-os, mas uma ânsia pelo próprio encontro. Encontro que é, desde já, inalcançável. Esse é outro motivo pelo qual não há angústia nessa influência: é 474 impossível chegar àqueles grandes artistas do passado, esse encontro é uma impossibilidade histórica na mesma medida em que é um desejo. O peso da tradição é o inverso do peso da influência no sentido em que é o peso daquilo que se é incapaz de fazer, daquilo que nunca será alcançado. Se é angústia, não é da influência, mas da falta dela, porque o artista não vê em sua obra a marca daquele passado tornado glorioso pela história. Além da angústia “pela influência”, outra angústia também se estabelece quando vista sob a perspectiva diacrônica, desse passado histórico (da tradição). Essa outra angústia é de um tipo genérico e identifica-se ao problema clássico expresso pela interrogação “o que fazer quando tudo já foi feito?” (já apontado no pensamento de Walter Jackson Bate sobre a influência), e não do tipo de uma identificação com alguma obra/artista (identificação ansiada e não-alcançada). A influência vista sob a perspectiva sincrônica diz respeito à influência do presente e da proximidade. Nossa referência agora passa a ser aquelas obras e artistas que estabelecem uma proximidade com o artista influenciado quer de contiguidade temporal (seus contemporâneos), quer de contiguidade espacial (seus conterrâneos). Aproximamonos aqui daquele téte-a-téte descrito por Claudio Guillén, da relação pessoal, próxima, entre um e outro artista. No entanto, pensamos que essa proximidade não anula a possibilidade de análise ao não desaparecer na consciência do artista, mas pela possibilidade de, em alguns momentos, fazer-se visível na obra. Eis aqui também os elementos que nos parecem mais próximos de uma necessidade de negação da influência. A influência do passado que é vista como inserção na tradição e toma um acento positivo aqui se torna – sob a perspectiva do elogio moderno à distinção – um fardo e uma marca que não se quer carregar. Aqui também, nessa proximidade, encontramos a “angústia da influência” em todos os seus matizes psicológicos descritos por Harold Bloom. É do artista ao lado que é preciso se diferenciar na mesma medida em que é justamente dele, por essa proximidade, que surgem as maiores influências. É a proximidade o tabu da influência e sua principal marca, na mesma medida em que a proximidade é uma das principais características do desenho (a proximidade física, aliada à proximidade com o pensamento do artista). Influência e desenho são proximidades na mesma medida em que a angústia da influência é uma questão de proximidade. Entendida dessa forma, como proximidade, é possível compreendermos por que um 475 artista, como Iberê Camargo, constrói ao mesmo tempo um discurso de elogio à grande tradição e de encobrimento das influências. Se o peso da tradição é o peso da consciência daquilo que se é incapaz de fazer e, portanto, o avesso da influência, o peso da influência é a consciência daquilo que se faz visto na obra do outro e na minha, é o peso desse espelhamento sincrônico das similitudes na proximidade. Duas angústias opostas: a da presença do presente e a da ausência do passado. Entre essas influências próximas e sincrônicas, a mais absoluta delas é aquela do próprio artista sobre a sua obra, que, ao ser vista como uma alteridade, também estabelece uma relação entre próximo e distante na mesma medida em que a estabelece entre o que lhe é próprio e o que lhe é alheio. Essa relação é diacrônica na medida em que o artista estabelece relações de influência com sua obra do passado, retornando questões antigas de seu trabalho. Entretanto, é uma diacronia (aparentemente contraditória) de proximidade, já que retorna a si mesma. Essa relação é sincrônica quando acontece na proximidade de uma continuação daquilo que se está realizando, algo tão próximo que não se tem a noção de uma alteridade, razão pela qual não pertence ao terreno da influência (diferentemente daquela influência de si que analisaremos no subcapítulo 2.3). As relações de proximidade e distanciamento dizem respeito também ao problema geográfico de um artista inserido na periferia artística (além de política, econômica e cultural). Nesse aspecto, tais relações complexificam-se ao mostrar uma dinâmica de aproximações (ou tentativas de) com a distância na mesma medida em que se busca marcar a diferença com o que lhe é próximo. Portanto, a partir da lógica da inevitável dependência cultural, tal como vimos na análise da obra de Antônio Cândido, entendemos como essas relações se tornam intrincadas. Conforme veremos, quando da análise da obra de Iberê Camargo, os "impulsos de cópia e rejeição"562 apresentam-se muitas vezes em influências da proximidade temporal e geográfica (de artistas brasileiros seus contemporâneos) na mesma medida em que em seu discurso (conforme vimos no primeiro capítulo) indicam a tentativa de isolamento e silêncio. Acompanhar a dinâmica da incorporação de influências próximas e distantes, sincrônicas e diacrônicas, permite-nos ver a relação que se estabelece entre uma e outra 562 CÂNDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento" (1969). In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 157. 476 nessa incorporação. A dinâmica que encontramos ao analisar o percurso da influência (e aqui nos referimos especificamente ao nosso encontro com os desenhos de Iberê Camargo em suas relações de influências sofridas) é que, em um primeiro momento, a influência da tradição acontece não através de uma relação direta com esse aspecto distante/diacrônico (o da tradição), mas mediado por influências próximas (e sincrônicas). Assim, nesse primeiro momento, o da aprendizagem, o acesso à tradição acontece através da mediação do mestre (o qual, frente ao Passado da tradição, ainda que seja alguém mais velho, é contemporâneo ao jovem artista e próximo a ele). Essa aquisição das influências do passado mediadas pelo presente é simultânea às influências sofridas de seus outros contemporâneos, o que faz desse primeiro momento fundamentalmente sincrônico em termos de aquisição das influências. O segundo momento, de maturidade artística, de aquisição de uma poética própria e do desenvolvimento desta, é marcado, de um lado, por uma busca mais direta das influências do passado (e por um aumento da “angústia pela influência”, na medida em que o conhecimento do passado também se torna mais vasto); por outro, na medida em que o artista é inserido em um circuito artístico (do mercado da arte, de exposições, de debates) e que, portanto, amplia o conhecimento de seus contemporâneos e das questões de sua época, a influência de seu tempo, sincrônica, ligada a essa proximidade, torna-se mais vasta (processa-se um alargamento dessa proximidade, que passa a ser mais temporal do que geográfica). Finalmente, ao fim de sua carreira, tendo buscado as influências da tradição (nem sempre encontradas) e encontrado as influências de seus contemporâneos (quase sempre negadas), o artista volta-se àquela influência de si mesmo, um recolhimento que lembra o vazio descrito por Bloom como “Askesis” (a ascece do artista), que tem como resultado não o “retorno dos mortos” (tal como “Apophrades”), mas um retorno a si mesmo, ao retomar os temas de sua própria obra (agora vertidos em representação da influência, conforme veremos no subcapítulo 2.3). Nesses movimentos de proximidades e distâncias, sincronias e diacronias, sístoles e diástoles artísticas, notamos que a influência da tradição surge mais como desejo do que como fato visível na obra (e, quando visível, aparece mais como citação direta do que propriamente como influência), enquanto a influência próxima parece ser aquela que de fato se apresenta com mais força na obra do artista na mesma medida em que é a mais 477 negada. Força, portanto, fundamentalmente subterrânea. Subterrânea ou celeste. Assim, retornamos àqueles aspectos espaciais vistos no tópico “2..4.1 O desenho no tempo: diacronia e sincronia”, do capítulo segundo da tese, no que diz respeito à sua metáfora ligada à astrologia. Influência é desenho no espaço, ao estabelecer-se como relação sincrônica entre artista influenciado e seus colegas que o influenciam (e que podem, por sua vez, também ser influenciados, mesmo que isso seja outra questão que não estamos abordando nesta tese). Relação constelar: no desenho, a influência apresenta-se como esses muitos pontos em uma mesma sincronia (as várias influências), tais como as estrelas. Um desenho é uma constelação de muitas influências/estrelas. Influência é constelação por ser uma precisa convergência: entre duas imagens aparentemente nada se encontra, no entanto, é esse o local - ponto intermédio - o sítio preciso de muitas convergências. Convergências imagéticas: lugar de florescimento de imagens. Lugar da origem de uma imagem. Uma imagem cabe em outra imagem a partir do que ocorre nesse lugar comum que é prenhe de imagens: o lugar que lhes dá à luz (outra metáfora estelar). Esse reino médio é lugar fluído, é influxo constante (daí o termo influência, derivado de fluido), e as imagens que estão ao seu lado direito e esquerdo (a influência e a influenciadora) são justamente coagulações desse fluxo contínuo das imagens. 2.2 Influência é desenho: objetividade e subjetividade, razão e emoção Influência é desenho na perspectiva da relação que ambos (conjuntamente) estabelecem entre objetividade e subjetividade, razão e emoção, sob diversos aspectos que passaremos a analisar. Se o desenho, como vimos, funda um pensamento específico, “pensamento desenhante”, é possível concebermos um pensamento de uma “influência desenhante”. Sob a perspectiva dos aspectos objetivos e racionais, já vistos quanto ao desenho, que se relacionam à clareza da linha, à ideia de projeto objetivo, de exposição de um pensamento cristalino, e que têm origem no disegno interno, essa influência desenhante apresenta-se como a clareza que a influência adquire ao ser analisada sob a perspectiva 478 do desenho. Se o desenho é projeto racional, pode-se também pensá-lo como projeto para si mesmo e, nesse sentido, sob a perspectiva da influência, revela-se como o campo em que se projetam as influências sofridas, onde elas surgem como padrão, como forma cristalizada e objetiva daquilo que, anteriormente, era subterrâneo e interior no artista. Assim, influência é disegno externo, se entendida como expressão objetiva de um pensamento desenhante sobre a influência. Sob a perspectiva da subjetividade ou daquilo que chamamos de emoção, influência é desenho sob dois aspectos. Em um primeiro nível, a influência é disegno interno, uma vez que se identifica com a própria ação de influenciar-se. Em um nível seguinte, a influência é disegno externo, na medida em que essa relação expressa a individualidade dessa criação na concretude desta (no seu fazer: desenho sobre o suporte). Se o desenho é o local em que o individual, o íntimo e o próximo se apresenta de maneira mais evidente, como vimos no capítulo anterior, pensar a influência como desenho é identificar um campo em que emergem as relações íntimas do artista com as obras que lhe são fontes de influências. Assim, ainda que a influência, para o crítico, para a história da arte, só exista na evidência da obra, ela se forja em uma relação subjetiva e interna, que acontece como um desenho prévio ao desenho, como esse disegno interno que é desígnio e desejo da concretização física, visível, das influências. Ela se refere, portanto, a todas essas relações, complexas e provavelmente inexplicáveis, da ação de influenciar-se. Sobre essas relações específicas, ou seja, sobre o que se passa entre o artista e as obras que o influenciam, pouco se pode falar. O que podemos falar é do que se dá a reconhecer depois, como aspectos subjetivos da influência como disegno externo. Sabemos de sua origem nesse terreno do qual não vemos possibilidade de falar apenas como manifestação na obra. Falar da influência é como que apontar para um lugar distante, para um território que nunca visitamos, que nunca poderemos visitar: território do coração e da mente do artista. Nesse apontar, no reconhecimento de suas evidências, desenho é influência ao constituir-se num campo que é documento de si mesmo, documento para o estudo das influências no desenho. Ao desenhar-se como influência, o desenho aponta para as 479 relações de influência que estabelece, o que significa dizer que as reconhecemos, na medida em que ele nos dá a reconhecer-se ao apontar para si mesmo. E aponta também para a particularidade dessas relações. Em sua sensibilidade, o desenho afina-se com a delicadeza da influência como ferramenta de análise. Um objeto de extrema sensibilidade, capaz de captar, tal como o filme fotográfico, qualquer pequena sutileza de mudança na poética de um artista e mostrá-la em primeiro lugar, justamente por ser esse o lugar de exercício, da experimentação. Desenho é influência ao desenhar-se sempre de modo único: não encontramos dois desenhos, sob o mesmo conjunto reconhecível de influências, que sejam iguais. Ao desenhar-se como influência sob a perspectiva da subjetividade, cria-se um espaço único e irrepetível onde o artista pode desenhar suas influências, ou seja, disegno externo, se entendido como expressão não apenas objetiva (que se objetiva, que se torna material e visível), mas também subjetiva (no sentido de expressão daquela intimidade do primeiro nível e através desse ordenamento único e individual dessas influências) de um pensamento desenhante sobre a influência. Ao falarmos da relação entre influência e desenho sob a perspectiva da relação de objetividade e subjetividade, esta se estabelece não apenas entre o artista, suas influências e sua obra. É possível também analisá-la sob a perspectiva do trabalho daquele que analisa esse campo da influência que é desenho. E é a partir desse ponto de vista, que é o nosso, o do crítico, teórico e historiador da arte, que voltaremos à metáfora da constelação e do trabalho de constelar. Sob a perspectiva racional, a análise do campo da influência com o desenho relaciona-se primeiramente ao problema da objetividade nas identificações das obras que influenciaram o trabalho que se está estudando. Em segundo lugar, essa perspectiva racional diz respeito à questão da objetividade no estudo contextual da obra, ou seja, desse constelar mais amplo (de uma reflexão sobre sua possibilidade), que liga a obra à sua época, ao local onde surge, ao sistema das artes no qual está inserido. Quanto à objetividade na identificação das obras que influenciaram o trabalho que se está estudando, sabe-se primeiramente - desde sempre - que essas obras existem, 480 são concretas como as estrelas, na metáfora da constelação, o são: temos aqui aquela objetividade da influência reclamada por Hermerén ao caracterizá-la como “questão de fato”. Essa objetividade é anterior à própria identificação e diz respeito à certeza de que toda obra é sujeita ao trabalho de investigação de influências, ainda que esse trabalho se mostre por vezes infrutífero quanto à identificação dessas obras. Essa objetividade estabelece-se, assim, em um meio termo, em um tempo entre a realização da obra sob influência (ou seja: a criação, pelo artista, desse campo “influência é desenho”) e a identificação, pelo teórico, de seu campo de trabalho a partir de sua atividade constelar. Objetiva como a visão de um céu estrelado, sem a subjetividade de suas escolhas constelares, já que anterior a ela. A outra questão objetiva diz respeito à objetividade no estudo contextual da obra. Fazemos referência aqui à relevância e ao alcance ou possibilidade de um estudo que leve em conta os pontos de contato entre esse campo que se constrói, “influência é desenho”, e sua época histórica e seu lugar. Podemos dizer, com Hermerén, que é necessário que a obra que influencia tenha vindo antes (ainda que de uma anterioridade recente) à obra influenciada, portanto, contextualmente é evidente que o momento histórico de uma obra se relaciona às questões de influência. Se isso se refere a algo óbvio, ou seja, que, por exemplo, Iberê Camargo em 1940 não poderia ser influenciado pelos “bólides” de Oiticica realizados nos anos 1960, torna-se mais complexo ao analisarmos fatores mais sutis e ao mesmo tempo mais amplos, como o contexto histórico geral das décadas de 1930 e 1940 e a obra de Iberê Camargo. Objetivamente, o que se pode afirmar, nessas relações contextuais, é sobre o que não é possível. O possível é sempre aberto a muitas indeterminações cujo mapeamento não se prende a uma objetividade do nível a que estamos fazendo referência aqui. Assim, influência é desenho para o teórico, nos aspectos objetivos da contextualização, ao ser possível desenhar objetivamente um contorno bastante amplo, mas bastante rígido, de uma fronteira entre possibilidades e impossibilidades históricas da influência, tendo-se dados históricos consistentes tanto da época quanto do lugar. Trata-se, portanto, de um processo (tal como o da identificação objetiva das obras analisadas) anterior à atividade constelar. Diz respeito a uma cartografia celeste geral a partir da qual partiremos para nossa atividade de desenhar as constelações de influências. 481 Essa é uma constelação que precisa ser desenhada por aquele que a investiga, e aqui temos a questão subjetiva daquele que analisa a partir do campo “influência é desenho”. É do trabalho daquele que estuda as influências ligar esses pontos, traçando um desenho que é particular àquele que analisa (do mesmo modo que, conforme vimos, o desenho das influências é particular a cada um que é influenciado). Assim, é a partir dessa subjetividade que podemos entender a influência sob a perspectiva de um juízo de valor, tal como caracterizada por Claudio Guillén. Do mesmo modo, entendemos aqui por que a influência, conforme afirmam Machado e Pageaux, é sempre uma hipótese. Ao ser entendida como constelação, desenho é influência ao constituir-se no momento de sua conjugação e delineamento próprios à sua interpretação. Desse modo, entendemos a delicadeza do conceito de influência – instrumento que só existe a partir da conjunção com seu objeto –, ou seja: interpretação de situação dada em um momento de conjunção específica, tal como o mapa celeste, interpretado pelos antigos astrólogos. Nesse sentido, entendemos, como já havia afirmado Hassan (conforme vimos anteriormente), que a especulação e a incerteza são inevitáveis. O estudo da influência é, portanto, o traçar (desenhar) dessas imagens intersticiais no mesmo momento de sua identificação (identificar e desenhar são, para o intérprete das influências, ato contínuo). Influência é desenho para o investigador que constela seu campo de estudo tanto sob a perspectiva de uma intepretação que, mesmo alicerçada sobre questões objetivas (como vimos anteriormente), é sempre subjetiva. A identificação das influências dar-se-á sempre por um trabalho sensível em relação às imagens e expor-se-á por um trabalho de convencimento (como todo o convencimento, também composto de ingredientes objetivos). Convencimento nem sempre alcançado, porque sempre será uma tentativa de estar presente em um local que sabemos estar definitivamente ausente. 482 2.3 Influência é desenho: representação e representação da influência Influência é desenho, sob a perspectiva da representação, na medida em que a influência se constitui representativamente na obra ao desenhar-se. Um desenho, todo o desenho, sendo representação de algo, inscreve-se (também, e entre outras coisas) como uma representação da influência. Desenho, conforme vimos no subcapítulo 2.4.3 do segundo capítulo (“O desenho, a representação e a representação dos desenhos), tem como característica comum às outras artes o fato de ser uma representação. Como representação, é “algo que está no lugar de outra coisa”563, como observa Arthur Danto. Transpondo essa concepção para o campo comum que estabelecemos pela conjunção “influência é desenho”, ao pensarmos nessa representação que marca uma ausência, é primeiramente aos desenhos e às obras que lhes serviram de influências o que essa representação faz referência. Desse campo emergem, portanto, as presenças já como um outro desenho e como marca de influência, de muitas ausências. Assim, influência é desenho ao criar um campo que não se identifica com as influências, mas que as designa ao desenhá-las. Influência é desenho ao ausentar-se de si mesma, na medida em que se transforma em marca de si: deixa de ser a influência propriamente dita ao mostrar-se como representação da influência. Essa ausência, sendo caracterizada por uma dessemelhança, é fundamental para que entendamos a obra influenciada como algo essencialmente distinto de suas influências. Ao ser representação das influências sofridas, difere delas e constitui-se em objeto autônomo. A semelhança é a marca que identifica suas influências, que identifica o que de alheio é capaz de recompor-se como próprio; portanto, está na semelhança, em algum nível de semelhança, a possibilidade mesma de um estudo sobre influências. Ao mesmo tempo, ao contrário, é justamente sua dessemelhança o que marca sua identidade própria. Ser influenciado é, então, também ser essencialmente diferente de suas influências, na mesma medida em que é semelhante. Do contrário, não estaríamos mais falando de influência e estaríamos no terreno da cópia, da colagem, da reprodução, da citação. Essa dessemelhança é engendrada pelo artista a partir das próprias influências, 563 DANTO, Arthur. La Transfiguración del Lugar Común. Una Filosofia del Arte. Barcelona: Paidós, 2002. p. 46. 483 do modo que as representa. Nesse sentido é que podemos afirmar que a influência, sendo representação, sendo desenho, é original. Cada obra reconstrói originalmente suas influências justamente porque essa reconstrução é realizada no terreno representativo e porque este, ainda que necessite de uma semelhança, precisa também de uma dessemelhança que lhe é constituinte. É nesse sentido também que entendemos a "questão de estômago", tal como expressa por Valéry: a perfeita digestão que confere originalidade à influência não é outra coisa do que sua transformação em representação daquelas influências. Digestão é, portanto, representação. Ao representar as outras obras, como influências, em sua obra, o desenho apresenta uma espécie de narração íntima da história da arte. Como vimos, o desenho é a origem da escrita. Se o desenho marca essa origem, por seu turno, podemos dizer que também a influência, como fenômeno, é um tipo de desenho que marca o traço de origem de uma obra. Por ser possível falarmos de influências distintas em uma mesma obra, a origem perde seu sentido único, ou melhor, ganha um sentido múltiplo: toda obra, sob a perspectiva da influência, passa a ser originária de múltiplas origens. Nesse sentido, a própria estrutura da história da arte, quando narrada pelo artista influenciado e em sua obra, é uma história da arte diversa, múltipla. Isso indica a validade do conceito de influência para o entendimento da história da arte não como uma narrativa unilinear, mas composta de muitas linhas de força. “Cada pintor resume à sua maneira a história da arte”564, como afirma Deleuze. A narrativa histórica da arte passa a ser também algo que se liga de um modo constelar à identificação objetiva e à subjetividade dos desenhos que historiador e artista, cada um a seu modo, realizam. Entendemos, assim, por que o museu imaginário de Malraux não é apenas o museu das imagens, mas também o museu da imaginação. Também é como museu da imaginação que podemos supor que a identificação de obras como fontes de influência se liga à presunção de um conhecimento compartilhado sobre essas obras quando tratamos de artistas suficientemente conhecedores da história da arte e da arte de seu tempo (como é o caso de Iberê Camargo). Essa narrativa da história da arte também o é como narrativa da sua própria história artística. Vista nesse sentido, a influência é desenho sob a perspectiva da 564 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. (2002) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. p. 123. 484 representação ao tornar-se representação de si mesmo. A partir do "imitar a si mesmo"565, proposto por Valery, indicamos aqui um representar a si mesmo através da influência de si. Assim, na perspectiva de sua obra, o artista passa a retomar retrospectivamente os temas que lhe são caros, não mais os apresentando como questões do seu trabalho. O que vemos agora é esses temas retornarem como questões, representando as questões de seus trabalhos e, nesse aspecto, desenhando influências ao representarem-se como tais. Paul Klee, em seu “Credo do Criador”, de 1920, apresenta sua famosa afirmação: “a arte não reproduz o visível: torna visível”566. Situando nossa reflexão no ponto de convergência do desenho e da influência, podemos afirmar que o desenho não reproduz (como cópia) as influências, mas faz as influências, uma vez que é representação criativa delas. É a partir disso que a influência se torna uma espécie de invenção. Inventa-se no desenho (ao desenhar) a influência. Inventa-se, sob a perspectiva da representação, em sua obra, a obra dos outros artistas. Em seu trabalho de síntese e reorganização das influências sofridas, ao representá-las em seu desenho, o artista inventa determinadas características de outros artistas. É preciso um trabalho imaginativo e de síntese que busque unificar as características de determinado artista, as quais nunca são tão unificadas quanto a visão que o artista influenciado imagina e elabora/desenha a partir dessas características. Ainda que próxima do conceito de misreading (tal como elaborado por Harold Bloom), a concepção de uma invenção através da representação, e do jogo de semelhança e dessemelhança que lhe é característico, não parece mais adequada para esse espaço que se funda ao conjugar desenho e influência. 565 VALERY, Paul. Tel Quel. Paris: Gallimard, 2006. p. 257. 566 “Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar” KLEE,Paul. “Schöpferische Konfession”, In Paul Klee Schriften. Rezensionen und Aufsätze (Org. Geelhaar). Köln: DuMont, pág. 118. KLEE, Paul. Escritos sobre Arte. Lisboa: Cotovia, 2001, p. 38. 485 3. Análise da influência na obra de desenhos de Iberê Camargo “Nenhum pensamento original desse homem inesgotável se assemelha a algo sem mistura” T. W. Adorno (sobre Walter Benjamin) Este subcapítulo abrange aquilo que no subcapítulo 4.1 do segundo capítulo desta tese (“Esclarecimento dos três níveis de análise dos desenhos de Iberê Camargo”) denominamos de “terceiro nível da análise”. Trata-se, portanto, da análise daqueles desenhos previamente identificados (no subcapítulo 4.2 - “O segundo nível de análise: mapeando mudanças e identificando os desenhos-chave para a análise”, do mesmo segundo capítulo). Esses desenhos serão examinados sob a perspectiva da influência, confrontando-se os desenhos com as teorias propostas no subcapítulo 2 deste capítulo (Influência é desenho: proposta teórico-metodológica). O segundo nível de análise, desenvolvido no capítulo anterior, serviu-nos para termos uma ideia geral da obra de desenhos de Iberê Camargo e fundamentalmente para acompanharmos as transformações pelas quais essa obra passou ao longo das cinco décadas de trabalho do artista. Transformações não podem ser necessariamente identificadas como derivadas de influências recebidas, e isso nos parece que se deve a dois grandes motivos. O primeiro deles é que a influência de outras obras não é o único elemento motriz da poética de um artista. Muitos outros elementos compõem a formação de uma obra e são de número e de características tão diversos que (e esse é um dos princípios que norteiam este trabalho e nosso pensamento sobre arte de modo geral) não pensamos ser possível indicá-los todos ao ponto de termos um mapa explicativo das motivações e causas objetivas da criação de um trabalho567. Indicar as influências, portanto, é sempre indicar uma das características que podem compor a formação de uma obra e, como falamos até aqui, consideramos esse um elemento significativo para o esclarecimento de uma série de relações estabelecidas pela obra, razão pela qual seu estudo se justifica. O segundo motivo (de acordo com o qual as transformações em uma 567 É nesse sentido que nos afastamos, por exemplo, da chamada crítica genética, por não acharmos capaz de ser possível definir com precisão os motivos e causas de qualquer obra de arte. 486 obra não podem ser necessariamente identificadas com derivadas da influência) é porque o trabalho de identificação das influências compete àquele que as analisa, o que nem sempre é alcançado. O sucesso ou fracasso de tais identificações implica o conhecimento suficiente da obra do artista, de sua inserção no sistema das artes, do contexto artístico da época e um conhecimento mais amplo da história da arte no sentido de articular todas essas questões. Portanto, ainda que o trabalho no campo dos estudos da influência não se restrinja ao acompanhamento detetivesco das influências sofridas, mas a um entendimento mais amplo da questão (o que implica, entre outras coisas, o estudo dos discursos do artista e da crítica, suas negações, a construção do próprio instrumento de análise e seu aguçamento em face do campo de estudo e do objeto de trabalho), essa identificação, que dá sentido final à pesquisa sobre influências, não prescinde desse conhecimento que, na falta de terminologia mais moderna, devemos chamar de erudição. Esclarecidos esses dois componentes que, tais como os dois anjos às portas do paraíso, também nos barram a entrada no terreno das influências – as modificações não ligadas às influências e as influências não localizadas por falha daquele que realiza a análise –, estamos prontos para nossa aproximação final do problema. Tal aproximação será também não apenas o momento de identificação de algumas das influências importantes na obra de Iberê Camargo, mas também o momento final de aguçamento de nosso instrumento de trabalho (o conceito de influência que vimos elaborando até aqui). Tal afilamento último de nossa ferramenta de trabalho efetua-se junto e através desse confronto com a obra de Iberê Camargo – lastro e fundamento desta pesquisa. Nossa estratégia de análise das influências de Iberê Camargo será a da eleição de algumas das obras, a partir daquelas que vimos no capítulo segundo, que indiquem mudanças mais significativas que possam apresentar (a partir do cotejo com outras obras) influências identificáveis. Assim, as obras que serão vistas a partir deste capítulo passaram por um momento intermediário de análise, não desenvolvido explicitamente na tese, que foi aquele a partir do qual separamos, entre os desenhos primeiramente elencados, os que não apresentaram mudanças capazes de indicar influências claras. Pela falibilidade dessa ferramenta (da influência tal como estamos construindo ou afinando) e do seu usuário, é possível que não apenas os desenhos que excluímos nesse 487 momento intermediário possam, através de novas pesquisas, se apresentar como marcos importantes para o trabalho sobre as influências, como mesmo os desenhos já excluídos nas outras fases podem se apresentar relevantes da mesma forma. Também, por uma questão de espaço, tivemos de eleger aqueles desenhos mais significativos, dentro de uma produção particularmente grande. Sendo assim, dividimos nossa análise a partir da eleição de trinta e sete desenhos de Iberê Camargo. Estes representam momentos na produção do artista que indicam mudanças em sua poética marcadas por influências. Esses momentos dos desenhos estão organizados segundo as divisões do capítulo segundo. 3.1 Os anos de 1928 a 1942 Iniciamos nosso estudo com um desenho de 1941 que marca uma série na produção de Iberê Camargo e que é também um dos primeiros momentos de mudança significativa. Referimo-nos à série de desenhos da Sopa do Pobre. Esses desenhos, como vimos, Iberê inicia em 1941 e prolonga até o ano seguinte, o de sua partida para o Rio de Janeiro. Tomaremos como primeiro método de trabalho a busca daquela proximidade (de que havíamos falado anteriormente) que indique influências e caminhos de uma inserção na tradição artística por esse meio indireto, ligado principalmente aos primeiros mestres. Encontramos, assim, os mestres do Instituto de Belas Artes, que, afora os mestres do aprendizado de infância e adolescência, foram os que provavelmente exerceram uma influência formadora mais intensa no jovem Iberê Camargo. Quando Iberê Camargo inicia seus estudos como aluno do Curso Técnico de Desenho de Arquitetura no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, em 1939, passaram-se apenas dois anos da morte do professor de desenho daquela instituição, Francis Pelichek, este substituído por João Fahrion. Alguns dos trabalhos desses dois professores, indireta ou diretamente, parecem ser as influências mais importantes na série da “Sopa do Pobre”. 488 Vejamos, por exemplo o desenho de Pelichek “Figura Humana”, um pastel de 1929568. Imagem 220 - Francis Pelichek - Figura Humana, 1929, pastel sobre papel, 45 x 32 cm. Acervo do Instituto de Artes da UFRGS. Confrontado o desenho de Iberê D1089, de 1942, com o trabalho de Pelichek, vemos a predominância de algumas características formais que indicam o quanto a escola do mestre (passada provavelmente através de Fahrion ou dos desenhos de 568 Nossa referência às obras dos professores do Instituto de Belas Artes deve-se à catalogação do acervo do Instituto de Artes da UFRGS, lançado em CD-ROM quando da exposição Total Presença (2007). In: BRITES, Blanca. Total Presença. Desenho. Acervo Artístico - Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. Instituto de Artes/DAV – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007. 489 Pelichek que muito ainda deviam circular no Instituto de Belas Artes à época do aprendizado de Iberê Camargo) pode ter sido uma provável fonte de influência na obra de Iberê Camargo. Imagem 221 - D1089 Sem título, 1942, carvão sobre papel, 63,7 x 48,3 cm. Acervo FIC. O desenho de Iberê indica esse aprendizado, em andamento, da construção do rosto através do trabalho de linhas e de composição das massas a partir de seu interior, que é característico do trabalho de Pelichek. Do mesmo modo, nota-se a busca de uma 490 expressão característica, que é encontrada no modo como os olhos são representados. Na configuração dos rostos, a partir de suas sombras, vemos também que parecem pesar e encaminhar-se para o solo, dando ao conjunto da fisionomia esse abatimento que é característico a ambos. Quando examinamos a obra de Fahrion, as semelhanças entre aluno e professor também se apresentam. Por exemplo, o pastel Retrato de Nori, de 1939, apresenta uma semelhança das figuras (guardadas as diferenças evidentes do tema), tal como a expressão ensimesmada e a posição semifrontal em que foram retratadas; sobretudo, guarda o mesmo trabalho de contornos que as destaca do fundo. Com a obra de Pelichek, Iberê aproxima-se dos valores cotidianos, do retratista dos costumes. Com sua personalidade trágica, elegerá aquele cotidiano mais pungente dos abrigados na Sopa do Pobre (não apenas uma escolha pelo valor baixo que um jovem artista pagava pela pose dos modelos, já que essa pungência é uma marca de sua obra como um todo). 491 Imagem 222 - João Fahrion - Retrato de Nori, 1939, pastel sobre papel, 117 x 62 cm. Através da influência de Fahrion, vêm o aprendizado de uma modernidade “bem comportada”. Conforme escreve Susana Gastal, analisando a produção artística do Rio Grande do Sul na primeira metade do séc. XX: “a modernidade regional nas artes plásticas não seguirá o padrão das vanguardas europeias do início do século, mas apresentará como moderno o padrão aristocrático da arte do século dezenove, marcada pelos jogos tradicionais de luz, sombra e perspectiva, aliados ao caráter descritivo das temáticas”569. 569 GASTAL, Susana. “Imagens e Identidade Visual. In: BULHÕES, Maria Amélia. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Pesquisas Recentes. Porto Alegre: Editora da Universidade; Programa de PósGraduação em Artes Visuais, 1995. p.24. 492 Notamos, por exemplo, a fixidez dessas figuras, paradas em um tempo inexistente. Tempo pré-moderno, com características realistas no que se refere ao tema. Analisando o ensino do Instituto de Belas Artes nesse período (do Essado Novo, entre 1937 e 1945), Maria Lúcia Bastos Kern destaca que: “A grosso modo, pode-se afirmar que a prática pictural dominante entre os professores do IBA e da maioria dos artistas da AFL apresenta ainda vestígios humanistas, apesar de os primeiros fixarem a atenção nas potencialidades da luz e da cor, signos de modernidade, pesquisados pelos impressionistas. Eles continuam dando ênfase à representação do objeto e à descrição narrativa do tema, demonstrando o seguimento de certas tradições pictóricas”570. Quanto aos contornos, são uma constante bastante clara nas figuras de Iberê desse período. Mesmo quando o artista as desenha com sombras no fundo, não as faz surgir de dentro dessas sombras (o que eliminaria o contorno), mas deixa certa distância entre essa sombra e a figura, mantendo o contorno artificial, que dá forma à figura ao mesmo tempo que a destaca dentro de um espaço que, se ainda não é moderno, começa a buscar sua libertação de um academicismo junto e através da influência direta de seus mestres à beira da modernidade. A influência de Fahrion, único artista citado por Iberê nesse período, em seu esboço autobiográfico, é de fato a mais evidente quando analisamos a pose de suas figuras, seu caráter algo artificial em que se colocam em cena e principalmente o trabalho dos contornos evidentes. "Em certo momento, tive boas indicações de Fahrion, professor já bastante conhecido e de bom renome, como artista”, fala Iberê em seu esboço autobiográfico. Curiosamente, Fahrion apresenta uma trajetória semelhante à de Iberê, fato que talvez possa ter atraído a simpatia do aluno pelo mestre. Artista de origem humilde, de uma família não ligada às artes, Fahrion também terá uma formação não plenamente integrada à academia, quase um autodidata, como Iberê também quase o é (ou ao menos como sempre buscou se apresentar). Ainda jovem, ganhará destaque no Rio Grande do Sul, recebendo como prêmio, tal como Iberê, uma viagem para a Europa. 570 KERN, Maria Lúcia Bastos. “Estado Novo: crítica de arte e ideologia”. In: BULHÕES, Maria Amélia. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Pesquisas Recentes. Porto Alegre: Editora da Universidade; Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, 1995. P. 35. 493 No entanto, Fahrion fará esse estágio na Alemanha, enquanto Iberê irá para Roma e posteriormente para Paris. Fahrion sucederá, como vimos, Pelichek nas aulas de desenho e pintura, quando da morte do primeiro (em 1937). Ao desenhar suas linhas, Iberê Camargo percorre um caminho diacrônico, constituído pelas linhas anteriores – aquelas de seus mestres. Dirige-se o artista, portanto, ao passado, ao fazer seu desenho atualização daqueles outros gestos. Por outro lado, o desenho de Iberê é também reformulação e criação, a partir desse mecanismo constituído pela memória de um gesto. Como toda memória, essa também é constituída de eleições e apagamentos, escolhas e descartes. Sob a perspectiva sincrônica, acumulam-se no tempo do desenho de Iberê Camargo a simultaneidade de muitos tempos. O tempo próprio do artista, o de seus mestres – tempo imediatamente anterior ao dele – e aquele tempo mais distante, o da história da arte, a que o jovem artista passa a ter acesso através da experiência da proximidade com seus primeiros mestres. Ao analisarmos a outra mudança relevante nesse período, notamos que ela se distancia desses mestres e se aproxima de outro, na mesma medida em que se modifica a obra de Iberê Camargo. Referimo-nos aos trabalhos realizados em 1942, às vésperas da viagem para o Rio de Janeiro, que mostram cenas urbanas de Porto Alegre e de seu carnaval de rua. Notamos um traço bem mais solto e a caracterização das figuras de um modo claramente mais moderno, adquirindo feições de esboço, de certo inacabado característico de uma figuração não tão preocupada com o detalhamento representativo. Isso fica claro no desenho D1780, de 15 de fevereiro de 1942. 494 Imagem 223 - D1780 Sem título, 1942, giz sobre papel, 24,3 x 19,5 cm. Acervo FIC. Ao examinarmos os trabalhos dos professores do Instituto de Belas Artes desse período, é na obra de Benito Castañeda (1885-1955) que encontramos as referências 495 mais próximas a essa nova figuração. Castañeda, como nos informa a biografia presente no acervo do Instituto de Artes: “Estudou pintura na Escola Industrial de Artes e Ofícios em Cádiz de 1901 a 1909, e na Escola de Belas Artes de Buenos Aires, entre 1911 e 1915. Chegou ao Brasil em 1919, e passou a viver no interior do RS. A partir de 1941 veio residir em Porto Alegre, quando integrou o corpo docente do Instituto de Belas Artes, instituição em que lecionou até seus últimos dias”571. Além das aulas no Instituto de Belas Artes, coincidentes com a entrada de Iberê na Instituição, Castañeda também expôs em Porto Alegre em 1941 na Casa das Molduras (mesmo local em que Iberê expôs). Em face da precariedade do sistema das artes da cidade à época, provavelmente foi um acontecimento importante, principalmente para o jovem estudante de arte, Iberê Camargo. Examinando a obra de Castañeda, encontramos em seu álbum de desenhos um pastel de 1933. Imagem 224 - Benito Castañeda - Sem título, 1933, pastel 30 x 33 cm, Acervo do Instituto de Artes da UFRGS. 571 Acervo do Instituto de Artes UFRGS. <http://www6.ufrgs.br/acervoartes/modules/wiwimod/index.php? page=CASTA%D1EDA,%20Benito> . Consultado em 18 de junho de 2008. 496 Influência de aprendizado, de proximidade e aquisição de um arsenal representativo. Notamos uma série de semelhanças e características comuns que, dada a dessemelhança dos desenhos anteriores, nos indica o exercício de tal influência – a semelhança com a disposição das cores e a já indicada simplificação das imagens, reduzidas a poucos traços. Essa mesma síntese das imagens, sobretudo das figuras, é possível ver nas figurações presentes no caderno de Castañeda, como o esboço abaixo. Imagem 225 - Benito Castañeda - Sem título, s/d, carvão 30 x 33 cm, Acervo do Instituto de Artes da UFRGS. A semelhança de traços entre as figuras de Castañeda e Iberê são evidentes. O 497 mesmo esquematismo das figuras, os traços rápidos que emprestam movimento às figuras, aliás mais evidentes no mestre do que no aluno. Algo de um impressionismo apresenta-se nessas imagens, no entanto, com uma disposição das cores quase fovista por sua não-naturalidade. A modernidade, conforme dissemos, começa a ganhar seus primeiros traços no desenho do artista, através do aprendizado com os mestres, nessa relação de proximidade e distância que identificamos aos primeiros momentos de exercício da influência. Junta-se a isso a disparidade entre os trabalhos dos professores e os do aluno, que de algum modo tenta emulá-los – o que indica também que os primeiros momentos da influência são caracterizados por uma desigualdade entre as fontes de influências e o influenciado, bem como por uma necessidade de aproximação muito próxima da cópia, na busca por seu traço. Como cadinho de mutas influências, várias linhas precipitam-se nas linhas de Iberê Camargo nesses primeiros anos de formação. Camadas de influências, em tais precipitações, depositam-se sob dupla perspectiva temporal, sincrônica e diacrônica, e sob uma dupla perspectiva espacial, aquela estabelecida entre o próximo e o distante. 3.2 Os anos de 1942-1947 Os anos de 1942 a 1947, os de permanência no Rio de Janeiro, marcam encontros importantes de Iberê Camargo com novos mestres, em um ambiente artístico muito mais rico do que o do Rio Grande do Sul. A primeira mudança marcante na produção desse período, e claramente identificável como influência, é a série de desenhos com a temática tipicamente modernista brasileira do homem e da mulher negros. Ao vermos desenhos como D2234, a semelhança com a obra de Portinari é bastante evidente. 498 Imagem 226 - D2234 Sem título, 1943, carvão sobre papel, 64 x 41,5 cm. Acervo FIC. 499 Vejamos, por exemplo, o carvão sobre papel de 1938, de Portinari. A semelhança com o tema, o uso das sombras, o trabalho com as massas e a monumentalidade realçada pelo tamanho dos pés e mãos indicam a relevância dessa primeira influência carioca na obra de Iberê Camargo. Imagem 227 - Cândido Portinari - Homem, 1938, carvão e sépia sobre papel, 69 x 42 cm. Coleção Particular, São Paulo/SP. 500 Lembremos que Iberê teve seu primeiro grande contato artístico, quando de sua chegada ao Rio de Janeiro, com Portinari. Com ele, teve algumas aulas na Escola de Belas Artes, antes de integrar-se ao grupo Guignard. A influência do autor de “Lavrador de Café”, obra que é de 1939, portanto, dentro de uma temática que, quando da aproximação de Iberê, ainda dominava a produção de Portinari, faz-se evidente nos desenhos, mesmo negada pelo discurso de Iberê. É conhecido, por exemplo, o episódio do primeiro encontro dos artistas, quando Iberê diz para Portinari que não gostava de seu trabalho. As figuras das negras e mulatas também guardam proximidade com a obra do mestre de Brodósqui. Mônica Zielinsky sugere aproximações ao relacionar a gravura “Mulheres com Crianças” (CR-015), de Iberê, com a tela “Mãe Preta” (1940), de Portinari572. De fato, ao analisarmos desenhos como D1164, notamos a clara semelhança, principalmente no tema e em sua composição, com desenhos de Portinari como, por exemplo, “Mulher com Criança no Colo”, de 1940. 572 ZIELINSKY, Mônica. Iberê Camargo - Catálogo Raisonné: volume 1/Gravuras. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. p. 45. 501 Imagem 228 - D1164 Sem título, 1943, caneta sobre papel, 31,7 x 16,4 cm. Acervo FIC. 502 Imagem 229 - Cândido Portinari - Mulher com criança no colo, 1940, Desenho a sépia e pincel seco sober papel, 66,5 x 51,5 cm, Coleção particular, São Paulo/SP Os anos no Rio de Janeiro marcam a aproximação com a tradição moderna 503 brasileira. É através dela e fundamentalmente, nesses primeiros anos, de Portinari que encontramos as principais influências recebidas por Iberê Camargo. Notamos o quanto o artista sofreu o impacto daquele modernismo ufanista e através dele seguiu os exercícios de figurações tipicamente brasileiras. Mas não apenas nos temas vemos tais influências, como também no uso distinto que a partir desses contatos passa a fazer da linha e das massas e sombras em seu desenho. Uma grande corrente da tradição artística apresenta-se como influência distante (a modernidade). Ao mesmo tempo, tal influência é alcançada pela proximidade com a obra do principal artista moderno brasileiro, Portinari. Na busca pela grande tradição moderna, Iberê aproxima-se ao aprendizado de seu mestre Portinari. Na angústia pela grande influência da tradição, vê-se frente à angústia da influência daquele que lhe é mais próximo. Em sua ânsia pelo encontro com o passado (nesse momento, a modernidade das artes visuais europeias tem ao menos meio século), encontra o presente e próximo cenário artístico brasileiro na figura de seu mais festejado representante. 3.3 Os anos de 1948-1950 Os anos de viagem para a Europa refletem, em um primeiro momento, ainda as influências sofridas no Brasil. É curioso notar como o impacto das influências sobre a obra de Iberê costuma ocorrer algum tempo depois do contato com essas influências. Muitas vezes, um ano depois desse contato é que vemos o exercício dessas influências, como se estas precisassem de um tempo de maturação no interior do artista antes de se expressarem concretamente em sua obra. Assim, apenas em 1949, ano seguinte de sua estada na Europa, notamos algumas mudanças fundamentais. Entre elas, destaca-se o desenho D1608. 504 Imagem 230 - D1608 Sem título, 1950, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35,5 x 25 cm. Acervo FIC. Essa natureza-morta, pelo modo de tratamento das massas e das sombras, a partir da aguada, em combinação com a linha de nanquim, lembra não a influência direta dos mestres próximos, mas a busca de uma tradição de modo mais direto, não conduzido (apenas) pela proximidade com os mestres; a angústia por uma influência, se entendermos com isso a necessidade de busca de influência a partir de um aprendizado com os antigos que o insira na tradição artística ocidental. A referência mais direta é a do 505 mestre italiano Tiepolo. Imagem 231 - Tiepolo - A deposição, 1749, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 18 x 16 cm. Fine Arts Museum of San Francisco. Sabemos, pelo relato do próprio artista, que fez uma cópia de Tiepolo ainda na adolescência. Como escreve Pierre Courthion: “Longe de todo reduto de competência artística, não recebe estímulos nesse sentido, embora, ainda pequeno, ame os lápis de cor e goste de rabiscar cadernos. Um professor de formação acadêmica virá a interessar-se por ele e orientá-lo para a cópia dos mestres antigos. Foi assim que, copiando a reprodução de um Tiepolo, faz, a lápis, uma Cabeça de Cristo (esses desenhos foram destruídos em um incêndio)”573. 573 COURTHION, Pierre. “Nascimento de um artista”. In: BERG, Evelyn et alii. Iberê Camargo. Rio de 506 No interior – intangível – do artista, processa-se a curiosa experiência de um retorno ao desenho perdido da infância com o impacto dos mestres italianos vistos agora de perto. Sabemos que, já na Itália, Iberê também fará numerosas cópias nos museus (prosseguindo em Paris, no Louvre). O encontro com a tradição e com sua própria história pessoal expressa-se nesses desenhos: a influência como encontro de temporalidades distintas. Encontro marcado por um desencontro essencial e pela angústia dessa falta, a semelhança dos desenhos se de fato existe (e é marca dessa busca), ao mesmo tempo traça um descompasso também evidente. A aura de silêncio que cerca esse desenho de Iberê Camargo parece marcar a própria impossibilidade de afirmação (enunciação desenhante) dessa influência, dada a distância irremediavelmente estabelecida entre os dois artistas e suas respectivas obras. 3.4 Os anos de 1951 a 1959 O padrão das aguadas marcadas por uma provável influência de Tiepolo será a base a partir da qual Iberê seguirá sua investigação sobre o espaço, em um processo crescente de geometrização das formas. Os anos de 1951 a 1959 marcam justamente uma trajetória de crescente geometrização e esquematismo do espaço, que terá seu ápice com o surgimento dos carretéis. Em 1951, quando Iberê retorna ao Brasil, o momento artístico nacional é marcado pela primeira Bienal de São Paulo. A Bienal de 1951 terá como um de seus marcos o surgimento do concretismo brasileiro através, por um lado, dos trabalhos de Max Bill, introduzindo no país as tendências construtivas em voga na Europa, e, por outro, pela participação de Ivan Serpa como expoente do movimento concreto brasileiro. É importante estudarmos as relações da obra de Iberê Camargo com um movimento e um tipo de visualidade que caracterizou, ao longo de vários anos, parte considerável da produção artística brasileira que o cercava. É possível encontrarmos ecos de influências concretas em sua obra, matizados também com suas influências europeias, que nesse momento começam a aflorar em conjunção também com uma tendência à Janeiro: Funarte, 1985. p. 65. 507 geometrização das formas que víamos de forma germinal já antes da viagem à Europa. É entre seus professores na Europa, primeiro Giorgio De Chirico e depois André Lhote, que Iberê Camargo terá as primeiras influências marcantes de uma poética fundamentada na geometria das formas. De Chirico, de quem Iberê passa a receber lições, já na fase metafísica do artista grego, tem uma obra marcada por um rigor do espaço marcadamente geometrizado, tendo como fundamento a perspectiva renascentista. Imagem 232 - Giorgio de Chirico - Solitude, 1917, lápis sobre papel, 22.4 x 32 cm. Acervo MoMa/Nova Iorque. Do mesmo modo, o rigor geométrico é encontrado no mestre francês de Iberê, André Lhote. No entanto, Lhote é ligado aos cubistas, o que indica uma generalização da geometria em direção a todo o espaço do quadro, rompendo com as regras renascentistas de perspectiva. Complexificando as relações de proximidade e distanciamento, tal dinâmica 508 mostra-se agora articulada com a experiência de proximidade com o que então lhe era distante – os grandes mestres europeus (pensamos aqui em seus professores e naqueles artistas seus contemporâneos a quem Iberê Camargo passa a ter acesso ao estar na Europa) e a experiência de distanciamento com os artistas brasileiros (nesse momento de sua ausência do Brasil). Os “impulsos de cópia e rejeição”574 entram em um redemoinho de influências, agora tornadas ainda mais complexas em um momento no qual Iberê Camargo se insere de forma definitiva no sistema das artes brasileiro (sobretudo a partir de seu retorno ao Brasil, mas mesmo ainda na Europa, já que o prêmio de viagem já foi um reconhecimento institucional dessa inserção). Imagem 233 - André Lhote - Le Nile, 1952, Aquarela sobre papel, 38.6 x 57.9 cm. Coleção Particular, Nova Iorque Essa complexidade que notamos ao analisar a união da influência dessa 574 CÂNDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento” (1969). In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 157. 509 perspectiva geométrica da representação com o tratamento da linha e das sombras, tal como nos desenhos de Tiepolo, parece ser um elemento importante no entendimento de desenhos como D1289, de 1953, uma aguada de nanquim em que vemos a formalização geométrica da natureza-morta. Imagem 234 - D1289 Sem título, 1953, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. Voltando-nos agora para o que Iberê deve ter visto no Brasil, entre sua chegada em 1951 e 1959, quando apresenta seus primeiros carretéis nos desenhos, identificamos a presença, como falamos, do surgimento do concretismo e de um movimento mais amplo rumo à geometrização (não necessariamente ligada a um engajamento ao movimento e aos rígidos pressupostos concretos). Terminada sua formação inicial, na qual a busca pelas influências da tradição artística é maior do que as influências recebidas (e negadas) 510 no contexto contemporâneo ao artista, é possível visualizarmos o exercício dessas influências mais próximas (já não da proximidade dos mestres, mas dos colegas de trabalho). Iberê prossegue seu trabalho de formalização geométrica do espaço, agora depurado das massas do mestre veneziano (Tiepolo), como se pode ver em D1004, de 1954. Imagem 235 - D1004 Sem título, 1954, giz sobre papel, 22,5 x 31 cm. Acervo FIC As obras construtivas de Milton Dacosta, dos anos 1950, como a tela “Mulher Sentada”, de 1952, indica-nos essa aproximação de uma linguagem geométrica que, no entanto, não prescinde da figura. É muito provável que essa vertente do construtivismo, ancorada na figuração, seja aquela que mais exerceu influência sobre Iberê Camargo. 511 Imagem 236 - Milton Dacosta - “Mulher sentada”, 1952, óleo sobre tela, 112 x 81. Coleção Particular. No que se refere ao trajeto rumo aos carretéis, é importante nos determos no trabalho que representa garrafas horizontalmente dispostas que Iberê Camargo faz em meados dos anos 1950 e que também se aproxima de trabalhos de colegas seus à mesma época. O desenho datado que temos com esse tema é o estudo D1408, de 1957. 512 Imagem 237 - D1408 Sem título, 1957, giz sobre papel, 12,5 x 21 cm. Acervo FIC. É interessante analisarmos esse desenho em conjunto com a tela que lhe é mais próxima (da qual ele provavelmente foi um estudo): “Garrafas”, óleo sobre tela do mesmo ano. Imagem 238 - “Garrafas”, 1957, óleo sobre tela, 65x100 cm. Col. Roberto Marinho, RJ. 513 As imagens apresentam um ritmo construtivo marcado pelas formas das garrafas do fundo, mas também pela sombra cortada verticalmente, em que é marcante a sua geometrização. É interessante confrontarmos essas imagens, ritmadas e geometrizadas, com a série “Da paisagem e do tempo”, que Maria Leontina faz ao longo dessa década, como, por exemplo, o óleo sobre tela de 1955. Notamos um mesmo ritmo nas formas e uma contraposição de cores semelhantes. Isso parece um indício desse diálogo silencioso, feito muitas vezes de negações, que se realizava através da influência desses artistas concretos ou com tendências concretas e geométricas na obra de Iberê Camargo desse período. Imagem 239 - Maria Leontina - “Da paisagem e do tempo”, c. 1955, óleo sobre tela, 60 x 80 cm, Coleção Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro. Se as garrafas remetem nosso pensamento à obra de Morandi, não nos parece 514 que a questão central nesse momento da obra de Iberê seja esse estudo detido da figura da garrafa, mas fundamentalmente uma questão de disposição de objetos no espaço. Nesse sentido, tem menos relação com a atitude de investigação metafísica dos objetos, em sua singularidade, que caracteriza a obra de Morandi. Mais próximo, na Europa, seria a obra de Nicolas de Stael desse período, com trabalhos como “A Prateleira”, um óleo sobre tela de 1955 cujo peso de seu “impasto” provavelmente influenciou a obra pictórica de Iberê Camargo575. Imagem 240 - Nicolas de Stael - “A Prateleira”, 1955, óleo sobre tela, 88 x 116 cm, Acervo do Museu Ludwig, Colônia. Finalmente, em 1959, encontramos as figuras dos carretéis nos desenhos de Iberê Camargo. Ao contrário da disposição geométrica em série, serão mais parecidos com naturezas-mortas de tipo modernista. Figuras soltas em uma mesa já praticamente liberta das convenções do ilusionismo tridimensional, apresentadas em um plano único. Ainda que se trate de formas geométricas, os carretéis dessa fase não se destacam por essa característica (do contrário, poderiam ser identificados ainda a um pensamento de base construtiva). Parecem ser, sobretudo, formas que pertencem mais às linhas/rabiscos do 575 Sobre os artistas “tachistas”, falaremos no próximo subcapítulo. 515 desenho do que geometrização da forma. Nesse sentido, já contêm algo do informalismo que os anos posteriores iriam apresentar. Por esse aspecto, seria quem sabe possível aproximá-los a um tipo de informalismo, por exemplo, de Manabu Mabe, do que dos geométricos, ainda que não façamos essa aproximação direta, à falta de elementos mais concretos para a análise. No entanto, no que se refere a esse traço informal, temos muito provavelmente a marca das influências dos informalistas franceses dos anos 1950, que estavam no auge quando da estada de Iberê em Paris. Essas influências informais europeias far-se-ão sentir ao longo da próxima década. Imagem 241 - D1476 Sem título, 1959, giz sobre papel, 31,8 x 22,2 cm. Acervo FIC. 516 Ligando os pontos estelares desse conjunto de variadas influências, vemos como uma série de influências distintas (tendo como característica comum a geometrização do espaço e da figura) contribui para a construção do desenho de Iberê Camargo. Essa influência que é “influência desenhante” desenha-se na obra do artista, na medida em que suas linhas traçam os contornos e a estrutura de uma relação sistêmica de influências que denominamos “constelar”. 3.5 Os anos de 1960 a 1964 Os anos de 1960 a 1964 são marcados pela trajetória de Iberê rumo à “abstração” ao lançar seus carretéis no espaço enquanto eles perdem suas formas originais. O desenho D1436 indica essa mudança. Como relata Iberê, falando sobre a experiência em direção à “abstração”: “e, finalmente, desapareceram os carretéis. Perderam a intensidade, o peso, um certo realismo e levitaram”576. Imagem 242 - D1436 Sem título, 1960, nanquim sobre papel, 17 x 23,6 cm. Acervo FIC. 576 CAMARGO, Iberê. Entrevista, In: COCCHIARALLE, Fernando e GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal. Rio de Janeiro: Funarte, 1987 (reimpressão, 2004), p. 182. 517 Esse período, de aproximação com o abstracionismo informal, rompe com algumas das questões anteriores no que diz respeito à uma geometrização da forma, das figuras, do espaço. No entanto, é interessante notarmos certa estrutura nessas figuras, que não flutuam soltas no espaço, mas que se prendem àquilo que Iberê Camargo denomina de “linhas de força”577. Se pensarmos no fenômeno da influência como esse mecanismo arqueológico, que vai sobrepondo camadas de influência, estratificações delas na obra do artista, é interessante notarmos como a poética tachista se combina na obra de Iberê com a prévia influência das várias poéticas geométricas (cubistas e concretas, sobretudo). Como numa estratigrafia revolvida, veremos também como os elementos de influências do passado voltam nos desenhos posteriores (afora seus próprios temas, quando retomados como representação de si mesmos). Voltando ao desenho D1436, é possível vermos o quanto essas figuras já não se prendem à convenção realista, a qualquer tipo de perspectiva, sustentando-se nas estruturas daquelas linhas que seguram as figuras/manchas. Se essas linhas lembram o trabalho de dripping, no entanto, parece estar na mancha sua marca principal, e é nela que encontramos a indicação das possíveis influências do período. Quando da estada de Iberê em Paris, os artistas abstratos informais estavam começando a ser cada vez mais vistos em galerias, ao mesmo tempo em que o Grupo CoBrA começava a se constituir nos Países Baixos e na Escandinávia. Conforme já vimos, como indica Lorenzo Mammì578, Karel Appel expôs na V Bienal de São Paulo em 1959. É possível, como indica o mesmo Mammì, que Iberê tenha se aproximado do Grupo Cobra e do informalismo europeu de forma mais ampla a partir da presença de Appel no Brasil a essa época. Notamos que as datas são coincidentes com a mudança, o que nos indica aquela condição temporal necessária para a possibilidade das relações de influência. 577 Idem, Ibid. 578 MAMMÌ, Lorenzo. “Iberê Camargo e a pintura européia do pós-guerra”. In: SALZSTEIN, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 518 Imagem 243 - Karel Appel - Sem título, 1958, litogravura, 57 x 51 cm, Museu de Belas Artes de São Francisco, Califórnia. Examinando a obra de Appel desse período, vemos como as manchas (nesse caso, uma litografia) estruturam a composição abstrata, semelhantemente ao desenho de Iberê no período. Claramente mais informal e solto que a obra de Iberê desse primeiro momento, o trabalho com as massas de cor, as manchas, parece indicar o início das influências de Iberê em relação ao informalismo europeu. Seguindo as transformações de sua obra no período, temos a série de desenhos de estruturas, como “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, D0632, de 1962. 519 Imagem 244 - D0632 “Estudo para 'Estrutura em Tensão”, 1962, giz e caneta sobre papel, 25 x 35 cm. Acervo FIC. O espaço dessas estruturas afasta-se mais ainda das estruturas geométricas, ainda que permanecendo, como o próprio nome refere, dentro de uma estrutura que se tensiona entre sua formalidade (marcada pelas manchas de giz) e o informalismo (dos traços) de lápis. As obras dessa fase aproximam-se, sobretudo, de alguns trabalhos que o artista do grupo CoBrA, o escocês William Gear (1915-1997) faz nos anos 1950. Note-se, por exemplo, algumas obras da série de árvores, tais como “Black Tree”, uma litografia de 1950, em comparação com estruturas de Iberê como as do desenho D1475, de 1962. William Gear estudou com Léger em Paris, entre os anos de 1937 e 1939, recebendo deste as influências de certa estrutura formal geométrica, a qual se desprende sem, entretanto, perder plenamente o caráter organizado, embora não plenamente 520 geometrizado das formas em sua composição. Em 1947, William Gear expõe no Salon des Surindependents e no Salon des Realites Nouvelles, ambos em Paris, dois anos antes, portanto, da chegada de Iberê Camargo a Paris. É provável, assim, que o impacto de sua obra ainda se fizesse sentir no cenário artístico parisiense à época de Iberê. Imagem 245 - D1475 Sem título, 1962, giz sobre papel, 35,1 x 46,4 cm. Acervo FIC. 521 Imagem 246 - William Gear - “Black Tree”, 1950, litogravura, 50 x 37. Coleção Tate Gallery, Londres. Nessas obras, ressaltamos o emaranhado estruturante da imagem/mancha (tache) e a distinção entre figura e fundo, embora, no caso de Iberê, a imagem pareça ser o negativo da litogravura de Gear. A influência assume, portanto, aquela reformulação do passado, do gesto do outro, ao se desenhar às avessas por Iberê Camargo. Podemos notar também a dinâmica da influência, em seu trabalho de tornar-se disegno externo – concretude de linhas a partir de um trabalho interior anterior (disegno interno). Ao tornarse desenho, ao desenhar-se, a influência inverte as posições anteriores – espécie de espelhamento que indica os aspectos ativos (ainda que subterrâneos e de difícil 522 compreensão) do artista influenciado visto como agente de suas influências, desenhandoas. A partir dessa influência tachista e informal, entendemos o surgimento de obras próximas da figuração, como D1041, de 1963, que mesclam a mancha com a figura. Imagem 247 - D1041 Sem título, 1963, aquarela sobre papel, 90 x 60 cm. Acervo FIC. 523 3.6 Os anos de 1965 a 1969 O período de 1965 a 1969 no desenho é caracterizado, nos primeiros anos (1965 e 1966), por uma radicalidade nas experimentações “abstratas” e informais. Dentro do que até aqui tratamos como “abstração”, com o cuidado das aspas nesse termo (pelas questões já expostas anteriormente), as experiências de Iberê nesse período são, sem dúvida ou aspas, claramente abstratas. Assim, temos desenhos como D1121, de 1965, em que a exaltação do gesto e a liberdade informal alcança seu ápice. Imagem 248 - D1121 Sem título, 1965, guache sobre papel, 65,8 x 51 cm. Acervo FIC. 524 O informalismo radical desses desenhos, curiosamente, perde aqueles pontos de referência e linhas de força que o artista declara ser o padrão de seus trabalhos que tendem à “abstração”. Nesse sentido, aproxima-se de outro artista do grupo CoBrA, mais próximo desse experimentalismo do gesto único, da não-repetição. Esse artista é Hans Hartung (1904-1989). O pintor franco-alemão havia recebido o Grand-Prix Internacional da Bienal de Veneza em 1960, em uma época em que realizava obras tal como o desenho (sem título) de 1958. Imagem 249 - Hans Hartung - Sem título, 1958, guache e nanquim sobre papel, 162 x 114 cm. Coleção Particular. O jogo de semelhanças e de diferenças entre as duas obras, unindo-se a isso as relações de influência de Iberê com os informalistas europeus já indicadas e a importância 525 de Hartung à época, parece-nos indicar a influência do artista sobre Iberê Camargo. Nesse jogo de semelhanças, é importante podermos perceber a diferença desses trabalhos no conjunto de trabalhos de Iberê, o que indica uma mudança significativa por motivos certamente significativos. Desses motivos, os artísticos são os que nos interessam, sendo que os contextuais, relacionados à importância desse artista no mundo da arte dessa época e sua afinidade com o tipo de expressão própria de Iberê Camargo, são os mais evidentemente identificados, e a semelhança com Hartung junto ao contexto da época reforça a hipótese da influência. O ano de 1966 também é marcado pelo retorno mais evidente da figura do carretel nos desenhos de Iberê. Utilizando-nos da ferramenta conceitual aqui construída, vemos esse retorno sob a perspectiva de um acúmulo e de uma simultaneidade que apresentam no tempo único desses novos carretéis as influências variadas dos vários tempos vistos até aqui. Assim, analisando essa memória a partir de uma simultaneidade, vemos o desenho D2051. Imagem 250 - D2051 Sem título, 1966, guache e caneta sobre papel, 30,5 x 41,8 cm. Acervo FIC. 526 A presença da aguada e da linha de Tiepolo é tornada agressiva e eminentemente moderna através da gestualidade de um espaço que não é outro que o do plano do desenho. Os carretéis, ainda que visíveis, flutuam no espaço azul da mancha, com suas estruturas geométricas, quase concretas, no entanto, com traços próximos aos do informalismo europeu. Depósitos de vários desenhos que se precipitam como vestígios de várias influências, campo de intersecção destas, o desenho indica o modo como o artista soube resolver, numa sucessão de negações e afirmações (artísticas), suas influências. Entre afirmações e negações, encontramos, no ano de 1969, uma figuração humana que marca mais a afirmação de uma filiação, por ser ligada à grande tradição artística (ao cânone moderno) do que propriamente àquela angústia e àquelas negações que caracterizamos como típicas de obras mais próximas. Trata-se de um desenho com temática mitológica, a figura de fauno, que aparecerá em outros momentos na obra de Iberê, como já vimos. Esse desenho também inaugura, através da nudez da figura e do tema do fauno, a temática erótica (embora ainda velada) na obra de Iberê Camargo. Curiosamente, essa temática terá quase sempre uma ligação à obra de Picasso, indicando como o artista modelo do modernismo, antes de uma influência, é uma referência anterior aos próprios pressupostos de uma suposta influência. O desenho “A noiva” (D2989), a que nos referimos, indica esse encontro perdido em busca do que estamos chamando de “influência absoluta” na obra de Iberê Camargo, ao confrontá-lo com “Um jovem fauno tocando uma serenata para uma jovem”, de Picasso. 527 Imagem 251 - D2989 "A Noiva", 1969, guache sobre papel, 31,7 x 22 cm. Acervo FIC. 528 Imagem 252 - Pablo Picasso. “Um jovem fauno tocando uma serenata para uma jovem”, 1938, óleo sobre tela. Coleção MoMa, Nova Iorque. Parece haver, por parte de Iberê Camargo, essa certeza da obra picassiana inserida em uma anterioridade à própria influência, uma espécie de paternidade absoluta (e, por absoluta, além ou aquém da própria ideia de influência). Entendida como “questão de estômago”, conforme Valéry, vemos que a relação com a obra de Picasso não faz parte daquele tipo de digestão própria da influência. Aquele distanciamento (dessemelhança) essencial não é possível nesse encontro absoluto com o mestre moderno por excelência, que, por isso mesmo, não é passível de digestão. Encontramos, entre os desenhos de Iberê, uma única anotação (no verso de um desenho) que faz referência a um artista específico: "Picasso é o gênio que abriu a porta do hospício"579. 579 Inscrição de Iberê Camargo no verso de D2924. 529 3.7 Os anos de 1970 a 1982 Os anos 1970 e inícios da década de 80 são marcados na produção de Iberê, conforme já vimos, por um lado, pelo prosseguimento dos seus principais temas: os carretéis, algumas figurações humanas, alguns trabalhos eróticos; por outro lado, pelo tratamento desses temas, que se altera à medida que o artista passa a incorporar em sua poética elementos que haviam emergido na arte a partir da década de 1960. Na incorporação dessas influências, destacamos uma maior agressividade e crueza do seu traço e uma figuração que passa a ser mais pungente e desesperada. Começamos nossa análise dessa época com o desenho D0440, de 1970. A imagem ainda é marcada pelo informalismo característico dos últimos anos (próximo de trabalhos como os de Appel). Entretanto, é possível notar uma liberdade ainda maior nessas formas, que passam a ser desenhadas a partir de uma atitude que tende a buscar um primitivismo, uma suspensão do saber artístico. Essa atitude, característica de muitas produções dessa década, é chamada pelo artista e crítico de arte Ian Burn de deskilling, caracterizando-se por essa renúncia a uma habilidade (skill), um conhecimento experimentado, tradicional. Essa característica, que, entre outras coisas, busca uma originalidade ligada à uma pungência vital e não-compartilhada, ao contrário de afastá-lo das influências, aproximará Iberê de algumas produções do mesmo período. 530 Imagem 253 - D0440 Sem título, 1970, guache sobre papel, 22 x 32,2 cm. Acervo FIC. A primeira aproximação que mais claramente notamos, ainda nos anos 1970, apresenta-se a partir de relações que pensamos ser possível estabelecer através de seu desenho D3134. 531 Imagem 254 - D3134 "Estudo de circo (cenário)", 1970, giz e caneta sobre papel, 25 x 35,1 cm. Acervo FIC. A imagem “Estudo de circo (cenário)” não é única entre os desenhos de Iberê Camargo, conforme vimos no capítulo anterior. Faz parte de uma série com a temática circense. Os desenhos caracterizam-se por um traço veloz e sintético. Esse traço da caneta é pontuado pela cor do giz. Prosseguindo nossa busca por um diálogo entre proximidade e distanciamento, encontramos, em uma produção artística brasileira da época, proximidades suficientemente relevantes com a obra de Iberê. Relevantes no sentido de apontarem relações de influência e, ao mesmo tempo, servirem de eixo dessas relações de proximidade e distanciamento, na medida também em que estão inseridas em relações de influências de um contexto artístico internacional contemporâneo àquele momento. É assim que entendemos ser possível estabelecer contiguidades temporais e espaciais, matizar suas distâncias e medir o peso desse espelhamento sincrônico das similitudes na 532 proximidade. Na década de 1960, no Rio de Janeiro (onde Iberê, desde sua volta da Europa, havia fixado residência e de onde sairia só na década de 1980, quando de sua volta a Porto Alegre), nota-se uma mudança no cenário artístico. Como escreve Daysy Peccinini: “(...) aparecem sintomas do esgotamento das tendências construtivas no Brasil. Tal conjuntura permite sugerir a existência, no meio carioca, de condições viáveis de liberdade e ousadia para o aparecimento de uma geração de artistas muito jovens”580. Esse novo cenário artístico será marcado, em parte, por um tipo de produção influenciada pela chamada Otra Figuración argentina e, em um panorama mais amplo, por um retorno à figuração marcado pelo informalismo, tais como presente nas obras de De Kooning e Dubuffet. É importante, como informação contextual, notarmos que artistas pertencentes ao grupo da Otra Figuración haviam exposto no Rio de Janeiro, em 1963, na Galeria Bonino (Deira, Macció, Jorge de la Vega e Noé). Iberê havia exposto na mesma galeria dois anos antes, numa coletiva com doze pintores brasileiros e doze argentinos. A partir desses dados históricos e contextuais, que marcam uma fronteira de possibilidades de influência suficientemente claras, passamos àqueles artistas brasileiros que nos parecem mais semelhantes com essas novas figurações de Iberê. O artista com quem notamos maiores semelhanças é o carioca Rubens Gerchman (1942-2008) ao vermos algumas de suas figuras, como aquelas presentes em “Futebol”, um painel de 1965 (100 x 70 cm, col. Particular). 580 PECCININI, Daisy. Figurações Brasil Anos 60: neofigurações fantásticas e neo-surrealismo, novo realismo e nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural/Edusp, 1999. p. 97. 533 Imagem 255 - Rubem Gerchman - “Futebol”, 1965, tinta industrial sobre madeira compensada, 100 x 70 cm. Coleção Particular, Rio de Janeiro/RJ. Notamos a semelhança do perfil das figuras (que estão ao fundo) com aquela figura no canto inferior direito do desenho de Iberê. Conforme veremos a seguir, essa figura de Iberê não é casual, mas se repetirá em outros trabalhos. Ainda que não haja 534 propriamente um retorno à figura nesse período, já que o artista nunca se afastou dela (ainda que tenha dado mais ênfase, em certos momentos, aos temas não-figurativos), notamos modificações em sua figura que indicam a influência dessa “nova figuração” dos anos 1960. Como sempre, as influências na obra de Iberê Camargo apresentam-se após alguns anos de maturação interior. As formas vistas nos anos 1960 surgem em sua obra alguns pares de anos depois. No diálogo entre proximidades e distâncias, é possível também pensarmos as relações mais diretas da obra de Iberê com a do grupo de artistas da Otra Figuración. Quando vemos telas como a de Jorge de la Vega (sem título, 1963), podemos notar a semelhança da relação entre linha e cor na formação da figura, o que marca obras figurativas de Iberê como D0005, de 1971. Imagem 256 - Jorge de la Vega, Sem título, 1963, óleo sobre tela, 195 x 128 cm. Coleção Particular. 535 Imagem 257 - D0005 Sem título, 1971, nanquim e aguada de nanquim sobre papel, 42,4 x 29,5 cm. Acervo FIC. Voltando ao cenário nacional e às relações com a obra de Rubens Gerchman, apresentamos o desenho de Iberê de 1973, D2135. 536 Imagem 258 - D2135 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,5 x 47,5 cm. Acervo FIC O trabalho é marcado pelo tema circense e por uma agressividade das figuras e do traço que as compõe. Mais uma vez, vê-se aquele rosto (à direita) com o perfil semelhante ao das figuras de Gerchman (ver detalhe). 537 Imagem 259 - Rubem Gerchman - Futebol, 1965, tinta industrial sobre madeira compensada, 100 x 70 cm. Coleção Particular, Rio de Janeiro/RJ. (Detalhe) A rapidez do traço, que passa a ser uma constante nesse período, em muitos momentos parece indicar a necessidade de uma velocidade que avance além do tempo das influências. Uma rapidez que seja capaz de sobrepor o tempo presente, precipitando a obra em um distanciamento futuro tão impossível quanto a volta ao passado e à tradição. A angústia da influência que se identifica com a proximidade temporal se mostra, portanto, nessa tentativa de escapar do tempo pela velocidade do gesto. Seguimos a dinâmica de distanciamentos e aproximações, no estudo da influência no desenho de Iberê Camargo, para encontramos a figura D2137, de 1973. 538 Imagem 260 - D2137 Sem título, 1973, giz sobre papel, 32,6 x 47,5 cm. Acervo FIC. A imagem é marcada pela frontalidade, tema que, como vimos no capítulo anterior, será presente em obras de Iberê dos anos 1980. O tema da mulher nua, exposta em sua frontalidade, a partir de traços bastante sintéticos, ainda que claramente representativos, é uma constante na obra de Jean Dubuffet (1901-1985). Mais uma vez, entre afastamentos e aproximações, aproximamo-nos então do artista francês, que marcadamente influenciou tanto a geração argentina quanto a brasileira dos artistas que retomam a figuração a partir dos anos 1960. Examinando, entre as várias representações femininas de Dubuffet, destacamos sua tela “Large Sooty Nude”, de 1944 (97 x 162 cm). A obra de Dubuffet serve-nos como elo entre esse nu frontal desenhado por Iberê e as imagens que aparecerão nos anos posteriores. Tal imagem serve-nos, portanto, como aquele ponto intermédio e sítio preciso de muitas convergências a que nos referimos ao desenvolver o conceito de influência como desenho. A partir e em torno dela, podemos 539 pensar não apenas a emergência dessa presente imagem de Iberê, mas algumas telas que virão a seguir, principalmente da série de idiotas, conforme veremos mais tarde. A obra, portanto, articula outras relações possíveis de influência que trarão os mesmos aspectos representativos relacionados à frontalidade do nu feminino. Imagem 261 - Jean Dubuffet - “Large Sooty Nude”, 1944, 97 x 162 cm, óleo sobre tela, Coleção Privada. 540 Em 1974, encontramos mais uma visitação de Iberê à obra de Picasso, mais uma vez através do tema clássico da mitologia. No caso, trata-se da conhecida temática picassiana do minotauro ligado à eroticidade. No desenho D1502, temos essa temática em uma representação muito próxima (pela citação do tema) da obra de Picasso “Fauno desvelando uma mulher dormindo” (1936, água-tinta, 31x41 cm, Museu Picasso/Paris), bem como, de modo geral, da série picassiana de “faunos”. Imagem 262 - D1502 Sem título, 1974, guache e nanquim sobre papel, 32,4 x 47,4 cm. Acervo FIC 541 Imagem 263 - Picasso - Fauno desvelando uma mulher dormindo, 1936, água-tinta, 31,6 x 41,7 cm. Museu Picasso, Paris. Picasso, mais uma vez, é o artista paradigmático para Iberê – como para os artistas modernos de modo geral. Encontro inalcançável, por situar-se em uma proximidade absoluta. A relação da obra de Iberê com a de Picasso surge como a busca da tradição (tão distante quanto onipresente) em um momento no qual o artista é invadido, em sua poética, pelas influências que lhe são próximas (tão próximas quanto as quer ausentes). Mais uma vez, notamos como Iberê Camargo, ao salientar a tradição e negar as influências, termina por identificar o que é próprio e o que é alheio de modo invertido. Assim, o próprio/próximo será afastado como alheio/distante na mesma medida em que o distante/alheio será buscado como próximo/próprio. A partir do choque entre um encontro impossível e uma identificação negada, desenham-se as influências de sua obra. 542 A referência picassiana pontua a obra de Iberê como uma espécie de sístole criativa. Um momento de recolhimento a um saber adquirido a algo muito mais próximo de uma referência do que de uma influência. Momento de recolhimento que precede mudanças e aproximações de novas influências. Entre os desencontros da tradição e os “de encontro” da influência, vemo-nos diante do desenho de 1978, D0474, uma representação bastante soturna, mais uma marca da pungência que marca a obra de Iberê dessa década. Imagem 264 - D0474 Sem título, 1978, guache sobre papel, 23,3 x 32,3 cm. Acervo FIC Aproximamo-nos aqui, entre sístoles e diástoles, de mais uma influência contemporânea e geograficamente distante. A obra em que encontramos as principais 543 referências à influência é a dos artistas alemães que começam a surgir justamente na mesma época em que Iberê faz esse desenho, o final dos anos 1970. Referimo-nos aos chamados “Neue Wilden”, o neo-expressionismo alemão. Suas figuras serão marcadas, principalmente nessa época, pela mesma força pungente e trágica. Por uma aproximação mais a um movimento e a um pensamento artístico mais amplo e menos a um artista específico, não nos parece pertinente elencar um artista e uma obra específica, mas salientar essa atmosfera artística alemã do período, que parece ter marcado Iberê nessas obras e que, como temática geral (trágica e pungente), marcará como aspecto genérico (leitmotiv) de sua produção posterior. Esse é um aspecto da influência que não examinamos com profundidade nesta tese: a influência de uma temática geral e de um conjunto de produções de uma determinada época incidindo sobre a poética (ou aspectos dela) de um artista. Uma figuração semelhante a essa recém examinada se repetirá em 1981, no desenho D2142. Imagem 265 - D2142 Sem título (Poa), 1981, guache sobre papel, 35,6 x 36,3 cm. Acervo FIC É a partir dessa figuração soturna e desesperada que podemos entender, sob seus 544 aspectos formais, e não biográficos, obras como D3149, de 1980. Imagem 266 - D3149 Sem título, 1980, nanquim sobre papel, 31,7 x 44,2 cm. Acervo FIC 3.8 Os anos de 1983 a 1986 Os anos de 1983 a 1986 parecem marcar aqueles do final da maturidade e início da velhice do homem Iberê Camargo. Esse momento cronológico da vida do artista tem também relevância em seu trabalho. No início de seu ocaso, Iberê passa a refletir com mais intensidade sobre sua própria criação. Tal atitude é marcada, em seus desenhos, pela presença das formas que lhe marcaram como artista, integradas agora como imagens de sua própria criação. Iniciamos nossa análise com um autorretrato, D0704, de 1983. O desenho exprime aquele conflito entre desenho e pintura que Jorge Guinle observa na pintura da década de 1980 de Cuchi, Kiefer e Schnabel. O desenho inscreve-se sobre essa “pele experimentada (cansada de um saber pictórico)”581. A mancha, essa pele da pintura, 581 GUINLE, Jorge. “Os Dois Tempos de Iberê Camargo”. Revista Módulo, nº 82, setembro de 1984. p. 57. 545 estabelece um conflito como tensão ao estabelecer-se como um fundo que é pele e, ao mesmo tempo, solo daquele desenho. Ao desenhar sobre esse chão de pintura, Iberê o faz quase como aquele desenho originário de todos, o que delineia a sombra que escapa ou o desenho pré-histórico da mão espalmada. Imagem 267 - D0704 Sem título, 1983, lápis e guache sobre papel, 35 x 25 cm. Acervo FIC. Esse retorno a uma origem que é a do seu próprio corpo (a do seu rosto e a da 546 pele da pintura) marca um momento em que o artista passa a refletir sobre sua trajetória, reflexão desenhante. É assim que, de uma reflexão sobre o desenho e a partir dele que teremos nesse período desenhos como D0044, de 1985. O desenho apresenta os dados (surgidos a partir da forma-base do carretel) junto de um autorretrato. Como em um circuito fechado de influências, Iberê busca em sua própria trajetória os elementos de influência para seu próprio trabalho. Esse tipo de reflexão não acontece de modo pacífico, mas guarda a mesma angústia que as influências estabelecidas a partir de uma proximidade carregam. Não é sem motivo que, alguns anos depois, chamará de “tudo te é falso e inútil” uma série de trabalhos que tem por tema a representação de seus próprios temas de trabalho. Como em toda influência, ao tornar-se representação (representação de si mesma), estabelecese como uma outra imagem que não a primeira. Essa diferença é a base desse conflito. Ao voltar aos seus temas, Iberê nunca consegue voltar de fato: esse é o drama da influência, tornado mais agudo quando se referindo às influências de si mesmo. Ao tornar-se obra, a influência ali representava marca, mais do que uma presença, uma ausência sentida e desenhada. Ao querer voltar a seus temas e não conseguir, o artista torna-se original a contragosto: é original na medida em que não consegue ser ou fazer o que foi ou fez. Imitando a s mesmo, Iberê Camargo retorna a seus temas, vistos agora sob a perspectiva da representação desses próprios temas. Torna tais temas representação criativa de suas próprias influências; reinventando-as, reinventa-se através de seu próprio desenho. Próximo e distante, próprio e alheio curto-circuitam-se nesse mise en abyme da representação e da influência de si mesmo. 547 Imagem 268 - D0044 Sem título, 1985, giz sobre lixa de papel, 22,5 x 27,1 cm. Acervo FIC. Em 1986, Iberê retorna uma vez mais ao tema dos faunos, no desenho D2990. A essa altura, a obra parece ser menos uma “não-influência” do mestre espanhol do que uma utilização do tema picassiano para mais uma vez refletir sobre sua própria obra e seus temas. O tema de Picasso então sofre uma espécie de apagamento de suas características próprias enquanto as manchas brancas encobrem parte das figuras, tornando-as fantasmas das interrogações das influências internas de Iberê. O desenho parece ser, portanto, a libertação dessa proximidade absoluta que o fez recorrer à obra-referência picassiana ao longo de toda a sua trajetória (desde que dela 548 tomou conhecimento e consciência de seu papel central na modernidade, evidentemente). Imagem 269 - D2990 Sem título (poa), 1986, nanquim sobre papel, 23,2 x 33 cm. Acervo FIC É dessa forma que o desenho se carrega dos elementos soturnos que estão presentes na obra do artista desse período, sem, entretanto, apontar para novas possibilidades. Nesse período, também apresenta, com uma certa ironia (agressiva), um desenho no qual escreve a palavra “cubista”, como vemos em D0955, de 1986. 549 Imagem 270 - D0955 [Cubista 31], 1986, lápis Stabilotone sobre papel, 11 x 8 cm. Acervo FIC. Finalmente, é importante ressaltar que, apesar de os temas do manequim e da bicicleta (ciclistas) surgirem nesse período, é no próximo (entre 1987 e 1990) que adquirem maior significação e constância na obra de Iberê, razão pela qual serão 550 analisados a seguir. 3.9 Os anos de 1987 a 1990 Os anos de 1987 a 1990 marcam momentos de desenvolvimento de temas que surgiram nos anos anteriores. Ao mesmo tempo, ainda há diálogos com a grande tradição modernista, como é o caso dos desenhos que fazem o elogio da linha precisa, da resolução exata da figuração através da economia do traço, como podemos ver em D0048, de 1987. Imagem 271 - D0048 Sem título, 1987, caneta de nanquim sobre papel, 30,5 x 20,5 cm. Acervo FIC 551 Lembremo-nos aqui daquela tradição inaugurada por Matisse e Picasso, da precisão da linha como no desenho de Matisse “Visão de um nu de costas com colar”, de 1906. Imagem 272 - Matisse - “Visão de um nú de costas com colar”, Matisse, 1906, 45x27 cm. Baltimore Museum. 552 Iberê, ao retomar esse tema da tradição artística, retoma também seu próprio trajeto pessoal, quando lembramos de desenhos como D1161, que fez em 1943. Imagem 273 - D1161 Sem título, 1943, nanquim sobre papel, 27,5 x 20 cm. Acervo FIC. A tradição, portanto, se por sua distância e proximidade absoluta não marca influências, serve de meio para a retomada das próprias questões do artista, as quais, 553 estas sim, estabelecem influências internas. Nessa constelação de influências, notamos o quanto a imagem sintética de 1987 distancia-se daquela de 1943 ao estabelecer relações com o conjunto de influências recebidas até agora. O traço sinuoso do desenho mais antigo torna-se mais agudo. A inocência e doçura de 1943 é substituída pela aspereza da nova imagem. Como se o desenho de 1943 tivesse mergulhado nas tintas do informalismo dos anos 1960 e do neo-expressionismo dos 1970/80, através dele vemos as marcas de uma constelação dessas muitas influências que formam uma trajetória artística particular. O ano de 1987 também é marcado pela atenção à figura do manequim. A recorrência do manequim na obra de Iberê incita-nos a uma reflexão sobre a influência exercida pelos chamados “documentos de trabalho”, esses objetos cotidianos, presentes no ateliê do artista, em sua obra. A partir deles, é possível também vermos a rede de relações de influência que se estabelecem e se articulam. Refletindo primeiramente sobre a questão do documento, está na raiz da palavra “documento” (documentum), sua definição como instrumento de ensino. Doc – docere, o ensino. Mentum, a substantivação da palavra. Portanto, é o documento aquele objeto que nos ensina algo. O que ensina o documento? No caso presente, documentos de trabalho, indica que esse objeto nos ensina algo sobre um labor. Tratando-se de arte, podemos dizer que o documento de trabalho é o objeto que tem como função nos ensinar algo sobre o trabalho artístico. Algo próximo da ideia de lição, se pensarmos a palavra (lição) como um objeto físico do mesmo tipo, por exemplo, das nossas lições de casa, que tantas tardes das nossas infâncias nos roubaram. Assim, podemos estabelecer o documento como objeto essencialmente cognitivo. Pensar os documentos de trabalho artísticos sob a perspectiva da influência, entendida sob sua perspectiva histórica (ainda que em uma diacronia complexa, permeada por sincronias), que é meu objetivo, traz novas implicações para o conceito. É importante lembrarmos que o documento é a ferramenta de trabalho por excelência do historiador. É o documento aquele objeto, testemunho ou evidência que é capaz de dar ao relato do historiador alguma autenticidade (autenticidade relativa, pois sempre passível de erro e correção). Desse modo, o documento é condição necessária de qualquer trabalho histórico, dada sua capacidade de nos informar (ensinar) sobre acontecimentos em que 554 esteve de algum modo implicado. Claro também está que o documento, para o historiador, não é apenas o registro escrito, mas todo elemento capaz de registrar, seja por que meio for, que algo aconteceu. Ao tomar o manequim de Iberê Camargo como documento de trabalho, estou interessado principalmente em duas das implicações que tal documento pode ter em seu processo de trabalho e sob a perspectiva da história da arte. A primeira questão é a de pensar esse objeto em sua dupla função: de documento de trabalho e de modelo. A segunda das questões é a articulação desse documento de trabalho com documentos de trabalho e obras de outros artistas, ou seja, em algum nível de inserção desse documento de trabalho na história da arte de modo mais amplo. Essa amplidão permite-nos também ver, na perspectiva “constelar” da influência, ao desenhar, ele, uma série de relações de influência entre os vários documentos e várias obras desses diferentes artistas. Iberê Camargo sempre fez uso de modelos em suas obras. Seja a jovem namorada Maria, dos anos 1930, a mata da Jaguari de sua juventude ou os casarios do Rio de Janeiro dos anos 1940, sejam os carretéis de sua busca artística dos finais de 1950, o gato Martim ou os amigos e modelos que frequentaram seus ateliês ao longo de toda a vida. É importante esclarecer que estamos entendendo aqui por modelo não apenas os modelos-vivos, mas também objetos, construções arquitetônicas, naturezas-mortas, enfim, tudo aquilo que o artista dispõe à sua frente ou de que se posta à frente buscando estabelecer algum nível de relação entre o que está lá e o que irá ser figurado em sua obra. Um modelo é, assim, essa parte do mundo que é arrancada pelo artista e que arranca do artista essa parte do desejo que o lança na experiência de fazer arte. A presença de modelos caracteriza um fazer artístico de forma particular: trata-se da arte que é fundamentada na experiência da representação. Lembrando sempre o conceito de representação como “algo que está no lugar de outra coisa”582, pensar sobre o modelo é pensar não sobre aquele algo que foi colocado no lugar, mas justamente naquela “outra coisa”. Sendo assim, de algum modo, é como pensar a arte ao revés. No entanto, se é ao revés, não nos parece também que seja algo do tipo de uma anterioridade. Esse seria o pensamento apenas da perspectiva do modelo. Mas como nosso foco aqui está na 582 DANTO, Arthur. La Transfiguración del Lugar Común. Una Filosofia del Arte. Barcelona: Paidós, 2002. p. 45. 555 reflexão dessas partes do mundo sob a perspectiva do documento, já não estamos pensando naquilo que veio antes (naquele objeto que está lá, antes de ser representado), mas justamente no seu devir. O documento é algo que “sobrevive” como testemunho e registro do fato artístico. Estando sob essa condição de algo que fica depois, o modelo como documento de trabalho apresenta-se também como aquilo que sobra depois que a representação ganha existência. O modelo/documento é aquilo que se descarta da representação. É um objeto que ganha existência e significado por sua capacidade de resistência e de resto. No caso de Iberê, em que o aspecto agonístico, de combate com a obra é tão evidente, talvez pudéssemos à primeira vista pensar que o modelo/documento surge como esse inimigo invencível a que se volta sempre e mais uma vez. Mas por que então o artista conservou, por toda a vida e com tanta proximidade, inimigos seus como os carretéis ou o manequim que é objeto de minha análise? Ao contrário, pensamos ser possível entender o modelo não como aquilo que não se consegue reter através da representação, mas justamente como aquilo que o artista elege não deixar presente, e estamos mais uma vez aqui distantes daquela essencial ausência típica da influência e da representação. Artista experimentado, com domínio da técnica representativa, por que usaria o modelo como um objeto a ser copiado, um objeto a ser espelhado em sua tela? Parece mais exato entendermos que a relevância desse objeto está precisamente nessa ausência, nessa essencial dessemelhança que, assim como a semelhança, caracteriza a representação: é preciso que a tela não seja manequim para que seja tela, é preciso que o desenho não seja a influência para que seja a representação dela – assim como é preciso que o mapa de uma cidade não seja a própria cidade para que seja mapa. O modelo, portanto, surge-nos como um resto resistente que, antes de ser inimigo, é um caro objeto ao artista justamente por ser uma outra coisa e assim permanecer, testemunhando, como documento, a conhecida afirmativa hegeliana da identidade da obra não com o modelo, mas consigo mesma. 556 Imagem 274 - F0228 Fotografia sem autoria conhecida, 1994, 15 x 10,5 cm. Acervo FIC. Se, visto sob a perspectiva de modelo, o documento de trabalho define-se por sua diferença, é preciso então vermos sob qual perspectiva ele pode ser entendido a partir de sua semelhança. Pensamos que isso seja possível invertendo as posições e tomando o modelo visto como documento de trabalho sob um ponto de vista não de identidade em relação à própria obra, mas pensando os pontos relacionais desse documento inserido na história da arte: o momento em que este estabelece a atividade de constelar. Tais semelhanças acontecem através de algumas coincidências significativas. Tais coincidências, as quais chamamos de significativas para que não confundamos o termo “coincidência” com a noção de acaso, encontramos através da referência do manequim 557 como documento e como obra em trabalhos de outros artistas. Essa é a segunda questão que anunciamos: a da articulação desse documento de trabalho com documentos de trabalho ou com obras de outros artistas, indicando a inserção desse documento na história da arte de modo mais amplo. É nesse outro nível que se situa a semelhança do documento de trabalho. Manequins são objetos artísticos utilizados comumente no aprendizado da representação humana, no estudo tradicional de poses e como uma ferramenta típica do trabalho com a figura humana. Não propriamente o manequim de vitrine, como o de Iberê, mas as figuras articuladas de madeira, que vemos à venda nas lojas de materiais artísticos. Sendo assim, não causa estranheza o uso de um manequim – ainda que com um certo deslocamento - por um artista respeitoso da tradição artística ocidental, que sempre utilizou modelos em suas obras e que passou por aulas de cunho acadêmico como as classes de desenho deste Instituto de Artes. A representação a partir do manequim articula, então, uma prática comum, assim como aquele desejo de inserir-se na grande tradição artística. Como uma espécie de linguagem compartilhada, tal prática não se traduz necessariamente, isso é óbvio, em semelhança entre os trabalhos, mas permite uma compreensão e uma afinidade entre os artistas, tal como a linguagem proporciona aos falantes de uma mesma língua uma espécie de lar comum. Uma cumplicidade de conterrâneos. 558 Imagem 275 - Manequim de madeira. Se o manequim é o documento que testemunha essa prática comum que insere Iberê Camargo na tradição artística ocidental, não nos revela ainda, por seu aspecto de meio para uma prática, afinidades artísticas comuns que o ligam com mais proximidade a artistas específicos. Não estamos ainda no terreno das semelhanças identificáveis a influências, mas apenas em uma afinidade do métier. 559 É preciso, portanto, para vermos o manequim como documento que estabelece relações de influências entre trabalhos de artistas diferentes, identificar esse documento como detonador de poéticas que o tomem como questão a ser explorada. É necessário ver quando essas partes do mundo arrancadas pelo olhar do artista estabelecem relações poéticas representativas, que vão além da mera semelhança formal, mas que se evidenciam através da presença desse documento comum. A trajetória que aqui propomos é a de ir do documento às obras que de algum modo o apresentem. Como num jogo de espelhos, é necessário ver a presença do manequim através de alguns trabalhos e ver alguns trabalhos a partir do manequim. Se for possível estabelecer essa relação especular entre documento e obras, será possível também pensar o documento como evidência histórica de relações de influências, e a partir dele as desenhar/constelar. Conforme vimos, os primeiros manequins de Iberê, nos desenhos, não são aquelas figuras típicas que nos acostumamos a encontrar em suas obras de gravura e pintura. Não se assemelham ainda à famosa figura presente no seu ateliê e da qual temos a foto aqui apresentada. Trata-se de um manequim vestido, copiado da vitrine de alguma loja, durante suas caminhadas pela Rua da Praia. Os manequins mais típicos da produção de Iberê começam a aparecer dois anos depois, em desenhos de 1986, sobretudo, e desenvolvidos principalmente a partir de ano de 1987, como já podemos ver no segundo capítulo. Dos manequins que Iberê desenha a partir de 1987, podemos destacar D2751, desse mesmo ano. Um desenho construído a partir de um emaranhado de linhas, como uma estrutura de arames, conforme falamos no capítulo anterior. O manequim faz parte da série “Fantasmagoria”, que terá trabalhos também em pintura e gravura. 560 Imagem 276 - D2751 Sem título, 1987, caneta sobre papel, 32 x 21,2 cm. Acervo FIC Voltando-nos, agora, à presença dos manequins na história da arte moderna, podemos notar o aparecimento do manequim como questão artística a partir do uso que 561 dele fizeram os surrealistas nos anos 1930. Interessados nas questões dos autômatos, receberão com entusiasmo os trabalhos que o artista alemão Hans Bellmer fará a partir dos manequins. Em dezembro de 1934, aparecerão suas imagens mais conhecidas, publicadas na revista surrealista Minotauro. Fotos de um manequim, disposto de maneiras incomuns e provocativas – muitas vezes, causando estranheza pela indefinição de alguns de seus elementos como sendo humanos ou não, como é o caso da foto abaixo. Imagem 277 - Hans Bellmer - La Poupee, Fotografia, 1935. Revista Minotauro. 562 Em outras, com a presença humana bastante clara do artista ao lado das figuras, conforme vemos a seguir. Imagem 278 - Hans Bellmer - La Poupee, Fotografia, 1935. Revista Minotauro. Até que ponto podemos afirmar que a utilização de um documento comum produz 563 ecos entre as produções de artistas? Se a obra de Iberê Camargo não guarda semelhanças formais com essas imagens de Bellmer, é interessante notarmos que, afora as conhecidas fotos, Hans Bellmer também realizou desenhos e gravuras retratando sua companheira, a artista surrealista Unica Zürn, junto à figura do manequim, conforme vemos no desenho sem título de 1954 (Caneta e tinta branca sobre papel preto, 50 x 70 cm). Imagem 279 - Hans Bellmer - Sem título. (verso), 1954, Caneta e tinta branca sobre papel preto, 50 x 70 cm. Coleção Particular. Tratando-se, agora, de linguagens comuns, podemos ver que tais trabalhos de desenho e gravura nos fazem lembrar, em suas linhas estruturais, alguns dos desenhos como o que aqui apresentamos, bem como de gravuras de manequins realizadas por 564 Iberê. Estrutura que se torna ainda mais clara quando vemos as matrizes das gravuras de Iberê, que, pelo risco branco sobre fundo preto, coincidem ainda mais com as imagens de Bellmer, como a matriz a seguir. Imagem 280 - Iberê Camargo - [Manequim e Ciclista], matriz, 1992, água-forte, 24,6 x 29,5/35 x 39,3 cm. Acervo FIC Falando agora a mesma língua e tratando do mesmo assunto, parece que temos, através do percurso de um documento de trabalho compartilhado, uma chave explicativa que nos permite afirmar a semelhança formal entre as duas obras e traçar, a partir delas, nossa constelação de influências. Seguindo nosso percurso histórico, notamos que o trabalho de Bellmer esteve historicamente adormecido até a segunda metade dos anos 1980, quando então uma 565 produção dessa época que tratava novamente da presença dos manequins (agora mais diretamente influenciada pelo artista) trouxe à tona os trabalhos do surrealista alemão. Em 1985, fazendo um deslocamento na escolha dos manequins, assim como Iberê, que não utilizava manequins artísticos, Cindy Sherman, em suas séries de fotografias “Fairy Tales e Disasters”, utilizará manequins e próteses ou partes de manequins médicos, explorando o grotesco e o insólito dessas imagens. Assim como Bellmer, em seus primeiros trabalhos fotográficos, explorará a presença contígua do corpo humano com o corpo plástico dos manequins (uma contiguidade ainda mais próxima, já que se trata de inserções de partes do manequim montadas sobre o corpo da artista), conforme vemos em Untitled # 188, de 1989 (The Museum of Modern Art, New York). Imagem 281 - Cindy Sherman - Untitled # 188, Fotografia, 1989 “(Disasters)”, MoMa, Nova Iorque. 566 Posteriormente, em trabalhos do início dos anos 1990, Cindy Sherman não estará mais presente nas fotos, trabalhando então exclusivamente com os manequins. A semelhança com o documento de trabalho de Iberê tornar-se-á, portanto, mais evidente, conforme vemos na fotografia sem título de 1992, abaixo. Imagem 282 - Cindy Sherman - Sem título, 1992, fotografia, 68 x 45 polegadas. Metro Gallery. 567 É interessante notarmos que a recuperação dos trabalhos de Bellmer, a partir do trabalho de Cindy Sherman, coincide com a época em que Iberê passa a se interessar pelos manequins. Além disso, é possível identificar alguns elementos comuns ao trabalho desses três artistas, como a presença do corpo humano junto ao manequim e a exploração da ideia de artificialidade ou reificação humana. Ainda que bastante distintos, os trabalhos parecem estabelecer um rico diálogo para aquele que tiver a disposição de escutá-lo. O método que sugeri para essa escuta é o do estudo que parte dos documentos de trabalho e vai em direção às obras. Penso no documento como uma espécie de dobradiça que junta, articula e faz movimentar um ou mais trabalhos artísticos a partir de um ponto comum. Uma ideia que não é imaterial, mas encarnada em um objeto. Objeto que é dotado de significados diversos, conforme a poética e as questões específicas de cada artista, e que traz suas diferenças e aspectos criativos particulares, mas que deixa as marcas de sua presença assim como os vestígios de uma ausência essencial. E que desenha, entre presenças e ausências, essa série de articulações complexas de influências. Manequins são objetos que, pela singularidade em serem cópias humanas pequenos homens (manneken), como etimologicamente são definidos –, nos assombram e inquietam; talvez por isso sejam ricos de possibilidades para o trabalho artístico e foram utilizados justamente por artistas em que os problemas psicológicos e existenciais estavam sempre tão presentes. Do mesmo modo, por sua própria característica de representações humanas (ainda que feitos em série, seu caráter de obra escultórica é evidente), os manequins representam a própria tarefa artística de representar e, nesse sentido, são representações da própria ideia de influência. Peças presentes em nosso ambiente urbano e industrial, como documento de trabalho adquiriram para Iberê (e para os outros dois artistas aqui vistos) um valor singular. Para nós, espectadores, a alquimia artística também se realiza: como acontece com todo trabalho artístico que faz menção aos objetos do mundo e que marca sua presença como esse objeto singular ao qual chamamos de arte, não temos dúvidas de que nunca mais será possível ver um manequim da mesma forma que os víamos antes. O exercício de reflexão a partir dos documentos dos trabalhos levou-nos ao 568 estabelecimento de uma rede de relações tendo como ponto em comum o manequim, que acabou por nos indicar uma obra de arte contemporânea, as fotografias de Cindy Sherman, compondo essa rede de relações de influências. A partir disso, concebemos a possibilidade de pensar outra reação entre trabalhos de arte contemporânea e a obra de Iberê Camargo, a partir da curiosa série de desenhos de acidente que o artista fez em 1987, tal como D0745. Imagem 283 - D0745 Sem título, 1987, lápis Stabilotone sobre papel, 21 x 31,7 cm. Acervo FIC Quando Iberê desenha sua série de carros acidentados, em 1987, faz duas décadas que Andy Warhol realizou sua série de telas, fotos e impressões “Death and Disaster”. A série é marcada por um conjunto de imagens de acidentes de carros. A série inicia com a pintura “Green Car Crash”, de 1963, a qual retrata (a partir de uma foto, primeiramente publicada na revista Newsweek) um carro incendiando e seu condutor 569 empalado em um poste à frente. Nessa série, que prossegue ao longo de vários anos, temos obras como a impressão “Car Crash CA”, de 1978 (88x114 cm). Imagem 284 - Andy Warhol - “Car Crash CA”, 1978, 88 x 114 cm. Coleção privada. A grande semelhança entre o desenho e a impressão de Warhol, bem como o inusitado do tema dentro de toda a produção de Iberê Camargo, incita-nos a estabelecer uma relação de possível influência do trabalho de Warhol nos desenhos de Iberê. A obra de Warhol insere-se nas questões próprias da chamada arte contemporânea. Tratando do estatuto da imagem, de sua repetição, e por essa mesma repetição, refletindo sobre seu apagamento e sobre a banalização e esgotamento do visível, Warhol é um dos representantes do pensamento artístico posterior ao da Modernidade. Curioso, portanto, uma aproximação desse tipo de produção que, ainda que temporalmente anterior à de Iberê Camargo, trata de questões historicamente posteriores (refiro-me ao panorama da história da arte) às questões de Iberê – este último, um artista eminentemente preocupado com os problemas da modernidade. As semelhanças óbvias 570 entre as duas imagens são nosso ponto de partida para o estabelecimento das hipóteses dessas relações de influência. No entanto, é importante que também examinemos os problemas conceituais – mais explícitos na arte contemporânea – para que as relações de influência que indicamos se tornem possibilidades mais coerentes com o tipo de obra que estamos examinando (principalmente quando temos como foco a obra de Warhol, que parece se estabelecer em um campo além da semelhança visual583). O aspecto mais significativo nessa relação é a busca pela repetição da imagem, que também é presente nesses desenhos de Iberê Camargo. Os desenhos formam uma série fechada e específica, e são justamente sua especificidade e coerência interna que nos permitem afirmar que um pensamento artístico (desenhante) comum estrutura essas formas. A reflexão que se delineia diz respeito ao estatuto da imagem, de sua formação e de sua repetição. Uma reflexão também que expressa o apagamento da imagem, indicado além da própria série (de sua repetição), através da composição de cada uma das imagens, visto o aspecto fantasmático alcançado em determinadas áreas do desenho pelo trabalho com o giz. Pensamos, portanto, que tais aspectos aproximam esse conjunto de desenhos de Iberê Camargo conceitualmente das imagens de Warhol em sua busca pela seriação e por esses outros aspectos indicados. Finalmente, esse período ainda é marcado por uma série de representações femininas (afora suas “fantasmagorias”), em que se nota, além da frontalidade dos nus já vista anteriormente, a simplificação formal e a rapidez no traçado das figuras. Entre proximidades e distanciamentos, seguimos nossa trajetória pelas influências estadunidenses de Iberê Camargo (depois de termos apontado as relações com Sherman e Warhol), notando a semelhança dessas figuras com as mulheres de De Kooning. A partir disso, podemos ver o desenho D1065, de 1987, em suas semelhanças com os desenhos de De Kooning. 583 Arthur Danto foi o primeiro autor a indicar que a arte contemporânea se assenta em questões que vão além da visualidade, principalmente a partir da análise que fez de outra obra de Warhol, “Brillo Box”. Ver: DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: EDUSP, 2006. É a partir desse autor, e da série de estudos contemporâneos que apelam à necessidade de um entendimento da arte contemporânea que vá além da semelhança visual, que consideramos importante, na comparação da obra de Iberê Camargo com a de um artista contemporâneo, analisar outros aspectos artísticos além daqueles relacionados à semelhança formal. 571 Imagem 285 - D1065 "Manequim (44/87)", 1987, giz sobre papel, 62,9 x 55,2 cm. Acervo FIC 572 Entre os desenhos de De Kooning, destacamos “Seated Woman”, de 1952 (30 x 24 cm, MoMa, NY). Imagem 286 - William De Kooning - “Seated Woman”, 1952, giz sobre papel, 30 x 24 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. 573 O pastel apresenta interessantes relações com a obra de Iberê Camargo. Notamos o rosto das duas figuras, com seu sorriso perturbador. Do mesmo modo, a frontalidade das figuras e sua mão erguida, que estabelecem um espelhamento, ao ser distinto nas figuras o braço que se ergue. Alguns aspectos das cores também chamam a atenção, sobretudo os tons de amarelo e rosa, presentes nos dois desenhos. Por último, cabe ressaltar uma espécie de violência contida que está presente tanto na imagem de De Kooning quanto na de Iberê. Do mesmo modo, a imagem D1470, de 1988, estabelece relações de similitude que indicamos como influências da obra de De Kooning. Imagem 287 - D1470 Sem título nº 54/80, 1988, carvão sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. Acervo FIC 574 O desenho de giz negro de Iberê aproxima-se do desenho a lápis de De Kooning de mesmo título que o anterior (“Seated Woman”), de 1953/4 (35 x 30 cm, MoMa, NY). Imagem 288 - William De Kooning - “Seated Woman”, 1953/4, carvão sobre papel, 35 x 30 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. 575 A frontalidade das figuras mais uma vez combina com a expressão dos rostos, não mais sorridentes, como os anteriores. Novamente, chama-nos a atenção os olhos das figuras, dotados de uma mesma ênfase. As linhas e as manchas das figuras também se assemelham, ainda que, em De Kooning, essa mancha tenha um caráter mais pronunciado, enquanto que, em Iberê, surja de maneira mais difusa. Um dos artistas mais relacionados à obra de Iberê Camargo, conforme vimos nos textos sobre o artista, no Capítulo Primeiro, De Kooning, no momento em que Iberê elabora os desenhos agora examinados (os anos 1980), já é um dos grandes expoentes da Modernidade norte-americana. Uma modernidade mais próxima de Iberê Camargo do que a de Picasso, por não possuir aquele peso artístico absoluto que a obra picassiana tem. Tal aproximação, se possibilita influências, por isso mesmo reveste-se da incômoda angústia trazida por essa possibilidade. É ela (a angústia da proximidade) que provavelmente fará Iberê Camargo afirmar (conforme vimos anteriormente): “como sou um pintor latino-americano, amanhã dirão que eu estou imitando a maneira do pintor De Kooning”584. Se à época dessa produção de Iberê Camargo a obra de De Kooning já está estabelecida no cânone moderno, com esse artista pouco produzindo no período e suas obras fundamentais localizadas em sua produção da década de 1950, os anos 1980 marcam uma retomada não apenas da pintura, mas da figuração no panorama artístico mundial. Nesse sentido, o trabalho de De Kooning volta a ser valorizado, justamente por ser esse artista um expressionista eminentemente preocupado com a figuração e seus limites: questões, por sua vez, que tocam a poética de Iberê Camargo e que permitem tais relações de influências. 3.10 Os anos de 1991 a 1994 O último período da produção de Iberê Camargo é marcado pela persistente presença da figura a que comumente chamamos de “idiota”. “Idiotas” é como frequentemente Iberê Camargo nomeia os trabalhos com essa figura, que tem por modelo 584 CAMARGO, Iberê. Carta de 1984. Apud: CARNEIRO, Gilmar. “As Cartas de Iberê”. In: Jornal do MARGS, setembro de 2002. 576 Helena (funcionária de sua residência) não apenas nos desenhos, mas nas telas e gravuras do artista. A figura apresenta-se com a mesma frontalidade de algumas mulheres que vimos nos trabalhos dos anos anteriores. Entretanto, não são mais desenhadas a partir daquele gesto sintético, tal como aquelas imagens com as quais estabelecemos relações de influência com as obras de De Kooning. Trata-se de um novo modo de figuração, mais próxima, por exemplo, dos trabalhos com os manequins: realizadas através de um conjunto estruturante de linhas, de um traço que, pela repetição, se estrutura para dar forma à imagem. Como exemplo desse trabalho, temos D0410, de 1992. Imagem 289 - D0410 “Série 'Tudo te é falso e inútil", 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32 cm. Acervo FIC Nota-se, nas figuras repetidas, a busca do artista por essa imagem. Busca que marca aproximações e afastamentos de uma representação mais “naturalista” da imagem, como podemos notar na diferença em que os rostos são ali desenhados. Ao buscarmos 577 as influências a que essa imagem pode fazer referência é preciso, entre aproximações e afastamentos, marcarmos os outros desenhos que se desenham nessa busca figurativa de Iberê Camargo. Nossa hipótese é a da possibilidade de encontrarmos esses outros desenhos nas imagens femininas que um artista do grupo dos “Neue Wilden”, os neo-expressionistas alemães, faz a partir dos anos 1960: Georg Baselitz (1938). Os trabalhos de Baselitz começam a ter um reconhecimento internacional, junto com o grupo de pintores alemães como Kiefer, Immendorff e Lüpertz, a partir dos anos 1980. Essa arte articula-se com o movimento mais geral de retorno à figuração (e retorno à pintura) do início dos anos 1980, tendo expoentes do outro lado do Atlântico, como Basquiat e Schnabel. Essa pintura terá como um dos principais defensores teóricos o crítico italiano Achille Bonito Oliva (criador do termo “Transvanguarda”), que, através de uma série de visitas ao Brasil, acaba por influir nos artistas brasileiros dos anos 1980 que formarão a assim denominada “geração 80” da pintura brasileira: Tunga, Jorge Guinle, Leonilson, Leda Catunda, entre tantos outros. Novamente, parece-nos que aquelas influências sofridas ao longo dos anos 1980 se revelam agora, anos depois, através desses desenhos, do mesmo modo que o jogo entre proximidades e distâncias se faz presente nessas relações entre jovens artistas brasileiros e o panorama artístico internacional. Analisando mais objetivamente as proximidades entre essas duas obras, podemos notar desenhos como o “Retrato de Antonin Artaud”, ainda de 1963, mas dentro de uma preocupação formal que se repete ao longo dos anos na obra de Baselitz. 578 Imagem 290 - Georg Baselitz - “Retrato de Antonin Artaud”, 1963, nanquim sobre papel, 30 x 50 cm, Coleção particular. Notamos a semelhança das imagens pela construção das linhas e pela proximidade entre as figuras (ainda que, curiosamente, retratem pessoas de sexos diferentes). Do mesmo modo, outras obras de Baselitz também estabelecem relações de semelhança com as figuras de Iberê, tal como o linóleo “Female Nude on Kitchen Stool”, de 1979 (22,0 x 15,8 cm, MoMa, NY), uma de suas famosas figuras invertidas – estratégia utilizada pelo artista para liberar a representação de seu contexto. 579 Imagem 291 - George Baselitz - “Female Nude on Kitchen Stool”, 1979, linóleo, 22,0 x 15,8 cm. Coleção MoMa, Nova Iorque. A mesma frontalidade das figuras e o trabalho de linhas são notados. Figuras abandonadas à sua própria sorte, na franqueza de seus corpos nus e expostos em absoluta frontalidade. Semelhante à obra de Iberê já indicada, ou a D1472, de 1992. A obra de Baselitz foi apresentada no Brasil em 1975, na 13ª Bienal de São Paulo. Essa bienal também contou com a participação de Iberê Camargo. O artista alemão, que veio ao Brasil à época, era, junto com Polke, o representante alemão dessa mostra que 580 teve como um de seus marcos os trabalhos de vídeo-arte e o fim da era de Ciccilio Matarazzo como seu principal organizador. Dentre as polêmicas da Bienal, políticas (saída de Ciccilio) e artísticas (apresentação dos vídeo-artistas), as obras pictóricas de Iberê e Baselitz (além das de Polke) muito provavelmente comunicavam-se entre si, e essa semelhança, frente à diferença dos outros projetos expostos, deve ter ativado as relações artísticas que favoreceram as influências que indicamos possíveis, alguns anos depois. Entre as relações, notamos a tentativa de descontextualização da figura, já buscada no caso de Baselitz através do recurso da posição invertida das figuras, mas também presente nesse espaço sem referência em que suas figuras estão desenhadas em sua obra e na obra de Iberê Camargo. As linhas que formam as “idiotas” desse período assentam-se em um espaço não-referencial, vazio, situando estas em uma solidão contextual que se relaciona ao esvaziamento de contexto na obra de Baselitz. Imagem 292 - D1472 Sem título, 1992, caneta de nanquim sobre papel, 24 x 32,1 cm. Acervo FIC 581 Estabelecendo mais uma vez uma relação de influência em que o próximo e o distante, o contexto brasileiro (geração 80) e internacional (neo-expressionismo) se combinam e se inter-relacionam de modo complexo, notamos as muitas presenças nessa figura, mas sobretudo aquela que mais diretamente podemos identificar, a dos desenhos de Baselitz. O desamparo de suas mulheres (desamparo “metafísico” que também se relaciona à ausência de contexto em que estão lançadas as figuras de ambos), o trabalho com o emaranhado de linhas, a frontalidade e franqueza dessas figuras são todos elementos que, ao tocarem problemas que de modos distintos e em momentos diferentes interessavam a Iberê, indicam ter influenciado a criação da figura da “idiota”. 582 Conclusão Como uma espécie de desenho, esta tese delineou uma série de possibilidades ou hipóteses de relações de influências, partindo da própria hipótese – anterior a tais relações - segundo a qual a influência seria uma ferramenta útil no instrumental teórico, histórico e crítico da arte. Sobretudo, nossa intenção foi identificar tal utilidade em uma aproximação crítica à obra de desenhos de Iberê Camargo. Participar desse trabalho “constelar” de identificação e traçado dessas relações, estabelecido em um campo convergente entre influência e desenho, é uma homenagem à obra desse artista. Mais do que uma homenagem, trata-se aqui de recuperar aspectos que consideramos fundamentais em sua obra, ao procurarmos evidenciar relações que estão acima e além das circunstanciais tentativas (mais ou menos conscientes) de apagamento dessas mesmas relações. Testadas as hipóteses, devemos, à guisa de uma conclusão (nunca absoluta, já que o término de uma tese é – ou deve ser – muito mais a abertura a novas indagações do que propriamente o encerramento de um problema), sublinhar seus resultados, a partir de alguns pontos que nos parecem centrais na estrutura geral da tese. Ao longo da pesquisa, principalmente a partir da análise geral dos desenhos de Iberê Camargo, no segundo capítulo da tese, tornou-se evidente a hipótese de que o acervo de Iberê Camargo possui um conjunto de desenhos suficientemente extenso e organizado que nos permitiu sua análise sistemática. Tal extensão, organização e valor artístico também nos permitiram estudá-lo no sentido de inferir características específicas dos desenhos e gerais a respeito do conjunto de sua obra. Mais do que isso, a análise desse conjunto de trabalhos revelou-nos aspectos inicialmente insuspeitos sobre sua produção. Desses aspectos, é importante marcarmos em primeiro lugar a presença da figura 583 ao longo de toda a sua trajetória. Afora um período muito curto em sua produção de desenhos, Iberê permanece com a questão da figuração (sobretudo, da figuração humana) em toda a sua longa trajetória de trabalho. Outro aspecto importante identificado na análise dessa obra é o descompasso entre os momentos tidos pela crítica como centrais nas mudanças de rumo da poética de Iberê e aquilo que podemos identificar através de seus desenhos. Como exemplos disso, temos a presença das naturezasmortas e de uma reflexão sobre o espaço interior (em contraposição à paisagem exterior) anterior ao acontecimento relacionado à sua hérnia de disco. Outro exemplo é o da presença da figura humana retratada em seu desespero e tragicidade em anos imediatamente anteriores àquele marcado pelo assassinato cometido pelo artista e os de sua prisão. A segunda hipótese apontada na introdução da tese, segundo a qual existiria um conjunto de relações não amplamente estudadas no campo da arte, as relações de influência, que poderiam contribuir para o estudo de obras de arte, também nos pareceu amplamente comprovada. Em primeiro lugar, a análise do conceito de influência no campo da Literatura Comparada indicou-nos uma rica trajetória conceitual percorrida por esse conceito (ao menos) nos últimos cem anos. Tal riqueza, frente à carência de estudos específicos no campo da arte, apontou do mesmo modo a possibilidade de contribuição entre os dois campos de conhecimento no sentido de se pensar o conceito de influência em sua especificidade artística. A localização de ao menos um teórico no campo das artes visuais (Göran Hermerén) trabalhando de forma sistemática (a partir do instrumental filosófico analítico) com o conceito de influência auxiliou-nos na confirmação dessa hipótese da validade do conceito em nosso campo de pesquisa. Frente à análise prévia dos desenhos de Iberê Camargo, empreendida no capítulo segundo, e já informados sobre o tipo de conceito que estamos tratando ao trabalhar com a influência, pudemos confirmar a terceira hipótese desta tese. Tal hipótese refere-se à validade dessas relações de influência no confronto (ou encontro) com a obra de Iberê Camargo. Não apenas a influência se mostrou (como já indicado na hipótese anterior) um instrumental relevante para a arte, como também a obra de Iberê apresentou características suficientemente indicativas desse tipo de relações (ou da possibilidade do estudo destas). Além da validade dessa análise, pudemos comprovar, no exercício 584 empreendido no terceiro capítulo da tese, ao estudarmos objetivamente essas influências na obra de Iberê Camargo, que tal instrumental analítico se revelou uma ferramenta enriquecedora das leituras críticas dessa obra, o que validou nossa quarta hipótese de trabalho. No que se refere a tal enriquecimento, destacamos: (1) O acompanhamento, de forma mais sistemática, das primeiras escolhas poéticas do artista, através do estabelecimento de relações entre a influência (próxima) dos primeiros mestres e o quanto tais influências contribuíram para a busca de influências (mais distantes), ligadas à grande tradição artística moderna (busca que, quanto mais era distante, mais se buscava e menos era alcançada - na medida em que deixava de ser uma influência e se tornava uma referência). (2) O entendimento da obra de Iberê Camargo inserida no contexto artístico de sua época, tanto no que se refere ao ambiente artístico nacional quanto às relações que o artista estabeleceu com os artistas seus contemporâneos internacionalmente reconhecidos e inseridos nos contextos europeu e norte-americano. (3) Um melhor entendimento das relações entre os silêncios do artista em relação às suas influências através dessa ferramenta de análise que identificou uma angústia ligada a tal influência quando relacionada a proximidades (proximidades, no que se refere às produções tanto temporais quanto geográficas). A análise empreendida no primeiro capítulo da tese tornou evidente a hipótese segundo a qual o contexto histórico e artístico em que se insere a obra de Iberê Camargo é fundamental para o entendimento das reticências, negações e silêncios tanto do artista quanto de sua fortuna crítica, no que se refere aos problemas de influência (quinta hipótese elencada em nossa introdução). Apresentando os pressupostos da modernidade como coincidentes àqueles de uma negação ou encobrimento da influência, a partir do elogio à originalidade (entendida em seu sentido mais restritivo, de uma originalidade fundante, não atravessada por contaminações de influências) e identificando Iberê e boa parte de sua crítica como agentes e pacientes dessa mesma modernidade, foi possível entendermos o contexto em que se forjaram tais concepções. Conscientes dos problemas causados por tal encobrimento dos problemas da influência na obra de Iberê Camargo, fez-se necessária a construção de uma ferramenta conceitual não apenas instrumental para o entendimento dos problemas artísticos de 585 modo geral, mas que fosse capaz de extrair as questões específicas relacionadas à obra de desenho de Iberê Camargo. Sendo assim, a construção de um conceito que alie desenho e influência pareceu-nos o modo mais adequado de tratar essas questões. Dessa forma, construiu-se tal ferramenta conceitual, tal como apresentado na hipótese sexta, ferramenta essa que, frente à obra de Iberê Camargo, se mostrou suficientemente precisa para indicar possíveis influências em sua produção artística de desenhos. Essa precisão, indicando as possíveis influências, indicou-nos a validade da sétima hipótese proposta na introdução (a inferência de relações de influência na obra de Iberê Camargo, a partir do encontro dessa obra com a ferramenta aqui apresentada). A partir do teste e comprovação das hipóteses apresentadas, podemos concluir que o objetivo previamente delimitado foi, por consequência, alcançado. Ou seja, pode-se afirmar que foi possível (1) encontrar um conceito que (2) articule a questão da influência vista sob a perspectiva do desenho, construindo-se (tal conceito assim articulado) como (3) ferramenta para o estudo da (de parte selecionada da) obra de Iberê Camargo (4) dentro do (e atravessado pelo) cenário da modernidade, de sua ideologia e de seu discurso. Do mesmo modo, consciente da exiguidade dos estudos sobre o desenho de Iberê Camargo, um objetivo prévio também foi alcançado: (0) o da apresentação dessa obra, em uma perspectiva temporal ampla, capaz de acompanhar desde sua origem até seus últimos trabalhos. Ao longo de sua trajetória artística, Iberê Camargo marcou seu trabalho por uma extrema entrega aos problemas da imagem e seus mistérios. Entregue a essa busca, soube ser fiel à sua própria poética e a essa trajetória. É a partir dessa fidelidade que tantas mudanças ocorreram em sua obra, conforme tivemos a oportunidade de acompanhar. Essa mesma fidelidade é a que faz com que essa busca seja acompanhada, por um lado, de silêncios e reticências em seus discursos sobre a influência, por outro, pela afirmação, em sua obra, desses encontros. Sacar de nossa visão o preconceito moderno em relação às influências (principalmente às influências ligadas à proximidade de sua própria época) permite-nos também sermos fiel àquela trajetória do artista evidenciada por seu trabalho. 586 Nesse conjunto de relações, novas possibilidades de pesquisas surgem, como, por exemplo, as influências exercidas por Iberê Camargo sobre os artistas de seu tempo e na arte que se faz nos nossos dias. Do mesmo modo, as relações de influência aqui esboçadas não esgotam a possibilidade de novos encontros de outras vozes e outras linhas a partir das linhas dos desenhos de Iberê Camargo. Não esgotamos as análises possíveis sobre a obra de Iberê em suas relações de influência: nossas análises traçam apenas um panorama geral e notadamente limitado no que se refere a tais relações (a exiguidade do espaço de uma tese não permite o esgotamento dessas relações, as quais pensamos ser possível sugerir terem por vocação justamente seu caráter inesgotável). Da mesma maneira, é possível o estudo da influência em outras técnicas artísticas de Iberê, como a pintura e a gravura (com instrumentais teóricos pensados/adaptados para esses outros meios de expressão artística). Afora as questões objetivamente apontadas, a partir das hipóteses e conclusões apresentadas, esta tese indica também algumas questões não explicitadas de forma direta, mas que derivam, de modo geral, dos problemas aqui estudados. Entre essas questões, destacamos a importância dos estudos de influência no sentido de nos permitir a visualização de novas perspectivas nos estudos sobre arte sob um olhar mais integrado (menos isolado) em relação aos artistas e suas produções. Vista assim, a influência tornase uma ferramenta para o estudo sistêmico da arte, a partir dos encontros e desencontros dos artistas, de seus silêncios e de suas evidências. 587 Referências bibliográficas BOIS, Yves-Alain. Matisse e Picasso. Paris: Flammarion, 2001. GIRARD, René. Deceit, Desire and the Novel. Trad. Yvonne Freccero. Baltimore: John Hoopkins University Press, 1966. ADORNO, Theodor. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982. ALAMBERT, Francisco & CANHÊTE, Polyana. As bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004. ALDRIDGE, A Owen. “Ancients and moderns in the eighteenth century”. In: WIENER, Philip P. (org). Dictionary of the Hissory of Ideas. 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Madrid: Cátedra, 2006. 599 ANEXOS 600 Breve cronologia biográfica e artística de Iberê Camargo 1914 – Iberê Bassani de Camargo nasce em Restinga Seca, no dia 18 de novembro, filho de Adelino Alves de Camargo e de Doralice Bassani de Camargo. 1928 - Estuda pintura na Escola de Artes e Ofícios de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 1936 - Muda-se para Porto Alegre. 1939 - Frequenta o curso técnico de Arquitetura do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre. Casa-se com Maria Coussirat, bacharel em pintura pelo Instituto de Belas Artes de Porto Alegre. 1940 - Monta o primeiro ateliê em Porto Alegre, com o amigo Vasco Prado, nos fundos de sua casa à Rua Lima e Silva. 1941 - Demite-se do serviço público para se dedicar exclusivamente à arte. 1942 - Exposição individual no palácio do governo do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Transfere-se para o Rio de Janeiro como bolsista do governo do Estado do Rio Grande do Sul. Ingressa na Escola Nacional de Belas Artes. No mesmo ano, deixa a Escola de Belas Artes e estuda por dois meses com Guignard no prédio da UNE. 1943 - Cria, com outros artistas, o Grupo Guinard no Rio de Janeiro. 1944 - Exposição individual na Casa das Molduras, Porto Alegre. Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Exposição Auto-Retrato no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Dissolução do Grupo Guignard. 1945 - Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Mostra 20 Artistas Brasileiros, Buenos Aires, Argentina. 1946 - Salão Nacional do Rio de Janeiro. Primeira exposição individual no Rio de Janeiro, no Ministério de Educação e Saúde da capital da República. 1947 - Prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com a pintura Lapa. Exposição individual na Casa das Molduras, Porto Alegre. Exposição Pintura Contemporânea Brasileira, Montevidéu, Uruguai. 1948 - Exposição Pintura Contemporânea Brasileira, Johanesburgo, África do Sul. Exposição Pintura Contemporânea, na Biblioteca Pública de Salvador. Exposição Pintura Brasileira, Chile. 1948 - Viagem à Itália. Em Roma, estuda pintura com De Chirico, gravura com Petrucci e afresco com Achille. 601 1949 - Viagem à França. Frequenta a Academia André Lhote, Paris, França. 1950 - No final do ano, retorna ao Brasil, fixando residência no Rio de Janeiro. 1951 - Membro do júri do Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. I Bienal de São Paulo. Exposição individual no Museu de Arte de Resende, Rio de Janeiro. Bienal de Arte Hispano-Americana, Madri, Espanha. 1952 - Integra, até 1955, a comissão Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Expõe, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, gravuras para a ilustração do livro O Rebelde, de Inglêz de Souza, destinado aos sócios do grupo Os Cem Bibliófilos do Brasil. Exposição na Universidade do Chile. Exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Exposição no Museu de Arte de Florianópolis. Coletivo no Instituto Brasil - Estados Unidos, Rio de Janeiro. 1953 - Como professor concursado, funda o curso de gravura em metal no então Instituto Municipal de Belas Artes, hoje Escola de Artes Visuais, Rio de Janeiro. Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Exposição Gravuras Brasileiras, Berlim, Alemanha. 1954 - Primeira exposição individual depois da volta ao Brasil na Galeria do Instituto Brasil – Estados Unidos. Organiza o Salão Preto e Branco, manifestação pela diminuição das taxas de importação das tintas, no III Salão de Arte Moderna, Rio de Janeiro. 1955 - Administra curso de gravura em metal, Porto Alegre. Exposição individual no Clube da Gravura, Porto Alegre. Bienal de Madri, Espanha. Novo Salão Carioca, Rio de Janeiro. Idealizou o Salão Miniatura como protesto pela insignificante redução das taxas de importação das tintas para artistas plásticos, na Associação Brasileira de Imprensa, Rio de Janeiro. Uma hérnia de disco o deixa privado de sair de casa. 1956 - Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Mostra coletiva no Museu Guggenheim, Nova York, Estados Unidos. III Bienal Hispano-Americana, Barcelona, Espanha. Exposição 50 Anos Paisagem Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. 1957 - Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Exposição organizada pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em Buenos Aires, Argentina. Exposição de gravura brasileira, Montevidéu, Uruguai. 1958 - Exposição de gravura brasileira no Museu de Quito, Equador. Bienal da Cidade do México. Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes, Porto Alegre. Exposição individual na Galeria GEA, Rio de Janeiro. Membro do júri do Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1959 - Exposição na União Pan-Americana, Washington, Estados Unidos. V Bienal de São Paulo. Exposição 30 Anos de Arte Brasileira na Galeria Macunaíma, Rio de Janeiro. Exposição em homenagem aos críticos de arte, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Participou da exposição itinerante de gravadores brasileiros organizada pela Comissão de Cultura em colaboração com o Smithsoniam Institute of Washington, Estados Unidos. Coletiva no Museu de Arte Moderna de Chapultepec, Cidade do México. 1960 - International Bienal Exhibition of Prints in Tokio, National Museum of Modern Art Yomiuri Shimbun, Tóquio, Japão. Mostra Latin American Painters and Painting, 602 organizada pelo Museu Guggenheim, Nova York, Estados Unidos. Exposição individual no centro de Artes e Letras de Montevidéu, Uruguai. Bienal da Cidade do México. Curso de pintura na Prefeitura de Porto Alegre, origem do Ateliê Livre da cidade. Exposição inaugural do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, Argentina. Administrou curso de gravura em metal, Montevidéu, Uruguai. Exposição individual no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Mostra inaugural da Galeria Bonino, Rio de Janeiro. 1961 - Bienal do Japão. Prêmio Melhor Pintor Nacional, na VI Bienal de São Paulo. Coletivas: O Perfil e a Obra e A Natureza Morta na Pintura no Instituto Brasil-Estados Unidos, Rio de Janeiro. Exposições de gravura: Estados Unidos e Japão. 1962 - Bienal de Veneza, Itália. Retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Pintou painéis para a Companhia de Navegação Costeira e os expôs no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Coletiva na Galeria Relevo, Rio de Janeiro. Exposição na Walter Art Center of Minneapolis, Estados Unidos. Participou da exposição na Embaixada dos Estados Unidos, Rio de Janeiro. Exposição de gravura, Japão. 1963 - Sala Especial na VII Bienal de São Paulo. Exposição individual na Petite Galerie, Rio de Janeiro. Exposição de gravura, Lima, Peru. Exposição Resumo do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Exposição no Museu Lagos, Nigéria. Exposição A Paisagem como Tema, no Instituto Brasil-Estados Unidos, Rio de Janeiro. 1964 - Exposição individual na Galeria Bonino, Rio de Janeiro. Publicou nos Cadernos Brasileiros o seu Tratado sobre Gravura em Metal, Rio de Janeiro. 1965 - Exposição individual na Galeria Bonino, Rio de Janeiro. Exposição Ocho Grabadores Brasileños, na Galeria Rene Mentres, Barcelona, Espanha. Transfere-se do curso de gravura em metal para o de pintura do Instituto Municipal de Belas Artes do Rio de Janeiro, atual Escola de Artes Visuais, Rio de Janeiro. Ministra curso de pintura promovido pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Exposições no Royal College of Art Galleries, Londres, Inglaterra; Galerie Subel, Paris, França; Museu de Arte Moderna de Madri, Espanha, e de Toronto, Canadá; Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, Portugal; Museu Guggenheim, Nova York, Estados Unidos. 1966 - Executa painel de 49 metros quadrados oferecido pelo Brasil à Organização Mundial da Saúde, Genebra, Suíça. Exposição Brasillianisch Kunst Heunst, Bonn, Alemanha. Exposição no Museu de Arte Moderna do México. Exposição individual na Galeria Bonino, Rio de Janeiro. 1967 - Exposição Resumo do Jornal do Brasil, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1968 - Bienal Internacional de Tóquio, Japão. Integrou o júri do Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1969 - Individuais: Galeria Yázigi, Porto Alegre; Biblioteca Pública Municipal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ministra os cursos: pintura, para detentos da Penitenciária de Porto Alegre; gravura em metal, na Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Coletivas nos Estados Unidos: Gallery Confianza, Barnegat Light, Nova Jersey; Art Gallery Center for Inter-American Relations, Nova York. 1970 - Aulas de pintura na Penitenciária de Porto Alegre e de gravura em metal na Escola 603 de Belas Artes da Universidade de Porto Alegre. Exposição individual na Galeria Barcinski, Rio de Janeiro. 1971 - Sala Especial na XI Bienal de São Paulo. Exposição Resumo do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 1972 - Expõe na inauguração de seu ateliê, Rio de Janeiro. 1973 - Exposição individual na O'Hana Gallery, Londres, Inglaterra. Exposição individual na Galeria do Ineli, Porto Alegre. Exposição individual na Maison de France, Rio de Janeiro. Exposição Internacional de Gravura, Ljubljana, Iugoslávia. Exposição Gravura Brasileira no Século XX, no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Exposição no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo. 1974 - Exposição individual na galeria da Aliança Francesa, Rio de Janeiro. Exposição de gravuras no Centro Cultural Alemão do Rio Grande do Sul. Inauguração da Galeria Iberê Camargo no Diretório Acadêmico da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 1975 - Exposição individual na Galeria de Arte Luiz Buarque de Holanda e Paulo Bittencourt, Rio de Janeiro. 2ª Exposição de Belas Artes Brasil-Japão, São Paulo, Rio de Janeiro e Japão. Participou de exposição de tapeçaria na Galeria Contorno, Rio de Janeiro. Integra a exposição do Acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1976 - Exposição individual na Galeria Bonino, Rio de Janeiro. Participação no júri do Salão Nacional de Arte Moderna. 1977 - Exposição individual na Galeria Oficina de Arte, Porto Alegre. Exposição individual na galeria Iberê Camargo de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 3ª Exposição de Belas Artes Brasil-Japão, São Paulo, Rio de Janeiro e Japão. X Quadrienal Nacional de Arte, Roma, Itália. Exposição Arte Global, Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro. 1978 - Exposição individual na Galeria Cristina Faria de Paula, São Paulo. 1º Encontro Íbero-Americano de Críticos de Arte e Artistas Plásticos no Museu de Belas Artes Los Caoobos, Caracas, Venezuela. 1979 - Exposição individual na Galeria Debret, Paris, França. Exposição individual na Galeria Ipanema, Rio de Janeiro. XV Bienal internacional de São Paulo. Retrospectiva de desenhos no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 1980 - Mata a tiros o projetista Sérgio Esteves Areal e, após ser recolhido à prisão no Regimento Marechal Caetano de Farias, é julgado e absolvido por legítima defesa no ano seguinte. Retrospectiva de desenhos no Museu Guido Viaro, Curitiba. Exposição Homenagem a Mário Pedrosa, na Galeria Jean Boghici, Rio de Janeiro. Exposição individual na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre. 1981 - Exposição individual na Galeria Acervo, Rio de Janeiro, com os trabalhos produzidos no Regimento Marechal Caetano de Farias. Exposição individual na Galeria do Centro Comercial de Porto Alegre. Exposição Arte Contemporânea Brasil-Japão, no Museu Nacional de Osaka, Japão. 1982 - Passa a residir com a esposa em Porto Alegre. Mostra Homenagem a Iberê Camargo no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Exposição individual no 604 Studio de Arte Cláudio Gil, Rio de Janeiro. Mostra Entre a Mancha e a Figura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1983 - Exposição individual na Galeria Tina Presser, Porto Alegre. Projeção do curtametragem sobre sua obra, por Mário Carneiro e Embrafilme, Rio de Janeiro. Exposição 3.4 Grandes Formatos no Centro empresarial Rio, Rio de Janeiro. Outdoor para a Rede Brasil Sul, que é exposto nas ruas de Porto Alegre. Exposição Auto-Retratos na Galeria do Banerj, Rio de Janeiro. 1984 - Exposição individual comemorativa à passagem de seu 70º aniversário, na Universidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Exposição iconográfica Iberê Camargo, Aquele Abraço!, comemorativa à passagem de seu 70º aniversário, no Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre. Dois painéis para a Funarte. Exposição retrospectiva comemorativa à passagem de seu 70º aniversário no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Exposições individuais: Galeria Tina Presser, Porto Alegre; Galeria Luisa Strina, São Paulo; Studio de Arte Cláudio Gil, Rio de Janeiro; Galeria Thomaz Cohn, Rio de Janeiro; Petite Galerie, Viva a Pintura, homenagem a Iberê, Rio de Janeiro. 1985 - Mostra retrospectiva Trajetória e Encontros no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Lançamento de livro sobre sua vida e obra, editado pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul, pela Fundação Nacional de Arte e pelo Ministério da Cultura. Prêmio Golfinho de Ouro pela sua atuação como artista plástico durante o ano de 1984, concedido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Medalha Mérito Cultural, concedida pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. 1986 - Exposição Trajetória e Encontros: Museu de Arte de São Paulo; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Teatro Nacional de Brasília. Exposição individual de desenhos (série agrotóxicos) e de óleos na galeria Tina Presser, Porto Alegre. Exposição individual de desenhos As Criadas, de Genet, na Galeria Usina, Vitória. Exposição individual de óleos e desenhos e lançamento da suíte de serigrafias (manequins) na Mas Stolz Galerie, Curitiba. Título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 1987 - Exposições: Galeria Montesanti, São Paulo; Galeria Espaço Capital, Brasília; Galeria Art-Con, Campo Grande, Mato Grosso do Sul; Galeria Soluzzione, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul; Galeria Espaço de Arte, Florianópolis; M.D. Galeria de Arte, Uberaba, Minas Gerais; Galeria Luisa Strina, São Paulo; Galeria Paulo Klabin, São Paulo; Galeria Paulo Klabin, Rio de Janeiro; Centro de Exposiciones do Departamento de Cultura, Montevidéu, Uruguai; Centro de Cultura de Cruz Alta, Rio Grande do Sul; Galeria Van Gogh, Pelotas, Rio Grande do Sul; Galeria Matiz, Santa Maria, Rio Grande do Sul; Galeria Tina Presser, Porto Alegre. 1988 - Exposição Modernidade Brasileira do Século XX, no Museu de Arte Moderna de Paris, França. Livro de contos No Andar do Tempo, com as seguintes individuais: Galeria Tina Zappoli, Porto Alegre; Galeria Documenta, São Paulo; Galeria Montesanti, Rio de Janeiro; Galeria Van Gogh, Pelotas, Rio Grande do Sul. Individual na Galeria Multiarte, Fortaleza. Individual de gravuras na Galeria Álvaro Santos, Aracaju. Coletiva na Galeria Tina Zappoli, Porto Alegre. Coletiva Os Ritmos e as Formas da Arte Contemporânea Brasileira, na Galeria SESC Pompéia, São Paulo. Coletiva Os Ritmos e as Formas da Arte Contemporânea Brasileira, Dinamarca e países escandinavos. 605 1989 - Exposições coletivas: Forma e Estrutura, na Galeria Raquel Arnaud, São Paulo. Panorama da Pintura no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Galeria Saramenha, Rio de Janeiro. Galeria Tina Zappoli, sala especial comemorando os 75 anos de Iberê Camargo, Porto Alegre. Galeria Tina Zappoli, Porto Alegre. Exposição individual na Galeria Santana do Livramento, Rio Grande do Sul. Arti, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. 1990 - Exposição Brasil-Japão de Arte Contemporânea. Exposição individual na Galeria Van Gogh, Pelotas, Rio Grande do Sul. Retrospectiva de gravura na Galeria do Banco Francês e Brasileiro, Porto Alegre. Retrospectiva de gravura no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. 1991 - Exposição coletiva Sobre a Árvore na Galeria Montesanti, São Paulo. Retrospectiva de gravura no Museu de Arte de São Paulo. Exposição coletiva Guaches na Galeria Goethe, Porto Alegre. Exposição individual, Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Exposição individual, Bahia. 1992 - Exposição Históricos, obra sobre papel, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Lançamento do livro técnico A Gravura, Editora Sagra, Porto Alegre. Exposição Debret a Iberê, que marcou a reabertura do Museu da Cidade, Rio de Janeiro. Museu da Chácara do Céu da Fundação Castro Maya recriou a Sociedade Amigos da Gravura, comercializando entre os sócios uma gravura de Iberê. Exposição individual na Multi Arte Galeria, Fortaleza. 1993 - Exposições individuais: Galeria Camargo Vilaça, São Paulo; Museu de Arte de Santa Catarina; Escritório de Arte da Bahia, Salvador; guaches Retratos de Amigos, Porto Alegre; gravuras em metal, Ribeirão Preto. Inauguração da Galeria Iberê Camargo, em Porto Alegre, com guaches do artista. 1994 - Participa do núcleo Abstrações na Bienal Brasil Século XX e da XXII Bienal Internacional de São Paulo. Exposição Homenagem a Iberê Camargo, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro. Última individual de desenhos e gravuras no Espaço Cultural FIAT, São Paulo. Falece em 9 de agosto de 1994, aos 79 anos, em Porto Alegre. Eventos póstumos: 1995 – Criação da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. 2002 – Lançamento da pedra fundamental do Museu Iberê Camargo. 2006 – Lançamento do primeiro volume do Catálogo Raisonné de Iberê Camargo, dedicado à gravura. 2008 – É inaugurado o Museu Iberê Camargo.