Academia.eduAcademia.edu
ORGANIZADORAS Profa. Ana Carolina Eiras Coelho Soares Grupo de Estudo e Pesquisa em Gênero Faculdade de História Universidade Federal de Goiás Camilla de Almeida Santos Cidade Núcleo Interseccional de Estudos da Maternidade Universidade Federal Fluminense Profa. Vanessa Clemente Cardoso Mamães na Pós-graduação Belford Roxo/RJ 2020 Maternidades Plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia – 1ª Edição Copyright@2020 Editora Bindi NOTA DA EDITORA: Esta publicação tem como principal objetivo a capacitação por meio da troca de conhecimentos. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da Editora Bindi e/ou das organizadoras. As ideias e opiniões expressas nesta publicação são as das autoras e não refletem obrigatoriamente as da Editora Bindi e das organizadoras, nem comprometem as referidas partes judicialmente. Produção Editorial: Direção: Aricia Aguiar Organização: Ana Carolina Eiras Coelho Soares (GEPEG/FH-UFG/CNPq); Camilla de Almeida Santos Cidade (NIEM/UFF) e Vanessa Clemente Cardoso (Mamães na Pós-graduação) Arte da capa: Suellen Peixoto de Rezende (GEPEG/FH-UFG/CNPq), “Águas mães, imensidão de amor” Equipe revisora: Juliana Márcia Santos Silva (NIEM/UFF); Lajla Katherine Rocha Simião (Mamães na Pós-graduação); Maiara Moreira Andraschko (Mamães na Pós-graduação); Nathália Pereira de Oliveira Sousa (Mamães na Pós-graduação). Revisão final: Ana Carolina Eiras Coelho Soares (GEPEG/FH-UFG/CNPq); Camilla de Almeida Santos Cidade (NIEM/UFF) e Vanessa Clemente Cardoso (Mamães na Pós-graduação) Diagramação: Ana Carolina Eiras Coelho Soares (GEPEG/FH-UFG/CNPq) Diagramação final: Equipe Bindi CATALOGAÇÃO NA FONTE/BIBLIOTECÁRIO Darlon Cruz dos Santos CRB7/5504 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9610/98 e punido pelo artigo 184 do código penal. Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2009). Organização: Agradecemos publicamente à equipe toda pelo trabalho voluntário: “Eu sou porque nós somos!” Editora Bindi CNPJ: 34 420 038/0001-35 Belford Roxo - RJ www.editorabindi.com.br editorabindi@gmail.com Sumário UMA BREVE FALA DAS ORGANIZADORAS 24 ANA CAROLINA COELHO CAMILLA DE ALMEIDA SANTOS CIDADE VANESSA CLEMENTE CARDOSO APRESENTAÇÃO 28 DO LUTO À LUTA: A LUTA POLÍTICA DAS MÃES MARINETE DA SILVA PREFÁCIO 30 MANUELA D’ÁVILA SOBRE A CAPA: 32 ÁGUAS MÃES, IMENSIDÃO DE AMOR SUELLEN PEIXOTO DE REZENDE MÃE HOMENAGEADA 34 OS ALTOS E BAIXOS ANTES DA PANDEMIA ANA LUCIA DA SILVA EULALIO 1 39 NO MEIO DO CAMINHO TINHA COVID-19: A DOENÇA QUE AFETOU VIDAS ADRIANA GONCALVES QUEIROZ MELISSA RIZZO BATTISTELLA 2 44 MÃE, MAMÃE, MÃÃÃÃNHÊEEEEEEE: PRODUÇÃO ACADÊMICA, MATERNIDADE E PANDEMIA ALESSANDRA APARECIDA DE MELO 3 48 MÃES CIENTISTAS ALESSANDRA MARIA MARTINS GAIDARGI-GARUTTI 4 51 SONHO-PESADELO: A ONDA DE SER MULHER-MÃE-CIENTISTA EM 2020 ALEXANDRA CLEOPATRE TSALLIS 5 60 A MISSÃO DE EDUCAR EM TEMPOS DE PANDEMIA ALINE COLLYER LEBID 6 65 O DIFÍCIL EXERCÍCIO DA RESILIÊNCIA, EM TEMPOS DE PANDEMIA: VIDA ACADÊMICA, DUPLA-JORNADA, CULPA E REINVENÇÃO COTIDIANA ALINE CRISTIANE ROCHA LACERDA 7 70 EM CASA, COM CORAÇÃO E MENTE NA ALDEIA ALINE DA CRUZ 8 74 PRESENÇA DE ANA ALINE RAFAELA DE ALMEIDA 9 79 AS ALEGRIAS DA MATERNIDADE NA PANDEMIA ALINE SHIRAZI CONTE 10 84 A DOR E DELÍCIA DE SER O QUE É AMANDA RODRIGUES DE SOUZA COLOZIO 11 88 UM RELATO PESSOAL - NAVEGAR É PRECISO: VIVER TAMBÉM É PRECISO ANA AMÉLIA AQUINO BRITO 12 93 CRÔNICAS DE MÃE: TEMPOS DE QUARENTENA ANA CAROLINA EIRAS COELHO SOARES 13 96 E AGORA, MARIA? ANA PAULA RAMÃO DA SILVA 14 103 SOLIDÃO MATERNA EM TEMPOS DE PANDEMIA ANA PRISCILA REZENDE DE CARVALHO 15 110 LA SED POR LAS PALABRAS: MATERNAR, CUIDAR E INVESTIGAR EN TIEMPOS DE AISLAMIENTO ANA SOLEDAD GIL 16 115 A VIDA INVISÍVEL DE UMA MÃE CIENTISTA ANA VITÓRIA LINS CASTIÑEIRA 17 120 A ESCRITA ACADÊMICA EM TEMPOS DE PANDEMIA: PERCURSOS E PERCALÇOS ANALICE DE SOUSA GOMES 18 123 COMO CONCILIAR TRABALHOS PROFISSIONAIS, DOMÉSTICOS E A MATERNAGEM? SOBREVIVENDO EM TEMPOS DE PANDEMIA ANDRÉA LINS E LINS SOUZA 19 A CIÊNCIA DA MÃE 128 ANDRÉA SOUZA PONTES NATAL 20 133 À DERIVA, SEM SAIR DO LUGAR ANDRÉIA REGINA DE OLIVEIRA CAMARGO 21 139 DO CAOS À LUTA: SOLIDARIEDADES POSSÍVEIS PARA O PRESENTE EM TRÊS ATOS ANDREIA SOUTO-MARCHAND ELISANDRA GALVÃO MORGANA CARROLO FERNANDES 22 146 OS TEMPOS MISTURADOS DO ISOLAMENTO SOCIAL: TESTEMUNHO DE UMA MÃE CIENTISTA ANDREIA VICENTE DA SILVA 23 151 DECIFRA-ME ANELISE FERNANDES SILVEIRA 24 155 O QUE EU TENHO PARA CONTAR: 9 MESES E UMA PANDEMIA ANGÉLICA SANTOS NERIS 25 164 DO CAIS AO MAR: MATERNÂNCIAS, IDENTIDADES E RESISTÊNCIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA ANNA CAROLINA PORTO GOMES JUCIANE DE GREGORI 26 173 EXPERIÊNCIAS, ESPAÇOS E DISTANCIAMENTO SOCIAL ARIADNE LOPES ECAR 27 178 A INCLUSÃO DIGITAL, A MÃE HODIERNA E UMA PANDEMIA BÁRBARA DANTAS 28 189 DESISTÊNCIA COMO RECURSO DE ACEITAÇÃO E LIBERDADE PARA UMA MÃE ACADÊMICA: ESSE É UM TEXTO SOBRE UMA MÃE QUE DESISTE, PARA DESCONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE NOVOS VALORES BEATRIZ MESSIAS DA SILVA OLIVEIRA 29 194 SER MÃE E HISTORIADORA EM TEMPOS DE PANDEMIA: A DINÂMICA DE CONCILIAR DUAS VONTADES BRENDA SOARES BERNARDES 30 199 ESSENCIALIDADE DOS SERVIÇOS, ESSÊNCIA DO LAR CAMILA BYLAARDT VOLKER 31 205 O DESAFIO DE UMA MÃE AUTÔNOMA, GEMELAR E SOBREVIVENTE – RESISTÊNCIA PARA A REEXISTÊNCIA: A PANDEMIA APENAS COMO NOVO CICLO CAMILLA DE ALMEIDA SANTOS CIDADE 32 211 100 DIAS DE QUARENTENA CARLA IVONNE LA FUENTE ARIAS. 33 216 UMA JORNADA INESPERADA CAROLINA PANIS 34 LOCALIZANDO-ME NA QUARENTENA: MULHER, MÃE, ESPOSA, COZINHEIRA, EDUCADORA, FAXINEIRA, PSICÓLOGA, PSICOMOTRICISTA RELACIONAL, PESQUISADORA CAROLINE MOREIRA DE OLIVEIRA 220 35 226 PANDEMIA, PUERPÉRIO E (RE)NASCIMENTO: UM OCEANO DE DESIGUALDADES DE GÊNERO, RAÇA E CLASSE CÁSSIA MARIA ROSATO 36 232 O BEBÊ E/OU O DOUTORADO: É PRECISO ESCOLHER? CELINA DE OLIVEIRA BARBOSA GOMES 37 238 TEMPO DE NUTRIR A ALMA E AS MEMÓRIAS CHRISTIANE LUIZA SANTOS 38 245 ALTERIDADES FEMININAS: MÃES PESQUISADORAS, NÃO DOCENTES, EM TEMPOS DE PANDEMIA CLÁUDIA MARIA SERINO LACERDA MUNIZ REGIANE CRISTINA TONATTO 39 255 REFLETINDO SOBRE MATERNIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA CLAUDIA REGINA NICHNIG 40 260 RETRATO DE UM DIA COMO OUTRO QUALQUER DURANTE A QUARENTENA: UM RELATO DE UMA MULHER, MÃE, PROFESSORA UNIVERSITÁRIA CLÁUDIA ROBERTA BOCCA SANTOS 41 265 REFLEXÃO DE UMA MÃE-PESQUISADORA EM TEMPOS DE COVID-19 CLEIDE VILELA 42 NÃO EXISTE DIETA PARA O PESO QUE CARREGAMOS DANIELE PRATES PEREIRA 270 43 274 “QUANDO EU MORRER, VOCÊS VÃO ME DAR VALOR!” - A RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E MATERNIDADE QUE SÓ QUEM É MÃE CONHECE DANIELLA PEREIRA FAGUNDES DE FRANÇA 44 283 EXPERIÊNCIAS E APRENDIZADOS EM TEMPOS DE PANDEMIA: SUPERANDO E RESSIGNIFICANDO OS DESAFIOS E ADVERSIDADES DA MATERNIDADE E DA ATIVIDADE ACADÊMICA DÉBORA ADRIANO SAMPAIO 45 289 VIDA DE MÃE E PESQUISADORA EM TEMPOS DE QUARENTENA DÉBORA BORGES MARTINS 46 295 MATERNAGEM NEUROATÍPICA: DESAFIOS DO ISOLAMENTO SOCIAL DÉBORA SANTOS DE ALENCAR 47 303 MULHER, MATERNIDADE E CIÊNCIA: UMA BREVE ANÁLISE DOS TEMPOS ATUAIS DENISE PAULA DO NASCIMENTO 48 307 CONFINADA MENTE DIRCE MELLO 49 311 MULHER, MÃE E CIENTISTA: A BUSCA POR ACEITAÇÃO, RESPEITO E RECONHECIMENTO CONTINUA MESMO EM TEMPOS DE PANDEMIA DJENAINE DE SOUZA 50 VIVÊNCIA PLURAL DE UMA MÃE-ENFERMEIRA-PESQUISADORA: CUIDAR, VIVER, TRANSCENDER 319 EDAIANE JOANA LIMA BARROS 51 324 FRAGMENTOS DE UMA PANDEMIA PEDAGÓGICA: COSTURAS PARA NOVAS ESTAMPAS POSSÍVEIS ÉLIDA SANTOS RIBEIRO 52 330 MÃES NA PANDEMIA: UM RELATO PESSOAL (E POLÍTICO) DAS DESIGUALDADES FABIANA JORDÃO MARTINEZ 53 339 NARRATIVAS COMO MÃE PESQUISADORA: AS TRANSGRESSÕES DIÁRIAS EM TEMPOS DE PANDEMIA FABIANE FREIRE FRANÇA 54 347 A FERNANDA PSICÓLOGA, AQUELA QUE É MÃE DO THÉO FERNANDA ABREU MARCACCI 55 351 A MATERNIDADE PRECURSORA DA CIÊNCIA FERNANDA GARRIDES 56 359 MATERNAR, PESQUISAR, EXISTIR, RESISTIR: O SER MULHER EM MEIO A UMA PANDEMIA FERNANDA PINTO DE ARAGÃO QUINTINO 57 365 MOÇAS, CREIAMOS, NÃO TARDA A AURORA DA REDENÇÃO! FLÁVIA CALÉ DA SILVA 58 POR QUE AS MÃES RECLAMAM TANTO? O ISOLAMENTO SOCIAL IMPOSTO PELO COVID-19 E O CANSAÇO ESTRUTURAL DAS MÃES 372 FLÁVIA FERREIRA PIRES 59 378 A OUTRA MARGEM DA MATERNIDADE: REFLEXÕES EM TEMPOS PANDÊMICOS FLORA RODRIGUES GONÇALVES 60 383 NA MESMA TEMPESTADE, NÃO NO MESMO BARCO FRANCINE CRUZ 61 388 ONDAS CONFLITUOSAS EM OCEANOS PLURAIS DE UMA QUILOMBOLA EM HORIZONTE (CE): CONTAMINAÇÃO DO COVID-19 NO PÓS-PARTO FRANCISCA MARLEIDE DO NASCIMENTO 62 393 ENTRE A REDE NA VARANDA E A SAUDADE DA UNIVERSIDADE: OS LABIRINTOS DA MATERNIDADE DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19 NUMA ABORDAGEM AUTOETNOGRÁFICA GEORGIANE GARABELY HEIL VÁZQUEZ 63 398 UMA META-ESCRITA DO CANSAÇO MATERNO: ALGUNS RETRATOS DA DESIGUALDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA GIORGIA CAROLINA DO NASCIMENTO 64 403 MULHERES, MATERNIDADE E PESQUISA NA PANDEMIA: DIALOGAR PARA MELHORES CAMINHOS GISELE DE SOUZA GONÇALVES 65 407 PANDEMIA QUÂNTICA: OS MUITOS MUNDOS E TEMPOS DE UMA CIENTISTA SOCIAL NO COVID-19 BRASILIS GISLENE MOREIRA 66 413 MÃE POSSÍVEL EM UM MUNDO INVIÁVEL HELENA TAVARES GONÇALVES 67 420 COMO ME SINTO? REFLEXÕES DE UMA PROFESSORA, PESQUISADORA, MILITANTE E MÃE DE 4 CRIANÇAS IAMNI TORRES JAGER 68 424 ENTRE A PÓS-GRADUAÇÃO E A MAMADEIRA: A ARTE DA R-EXISTÊNCIA E DE AMOR FRENTE AOS PRAZOS E A PANDEMIA DA COVID-19 IANY ELIZABETH DA COSTA 69 430 RELATO DE UMA MÃE, PROFESSORA E PESQUISADORA SOBREVIVENDO NO CORAÇÃO DA AMAZÔNIA EM MEIO À PANDEMIA IVANA BARBOSA VENEZA 70 434 SAIO E BATO PORTA SIM, QUAL O PROBLEMA? JACQUELINE DE SOUZA GOMES 71 438 O EFEITO “DONA COELHA” JANAÍNA DUTRA SILVESTRE MENDES 72 444 CASA: UM ARQUIVO ZIPADO JANAÍNA FERREIRA FERNANDES 73 449 PARALELOS E CONVERGÊNCIAS DAS REALIDADES DE DUAS MÃES NO CONTEXTO DO ISOLAMENTO SOCIAL JÉSSICA DA COSTA MARQUES IASMIN CHAVES OLIVEIRA DA SILVA 74 453 IMAGEM AUTODEFINIDA DE MATERNIDADE EM CONTEXTO DE PANDEMIA JOSINÉLIA CHAVES MOREIRA 75 459 NEM INVISÍVEL, NEM MULHER MARAVILHA JULIANA LINHARES BRANT REIS 76 465 MATERN’IDADE: TEMPO DE PRODUZIR - CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO DE UMA PESQUISADORA QUE VIROU MÃE JULIANA RIBEIRO MARRA 77 472 GENERATIVIDADE E EUDAIMOGÊNESE EM TEMPOS DE PANDEMIA JULIANE NOACK NAPOLES PATRÍCIA FALASCA 78 480 ENTRE O COLETIVO E O INDIVIDUAL: ESCRITAS DA VIVÊNCIA DE UMA JOVEM, MÃE E PESQUISADORA FRENTE AO ISOLAMENTO SOCIAL/QUARENTENA KAMILA EULALIO ABREU 79 486 A CONQUISTA QUE SOMOS: REFLEXÕES SOBRE A MATERNIDADE E A VIDA ACADÊMICA DURANTE A PANDEMIA KENIA GUSMÃO MEDEIROS 80 491 O ESPAÇO VIRTUAL ENQUANTO ESPAÇO DE ENSINO: DESAFIOS DE UMA PROFESSORA E MÃE SOLO EM TEMPOS PANDÊMICOS KRYSHIA FREITAS RIBEIRO 81 496 CARTAS POR ENTRE JANELAS LAÍS DE PAULA PEREIRA 82 503 PESQUISAR NA PANDEMIA: PERSISTIR OU DESISTIR? LAURA JANAINA DIAS AMATO 83 507 SOBRE SIR-LEY, OU COMO ME SINTO DO AVESSO LEICY FRANCISCA DA SILVA 84 513 PESQUISA E MATERNIDADE: COMO CONCILIAR TUDO ISSO COM A PANDEMIA DE COVID-19? LEILE CAMILA JACOB NASCIMENTO 85 517 CARTA ÀS MÃES CIENTISTAS, AOS NOSSOS FILHOS E AOS QUE VIRÃO DEPOIS LIANA HILDA GOLIN MENGARDA 86 524 SER MÃE E CIENTISTA NA PANDEMIA LIRIAN MELCHIOR REGINA MELCHIOR 87 529 NÃO TERMINO EM MIM MESMA: A LUTA É CONSTANTE, E SEGUIREI (R)EXISTINDO NOS IDEAIS DE MEUS FILHOS E DE MINHAS COMPANHEIRAS LUANA KAROLINE GONSAGA 88 537 DA JANELA, MINHA TELA LUCIANA FERNANDES DE MEDEIROS 89 541 MATERNIDADE E DOUTORADO DURANTE A PANDEMIA: UM TSUNAMI NO MEU EQUILÍBRIO LUCIANA FERREIRA LEITE LEIRIÃO 90 546 DE REPENTE UMA NOVA REALIDADE: COMO A PANDEMIA DA COVID-19 APROXIMOU MÃES E FILHOS/AS LUCIANA GOMES DA LUZ SILVA 91 552 A PANDEMIA DE UMA MÃE SOLO DE TRÊS: SOBREVIVÊNCIA MENTAL E REDUÇÃO DE DANOS MÁDHAVA HARI CEZAR DOS ANJOS 92 557 ESCREVIVÊNCIA DE UMA MÃE, REVISORA, EX-FUTURA PESQUISADORA EM MEIO AO FIM DE MUNDOS MAIARA MOREIRA ANDRASCHKO 93 562 INQUIETAÇÕES DE UMA MÃE EM MEIO A UMA PANDEMIA MARIA CAROLINA LOSS LEITE 94 566 A PESQUISA VIRTUAL COMO INDUTORA DA COLABORAÇÃO ENTRE GERAÇÕES: SUPERANDO O IMPACTO DO DISTANCIAMENTO SOCIAL MARIA DO CARMO PIERRY BARREIROS 95 570 DA CULTURA PATRIARCAL QUE PROPAGAMOS ENQUANTO CULPA MATERNA E DOS SIGNIFICADOS DOS ESPAÇOS OCUPADOS PELA MULHER MÃE CONTEMPORÂNEA MARIA EUGÊNIA RODRIGUES ALCÂNTARA 96 579 MÃE, DOUTORA, PROFESSORA E PESQUISADORA: SIM, ESSE BICHO EXISTE! MARIA-MARIA MARTINS SILVA STANCATI 97 584 PANDEMIA CIENTÍFICO-PUERPERAL: MATERNAR E INVESTIGAR COMO EXPERIENCIA EN TIEMPOS DE COVID-19 MARIANA GARZÓN ROGÉ 98 590 CADÊ O LIVRO QUE ESTAVA AQUI? NÃO MEXA NOS LIVROS DA MAMÃE! MARINA CARLA DA CRUZ QUEIROZ MARIA JOSÉ DE PINHO 99 594 QUANDO A CASA VIRA BRASA: NARRATIVAS DE EXPERIÊNCIA COTIDIANA E PRODUÇÃO DE (DES)AFETOS MAYARA DE OLIVEIRA NOGUEIRA 100 601 UMA MÃE, UMA PESQUISA E, NO MEIO, UMA PANDEMIA MICHELLE REINALDO PROTASIO 101 607 (DES)CAMINHOS: VIVÊNCIA DE UMA MÃE ADOECIDA NA ACADEMIA NATHALIA PEREIRA DE OLIVEIRA SOUSA 102 614 UMA ESCRITA PARA NOSSAS FILHAS PÂMELLA PASSOS 103 620 RELATOS E REFLEXÕES SOBRE O ISOLAMENTO DE UMA MÃE-SOLO-CIENTISTA PATRÍCIA DE ABREU MOREIRA 104 625 FAZER-SE MÃE, FAZER-SE PESQUISADORA: QUESTÕES DIANTE DOS BLOQUEIOS DO ISOLAMENTO PAULA DE MATTOS COLARES 105 630 A MATEMÁTICA EM SER MÃE DE TRÊS POLLYANA VOLPATO 106 634 UM MUNDO COLORIDO NA SALA DE CASA: VIVÊNCIAS DA MATERNIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA PRISCILA DA SILVA CASTRO 107 640 ÀS VEZES FALTA FÔLEGO… MAS NÃO É COVID, É SOBRECARGA MATERNA! PRISCILA MARCONCIN 108 646 UM CORPO MARCADO: ANCESTRALIDADE E REFLEXÕES SOBRE SEXUALIDADE DE UMA MULHER (MÃE) CIENTISTA PRISCILLA ALMALEH 109 653 UM POUCO DE MIM MORREU QUANDO VOCÊ NASCEU QUÉZIA LOPES 110 657 RESSIGNIFICAÇÕES EM MEIO À PANDEMIA: O FAZER CIENTÍFICO DE UMA MÃE PESQUISADORA RAFAELA ARAÚJO JORDÃO RIGAUD PEIXOTO 111 663 RESISTÊNCIA: A VOZ QUE ECOA EM TEMPOS DE CRISE RAQUEL FERREIRA 112 668 OS PAPÉIS SOCIAIS E (IM)POSSÍVEIS CONCILIAÇÕES DE UMA MULHER, PUÉRPERA, MÃE DE DOIS, CIENTISTA E PROFESSORA DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 REGIANE SBROION DE CARVALHO 113 SOBRE MATERNIDADES E VIDA ACADÊMICA EM TEMPOS DE PANDEMIA RENATA GHISLENI DE OLIVEIRA LAURA CRISTINA EIRAS COELHO SOARES LISANDRA ESPÍNDULA MOREIRA 676 114 683 UMA ONDA NO OCEANO RENATA ROCHA RIBEIRO 115 688 ENTRE BOLOS, BALÕES E BRIGADEIROS: MÃES CIENTISTAS FAZEM EPISTEMOLOGIA CRÍTICA ROSAMARIA CARNEIRO 116 694 RESTRIÇÕES E PRIVAÇÕES IMPOSTAS PELA PANDEMIA DE COVID-19: ALGO TERÁ MUDADO NO COTIDIANO DAS MÃES? ROSELAINE PONTES DE ALMEIDA 117 698 CRIANÇAS E O MEIO CIENTÍFICO: ELEMENTOS QUE NÃO SE JUNTAM, MAS SE COMPLETAM ROSICLEIDE R. GARCIA 118 705 O CONTEXTO FAMILIAR EM TEMPOS DE PANDEMIA RÚBIA GISELE TRAMONTIN MASCARENHAS 119 710 MATERNIDADE E VIDA ACADÊMICA EM TEMPOS DE COVID-19 RÚBIA GOMES MORATO 120 716 UMA CARTA AOS MEUS PEQUENOS, NO ANO DAS AFLIÇÕES SARA REGINA MUNHOZ 121 723 PÓS-DOUTORADO, MATERNIDADE E COVID-19: MODOS DE EXISTÊNCIA DE UMA MULHER-MÃE-PESQUISADORA SILVANA CLAUDIA DOS SANTOS 122 733 REINVENÇÕES DE QUARENTENA: TENTATIVAS DE CONCILIAR MATERNIDADE E PESQUISA SIMONE MESTRE 123 740 MATERNIDADE, POLÍTICA E PANDEMIA SIMONE PILETTI VISCARRA 124 747 ENSINO REMOTO E SUAS NUANCES SUZANA LOPES DE ALBUQUERQUE 125 752 MULHERES E CRIANÇAS: SOZINHAS EM CASA, OUTRA VEZ? SUZANA MARCOLINO 126 760 AS DICOTOMIAS DA QUARENTENA E A BUSCA POR EQUILÍBRIO TAINÁ AMORIM 127 764 MATERNIDADE E CIÊNCIA: UM OCEANO DE APRENDIZADOS, INCERTEZAS E BUSCAS TAINÁ FERNANDES ALVES OLIVEIRA 128 771 QUARENTENA DE SEMPRE TAÍS DO SANTOS ABEL 129 776 ISOLAMENTO SOCIAL NA PANDEMIA – REALIDADE OU MENTIRA? TATIANA VIANA DE OLIVEIRA 130 MÃE NO ARMÁRIO: UMA CARTA SOBRE ISOLAMENTO SOCIAL DAS MÃES-SOLO DENTRO E FORA DA PANDEMIA 784 THAÍS TELES ROCHA 131 792 FRIDAS EM ISO[LAMENTOS]: PROFESSORA E ESTUDANTES ENGENDRANDO AUTORRETRATOS ENTRE ARTES E SOLITUDES THAIZ BARROS CANTASINI 132 801 DO PRESENTE, PARA QUANDO FOR PASSADO, SER LIDO POR TI, NO FUTURO VANESSA CLEMENTE CARDOSO 133 809 “RELATOS E EXPERIÊNCIAS”: MATERNIDADE E PÓS-GRADUAÇÃO EM TEMPOS DE DISTANCIAMENTO SOCIAL VANESSA FONTE OLIVEIRA 134 815 REFAZENDO-SE: SOBRE MATERNIDADE E DEFICIÊNCIA WALESKA AURELIANO EDITORA BINDI 823 “Eu sou porque nós somos!” (Filosofia Ubuntu) Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Uma breve fala das organizadoras Ana Carolina Coelho Camilla de Almeida Santos Cidade Vanessa Clemente Cardoso Mães conversam e desabafam. Temos medos, angústias e muitas tarefas para cumprir. O cansaço une nossas falas e, mesmo em espaços diferentes, por diversas vezes nos encontramos com os pensamentos tão semelhantes que entendemos melhor a ideia de “alianças”. E foi em uma dessas noites mal dormidas, na total insegurança de um mundo em tempos de pandemia, que surgiu a ideia de fazermos um livro com os relatos das mães cientistas nos dias atuais. Será que nossas dores, lugares, preocupações, afazeres são, de fato, semelhantes? Queríamos dar voz às mães que insistem em fazer ciência, que perseveram no mundo acadêmico. E queríamos fazer isso de maneira gratuita, acessível e democrática. No meio de uma conversa online à noite surgiu uma convicção: “Vamos fazer um livro sobre o que as mães cientistas estão vivendo? Vamos! VAI DAR CERTO!” Em realidade, não tínhamos editora e nem experiência em como editar e publicar livros. Mas seguimos firmes com dois objetivos claros: é fundamental visibilizar o que muitas vezes fica diluído em rodas informais de conversa, em tom de tristeza ou indignação e é preciso falar urgentemente e debater sobre as injustiças, inequidades, machismos, assédios, racismos e sexismos que todas as mulheres, mas em especial aqui, as mães, sofrem para conseguir se manter no ambiente universitário. É preciso pensar em um espaço científico mais equitativo e generoso com as mulheres e suas crianças. As mães existem no mundo acadêmico e não iremos embora. Bebês, fraldas, peitos, mamadeiras, carrinhos e brinquedos não são impeditivos para a produção acadêmica e científica. E quanto mais o ambiente universitário for acolhedor para essa realidade humanizada, melhor poderemos nos desenvolver como pesquisadoras e professoras. Em 2018, a presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Tamara Naiz, convidou a organizadora Vanessa Clemente Cardoso para falar no dia 29 de junho na mesa de abertura do I Encontro Nacional de Mulheres Pós-Graduandas que estava sendo realizado na UnB. Inspirada, cheia de ideias e instigada com a invisibilidade do tema nas universidades brasileiras, naquele mesmo 24 Maternidades Plurais período ela redigiu uma lista de reinvindicações tendo como inspiração a luta materna, em especial presentes em grupos e páginas1 que tinham maior visibilidade no período. A lista foi publicada nas páginas dos grupos no Coletivo de Mães da UFF, pelo Coletivo de Mães da UFG, pelo NIEM, pelo Coletivo Nacional de Mães na Universidade, pela página Mães na Universidade e pelo Grupo Mamães na Pós-Graduação, mas nunca antes em um livro ou artigo. Eila tal como foi publicada à época: 1. Ampliação das vagas nas creches, bem como o seu funcionamento nos três turnos, pois existem mães que estudam e/ou ministram aulas o período noturno. 2. Banheiros família, pois existem pais que levam suas filhas no banheiro e vice-versa. 3. Fraldários acessíveis. 4. Espaço kids em todos os eventos acadêmicos. 5. Livre acesso das crianças acompanhadas de seus respectivos cuidadores em espaços como o Restaurante Universitário e Biblioteca. 6. Livre acesso, com alimentação inclusa, nos restaurantes universitários para as crianças. 7. Uma sala específica em cada universidade brasileira para ser a sede do COLETIVO DE MÃES de cada instituição. 8. Um Encontro Nacional de todos os coletivos de mães universitárias envolvendo maternidade, assédio, discriminação, saúde mental e mercado de trabalho. 9. Um espaço no laboratório de informática com computadores e Espaço kids integrados para as mães/pais utilizarem com seus filhos. 10. Ampliação do auxílio creche em todas as universidades. 11. Editais acadêmicos diferenciados para mulheres mães2. 12. Exigência da flexibilidade de tempo para mulheres mães entregarem trabalhos acadêmicos. 13. Aumento do período da licença-maternidade de 4 para 6 meses. 1 Nesse primeiro momento, o contato maior sobre o tema foi por meio de leituras com as páginas do COPAMA (UFRRJ); Coletivo MãEstudantes/UFSC; Militância Materna e Parent in Science. Atualmente o volume de grupos e páginas aumentou bastante, e acompanhamos também os grupos e páginas pelas redes sociais tais como: Coletivo de Mães da UFG, Coletivo Nacional de Mães na Universidade, Coletivos de Mães da UFF, Pachamamá Coletivo de Mães, Coletivos de Mães da UFRJ, A mãe preta, Coletivo de Mães da UNIRIO, Coletivo de Mães Cientistas, Mulheres na Ciência, Coletivo Feminista Francisca, Ji-Paraná/Rondônia, Coletivo de mães feministas - Ranusia Alves, As puc que Pariu, NIEM (Núcleo Interseccional em estudos da Maternidade) e Feminismo Materno. Queremos evidenciar a imensa admiração que temos por todos esses grupos/páginas e por outros que ainda estão nascendo e que consideramos fundamentais para a nossa luta. 2 Os itens 11 e 15 foram amplamente defendidos pelo grupo do Parent in Science. 25 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 14. Extensão da licença-maternidade para mães não bolsistas. 15. Obrigatoriedade do pagamento das passagens e diárias para crianças quando a mãe for convidada para eventos e bancas acadêmicas. 16. Criação de ouvidorias nas universidades para atender denúncias das mulheres que compõem a comunidade acadêmica3. Apesar de considerarmos que ainda há muita coisa para ser acrescentada, revisada e debatida nos itens apresentados, consideramos essa lista importante e basilar, pois ela é o apenas o início do que precisa efetivamente mudar para que o ambiente universitário seja um espaço mais democrático para as mães cientistas. Como cientistas que somos sabemos da importância das pesquisas quantitativas, mas queríamos uma imersão de nossas múltiplas falas, vivências e cotidianos. Queríamos um espaço para que tivéssemos nomes, vozes e trajetórias de existências reconhecidas. Os relatos são múltiplos como o são o nosso maternar: as maternidades são plurais e é preciso reconhecer e honrar todas as suas diversas maneiras de existirem. Esse livro é a prova de que ideias e pessoas com boa vontade podem realizar qualquer coisa. No meio de Oceano tão diversos que compõem o exercício diário das maternidades encontramos pontes e caminhos de conexão. Contamos com solidariedades e demonstrações de carinho de lugares familiares e inesperados: mulheres, majoritariamente, que formaram um verdadeiro time, agregando disposição, força e muita energia, disposta a ajudar e a construir juntas. Assim, aos poucos, uma editora de mulheres, voluntárias para a revisão, para elaborar a capa e ajudar de diversas formas na edição foram surgindo, como irmãs que somos. Essa é uma obra repleta de muitas noites acordadas, muita conversa, muito café e muitas lágrimas. Cada relato foi lido, respeitado e honrado. Mais de cem mães responderam à nossa chamada pública que surgiu de um sonho e de uma ideia. Nós agradecemos cada relato e a cada mulher que dispôs de seu tempo para escrever sobre suas experiências nesse ano tão difícil e delicado e/ou para auxiliar na realização desse livro de relatos e vivências tão pessoais e, ao mesmo tempo, comuns a tantas de nós, mães cientistas. E cada vez que alguém do time esmorecia — dentre as organizadoras e colaboradoras voluntárias — ou mais um problema, dos tantos que enfrentamos nessa jornada surgia — permanecíamos apenas juntas, incentivando-nos mutuamente com palavras e mensagens afetuosas. Choramos juntas, respiramos juntas e rimos juntas. “Você não está sozinha”; “A gente assume aqui”; “Descanse”; “Cuida da tua saúde e das tuas crianças”; “VAI DAR CERTO!” foram escritos e falados tantas e tantas vezes que hoje temos a certeza de que embarcamos juntas numa onda muito maior que imaginávamos quando fizemos a chamada pública, e que em vez de nos afogarmos, fomos as embarcações seguras umas das outras nessa viagem. 3 Este item foi incluso recentemente na lista. 26 Maternidades Plurais Amor em gestos e palavras. Esse foi o alimento essencial da construção dessa obra. Em termos de produção editorial, esse livro foi um sonho feminista que deu certo. Quando mulheres se unem somos capazes de feitos extraordinários. Mulheres não precisam optar entre serem mães e terem sonhos profissionais. É possível repensar uma série de fatores que compõe as maternidades e efetivamente colocar em prática novas formas de entender o espaço das universidades que permitam que sejamos e tenhamos uma vida plena em nossas escolhas. Esperamos que, a partir desses relatos, muitos debates e políticas públicas permitam que mais mães consigam permanecer no ambiente científico e acadêmico em condições mais justas, equitativas e democráticas. Dias mulheres virão! 27 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Apresentação Do Luto à Luta: a luta política das Mães Marinete da Silva Mãe da Marielle e Co-fundadora do Instituto Marielle Franco. Eu costumo dizer que minha maternidade foi meu grande ato de amor, isso aprendi com minha mãe. Aquela mulher que foi exemplo de vida pra mim e minhas irmãs, quando se dedicava em tudo para me educar, formar e viver uma maternidade de renúncia, mas plena, com seus onze filhos. Gosto de lembrar que minhas raízes originam de uma estrutura matriarcal sólida, uma geração de mulheres fortes que até hoje produz resistência para superar os desafios do dia-a-dia. Será de minha origem que embarcarei nesta reflexão sobre o ato político que é ser mãe inserida nesta sociedade que produz a morte e a violência contra nossos filhos. Cabe começar evidenciando que a “dor” é um substantivo feminino. Vivenciar desde o início a maternidade é construir gramáticas e linguagens corporais através de afeto, de emoções que são tematizadas e dramatizadas — a alegria, a dor da perda, a saudade, a revolta com a injustiça, a incompreensão — tudo isso é o que compõem o combustível do que chamamos de “luta política”. A minha dor e da nossa família é para sempre e espero que o legado de minha filha também seja. De Filomena, matriarca de nossa família, passando por Marielle, Anielle, Luyara, Mariah e Eloah, o mundo pertence a mulheres como nós. O mundo é construído por mãos de lideranças como Marielle, que desafiou o sistema e não se omitiu quando chegou ao poder, mulheres como Filomena, que criou suas filhas enfrentando as fissuras cruéis da desigualdade no nordeste do país, de mulheres que avançam cotidianamente na luta contra os impactos da Covid-19 em suas casas, seus territórios, nos espaços de saúde, produzindo ciência, cultivando resistência em suas favelas e periferias. E, me permitindo adentrar na importância de olharmos para a luta política das mães hoje, reforçarei que só iremos avançar na garantia de justiça, igualdade racial e menos violência, quando identificarmos o protagonismo de nós mulheres negras na construção de um outro mundo e de uma sociedade menos desigual. O assassinato de minha filha Marielle impulsionou aquilo que tenho de mais precioso guardado dentro de mim: a fé na luta. A fé sagrada que o corpo dessas mães pretas que vão movimentar as estruturas desse país. E seguirei daqui, transformando meu próprio substantivo em verbo. 28 Maternidades Plurais Seguirei, assim como outras milhares de mães, transformando meu luto em luta. 29 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Prefácio Manuela D’Ávila1 Jornalista e mestra em políticas públicas Olho para o celular e ainda não são cinco. Perfeito. Assim terei ao menos três horas para escrever o livro novo. Levanto, me visto, ponho perfume, passo o café, me acomodo no sofá e a gata parece não entender porque não dedico o amanhecer frio para ela, afinal, sempre foi assim desde que estamos trancadas juntas em casa. No início da quarentena eu até pensei que ela, a gata, queria me gastar porque ela me lambia tanto, mas tanto… que imaginava que minhas mãos iam afinar. Ligo o computador e escrevo como se fosse o Forest Gump ao som de “Run, Forest, Run…”. Corrigi o final do texto do dia anterior, conto quantas páginas venci antes do amanhecer às sete horas e vinte e um minutos. São sete. Sete novas páginas. Valeu a pena já estar cansada. Quero pegar outro café, mas me pergunto se não é tempo demais perdido. Me dou por vencida e levanto, aqueço o leite no microondas e aproveito o tempo para tirar o lixo da cozinha, catar o dos banheiros, colocar na rua. Recolho os jornais que serão solenemente ignorados: "ou ele ou eu", diz meu computador para mim. Que bom que Duca nunca deixa a louça suja, vou guardar antes de sentar para escrever mais um pouco, melhor ter tudo em ordem antes do dia começar para valer às oito e trinta. Sento, ajeito as imagens que ficaram todas desconfiguradas. Caraca! Já são oito e trinta e sete, estou atrasada para a reunião! Conecto o computador, corro até a cozinha, coloco uma banana descascada em um prato de girafa e um leite com chocolate na xícara da LOL, entro na sala de reunião virtual: "bom dia, bom dia, desculpem o atraso, estava escrevendo o livro novo”. Ufa! Que exaustão. Vejo a gata se movimentar loucamente em direção a porta que nos separa dos quartos. Já sei: Laura acordou. Já são quase cinco anos e ainda me surpreendo porque todos os dias quando a vejo acordar penso que esse é melhor horário do dia, o horário em que a vejo ali, viva, se abrindo para o mundo mais uma vez. Ponho a mão na boca como se estivesse observando a reunião virtual, falo baixinho: "bom dia, filha, me dá um beijo? A mamãe já deixou pronto aqui do lado teu café da manhã”. São oito e quarenta, estamos há quatro meses em casa e eu estou exausta. O dia vai até as 21h e tenho a sensação que não vou dar conta. Os fios de cabelos tomam conta do chão, tenho a nítida impressão que perco mais cabelos agora do que perdia durante a amamentação. Já fiz muitas teses sobre isso. Acho que antigamente, no mundo antes do coronavírus, as pessoas perdiam cabelo na rua, no trabalho, na fazenda e numa casinha de sapê. Agora a gente só tem o chão da própria casa para deixar esses rastros que julgo um pouco nojentos de nós mesmas. 1 Autora do livro Revolução Laura – Reflexões sobre Maternidade e Resistência. Caxias do Sul: Belas Letras, 2019. 30 Maternidades Plurais Nesse tempo é impossível parar de pensar que não somos as mais vulneráveis. Ao contrário: temos casa, comida, cobertas, saúde mental, amor e divisão de responsabilidades entre eu e meu marido. Mesmo assim, o trabalho contínuo, esse que não separa mais a jornada que sempre foi dupla, agora é permanente e como disse uma amiga, sei que só não estou trabalhando quando estou dormindo. Essa é a realidade das mulheres que não tem falta de trabalho, comida, casa e cobertor. E mesmo assim estão exaustas. Confesso que pesa em minhas costas a consciência da realidade do nosso país. É como se vivêssemos a pandemia dentro de um filme de terror. Um filme de curas fictícias, notícias falsas e muitas pessoas sem máscaras. Essa consciência da realidade é a causa de minha ansiedade e busco tomar todas as decisões que estão ao meu alcance e agir para tentar evitar que milhares de brasileiras e brasileiros enterrem suas pessoas queridas. Lá atrás, imaginando o que seria o processo, transformei parte do meu trabalho, aquele que realizo no Instituto "E se fosse você?”, em uma enorme campanha de solidariedade. Todo o recurso da venda de meus livros foi destinado para a compra de cestas básicas e itens de higiene. Depois, incluímos absorventes e escondidos nesses absorventes, que são manuseados apenas por mulheres, um manual de enfrentamento a situações de violência doméstica. Foram mais de 65 toneladas de alimentos, centenas de sacolas de roupas. Mas sempre é pouco diante da necessidade. Enxugamos gelo. E enquanto enxugamos o gelo escrevemos, trabalhamos, sonhamos, construímos afetos. Quando recebi o convite para escrever esse prefácio pensei que não teria tempo. Meu planner tem um amontoado de compromissos que marco com cores diferentes para tentar dar alguma dinâmica ao marasmo de quem fica sentada na mesa de comer o dia inteiro. Ao mesmo tempo que sabia que seria difícil ter mais tempo, imaginei a dureza e a beleza de cento e quarenta relatos de mulheres sobre esse tempo único em nossas vidas. Lembrei daquele poema de Elisa Lucinda que chama a Fúria da Beleza. Aceitei imaginando a potência desse encontro cheio de diferenças e encontros entre nós. Não resisti. Tô dentro, disse. Escrevi parte no final de semana, parte enquanto participava de reuniões. Escrevi como tenho vivido, sendo tudo ao mesmo tempo e sempre me sentindo pela metade. Sei que muitas de vocês entendem o que quero dizer. Esse sentimento de escrever para mulheres como eu, para irmãs, para pessoas que entendem cada linha, que sabem que dormir é nosso único momento de paz foi reconfortante para mim e sei que foi para cada uma dessas 140 mulheres. Somos diversas, somos plurais, falamos de lugares diferentes. Mas sonhamos com o mesmo país. 31 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Sobre a capa: Águas Mães, Imensidão de Amor Suellen Peixoto de Rezende1 Aquarelar mães para esse livro, foi estar imersa num oceano de subjetividades, à deriva de diversos sentimentos, lembranças e projeções externadas em inquietações da alma. Desde a ausência de minha mãe, mergulhei para dentro e a partir daí, expressei em cores e pincéis o que não pode ser dito em palavras. Sentimentos diluídos em cores fortes ou delicadas, pincelaram a oportunidade incrível de fazer parte de um projeto tão significativo, a aquarela me mostrou que o caminho das águas não pode ser controlado, mas sentido, e isso, é exatamente a expressão do oceano, em que todas as mães estão inseridas, águas que remetem à dores, alegrias, silêncios, águas que refrigeram, ou que afogam pela profundidade e dificuldade de chegar à superfície. Algumas em águas mais profundas, outras mais rasas, mas todas as mães, mergulhadas na experiência da revolucionária jornada de doar-se incondicionalmente. Ao passar pelo processo criativo, me senti em várias das filhas representadas, rememorei mamãe não ter vergonha de si, o fato de mencionar que me ver tão pequena e prematura, quando todos diziam que eu iria morrer, era ver seu coração florir para fora do corpo, e que sim, eu iria viver. Senti o peso da luta de uma mãe solo e a dificuldade para nos deixar um legado de amor e esperança, vi sorrisos, lágrimas, esforços e amor. Mães felizes, coloridas, cheias de esperança e aconchego, um mundo inteiro dentro de um único olhar, toque ou abraço, assim aprendi. Em todas as mães plurais, com realidades, corpos, sonhos, escolhas, sexualidades e lutas distintas, há um sentimento convergente que as impulsiona a prosseguir: o amor, esse embalado no grande oceano da maternidade. Nos traços amadores da inquietude da minha alma, o amor foi presenteado como a oportunidade de homenagear a todas as mães, ressoado pela experiência humana do sentimento mais intenso e puro que conheci, o amor que ultrapassa dimensões físicas, a experiência de ser amada por várias mães. Seja pela de falta um membro, pelo privilégio de uma criança acolhida por duas mães, um acolhimento de alma, de sangue, pelo reconhecimento das lutas, por laços e conquistas que eternizam a luta de um povo, ou por marcas de resiliência tatuadas na experiência, os diferentes e plurais se 1 Graduação em História e Pedagogia. Especialista em História Cultural, mestra em História e doutoranda em História pela UFG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4623726218637960 32 Maternidades Plurais encontraram no sentimento aquarelado, diluído ou reforçado, no confinamento, no caos da pandemia, mas sobretudo, na força que nutre a vida. Desejo a todes, que mergulhem em um oceano de possibilidades, reconhecimentos, sentimentos e compartilhamentos de relatos de mães, que se encontram, ora nas dores, ora nas alegrias e sempre na força. Somente em um mundo, onde estivermos imersas em um mesmo sentimento de empatia, independente da profundidade de cada realidade, a solitude de cada mãe será reconhecida na força de tantas outras. São pequenos milagres diários no cansaço e exaustão de mães, que sorrisos se transformam em força, que lágrimas se transformam em perseverança, que posturas se transformam em exemplos, e que uma vida se eterniza em legados. Relatos transformaram-se em ode à vida e desvelam consigo, um intenso convite à introspecção. Cada pincelada me levou à uma explosão de sentimentos, culpas, memórias, alegrias, palavras ditas, não ditas, momentos vividos e momentos que gostaria de viver, mas sobretudo, a experiência de aflorar o subjetivo de mães plurais, me marcou na perspectiva de tornar a melhor mãe que conseguir, renovando ciclos, como águas que nunca correm num único curso. Águas que se encontram, que se separam, que se transformam, que alimentam, que geram vida, que estão em constante movimento, que são tormentas, mas também calmaria, que tem diferentes tons de cores, de sons, de emoções. Nós, filhas e filhos, somos rios, sempre corremos para o encontro dos mares e oceanos que equilibram a nossa vida, águas mães, mares de imensidão de amor, que se tornam oceanos com o tempo. Aos rios, esses repletos de curvas e obstáculos, aprendizados e aventuras ao longo de sua jornada, corremos como águas, buscando o curso do amor na imensidão do mar, ao encontro das águas mães. 33 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) M ãe H omenageada Os altos e baixos antes da pandemia Ana Lucia Da Silva Eulalio1 Foto do meu primeiro dia de aula no Pré-Vestibular Comunitário Marielle Franco – 2020 Sobre a minha infância... Sou a sexta filha das sete filhas mulheres de uma família humilde de mãe do lar. Entretanto, com vários ofícios, pois não é verdade quando dizem que a pessoa do lar não tem profissão. Minha mãe sempre costurou para fora, plantava em nosso quintal diversos alimentos para o nosso sustento e lavava roupas para fora. Meu pai era policial militar, com pouco interesse em almejar cargos superiores na corporação. E foi deixando a vida levar em meio as frustações, pois seu maior desejo era ter um filho homem. Quando minha mãe estava grávida da primeira gestação, houve uma briga de família e meu pai, que estava bêbado, prendeu-a com suas algemas na cama, o que foi um choque muito grande para ela e para o bebê que ficou muito agitado em sua barriga. Ela já estava no final da gestação e quando entrou em trabalho de parto, o bebê nasceu morto. 1 Estudante de Técnico de Enfermagem, Colégio Curso Mova. Estudante do Pré-Vestibular Marielle Franco. 34 Maternidades Plurais O tempo foi passando e foram nascendo, a cada parto, outra menina. Meu pai morreu muito cedo e deixou minha mãe com todas nós e sua luta ficou ainda maior. O que já era difícil piorou e eu consigo me lembrar bem de quando os materiais da escola acabavam e que minha mãe não saía da máquina de costura. Muitas vezes ela comprava um a dois lápis e dividia em vários pedaços. A luta foi grande, mas pudemos aprender muito com ela. Das sete filhas, cinco se formaram professoras e três conseguiram fazer o Ensino Superior. Meu pai faleceu aos 48 anos devido a um AVC: ele possuía diabetes, também tinha um vício muito grande em cigarros, além de ser alcoólatra. Por muitas vezes, ele deixava de comprar coisas para a nossa alimentação, para pagar as contas que tinha nos bares em que bebia fiado. Na infância era tudo muito diferente do que é hoje. Brincávamos muito de pega-pega, queimado, casinha, amarelinha e outras brincadeiras. E mesmo com todas as dificuldades, conseguimos ser crianças felizes. Comecei a trabalhar com doze anos de idade. Trabalhei por um bom tempo em casa de família como doméstica e cuidando de uma idosa, depois também pude cuidar da minha avó quando ela adoeceu. Minha avó Alice era uma pessoa muito difícil de se conviver e eu e mais uma irmã éramos as únicas que possuímos mais afinidade com ela. Sem levar em conta que nós vivíamos o racismo na pele por parte dela, seguíamos cuidando dela com muito carinho. Devido ao fato do meu pai ser negro e minha mãe parda (com a pele bem clara), minha avó era extremamente racista conosco. Minha avó Alice era branca, filha de portugueses que vieram para o Brasil, entretanto essa mesma avó se casou com meu avô José que também era um homem negro. Ela odiava negros e deixava isso bem claro, tratando todas nós como “neguinhas” ou filhas do “neguinho”. E sendo os meus outros primos brancos, ela sempre demonstrava que gostava mais deles. Mas, por ironia do destino, fomos nós, “as filhas do neguinho”, que cuidamos dela na velhice. Sobre a minha adolescência... Durante essa época da minha vida morávamos num bairro muito perigoso, onde a criminalidade estava cada vez mais presente. Até que um dia invadiram a nossa casa, com todas nós lá dentro. Graças a Deus saímos intactas de lá e fomos morar na casa do meu avô paterno. A nossa luta ficou ainda maior porque ele combinou de nós ficarmos em sua casa por um tempo, enquanto construíamos uma casa em cima de sua laje. Minha mãe nessa época trabalhava fora e algumas das minhas irmãs também. Elas trabalhavam fazendo molho para cachorro-quente e à noite saíam para vender cachorro-quente para o dono da barraca, no centro de São João de Meriti, Baixada Fluminense. Eu e mais duas irmãs ficávamos responsáveis pelos pedreiros, nós fazíamos o almoço para eles, limpávamos e arrumávamos a casa do meu avô, ajudávamos na obra e depois íamos para escola. Esses pedreiros fizeram todo a construção de nossa casa de forma voluntária, eram pessoas da igreja da minha mãe e meus tios. 35 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Eu estava quase terminando a antiga 8ª série e nesse ano não tinha vagas liberadas para ingressar no 2º grau. Então fiz uma prova para passar num colégio estadual e não alcancei a pontuação. Dessa forma, minha irmã mais velha, que já trabalhava em dois hospitais, começou a pagar um colégio particular para mim, para eu não perder o ano letivo. Mas eu já estava com dezessete anos e consegui um emprego numa fábrica de costura, onde aprendi a costurar. De primeira, comecei na empresa lavando os banheiros, fazendo café, arrematando as costuras e embalando calcinhas. Nossa... Suei muito para pagar a escola e meu pagamento ia quase todo nas mensalidades dela. Nessa empresa conheci o pai das minhas filhas e engravidei no final da minha adolescência. Minha filha nasceu em meados de 1996. Porém, eu consegui concluir os estudos nesse mesmo ano, revezando entre os cuidados dela, o estudo e o trabalho. Sobre a minha vida adulta... Minha vida adulta foi conturbada, pois vivia um relacionamento cheio de problemas e em que eu não era realmente feliz. Nessa época, ainda tinha apenas uma filha, vivíamos com muita dificuldade e eu fazia hora extra para conseguir comprar comida e pagar as contas. Eu trabalhava demais e não contava com uma parceria. E mesmo sendo a única a trabalhar dia e noite para manter a casa, nunca tive reconhecimento. Cansada, eu almejava uma vida melhor e nossa relação era repleta de altos e baixos, com separações, brigas e retornos arrependidos com promessas de mudança, ar que nunca aconteciam de fato. Eu acreditava que ele me amava muito e assim, engravidei da minha filha mais nova. No entanto, não havia futuro para nós. Terminamos de vez e nunca mais voltamos a nos relacionar. Hoje eu consigo ver de forma diferente tudo o que aconteceu na minha vida. Como sofri racismo com a minha avó, como meu pai demonstrava seu machismo direcionado a mim e as minhas irmãs, por termos nascido mulher, e também como essa relação com o meu ex-companheiro era nociva e, como dizem hoje em dia, tóxica para mim. Como antigamente nada era tão explicado na mídia e nem tínhamos acesso aos meios de comunicação de forma tão ampla, não sabíamos os nossos direitos e nem ao menos como reivindicá-los. Comecei a trabalhar em outros lugares, como cuidadora de idosos, costureira, e como mãe sempre incentivava minhas filhas a estudarem mais. Hoje minha filha mais velha é formada em Ciências Sociais e tem artigos e trabalhos em congressos publicados em sua área, além de estar fazendo mestrado. Minha filha mais nova está no nono ano do ensino fundamental e ela é uma ótima desenhista, tem vários sonhos e planos de estudo, mas como toda adolescente é imprevisível, vamos aguardar e torcer pelo melhor para ela. Fui incentivada a voltar a estudar pela minha filha mais velha, pois deixei meus sonhos de lado. Hoje, já estou formada em Técnica em Radiologia, Técnica em Contabilidade e no momento cursando Técnico em Enfermagem. Irei começar uma especialização em Mamografia e também estou fazendo 36 Maternidades Plurais o Pré-Vestibular Comunitário Marielle Franco, pois minha filha me inscreveu para o ENEM e eu vou tentar passar para Medicina. Pode ser que eu não consiga de cara, pois sei o quanto é difícil. Mas não desistirei, porque sei que também posso conseguir. Fui selecionada para esse Pré-Vestibular através de uma inscrição na qual minha filha teve acesso através de uma amiga dela. Tenho orgulho e muita gratidão por fazer parte desse Pré-Vestibular que leva o nome de uma mulher tão inspiradora para mim e minha família. Marielle foi socióloga assim como minha filha é. Foi uma mãe negra assim como eu sou e uma lutadora dos seus ideais, como eu me inspiro para ser. Poder estudar num local que leva seu nome é saber que estou num lugar forte e bem preparado, onde os professores dão o seu melhor para nos ajudar a seguir os nossos sonhos. Sou muito grata a elas por esse contato. Além de estudar muito, também estou trabalhando de cuidadora de idosos no bairro do Flamengo e faço consertos de roupas em casa, que também amo muito. Não sei se está tarde demais para realizar os meus ideais, porém, enquanto há vida e vontade de lutar, há muita esperança, pois houve momentos na minha vida que tive vontade de desistir de tudo. Entretanto, quando temos amigos verdadeiros e uma família maravilhosa que nos trazem uma palavra boa, vale muito a pena rever onde erramos e tentar fazer melhor de novo. Já tive muitos altos e baixos na minha vida por deixar problemas me dominarem e a depressão me atacar em cheio. Certas vezes tive crises de depressão profundas devido às frustações da vida. Porém, não adianta reclamar e achar que as outras pessoas foram culpadas pelas nossas frustações, quando na verdade todos nós erramos e temos que mudar e dar o melhor de nós mesmos. Hoje, faço terapia com uma psicóloga no posto de saúde do bairro, além de acompanhamento com uma psiquiatra. Eu tinha um preconceito de que quem fazia o uso dessas especialidades era “maluco”, até eu precisar. Então perguntei à médica sobre e ela me disse que todos temos que cuidar da nossa saúde mental, inclusive os próprios médicos também passam por terapias. Não deixe de cuidar dos seus problemas e peça ajuda assim como eu também fiz. Hoje sou outra pessoa. Lembre-se de que nunca alcançamos tudo e nunca seremos aprovados por todos. A pandemia e o novo normal Então, de uma hora para outra o mundo mudou, o medo e a insegurança nos levaram a tomar ações que causam um impacto menor em relação às mortes e à contaminação. Foi muito difícil trocar os hábitos do dia a dia, levando em conta que no automático da população do nosso país o calor humano, o aconchego, abraço, beijos e apertos de mãos são normais para nós. E tudo isso deixou de ser usado em função da contaminação do vírus. Vimos as necessidades das pessoas, desde a alimentação até a necessidade de produtos de higiene para sobreviver, sem levar em conta o caos da saúde pública e a falta de leitos e hospitais para cuidar do nosso povo. Faltava o mais simples que é a água, como então deixar a população sem adoecer? 37 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A resposta que temos é que a solidariedade mudou a sorte de muitos. Mesmo que de uma forma indireta, todos nós sentimos na pele a dor. Da minha parte, pude colaborar respeitando o isolamento social e o uso de máscaras. Também foi tempo de refletir e me aproximar mais da minha família. Houve dias em que o tédio era enorme, aí foi a hora de mudar o cenário, cantando e dançando mesmo sem saber. Também me apeguei aos estudos que hoje vejo diferente, consigo perceber que aprender não é apenas uma relação de cobrança e resposta para os professores e locais onde estudo. Passei a entender que aprender é importante e devo ser grata pela oportunidade de poder voltar a estudar. Além de ter a noção de que sou privilegiada por ter as coisas que possuo hoje. Atualmente, venho tendo uma rotina de estudos muito grande, pois faço as aulas do Técnico e estudo de segunda a sexta no Pré-Vestibular. Minha vida em casa tem sido diferente, pois não tenho mais que levar minha filha ou minha neta na escola. No mês de maio, minhas filhas tiveram sintomas da Covid-19, mesmo seguindo os passos do isolamento social, elas podem ter contraído a doença. Não conseguimos realizar o exame para ter certeza, porque ele ainda está muito caro e não está de fácil acesso na rede pública. Cuidei delas e da minha neta que não teve sintomas, dando os remédios e a alimentação delas. Felizmente, elas ficaram em isolamento e ficaram bem. Porém, a pandemia ainda não acabou e uma maneira de diminuir os impactos é realmente respeitando as barreiras de isolamento social por mais difícil que seja, pois estou longe das minhas irmãs e amigas que tanto gosto. É importante nos conscientizarmos e conscientizarmos as pessoas ao nosso redor que se ainda não existe uma vacina para a cura, temos uma opção que é colaborar para mudar esse quadro. Gostaria de finalizar esse texto falando sobre como toda a minha história foi importante para que eu pudesse hoje dar mais valor para tudo o que vivo tanto na minha vida pessoal quanto na vida profissional. Hoje, consigo compreender que cada momento que passei: trabalhando em casas de família como doméstica; trabalhando como cuidadora de idosos; todos os dias de “serão” na fábrica de costura, produzindo roupas que muitas vezes eu nem poderia comprar; as horas que fiquei afastada de minhas filhas quando trabalhava em uma grife saia antes delas acordarem e muitas vezes voltava quando elas já estavam dormindo. Todos esses dias foram importantes para que eu hoje pudesse voltar a estudar e dar um novo rumo para minha vida. 38 Maternidades Plurais 1 No meio do caminho tinha Covid-19: a doença que afetou vidas1 Adriana Goncalves Queiroz2 Melissa Rizzo Battistella3 O WhatsApp do grupo estava agitado, falavam de um e-mail. Abro-o e vejo os termos “highly recommended”, “back home”, “Covid-19”. Assim, começou um momento angustiante e corrido. Apesar da opção de ficar em Kansas City, EUA, onde estava fazendo meu doutorado sanduíche, tanto o patrocinador do doutorado quanto a universidade “highly recommended” (fortemente recomendam) que eu e minha filha de quatro anos, na época, voltássemos. O e-mail chegou em 16 de março, enrolei a decisão até o dia 18 e no 19 de março de 6h30 da manhã à meia noite, amigos, faxineiro do prédio, minha menina e eu empacotamos nosso lar por sete meses. Minhas aulas aconteciam à noite, naquela segunda-feira (9 de março de 2020), recém começado o novo semestre letivo do meu doutorado na Universidade de Lisboa, tínhamos aula, metodologia quali, com uma professora da Universidade de Évora (Portugal). Évora fica a uma hora e meia de Lisboa, em geral o deslocamento não é nada. Mas, ela havia, assim como tantos outros, sido proibida de participar de atividades da universidade fora do campus. A epidemia se aproximava, mas a gente ainda não sentia, apenas assistíamos aterrorizadas tudo que a Itália estava vivendo, e em seguida a Espanha, muito mais próxima de nós! A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, declarou o novo surto de coronavírus (Covid-19) uma pandemia global.4 1 Esse relato foi feito em formato de diálogo, portanto, para a sua melhor compreensão, as escritas em itálico são de autoria da mãe cientista Adriana Goncalves Queiroz e as escritas em negrito são da mãe cientista Melissa Rizzo Battistella. 2 Doutoranda em Estudos Interdisciplinares do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1011148093057747 3 Doutoranda em Sociologia pela Universidade de Lisboa. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3093799021346822 4 CUCINOTTA, D.; VANELLI, M. WHO declares Covid-19 a pandemic. Acta bio-medica: Atenei Parmensis, v. 91, n. 1, p. 157-160, 2020. 39 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) De Kansas City, fomos para Oklahoma City, onde temos amigos que são como família e lá organizamos as malas. A volta se deu em 22 de março, no 23 as fronteiras aéreas estavam fechadas. Nas malas tudo o que tínhamos, inclusive os sonhos. Alguém entra para falar com o coordenador da disciplina, que estava em sala, e em seguida as fichas começam a cair, mas ainda, nem tanto! Havia uma possibilidade de todos termos as aulas suspensas, ou, de em breve passarmos a ter aulas online. Eu olhei um pouco para dentro de mim e um pouco para fora. Para mim, o passo seguinte das aulas online seria o fechamento das fronteiras. Não poder ir ou vir, não poder ir ao Brasil no intervalo de Páscoa ver minha filha, este “não” em alguns segundos havia se tornado meu maior medo. Terça de manhã: comunicado oficial, aulas online a partir dali. Na quarta-feira eu estava no aeroporto nas imensas filas para mudar minha passagem, e na quinta-feira à noite já estava no Brasil. Não era assim que imaginava nosso retorno, que se daria dali uns dois meses e meio. Retornar tinha gosto de vida interrompida. De sem lugar. A mala era uma só, ao contrário das quatro ou cinco da ida. Um pouco mais que a roupa do corpo e aquele básico para uma semana fora. A semana, que tem sete dias, já está durando mais de cem dias. Na verdade, não vai acabar mais. Eu não saí de lá como se fosse para sempre, mas só porque a gente acredita que tudo pode mudar. Pode mesmo. Era para ser um ano fora, um ano em Lisboa, primeiro ano do doutorado. Foram 164 dias. Tudo pode mudar. Seriam dez meses de um award (prêmio) por meu esforço acadêmico. Dez meses fazendo pesquisa. Foram sete. Saímos correndo. Sem nem abraço de tchau. Para muitos nem um até logo. Do aeroporto, ainda cancelava o seguro do carro e a energia elétrica. Toda economia dos primeiros meses para no fim podermos ir às atividades culturais que pagam. O fim veio antes e o gozo adiado. “Tem gente passando fome e nós estamos reclamando que voltamos antes de uma experiência internacional?”. Bem isso! E mais que isso! E, a intensidade e a correria de se reconhecer em um outro mundo e dentro deste turbilhão de sentimentos e (falta) de lugar (es) acolher um outro ser e produzir. Sim, produzir sentido, inclusive acadêmico. Nova rotina, novo Brasil, novos sentidos, nova presença. Você aprende logo, quando se torna mãe, que muitos dos seus planos irão por água abaixo. Você não chegava atrasada nunca, agora só sabe chegar por último, você programava seu dia desejando que algo te surpreendesse e passa a desejar que nada te assuste. 40 Maternidades Plurais Um outro país, muitas mudanças. Retornamos, somos e estamos diferentes e temos novas crianças. Nessa nova rotina, meio ainda sem padrões, vamos nos reconhecendo nesse novo contexto. Ainda estamos morrendo de saudade das pessoas e lugares que ficamos meses sem ver. Estamos confinadas com os sentimentos revirados e os ombros cansados. Explicar para uma criança que ela não voltará para a escola de KC, mas também que aqui não terá escola, e que mamãe quem irá ajudá-la a aprender, mas a mamãe também tem que estudar, e que isso tudo deve acontecer enquanto vivem na casa de um familiar e seus pertences em mala devem continuar, porque não há espaço… não há espaço, porque em plena pandemia até encontrar lugar para morar é perigoso… é isso, e sem vírgula, sem ponto, sem pausa. Inspira, expira e não pira, já dizia uma sábia. Um dente quebrado no parquinho, uma palavra maldosa da vizinha, ou um grito do pesadelo no meio da noite. Tudo isso assusta mães, mas agora, as mães todas estão ‘apenas’ querendo que o tal vírus não chegue perto! É no cotidiano — elemento marcado por imprevistos e subjetividades (SALLES & MATSUKURAB, 2013)5 — que temos tentado gerar uma rotina. Uma que acolha as incertezas, as frustrações, os prazos não alcançados, as expectativas de pessoas que não são mães e demandam como se fossemos máquinas vindas do futuro. Uma que organize o exterior e nos ajude a dar espaço ao que se passa no interior. A pandemia tem a cara da rotina interrompida, ela não nos trouxe de volta para casa, para a nossa casa (antes de partir, aluguei o apartamento onde morava, e estou na casa dos meus pais, depois de mais de dezesseis anos fora daqui), e também, no retorno, não havia mais o que estava ali antes. Há aulas à distância, mesmo para as crianças, férias fora de hora, mas sem poder sair de casa, ansiedades, muitas ansiedades. Medo também, medo de que alguém que você ama muito morra. Estamos na casa “dos outros” como se diz. Mas, outros que são família. Mas, família demais também cansa. E também acolhe. Estar confinado sem lugar simbólico desorienta. Minha pequena diz que quando crescer será “construtora que cria casas para pessoas que não têm casa. Como a gente, mamãe”. O coração corta. Todo dia ela cria casas nos cantinhos da casa do vô. Sim, estamos morando com uma pessoa do grupo de risco. Adulto se ajeita com tudo. Criança se adapta fácil. Estas coisas que a gente repete por aí, meias verdades, que não ajudam em nada. Crianças sofrem com as mudanças, e adultos, mães, não lidam bem com filhos e filhas sofrendo. Ela, minha filha, dez anos, uma energia imensa, quase infinita, passou a ficar por horas, dias, em silêncio, amuada, esperando sei lá o que. 5 SALLES, M.M.; MATSUKURAB, T.S. Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 21, n. 2, p. 265-273, 2013. DOI: 10.4322/cto.2013.028 41 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ajeitar-se não é adaptar-se. É arredar para fazer caber. E fazer caber apertado não é nem minimamente confortável. Confesso que acho uma tristeza dizer que criança se adapta fácil. A que custo? Minha filha está ansiosa, dorme mal, tem pesadelos, está tendo dificuldade para focar e chora “facilmente”. Embora, chorar não seja fácil. Eu, adulta, durmo mal, meu humor mudou, rezo o dia inteiro por paciência e sabedoria. Como pesquisadora, fui buscar informações sobre como lidar com isso, sobre como apoiar minha filha em seu processo educativo, em sua frustração pela saudade dos amigos, em seu medo se transformando em pesadelos e choros no meio da noite. Ela tem dez anos e tem muita coisa que fazia sozinha que agora parece tão mais difícil. Sim, as duas adotaram estratégias para lidar com essa situação, como atividade física, yoga, respiração por narinas alternadas e conversas e carinhos. Mas, já se vão meses… Li em uma publicação de Lorrae Mynard6 que estamos todas e todos vivendo a ruptura da rotina, mas que possivelmente algo bom emergirá deste momento. “Estamos todos com algum nível de interrupção na vida. É desagradável e ninguém se inscreveria para isto voluntariamente. Mas também é possível que algum bem inesperado possa surgir da experiência. Talvez o abrandamento imposto ou passar mais tempo com a família seja realmente benéfico. Vamos procurar um tesouro escondido. A situação do Covid-19 significa que todos nós podemos viver em círculos geograficamente menores por um tempo, mas isso não precisa nos impedir de viver a vida ao máximo” Em plena pandemia, a guarda compartilhada não é tão compartilhada assim. E a sobrecarga pesa. Confesso que fico irritada com os textos bonitos de Facebook dizendo para curtir a família, brincar e escutar as crianças. Parece pré-julgamento a mães que ousam uma carreira. Afinal, eu já balanceava o cuidado — o que inclui presença, estimulação, estar atento no cotidiano — com minha pequena e a carreira acadêmica. O tesouro escondido, no entanto, para mim, é o tempo. O fato de não termos uma rotina tão regrada mais permite-me ter todo o cuidado que tinha antes com mais calma e de forma mais espaçada ao longo do dia. Aquelas frases de vidas perfeitas nas redes sociais e eu só sei que cansei. Se algo de bom vai surgir, tenho que poder ao menos saber o que é, porque este não era o planejado e nem o sonhado para 2020. Concentrar-nos no presente tem trazido alento. Aos poucos vamos deixando a vivência com tom romantizado que a saudade sempre traz, as boas lembranças. Não mais fazemos planos para a semana, mas para o dia. Acordamos e traçamos juntas a nossa rotina, com pequenas metas: escutar uma estorinha no Youtube, fazer um desenho recontando a estória. Ler a introdução daquele texto acadêmico. Assistir desenho com ela, deixá-la brincando sozinha enquanto tomo banho e escuto meus 6 AUSTRALIA, OTA. Occupational Therapy. Normal life has been disrupted: managing the disruption caused by Covid-19. 2020. 42 Maternidades Plurais próprios pensamentos. Ela dorme até 20h30 e eu até 1h da manhã. Qualquer tarefa de adulto, inclusive reunião, é nesse horário. Decidi que eu tinha que viver, que não dava só para sobreviver a este momento. Me engajei em ações voluntárias, de montagem de face-shield (máscaras de rosto) para profissionais de saúde, a arrecadação de alimentos e itens de higiene: tudo que eu pudesse fazer para alguém que precisa mais do que eu (e tem tanta gente assim nesse mundo, né?). Isso ajudou demais, aquela sensação de inércia e interrupção se tornou energia e solidariedade. O doutorado vai mais lento que passos de tartaruga. Sinto-me culpada às vezes, até com taquicardia. Mas, ver minha pequena mantendo sua saúde e desenvolvimento saudável, assim como sua saúde emocional, na medida do possível em isolamento, tem sido recompensador. Ter a bolsa da CAPES assim como o prazo de defesa (seria em 9 de julho de 2020) prorrogados (outubro/2020) é um alívio. Apesar de me cobrar e me organizar para produzir, a verdade é que a cabeça voa. E às vezes eu nem sei para onde. Já não é mais no passado, nem no futuro. Às vezes parece que é literalmente nas nuvens. E assim chegou o fim do semestre e do ano letivo (o ano letivo no hemisfério norte termina em junho), e assim vieram as avaliações, e assim eu fui percebendo que dá sim para encontrar alívio, dá sim para encontrar alento. Mas, como já dizia uma amiga minha “você não precisa dar conta de tudo sozinha”, então, duas coisas importantes, saber renunciar ao que não vai caber, e saber “não estar sozinha”. Conversar, buscar outras mulheres mães que também sofrem, mas também querem mais, e querem aquilo que todas nós queremos sempre: o sorriso largo no rosto das crianças! Incrível como encontrar alguém que passou por algo semelhante faz a diferença. O apoio antes e durante o doutorado sanduíche foi e é importante, mas é nesse ‘estar sem estar’, constante conflito de sentimentos e descoberta do novo “normal” que encontrar a Mel fez a diferença. Alguém que não só entenda o que passei como mãe solo em outro país, mas que me ajuda a caminhar nesse novo cotidiano. Obrigada por existir, Adri! E obrigada mundo por, de um jeito tão torto, colocar a Adriana bem perto de mim (ainda que a uns seiscentos quilômetros de distância! Eram mais de sete mil quilômetros de Lisboa a Kansas City! Agora estamos, como dizem os mineiros, “pertim”!)! 43 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 2 Mãe, Mamãe, Mããããnhêeeeeeee: Produção Acadêmica, Maternidade e Pandemia Alessandra Aparecida de Melo1 Acervo pessoal da autora. Produza como se não estivesse em casa, esteja em casa como se não fosse necessário produzir, limpe, esfregue, cozinhe, não, não, não, você NÃO vai cozinhar qualquer coisa. Legumes, verduras, tudo muito bem esterilizado com álcool gel. Seja uma boa mãe, acompanhe a lição das crianças enquanto trabalha, veja bem, tem aula na tv, tem inúmeras tarefas de seis páginas que não param de chegar no celular! — Mamãe, esta caneta de luz não pára. 1 Mestra em Educação UNICAMP. Especialista em ensino de filosofia UFSCar. Graduada em filosofia UNICAMP. Professora programa ensino integral do estado SP e mãe solo da Melissa e Helena de oito anos e da Maya de três anos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3961649303683058 44 Maternidades Plurais Seja uma boa mãe! Ó, mas sem ficar muito em cima, pois se não ficam dependentes… Este foi o conselho que ouvi de uma estrela das ciências humanas durante um treinamento online sobre educação EAD durante a pandemia de Covid-19! — A cantar com minha família, a cantaar com minha famíliaaaaaaaaaaaaaaaa! Em meu caso, enquanto ministro aulas online e reinvento a profissão de professora do ensino médio, conduzo uma segunda graduação em ciências sociais. Ouço uma gargalhada e um tilintar de ferros… deduzo pela conversinha aqui na sala ao lado que está tudo bem. Um unicórnio é cavalgado na TV em uma série que passa. Submergida em uma nave, mãe e minhas três filhas permanecemos bem. É num domingo em meio à pandemia de Covid-19 que começo o percurso deste texto. — Mamãe, eu tô escrevendo: seja uma boa mãe, seja uma boa mããããeeeee. O convite a um relato sobre maternidade, ciência e quarentena nos remonta a tantas outras camadas e camadas de cisão social que nos colocam neste lugar social da mãe na academia e na sociedade. Transitar entre a passagem do tempo, a permanência e a mudança, nutrir, embalar e proteger, tantos são os verbos que permeiam a quarentena de mães confinadas. A invisibilidade da mãe na academia se redobra em mais uma e ganha uma camada com o confinamento. Como fazer todas as coisas sozinha? A rede de apoio, que é na maioria das vezes o estado, se dissolve, creches, escolas, instituições… todos fechados; bem como parques, possibilidades de convívio, parcerias entre as mães. — Mãeeeeeeeeee, ela pegou meu negócio! O estado de São Paulo mantém por questões sanitárias os alunos afastados da escola, porém, isso não quer dizer que não há trabalho para nós, professores, muito pelo contrário. Olhando para a luzinha acesa da câmera do notebook, tento imaginar as carinhas dos alunos lá do outro lado ouvindo sobre o Renascimento, sobre a formação dos estados nacionais, sobre a primeira guerra ou sobre o Mito da Caverna de Platão… Na minha caverna/lar agora tento encarar alguns pensamentos, o banho necessário me espera, mas minha caçula diz que me ama. Já, já nos falarão sobre como devemos trabalhar em EAD e sobre como podemos passar só a gola da camisa para lives. Nesta hora queria, queria de verdade, que fosse ironia, mas falo de fatos. 45 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A maternidade no Covid-19 expõe como nossa sociedade não está preparada para a infância, crianças vazam de lives, crianças gritam, crianças sentem muita fome e não lidam bem sozinhas com o sono. — Mãeeeeeeee! Quero um dedê! Planejamento escolar, bolo de cenoura, mamadeira, choro, glitter, diários de classe, plantas, gatas, ouço um grito, mantra, água, mais mantra, mais água, muita água… chás calmantes, pilhas de reuniões virtuais, aulas on line (de minha nova graduação, das crianças e para os alunos), a reabertura do comércio e a imobilidade que criar alguém impõe a vida! Ufa!!! Acervo pessoal da autora. — Mãe, toma! A cadeira vazia da foto que escolhi para o início do texto é aquela que eu uso para meu trabalho em home office. É neste espaço que ministro minhas aulas do ensino médio, é nela que tenho as minhas aulas da segunda graduação que é em ciências sociais e também é nela que produzo os artigos científicos que submeto às revistas. — Mãeeeeee!!! 46 Maternidades Plurais São centenas de demandas, diria infinitas. Mas até aqui para além das dificuldades, para além da invisibilidade permanecemos bem… — Manheêêê.!!!!!!! Acervo pessoal da autora. 47 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 3 Mães Cientistas Alessandra Maria Martins Gaidargi-Garutti1 Somos muitas, ainda que não falem tanto de nós. Estamos por aí em laboratórios, em centros de pesquisa, em salas de aula, em congressos. Podemos estar atrás de computadores ou microscópios, ou conversando com pessoas para entender como a vida acontece enquanto a vida está acontecendo. Só tem uma coisa que é igual em todas nós: somos apaixonadas por nossos filhos e pela ciência. Mestres, mestrandas, doutoras, doutorandas, pós-doutoras, pós-doutorandas, pesquisadoras... Somos mães cientistas. Algumas de nós usam jaleco, outras, capacete, mas a maioria de nós não tem um uniforme especial que nos diferencie das outras mães por aí. Passamos despercebidas na rua. Ninguém diz: “olha a doutora fulana atravessando a rua, graças a ela meu filho tem uma base curricular decente na escola” ou “olha aquela pesquisadora, ela é a responsável pela descoberta do remédio que curou meu tio”. Das nossas pesquisas nascem as soluções de muitos problemas do mundo. Melhoramos a vida de todos, ainda que nossos vizinhos não façam ideia do que fazemos. No geral, pensam que a gente não faz nada mesmo, ou só estuda. É, a gente estuda bastante, mas esse é só um pedaço do trabalho. Enquanto quase ninguém entende o que estamos fazendo, vamos construindo nossas revoluções. Ser uma mulher cientista no Brasil é enfrentar o mundo. Para se fazer ouvir a mulher cientista se desdobra e resiste, especialmente ao sistema machista da alta academia. Temos de lidar com a jornada dupla. Mas só se quisermos ter uma família! Morar no centro de pesquisa é facultativo, claro. Com a maternidade, a jornada passa a ser tripla. Quando uma cientista diz “vou ser mãe” ela não faz um anúncio, é uma declaração contra a hegemonia da ciência: eu vou ser mãe sim, estou decidida, pode vir quente que eu estou fervendo. E o isolamento, que deixou as mães de todo o mundo sobrecarregadas, e estampou para as sociedades que se dizem tão modernas como é arcaico o sistema de divisão de tarefas nas casas, trouxe às mães cientistas um cenário complicado: queremos estar presentes para nossos filhos, para auxiliá-los a compreender estes tempos complicados de incertezas, mas também queremos desenvolver nossas pesquisas, e tudo junto ao mesmo tempo não dá. A grande questão é que fazer ciência não 1 Pós-doutorado em Educação e Culturas na Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5054330597872510 48 Maternidades Plurais é uma atividade manual/mecânica, impossível abstrair e escrever um artigo enquanto a Patrulha Canina grita na televisão, ou ler um tratado e fazer anotações enquanto modelamos um planeta de massinha. O trabalho intelectual exige uma atenção diferenciada, e nos vimos em um ambiente em que a dedicação absoluta se tornou impossível. O que fizemos diante disso? Nos reinventamos. Mães cientistas têm uma certa prática nisso, já passamos antes por uma reinvenção quando parimos e o mundo acadêmico passou a nos ver diferente. Aprendemos a pensar analiticamente mesmo presas em casa no pós-parto, quando os prazos nem sempre pararam. Descobrimos que a disponibilidade que tínhamos antes da maternidade muitas vezes pesou mais que nossa dedicação real. E passamos por adaptações o tempo todo, quando nos deparamos com a verdade de que a maternidade não é compreendida como deveria por muitos de nossos pares, que são filhos de alguém quando não são pais de alguém também. Conseguimos nos reinventar porque sabemos muito bem quem somos e o quanto é importante o que fazemos, mas são processos de desconstrução e reconstrução que só mesmo mulheres incríveis poderiam fazer. Depois de uns dias em casa, com demandas a serem entregues e já cientes de que era com a gente e só com a gente mesmo, desenvolvemos poderes quase místicos. Leitura no escuro, revisão de artigo com amamentação em curso, levantamento de resultados de pesquisa com levantamento de colher do prato pra boca da cria. Mulher maravilha fazia o que mesmo? Resolver as coisas com um laço mágico é mais simples. Queria ver a amazona encarando, depois de umas noites sem dormir, uma banca online de homens descansados ou uma reunião interminável por qualquer plataforma virtual e evitando que a cria gritasse ou chorasse ou passasse pintando com guache toda a casa ao fundo. E nós o fazemos, muitas vezes com um sorriso de satisfação por ter vencido mais uma pequena batalha. As mães cientistas atualizaram a definição de mulher que se supera. Mães cientistas sabem o valor do tempo e do silêncio. Temos uma incrível dimensão do preço dessas commodities. Porque o tempo que precisamos pra desenvolver as nossas pesquisas não é o tempo do mundo, é o tempo da ciência. E precisa de concentração e quietude para esse tempo ser utilizado, o que o torna ainda mais raro. Com o isolamento e a redução da rede de apoio — que já não era muito grande — a apenas nós mesmas, encontrar situações e momentos que permitam a atenção plena ao trabalho científico se tornou um desafio. Assim nos tornamos amigas das madrugadas. Amigas íntimas, dividimos com as últimas horas da noite e as primeiras da manhã nossas melhores ideias, e às vezes um vinho. Procurando você encontra facilmente algumas mães cientistas amigas online pela madrugada. Não é tão poético quanto parece, é que nesse horário todos dormem, e o silêncio que tanto amamos nos faz companhia no pensar — quando o sono não vence. Aprendemos a ser micro-ambiciosas: um artigo de cada vez, um congresso de cada vez. É isso. Abandonamos a ideia do macro. Nossos planos a longo prazo passaram a ser o resultado positivo de inúmeros pequenos planos de trabalho a curto prazo, dentro do padrão que conseguimos desenvolver por dia. E tem dias que fazemos listas intermináveis de trabalhos pra entregar e revisar, e na exaustão da madrugada pensamos: “por mais um dia mantive a sanidade”. Deveria existir um Mães Cientistas Anônimas. Sério. 49 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) E, mesmo assim, continuamos ativas. E brilhando. Durante esse tempo de isolamento mundial muitas pesquisas de mulheres tiveram reconhecimento, inclusive aqui no Brasil. Tudo bem que não foi tão simples, teve que ter briga pro estudo ser reconhecido como de autoria das mulheres que eram, de fato, as responsáveis pela pesquisa, mas o reconhecimento chegou. Já estamos acostumadas a brigar mesmo, vamos continuar fazendo isso até o dia que for preciso. E é com essa esperança que a gente continua, de um dia ser tão óbvio o tamanho da fatia feminina na ciência, e como ela faz diferença, que o reconhecimento vai ser o caminho cotidiano, o normal. Aliás, se é para negociar um novo normal, que seja um normal onde a gente não precisa ficar dizendo toda hora “mulher cientista” para demonstrar como o nosso caminho é mais longo e mais árduo. Que apenas dizer que somos cientistas baste, que o gênero não tenha mais peso que nossa inteligência nas relações acadêmicas. Esse é o caminho para que as mães cientistas sejam mais reconhecidas e respeitadas, porque faz parte do ser mulher o ser mãe — quando assim ela deseja, claro. E se tem uma coisa que deixa todas as nossas habilidades intelectuais ainda mais aguçadas é a maternidade, se mulheres cientistas são aviões que podem ganhar o mundo, mães cientistas são foguetes. Ser uma mãe cientista é admitir que a vida é um mistério inexplicável, porque a maternidade nos mostra que a vida é contemplação. Do jeito mais simples, gestando uma vida, percebemos como a vida é complexa. E, ao mesmo tempo, continuamos tentando com afinco explicar a vida e seus mistérios, porque a curiosidade sem fim que a ciência nos traz faz parte do que somos. É isso aí, somos uma contradição, que traz consigo o melhor da humanidade: o amor, o conhecimento e a fé. Somos cientistas e somos mães. Por amor, por vocação, por excelência. Somos mães cientistas. 50 Maternidades Plurais 4 Sonho-Pesadelo: A onda de ser Mulher-Mãe-Cientista em 2020 Alexandra Cleopatre Tsallis1 São 1h41 da manhã. A casa está em silêncio. Eu estou aqui no computador e sinto angústia. Penso: não vou conseguir, mas preciso fazê-lo. Afinal, é sobre a onda. Ela é imensa — de um azul profundo. Por causa do ângulo da foto está evidente que estou no mar. Estou nessa onda. Não acredito que estou nesse mar. Penso e sinto isso com muita angústia. O mar é muito bravo. Vou me afogar! Escrevo este texto por causa dessa imagem da onda. Até o presente momento, achava que esse sonho-pesadelo era absolutamente meu. Ao ver a chamada para essa publicação percebo na carne como o pessoal é de fato político. De fato. Já sei disso há um tempo, mas não sabia que essa frase se aplicava também aos sonhos-pesadelos que tenho. A chamada é para uma publicação. Rapidamente engulo água: preciso publicar rápido, pois desde o nascimento da Sol meu Lattes está com um buraco. A pós-graduação cobra que eu dê conta. Minha única rede de suporte para isso são meus orientandos e orientandas. Sem eles, Impossível. Eles me ajudam nesse mar, nessa onda. Esse e-book saí esse ano ainda? Acho que sim. Então, não posso deixar passar. Sou eu nessa onda. É a onda. Agora ela me acolhe um pouco. Uma calmaria que vem, simplesmente, porque me entrego. Mas sei que vou morrer. Não há acolhimento possível no mar, apenas entrega. Escrever essas linhas dói. Logo no início do texto de Donna Haraway (2011) 2 sobre o sofrimento, ela conta que Baba Joseph coloca o braço para ser mordido pelas moscas diante dos olhos de sua filha. Ela, pequena, se mostra espantada pela dor que sabe que está lá. Se segura nas pernas de seu pai. Shishhhh. Sinto a angústia dela! Vejo seus olhos assombrados. Eu, junto com ela, me pergunto: Por que ele fez isso? Sigo lendo e entendo. Trata-se da partilha do sofrimento. Ele, pai, explica: os porquinhos da índia estão aqui nessa jaula porque são “animais experimentais”. Os cientistas estão estudando uma cura para a doença das vacas. E segue explicando: é importante, esse estudo pode resolver muitos problemas. Ele, cuidador dos “animais experimentais”, sabe disso e justifica para sua filha que está ali, 1 Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Coordenadora do Laboratório afeTAR. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9571574419530510 2 HARAWAY, Donna. A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 27-64, jan./jun. 2011. 51 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) acompanhando o pai no trabalho, em uma segunda camada de partilha do sofrimento — diria eu. Penso na Sol (minha filha de cinco anos) utilizando as palavras de meu trabalho. O que é uma ata, Mamy? (Sim, no cenário de confinamento ela trabalha comigo!) Mas a pergunta ainda resiste: por que ele, pai, coloca seu braço para ser mordido pelas moscas tsé-tsé? Para partilhar o sofrimento dos porquinhos da índia. Essa onda, presente na imagem, que me chama a escrever esse texto que aqui está, me fez pensar que estão colocando o braço aqui. Ou melhor, essas mulheres que mandaram essa mensagem estão entregando seus braços para serem mordidos pelas moscas. Estas palavras são minhas. Sou eu, porquinho da índia, partilhando meu sofrimento. “O braço picado de Baba Joseph não é o fruto de uma fantasia heroica de extinguir todo sofrimento ou não causar sofrimento, mas o resultado de assumir o risco e a solidariedade implicados nos relacionamentos instrumentais em vez de negá-los. Usar um organismo-modelo numa experiência é uma necessidade comum em pesquisa. A necessidade e as justificativas, por mais forte que sejam, não diminuem as obrigações do cuidado e do compartilhamento da dor. De que outra forma a necessidade e a justiça (justificativa) poderiam ser avaliadas em um mundo mortal no qual a aquisição de conhecimento nunca é inocente? Há, evidentemente, outros parâmetros de avaliação além deste, mas esquecer do critério de partilhar a dor para saber o que é o sofrimento dos animais e o que fazer a respeito disso não é mais tolerável, se é que o foi algum dia.” (Haraway, 2011, p.29) Engulo muita água nessa onda. Não quero que esse texto seja sobre sofrimento. Mas já estou aos prantos, angustiada. O nome do sofrimento é esse: sonho-pesadelo. É sonho, porque ser mãe é sonho, ser cientista é sonho. É pesadelo, porque quando se juntam conflitam a ponto de afogar. Afirmar metodologicamente os fragmentos, tem relação com os caldos da onda. É estar na água e respirar por solavancos, com os conflitos. É como ser porquinho da índia. O início do texto de Donna Haraway (2011) é forte demais. O que não podia imaginar, e que acabo de perceber enquanto escrevo, é que no texto me identifico com o porquinho da índia. Será que ele também tem esse sonhopesadelo? Uau! Que onda?! Uma onda, um mar em que estamos todes juntes. Não há lado de fora, mas há partilha. Um sonho-pesadelo. Estou em um prédio conversando com essa amiga da Uerj, pesquisadora de gênero ... há uma certa pressa na nossa conversa. Precisamos sair do prédio. Desço as escadas na frente, ela vem logo atrás. Sei disso. Mas quando viro um dos lances da escada, já não a vejo mais, apenas sinto que ela está atrás de mim. Desço mais alguns degraus e vejo que a água do mar já subiu pelas escadas. Já era. Não vai dar para sair por ali. Na verdade, não vai dar para sair! Acordo assustada. Nossa, fazia tempo que não tinha esse sonho da onda. Que coisa ele voltar agora nesses tempos 52 Maternidades Plurais de confinamento… (devo partilhar que esse sonho foi anterior à chamada para publicação. Sim! E como não poderia ser? O pessoal é político!). No dia de Ação de Graças em 2018 tive diagnóstico de câncer de mama. Tinha parado de amamentar de caso pensado em julho, pouco tempo antes. Sol já estava com três anos e três meses. Eu queria fazer a mamografia. Sentia um imperativo: já está na hora de fazer o exame! 3 O médico me diz: fique tranquila a chance dessa imagem ser um câncer é de 5%. Digo para o médico: “você precisa saber algo sobre mim. Não sei porque, mas na minha relação com a medicina, sempre sou um ponto fora da curva.” Dito e feito. Fiz a biopsia e eu estava nos 5%. Sem fumar, sem antecedentes familiares, comendo bem, tendo amamentado e tendo escutado de um amigo médico antroposófico: Você não vai ter câncer. Não tem padrão para isso. Costuma tratar dos incômodos a tempo. Não fica com eles te cozinhando. Tudo isso e muito mais estava em minha cabeça quando, na consulta com o mastologista, pergunto: Por que esse câncer? O que você sabe me contar sobre isso? Ele começa a responder devagarinho. Bom, não se sabe muito. São muitos fatores agindo em conjunto, só que parece que tem alguma relação com tristeza… Eu o interrompo. Não, isso não me explica muito. Não sou uma pessoa triste. Ele retoma: Calma, não uma tristeza qualquer. Mas sim uma tristeza mais ligada a impotência. Em silêncio escuto e me surpreendo com a primeira imagem que me vem à cabeça: as reuniões de colegiado da Pós-graduação. Esse sonho-pesadelo. Eu não tendo atingido as metas de produção e posso estar sendo penalizada por isso. Eu sinto essa tristeza impotente. É a onda me afogando. Sou eu, o porquinho da índia sendo mordido pela mosca tsé-tsé. Aqui o pessoal se torna político de modo evidente. Enquanto escrevo esse texto, junho de 2020, vejo que estou quase no mesmo lugar. Na próxima terça às onze horas tenho reunião com a comissão de avaliação docente. São três mulheres, mas não me sinto diante de uma reunião de acolhimento. Sei que o pessoal não será político ali. As frases que escutei muitas vezes, serão ditas ali, mais uma vez. A questão é pura e simples: “são os órgãos de fomento. O Programa não pode cair de nota. Você já está como colaboradora há muito tempo. Outras pessoas do Instituto querem também estar na pós. Existe uma proporcionalidade a ser respeitada pelo programa entre professores colaboradores e professores permanentes”. Esta vez, teve uma frase de acréscimo: “ano passado nós nem te chamamos para conversar porque você estava tratando câncer. Resolvemos deixar para depois do tratamento”. 3 É importante sinalizar que perguntei, por duas vezes, ao médico se não deveria fazer a mamografia durante a amamentação. Ele me respondeu que não. Depois fui saber que a mamografia deveria ter sido feita. Escrevo esta nota para afirmar que é importante escutarmos nossa voz, mesmo quando ela parece não ressoar nos ouvidos de outres. 53 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Aqui estou eu. Terminei a quimioterapia. Chegou a conversa. Já tenho quatro artigos aceitos em 2020, mais alguns capítulos de livro. Acabo de ganhar um edital da Universidade do Estado do Rio de janeiro de inovação tecnológica. Logo penso, vou publicar minha tese com esse dinheiro. Vou me apressar para publicar ainda em 2020. Durante o câncer não tirei licença médica, tratei trabalhando. Sim. Porque meu trabalho é esse sonho-pesadelo. Meu grupo de pesquisa me alegra. Gosto de estar com minhes orientandes, estagiáries. É sonho! Mas nessa reunião, vem a onda, tudo conflita: vira sonho-pesadelo. Recebi uma reportagem agora na pandemia4. Leio que o impacto da licença maternidade na produção de mulheres acadêmicas dura de dois há quatro anos. Eu retornei da minha licença maternidade em 2016. Aprendo nessa mesma matéria que as mulheres acadêmicas precisam de colaboradorus para conseguir publicar. Eu tenho certeza disso, meu grupo de orientandes é fundamental para me fazer pesquisar, publicar, seguir. Elus são sonho! Quando retorno de minha licença maternidade, retorno sem orientandes. Escrevo um artigo com a turma de estudantes da pós que são orientandes de outros professores. É a onda. Eles estão comigo na disciplina apenas. É o sonho de estar com colaboradorus? É o pesadelo de ter que publicar? É o sonho-pesadelo! “O sentido de cosmopolítica em que me inspiro é de Isabelle Stengers. Ela invocou o idiota descrito por Deleuze, aquele que sabia como desacelerar as coisas, a fim de parar a corrida ao consenso ou a um novo dogmatismo ou à denúncia, para dar possibilidade a um mundo comum. Stengers insiste que nós não podemos denunciar o mundo em nome de um mundo ideal. Os idiotas sabem disso. Para Stengers, o cosmos é o desconhecido possível construído por entidades múltiplas e diversas. Cheio da promessa de articulações que seres diversos podem eventualmente fazer, o cosmos é o oposto de um lugar de paz transcendente. A proposta cosmopolítica de Stengers, no espírito do anarquismo comunitário feminista e o idioma da filosofia de Whitehead, é que as decisões devem acontecer de alguma forma na presença daqueles que sofrerão suas consequências. Tornar concreto esse "de alguma forma" é o trabalho de praticar combinações engenhosas. Stengers é formada em química e as combinações engenhosas são o seu ofício. Chegar "na presença de" requer trabalho, invenção especulativa e riscos ontológicos. Ninguém sabe como fazer isso antes de se juntar em composição (Stengers, 2005).” (Haraway, 2011, pg.46) Esse parágrafo me faz desejar que a reunião de terça às onze horas possa ser um momento em que vamos tomar decisões na presença daqueles que sofrerão suas consequências. Não quero uma 4 Produção científica de mulheres despenca na pandemia e pode acentuar a disparidade entre homens e mulheres. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.htm. Acesso: 27 mai 2020. 54 Maternidades Plurais regra para mim. Não quero um benefício como o que me foi dado durante meu tratamento de quimioterapia (embora creia que a palavra benefício não caiba bem aqui). Quero que se entenda que é preciso colaborar, ser “colaboradora”, para não tirar mulheres-mães-cientistas da cena acadêmica. É preciso encontrar as perguntas que precisam ser feitas, para aí sim encontrar as regras que nos façam ser mais. As regras que nos façam suportar e ter suporte. É sonho?! “O sentido de partilha sobre o qual estou tentando pensar é tão epistemológico quanto prático. Não se trata nem de substituir o substituto nem de ocupar o lugar do "outro" que sofre e que precisamos considerar. Não temos necessidade de nenhuma versão nova era da falsa e banal afirmação "eu sinto a sua dor". Algumas vezes, talvez, "tomar o lugar da vítima" seja um tipo de ação eticamente exigido, mas não acho que isso seja partilha e, além disso, aqueles que sofrem, inclusive animais, não são necessariamente vítimas.” (Haraway, 2011, pg. 31) Sim, Donna Haraway tem razão não sou vítima. Nessa onda tem sonho! “Tenho medo de começar a escrever o que estive pensando sobre tudo isso, porque posso entender errado — emocional, intelectual e moralmente — e a questão carrega consequências. Hesitantemente, vou tentar. Sugiro que é um passo errado separar os seres do mundo em seres que podem e que não podem ser mortos e um passo errado fingir viver fora da matança. O mesmo tipo de engano viu liberdade apenas na ausência do trabalho e da necessidade, ou seja, o engano de esquecer as ecologias de todos os seres mortais, que vivem no e através do uso dos corpos uns dos outros. Isso não quer dizer que a natureza se ensanguenta com garras e dentes e, portanto, vale tudo. A falácia naturalista é o passo errado espelhado do humanismo transcendental. Acho que o que meu povo e eu precisamos largar se quisermos aprender a cessar o exterminismo e o genocídio, seja através de participação direta ou de benefício indireto e aquiescência, é o mandamento "Não matarás". O problema não é descobrir a quem tal mandamento se aplica de modo que a matança de "outros" possa continuar como de costume e atingir proporções históricas sem precedentes. O problema é aprender a viver responsavelmente dentro da multíplice necessidade e labuta de matar, para então assumir isso com transparência, em busca da capacidade de responder em inexorável contingência histórica, não teleológica e multiespécies. Talvez o mandamento deva ser "Não tornarás matável".” (Haraway, 2011, pg.42) É muito contundente, do ponto de vista ético, a afirmativa feita por Donna Haraway (2011) de não tornar matável. Ela dá visibilidade ao trabalho existente para matar. Ela continua “Baba Joseph compreendeu que os porquinhos-da-índia não eram matáveis; ele tinha a obrigação de responder.” (Haraway, 2011, pg. 43). E responder era mais que ser responsável. Não era ocupar os mesmos lugares, era justamente assumir as diferenças, bem como os efeitos produzidos por elas. “Além disso, não se espera que a capacidade de responder e, portanto, de ser responsável, tome formas e texturas simétricas para todas as partes. A resposta não pode emergir dentro de relacionamentos de autossimilaridade.” (Haraway, 2011, pg.30) Ele também tem esse pesadelo! 55 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Essa frase é linda: “Respeito é respecere — olhar de volta, manter em consideração, compreender que encontrar o olhar do outro é uma condição de também ter um rosto. Tudo isso é o que estou chamando de "partilhar sofrimento". Não se trata de um jogo, mas lembra o que Charis Thompson (2005) chama de coreografia ontológica.” (Haraway, 2011, p.53) Quando Donna Haraway fala em cosmopolítica, incluindo as espécies companheiras, ela defende incluir a pergunta sobre viver e morrer, em respeito ao rosto que se olha, exigindo eticamente a melhor resposta que se possa dar naquela circunstância local. Trata-se de mais um exercício de mapear os emaranhados de vínculos e conseguir fazer as perguntas que procedem a cada um dos actantes. Não é brincar de Deus e encontrar uma pergunta — definitiva e absoluta — que nos dará uma saída redentória. Donna Haraway chega a essa proposição por pensar a partir de um lugar em que ela aprende com o marxismo em sua análise das relações de trabalho (isso dá um resultado muito interessante quando não se aplica apenas aos humanos, mas se trata de um mundo muito mais complexo – cosmopolítico) e com o feminismo naquilo que se refere às práticas de cuidado. No próprio texto o termo cosmopolítica ganha corpo com a ideia de co-presença — estar junto, emaranhado. Inclusive, quando sustentamos práticas racistas, sexistas, capacitistas, o que fazemos é inventar um desembaraço. Com isso, fomentamos uma ideia de que não estamos emaranhados, de que é preciso criar certo distanciamento para enxergar e ordenar as coisas com maior precisão. Esse é o argumento para não partilhar sofrimento, para, assim, deixar quem quer que seja, só. É a onda sem que ninguém te avise que é possível sobreviver. É o pesadelo! Não há um lugar seguro e firme no qual tenhamos uma visão ampla o suficiente. Ou nas palavras de Galeano5 as coisas são muito diferentes quando vistas do alto e de longe, de quando são vistas de baixo e de perto. Tanto as perguntas quanto as respostas precisam ser feitas localmente — para o bem e para o mal. O que não salva ninguém da “respons-abilidade, capacidade de dar uma resposta” (Haraway, 2011, p.53). Metodologicamente, eu diria, da obrigação de partilhar como esse mundo foi construído, como se chegou e esse emaranhado a essa determinada distribuição do trabalho entre todes os envolvidos (sejam eles humanos ou não-humanos). É sonho! A amiga de Donna Haraway, Sharon Gamari-Tabrizi, a interroga sobre qual resposta dar aos detalhes que se constroem nas práticas de laboratórios (pois sabemos que tudo que se filosofa, vem depois dos detalhes). Sharon Gamari-Tabrizi propõe uma pergunta do tipo “ou isso ou aquilo”. Mostra a fragilidade de qualquer posição. Contudo, Donna Haraway responde com a com-posição. Não há lugar a salvo. Estamos emaranhados. Não será possível desfazer o nó, apenas seguir pelos fios e 5 Disponível em: https://vimeo.com/18746949. Acesso: 15 jun 2020. 56 Maternidades Plurais compreender que histórias precisam ser contadas. Márcia Moraes, uma querida amiga, sabe que contar histórias é povoar o mundo6. O que apreendo com isso tudo é que ter amigas é sonho, é não estar só. Ao ler a nota 11 do texto de Haraway me pergunto quem são meus Baba Joseph? Segue a mesma: “Baba Joseph não é um importante cientista, mas um cuidador de animais e assistente de pesquisa. Sua posição na hierarquia científica é semelhante àquela mais frequente entre animais e pessoas nos laboratórios de pesquisa biomédica hoje em dia. Ao escrever sobre a tensão afetivo-cognitiva entre o sofrimento dos animais de laboratório e das pessoas que vivem com HIV/AIDS, Eric Stanley me lembrou que técnicos de laboratório com baixos salários e poucos graus de liberdade em sua prática de trabalho são os humanos mais frequentes "na presença de" animais em sofrimento nas indústrias mecanizadas de testes de drogas e outras investigações tecnocientíficas de envergadura.”(Haraway, 2011, p.36) Nesse sonho-pesadelo, essa nota me faz entender, via Susan Sontag7, quando analisa o câncer como metáfora e dez anos depois a AIDS e suas metáforas, porque sou o porquinho da índia. “No entanto, os animais, na sua grande maioria, não são assim; o cuidado não mimético e a alteridade significante são meu chamariz para tentar pensar e sentir de maneira mais adequada; e o florescimento de um olhar multiespécies exige uma forte sensibilidade não antropomórfica atenta a diferenças irredutíveis.” (Haraway, 2009, p. 55) Essa frase se articula enormemente com as proposições de Mia Mingus sobre como acesso é amor . Entendo que por baixo do antropomórfico está uma tremenda corponormatividade, heteronormatividade e por aí vai. Não consigo esquecer que, lendo esse material, me identifiquei com os porquinhos da índia. Tenho dado ao meu corpo as alegrias de trabalhar. Por isso não pedi licença, nem com o diagnóstico, nem agora, com o tratamento de câncer. É sonho! Vale destacar que não foi e nem é uma escolha heroica, foi uma escolha por não me privar de viver. Uma das coisas mais dolorosas 8 6 Moraes, M. O. e Tsallis, A. C. (2016). Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência. Revista Polis e Psique, volume 6, 1. 7 Sontag, S. (1988) A doença como metáfora e a AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras. 8 Mingus, M. Leaving Evidence. Disponível em: https://leavingevidence.wordpress.com/2017/04/12/accessintimacy-interdependence-and-disability-justice/. Acesso: 10 jun 2020. 57 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) do câncer é o quanto te obrigam a morrer enquanto ainda se está viva. Susan Sontag já contou essa história com seu livro, com seu corpo. Antes da pandemia uma senhora sentou ao meu lado e me disse: veja o que uma bactéria fez comigo? Vivi 78 anos em perfeita saúde e agora?!... fico cansada de tudo. Pensei: nossa, que lindo! A primeira vez que viveu morrer foi aos 78. Surpreendente! Fui me dando conta de que morremos com muitas idades. Muitas vezes na vida. Até o momento em que já deixamos de morrer. Nesse dia, partimos. Tudo isso me acomoda e comove. Minha mãe sempre me dizia: antes morrer que perder a vida! É isso! Com essa serenidade... com essa força! Ter câncer é ter a morte como companheira inseparável — de modo explícito. Todes têm a morte junto, mas quando se tem câncer, ela ganha um holofote especial. No meu caso, trouxe também as tristezas de impotência, de ver, no sonho-pesadelo, a água subindo pelas escadas de minha universidade. “Mas nesse pequeno ‘tudo’ reside a permanente recusa de inocência e autocomplacência com nossas razões e o convite a especular, imaginar, sentir, construir algo melhor. Essa é a ideia de mundo na ficção científica que sempre me atraiu. É uma construção real de mundo.” (Haraway, 2011, p.58). É sonho! “Gosto da linguagem da "política" como ela é usada por Despret, Latour e Stengers, que a meu ver está relacionada a polis e polido: boas maneiras (politesse), que responde a e com alguém.” (Haraway, 2011, p.58) Isso está diretamente ligado ao porquê das práticas, dos detalhes sexistas, capacitistas e racistas terem muito mais dificuldade de florescer em ambientes frontais (onde todes estão lá, como legítimos interlocutorus). Nesses lugares e momentos a cosmopolítica se torna tangível. “Sem dúvida, Whitehead (1938, 1979, 1997) nas mãos de Stengers (2002) fala de abstrações como iscas quando nossas abstrações anteriores se desfazem. Amar nossas abstrações me parece realmente importante; compreender que elas se desfazem mesmo enquanto nós amorosamente as forjamos faz parte de nossa respons-abilidade. As abstrações, nossos melhores cálculos, matemáticas, razões, são construídas a fim de poderem se desfazer para que invenções, especulações e proposições — ideias de mundo — mais ricas e mais responsivas possam ir em frente. Uma proposição whiteheadiana, diz Stengers, é um risco, uma janela para aquilo que ainda não é. Uma proposição é também uma janela para vir a ser com aqueles com quem ainda não estamos. Ponha isso dentro do dilema resultante da matança de organismos experimentais ou animais para carne, e o apelo "ético" ou "político" obrigatório é reimaginar, especular novamente, permanecer aberto, porque nós estamos (moderadamente, se construirmos boas abstrações; gravemente, se formos preguiçosos, inábeis ou desonestos) matando alguém, não simplesmente alguma coisa.” (Haraway, 2011, p. 58-59) 58 Maternidades Plurais A onda é para mim esse risco. Escrever esse texto é isso: acreditar que um mundo melhor pode ser construído para mim e comigo — mulher-mãe-cientista. Mas, mais que isso, que se considerarmos de fato os emaranhados, um mundo melhor pode ser construído e ponto. 59 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 5 A missão de educar em tempos de pandemia Aline Collyer Lebid1 14 de março de 2020, ao receber o comunicado da escola do meu filho com o título “Suspensão das Aulas por tempo indeterminado devido à Covid-19”, rabisco algumas páginas do meu caderno em forma de tablet e minha busca agora é por referências bibliográficas em minha mini-biblioteca e o mundo da Internet. Autores e metodologias que possam representar minha bússola com direção ao Norte. A partir desse momento delicado que todos nós enfrentamos, está em minhas mãos o desafio gigante de trabalhar com Educação Infantil. Meu filho se chama Heitor Lebid, tem 2 anos, e nesse recorte ele é meu experimento e real motivação. Sou Aline Collyer e, atualmente, faço parte do projeto Avaliação de Tecnologias Sociais do Instituto Federal de Santa Catarina. O contexto é traduzido em cidades que se transformaram em desertos, lembrando cenas de faroeste, séries como The Walking Dead, Times Square exemplificam esse novo contexto. Investidores quebraram do dia para a noite, empresas foram à falência e o caminho é árduo para o nosso país, aliás parece que está apenas começando. Pela primeira vez ao caminhar na Avenida Paulista, eu não precisei desviar de ninguém, o metrô estava vazio (isso é raro para quem utiliza a Linha 4 Amarela). De repente ouço uma música, olho para a minha direita e vejo um jovem tocando violino e, com sua singela expressão, transmite a todos os expectadores que tenham esperança (apesar de alguns não se sensibilizarem com a canção e continuarem acessando seus celulares). A metrópole do país parece chorar de solidão e ao mesmo tempo o céu, que sempre foi acinzentado por causa da poluição, tornouse azul. No início da pandemia, máscaras inexistiam, o estoque de álcool tinha finalizado e, infelizmente, presenciei cenas que me assustaram um pouco na cidade de São Caetano do Sul - SP. Filas quilométricas nos supermercados, desabastecimento e quantidades limitadas de produtos essenciais, tais como papel higiênico, leite, fralda descartável, lenço umedecido etc. Outros com preços abusivos, já que a demanda era alta e a oferta estava em baixa. Realizei consultas online e presencialmente de Especialista em Gestão de Projetos – Tecnologias Sociais. Instituto Federal de Santa Catarina. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9352269952124391 1 60 Maternidades Plurais máscaras descartáveis, as quais eram comercializadas no valor entre R$ 15,00 e R$ 18,00 a unidade. O álcool líquido e em gel de 800ml comercializado por R$ 60,00. Entretanto, a parte mais triste de tudo isso foi e ainda é não poder abraçar e dar a mão a quem amamos, nem mesmo sorrir, porque agora os sorrisos ficam escondidos atrás das máscaras e todos os nossos planos e sonhos foram adiados por um tempo indeterminado, de modo que quem dita as regras, a partir de agora, são a vida ou a morte. Estudo e trabalho agora remotos e a educação a distância, que eram alvos de preconceitos, tem um peso inquestionável para garantir bons resultados em momentos de isolamento social. Desse modo, é esse desafio diário, o qual tenho seguido passo a passo, que tem permitido a troca de experiências e possibilitado conhecimentos enraizados na ética e nos valores para a sustentabilidade no amanhã. É crucial o planejamento para transmitir conhecimento, ensinar — isso envolve tempo para estudo, muitas horas de pesquisa, dedicação e ao mesmo tempo emoção. Um tipo de emoção que nos traz “A Última Crônica”2, de Fernando Sabino, a qual merece uma análise do evento “Aniversário”, planejado com hora, data e local, com o objetivo de reunir pessoas para festejar mais um ano de vida de uma criança cheia de sonhos. Já que essa comemoração permanece somente em nossas lembranças, porque comemorar não é o ideal nesse momento. Os aniversários, chás e qualquer que seja a comemoração foram reduzidos a festas no rack, carreatas, webfestas. As sacadas dos prédios viraram palcos e ainda há quem faça show que coloca o público em bolhas gigantes, como fez a banda The Flaming Lips3 ao apresentar a performance da música “Race for the Prize”, que relata a história de dois cientistas que correm contra o tempo para salvar a humanidade, tudo isso para se fazer valer a ordem do isolamento social. Fernando Sabino apresenta de forma singela emoções e sentimentos envolvidos nesses eventos: O escritor observava de um canto um casal com duas crianças que reunidos num boteco compraram uma fatia de bolo e uma coca-cola. A mãe tirou da bolsa 3 velas brancas e espetou no bolo. Em seguida uma das crianças começou a cantar os parabéns e pediu que os pais acompanhassem, ao final da música assoprou as velas e o pai expressou um belo sorriso. O escritor revela que assim quereria que fosse sua última crônica, que fosse pura como esse sorriso. E dessa forma nós gostaríamos de estar unidos em abraços, sorrisos, lágrimas e orações. Foi preciso mudar a forma de pensar, projetar, pintar um novo cenário, uma outra forma de aprender, cercar-me de novos conceitos e ser capaz de escrever sobre eles. Foi necessário crescer, amadurecer como acadêmica e profissional. 2 A Última Crônica, de Fernando Sabino: o texto narra a história do próprio escritor em que ele tenta adiar o momento de escrever e que está sem inspiração. É uma crônica narrativa, o autor utilizou os elementos e foi descrevendo os lugares dos fatos. 3 The Flaming Lips é uma banda de rock alternativo dos Estados Unidos formada em Oklahoma, em 1983. É conhecida por seus arranjos psicodélicos e cheios de camadas, suas letras viajantes e títulos de músicas bizarros. São também aclamados por seus shows elaborados, incluindo roupas de animais, bonecos, projeção de vídeos e complexas configurações de iluminação de palco. 61 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) “...se você não sente que as coisas estão acontecendo, mude de ambiente. Pinte um novo cenário. Cerque-se de novos personagens. Escreva uma nova peça, livre-se do roteiro que tanto o fez sofrer e escreva outro”. (BUSCAGLIA, 2013).4 A partir daí, montei um planejamento estratégico para as aulas de Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Afinal, simplesmente gostaria de compreender nessa dupla jornada de ser mãe e educadora, o compromisso com a minha obra durante o processo de ensino e aprendizagem. O erro faz parte do processo. Trabalhar e desenvolver atividades pensando no coletivo, sem estar concretamente inserida nele, é uma maneira que encontrei de fazer com que meu filho empreenda de forma inteligente, porque como mãe tenho essa missão de deixar como legado uma criança e futuro adulto que terá como objetivo a construção de um mundo melhor. Aprender com métodos tradicionais e intermediar o processo de aprendizagem é um verdadeiro processo de inovação, um caminho com resultados mensuráveis, e estou engajada nessa luta, tentando destruir os muros, as paredes dos julgamentos, quebrando paradigmas e preconceitos que estão na maior parte dentro de mim. Enfrentar o novo, desconstruir, se reinventar, se ressignificar enquanto educadora e junto nessa caminhada estão o Colégio Brasil Canadá5 e a neuropsicopedagoga Taíse Agostini6. Essa instituição e esses profissionais que me conduzem através de práticas concretas e embasam minha introdução teórica sobre a importância da educação nas primeiras fases da infância. Em busca dos objetivos de como trabalhar a lateralidade, o equilíbrio, a coordenação motora ampla e fina, ampliar o vocabulário, desenvolver o raciocínio lógico, percepções táteis e visuais, reproduzir, identificar e nomear formas geométricas e cores, explorar a criatividade, trabalhar em dupla, em equipe e individualmente, trabalhar a linguagem oral e escrita, desenvolver a imaginação e a capacidade de abstração e interpretação e as formas de se compreender a realidade (óticas). É importante lembrar que o concreto deve prevalecer em todos os caminhos por onde a criança passar, em todas as histórias que contar ou criar. Com a missão de desenvolver a escrita, criei cenários, transformei os cômodos da casa (sala, garagem, quarto, escritório), colei várias marcas de pegadas no chão, usei giz, fita crepe e determinei 4 BUSCAGLIA, Leo. Vivendo, Amando e Aprendendo. Viva Livros: 2013. Este livro reúne conferências e artigos do professor Leo Buscaglia, primeiro a ministrar aulas de amor na universidade. O autor defende a exuberância da vida e da capacidade de transformação do homem. 5 Brasil Canadá Educação Bilíngue é uma escola que há 20 anos tem como base a afetividade e o acolhimento dos alunos e das famílias em sua integralidade. Emprega um sistema pedagógico eficiente e inovador com método bilíngue próprio e que é um dos mais eficientes do mercado da educação. 6 Taíse Agostini, autoridade digital sobre jogos e recursos práticos para o desenvolvimento do aprendizado infantil. 62 Maternidades Plurais algumas missões a serem cumpridas, como: andar por cima da linha da letra, andar com um pé na frente do outro, de lado, de costas. Virei atriz de teatro, filme, novela e uma cantora com repertório riquíssimo em músicas infantis e Música Popular Brasileira. Tudo que faça sentido para a arte de ensinar. Utilizei uma forma de bolo retangular e adicionei algumas vezes areia, outras vezes farinha de trigo, e meu filho usava sempre o dedinho indicador para copiar a letra correspondente no cartão confeccionado por mim. Em outros momentos, costumava esconder pequenas letras em EVA ou qualquer outro material que eu tivesse disponível e pedia para ele encontrar utilizando o pregador de roupas para trabalhar o movimento de pinça que tem grande importância no processo de escrita. Construí tapetes de papelão em forma geométrica. Entramos e dançamos no triângulo verde, no círculo amarelo pulamos igual o sapo, no quadrado azul imitamos a girafa, o elefante e o pato. No retângulo vermelho, nos transformamos em jacaré e o que mais a criatividade permitisse dentro desse contexto. Os tapetes construímos com papel colorido, EVA ou tecido. Utilizei diversos recursos, músicas, histórias e constantemente utilizava o Itaipu (nosso cachorro) como exemplo, assim era mais fácil convencê-lo a realizar determinadas atividades. Para avaliá-lo observei e continuo observando seu desempenho, seu relacionamento comigo, com o pai, com o ambiente ao redor, com o Itaipu, nas videochamadas e webconferências da escola. Para premiá-lo faço muitos elogios, tais como: “Muito bem! Perfeito! Você é muito inteligente! Sábio! Ótimo! Great! Good Job! Awesome!”, e dou abraços, beijos e muito carinho. Por uma educação de qualidade para meu filho valerá cada minuto em home office, que parece loucura em tempos de pandemia, porque dividir o tempo entre trabalho e família é uma tarefa árdua e aqueles que conseguem distribuir e controlar esse tempo são fenomenais. É difícil e me encontro diariamente tentando conciliar os momentos em que meu filho não compreende que aquele espaço é para a pesquisa. Trabalho com o Projeto de Tecnologia Social intitulado “Mulheres Sim”. Atualmente sou responsável pela coleta de dados através de entrevistas via Skype, Google Meet, Zoom, Whatsapp e outros. O perfil desses entrevistados são coordenadores, técnicos, assistentes sociais, psicólogos, professores e alunas que frequentaram os cursos ofertados pelo Instituto Federal de Santa Catarina no quadriênio 2015-2018. Volta e meia, entre as gravações dessas entrevistas, meu filho invade a sala de estudo, por alguns segundos, torna-se o centro das atenções e o entrevistado passa a ser ele. Como pesquisadora, sigo um cronograma com datas e elas permanecem em branco, com interrogações. E se minha inquietação é diária a ponto de não me deixar por um minuto na zona de conforto, realmente estou no caminho certo quando vejo meu filho pegar o lápis e assinar com naturalidade seu nome com as letras em caixa alta. Neste contexto, o questionamento de todos os dias é o mesmo: “Quando será que isso tudo vai passar? O medo é constante, o número de mortes assustadoras, os estádios se transformaram em hospitais, os sepultamentos são realizados em valas comuns, o que traz celeridade para evitar que o mal se 63 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) espalhe. Esse mal que se mostra em forma de Coronavírus (Covid-19), o qual desconhecemos e não sabemos de onde vem, nem como surgiu, mas que tem uma força destrutível de dizimar grande parte do mundo. Esse vírus que não agenda um horário, não pede licença e que causa uma dor quase irreparável de perder amigos e familiares inestimáveis... sem ao menos deixar a oportunidade de nos despedirmos, para manter aquela sensação de que ninguém se foi e parecer que depois todo mundo vai se encontrar. Que possamos ao menos guardar essas pessoas como retrata a letra da música de Milton Nascimento 7: “debaixo de sete chaves, dentro do coração...mas quem cantava chorou ao ver seu amigo partir... qualquer dia amigo eu volto a te encontrar... qualquer dia amigo a gente vai se encontrar.” Houve uma mudança repentina de comportamento, da rotina, dos valores. E ainda assim temos a capacidade de sorrir com o olhar, de fazer nossa parte — ficar em casa —, que é uma forma de salvar vidas para aqueles que não estão na linha de frente. Além disso, só nos resta agradecer aos invisíveis que se transformaram em nossos super-heróis (coletores de lixo, caixas de supermercados, policiais, motoristas, atendentes de farmácias, enfermeiros, médicos, entre outros). Costa (2004)8 afirma que esses profissionais que nos parecem invisíveis estão acostumados com o preconceito, e o nosso olhar é o que oportuniza ver o mundo por um outro ângulo. Por meio de vários relatos dos entrevistados, o autor esclarece que as funções de coletar o lixo, trabalhos domésticos, entre outros são marcadas pela invisibilidade. Relata que durante oito anos vestiu seu uniforme e varreu ruas da Universidade de São Paulo, de modo que os colegas e professores que sempre o cumprimentavam não o reconheciam quando trajava as vestes de gari. Desta forma, o que nos sobra é a gratidão a todos esses heróis, que eles tenham força para não desistir e seguir até o sempre acabar, porque só enquanto eu respirar vou me lembrar de você, como afirma Fernando Anitelli9. A nossa certeza é que tudo isso vai passar e quando estou aflita, quase me entregando ao quadro de ansiedade, meu filho de dois anos e onze meses olha pra mim e diz “Mamãe vai ficar tudo bem!”. 7 Milton Nascimento é um cantor, compositor e multi-instrumentista brasileiro, reconhecido mundialmente como um dos mais influentes e talentosos músicos. 8 COSTA, Fernando Braga. Homens Invisíveis: Relatos de uma humilhação social. São Paulo: Editora Globo, 2004. Fernando Anitelli é um cantor, instrumentista, compositor, ator e responsável pela criação do projeto “O Teatro Mágico”, que mistura arte circense, cultura, poesia e discussões políticas, nas quais debate assuntos relacionados a temas como a importância da arte e da cultura e distribuição livre de conteúdo. 9 64 Maternidades Plurais 6 O difícil exercício da resiliência, em tempos de pandemia: vida acadêmica, dupla-jornada, culpa e reinvenção cotidiana Aline Cristiane Rocha Lacerda 1 Introdução Lado a lado com os trabalhadores, os estudantes de todas as idades estão entre os grupos que mais perceberam o impacto da pandemia de coronavírus nas suas rotinas. Descoberto em dezembro de 2019, na China, Coronavírus (Covid-19) é uma grande família de vírus que causam infecções respiratórias. A doença pode causar sintomas semelhantes aos resfriados ou gripes leves, mas com risco de se agravarem, podendo resultar em morte. Devido às consequências do contágio, medidas como auto isolamento e outras restrições de movimento se tornaram comuns em diversos países. Em março de 2020, estimou-se que pelo menos 2,8 bilhões de pessoas estavam vivendo sob algum tipo de restrição ou acesso a serviços2. Essas ações impuseram uma nova forma de relacionamento com possibilidades de contato online, por mensagens de voz e de vídeo. Mas, ficar isolado fisicamente onde antes, as relações eram muito mais próximas e conduzidas culturalmente por abraços e apertos de mãos, tem sido difícil e exigido um alto nível de criatividade, gestão do tempo e flexibilidade nos relacionamentos. Viu-se então, famílias se adaptando as restrições de movimento, profissionais adequando suas atribuições para atendê-las em home office e no meio acadêmico, de um dia para o outro, professores, crianças, jovens e adultos se viram obrigados a aprender usando seus celulares, tablets, computadores e notebooks. Da Educação Infantil à pós-graduação no Ensino Superior, é como se, todos fossem professores e alunos de EAD em potencial. 1 Doutoranda, Programa de Pós-graduação (Interdisciplinar) em Energia e Sustentabilidade, UNILA. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1347898831230889 2 Sayuri, Jualiana. Coronavírus: qual o impacto do isolamento nas sociedades mais 'abertas' do mundo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52042839. Acesso: 5 jun 2020. 65 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No caso das mães pesquisadoras, o tempo a mais em casa não significou necessariamente, mais tempo para pesquisa. Uma carta publicada no dia 15 de maio de 2020, na revista científica "Science"3, uma das mais importantes do mundo, cientistas brasileiras alertaram, por meio do projeto de extensão, Parent in Science que a pandemia de Covid-19 poderia trazer consequências negativas para a carreira de mulheres que são cientistas e mães. Para minimizar o impacto, este projeto foi criado com o objetivo de solicitar que fossem adotadas políticas mais flexíveis, como o adiamento de prazos para pedir financiamentos. Dias após a publicação da carta, um levantamento comparativo entre homens e mulheres4 foi realizado pelo Parent in Science referente a produtividade cientifica durante a pandemia. Até 26 de maio de 2020, 2000 acadêmicos haviam respondido o questionário, dentre eles 70%, mulheres. Os resultados apresentaram um cenário alarmante na produção cientifica das mães e mulheres pesquisadoras. Antes de apresentá-los, esclareço que a intenção não é atribuir aos homens a responsabilidade pelos números relativos as pesquisas femininas, neste cenário de confinamento. O levantamento apontou que 40% das mulheres sem filhos não concluíram seus artigos, contra 20% dos homens e 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens. Presume-se que estes resultados estão relacionados com o fato de que a maior parte dos cuidados de casa, dos filhos, de algum parente idoso acaba ficando com as mulheres. E para a carreira científica isso tem impacto na quantidade de artigos publicados, condição essencial para aprovação em editais de projetos de pesquisa, concursos públicos e progressão de carreira. Além disso, no cenário da pandemia, a pesquisadora que está em casa e precisa produzir quando os filhos precisam de apoio no processo de aprendizagem, ou necessitam do equipamento para fazer as aulas à distância, e nem sempre há disposição deles ou rede suficiente para a família. Embora seja um momento em que a ciência esteja aparecendo bastante. A pandemia está sendo um momento particularmente crítico à mãe pesquisadora, a reinvenção precisa ser cotidiana, e quando isso não acontece, a culpa é compensada pelo desenvolvimento da pesquisa enquanto os outros membros da família dormem: é como se ela estivesse sendo penalizada por sua condição. Diante dos dados e cenário apresentado, trago observações e reflexões acerca da minha experiência como mãe e pesquisadora, durante a pandemia, até o mês de junho de 2020. Apesar das dificuldades encontradas, reconheço humildemente o privilégio de poder estar escrevendo este relato, remotamente de casa. Espero que outras mães, pesquisadoras ou não, possam identificar-se com as reflexões aqui empreendidas e que de alguma forma está leitura contribua para O projeto de extensão da UFRGS “Parent in Science” teve uma carta publicada na Revista Science [15 de maio de 2020, Vol 368, Issue 6492] intitulada "Impact of Covid-19 on academic mothers" [Impacto da Covid-19 nas mães acadêmicas]. O texto 2 2 Staniscuaski, Fernanda et.al (2020) Impact of Covid-19 academinc mothers Science: Vol. 368, Issue 6492, p. 724, 15 de maio de 2020. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/368/6492/724.1. Acesso: 26 mai 2020. 3 4 Garcia, Janaína. Produção científica de mulheres despenca na pandemia, de homens, bem menos. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.html. Acesso: 27 mai 2020. 66 Maternidades Plurais que elas percebam que não estão sozinhas e que de alguma forma compartilhamos pensamentos e sentimentos comuns. Vida acadêmica, dupla-jornada, culpa e reinvenção cotidiana – meu relato Eu me chamo Aline Cristiane Rocha Lacerda, tenho 33 anos de idade e moro em Foz do IguaçuPR. Sou professora universitária, há 5 anos, no Centro Universitário Dinâmica das Cataratas (UDC) e consultora empresarial, nas áreas de gestão humana, projetos e marketing. Sou Administradora de formação, com especialização em Gestão estratégica de Pessoas e Gerenciamento de Projetos, mestra em Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda no Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Energia e Sustentabilidade pela Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA). Sou mãe do Gabriel há sete anos e esposa do Cleomar. Pesquiso na área de recursos e desenvolvimento organizacional com enfoque em Sustentabilidade. Inicio dizendo que minhas expectativas não eram muito positivas no começo da pandemia, eu estava temerosa com o quanto este vírus poderia afetar nossas vidas, em especial a dos meus pais, enquadrados no grupo de risco. Em casa, eu precisava redesenhar minha rotina profissional, acadêmica e pessoal, conciliandoas com as do meu esposo. Além disso, meu filho acabara de iniciar o processo de alfabetização e certamente eu teria que dispor de um tempo maior para ajudá-lo neste período. Como professora, usar as ferramentas tecnológicas não era uma opção, e isso exigiu muito mais tempo no preparo, edição e disponibilidade das aulas. Todas estas questões, pelo tempo que exigiram e pelas emoções que desencadearam, afetaram o tempo de dedicação à pesquisa, mas apesar disso, posso dizer que minha experiência como mãe e pesquisadora foi ricamente desafiadora e positiva; e para descrevê-la farei sua apresentação em dois momentos. O primeiro refere-se aos quarenta dias iniciais, que ocorreram entre os dias 17 de março e 26 de abril de 2020. Neste período meu esposo trabalhou em home office, e quando possível me auxiliava nas atividades domésticas, na alfabetização do nosso filho e na gestão das rotinas acadêmicas. Ele é companheiro, um pai presente e divide as tarefas domésticas comigo. Tenho a consciência de que a minha realidade não é a da maioria das mulheres da academia, especialmente aquelas que são mães solo ou que têm companheiros que, pertencendo ou não ao meio acadêmico, nem sempre olham as outras divisões de tarefas, em casa, como sendo igualitárias. Com este apoio consegui dedicar mais de tempo à pesquisa e as atividades profissionais. Até ajudei minha mãe, que é costureira, a produzir máscaras e ganhar uma renda extra (risos). Além disso, aproveitei para realizar as atividades burocráticas de validação créditos, proficiências e dispensa de estágio docente. Posso dizer que consegui atender de forma positiva as demandas deste primeiro período. 67 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No segundo momento, meu marido voltou a trabalhar normalmente. Consequentemente, as atividades que antes eram apoiadas por ele sobrecaíram integralmente sobre mim. Tendo isso acontecido, precisei pensar em como cumprir todas as demandas relacionadas à pesquisa, sem comprometer a aprendizagem do meu filho, as aulas que eu ministrava remotamente e a gestão da casa, afinal eu ainda continuava sendo vista como o “seio do lar”. Este novo cenário se apresentou de modo intimidante, desencadeou crises de ansiedade e aquele medo de não dar conta. Passei então a refletir que ser pesquisadora, por si só, significa um enorme desafio e a cada dia exige uma nova postura perante a sociedade. Ajuizei ainda que a prática da pesquisa requer grande esforço, aprendizado continuo e uma responsabilidade gigante, portanto, comecei a escrever minha pesquisa de madrugada. Não seria necessário dizer que diante deste cenário enumerado de situações, antes nunca vividas, alguma área da minha vida deixou de ser atendida como deveria. Embora, eu tenha conseguido escrever um capítulo de livro, um material didático para o ensino superior à distância e acompanhar um projeto de formatação de negócio baseado em marketing direto, lembro-me que em virtude do desenvolvimento dos trabalhos mencionadas, passei horas em frente ao computador pesquisando, sistematizando dados e escrevendo. Essa decisão custou o atraso de uma semana no cumprimento das atividades escolares do meu filho. Para colocá-las em dia, inconscientemente procurei envolvê-lo da mesma maneira que eu me envolvia com as pesquisas. Minha intenção era fazê-lo cumprir na totalidade a quantidade acumulada de tarefas, no pequeno prazo que tínhamos. Quando me dei conta do que eu estava fazendo, e o quanto isso seria prejudicial a ele, fui tomada por um sentimento de culpa tão grande, que chorei por horas sem parar. Pedi perdão ao meu filho e nos organizamos junto à escola para colocar de maneira sábia e consistente as tarefas deste período. Fiquei um pouco desapontada com as condições que se apresentaram. Quando a pandemia iniciou, de alguma forma acreditei que teria mais tempo, que ficaria mais disponível. No entanto, me vi horas e horas pesquisando e se reinventando para conseguir atender, em um espaço curto de tempo, à família, à docência, à pesquisa e a profissão. Aliás, creio que nunca antes na história, as pessoas, precisaram reinventar-se e se ajustarem a uma nova ordem tão rapidamente. Sem o apoio do meu companheiro, lembro, também, que quando um familiar ligava, eu estava ocupada demais para jogar “conversa fora”. Teve algumas vezes que minha mãe, ao ligar, antes de me dar bom dia ou boa tarde, dizia: “Está trabalhando, filha?”. E eu sempre estava. Isso parecia egoísta, ela sentia saudades da filha e do neto, afinal não podíamos ter contato físico. Aos poucos fui refletindo sobre estas questões, reorganizando e desacelerando a rotina de modo a não comprometer tanto à família. Mas, sei que ser pesquisadora é muito mais do que escrever. É tirar horas para leituras, fazer cronogramas, estar atenta ao mundo, observar bastante, e mesmo na hora que está desenvolvendo a pesquisa, raciocinar freneticamente, pois estar atento a como se escreve, e atender a tudo que se espera de nós como mãe, esposa e filha a um só tempo é muito difícil. 68 Maternidades Plurais Sem contar que, fora ao que é intrínseco a qualidade de pesquisadora/cientista, temos que nos posicionar atentas, lutar pelo reconhecimento e evolução da ciência, visando sempre o bem máximo que ela pode promover para a humanidade. Considerações finais Apesar dos desafios encontrados e do difícil exercício da resiliência durante a pandemia, considerei positiva a minha experiência. Este período me proporcionou reflexões próprias e comuns que muitas mães e pesquisadoras enfrentaram durante este período. Além disso, está vivência possibilitou visualizar a importância do companheirismo e do apoio familiar para a manutenção da pesquisa com ou sem pandemia. Tal cenário contribuiu, ainda, para a construção e o aprimoramento de um comportamento resiliente no tocante aos processos de trabalho, pesquisa e o ensinar-aprender com meu filho, enriquecendo sobremaneira o vínculo familiar. Por fim, esta vivência me propiciou uma nova forma de trabalhar, a partir das práticas realizadas com meus alunos virtualmente, que foram capazes de vislumbrar caminhos e cenários de atuação capazes de renovar o exercício do processo educativo, tendo em vista a superação do distanciamento social. 69 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 7 Em casa, com coração e mente na aldeia Aline da Cruz1 Dois de março de 2020, depois de seis meses curtindo muito o João Pedro em licença maternidade, finalmente, chegava o momento de retornar ao trabalho como professora e pesquisadora da área de Ciências da Linguagem no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Goiás. Retomava o trabalho com tudo: alguns dias antes do fim da licença, havíamos viajado à Brasília para a defesa de mestrado de minha coorientanda Bárbara2. Na semana em que voltaria da licença, iniciaria a disciplina de Introdução aos Estudos da Linguagem na Faculdade de Letras da UFG e havia sido convidada pelo Centro Acadêmico da Faculdade de Letras para uma palestra acerca das Línguas Indígenas. Para cumprir essas tarefas, João Pedro ficaria no Centro Municipal de Ensino Infantil (CMEI), próximo à Universidade. Seria piegas dizer que meus olhos ficaram marejados de lágrimas quando o deixei com as competentíssimas professora Jane e suas auxiliares, Natália e Isabela. Por coincidência, os dias de aula e de palestra foram justamente os mesmos em que não houve aula no CMEI por causa da formação continuada das professoras. “Agora que você vai aprender o que é ser mãe”, disse uma amiga referindo-se à difícil tarefa de conciliar atividades. Para minha sorte, o tio Murilo, irmão do meu companheiro, William, pôde me acompanhar na aula, na palestra e também em uma reunião no Núcleo. A pergunta retórica que eu adoro fazer no primeiro dia de aula para os calouros de Linguística: “quais são as propriedades das línguas naturais que permitem que crianças adquiram a língua materna em tão pouco tempo?”3, ganhava contornos mais realistas com a presença de João Pedro em sala de aula, que, sem cerimônia, estava mais preocupado em mamar enquanto eu conversava com a turma sobre o programa do curso. Éramos todos calouros: alunas e alunos, em sua primeira aula na faculdade e eu, em minha primeira aula como mãe. 1 Doutora em Linguística pela Vrije Universiteit Amsterdam. Professora do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, vinculado à Universidade Federal de Goiás (NTFSI/UFG). Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4764289H5 2 Santos, Bárbara Heliodora Lemos de Pinheiro. Da Língua Geral ao Nheengatu: adaptações fonológicas e morfológicas decorrentes do contato com o Português. Universidade de Brasília: dissertação de mestrado, 2020. [Orientação: Walkíria Neiva Praça e Aline da Cruz] 3 Parafraseando grosseiramente o argumento da pobreza de estímulo utilizado por Noam Chomsky em sua teoria inatista da aquisição da linguagem em Aspects of the Theory of Syntax, publicado em 1965 pelo MIT Press. 70 Maternidades Plurais Naquele mesmo dia à tarde, participei da mesa redonda juntamente com a colega Tânia Ferreira Rezende. Em minha comunicação parti do pressuposto óbvio de que não é possível falar das línguas indígenas se as vidas dos povos que as falam não forem preservadas. Como aprendi com o Senhor Irineu Baniwa, ancião do Alto Rio Negro, falecido há alguns anos, vida depende de território, além de saúde propriamente dita. Por isso, iniciei minha fala argumentando que a lentidão de todos os governos pós-redemocratização4 em demarcar terras indígenas5, e o aprofundamento dessa política a partir da determinação de não demarcação de nenhuma terra indígena, associado ao projeto de lei 191/2020 que permitiria mineração e plantação de transgênicos nessas terras constituíam claro cenário necropolítico. No que concerne à saúde, focalizei nos efeitos catastróficos da política de saúde dos dias atuais: a perda de 301 dos 372 médicos cubanos que atuavam em terras indígenas 6, e o aumento em 12% da morte de bebês indígenas em 20197. Enquanto eu apresentava os dados recolhidos de jornais, João Pedro dormia tranquilamente em meu gabinete, sob os cuidados do tio Murilo. Naquele momento, não tinha ideia de quão certa eu estava em dizer que os rumos do cenário nacional levando a muitas mortes entre as populações indígenas. Uma semana depois desta palestra, a universidade e a creche paralisaram suas atividades por causa da pandemia. João Pedro e eu voltamos para casa. Diferentemente da licença maternidade, em que meu tempo era exclusivamente dele, agora eu teria de me reinventar para dar conta de casa, trabalho e João Pedro — tudo ao mesmo tempo agora! Claro, com a presença e companheirismo do William. No primeiro mês desta aventura, cismei que eu precisava publicar, publicar, PU-BLI-CAR! Havia muitos textos escritos em coautoria com orientandos e orientandas que, por um motivo ou por outro, estavam trancafiados no meu computador, inacabados ou esperando um toque final que nunca tive tempo, nem mesmo antes de engravidar. E se não tive tempo antes, quanto mais agora Foi então que percebi que poderia orientar por WhatsApp e, dessa forma, coletivamente, os textos poderiam ser finalizados e enviados para publicação. A troca de mensagens com meus orientandos era divertida: vídeos em que conversamos sobre algum artigo modulando a voz como quem conta uma história, para que João Pedro participasse; reunião de grupo de pesquisa com João Pedro mamando ou tentando pegar o celular. Descobri que se projetasse a reunião na televisão, João Pedro assistia como se fosse um desenho animado e me deixava trabalhar. A princípio, fiquei um pouco envergonhada de conversar com colegas tendo meu bebê no colo, mas, me lembrando das mulheres 4 Período iniciado em 1985, com o governo Sarney (1985-1990). A Constituição de 1988, em seu artigo 231, parágrafo 2º, estabelece que “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". 5 6 Conforme estimativa enviada pelo próprio Ministério da Saúde à Folha de São Paulo em 16/11/2018, e publicada em reportagem de Fábio Maisonnave publicada em 19 de novembro de 2018 (cf. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/saude-indigena-perdera-301-de-seus-372-medicos-com-a-saida-de-cubanos.shtml) 7 Conforme reportagem de João Fellet para BBC News Brasil em São Paulo, publicada em BBC News Brasil em 02 de março de 2020 (cf. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51593460). 71 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Werekena8 que produzem quilos e quilos de farinha diariamente com bebê no colo e rodeadas por crianças pequenas, entendi que meu profissionalismo estava nas minhas ideias e ações e não no cenário de escritório bem organizado e cheio de livros, que sempre via em lives de outras pesquisadoras e nas reuniões virtuais com colegas. Mais que isso, essas preocupações banais não significavam nada diante das mensagens que logo começaram a chegar de São Gabriel da Cachoeira, munícipio do Amazonas, onde fiz o trabalho de campo para meu doutorado, uma descrição gramatical da língua Nheengatu9. Logo em seu princípio, a pandemia atingiu pessoas que tinham sido importantíssimas para que eu fosse a pesquisadora que sou: o professor Antônio Benjamin Luciano, indígena Baniwa 10 e professor do Colégio São Gabriel que havia sido em 2006 gestor do curso de Magistério Indígena, em que atuei como professora; o professor Gerald Taylor, francês, um dos mais importantes estudiosos das línguas Nheengatu e Baniwa; o Prof. Giancarlo Stefanni, professor da Universidade Federal do Amazonas e um dos maiores estudiosos na história linguística daquela região; e a Sra. Marciana dos Santos Cruz, indígena Baré11, mãe, guerreira, com quem tive poucos contatos, mas sempre regados com comida deliciosa e muito carinho. Diante disso, no mês de maio e junho, vivi a angústia pela morte dessas pessoas. O alento foi saber que um grande amigo12 e companheiro de viagens para trabalho de campo, indígena Desano13, conseguiu sobreviver depois de dias internado. E o maior de todos os alentos era ter João Pedro comigo, me lembrando o tempo inteiro que eu precisaria estar forte para cuidar dele e para militar para conseguir cessar o genocídio denunciado na palestra realizada no início de março. Neste sentido, publicar sobre o funcionamento das línguas parecia cada vez mais sem sentido. Foi então que comecei a pensar em estratégias de chamar a atenção de um público mais amplo para o trabalho que realizamos na UFG em educação indígena. Foi assim que, em colaboração contínua com colegas do curso e com orientando/as, criamos o projeto de extensão “Núcleo Takinahakỹ em Rede”, que se constitui de um perfil no Instagram, @takinahaky, e um canal no YouTube, @Núcleo_Takinahakỹ_UFG_OFICIAL, para que, ao divulgar nosso trabalho para um público mais amplo, esse público barrasse as políticas anti-indigenistas dos governos liberais. Mais uma vez, o trabalho se 8 O povo Werekena habita o Rio Xié, na bacia do Alto Rio Negro. Tradicionalmente falantes de Werekena, língua Arúak, estão em processo de substituí-la pelo Nheengatu. 9 CRUZ, A. Fonologia e Gramática do Nheengatú: a língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. Utrecht, Países Baixos: LOT, 2011. 10 O povo Baniwa habita o Rio Içana, na bacia do Alto Rio Negro. O povo Baniwa divide-se entre os falantes de Baniwa, língua Arúak, e aqueles que a substituíram pelo Nheengatu. 11 O povo Baré habita o Médio e Alto Rio Negro. Tradicionalmente falantes de Baré, língua Arúak extinta, substituíram-na pelo Nheengatu e, mais recentemente, alguns grupos começam a desenvolver o monolinguismo em Português. 12 Nome omitido para preservação da identidade. 13 O povo Desano habita os rios Papuri, Tiquié e Uaupés, na bacia do Alto Rio Negro. Tradicionalmente falantes de Desana, língua da família Tukano, tem substituído essa língua pelo Tukano (cf. http://prodoclin.museudoindio.gov.br/index.php/etnias/desano/lingua) 72 Maternidades Plurais dava pelo celular, com João Pedro tentando pegá-lo, cada vez mais ativo, engatinhando pela casa e balbuciando: adjá!! Dededé dededé... mãmãmãmãmã... Se maio foi o mês das perdas em São Gabriel, em junho, as notícias sobre a chegada de Covid19 entre nossos alunos, povos indígenas do cerrado, também me deixavam desolada. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, a letalidade do vírus entre os Xavantes era cerca de 160% maior do que entre a população em geral14. O trabalho na licenciatura indígena, a documentação de narrativas e depoimentos indígenas em suas próprias línguas, o projeto de extensão para sensibilizar um público mais amplo para a causa indígena, nada disso era suficiente para diminuir a frustração de que somos tão pequeninhos diante da necropolítica atual. No meio desse turbilhão, ainda que com olheiras, poder ver o desenvolvimento do João Pedro e ter ao meu lado meu companheiro permitem que eu não me abata por uma depressão e me dão ânimo para continuar orientando (ainda que por WhatsApp) e escrevendo enquanto João Pedro dorme. Conforme reportagem de Bruno Ribeiro (Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini), publicada em Esquerda Diário em 27 de junho de 2020 (cf. http://www.esquerdadiario.com.br/Letalidade-da-covid-19-entre-indios-Xavantes-e-160-maior-que-a-media-nacional). 14 73 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 8 Presença de Ana Aline Rafaela de Almeida 1 Sou Aline, mãe da Ana Cecília de quatro anos de idade, ela faz cinco anos agora no dia 20 de junho. Comecei o Doutorado em Química em 2017, quando Ana tinha apenas um ano e meio de idade, mas tenho um sonho de poder desenvolver pesquisas na minha área; como cada vez mais há exigência de mais formações, pensei: ou emendo o mestrado com doutorado, ou será cada vez mais difícil a inserção na área de trabalho que gosto. Tenho graduação em Engenharia Química, Mestrado em Ciência e Tecnologia Ambiental, e queria muito atuar como perita ambiental em algum órgão como IBAMA, Agência Nacional das Águas-ANA, Ministério do Meio Ambiente, Embrapa, mas faz algum tempo que não há reposição de vagas nesses órgãos, então me adaptei para poder lecionar, com perspectiva de poder desenvolver projetos de pesquisas em instituições de ensino superior e, para isso, precisava estudar mais. Doutorado era única opção para uma mulher apaixonada por laboratório e pesquisa morando no Brasil. Pesquisei muitos programas de pós-graduação que fossem perto da região onde moro e que acolhessem meu projeto de pesquisa para doutorado antes de tentar alguma vaga, e consegui entrar no Programa de Doutorado em Química em uma universidade à distância de 120 Km de onde resido. Minha filha, Ana Cecília, amamentou até dois anos e meio de idade, fiz questão de seguir à risca o que a Organização Mundial da Saúde orienta sobre amamentação, aguentei firme o quanto pude e, para não morrer de saudades, eu saía de Curitiba às 6h da manhã, retornava às 20h do mesmo dia, pelo menos umas duas a três vezes na semana, evitava dormir longe, mas, quando não dava, meus seios latejavam de dor e a única opção era ir até ao banheiro da universidade esvaziar os seios na pia e chorar de saudades do meu bebê. Tentei por duas vezes seguidas liberação do meu trabalho para cursar o doutorado (sou servidora pública federal). Cada vez que enviava o processo, solicitavam mais justificativas para liberação, no meio tempo, alteravam institucionalmente a forma de conceder a liberação integral da pós. Ao final, consegui apenas uma redução de horário de trabalho (20h), mas minhas atividades laborais eram as mesmas de 40h semanais. Foi exaustivo conciliar as disciplinas, laboratório, estágio docência, eventos científicos, relatórios, trabalho fora e dentro de casa com a maternidade. Não à toa, em 2018 1 UEPG (Programa Associado de Pós-Graduação em Química-UEL/UEPG/UNICENTRO- Doutorado) e UTFPR (Assistente em administração). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2567245164226420 74 Maternidades Plurais entrei em crise, tive crise de pânico, chorava horas seguidas, não conseguia me levantar da cama, precisei de ajuda psiquiátrica e somente após trinta dias de medicamento intenso, retornei ao laboratório e à pesquisa. Em 2019, com alta da psiquiatria, já pude acompanhar melhor meus resultados, as disciplinas do doutorado haviam sido eliminadas e um artigo estava a caminho. Foi um ano de superação. Mal iniciou 2020, meu orientador nos encontrou abatido, dizendo não estar bem de saúde, muita dor de cabeça. Estivemos juntos na defesa de uma amiga do grupo na quinta-feira véspera de Carnaval; e marcamos de conversar na próxima quinta, após o Carnaval, qual foi a surpresa que nessa mesma semana ele foi internado às pressas para uma cirurgia de risco para retirada de um tumor no cérebro. Seguimos no laboratório, conforme recomendações do orientador antes da cirurgia; e sob muitas orações. Dia 11 de março foi o último dia que entrei no laboratório, estava agendado um teste para dados de pesquisa do projeto de um aluno de iniciação científica, assim como a agenda de vários outros testes para próximas quartas-feiras subsequentes. Lembro-me neste mesmo dia, inclusive, de ter impresso o calendário para agendamento do reator no laboratório, considerando datas do ano de 2020. No dia 14 de março, recebemos a notícia de que tudo seria suspenso devido à pandemia do coronavírus. Sem saber se iria ou não para Ponta Grossa no dia 18 de março, passagens de idas e voltas de Curitiba a Ponta Grossa todas compradas com antecedência para mês de março (essas estão ali na gaveta da sala, esperando remarcação que nunca chega), na dúvida se a universidade estaria aberta, resolvi não ir e ninguém mais foi mesmo. Na primeira semana do isolamento, veio uma sensação de alívio, mal o ano tinha começado e já me sentia cansada de ir para lá e para cá, último ano de doutorado, cabeça à mil, milhares de prazos a serem cumpridos para defesa final, reagentes que precisavam ser repostos e nem tinham sido cotados, a revista que prorrogou o prazo para recebimento do artigo até 31 de março, aquela pausa parecia a salvação para uma escrita perfeita de uma tese de doutorado. Mas com trabalho remoto, criança de quatro anos de idade fechada em apartamento, parquinho e parques fechados, impossibilidade de poder ficar com a avó, grupo de risco; restou eu (a mãe), no último ano do doutorado, com orientador em reabilitação após cirurgia, para dar conta da pós-graduação, do trabalho remoto, que sufoca muito mais do que o presencial, porque a demanda nem é mais por horário de trabalho, mas por trabalho que precisa ser realizado independente do que está posto, do trabalho doméstico, da compra de mercado que precisa render mais de semana para não ficar saindo de casa toda hora, da organização da rotina da criança, da atenção a vó que está longe e do marido. O mês de março passou até que rápido, porque foi uma mistura de adaptação e expectativa sobre uma nova forma de viver. O mês de abril com feriado de Páscoa, que carrega o encanto da renovação, trouxe um pouco de esperança de que as coisas iriam melhorar; e esse mês terminou com tantas mudanças políticas que ocuparam o tempo junto da novidade de lives de famosos. 75 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Mas o mês de maio me derrubou, comecei a acordar 3-4h da manhã para tentar dar conta do trabalho remoto, porque a carência da Ana Cecília me denunciava qualquer olhada no celular, as reivindicações de atenção dela eram diárias e constantes: ‘Mas você e o pai só ficam no celular e no computador, ninguém brinca comigo’. Fizemos piquenique diversos, massinha de modelar, móveis da casa de bonecas com materiais recicláveis, experiências, gelatina, bolo, biscoito, brincamos de jogo de memória, de quebra-cabeça, de cartas, de mico, de pega-pega, esconde-esconde, pega vareta, resta um, dominó, plantamos sementes de frutas, cuidamos das flores, demos banho no cachorro, jogamos bolinha para cachorro, brincamos de casinha, de barbie, de lol, de poney, de DPA, de professora, de slime, vimos vários episódios de LadyBug, DPA, Lucas Netto, pulamos amarelinha, dançamos, hidratamos cabelo, pintamos as unhas, viramos modelos, cantamos, aprendemos joguinhos no celular (que eu viciei, admito), pintamos Frozen, Moranguinho, Mulheres Negras que inspiram, dinossauro, de guache, de aquarela, de cola colorida, de cola glitter, e tentamos acompanhar as atividades remotas da escola da Ana, ela está no Pré-II, seria o último ano dela na Educação Infantil. Ana Cecília é uma criança que acorda 6-7h da manhã, independente da hora que tenha ido se deitar; e tem muita energia, nunca conseguimos segurar a atenção dela num brinquedo ou brincadeira por mais de 5 minutos, tudo a deixa entediada e ela se desconcentra facilmente. E essa intensidade de uma criança, para uma mãe que está tentando manter a rotina da casa, o consumo de alimentos saudáveis (cozinho diariamente e é o que mais gosto de fazer durante o dia), a cria, a casa, as roupas limpas; para poder me organizar com as demandas do dia que vão além do trabalho doméstico, isso vai se acumulando numa adrenalina enorme, a ponto de alguns dias quando Ana dorme à noite, eu não conseguir pregar os olhos devido a tanta agitação que foi desde o momento que me levantei; e alguns dias virei ou viro em claro tentando dar conta daquilo que me planejei e frustrei, um acúmulo de sofrimento por não conseguir terminar a lista que eu mesma criei para mim, somada à ausência de descanso, pois a falta de sono vai me fazendo comer cada dia mais doces para me sentir bem. Foi no mês do dia das mães que parei e bebi mais cervejas do que deveria e chorei muito, por estar trancada dentro desta casa, ter engordado, por não conseguir dar conta dos planejamentos, dos prazos, do artigo, do trabalho remoto, da casa, da Ana, de nada, não ser nada e estar cansada por não conseguir encontrar saída ou não saber se o que estou fazendo com minha filha está de acordo com o que ela também precisa ou quer de mim, porque por mais que esteja sempre por perto tentando desenvolver atividades com ela, me surpreendi um dia que dando banho nela, eu estava sorrindo, ela me perguntou por que eu sorria, e eu disse, por que, não pode sorrir? Ela: não, é que você sempre está com cara de brava comigo. Quando ouvi isso da minha filha, e até agora quando escrevo (choro), eu chorei, às vezes o que ela queira/quer é ficar à toa comigo, e eu a sufoco com tanta atividade para ver se esvazio um pouco da minha ânsia por não poder fazer minhas coisas para ficar com ela, porque, pensando bem, para mim parece perda de tempo ficar ali sentada vendo pela décima vez o mesmo episódio de DPA, com ela sentadinha no meu colo, mas para ela é como se fosse a primeira vez; e na minha pressa de terminar logo a sessão mãe do dia, tento sobrecarregá-la para que, estando cansada, ela durma logo para eu poder fazer algo para mim. 76 Maternidades Plurais Dia 23 de maio (sábado) lá pelas 18h, quando fazia piquenique com minha filha no chão do Garden, recebo e-mail do revisor da revista dizendo que o artigo foi aceito, com vinte itens a serem corrigidos. Como preciso de um artigo publicado e outro submetido para poder defender o doutorado, é minha esperança. Fiquei feliz, claro, mas preciso rever o artigo sozinha e até hoje não consegui ter cabeça para realizar as devidas correções do revisor. Estou cansada, exaurida de tanta demanda, do teletrabalho, da rotina da casa, da Ana, das plantas, do cachorro, do não engordar, e sempre me prometo: amanhã acordo 3-4h da manhã e consigo fazer a revisão. Só que tem dias que não consigo dormir cedo, tem dias que Ana Cecília me exigiu mais do que os outros dias, tem dias que estou desanimada em continuar com a vida da academia, tem dias que nem acredito mais que a pesquisa neste país possa realmente fazer alguma diferença, tem dias que acho melhor mudar de área e tentar abrir um comércio de roupa online, ou sei lá, mudar de país. E aquilo: sou mulher, sempre tive o sonho de ser mãe, e não sei mais se conseguirei ter outros filhos, pois estou com quase 40 anos de idade e quanto mais idade a mulher, mais arriscada é a gravidez. E para ajudar, o que engordei na gestação da Ana não consegui perder, e em menos de um ano engordei mais 10 kg, enfim, se pretendo engravidar novamente preciso emagrecer também. E se pretendo engravidar de novo, não pode ser dentro de um laboratório de química, ou seja, vou ter que após doutorado deixar de lado a pesquisa por um tempo, de novo. Como laboratório não tem previsão de retorno no momento, comprei algumas vidrarias e encomendei alguns reagentes que não sejam muito perigosos para poder realizar modificações preliminares no material aqui em casa mesmo. Demorei umas duas semanas para secar material ao ar livre, picotei-o em mais uma semana, e Ana me ajudou um pouco na empreitada com sua tesoura sem ponta e com material menos denso, ficou pouco tempo ali me ajudando, mas se apropriou de algo que para ela era tão distante, o laboratório que a mamãe estuda. Eu não sei se ela vai se lembrar do tempo que passei longe dela para poder estudar, do tempo que estava com cara de brava, porque cansada, eu não conseguia sorrir, do tempo que triste e desanimada; eu me esforçava ao máximo para me manter perto dela, porque ela sempre foi meu sonho, mas minha cabeça estava na página do Word que não terminei de digitar, e perder o começo da meada é muito difícil ao retornar. Comecei a fazer uma disciplina de extensão que pretende divulgar pesquisas científicas por meio do teatro, baseado no teatro do oprimido de Augusto Boal, e como tudo é online, a maior tristeza de Ana é me ver na frente do computador e eu não poder lhe dar a atenção devida, mesmo que ela esteja do meu lado pintando, e eu conciliando o ouvido com a aula e meus olhos voltados nela, ela me quer por inteira. Será que Ana se lembrará que a mãe tinha um sonho de tê-la, mas também era apaixonada por pesquisa, conhecer coisas novas, que sem a busca pelo desconhecido talvez essa mãe não fosse lá grande coisa para si mesma?! Será que Ana poderá ter uma realidade menos sufocante quanto a minha por ser mulher e querer ser pesquisadora? Será que ela não sentirá medo, ou não precisará que algum homem a acompanhe no laboratório até tarde da noite, para não ter perigo de ser violentada? 77 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Será realmente que Ana poderá ser o que ela quiser, porque lhe será permitido sonhar e seus direitos serão não só garantidos pela constituição, como serão algo concreto? Será que Ana terá vontade de ser pesquisadora também? Será que ela me vendo lendo e escrevendo tanto, também se espelhará em mim em ser uma mulher que busca romper os desafios que estão postos? Será que Ana desejará ter filhos? Não sei o que será do amanhã, rezo para que seja melhor, tento ser um ser humano melhor todos os dias, me esforço para me superar, mas já ouvi de Ana nessa pandemia que ela não deseja fazer mais do que cinco anos de idade, porque não quer ser grande, e eu lhe perguntei porque, e ela me respondeu: porque os adultos são bravos e não brincam, e eu quero brincar sempre. Tentei listar várias coisas legais que um adulto pode fazer, mas realmente, nada supera ser criança. Então, pra quê pensar no futuro, se Ana é criança agora e é a melhor fase da vida dela? Vou me policiando com a cara brava, o corpo exausto, a cabeça a mil com as tarefas diárias; e me deixando levar na brincadeira de Ana, porque sei que o que mais me dará saudade dessa pandemia, é a companhia e presença de Ana. *in memorian ao meu eterno orientador Prof. Dr. Sérgio Toshio Fujiwara que nos deixou dia 22/06/2020; e meu sincero agradecimento a sua esposa Profa. Dra. Christiana Andrade Pessoa, que mesmo em meio ao luto nesta pandemia me acolheu no final do doutorado, hoje minha orientadora. 78 Maternidades Plurais 9 As alegrias da maternidade na pandemia Aline Shirazi Conte1 Nnu Ego é a personagem principal do livro As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta, que se passa nas décadas de 30 e 40 do século passado, na Nigéria. O sonho dela era ser mãe e só assim se tornaria uma mulher completa. A autora ironiza o título, pego emprestado — “cálicença”, como diz minha filha de 5 anos. Sou mestre pela Universidade de São Paulo e nos últimos quatro anos tenho estudado alguns processos da maternidade. No momento tenho trabalhado em um artigo em que analiso alguns livros literários sobre a maternidade através de uma perspectiva teórica da Elizabeth Badinter sobre o “mito do amor materno” e outras questões de Lina Meruano, trazendo o tema da maternidade para literatura — espelhando na minha realidade. Maternidade teórica, literária e real: Como vivo se não todas essas coisas ao mesmo tempo? Fui mãe no segundo ano da minha graduação, eu estava no final da minha bolsa da CNPq de iniciação científica e resolvi — sim, resolvi — ser mãe. Assim como Nnu Ego, eu acreditava que a maternidade me completaria. Virei militante de parto humanizado, comecei a ir com minha filha em conselhos municipais, fraldadas de pano e grupos de gestantes. Pouco depois dos dois anos da minha primeira filha, ainda em amamentação e a vida retornando à normalidade, me vi grávida novamente e meu mundo inteiro se desmanchou. Acho que foi aí que a grande ficha do universo materno finalmente caiu e me atingiu em cheio. O leitor do livro da Emecheta vai percebendo que “as alegrias” vão se desfazendo pouco a pouco conforme a narrativa do livro avança, primeiro quando ela tenta suicídio após ter visto seu primeiro filho morto — quem ela era, se não mãe de alguém? E naquele momento, de alguém morto. A vida perpassa a arte, a arte a vida e vamos nos entrelaçando e se afastando quase que simultaneamente e ser mãe é uma destas narrativas “alegres” que tanto se parecem entre si, ao mesmo tempo que é tão diferente uma da outra. Conto aqui um pouco as minhas alegrias da maternidade na pandemia. 1 Bacharel em Gestão Ambiental na EACH/USP (2015) e mestre em Ciências pelo programa de mudança social e participação política da EACH/USP (2019). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1490369332702652 79 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Depois de muitos e muitos — perrengues estamos aqui, quase seis anos depois daquele positivo, em casa. Quando falo em casa, eu na verdade quero dizer em um apartamento de 70 metros quadrados. Fazem por volta de três meses e meio que estamos em intensa e exclusiva convivência. Primeiro vou apresentar minhas filhas a vocês: A Laura está aqui sentada do meu lado direito, ela acordou no meio do parágrafo acima e quis saber por que acordei tão cedo, ela está naquele momento esperando a alma voltar para o corpo — então está super quietinha. (Estava. Acabou de me interromper com uma piada: “O que a bactéria disse para o vírus? Eu sou baterista!”. Você entendeu? Eu não. Mas eu ri ainda assim). Laura tem 8 anos, em diagnóstico de transtorno de espectro autista e altas habilidades que quase ninguém sabe por que “não parece”2. Ela é uma criança muito inteligente e tranquila, gosta muito de ler, jogar vídeo game, estuda na escola pública da nossa cidade e infelizmente está desenvolvendo algumas manias, como morder a própria mão — morder mesmo. Laura fez oito anos no dia 15 de março — sim, o dia que começou para valer a “quarentena” — e estamos em casa desde então. Minha outra filha chama-se Heloísa, ainda dorme (amém!), e é oposta da irmã mais velha, agitada, corre e pula, fala algumas coisas ainda errado e manda e desmanda na casa quando quer, oposta ainda, é a criança mais carinhosa que conheço, abraça o tempo todo e ama dinossauros com todas as forças! No meio disso nós, os pais, meu marido Vinícius que tem o transtorno de espectro autista — e trabalha em casa desde 2017 — e eu, que preciso de um mínimo de concentração para estudar, ler, trabalhar e lidar agora com as crianças 24h por dia. Nnu Ego depois de seu primeiro filho teve muitos outros. Dedicou-se a sua vida a alimentá-los e dar-lhes educação de qualidade, sozinha praticamente — com um marido que quase lhe era outro filho (ou pior). Muitas vezes Nnu Ego deixava de se alimentar para dar às crianças o que comer, tirava de si o conforto, para dar algum futuro às crianças. Dizem que todas as mães deveriam se comportar dessa forma, que as recompensas chegam depois. Na nossa atualidade, perseguimos (ou tentamos) todos os nossos sonhos — sem deixar para trás os das nossas crianças, damos conta de tudo — abraçamos tudo, menos o travesseiro durante a noite — lá a gente só desmaia mesmo. Quando eu estava no mestrado, me lembro de perder a cabeça tentando separar todas as “Alines” que viviam em mim: “Aline mãe nessa caixa aqui”, “Aline estudante nessa outra”, “Aline Ativista coloca para cima”, “Aline pesquisadora, vai para lá” e assim eu vivia tentando mudar de compartimento como se não fosse uma coisa só, imagina na pandemia o que essas gavetas separatistas viraram se não um único armário aberto com todos os papéis de “Alines” misturadas? Vou contar para vocês minha rotina agora na pandemia — tentar — na verdade. Eu acordo por último na casa, verdade, não me julguem — isso é recente, no começo da pandemia eu era a primeira, não sei exatamente que instante isso mudou, mas meus sonhos (pesadelos na verdade) têm chamado minha atenção ultimamente e gosto de recordá-los para meu caderninho assustador dos “pesadelos da pandemia”. Esse caderninho mudou minha relação com meus pesadelos — enquanto antes eu acordava toda triste e assustada com os diversos fins de mundo que enfrentava a noite, agora me empolgo E a princípio essa se tornou a frase que mais odeio no mundo. “não parece” — invalida, desacredita, te torna a mercê de julgamentos e não aceitação. 2 80 Maternidades Plurais com as incríveis histórias que tenho para contar ao meu caderno — quanto pior, melhor acordo (Aha, o jogo virou!). Quando acordo as crianças estão normalmente assistindo televisão, meu marido já está excluído na varanda com fone de ouvido (ele tem sensibilidade auditiva e passa um tempo no silêncio da manhã lá fora antes de encarar um dia inteiro com gritos e brincadeiras) e meu café pronto (ufa!). O tomo em silêncio, as crianças puxam papo, mas normalmente neste momento sou monossilábica. Levanto e levo meu cachorro de porte grande para passear. Me dei conta agora que não contei da Aurora! Aurora é meu cachorro grande que vive em apartamento (é a primeira característica que reparam dela), ela tem dois anos e veio para nossa casa depois da Laura ter desenvolvido estresse. Aurora deu muito trabalho quando filhote, mas agora é o melhor cachorro do mundo, aqueles de filme! Ela serve de travesseiro, cobertor, é ótima para chorar nela e abraçar, vive junto das crianças, o único defeito dela no meio da pandemia é que ela só faz suas necessidades do lado de fora da casa (e pula nas visitas, mas isso não é bem um defeito no meio da pandemia né?). Depois que volto do passeio, as crianças já estão arrumando o quarto — ou se preparando para tal — e aí começa o desafio diário. Cada dia é único, eu tenho aulas online, faço cursos de extensão, cuido da casa, dou aula para as crianças e sou responsável pelo almoço: É loucura! Mas a maior loucura que tem na minha semana com certeza é aula de violino. No final do ano passado, Laura encasquetou que queria fazer violino, fui no centro livre de música da prefeitura e inscrevi ela para esse bendito instrumento. “Okay né? se ela quer...” pensei. Pois é, ela teve coisa de 2 aulas presenciais e já estamos aí, indo para a décima segunda aula online de violino — percebeu o plural? Pois é, agora eu também aprendo violino — que nunca tive vontade — para ensinar a criança. Tenho demorado coisa de meia hora para afinar o instrumento e passamos perrengues épicos para tirar música dele — mas na luta e no choro, temos conseguido um sorriso no final. Eu faço almoços saudáveis todos os dias, o que é novidade da pandemia, porque as crianças almoçavam na escola e eu sempre fui péssima na cozinha. O que saía das minhas panelas era arroz, feijão e algum complemento como ovo, salada, ou algo extremamente simples. Eu nunca usei farinha de trigo na vida — até abril deste ano, quando a farinha de trigo, o óleo e o açúcar viraram itens essenciais e gastos todos os dias (bolo!). Aprendi a fazer pratos coloridos e elaborados, ninguém mais deixa comida no prato e até estou fazendo da cozinha — o lugar que mal passava na casa — como meu canto da terapia. Enquanto cozinho deixo rolar uma aula online que faço, enquanto ralo abobrinha, cenoura, queijo e cozinho feijão ou faço arroz sete grãos, com o bolo já no forno. Neste momento finjo que não ouço as crianças correrem enlouquecidas pela casa, pularem no sofá (as molas se foram nessa pandemia), na minha cama (dos 6 pés da cama, sobraram 4), na cama dela (os estrados já estão sendo segurados por caixas de papelão). Enquanto isso Vinícius atende o celular com algum cliente e saí novamente para varanda para atendê-los sem grandes interferências — e não é raro ter do outro lado da linha uma criança também aos berros. Eu acho ótimo, já estava na hora das crianças serem ouvidas pelos homens de trabalho. 81 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Quanto a escola, a Laura tem exercícios de folha para fazer — nada de aula online — e a Heloísa, por ser pré-escolar não tem nada fornecido pela escola. Então faço pequenas atividades que a mantém entretida enquanto a irmã mais velha se concentra nas lições, além disso, passo parte deste tempo ensinando ciências e história do Brasil para as crianças de forma que não necessariamente aprenderá na escola, por exemplo, com perspectivas dos povos indígenas enquanto viviam no país “Pindorama”. No meio disso tudo tenho minhas próprias “lições” como as crianças me relembram, faço enquanto elas fazem um desenho — ou em momentos de “descanso”, uma ida ao banheiro, uma hora mais cedo do café ou no final de semana com vídeo game liberado. Tento não me deixar de lado — aprendendo com a vida de Nnu Ego, mas no tempo corrido a escolha praticamente é inexistente e como Nnu Ego, vou ficando para trás. Essas aulas acontecem de segunda a sexta, mais ou menos entre 15-18h. Todos os dias e até que temos nos divertido muito com isso — acho que é o que faz sentido para mim e me dá a um sentido de utilidade proporcionando um foco nelas. Coloco muita sucata, lego artes no meio disso tudo e quando chega sábado — o dia da limpeza da casa! — elas sempre perguntam: “quando vai ser a hora da lição?”. Fora essas duas horas por dia de dedicação exclusiva as crianças, e a aula de violino, o resto do dia passa conosco quatro tentando sobreviver mais um dia. Vinícius trabalha com projetos de engenharia civil e passa o dia todo na frente do computador com pequenas saídas para o almoço; à noite ele normalmente me “substitui”, faz a janta e dá um pouco de atenção para as crianças. Quando as crianças vão dormir — às 22h nos dedicamos a jogar um jogo ou assistir alguma série — desmaiamos por volta da 01 da manhã — nunca vemos as horas. É claro que as coisas nem sempre (digo, quase sempre) não saem como planejadas. Em uma segunda de pandemia acordei animada, brinquei um pouco com as crianças, tomei meu café e resolvi tomar aquela atitude que tenho certeza que todo mundo toma depois de levantar do café — resolvi me espreguiçar. Pois é. PÁ! CREC! Segunda, 9h da manhã e eu travei a coluna. Assim sem mais nem menos, em uma espreguiçada. O que se prosseguiu foi uma semana de muita televisão, vídeo game, medicação e uma mãe completamente estátua. Levantar e descascar uma batata estava sendo demais para mim. Devido às medicações — e eu ser miúda, passei a dormir nesses dias 12h por noite. Quatro dias depois acordei melhor e foi um drama fazer as coisas voltarem ao eixo novamente. Também cometo algumas atitudes impensáveis: Laura estava precisando de um dicionário físico. Chegou o dia que virou meu cartão, entrei na loja virtual e peguei o dicionário, logo embaixo eu vi que o sétimo livro da casa na árvore (um livro infanto-juvenil muito apreciado pela Laura) estava em promoção, sem pensar coloquei no carrinho, comprei e agora era só esperar chegar, certo? Ah, eu não sabia aonde estava me metendo! Chegou à caixa e tinha dois livros, tenho duas crianças. Laura foi direto no livro infantil e Heloísa (não alfabetizada) foi direto no dicionário. E se agarrou nele. Tudo que é lugar que ia, estava ela lá com o dicionário "presente que a mamãe me deu". Todo dia ela colocava um pouquinho mais para frente o marcador do livro como se tivesse lido. Super fofo, até que a Laura precisou do dicionário para a lição, pegou o livro, o usou e no meio deste ato Heloísa descobriu. PARA QUÊ? A criança ficou transtornada, ela chorava e gritava que não custava ter pedido! Que tiraram a marcação do livro — e agora não saberia mais que lugar parou. As lágrimas 82 Maternidades Plurais rolaram inconsoláveis — todas as táticas foram usadas — ficou combinado que ninguém mais mexeria no dicionário enquanto ela não deixasse (e terminasse), pois é, nenhum dos dois ainda aconteceram. Quando os filhos de Nnu Ego começaram a crescer foram saindo de casa. O mais velho foi estudar em outro país, seguido logo depois pelo segundo. Os filhos foram se debandando da casa, cada um por um motivo diferente, Nnu Ego voltou para a cidade rural que vivia, sozinha. Eu sempre penso muito nesse final de história e o impacto que ela causa na gente. O livro inteiro buscou ver as alegrias da maternidade: o pai das crianças, certeiro, dizia que quando os filhos crescem — se forem bem criados — irão cuidar dos pais na velhice. Essa era a alegria da paternidade. O leitor ainda percorre as linhas aguardando o dia que a maternidade mostrará sua alegria, mas Nnu Ego morre, após tantos anos de dedicação aos filhos, completamente sozinha e despercebida. Ela morre no fim, desconfio que se ela fosse real — soube muito antes de nós leitores que a maternidade não traz ganhos futuros. Ora, ela ganhou um super enterro — mas nem isso conseguiu aproveitar. Parece até cruel pensar assim em meio a uma pandemia — que te joga na cara que talvez nem futuro tenha — e se tiver ganhos você nem os verá, mas para mim foi uma carta de libertação, me permitir ser tantas “Alines” quanto eu desejasse ser ainda que oprimida pelas desigualdades. 83 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 A dor e delícia de ser o que é Amanda Rodrigues de Souza Colozio1 Por trás de cada pessoa tem uma história, por vezes não a que esperamos ou estamos acostumados a ouvir, porém histórias tão ou mais bonitas que as comuns, com dores, sofrimentos e permeadas de amores e recomeços. O começo de minha jornada foi em 1991, vinda de uma família muito pobre, minha mãe começou a trabalhar de empregada doméstica aos seus oito anos de idade. Aos 16 anos, conheceu o amor, se apaixonou e engravidou daquela que seria a contadora dessa história. Que bom seria se o desfecho tivesse sido o esperado, mas para mim e minha mãe não foi assim. Separada do meu pai para ir trabalhar em São Paulo, minha mãe deixa o interior sem saber que estava me carregando consigo. Chega na cidade grande, descobre a gestação e a esconde por nove meses, sem fazer um único acompanhamento médico. Sob o temível medo de viver nas ruas de um lugar desconhecido, mente na hora de dar à luz, chamando por socorro, dizendo estar com pedras nos rins. No hospital não desmente a história, segue com ela por mais de 12h, chorando de dor e tomando todo tipo de remédio para dores renais. Então, o médico a encaminha para um ultrassom e descobre a gravidez e, em seguida, eu pude nascer. O parto foi difícil, eu estava encaixada, mas não nascia, necessitou então de fórceps e pude ver o mundo pela primeira vez. Minha mãe, naqueles pouco mais de seis quilos que ganhou durante a gravidez, ficou anêmica, necessitando de cuidados médicos e eu de cuidados dos patrões de minha mãe. Por ironia do destino ou não, foram eles os primeiros a comprar minhas primeiras peças de roupas e a me ver, além de qualquer outra pessoa de minha família. Minha mãe já com dezessete anos, uma bagagem enorme nas costas, sozinha e com uma recém-nascida para cuidar, além do emprego e dela mesma. Ela buscou entrar em contato com o antigo amor, avisar que teve uma filha dele, mas não o encontrou mais. Segundo amigos em comum, ele voltou à sua cidade natal e não sabiam como o encontrar. Minha mãe se sentiu ainda mais sozinha e decidiu voltar a cidade onde nasceu. Ao retornar, teve que enfrentar várias barreiras. A primeira delas era explicar para sua mãe como ela 1 Mãe, Pesquisadora, Pedagoga, Mestre e Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e de cotutela de tese pela Universidad de La Laguna (ULL). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8358553161048690 / Link para ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3788-4084 84 Maternidades Plurais tinha saído de casa “normal” e estava retornando meses depois com um bebê nos braços, o qual destoava de todos da família pela sua pele extremamente branca. Minha avó dizia: “Você sequestrou essa criança, como pode nascer alguém branco em uma família toda preta”? Em um momento de desespero total, ela ligou para seus ex-patrões e disse se eles queriam seu bebê, pois não estava conseguindo trabalhar e cuidar de sua filha junto de sua mãe que se recusava a ajudar e além do mais a tratava como a pior das filhas. Nesse telefonema ouve que teria ajuda, para ficar tranquila e lhe arrumariam um emprego em outro estado onde pudesse me levar junto e ter paz. Foram momentos difíceis e ela naquele momento decidiu que faria de tudo para me criar a melhor pessoa que eu pudesse ser, seguiria sem ajuda, mas venceria. Assim a saga de nossa história continuou com muitos outros contrapontos, divergências e muita luta pela sobrevivência. Minha mãe seguiu o caminho sozinha, secou as lágrimas, aceitou seu destino e sabia que teria que fazer difíceis decisões se quisesse vencer. E, assim ocorreu de 1991 até 2014. Ela e eu nos formamos em Pedagogia, lutadoras, superando todas as expectativas a nós destinadas. Eu me formei em uma universidade pública — UNESP Araraquara — e ela em uma faculdade privada com bolsa PROUNI. Todo esse prelúdio se fez necessário, pois não teria como me apresentar sem contar o que aconteceu comigo. Minha história se entrelaça com a escolha do meu tema de pesquisa no doutorado, se entrelaça com a vulnerabilidade que tanto amo estudar, afinal eu me vejo nela, sou fruto dela e me enxergo em cada um que passa por privações sociais diversas. Como nada é por acaso, entrei na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cumpri meu mestrado em Educação Especial e escolhi ainda no mestrado que meu tema de tese seria com um público vulnerável e depois, mais especificamente, com um público de Instituições de Acolhimento. Ao estudar cada livro sobre o tema, me senti motivada a continuar, pois algo a mais me fazia seguir. Sempre senti não estar sozinha nessa escolha, e, sim, de ter muitos amigos espirituais me apoiando e auxiliando nesse encontro com o conhecimento e com minha história. Assim, a escolha de verificar potencial em público vulnerável é um grito a todo canto sobre mim mesma, mas também sobre tantos talentos que estão na pobreza, na exclusão, às vezes no risco de vida e somente querem ser vistos e reconhecidos como alguém que, para além da vulnerabilidade, possui potenciais, inteligência, criatividade e que pode transformar positivamente sua comunidade e, quiçá o mundo. E nessa fé de mudança e com todas as questões que me ocorreram desde que ingressei no doutorado, como a separação de um relacionamento de 10 anos após a traição do meu parceiro, um tratamento profundo psicológico para me reerguer, conhecer meu atual marido e me casar com ele 100 dias após nosso primeiro encontro, me fez enxergar o quanto o mundo é grande e cheio de oportunidades, o quanto que hoje podemos estar lá em cima e depois lá em baixo. Mas minha história não parou aí, já no doutorado e casada com aquele que encantou meu coração, envio uma proposta de projeto para um doutorado sanduíche na Universidade de La Laguna (ULL) na Espanha e sou aprovada. Vamos então, eu e meu marido para esses 10 meses na Espanha, 85 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) quando 1 mês antes do embarque eu começo com mal-estar, vômito e muito sono, descobrindo aí a minha gravidez, no momento com apenas 6 meses de casada e uma viagem a caminho. Dizendo que tudo que é bom pode ficar melhor, converso com minhas chefes nas Universidades, exponho o fato e ambas concordam com a minha ida, afinal já estava tudo planejado, passagem comprada, pesquisa a ponto de iniciar, pessoas me aguardando e ouço a frase que mais me motivou a ir: “Um filho é uma benção e não uma doença, ele pode nascer em qualquer lugar, aqui na Espanha você tem nosso apoio”. Com isso eu concordo e vou então cumprir essa fase fora do país. Embarcamos para meu sonho, feliz e motivada, vivo até as 35 semanas uma gravidez saudável, minha bebê cresce, meu trabalho se desenvolve, meu companheiro me apoia e auxilia, tudo caminhando bem até que vem mal-estar, dor de cabeça, pressão alta, pré-eclâmpsia e um parto normal induzido antes do tempo programado, complicações no parto, susto e enfim o nascimento com apenas 36 semanas, porém, com a graça do Pai maior, a minha Anastasia nasceu saudável, cheia de alegria e amor. Quando ela nasceu eu revivi, todas as coisas da minha vida começaram a fazer sentido, minhas lutas, minhas vitórias, minhas quedas e minhas guerras. Eu vi ali concretizada o meu amor. Eu sinceramente pensava ainda na gravidez, não sei se termino esse doutorado, depois de tudo, ainda sou mãe, longe de todos, em um lugar estranho, não creio que seguirei por muito mais tempo nisso. Mas, ao olhar aquele ser tão dependente de mim me ocorreu o oposto, pensei, eu posso ser mais forte agora, afinal ela precisa de mim e vou terminar, talvez não como gostaria, talvez não no tempo certo, mas eu vou terminar esse negócio por mim e por ela. Meu pós-parto durou 28 dias, volto a universidade, volto as aulas, volto a pesquisa, meu marido se alterna entre suas coisas, olhar a bebê, esperar no corredor para eu poder amamentar, e uma vida extremamente agitada se inicia. Entre trocas de fralda, amamentar, sentir saudade imensa do Brasil, conseguimos vencer aqueles 4 meses que ainda restava e voltar ao Brasil felizes e com o nosso amor no colo. E graças Deus, toda essa vivência proporcionou a minha Anastasia, a nacionalidade espanhola, propiciou a ela a escolha de um dia poder viver onde queira e a nós uma das melhores experiências da nossa vida. Mas, também, profissionalmente falando, me propiciaram um doutorado sanduíche para a Universidade de La laguna (ULL), um convênio entre as universidades UFSCar e ULL, e até a tese em cotutela com doutorado em Psicologia da ULL. Agora, estou no meu quarto e último ano do doutorado, minha filha com um ano e nove meses dança na frente da TV com o Baby Shark, enquanto eu digito esse breve relato da minha vida e recordo como tudo mudou ainda mais nesses últimos três meses. Para esse 2020, havíamos programado nosso retorno a Espanha, nos mudar e viver o que a vida pudesse nos oferecer e defender a tese no tempo certo, mas, veio o Covid-19, as fronteiras fecharam, nossa passagem é cancelada, minha defesa de tese adiada para dezembro, a creche fecha e ficamos eu e ela aqui isoladas em casa. Meu marido auxilia como pode, mas o peso da carga ainda recai mais sobre meus ombros. Lidar com uma bebê fechada em casa e estressada com tudo que está ocorrendo e que não compreende, lidar com meu marido buscando emprego e estressado, lidar com uma casa que não se limpa sozinha, lidar com uma tese de doutorado que não espera e cobra diariamente produção, lidar com a nossa 86 Maternidades Plurais frustração de não ver nossos planos de mudança de país serem concretizados, enfim, lidar com tudo isso e fora eu como um ser único, lidando com o meu estresse, minha frustração, minha cobrança pessoal e culpa de às vezes deixar a minha filha tempo demais na frente da TV, de me cobrar pelo meu excesso de peso que ganhei nesses últimos quatro meses, e tudo mais, não está fácil. Vivo um grande desafio. Mas, quando olho minha história, do meu nascimento até o nascimento da minha filha, agora com o isolamento e as frustrações e, apesar de toda a enorme vontade de desistir, de dizer que todos estavam certos “quem nasce torto não se endireita”, uma força superior me fez e faz viver, me fez e faz encontrar felicidade, me fez e faz perseverar e dizer: Eu posso vencer, ou melhor, eu já venci! 87 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 11 Um relato pessoal Navegar é preciso: viver também é preciso Ana Amélia Aquino Brito1 No período das grandes navegações, no século XVI, a famosa Escola de Sagres divulgava seu lema: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Isso foi posto porque, aos homens daquela época, lançar-se em mares por meses, sem a certeza do retorno, simbolizava uma aventura incerta para atingir seus objetivos. Neste período de pandemia da Covid-19, em pleno século XXI, uma coisa que fiz muito foi refletir sobre a vida, essa tão peculiar forma de existir da humanidade. Pensar que somos navegantes de uma imensa nave/embarcação chamada Terra não é algo fácil, porque envolve alguns aspectos que não são do nosso controle, como a condição do tempo e a direção desse planeta. Para onde ela nos leva, na maioria das vezes, não é para caminhos que queremos seguir, para mares que queremos navegar ou para onde estejamos com o que ou quem queremos estar. O fato é que não estamos no total controle de seu leme. Quando, ainda criança, fiquei órfã de mãe, fui separada do meu pai e dos meus sete outros irmãos, quatro meninas e três meninos. Aconteceu que, em uma manhã do mês de março de 1978, minha mãe acordou com uma forte dor de cabeça. Ficamos aflitos, pois ela raramente se queixava das inúmeras dores de cabeça que sentia. Naquele dia, porém, havia algo muito maior. Minha mãe pediu socorro e, quando dei por mim, já eram dezesseis horas e a notícia de sua morte caiu sobre mim como um raio. Nesse dia, a roda do tempo ou, melhor, o leme da grande embarcação havia se movido de forma errada para mim, e eu caí em águas profundas e turbulentas. Meu pai, atônito, com seis crianças pequenas para criar sozinho e a vida difícil, sem recursos suficientes para arcar com tudo, não hesitou em nos entregar para pessoas que acreditou cuidarem de seus filhos melhor do que ele. Naquele tempo, era comum que as famílias pobres entregassem seus filhos aos cuidados de pessoas que supunham serem capazes de fazer por seus pequenos aquilo que eles próprios se consideravam incapazes de fazer. Ledo engano! 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6444604832602009 88 Maternidades Plurais Éramos uma família sem posses, do interior do estado do Tocantins. Fomos trazidas para Goiás, eu e minhas três irmãs mais velhas; a mais nova e os meninos não interessaram aos nossos novos tutores e ficaram com meu pai, no Norte. Na época, ainda não havia separação do estado do Tocantins. Ele representava o norte goiano, esquecido pelas autoridades políticas e “atrasado”, economicamente e “culturalmente”. Portanto, ser do Norte era motivo de chacota na sociedade, que compunha a parte desenvolvida do resto do território goiano. Na ocasião, me encontrava com oito anos. Fui morar com uma família oposta à minha, pessoas de posse econômica e prestígio social, bem rigorosas. Era tradição na família a frase “criar filhos dos outros é criar cobra para picar”. E, certamente, imbuídos desse conceito tão errôneo, equivocadamente negligenciaram a mim uma educação de qualidade e o carinho que toda criança deve ter. Hoje, claro, após as luzes da razão, questionam-se pelo passado omisso, repensando os seus próprios valores morais e éticos. Nesses tempos longos que passei por essas águas escuras e turbulentas, aproximadamente vinte anos, me firmei no caráter íntegro de minha mãe, embora sua imagem fosse ficando cada vez mais distante na minha memória. Suas palavras de amor, respeito e paciência, seus conselhos para termos cuidado com o que víamos, ouvíamos e, principalmente, falássemos ecoavam claramente em meus ouvidos, pois, como Ernest Bloch afirma, no contexto da obra “O princípio da esperança”, “a ausência de algo não significa a sua inexistência, mas sim uma possibilidade do que pode vir a ser” 2. Assim, obtive forças e determinação para não afundar no mar bravio do infortúnio. Estudei algo que sempre apreciei e aprendi com minha mãe o gosto pela leitura, o que fez com que, de certa forma, os bons livros fossem meus companheiros de viagem. Na esperança de encontrar o rumo certo, estudei, graduei e ingressei no magistério por concurso público, no ano de 2004. Nesse novo cenário, revi, em muitos dos meus alunos, a pessoa que fui no passado — sós, em uma tormenta chamada mar da vida. Eu quase desisti do magistério, pois sentiame impotente diante de tantas dores, porém, uma frase que os antigos costumavam dizer me fazia continuar: “Não se pode acudir todos os choros”. Continuei, sempre na expectativa de sair do magistério quando as finanças finalmente melhorassem. Eu considerava que estava segura em termos de estabilidade, que, se não faltasse seriedade, respeito e honestidade, virtudes básicas a qualquer ser humano, ficaria tudo bem. A verdade é que, no íntimo, eu sofria e sonhava com um emprego em que eu não visse meninos e meninas com histórias de dor, mágoa, ressentimento, pobreza extrema, famílias incompletas e muita droga. Eu queria outra realidade ou, retomando Platão, voltar para a caverna. Nessa fase da minha vida, eu já estava casada e não tinha muita vontade de ser mãe. Me apavorava pensar na possibilidade de morrer e deixar meus filhos sozinhos no mundo; minha mãe sempre dizia que pai só é pai enquanto a mãe está junto. Meu pai, infelizmente, era alcoólatra e, por coinci- 2 LOPES, Luís Fernando. A filosofia da esperança contra o desespero. In: Jornal Opção, 24 mar. 2019. Disponível em: <https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/a-filosofia-da-esperanca-contra-o-desespero-172610/>. Acesso em: 13 mai. 2020. Luís Fernando é doutor, professor-doutor, teólogo e coordenador do curso de licenciatura em Filosofia, do Centro Universitário Internacional Uninter. 89 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dência ou não, abriu mão dos filhos com a morte da esposa. Penso que isso ficou em meu subconsciente ou inconsciente por mais tempo que notei. Só tive meu filho quando já estava concursada, pois pensava que, caso eu morresse, ele não ficaria desamparado ao menos financeiramente. Minha vida ia bem, mas sempre me acometia esse desassossego por ser professora de escola pública, devido às mazelas da marginalidade social das minorias oprimidas. Mas, por incrível que pareça, a vida novamente me surpreendeu. Em 2019, após vencer as barreiras quanto à disponibilidade financeira, de tempo e de jornada de trabalho, variando de quarenta a sessenta horas aulas semanais, para que eu tivesse uma remuneração salarial modesta, ingressei no mestrado quase vinte anos depois de ter concluído o ensino superior em Ciências Sociais — embora eu quisesse mesmo ser historiadora, daí a escolha pela pós-graduação em História. Os primeiros doze meses foram os mais difíceis, pois tive que abaixar a carga horária de trabalho para quarenta horas, o que diminuiu consideravelmente o salário mensal. Isso porque trabalhar, cursar disciplinas obrigatórias, horas extras e pesquisar não são tarefas fáceis para quem acumula, além de funções de professora, funções de dona de casa, estudante e mãe, o que demanda persistência e perseverança. Tudo isso estava me deixando esgotada e com o pensamento de desistir do mestrado, já que não poderia abrir mão do trabalho. No entanto, no início de 2020, no mês de março, ao participar do evento promovido pela Faculdade de História e Diretoria de Relações Internacionais, da Universidade Federal de Goiás, sobre os caminhos de Saint Hilaire em Goiás — ainda não tínhamos sido abalados pela pandemia da Covid19, embora ela já estava se alastrando pelo mundo —, ocorreu algo curioso. Eu sempre sonhei em sair da educação pública (rede básica de ensino), que considero massacrada, ignorada e abandonada pelas autoridades competentes, e ter uma colocação em um Instituto Federal ou faculdade privada, algo que me parecia bastante tranquilo, afinal, as pessoas nessas instituições são selecionadas e permanecem no ensino por vontade, não por obrigação, o que não é o caso da grande maioria na educação básica pública. Isso, para mim, era certo e primordial. Sentei no auditório, ouvindo a chamada de tantos doutores(as) e pós-doutores(as) para comporem a mesa, e, de repente, me toquei que nada daquilo era, de fato, o que eu queria. Percebi, em minutos de reflexão, que eu precisava do conhecimento de todos aqueles doutores(as) e pós-doutores(as), para usá-lo como instrumento no meu modo de proceder didaticamente com meus alunos que se encontravam, em sua maioria, adormecidos pela ignorância da exclusão. Percebi que meu lugar era exatamente onde estava e convenci-me de que seria, dali em diante, uma docente melhor. Eu precisava desenvolver as competências e habilidades para transformá-los intelectualmente. Este sim era o verdadeiro motivo pelo qual me encontrava ali. No entanto, ironicamente, mais uma vez, parece que fui jogada em mar bravio. Veio a pandemia do Coronavírus e o velho fantasma da morte prematura me afligiu. Comecei, então, a fazer meu filho, que está com treze anos, estudar, com a preocupação de prepará-lo para ser intelectual, já que as aulas presenciais foram suspensas por medidas de segurança e ficaríamos reclusos por tempo indeterminado. Então, era tempo de aprender, aprender e aprender, sem levar em consideração seus desejos e limites. Houve alguns conflitos e discussões, e eu, ignorante nos meus achismos, não percebia que a 90 Maternidades Plurais minha ânsia era, na verdade, de tentar fazê-lo não se preocupar com os acontecimentos do momento em demasia. Essa era a real motivação por trás da intelectualidade naquele instante, para que ele não sentisse medo e insegurança quanto ao futuro, agora incerto para todos nós. Futuro, claro, criado pelas paixões momentâneas da sociedade contemporânea, em que eu perdia a oportunidade da companhia livre do meu anjo. Certa manhã, recebi de minha irmã uma mensagem de otimismo e convite à reflexão e à solidariedade, o que me tranquilizou e fez enxergar as coisas com maior clareza. Passei, então, a sorrir mais, brincar mais com meu filho, assistir à Sessão da Tarde com ele, comendo pipoca (ele chama de sessão cinema em casa), fazer juntos os exercícios de Educação Física nas aulas remotas e nos divertir muito, a não me incomodar tanto com o exagero de filmes que meu marido locava para assistir, dentre outras coisas relacionadas à organização da casa. No entanto, sempre vinha a dúvida, a incerteza e o medo de meu filho ser acometido pela doença. Daí, ocorreu algo que me levou novamente à reflexão de que o universo conspira sempre a favor da humanidade, embora nem sempre sejamos merecedores de tanta bondade. Estávamos, meu filho e eu, deitados no sofá, tomando um chá quentinho. Era final de tarde do mês de maio e a tevê estava ligada. De repente, passou a notícia do avanço da Covid-19 no Brasil e o número de mortos. Aquilo, embora eu tentasse não transparecer, me doía a alma com tantas perdas de vidas. Ver o agravamento das dificuldades da população carente e vulnerável era triste e me afligia saber que ainda não tínhamos atingido o tal “pico” da doença. Foi aí que meu filho me falou: “Mãe! Eu sei que nós e nossa família não vamos pegar Coronavírus, porque já passamos por tantas coisas e nada de ruim nos aconteceu. Lembra quando um homem louco invadiu sua escola? Ele não entrou na sala que a gente estava e você sempre volta à noite do seu trabalho e chega bem”. Naquele momento, eu percebi a maior lição que eu tive nesses anos de vida: que o mar, por mais bravio que seja, por mais que pensemos que estamos largados à sorte na nave/embarcação Terra, e apesar de sermos os responsáveis, na maioria das vezes, pelo leme que guia nosso destino, acredito agora, como diz Hannah Arendt, que “toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”3. Essa é a minha história! E eu reaprendi, com uma criança de treze anos, a ter esperança na história — ela representa, aqui, a trajetória da vida. “A palavra esperança vem do latim spes, que significa confiança em algo positivo. É um conceito, uma crença emocional, que se manifesta em maneiras de ser, estar e agir no mundo [...] ela se traduz em modos de vida”4. É nesse contexto da esperança no hoje, no momento e nesses modos de vida que relato minhas memórias e experiências de mãe e pesquisadora. 3 ARENDT, Hannah. Frases de Hannah Arendt. 2020. Disponível em: <https://www.pensador.com/frases_hannah_arendt/>. Acesso em: 13 mai 2020. 4 LOPES, Luís Fernando. A filosofia da esperança contra o desespero. In: Jornal Opção, 24 mar. 2019. Disponível em: <https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/a-filosofia-da-esperanca-contra-o-desespero-172610/>. Acesso em: 13 mai 2020. 91 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Acredito que, nem sempre, é preciso sentir a dor para nos tornarmos mais fortes e melhores, porém, o momento pareceu oportuno ao emprego desse substantivo, agora concreto. Não foi fácil olhar a vida por essa nova ótica. A Covid-19 descortinou em mim a verdade que guardei por motivos diversos na caixinha da inconsciência: maior que a oportunidade de viver a experiência saudável de ser mãe é saber compartilhar essa vivência com o trabalho e com a minha pesquisa; é o sentir da vida pulsando em mim, em meu filho, em minha família e no mundo. Sentir que o leme da embarcação jamais erra o caminho e eu não devo me preocupar em demasiado com as tempestades, porque elas vêm, mas sempre passam, e eu aprendi a aproveitar o tempo conforme ele se apresenta, com serenidade, com trabalho, estudo, lazer e, por que não, ócio. 92 Maternidades Plurais 12 Crônicas de mãe: tempos de quarentena1 Ana Carolina Eiras Coelho Soares2 A vida acontece quando o ordinário nos arrebata. Ela está neste espetáculo de pequenas ações automáticas, cotidianas e randômicas daquilo que chamamos viver. Escrever é uma necessidade atávica minha. “Crônicas de mãe” começou assim: como publicação descompromissada de um transbordar meu, uma necessidade de pensar em “voz alta” por escrito bem como o compartilhamento nas mídias começou como uma “brincadeira” para algumas pessoas entenderem os meus dilemas como mãe. Talvez seja um registro de memória tanto egoísta quanto empático 3. É justamente um entrecruzar de afetos dialógicos: o cultivo de um espaço para a mãe que floresce em mim a cada dia e um prestar atenção para tudo que enflora além de mim. Minhas crônicas, em geral sobre Clara Rosa, minha pequena brilhante mais velha, agora convivem com outras memórias dos dias comuns: as aventuras da Aurora Yasmin, meu Ipê dourado. A pandemia tornou tudo ainda mais intenso. As crianças, agora, convivem em casa 24h por dia todo o tempo e o espaço coexiste na metragem de nosso lar. Os dias se sobrepõem na rotina: as noções de tempo, espaço e tarefas parecem cada vez mais, paradoxalmente, comprimidas e extensas. Cansaço define a maior parte das horas que tem Sol, e menos cansaço as horas que estão escuras do dia: afinal, mães não dormem profundamente. E eu, em particular, sou uma alma inquieta e, portanto, me responsabilizo por ter sempre mais uma tarefa a cumprir ou um prazo estourando a dar conta. De toda maneira, a pilha material ou mental de trabalho é imensa. E foi em uma dessas tardes inespecíficas que, ao chamar minha filha mais nova para tomar banho, eu a ouvi dizendo: “eu não quero dormir!” Eu disse: “Mas eu estou chamando para você tomar banho!”, e ela, absolutamente ciente da rotina diária argumentou: “Banho não porque depois vem cama e eu não quero dormir!”. Iniciava-se ali uma pequena batalha de vontades. O presente texto é um “mix” de duas publicações já realizadas em meu perfil pessoal no Facebook intitulada “Crônicas de Mãe” nos dias 03/03/2020 e 07/07/2020 e (re)atualizadas para o relato do presente livro. 1 2 Feminista, escritora, historiadora, dançarina, poeta e plataforma de árvores. Atualmente está professora Associada do PPGH e Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; coordenadora do GT Regional de Gênero da Anpuh/GO; coordenadora do GEPEG-FH/UFG-CNPq e membra da diretoria da ANPUH/GO (gestão 2020/2022). Autora de livros acadêmicos, poesias, e infanto-juvenil como o premiado “Amar é o verbo que rima com paz” e de diversos contos e poesias em coletâneas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6593268782293837 Hoje, além de publicar em minhas redes sociais, possuo uma coluna no blog da Revista Cláudia intitulada “Crônicas de Mãe”. Disponível em: https://claudia.abril.com.br/blog/cronicas-de-mae/. Acesso: 15 ago 2020. 3 93 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Mães, atualmente, costumam dizer que suas crianças têm o “temperamento forte”, como eufemismo para “crianças irritantes e birrentas”, e Aurora Yasmin está exatamente na adolescência da primeira infância. No auge de seus dois anos e meio, ela fala alto, fecha as mãos ao lado do corpo e bate os pés no chão, reforçando suas opiniões e sua própria existência. Observar essa descoberta das estratégias, desejos, medos e tristezas é, para mim, uma experiência avassaladora. Eu a vejo em mim e fora de mim como algo familiar e distante. Algo inquietante. Clara Rosa, a mais velha, por exemplo, caminha a passos largos para a adolescência. Quando lhe dou ordens, sua reação tem sido bufar, rolar os olhos e, às vezes, bater pés mais fortemente no chão. Há uma tensão no ar entrecortada com risadas ainda bem infantis. Essa mescla de humores e comportamentos me irrita e me encanta simultaneamente. Vejo-a forte e doce. Leve e brava. Como, em geral, eu sou uma mãe que pouco ri quando confrontada — e desconheço a mãe que acha graça explícita nesse enfrentamento — falarei dos momentos de doçura, que, em realidade, deixam entrever a força argumentativa que eclode nas situações de discussão. Conclusão: tenho duas pequenas forças da natureza em estágios diferentes de desenvolvimento com todas as suas energias TOTALMENTE em casa, TODOS os dias, comigo, que também não sou exatamente a pessoa mais serena e branda do mundo. Um pouco antes do início do isolamento social, lembro de um outro momento que vivemos juntas: eu e Clara conversávamos sobre a aula de Ciências que tinha havido na escola e ela disse-me que não tinha mais dúvidas sobre a alimentação das folhas — o tema da aula era cadeia alimentar—, porque a professora explicou que folhas consomem gás carbônico. Mas, é preciso entender que Clara fala saltitando. Há anos ela é assim. Ela fala e pula e corre e faz caretas e faz poses. E ri. Clara Rosa ri de si mesma e de suas bobeiras com uma candura genuína. E, se eu não pedir que ela pare — afinal é uma energia "imparável" —, imagino que ela seja capaz de fazer isso o dia todo! Ela é realmente uma menina engraçada. Enfim, ela correu na direção de uma árvore e fez uma de suas poses e eu ri. Ela me perguntou o motivo, e eu disparei: "Eu olhei você e as folhas e pensei: deve ser triste ser uma folha, porque não deve ter gás carbônico sabor baunilha ou frango assado". Ela olhou as folhas e logo entrou na onda da minha conversa. Clara Rosa, a filósofa, respondeu: "Acho que elas não devem ser tristes, porque a gente não sabe como elas sentem o gás. Para elas, pode ser que tenham variações no sabor bem gostosas. Como será que as plantas comem?" "Excelente pergunta. Faça-a amanhã para a professora." "Mas, mãe, você já não estudou isso? Você não sabe as respostas?" Eu sorri: "Filha, algumas coisas eu já não me recordo exatamente. Outras eu sei. Mesmo assim, a minha função não é te dar respostas. É te ensinar a fazer boas perguntas e o que fazer para tentar respondê-las." Ao que eu ouço "Ahhhhhhhh, Māaaaaaae!!!!! Você sabe, fala logo!!!!" Rimos. Eu mantive a ideia do "pergunte para a professora" e ela, afinal, aceitou. Continuamos nosso caminho falando sobre o assunto, "será que isso?", "será aquilo?", e chegamos em casa. Esse fato foi dez dias antes do início 94 Maternidades Plurais do último dia das aulas presenciais dela. Dez dias antes do início de nosso isolamento social. Se alguém nos dissesse que seria a última vez que andaríamos na rua despreocupadas e leves, eu jamais teria acreditado. É impressionante o que a passagem de dez dias produziu em nossas rotinas. Não sei ainda mensurar o impacto disso em nossas histórias, mas 2020 é, com certeza, um marco em nossas existências. Agora tudo acontece dentro de casa. E as conversas parecem comprimidas na rotina de aulas online, café, reuniões, almoços, produção de artigos, lanches, TV, pequenas diversões, palestras, cursos, fotos cotidianas, vídeos diversos. As horas tomaram todos os lugares da casa e há cada vez mais espaço para todas nós, aqui em nossa família, existirmos como pessoas. A falta do convívio com colegas, amizades e afetos tem criado momentos difíceis. Clara Rosa não pula em árvores na rua mais e a vejo com olhar triste em vários momentos. Preocupo-me e isso me tira cada vez o sono. As corriqueiras guerras familiares agora estão todas concentradas, e cenas diminutas ganham ares de grandes dilemas. Voltando à minha mais nova e “disputa do banho”: eu tomei minha pequena árvore luminosa e sorridente nos braços, eu a enchi de pequenos beijos e exerci a repressão materna necessária — tão confundida com um autoritarismo punitivista — e disse: “Você vai tomar banho sim, senhorita! E depois vai para a cama dormir também. Você sabe que agora é hora do banho!”. Aurora Yasmin, a princípio recebeu a notícia com protestos que foram arrefecidos pelos afagos e cedeu, não sem antes dizer as palavras que encheu o meu dia de alegria: “Eu sabo tudo, mãe!” E, para variar, eu ri. Eu ri da lógica ilibada de argumentação de uma menina com apenas algumas centenas de dias de vida; eu ri, pois sabia que essa “cena” iria ocorrer muitas vezes, uma vez entendida por essa pessoa-filha a possibilidade de argumentação; eu ri por já ter vivido exatamente essa cena tantas e tantas vezes com minha primogênita; eu ri, afinal, do ordinário arrebatador. Ele vive exatamente naquele momento inesperado e escapa de nós em fugidios relances do tempo. A minha única resposta possível foi: “você sabe mesmo, filha linda! Continue exatamente assim”. E fomos para o banho. Em tempos de isolamento social, eu negocio meu desespero e preocupação esses dias entre risadas e choros. Estamos vivendo no limite de nossas forças e o mundo continua a girar. Não sei se estou errando mais que acertando ou acertando mais que errando. Mas, estamos aqui e estamos juntas. E eu sei que viver é a única alternativa para tempos de morte. 95 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 13 E agora, Maria? Ana Paula Ramão da Silva1 “Como é que você dá conta?”. Como sou uma pesquisadora da área da linguagem, começo meu relato por essa seara, na qual me sinto mais confortável. Como postula a Análise de Discurso Francesa, há nesse pequeno enunciado, muitos dizeres, como também um não-dito que significa tanto ou mais do que o dito2. Na verdade, quem, de forma espantada reage com esse “Como é...”, materializa, ainda que não tenha consciência, ou ainda que não queira, uma provável ilegitimidade na atividade que exerço ou na minha presença no espaço em que me encontro. E esse ser ilegítimo é múltiplo: é a mulher que tem filhos, é a mãe que tem uma profissão, é a pesquisadora que é mãe. Há muitas vozes nesse enunciado. Vozes essas que emergem de determinados grupos sociais e revelam sua ideologia3. Vindo de mulheres que não são mães, um dos sentidos possíveis desse enunciado é a crença de que a mulher mãe perde a eroticidade e relega a um segundo plano a relação sensual com o parceiro. A mulher que tem filho, nesse olhar, deixa de ser desejada para ser fonte de nutrição. Ela se resigna a alimentar e a cuidar de sua prole, renegando a si mesma, o seu corpo, o seu prazer em função da vida de seus rebentos. Vindo de colegas de trabalho, um dos sentidos que mais aflora é o dizer que a profissional mãe se ausentará em algum momento, se é que não está de alguma forma sempre ausente, entremeada à rotina de sua casa e de seus filhos que deve ser gerenciada ainda que à distância. Isso é cada vez mais possível por meio da tecnologia hoje existente, como o celular que permite uma conexão em tempo real com o universo doméstico. A profissional mãe acaba sendo vista, em um primeiro momento, 1 Graduada em Letras Português Inglês pela Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste), em 1996. Especialista em ensino de língua portuguesa e literatura brasileira na mesma instituição (1999). Mestra em literatura pela Universidade Estadual de Londrina (2005). Doutoranda em linguística pela Unioeste. Atuou de 1995 a 2016 como professora da educação básica da rede estadual de educação e da rede particular do estado do Paraná. Desde 2010 é professora efetiva da disciplina de redação instrumental da Universidade Federal do Paraná - Setor Palotina. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5907822690092177 2 ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2005. 3 BAKHTIN, M. O discurso no romance. In:______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 2010. 96 Maternidades Plurais como uma impostora que, inutilmente, tal como um malabarista, se esforça para que nenhum prato se esfacele no chão. Vindo do ambiente acadêmico, outrora predominantemente masculino, pode soar como um deboche, um descrédito velado, pois não é possível, no ambiente cada vez mais competitivo da academia, embebido na lógica produtivista do mercado, uma mulher mãe conseguir produzir conhecimento e contribuir significativamente com sua área. A imagem da Eva mítica já tem seu peso sobre a mulher e, mesmo assim, essa figura ainda insiste em seu desregramento, em sua desobediência e, desafiadora, é mulher pesquisadora mãe. Um descabimento. É assim que soa para mim esse “Como é que você consegue?” Ouço-o como quem ouve brados afirmando que não, eu não consigo. Que eu preciso fazer uma escolha: ou mulher, ou mãe, ou pesquisadora; ou, no máximo, uma combinação: mulher e mãe, ou mulher e pesquisadora, mas mulher mãe pesquisadora é como um escárnio. E muitos outros sentidos emergem: a desconfiança de que certamente não gosto de sexo, ou a aposta de ou sou uma mãe relapsa ou uma pesquisadora amadora, periférica. O problema é que nós, mulheres mães pesquisadoras ou mulheres pesquisadoras mães, superamos a lógica binária aristotélica, ressignificamos o terceiro excluído 4. Não nos aprisionamos entre o A é B e o A não é B. Estamos, como demonstra Deleuze, no e...e...e. Somos o intermezzo, existimos em rizoma5. Materializamos a complexidade de Morin6 e, estou convencida, podemos inaugurar uma época em que relações solidárias, associativas, cooperativas e coletivas superem o princípio estéril e histórico da competitividade que caracteriza a sociedade machista, paternalista e capitalista. E a esses estereótipos que carregamos, é possível agregar tantos outros. Ainda podemos portar alguma deficiência, podemos ter uma orientação sexual distinta da heterossexual, podemos pertencer a comunidades indígenas, quilombolas, sermos imigrantes, refugiadas, sermos negras e pobres. Ou não sermos mais jovens. Em algum dia qualquer, poderemos sentir muita aflição, tal qual a que o eulírico de um poema de Cecília Meireles7 ao se deparar com a velhice e ficar consciente da inevitável passagem do tempo se perguntando em que espelho havia ficado a sua face. É o que acontece comigo neste ínterim. Encontro mais uma pedra no meio do caminho8. Além de mulher, pertencente à classe trabalhadora, casada, mãe, sou negra e, pasmem, já não sou mais jovem. E fui mãe, pela primeira vez, aos 35 anos, mais ou menos quando me meti a ser pesquisadora, 4 ARISTÓTELES. Organon. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2016. 5 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34. 1995, 5 v. (Coleção Trans). Disponível em: <http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/12/deleuze-g_-guattari-f-mil-platos-capitalismo-e-esquizofrenia-vol-2.pdf>. Acesso: 11 jul 2019. 6 MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. 7 MEIRELES, C. Poesia completa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 8 ANDRADE, C. D. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 97 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e, para não dizer que não falei das flores9, da área de humanas, ainda... Sou mesmo uma abusada. E fica a ressoar nos meus ouvidos esse mantra “Como é que você dá conta?” É simples. Eu não dou conta. Simples assim: não dou. Pelo menos não como querem, como exigem que eu dê conta. Não dou. Nem sempre estou atraente e interessada em sexo. Mas meu marido tem em mim sempre um colo, um ombro amigo, um abraço para curar as dores da vida e celebrar as árduas conquistas. São poucos os momentos em que posso estar inteira com meus filhos, mas eles estão em absoluto na minha. Sua felicidade e seu bem-estar norteiam todas as minhas decisões. Certamente não sou a profissional que desponta em todas as atividades realizadas, que brilha em uma competição, mas me disponho a ir além do Bojador10 para alcançar os objetivos em meu trabalho. Sou praticamente uma desconhecida na minha área de pesquisa. Dentre tantos estudiosos do discurso, para mim, é quase impossível me tornar uma notoriedade, mas encaro com muita responsabilidade e afeto as atribuições a mim conferidas. Tenho poucas publicações, mas tenho anos, e anos, e anos de aulas na graduação, em que me empenho em encantar os jovens que ingressam no ensino superior, principalmente os menos favorecidos socialmente, pois sei o quanto fará diferença, na vida deles, ter o ensino superior. Sou o que sou e faço o que faço pela minha condição de negra, pobre, mulher mãe pesquisadora. Sei o quanto dói o olhar de descrédito, ou pior, a humilhação de nem ser vista. Sei como é constrangedor nunca ser convidada para participar do projeto do professor mais renomado, de não ser chamada pelo nome, de não pertencer ao seleto grupo dos que sabem de tudo da universidade e de tudo participam. Sei como é duro e difícil ter que se superar sempre, e, afinal, ouvir: “Nossa, você me surpreendeu.” Mais uma vez os sentidos do não-dito. Aqui, para mim, dentre tantos sentidos possíveis, esse enunciado significa que a expectativa em relação ao trabalho era baixa. Enfim, era o trabalho de alguém da margem, que parece sempre desejar ir embora de Pasárgada11 já que não se é amigo do rei. Esforço-me para que ouçam minha voz, que recolhe as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas12. Não é por coincidência que os meus orientandos, ou os alunos que querem participar dos meus projetos, em grande parte, são de minorias: os que têm dificuldade de aprendizagem, os que tiveram uma escolarização inadequada, os que têm dificuldade financeira, os que pertencem à diversidade sexual, os que têm filhos, os negros, as mulheres. Ou, ainda, os que não são dessas minorias e lutam 9 VANDRÉ, G. Para não dizer que não falei das flores. Disponível em: https://www.culturagenial.com/musicapra-nao-dizer-que-nao-falei-das-flores-de-geraldo-vandre/. Acesso: 30 jun 2020. 10 PESSOA, F. Mensagem. Lisboa: Parceria Antonio Maria Ferreira, 1934. 11 FERNANDES, M. Paródia. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1803200119.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996. Acesso: 20 jun 2020. 12 EVARISTO, C. Vozes mulheres. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/923-conceicao-evaristo-vozes-mulheres. Acesso: 30 jun 2020. 98 Maternidades Plurais conosco por um mundo menos desigual. Penso que todos eles mantêm comigo uma relação de alteridade positiva. Adivinham o meu colo de mãe. Este é meu perfil de pesquisadora: meu interesse irá sempre buscar a terceira margem do rio13, o assombra(da)do da vida. Minha prática já excluiu. Já me perdi e perdi alunos por uma visão tosca de objetividade da ciência. Como se ciência e vida fossem categorias distintas. Preocupada com o rigor da ciência, calei e não soube ouvir. As vozes tão abafadas, que acabavam ecoando de uma forma ou de outra em minhas aulas, soavam como desafinadas no coro da academia. Era preciso conformar, ainda que isso custasse sonhos. “O mercado só aceita os melhores, os mais preparados”. Também cantei essa toada. Segui a cartilha do machismo e da ordem do capital, validando que todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros14. Os projetos de extensão que desenvolvi me permitiram a experiência da desterritorialização 15 e a consciência de que quem melhor ensina é aquele que mais estimula a aprendizagem. A aprendência de Assmann16 continua sendo uma alternativa necessária e urgente, assim como a consideração da cibercultura que pode promover a inteligência coletiva17. A tecnologia que já amedrontou se mostra como uma poderosa aliada na busca de superação das relações hierárquicas e autoritárias nos processos educacionais, porque ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens educam a si mesmos, mediados pelo mundo18. E não era sem tempo. Assolados por uma inimaginável pandemia, estamos todos exilados em casa. Nossa interação ocorre, em sua maioria, pela internet. É nesse ciberespaço que experimentamos a socialização possível. E ficamos em suspenso. Cotidiano definitivamente alterado. Rupturas, fissuras, dilaceramentos. Agora mesmo, para escrever este relato e participar, de alguma forma, do registro deste momento tão surreal, recorro à internet. Todos os livros, ou em parte ou em sua totalidade, e autores que cito aqui, já os li, em algum momento da vida. Mas não foi no período recente. São leituras feitas no decorrer de décadas. Como buscar as referências sem o Google? Como indicar com fidelidade a autoria? A cibercultura permite uma nova relação entre a técnica e a cultura 19, e ganhamos, nós, os usuários, que temos um mar de informação ao alcance de nossas mãos. 13 ROSA, Primeiras estórias. São Paulo, Jose Olympio, 1962. 14 HUXLEY, A. Admirável mundo novo. Lisboa: Livros do Brasil, 2013. 15 DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Editions de Minutti, 2004. Disponível em: http://conexoesclinicas.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/DELEUZE-Gilles-GUATTARI-F%C3%A9lix.-O-Anti%C3%89dipo-vers%C3%A3o-Portugal1.pdf. Acesso: 20 ago 2019. 16 ASSMANN, H. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 17 LÈVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. Disponível em: http://lelivros.love/book/download-cibercultura-pierre-levy-em-epub-mobi-e-pdf/. Acesso: 16 jun 2019. 18 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 19 LEMOS, A. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2004. 99 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) O homeoffice. A escola em casa. O delivery soberano. O whatsapp insubstituível. E uma saudade da vida que chega a doer. Os filhos em casa o dia todo com todas as suas exigências. O doutorado em andamento. Foi necessário estabelecer horários e um novo estatuto com os compromissos. Amanhã é dedicada a assessorar o esforço homérico das professoras de meus filhos. Mais do que qualquer outra categoria, os professores precisaram se adaptar aos recursos tecnológicos em tempo recorde, para continuar com o período letivo. É assombroso o que fazem, pois seu trabalho entrou em uma exposição jamais imaginada. São aulas gravadas, arquivos e mensagens enviadas que podem ser recuperados a qualquer momento, por qualquer motivo, e por qualquer um. Uma sensação de que há uma ubiquidade às avessas, ou seja, de que os trabalhos estão ininterruptamente invadindo o meu tempo. O espírito dessa época é o das obrigações. Mil grupos de whatsapp com suas urgências. As lives começaram na esfera do entretenimento e rapidamente foram apropriadas pelo mundo do trabalho. Os grupos de Facebook com sua hiper-segmentação. Podcasts, postagens de youtubers, sites de compras online, links e mais links para todo tipo de atividade. Uma urgência de vida que só escancara ainda mais a nossa condição de exílio. Não um exílio como o daqueles versos em que cantava um sabiá20. Infelizmente, nosso exílio é muito mais triste, porque poderia ser minimizado. É um exílio forçado mais por uma questão social do que por um evento biológico. Mais assustador do que a força de um microrganismo é a gigantesca vala que separa pobres e ricos neste Brasil e que condena os mais pobres a não terem direito à proteção de seu bem maior: a vida. Tendo o privilégio do isolamento, sigo testemunhando como a socialização é um dos elementos da formação da condição humana. Somos culturalmente sociais21. Nas ruas, as poucas vezes que saio de carro, para ver lá o fora, nervosamente espreito as pessoas aglomeradas, conversando, vivendo, rindo. Por falta de consciência, talvez devido a uma frágil educação, creem que a pandemia não diz respeito a elas. Por imposição das autoridades, usam a máscara, mas a descartam sempre que possível. Vem a minha mente o acordar do cortiço de Azevedo, aquele prazer animal de existir, a triunfante sensação de respirar sobre a terra22. Com essa ânsia, pouco pode a ciência? Como bebo no rio da academia, não consigo desacreditar da pandemia. Muito menos acreditar nos remédios aligeirados que são recomendados por figuras que nem da saúde são. Permaneço isolada e imponho isso a minha família. Mas é a muito custo. Como é sofrido ver as crianças sem poder terem contato com os seus pares e com os familiares. Três meses de isolamento entre março e junho. Cedi. Deixei que brincassem um pouco com os primos e amigos mais próximos. Visitaram tios, recebemos 20 DIAS, G. Primeiros cantos. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1846. 21 LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978. 22 AZEVEDO, A. de. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997. 100 Maternidades Plurais os avôs. E no fim, amarela de medo, não consigo mais tentar encarar o lobo-bolo23. Quase surtei. Muito medo, mesmo, da dama branca que levou meu pai24. E o doutorado? E agora, Maria? Não lido, ainda, com os desafios de estudar e trabalhar. Estou temporariamente afastada da universidade para cursar o doutorado. E, por enquanto, não preciso me preocupar com o trabalho de forma remota, ou, ainda, com uma eventual reposição de aulas, numa tentativa de não perder totalmente um ano letivo. Mas estou em meio a um doutorado. Pesquiso as interações que ocorrem em grupos de facebook. Interesso-me pela forma como, na cibercultura, todos podem ser polos de emissão de uma informação ao mesmo tempo em que são públicos, internautas, atores, sujeitos em processos interativos também com a máquina. Intriga-me o querer-dizer25 de quem circula no ciberespaço. E não pensem que sou das mais conectadas. Não. Ao contrário, pouco navego, mantenho com a internet uma relação pragmática, não passional. Vejo que ela nos possibilita otimizar processos, ganhar tempo, apesar de acabarmos desperdiçando-o, na maior parte das vezes. Para os refinamentos da vida social, prefiro a dimensão física. Ainda assim, sou fascinada pela internet como campo de estudo. E como é um objeto de múltiplas possibilidades de investigação, deparo-me com a necessidade de muitas leituras, imersão em textos de outros idiomas e, devido a isso, obriguei-me a voltar a estudar inglês e a iniciar os estudos do francês, tendo em vista que parte significativa de minha base teórica é francesa. As leituras, a busca pelo corpus da pesquisa, as atividades do programa, as aulas de idioma me exigem um tempo que não tenho, já que não considero seguro ter, no momento, uma trabalhadora doméstica. Assim, sobrou, para mim, a noite e seu silêncio para fazer meus estudos. Burlo o cansaço e o sono entre 20h e 2h da madrugada. Insisto. “Como é que você consegue?” O sapo não pula por boniteza, mas, porém, por percisão 26. O café me faz companhia nessa luta com as palavras27, nessa busca pela essência de um fenômeno de uma experiência vivida no mundo da vida de todo dia 28, que, às vezes, beira a obstinação. Se minha mãezinha ainda fosse dona do juízo dela, ficaria orgulhosa, contaria para as amigas que a filha ia ser doutora... Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo29. Acho que este gosto que tenho pelo saber vem da necessidade que sinto de honrar minha mãe. Nordestina e pobre, 23 BUARQUE, C. Chapeuzinho amarelo. 40. ed. São Paulo: Autêntica, 2017. 24 BANDEIRA, M. Carnaval. 3. ed. São Paulo: Global, 2014. 25 BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Disponível em: <http://arquivos.info.ufrn.br/arquivos/201202605200821164092b8a65e812866/BAK HTIN_Mikhail._Esttica_da>. Acesso: 18 jun 2019. 26 ROSA, G. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 27 ANDRADE, C. D. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. 28 MOREIRA, D. A. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira Thompson, 2002. 29 PRADO, A. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991. 101 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) foi para a escola desobedecendo ao pai e por dois anos apenas. Eu fui para a escola. Eu fiquei na escola e dela não saio. Aprendi com minha mãe que ninguém tira o estudo da gente. Isso me move. Mas discordo dela. A coisa mais fina do mundo é o sentimento30. Empatia, solidariedade, sororidade, fé, esperança... amor. Com eles a tiracolo e o sentimento do mundo31, atentas a certas horas da tarde que são mais perigosas32, nós, mulheres, seguimos na dura faina da vida, em que tecer é tudo o que queremos fazer33. E que nenhum príncipe, ou mazela, ou dureza, queira tirar de nossas mãos o nosso tear, pois muito bem sabemos as cores que desejamos em nosso tapete. Pois bem donas de nós, felizes de ser o que somos e de estar onde estamos34, afirmamos que a vida só é possível reinventada35: e seremos o que quisermos ser: mulher, mulher mãe, mulher pesquisadora, mulher pesquisadora mãe, mulher mãe pesquisadora. Somos Maria, Maria e temos a estranha mania de ter fé na vida36. 30 31 Ibidem. ANDRADE, C. D. Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2012. 32 LISPECTOR, C. Laços de família. Disponível em: https://cs.ufgd.edu.br/download/Lacos%20de%20Familia%20-%20Clarice%20Lispector.pdf. Acesso: 29 jun 2020. 33 COLASANTI, M. A moça tecelã. Disponível em: https://linnguagem.com.br/downloads/portugues/moca-tecela.pdf. Acesso: 29 jun 2020. 34 LEE, R. Agora só falta você. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/rita-lee/agora-so-falta-voce.html. Acesso: 29 jun 2020. 35 MEIRELLES, C. Vaga música. Rio de Janeiro: Pongetti, 1942. 36 NASCIMENTO, M. Maria, Maria. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/milton-nascimento/mariamaria.html. Acesso: 30 jun 2020. 102 Maternidades Plurais 14 Solidão materna em tempos de pandemia Ana Priscila Rezende de Carvalho1 Foi em fevereiro de 2015 que eu realizei o teste de gravidez que seria, então, o marco do mais profundo processo de transformação na minha vida. Apesar de ter uma desconfiança da possibilidade de estar grávida, eu não imaginava que poderia dar positivo. Confuso, não é? Mas foi isso mesmo. Eu sabia que podia ter engravidado, mas no fundo, eu não acreditava que isso poderia acontecer comigo. Em alguma medida, eu achava que as minhas credenciais escolares me salvavam dessa “burrada” que era engravidar sem planejar. Eu me assegurava nessa ideia um tanto pretensiosa e elitista. As duas listrinhas, significando que meu teste dava positivo foi, então, o começo de um longo “tapa na cara” da estudante universitária pretensiosa aqui. E que tapa na cara! Naquele ano eu fiz 21 anos e estava cursando o que era para ser o meu último ano de graduação em Ciências Sociais. Antes mesmo do primeiro semestre daquele ano começar, eu recebia a notícia de que me tornaria mãe. E, apesar de me tornar mãe ter sempre sido um desejo presente em mim, nunca foi um desejo ser mãe jovem e universitária. Simplesmente, porque eu não entendia como essas coisas poderiam funcionar juntas. E é esse o recado que o mundo nos passa mesmo, que não dá e, caso aconteça, você está fadada a consequências terríveis, sempre com ameaça de exclusão e de ser apontada como derrotada, fracassada. Na minha época de graduação, ao menos no meu campus, a maternidade não era um debate. Nem institucional, nem entre nós estudantes, organizados ou não politicamente. Eu não via mães estudantes ou não prestei atenção. E o fato de não as ver não era problematizado pelo meu círculo e/ou instituição que eu frequentava. Não é estranho, então, que ao ver aquelas duas listras no teste barato de farmácia foi como sentir que o mundo desabava na minha cabeça e que o chão seguro e firme em que eu pisava até então, se desfazia embaixo de mim. Justo naquele momento que depois de três anos em uma graduação costurada por altos e baixos, de questionamentos se era mesmo aquilo o que eu desejava fazer — sou uma cineasta frustrada — para o resto da minha vida e em que eu começava, finalmente, a entender o que era ser cientista social e o que é fazer pesquisa, eu engravido. Justo quando eu começava a construir uma autonomia sobre o que eu queria fazer com tudo aquilo que eu lia e discutia, construindo projetos com amigas e companheiras de profissão, eu me tornaria mãe. Nos primeiros meses — e até hoje preciso travar batalhas comigo mesma — meus pensamentos giravam em torno de desistir da carreira 1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFF. Licencianda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8456037606973835 103 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e dos projetos que eu vinha construindo, tentando imaginar o que seria mais fácil fazer, então, para que eu pudesse oferecer uma vida minimamente confortável para o Fernando que crescia forte dentro de mim. Não era exatamente a ideia de desistir da graduação, porque a formatura estava tão próxima e poderia acontecer até mesmo antes do nascimento dele. Mas eu sabia que para seguir as próximas etapas da profissão, o desafio seria enorme e eu me sentia completamente solitária, uma vez que, eu não era próxima de nenhuma mãe, jovem e universitária. Não tinha com quem trocar ideias sobre como fazê-lo. Ao mesmo tempo que um diploma de bacharel em Ciências Sociais não é exatamente um portal de oportunidades. Se é difícil para quem tem pós-graduação, imagine para quem não o tem. Eu estava, então, enfrentando essa situação nesse contexto que é — mas gosto de pensar e acreditar que tem se transformado — confortável para o mesmo grupo de sempre, em sua maioria homens, filhos de intelectuais, brancos e que, para mim, se apresentava — e ainda se apresenta, constantemente — como um espaço que eu não me encaixaria, no qual eu me senti, inúmeras vezes, incapaz de compreender como funcionava seus rituais, suas práticas e em como fazer parte disso. Passado o primeiro momento de baque com a notícia, conforme eu fui aceitando minha gestação e vivenciando ela e que, paralelamente, fui recebendo um apoio extraordinário do pai do meu filho e dos familiares meus e dele, fui sentindo mais confiança que eu poderia sim ser uma mãe jovem e que prossegue com as trajetórias dos seus sonhos e desejos profissionais e de formação. Contudo, não há caminho linear e, naquele que seria o meu último ano na graduação, eu vivi a segunda greve das universidades públicas em menos de quatro anos, que desfizeram os meus planos. Não pude unir a minha formatura com o nascimento o meu filho, nem ao meu renascimento enquanto mulher mãe. Quando a greve terminou e retomamos as aulas, já era final de agosto de 2015, ainda precisávamos finalizar o primeiro semestre daquele ano e ficaria faltando mais um semestre para minha formatura. Ou seja, meu filho nasceu em outubro e, logo depois, eu deveria iniciá-lo, tendo aulas em dezembro e janeiro. Naquele momento, entendi que essa não seria a melhor escolha para mim e que eu queria, sim, ter o direito aos 6 meses de licença maternidade. Consciente, mas insegura, escolhi trancar o segundo semestre de 2015 e adiar a formatura para o primeiro semestre de 2016 e assim o fiz. Neste meio tempo, passei por algumas situações que são parte fundamental daquele processo de “tapa na cara” que falei no início. Ao passo que eu, até então, nunca havia pensado o lugar das mulheres mães dentro da universidade, eu também não tinha ideia do que elas passavam nesse lugar. A primeira das situações foi eu comunicar ao meu orientador de iniciação científica da época que eu estava grávida e que o nascimento estava previsto — pasmem! — para a mesma semana que aconteceria a jornada de iniciação científica, na qual eu havia sido inscrita. Essa iniciação científica fez parte desse processo tortuoso e doloroso que eu tento descrever aqui, em que eu buscava e ainda busco encontrar meu lugar dentro da vida acadêmica e do fazer ciência. Ao iniciar aquela conversa com ele, no alto da minha inocência, eu esperava um acolhimento e alguém que me ajudasse a pensar como seria, então, meu futuro enquanto pesquisadora. Mas a realidade é que eu recebi palavras que demonstraram um misto de decepção com descrença na minha capacidade e sua preocupação girava em torno, principalmente, da minha ausência no evento e como isso comprometeria o relatório que era preciso apresentar à agência de fomento que pagava a minha bolsa. Ele chegou a sugerir que eu fosse apresentar o trabalho com o Fernando recém-nascido no colo. Eu não tinha vontade e nem capacidade de responder nada naquele momento, mas eu lembro que saí daquela sala com a sensação da maior 104 Maternidades Plurais solidão que eu já havia sentido e um sentimento de que eu não sabia quem eu era no mundo e para o mundo. Depois desse encontro e do meu comunicado, nós nunca mais nos reunimos pessoalmente e fui orientada efetivamente por um pós-doutor orientando dele. A sensação que ficou foi, então, de que eu era um “problema”, eu era “a menina da graduação que engravidou”. Ao orientando, eu agradeço. Recebi muito mais acolhimento dele, mas a ferida já era enorme e eu não tinha nenhuma motivação para prosseguir com aquilo. Era a minha primeira bolsa de iniciação científica, que eu só consegui já quase no final da minha graduação e essa experiência interferiu negativamente na minha construção enquanto pesquisadora. Sinto os efeitos disso até hoje quando preciso escrever um projeto e fundamentar uma pesquisa. Ainda no âmbito da instituição, quando eu retornei às aulas no primeiro semestre de 2016, eu me senti uma completa estranha no lugar que foi central na minha sociabilidade por quatro anos. Eu já não conhecia tanto os outros estudantes, porque os meus amigos de turma se formaram e eu não tive a oportunidade de conhecer os novos que entravam. Nas disciplinas, sozinha, me sentia uma estranha e com pouca força para fazer uma luta política com os professores sobre minhas necessidades como, levar meu filho para as aulas quando preciso ou ausências que poderiam acontecer. Enfim, inúmeras são as situações que diferem enormemente a rotina de uma estudante mãe das e dos que não são. Além disso, o próprio espaço do campus nos diz, o tempo todo, que aquele não é o nosso lugar, ou pelo menos, não é quando precisamos ou desejamos estar com os nossos filhos ali. Só a título de exemplo, nos banheiros não haviam trocadores e eu não encontrava um lugar tranquilo para que eu pudesse tirar leite, prática importante para as mães que desejam continuar o aleitamento depois que retomam suas atividades e o filho passa a frequentar uma creche — meus seios enchiam muito, lembro que assistia as aulas com dores inimagináveis e às vezes vazando leite na minha roupa inteira. A necessidade faz com que a gente pratique o “se vira”, o “faz o que dá” e lembro que eu ia para um dos banheiros para tirar leite e deixava eles no congelador da geladeira da copa, até o dia em que, terminada minha aula, eu fui buscar os três potes de leite que havia tirado e eles haviam sido roubados de lá. Isso mesmo, roubaram três potes de leite materno. Aquele foi o limite para mim e eu resolvi ir até a direção do instituto e me fazer ser enxergada, fazer enxergar as minhas necessidades ali. Mas eu estava sozinha, me viam, então, como “problema isolado” e não com a compreensão de que situações como essa são o que reproduzem a exclusão das mulheres mães e trabalhadoras desses espaços. A situação era tão absurda que a conversa com a direção não ofereceu uma solução efetiva, apenas pontual e apartada da realidade de tantas mulheres discentes, e o máximo que eles puderam me oferecer foi uma sala — que tinha uma janela de vidro, sem privacidade alguma — e dizer que comunicariam aos funcionários encarregados de cuidar da manutenção da copa de que eu usaria aquele espaço para guardar meus potes de leite. Depois de algumas semanas, eu desisti de tirar leite ali, preferia ficar com meus seios cheios e ao chegar em casa, mesmo exausta, tirar a quantidade que meu filho necessitava para o próximo dia na creche. Eu sentia duplamente a solidão: não ser enxergada como estudante pela instituição e não ser enxergada mais como jovem pela comunidade de estudantes, principalmente, porque a minha nova rotina enquanto mãe me impossibilitava acompanhar a rotina de movimentos estudantis, por exemplo. Mas, mesmo fora destes, eu já não me sentia parte nem dos meus velhos grupos de amigos, em que 105 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) eu era a única mãe. Quando termina minha licença maternidade e retomo, pouco a pouco, a vida social também, vou percebendo que, no meio tempo entre gestação e nascimento, eu havia perdido várias oportunidades de projetos com eles, inclusive, projetos profissionais e o sentimento de solidão batia forte de novo. Com certeza, para eles, a minha gestação e o nascimento do Fernando, representaram também um processo de transformação e de passar a enxergar as mulheres mães jovens. Até hoje vivemos coletivamente um processo de construção de novas formas de nos relacionarmos, agora abraçando um pequeno que faz parte de nossas vidas. Passados cinco anos da descoberta da gestação, chegamos em 2020 e acontece a pandemia mundial do Covid-19. Esses últimos cinco anos foram de enormes transformações na minha vida social e psíquica, tanto que, quando rememoro tudo me pergunto se na verdade, já não se passaram vinte anos e não apenas cinco. Foram anos de muita luta individual e coletiva para que eu não me afundasse na solidão materna, dizendo ao mundo que, não, eu não serei somente mãe, que quero ter o direito de buscar me formar em outros espaços: pesquisadora, professora, militante e, às vezes, metida a cineasta amadora. Isso tudo, enquanto eu construo a maternidade que é possível para mim e para ele, na relação entre nós. Entre altos e baixos, eu fui me fortalecendo e, antes da pandemia, apesar do já difícil contexto político, social e econômico que vivíamos, eu sentia que, finalmente, me reencontrava, pós experiência carnal de parir e psicológica do puerpério. Em coletivo, eu já não sentia tanto a solidão materna. Os desafios a serem superados ainda eram enormes, mas a minha auto-confiança crescia também. Nesse sentido, a pandemia e a necessidade de isolamento social, representam um golpe duríssimo. Quase como se fosse um túnel do tempo direto para os dias de puerpério e de quarentena com Fernando recém-nascido em casa, excluída da vida social que eu estava acostumada e com poucas perspectivas de futuro. Evidente, que a realidade da minha vida é outra: hoje, depois de um processo doloroso de separação, faço guarda compartilhada com o pai dele, o que me permite ter tempo para me desenvolver profissionalmente, mas o que não exclui inúmeros desafios para mim enquanto mulher mãe, principalmente, no que tange a culpa materna que levo comigo; consegui me formar e finalizar um mestrado; já iniciei minha trajetória enquanto professora e Fernando já tem quatro anos. Sinto viver um novo puerpério, mas agora com novos dilemas, alguns ainda mais desafiadores. Outro dia, já em quarentena, Fernando virou para mim, enquanto tomava banho, e disse: “Mamãe, sabe de uma coisa? Eu não gosto de trabalho”. Assim, de repente, sem que eu tivesse feito qualquer pergunta ou falado qualquer coisa relacionado ao trabalho. Mas, perfeitamente, são incontáveis as vezes em que ele me escuta dizer: “Espera um pouco, Nando, a mamãe precisa fazer uma coisa do trabalho aqui”. Por isso, então, ele me explica que não gosta de trabalho — assim mesmo, dessa forma genérica — porque eu estou sempre trabalhando e ele fica chateado com isso. Esse tem sido o cenário aqui em casa, uma rotina em que tento conciliar o trabalho — ou melhor, os trabalhos — e os cuidados e o tempo que a maternidade me exige. Tudo se agrava, porque vivo em uma situação extremamente instável. Tive meu contrato de trabalho enquanto professora de uma instituição suspenso, uma vez que me enquadrava como prestadora de serviço, sem nenhuma garantia para um momento como esse. Atualmente, sobrevivo a partir de encomendas de serviços de produção de materiais em vídeo, de transcrição, entre outros e atuo também como militante de um movimento social que 106 Maternidades Plurais tem organizado uma rede de solidariedade que se mostra fundamental neste momento àqueles e àquelas que historicamente possuem seus direitos negados e negligenciados. Além disso, sou mestre em Antropologia e licencianda em Ciências Sociais, o que significa que a minha vida acadêmica não pode estar paralisada — principalmente se almejo, brevemente, ingressar em um doutorado e seguir as etapas acadêmicas da profissão — ou seja, que devo buscar, constantemente, estar inserida em grupos de pesquisa e discussões, bem como (tentar) produzir para deixar o tal do Lattes bonito e disputável, enquanto vivo sob o constante medo, com profundos efeitos psicológicos, do desemprego e da falta de oportunidades acadêmicas. A pandemia e a necessidade da quarentena, vieram aprofundar os já conhecidos dilemas para nós mães que fazemos parte da vida acadêmica e para as que não fazem, bem como, trazer outros novos, provocando a necessidade de nos reinventarmos neste contexto totalmente inédito e que produz um oceano de inseguranças e perguntas sem respostas. Contudo, tudo isto não é sem razão ou fruto do acaso. Basta olharmos para os dados da nossa realidade e compreenderemos que o desemprego atinge mais as mulheres e, mais profundamente, as mulheres que são mães. Quando encontram emprego, seu salário, em média, representa ¼ do salário das mulheres que não são mães, gerando grande desigualdade entre estes dois grupos e que não se apresenta na mesma proporção quando olhamos para os homens que não são pais e os que o são 2. O campo acadêmico tem as suas particularidades em relação a outros campos de trabalho e profissões, contudo, a desigualdade de gênero é uma realidade em todos e aquele não foge à regra. A ideia de que as mães são as principais e/ou exclusivas responsáveis pelos cuidados com os filhos e com a casa ainda não se tornou passado quando olhamos para os dados, apesar dos avanços conquistados através da organização política das mulheres ao longo da história. A realidade é que nós estamos vivenciando uma sobrecarga com os papéis que devemos e desejamos cumprir, sendo mães, trabalhadoras e responsáveis pela vida doméstica. Ainda somos socialmente enclausuradas, a partir de mecanismos materiais, objetivos, mas sobretudo, subjetivos e mentais, no trabalho do cuidado em todas as esferas que ocupamos e atuamos. O sistema patriarcal, dessa forma, continua vivo e a gerar desigualdades de gênero que, quando interseccionadas com as desigualdades raciais e de classe, mostram-se ainda mais urgentes de serem superadas. Essa desigualdade no campo acadêmico se evidencia quando olhamos para o gênero de quem tem conseguido manter a produção científica neste momento, principalmente, no que tange as publicações, principal mecanismo de desenvolvimento profissional na nossa área. Variados são os artigos e dados que temos tido contato nessas últimas semanas que buscam demonstrar o aprofundamento, o escancaramento das contradições em torno do lugar da mulher nesta esfera em meio a pandemia. Os esforços de diferentes periódicos têm demonstrado que a queda na produção tem atingido as mulheres 2 Dados do IBGE citados na matéria. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-mercado-trabalho_br_ 5cd5eff2e4b054da4e89773b 107 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) no geral. Contudo, é necessário fazer uma investigação em cada um deles acerca do recorte da maternidade, como o projeto Parent in Science3 tem realizado neste contexto. Seus dados, produzidos a partir de questionários online, apontam para a realidade de que as mulheres e os homens que têm filhos são os grupos que mais enfrentam dificuldades em realizar o trabalho remotamente, tendo, ainda, uma grande desigualdade entre eles. 4 Dito isso, não significa que as mulheres que não têm filhos não vivenciem as dificuldades e os desafios frutos da desigualdade de gênero na ciência. O que se evidencia, prioritariamente, é que a maternidade é uma condição que, dentro da academia, nos coloca em ainda maior desvantagem, ainda mais agora que precisamos aprender, literalmente, a como digitar no computador enquanto alimentamos o filho. Ou amamenta, ou brinca de carrinho, ou, simplesmente, atende qualquer das necessidades emocionais normais que crianças possuem. Em relação a estas últimas, ainda mais acentuadas neste momento que é extremamente delicado para a saúde mental de todos nós e, evidentemente, ainda mais desafiador em relação aos nossos filhos que tiveram suas rotinas completamente transformadas: não podem mais ir à escola, encontrar amigos, familiares e frequentar espaços importantes para sua sociabilidade, como parques e praças públicas. Lidar com as consequências psíquicas em relação ao meu filho e a preocupação de como isso o afetará em toda a sua vida, tem sido, certamente, o mais difícil para mim. Muitas vezes acordo pensando que não queria ser mãe no meio de uma pandemia, não queria ter a responsabilidade de ser alguém madura emocionalmente, quando, no fundo, estou desabando e que é inimaginável considerar que isto não afetará minha produção e meu desempenho em outros papéis, principalmente, enquanto estudante e pesquisadora. Frente a isso, gostaria de concluir reafirmando, então, que o caminho para a mudança neste cenário de sobrecarga das mulheres e de solidão materna que se perpetua e se agrava — ainda mais, quando vemos que o número de mães solos só cresce e representa a realidade da maioria das mães das classes mais vulnerabilizadas em nosso país — não pode ser outro se não a construção e o fortalecimento de aparelhos estatais que estabeleçam políticas de cuidado e de desenvolvimento das crianças, partilhando e coletivizando estes cuidados. Essa coletivização não se restringe às ações estatais, mas deve ser praticada em cada esfera social comprometida com a inclusão das mulheres mães em espaços de decisão, participação e produção. Dessa maneira, a mudança também deve estar dentro da forma como, hoje, o sistema de produção científica se organiza e da lógica de produtividade que pauta nossos sistemas de avaliações5. Há ainda um longo caminho a ser percorrido em direção a um “Ao longo destes três anos, apresentamos dezenas de seminários e palestras em diferentes cidades, levando para todo o Brasil a discussão sobre maternidade e carreira. Fomos pioneiras no levantamento de dados para avaliar, profundamente, as consequências da chegada dos filhos na carreira científica de mulheres e homens, em diferentes etapas da vida acadêmica. Nossas ações levaram a mudanças concretas no cenário científico brasileiro, trazendo a maternidade para o centro da discussão. Hoje, diferentes editais de financiamento consideram os períodos de licença-maternidade na análise de currículos! Um tremendo avanço, graças à mobilização do nosso grupo e seus apoiadores!” Disponível em: https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science 3 4 Dados em https://revistapesquisa.fapesp.br/2020/05/19/maes-na-quarentena/ 5 A conquista do grupo de trabalho Mulheres na Ciência que representou a inclusão da licença maternidade para pontuação em concursos é um apontamento para este caminho de mudança. Disponível em: http://www.uff.br/?q=noticias/26-02-2019/mulheres-maes-e-pesquisadoras-edital-cientifico-da-uff-pontua-docentes-que. Acesso: 15 mai 2020. 108 Maternidades Plurais mundo mais justo e atento às desiguais condições que diferentes grupos possuem e que, enterradas as idealizações de mãe ideal, sejamos cada vez mais humanizadas em nossos limites e em nossas necessidades. 109 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 15 La sed por las palabras: maternar, cuidar e investigar en tiempos de aislamiento Ana Soledad Gil1 (...)Sé que estás leyendo este poema caminando por la cocina calentando leche, un bebé llorando sobre tu hombro, un libro en tu mano porque la vida es corta y tu también tienes sed (...) Dedicatorias (de un atlas del mundo difícil) (Adrienne Rich.) ¿Cuánta sed podemos soportar como mujeres, madres, apasionadas por la lectura, la investigación y la escritura? ¿Cuánta, postergadas indefinidamente por atender a otrxs que necesitan de cuidados básicos para desarrollar su vida? ¿Cuánta más, en un contexto como el actual, en el que el aislamiento es obligatorio y los cuidados se volvieron centrales para la humanidad? Que existían desigualdades entre varones, mujeres y disidencias sexuales antes de la pandemia mundial provocada por el Covid-19, ya lo sabemos. Sabíamos las mujeres que ejercemos la maternidad — por elección en mi caso — y que, además, tenemos una profunda vocación por las palabras y la investigación, que la lucha por derribar obstáculos de todo tipo estaba a la orden del día. Disponer del tiempo necesario para poder sentarse a escribir o preparar alguna exposición representaba ya un gran desafío al estar criando y cuidando un hijo pequeño: levantarlo, darle el desayuno, asearlo, cambiarle la ropa (previo haber chequeado que haya ropa limpia), preparar bolsos, mochilas, juguetes.... no olvidarme de vestirme y asearme mientras el niño en cuestión pregunta ¿cuándo nos vamos?, cargar los miles de bártulos, pensar en todo, en la crema de las alergias, en el remedio, en las gotas, en las ojotas o en la campera. En todo. Dirigirse al jardín, a la escuela, a la casa de la abuela o de la amiga piola que da una mano de vez en cuando (previo haber realizado las consultas correspondientes 1 Doctora en Ciencias Sociales. Diplomada en Comunicación y Género. Investigadora de CONICET -CCT Mendoza. Ana Soledad Gil – Google Acadêmico https://www.conicet.gov.ar/new_scp/detalle.php?keywords=&id=29952&capitulos=yes 110 Maternidades Plurais con cada quien para ver si puede, por favor, cuidarlo en rato). Dejar al niño con las indicaciones y los besos y la culpa. Pensar “tengo 10 minutos para llegar” y llegar. En el camino llamar a la pediatra para el control, agendar comprar los materiales del jardín, también mandarle un mensaje al plomero y ver cómo está el abuelo. Llegar a la oficina o a la reunión o a la clase con cara de haber pasado por un tsunami. Los pelos alborotados por los abrazos finales y tal vez mermelada o puré en el saco. Pero llegar. Y allí sentir que mientras trabajo, descanso. Y la culpa de nuevo, por supuesto. Miro el celular. Estoy atenta por si algo pasa. Miro la hora. El pedido fue sólo un rato. Salgo a las apuradas, pero paso a comprar la comida, por el laverrap y por el cajero. Llego, pienso. Y mientras le mando un mensaje a mi marido para que tienda la ropa y le pase un poco el cepillo al piso. Seguro que no se da cuenta de que quedó sucio y no tuve tiempo de limpiarlo. Busco a mi hijo, agradezco, vuelvo a casa y sigo con las tareas doméstica, de cuidado y de investigación y/o docencia. Los correos electrónicos, los de voz, lo que me quedó pendiente que seguro lo termino en un ratito... Y veo esos ojos que piden y esas manos que se lanzan buscando mi cuerpo que es territorio y refugio. Me quiero bañar... Extraño. (Me) extraño. Lo abrazo. Sabíamos de las históricas desigualdades por nuestras abuelas y nuestras madres. Genealogías de resistencias y de luchas nos llevaban a disputar los derechos en nuestros vínculos, en los ámbitos privados, de parentesco, en las calles, en los medios de comunicación, en los discursos como terrenos concretos para que se oigan nuestras voces. Porque, además, tenemos un huequito para militar los derechos. Y conseguimos leyes, medidas y políticas. Falta mucho. Ni Una Menos ante la violencia patriarcal, Marea Verde por el aborto legal, derribar la doble o triple jornada laboral que nos oprime, fisurar el techo de cristal, incidir en los mensajes mediáticos contra estereotipos sexistas, clasistas y racistas, entre tanto. Sumergidas en la pandemia y el aislamiento obligatorio las desigualdades sociales se han profundizado a una velocidad sin precedentes. Desde una mirada de género, feminista, podemos mencionar algunas: aumentaron las denuncias por violencias de género, la vida de mujeres y personas trans en peligro dentro del lugar que se supone “seguro”, el hogar. El acceso a muchos de los derechos conseguidos se vio vedado como las interrupciones legales de embarazos o el derecho a un parto sin violencias. En concreto, de un día para el otro, como si nos hubiese atravesado un rayo, no pudimos circular más por las calles. La vida entrando a empujones entre los límites del teléfono celular o la computadora, en el mejor de los casos. Se cortaron de cuajo las mínimas y aunque precarias redes de cuidado que una iba construyendo. En un instante, niñxs, tareas escolares, tareas domésticas, teletrabajo, limpieza y desinfección permanente, atención de personas mayores y con discapacidad sucumbieron en el mismo espacio: la casa. Todo junto y a la misma vez y recayendo mayormente sobre nuestros cuerpos. Una sobreexplotación de todo tipo. Nada tiene tiempos ni horarios ni cortes ni recreos ni traslados. Todo es un mientras tanto: mientras armo trenes respondo al trabajo, mientras le doy la leche escucho una conferencia. Ahora los obstáculos están adentro, mezclados y estoy, la mayor parte del día, sola. Cansada, saturada y sin respiro, así poco se puede pensar. ¿Trabajar mientras mi hijo duerme? Imposible. Me duermo yo también. Hice la prueba de levantarme más temprano, pero me di 111 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) cuenta de que no funcionaba cuando una mañana disfrutaba de un café en el silencio y escuché “mamá, estas desayunando sola ¿eh?” Me dio gracia, ternura profunda, culpa y rabia. En 1976, Adrienne Rich, poeta y ensayista feminista lesbiana estadounidense publicó Nacemos de Mujer. La maternidad como experiencia y como institución2, obra en la que se propone distinguir entre dos significados entrecruzados de maternidad: la relación potencial de cualquier mujer con su capacidad reproductiva, y la institución, que se apropia de esa capacidad y la pone al servicio del patriarcado. En esta obra la autora nos deja una categoría fundamental a quienes ejercemos la maternidad, más en estos tiempos, la de ambivalencia. A través del estereotipo del amor materno incondicional, continuo, la maternidad es una experiencia que ha sido despojada, por la institución, de la posibilidad de ambivalencia. Sin embargo, dadas las condiciones en las que se vive la maternidad en nuestras sociedades occidentalizadas y capitalistas, la privatización de la responsabilidad por los/as hijos/as, que recae en una mujer individual, hace que la ambivalencia — la alternancia de momentos de rabia y resentimiento con momentos de gratificación y ternura, la posibilidad de considerar las propias necesidades o anteponer el bienestar de los/as hijos/as al propio — sea una parte central de esta experiencia. En el mismo sentido, Flax 3 ha observado que mientras la noción de ambigüedad refiere a estados confusos, la de ambivalencia remite a “estados afectivos en los que se confiere una energía emocional intensa a deseos o ideas intrínsecamente contradictorios o excluyentes entre sí” (1990,115). Por eso, Rich comienza Nacemos de Mujer manifestando “mis hijos me causan el sufrimiento más exquisito que haya experimentado alguna vez. Se trata del sufrimiento de la ambivalencia: la alternativa mortal entre el resentimiento amargo y los nervios de punta, y entre la gratificación plena de la felicidad y la ternura” (1986, 65). La institución no nos da lugar a las madres a la experimentar esa ambivalencia. Por el contrario. Nos manda a cumplir con la maternidad intensiva y solitaria. Los cuidados sociales y comunitarios se mantienen sólo en algunos sectores de la población. Estamos separadas, repartidas y ocultadas tras paredes repitiendo una serie de tareas en la soledad. Esa ambivalencia que antes de la pandemia podíamos ir sorteando con más o menos suerte, llegó para quedarse en el contexto actual: cansancio, culpa, miedo, mandato, sobre exigencias, por un lado. Deseo, ternura, risa, mismo, juegos, por el otro. Hoy podemos vislumbrar más que nunca, en nuestra experiencia cotidiana, altos niveles de tensión respecto a la histórica división sexual del trabajo como así también nos damos cuenta de la imposibilidad de conciliar trabajo productivo con trabajo reproductivo/ de cuidado y de las nulas respuestas que existen por parte de los gobiernos. Distintos organismos internacionales como ONU Mujeres alertan que las mujeres siguen siendo las más afectadas por el trabajo de cuidados no remunerado, sobre todo en tiempos de crisis. Debido a la 2 RICH, Adrienne (1986). Of Woman Born. Motherhood as Experience and Institution.New York: WW Nor- ton. 3 FLAX, Jane(1990). Thinking Fragments: Psychoanalysis, Feminism, and Postmodernism in the Contemporary West. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 112 Maternidades Plurais saturación de sistemas sanitarios y al cierre de las escuelas, las tareas de cuidados recaen mayoritariamente en ellas, quienes, por lo general, tienen la responsabilidad de atender a familiares enfermos, personas mayores y a niños y niñas Casi inexistente son las políticas públicas en la región acerca de la organización social del cuidado, aún cuando una pandemia visibiliza fuertemente la centralidad de los mismos para la vida humana. Así quedó manifestado en el conversatorio "Desigualdades de género, cuidados y estrategias estatales en contexto de pandemia"4 organizado por el Ministerio de las Mujeres, Géneros y Diversidad, Argentina y CLACSO - Consejo latinoamericano de ciencias sociales. También allí se expresó que, en la región de América Latina, el cuidado es tradicionalmente familiar y que las condiciones materiales de las personas pueden o no cambiar en algunos sentidos esta tradición. Habrá quienes pueden pagar por un lugar o una persona que cuide, que por lo general es una tarea feminizada o serán las redes mayoritariamente compuestas por las mujeres de la familia, quienes cuiden. En el conversatorio virtual referido, asimismo, se dijo que, en la región, las mujeres dedican el 73% del tiempo para cuidar mientras que los varones lo hacen en un 23%. En Argentina, según la Encuesta sobre Trabajo No Remunerado y Uso del Tiempo (INDEC 2013), las mujeres dedican diariamente casi el doble de tiempo (6.4 horas) que los varones (3.4 horas) al trabajo doméstico no remunerado, y además hacen el 75 por ciento de ese trabajo. Otra encuesta reciente realizada por investigadoras del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)5 constató que el exceso de quehaceres domésticos y de cuidados atraviesa a las mujeres durante la cuarentena. Las mujeres siguen asumiendo las viejas tareas del hogar y los cuidados, y ahora también las nuevas que aparecen con la pandemia, como la enseñanza en el hogar y seguimiento escolar diario de sus hijas e hijos, el cuidado de un familiar mayor que lo necesita, o el teletrabajo, que en la práctica habilita a la demanda permanente y sin horarios fijos. Patriarcado y capitalismo están sacando de esta situación beneficios extraordinarios sin ningún esfuerzo y sin ninguna inversión. La sobreexplotación de lxs subalternxs a través del teletrabajo y de las mujeres confinadas a cuidar a otrxs. Actualmente, los varones que se desempeñan en los ámbitos académicos están produciendo mucho más que nosotras. Lo difunden en sus redes. Artículos, ponencias, conferencias virtuales, presentación de nuevos hallazgos. Nosotras a los tumbos podemos empezar y terminar con alguna tarea online. Y si bien la política indica posibilidades de licencias y justificación, en el fondo se sabe que cuando llega el momento de la evaluación estas desigualdades estructurales no cuentan. Advertimos que esta situación refuerza y perpetúa desigualdades de género en las ciencias y técnicas que ya veníamos discutiendo e intentando visibilizar. De acuerdo con datos de la Unesco, la cantidad total de investigadoras mujeres está cerca de la paridad de género, sin embargo, esa proporción no se mantiene a lo largo de toda la trayectoria profesional. El 17% de los varones ocupa los cargos más altos, como el de investigador superior y principal del Conicet. En el caso de las mujeres, sólo el 11,5% llega a los puestos jerárquicos. Las mujeres llegamos después que 4 5 https://www.youtube.com/watch?v=89u2C5WYLws https://unciencia.unc.edu.ar/sociedad/mujeres-en-cuarentena-cuidadoras-de-tiempo-completo-y-sobrecarga-de- trabajo/ 113 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) los varones porque nuestras trayectorias profesionales se ven interrumpidas por roles sociales que implican que tengamos que dedicar más tiempo a tareas de cuidado y que por lo tanto, publiquemos menos artículos e investigaciones6. Dicho de otro modo, la creciente cantidad de mujeres en las ciencias no significa que se haya saldado la brecha de género y subsumidas en el aislamiento y los cuidados 24/7, denunciamos que esa brecha se hace cada vez más ancha e imposible de zanjar. En este marco, transito intensamente la ambivalencia entre la ternura de dormir en un abrazo fuerte y reír jugando a las carreras, la culpa por esconderme unos segundos a pensar y la rabia por no poder saciar mi sed de palabras. Transitamos, transito esa tensión entre lo que puedo, lo que debo y lo que deseo. Acá me encuentro escribiendo este texto en medio de las urgencias, las interrupciones y los pedidos no sólo de mi hijo pequeño sino de todo lo que implica el trabajo doméstico, reproductivo en suma a las tareas que se han añadido como las labores escolares, la desinfección permanente, el extremar los cuidados propios y de otrxs. Porque, tal como ha indicado Rich, la experiencia de la maternidad nos hace saber del costo y de la precariedad de la vida, mucho más en un contexto en el que miles de personas la pierden por día en el mundo. Hay que enunciar, antes de terminar, que es propicio que un tema propio de la agenda feminista haya ocupado lugar en las agendas mediáticas y en algunos discursos públicos. Resta pensar y poder accionar para que esta situación de sobreexplotación que recae sobre nuestros cuerpos y vidas pueda transformarse y no quede solo en la denuncia. Poder comprender que es responsabilidad de toda la sociedad cuidar y garantizar determinadas condiciones para la vida. Revolucionar el orden histórico del mundo en el que mujeres y personas disidentes sexuales ocupamos espacios no valorados, ni reconocidos, violentados, ocluidos. Revolucionarlo todo, en lo privado y en lo público, en las políticas y en la cocina para que esta opresión se pueda desarticular. Desde los feminismos, autoras como Andrea O’Reilly7 se proponen desarrollar y ampliar el significado del maternar feminista que implica prácticas que desafíen y rechacen la maternidad patriarcal. Además, este trabajo no se considera una tarea individual, aislada, sino que es parte de un emprendimiento colectivo, de compromiso social, impulsado por el deseo de desmantelar la institución patriarcal. Finalmente decir que, el agua que procuramos día a día y que cuidamos porque es fuente de toda vida, no sea sólo para dar a otrxs, ni para el lavado de manos, ni solamente para limpiar pisos, superficies y alimentos. Que el agua sea también para saciar nuestros deseos y pasiones, para nuestra sed de palabras, de sentires y decires. Para nuestras narrativas e investigaciones feministas, porque lo personal es político. 6 https://chequeado.com/el-explicador/mujeres-en-la-ciencia-reciben-menos-fondos-para-investigar-y-sonmenos-en-los-puestos-de-decision/ O’REILLY, Andrea (2007). Feminist Mothering. En:O’Reilly, Andrea(ed.) Maternal Theory. Essential Readings. Toronto: Demeter Press, 792-821. 7 114 Maternidades Plurais 16 A vida invisível de uma mãe cientista Ana Vitória Lins Castiñeira1 Em primeiro lugar, quando eu vi a chamada pública, “Os Diferentes Oceanos das Mães Cientistas na Pandemia: Retratos e Relatos Plurais de Aventuras Cotidianas”, levantei a questão se eu sou cientista. Por quê eu não me considero uma cientista? Nunca havia pensado sobre isso. Talvez faça parte daquele velho debate se Filosofia é ciência. Ou quiça é uma questão de identidade. Passei muitos dias acreditando que eu não cumpria os requisitos. Ser mãe era um fato inquestionável, mas ser cientista não. Por quê? Será que sou versada em ciência? De acordo com Bachelard, “a tarefa da filosofia científica é muito nítida: psicanalisar o interesse, derrubar qualquer utilitarismo por mais disfarçado que seja, por mais elevado que se julgue, voltar o espírito do real para o artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração.”2 Em segundo lugar, eu vou contar um pouco da minha história. Apesar da Filosofia, durante muito tempo, ter como um dos seus principais objetivos universalizar todas as suas questões. Aqui eu vou fazer justamente o contrário, contar a minha história em primeira pessoa. Eu acredito que a nossa tarefa intelectual no século XXI seja não universalizar e uniformizar nossas lutas. Durante muito tempo a história foi contada sem a participação feminina. Eu agradeço essa iniciativa por dar esse espaço. A nossa invisibilidade atravessa séculos. A partir do período moderno estamos conquistando algum espaço na história. Mas, ainda devemos ser excepcionais e brilhantes. Eu vim aqui ocupar esse lugar de fala e protagonismo. Estamos cansadas de sermos coadjuvantes ou, algumas vezes, figurantes na história. O feminismo nos ofereceu algumas ferramentas para ocupar os espaços em pé de igualdade, se isso é possível. No artigo “A aventura de contar-se: Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara”3 de 1 Doutoranda em Filosofia Contemporânea na Universidade de Zaragoza, Espanha. Mestra em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada e licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9954207910527688 2 BACHELARD, G. (2005) A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução: Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 10. 3 RAGO, M. (2011) A aventura de contar-se: Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara. In: Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. FRANCISCO DE SOUSA, L. A. SABATINE, T. T. MAGALHAES, B. R. (organizadores) Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Pag 1-18. 115 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Margareth Rago eu encontrei ferramentas teóricas para embasar a minha história. Nesse texto a autora diz que nossa decepção com a política institucional nos leva a não perceber outras formas de luta que se desenvolvem no cotidiano. E as ferramentas teóricas são fundamentais para manifestar esses pequenos movimentos que são potentes. Assim como Foucault, meu autor escolhido para fundamentar minha tese de doutorado, nos fornece importantes conceitos para atuar na contemporâneidade. Com isso, nos permitindo construir novos valores éticos e desenvolver novas práticas políticas e, sobretudo, subjetivas. A pesar de ser da filosofía, eu acredito que as práticas são mais importantes que a teoria. Aliás não possuem nenhum valor se não forem utilizadas. Grandes pensadoras e filósofas são fundamentais para refletirmos sobre nossas vidas. Nossa vida particular e cotidiana é a nossa pequena revolução. Não adianta eu vir aqui e citar Simone de Bouvoir, Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell, Nancy Fraser, Audre Lorde, Bell Hooks, Simone Wittig, Berenice Bento, Lélia Gonzalez, a lista é bastante extensa, e continuar oprimida e me sentir inferior no meu cotidiano. Continuar preocupada somente com que a minha filha vai comer e com a roupa que vou usar. Definitivamente, não é isso que queremos. Ouvir de profesores renomados que mulheres tem dificuldade para o pensamento abstrato e sorrirmos com toda docilidade que o mundo patriarcal exige de nós. Devemos ser meigas, educadas e submissas. Discordar não é para gente, é assunto para um homem. E quando ousamos discordar ganhamos o título de loucas. Como eu disse antes, eu vou contar a minha história. Nasci no Rio de Janeiro de uma mãe esquizofrênica e um pai extrangeiro. Sempre tive um pouco de vergonha em dizer que minha mãe é esquizofrênica. Para não a estigmatizar ou a mim. E ninguém pensar que sou louca, mas a loucura está em minhas entranhas. Com ela eu ganhei a ousadia de dizer o que penso. Minha mãe sempre foi estranha. Enquanto os vizinhos faziam churrasco aos domingos, nós não comíamos carne nos anos 80. Assim eu herdei o estranhamento do mundo, logo criança E aprendi a ser diferente. Minha herança paterna foi um olhar extrangeiro e uma certa falta de pertencimento. Não me sentir verdadeiramente pertinente a nenhum lugar. Também ganhei a habilidade de reivindicar. Meu pai questionava absolutamente tudo. Desde o jornal até uma conta que deveríamos pagar. Há um ano estou morando fora do Brasil. Estou na Espanha, fazendo o doutorado. Morar fora da nossa terra natal nos tira de nossa zona de conforto. Todas as facilidades que eu tinha com a língua se tornam um desafio diário. Escrever em outra língua faz com que eu me sinta uma criança. Todo dia eu aprendo uma palavra nova. Não sei se o português tem uma palavra para tudo e o espanhol não, ou se é a minha falta de conhecimento no vocabulário espanhol que me faz acreditar nisso. Derrida (1996) em seu livro “El Monolinguismo del otro” conta sua experiencia em viver na França. “Não tenho mais que uma língua, não é a minha.”4 Ele fala francês, mas não o francês da França, e sim o da África. Os franceses não reconhecem o francês dele, a pesar de falarem a mesma língua. Eu vi acontecer o mesmo aqui na Espanha: com bolivianos, colombianos, venezuelanos, argentinos, etc. Os espanhois não reconhecem a língua espanhola falada por latinos. Derrida fala justamente desse 4 DERRIDA, J. (1996) El monolingüismo del otro. Tradução: Horacio Pons. Edición electrónica de www.philosophia.cl/ Escuela de Filosofía Universidad ARCIS. p. 3. 116 Maternidades Plurais estranhamento em nunca se sentir verdadeiramente confortável. Há um certo desconforto em estar fora. A maneira como eles falam me causou espanto. Eles são sinceros e diretos nas afirmações. Eu, como uma boa brasileira, sou mais polida na hora de falar e tenho dificuldade em dizer algo que vá desagradar meu interlocutor. Em princípio, a Espanha — depois da Itália e da China — foi um dos países mais atingido pelo Coronavírus. Podemos tomar a pandemia de Covid-19 como um objeto de reflexão sobre a biopolítica da população. A epidemia começou na China e espalhou-se rapidamente por todo o mundo. Por ser um vírus novo e forte se propagou muito facilmente através do ar e por contato. Com isso, gerou uma crise econômica também. Uma vez que muitos países como, por exemplo: China, Itália e Espanha tiveram que entrar em lockdown. Este termo significa confinamento. Aqui tudo parou, só funcionavam os serviços essenciais e com muitas restrições. Será uma guerra biológica para tornar fraca algumas economias? Aqui na Espanha, até agora, mais de 28.000 pessoas morreram, de acordo, com o relatório oficial do Ministério da Saúde do governo espanhol. A biopolítica da espécie humana controla e regula o corpo/espécie. Por exemplo, higiene, saúde, taxa de natalidade, mortalidade, economia. Estes processos constituem uma massa de problemas políticos e econômicos. Em outras palavras, um método que tenta governar a multiplicidade de seres humanos. É uma política de Estado que visa gerir a vida e o corpo da população de seres vivos. A biopolítica é um problema político, científico e biológico. Além disso, é um fenômeno que se desenvolve coletivamente. Na realidade, estabelece mecanismos reguladores para a população global. Ou seja, para Foucault5, é necessário ter em consideração a vida, os processos biológicos do homem/espécie e garantir uma regulamentação. É uma tecnologia do poder incessante e sábia que é o poder de fazer viver a população. Vale lembrar que o filósofo, Michel Foucault, morreu de um vírus em 1984. O vírus de HIV. Em sua época era um vírus novo e fatal. Portanto, não tínhamos informação suficiente para o conter. Atualmente, as pessoas com HIV já não morrem devido à contaminação deste vírus e têm uma expectativa de vida considerada “normal”. Paul B. Preciado6, em um artigo de um jornal espanhol sobre o Coronavírus, fala sobre Foucault como o primeiro filósofo na história a morrer das complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida. E, por acaso, nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar a gestão política da epidemia que, no meio do pânico e da desinformação, se tornam tão úteis. Com o caso de Foucault percebemos como somos finitos e mortais. E se o filósofo tivesse sobrevivido, hoje teria 93 anos de idade. Preciado nos recorda um dos pontos mais importantes que aprendemos com Foucault. Que o corpo vivo é o objeto central de toda a política. Não há política que não seja a política dos corpos. Deve ser mencionado, além disso, que o corpo não é biológico. É um corpo fabricado pela política. "A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, pô-lo a funcionar, definir os seus modos de 5 FOUCAULT, M. (2010) Hay que defender la sociedad: curso del Collége de France (1975-1976). Sevilla: Ediciones Akal. p. 210. 6 PRECIADO, P. B. (2020) Aprendiendo del virus. In: El Pais. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html 117 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo é ficcionado até ser capaz de dizer 'eu'."7 Desta forma, todo o seu trabalho foi analisar historicamente as técnicas pelas quais o poder gera a vida e a morte das populações. Assim, a tarefa da biopolítica é estabelecer uma relação de poder com o corpo social. A biopolítica está interessada na vida em comunidade. Agora, eu vou falar sobre a contradição da maternidade e a vida acadêmica. Eu engravidei durante o meu mestrado. Eu, com aquele barrigão, indo a todas aulas do mestrado. E como professora de filosofía lecionava para em média uns 150 alunos. Fazia o mestrado, dava aulas, e estava grávida. Não foi fácil. Com quase nenhuma ajuda. Como eu disse antes sobre a minha mãe, ela evidentemente não tinha condições para me ajudar. Eu não tive apoio emocional, quase surtei com tantas responsabilidades. Eu tinha um chefe que não era compreensivo com a maternidade. Uma vez ele me chamou em sua sala para dizer que eu não poderia mais acompanhar a minha filha ao hospital. Eu respondi: ela tem um ano não pode ir sozinha. Depois disso, não quis mais filhos. Apesar de adorar crianças e minha filha pedir uma irmã, não havia mais condições. Ou eu ou a maternidade. Quando começou a pandemia justamente o que pesou para mim foi a maternidade. Porque, naquele momento eu me tornei a professora da minha filha. Ela tinha um volume de exercícios e trabalhos exagerados. Em uma semana a professora enviou 80 ditados do tamanho de um parágrafo e mais todos os outros deveres. Eu como professora exigia que ela cumprisse todas atividades. Até o momento em que ela chorou e disse que não aguentava tantos deveres. Realmente era um volume excessivo e desumano. Algumas famílias entraram em pânico antes do lockdown e pararam de ir a escola. Essas ficaram sem os livros e não poderiam cumprir todos os deveres. Eu pensava nessas famílias como uma maneira de exigir menos da minha filha. A minha rotina ficou muito desorganizada. Começamos a acordar muito tarde. E passava a tarde toda estudando com a minha filha. Com isso, eu não tinha mais tempo para estudar para o doutorado. O doutorado começou a ficar abandonado. Cumpri as disciplinas que já estava inscrita no semestre. As últimas aulas foram online. E mais nada. O resto do tempo estava sendo preenchido com as tarefas domésticas, que ocupavam bastante o meu tempo. Isso gerou muita frustação para mim, porque eu tinha um planejamento e um cronograma a cumprir. Toda a programação foi revogada por motivo de força maior. Eu acredito que a maternidade não deveria ser esse fardo, deveria ser mais leve e mais bem distribuídas as responsabilidades. As mulheres entraram no mercado de trabalho, mas a maternidade não. Para finalizar, sigo em casa com a minha filha. Entre fazer um arroz, colocar uma roupa para lavar, limpar um banheiro, eu leio um livro, vejo um filme e escrevo um texto. Ser cientista e mãe é mesmo um paradoxo. Mas, seguimos em frente com a certeza de que dias melhores virão ou não. Minha filha diz que não quer casar e ter filhos. Eu acredito que ela já percebeu o fardo que é. Não deveria ser, mas ainda é. Eu agradeço a oportunidade dessa chamada pública para mães pesquisadoras, e poder escrever esse texto autobiográfico. Fui me revelando, me confessando, além de me perceber melhor em meio a essas palavras. Colocando a minha história pessoal e comum como fonte de 7 PRECIADO, P. B. (2020) Aprendiendo del virus. In: El Pais. Dsiponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html 118 Maternidades Plurais reflexão. Foi terapêutico e libertador. Eu agradeço a todas as mulheres, que vieram antes de mim, e abriram caminhos para nós trilharmos. 119 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 17 A escrita acadêmica em tempos de pandemia: percursos e percalços Analice de Sousa Gomes1 Ao pensar acerca desse contexto de pandemia causado pela proliferação do vírus Covid-19, vivenciado pelos sujeitos em escalas assustadoras de mortes, contaminação, negligências de diversos setores e até mesmo a afetação de um imaginário que, por vezes, banaliza a gravidade da situação, em minha mente associo tais acontecimentos ao período de violência física e psicológica das guerras e dos governos autoritários, como os domínios militares de manipulação, de assombramento, de mortes e de omissão que marcaram a história das ditaduras em vários países ao redor do mundo. Parto dessa ideia, pois a descrença na ciência e na produção de conhecimento é agravada em tempos conflituosos, principalmente, devido às negociações e aos interesses políticos que envolvem a manutenção da “ordem” social, abalada pela iminência de conflitos que fogem ao controle das instâncias responsáveis. Nesse sentido, o Brasil, que já vem com um histórico de abalos e acirramentos no âmbito político e uma sequência de governos que reforçaram a deterioração da ciência produzida no país, é atingido por uma pandemia em meio aos baixos incentivos financeiros e aos cortes voltados para a produção de conhecimento cientifico em nossas universidades e institutos de pesquisa. Mas qual a relação dessas ideias com a produção da minha tese de doutorado e com o fato de eu ser mãe solo? A resposta é um tanto quanto clara: sem incentivo, inclusive financeiro e, envolta ao desprestígio disseminado no imaginário social de que produzir conhecimento é algo banal e nãotrabalhoso, para manter nossas despesas, minha e do meu filho, tenho uma jornada de trabalho que somam 60h semanais, agravada nesse contexto de pandemia. Sou muito grata ao universo por ter um trabalho, mas não posso romantizar a condição dos pesquisadores em nosso país, sobretudo, das mães. Como resultado do necessário isolamento social, ler para desenvolver as ideias e escrevê-las têm se tornando um caminho árduo e quase impossível de ser percorrido. Estou no segundo ano do processo de doutoramento, estabelecemos prazos, minha orientadora e eu, mas tivemos que reorganizá-los, isso porque as aulas remotas que ministro em duas escolas de Ensino Básico e em uma Instituição de Ensino Superior tomaram grande parte do meio 1 Doutoranda em Literatura pela UFG. Docente Universitária na UNIFaj. Professora da Educação Básica (SLMB/GO). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7064862506013574 120 Maternidades Plurais cotidiano, inclusive pelo atendimento constante aos pais e alunos e o preparo de aulas que envolvem mídias e outros suportes eletrônicos. Além dessa rotina ocasionada pelo home office, os afazeres domésticos que se misturam a ela também têm dificultado o andamento da minha produção. Por exemplo, estar em casa com meu filho, de 16 anos, é muito bom, principalmente porque ele estuda em outra cidade, então temos a oportunidade de estar juntos, no entanto, preciso me desdobrar entre o cumprimento dos deveres como professora, pesquisadora e como mãe. Assim, cumprir horários durante o dia a dia torna-se algo automático, pesado, cansativo e até penoso, para mim e para meu filho: ele está próximo a mim, mas não podemos fazer muita coisa juntos, o pouco tempo que resta, no fim do dia, volto-me para a leitura e para as tentativas de escrita. Relatar as possíveis intempéries de uma rotina de mãe-pesquisadora, nesse período de pandemia e isolamento social, torna-se importante para que as experiências compartilhadas tornem-se um movimento de resistência e reconhecimento de outras realidades igualmente carregadas de responsabilidades. Mas, sobretudo, para que essas vozes escondidas atrás de escritas embasadas, silenciadas pelo dever da produção formal e sob a solidão do isolamento tenham a oportunidade de deixar registrada, também, a sua história, a sua persistência. Apesar de toda essa atmosfera de guerra, do quanto estamos sendo afetados pela conjuntura, pelas ideias do senso comum proliferadas em larga escala, pelo distanciamento e pelas incertezas e temores em relação às nossas vidas, de familiares e de todas as já ceifadas pelo vírus, apesar dos congelamentos salariais dos servidores públicos, ainda assim, produzimos. Os prazos se findam e é com o desenvolvimento da ciência que poderemos ter esperança em uma sociedade menos segregada e com mais condições de existência. Enquanto mãe, é por meio da produção do conhecimento que terei condições de ter melhores oportunidades profissionais e, consequentemente, meu filho, melhores condições de sobrevivência. No momento da escrita desse relato, eu já tinha produzido o primeiro capítulo da minha tese, submetido dois artigos para revistas eletrônicas e, reorganizado um outro artigo, juntamente com minha orientadora, que também é mãe. Parece muita coisa, quando comento com as pessoas ao meu redor que esse é o script de um pesquisador, respondem que para mim: já estou nesse meio, é tudo bem fácil. Mas não. Não é nada fácil. Primeiramente, para conseguir começar o capítulo da tese, precisei escrever na madrugada, durante semanas, enquanto ainda estávamos em período de aulas remotas, minha rotina se dividia da seguinte forma: de segunda à sexta, das 7h30 até às 17h aulas para alunos do Ensino Básico e Superior, no sábado orientações de alunos de TCC e no domingo auxílio ao meu filho com as atividades online da escola dele. Para finalizá-lo, e cumprir o prazo combinado, já em férias escolares, tive que deixar meu filho na casa dos meus pais. Em casa sozinha, emagreci 2 quilos, os afazeres domésticos diminuíram, mas a ansiedade provocada pela necessidade de escrita me fez perder o senso em relação aos horários e quantidades de alimentação durante os dias. No entanto, foi justamente a intensificação do isolamento, agora sem o meu filho, que comecei a ler e não absorver o conteúdo lido, sem concentração e 121 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) sem perceber como me via conectada em redes sociais ou ouvindo músicas, ou concentrada nas vozes e sons externos ao ambiente da casa, ou seja, procrastinando ou paralisada. Retornei para as leituras durante as madrugadas e a escrita durante o dia, com períodos de sono bem curtos, horários desorganizados durante o dia, o cansaço mental se agravava, porém, conforme o prazo, concluí (provisoriamente) o primeiro capítulo. Logo após, viajei para a casa dos meus pais, em uma cidade vizinha a minha, 120 quilômetros de distância; os artigos, já iniciados, terminei em meio a atenção negada aos meus familiares e a presença “distante” entre meu filho. Tenho receio de pensar sobre a qualidade da minha produção, prefiro pensar que apesar de toda essa onda contrária, conseguir dar alguns passos é um modo de me fazer em pé, um modo de mostrar para mim mesma que por mais que eu seja empurrada para desistir, estou ultrapassando as dificuldades e exercendo meu papel de pesquisadora, de produtora de conhecimento. Ainda preciso produzir três outros capítulos, os planejamentos escolares para o semestre 2020/2 começaram, meu filho está em casa novamente, logo as aulas remotas se reiniciarão, como irei ler e/para escrever a tese? Continuarei me desdobrando, me reinventando, motivada pela coragem de estudar e de ser pesquisadora em um país que, quando mais vê-se a necessidade do conhecimento científico, menos valor a ele é destinado. O emocional, a ansiedade e os medos para esses, a terapia terá grande contribuição. Tenho plano de saúde, por ser funcionária pública, mas ele não cobre os custos para o acompanhamento psicológico em cidades do interior, onde moro, dessa forma, se eu quiser ajuda de um profissional, preciso viajar. Mas, e o isolamento social? E a exposição ao contágio do Covid-19? São tantas perguntas, tantas dúvidas, mas uma certeza: concluirei o doutorado, resistirei, certa de que fácil não é. E com o cuidado de não romantizar as cargas advindas do processo, afirmo que embora não seja fácil, é possível e relevante para uma mãe solo, professora e interiorana ser pesquisadora e concluir sua pesquisa. Em relação ao meu filho, não carrego pesos, me desdobro para acompanhá-lo na medida do possível; ele cresceu vendo a mãe trabalhar para cuidar dele. Agora, no período da pandemia, eu poderia sim ser um pouco mais presente, mas a minha pesquisa não nos permite. O tempo passa, os filhos crescem, perdemos oportunidades de estar com eles, sinto por não poder usufruir, no entanto, devido à idade e às boas ideias que compartilhamos enquanto mãe que pesquisa, o ajudei a se desenvolver bem, ele me ajuda e me compreende, sou privilegiada. No entanto, isso não anula a dificuldade intensificada quando uma mulher precisa se dividir entre as múltiplas funções: mãe, professora, provedora do lar e pesquisadora. Essa guerra contra o Covid-19 passará, será vencida, teremos que continuar na luta contra as imposições capitalistas, contra o machismo, contra pautas pseudodemocráticas e contra a ignorância. Para resistir a cada uma dessas lutas, o conhecimento, a pesquisa e a produção cientifica humanizada são alicerces para transformações, sobretudo aquelas perpassadas por experiências de superação, como tem acontecido comigo e com diversas outras mães que se dividem, se multiplicam, abrem mão de si mesmas para contribuir com desenvolvimento do conhecimento no Brasil e no mundo. 122 Maternidades Plurais 18 Como conciliar trabalhos profissionais, domésticos e a maternagem? Sobrevivendo em tempos de pandemia Andréa Lins e Lins Souza1 Quando tomei conhecimento da chamada pública para que mães cientistas/pesquisadoras relatassem sobre suas vivências durante a pandemia fiquei bastante tentada a compartilhar as minhas experiências pessoais com o meu bebê de pouco mais de um ano durante essa fase de isolamento social por causa da pandemia de Covid-19 provocada pelo coronavírus, para que, de uma forma ou de outra, pudesse contribuir com aquelas pessoas que estejam passando por uma situação similar. A seguir, faço um pequeno resumo dessa aventura de uma mãe de primeira viagem e pesquisadora sobrevivendo à pandemia com um bebê de 1 ano. Tudo começou no dia 12 de março de 2020. Nesse dia o meu esposo conseguiu sair cedo do trabalho e foi buscar o bebê na creche às 17h. Eu estava em casa, me sentindo cansada e com dor de cabeça pois havia passado a manhã inteira numa clínica entre consultas e exames para diagnosticar uma sinusite que se alastrava por quase um mês por conta de sintomas não tratados de rinite alérgica. Ao chegar em casa ele falou: “Eu tenho uma notícia ruim para lhe dar!” Curiosa questionei: “Qual?” Ele ponderou: “Quer dizer, não sei se é tão ruim assim...” Nesse momento passaram-se várias coisas pela minha cabeça, menos o que de fato estava prestes a acontecer. Então, ele continuou: “A creche vai parar de funcionar a partir de segunda-feira devido ao coronavírus. E não sabem quando irão retomar as atividades.” Pensei: “E agora? Como vou fazer para trabalhar tendo que cuidar de Henrique?” Para o meu alívio imediato, no mesmo dia recebi um e-mail do trabalho informando que as atividades presenciais estavam suspensas. Daí pensei: "Vou trabalhar de casa, então!” Mal sabia eu o que me esperava e como iria percorrer essa jornada de aventura de uma mãe pesquisadora em confinamento com um bebê. Antes de continuar o relato, vou esclarecer os motivos que me levaram a me tornar mãe “tardiamente”. Durante a minha vida eu sempre coloquei os meus objetivos acadêmicos e profissionais frente ao desejo de ser mãe. Primeiro por morar muito distante dos meus familiares — eu, no Rio de 1 Possui graduação em Matemática pela Universidade Federal Fluminense (2008), mestrado em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2011) e doutorado em Engenharia de Sistemas e Computação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017), ambos na área de Computação Gráfica. Atualmente realiza estágio de pós-doutorado no Departamento de Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na área de Computação Gráfica e Processamento Geométrico. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9105255993189615 123 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Janeiro, e eles, na Bahia — e também porque eu queria muito concretizar o meu desejo de concluir a graduação, o mestrado e o doutorado e, em seguida, ter uma posição estável no mercado de trabalho antes de me tornar mãe. Eu sabia que seria muito difícil realizar tudo isso tendo filhos e sem uma rede de apoio parental. No entanto, durante o doutorado, eu descobri que tinha uma doença autoimune incurável e isso me fez rever um pouco os meus planos. Quando me tornei mãe estava realizando o pós-doutorado, embora ainda não estivesse com uma posição estável no mercado de trabalho, me pareceu ser o melhor momento para que isso se tornasse possível. E hoje, diante dessa pandemia, vejo ainda mais que a minha decisão foi bastante acertada. Quando acabou a minha licença maternidade, a opção mais viável para mim foi contar com os serviços de uma creche para cuidar do meu filho enquanto eu trabalhava. Ele ainda era amamentado com o leite materno e, durante a semana, a alimentação principal (almoço e jantar) era proveniente da creche. Em casa, nos finais de semana, além do aleitamento do bebê, o preparo de toda a alimentação da família ficava sob a minha responsabilidade. A creche era a minha única “rede de apoio”. Se você é uma mãe que, assim como eu, mora longe da família e não tem uma rede de apoio, você vai entender muito bem o que eu estou falando: trabalhar, ir ao mercado, fazer compras e comida, ir ao médico, dentista, fazer exames, etc., enfim, tudo o que eu precisava fazer durante a semana, eu fazia enquanto o meu filho estava na creche. A creche era “a minha luz e a minha salvação”. Entendeu o porquê do meu desespero quando soube que a creche iria fechar? Na nossa casa moramos eu, o meu esposo e o nosso bebê. Eu e o meu esposo, tentamos dividir algumas tarefas domésticas, eu faço as refeições e ele lava a louça, eu planejo as refeições e ele faz as compras, etc. Ele também é um pai ativo e divide os cuidados com o bebê. Nós contávamos com os serviços de uma diarista para auxiliar com a limpeza doméstica. Com o início do isolamento social, não pudemos mais contar com o serviço da diarista, nem com o da creche e o meu esposo continuou indo ao trabalho diariamente como antes, com isso eu fiquei em casa cuidando da casa, do bebê e trabalhando. Os primeiros dias foram bem sofridos e com o passar do tempo eu me vi com uma sobrecarga de afazeres domésticos, maternais e profissionais. Em um dia você tem uma vida relativamente confortável, podendo pagar por serviços de diaristas e creche para amenizar os afazeres domésticos e poder trabalhar, no outro você tem que manter a casa limpa e organizada, lavar e passar roupas de uso pessoal, do bebê, de cama e de banho, fazer comida e alimentar o bebê em horários pré-determinados, amamentá-lo praticamente o tempo todo, pois o mesmo sempre foi amamentado em livre demanda, cuidar da higiene, brincar, enfim, todos os serviços de diversas profissionais (babá, faxineira, arrumadeira, passadeira, cozinheira, recreadora, etc.) recaíram sobre mim, isso sem levar em consideração o meu trabalho de pesquisadora. Pessoas como eu, que gostam de tudo limpo e arrumado, por vontade ou por necessidade, sofrem mais nesses tempos. E eu precisava manter tudo limpo devido à alergia provocada pela poeira de ácaros, para que eu não adoecesse e ficasse ainda mais cansada. Uma outra questão é que, por ser celíaca, preciso seguir uma dieta bastante específica com um cuidado especial no preparo e manipulação dos alimentos, com isso, para garantir a minha saúde, eu acabo tendo que preparar toda a minha comida, o que já é bastante cansativo por si só. O meu esposo passa o dia inteiro fora e retorna por volta das 18h. Embora ele discorde, sob o meu ponto de vista, ele deveria se responsabilizar com os cuidados do nosso filho a partir daí. Esse é 124 Maternidades Plurais o tempo que tenho para tomar banho e me alimentar, para enfim começar o meu "dia de trabalho", até ser interrompida para a mamada noturna antes do bebê adormecer. Talvez eu trabalhe até a próxima vez que ele acordar para mamar, se o cansaço assim permitir. O meu esposo diz que eu ajo como se ele não trabalhasse o dia inteiro e esteja cansado também, e eu digo que ainda tenho que trabalhar, que eu gostaria de estar descansando pois já estou esgotada do dia inteiro, enfim, por diversas vezes pensei em pedir demissão por conta disso, por achar que não estava trabalhando o suficiente. Mas, comecei a ler relatos de outras pessoas e conversar com amigas também mães e pesquisadoras, então vi que o problema não era apenas comigo. Quando eu estava me habituando à nova realidade, no dia 01 de abril, eu recebi a notícia de que a minha bolsa seria suspensa sem previsão de retorno, o que me deixou bastante triste. Por um lado, eu senti um pouco de alívio por não ter que trabalhar e poder me dedicar integralmente aos afazeres domésticos e aos cuidados com o bebê que o momento estava exigindo. Por outro lado, eu sabia que a minha carreira profissional estaria ainda mais estagnada e eu me senti culpada por isso. No dia 22 de abril, o meu supervisor me informou que a minha bolsa não havia sido suspensa e que eu estaria de volta no projeto. Dessa vez, fiquei muito feliz com a notícia. E esse tempo de “descanso” foi muito importante para eu parar de me sentir culpada por algo que não provoquei; para eu entender que muitas pessoas estavam passando por situações igual ou parecidas com a minha e que de uma forma ou de outra elas estavam sofrendo e tentando atravessar esse momento; para tentar relaxar e fazer o que estava ao meu alcance sem me culpar por não estar fazendo o que gostaria e/ou deveria. Ser mãe e cientista em tempos ditos 'normais' já é uma tarefa bastante árdua. Diversos trabalhos mostram o impacto negativo no trabalho das cientistas após tornarem-se mães e como isso não é levado em consideração quando elas estão sendo avaliadas2,3,4. Uma pandemia como a que estamos atravessando devido à Covid-19 pode impactar negativamente a vida de qualquer pessoa e a produção de qualquer cientista, pois não estamos acostumados a lidar com algo invisível e avassalador que nos causa tanto medo5. Mas em se tratando de mães pesquisadoras, esse impacto negativo pode ser ainda maior, pois é sabido que na nossa cultura a maior parte das responsabilidades domésticas, de cuidar, 2 MACHADO, Leticia Santos, et al. Parent in science: The impact of parenthood on the scientific career in Brazil. 2019 IEEE/ACM 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (GE). IEEE, 2019. 3 CECH, Erin A.; Mary Blair-Loy. The changing career trajectories of new parents in STEM. Proceedings of the National Academy of Sciences 116.10 (2019): 4182-4187. SILVA, Fabiane Ferreira da; Paula Regina Costa Ribeiro. Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista" e "ser mulher". Ciência & Educação (Bauru) 20.2 (2014): 449-466. 4 5 ALON, Titan M., et al. The impact of Covid-19 on gender equality. No. w26947. National Bureau of Economic Research, 2020. 125 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) alimentar e educar o filho, recai tão somente sobre a mulher6,7. Isso se agrava ainda mais quando a pesquisadora está no início da carreira8. Muitos profissionais, especialmente as professoras, viram-se de uma hora para outra tendo que adaptar um cômodo da sua casa para transformá-los em salas de aulas remotas, ou salas de reunião, viram o seu volume de trabalho aumentar significativamente, tendo que fazer o trabalho remoto enquanto acompanha os filhos nas atividades, também remotas da escola deles, muitas vezes concomitantemente. Felizmente, ao menos nesse momento, não dou aulas e posso planejar o meu horário de trabalho, na medida do possível, exceto quando tenho reunião ou defesas remotas. Para conseguir entregar trabalhos dentro do prazo, muitas vezes tive que deixar a vaidade de lado para decidir se a prioridade era tomar banho, comer, trabalhar ou dormir (note que não estou falando de cuidar da beleza ou aparência, mencionei apenas os itens essenciais), tive que abdicar de diversas noites de sono para ficar até altas horas e adentrar pela madrugada trabalhando, escrevendo linhas de código e artigo. Não vou dizer que consegui a proeza de escrever todo um artigo durante a pandemia (ou pelo menos até o dia em que escrevi esse texto), o que fiz foi concluir um trabalho que já estava bastante adiantado e o submeti para revisão. No meu grupo de pesquisa, com exceção dos professores, eu sou a única mãe e o meu colega que trabalha diretamente em um projeto comigo é o único pai. Eu fiquei espantada quando vi relatos de pessoas felizes por estarem em casa e como isso possibilitaria um aumento na produtividade e eu imaginava logo “Essa pessoa não tem filhos, ou é homem!”. Mas vi também pessoas que não tinham filhos relatarem o seu sofrimento em não conseguir produzir, seja por estar em casa, seja por estar apavorada e com medo da doença, … enfim, cada uma com o seu motivo. Outros estavam aproveitando a quarentena para ler livros, fazer cursos, ver lives, séries e filmes, etc. Ainda que em meio a tantos afazeres, eu resolvi participar de dois minicursos online, tentei ler alguns livros e assisti algumas lives na minha área de pesquisa. Muitas vezes tentava aproveitar o curto espaço de tempo que me restava em silêncio durante os cochilos diurnos do meu bebê. Não obstante, por diversas vezes, tive a atividade bruscamente interrompida devido ao seu despertar. A quarentena também tem nos proporcionado momentos maravilhosos e acompanhar de perto o crescimento e desenvolvimento do meu filho é a maior delas. Com o tempo fui me adaptando e gostando de ficar em casa com o meu bebê o tempo todo. Pude acompanhar de perto os seus primeiros passos, pois ele começou a andar após o isolamento. Só de lembrar disso fico com os olhos cheio de lágrimas novamente e um enorme sorriso no rosto. Sim, ser mãe é esse turbilhão de emoções! Ele também aprendeu a comer com a própria mão usando os talheres, a correr e jogar bola… E aprendeu a fazer faxina! Sim, agora tenho um parceiro de faxina! Ele gostou tanto que todos os dias quando 6 STANISCUASKI, F., et al. Impact of Covid-19 on academic mothers. Science (New York, NY) 368.6492 (2020): 724. 7 CARMIN, M.; Ribeiro, K. 2020. Por que as mulheres acadêmicas estão produzindo menos durante a quarentena?. SBC Horizontes. ISSN: 2175-9235. Disponível em: http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/05/14/por-que-as-mulheres-academicas-estao-produzindo-menos-durante-a-quarentena?/. Acesso: 25 mai 2020. 8 CARDEL, Michelle I., Natalie Dean, and Diana Montoya-Williams. Preventing a Secondary Epidemic of Lost Early Career Scientists: Effects of Covid-19 Pandemic on Women with Children. Annals of the American Thoracic Society (2020). 126 Maternidades Plurais acorda vai direto para a área de serviço pegar vassoura, aspirador, ..., tudo o que estiver ao alcance. E não adianta reclamar! Um outro aspecto do desenvolvimento está sendo em relação à fala. Eu comprei diversos livros infantis e diariamente temos o momento da leitura. Evito TV e celular, uso apenas para videochamadas para aproximá-lo dos parentes. Eu estou 24h por dia com um bebê em uma fase de desenvolvimento que requer bastante atenção para prevenir acidentes domésticos, inclusive devido às quedas, já que não seria uma boa ideia ter que frequentar a emergência de um hospital em plena pandemia. E por falar em hospital, as três únicas vezes que saímos de casa desde o dia 12/03/2020 até hoje 30/06/2020, data em que escrevi esse relato, foi para tomar vacinas. Estamos cumprindo rigorosamente as regras de isolamento. E uma das formas que encontrei para tentar amenizar os danos que essa pandemia tem causado à saúde, tanto física quanto mental, foi dar uma pausa de uns dez minutinhos antes do banho para ouvir uma música sozinha e tentar fazer alguma atividade física, movimentar o corpo de qualquer jeito ao som da música, sem ser interrompida, sem ouvir nada do mundo lá fora, apenas a música… E isso tem me revigorado. Que me desculpe a ciência! Talvez o mundo perdeu uma cientista mais dedicada e produtiva, no entanto eu tenho vivido momentos felizes inimagináveis anteriormente. Um belo exemplo disso, é a nossa pausa de fim de tarde para apreciar o pôr do sol. Todos os dias às 17h eu e meu filho temos um encontro marcado com esse belo fenômeno da natureza, o qual não tínhamos “tempo” e nem possibilidade de acompanhar, pois na nossa rotina anterior, esse era horário que ele saía da creche, nesse horário eu estava em meio ao engarrafamento rotineiro do trabalho para casa, rezando para não chegar muito atrasada e para conseguir encontrar uma vaga para parar o carro, estava estressada com os motoristas que ficavam atrasando o meu caminho, enfim, estava muito estressada! Agora, estamos eu e ele, apreciando o pôr do sol através da nossa varanda, apreciando os pássaros voando, os carros, motociclistas, ciclistas e pedestres, os trens, o metrô, os helicópteros e aviões, a lua e as estrelas, as pipas e os balões com fogos de artifício (embora soltá-los seja considerado crime ambiental, sempre avistamos um no céu). Sim, nós apreciamos tudo isso da nossa varanda, felizmente temos uma visão privilegiada, o que talvez tenha diminuído o impacto de estar constantemente dentro de casa, pois quando saímos na varanda temos acesso ao mundo lá fora e isso nos distrai bastante. Um outro exemplo, é quando tiramos um tempinho para assistir às lives musicais e shows transmitidos pela internet, dançamos e rimos e nos divertimos bastante. E o que me motiva é isso: ver a felicidade do meu filho! Enfim, como tudo na vida tem seu lado bom e seu lado ruim, atravessar esses tempos difíceis da pandemia também tem sido assim. Para nós, mães e pesquisadoras, o fato de estar com os nossos filhos trabalhando remotamente não é tão ruim, o ruim é não ter alguém que possa nos apoiar o suficiente para que possamos desenvolver as nossas atividades. Para nós mulheres sempre sobra o cuidar do outro, temos que cuidar dos nossos filhos, dos nossos pais, dos nossos parentes, …, temos essa “vocação” e muitas vezes acabamos esquecendo ou postergando o cuidado conosco. Só queríamos um “anjo” que chegasse e dissesse: “Pode deixar, ‘mãe’! Vá descansar! Hoje é por minha conta!” 127 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 19 A ciência da mãe Andréa Souza Pontes Natal 1 No fundo, toda mãe é uma cientista. Já começa ao descobrir a gravidez. Por mais que haja os conteúdos ilimitados sobre a gestação e a criação dos filhos até a vida adulta; por mais que amigos e parentes dividam experiências. É só na prática que se adquire a própria gravidez, a própria gestação, parto e o caminho da educação dos filhos. Por mais que se pesquise, sempre tem algo que não está nos livros. Assim foi receber o diagnóstico de autismo do meu filho, Giovani, hoje com 12 anos. Assim tem sido conciliar os cursos de pós-graduação, os papeis de mãe, esposa, filha, irmã, religiosa. Tudo se mistura, uma coisa influencia a outra. Não há como dissociar o saber e a pesquisa desses outros papeis. Afinal, o que ando pesquisando? Sou aluna de pós-graduação da PUC-RS, no curso sobre Influência Digital: Conteúdo e Estratégia, o que me levou à produção de artigo científico para trabalho de conclusão de curso. Bem no meio de uma pandemia, o tema mudou. Não fosse o coronavírus, muito provavelmente o assunto seria sobre o papel dos influenciadores e a reputação das marcas. Mas tudo mudou. Observando as redes sociais e a polarização que não é de hoje, comecei a me perguntar onde foi que perdemos o entendimento. Por que temos negacionistas em pleno 2020, por exemplo? E as fake news? A minha primeira reação foi de raiva. E comecei a demonstrar isso no que publicava nas redes sociais. Simplesmente eu ficava extremamente incomodada vendo algumas pessoas publicando tamanha quantidade de notícias falsas. E não havia algo embasado. São pessoas com escolaridade acima da média dos brasileiros. Isso me deixava ainda mais intrigada. Após conversar com duas amigas pesquisadoras — uma, Karen Gimenez, jornalista, que cursa mestrado na Unip sobre o terraplanismo; a outra, Fernanda Veneu, amiga de faculdade, jornalista, que há anos estuda sobre divulgação científica — comecei a encontrar algumas considerações e a traçar um caminho. 1 Jornalista. Comunicação Social pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pós-graduação em Educação a Distância, pelo SENAC-RJ. Pós-graduação em Gestão e Marketing pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduanda em Influência Digital e Conteúdo pela PUC-RS. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4753940T2 128 Maternidades Plurais Afinal, não é novidade. Na Idade Média, nobres e burgueses não se entendiam. O primeiro grupo tinha acesso ao conhecimento, o segundo, ao dinheiro. Separaram-se, porque nobres não tinham paciência com burgueses que não entendiam a conversa. Burgueses se ressentiram e criaram os próprios caminhos. Acelerando os fatos históricos, eis que sou convidada a escrever sobre Henfil. Assisto a uma entrevista do além-cartunista à Vox Populi, em 1978. Primeiro, não sabia se ria ou se chorava. Parecia 2020. Segundo, estava lá uma das pistas, que depois seria endossada por uma conversa com a publicitária Nádia Rebouças. A preocupação foi tanta de fugir da ditadura, de redemocratizar, de pensar em quem estava passando fome, que um grupo fora esquecido. Uma minoria silenciosa. E por não fazer barulho suficiente, foi deixada de lado — era uma parte da classe média. Só que, sabidamente, a direita soube dar-lhes voz. E, com o conforto de ouvir o que queriam e precisavam, a minoria ficou barulhenta, com voz amplificada pelas redes sociais. Tudo, então, começou a fazer mais sentido. Mas, para quem achou que o título do meu artigo foi negacionismo, não foi. A ideia inicial foi essa, mas acabei também sendo impactada por outra influência. Toda essa polarização, todos esses robôs disparadores de fake news, uma distribuição gratuita de ódio, tudo isso me levou a outra reflexão: o que podemos fazer? Notei que o que me motivava a analisar negacionistas não era bom. Voltei à Idade Média e pensei em nobres e burgueses afastados, um grupo em cada ponta da mesa. Será que estudar só um lado ajuda? O que será que une esses dois lados extremos? Alguns acontecimentos surgiram para definição do tema. Fui observando a área de Comunicação e como o básico nunca foi tão urgente e necessário. Marcas que apresentavam problemas com seus públicos antes da pandemia estão enfrentando mais problemas. Marcas que não conhecem bem seus públicos escorregaram em campanhas consideradas oportunistas ou inoportunas. Um bom exemplo é uma marca famosa batizando o nome de um produto por uma palavra pejorativa para negros — bem no meio da explosão do debate da questão racial com a morte de George Floyd, nos EUA. O fato é que nunca foi tão relevante saber o que falar. Como a antiga brincadeira telefone sem fio. Você tem duas pessoas, uma de cada lado. É preciso que quem vai transmitir a mensagem saiba exatamente como o outro lado recebe essa transmissão. Qual é o melhor jeito de transmitir, respeitando o melhor jeito que o destinatário recebe a informação. E foi aí que descobri o tema para o artigo: Átila Iamarino. Biólogo, defensor da divulgação científica, muito antes do Covid-19. Ele era a minha resposta, que atendia ao meu propósito, de escrever sobre algo que pode ajudar, fazer a diferença. Assim começou a minha busca por Átila em suas redes sociais. Meu olhar ficou mais atento às entrevistas dele. E foi necessário entender como a divulgação científica chegou até 2020. O mundo azul Nesse meu mundo, tem um garoto que não aceita ser mais criança. Ando pensando em como encará-lo crescido. Para mim — e a torcida das mães do mundo inteiro, com raras exceções — ele 129 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) será sempre um bebê. Talvez a sensação se agrave pro meu lado: meu filho é autista e o desejo de protegê-lo é intenso e genuíno. Não é nada fácil jogá-lo a um mundo que muitas vezes o rejeita. Na lógica científica, terapêutica, é preciso estimular, fomentar a interação com outras pessoas, dar um caminho com organização diária, previsibilidade, agenda. Por sinal, um mundo cheio de pesquisas, correntes, casos e fatos. E que, novamente, entra o que você vive. Por mais que digam e falem, o que vale é o que funciona para o paciente. No caso, o Giovani. E o autismo do Giovani (que é o que eu posso comentar, não me sinto com coragem para falar do autismo em geral) desafia muitas vezes a Ciência. “Seu filho, se vier a falar, não se empolgue — será apenas repetição de palavras”, disse-me a neuropediatra que confirmou o diagnóstico do Giovani, há nove anos. Se eu realmente tivesse ouvido essa médica, teria me conformado e não ido além disso com o meu marido. Mas esquecemos o que ouvimos e buscamos entre os mais variados conceitos e tratamentos o que fazia bem pra ele. Demos sorte. Primeiro, estamos em São Paulo, capital econômica do País. É de chorar ouvir relatos de mães que simplesmente não contam com estrutura para tratarem os filhos em outras regiões. Segundo, podemos garantir, com muito sacrifício, que ele tenha acesso a tratamentos que planos de saúde não cobrem. São Paulo não é exceção pra desigualdade. Mesmo com os melhores recursos, nem todos têm acesso a eles. Nunca vou me esquecer quando meu marido foi visitar uma escola recomendadíssima para autistas. Meio período, sem extras (alimentação, transporte), custava R$ 2.800,00 em 2012. É só fazer as contas. Ao ver a reação do meu marido ouvindo o preço, a pessoa que fazia o tour pela tal escola lhe disse: “pegue esse cartão do advogado, é possível conseguir bolsa por liminar”. Esse é só um pedaço minúsculo do que pais de pessoas com deficiência enfrentam. Terceiro. Sempre encontramos mais pessoas para ajudar do que para estragar tudo. Enquanto havia um neuropediatra nem olhando para você e dizendo: “é, o seu filho é autista, só preciso de uns exames para confirmar”, tinha uma fonoaudióloga, Cida Bessa, que nos guiou com muito amor e gentileza até chegarmos ao diagnóstico. E houve uma colega de trabalho, Erika Souza, que comentou que havia um núcleo perto de onde eu morava, que trabalhava com autistas. Assim, encontramos o Núcleo Mosaico, que funciona na Vila Sônia, zona sul de São Paulo. Fora do plano, mas a preço acessível. Pesava no orçamento, mas a evolução sem garantias científicas do Giovani era o mais importante. A primeira recomendação foi: “deixe ele correr”. Sério? Sério. E foi correndo atrás dele que aprendemos que correr era o jeito de ele conhecer o mundo. E foi uma hora percebendo que tinha alguém atrás dele, que ele, Giovani, afinal saiu do seu mundo e virou-se para trás. Era um dos primeiros gols. Vieram outros. Saiu da fralda e começou a falar aos 4 anos e meio. Foi alfabetizado aos 8 anos de idade. Contrariou as expectativas. Houve muito suor, muita luta. Houve dor. A mais recente, em uma escola particular, em que descobrimos que o Giovani era rejeitado pelo professor e alguns colegas o irritavam propositalmente para ele entrar em crise. Algumas outras igualmente marcantes: ver seu filho chorar por horas porque uma criança disse a ele que ele não podia brincar com ela. Ver as pessoas te olhando porque seu filho não fica quieto — como se você fosse a mãe que não sabe educar. 130 Maternidades Plurais Nem sempre houve Ciência para lidar com tudo isso. Mas, houve caminhos. Houve amor, houve empatia, houve gente da Ciência apaixonada pelo que faz. Esse mundo azul ainda vai me levar a alguma coisa. É engraçado, porque nem sempre consegui ser tão ativista quanto gostaria. Mas as teias se formam e o Universo conspira a favor. Esse artigo é um bom presente para falar do autismo. Os outros papeis Quando comecei a pós-graduação, eu procurava aprimorar conhecimento. Já havia cursado uma sobre Educação a Distância, anteriormente. A primeira foi presencial, sobre Marketing. Tentei um terceiro curso, sobre Comportamento do Consumidor, em sistema EAD. Não funcionou, não consegui me entender com a plataforma. E aí veio o curso de influência digital. É incrível como a gente se torna várias pessoas ao longo do curso: a que não tem tempo para nada e a pós-graduação não fica no plano que gostaríamos; depois, vem uma autoanálise — depois dos 40, não dá para bancar estudante amador e fazer por fazer; felizmente, estou na fase beneficiada pela pandemia em certo ponto — desde o tema até uma forma de fazer — em casa, em outro ambiente do que há um ano poderia ser. As horas ficaram mais amplas profissionalmente. Mais lives e cursos apareceram. E eu consegui me meter em outro curso — Pandemia e Periferia, pela Rede Emancipa. O que impactou a forma de pensar na pesquisa e a confirmar o caminho — o jeito simples, claro e objetivo de Átila Iamarino ao falar com a sociedade, uma das razões que o levou a mais de um milhão de seguidores no Youtube, quase um milhão (até a data que esse artigo é escrito, 10 de julho de 2020) no Instagram. Átila virou guru e a frase “não saio de casa até o Átila mandar” ganhou as redes sociais. Há de se lidar ainda com a casa, com o marido, com a família e com a religião — que envolve cuidar de outras pessoas. Há de se lidar com a rotina profissional. E tudo isso influencia a pesquisa. Ah, influencia. O que eu concluí da pesquisa? Átila Iamarino não faz publicidade. Lucra com os ativos do próprio canal digital. O máximo que pude observar foram os anúncios que pulam durante as apresentações gravadas no Youtube. A parceria que identifiquei foi de ordem científica — Instituto Serrapilheira, justamente voltado ao incentivo da pesquisa científica. Átila é mais ele mesmo no Twitter. Coisa que ele confessou à Cecília Dassi, em um dos episódios do Youtube, que relatou em ingressar nesta rede. Afinal, quando o dia termina, você foi saraivado por todos os problemas possíveis factuais do noticiário e fica com a sensação de que não fez muito para resolvê-los. A divulgação científica vem com altos e baixos no Brasil. Meio que formalmente apresentada pela Corte Portuguesa, em 1808, não havia muito a se contar antes. Pouca gente letrada. À medida 131 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que filhos de aristocratas voltavam dos estudos da Europa, os conhecimentos científicos foram incentivados. No início do século XIX, Vital Brazil se destacou buscando o soro antiofídico e nascendo, a partir daí, o Instituto Butantan; já na Fazenda Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro, a Fiocruz começava a sua história. José Reis deu um salto à divulgação científica entre 1948 e 1958. E, só na década de 70 — quase 200 anos depois da família real portuguesa desembarcar no Rio de Janeiro — foi que Ciência virou editoria nos principais jornais do País. Átila vem para mostrar o básico da Comunicação. A exemplo do telefone sem fio, Átila conhece bem o destinatário, descomplica o técnico e atrai crianças, jovens e adultos a entender sobre Ciência. Algo que provavelmente veio para ficar e deve (torcida) chamar a atenção de pesquisadores, educadores e da imprensa. O que eu penso disso tudo? Muitas vezes, não percebemos os múltiplos significados de algo. Eu poderia isolar a pós-graduação e o trabalho de final de curso e ser mais uma das várias tarefas que desempenho. Talvez, sem a pandemia, eu caísse nessa armadilha. Mas, graças ao ficar em casa e ter que lidar mais intensamente com filho, trabalho, casamento e a limpeza da casa, o artigo científico ficou mais denso. Saber que por meio de um trabalho acadêmico é possível responder a uma inquietação interna sobre negacionismo, fake news e intolerância política e racial senti que há um papel sendo bem cumprido. E essa satisfação me faz ser uma mãe melhor, uma esposa melhor, uma irmã mais ouvinte, uma filha mais compreensiva, uma madrinha que quer mais contato. Quando algo faz sentido, é porque as coisas se tornaram mais claras. Tudo com simplicidade. “Nossa, era isso.” As dúvidas que tivemos nos deixa questionamentos. Como cheguei a ter essas dúvidas, era tão simples de traçar um caminho, sossegar a angústia pelo noticiário, dar uma tratativa e um direcionamento — que, espero — possa ajudar muita gente. Nem sempre os pratinhos ficam em pé. É muita informação no mesmo dia. É o filho que precisa ir ao dentista e você torce para que ele arranque o dente numa boa. O marido fica abalado com a reação à anestesia, você precisa ser forte. No minuto seguinte, você pensa no que vai cozinhar e resolve o delivery que não chegou. Na sequência, tem um texto do trabalho; à noite, um curso por Google meet. E, no meio disso, mais uma revisão do artigo. São muitos papeis e a pesquisa está no meio disso tudo. O que torna o caminho mais bacana é quando você consegue aprender um pouco de cada acontecimento. As peças se conectam mais facilmente. Essa comunicação é facilitadora para várias coisas. Para estabelecer uma rotina melhor, mais eficiente, para não se culpar quando um pratinho quebra. Para fazer mais e melhor. Valeu à pena escrever o artigo acadêmico. Valeu à pena escrever este artigo. E vai valer à pena estar conectada para outros caminhos. 132 Maternidades Plurais 20 À deriva, sem sair do lugar Andréia Regina de Oliveira Camargo1 Como ser mãe, mulher, militante, amiga, tia, irmã, esposa, filha, dona de casa, sobrinha, pesquisadora, trabalhadora remota... em meio a pandemia? A alusão ao mar, talvez seja a melhor alternativa. Cotidianamente me sinto, afundando no oceano da vida. Parece que cada frente que atuo, cresce como uma onda a cada dia, as vezes consigo pular, mas na maioria das vezes sou arrastada ou engolida. A permanência diária em frente as telas, é uma tremenda agonia, sinto como se tivesse areia nos olhos ao final do dia. As vezes sinto que estamos no mesmo barco, lutando para salvar vidas, mas quando vejo os noticiários, dói ver os corpos boiando e muita gente à deriva. Os dias passam e não paro de nadar, mas a sensação mais latente é que não saio nunca do lugar. Nas águas cristalinas, consigo visualizar novos horizontes, o por do sol e possíveis alternativas. Mas logo uma onda me interpela, engulo areia e tudo se desestabiliza. Em águas turvas me sinto insegura, buscando saídas, mas quase sempre não enxergo solução, para a humanidade esvaída. A água refresca, limpa, molha, floresce vidas, mas se imersas estamos, ela pode nos tirar o ar e deixar-nos sem saída. 1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Doutora em educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, Rio Claro. Pósdoutoranda na UFSCar campus Sorocaba. Professora EBTT no Núcleo de Educação Infantil NEI Paulistinha, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pesquisadora do Grupo de pesquisa "IMAGO: Laboratório da Imagem, Experiência e Cri@ção" - UNESP/Rio Claro e do "CRIEI - Grupo de pesquisas a respeito das crianças, educação infantil e estudos da infância", da UFScar campus Sorocaba. Coordenadora local do Núcleo de Educação e Estudos da Infância, da UFSCar campus Sorocaba. Membro do Fórum de Educação Infantil de Sorocaba e região. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0936098182171676 133 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Muitas vezes me sinto sem ar, imersa nas demandas remotas da pandemia advindas. Sem conseguir respirar, mas sempre buscando um colete salva-vidas. Constantemente busco forças na energia das marés, ou procuro me contagiar com a beleza dos seres que o mar habita. Bernardo é um pequeno peixinho que nos convida a enxergar a beleza nas coisas mais simples da vida. Os cachinhos de Bernardo nos remetem as algas marinhas, movimentando-se aleatoriamente no fundo do mar, em uma bela e acolhedora sinfonia. O pequeno peixinho não compreende, o que é uma pandemia, mas seus gestos quase sempre refletem nas águas, suas sensações e agonias. Os outros peixes que estão comigo a nadar, Gá, Lê e Léo, cada um em seu tempo e melodia, me mostram as belezas do mar e me acolhem nos momentos de agonia. Ser peixe-mulher na imensidão do mar, tem muitos desafios que me mobiliza, as tormentas que temos que enfrentar, nos une e nos fortalece todos os dias. Estar envolta de outros seres, não garante companhia. Me sinto a deriva no mar, isolada e sozinha, parecendo não sair do lugar em busca de algo que me anima. Me dizem para reinventar, encontrar novas formas e saídas, mas como posso recriar algo, que é inédito às nossas vidas? Como amar sem tocar? 134 Maternidades Plurais Como compartilhar sem interagir? Como navegar sem saber para onde ir? Meus privilégios me distanciam, das agruras das demais vidas. Me sinto um peixe fora d’água, diante de tanta atrocidade e vidas esvaindo a cada dia. Me falta ar, me falta forças para navegar... Como o menino de Galeano2, preciso de ajuda para enxergar, o que a imensidão do oceano, tem sempre a nos mostrar. Por favor, me ensinem a olhar, as belezas obscuras do mar... Em meio a dor, doença e o caos estabelecido, me debato e vou ao embate, dos discursos reproduzidos. A maresia me inebria, me provoca a desocultar, o que muitos buscam esconder ou tentam não enxergar. Cardumes morrem ao mar, sozinhos todos os dias. Como não se colocar no lugar dos que partem e dos que ficam à deriva? Isolados em suas ilhas alguns podem estar, nessa desigualdade desmascarada e acirrada a cada dia, mas juntos precisamos estar, para lutar pelas minorias. Tem quem diz que o vírus nos iguala, pois a todos contamina. Me desculpa pescador do mar, essa isca não me acirra. Peixe grande protegido está, e tem crédito e muitas regalias. Peixe pequeno é jogado a sorte no mar, se debatendo e lutando pela alforria. Conversa de pescador não me engana, não estamos juntos nessa jazida. Quantas vidas mais teremos que enterrar, para garantir o direito à vida? O silêncio ensurdecedor das águas, me atormenta a todo momento. Busco os silenciados escutar, na tentativa de lhes dar alento. Me debatendo imersa na água, me impulsiono a todo momento. Tento emergir das profundezas do mar, mas sem folego esmaeço. Como nadar sem afundar? Como boiar sem adormecer? Como mergulhar sem o fundo enxergar? Como ancorar sem adoecer? 2 A função da arte/1, p.15. In: GALEANO, Eduardo. O Livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2014. Fotografias: Andréia R. O. Camargo; 1- “As ondulações de Bernardo”. 2- “Barquinho dobrado”. 3- “Emaranhados”. 4- “Azulando”. 135 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Náusea, ânsia, azia, constipação... as águas salgadas me balançam e provocam indigestão. Indigesta pelos que ficam e banalizam os que vão, em vão. Estar em alto mar, nos tira a firmeza e a segurança do solo, do chão, desestabiliza nossas certezas e nos convida a imersão. Imersa em mim estou, (re)conhecendo dores internas e buscando saídas. Não é fácil lidar com os monstros do mar, imagina encarar seus medos internos e feridas? Se eu fosse uma sereia, nesse mar à deriva, buscaria ao menos encantar, os que naufragaram, malograram, e se veem sem saída. Ou como um pirata invadiria, as embarcações imponentes, lutando para dividir as iguarias, que só alimenta pouca gente. Mas um peixinho pequeno como eu, fico me debatendo nas redes, presa sinto-me no turbilhão do mar e enfraquecida de corpo e mente. De longe avisto a luz do farol, viva, forte, intensa e potente. Busco por ela em alto mar, mas muitas vezes me sinto impotente. 136 Maternidades Plurais Nado, nado, sem cessar, pois não desisto, sou veemente. Jamais desistirei de lutar, sou aguerrida e preeminente. Terra a vista, vamos ancorar, mais fortes, mais unidos, mais próximos e preocupados com a gente da gente... Será? O que esperar da humanidade esvaída? Como suportar as vidas perdidas? Como aprender com as dores da vida? Como ancorar sem avistar o horizonte proeminente? Como não ser isca no anzol do capitalismo desenfreante? Como abolir a necropolítica dominante? Como manter a sanidade nesse mundo doente? Como ser humano sem deixar que outro humano atropele a gente? A pandemia sempre esteve presente, no vírus, nos poderes, nas relações, mentes e ações incoerentes. Que desumaniza o humano e nos torna mesquinhos e prepotentes. Não adianta vacina, cura ou coisa do gênero, se continuarmos colocando acima da vida, os interesses financeiros. 137 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Espero sinceramente, que o isolamento ou não, presente ou remotamente, nos ensinem a ser mais humanos e humanas, neste mundo potente. Mundo que nos coloca, a todo tempo em movimentos, e nos convida constantemente, a pensar os possíveis (re)começos... nado... nado... nado... ainda à deriva... mas sempre a esperançar... novas experiências e formas de viver a vida... 138 Maternidades Plurais 21 Do caos à luta: solidariedades possíveis para o presente em três atos Andreia Souto-Marchand1 Elisandra Galvão2 Morgana Carrolo Fernandes3 Primeiro ato: Andreia entra na sala Após dois anos e sete meses, da minha saída do país, ocasionada pela transferência do meu marido do Brasil para os Estados Unidos (EUA), eu estava finalmente pronta para retomar minha vida profissional, quando entramos em estado de pandemia mundial causada pela Covid-19. Eu iria começar no dia 16 de março/2020, um Internship que estava sendo negociado há seis meses, mas no dia 12 de março foi decretado lockdown na cidade de Houston onde moramos. O contrato foi suspenso e após alguns meses foi cancelado. Sim, eu estou desempregada e sem grupo de trabalho oficial. Defendi a tese de doutoramento no Programa de Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, em agosto de 2017, às pressas, pois estava com a passagem marcada para mudar de pais e não sabia quando poderia voltar para defender se fosse o caso, mas jamais considerei esta possibilidade de defesa tardia. O preço que paguei pela pressa foi só ter conseguido entregar a tese revisada dois anos depois da defesa, acontece até nas melhores famílias. 1 PhD in Tropical Medicine. Colaboradora no Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, Participa da Coordenação do PUB Houston (grupo de Pesquisadores e Universitários Brasileiros em Houston/Texas/USA), Idealizadora e atual Coordenadora Geral do Coletivo de Mães Cientistas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7188660639895642 e ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0086-7849 2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Atualmente faz parte do Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz Mata Atlântica, da Fundação Oswaldo Cruz. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0221869154251727 3 Pós-Doutoranda em Saúde da Criança pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora Colaboradora da Residência Multiprofissional em Saúde da Criança e Pesquisadora Associada do Programa de Extensão e Pesquisa em Saúde Urbana, Ambiente e Desigualdades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7890106575135063) 139 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A mudança e a adaptação familiar foram muito complicadas. Levamos cerca de um ano e oito meses para conseguir estabilizar nosso filho e possibilitar uma boa adaptação a ele. Foram meses difíceis, ansiedade e insegurança de todos os únicos três membros do nosso núcleo familiar, e para completar nosso filho foi diagnosticado com TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Chegamos em Houston no dia zero do furacão Harvey, que atingiu a cidade e devastou grande parte da área costeira dos EUA. Nesta mudança, meu filho perdeu todas as referências e ganhou um mundo com uma língua desconhecida, viu muita água e destruição causada por um furacão em sua chegada, assistiu meu desespero diante de uma casa vazia e mercados fechados com uma criança pequena e uma sirene de perigo da barreira que estava rompendo e que tocava dia e noite... E assim começaram as crises de gritaria e choro constante e que pioravam quando via chuva. Quase cheguei a desistir de tudo e fugir “pra um silêncio que fosse só meu”. Dias e noites atribulados demais para explicar escrevendo enquanto choro aqui... respira que não pirei. Vou continuar minha história. Quando conseguimos ajuda profissional e acolhimento familiar nossa vida mudou completamente, pois, finalmente, começamos a entender que era não birra, mas um distúrbio que ninguém tinha culpa. No entanto, os sintomas de uma ansiedade foram acelerados pelo trauma que sofreu na chegada, e pela primeira vez, em vários anos, entendemos a inquietação e a energia em excesso, e as noites que nunca foram completas. Foi libertador e assustador perceber que eu não poderia retirar este “defeito” dele, e que a vida poderia ser bem difícil, e tudo mais que uma mãe pensa nestas horas... Mas, finalmente passados muitos meses, meu filhote estava feliz em sua nova escola e cercado de novos amigos. A rotina diária se tornou uma aliada ao tratamento familiar para criar uma segurança no cotidiano do pequeno, e assim garantir que as questões mais simples não se tornassem um sofrimento para todos. Mas chegou a pandemia de Covid-19. Então, entramos também no sistema de “homeschool”, e novamente houve uma mudança brusca em tudo o que ele conhecia e que lhe dava a segurança. E regredimos alguns meses no comportamento dele. O tratamento adequado e a adaptação dele na rotina escolar era o que estava garantindo o meu retorno ao mundo profissional, mas diante deste novo quadro tudo deve ser avaliado diante de um novo cotidiano. Neste momento, estamos vivendo um dia de cada vez, da maneira que dá e como conseguimos. O mais importante é manter a alimentação saudável e em ordem. Eu e meu marido alternamos a atenção exigida em 100% do tempo em que nosso filho está acordado, pois ele tem energia demais e não para um segundo. Também temos alternado todos os afazeres e necessidades da casa e da vida. Ou seja, estamos os dois esgotados e sem nenhuma rede de apoio ou familiar por perto, para poder dormir, ao menos uma vez na semana, mais de quatro horas por noite. Isto faz diferença demais em uma vida saudável. Nas primeiras semanas da pandemia, elaboramos planos para acompanhar as atividades escolares de nosso filho, quadros com atividades extras, agendas compartilhadas para que pudéssemos dar suporte um ao outro durante home office, tabelas com os afazeres domésticos e até menu elaborado para manter uma nutrição de qualidade. No primeiro mês, tudo já estava furado e os dois exaustos! A família virou uma loucura total. Nada mais fazia sentido! A criança não se adaptou às aulas virtuais, tinha crises, pois queria quebrar o tablet e ficava se batendo ou arrancando os cabelos. Um horror! Eu só queria chorar dia e noite. O marido estava sendo sugado pela empresa, com prazos surreais e 140 Maternidades Plurais demandas sem nexo, a cada minuto a chefia dele mudava os pedidos e obrigações, ele estava trabalhando mais do que antes e sem horário para terminar os dias. A vida estava uma loucura completa aqui em casa. Até que todo mundo surtou, e foi o ponto de alerta para a gente. Porque depois deste episódio, tivemos a certeza que era preciso flexibilizar as regras que havíamos criado para a nossa rotina familiar, precisávamos deixar a vida mais leve durante o período pandêmico. E assim, ainda estamos buscando ficar mais leves. Mas tá pesado pra conseguir! Em maio, depois de mais um dia de correria, decidi entrar em alguns grupos de pesquisadores do Facebook, quando me deparei com uma imensidão de posts de mães que eram pesquisadoras desabafando sobre a impossibilidade de dar conta da escrita do artigo ou tese diante da situação que estavam vivendo. Muitas faziam relatos que pareciam sair de mim, angústias que me eram íntimas também, problemas e dores que eu sentia, a solidão de todo este processo, e até o horário da madrugada como única possibilidade para trabalhar na escrita de nossos textos e buscar no apoio da internet um jeito de desabafar com seus pares. Amanheci o dia lendo, chorando, rindo, interagindo, confortando e avaliando a situação. Há anos atrás, estive em uma situação de isolamento técnico e científico no qual não houve o acolhimento real no grupo de trabalho para o qual eu fui inserida. Fiquei completamente subutilizada e em uma adaptação eterna. Isto me gerou traumas profundos, que ainda estão em tratamento. Mas também me permitiu decidir que jamais passaria por aquela situação novamente, mas nunca imaginei que viveria uma pandemia e que todas as minhas crenças fossem postas em xeque tão brutalmente. Foi quando percebi que era hora de colocar em prática meu sonho de ‘impulsionar a constituição de grupos transdisciplinares’ diante da emergente situação pandêmica que todas estas mães cientistas estavam mergulhadas. A liga teria quer ser baseada na empatia materna para que cada mãe pudesse ajudar a outra mãe cientista e, assim, conseguiríamos juntas ter ao menos uma produção durante o período da pandemia. Foi assim que surgiu o “Coletivo de Mães Cientistas” para que eu me desse também a oportunidade de atuar no apoio a outras pessoas que estão na mesma situação que eu. O objetivo final é obter uma publicação com diversos artigos científicos coletivos e transdisciplinares, escritos por mães que estavam se sentindo sem apoio e sem motivação para produzir sozinhas. Mas o desafio era grande demais para uma sonhadora sozinha. E eu precisava compartilhar a responsabilidade com mais pessoas. Primeiro, liguei para uma amiga-irmã que já me atura há 20 anos, Elis, pois se ela não topasse me ajudar nesta ideia, o movimento teria parado na primeira semana. Era importante pra mim, estar ao lado de pessoas que confio e que pudessem escrever esta página comigo. Em seguida, pedi apoio entre as muitas inscritas para serem autoras da obra, pois desejava ter mais mãos para segurar o peso de um trabalho ‘Coletivo’ junto conosco, então Morgana se ofereceu. Foi um presente a oferta! Formamos um trio de coordenação geral impressionante, com uma sintonia que sempre desejei em um Grupo de Pesquisa para chamar de meu. Este é somente o primeiro passo para uma grande jornada. Segundo ato: Elisandra entra em cena 141 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Estava imersa numa das fases duras de quarentena, quando o Brasil ultrapassou os 30 mil mortos pela Covid-19, quando recebi o convite de Andreia Souto-Marchand, uma das minhas primeiras amigas de trabalho na Fiocruz, quando éramos recém formadas e bolsistas de aperfeiçoamento profissional, para participar de um coletivo mulheres, mães e cientistas e organizar um livro baseado na empatia, no diálogo e que pudesse estabelecer laços de solidariedade entre mulheres pesquisadoras e mães que nunca se encontraram pessoalmente e que enfrentavam diferentes dificuldades em suas casas e trabalhos. De início fiquei relutante por não ter filhos, pois o projeto foi pensando para juntar, principalmente, mães cientistas. Mas como sempre estive envolvida com as mobilizações e lutas feministas, dentro e fora da universidade, compreendi que seria a possibilidade de apoiar e conhecer outras mulheres cujas jornadas em casa se tornaram mais longas, estressantes, exaustivas e colapsadas pela perda de fronteiras entre o espaço do lar e o do trabalho formal — para as que têm emprego. Estes são problemas enfrentados por todas nós, mas, certamente, para as que são mães é muito mais complexo. Entre os momentos de angústia e ansiedade gerados pelas tarefas do dia a dia, pois ficamos muito mais tempo online e com as atividades fragmentadas entre uma multiplicidade de tarefas. O que se tornou mais evidente depois do segundo mês de quarentena, quando muitas de nós percebemos que o fato de estarmos em casa não significava que teríamos mais tempo para ler os livros que gostamos, ver todos os filmes que perdemos e passar mais tempo com a família. O trabalho veio para dentro de casa, vinte e quatro horas, sete dias por semana. Estar em casa para mim não significou ter mais tempo para curtir a família e no caso de minhas amigas mães tampouco. Por outro lado, nos primeiros meses da pandemia, pude aprender que, embora o trabalho esteja colonizando nossas casas e sendo catastrófico para os momentos de descanso, é possível sim consumir menos, esquecer dos centros comerciais devoradores de tempo e que a compra mais vital para cada um de nós é a de alimentos. Também compreendi que a solidariedade é fundamental para encarar os desafios e um cenário político, econômico, social e sanitário que nos amedronta e nos adoece de diversas formas. A ameaça a nossas vidas não é apenas o vírus. É preciso reconquistar e reconstruir a ideia de espaço público, instituições públicas, bens comuns e formas diversas de solidariedade. Esta é a minha ideia de ação e das mulheres que encontrei em projetos coletivos de elaboração de livros onde tenham lugar de fala e de diálogo. O ingresso nesses projetos foi um passo que me tirou do isolamento, me fez conhecer Morgana e outras pesquisadoras que Andreia conseguiu reunir, e permitiu pensar nos textos que escreveria como obra intelectual não como um produto, pois se todas os nossos materiais intelectuais forem encarados e chamados de produtos o que teremos como resultado dos nossos esforços e suor de trabalho serão apenas mercadorias. Um dos maiores problemas nessa quarentena para mim veio com a perda da sociabilidade com parte dos meus familiares, medo por minha mãe fazer parte do grupo de risco e eu não poder visitála, pois ela mora em Natal, eu, no Rio de Janeiro. Além do medo de sair para comprar alimentos, entrar em supermercados e estar exposta à rua nestas breves saídas. Encontrar essas mães cientistas online me fez não sucumbir ao medo, ao isolamento e atravessar os momentos de ânsia e exaustão causados pela crise pandêmica e as demais crises contínuas que tomam as entranhas do país e comprometem as instituições que deveriam nos amparar. 142 Maternidades Plurais Nesse tempo também pude refletir que precisamos de apoio para conviver com os paradoxos da academia que foi tomada pelo produtivismo sem limites, pouco espaço para a crítica sobre esse modo de fazer ciência e para construção coletiva de outra realidade universitária, ou seja, mais saudável para todxs, tanto para os jovens estudantes como para os pesquisadores experientes. Quem ganha com tantos artigos que não podem ser lidos nem pelos próprios pares porque estão também sobrecarregados de trabalho com a escrita dos seus próprios textos? Esse constante desassossego e estresse relacionado à produção acadêmica também ganhou nova dimensão durante a quarentena, novas explosões de bloqueios intelectuais foram desencadeadas pela tensão diária e condições do confinamento em casa; pelo desencadeamento de mais conflitos com os familiares, por estarem todos juntos todo o tempo e sem privacidade, e com os colegas de trabalho, devido ao teletrabalho; da leitura das notícias diárias, do home office 24/24, sete dias na semana. O tempo da jornada online parece não ter fim. Temos mais ausências de repouso. Os adoecimentos neuronais descritos por Byung-Chul Han, na Sociedade do Cansaço, possivelmente se acentuaram durante a pandemia. E eles fazem parte das enfermidades do século XXI. O elemento novo é que parece que entramos numa época viral, o que não aparentava ser crível no momento em que ByungChul Han escreveu seu ensaio. Terceiro ato: Morgana se junta à trupe Relatar minha experiência durante o isolamento domiciliar perpassa todas as esferas da minha vida, sobretudo quem sou, como me entendo no mundo e os laços de relacionamento que construo. Inicio retrospectivamente, ainda no ano anterior, para explicar como cheguei até aqui no contexto profissional e sobretudo pessoal, com a capacidade de olhar em volta, respeitar meu corpo, mente, me cuidar, me amar, eu estava nesse caminho. Durante 2019, eu vivi a flor da pele o sentimento de sobrecarga ocupacional, exerci a gestão junto com a docência em uma universidade privada e tentei “dar conta de tudo”, alicerçada na premissa de que caso o contrário o sistema me engoliria e, dessa forma, peregrinei como um carro desgovernado, ladeira abaixo, constantemente angustiada por não dar conta de tudo. Ansiedade é estar com o corpo num lugar e a mente em outro, o tempo todo! Na terapia, dia após dia, fui encontrando meu caminho de volta, questionado a motivação para fazer tanta coisa. A vida movida pelo “tenho que” fica pesada demais, rasa, constantemente para além do esgotamento. Conversar sobre tudo isso foi me tirando a pressão e me trazendo de volta ao eixo. Terminei o ano, me conhecendo melhor, me aceitando mais. Sem dúvida, sem me encaixar mais na cultura da instituição ao qual estava vinculada. Em janeiro desse ano, fui desligada após três anos e meio de vínculo. Não posso me intitular vítima do desemprego resultante da pandemia, vivenciá-lo já fazia parte do meu dia a dia. Em transição financeira, encaminhando o seguro desemprego, participando de um concurso público que me traria estabilidade profissional, fui impactada com as primeiras notícias de um surto viral na Ásia que em março seria decretado uma pandemia pela Organização Mundial da 143 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Saúde. Em um primeiro momento estar em casa, isolada em minha “bolha social” pareceu-me uma jornada pouco turbulenta. Meu planejamento foi organização das aulas online do meu filho e manutenção das minhas articulações profissionais e de pesquisa para aprofundamento nos estudos do meu campo de atuação. Que ironia! Com vergonha, talvez, assumo esse pensamento longínquo. O tempo foi passando, a mídia externando o que estava acontecendo “lá fora”, a curva epidemiológica aumentando, as fake news se disseminando como pólvora e a minha bolha social estourou. Não consegui mais ouvir sentada que tudo iria passar, que precisaríamos ter calma pois estamos no mesmo barco, e que o pensamento positivo deve ser a base para que tudo dê certo. Sou sanitarista, estudo desigualdades sociais, luta LGBTQIA+, racismo, necropolítica, feminismo, violência de gênero, não poderia mais fechar os olhos, não é o mundo que eu quero para os meus, no sentido humano, no sentido de resgate. Resolvi retornar ao trabalho de campo em um hospital de periferia onde iniciei minha carreira profissional, local pelo qual guardo muito carinho. O bairro é um dos maiores da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, a 22km do centro, formado majoritariamente por conjuntos habitacionais erguidos para abrigar aqueles que o poder público não queria que estivessem no centro da cidade. Minha inserção foi como pesquisadora de campo, em um estudo epidemiológico sobre a prevalência da Covid-19 e outros vírus respiratórios. Vivenciar os desafios enfrentados pelos profissionais da saúde e pessoas que buscam atendimento diariamente me faz refletir as diferenças econômicas, culturais e sociais como um soco no estômago. Essa é minha sensação diariamente! Não são dados, análise de gráficos, mesas redondas entre pesquisadores tampouco um congresso, é o relato do seu João emocionado pelo excelente atendimento que lhe prestei, sendo o mínimo que qualquer ser humano deveria oferecer a ele, afinal somos humanos atendendo humanos. É a Joana me explicando que talvez o Matheus não tenha Covid-19 e sim pneumonia porque, com a chuva da semana passada, o colchão que eles dormem molhou muito e está difícil secar. O pulmãozinho dele fica afetado, sabe enfermeira? É o desabafo da Maria sobre os possíveis maus tratos que sua mãe sofre em casa pela sua irmã e eu, ao sugerir em talvez levá-la para sua casa, ouvir como resposta que ela mora na rua, próximo ao hospital. É o seu José, de 75 anos, receber o diagnóstico de coronavírus e perguntar como ficará sem fazer seus fretes para sustentar a esposa que é dependente. É todos os dias eu ir coletar os pacientes internados próximo ao horário de visita e encontrar os familiares de longe tentando acalentá-los sem ter quem os acalenta, e me tornar portadora constante da frase “ele/ela está aqui”, com as lágrimas escorrem pelo rosto serem absorvidas pelas máscaras que encobrem o meu rosto e os deles. Na periferia, vivencio que as pessoas buscam atendimento quando não suportam mais seus sintomas porque não podem parar de trabalhar, porque não tem com quem deixar seus filhos. Atestado em um país com quase 40 milhões de indivíduos que vivem na informalidade não atesta, empobrece mais, faz faltar comida na mesa, aumentar a violência intrafamiliar. Os dramas atrás dos números estão somente sendo externados, eles sempre existiram! 144 Maternidades Plurais Em julho, especificamente no dia 8, foi comemorado o Dia Nacional da Ciência, talvez nunca antes este dia tenha sido tão publicizado como neste ano, especialmente à comunidade “não acadêmica”. Constantemente somos desvalorizados e o trabalho do pesquisador “invisibilizado”. Reconheço a autocrítica de não externar como gostaria os achados científicos, mas a expressão que carrego na pele “know your rights” segue latente no meu orgulho de ser sanitarista, enfermeira, professora e sobretudo brasileira. O convite para coordenar o Coletivo de Mães Cientistas junto com duas mulheres como Andreia e Elis, trouxe acalento para minha alma, espaço para compartilhar diariamente minhas angústias seja via mensagens ou ligações que duram horas, isso me trouxe fôlego para seguir na batalha. O desafio do e-book "A Covid-19 e os desafios pandêmicos da Maternidade nas vidas científicas: artigos de Mães cientistas brasileiras" alicerçado pela empatia tem sido um aprendizado indescritível, fazer as primeiras leituras dos artigos recebidos e ver nosso sonho tornando-se realidade é dar sentido, voz, força à todas as experiências que mulheres, mães e pesquisadoras estão vivenciando no Brasil, é ser resistência. Que a frase de Eduardo Galeano, “Muita gente pequena em lugares pequenos fazendo coisas pequenas podem mudar o mundo”, perpasse os espaços, para que num futuro próximo possamos olhar para trás e reconhecer que a pandemia fez e faz parte da nossa história, poderá fazer novamente e que precisaremos sair diferentes, e que essa mudança ocorra de fato, dentro dos espaços que cada um convive, em suas comunidades, é assim que norteio um dia após o outro, que direciono cada olhar e toque nas mãos e humanizo meus atendimentos. 145 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 22 Os tempos misturados do isolamento social: testemunho de uma mãe cientista Andreia Vicente da Silva1 A vivência do tempo é sentida de distintas formas por sujeitos específicos pelo mundo afora. “Pessoas diferentes tempos diferentes” diz um ditado antigo. No entanto, como já explicou Cláudia Fonseca2, embora haja especificidades nas formas como o cotidiano é vivido, como cientistas sociais não podemos deixar de perceber que as idiossincrasias dos sujeitos podem nos apontar dados interessantes para pensar comportamentos e realidades coletivas. Partindo desta diretriz, neste pequeno texto, gostaria de compartilhar um pouco da minha experiência de mulher contemporânea e, a partir de um “testemunho situado3”, apontar e debater alguns aspectos que dizem respeito aos tempos misturados das mulheres mães durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. A primeira e central ideia do texto é debater a percepção do tempo — o que me leva necessariamente a organização de uma rotina diária que impõe uma certa compartimentação espaço temporal. Sou professora universitária no estado do Paraná. Na Universidade, além das atividades de docência na graduação e na pós-graduação — que por conta da pandemia permanecem paralisadas desde março — acumulo algumas outras funções: orientar alunos de graduação e pós-graduação, coordenar a comissão de pesquisa do centro de ciências humanas, realizar pesquisa, participar de grupo de pesquisa, de reuniões de colegiado, compor comissões como as do núcleo docente estruturante, escrever artigos, dar pareceres para revistas científicas. Para dar conta de todas estas atividades, meus dois filhos pequenos (uma menina de 8 anos e um menino de 6 anos) estudam em uma escola em tempo integral. Meu marido trabalha fora da cidade onde resido, saindo cedo pela manhã e retornando somente a 1 Doutora em Ciências Sociais (Uerj/RJ) e Professora do programa de Pós-graduação em História (Unioeste/PR). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3178816058544660 2 Quando cada caso não é um caso: pesquisa etnográfica e educação. Revista Brasileira de Educação (São Paulo), 10 : 58-78, 1999. 3 Com o uso da categoria mulher contemporânea não deixo de perceber as especificidades de minha condição: branca, classe média, altamente letrada. Neste caso, os marcadores da diferença que são próprios de minha condição serão pontuados ao longo do texto. 146 Maternidades Plurais noite. Geralmente, quando ele chega em casa, vou a universidade para ministrar aulas ou para ficar em meu gabinete realizando tarefas burocráticas que não puderam ser realizadas ao longo do dia. Assim como muitas outras mulheres profissionais e mães, a pandemia interrompeu a lógica de organização do meu dia. A enorme quantidade de demandas dos meus vários papéis sociais estava estruturada em tempos e espaços pretensamente compartimentados, de maneira que, em meu cotidiano, estabeleci uma lógica possível para as atividades: quando as crianças estão em casa, sou mãe. Quando eles estão na escola, posso trabalhar e ter algumas horas de concentração em minhas tarefas intelectuais. À noite, quando meu marido está em casa, muitas vezes vou à universidade e sigo trabalhando. É claro que essa separação não é absoluta e muitas vezes é interrompida pela doença ou pelo choro, pelo cansaço, por demandas de trabalho que aparecem com urgência ou por imponderáveis que todas as mulheres trabalhadoras e mães conhecem. Desde março de 2020, os meus tempos e papéis sociais4 estão misturados. Tento de maneira incansável estabelecer uma rotina que me permita dar atenção às crianças, manter a casa em ordem e cumprir meus compromissos profissionais. O cenário5 onde tudo isso acontece não muda. Estamos todas e todos dentro de casa. Em contexto normal, a minha casa é um espaço apropriado de diferentes maneiras ao longo do dia — ora para brincar, ora para trabalhar, ora para escrever. Nós, mulheres trabalhadoras, professoras e intelectuais, trabalhamos muito em casa, preparando aulas, corrigindo provas, lendo e pensando. Para tanto, segmentamos o espaço doméstico no tempo, ou seja, buscamos realizar cada tarefa em um intervalo específico do dia no mesmo espaço6. E, para que boa parte dessas tarefas possam ser cumpridas, é preciso que as crianças não estejam sob meus cuidados — ou seja, estejam fora de casa (crianças são barulhentas sim!). É preciso silêncio para o pensar, concentração é essencial para desenvolver argumentos científicos, embora, muitas vezes como mães, não tenhamos acesso a este artigo raro e caro. Com a pandemia, o meu espaço doméstico tornou-se o cenário absoluto de todos os meus papéis sociais e de todas as tarefas deles decorrentes, as quais são realizadas ao mesmo tempo. Isto tem exigido de mim autocontrole e tolerância misturados com boas doses de ansiedade, desespero, gritos e choro. De manhã, ao acordar tenho e-mails para responder. Louça na pia e almoço para fazer. Crianças querendo brincar e rolar com as cadelas. Pedidos de olhinhos suplicantes para brincar de casinha e chutar bola. Tudo ao mesmo tempo, diferentes funções em tempos misturados. “Fachada é o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação”. Goffman, Erving. A representação do meu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 29. 4 5 Cenário é um conceito essencial para entender os papéis sociais. Afinal, em sociedade complexas o trânsito entre diferentes instituições e lugares é essencial para que possamos desenvolver as mais diversas atividades. Não basta apenas estar consciente de suas atribuições. O local e os equipamentos disponíveis para a realização das tarefas também fazem parte do que se quer reproduzir. 6 A divisão entre casa e rua, ou trabalho doméstico e profissional, não se aplica neste caso já que a casa é o ambiente da família e também o lugar do trabalho profissional. 147 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Não quero aqui advogar que minha rotina seja mais desgastante que a das demais mulheres brasileiras. Tenho minhas vantagens — que não são poucas. Tenho um emprego estável e um companheiro que, embora esteja fora de casa o dia inteiro, procura dar atenção às crianças e realizar algumas atividades domésticas. São justamente as vantagens que tenho e que foram adquiridas com muito suor, sangue e lágrimas que sustentam a minha condição de cientista, já que, para que ela exista, há toda ordem de profissionais que são contratados para assumir demandas que sozinha eu não teria condições de cumprir. No entanto, o acesso às redes de apoio organizadas7, que sustentavam a minha possibilidade de ser uma “mulher intelectual”, foi interrompido. E é justamente neste ponto que os tempos do meu dia se misturaram. Tudo começou quando a escola anunciou a interrupção das aulas. Logo de início, tive duas crianças em casa e sem nenhuma ocupação por duas semanas. Eles estavam em ritmo de férias, acordando bem cedinho, indo dormir bem tarde e querendo brincar o tempo todo. Aquele foi o primeiro impacto. Como me sentar para ler um texto e para escrever um artigo se tenho dois pequenos ao meu redor pedindo lanches e carinhos? Como terminar de responder os e-mails ou participar de reuniões burocráticas virtuais quando preciso ter o almoço pronto para que eles mantenham certa rotina? Como conciliar rotina doméstica, maternal e profissional? Eis a pergunta que muitas de nós nos fazemos. Como dar conta de tudo isto se agora os nossos tempos estão misturados? Quando a escola anunciou o retorno das aulas online, imediatamente pensei que teria alguns momentos para me concentrar em minhas atividades acadêmicas. O que tem acontecido é justamente o contrário disso. Todas as tardes, eu posiciono cada criança em um cômodo da casa, para que possam assistir suas aulas e realizar as atividades diante das professoras batalhadoras do ensino fundamental. Poderia eu aproveitar este tempo para trabalhar ou mesmo descansar? Não posso. Ao menor sinal de dificuldade, meus filhos já querem a atenção da mãe que está a um cômodo de distância. Ouço gritos de “mãe venha me ajudar” a tarde toda. Vou ao escritório e estou atendendo um, quando a outra já me chama da mesa de jantar. Ando pela casa e por seus corredores de maneira incessante durante toda a tarde de aulas online das crianças. A cada pequeno intervalo na “maternidade escolar8", retorno ao meu quarto tentando assistir uma palestra de um grupo de pesquisas ou ler um livro científico essencial para minhas aulas. Tentativa frustrada porque no meio das comunicações acadêmicas sou interrompida para providenciar papéis, tintas e cola para uma atividade de artes ou para segurar o tablet para que o professor de educação física possa ver os movimentos realizados por meu filho em um circuito montado por mim mesma no meio da sala com livros didáticos usados e copos descartáveis. Estou tentando escrever este texto e o meu filho me pede instruções para encontrar números em 7 Nas sociedades contemporâneas, a distância da família de origem é um ingrediente essencial para pensar a criação de outras redes de apoio. No meu caso, minha família é do Rio de Janeiro e moro no Paraná. Recentemente minha sogra está mais perto de mim o que representou apoio importante nas minhas atividades cotidianas. 8 Estou chamando de maternidade escolar esta nova modalidade de ser mãe que se desenvolveu com aulas on-line que nos demandam ainda mais atenção já que as tarefas escolares das crianças que antes ficavam a cargo dos professores e das professoras na escola e que agora nos sobrecarregam ainda mais. 148 Maternidades Plurais um livro de desenhos pontilhados, ao passo que minha filha me avisa que entornou chá no chão da cozinha que está todo melado e que eu precisarei limpar. As redes de apoio são imprescindíveis para que as mulheres possam trabalhar e exercer a maternidade. Se cotidianamente estamos sobrecarregadas para dar conta de todas as funções que acumulamos e que nos são impostas9, a pandemia fez este traço de sobrecarga ainda mais evidente. Ao impossibilitar a aproximação das avós e das amigas, ao interromper as aulas das escolas, ao inviabilizar a presença dos amigos, o coronavírus deu um golpe fatal no trabalho profissional das mulheres. Esse golpe não surgiu do nada e já vinha sendo construído por séculos de exploração e de acúmulo do trabalho das mulheres. Sem as redes de apoio, me sinto perdida e angustiada. Muitas vezes acho que não dou conta do que as crianças precisam e me sinto muito mal por não conseguir corresponder a todos os carinhos, beijinhos e atenção que me são solicitados. As variações de humor e o sentimento de culpa me rondam o tempo todo. Fico nervosa quando preciso sair para comprar algo e não posso porque o comércio proibiu a entrada das crianças e não tenho com quem deixá-los. Não posso ir ao meu gabinete na universidade para me concentrar, porque a universidade fechou as portas como medida de segurança. Minha casa, meu refúgio, meu lugar de calma, tornou-se um local de trabalho incessante. Trabalho o tempo todo e me divido em atividades de todos os tipos e naturezas. Não estou sozinha nesta luta. Outras mulheres profissionais e mães como eu estão passando pelas mesmas tensões. Os seus tempos também estão misturados como os meus. Meu caso não é exceção: é regra! Um dia tem vinte e quatro horas, e eu estou trabalhando umas dezoito. Me sinto cansada, minhas costas doem e meu cérebro não funciona. Meus tempos estão misturados em casa e me sinto sobrecarregada, sugada. Caio na cama no fim do dia com a sensação de que não cumpri metade dos compromissos profissionais que havia planejado ao mesmo tempo em que também não dei conta de tudo o que as crianças precisavam. Recentemente, li um artigo que dizia que a “produção científica das mulheres declinou”10 durante o período de quarentena. Obviamente este meu testemunho pode clarear alguns dos motivos pelos quais nós mulheres que somos mães temos dificuldade de dar conta das demandas exigidas em termos de escrita de artigos, publicação de livros, participação em eventos e em redes de pesquisa. Todavia, esta não é apenas uma questão da pandemia. O coronavírus apenas intensificou aquilo que já faz parte do nosso cotidiano e que agora aparece ampliado pelas dificuldades impostas pelo isolamento social. Muito se tem discutido sobre desigualdades sociais. Neste debate, os marcadores de gênero, raça, classe social são utilizados legitimamente como transicionando os sujeitos em suas vivências. No caso das mães cientistas, há que se problematizar as especificidades do nosso fazer intelectual. As 9 Conciliar maternidade e carreira são dilemas das mulheres urbanas contemporâneas já que representam a soma de atividades. Para que isto seja possível é preciso muito planejamento para a realização das tarefas de maneira sincrônica. 10 Disponível em: https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,producao-cientifica-de-mulheres-despenca-emmeio-a-pandemia-de-coronavirus,70003306675. Acesso: 23 jun 2020. 149 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) exigências e as peculiaridades do pensar, pesquisar, escrever e publicar na maior parte das vezes não são alcançadas justamente porque o que a coletividade exige de nós, em termos de demandas de cuidado, é inconciliável com a temporalidade dos altos padrões adotados pelas métricas governamentais11. O fato é que apostar no desenvolvimento das tarefas intelectuais que exigem boa dose de reflexão e concentração e, ao mesmo tempo ter filhos e lidar com os impasses da maternidade, exige de nós muito mais do que aqueles que não tenham esta experiência podem compreender. Afinal, ter insights interrompidos ou rotinas de trabalho segmentadas e setorizadas faz parte do nosso cotidiano. Deixar para finalizar uma tarefa profissional depois de atender as crianças é “palavra de ordem”. Sendo assim, a pandemia nada mais fez do que escancarar as desigualdades sociais — o caso das mulheres cientistas expõe a faceta alarmante da produção científica do país. Ps.: uma amiga que também é mãe e professora leu este artigo antes de ser submetido. Uma das observações que ela fez é que não citei em nenhum momento do texto a palavra lazer. Lazer? — respondi para ela — não consigo nem me imaginar dando um passeio, para batermos um papo, tomando um cafezinho e comendo um delicioso bolo. Ao analisar os dados das métricas de produção, as agências de fomento acessam “estatísticas friamente (que) tratam igualmente os desiguais”. Alguns fatores para problematizar estes dados são as trajetórias distintas de homens e mulheres nas carreiras científicas, o estereótipo do papel dos "cuidados" que fazem as mulheres estarem mais presentes em áreas vinculadas à educação, saúde e a assistência social. Estes fatores que acabo de citar estão no artigo de MELO, Hildete Pereira de e OLIVEIRA, André Barbosa. A produção científica brasileira no feminino. Cad. Pagu 2006, n.27, pp.301-331. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332006000200012&lng=en&nrm=iso. Acesso: 24 jun 2020. 11 150 Maternidades Plurais 23 Decifra-me Anelise Fernandes Silveira1 Há alguns dias em que isso se repete: olho para as minhas mãos e reparo que tenho de cortar as unhas. Nas vezes em que pensei isso, percebo agora que ainda não consegui concretizar o ato... Sempre tem alguma coisa mais urgente e importante pra fazer no tempo que fuga. O quarto para organizar: colocar as coisas minimamente em seus devidos lugares, dobrar algum cobertor, guardar as roupinhas da bebê, enfim, tornar o ambiente menos caótico na tentativa de amparar o mundo interior e torná-lo organizado também. Não há facilidades. E, como nem todo frio que existe no mundo vem da Europa, a região do pampa gaúcho produz um gélido inverno que a essa altura de julho começa a despontar com força de uma manada selvagem. Nesse contexto do frio, acabo por lembrar de algumas famílias que residem no território onde eu trabalhava — antes de entrar em licença maternidade — uma localidade periférica onde famílias em situação de pobreza socioeconômica moram, lugar onde foi criado um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS). Lembro de visitar algumas casas consideradas mais vulneráveis. Nessa região da campanha gaúcha sempre faz um frio avassalador, a temperatura chega a marcar números negativos nas madrugadas durante o inverno. Na maioria das casas moravam crianças, pessoas idosas ou os dois. Em uma dessas casas em especial, havia muitas frestas, buracos nas madeiras que compunham as paredes e umas três crianças, entre elas um bebê. E, agora eu tenho uma bebê. Não é muito fácil manejar os cuidados com ela nesse período de frio, trocar as fraldas, dar banho, a limpeza das roupas e babeiros, que quase não duram limpos devido a um refluxo. São temas bem ordinários, mas ocupam boa parte do meu dia ou quase todo. Como seria possível estabelecer comparações entre as minhas dificuldades relativas à maternidade e as dificuldades dessas mães em situação de pobreza e desamparo social? Chega a ser constrangedor. Não há possibilidades de conciliação às necessidades de isolamento social quando é necessário arranjar alimentos, vestuário, cobertores e alguma madeira para queimar no fogão a lenha. Aos pobres não é permitido se recolher no conforto da casa, mal há casa se quer conforto. Se recolher a uma espera de dias melhores pode significar passar por todo tipo de privação e escassez, maiores ainda do que as já conhecidas antes da pandemia. 1 Psicóloga. Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4958889801651057 151 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A respeito da minha realidade confesso que mal consigo acompanhar o noticiário e vou costurando e juntando as informações conforme escuto meus familiares falando, assim construo uma espécie de mapa mental o qual permite que eu possa participar minimamente quando os absurdos desse tempo pandêmico surgem nos diálogos. Paixão mesmo tenho sentido pela máquina nova lava e seca, é o objeto que mais facilita a minha vida desde o início da maternidade até o começo do frio. Sinceramente já não consigo imaginar mais minha vida sem ela, e isso soa mal. A maioria das pessoas não pode ter uma, com relação às famílias acompanhadas pelo CRAS, não é exagero dizer que ninguém tem. Esse é um privilégio sim. E essa é uma contradição, porque não posso dizer que esse aparelho não me traz conforto e um pouco de alegria em poder desfrutar de um tempo com algo que, de fato, seja uma escolha fazer ou não fazer. A maternidade traz muito isso, quando se vê, estamos inundadas em afazeres que não são uma escolha, são uma necessidade. Necessidades que tem a ver com o cuidado, afazeres importantes para o desenvolvimento saudável das crianças, mas os quais são intermináveis e cansativos. Poder adoçar esses gestos com amor certamente produzirá belos frutos nas crianças. Sim, as mães sabem disso e acredito que tentam(os) assim proceder. Uma luta diária entre cansaço e contentamento. Para as mães de famílias numerosas como as do território do CRAS onde trabalho, exaustivo não são os afazeres domésticos, exaustivo é ter de sobreviver com tão pouco. Do meu lugar de privilégio, é uma mistura desorientadora essa entre a necessária perda de sociabilidade e as ocupações diárias, que apenas sabem se repetir semana pós semana em uma quarentena que começou quando ainda era verão aqui no hemisfério sul. Haja criatividade para pulverizar umas cores bonitas pra gente não ficar completamente cinza. Sobre os afazeres domésticos, todos parecem tão infindáveis, uma coisinha depois da outra saltitando incessantemente nos contornos limitados da casa, lugar que agora resguarda o predomínio de todas as atividades. Afinal, rede de apoio só apoia ou também atrapalha? Ah, como sou grata por ter uma rede de apoio em casa, composta por meu pai, minha mãe e minha irmã. Caso não fosse grata sinto que deveria ser. Não penses tu, que é possível passar ilesa por uma rede, eles vão ajudar e também vão exigir esse reconhecimento. Parece justo. Não importa, bom mesmo é ir ao banheiro em paz. A verdade é que eles ajudam e isso quer dizer poder tomar um banho com mais tranquilidade e ir à academia às vezes (tomando os devidos cuidados de prevenção ao Covid), nunca me foi tão prazerosa essa atividade. Sair de casa em um período de pandemia é imprudente quando, de fato, se pode ficar, ocorre que chegou a um ponto onde tive que optar entre maior segurança ou respingos de oxigênio para equilibrar uma saúde mental que andava oblíqua. É difícil explicar os sentimentos no puerpério, se pudesse escolher apenas uma palavra para transmitir esse momento, algo aproximado ao sentido da palavra loucura não seria exagero. Quando a pandemia foi sentenciada em março deste ano, eu já estava em isolamento social2 desde janeiro, quando minha filha nasceu. Saía de casa raramente, as visitas ocorriam nos finais de semana e eu passava a maior parte do tempo sozinha com minha bebê. Em meados de março estava começando a sair sozinha com ela, uma volta aqui outra ali, já era um 2 A expressão está destacada porque se refere a um tipo de isolamento social diferente do sentido em que o termo tem sido utilizado em um contexto de pandemia. 152 Maternidades Plurais progresso e tanto. Mal começou e já acabou. Confinada em casa mais uma vez, agora sem data para acabar. Não se esqueça, ainda tenho uma bebê que chora sem parar. Indefinível caos. Já ouvi suficientemente algumas mães protestando a respeito dos comentários ou “dicas” de outras pessoas que se consideram experientes com crianças, para saber o quanto isso é incomodo. Agora percebo que se trata de uma legítima gota num oceano bem cheio transbordante. Além da inconveniência de um pedido de opinião que não foi solicitado, essa cena ocorre com alguém que está tentando juntar os pedaços que restaram do seu antigo ser e agora formam uma identidade disforme que em nada lembra a pessoa mulher de antes. Nunca ouvi relato das mulheres que me precederam na família que se aproximasse a essa realidade bárbara do puerpério, penso que a elas não era permitido pronunciar de forma não romântica o período. Ou melhor, sentir até poderia ser permitido à questão definitiva era/é manter em silêncio. Ainda que divida o mesmo teto com uma mulher que teve duas gestações — minha mãe — ela nunca trouxe essas reflexões à baila comigo. Parece que o desequilíbrio causado pelas perdas, reestruturação emocional e psicológica a que somos submetidas enquanto mães principiadas é algo individualizado e de cunho pessoal. É claro que cada uma tem a sua história e isso pode facilitar ou dificultar o processo. Todavia há uma questão de ordem social que fica bastante negligenciada, licença maternidade é um importante direito conquistado, mas está longe de abarcar tantas demandas que recaem sobre os ombros das mães. Gestar uma pessoa e gerar a vida é extraordinariamente complexo e até dramático. Além disso, as origens da vida são as mesmas, a modernidade não trouxe mudanças significativas nesse assunto: mulheres e seus corpos fazem o trabalho inexorável. São muitas as perdas que advém com a maternidade e criação de um filho e não é fácil lidar com perdas. Além das perdas sociais relativamente óbvias, há perdas que se relacionam com a identidade, quem se era e já não se é mais, essa identidade obsoleta parece habitar uma antiga era geológica de tão distante que está do agora. Até o cérebro, tão respeitado monarca no comando de tudo, parece estar em constante atividade vulcânica, onde o magma extravasado já escaldou uma parte onde as palavras costumavam ser armazenadas. Os vocábulos parecem pássaros em grande profusão, algo como se fosse possível avistá-los, mas não definir características. Atuante desmemoriamento. “Que animal que anda pela manhã sobre quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três?” O célebre enigma da esfinge, criatura de corpo alado metade leão e a outra metade mulher, que nenhum homem conseguia decifrar e por isso eram devorados. Que ninguém se engane, o fato da criatura ser metade mulher não é mero acaso, há algo de misterioso e selvagem em nosso interior que nem toda racionalidade é capaz de explicar. Falo do interior de uma mulher e sobre esse assunto tenho alguma profundidade, acredito realmente que adicionar uma poção de elementos mágicos no cotidiano torna a vida menos dura, afinal de contas o imaginário está vivo e precisamos alimentá-lo para que ele nos nutra sempre, especialmente em um momento como esse. O mesmo enigma nos obriga a lidar com a delicada transitoriedade do tempo. Pela manhã um bebê ao engatinhar, a tarde um adulto ereto e a noite uma pessoa idosa se valendo de uma bengala. Quantos enigmas precisamos decifrar ao longo da nossa jornada? Seguramente não são poucos e os horizontes do conhecimento estão aí para nos valermos de seu apoio. Pandemia e maternidade, a segunda ainda que com suas dificuldades ocupa-se da vida e há muita beleza nisso. Quanto à pandemia, parece mesmo uma esfinge que está a 153 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) interpelar a humanidade com seu quebra-cabeça. Como sairemos dessa situação que nosso consumo desenfreado e arrebatamento pelo lucro nos colocou? Precisamos construir as respostas. O certo é que a vida continua a pulsar, de um modo um tanto quanto confinado, contudo pulsante como é próprio da natureza do existir. As crianças continuam a nascer e nossa existência segue demandando o que sempre exigiu: courage, mon amour!3. Para seguirmos a diante necessariamente precisaremos acertar os passos os quais nos trouxeram até aqui enquanto corpo social. Que cada um possa refletir sobre si mesmo e sobre essa trama que envolve a todos nós. Há respingos continentais os quais não podem mais ser barrados em um mundo hiperconectado e assustadoramente desigual, eis que aí surge à esfinge ávida por lançar sua charada fatal e a resposta só vai estar certa se for dada coletivamente. Um belo planeta azul e toda vida que ele contém agradece. Retornando ao realismo dos dias, enquanto escrevo esse texto percebo que é preciso fazer uma espécie de milagre pra ele acontecer, para colocar no papel, digo na tela, essa narrativa. Tudo que é preciso para escrever como silêncio e concentração são exatamente aquilo que me é escasso. Histórias de memórias recentes que envolvem a dinâmica diária de uma casa com bebê, a rotina de afazeres e os planos que se desfizeram em meio à crise. A percepção do medo, sentimento que na vida adulta tentamos tanto afastar agora bate a nossa porta, o mundo já não é mais como o conhecíamos. A dolorosa evidência que para alguns tudo, até mesmo a dificuldade é mais amena que para outros recai sobre nós. Ao escrever esse relato procurei trazer alguns tensionamentos relativos à realidade das famílias que se encontram em situação de pobreza econômica e sinto que escrevi de forma minguada, não pela força do desejo de assim fazê-lo, mas porque é uma realidade que me escapa, para dizer certas coisas é preciso conhecer mais com intimidade e quando me afastei do trabalho ainda não havia pandemia. Posso imaginar os apertos dessas mulheres mães, mas não tenho profundeza sobre eles, pois certamente surgiram novos apertos e eu já conhecia uma porção deles. Enquanto escrevia desejei que os dias que seguem possam ser surpreendentemente mais amenos para todos nós. 3 Coragem, meu amor! Utilizei a expressão em francês a fim de trazer uma firula para o texto e pela beleza que considero conter o idioma. Marcas da colonização. 154 Maternidades Plurais 24 O que eu tenho para contar: 9 meses e uma pandemia Angélica Santos Neris1 Tempo de nascer Tenho me perguntado se você não tivesse seu tempo para nascer se eu escolheria “deixar” você nascer agora. Ou se ia querer esperar pra me sentir mais segura, mais preparada, se não ia querer terminar de ler o livro da “Encantadora de bebês” antes de você chegar, se ia querer esperar o mundo sair desse caos, se ia deixar (mesmo sem querer) meus medos tomarem conta de mim. Tenho me perguntado também quantas coisas não deixei nascer por acreditar que ainda não era tempo, que não ia dar conta, que faltava aprimorar ou que era melhor esperar. Quantas coisas precisamos permitir nascer e não permitimos? Quantas vezes precisamos nos permitir (re)nascer e não permitimos? Na espera dos nascimentos que estão por vir — de um filho, de uma mãe, de um pai e de uma família — nasce um livro. Um livro que é um relato de primeira gestação, um livro que é um diário de uma gestação num momento de pandemia, um livro do que vivi e senti nestes últimos meses. Este é um livro recém-nascido de alguém que está recém-nascendo. Sobre ser gestante durante a pandemia Revendo as fotos da galeria do meu celular, me deparei com uma que fiz no dia 24 de fevereiro. Enquanto posava pra foto escolhendo o melhor ângulo para aparecer minha barriga de 22 semanas de gestação (5 meses), ao fundo, na televisão, aparecia a situação do coronavírus com seus números de casos e mortos no Irã, Coreia do Sul e China. Tudo parecia tão distante, que nem remotamente me Formação em Terapia Relacional Sistêmica – Instituto Relacional Sistêmico. Psicologia – Universidade Tuiuti do Paraná. Letras – Universidade Tuiuti do Paraná. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1548998429816932 1 155 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) passou a ideia que em menos de 1 mês, estaria vivendo isso aqui e, que em plena gestação, estaria iniciando um isolamento social. E foi assim, em meio a informações controversas, cheia de dúvidas sobre o que era segurança e o que era exagero, que no dia 17 de março escolhi começar o isolamento. Tomei a decisão dentro do que me fazia me sentir mais segura. Neste período muitas mudanças aconteceram, muitas coisas precisei lidar, e não eram aquelas que eu estava me preparando para passar: alterações físicas, emocionais, consultas médicas, compras de enxoval, preparação da casa, organização da licença-maternidade... As mudanças eram outras, a primeira delas é que minha vida passou “acontecer” em casa. O trabalho que ficou em home office (online) resultou numa redução de jornada. Esta redução de jornada levou a uma redução salarial, que pediu uma reorganização financeira “pré” licença-maternidade. É quase impossível não pensar no dinheiro quando se está vivendo um período de altos gastos como é a gestação e a chegada de um filho. Outras coisas também mudaram, os privilégios que tinha precisei abrir mão. Não fui mais às aulas de hidroginástica, nem ao pilates, parei com as drenagens e caminhadas. Mas descobri que era possível fazer as caminhadas em casa, comecei a fazer 3 a 5 km na garagem e até dentro de casa. Vale lembrar que minhas escolhas têm a ver com meu jeito de funcionar na vida, afinal sou daquelas que leva muito a sério o “prevenir para não remediar”. Estas mudanças até me fizeram pensar que a vida correria mais leve e devagar estando em casa, mas não, os dias pareciam voar, quase não conseguia fazer o mínimo que me programava. Logo identifiquei que em casa estava vivendo uma sobrecarga. Tarefas domésticas, compras, gestação, informações, alterações na rotina, atendimentos online, cozinhar, vida de casal, estava tudo acontecendo num mesmo espaço, sem fronteiras, sem manual de instrução. Não era sobre procrastinar e falta de rotina, era sobre uma nova forma de viver. No momento de maior mudança da minha vida, gestar e esperar um filho, tive que lidar com diversas alterações trazidas pelo coronavírus. Enquanto no quesito gestação eu já tinha ouvido muitos relatos e conselhos de quem passou por isso, aqui, nesse contexto pandemia, tudo é muito novo, sem exemplos, tudo é uma descoberta diária do que e como fazer. Desde então, agora, finalizando o último trimestre de gestação, ainda estou em distanciamento social, saindo de casa o mínimo possível. Estar em casa trouxe desafios, mas a segurança e o privilégio de poder tocar minha vida daqui me ajudaram a buscar alternativas e conciliar as coisas nesse novo contexto. Uma gravidez na pandemia 156 Maternidades Plurais Já li sobre puerpério, parto ativo, cesárea e amamentação. Já procurei no Google como trocar a fralda, fazer arrotar e colocar pra dormir. Só não achei nenhum manual de como gestar e “passar” por uma pandemia. Não tem! Estou diariamente descobrindo, me des-cobrindo, me redescobrindo e, por vezes, me encobrindo. Resolvi encarar este processo (nem todo dia fácil) como um treino para as descobertas futuras da construção da maternidade. Afinal, como diz Guimarães Rosa, “a vida é assim: um esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”. A espera na pandemia             Em casa, nas primeiras semanas, deixei as coisas acontecerem, livres e soltas, sem rotina, “apenas” sentindo e tomando consciência do que estava sendo este momento pra mim. Aos poucos, estabeleci alguns horários para trabalho e tarefas domésticas. Troquei tarefas presenciais por online. As compras de mercado, farmácia também priorizei pela internet ou whats, como não fazia muito isso, algumas me geraram bastante trabalho, mas agora estou até gostando de fazer mercado assim. No casal, precisamos definir espaço de trabalho e de privacidade, passamos a uma convivência de 24h por dia. Nunca usei tanto o serviço de delivery. Descobri que meu marido é um excelente cozinheiro. Descobri neste ínterim que dá pra fazer caminhadas de 3 a 5 km na garagem e até dentro de casa. Comprar as coisas para o enxoval e alguns itens para a maternidade foram os mais difíceis. Priorizei compras no comércio local, mas como aqui (Campo Largo) quase ninguém faz atendimento online, escolher pelo whats foi bem trabalhoso. Sem contar que pela pandemia muitas lojas ficaram com baixo estoque de produtos, consequentemente a oferta de mercadorias diminuiu. Como eu já tinha comprado a maior parte das coisas antes de acontecer o isolamento, precisei me adaptar com poucas coisas. As consultas médicas não puderam mais acontecer com acompanhante. Na rede social, descobri amigas que também estavam gestantes, pelo whats compartilhamos experiências, falamos da vida, de Covid-19 e de gestação. Os exames de rotina foram desmarcados, foram mantidos só os essenciais. Da obstétrica de 21 semanas só fui ver o meu filho com 31 e sem o marido poder acompanhar. Tudo para priorizar a segurança das gestantes, que em algum momento disso tudo passou a fazer parte do grupo de risco. No início do terceiro trimestre, troquei de médica (obstetra) e precisei de autorização para que meu marido pudesse estar nesta consulta. Esta foi minha primeira saída de casa após entrar em isolamento social, neste momento ainda não era necessário o uso de máscara. 157 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.)     Os encontros familiares e com amigos também não aconteceram mais presencialmente. A visita aos pais foram super reduzidas no presencial, contatos se tornaram frequentes pelo whats e vídeo chamada. Cortar cabelo, fazer as unhas, depilação, nada disso está sendo aconselhado. Eu já me senti vitoriosa em ainda conseguir cortar as unhas do pé e cortar o cabelo do marido sem tutorial do Youtube. Não fiz fotos profissionais, mas me diverti muito quando eu e meu marido nos propusemos a fazer nosso próprio book sozinhos em casa, buscamos algumas referências na internet e mãos na massa. Stand-by: reorganizando a vida em casa Até quando? Não sei! Estou no modo de espera. Precisar repensar os planos não é uma tarefa muito fácil, mas precisar repensar aquelas coisas mais simples que você fazia no automático, por estar vivendo em meio a uma possibilidade de contaminação, estando à espera de um bebê, pode ser mais difícil ainda. Eu estava num período da gestação que já não queria mais pensar em nada novo, já tinham novidades demais acontecendo na vida: escolhas e decisões que só cabiam a mim, exames que só eu poderia fazer, alterações físicas e emocionais que só eu poderia sentir. E pahh! Tudo precisa tomar novos rumos. A vida já não está como antes, isto é fato. E até que se tenha soluções (vacina, por exemplo, para o Covid-19), muita coisa precisará ser repensada: relações, compras, trabalho, cuidado pessoal, visitas, saída de casa. De início, minha primeira reorganização foi para #ficaremcasa, talvez a próxima, será para como “sair de casa”. Decidi que o meu foco não seria a produtividade, mas em como passar “melhor” por este momento que me pede uma nova forma de viver. Adotei formas mais práticas para o dia a dia, repensei o orçamento, o trabalho, o entretenimento, o autocuidado e os relacionamentos. Repensei, inclusive, minha forma de viver. As primeiras mudanças foram nas coisas do dia a dia, as saídas de casa, por exemplo, foram reduzidas ao máximo. As consultas e exames também mudaram, o acompanhamento nutricional ficou online, minhas sessões de terapia também. Nem sempre, nem pra todo mundo, nem todo dia é fácil recalcular a rota, principalmente, nesta situação, em que nem o GPS pode te ajudar. Não há orientações, ninguém sabe ao certo o que fazer, ninguém sabe ao certo pra onde ir e o que pode acontecer. Não há respostas, mas há muitas dúvidas. Dias difíceis. Dias que o medo do parto deu espaço para o medo do vírus. Que a ansiedade sobre os resultados dos exames de obstétrica, sangue e tudo mais, deram espaço para a preocupação de como estar segura e não se colocar em risco. 158 Maternidades Plurais A vida pediu reorganização e pra isso tive que aceitar os meus medos e o fato de que é necessário tempo, paciência e disposição para lidar com a complexidade de cada momento. Precisei aceitar um modelo diferente do planejado, realinhar as expectativas com a nova realidade e criar espaço para as novas aprendizagens acontecerem. Quarentena #dia10 E eu que pensei que daqui pra frente só contaria os dias pro seu nascimento. E eu que pensei que quarentena só seria depois do parto. E eu que pensei e imaginei tantas coisas pra esse último período de gestação que estão sendo e acontecendo de um jeito que eu nunca pensei. Por ora, sua mãe lida com os medos, com a ansiedade, com as dúvidas, com a fragilidade (que sempre existiu) de nossas vidas. Por ora, sua mãe se esforça para viver um dia de cada vez. Por ora, sua mãe chora, ri, se distrai, se revolta, lê e tira fotos. Por ora, sua mãe se assusta e elabora em diálogos internos e externos como tem sido isso pra ela. Por ora, sua mãe mantém a esperança de dias melhores, se conforta em ver como tem pessoas do bem, e faz sua parte pra contribuir de algum jeito com tudo que estamos vivendo. Sua mãe, Saudades do que não vivi – gestação durante a pandemia Que saudade Saudade do que poderia ter sido e não foi! Dos passeios que não fizemos Dos encontros que não tivemos Dos abraços que não ganhamos Dos mimos que não pudemos receber Do chá de bebê que nem iríamos fazer Das fotos que não tiramos para o book Que saudade 159 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) De desfilar com o barrigão por aí De passear nas lojas De fazer todas as f-utilidades que se tem vontade de fazer quando se espera um bebê Que saudades... Ps.: ainda que tenhamos aprendido a ser gratos pelo privilégio, por exemplo, de poder ficar em casa, só pelo fato de termos uma casa; também precisamos aprender a acolher nossas emoções sem julgamento, isso significa, inclusive, se permitir sentir saudade mesmo sabendo que muita gente não tem acesso ao mínimo neste contexto que estamos vivendo. Portanto, acolha-se! “E se!” – Ansiedade elevada ao nível máster Se não bastasse todas as mudanças, incertezas e medos que a espera de um filho traz somou-se a isso o contexto de pandemia. Um contexto de medo generalizado ou quase. Um contexto que nos coloca à par de nossas vulnerabilidades, que exige quase que diariamente uma forma de estar em segurança. Não é só abrir mão do que não pôde fazer na gestação, é viver os lutos simbólicos daquilo que se sonhava quando se espera um filho, é viver os lutos coletivos na espera da “cura” da sociedade acometida por um vírus chamado Covid-19 e muitos outros que deram as caras com nomes mais conhecidos nesse momento que já é tão cruel. Saúde X economia, contaminação, mortes, risco de perder quem se ama, isolamento, desemprego. E pra gestante pode ter ainda pensamentos: “e se usar um hospital e me contaminar”, “e se eu ficar sem consultas e colocar em risco o bebê”, “e se não fizer os exames de rotina e não saber se está tudo desenvolvendo bem”, “e se não conseguir me manter ativa em casa”, “e se eu não puder ter acompanhante no parto”, “e se não puder ter doula”, “e se meu filho se contaminar no hospital”, “e se eu fizer um parto domiciliar”, “e se eu pegar corona vírus”, “e se tiver que fazer tudo sozinha, sem rede de apoio no puerpério”, são tantos “e se”. São muitas perguntas sem respostas. Nossa ansiedade é “promovida”, facilmente, ao nível máster, acompanhada pelo desespero. É muito fácil entrar num jogo do sem fim, a lista de questionamento é interminável e, para quem gosta de estar no controle, viver um momento em que o futuro está muito mais incerto do que sempre foi pode ser bem difícil de lidar. Além disso, não podemos esquecer que nossa mente tem a facilidade de nos levar do céu ao inferno em questão de segundos. Por isso, é importante ater-se ao que é possível ter controle e não sobre o que não é. Não tenho (nunca terei) controle de como será, estará ou o que ocorrerá daqui pra frente, mas está sob meu controle me cuidar, tomar medidas que ajudem a me sentir mais segura, seja fazendo isolamento (se possível) ou cumprindo as medidas de higienização e cuidados. Não há garantias sobre um trabalho 160 Maternidades Plurais de parto e nascimento, nunca houve, o risco de uma contaminação sempre existiu, se não por Covid19, por outros fatores, mas o que está ao meu alcance nesta situação? Posso tirar minhas dúvidas com meu obstetra, posso me informar sobre as medidas de segurança desse local, se for o caso tenho a possibilidade de escolher outro lugar? E se eu não puder ter doula, o que está no meu controle sobre isso, que apoio posso ter antes do parto, o que posso aprender que me ajudará e me deixará mais em paz? Dúvidas em tempos de pandemia Sabia que era importante cuidar para não me encher de informação e conseguir ir mais devagar. Mas aqui fui engolida. Quanto mais eu lia, mais exausta me sentia, mais dúvidas apareciam, mais ansiosa ficava e menos a situação se resolvia. Nesta altura do campeonato, eu já estava toda embolada com a gestação, o coronavírus e outros fatos emergentes a partir disso. Para me organizar precisei retomar alguns pontos:   Não era coerente tomar decisões movida pelo medo, precisava antes escutar aquilo que estava acontecendo comigo. Na busca de um caminho, me perdi na tentativa de encontrar a escolha certa. Uma armadilha, já que escolher é uma opção real e perfeição só existe no imaginário. Para sair dessa cama de gato, abri mão da segurança em acreditar que existe um certo e um errado e comecei a ampliar meu olhar sobre toda esta situação. O cenário de pandemia me fez repensar em várias coisas, uma delas o local de nascimento do meu filho. Sem muita informação, sem saber os riscos, o que significava ao certo estar grávida e o Brasil poder estar vivendo um pico no sistema de saúde, coloquei várias possibilidades em xeque. O que seria mais “seguro” ou menos “arriscado”, hospital ou maternidade? Dúvidas e mais dúvidas, as opiniões eram diferentes entre os especialistas. A decisão que inicialmente já tinha tomado sobre ter o bebê no hospital foi repensada. Mudei e escolhi uma maternidade. Se o que estava certo precisou ser repensado, o que eu estava repensando ficou ainda mais difícil de decidir. No final do 5o mês de gestação comecei a me informar sobre parto, conversei com amigas, vi sobre parto humanizado, li sobre cesárea. E a decisão, que inicialmente, já tinha tomado que era fazer cesárea (independente dos rumos da gestação) também mudou. Agora eu queria deixar as coisas acontecerem, queria fazer um parto normal se tudo se encaminhasse pra isso, queria um nascimento humanizado pro meu filho. E a decisão, que inicialmente já tinha sido tomada sobre a obstetra que me acompanharia, também mudou. E no início do terceiro trimestre de gestação, duas semanas após ter iniciado isolamento, comecei com outra obstetra. O que estas dúvidas têm a ver com a pandemia? Eu escolhi mudar de hospital por me sentir mais segura sendo atendida numa maternidade. Não escolhi repensar a via de parto nem mudar de 161 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) médica por causa da pandemia, mas o fato de estar passando pela pandemia quase me fez desistir em fazer estas mudanças. Vida profissional, pandemia e gestação Numa consulta vascular, no início da gestação, o médico me perguntou: até quando você pretende trabalhar? Enquanto terminava de me ajeitar, pensei na pergunta e mentalmente me respondi “eu tinha que ter pensado nisso?”, “não trabalho até ele nascer?”. Pra ele só soltei uma risada e disse: “ainda não sei!”. Lembrei desta pergunta várias vezes enquanto reorganizava minha vida profissional para iniciar o isolamento social. Quando soube da gravidez, quis reduzir minhas horas de trabalho, quis abrir espaço para viver outras coisas nesse período, mas quis, principalmente, desacelerar. Foi na (e pela) gestação que me descobri fazendo coisas que foram muito prazerosas, não teria ido para uma aula de hidroginástica se não fosse por estar grávida, não teria priorizado um horário diário pra me exercitar se não fosse por estar gerando uma vida, por querer oferecer a melhor casinha pro meu filho. Esse relato não é pra fazer você ficar se questionando do que deveria estar fazendo ou tirando da sua vida. Já são tantas responsabilidades atribuídas a nós neste momento, que não precisamos de uma comparação para nos deixar com mais pesos para carregar. Este relato é só pra dizer que me descobri em várias coisas nesse período, que isso foi prazeroso pra mim porque fez sentido, não porque era obrigação, porque me trouxe aprendizagem, porque me conectou com coisas boas, porque me possibilitou priorizar o que há tempos não priorizava. Foi bom pra mim, porque fiz aquilo que escutei meu corpo pedir. Não fiz para cumprir regras. A gestação está sendo um espaço de descobertas, descobertas biológicas, de coisas que nem sabia que meu corpo era capaz, descobertas desse funcionamento, desse ciclo, descobertas sobre mim, sobre sentimentos que aparecem e forças que surgem e medos que brotam e esperança que nasce. Eu não sei como estaria nas 36 semanas se não tivesse me recolhido em home office há quase 3 meses. Hoje, sigo trabalhando, ainda sem saber exatamente até quando, mas respeitando meus limites e priorizando aquilo que tem me dado prazer — e trabalhar também é isso pra mim. Que azar o meu! Em isolamento social, enquanto caminhava na garagem de casa, me deparei com esse pensamento: que azar o meu! Uma pandemia bem quando estou gestante! Sim, a realidade é frustradora, a realidade nos traz limites, nos esfrega na cara que não existe perfeição. E quando nos deparamos com ela, nem sempre somos hábeis em tolerá-la. Afinal, é fácil construirmos castelos imaginários, difícil é vê-los não saírem como esperávamos. 162 Maternidades Plurais Com o passar dos dias, descobri que nem tudo era um pessimismo terminal. Não significa que é bom passar por uma pandemia, nem de longe. Mas eu vivi o privilégio, dentro desse contexto, de poder ficar em casa, trabalhar em casa e me organizar de um jeito que minha vida pudesse seguir mesmo nesta situação. E o olhar mudou para “que sorte a minha”! Que sorte poder estar em casa, sorte poder ter mais tempo, poder ir mais devagar, não precisar cumprir tantas obrigações, ter condições de fazer home office, de ter o marido em quarentena, de ter rede de apoio mesmo que a distância, de ter acesso à internet, de conseguir cuidar do meu horário e poder respeitar aqueles dias em que o pensamento “que azar o meu” volta a bater. São tantos lutos vividos na pandemia, que ao final a gente nem sabe se ganhou ou se perdeu. Eu perdi ou ganhei tempo? Eu perdi ou ganhei com o isolamento? Eu perdi ou ganhei intimidade? Eu perdi ou ganhei proximidade? 163 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 25 Do cais ao mar: maternâncias, identidades e resistências em tempos de pandemia Anna Carolina Porto Gomes1 Juciane de Gregori2 Apresentação “[...] Como foi visto no mundo de 2020 A carne só será vista num livro empoeirado na estante Como nesse instante, eu tô tentando lhe dizer Que é melhor viver do que sobreviver [...] Corro e lanço vírus no ar Sua propaganda não vai me enganar”. (Propaganda – Nação Zumbi) A construção deste texto convida leitoras mães e também todas as pessoas não mães a embarcarem nessa viagem, para navegar por águas maternas: vezes turvas, vezes límpidas, calmas e turbulentas... Estas narrativas são sobre as vivências de marinheiras e navegantes nessas águas, nessas escrevivências diárias, de dias e noites de amor e guerra 3. A partir de um diálogo com nossa mútua participação, buscamos não somente a elaboração de nosso relato plural, mas também expor as resistências maternas em tempos de pandemia de Covid-19. Pelo caminho das maternâncias, no contexto 1 Mãe de Yáomi (3 anos). Graduada em Zootecnia pelo Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba. Estudante do Curso Técnico em Enfermagem Veterinária. Ativista do Movimento de Mulheres Negras na Paraíba e produtora cultural da Pachamamá Coletivo de Mães. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0388990512134766 2 Mãe de Iúna (4 anos). Graduada em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Mestra em Direitos Humanos e em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Integra o Fórum de Mulheres em Luta da UFPB e integrante da Pachamamá Coletivo de Mães. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2447963754956348 A frase “dias e noites de amor e guerra” refere-se a uma composição musical de Brisa Flow, mãe e rapper descendente dos povos originários. 3 164 Maternidades Plurais territorial do Brasil e partindo da realidade do Nordeste, pretendemos discorrer sobre como essa experiência tem incidido sobre nossas identidades, sobre nossas vidas e a de nossas crianças. Neste fazer plural, ancoradas no viés da matrifocalidade, vamos abarcar reflexões sobre os enfrentamentos que temos travado contra o racismo, o machismo e o sexismo, assim como sobre o protagonismo materno que estamos consolidando em variados espaços, seja nas comunidades, nas universidades ou movimentos sociais. Com esse enfoque, traremos referências de saberes acadêmicos, artísticos, literários e ancestrais, retratando nossas percepções e análises pessoais, bem como compartilhando as ações que temos desenvolvido junto a Pachamamá, Coletivo de Mães do qual fazemos parte. Esse coletivo se faz presente nas motivações e memórias desta escrita assim como nos esforços que temos empreendido, para dar visibilidade e reivindicar respeito à força da nossa voz, das nossas “vozes-mulheres”4, que saem do cais, desbravam as marés, firmam portos e ecoam sonhos pelas águas do mar e dos oceanos. Estruturalmente, o presente trabalho constitui-se numa espécie de colcha de retalhos coletiva, na qual buscamos, em cada uma das sessões, demarcar nossos relatos pessoais com uma lente social, que se desmembra do seguinte modo: inicialmente, a partir do “Cais”, a autora Juciane de Gregori irá explanar acerca das percepções geradas diante do início da pandemia, trazendo considerações sobre o processo materno de (não)adaptação a esse momento. Dando continuidade, Anna Carolina Porto Gomes irá adentrar nas “Marés”, explorando seu olhar para as identidades e as desigualdades no contexto pandêmico. Chegando ao “Porto”, a autora reflete em torno da coletividade, solidariedade e resistências maternas em tempos de Covid-19, elencando principalmente sobre como o Coletivo de Mães Pachamamá evidencia-se nesse processo. Por fim, Gregori fará uma retomada dessa trajetória de “Mar de Sonhos”, apontando sentidos e perspectivas maternas pós-pandemia. Vale salientar que as referências utilizadas no decorrer do texto serão citadas no formato de notas. Cais Quando a pandemia do Covid-19 chegou, de modo inesperado e em meio a tantas problemáticas, foi um misto de pensamentos e emoções. Ser mãe, em uma sociedade tão amplamente demarcada por raça, etnia, classe, gênero e sexualidade, por si só já é uma luta diária. Por tanto que nos culpabilizam, silenciam, excluem e oprimem, vemos como outras “pandemias” têm sido elencadas em uma lógica histórica que antecede o Coronavírus. Mas, nessas circunstâncias, que levariam a um processo de isolamento e quarentena, em um primeiro olhar de incertezas, não dava ainda a total dimensão do impacto que traria consigo. É fato que estamos atentas ao curso dessa história de cerca de quinhentos anos, em que nos vemos em um país que segue a crueldade da sua colonização escravocrata em moldes capitalistas, acompanhada das violências que tais projetos trazem. Também é fato que evidenciamos de forma mais recente que estamos imersas em uma intensa crise conjuntural, concretizado com a apropriação “Vozes-Mulheres”, traz referência ao Poema de Conceição Evaristo que leva esse título. EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e Outros Movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. 4 165 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dos meios burocráticos institucionais, sendo legitimado por distorções midiáticas e apoio de empresários, da elite branca, racista, machista e LGBTfóbica do país. Sendo assim, vivenciamos na prática tantos ataques antidemocráticos aos direitos que é até complexo recapitular todos os retrocessos que estamos vendo e sentindo na pele. É altamente percebível como houve um severo desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários; retirada de direitos no âmbito de acesso e permanência à educação pública, gratuita e de qualidade; legitimação do trabalho informal e da terceirização irrestrita, com desemprego seguindo em alta; criminalização dos movimentos sociais com perseguição e morte de lideranças; desmatamento e uso desmedido de venenos e agrotóxicos; genocídio da população negra em massa, encarceramento e violência policial letal, com ameaças de diminuir a maioridade penal; dizimação de povos indígenas, do campo e de comunidades tradicionais; privatização de serviços básicos e até a água se encaminha para os domínios das grandes corporações burguesas. Nesse caos, continua para as mulheres mães, negras e periféricas os maiores fardos. Perpassando nesse moinho de triturar as expectativas por melhorias, ainda nos encontramos diante de um de cenário nacional que se retroalimenta no fluxo dessa guerra, com a missão de levar à frente esse projeto de destruição. E é justo nesse momento que vem a notícia devastadora: a pandemia. Inicialmente, parecia até que o Covid-19 e suas mortes estavam em um plano relativamente distante e era algo quase de outro planeta: um país totalmente sem condução no combate ao vírus, minimizando seus impactos, distorcendo a realidade e subnotificando os dados, espalhando falsas informações, colocando-se contra a ciência e ultrajando as profissões e organizações da saúde, instaurando conflitos com outros países e disseminando a morte... Aos poucos, a verdade estampada mostrava que os dias de isolamento estavam distantes do fim. Junto a isso, ressoa a realidade de ser mãe, de estar com uma criança em casa, sem aulas, com maior restrição de rede de apoio, a qual já é precária. O olhar atento às nossas histórias: mães sem trabalho ou sendo obrigadas a irem trabalhar e se expor ao vírus por meio dos patrões, com a renda subtraída, endividadas, sem perspectivas de políticas que garantiriam um amparo efetivo. O vírus, aos poucos destruindo a falsa e ilusória sensação de estar longe, cada vez mais tem tornando-se próximo e real. Familiares, amizades, pessoas do convívio e personagens conhecidas sendo vítimas da pandemia nos seus corpos. Mudanças bruscas de rotina. Tentativas de explicar, consolar e acolher as crianças e adolescentes. Desespero dos idosos por estarem diante de uma situação em que a proteção e garantia das suas vidas encontram-se impiedosamente relativizadas. Dificuldades para receber o auxílio financeiro, que nada teve de emergencial. Desigualdades de classe se acirram. Racismo, eugenia e nazismo se desvelam, e a discriminação se multiplica explicitamente no cotidiano. São constantes as notícias de que a violência contra as mulheres aumentou drasticamente, assim como os casos de pedofilia, de abuso e de violação no espaço intrafamiliar. Crimes de LGBTfobia e feminicídio disparam. Violência obstétrica aniquiladora. Crimes virtuais se intensificam. A fome, que nunca desapareceu do mapa, emana junto a crise de saúde e o colapso dos serviços básicos. 166 Maternidades Plurais Tudo isso diante dos nossos olhos, dos meus olhos, dos olhos da minha filha... Uma pandemia e nós, mães, com as crias, em casa, confinadas. A exigência pela produtividade em foco: “não podemos parar” — eles dizem! Enquanto isso, autocuidado, saúde mental e física, vida afetiva e emocional, solidariedade coletiva e senso comunitário sendo atropelados. Enquanto a necessidade de potencializar a irmandade para alguns aflora, outros nem sentem, ignoram. No fortalecimento e na manutenção da sobrevivência, nossas vivências buscam alternativas para sair do cais e ir contra as marés. Diante desse cenário, pude traçar esse caminho junto ao coletivo de Mães Pachamamá, onde, em conjunto, encontramos caminhos para mobilizar, agir, resistir e lutar! Mesmo isoladas fisicamente, estivemos juntas, atravessando as marés. Assim, fica evidente a emergência de potencializar as redes coletivas de apoio e mútuo cuidado! Marés São marés de águas turvas e revoltas, e navegar nesse mar de incertezas não tem deixado ninguém emocionalmente ileso nessa pandemia. Estamos navegando no mesmo mar, porém, nos encontramos com recursos de navegação distintos, alguns são jogados às margens em suas canoas furadas por um sistema racista, capitalista, essencialmente patriarcal e machista, em que homens brancos, cis com poderes navegam em seus jet skis em lagos e ilhas particulares. Os movimentos sociais, em suas diversas faces, sejam através da luta feminista, da luta do movimento negro, movimento LGBT+, vem, ao longo dos anos, tentando diminuir, por meio das lutas por direitos, essa disparidade social. Nessa esfera da pandemia, tenho feito uma análise bem pessoal dentro do próprio Coletivo do qual faço parte e percebo como as crises fragilizam socialmente, principalmente, as mulheres-mães. Assim, quando racializamos essa discussão, vimos que “são as famílias de mulheres negras e mães solos as mais afetadas pela falta de saneamento básico”, conforme apontam dados do IBGE 5. Como registra esse estudo, “mais de 40% das negras não têm acesso a esgoto”, portanto, especialmente em tempos de pandemia, isso só se agrava, visto que as recomendações da Organização Mundial de Saúde são pelo distanciamento e isolamento social, mas, ainda que essa medida seja de extrema necessidade, ela fez com que muitas de nós perdêssemos nossos “ganha-pão” e desmoronassem nossas rendas para garantir no mínimo nossa segurança alimentar. Além disso, outro desafio, — que parece simples, mas, analisando o dado acima, fica nítida a dificuldade em manter o que seria basicamente as mãos sempre higienizadas. Para a realidade de muitas mulheres-mães-negras, temos uma interseccionalidade com marcadores sociais que massacram e colocam à margem famílias inteiras, cujas chefes são mães pretas. Diante disso, a eminente necessidade de nos mantermos lutando por nós e por elas, principalmente nesse momento, é o único meio de nos mantermos vivas. 5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas de Informação Demográfica e Socioeconômica, 2019. 167 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ainda que muitas lutas feministas tenham se aproximado da categoria de interseccionalidade, difundido por Kimberle Crenshaw6, mas já dimensionado na obra “Mulheres, raça e classe” de Angela Davis7, que destaca como os marcadores sociais delimitam nosso espaço nos contextos civilizatórios e políticos, é a autora Carla Akotirene (2019, p. 24), quem nos apresenta que: “é da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade”8. Pessoalmente, enxergo que essa aproximação do movimento feminista com essa categoria teórica pouco mudou a realidade das mulheres negras ao longo dos séculos, e a pandemia é mais uma fotografia da real de como em todas as crises políticas ou de saúde, como é o caso atual, as mais atingidas são as mães pretas, que sofrem com o racismo estrutural que esvazia seus pratos, matam seus filhos na sala de suas casas, apertam botões de elevadores de serviço que nos levam direto para a morte. A intelectual negra Sueli Carneiro disse recentemente que: “Violência racial é como síndrome respiratória aguda grave, não permite respirar”. Apesar do movimento feminista não preencher algumas lacunas sobre as questões raciais, o fato é que a luta é muito importante para a perspectiva da construção e formação social, pois, segundo Bell Hooks (2019, p. 116)9, “o movimento feminista é pró-família. Acabar com a dominação patriarcal de crianças, seja por homens, seja por mulheres, é a única maneira de tornar a família um lugar no qual as crianças se sentem seguras, no qual elas podem ser livres, no qual podem conhecer o amor”. Desse modo, que o movimento feminista seja uma luta que agregue a luta pelos direitos das mulheresmães e suas crias, e que essa discussão abarque raça, pois esse é um meio viável de estreitar as vias das desigualdades e criar uma sociedade mais justa. Porto Como produtora de eventos do Coletivo Pachamamá, costumo estar principalmente com o processo de articulação da pré-produção e execução das estratégias traçadas na pré-produção no dia do evento. Isso inclui correria e cuidar dos detalhes, como: buscar o melhor espaço para comportar as 6 Professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, é uma importante pesquisadora e ativista norte-americana nas áreas de direitos civis, teoria legal afro-americana e feminismo. É uma das grandes responsáveis pelo desenvolvimento do conceito de interseccionalidade das desigualdades de raça e de gênero. O trabalho de Kimberle Crenshaw influenciou fortemente a elaboração da cláusula de igualdade da Constituição da África do Sul. Um dos seus artigos integra o Dossiê da III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, em 2001. Ver mais em: BAIRROS, Luiza. III Conferência Mundial contra o Racismo. Revista Estudos Feministas, n.1, Universidade Católica de Salvador, 2002. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104026X2002000100010. Acesso: 20 mai 2020. 7 Ângela Yvonne Davis, nascida no dia 26 de janeiro de 1944, em Birmingham, estado do Alabama. Parte de sua biografia pode ser evidenciada na referência citada. DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. 1.ed. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. 8 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Sueli Carneiro (Org.). São Paulo: Pólen, 2019. Ver mais em: FREITAS E SOUZA, Maciana de. “O que é interseccionalidade?”. Justificando, 2019. Disponível em: http://www.justificando.com/2019/07/01/o-que-einterseccionalidade. Acesso: 20 mai 2020. 9 HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 5.ed. Tradução de Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019. 168 Maternidades Plurais nossas ações, pesquisar a capacidade de público que o espaço comporta, a data mais interessante, a localização para facilitar o fluxo de público, negociar som e outros recursos tecnológicos, contribuo com a articulação para contatar as estudiosas e pesquisadoras para nossas rodas de diálogo junto ao Coletivo, como também articulo artistas para os eventos culturais, além de assumir as direções de palco em alguns eventos, o que implica conhecer os instrumentos musicais e tipos de som, estudar mapa de palco, controlar horários das tocadas e encerramento. Portanto, a agenda da Pachamamá costuma ser bem movimentada, e eu preciso participar junto às outras mulheres dessas idealizações e execuções. Existem alguns meses que nossa programação se torna mais incisiva e combativa. Um desses é o mês de maio. Mês em que vendem a mãe imaculada, sem desfeitos ou pecados, e sem posicionamentos políticos. A Pachamamá tem transformado o “mês das mães” em um momento de luta, resistência e acirramento político, demonstrando que a interseccionalidade nos faz falar sobre maternidade, mas uma maternidade que confronta esse sistema patriarcal, racista e machista. Porém, com todas as mudanças que a pandemia trouxe, tudo foi diferente. Muitas de nós tiveram que se familiarizar com as redes e apropriar-se dessa arena de luta e política que é a internet, inclusive eu. “Estes espaços virtuais apropriados para as questões sociopolíticas da maternidade podem ser vistos como difusores de uma nova consciência com relação ao papel da mulher mãe na sociedade”10. Neste sentido, o maior desafio dessa articulação cibernética, ao meu ver, foi mais uma vez confrontar a realidade da desigualdade social e racial que temos em um país com a historicidade que o Brasil carrega. Se apropriar desse espaço pode ser um grande desafio, mas, pessoalmente, vejo que a maior dificuldade é a chegada das informações às mulheres de baixa renda e às mulheres negras, visto que grande parte ainda não possui acesso irrestrito à internet. Algo que me afetou em todos os sentidos, foi receber o exame da minha filha de 3 anos que atestou positivo para a Covid-19. Nesse período já estava envolvida com a articulação da agenda do mês de maio quando recebi a notícia e consigo admitir com sinceridade que o Coletivo e a articulação dessa agenda me colocaram de pé na luta. Precisei escrever um ensaio de madrugada com a minha filha no meu colo com febre, tive que construir junto com outras irmãs pretas o nosso espaço de maternância preta que compôs a agenda. Bem, foi difícil, primeiro por ela sentir alguns sintomas, segundo por ela ter 3 anos e ter que se manter em um apartamento por 18 dias em completo isolamento, e, além disso tudo, eu precisava dar conta de algumas demandas do Coletivo e outras demandas de alguns Cursos, higienizar a casa todos os dias, além de monitorar diariamente os sintomas. O medo foi uma constante, o que alterou completamente minha produtividade. Na verdade, mudou toda minha vida, foi um período cansativo e assustador. Diante disso, voltando para a construção da programação de maio em tempos de pandemia, foi através da internet e das redes que contatamos e articulamos nomes importantes de pesquisadoras e estudiosas nos temas políticos propostos semanalmente, o qual foi idealizado para descontruir a ideia 10 MEDRADO, Andrea; MULLER, Ana Paula. Dossiê Ativismo Digital Materno e Feminismo Interseccional – Uma análise da plataforma de mídia independente “Cientista Que Virou Mãe”. Braz. journal. res., Brasília, vol. 14, n.1, abril, 2018. Disponível em: <https://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/viewFile/1055/pdf_1>. Acesso em: 2 mai 2020. 169 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) romântica da maternidade e nos colocarmos firmes nessa disputa de narrativas por uma maternância em que tenhamos direitos para as mães e as crianças. A agenda de maio de 2020 da Pachamamá Coletivo de Mães abarcou o tema central “Mulheres de Maio: Matrifocalidade, Identidades e Lutas Maternas em Tempos de Pandemia”, com o intuito de visibilizarmos o máximo de identidades e realidades o quanto nos fosse possível. A agenda contou com debates transmitidos ao vivo, que ocorreram através das Lives, sendo exibidas pelas redes sociais do Coletivo11, com temas de lutas diversas como trago abaixo junto aos nomes das participantes. 1) “DIREITOS DAS MULHERES MÃES E DAS CRIANÇAS NO CONTEXTO ATUAL": essa live debateu o cenário de pandemia e como isso tem se refletido no aumento exponencial de casos de violências e abusos contra a mulher, crianças e adolescentes e como a "instituição mãe", em uma sociedade patriarcal e racista, prende muitas mulheres e, consequentemente, suas crias a relações abusivas. O espaço foi mediado por Julianna Trindade (Mãe, Graduanda em direito pela UFPB, indigenista na FUNAI e Pachamamá). Contou com a presença virtual da Janine Olivera (Mãe, mestra em serviço social, integrante do grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais da Paraíba Maria Quitéria), e de Verônica Oliveira (Mãe, avó, educadora popular, conselheira tutelar no bairro Mangabeira em João Pessoa, na Paraíba, e doula voluntária). Na sequência estive como mediadora da segunda live da programação com a transmissão de um debate que falo com propriedade a partir da minha escrevivência. O espaço foi pensando para promover a desconstrução do que seriam os 121 anos do que o Movimento Negro entende como uma falsa abolição da escravidão no Brasil. Na data escolhida, 13 de maio, entendemos que não há o que comemorar e sim muito a lutar e refletir. 2) “MATERNÂNCIA PRETA: RESISTÊNCIA E FORTALECIMENTO DAS MÃES PRETAS EM TEMPOS DE PANDEMIA”: estive como mediadora desse debate riquíssimo e necessário. Esse espaço, que foi pensado para descortinar a falsa abolição e falarmos sobre as nossas vivências maternas como mães pretas em um país racista, contou com a participação da Veronica Santos (Mãe de trigêmeos, professora antirracista, psicopedagoga, atriz de teatro de rua, faz parte da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco). Também nessa noite participou a mamablack Carine Fiúza, que é Pachamamá e é um dos grandes destaques do audiovisual do estado da Paraíba, sendo a única mulhermãe-negra a ocupar esse espaço do cinema no estado. Falando da sua trajetória e atuação enquanto mãe negra, diretora de cinema, batemos um papo sobre o processo de criação e de produção do seu primeiro filme infantil junto com sua filha Eliza. O filme “Yá me conte histórias" foi contemplado no edital “Meu espaço – Compartilhando Cultura”, o qual foi promovido pela Fundação Espaço Cultural da Paraíba (FUNESC). 3) "MATERNÂNCIA E SAÚDE MENTAL DAS MULHERES MÃES”: essa live trouxe à lume um pouco sobre o impacto do período de pandemia e confinamento que atingiu fortemente a 11 No Instagram @coletivo_pachamama é possível acompanhar a gravação dos debates e os demais detalhes da programação completa. 170 Maternidades Plurais saúde mental das mulheres mães. A sobrecarga materna, o estado de incertezas prolongadas, a apreensão em relação ao bem-estar físico, a pressão psicológica sobre a rotina, as desigualdades sociais latentes entre as mães brasileiras que impedem o acesso igual a condições de se ter saúde mental. Além disso, esse espaço trouxe algumas estratégias e recursos que as mães podem acessar nesse momento como práticas terapêuticas, escutas virtuais, redes de apoio e solidariedade como alternativas de enfrentamento a esse período crítico. A mediadora desse espaço foi Geysianne Felipe (Mãe, mestranda em comunicação social, articuladora em projetos comunitários na Afya, centro holístico da mulher e Pachamamá). A participação neste dia foi da Katia Bond (Mãe, instrutora de hatha yoga, yoga para gestantes, baby yoga, shantala e missionária de Maryknoll) e também da Suzy Araújo (Mãe, enfermeira, integrante da Liga Canábica e terapeuta integrativa). 4) “MÃES E DIVERSIDADES DE RAÇA, CLASSE, SEXUALIDADE E TERRITÓRIO”: pessoalmente, entre as lives realizadas, essa foi uma das mais potentes que estive como ouvinte. Neste espaço pude aprender sobre sexualidade, raça, classe, território e as desigualdades sociais latentes entre as mães brasileiras. Como mediadora estava a Suzany Silva (Mãe de Ayô, Pachamamá, educadora popular, aprendiz de Samba, assessora parlamentar PT-JP). Enquanto convidadas tive a honra de ouvir a Adriana Caires (lésbica, mãe, avó, graduada em história, mestra em sociologia, professora da rede pública de João Pessoa desde 2012), que falou para nós do estado da Bahia, e outra participante de peso foi a Jania Paula (Mãe, assistente social, feminista, atua na área da saúde, direitos sexuais e reprodutivos, gestão de projetos sociais e economia solidária). Além desses debates riquíssimos, indicamos, ao longo de todo o mês, leituras vinculadas à dimensão da maternidade, tais como: Jesus (1960)12, Badinter (1985)13, Adichie (2017)14, Cronemberguer (2019)15. Ainda, no decorrer das ações, realizamos campanhas solidárias de arrecadação, fomentando entrega de alimentos, produtos de higiene e materiais pedagógicos, que foram destinados para as crianças, para as mães do Coletivo e as mães que se encontram em situação de fragilidade social, devido à pandemia. Mar dos Sonhos Vivenciar esse momento histórico de pandemia e sentir que os estragos são sem precedentes não está sendo fácil. Dentre as tantas realidades, na vida das mães que, assim como é o meu caso, disputam o terreno acadêmico e científico, mesmo com toda problematização dos privilégios de estarmos acessando o ensino superior, as desigualdades para permanência nesse espaço exalam. Para 12 JESUS, Maria Carolina. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960. 13 BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 14 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. 1.ed. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 15 CRONEMBERGUER, Lorena Ferreira. Ser mãe é padecer no paraíso? O dispositivo da maternidade nas narrativas de depressão pós-parto. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal da Paraíba (Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes): João Pessoa, 2019. 171 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) nós vigoram as madrugadas de trabalho infindáveis, ampliadas com a falácia do “ensino remoto”. Leituras e planejamentos atrasados são cotidianos. Acúmulo de tarefas domésticas, dificuldade em lidar com o uso exacerbado de tecnologias, culpas maternas e sensação de não dar conta... São muitas dores. Há um conjunto de elementos que sublinham como os problemas que se intensificaram com a pandemia não vão terminar instantaneamente após passarmos esse período. Será preciso levarmos adiante o profundo trabalho coletivo voltado a um novo pacto social, em busca do tão sonhado bem viver. É emergente garantir a plena ocupação dos espaços por mulheres mães e suas crias. Como diria o Provérbio Africano que tanto nos embasa no Coletivo Pachamamá: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Para tanto, vislumbramos na matrifocalidade e na maternância alternativas para transformações sociais possíveis, pois quando nós, mulheres mães, avançamos, ninguém fica para trás. A revolução será materna, antirracista, contra o machismo e a LGBTfobia, ou não será! Reverenciando, por fim, Conceição Evaristo, reafirmamos: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. 172 Maternidades Plurais 26 Experiências, Espaços e Distanciamento Social Ariadne Lopes Ecar 1 Introdução Desde o início da determinação do distanciamento social, tenho pensado em dois autores — Michel de Certeau e Jorge Larrosa —, e, asseguro não ser mero acaso. Certeau, em A invenção do Cotidiano (2007)2, ao voltar o olhar para as práticas ordinárias, cotidianas, tem duplo interesse sobre o espaço: identificar como as pessoas se apropriam dele e quais usos lhe atribuem. Larrosa, em Tremores, escritos sobre a experiência (2016)3, analisa e aprofunda o conceito de experiência, expondo que ela é o que nos passa, nos acontece e nos toca. Ambos estão implicados em compreender como as pessoas vivem, se relacionam, escutam, falam e interagem com o ambiente, e como refletem sobre as próprias experiências e práticas. Recordar tais obras, de Certeau e de Larrosa, pode configurar um desejo de ancorar-me na teoria, esperando que ela diga algo, direcione, ofereça atalhos diante de um quadro jamais vivido pela minha e por gerações anteriores e posteriores, qual seja: a de distanciar-me do outro-não familiar, para, insular-me com marido, filha e irmã num apartamento sem data para sair. Recorro à teoria e me lembro que a experiência é única e deve ser vivida sem negações ou ilusões, vivida um dia por vez. Nos parágrafos que se seguirão contarei a minha experiência em viver 4 meses distante da rotina de trabalho e de pesquisa de pós-doutorado, voltando-me para dentro do lar, uma experiência “singular”, “irrepetível” e “própria” (LARROSA, 2016). É preciso narrá-la sem romantismos, a fim de não incorrermos no risco de olvidar a experiência de mulheres pesquisadoras. 1 Pós-doutoranda pela FMUSP - Universidade de São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8300712666316533 2 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 3 LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. 173 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Reorganizando os lugares, promovendo espaços A notícia da pandemia de Covid-19 trouxe uma urgência sobre realocações, confinamentos. A reorganização do espaço foi nossa primeira preocupação. Três adultos trabalhando e uma criança com atividades escolares remotas demandariam trocas de lugares, reorganização de horários. Num mesmo cômodo estão o ambiente de refeições, sala com sofá e televisão, escritório e biblioteca, com apenas uma mesa que serve também para refeições e uma mesa de escritório para apoiar notebook. De início, minha irmã e minha filha compartilharam a mesa de refeições, eu ocupei a mesa do escritório, meu marido usou o sofá trabalhando e estudando com o notebook apoiado nas pernas. Os adultos revezavam os lugares; quem começasse a trabalhar primeiro se apropriava do móvel que lhe parecesse mais confortável. A criança usou a mesa de refeições na maior parte das vezes, para se organizar com o notebook do pai, fone de ouvido, cadernos, livros e lápis, apesar de não conseguir apoiar os pés no chão. Com dois notebooks para três usuários, decidimos que nossa filha usaria o aparelho do meu marido, por ter a tela maior e ser mais confortável para ela. A experiência de aula remota deveria se tornar tema de pesquisa por duas razões, ao menos: ajudar a sociedade a não naturalizar uma prática transitória e seus efeitos, inclusive psicológicos, no ensino das matérias escolares, e também, para lembrarmos que muitas crianças ficaram sem apoio pedagógico e não poucas evadiram ou foram retiradas das escolas. A minha formação pedagógica e experiência na área da Educação auxiliou-me a compreender esse momento, me levando a refletir sobre possibilidades. Todavia é necessário trazer à memória que grande parte de pais e mães trabalham em áreas diversas a da escola e tiveram dificuldades em auxiliar seus filhos nas atividades propostas. Este fato deixa nítida a inviabilidade da prática de homeschooling no país em que vivemos. Outra reflexão que podemos fazer é sobre o papel assistencial da escola, que fica ainda mais explícito durante a pandemia de Covid-19. Esta instituição é fundamental por liberar os responsáveis, sobretudo as mulheres, do cuidado com crianças e adolescentes a fim de que possam trabalhar fora de casa. A princípio, participar de aulas remotas foi uma solução interessante para os adultos, mas não para a criança, que logo se mostrou irritada pedindo para não usar o fone de ouvidos. Mas, posteriormente, também não foi interessante para nós. Não bastasse estarmos confinados, dividindo espaços, trabalhando e executando as tarefas de casa, tínhamos que participar das aulas do 3º ano do Ensino Fundamental. Nesse ponto, destaco a paciência da professora e a angústia de mais de 20 crianças que tinham que lidar com a mídia, com o material escolar e o ambiente de cada lar. Fizemos reiterados pedidos às mães de grupo de um app de comunicação para que pudessem silenciar o ambiente doméstico pelo menos durante as aulas síncronas. Pedidos nem sempre atendidos. Além do som das aulas, o ruído normal da nossa residência parecia ser mais presente. Panelas, máquina de lavar e de secar compunham a “orquestra” nem sempre tão afinada. A isso se 174 Maternidades Plurais somava o som de telefone e mensagens de minha irmã que teve que readequar seu trabalho ao modo remoto. Mais ou menos um mês após o distanciamento social, começamos a ocupar os quartos sem combinados prévios, foi, simplesmente, uma reação ao tanto de ruídos produzidos por nós mesmos, e passamos a utilizar mais os fones de ouvido. Como afirmou Certeau (2007) o espaço é o lugar praticado, ou seja, nos readequamos dentro das nossas possibilidades. A partir dos lugares antes destinados a outros usos, os reordenamos a fim de criar novos espaços. Assim agimos, embora nem sempre tenhamos tido êxito em nossos empreendimentos. Distanciamento social, pesquisa e trabalho remoto No início, fiquei pensando que seria fácil a dinâmica de trabalho, afinal, a vida de pesquisadora sempre me impôs certo distanciamento social. No entanto, com o passar dos dias vi que o número de horas dispensadas à pesquisa de pós-doutorado e ao trabalho remoto não poderiam ser as mesmas de antes. Para tentar dar prosseguimento ao meu trabalho, continuei acordando às 5:30 h, fazendo alongamento e arrumando a mesa de café da manhã. Durante o café leio as notícias do dia, visito as redes sociais, respondo mensagens, apesar de saber que este não é um procedimento correto e saudável. Em seguida começo a trabalhar no notebook enquanto os outros ainda estão dormindo. O período da manhã é crucial, pois tenho mais ou menos duas horas para revisar artigos, emitir pareceres, analisar fontes históricas, planejar aulas, escrever, ler e estudar. Se antes eu tinha tempo de ócio até chegar e me concentrar nas atividades — aliás, muito importante para quem pesquisa e tem a prática de escrever — agora, a realidade se mostrava diferente. Assim como afirmou Domenico de Masi (2000)4, o ócio é parte fundamental da vida e muitas vezes é ignorado como se fosse uma atividade “maligna”. Estamos tão acostumados à ação, ao movimento e à realização que subestimamos essa atitude que poderia nos tornar mais criativos e mais produtivos, sem ativismos inócuos. A concentração ficou comprometida me levou a apelar para vitaminas e óleos essenciais com o objetivo de ter mais ânimo para cumprir minhas tarefas. Passadas as duas horas de atividades matinais chega o momento em que a casa desperta e com ela todos os afazeres parecem tornar-se urgente. Refeição matinal, arrumação da casa, roupas para lavar, cozinha para arrumar. Ainda que haja divisão das tarefas, cada adulto faz aquilo que acha mais pertinente no momento, ainda assim, ficamos bastante cansados. A fim de reorganizar 4 DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. 175 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ainda mais nossa rotina diária, passamos a fazer cardápios semanais, para não descuidarmos da nutrição e também para comprar somente o necessário, sem desperdícios. O revezamento na cozinha também é necessário: cada um cozinha de acordo com o número de tarefas do dia. Após o almoço, entram em ação as aulas remotas e em alguns dias me tranco no quarto para trabalhar por mais duas ou três horas, enquanto meu marido auxilia nossa filha nas atividades escolares. De vez em quando ouço um pedido de socorro. Paro o meu trabalho para ajudar, desconcentro-me; quando volto, a inspiração foi embora e me sinto desamparada. O tempo corre no relógio, mais que de costume. Quando percebo já está na hora do lanche. E não há escapatória: não consigo desempenhar minhas atividades como gostaria, algo ficará para trás. Se tenho data para entregar um artigo ou mesmo apresentar minha pesquisa no modo online, o jeito é sacrificar as tarefas domésticas ou mesmo a convivência em família. Afinal, se eu não agir assim não consigo cumprir meus compromissos. No início do distanciamento social li muito a respeito da produtividade; muitos psicólogos e médicos reiteradas vezes afirmaram que deveríamos respeitar esse momento e não sucumbir ao ativismo desenfreado. O que é totalmente compreensível pois estamos lidando com uma realidade nova e aprendendo a conviver com ela. Particularmente, eu poderia dizer não aos compromissos e ficar tranquila com a minha decisão. No entanto, se eu deixasse de trabalhar na pesquisa poderia ser consumida por outras tarefas, inclusive as domésticas que surgem a todo instante. Então, manter-me trabalhando foi um meio que encontrei de distanciar-me da rotina do lar por vezes exaustiva. Foi uma forma de repensar as prioridades e reaprender a não dar tanta importância a tarefas que podem ser postergadas. Com isso, a pesquisa prossegue dentro das minhas possibilidades. Outra tarefa a executar foi produzir conteúdo para aulas assíncronas. A universidade na qual trabalho suspendeu as aulas em meados de março de 2020, deixando a critério das unidades a organização de forma remota. Após inúmeras reuniões e trocas de e-mails a decisão da direção foi a de que ministrássemos o conteúdo da disciplina com atividades síncronas ou assíncronas, usando a plataforma online da instituição. Dessa forma, tendo em vista também a minha rotina domiciliar, optei por ministrar o conteúdo assincronamente, complementando as aulas com vídeos e textos e propondo uma atividade no final de cada tópico. Mesmo de forma assíncrona, reunir textos com linguagem mais clara e vídeos que mais se aproximassem do universo acadêmico não foi menor do que se eu tivesse optado por atividades síncronas. Restam algumas semanas de aula que coincidiram com as férias da minha filha, outro desafio. E a experiência? 176 Maternidades Plurais Larrosa cita Heidegger5 ao concordar com o autor que o sujeito da experiência é alguém “tombado”, “derrubado”. De fato, ao contrário do que prega a sabedoria popular, deixar passar-se por uma experiência não significa que vamos manter a postura inflexível, inquebrantável ou que seremos sujeitos de sucesso. Antes, estaremos na mesma condição de alguém apaixonado que passa pelo sofrimento de não possuir o que deseja, mas que se deixa possuir pelo seu próprio desejo. Muitas foram as deduções de que seremos humanos melhores após o distanciamento social, mas isso somente poderá ocorrer se nos deixarmos tocar pela experiência que vivemos nos últimos meses. Neste breve texto procurei narrar e analisar o meu cotidiano como mulher, mãe, pesquisadora e professora diante da pandemia de Covid-19, observando a recomposição dos espaços e como as atividades pessoais se conciliaram com as domésticas e cuidado da família. Essa dinâmica me fez compreender a dimensão dos papéis que a mulher exerce frente aos desafios do distanciamento social e a importância que damos a determinadas atividades que não raras vezes, podem ser proteladas. Fez-me perceber que a experiência é, ao mesmo tempo, singular e plural, irrepetível e incerta, um “caminho ao desconhecido” como destacou Larrosa (2016). 5 HEIDEGGER, M. La esencia del habla. In: De camino al habla. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1987. 177 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 27 A inclusão digital, a mãe hodierna e uma pandemia Bárbara Dantas1 “Uma imagem vale mais do que mil palavras”. 2 A frase do jornalista sueco Kurt Tucholsky (1890-1935), famosa em todo o mundo, mereceu destaque logo na Introdução ao livro Testemunha Ocular (2001), de Peter Burke. Por isso, utilizarei imagens para demonstrar com maior ênfase o quanto a vida de uma mãe/pesquisadora é cheia de emoções, adversidades e trabalho duro. Mas tudo isso os filhos nos ensinam, imersos em muito amor e com um toque de feliz abnegação. Minha vida acadêmica começou dias antes de uma Véspera de Natal, momento de reunião da família para o qual costumava fazer as sobremesas. Mas, naquele ano, tomei uma importante decisão: comuniquei à minha mãe de que não mais faria trabalhos manuais de artesanato, nem docinhos e coisinhas triviais. Dali em diante, dedicar-me-ia a estudar. Meus filhos eram bem pequenos, crianças “levadas” ainda, não me lembro bem quantos anos tinham nem em qual ano, mas com coragem decidi ser estudante. Lembro muitíssimo bem das circunstâncias em torno do casamento, do cotidiano e de um futuro incerto que me impulsionaram à "dedicação exclusiva" aos estudos. Sempre fui apaixonada por livros e criei o hábito de ler a respeito de tudo porque fiz da leitura não só uma obrigação, mas, antes, uma distração. Hoje, ganho a vida pelo que consigo aprender com minhas leituras, sejam as feitas por motivação profissional e acadêmica ou por aquelas que, habitualmente, realizo por diversão. Por vezes, junto as duas opções e me pego divagando em reflexões: 1 Graduada em História Santo (UFES). Mestre em História da Arte Santo (UFES). Doutoranda em História Social das Relações Políticas com ênfase em fontes visuais e artísticas. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista FAPES. No website www.barbaradantas.com estão disponíveis seus trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9578213293002487 2 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004, p.11. 178 Maternidades Plurais Fig. 1 Eis minha nova leitura de fim de semana, Goethe. Escritor contemporâneo ao pintor que pesquiso no doutorado: Nicolas-Antoine Taunay, fins do século XVIII e primeiras décadas do XIX. Ora, se minha intenção é encontrar elementos implícitos em uma obra de arte, no caso, pintura, nada melhor que pedir auxílio à literatura. E a modernidade nos legou esplêndidas obras nesse ramo. Porém, notei o quanto o mercado editorial brasileiro perdeu com a morte do estimado mecenas, Victor Civita que, naquela época e por quase toda sua vida, foi proprietário da Editora Abril. Parece que as obras que primavam pela excelência no material (capa dura) e no conteúdo (a Apresentação da obra é inspiradora) morreram com ele. Enfim, comprei este belo volume por apenas R$ 5,00 de um senhor que não sabe ler e vende livros dispostos sobre um lençol colocado no chão da calçada perto de minha casa. O bom disso é que não gastarei uma fortuna para adquirir "os clássicos", mas não deixa de ser lamentável o ponto a que chegou a cultura brasileira. Todas as gerações, desde o início das reclamações humanas, protestam que viver é muito tenso, duro e blá, blá, blá... pois bem, para diminuir estas dificuldades, nada como um toque, mesmo que breve e singelo, de amenidades. Minha receita envolve a literatura, a leitura diária e breve dos Grandes Clássicos. 179 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Apesar de sempre amar a leitura, minha atividade profissional já foi bem diversa desta de hoje, escrever e estudar. Tudo começou ainda na primeira infância quando minha mãe, pessoa zelosa, apresentou-me às práticas esportivas por orientação médica porque nasci com asma, esse tormento que forjou meu ser. Devido a esta doença, que vez ou outra me faz perder (literalmente) a respiração, preciso me exercitar para manter pulmões e corpo fortes para diminuir a gravidade das crises. Passei, então, pelo balé, natação e cheguei ao bodyboarding. Já no fim da adolescência, e por quase dez anos, fui atleta profissional e esta foi minha primeira profissão. Eu viajava muito e na minha bagagem sempre estava um livro, claro! Fig. 2 De 1996 a 2001 pratiquei o bodyboarding de competição. Comecei na categoria amadora e cheguei à profissional. Conheci todas as praias com ondas propícias para surfar no Estado do Espírito Santo, onde resido desde tenra idade, apesar de ser mineira de nascimento. No litoral brasileiro, pratiquei e competi em boa parte das mais belas e famosas praias para a prática do esporte. Também tive o prazer de surfar e conhecer outros países, suas cidades, outras línguas e praias paradisíacas com ondas espetaculares. Nos traslados: equipamentos, mala e livros. Participei de muitos eventos dos circuitos estaduais do Espírito Santo e Rio de Janeiro, além das etapas do circuito brasileiro e algumas etapas do circuito mundial. Após este período feliz no esporte profissional, retirei-me dos campeonatos para casar, ter filhos e estudar. Continuei a surfar por diversão por alguns anos, depois, passei por academias, corrida e estou no ciclismo. Entre fraldas e bebês, iniciei meus estudos em História no Ensino Superior. Da faculdade particular, ingressei na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) em 2009. No mesmo ano, também iniciei um estágio no MAES (Museu de Arte do Espírito Santo). Lá estive por dois anos. 180 Maternidades Plurais Fui monitora de público em diversas exposições temporárias com grande número de visitantes: gravuras de Rembrandt e de Tarsila do Amaral, instalações de Nuno Ramos, fotografias do Louvre, obras de Beatriz Milhazes e do artista capixaba Dionísio Del Santo, além de outras exposições de sucesso. Fig. 3: Minha filha no MAES. Minha ligação tanto com as Artes quanto com a História começou a crescer, a amadurecer. Foi a partir de então que me propus a sempre utilizar obras de arte como base para meus trabalhos acadêmicos e para analisar diversas conjunturas, tanto do passado quanto do presente: 181 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Fig. 4: Vincent van Gogh, Noite Estrelada sobre o Ródano, 1889. Pouco se sabe, de fato, de artistas que "nasceram" com um dom já pronto para o sucesso, menos ainda se pode crer que o reconhecimento de seu fazer artístico acontecera sem exigir toda força mental e manual, toda abnegação e dedicação necessária a qualquer empreendimento humano. Os exemplos são muitos:    Picasso passou frio e fome na Espanha e em Paris durante anos, mas não deixou de estudar e de se dedicar a avançar em seu fazer artístico segundo suas próprias convicções. Goya, enquanto se ateve aos sabores da vida na corte, era mais um pintor entre muitos. Mas após sofrer de uma grave enfermidade, que quase o matou, sentiu os devaneios inerentes aos males físicos se tornarem aliados de uma produção artística peculiar e surpreendente. Por fim, Van Gogh, em sua infância e juventude, destacou-se como dedicado estudante e familiarizado com, pelo menos, três línguas. Quando adulto, tornou-se um "cão de pelo duro", como dizia, maltrapilho e doente para conseguir comprar seus instrumentos, telas e tintas e continuar, no decorrer de longos e dolorosos 10 anos, a aprimorar suas obras. Só não esperava que sua "obra maestra", Noite Estrelada, seria realizada no interior de uma cela de hospício, da qual, por entre as grades da janela, vislumbrou o céu noturno que o inspirou. São casos extremos, óbvio. Mas saibam que a genialidade sempre cobra um alto preço, vence quem tem a coragem de pagá-lo. Na arte, como na vida, não há espaço aos ambiciosos preguiçosos. Pois é, em 2009, meu destino estaria para sempre ligado não só à História como também à Arte. Enquanto vivia as felicidades e as agruras da graduação em História, embrenhei-me no 182 Maternidades Plurais mundo acadêmico das Artes. Apaixonei-me por História da Arte e graduei-me em História com uma evidente tendência a atuar como Historiadora da Arte. Ao longo da graduação, exercitei minhas apreensões das leituras na produção de artigos acadêmicos a respeito de História da Arte. Depois de idas e vindas, publiquei alguns e aprendi muito com todos. Mas, como estudar e ser mãe? A tarefa nunca foi fácil. Abnegação é o termo que mais se encaixa a essa realidade, desligar-se de outras coisas e se importar com os maiores tesouros que possui, seus filhos e livros. No início, desde o nascimento da minha filha e, dois anos depois, do meu filho, afastei-me um pouco dos estudos devido aos labores extenuantes, mas necessários àquele momento e aos pequeninos tesouros sob minha responsabilidade. Pois bem, um dos grandes motivos para eu conseguir me dedicar às duas atividades, estudar e escrever, foi a informática e a internet. Sim, estes instrumentos de trabalho e de pesquisa foram os meios pelos quais pude manter-me em casa, presente e, ao mesmo tempo, atualizar-me, estudar, escrever, progredir. Inclusive, agradeci publicamente a liberdade que estes tempos hodiernos me proporcionaram: Fig. 5: Revista Aventuras na História, 2007. 183 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Fig. 6: Jornal A Gazeta, 13 de agosto de 2007. O computador e a internet se tornaram uma porta de acesso a um mundo longe da cozinha ou de crianças cheias de energia. Este equipamento (o computador) e o meio de comunicação que disponibiliza (a internet) permitiram que eu não tivesse que esperar meus filhos crescerem para me dedicar aos estudos ou a uma profissão, nem os deixar com outras pessoas — se bem que não fui merecedora de tal vantagem. Por viver na era da informática e da inclusão digital, utilizei a inclusão digital como um infinito meio de adquirir e trocar conhecimento sem sair de casa ou desgrudar os olhos de meus filhos. Basta organizar os horários para sobrar um tempinho para meu bom amigo computador e suas 1001 utilidades. Depois de mais de uma década de dedicação aos estudos, continuo a pesquisar e consegui fazer disso meu “ganha pão”. Filhos já quase adultos, sinto-me um pouco aliviada e posso me dedicar mais ao “meu bom amigo computador”. Haja vista nossa realidade, tempo de pandemia, quem diria! Enfermidade que se dispersa pelo ar e, cerca de meio ano depois de descoberta, ainda apavora o mundo todo. Mundo que se viu de ponta cabeça, à mercê de uma nova ordem que pede o isolamento social, a vida no lar, o distanciamento de atividades coletivas. Como se pode imaginar, minha vida não mudou tanto, visto que já tinha que ficar cerca de sete horas diárias lendo ou escrevendo. Mas o resto da família sentiu, e muito. E lá está a mãe para dar conta do recado, tentar, de novo, salvar o dia enquanto o tempo urge e as leituras e pesquisas continuam: 184 Maternidades Plurais Fig. 7 Enquanto eu estudo, eles dormem. Enquanto escrevo, eles dormem. Mas se estou na cozinha, eles não dormem de jeito nenhum, ficam ao meu lado, de prontidão. Fig. 8 185 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Oportunidades perdidas, por uma razão ou outra. Metas cada vez mais difíceis de alcançar. Obstáculos que se tornaram muralhas quase intransponíveis. Por fim, os males físicos que atormentam e podem destruir tudo, lenta ou rapidamente. Assim tem sido os dias da humanidade em meio à pandemia. Contudo, otimista que sou, e de acordo com muitas experiências desagradáveis ao longo da vida, aprendi que, sob os males e perdas inerentes à vida humana, subjaz novas oportunidades. Cabe a cada um reconhecê-las, caso contrário, afogará no mar do desespero. Eu gosto muito de livros, nota-se. E, por isso, uma das minhas alegrias é adquiri-los. Mas, algumas obras não mais estão disponíveis. Procuro "Rousseau e a Revolução", de Will & Ariel Durant há anos, obra rara, não existe no mercado, nem de segunda mão, a não ser por um preço que excede minha capacidade financeira. Pois bem, a contragosto, procurei pela versão em língua estrangeira e a comprei. Sem muitas esperanças, confesso, pois, ainda estava magoada por não conseguir completar a coleção "História da Civilização". Para meu espanto e alegria, chegou ontem este volume espetacular em inglês, com capa dura e minimalista. É uma austeridade tão evidente que se torna belíssima, de encher os olhos por sua simplicidade. A adversidade nos prega surpresas, cabe a nós tentar manter a calma e buscar soluções. Caso não as encontre, aceite o fato, apegue-se ao que possui e esqueça o que não pode ter. Nessa vida de reclusão e estudos, procuro certas virtudes com muita persistência. De fato, nem sempre as encontro, mas a busca não cessa nunca. Afinal, educar os filhos e escrever requerem as mesmas coisas: paciência e perseverança, visto que os resultados são tão lentos quanto a temporalidade sobre a qual Fernand Braudel 3 escreveu suas obras, a longa, a longuíssima duração. Isso se reflete na pesquisa: a diferença entre um escritor acadêmico em relação aos outros é a necessidade de sempre, sempre mesmo, provar o que escreve. Para isso, deve ter em mente uma quantidade acima do normal de leituras realizadas para que possa, de fato, asseverar de onde a ideia provém: de você mesmo, a partir de conclusões que tirou depois de suas leituras; ou de algum autor específico. Isso dá TRABALHO; é um serviço LENTO; exige demasiada PACIÊNCIA. Para um texto ser chamado de SEU, ler bastante. Ao escrevê-lo, afastar-se de tudo que leu e fazer a mente funcionar. Resgatar a memória, enriquecer as ideias com palavras que me atraem, 3 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. 2 v. São Paulo: Martins Fontes, 1983; BRAUDEL, Fernand. As estruturas do cotidiano: Civilização material, Economia e Capitalismo (Séculos XV-XVIII0. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 186 Maternidades Plurais usar recursos de outros saberes que, no decorrer da escrita, surjam como tesouros escondidos que darão um brilho particular à produção. Neste momento, meu único recurso deve ser o dicionário. Só depois de me dedicar a escrever por mim mesma, contando, ressalto, apenas com minha memória, é permitido voltar aos autores que me inspiraram para que sejam lembrados como os motivadores de minhas deduções. A busca por imagens é outro agravante. Entre escrever a tese e inserir as devidas obras de arte nela, de fato, lidar com as imagens é tão ou mais difícil que compor o texto. O bom Historiador da Arte deve, no mínimo, atentar para as cores, conferir as referências em livros, o formato etc. Porque, acreditem, o Google não sabe de tudo. Na verdade, ele te engana direitinho. Em meio a livros e sites, a vida do lar segue seu fluxo ininterrupto. Os horários são determinados e, nesses tempos de confinamento, todos os olhares e necessidades da família se voltam para aquela que precisa escrever uma tese! A mãe. Nisso, respira-se fundo e, com satisfação sigo para os dotes culinários. Contudo, advirto, dona de casa hodierna faz almoço com a TV ligada no Smithsonian Channel e não subestime uma mulher que, nos tempos hodiernos, sabe o que significa hodierno sem consultar o dicionário: Fig. 9: Mais um jantar elaborado. 187 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Lembrei, de um professor de História que parecia uma enciclopédia ambulante. Sabia todos os dias, eventos, datas, personagens de cor e os listava durante horas. A lição é a de que o historiador não pode ficar preso a "seu mundinho", seja ele qual for. Se não expandir seu olhar, se tornará aquele que se intitula especialista, mas, de fato, não é. Nesses tempos de reclusão, aproveitemos para abrir nossos corações e mentes para outras possibilidades de pesquisa e para a criação de nossos filhos. René Descartes já dizia que “bem viveu quem bem se escondeu”, se “escondidos” estamos, cabe a nós, mulheres cientistas, procurarmos os meios para minimizar os impactos negativos e maximizar os positivos. Separei uma estante só para os livros que ainda não li, mas preciso ler. Assim, "toco o terror" comigo mesma e não "durmo no ponto". Mulher como eu não tira férias, não tem folga, muitas são assim. Enfim, sigo feliz nesse doutorado em clima extremo e situação adversa. 188 Maternidades Plurais 28 Desistência como recurso de aceitação e liberdade para uma mãe acadêmica: esse é um texto sobre uma mãe que desiste, para desconstrução e reconstrução de novos valores Beatriz Messias da Silva Oliveira1 Não sou uma pessoa que tenha por hábito inato a desistência, apesar de ter aprendido com o tempo que a problemática não consiste na desistência, mas sim a respeito do objeto sobre o qual se desiste. Ainda na adolescência, minha experiência com o primeiro ano do ensino médio foi de grande frustração. Eu era uma menina ingênua, cheia de conflitos internos e externos, tentando se adaptar à vida que me era apresentada a partir da perspectiva parental carregada de expectativas. Esperava-se que de minha parte fosse cumprido o dever de "mocinha" de bem e todas as implicações que já sabemos que este conceito conservador traz consigo. Então, eu achava que uma boa educação era um caminho possível para cumprir com tais expectativas, ao passo que também ansiava por este meio um suspiro de liberdade. Eu ansiava por viver logo o ensino médio, em que por fim eu poderia me preparar para a tão sonhada Universidade Pública. Antes ainda, aos dez anos de idade, morando em uma cidade no interior do Mato Grosso do Sul, encontrei em uma pesquisa, para um trabalho escolar, o significado de universidades públicas, o que foi motivo de muita zombaria por parte dos meus professores e colegas da época quando eu afirmei que tinha encontrado minha vocação. Disso eu nunca me esqueci. No entanto, à medida que eu me aproximava de trilhar o caminho para esse sonho, me deparei com um percurso mais árduo do que o aparente. Comecei a perceber que diferente do que me era afirmado constantemente, não existiam vidas separadas, eu não conseguiria ser uma Beatriz profissional, uma Beatriz pessoal e uma Beatriz acadêmica. Mas, ainda era uma percepção sutil que não havia atingido o nível consciente, e eu seguia me esforçando, para que as três personalidades ressoassem de forma uníssona, completando o script traçado para mim. Um script linear com começo, meio e fim. Além de sofrimento, merecimento e sucesso. 1 Graduanda em Letras pela Universidade Federal de São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4233727515564288 189 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Quando me deparei com um ensino decadente em uma escola sem infraestrutura, com uma equipe pedagógica deficiente e desfalcada, rodeada de colegas que, infelizmente, tinham poucas perspectivas, onde eu me destacava (tristemente) apenas por saber fazer coisas simples como pesquisas, que por vezes eram propostas como recursos preguiçosos por professores que desistiram de ensinar (talvez desanimados, sobrecarregados e mal remunerados, eu entendo isso). De qualquer forma, a falta de respaldo para a construção de conhecimentos mais concisos foi uma grande decepção. Eu sabia que por aquele caminho eu não seria capaz de alcançar meu antigo sonho e meta, ainda que não compreendesse com clareza o que queria, mas sabia, com certeza, que eu queria mais, precisava de mais. Julgo que minha primeira decisão importante da vida foi esta: decidi refazer o primeiro ano me matriculando novamente nele, dessa vez em uma nova escola. Uma Escola Técnica, com boa reputação na época. Por muito tempo, estive convencida que esta foi a única possível e melhor decisão que tomei sobre minha própria vida, e com o passar dos anos entendi que, apesar de ter me sentido muito feliz com ela, e de fato ter vivido ter uma expansão de horizontes, experiências e conhecimentos, ainda assim esta era de forma alguma a única possibilidade, e talvez até houvesse outras melhores. Me conformo em compreender que hoje, dez anos depois, não sou mais tão inflexível e que naquele momento tal percepção não existia. Os anos seguintes foram conturbados, eu me deparei com uma série de tensões que para uma adolescente não encontrava nem autonomia, nem recursos para solucionar, e talvez tais tensões nem fossem de responsabilidade minha naquele momento, ainda assim seguia tendo que lidar com os problemas da vida real, que por vezes pareciam maior que eu. Era assim que eu me sentia. O fato é que quando encontrei uma possibilidade previsível, mas ainda assim para mim, revolucionária, em nome do amor e da liberdade de vivê-lo, fiquei noiva no último ano do ensino médio. Longe de mim querer responsabilizar outros por minhas decisões, e também desta não me arrependo, mas devido a diversas circunstâncias que eu não dispunha de recursos para solucionar, eu não pude cursar o que eu desejava quando chegou o tão ansiado momento de ir para a faculdade. Fato que me perturbou por muito tempo. Encontrei, então, naquele momento uma forma confortável de agir sobre a minha vida, da qual eu esperava que me trouxesse uma sensação de liberdade, me casei. Decisão que por muito tempo achei que me deixava em desequilíbrio com as personalidades da Beatriz profissional e acadêmica, pois via nos discursos ditos libertários a aversão ao casamento, e nos discursos conservadores a imposição de uma subserviência feminina que, obviamente, não me abraçava. Era um incômodo interno não encontrar o meu lugar e foi neste momento que precisei começar a desistir. A primeira vez que desisti. Desisti de tentar me encaixar em um grupo social, como faz naturalmente a tendência adolescente, pois minhas amigas da adolescência estavam vivendo uma vida boemia, viajando, estudando, livre das convenções sociais tradicionais, e eu, mesmo que no ímpeto de conquistar autonomia, havia caído justamente dentro de uma convenção preestabelecida há muito tempo, que é a instituição casamento. Em um único ano, tudo desmoronou na minha frente e meu plano de me manter confortável com diversas decisões foi por água abaixo. Diante dos meus esforços de controlar minha realidade, a vida se mostrou inexorável. Me vi tendo que lidar com situações novas, antes mesmo de encontrar soluções para as questões anteriores. Fiquei assustada. E me assustei mais ainda quando me vi grávida no ápice de minha angústia por controlar meu destino. 190 Maternidades Plurais Não que fosse uma gravidez indesejada. Desde criança eu via uma boneca querida como filha, eu tinha inclusive documentos e exames feitos por mim para esta boneca. Sempre que me deparava com alguma criança em situação de vulnerabilidade ou sendo negligenciada eu tomava uma atitude, chegando a interferir nas situações, como, por exemplo, quando vi uma criança pequena correndo pela plataforma de trem sem ainda nem saber controlar os próprios passos, e além de segurá-la dei uma bronca na mãe. Uma mulher mais velha e mais irresponsável que eu. Achava que tal ímpeto, movido a bom senso e compaixão, significava inclinação inata à maternidade. Muitas de nós, jovens mulheres, sentem o mesmo, ou sentiam na época em que as coisas eram sempre iguais. Talvez hoje já não seja mais assim para algumas, quando vejo as mais jovens protestando em suas redes sociais ou em grupos, sinto que talvez novos parâmetros já sejam imperativos na sociedade, mas talvez seja também apenas otimismo. "O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer." Arthur Schopenhauer¹ Apesar de descobrir que na maternidade nada é inato, mas sim construído, bem como em toda e qualquer relação social, é inegável seu poder transformador na vida de uma mulher, bem como podem ser quaisquer relações. Para o bem ou para o mal, viver em negação com tais mudanças não melhoram as situações sociais ou individuais. Na minha vida, foi graças ao medo de me perder em convenções sociais sobre a maternidade que meu esforço fez o movimento contrário, muitas mudanças foram feitas a mim, mas as que eu permiti me impactar mais foram aquelas que eu mesma fiz a partir de uma reanálise trazida pela sensação de ter uma menina em meus braços. Uma nova vida feminina no planeta, de responsabilidade quase inteiramente minha naquele momento. Eu senti que o que eu desejasse para ela seria justamente o que ela teria, principalmente em seus anos iniciais. O movimento interno era de desejar coisas novas, e nesse ímpeto busquei criar uma nova perspectiva para mim mesma e para ela, a partir, quem sabe, de valores que eu julgava mais libertadores. Assim, foi nessa época que, ainda sendo lactante e passados cinco anos desde meu ensino médio, eu fiz o vestibular outra vez, em um mesmo dia que minha filha adoeceu. Talvez esse tenha sido um daqueles inexplicáveis males que vem para o "bem", como se diz, pois, diante da preocupação de ter um bebê doente em casa, não pude concentrar minha ansiedade na prova em si e apenas fiz naquele momento o que eu pude. Eu só não sabia que eu podia tanto. Passei, então, na Universidade Federal de São Paulo. Foi dessa forma que pude fundamentar minha busca por novos paradigmas de existência, em que ser mulher nesta sociedade, e agora mãe, me fosse permitido uma sensação de liberdade, uma sensação de ser agente da própria vida, e de através do compromisso com minhas responsabilidades de mulher adulta, com uma vida frágil dependente de mim, pudesse, assim, achar em mim mesma forças de romper com os antigos padrões que limitavam a autonomia do feminino em mim. 191 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No curso de Letras pude encontrar para além de disciplinas, unidades de conhecimentos, chamadas na Unifesp de Unidades Curriculares. Eu pude escolher Unidades Curriculares como Análise do Discurso, Sociolinguística, Tópicos em História Língua e Cultura Afrobrasileira e Tópicos em Linguagem Cultura e Sociedade, que me ajudaram a compreender o turbilhão de mudanças que eu estava vivendo, a partir de uma perspectiva crítica, etnográfica, antropológica. Fui, inclusive, monitora desta última UC durante dois anos e participei de grupos de estudos sobre gênero, sexualidade e sociedade. Estudei teorias linguísticas que tratam do âmbito social e cultural da linguagem. Foi no curso de Letras que pude compreender, a partir de Ferdinand de Saussure, chamado pai da linguística, que os paradigmas são conjuntos abstratos que criam associações na memória, para assim formarem novos significados. Com isso, justifiquei assim os novos significados que eu buscava na vida, já que meus paradigmas também haviam mudado. As pesquisas sobre assuntos, como: gênero, raça e maternidade juntamente com as práticas extracurriculares, principalmente com trabalhos voltados às mães universitárias me deram o apoio que eu precisava, para que eu, enfim, desistisse de tentar manter três personalidades distintas e conseguisse agora encontrar uma identidade homogênea e única que sustenta uma nova mulher, ainda refém das minhas escolhas, mas jamais subjugada a elas. Essa nova desistência trouxe uma revisão de valores e conceitos tão profundos em mim que me vi uma nova mulher. Uma mulher distante da que eu originalmente era, que, apesar de limitada, era revoltada, porém, sem compreensão do motivo. Nessa nova fase, entendi exatamente quais pontos me despertavam o sentimento de revolta e fui buscando formas de corrigir minhas práticas de maternidade consciente diante de uma sociedade ainda tão enrijecida por parâmetros idealizados sobre mulheres, sobre mães e sobre estudantes, para então ser possível reivindicar um lugar cabível para essa nova existência. Conheci muitas mulheres incríveis, me cerquei de mulheres que pensavam e repensavam a maternidade, trabalhando esses movimentos questionadores não apenas na academia. Foi um processo muito profundo e complexo, que extrapolou os limites acadêmicos. E foi nesse ponto que alcancei minha mais recente desistência. Fui percebendo que sozinha e restrita a um único ambiente não se mudam os paradigmas sociais, mas que estas mudanças ocorrem de forma abstrata, subjetiva, à medida que novos conceitos são absorvidos e colocados em prática por toda uma comunidade. Notei que o que se pensa não está desconectado do que se faz. Tive que dizer a grandes acadêmicos: vocês não me intimidam. Não darei o sangue que querem, porque minha vida e minhas escolhas, felizmente, não se prendem mais às vossas legitimações. Afirmei a mim mesma que não me deixaria levar pela falácia da linearidade como promessa de liberdade, aceitei meus processos como cíclicos e contínuos, que está tudo bem atingir ápices e decair, que está tudo bem fluir entre profissional, pessoal, acadêmico da forma que eu mais me sentir confortável nos momentos da minha vida, que eu posso definir para mim mesma o que é sucesso e posso criar minhas próprias definições de liberdade. 192 Maternidades Plurais "Que nada nos limite que nada no defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja a nossa própria substância." Simone de Beauvoir Concluo, portanto, a partir de minha experiência e conhecimentos adquiridos em diversos ambientes sociais que identidade de mãe se constitui, ao meu ver, de forma a tecer uma trama única para cada mulher, que constitui fios a partir de diversos lugares sociais escolhidos ou não por ela, mas que permite, dentro de uma certa conformidade e poderia dizer até resiliência, a sensação de liberdade, porém não uma liberdade imatura e juvenil, mas a liberdade de existir dentro das próprias desistências, frustrações e determinismos. Stuart Hall², em seu livro Questions of Cultural Identity de 1996, neste trecho traduzido por Tomaz Tadeu da Silva em 2011 e publicado em Identidade e Diferença - a perspectiva dos estudos culturais diz: "A identificação é pois um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação e não uma subsunção, há sempre "demasiado" ou "muito pouco" uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade." Por isso, por fim, desisto. Desisto de colocar a liberdade total e irresponsável como um ideal e um paradigma para minha vida e assumo caminhar por essa minha trama única tecida, por vezes sozinha, outras vezes com interferência de outras pessoas. Além de que agora, inevitavelmente, tenho, por paradigma máximo, a aceitação de que fazemos sempre o melhor que podemos com os recursos que temos. Não desisto, no entanto, de seguir em frente, e esse sentimento, tenho absoluta certeza, me foi dado com a maternidade. 193 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 29 Ser mãe e historiadora em tempos de pandemia: a dinâmica de conciliar duas vontades Brenda Soares Bernardes1 Quando soube que seria mãe da pequena Antônia já fazia planos para ingressar no mestrado. Eu vinha a mais de um ano de iniciação científica e estava bastante engajada com meu projeto de pesquisa. Inicialmente, tive um pouco de receio para conversar com meu orientador. “Então professor, preciso te contar uma coisa...”. Parte desse receio advinha de relatos generalizados de quão mal recebidas na academia eram as mulheres que engravidavam em meio a um mestrado ou a um doutorado, por exemplo. Mas eu gostava tanto da minha pesquisa e do orientador. Não quis abrir mão de tentar o mestrado naquele ano de 2018. Conversei com o professor, que, apesar de preocupado, depositou enorme confiança na minha capacidade. Depois quando descobriu o nome de minha filha, Antônia, ficou ainda mais contente. Por uma feliz coincidência, era o nome de sua esposa. O pai de minha filha, e meu companheiro, passou por rotina “idêntica”. Também estava ao fim da graduação e estudando para a prova do mestrado. Decidimos seguir juntos, conciliando a nova vida como pais e pesquisadores. Fiz a prova do mestrado na primeira semana de novembro em meio a um clima social e político intenso. Era um momento de imprecisão, os nervos das pessoas ao redor, a incluir o meu, estavam à flor da pele. Os debates eram acalorados, o finalizar de uma graduação em História, a gravidez e os estudos para a prova do mestrado alimentavam os meus dias. Apesar de todas as intempéries agarrei com todas as forças a oportunidade do mestrado, de levar meus estudos adiante. Mais do que uma via de formação e da titulação de mestre, que tenderia a aumentar minhas possibilidades no mercado de trabalho, eu realmente desejava me formar historiadora. Na primeira semana de dezembro, saiu o resultado da prova de admissão. Eu havia sido aprovada em primeiro lugar. Apesar de colocações em provas não serem os únicos parâmetros para depurar as qualidades dos candidatos, confesso que o resultado serviu para aumentar minha autoestima, para mostrar que eu era capaz de seguir em frente. Havia, entretanto, um grande espaço-tempo entre 1 Mestranda em História pela UFES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3508055870936865 194 Maternidades Plurais a colocação na prova e a finalização do mestrado. Um período de dois anos, ainda em curso. Eu teria que conciliar a produção da dissertação e os cuidados da pequena Antônia. Em outras palavras, nascia uma mãe e uma historiadora. Dois ofícios que requeriam uma dedicação enorme. Antônia nasceu em 28 de fevereiro de 2019. No dia anterior, fiz minha matrícula no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES). 13 dias depois, começava o ano letivo. Eu, na ânsia de seguir nos estudos, e desconhecendo o ofício de mãe, abri mão da licença à maternidade. Caso precisasse de mais tempo para redigir a dissertação, requisitaria ao final.2 Naquele tempo, isto é, há pouco mais de um ano, eu já sabia da minha condição de privilégio. O apoio da família, do pai de Antônia, e o fato de não faltar casa e comida já eram sustentáculos aos quais eu estava grata. 2019 passou ligeiro. Com ele vieram os cuidados maternais e minha transformação em mãe: a amamentação, as trocas de fraldas, as noites mal dormidas, os carinhos, as idas à pediatra, as vacinas, os primeiros sorrisos. Enfim, o acompanhamento total do primeiro ano de vida de minha filha. O mundo acadêmico permaneceu de pé, em um ritmo talvez um pouco mais desacelerado, se comparado aos meus tempos de graduação. Mas o necessário foi cumprido. Realizei as disciplinas da pós-graduação e o Estágio Docência sob a supervisão do orientador. Em julho, viajamos para Recife no 30º Simpósio Nacional de História organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH). 3 Eu, Antônia, o pai e a avó, para nos ajudar com a bebê enquanto estivéssemos fora. Um dos pontos positivos do evento para mães pesquisadoras foi sem dúvidas a criação da “anpuhzinha”, uma espécie de creche elaborada para que as crianças pudessem passar o tempo enquanto suas mães participavam das atividades acadêmicas.4 A “anpuhzinha” só aceitava crianças maiores de dois anos de idade. Antônia estava com quatro meses. Agregado ao primeiro ano do ofício de mãe-pesquisadora permaneceu a imprevisibilidade e a insegurança financeira. Os cortes de bolsas anunciados pelos órgãos de fomento atingiram parte das minhas preocupações. Eu abrira mão de um cargo temporário na prefeitura da cidade de Serra (ES) 5 como professora de História, para manter a bolsa do mestrado, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Por um momento, acreditei que a perderia. O que faria? 2 Como esse processo ainda está em curso, ainda não tenho certeza do tempo que precisarei. Por enquanto, acredito que tenho mantido meu cronograma. 3 Sobre o evento ver: < https://www.snh2019.anpuh.org/>. Acesso: 30 jun 2020. Sobre a ANPUH ver: < https://anpuh.org.br/>. Acesso: 30 jun 2020. Sobre a “anpuhzinha” ver: < https://www.snh2019.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=445>. Acesso: 30 jun 2020. 4 5 A cidade de Serra localiza-se na região metropolitana de Vitória, estado do Espírito Santo. 195 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A bolsa permaneceu. Infelizmente, esse não foi o caso de diversas outras pessoas, a incluir talvez mulheres-mães-pesquisadoras. Mais uma vez, eu estava em posição de privilégio. 2020 abriu as portas. Com os créditos presenciais já cumpridos, estava me planejando para frequentar presencialmente a Universidade apenas para o curso de inglês e para ocasionais eventos acadêmicos ou reuniões com o professor orientador e junto ao grupo de estudos. Enfim, era parte da agenda ficar mais em casa me dedicando à escrita da dissertação. Outra dimensão de tais planejamentos incluía matricular Antônia em uma creche. Com o “tempo livre”, o ofício de historiadora seria realizado com mais tranquilidade. Mas nossos planos são irrisórios frente às intempéries do universo. Havia uma pandemia no meio do caminho.6 Há mais de três meses estou confinada em casa. Saio raríssimas vezes, para ocasiões que realmente demandam minha presença. Antônia sente saudades da rua, de ver os cachorros, de ir ao hortifruti da esquina. Eu sinto saudades da Universidade, das incursões à biblioteca, do contato íntimo com as pessoas e dos momentos ao ar livre no geral. O fato é que, de certa maneira, a presença de Antônia tem nos ajudado de múltiplas formas nesse período de isolamento. E insiro aqui a terceira pessoa do plural, pois acredito que a rotina de Anderson, meu companheiro, também esteja contemplada. Salvo nossos distintos papéis, configurados a partir do gênero.7 Eu, mãe e mulher. Ele, pai e homem. Ambos, mestrandos, historiadores em formação, bolsistas da Capes e responsáveis por Antônia. Antônia tem iluminado os nossos dias. Diante de tantas más notícias, causadas sobretudo pelo cenário de pandemia, nossa filha cresce, aprende, canta, e forma suas primeiras palavras. Já adquiriu o gosto pelos livros. Antes de completar um ano já sabia folhear as páginas sem rasgar, o que é meritório para bebês na idade dela. Adora giz de cera e giz de quadro. E já aprendeu a reconhecer a letra “A”. Sua presença também nos impôs uma rigorosa rotina. O que tem sido importante nesses tempos pandêmicos. Com a ajuda do avô e das avós, sigo conciliando a vida de mãe e historiadora em formação. Acredito que, o fato de ser particularmente da área de História me auxilia a compreender com mais racionalidade o tempo que estamos vivendo. A humanidade já atravessou períodos de extremo isolamento como este, causados por pandemias e guerras. Mas há um ponto em questão. Minha geração, e a geração de minha mãe não viveu isso diretamente. Minha avó nasceu no interior do Espírito Santo, em 1929. Até passou cronologicamente pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas seus efeitos não foram sentidos. Isto é, não foi afetada diretamente pelo belicismo e horror do autoritarismo nazi-fascista.8 6 Lembro aqui do poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “No meio do caminho”. 7 Sobre o gênero como categoria de análise histórica ver: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica (1991). Texto original: SCOTT, Joan. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press. 1989. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. 8 Sobre o fascismo ver: PAXTON, Robert. A Anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. 196 Maternidades Plurais Trazendo essa reflexão para a história do Brasil, minha família também se enquadra na maior parte da população que acredita que não foi “afetada” pela Ditadura Militar, advinda entre 1964 e 1985. Em outros termos, não vivenciou o isolamento de natureza política ou algo congênere. Nossos parentes não foram presos políticos, exilados, mortos, desaparecidos ou torturados. 9 O isolamento de muitas famílias, que inclusive deixaram seus lares e seu país para viver no exílio ou clandestinamente, não nos afetou.10 Esse conjunto de pessoas, que acredita não ter “sofrido” com o regime autoritário, talvez tenha sido direcionado para tal crença ou se esquecido dos anos de exceção. O esquecimento é às vezes provocado, por mais que não nos demos conta disso. 11 Minha família e parte da população se esqueceu do quão difícil era adquirir bens materiais ao longo dos anos 1960. Se esqueceu da desvalorização do valor real do salário mínimo ao longo da Ditadura Militar, não atualizado conforme os números da inflação. Se esqueceu que antes, ao completar dez anos de empregado, o trabalhador adquiria estabilidade. Quadro alterado com a lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em 1966, abolindo a estabilidade.12 Minha família, que não lia jornais e não assistia televisão, nem soube que houve censura aos meios de comunicação. Minha família, que não tinha parente juiz ou deputado ou funcionário público, não soube que houve cassação de mandato ou perda de estabilidade no emprego. Também se esqueceu de votar, isto é, esqueceu do quão importante poderia ser o voto no processo de mudança política de um país. 13 Na verdade, nem sei se um dia ela soube de tal importância. E a culpa é da minha família? Eu na verdade tenderia a distribuir as responsabilidades. Parte considerável da família sequer completou o Ensino Fundamental. A falta de acesso à educação básica de qualidade também é um elemento a somar no espectro do esquecimento. Acrescida à vontade política que forjou tal esquecimento, manipulada por forças “invisíveis”, que detêm o poder de influência ou de formar a opinião pública em moldes gerais. Acredito, por fim, que esquecemos da história de nosso país. Ou não nos ensinaram parte dessa história. Não nos fomentaram sobre a importância de se conhecer a história, de se ter consciência histórica sobre os eventos que nos atravessam. O simples decorar de nomes e datas tem ajudado pouco 9 Sobre maternidade e paternidade na ditadura ver: MACHADO, Vanderlei. Paternidade, maternidade e ditadura: a atuação de pais e mães de presos, mortos e desaparecidos políticos no Brasil. História Unisinos, v.17, n.2, p. 179-188, mai./ago. 2013. 10 Sobre o exílio durante a Ditadura Militar ver: ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. 11 Sobre memória, história e esquecimento ver: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. e Janaína Amado (Org.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. FGV, 2006; ROBIN, Régine. A memória saturada. Campinas: Ed. Unicamp, 2016; NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Proj. História. São Paulo. (10), dez, 1993. 12 Sobre a criação do FGTS e a abolição da estabilidade no emprego ver: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. 13 Sobre os anos de Ditadura Militar no Brasil ver: ALVES (1984); REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditaduras, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; FERREIRA, Jorge.; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. O Brasil republicano, v.4. 197 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) no processo de compreender as trajetórias de mulheres e homens ao longo do tempo. Eu, como uma profissional da História, tenho sentido muito por isso. Vejo ainda, que preciso dar minha contribuição tanto para a construção desse conhecimento quanto para o ensino do mesmo ao longo dos anos que pretendo ter pela frente. Mas o que isso tem a ver com os tempos de pandemia? Defendo a necessidade de nos “afetarmos” mais com o outro. Precisamos nos colocar mais no lugar do outro, isto é, ter empatia pelo outro.14 Apesar de não ter vivido a Segunda Guerra Mundial ou a Ditadura Militar no Brasil, tenho consciência do quão difícil foi. E sinto muito por isso. Apesar de não ter familiares que morreram pela pandemia de corona vírus, tenho consciência que esta é a realidade de milhares de pessoas. Eu não tenho ideia do quão doloroso é perder um pai, uma mãe ou uma filha. Mas acredito que a consciência histórica me empodera perante as vicissitudes do mundo, me faz ver os acontecimentos enquanto parte de uma História que está sendo escrita e reescrita, pela via dos fatos, dos rastros e das lembranças. Essa mesma consciência me confere sensibilidade para com o outro, aquele que é diferente de mim.15 Me permite compreender que eu, na qualidade de mãe e pesquisadora, preciso ter paciência com o tempo que tenho a disposição para escrever minha dissertação. E que preciso aproveitar bem esse tempo, dando o meu melhor. Por outra via, me permite compreender, por mais que eu hesite, que talvez algum trabalho acadêmico, escrito por uma pessoa com menos responsabilidades, como por exemplo a criação de uma filha, venha a ter um resultado final mais elogiado pela academia. Estou ainda em processo de aceitar que tenho limitações: emocionais, acadêmicas e temporais. Uma grande questão talvez seja conciliar esse mar de vontades que se abre ao meu redor. Tantos gostos, tantos desejos de ir adiante. Como forma de me organizar, optei por duas dimensões: ser mãe e historiadora. Mesmo estabelecidas tais dimensões, ainda é um trabalho e tanto. Mas gosto tanto de ser mãe da Antônia que nada mais faz sentido sem ela. Por outra via, eu realmente amo o ofício de historiador. Me identifico com os textos, com as fontes e com sua escrita. Tento aproveitar ao máximo o tempo que tenho ao lado dos livros, dos cadernos e do computador, tentando conciliar esses meus amores. 14 Sobre empatia ver dissertação de MARINO, Taynna Mendonça. Empatia em tempos de pós-humanismo: um estudo sobre alteridade e compreensão histórica a partir da obra Androides sonham com ovelhas elétricas?. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. 15 Sobre o outro e a diferença, ver: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. 198 Maternidades Plurais 30 Essencialidade dos serviços, essência do lar Camila Bylaardt Volker 1 Esse relato foi criado para um projeto de mulheres cientistas na pandemia. Estou consciente de que muitas mulheres estão em situações muito piores do que as aqui relatadas, por toda a desigualdade social e de gênero no Brasil. Desejo para todas nós mulheres muita força: que nossas conquistas sejam cada vez mais respeitadas e de fato expandidas para todas aquelas que se sentem parte desse gênero (e as que não se sentem parte também). A primeira coisa a se colocar nesse relato é o meu lugar de fala: sou uma mulher, heterossexual cis, branca, professora universitária, casada, com dois filhos (de 9 e de 1 ano e meio). A segunda coisa a se falar é que eu praticamente sinto vergonha desse meu lugar de fala. Há semanas escrevo esse relato e não sei ainda se terei coragem de enviá-lo, pois ele me soa tão repetitivo, traz de novo velhas questões, segue batendo nas mesmas teclas. Além disso, eu sinto que o meu relato não contribui para nenhuma discussão; temo que os outros relatos das outras mulheres que têm o mesmo lugar de fala que eu, sejam mais ou menos como o meu e todos esses relatos juntos ressoem um longo canto de classe média sofre. Entretanto, escrevi o relato. Essa atividade começou de uma maneira bem acanhada, e depois passou a fazer um pouco mais de sentido, pelo menos pessoalmente, pois me fez despejar no papel algumas elaborações de questões que estiveram sempre latentes e acabaram ficando mais evidentes no confinamento. Antes da quarentena começar, lembrei que eu já havia passado recentemente por uma quarentena, chamada licença-maternidade, em que o isolamento e a imersão no ambiente doméstico não são obrigatórios, mas acabam, infelizmente, tornando-se uma realidade. Assim, com essas experiências prévias de prisão domiciliar, acreditei ter alguma noção do que estaria por vir. Dias antes da quarentena começar, quando a rotina ainda funcionava normalmente, avisei à mulher que trabalha na minha casa e cuida dos meus filhos, meu braço direito, minha principal rede de apoio: "quando a quarentena começar, você também vai ficar de quarentena. Nós vamos parar de trabalhar na universidade e ficaremos em casa, então você também fica na sua casa e eu continuo te pagando normalmente". 1 Doutora em Teoria Literária/ professora da UFAC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9003416607332497 199 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A princípio ela tomou nosso combinado muito tranquilamente. Estávamos em meados de março e ela já tinha recebido pelo serviço do mês. Era como um feriado prolongado. Quando abril chegou e a quarentena não terminou, ela me procurou, antes que eu tivesse pagado o salário, perguntando sobre a nossa situação. Eu paguei o salário dela e disse que mantínhamos o que tinha sido acertado antes. Ela não se conformava muito com o fato de receber e não trabalhar; reclamou que sentia falta do trabalho, saudade das crianças; disse que estava disponível para me ajudar no que eu precisasse. Em maio, nas imediações do dia do pagamento, novamente a mesma conversa: saudades do trabalho, saudades das crianças, aflição por ver todas as amigas trabalhando normalmente enquanto ela ficava em casa. "Fique em casa", eu recomendei. "Aproveite para fazer tudo que você não faz por falta de tempo". Ela alegou que já tinha feito tudo. "Vou mandar as crianças praí", brinquei. "Manda!". Rimos da situação e segue a quarentena. Enquanto eu conto parcialmente as minhas conversas com ela, aqui em casa vivíamos num estado de sítio. A quarentena “feriadão em casa” já tinha passado de fase e se tornado elucubrações diárias de planos de fuga; ocasionalmente, a situação me parecia tão insuportável que eu tinha acessos de fúria, de choro, de taquicardia. O trabalho remoto que eu fazia em casa era turbulento, feito em atropelos, em meio às demandas das crianças e da casa, com milhares de refeições se enovelando umas nas outras; sempre tinha uma criança com fome, muitas vezes em horas diferentes, fora a fome que eu sempre sinto por ainda amamentar. Inclusive, essa foi uma questão que rapidamente se transformou: se antes da quarentena eu já estabelecia horários para as mamadas diurnas e sonhava com o fim da amamentação, os primeiros dias de quarentena acabaram com os meus planos. Para o bebê, o fato de eu estar em casa o dia inteiro era uma maravilha: mamadas longas, curtas, espaçadas, por qualquer motivo e a qualquer hora. Além disso, o medo do vírus e a certeza do benefício do leite materno me impedem de empreender a cruzada que implica um desmame. No meio disso tudo, a empregada me manda uma mensagem. Uma amiga nossa, minha e dela, tinha ligado desesperada. A rede de apoio de muitas mulheres se desfez ou se mostrou com todas as suas falhas durante a pandemia. Minha amiga queria alguém para ficar na casa dela, de quarentena, cuidando da filha para que ela pudesse trabalhar. A empregada me perguntava se ela devia ou podia ir. Confesso que, ao ouvir a mensagem, senti raiva da minha amiga. Dificuldade para trabalhar eu também tinha. Problemas na organização doméstica eu também tinha. Filhos para cuidar eu também tinha e mais que ela, já que tenho um bebê descobrindo o mundo dentro de casa. Se a empregada fosse trabalhar para alguém, deveria ser para mim, que pagava o salário. Por outro lado, eu não queria trazê-la para casa, pois sabia que ela tinha a família dela e, principalmente, tinha o direito de permanecer em quarentena. "Empregada doméstica não é serviço essencial" — essa frase ressoava na minha cabeça. Minha amiga me mandou um áudio desesperado: trabalho, criança, marido viajando e todas as nuances de uma situação que, ressalvadas algumas diferenças, era a minha. Eu poderia respondê-la chorando as minhas agruras. E, ao invés de ficar simpática à situação dela, uma antipatia gigante se apoderou de mim. Talvez eu preferisse nem ter sido informada dessa situação, já que a empregada doméstica tem autonomia para fazer o que ela quiser e isso não é algo sobre o qual eu tenha que dar o meu sim ou o meu não. Respondi que se ela quisesse contratar a empregada que trabalhava para 200 Maternidades Plurais mim não havia problema. A empregada não quis mudar de patroa e minha amiga arranjou outra pessoa para trabalhar para ela. Se o meu caso é extremamente brando e privilegiado, nos dias de pandemia cansei de ver relatos de tragédias familiares que se desencadearam por causa do vírus e da dificuldade ou impossibilidade de aceitação de uma premissa que já escrevi aqui: "empregada doméstica não é serviço essencial". Quantas famílias, dos dois lados, não foram assoladas por diversos problemas por manterem funcionando um serviço que deveria ser pago, mas não executado? Não vou trazer essas tragédias para essas páginas, mas quem lê esse texto facilmente se lembrará de várias. Conto esse caso talvez por me eximir da culpa de não ter sido uma rede de apoio para minha amiga ou para a empregada. Conto esse caso talvez porque a minha culpa não me faz ter razão. Conto esse caso para exemplificar como as mulheres da minha classe social, as que trabalham fora e têm uma vida profissional consolidada e demandante, se viram de pés e mãos atadas, obrigadas a fazer um serviço para o qual elas foram formadas, mas não o fazem: o serviço doméstico. As mulheres da minha classe social que têm filhos e regem uma casa (com ou sem marido) acabaram se tornando o que elas sempre tentaram evitar: donas de casa. Conhecendo as histórias das minhas avós, vendo a história da minha mãe, eu sempre tive pavor de ter toda a minha vida "reduzida" a uma vida doméstica. Nas minhas duas licenças-maternidade o meu maior conflito era esse: por causa do nascimento de uma criança, fiquei encarcerada no lar. Como eu disse anteriormente, essa é uma prisão voluntária e involuntária. Por um lado, é possível sair com um bebê ou uma criança pequena e, eventualmente, curtir uma festinha. Por outro lado, na maioria das vezes que fiz isso, curti uma festinha num canto, tentando fazer o bebê sossegar. Dessa forma, com os meus dois filhos eu preferia fazer programas que fossem programas de bebês ou crianças (pracinha, parque, atividades diurnas ao ar livre), do que programas de adultos, já que os programas de adultos eram sempre convertidos em uma mãe desejosa de se divertir, mas obrigada a ficar de escanteio por conta do bebê. Como tenho um bebê de um ano e meio, eu não tinha saído completamente da prisão domiciliar. Minhas noites e meus finais de semana já estavam constrangidos pela obrigação de cuidar de uma criança que mama e me permitia poucos momentos de aproveitar "livre, leve e solta". Antes da quarentena, meus momentos de liberdade eram praticamente todos ligados ao trabalho; quando eu voltava para casa, saudosa, culpada e preocupada com o meu bebê, eu queria ficar disponível para ele e para minha outra filha, já que eu tinha ficado um tempo fora. E então, a quarentena faz o meu pior lado se aflorar: dona de casa, angustiada pelo excesso de tarefas domésticas, tendo que resolver tudo, do brinquedo desaparecido ao pagamento de contas, frustrada por não conseguir exercer a minha profissão ou me dedicar aos meus passatempos. Essa situação implica, claro, em um conflito sistemático com o outro, o marido. Por mais que se tente acalmar os ânimos e contornar desavenças em um momento tão delicado, e por mais que o marido tente não se aconchegar em seus hábitos machistas, a divisão das tarefas domésticas sempre pesa para o lado da mulher e potencialmente vira uma guerra. Nós, mulheres, entramos nessa guerra perdendo. Nós nos sentimos obrigadas (e fomos formadas para pensar assim) a dar conta de tudo: dos filhos, da casa, da comida, das contas, do trabalho... 201 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Os homens (heterossexuais cis) não se sentem constrangidos dessa maneira: uma louça não lavada ou uma casa suja é só isso mesmo, uma louça não lavada ou uma casa suja. Não é algo por fazer ou o indício de algo que deveria ter sido feito por alguém e não foi. Entre todas as demandas, o homem certamente vai se dedicar ao trabalho dele. Por causa disso, as tarefas domésticas não serão um peso para o homem, pois ele não se sente responsável por elas. Mas nós nos sentimos responsáveis, seja por fazer ou por delegar a tarefa para alguém. Quando todas as redes de apoio se desmontam, da babá à escola, da casa da avó ao passeio com amigos, resta o que sempre houve: o lar. O lar com os seus conflitos e com as suas eternas pendências não resolvidas. O lar, a semente inicial do machismo, onde todos os conflitos sociais emergem, enraizados em relações familiares. Tanto estudo e tanto trabalho para terminar naquele lugar de onde eu sempre fugi... O que mais me exaspera na minha situação e na situação de tantas outras mulheres é que, no fim do mundo, toda emancipação que algum dia conquistamos acaba em casa. As nossas conquistas, as conquistas das mulheres, deveriam ser avaliadas sobre esse viés: o que sobrevive da nossa liberdade em tempos de crise? Cabe refletir se esse questionamento faz sentido para os homens heterossexuais cis. Do meu lugar de fala, até onde consigo perceber, acho que não. A pandemia fez com que as disputas internas do lar se acirrassem, desnudando vários problemas. Quem tem o trabalho mais importante? A princípio, ninguém. Mas se uma pessoa fica sobrecarregada com serviços domésticos (que são essenciais), provavelmente não conseguirá executar a contento o trabalho de sua profissão. A tirania da cozinha — cozinhar pode ser tanto uma válvula de escape como uma prisão — engessa todo o meu cotidiano. Como amamento, obviamente o encargo com o bebê é maior para mim. Como filha de um lar brasileiro de classe média estruturado através do trabalho doméstico das mulheres e da liberdade dos homens, sinto-me (voluntariamente e involuntariamente) na obrigação de realizar e gerenciar as tarefas domésticas. Tive que repetir exaustivamente para mim mesma que eu não preciso dar conta de tudo. Que eu teria que escolher entre varrer a casa ou revisar um texto. Que eu teria que escolher entre dobrar e guardar roupas e terminar de escrever um artigo. O serviço do lar teria que ser repensado e reavaliado em termos do que é mais necessário. Não é possível manter o padrão anterior de funcionamento da casa e continuar trabalhando na universidade ou aproveitar o tempo para atualizar leituras, assistir lives ou redigir artigos. O que não pode parar? A cozinha. O resto que aguarde. Não maratonei nenhuma série, não vi lives, não vi filmes..., mas consegui declarar imposto de renda, enviar pareceres, participar de bancas, fazer projetos e escrever esse relato. Até que a gestão da louça na pia chegasse a um consenso, semanas se passaram. Até que a gestão da rotina do bebê fosse compartilhada, semanas se passaram. Até que a gestão da rotina da filha mais velha fosse estabelecida, semanas se passaram. E, depois de um certo tempo, assumir as tarefas da filha mais velha também se tornou uma questão, pois descobrimos, atônitos, que a escola em que matriculamos nossa filha era ou tinha se tornado um show de horrores. O ensino remoto dela começou timidamente, com revisões do conteúdo já visto em sala; como o tempo ia passando e a quarentena continuava, começaram a ministrar novos conteúdos e postar aulas online. Minha internet tem limite de dados e aquele mar de matérias não fazia muito sentido. Começamos nós mesmos a inventar assuntos a partir da nossa habilidade e do desejo dela. Mas montar 202 Maternidades Plurais uma aula para uma criança é trabalhoso e não tínhamos esse tempo. Eu, escrava da cozinha e tentando fazer alguns serviços acadêmicos, ele, também ocupado com a casa e as crianças e mantendo o próprio trabalho na universidade. Acabamos resolvendo que o melhor era seguir o programa da escola. As aulas síncronas (quem fez essa palavra virar moda?) são de uma qualidade duvidosa, as crianças são tratadas como idiotas, fora a série de assuntos que têm uma abordagem altamente questionável, para não dizer incorreta. Além disso, como vários já disseram, as escolas se revelaram extremamente conteudistas; agora, que não há mais recreio, lanche, educação física, colegas, funcionários, professores, entrada e saída, sobrou apenas um monte de perguntas para responder, páginas para ler, operações para fazer... Haja disposição para enfrentar o mau humor, justificado, das crianças na hora de fazer as tarefas da escola. A tarefa diária é um momento de muito conflito e eu não consigo me decidir entre acabar logo com tudo isso e tirar minha filha da escola ou perseverar resignadamente em algo que simplesmente não faz o mínimo sentido. Essa minha indecisão, que é compartilhada pelo pai, acaba influenciando o comportamento dela e nós três vamos nos arrastando numa confusão de humores e desejos e impaciência; mas, principalmente, de descrédito com o que a escola se transformou. Nessa fase da quarentena (estamos quase completando quatro meses em casa), conseguimos estabelecer uma certa economia doméstica, obedecendo uma rotina limitante, como toda rotina, mas libertadora, pois sabemos mais ou menos quando poderemos ter algum tempo disponível para trabalhar. A universidade segue sem aulas. Tentei mobilizar alguns alunos para fazermos um projeto de extensão. Esbarramos em um problema que será cada vez mais evidenciado: dos alunos que queriam participar, vários não tinham condições, pois só tinham celular, um equipamento portátil e muito presente, que esconde uma particularidade: é bom para receber conteúdo, mas ruim para produzir. Paralelamente, recebemos, há alguns dias, uma portaria que permite transformar o ensino presencial em ensino remoto; o EAD virá, sem discussão, sem contemplar as dificuldades tanto do corpo docente, como dos funcionários e dos alunos. Como será possível conduzir uma disciplina se a maior parte dos alunos só poderá assistir aulas e comentar, já que não possui instrumentos para criar formas de interação que vão além das possibilidades de um smartphone? Por outro lado, eu me pergunto, temerosa, se conseguiria assumir todas as minhas turmas em formato EAD. Se a minha carga horária semanal de aulas já é intensa presencialmente, como vou conseguir lecionar, atender as demandas dos alunos e manter as tarefas domésticas e maternas? Só se eu trouxesse a empregada de volta. Mas aí caímos na questão que impulsionou esse relato: Empregada doméstica é um serviço essencial? Outro dia, a empregada me procurou. Deprimida, com ataques de ansiedade e claramente angustiada. Foi assolada pelo tédio e pela tristeza; depois de toda uma vida ocupada em servir os outros, agora, que ela não servia mais ninguém, a não ser a si mesma, com os filhos já grandes, três meses de quarentena foram suficientes para ressaltar um vazio que lhe é por demais opressor. Ficou refém da televisão, da sessão da tarde, de conversas e memes do WhatsApp. Ela queria voltar. Mesmo temerosa por saber dos riscos que um retorno traz, aceitei. Em uma manhã de segunda-feira fui buscála em casa. Ela chegou animada, as crianças ficaram felizes e eu pude sentar no computador para finalizar um projeto de PIBIC que eu estava fazendo de uma maneira muito atropelada. Parecia um sonho, de tão irreal. Trabalhar. Escrever uma frase até o fim. A casa limpa. Sentar na mesa para 203 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) almoçar sem ter me ocupado do antes e do depois. No dia seguinte, estávamos só nós, de novo, na quarentena. Mas tinha almoço pronto. E ela estava feliz e descansando em casa: depois de três meses, o serviço foi pesado. Fiquei pensando em como o privilégio é milimetricamente construído. Se eu sempre duelei com o serviço doméstico, mas tive apoio para estudar, me formar, fazer pós-graduação e garantir uma vida íntima que me permitisse, mesmo que com ressalvas, o lazer e o prazer da leitura, da música e da arte, a desigualdade social também ecoa nisso: há mulheres que foram formadas para servir e quando esse serviço é suspenso, a segurança de uma vida íntima que nos faça contemplar o vazio com algum nível de tranquilidade também entra em questão. Haverá um caderno de relatos para essas mulheres? Eu fico me perguntando, dentro da minha bolha, quantas domésticas vão enfrentar esse vazio existencial. Imagino que poucas, pois o que vemos por aí é que, apesar de todas as considerações sobre a essencialidade do serviço doméstico, ele continua sendo executado. E essas mulheres então vão enfrentar a tragédia do vírus, da desigualdade social nos serviços de saúde, educação, segurança e direitos. 204 Maternidades Plurais 31 O desafio de uma mãe autônoma, gemelar e sobrevivente – resistência para a reexistência: a pandemia apenas como novo ciclo Camilla de Almeida Santos Cidade 1 Traço meu relato pessoal sobre maternidade, autonomia e pandemia, pois eu me sinto naufragando quando perco o controle e materializá-lo em letras e palavras me faz ter a sensação que estou tomando-o de volta. Fiz 36 anos no dia 6 de março de 2020. Logo após meu aniversário, no dia 10 de março entramos em quarentena, e em 12 de março foi decretado lockdown na minha cidade, Niterói, RJ. Antes disso, eu me sentia em uma espécie de ápice. Era o início do primeiro semestre em que eu não era mais aluna da graduação de Produção Cultural da UFF, havia defendido meu trabalho de conclusão de curso em 18 de dezembro de 2019. Enfim estava formada! Depois de dez anos de graduação, no último dia possível do último semestre, eu apresentei o meu TCC! Um filme autônomo, com verbas de apoio da universidade, empréstimos de equipamentos e doação de trabalho voluntário. Sim, eu consegui, eu me formei e realmente consegui. Fiz um filme, apesar de muitos desacreditarem do meu projeto ou de minha capacidade para realizá-lo. Logo eu, a mãe de gêmeos, que tinha acabado de perder o pai e tinha ficado sozinha em um edifício nos moldes do filme Aquarius. Logo eu, do curso de Produção Cultural, pegar eletivas em cinema para fazer um filme, imagina, quem eu pensava que era? O mundo parecia querer me engolir, mas eu tinha Lúcia Bravo, minha orientadora, uma mulher forte e que, tal como muitos, confessou no discurso da banca avaliadora do meu TCC que se desacreditou de mim em algum momento, nunca me deixou perceber! Eu obtive nota máxima da banca, e ela me consagrou com palavras de orgulho. Em 2020, aos 36 anos, me fora concedida a vivência de ser graduada com louvor, e pra completar, meus filhos estavam alfabetizados, era tipo “venci, me formei e eles leram e escreveram! Estou na Pós-Graduação de Comunicação e Jornalismo, é incrível!" 1 UFF, Bacharel em Produção Cultural, fundadora do Núcleo Interseccional em Estudos da Maternidade (NIEM). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6405574703547733 205 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Essa sucessão de vitórias construiu a minha autoconfiança; finalmente eu tinha provas pra mim mesma sobre minha capacidade. Superei todas as expectativas de prazos e possibilidades sobre a mãe solo e universitária. Peço perdão pelo auto exaltação, mas foi a materialização de um milagre! E então veio a pandemia. Fiquei em lockdown 64 dias com eles, em um apartamento, sem sol e tendo que dar conta de home office do estágio, da pós-graduação e quando iniciaram as aulas deles, duração de 4h diárias, ao vivo, para os filhos. Quando tive a notícia do fechamento das coisas e da necessidade de quarentena, não fiquei desesperada, pois sabia, que eu já havia estado em isolamento com meus filhos durante três anos. Porém, essa nova experiência me trouxe vários sentimentos do passado que achei que não iria mais sentir. Até ser mãe eu nunca havia sofrido nenhuma opressão direta, pelo menos não que eu tenha percebido. Desde os vinte e poucos anos estava acostumada a ocupar lugares onde eu era a única mulher trabalhando. Fui a primeira mulher selecta (DJ e Mestre de Cerimônias) de soundsystem no Brasil e trabalhando entre homens, sendo muito assediada, eu me travava da minha feminilidade em vez de desfrutá-la. O gênero é uma armadilha socialmente construída desenhada para oprimir mulheres, tracei como estratégia inconsciente de sobrevivência, uma identidade de gênero não óbvia, um mistério, que me deixava sempre só, apesar das oportunidades de não estar só. Perto dos 30 anos, comecei a sentir e me dar mais oportunidades de viver minha mulheridade, ela explodia de dentro de mim. E trago este termo, do inglês, Womanist, humanist, humanidade da mulher, em sua vivência de mulher, pelo corpo que ocupa e sem ignorar as lutas e vivências da opressão de gênero. Me libertei com muita intensidade, e num rompante do universo, vivendo a plenitude da minha nova liberdade, sem querer, sem nem entender... eu estava grávida. Não há método contraceptivo 100% seguro e só descobri a quantidade de mulheres que passam pela mesma situação, quando você está dentro. Eu nunca havia pensado em ser mãe e quando me vi grávida me desesperei, mas o fato de serem dois me tirava qualquer outra possibilidade da mente que não fosse a de tê-los. O pai apoiou, agradeceu e foi até feliz para uma clínica de reabilitação buscar mudar sua própria vida; “eu primeiro, pois sem mim não existem nós”. O impacto de engravidar de alguém assim, e que musicalmente era referência de meu trabalho, que eu era fã, foi amenizado por suas intenções comigo e com os filhos e apresentadas em compromisso com meus pais e socialmente com sua grande família. Ele reviveu como um fênix, e eu nasci nova persona. A mamãe Camilla, que sussurra internamente “priorize as suas prioridades”. Ser mãe me tirou de todos os meus círculos sociais e trabalhos. Uma das grandes violências, era ser procurada por contratantes, o que me enchia de esperança, e quando eles diziam o que queriam, era sempre o contato do pai dos meus filhos, nunca o meu, e aquilo, ia pouco a pouco me violentando de uma forma, que eu não sabia explicar. Sentia que eu não desistia da minha carreira, mas que ela escorria pelas minhas mãos, em cada malcriação que eu fazia ao sentir a decepção do convite que não era pra mim. E eu fiquei 3 anos em isolamento social, quase como uma quarentena, só que o mundo todo estava funcionando e só o meu mundo que acontecia paralelamente dentro de um apartamento com meus dois bebês, que em pouco tempo andaram, falaram e pouco a pouco me tiraram daquela 206 Maternidades Plurais estafa que foi cuidar dos dois, muitas mamadeiras derretidas e muitas noites sem dormir, e poucas visitas. As mulheres mães são excluídas da sociedade. São várias formas diferentes e intensificadas por alguns fatores pré-determinados. A sociedade exclui as mulheres mães, e culpabilizar apenas o genitor, quando uma mãe é deixada sozinha com sua criança, é um erro. Todos precisamos refletir. Somos uma sociedade. Dizem que é preciso uma aldeia inteira para se criar um curumim. Decerto que mães acompanhadas, não solo, são menos abandonadas pela sociedade do que aquelas que estão sozinhas. E é mais do que comprovado que mulheres negras são mais abandonadas que mulheres brancas, assim como podemos observar que raramente mulheres com boas condições financeiras, se mantém sem companheiro após a maternidade. Pontuo socialmente a gravidade na situação em ausência de um homem, e isso ainda é uma herança direta patriarcal e machista que os homens são o centro do universo, e “valem mais que as mulheres, e que há alguma coisa errada, com alguma mulher desacompanhada”. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) já em 2020 fez uma pesquisa de regras sociais de gênero na qual analisou dados de 75 países chegando a resultados assustadores: Os resultados mostram que quase metade das pessoas sente que os homens são líderes políticos superiores relativamente às mulheres e mais de 40% acredita que os homens são melhores na área de negócios. O estudo revela ainda que 91% dos homens e 86% das mulheres, são preconceituosas em relação a mulheres na política, economia ou educação. E quase um terço dos homens e mulheres inquiridos considera aceitável que um homem bata na sua esposa. Traçando a devida (in)coerência do pensamento mundial, como mulher, a mãe solteira “vale menos” que uma mulher sem filhos. A “mãe solteira” sofre outras formas de violência no abandono. Como se não bastasse ter que lidar com a responsabilidade e trabalho enorme que é um recém-nascido, com as dores do corpo, com as mudanças em seu próprio corpo, essa mãe muitas vezes é abandonada por seu meio social, como se realmente fosse uma obrigação apenas do parceiro ser apoio e companhia. Se a pessoa não tiver muito consolidada suas relações pessoais, as antigas amigas somem, não entendem os desabafos e aos poucos as comunicações vão se desfazendo. Há homens que enquadram as mulheres mães, como mulheres descuidadas, que deram mole e engravidaram ou como desesperadas em busca de maridos, a mulher passa a ser uma algoz, é como se fossemos as mulheres mães caçadoras, e eles, os incríveis homens solteiros, são as presas. É comum a narrativa de que muitos se aproveitarem das carências, se aproximam, até fazem alguma companhia, mas não dão um passo adiante, como se assumir uma mulher mãe com filho pequeno como namorada, também fosse muito dolorido. Há as relações familiares, para muitas famílias a situação de ter filhos desacompanhada ainda é uma “vergonha”, a família muitas vezes aceita a criança, mas a todo tempo cobra aquela mãe, o favor de acolher e alimentar ela e ao seu filho. Fora a parte da pensão, onde as pessoas ainda acham, 207 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que é algum tipo de golpe receber contribuição financeira para seus filhos. Como se pensão alimentícia dessa conta de solidão e de sobrecarga. Há ainda as mães autônomas que são, para além de “solteiras”, mães que moram só e de onde advém toda responsabilidade não apenas de si mesma, da criança, mas também do lar, e muitas vezes da fonte de renda. A mãe que tem que se virar para sair e fazer compras de mantimentos com seu bebê a tiracolo, pois não tem com quem deixar. Ainda temos os espaços urbanos que muitas vezes não dão autonomia de saída as mães de bebês, escadarias, ruas que não passam carrinhos de bebês. Pensem nas mães de múltiplos, como fazem para manterem suas autonomias, se até por volta de 4 anos, esta mãe não consegue sair sozinha com duas crianças em segurança, imagina três. Não tem três mãos, mas tem gente para criticar as coleiras peitorais infantis, ah… isso tem! Nos acessos e direitos das mães universitárias, me signifiquei, eu vinha de um de um luto, e encontrei a luta de mães na universidade. Encontrar o Coletivo de Mães da UFF em construção foi um importante passo para a minha formação e para a empregabilidade de minhas energias. Se o espaço universitário me isolava, não importava, pois eu tinha garra para fazer valer meu direito de lá estar. Havia passado 3 anos sozinha em isolamento, no quarto ano, meu pai morreu, perdi minha casa e quando não tinha nada, eu só tinha os meus filhos e a certeza que precisava vencer aquele momento, eles já estavam em creche integral e essa creche era do lado de onde eu estudava, retornei, lutando contra o tempo e a favor de mim, isto foi em 2017. Quando retornei ao mundo, em stress pós-traumático, o mundo me estranhava, eu era pesada, eu precisava fazer tudo com máximo de empenho, eu era muito séria, eu tomei pancadas que jamais esquecerei. Uma delas o dito da não ocupação de espaços, apagamento da minha história e segregação por meninas que se diziam feministas, mas que ainda não tinham vivido nada, ou me abraçariam em vez de me negar espaços. Eu fiz tudo ao mesmo tempo, construí espaços, abracei outras e por fim, fui abraçada, por mestras, e por irmãs que a luta de mães me trouxe. Como eu disse, 2020 eu estava em um ápice! O ano anterior e os outros haviam sido vencidos, mas ainda existia um enorme e dolorido desafio. Havia iminência na formação, que era necessária pelo risco de jubilamento, me levando a fazer 8 matérias no semestre, sendo o mesmo ano que a gente fazia a segunda mudança de casa, em apenas 2 anos, mudança de escola e alfabetização. Eles haviam estudado a vida inteira escolar em uma creche no mesmo quarteirão e ao lado do Instituto de Artes e Comunicação da UFF, onde eu estudava. Nossa vida toda estava mudando. Foi um ano muito estressante, de sobrecarga acadêmica, de longos engarrafamentos, de milhares de reuniões de pais, que eu não podia ir, e as crianças integrais em uma escola que prometeu acolhimento, mas me gerou demandas, mais demandas! Sabemos que toda mãe tem que se perdoar, e fazer escolhas, em cada escolha, mil renúncias. Entender o processo que tudo não vai dar, e que sempre vai faltar algo, foi parte importante, para resistir. Em vários momentos e traçava mentalmente uma analogia com o filme Procurando Nemo, e pensava na valiosa lição da Dory; “continue a nadar”, pois eu não tinha escolha, tinha que fazer tudo ao mesmo tempo. Para estar em uma reunião de pais, estaria faltando a outra se fossem paralelos os horários. E essa é a realidade da mãe autônoma de gêmeos. 208 Maternidades Plurais Marco a ênfase da luta gemelar, quando se pensa que é comum encontrar relato de exaustão por mães, de recém-nascidos, de gravidez comum, com um bebê, muitas vezes casadas. É comum o relato de cansaço de casal com um bebê. Transformando em números, os adultos que maternam/paternam em casal tem 0,5 bebê por adulto. No caso das mães-gemelares, solo e autônomas, se tem dois bebês por adulto. E essa conta não fecha, mas o tempo passa. Mães de gêmeos desenvolvem práticas incríveis. Uma delas para mim, é sempre que estava difícil demais, imaginar a mãe de trigêmeos. Neste momento agradecia, ter um peito para cada filho, assim como posteriormente ter uma mão para segurar cada um, o que faz total diferença e essa conta fecha. Duas crianças, duas mãos. Dois bebês, dois peitos. Mais que isso, tenho certeza, eu não ia aguentar! Deus sabe o que faz! E trabalhamos nas cargas máximas. Sinto que assim como gerei dois bebês no tempo de um, na vida; “Resistência para re-existência”. Me apressei, dei meu máximo em todos os projetos, e fui a estagiária, a mãe, a estudante, e retornei a ser a seleta, e os convites aos poucos foram retornando... Também presidente e gestora de coletivo, até que se criou um novo Núcleo, o NIEM, e eu me tornei coordenadora no Núcleo Interseccional em estudos da maternidade, núcleo que estuda as nossas questões e pontua as diferenças das maternidades, aos poucos a vida foi se encaixando (não que as vezes não passem uns vendavais, pois eles passam e a pandemia é um grande…), mas na real a tempestade nunca passa. Tudo ao mesmo tempo e eu nem sei como dei conta… mas são ciclos, e só é preciso continuar. Me acostumei com as notas sete que me davam vontade de chorar, assim como com panelas queimadas, entendi que é assim que vive quem faz tudo ao mesmo tempo. Sempre vai faltar algo, mas o lance é não paralisar. E assim foi com a pandemia. Mãe, autônoma, periférica, com os gêmeos de 6 anos, estudando longe de casa, em uma outra área da cidade, sem carro, mas tendo o privilégio de uma ajudante 1 vez por semana, o que mudou muito a minha vida, mas continuava tendo que dar conta de tudo... Quando veio a pandemia, sentia que iria passar por ela numa boa, pois eu já havia estado em isolamento antes. Me enganei, mesmo depois de tudo que passei, senti que não dava para mim. Emocionalmente voltar a ficar em isolamento sozinha com meus filhos me foi caro, e ainda tendo os atenuantes de nossas 3 escolaridades em formato EAD! Senti pela primeira vez que talvez fosse melhor deixar eles este período com a minha mãe, afinal vinham de um déficit de aprendizagem, minha mãe já havia sido professora infantil, e tinha uma casa que entra sol dentro, o que fez também total diferença, acredito que a falta de vitamina D nos faz tristes e eu precisava ser madura no melhor para eles. Então experimentei. Eles estão lá a cerca de 100 dias, e me é dolorido. Neste tempo eu fiz uma obra necessária de reparos em minha casa, organizei muitas coisas de trabalho pelo NIEM, eu também me inscrevi, fiz o anteprojeto, fiz as provas e entrevistas me submetendo ao processo seletivo de mestrado, mesmo achando uma loucura, enfrentar o mestrado, sendo mãe-gemelar, ainda em pandemia, mas se eu passar, vou cursar com eles em casa, e assim que tem que ser. Criar novos modos. Fazer como dá, continuar... Sempre trabalhando a desvinculação de culpa por nem sempre dar conta de tudo, processo importante de entendimento para não naufragar. Anseio muito a minha continuação 209 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) acadêmica, e não sei como será, só sei que se for, vai ser com eles, estou saindo agora mesmo para buscá-los de volta! E tenho fé! No tempo que tiver que ser, vai ter mãe mestranda, sim! Vai ter mãe significada, sim! Já tem. Na verdade, nós somos o que miramos, e representatividade importa. Deixo um salve, para cada uma das mães que escreveram aqui nesta coletânea, assim como um salve, a cada pessoa com interesse nesta leitura, provavelmente também mães. Há 170 dias, a pandemia existe e eu sou mãe solo há sete anos. Por um tempo somente sobrevivi e agora parto para uma nova etapa, para poder viver plenamente. E isso será novo e resultado de um processo de não paralisação da minha vida, apesar do confinamento. Em cada dia feliz, em cada aprendizado, em cada refeição, em cada semana que se encerra sem pendências, em cada fatura quitada de prestação, em cada aprovação, em cada diversão, há os milagres possíveis. Eu sou do tipo de pessoa que tem fé. Na certeza que nem sempre os dias vão ser bons, mas que são necessárias as enxurradas, os transbordamentos, as menstruações. Vem e se vão os furacões... a pandemia é só mais um ciclo, para reorganização de nossas vidas. Apenas vou. Continuo nadando... 210 Maternidades Plurais 32 100 dias de quarentena Carla Ivonne La Fuente Arias1. Meu nome é Carla, sou pós-doutoranda na Universidade de São Paulo e meu projeto é intitulado “Modificação de amido de mandioca por oxidação com ozônio para a elaboração de filmes biodegradáveis.” Atualmente, estou em meu segundo ano e, em fevereiro, recebi a boa notícia da renovação da minha bolsa por mais 12 meses. Tenho uma filha chamada Valentina, em aleitamento materno, com 16 meses agora, 13 quando tudo isto começou. São mais de 100 dias da quarentena e obviamente, o caos está instalado por aqui. Não tinha imaginado como iríamos superar este período, até porque eu não fazia ideia de como seria atravessar uma pandemia (rsrsrs). Meu último dia no laboratório foi em uma segunda-feira, no dia 16 de março. Este dia começou bem engraçado com um meme de um professor prevendo a nossa nova vida remota (agora já não seria mais um meme, é nosso “novo normal”). O restante do dia foi bastante tranquilo, o laboratório estava vazio, haviam poucas pessoas; fiz alguns ensaios no texturômetro e fui embora para casa. Imaginando 1 Doutora em Ciências, Universidade de São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4507306138358485 211 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que não iria mais lá por algum tempo (nem imaginava que seria tanto assim), levei todos os comprovantes de compras, notas fiscais e recibos para “aproveitar” o tempo e fazer a prestação de contas da FAPESP. Um mês antes do início da quarentena, logo quando a Valentina completou 12 meses, tivemos uma notícia preocupante de sua pediatra: “Observei que sua filha teve um pequeno retraso motor, ela não está engatinhando”. Visitamos, por recomendação dela, uma neuro pediatra. Ela nos disse que não viu nenhum problema e que na verdade, faltava estimulação. Por sugestão dela, Valentina começou a fazer fisioterapia 2x semana em casa. Esse processo durou apenas 3 semanas (6 sessões) pois, logo em seguida, começou o distanciamento social e a fisioterapeuta não poderia vir mais em minha casa. Assim, eu estabeleci como uma das minhas metas para a quarentena fazer minha filha engatinhar e logo andar, claro. No primeiro dia da quarentena, uma terça-feira, eu e o pai da Valentina nos organizamos para poder trabalhar com um mínimo de conforto dividindo o mesmo espaço. Ele, que já trabalhava bastante ao telefone, agora precisava fazer videoconferências e eu, que preciso de concentração para a escrita, ou seja, um local com pouco barulho, nem imaginava naquele momento que, meses depois, teria que conseguir me concentrar COM barulho mesmo ao som do Youtube Kids. A primeira semana foi show! Normalmente, eu demoro 1 h e 30 min para me deslocar de casa ao trabalho e quase o mesmo tempo, na volta. Nesse momento, estava escrevendo um artigo com meus mais recentes resultados experimentais. Assim, o tempo extra em casa estava sendo bem aproveitado na escrita. Tomava uns breves descansos para brincar e amamentar a Valentina que (ainda) estava sob os cuidados da sua babá. A amamentação demora 15 min, no máximo, e tem o contato físico, carícias, oxitocinas liberadas, love is on the air. As extrações do leite no laboratório demoravam 30 min, no mínimo, para poder extrair uma boa quantidade de leite, um mero processo mecânico, ou seja, chato. Imagino que, para ela tomar o leite da mamadeira também não tenha muita graça. Enfim, estava no lucro e curtindo o home office até lá (4 dias de paz). No primeiro final de semana da quarentena e, depois de entender a gravidade do problema, resolvemos conversar com a babá e com a pessoa que nos ajudava nos afazeres de casa e pedimos para que eles aderissem a quarentena também. Assim, tivemos que organizar a uma nova rotina, designando horários específicos para os cuidados da Valentina. Em teoria, ela ficaria com o pai das 9h até as 15h e eu ficaria das 15h até as 21h, bom, na verdade, até as 9h do dia seguinte porque dormimos juntas. O almoço ficaria sob a responsabilidade do pai porque gosta de cozinhar (ainda bem!); e eu, lavadora de louça profissional da casa há alguns anos. Enfim, teria um tempo razoável para poder cuidar das tarefas do meu pós-doutorado. O resto dos afazeres de casa como faxina, compras no mercado, lavar roupa ficaria tudo para o final de semana. Descansar? Só no ano de 2021. Minha pesquisa é realizada em parceria por dois laboratórios, um na Escola Politécnica e outro da ESALQ, ambos locais instauraram uma nova rotina também. Uma reunião do grupo foi definida 212 Maternidades Plurais às terças-feiras das 14h às 15h e teríamos um curso de Estatística às sextas-feiras das 10h às 11h30min. A reunião do outro grupo ficou às quartas-feiras das 9h às 11h. O resto do tempo que sobrava teria tempo para focar na escrita de artigos. Definimos também com a minha família na Bolívia (sim, sou estrangeira) um horário diário para fazer videoconferência, que seria das 17h às 18h. Que alegria poder tê-los perto mesmo que longe! Minha sobrinha é a quem fala mais, acho que se desligo o som ainda consigo ouvi-la (rsrsrs). À noite, depois de fazer a Valentina dormir teria mais um tempinho para trabalhar, mas, como não sei o que é dormir mais de 4 h seguidas há 16 meses, nem sempre consigo estender muito (rsrsrs). Acho que a nova rotina funcionou bem o bastante por 2 ou 3 semanas. A partir de algum momento, as coisas começaram a dar errado, não sei quando nem o porquê. Minha filha começou a demandar muito minha presença em todos os horários, inclusive os que não me correspondiam, aliás justamente neles que me procurava mais. Com 16 meses, ela já realizou toda a introdução alimentar, assim o leite materno agora é só um complemento. Sabe aquela criança que não quer comer e recusa os alimentos??? Pois bem, minha filha é totalmente o oposto disso! Ela quer experimentar tudo, come super bem! Apesar disso, está mamando muito mais que antes, como nunca antes, aliás. Ela amamentou a livre demanda desde bebezinho, o que, para ela, significava a quase cada 2h30. Ontem contabilizei as amamentações, foram 13 vezes das 8h da manhã até às 8h da noite, ou seja, quase 1 vez a cada 1h. Ainda, foram umas 4 vezes durante a noite. Por que ela está mamando tanto assim? Não faço ideia! E esse tem sido o grande problema. Apesar de me declarar pró-lactância materna (obviamente, li muitos artigos sobre isso durante a gravidez) estou bastante esgotada! Na última consulta com a pediatra falamos sobre o assunto, e aparentemente, tem sido um comportamento normal entre as crianças durante a quarentena e que a opção seria o desmame, o que não seria legal agora num momento tão atípico. Assim, paciência e aguente firme! Durante as reuniões, câmera desligada, câmera e som ligando e desligando a toda hora, meio ausente, sim, sou eu. No início até tinha vergonha dela aparecer na câmera agora não mais, já me acostumei. Descobrimos uma forma de ter tranquilidade e trabalhar ao mesmo tempo: deixar ela assistindo vídeos no celular. Eu julguei, sempre critiquei isso e claro, agora estou engolindo a seco! Porque isso tem se tornado nossa principal ferramenta. Já sabemos décor várias músicas, aliás as cantamos juntos. O pai coloca músicas em português e eu, em espanhol. Nem tudo é ruim, ela já está falando bastante coisas nas duas línguas. Com a nova rotina toda bagunçada o Ifood tem se tornado um grande parceiro. Além de participar das reuniões e da aula nos horários respectivos, submeti meu último artigo, mas venho sofrendo com o vai e volta dele, as revistas têm recebido muito trabalhos por conta do Covid-19 (todo mundo em casa escrevendo). Assim, o processo de publicação tem sido mais difícil. 213 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Além disso, escrevi uma proposta de BEPE/FAPESP. Para quem não é do Estado de São Paulo, a BEPE é um intercâmbio numa instituição reconhecida no exterior, que os bolsistas FAPESP podemos solicitar. Eu venho planejando esse intercâmbio desde o início do meu pós-doutorado. Porém, depois de escrever o projeto de 10 páginas, corrigir com o supervisor, preparar outros documentos com o supervisor do exterior, enfim um monte de burocracia, a FAPESP resolveu suspender temporariamente a solicitação e as concessões desta modalidade de bolsas. Isso por conta da pandemia, obviamente. Não há previsão para retomada de viagens internacionais; a arrecadação do Estado de São Paulo caiu, com isso a FAPESP receberá menos dinheiro, ou seja, menos bolsas serão concedidas. Que desânimo! Tenho obtido resultados bastante interessantes da minha pesquisa até agora. As embalagens biodegradáveis são o futuro de um mundo mais sustentável. O material que desenvolvemos apresenta características interessantes e com os resultados obtidos depositamos uma patente no ano passado. Nessa nova fase da minha pesquisa pretendo explorar técnicas em grande escala, assim logo estaremos prontos para fazer a transferência de tecnologia à Indústria. Várias reportagens sobre minha pesquisa foram divulgadas na TV, rádio e internet, com isso várias empresas entraram em contato conosco. Porém, nenhuma delas ainda manifestou um interesse real em produzir o nosso produto. Hoje, por exemplo, tive uma reunião com uma empresa espanhola. Seguindo os prazos estipulados pela FAPESP, eu deveria submeter a proposta BEPE para ser avaliada e ter um resultado para poder sair do Brasil antes de janeiro/2021. Os dias estão passando e seguimos num mundo cheio de incertezas, nem sei se ainda terei a chance de conseguir ir. Se eu não puder realizar o intercâmbio, minha bolsa se encerrará em maio/2021. Com um futuro totalmente duvidoso no Brasil, pois se antes estava difícil, agora então só piorará. Concurso? Vai saber quando...... Por outro lado, consegui ministrar 3 palestras em lugares diferentes, na ESALQ e duas em universidades no meu país, a Bolívia. Terminei e encaminhei minha prestação de contas na FAPESP. Atualmente estou escrevendo um review com algumas colegas e a minha co-supervisora. Nos momentos que estou cuidando da Valentina, consigo aproveitar e fazer leituras de artigos que recebo para revisar e de dois livros que estamos lendo para cada laboratório “Quadrante de Pasteur” e “How to write and illustrate a scientific paper”. Apesar de estar fazendo algumas coisas e não estar totalmente parada, sinto que minha produtividade está comprometida, meu ritmo de trabalho é muito lento devido as infinitas demandas da minha filha ao longo do dia. Obviamente, a produtividade acadêmica de todo mundo vai ser afetada este ano, aí eu lembro, que o 2019 também não foi meu melhor ano. O primeiro semestre estava em licença maternidade, outro tipo de quarentena. Será que o primeiro semestre do 2021 consigo trabalhar normalmente? Não sei mais... Mês passado fui diagnosticada com “Síndrome de Quervain”, uma tendinite causada pela má postura da mão (quando seguro a Valentina para amamentar). O tratamento foi infiltração com corticoide, 3 dias sem poder digitar. 214 Maternidades Plurais Além disso, há duas semanas meu notebook teve problemas, aparentemente alguma coisa com o HD: 3 dias na assistência técnica, e assim os dias passam, 6 perdidos à toa. Também tem os dias “especiais” como os de vacina, de dentinho despontando e os dias que o pai sai para resolver emergências do trabalho. Nesses dias, responder e-mails já é um lucro! Sobre o atraso motor que a Valentina apresentou no início da quarentena, adequamos um cômodo aqui em casa com toda a segurança para ela se movimentar livremente. Começou a engatinhar já no primeiro mês; quase 1 semana depois, engatinhava a 100 km/h (rsrsrsr). Em 2 semanas, já estava em pé se apoiando nas coisas e caminhando com ajuda de um brinquedo (é como um andador mais moderninho, não os antigos que são proibidos agora). Nessa semana, aprendeu a subir no sofá da sala. Acho que falta pouco para ela andar sozinha sem ajuda. Um dos principais objetivos da quarentena foi atingido! Ufa! Nessa semana, na reunião, conversamos sobre a retomada das atividades, os protocolos que deveremos adotar, muitas coisas a serem planejadas e tudo sem data específica. Estou morrendo de saudades de colocar meu jaleco e entrar ao laboratório, mas ao mesmo tempo, não consigo imaginar como vai ser ficar longe da Valentina depois de tanto tempo juntas, vou literalmente MORRER DE SAUDADES, que loucura né? Finalmente, gostaria de agradecer por lerem meu relato, usei estás páginas como uma sessão de desabafo. Espero nos próximos anos, ler o texto junto com minha filha e lembrar com carinho destes 100 dias meio doidos. Last but not least gostaria de agradecer ao NIEM – Núcleo Interseccional em Estudos da Maternidade, ao GEPEG (Grupo de estudos e Pesquisa em Gênero) e, ao grupo de Mamães na pós-graduação e Mães na Universidade, pela bela iniciativa. 215 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 33 Uma Jornada Inesperada Carolina Panis1 Era domingo de tarde, as crianças brincavam no chão da sala enquanto eu fazia os famosos cookies americanos da Betty Crocker para esquentar a tarde fria. A neve havia chegado, e estávamos todos assistindo a CNN quando, de repente, entra a chamada de breaking News, e o diretor do National Institutes of Health (NIH), Dr. Anthony S. Fauci iniciava a fala que mudaria os nossos planos: a declaração de lockdown devido à pandemia por Covid-19. Eu, meu marido e 2 filhos estávamos passando uma temporada em Boston, nos Estados Unidos. Aquele era para mim um momento glorioso, afinal, eu nunca imaginava que teria a oportunidade de trabalhar na Universidade de Harvard como cientista. Conforme eu ouvia o Dr. Fauci explicar a gravidade do que estava acontecendo, mais assustada eu ficava. Até que veio a notícia de que nos próximos dias os Estados Unidos fechariam as fronteiras aéreas. Nesse momento, um misto de medo e ansiedade tomou conta de mim. Eu não havia concluído minhas atividades em Harvard, mas não poderia correr o risco de ficar lá presa com a minha família sem perspectiva de retorno ao Brasil. Já estávamos experimentando as consequências do isolamento na vida social de Boston, no mercado já faltava comida, nas farmácias álcool gel e itens de desinfecção se tornaram inexistentes. Eu e meu marido nos olhamos, como quem diz: “e agora?” Decidi na mesma hora que iria ao aeroporto trocar as passagens de retorno ao Brasil. Fui até a estação de metrô, minhas mãos tremiam de ansiedade. A cidade já estava deserta, por conta das medidas de isolamento recomendadas para o estado de Massachussets. O aeroporto estava lotado, nunca vi tanta gente reunida em um mesmo dia. Todo mundo de máscara, tinha até pessoas usando faceshield, luvas e muito, muito álcool gel. No guichê de atendimento da companhia aérea, fui informada de que deveria retornar no dia seguinte para resolver minha situação. Saí de lá com mais medo ainda, não dormi naquela noite. 1 Mestre e Doutora em Patologia Experimental pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-doutora em Oncologia pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Docente no Programa de Pós-Graduação em Ciências Aplicadas à Saúde da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente do Programa de Patologia Experimental e do Programa de Fisiopatologia Clínica e Laboratorial da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora Visitante na Universidade de Harvard, Department of Environmental Health, T.H. Chan School of Public Health, Boston, Massachussets, Estados Unidos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6647155856678648 216 Maternidades Plurais No dia seguinte, fui ao aeroporto as 6h da manhã. Estava mais lotado ainda, muita gente embarcando de volta aos seus países de origem. Tive que esperar mais de 3h, mas consegui trocar as passagens e voltaríamos para o Brasil no dia seguinte pela manhã. Iniciei uma maratona de comprar mala, empacotar as coisas (mesmo assim um monte de itens ficou para trás por falta de espaço), comunicar à dona do apartamento que estávamos saindo de lá, encerrar os trâmites em Harvard, avisar a família que estávamos voltando ao Brasil... uma loucura. Mais uma vez, um misto de sentimentos — medo e alívio — tomavam a minha cabeça. No dia do embarque, chegamos ao aeroporto as 5 da manhã. Dava para ver o medo no rosto das pessoas, aquele tumulto parecia uma Babilônia. Tinha polícia para todo lado. A sensação não era nada boa, afinal, nós sequer tínhamos máscaras ou álcool gel e estávamos prestes a embarcar em um vôo com escala e duração total de 14h tripulado por mais de 200 passageiros. Minha vontade era de chorar, mas como sempre, eu era a mãe e esposa que tinha que segurar a barra e mostrar para eles que ia dar tudo certo. Dentro do avião tinha gente tossindo, espirrando, chorando, reclamando... e eu rezando para que nada daquilo chegasse na gente. Foram longas 14h, e quando desembarcamos em São Paulo, veio a notícia de que teríamos que fazer quarentena antes de seguir destino. Passadas as duas semanas de isolamento conseguimos, enfim, retornar à nossa casa no estado do Paraná. Foi um daqueles dias que a gente não vai se esquecer nunca. Os cachorros vieram nos receber no portão, e aquilo foi uma festa de risadas e lágrimas. Voltar para nossa casa, dormir na nossa cama, ver a felicidade dos meninos em ter seu espaço de volta é algo impagável. Ser mãe é uma dádiva, e gratidão passou a ser um sentimento presente diariamente aqui em casa há tempos, que se intensificou nestes dias difíceis. Nestes dias de quarentena a cientista ficou um pouco de lado, e a mãe, esposa, filha e amiga teve que entrar em cena. Do cuidado da casa à reinvenção diária de brincadeiras para distrair o filho mais novo, do tempo para conversar sobre as descobertas sobre física e química do filho mais velho (que jura que não vai ser cientista!), das aulas remotas do filho mais velho que não estão dando tão certo — mas que vem carregadas de amor pelos professores que se desdobram para isso — pouco tem sobrado para as atividades cientificas. Na verdade, descobri que o home office não funciona muito bem para mim, pois sou viciada em pessoas. Eu que me achava mentalmente forte e organizada, me vi protelando afazeres teóricos para outro dia, pois minha cabeça não em ajudava mais a raciocinar como antes. Acredito que passei a trabalhar o dobro, pois estando em casa não tem dia nem hora para responder WhatsApp, e-mails e participar das quinhentas mil reuniões online que são agendadas semanalmente pelos “n” grupos de trabalho, ensino, pesquisa e extensão dos quais participamos na Universidade. Tudo isso em meio às atividades de Harvard, que não foram interrompidas com a minha volta ao Brasil (graças a Deus!). Apesar disso, os prazos continuam, e em meio a esse caos tentamos dar conta dos compromissos que assumimos em uma época na qual nem imaginávamos que tudo isso iria acontecer. E ainda temos que lidar com fakenews, flutuações de humor, ansiedade que veio com o isolamento, problemas de saúde e tudo mais. Ah, e dar conta de fazer plantão no hospital semanalmente, afinal quem escolheu ser profissional da saúde não tem escolha. Na minha opinião é um dever moral, temos que enfrentar tudo isso. De qualquer forma, esta receita insalubre, que mistura trabalho com pandemia, tem surtido 217 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) alguns resultados bons para o nosso laboratório (o LBT – Laboratório de Biologia de Tumores). Propostas interessantes de trabalhos em parceria, de pessoas que também estão em quarentena nas suas casas, tem surgido. E até tivemos inspiração para escrevermos algo voltado à questão da Covid-19 em pacientes oncológicos, que é o tema de estudo do nosso grupo no LBT. Tudo tem um lado bom, e não podemos passar por tudo isso sem tirar lições e aprendizados de crescimento pessoal e profissional. Dentre as coisas que deram certo, e aquelas que nem deram tão certo assim, vamos levando um dia depois do outro, cuidando de tudo e de todos, e muito pouco de nós. Os cabelos brancos já chamam a atenção, porque é impossível neste momento termos coragem de sair de casa para ir ao salão. As unhas então, misericórdia! A balança também tem sido cruel nestes dias, o ganho de peso assusta, e nos faz sentir uma culpa terrível até pelo que comemos. A sensação é de que me tornei aquela velha dos gatos que passa nos episódios dos Simpsons. Com a diferença que, ao invés de gatos, coleciono papers. Mas deixa para lá, o mais importante neste momento é que temos o privilégio de estar em casa, seguros, com comida na mesa, salário na conta, cheios de saúde e com vida. E o marido segue firme achando que eu estou linda. “Tem gosto para tudo” (risos!). Todos os dias olho os boletins do Ministério da Saúde com as notificações de casos e óbitos, e dá uma tristeza enorme pensar que muitas mães, cientistas, profissionais de saúde, pessoas que são o amor de alguém, que são o pilar de muitas famílias, estão morrendo. Inevitavelmente, vimos amigos e familiares sendo hospitalizados. Alguns venceram esta batalha, outros não aguentaram. Assusta muito quando esse tipo de situação, que passa no jornal das oito todos os dias, bate na posta do seu núcleo de entes queridos. Não é uma doença pequena, é algo sério e letal. Diariamente, temos que lidar com as crises que o nosso país atravessa, de saúde pública, social e também científica. Isso me afetou absurdamente. Editais de financiamento completamente fechados, bolsas de pesquisa sendo extintas: caos. Insultos dos mais diversos seguimentos da sociedade direcionados aos cientistas e à comunidade universitária. Minha dor de estômago só aumentou por conta disso. Ah, e tem os terraplanistas anticiência, especialistas de Facebook que defendem o uso de drogas na pandemia sem comprovação científica, que apoiam o mascaramento de dados, saem às ruas e se aglomeram sem nenhum cuidado, em pleno pico da pandemia. Esses são só verdadeiros doentes. Eu me vi desativando todas minhas contas de redes sociais porque esse ambiente tóxico estava me fazendo mal. Mas daí me lembrei que estamos em isolamento, e que apesar disso tudo, meus tantos amigos mandam notícias através destas redes. Então decidi mantê-las, mas olhar com menos frequência. Parece que deu certo. Apesar disso tudo, a pandemia me fez refletir que o Brasil é o meu lugar. Que mesmo em meio a esse caos generalizado, minha contribuição tem valor aqui, como cientista e profissional de saúde. E cá entre nós, nenhum lugar do planeta tem esse clima maravilhoso de céu azul, e esse gostinho de arroz e feijão no prato que deu muita saudade quando eu estava fora. Depois de mais de 100 dias de quarentena, acredito que nosso grande desafio é manter a saúde mental. Brincar com os filhos e cuidar da casa é algo gostoso, desde que você tenha tempo e queira 218 Maternidades Plurais fazer isso. E apesar do trabalho no home office não estar como a gente gostaria, vamos dando um jeito. Tudo tem jeito. Passar o dia todo confinados, exige muita saúde mental. Principalmente para não afetarmos as crianças com as nossas angustias e preocupações. Eu tenho muita sorte pela família que tenho, meus meninos (assim eu chamo os meus 2 filhos e meu marido) fazem de tudo para tornar o nosso lar o melhor ambiente possível. Cada dia que passa somos desafiados a passar pela pandemia da melhor maneira possível, não esquecendo de quem cuida também precisa ser cuidado. E vamos embora porque a pia está cheia de louça, as crianças estão com fome, a webinar com os gringos já vai começar e tem paper para ser re-submetido hoje até a meia-noite. Ufa. 219 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 34 Localizando-me na quarentena: mulher, mãe, esposa, cozinheira, educadora, faxineira, psicóloga, psicomotricista relacional, pesquisadora Caroline Moreira de Oliveira1 Especialmente na quarentena, quantos significantes cabem em uma mulher? Nesse tempo de isolamento social, nós mulheres, esposas, mães, nos dividimos entre os malabarismos diários: função de cozinheira, professora, faxineira... É preciso uma dose extra de energia para sustentar o desejo de simplesmente reservar um tempo para produzir, escrever e pesquisar. Encontrar o tempo e o espaço propício para elaboração é praticamente uma história de ficção científica. Como se dar ao luxo de sentar em frente ao computador para analisar qualquer assunto se daqui alguns instantes as barriguinhas vão reclamar de fome? Pedir comida em tempos de Coronavírus, por hora, não é uma opção. A casa precisa estar minimamente organizada para que nos sintamos abraçados por ela, faço o possível para tornar nossa casa um espaço acolhedor. Tenho feito as compras e cuido de toda a higienização necessária, esse ritual me faz ter o sentimento de que estou protegendo minha família, é o meu jeito de cuidar deles e me sinto feliz por poder fazer isso. Contudo, o sentimento oscila: eu não fui abraçando a cozinha, a faxina, a educação escolar sem resistência. Meu plano para este semestre era concluir o mestrado, enquanto não estivesse na clínica, me dedicaria à dissertação e, de repente, ela foi parar lá no final da lista de prioridades, o semestre fui oficialmente suspenso, mas o meu desejo não foi, fica ali latente, pulsando, embora sobreposto pelas refeições, limpeza, ajuda nos deveres do meu filho no segundo ano do ensino fundamental e que obviamente precisa de muito auxílio para se localizar nas ferramentas tecnológicas que possibilitam a educação à distância. Houve dias em que eu ia para a cozinha e tinha vontade de chorar. Compartilhei com minha mãe esse sentimento, comentei que eu achava que as mulheres de antigamente deveriam ter uma vida muito chata, afinal de contas, essa era a sensação que eu tinha nesta nova realidade estabelecida a 1 Psicóloga (PUCPR). Especialista em Psicologia Clínica (PUCPR). Especialista em Psicomotricidade Relacional (CIAR). Mestranda em Estudos da Subjetividade no Programa de Pós-Graduação de Psicologia (UFF). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1400293437462401 220 Maternidades Plurais partir da pandemia. Minha mãe lembrou que a vida de antigamente era mais difícil, lembrou de sua avó que buscava água no poço, pegava lenha e gravetos para o fogo, plantava, colhia e depois de arear o fogão à lenha, ainda tirava suas cinzas. Ufa! Fiquei cansada só de imaginar. Essa reflexão rendeu! Usei minha rede afetiva para pensar o lugar do feminino, a maternidade e o casamento ao longo de gerações. Uma tia lembrou que, naquela época, as mulheres não se preocupavam em entrar para o mercado de trabalho, se especializar, estar com um corpo razoável para não se sentir mal e sem energia. Não se preocupavam em estar atualizadas com a política e assuntos gerais. “Elas se preocupavam em preparar os alimentos e cuidar dos filhos. Nada mais. Cruel sim, mas a sociedade não cobrava tanta coisa como cobra hoje.” (sic.). Partilhei essas opiniões com uma amiga querida, com quem partilho com honestidade as dores e delícias da maternidade, desde que nossos filhos têm dois anos de idade, ela fez um contraponto interessante, afirmando que é importante não nos acomodarmos numa posição em que não estamos confortáveis apoiando-nos em evidências de que antigamente era pior. Tudo era mais difícil há duas gerações anteriores, mas o pensamento e as aspirações eram diferentes das mulheres de nossa geração. Tiveram uma educação voltada para cuidar da casa e ser mãe, eram programadas para isso e apesar de todo o peso, havia um senso de “normalidade”. Sem falar no machismo estrutural, as que ousavam se questionar, não tinham muito espaço para manobras. Posta a diferença de tempo e as reflexões possíveis, a partir da fala de três mulheres incríveis, também mães e de gerações diferentes, pondero que definitivamente, embora todas nós estejamos sobrecarregadas, a situação atual é singular e diferente do sentimento de opressão ou de falta de opção de gerações passadas: é um fazer que se aproxima do agir por faltar palavras que deem conta de nomear o momento atual e o possível é cuidar da família, não porque isso é imposto, mas porque é o possível no momento, sinto-me responsável por ocupar esse lugar e não sou a única a cuidar, tenho apoio do meu esposo, que compartilha o cuidado de todos da família. Depois desta elaboração, foi como se virasse uma chave e o sentimento se modificou, abracei a quarentena e comecei a ver poesia no isolamento social também. Passei a ouvir os áudios das aulas gravadas enquanto cozinho e a minha escrita ficou restrita ao final de semana, momento em que meu marido não está no trabalho remoto e pode dispender maior atenção ao nosso filho também durante o dia. Busco inspiração em uma carta de Anzaldúa (2000), para as mulheres do terceiro mundo, onde ela se pergunta: quem tem tempo ou energia para escrever, depois de cuidar do marido, dos filhos, do trabalho? 221 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) “Os problemas parecem insuperáveis, e são, mas deixam de ser quando decidimos que, mesmo casadas ou com filhos ou trabalhando fora, iremos achar um tempo para escrever. Esqueça o quarto só para si — escreva na cozinha, tranque-se no banheiro” (ANZALDÚA, 2000, p. 233).2 Anzaldúa (2000), compara a escrita à uma espécie de alquimia passível de dar acesso ao centro do eu, “é um ato de criar alma” (p. 232). Essa escrita ressoa em mim de forma avassaladora, pois me permite entender porque as frases que não puderam ser redigidas ecoam enquanto guardadas, o processo de elaboração que só pode ser feito a partir da escrita fica por fazer, de certa forma “azedando”, pelo simples fato de não estar “em produção” e enquanto ingredientes guardados, subutilizados, dão notícias de sua existência a partir de seu cheiro e textura, assim como um vulcão prestes a entrar em erupção, dá sinais de fumaça de tempos em tempos. Essa alquimia do ato de escrever não só cria o próprio conteúdo da escrita, como também nos cria, nos confere uma alma de pesquisadora, nos dá consistência. Eu me entendo também a partir desde significante pesquisadora, que por hora foi parar lá no final da lista de prioridades e isso me traz sentimentos que variam da tristeza à impaciência. Sentimentos que não são motivos de orgulho para uma mãe, mediante o pensamento intrínseco e estrutural da sociedade, deve ter um pote de paciência inesgotável, sobretudo, no que tange aos cuidados com seu lar e sua família. Esses preceitos, embora eu racionalmente escolha negar, emocionalmente ecoam à revelia, me fazendo sentir culpa por desejar outras coisas além da função materna, de esposa e dona de casa. Esses sentimentos supostamente “ruins”, ajudam, pois me mobilizam. Especialmente aos finais de semana, eu clamo por espaço e um pouco de tempo, um momento para produção, quando relembro minhas ambições, aquilo que faz parte de quem eu sou, ainda que em uma escala muito inferior às traçadas para este semestre. Abandonando as expectativas de encontrar o momento perfeito para a escrita inspirada, escrevo enquanto ouço meu filho brincar com o amigo pelo computador, enquanto lavo a louça penso qual seria o melhor caminho para concluir minha dissertação relembrando a fala da banca no dia da minha qualificação e sou interrompida pelo ciclo da máquina de lavar que terminou, as roupas precisam ser estendidas. Retomo o pensamento de outro ponto e assim vai acontecendo o processo de elaboração em meio a pandemia. Espero que em algum momento esses trechos se conectem. Por hora a sensação que tenho é de fragmentação, muito longe de qualquer processo conclusivo. Em meio a essa nova configuração em que passamos mais tempo em casa, é possível interpretar os eventos sob uma perspectiva diferente. O nosso ritmo e estilo de vida se modificaram e alguns detalhes, antes invisíveis, passam a ser perceptíveis. 2 ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229, jan. 2000. ISSN 1806-9584. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106. Acesso: 31 mai 2020. doi:https://doi.org/10.1590/%x. 222 Maternidades Plurais Outro dia eu estava cortando frutas como costumo fazer toda manhã e de repente, ao cortar o mamão me deparei com duas estrelas onde ficam as sementes, caprichosamente desenhadas pela natureza. Me perguntei quantas vezes essa imagem foi esculpida e nunca percebi. Passar mais tempo dentro de casa muda a percepção da vida. Descrição da imagem: sob uma bancada de mármore cinza estão dois potes com frutas cortadas nas cores verde (do abacate) e amarelo (da laranja), ao lado estão duas fatias de mamão bem alaranjados, com suas sementes ainda ao centro, onde pode-se identificar o formato de uma estrela. Enquanto me percebo nesse processo de transformação que uma mulher de quarenta anos tem possibilidades de fazer em uma quarentena, meu filho de sete anos e meio, tem a maturidade de faixa etária correspondente e rapidamente se engajou nos eletrônicos. No início, inventamos cabanas na sala, compramos uma barraca de acampamento e montamos em seu quarto. Meu pai encaminhou brinquedos surpresa de Curitiba, mas aos poucos esses objetos foram perdendo a disputa para os games e então apareceram as constantes negociações, a preocupação com os excessos e ao mesmo tempo um sentimento de tristeza, por vê-lo longe dos amigos, da vida perto da natureza, por ter que privá-lo de um estilo de vida anterior onde os eletrônicos simplesmente não haviam ganhado espaço. Penso que talvez seria menos difícil se meu filho tivesse um irmão ou irmã, se morássemos em uma casa com quintal e bichos de estimação. Sinto o peso de escolhas que nunca fiz. É estranho esse sentimento de culpa que as mães costumam inventar e depois, tem a maior dificuldade em se desvencilhar. Justifico para mim mesma o porquê de minhas escolhas, com dor, sem que ninguém tenha sequer tocado neste assunto, sem a cobrança de outra pessoa, que não a minha própria, sem dúvida a mais dura. Sigo com os malabarismos diários, me sentindo sempre um pouco em falta, fazendo o que é possível diante das possibilidades do momento. Há semanas em que a energia está mais baixa, a saudade da família no Sul aumenta, não sabemos quando poderemos nos reencontrar, o medo do desconhecido cresce e a falta de informações 223 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) consistentes, em vários cenários do nosso país, causam inseguranças. Para ter saúde mental, encontrei formas de sentir prazer em pequenos refúgios, como praticar Yoga, tomar sol pela janela, escutar músicas brasileiras enquanto cozinho e ler histórias para o meu filho antes de dormir. Tudo que foi familiar um dia me transmite a sensação de um abraço, sinto um chão e ao mesmo tempo acolhimento, deve existir uma explicação para isso. Nessa época em que faltam recursos psíquicos e dados concretos para decifrar o presente, a mente parece sentir conforto ao percorrer circuitos já conhecidos, abro túneis do tempo ao escutar Chico Buarque, Legião Urbana e Marisa Monte e sou invadida por hormônios promotores de bem-estar. Há ocasiões em que me sinto feliz por ter feito um almoço que deu certo, por ter conseguido organizar a casa e por saber que as tarefas do meu filho estão em dia. Há finais de semana que me sinto realizada por ter conseguido escrever um parágrafo da minha dissertação, tão longe do ideal que havia proposto para este semestre. Contudo, há situações em que tudo aquilo que poderia ser produzido clama, um misto de emoções eclode e a frustração é inevitável. Constantemente lido com o luto do ideal estipulado e a realidade possível mediante a configuração atual, escrevo na medida das possibilidades e isso deveria ser o bastante, é o melhor que eu posso fazer considerando a responsabilidade que eu tenho com o bem-estar da minha família, mas não é o que o meu Super Eu de pesquisadora sente. Precisei redimensionar minhas metas, produzir um pouco mais do que ontem, conseguir deixar os afazeres domésticos encaminhados para poder dispender um pouco mais de tempo na dissertação. Nesse exercício de malabares diário, uma dissertação vem sendo tecida, em meio a uma diversidade de afetos, da angústia e desprazer mediante o ainda indizível diante daquilo que ainda não sabemos que está por vir e pode estar sendo omitido da população — à extrema oscilação ao prazer após uma caminhada em família no calçadão após 79 dias de reclusão completa. O período de lockdown por hora acabou e paulatinamente fomos autorizados a retomar algumas atividades ao ar livre com restrições e com segurança, em Niterói, município onde residimos, estamos passando do estágio laranja para o amarelo e expressão “novo normal” tem sido utilizada. Contudo, as marcas desta vivência ficarão para sempre inscritas, estes registros psíquicos não se organizam em cores simbólicas, estamos chegando ao estágio amarelo com todo o processo inflamatório e hormonal do estresse decorrente das preocupações vivenciadas no estágio vermelho e todos os sinais de alerta recebidos em nosso cérebro constantemente mandando informações do tipo: “Corram, salvem suas vidas, fujam dos leões!” e contraditoriamente, tudo que podemos fazer é nos escondermos em nossas tocas, lavar muito as mãos, aliás, lavar obsessivamente tudo que entra em casa, sobretudo, nós mesmos. Esse período vai entrar para a história, assim como as escolhas e elaborações que tivemos a oportunidade de fazer, o aprendizado mediante tamanha diversidade, que por ser novo, ainda não existiam recursos simbólicos para lidar com essa situação, tão pouco pode ser nomeado. Está sendo um exercício psíquico intenso e será transmitido para outras gerações, pela fala, escrita ou ainda, 224 Maternidades Plurais neurobiologicamente falando, considerando a epigenética: a ativação ou silenciamento de determinados genes, a partir das nossas vivências nesse período de pandemia. Este texto, para mim, tem o estatuto de documento, um registro pessoal, passível de ser produzido em meio a tantos afetos oscilantes, por vezes até contraditórios, mas estão dando contorno e me ajudando a nomear aquilo que paulatinamente vai sendo simbolizado. E quando pudermos dizer com tranquilidade e segurança como é passar por uma longa quarentena em decorrência de uma pandemia, isso tudo será passado. Na expectativa por esses dias que virão, reconheço a possibilidade de transformação e crescimento que é vivenciar o isolamento social em família: houve conflito, atrito, trabalho, muito trabalho, mas também, muito carinho, aconchego, reciprocidade e quando meu filho for adolescente, ao lembrar da quarentena, quero que se lembre do cheirinho de Strudel salgado que eu fiz tantas vezes a seu pedido. Eu e meu marido vamos dar risada do pão de milho que eu fiz e virou um tijolo. Nós três vamos lembrar desse tempo intenso que passamos juntos, estreitamos laços nesse caldeirão de afetos que esse tempo propiciou. 225 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 35 Pandemia, puerpério e (re)nascimento: um oceano de desigualdades de gênero, raça e classe Cássia Maria Rosato1 No dia 13/02/2020 nasceu minha segunda filha. Planejei um parto normal hospitalar e, quando estava me aproximando das 40 semanas de gestação, iniciei algumas técnicas de indução natural para estimular o trabalho de parto. Eis que, numa avaliação clínica de rotina nesse finalzinho da gravidez, a bolsa estourou! Veio aquela ansiedade de que o nascimento da Clara estava mais perto do que nunca. Fui caminhar e tomar uma água de coco para ajudar a desencadear as contrações. De qualquer modo, minha médica recomendou que eu encaminhasse minha internação no dia seguinte de manhã, caso as contrações não engrenassem. Isso porque o hospital que eu havia escolhido tinha um protocolo rígido com gestantes que já passaram de 40 semanas de gravidez. Durante a noite, senti contrações mais fortes, mas nada significativo. De manhã, as contrações aumentaram e segui para o hospital. Enquanto o plano de saúde não liberava minha ida para o quarto, fiquei na emergência e comecei a sentir contrações bem mais fortes e frequentes. Almocei e passei a ter calafrios. Pedi para diminuir o ar-condicionado e me disseram que não podiam por conta dos equipamentos que ali estavam. Fui andar num corredor onde estava menos frio e meu mal-estar piorou consideravelmente. Já não conseguia parar de andar porque não havia posição que fosse possível ficar e os calafrios não passavam. Estava aguardando a chegada da minha obstetriz e da minha obstetra. Finalmente quando meu quarto foi liberado, eu só conseguia ficar em posição fetal na cama. Já estava gritando de dor e achando estranha a intensidade das contrações. Isso porque na minha primeira gravidez, eu passei por uma indução com ocitocina sintética e conhecia a força de uma contração. Cheguei até oito cm de dilatação e o que eu estava sentindo, naquele momento, era infinitamente pior do que as contrações da primeira gestação já quando estava na fase ativa do trabalho de parto. Não conseguia entender aquilo e achava que tinha algo errado, afinal eu não era uma mãe de primeira viagem. A doula que me acompanhava disse que contrações de bolsa rota eram mais doloridas, no entanto, eu não conseguia me convencer de que essa era a razão para tanta dor! O fato é que eu estava apenas com seis cm de dilatação e há horas já estava pedindo analgesia. Na primeira gestação, estava 11 Doutora em Psicologia (Universidade Federal de Pernambuco). Psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça de São Paulo. Colaboradora do blog Cientistas Feministas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6024677964043286 226 Maternidades Plurais com ocitocina sintética por várias horas, quase tive a dilatação total e não pedi analgesia em nenhum momento! Para piorar a situação, a equipe não estava conseguindo auscultar direito a Clara porque eu não conseguia me manter imóvel e seus batimentos cardíacos estavam oscilando muito. Minha médica rapidamente decidiu que deveríamos ir para o bloco cirúrgico. A ida na maca até lá pareceu um caminho sem fim e eu só lembro que todos olhavam para mim como se eu fosse um ser extraterrestre. Finalmente quando estava na mesa cirúrgica e o anestesista se apresentou, tive um momento de alívio depois de horas de profunda angústia e desespero. Era incompreensível que parir pudesse ser tão doloroso! Sou resistente a dor, faço yoga há mais de 10 anos, conheço meu corpo e seus sinais! Alguma coisa estava errada... De qualquer modo, naquele instante, agradeci imensamente a medicina e todas as tecnologias que permitiriam que aquela dor passasse. E passou num nível que faltou pouco para que eu dormisse... Assim que a analgesia fez efeito, minha obstetra disse que eu teria que fazer força para que a Clara descesse. Apesar da minha dilatação estar boa, naquele momento era de nove cm, minha bebê estava alta e não descia. Fiz força, ela desceu, mas voltou a subir. Tentamos três vezes e nada dela descer. Feito isso, minha médica disse que teríamos que fazer uma cesárea porque os batimentos cardíacos da Clara não estavam bons. Apesar do meu cansaço, como não estava mais sentindo as dores das contrações, ainda perguntei se não podíamos tentar mais um pouco porque já havia chegado até ali... Ela explicou que, se minha bebê estivesse descendo, continuaríamos, mas ela subia e continuava alta. Diante disso, teríamos que mudar o percurso. Rapidamente, todos os procedimentos foram feitos e Clara nasceu, mas não veio direto para o meu colo por ser cesárea, sendo esse o protocolo do hospital. Minha médica, depois de me abrir, entendeu o que estava acontecendo e me explicou. Eu tive uma ruptura uterina, algo que ela apenas havia lido sobre, no entanto nunca tinha visto um caso nos seus mais de vinte anos de trabalho na área de assistência ao parto e obstetrícia. Mistério desvendado. Rupturas uterinas são raras e muito sérias, sem possibilidade de fácil diagnóstico. Nunca tinha ouvido falar nisso e foi somente nesse difícil momento que soube a gravidade e os riscos que corremos: tanto de morte materna como fetal. Dias depois, já em casa, olhei para minha filha Clara e pensei que, em função do risco que corremos, nós duas renascemos, naquele difícil e milagroso dia 13/02/2020. Minha recuperação foi penosa e mais dolorida que a primeira gestação e eis que, quando estava começando a me recompor, a OMS define que estávamos vivendo uma pandemia do novo coronavírus. Naquele momento, esse vírus aparentava ser algo distante como tantos outros que já assolaram o Oriente e outras partes do mundo. Não parecia que teríamos a repercussão que hoje vivenciamos tão intensamente. Já no final do mês de março, iniciamos o isolamento social no Brasil e pude perceber como o puerpério tem semelhança com essa condição de quarentena imposta praticamente ao mundo todo. À primeira vista, achei graça porque pensei que todas as pessoas estariam como eu, vivendo uma espécie de puerpério. E fiquei impressionada com a angústia que o isolamento social — elemento tão comum no conhecido baby blues — trouxe para as pessoas. Muitas vezes parece que não é a questão de ter que ficar em casa, e sim, a impossibilidade de sair se quiser. Obviamente que existem inúmeras outras questões envolvidas e não tenho a intenção de simplificar algo extremamente complexo, mas apenas apontar como o puerpério é um tipo de quarentena. Nesse sentido, muitas mulheres 227 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) — sobretudo as mães, cuidadoras e pessoas que convivem intensamente com bebês — conhecem essa experiência e por isso, talvez, estranhem menos essa nossa já velha conhecida condição de vida. Como psicóloga e pesquisadora das questões de gênero, diversos elementos começaram a chamar minha atenção em relação a esse período de isolamento social. Vou adentrar somente em três deles. O primeiro aspecto é que qualquer mulher que pariu recentemente precisa de cuidados, especialmente para poder cuidar de um bebê absolutamente indefeso e dependente. Trata-se da mais intensa simbiose que já experienciei. Tenho plena clareza de como a Clara me regula em todos os sentidos e em relação a todas as necessidades básicas. Eu sou e estou para ela 24h do meu dia. E isso pode ser enlouquecedor, principalmente se a mãe não tem uma rede de apoio. Esse tem sido um dos principais desafios nesse período de puerpério e pandemia. Parafraseando Foucault (2006), ao falar sobre o controle e a regulação dos corpos2, minha governabilidade sob meu próprio corpo fica condicionada ao que minha bebê demanda. Quando a mulher encontra suporte em outras pessoas (familiares ou não), o peso dessa vivência é aliviado significativamente. Considerando o contexto de isolamento social a que estamos submetidas, essa situação muda por completo. Não há mais esse apoio, restringindo todos os cuidados que essa mãe teria ao seu núcleo familiar. Aí vem a pergunta que não quer calar: e se for uma mãe solo? Lembrei agora de uma amiga que está grávida de gêmeos e é solteira. Como será sua vida quando esses bebês nascerem em plena pandemia? Nessa lógica, é compreensível que essas mulheres não consigam seguir o isolamento social porque isso seria da ordem do intolerável! Não é à toa que estão divulgando diversas pesquisas que apontam como as mulheres estão sendo mais impactadas na sua saúde mental pela pandemia em relação aos homens. Idem para ocorrências de violência de gênero que aumentaram exponencialmente nesse momento de quarentena. Quem está vulnerável, mais vulnerável fica nessa condição atual de inúmeras restrições. Nessa perspectiva, outro ponto que escancarou sua face de desigualdade e invisibilidade é o trabalho doméstico. Antes da pandemia, as classes média e alta estavam muito bem acomodadas na mais absoluta despreocupação com o cotidiano das suas próprias casas, afinal já havia alguém — uma mulher (pobre e negra, na maioria dos casos) — que realizava as recorrentes tarefas do ambiente doméstico. Com a recomendação de isolamento e manutenção apenas de serviços essenciais, as trabalhadoras domésticas passaram a também ficar em casa ou pelo menos deveriam. Não há como deixar de mencionar o primeiro óbito por Covid-19, ocorrido em março de 2020, no Rio de Janeiro que foi exatamente de uma trabalhadora doméstica que não foi afastada do trabalho por sua empregadora3. Essa senhora, residente no bairro do Leblon, possuía uma empregada que dormia em sua residência de domingo à quinta por morar muito longe do seu local de trabalho. Esse fato por si só já é bastante questionável, pois remonta a uma lógica que não deveria mais existir, porém, sabemos que, infelizmente, ainda é a realidade de muitas mulheres periféricas. Ela era idosa, diabética 2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 3 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-epegou-coronavirus-da-patroa.htm. Acesso: 2 jul 2020. 228 Maternidades Plurais e obesa e, mesmo assim, continuava trabalhando quando sua empregadora retornou de uma viagem à Itália. No mesmo dia que essa trabalhadora doméstica passou a ter os sintomas, ela foi internada e no dia seguinte faleceu. Como não pensar nas desigualdades de raça e classe nesse caso? Ainda sobre essa questão das trabalhadoras domésticas, está havendo um verdadeiro retrocesso, na medida em que algumas famílias estão exigindo que elas durmam na casa dos seus patrões para não se contaminar no transporte público. Torna-se uma ameaça velada porque se há recusa, o risco de demissão é alto, fazendo com que muitas trabalhadoras sejam coagidas a aceitar4. Nessa complexa conjuntura, como essas trabalhadoras conseguirão garantir seus direitos? Há ainda o caso absurdo ocorrido na capital do Pará no qual o trabalho doméstico foi colocado como serviço essencial quando a cidade iniciou o lockdown. Apenas depois de protestos nas redes sociais, essa decisão governamental foi retificada para trabalhos envolvendo cuidados de idosos/as e pessoas com deficiência5. Fica evidente como a lógica escravocrata ainda está enraizada na nossa cultura nesses infelizes exemplos. Mesmo diante dessas gritantes desigualdades, virou lugar comum dizer que o novo coronavírus é “democrático” porque todos podem pegar e ninguém está imune. No entanto, sabemos a quão falaciosa é essa ideia porque se qualquer um pode pegar, não são todos que podem deixar de trabalhar e ficar em isolamento. Se o vírus pode contaminar todas as pessoas, não são todos que podem se cuidar e se tratar porque as condições mínimas de sobrevivência não foram asseguradas. Não há programas ou subsídios adequados para os segmentos populacionais que precisam de ajuda financeira para poder ficar em casa. Um terceiro conjunto de reflexões, nesse contexto de pandemia, se refere às relações familiares e a necessidade de redimensionamento que se impôs a todas nós. Aonde havia conflitos, certamente se acirraram. Tarefas antes nunca cogitadas passaram a ser cotidianas, como, por exemplo, acompanhar filhas/os em aulas online. Nesse sentido, nas famílias em que há uma parceria consolidada, administrar essa nova lógica de vida pode não ter se tornado tão pesada, o que não quer dizer que seja fácil. De qualquer modo, as crises que vem à tona podem se tornar oportunidades para repensar papeis de gênero dentro de casa e em relação aos cuidados com as crianças6. Entretanto, o aumento nos pedidos de divórcio durante a pandemia do Covid-19 tem demonstrado que as famílias não estão conseguindo superar esses conflitos. De acordo com a Agência Brasil, houve um aumento das demandas de separação judicial, no país, sendo 70% das iniciativas realizadas 4 Disponível em: https://apublica.org/2020/06/trabalhadoras-domesticas-enfrentam-coacao-de-patroes-durantepandemia/. Acesso: 2 jul 2020. 5 Disponível em: https://apublica.org/2020/06/trabalhadoras-domesticas-enfrentam-coacao-de-patroes-durantepandemia/. Acesso: 2 jul 2020. 6 Para saber mais, ver: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2020/04/22/o-dia-em-que-a-terra-parou-crisese-oportunidades-para-pensar-a-vida-na-atualidade/. Acesso: 2 jul 2020. 229 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pelas mulheres, em função da tripla jornada (trabalho, cuidado das/os filhos/as e da casa) 7. Dessa forma, desigualdades de gênero estão cada vez mais explícitas e mais difíceis de serem suportadas pelas mulheres. Esperamos que, se esses relacionamentos não se reinventarem, a separação, de fato, ocorra, promovendo uma mudança concreta na vida de mulheres que estão inseridas numa relação machista. Ainda assim, fica um questionamento qualitativo em relação a esse dado: será que o aumento dos casos de divórcio pode indicar alteração nos papéis sociais desempenhados por mulheres e homens ou trata-se apenas de um “sintoma” de que algo não vai bem, sem significar mudanças de concepção sobre gênero? Se as desigualdades de gênero já eram bastante evidentes antes da pandemia, agora elas estão escancaradas. Para mães cientistas, essa realidade começou a ganhar alguma visibilidade, em 2016, com o estudo desenvolvido pelo projeto Parent in Science8 que buscou identificar o impacto do nascimento das/os filhas/os na carreira de mulheres pesquisadoras. Em função da inexistência de estudos sobre esse assunto, a maternidade acaba se tornando uma lacuna problemática na vida das cientistas. Isso porque são períodos de tempo nos quais a dedicação às pesquisas diminui e não há problematização em torno da necessidade de considerar as diferenças. Nessa lógica, obviamente homens saem na frente em relação à produtividade e êxito em suas pesquisas. Com o projeto, esse debate conseguiu vir à tona, evidenciando a importância de problematizar maternidade e ciência. Já no período de pandemia, o grupo responsável pelo Parent in Science realizou uma investigação sobre como está a vida profissional de mulheres e homens que são cientistas, com e sem filhas/os, nesse contexto de home office e home schooling. Quase 15 mil estudantes de pós-graduação, pós doutorandas/os e docentes, de todo o Brasil, responderam o questionário. Os principais achados9 indicaram que as mulheres negras (com ou sem filhas/os) e mulheres brancas com filhas/os (principalmente com idade até 12 anos) foram os grupos mais afetados em relação à submissão de artigos. Já a produtividade acadêmica de homens, (especialmente sem filhas/os) foi o grupo menos afetado nesse quesito pela pandemia. Podemos verificar como o isolamento social agravou a sub-representação das mulheres no universo científico, exigindo a adoção de estratégias que sejam sensíveis e capazes de considerar esse público diferenciado. As sugestões do projeto apontam várias possibilidades: maior flexibilidade nos prazos; editais específicos para esses grupos, evitando que a desigualdade se aprofunde; considerar um maior tempo de análise dos currículos das mulheres com filhas/os; dentre outros itens. Assim, como podemos fazer com que a maternidade possa ser levada em conta na nossa vida como cientistas, sem que isso seja um aspecto invisibilizado e que conte contra nós? Precisamos 7 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-06/aumenta-procura-por-divorcio-durantepandemia. Acesso: 2 jul 2020. 8 Disponível em: https://www.parentinscience.com/. Acesso: 2 jul 2020. 9 https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.fileDisponível em: susr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true. Acesso: 2 jul 2020. 230 Maternidades Plurais aprender a fazer ciência com a maternidade e também a paternidade, dando a devida importância que esses lugares ocupam na vida de todas as pessoas que decidem se aventurar na criação de filhas/os. Nada de muito novo no front para mulheres que são mães e cientistas. Estamos no mesmo oceano, enfrentando a mesma tempestade, como bem colocou a presidente da Fiocruz recentemente, Nísia Trindade Lima, mas cada pessoa de acordo com suas condições, podendo ser um transatlântico, um iate, uma lancha, um barco ou uma canoa10. Ousaria ir além dizendo que, considerando os diferentes Brasis que aqui existem, muitas pessoas estão à deriva, sem sequer uma boia para se salvar. Ao olharmos para os dados oficiais (sem considerar as subnotificações), nesse início do mês de julho de 2020, já são quase 70 mil brasileiras/os que faleceram diagnosticadas/os com Covid-19. Avalio que uma parcela desse enorme conjunto de pessoas poderia ter sido salva se mais barcos e canoas estivessem disponíveis, o que infelizmente não ocorreu e nem parece que irá acontecer. Nessa triste conjuntura, mais do que nunca, precisamos da ciência e continuar fazendo ciência para lidar com essa realidade, enfrentando o negacionismo e colaborando na produção de conhecimento científico que melhore as condições de vida de todas nós e não apenas grupos privilegiados. Para isso, assim como eu (re)nasci junto com minha filha Clara, considero que é pelo (re)nascimento que encontraremos saídas: fazer nascer ciências que considerem as maternidades e paternidades e encarar esses tempos sombrios de frente para que possamos (re)nascer como sociedade. 10 https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/07/06/a-pandemia-nao-e-a-mesma-para-todos-diz-a-presidente-da-fiocruz.htm. Acesso: 6 jul 2020. 231 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 36 O bebê e/ou o doutorado: é preciso escolher? Celina de Oliveira Barbosa Gomes 1 “Você vai conseguir dar conta de fazer doutorado e cuidar de um bebê?” Esta foi uma das perguntas que ouvi da banca de seleção para o doutorado ao realizar a última das etapas do processo, no início de 2016, no auge dos oito meses de gestação. Um dos avaliadores, justamente uma mulher, me colocou esta questão, destacando a complexidade das demandas do curso e sugerindo, de certa forma, as eventuais dificuldades que eu teria em atendê-las tendo em vista a minha futura condição de mãe. Respondi afirmativamente, mas meio atordoada tanto pela incerteza da resposta — já que eu não tinha filhos, até então — quanto pelo peso que ela teve sobre a minha expectativa de ingressar no curso. Os dias que se seguiram até a publicação do resultado oficial da seleção foram de muita tensão, pois apesar de ter conseguido passar nas provas de conhecimentos específicos e de língua estrangeira, temia que minha situação fosse interpretada como um empecilho para estudar. Este medo era justificado não só pela pergunta feita naquela ocasião, mas porque outros já haviam indagado a mesma coisa, colegas pesquisadores, inclusive, que chegaram a indicar uma “priorização” entre a gravidez e o doutorado na área de Letras. Fui aprovada no processo e minha filha nasceu na primeira semana de aulas. Solicitei a licençamaternidade e dediquei-me inteiramente ao meu bebê em seus seis primeiros meses de vida. No segundo semestre do curso, matriculei-me em três disciplinas, saindo de casa toda a quarta-feira à noite, de ônibus, para estudar na quinta e na sexta-feira, retornando só no sábado de madrugada, já que minha cidade fica à 329 km do município onde está localizada a instituição em que estudo. Nas primeiras vezes, o caminho foi feito com muitas lágrimas nos olhos e o questionamento se tudo aquilo valeria, de fato, a pena. Estaria eu fazendo a coisa certa, deixando minha filha pequena com o pai, sabendo que ela precisava de mim? Sufoquei a autocobrança, a culpa que sentia e continuei viajando toda a semana durante os dois anos seguintes até concluir as matérias. Além dos créditos em disciplinas, eu precisava realizar outras atividades que também me tomavam parte do pouco tempo livre que sobrava das quarenta horas de trabalho; assim, os finais de semana, especialmente, as noites, eram dedicados à escrita de artigos. Mas eu não fazia isso só pela Mestra em Letras pela Universidade Estadual de Londrina. Docente do Instituo Federal do Paraná – Campus Assis Chateaubriand. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3355010469212317 1 232 Maternidades Plurais obrigação, pois também me entusiasmava a possibilidade de publicar minhas reflexões, partilhar minha perspectiva acerca de minha área e objeto de estudos, a ecocrítica; sentia-me feliz participando da produção do conhecimento científico. Depois que terminava, saindo daquele universo entorpecente da racionalidade — no qual eu sentia certa segurança —, ia me deitar sabendo que minha filha já havia adormecido ao lado do pai, a quem ela chamava sempre e para tudo. Novamente, o impasse entre estar ou não fazendo a coisa certa me inquietava. Além de perseguir certo rigor na prática acadêmica, também o reproduzia na carreira docente, o que fez com que eu me devotasse sobremaneira para estas duas áreas. Com a chegada da criança, a vida pessoal começou a significar expressivamente, exigindo um equilíbrio entre os nichos da minha existência que não existia até então. Dar-me conta disso foi algo que custou a acontecer. A intensa rotina de aulas e suas demandas próprias — preparação, provas, trabalhos, correções —, os projetos e outras práticas inerentes à dinâmica educacional, além das atividades do doutorado, foram ficando demasiadamente pesados, pois o período de descanso destes era o que eu dedicava à filha; logo, o tempo disponível para relaxamento e para os cuidados pessoais era quase nenhum. Os reflexos da autoanulação começaram a aparecer: aumento de peso, ocasionado, sobretudo, pela ansiedade — por querer sempre resolver todas as coisas que estavam ou que eu achava que estavam sob a minha alçada — , que me fazia comer mais e sem atentar-me para a qualidade dos alimentos; a total inobservância da saúde — desenvolvi uma gastrite leve, mas não tinha parado para investigar isso —; a privação do sono e, sobretudo, a alienação da vida familiar/doméstica. Eu me sentia enxugando gelo ou apagando focos de um incêndio que já havia se alastrado. Entrava em casa, brincava um pouco com a minha filha, comia sempre às pressas par voltar para o trabalho ou me trancar no escritório. Mesmo estando em estafada, acreditava que aquele estado era “normal” ou, pelo menos, “justificável”. Quando a Pequena foi para a escolinha, com um ano e meio, aproximadamente, consegui respirar um pouco mais, pois, mesmo que meu marido tomasse a frente das coisas da casa e dos cuidados para com ela, eu queria participar, ainda que esta participação fosse ínfima e quase protocolar. Eu acreditava que na escola ela poderia se entreter mais, de maneira a eu não me sentir tão culpada por não proporcionar esta distração quando ela estava em casa. Além disso, era também uma forma de o pai descansar; ele, que já está aposentado e é sexagenário, estava ficando com toda a carga sobre os ombros, o que também não era justo e nem saudável, como eu vinha percebendo na exaustão que ele já não podia disfarçar. Tão logo minha instituição de trabalho publicou um edital de afastamento, fiz minha inscrição para pleitear uma vaga. Eu precisava muito me desvencilhar, naquele momento, do exercício docente e dedicar-me à redação da tese, pois já estava no terceiro ano do curso e ainda não tinha escrito nada efetivamente consistente, justamente por dispor somente de espaços intermitentes de tempo. Finalmente, no ano de 2019 eu consegui a liberação, que se estendeu até 28 de junho de 2020. Foi então que eu comecei a me dar conta do que estava acontecendo com a minha vida. Até o final de 2018 eu estava sempre cansada, física e mentalmente, sentindo que fazia coisas importantes, mas que falhava como mãe e como esposa. Apesar desta impressão, nos primeiros meses em que fiquei em casa sentia uma espécie de abstinência, pois mesmo estudando mais, sentia falta de sair e “realizar grandes feitos”, “produzir” de verdade. Em minha concepção fabril da vida naquela 233 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ocasião, eu acreditava que o tempo só era bem empregado se eu estivesse construindo alguma coisa, precisamente, intelectual ou profissionalmente; não imaginava que havia muito a fazer dentro da minha própria morada e, sobretudo, dentro de mim. No ambiente doméstico, eu não sabia bem como agir, colaborava com a organização operacional da casa, mas o olhar holístico sobre a estrutura da vida familiar eu não tinha, mesmo com seis anos de casada. Com o respiro dado pelo período de afastamento, consegui organizar uma rotina de estudos mais adequada, livrando, por exemplo, as noites para dormir mais cedo e os finais de semana para dedicar-me à família. A integração com a rotina caseira ocorreu aos poucos, a ponto de só agora eu realmente poder dizer que sou também dona de casa; além dela, gradativamente também aumentou a aproximação entre minha filha e eu. A mudança em nossa relação foi ocasionada não só pelo tempo maior que passávamos juntas, mas por minha vontade de “assumir” os cuidados com ela. Era como se eu estivesse requerendo uma espécie de “lugar prioritário” que eu achava que meu marido havia ocupado — não por iniciativa dele — quando estive ausente no início da vida de nossa filha. E apesar de perceber que só estando, de fato, presente na vida dela eu tinha e tenho condições de participar ativamente e de educá-la, notei que esta dedicação passou a ser uma devoção, tanto para mim quanto para ela; uma devoção que se tornou extenuante, especialmente agora, em tempos de isolamento social. Desde o início das férias de dezembro passado, as demandas de cuidado e atenção para com a Pequena aumentaram, o que já era esperado. Como eu precisava escrever, pois estava em um ponto decisivo de meu trabalho de doutorado, organizava os tópicos de escrita no tempo ininterrupto que eu calculava que teria na frente do computador, geralmente de manhã, quando ela via televisão ou brincava. À tarde, depois de dar almoço, banho e de deitar-me um pouco com ela, voltava para a tese, considerando o gancho — sentença introdutória ou ideia sobre um assunto, por exemplo — que eu havia deixado para poder retomar o texto rapidamente. Muitas vezes, vendo a dificuldade que eu tinha para estudar quando ela vinha e reclamava o colo, o pai a levava para o parque, para a piscina, o que a fazia se distrair, gastar energia e dormir logo depois de chegar em casa e tomar banho, o que era um alívio para mim. Quando ela pegava no sono, eu sabia que poderia reler o texto e verificar se aquilo que eu havia produzido ao longo do dia tinha, de fato, coesão, fazendo eventuais correções que passaram despercebidas durante a produção. Com o início do ano letivo de 2020, consegui deslanchar na tese, pois mesmo minha filha estudando só na parte da manhã, ela chegava da escola e queria brincar, ver TV e dormir à tarde, o que me dava mais tempo para trabalhar. Mas, com a pandemia, as tarefas e os desafios aumentaram e, proporcionalmente, o cansaço. Diante do estado de isolamento social, sem poder ir ao parque, ao balé, à piscina e viajar para a casa da avó, onde brincava com o primo, a menina ficou ainda mais exigente de atenção. Privada da interação com outras crianças, quer estar sempre brincando de bonecas, de bola, de quebra-cabeças, mas COM A MÃE — e, às vezes, com o pai. Até para andar de bicicleta, na garagem de casa, ela quer companhia e quando digo que não posso estar com ela por precisar “trabalhar no computador” — pois a escrita da tese continua —, a Pequena se ressente e diz que “só fico trabalhando” — 234 Maternidades Plurais mesmo eu colocando, muitas vezes, um colchão no chão do escritório para que ela brinque ou durma enquanto escrevo, a fim de minimizar a minha ausência, por assim dizer, ou de prover uma alternativa para ficarmos juntas. Aliás, o pequeno escritório que tenho em casa deixou de ser um reduto particular para mim, pois minha filha aqui se enfia sempre que pode, mesmo diante de minhas explicações sobre a necessidade de privacidade/tranquilidade ou do aviso da porta: Figura 1: Placa na porta do escritório. Fonte: Autoria própria (2020). Novamente, estar disponível (como ela quer) transformou-se em algo complicado, especialmente, com as tarefas de casa, que agora são efetivamente divididas, pelo menos, as domésticas. Além da falta de tempo, a disposição também se tornou escassa, pois, como se não bastassem os compromissos da maternidade, da casa e da pós-graduação, somaram-se a eles as atividades escolares a serem feitas em casa. Mesmo sendo tarefas simples, nem sempre a criança mostra entusiasmo em realizá-las, o que requer mais energia para motivá-la, bem como autocontrole para não explodir diante das manifestações de insatisfação dela por não poder desenvolvê-las, assim como as outras coisas, do modo como estava acostumada. Com todas essas requisições, exacerbadas pelo estado de reclusão, a condição plurifacetada e tensiva inerente ao papel de mãe-cientista fica mais evidente; e só aí parece que nos perguntamos e problematizamos o porquê. Vejo que o amor descomunal que devotamos aos filhos nos leva a fazer coisas que transcendem os nossos próprios limites, em diferentes situações, inclusive, nas mais simples. Deixar de atender um pedido, ainda que ele seja banal, pode significar falta de atenção para eles e mesmo para nós; isto pode implicar em uma culpa que nos cega para os efeitos [cerceadores] desse pensamento em nossas vidas, especialmente, enquanto seres dotados de uma pluralidade individual. Ser mãe, esposa, dona de casa, pesquisadora é, para muitas mulheres, algumas das facetas que elas escolheram ter, mesmo algumas destas sendo aparentemente contraditórias, e isto precisa ser encarado como um reflexo do complexo intangível que somos. 235 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A ideia de amor maternal sacrifical está fortemente atrelada à de estereotipação coercitiva da mulher, e esta é uma noção tão fortemente construída no bojo de tradições como a ocidental que chega a ser difícil pensar um conceito de mãe diferente disso. Mas, como bem pontuam Eric Hobsbawn e Terence Ranger (2002)2, as tradições e seus códigos são inventados a fim de chancelarem determinados tipos de dominação; no caso, a perspectiva ideal de mãe que assimila resilientemente as tribulações da maternidade acaba por inibir a liberdade de expressão de outros perfis, como a da própria mãe-pesquisadora. Mas mesmo quando esta faceta feminina insiste em se apresentar, surgem os mais variados questionamentos, como o apontado no início deste relato, e críticas, acompanhadas de um “bemfeito” velado (quando surge alguma dificuldade) que insinua que é preciso escolher entre ter um bebê ou estudar (ou mesmo trabalhar, em algumas circunstâncias). Ainda, a mãe-pesquisadora parece carecer estar um passo à frente dos colegas, não para se sobressair em relação a eles, mas para não incorrer em demérito por uma condição que lhe impõe outras responsabilidades e ocupações que os outros, talvez, não tenham. E quando as muitas opiniões não tentam demover a mulher de ter que optar pelo filho ou pelo diploma, sugerem que ela estabeleça uma prioridade entre eles, o que não acontece com o homem. Aliás, a flagrante distinção entre os dois no que se refere à responsabilidade pelo cuidado operacional com os filhos é vista na diferença, em países como o Brasil, entre os períodos das licenças concedidas a cada um quando a criança nasce. Em outras palavras, subentende-se que o homem não precisa de meses para estar com a criança, como a mulher, já que não será ele, teoricamente, a atender suas demandas primárias. Esta tensão entre a maternidade e a vida acadêmica ou mesmo profissional implicou em cisões históricas entre as próprias mulheres. De um lado, se posicionam as adeptas de uma perspectiva reprodutiva (sintomática do biopoder de que fala Foucault (2012)3) ou que atesta que a mulher nasceu com o propósito de ser mãe, ainda que isso signifique — não pela maternidade, mas pelo modo como ela é concebida em muitas sociedades ocidentais — a anulação de outros aspectos de sua vida. De outro, colocam-se as mulheres que não querem ter filhos por acharem que estes serão empecilhos para a sua projeção profissional, motivos para uma “confissão e tutelamento emocionais”, sendo influenciadas, de alguma maneira, por uma visão cartesiana que separa mente e corpo; negam, por vezes, características de sua própria materialidade, como a menstruação e o útero. Ambos os grupos se rechaçam, justamente por serem extremos, apesar de originarem-se no bojo da mesma tradição racionalista e progressista que se alimenta dos binarismos que cria — corpo x razão; mulher x homem; natureza x cultura. Sufocam, pois a imensidão de vozes plurais que não se enquadram em nenhuma das designações, justamente por serem múltiplas, contraditórias e intangíveis, ultrapassando as limitadas representações oferecidas pela linguagem. 2 : HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 3 : FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa e J. A. Guilhon Albuquerque. 22. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012. 236 Maternidades Plurais É por isso que parece ser tão complexo e desafiador entender-se e viver como mãe-cientista/pesquisadora, já que este amálgama se inscreve por oposições socioculturais tradicionais, mas também por um sugestivo interstício que guarda inúmeras possibilidades e que carece ser fomentado e explorado. Hoje, após entregar a versão da tese para a qualificação e ter um pouco mais de tempo para estar com a minha filha, penso que este é um período para estar um pouco mais comigo também, apesar das obrigações e dificuldades, e desvendar outros lugares que este interstício pode encerrar dentro e fora de mim. Escolher, pois, é preciso, mas não entre o bebê e o doutorado, e sim entre as variadas, mistas e mesmo antagônicas faces que podemos assumir nas diferentes circunstâncias da vida, como agora, em que decidi distanciar-me para escrever este texto. 237 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 37 Tempo de nutrir a alma e as memórias Christiane Luiza Santos1 Esta pequena epifania que aqui apresento é efeito de noites inquietantes revirando entre autores, variáveis e coração apertado. Mas é também fruto de uma longa conversa com o tempo sobre aprendizado, acolhimento, aceitação e renascimento. É, antes de tudo, uma composição pessoal, a partir de um lugar de fala que me move, comove e envolve: a maternidade. Descobri que estava grávida quando fazia a primeira seleção para um programa de mestrado. Enquanto sementinha, meu filhote já sentia a divisão do meu coração que o acompanhou por seis anos. Será que aquela maternidade caberia na academia? Para chegar aqui, neste ano de 2020 tão louco e surreal quanto uma pintura de Salvador Dali, é necessário voltar um pouco no tempo. Aquela seleção? Reprovei na entrevista. Era só o advento da maternidade. Depois de 39 semanas e seis dias nascia um lindo rebento e uma mãe. Vou pular o nevoeiro do puerpério, mas cabe dizer que vivi entre dois empregos e uma criança até ele ter três anos e seis meses. E este maternar, longe se ser objeto de pesquisa que me levaria a livros, teorias e variáveis, foi de puro empirismo. Instinto puro, baseado no amor, no vínculo visceral/espiritual e cheio de metodologia primitiva — tentativa e erro. Mas, então, chegou a hora de ouvir o murmúrio da busca pelo conhecimento que nos consume e que nos leva a saltar no escuro e acreditar na nossa capacidade sobre humana de sermos mulheresfilhas-esposas-mães-amantes-docentes-pesquisadoras-trabalhadoras. Hora de, enfim, entrar na academia e sair em busca do binômio mestrado-doutorado. Estes seis anos contidos no mestrado e doutorado são para mim como a história da deusa Perséfone, que foi raptada por Hades2. Encantada pelo narciso mais lindo do jardim ao tentar colhê-lo é 1 Mãe de Vi. Cirurgiã-dentista. Doutora em Políticas Públicas. Faculdades Pequeno Príncipe. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9457920858863572 2 Perséfone foi a única filha de Demeter e Zeus. Cresceu muito bela e feliz, na companhia das ninfas. Hades, o deus dos infernos, apaixonou-se perdidamente por ela. Um dia, quando a jovem passeava despreocupada pelos prados verdejantes, ao colher uma flor, a terra abriu-se de repente e Hades surgiu para a raptar e levar consigo para o mundo 238 Maternidades Plurais dragada para o submundo. E enquanto a deusa realiza a sua descida para as sombras, sua mãe Deméter desesperada e consumida pela tristeza, deixa de nutrir plantações e a escassez atinge o Olimpo. Essa descida ao submundo das pesquisas, em si, já é cruel para as mulheres, mas para as mães é dar mãos a Hades por escolha e pior, comer a uma só mordida a Romã. Ao escolher a Romã, fruto proibido, sentimos que em algum lugar Demeter deixará de plantar e em um dado tempo, a escassez surgirá em algum ponto da nossa vida. Seja a saúde física, mental, financeira ou emocional. Por vezes, chega ali naquele local que nos é sagrado, único e fonte de poder: a maternidade. Seja pela “escolha” do adiamento, seja pela ferida aberta gerada por ausências e produtividade irreal e por vezes, desleal. A deslealdade já inicia em entrevistas que nos questionam se temos filhos e se sabemos que uma dissertação e/ou tese são como outro filho3 e, tolas dizemos: “Sim, eu sei e estou pronta!” Mas quem está pronta para dar a mão e adentrar o mundo sombrio? Focamos no objetivo e esquecemos do trajeto: a descida. Tal qual a maternidade que — por mais que tenhamos sonhado, planejado o nome, o berço, as roupinhas ou o tipo do parto — quando vira realidade tudo vai para um lugar que nem imaginávamos, cheio de inseguranças, sombras e, por vezes, solidão. E assim é a descida das mães ao submundo “capesiano”, marcada por escolhas e planos que nem sempre seguem a trajetória esperada. Para algumas o fardo das cobranças é muito pesado e por vezes, desistem. Para outras, pura reprodução do Labirinto de Cristal de Eagly e Carly (2007) 4 em que conciliar as demandas sociais e culturais da vida materna e a academia exigem persistência e sobre esforço nestes obstáculos de vidro que nos são visíveis, mas ao mesmo tempo, nem sempre transponíveis. Em face a todo o debate sobre gênero, maternidade compulsória e patriarcado que pode permear esta passagem das mães neste submundo, eu sempre almejei os dois títulos, “mãe” e “doutora”. O que sabemos é que a coleção de histórias é digna de um compêndio: “o que eu perdi na vida dos meus filhos enquanto estava fazendo a tese, outro artigo ou fazendo aquela regressão?” Mas, inferior sobre o qual reinava. Deméter, sua mãe, não aceitou a situação. Decidiu então não mais voltar ao Olimpo, a morada dos deuses, e renunciou às suas funções divinas até que a filha lhe fosse devolvida. A terra foi ficando estéril e os homens com fome, pois as culturas secaram e morreram. Zeus então enviou Hermes, o deus mensageiro, para ir buscar Perséfone. Hermes chegou ao Inferno e encontrou Perséfone desconsolada. Mas seu desespero tornou-se alegria quando descobriu que Hermes tinha vindo por sua causa e Hades a deixaria partir. Antes que ela o deixasse, contudo, Hades lhe deu algumas sementes de romã, e ela comeu. E esse gesto ligara-a para sempre ao submundo de forma que passaria agora um terço do ano no Inferno com Hades, e dois terços do ano no mundo superior, com Deméter. 3 NT: Para mim, uma tese e uma dissertação são somente isso: trabalhos acadêmicos. Considerar como filho ou uma gestação, aos meus olhos e sentimentos, me parece uma desfiguração do que representa a maternidade e o maternar, uma reafirmação dos discursos patriarcais construídos culturalmente sobre o papel da mãe. “O filho é da mãe”. 4 O conceito de Labirinto de Crystal é apresentado por Eagly e Carli (2007) para delinear as barreiras, ainda que não formais, ao longo da carreira da mulher. Simboliza a complexidade e a variedade dos desafios que a mulher pode enfrentar na sua jornada. Para as autoras uma rota bem-sucedida não é garantida e requer persistência e esforço. 239 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) como Perséfone, escolhemos comer a romã e para nos lembrar disso, há uma vastidão de dedos apontados e vozes estridentes gritando: “— Você sabia que ia ser assim!”. Sim, eu sabia. Como eu sabia que meu peito iria rachar ao amamentar. O que eu não imaginava era que haveria tanta dor e até sangue saindo do meu peito, literalmente. Há uma solidão na maternidade na academia. Como se fosse um pecado passível de nos manter para sempre exiladas no inferno se admitirmos para os demais. Um silencioso ruído que só é ouvido para quem tem úteros já paridos. Naquela troca de olhares antes da apresentação de um seminário e você confessa entre os dentes, quase inaudível, “deixei meu filho com febre na creche”. E segue, sorrindo, apresentando, concentrada e quiçá recebendo parabéns, mas dilacerada por dentro — quase que violentada. Convivo com colegas que passaram por isso como plumas, tiveram um ou dois filhos neste tempo de seis anos e integraram de forma linda as suas vidas duplas, mas a mim — me rasgava. Eu tive a benção de estar num programa e ter um orientador sensível que acolheu e me amparou nas minhas perdas e angústias maternas. Mas à medida que vamos nos embrenhando neste submundo “capesiano”, percebemos que isto não é a regra e sim, a exceção — da exceção. Parece que há uma desautorização do maternar nas que buscam manutenção das relações afetivas com seus pares e filhos. Sem espaço para a subjetividade das relações e uma glorificação do nosso sacrifício emocional e pior — dos nossos filhos. “Guerreira”, “não sei como consegue”, mas nas entrelinhas há um oceano de lágrimas e perdas, nunca sequer mencionadas. E ao longo destes seis anos essa aflição foi me consumindo de forma silenciosa. Culpada, censurável e me sentindo incapaz e com medo. Como se estivesse desaparecendo dos cômodos, dos almoços, dos domingos, das fotos — desconexa de mim e da minha cria. Dos três aos nove anos — o que mais teria que perder daquele rebento que seria único? “Tempo, tempo, tempo5”. Mas o mito de Perséfone não é só o seu rapto e sua descida ao inferno, fala também do seu retorno, da sua subida, da ciclicidade das estações, do preparo para a primavera e como ela, a medida que aprendeu a acolher as suas sombras e seu tempo sombrio, se tornou a rainha e guia do submundo. E é a partir daqui que construí o que seria o ano de 2020. À medida que estas sombras foram sendo escancaradas, mas também acolhidas, a psique começou a sua reação, desconstruindo, reconectando, flexibilizando e para então, acumular forças para subir e voltar a florescer. Findado o tempo dos seis anos, o menino que acompanhou as quatros horas de defesa cansadamente decreta: “Não quero nunca mais ficar numa tese!” Ainda não sei se ele falava da defesa da tese ou do processo. Ah, deixar estar! Chegamos lá, sem os louros imaginados e levando somente as marcas de combate e uma alegria imensa de retomar a vida em nossas mãos e moldá-la novamente, com massinhas de modelar, nuvens de algodão e risadas furtivas. 5 VELOSO. Caetano. Oração ao tempo. Canção disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA. Acesso: 15 mai 2020. 240 Maternidades Plurais E foi neste ciclo de mortes necessárias e renascimentos surpreendentes após um isolamento da alma materna que chega o ano de 2020. O ano em que havia tantos planos para nós, desde cursos, viagens e alegrias intensas a serem vividas. Eu ainda teria dois empregos, uma tarde no grupo de pesquisa e ele ainda iria para a escola e futebol todos os dias. Mas já estávamos aproveitando os finais de semana de forma integral, as noites em sua maioria eram nossas e eu pude voltar a olhar para dentro de mim e daquela relação. Mas em março chega o vírus que nos aprisiona dentro do apartamento. E então, o uniforme novo, as chuteiras novas, os livros e os treinos de futebol entraram em suspensão. Um reaprender quanto ao uso da tecnologia, das rotinas antes terceirizadas: restaurante, limpeza da casa e educação. Mantendo dois empregos e home office, parceiro na linha de frente e você completamente neurótica por assepsia das coisas, espaços e pessoas! Socorro! Será que vendem aquelas câmaras de desinfecção para apartamentos? Cadê o Olimpo florido? Nas primeiras semanas me vi como que num novo puerpério! Meu Deus, como eu vou dar conta de tudo isso? Eu, ele e a cachorra, vinte quatro horas juntos, todos os dias. A atenção não será mais exclusiva, eu tendo que pedir novamente: “Só um pouquinho, mamãe está trabalhando!” “Agora preciso de silêncio dos dois (sim, porque se provocam o tempo todo!), pois estou em aula, gravando podcast ou na reunião do comitê de ética!” Não era isso que nós tínhamos combinado, Hades! Eu estava subindo! Logo na segunda semana quando iniciaram as aulas online dele e ele teve um pequeno rompante. Não quero mais esta escola, não quero isso ou aquilo. E quando o pai chegou em casa eu disse: “Hoje foi bem difícil.” E então eu fui arrastada por Cronos, que me levou para dez anos atrás, naquele nevoeiro do puerpério. E como eu usei esta frase na exaustão dos dias. E congelei. E então, olhei para cima e vi que o caminho da subida, estava ali, só tinha perdido a trilha na confusão do vírus. E decidi trilhar, abandonando qualquer expectativa irreal, pois Perséfone também é vitalidade e potencial para novo crescimento. E principalmente, como (re)agir frente às incertezas e falta de clareza do que é a prioridade naquele momento6. E percebi a oportunidade dos deuses: (re)maternar! A preparação anterior para subida me trouxe a percepção do quanto da nossa imaterialidade, acolhimento e maleabilidade ante a vida, vai sendo dissecada para nos encaixarmos em padrões normativos de assertividade, objetividade e retidão. Introdução, revisão de literatura, metodologia, resultados, discussão e conclusão. Que espaço temos dado a nós mesmas para cultivar nossas primaveras? Seria ela feita só da colheita? Mas, e a beleza das flores, o som dos pássaros, o cheiro de jasmim no ar? As borboletas? Estas singularidades da vida que nos preenchem? 6 BOLEN, J. S. Goddesses in Everywoman. 241 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) E então, neste isolamento social, me permiti sentir, respirar tudo e abraçar o presente desta maternidade que era possível. Como aquela imagem de dia ensolarado, em que os raios do sol atingem a sua pele sem queimar, você olha a paisagem e ela tem um brilho onírico. Surreal e cheio de amor e vida. “Tempo, tempo, tempo. És um dos deuses mais lindos”.³ E então, agradeci a generosidade da história comigo — por eu estar ali, num momento de crise mundial e ter emprego, comida todo dia e todos saudáveis. E poder ter tempo para pensar, sentir e experimentar tudo isso, pois a muitas de nós isso é negado no atropelo das necessidades humanas urgentes e alienantes da vida. E mais uma vez, senti o abismo que me separa de tantas, mas que não desqualifica também as minhas dores. E fui atravessada por compaixão. Um dia, lavando a louça, chorei pelas mães que não podiam estar fazendo isso, naquele momento. Lavando a louça de pratos que estavam com comida. Chorei em honra as minhas antepassadas que fugidas de guerras imigraram para o Brasil e as escolhas difíceis que tiveram de fazer: qual filho trazer no navio, a fome e tantas perdas, dores caladas e violências sofridas. E pensei em outras linhagens que não a minha, mas que me une em um laço indissociável com a irmandade feminina e quanto de dor, grito, violência nos é acumulado e ainda vivido. E que se repete em tantos lugares, em várias gradações, no olhar repressor, na piada e no trabalho hercúleo que temos que fazer no dia a dia, só para provar que podemos e merecemos. Seja o que for. E me permiti chorar e rezar por todas nós. E desta forma — conversando com o tempo — fomos vivendo um dia de cada vez e ainda estamos. Criamos rotinas, para alguns dias funcionarem e em outros, deixá-las de lado. “Tempo, Tempo, Tempo, Tempo. Entro num acordo contigo.”³ E de repente, os olhares entre nós foram ficando profundos e cheio de cumplicidade. E a beleza da vida diária se apresentou a nós. Eu ainda peço tempo para trabalhar, mas não há mais peso. Só acolhimento de entregar o que posso agora e de aceitar somente o que podem dar também. Fizemos arte e ele, muita traquinagem. Escolhemos cores e falamos de como elas transmitem sentimentos e sensações, obrigada escola. Desenhamos nossos sentimentos e rimos muito das nossas não habilidades artísticas. E quase tive que provar que um dia iniciei a graduação de artes plásticas com aquele talento todo que ele presenciava. Cultivamos flores, colhemos alecrim, sálvia e orégano na nossa varanda. E conversamos sobre o ciclo da vida e da morte. E o quão frágil somos e se no fim, é só o planeta Terra respondendo com febre ao vírus que somos nós. Limpamos a casa, lavamos a louça e falamos de direitos e deveres de cidadania. E nossa parcela de cuidado no mundo. Reaprendi a cozinhar e gostar de alimentar a cria, uns dias mais e outros bem menos. Uns dias acertava e outros ainda precisava desenvolver esta habilidade, segundo o menino. Este tempo de nutrição da memória da alma estará impregnado de bolos de chocolate, tortas de bananas, lasanhas e caquis. Falamos sobre gratidão e rezamos pela comida em nossos pratos e pelos os que não tem. 242 Maternidades Plurais Assistimos tantas séries e filmes que pensava se não estaria errado e deveria estar lendo livros. Mas lembrei que a vida literária é minha paixão e a dele, o mundo corporal das bolas e corridas. E me senti agraciada por sermos diferentes e termos que aprender a nos respeitar. Ao menos tivemos conversas sobre as atitudes dos mocinhos e vilões, sobre linguajar apropriado (por que dublam palavrões?), sobre as escolhas, coragem e medo. Todo almoço era um convite a conversas longas e risadas. Mas desde que eu não começasse a filosofar demais. Respeitar os tempos diferentes e aprender a dosar as impressões da vida, não é fácil. A vida binária não me atrai, quero os variados tons, o complexo, as vírgulas e os três pontos e a ele, serve três frases e ponto final. E assim, em doses homeopáticas, conversamos sobre política, futebol, música, carreira minorias e gênero. O peso disso tanto para mulheres como homens. O quanto temos uma vida de privilégios e como isso também afeta o nosso olhar, fala e ser. Falamos de sexo e sexualidade também. E confesso, que meu coração sorri com a naturalidade que ele apreende e compreende isso, mesmo que diluído para alguém de dez anos. O horário do sol na varanda era mais que esperado, ficávamos os três ali, sentindo o calor, o vento e aquela felicidade de ver nuvens e céu mesmo que num apartamento. “Peço-te o prazer legítimo.”³ Dias de frio na cama, regado a risadas e cosquinhas sem fim. Abraços longos, apertados e quentinhos. Brincar de esconde-esconde, comer brigadeiro e fazer Yoga. Dançar a live do Alok inteira e dançando ao menor som de música. Recontar duzentas vezes suas traquinagens quando bebê, vídeos e fotos. E saber das novas das primas. Ligações de vídeo todo dia, nem que fosse para mostrar a cachorra para a maior fã: a prima. Ele construiu histórias com a professora, fizemos contas sem fim, lembramos a Bahia e o descobrimento do Brasil e ele decidido a nunca fazer nada na área das ciências de saúde, já que se horrorizava a cada vídeo sobre os sistemas cardíaco, digestório ou respiratório. Não foi fácil conciliar as minhas aulas com as dele e eu só ficava pensando nas professoras, que também têm família. Atravessada por compaixão. E como todos nós tivemos que nos adaptar, ser maleáveis e reduzir nossas expectativas e ansiedades. E entregarmos somente aquilo que podemos dar agora. “Compositor de destinos”³. Tempo, tempo, tempo. E este tempo em que me dediquei as tarefas da vida diária, aos momentos junto a ele e à docência foram de profunda nutrição da alma, da minha e da dele. E de muita sensibilidade, longos silêncios, grandes discussões, de reconexão e desconstrução para reconstruir. De inverter o modo sobrevivência que fomos forçados a entrar para o modo amoroso de acolher a possibilidade de pequenos passos, pequenos afazeres e abandonos necessários. E grandes sensações. Meus artigos estão parados, neguei bancas e projetos. Lattes congelado no seu inverno. Mas quando retornei ao solo fértil da minha maternidade, floresci. Encontrei um jardim no Olimpo com 243 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) árvores e flores que me lembravam o quanto eu precisava consultar a minha alma, para não ser dilacerada novamente. De buscar conhecer quais eram as minhas feridas e qual era o medicamento adequado, sem aceitar paliativos. O próximo passo a ser conquistado é a integração entre a realidade do mundo "real" e a psique. A força de ser duas, cíclica, para não ser mais quebrada. Como Perséfone, que aprende a cada descida, rainha de si e guia no seu mundo sombrio. “Ser possível reunirmo-nos [...] Num outro nível de vínculo.” ³ E a história a ser contada nesta pandemia é sobre esperança, re(ligação), re (maternar), cura e as teceduras que o destino traz. E o medo que existia, passou. “Tempo, Tempo, Tempo, Tempo Quando o tempo for propício[...] De modo que o meu espírito Ganhe um brilho definido[...] E eu espalhe benefícios Tempo, Tempo, Tempo, Tempo.”³ 244 Maternidades Plurais 38 Alteridades femininas: mães pesquisadoras, não docentes, em tempos de pandemia Cláudia Maria Serino Lacerda Muniz1 Regiane Cristina Tonatto2 Introdução Dois mil e vinte teria sido um ano como qualquer outro se não fosse pelo surgimento de um coronavírus, altamente contagioso e letal, que desencadeou uma enfermidade epidêmica, amplamente disseminada: a pandemia da Covid-19. Sua origem, até o momento, é atribuída à cidade de Wuhan, na China, onde muitos infectados declararam ter comparecido, no início da proliferação da doença, em novembro de 20193. Independente de qual seja sua origem, fato é que o coronavírus desencadeou uma crise mundial, nas esferas econômica e social, da qual o Brasil não pôde escapar. Para enfrentá-lo, foi necessário tomar medidas drásticas, como a publicização do Decreto Legislativo nº 6/2020, que reconheceu o estado de calamidade pública no país, e reorganizar a vida social para minimizar a disseminação do vírus. Consequentemente, muitas pessoas tiveram suas relações de trabalho-família transformadas. Com a pandemia veio o isolamento social, o fechamento temporário de escolas e universidades e a exigência de novas rotinas, social e profissional, dando lugar a um novo modo de trabalho — o remoto. Embora a prática não seja recente, sua implementação tem se tornado essencial ao funcionamento de instituições, públicas e privadas, neste período de isolamento, impondo novos desafios aquele(a)s que têm o privilégio de exercê-la, sem exposição direta ao vírus. No caso das mães pesquisadoras, objeto desta coletânea, que precisam combinar a pesquisa com o home office e o cuidado 1 Doutoranda, Programa de Pós-graduação (Interdisciplinar) em Sociedade, Cultura e Fronteiras, UNIOESTE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3035232427882403 2 Doutoranda, Programa de Pós-graduação (Interdisciplinar) em Sociedade, Cultura e Fronteiras, UNIOESTE. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3565244234835424 3 BENVENUTO, Domenico...[et al.]. Novo coronavírus: origem e evolução baseadas em estudos filogenéticos. In: Canal Ciência. Disponível em: http://www.canalciencia.ibict.br/ciencia-em-sintese1/especial-covid-19/353-novo-coronavirus-origem-e-evolucao-baseadas-em-estudos-filogeneticos. Acesso: 22 jun 2020. 245 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) da família, tal dinâmica vem acompanhada, na maior parte das vezes, de um sentimento de culpa, intercalado com ondas de estresse e resignação. Como servidoras técnico-administrativas, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), nós — Cláudia Maria Serino Lacerda Muniz e Regiane Cristina Tonatto — temos vivenciado esta experiência que, para além do trabalho remoto, envolve o compromisso com a pesquisa de doutoramento, as obrigações domésticas, o cuidado com os filhos e com a própria saúde. Por dividirmos o mesmo ambiente de trabalho, e compartilharmos de angústias e desafios comuns, é que decidimos relatar, em conjunto, nossas vivências, fugindo à regra dos relatos de experiência, normalmente escritos individualmente. Por esta razão, nosso texto não sucumbe à gramática clássica, sendo redigido em primeira pessoa, do plural ou singular, a depender da situação relatada: fala conjunta ou individual. Nosso relato é precedido de uma reflexão (sucinta) sobre as categorias “lugar de fala”, “alteridade”, “colonialidade do poder” e “colonialidade do ser”, sem as quais parece difícil, no nosso entendimento, discorrer sobre a desigualdade de gênero presente na estrutura da sociedade e das instituições de ensino superior brasileiras. Esperamos que todas as mães, leitoras, possam usufruir de nossas experiências e tirar o proveito necessário à valorização do conhecimento situacional. Que possam ampliar as discussões propostas e empreender a prática da “desobediência epistêmica”4, tão necessária ao contexto atual, reconhecendo a importância do saber local, em detrimento da aplicação de teorias que não foram concebidas para o nosso contexto. 1. “Lugar de fala”, privilégios e alteridade As reflexões aqui empreendidas não pretendem representar a voz de todas as mães pesquisadoras, durante a pandemia. Discutimos a partir de nosso próprio espaço discursivo, com base nas experiências que compartilhamos, sem assumir o “lugar de fala”5 que não nos é próprio. Admitimos este posicionamento, em primeiro lugar, porque reconhecemos nossos privilégios, já que temos a oportunidade de desenvolver nosso trabalho, remotamente, desde a nossa residência. Em segundo lugar, porque buscamos exercer, humildemente, a alteridade 6, não ignorando as experiências de outras mães que, para além da dedicação à família, permanecem desempenhando atividades 4 Termo emprestado de Boaventura de Sousa Santos para fazer referência ao exercício de autonomia científica. “Lugar de fala” é um termo utilizado pela perspectiva teórica (de)colonial para fazer referência ao protagonismo de fala daquele(a) que vivencia a experiência investigada, conforme proposto por Djamila Ribeiro. 5 6 Segundo Emmanuel Lévinas, é a concepção segundo a qual todo indivíduo é interdependente do Outro. Logo, a existência do “eu-individual” só é possível mediante a interação e o reconhecimento do “Outro”. 246 Maternidades Plurais externas, expondo-se, diariamente, a riscos de contaminação. Logo, seria injusto assumir o protagonismo de fala dessas mães, sobretudo se considerarmos que parte delas estão na linha de frente do trabalho terceirizado ou atuando no sistema de saúde, contra a pandemia. Com esta decisão, não pretendemos limitar o debate a partir de um ou outro lugar, pois, como lembra Djamila Ribeiro7, é fundamental que a problematização transcenda quem é atingido por ela, levando-o(a) a refletir sobre sua própria posição social. Nossa intenção é reconhecer que existe uma multiplicidade de experiências, para além da mulher branca e de classe média, demandando reflexões plurais, em detrimento de discursos uniformizados que excluem boa parte das companheiras de luta. Assim, nos limitaremos a discutir os pontos comuns de interesse, trazendo para o nível do discurso a colonialidade estrutural do poder e do ser, da qual parecem resultar as desigualdades de gênero e as múltiplas e duras jornadas impostas às mulheres e mães pesquisadoras. 2. No sustentáculo da academia ecoam vozes masculinas: a colonialidade do poder e do ser Antes de mais nada, esclarecemos que nossas reflexões não tomam os homens como inimigos naturais ou responsáveis pelas mazelas da feminilidade, neste cenário de confinamento. Nossa militância busca um mundo plural, sem hegemonia, como também sugere a antropóloga, argentina, Rita Segato, onde ambos ‒ homem e mulher ‒ possam coexistir, sem agredir-se mutuamente. Logo, admitimos que o inimigo do feminismo é o patriarcado8, e não os homens, embora eles se manifestem, mais enfaticamente, neste sistema. O patriarcado constitui herança do sistema-mundo europeu que classificou a humanidade em torno da ideia de “raça-classe-gênero”, categorias que se mantêm fundantes, na América Latina, desde a invasão do continente, em 1492, pelos colonizadores europeus. Esta hierarquia se naturalizou e permanece, até hoje, na estrutura das sociedades latino-americanas, sendo sustentada pela “colonialidade do poder” e “colonialidade do ser”9. 7 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. 112 p. (Feminismos Plurais). 8 Sistema segundo o qual os homens mantêm o poder, primário, predominando em funções de liderança política, privilégio social, controle de propriedades e autoridade moral. A ideia da “colonialidade do poder” foi desenvolvida por Aníbal Quijano, sociólogo peruano, na tentativa de compreender as estratégias de poder subjacentes ao processo de colonialidade, como um modelo de dominação que associa trabalho, Estado, produção do conhecimento e, inicialmente, a formação racial (mas não somente). A “colonialidade do ser”, segundo Walter Mignolo, induz à subalternização e ao silenciamento dos modos de existência do Outro, por meio da naturalização da superioridade de um grupo racial sobre os demais, de uma classe sobre a outra, do homem sobre a mulher. 9 247 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No âmbito acadêmico, o sistema patriarcal não é, facilmente, percebido, já que homens e mulheres costumam receber os mesmos salários. Para desvelá-lo, faz-se necessário problematizar as condições de que ambos dispõem para o desenvolvimento da pesquisa, considerando os mesmos resultados esperados. Historicamente, tem sido atribuída às mulheres a tarefa de cuidar dos filhos, dos afazeres domésticos e da educação das crianças, em fase escolar. Isso não as impede de ocupar espaço na vida acadêmica e assumir cargos similares aos dos homens. Contudo, nem sempre conseguem manter ritmo similar aos dos homens, nas produções científicas, haja vista o acúmulo de jornadas a que estão submetidas. Embora muitos homens contribuam com os afazeres domésticos, sabemos que esta não corresponde à realidade da maioria das mulheres da academia. Muitas exercem a maternidade solo e algumas possuem companheiros que, fazendo parte ou não do meio científico, não vislumbram as atividades de casa como sendo igualitárias. Isso se revela em estatística recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), segundo a qual as mulheres gastam quase o dobro de tempo, que os homens, em tarefas domésticas10. Esta jornada se tornou ainda mais exaustiva com o incidente da pandemia, impactando, diretamente, nas produções acadêmicas de mulheres com ou sem filhos. Segundo um levantamento realizado pelo projeto, brasileiro, Parent in Science (Pais na Ciência), que calcula o impacto, na pandemia, da desigualdade de condições de produção, entre homens e mulheres, o cenário é alarmante: 40% das mulheres, sem filhos, não concluíram seus artigos, contra 20% dos homens e; 52% das mulheres, com filhos, não concluíram seus artigos, contra 38% de homens 11. No nosso caso, que somos mães pesquisadoras não docentes, e ocupantes de cargo técnicoadministrativo, na Universidade, manter o ritmo de produção acadêmica torna-se ainda mais desafiador, já que dispomos de menos incentivo institucional e maior limitação de tempo para o desenvolvimento de nossas pesquisas. É deste assunto que trataremos nas sessões seguintes. 3. “Toma lá, dá cá”: experiências compartilhadas “Toma lá, dá cá” é uma expressão já conhecida e utilizada, com o sentido de troca de favores, aqui tomada de empréstimo para fazer referência à maneira como nos organizamos para redigir nosso relato ‒ “vaivém” de arquivos e conversas compartilhadas via WhatsApp. 10 Agência IBGE Notícias. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agenciade-noticias/noticias/24267-mulheres-dedicam-quase-o-dobro-do-tempo-dos-homens-em-tarefas-domesticas. Acesso: 27 jun 2020. 11 TILT. Produção científica de mulheres despenca na pandemia - de homens, bem menos. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.htm. Acesso: 27 jun 2020. 248 Maternidades Plurais Esta decisão, de cunho metodológico, foi fundamental para que pudéssemos antecipar questões epistemológicas e definir a estrutura do nosso relato, sem sucumbir aos riscos de uma conversa presencial. Depois de muitas reflexões e aprendizagem conjunta, conseguimos consolidar nossas experiências que seguem, sintetizadas, nas seções seguintes. — E agora, Regi, quem começa? Podemos seguir a ordem alfabética? — Claro! Por que não? “Mãos à obra”, Claudinha. 3.1 Mulher-pesquisadora e mulheres-outras em Cláudia Lacerda Muniz Sou Cláudia Maria Serino Lacerda Muniz, mãe da Milena e do Anthony, de 11 e 3 anos incompletos, e resido em Foz do Iguaçu-PR, cidade onde construí a maior parte da minha trajetória de vida e pesquisa, ao longo dos meus 36 anos de idade. Tenho formação em Secretariado Executivo e, há 8 anos, sou servidora da UNILA, lotada, atualmente, na Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. Para além do trabalho de assessoramento, ocupo espaço no colegiado de pesquisa, da Universidade, na Comissão Superior de Pesquisa, em decorrência de minha formação, na pós-graduação: sou mestra e doutoranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Em minha trajetória de vida, fui sempre adepta à pesquisa e ao desenvolvimento profissional, razão pela qual tive de conviver, durante muitos anos, depois da maternidade, com o sentimento de culpa e resignação. Ainda posso lembrar dos comentários desmotivadores, que marcaram meu percurso histórico, que me exigiram grande exercício de resiliência para continuar: “Você não precisa trabalhar, seu esposo tem um bom salário”, “Por que não fica com seus filhos, em casa?”; “Estudando de novo? Você deveria dar mais atenção aos seus filhos”. No âmbito acadêmico, as críticas eram outras e, frequentemente, vinham à tona, em asserções, como: “Servidor(a)s técnico(a) não precisa de mestrado” e “Mestrado acadêmico é para professor”. Ainda assim, não desisti de militar e, no final de 2014, fui aprovada em programa de pós-graduação, acadêmico, contrariando o discurso de colegas, de trabalho, professores e professoras. Era só o começa de minha jornada, com pesquisadora. O período foi de grande satisfação, pois devido ao baixo número de servidores(as) técnicos(as), da UNILA, matriculado(a)s em programas de pós-graduação, à época, pude realizar o mestrado, em regime de afastamento integral, e passar mais tempo com Milena, até então filha única. Mas os julgamentos não cessaram e, mesmo com os esforços para conciliar maternidade-família-estudo, evoluí para estados críticos de ansiedade e depressão que, mais tarde, só consegui amenizar com a prática esportiva. Tornei-me corredora amadora e atleta de CrossFit e, em consequência, a Cláudia que, hoje, redige este relato conjuga outras mulheres, além da pesquisadora: é mãe, esposa, filha, dona de casa, atleta e trabalhadora. Apesar das dificuldades relatadas, reconheço meus privilégios — de mulher branca, beneficiada pelas estruturas sociais — e discurso a partir do meu “lugar de fala”, para não uniformizar as pautas 249 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) de outras companheiras de luta, especialmente as mães solos, que não possuem uma rede de apoio para contar. Conciliar a pesquisa, o trabalho e a maternidade, neste período de pandemia, tem sido um grande desafio. Mas não posso ignorar o quanto me sinto realizada em poder cursar um doutorado e desenvolver pesquisas, interdisciplinares, na área em que possuo interesse: “colonialidade do saber”. Sou pesquisadora associada do Grupo de Pesquisa “Descolonizando as Relações Internacionais” (na América Latina), na linha de pesquisa “Integração Contra Hegemônica”, e participo de reuniões, semanais, com o(a)s demais integrantes. Paralelamente, estou realizando ajustes no meu projeto de Tese e cumprindo os créditos das disciplinas obrigatórias, recentemente aprovadas para a oferta na modalidade a distância. Tento conciliar tudo isso com o expediente de trabalho remoto, de oito horas diárias, pois não fui contemplada com afastamento para estudos, e ainda acompanho as atividades escolares de minha filha, em idade escolar, e cuido do meu “caçula”, de três anos incompletos. Produzir conhecimento, nos moldes da ciência positivista, e nas condições elencadas, tem sido quase impraticável, razão pela qual agradeço a oportunidade de participar desta coletânea. A proposta me parece pertinente e necessária ao rompimento das estruturas, colonizadas, das instituições de pesquisa, que situam homens e mulheres em posições desiguais de produção científica, exigindo de ambos os mesmos resultados. Tenho plena convicção de que minha realidade não é a mesma de outras mulheres da academia. Meu esposo é um pai presente e, frequentemente, divide as tarefas domésticas comigo. Ele adora cozinhar e, sempre que está em casa, assume, com entusiasmo, esta atribuição. Contudo, a atividade que ele exerce é essencial e, nem sempre, posso contar com a sua parceria. Nos primeiros quarenta dias de pandemia, tive vários surtos. Pensei que não fosse me adaptar. Tudo o que eu fazia era interrompido pelo grito ou choro de meus filhos: “mamãe, colo! Tô com ‘come’!”, repetia o Anthony; “mamãe, empresta o computador, minha aula vai começar”, insistia a Milena. A nova rotina exigiu o replanejamento de minhas ações e, também, uma aquisição não prevista: tive de comprar um computador. Agora, eu e Milena poderíamos desempenhar nossas atividades, tranquilamente, enquanto o pequeno Anthony se distraía com meu celular. Doce ilusão! As interrupções, durante as reuniões, remotas, de trabalho e pesquisa, ilustram bem o cenário: em meio aos áudios, poucas vezes ativados, devido aos ruídos, é possível ouvir os gritos daqueles que tiveram seu espaço roubado desde que o trabalho remoto invadiu nossas residências. Leituras não concluídas, artigos paralisados e sentimento de incapacidade. Este é o retrato de minha vida acadêmica, neste período de isolamento. E não poderia deixar de relatar um fato que me ocorreu, dias atrás, enquanto eu concluía uma apresentação, depois do meu expediente de trabalho, para compartilhar no grupo de pesquisa que participo: meu filho menor, com sono e já cansado de esperar por um aconchego, virou um copo de água sobre o computador (novo) em que eu trabalhava, forçando-me a desligá-lo minutos antes da reunião. 250 Maternidades Plurais Nesse momento, fui tomada por um misto de sentimentos que não descreverei, pois a romantização da maternidade nos impede de abordá-la como ela é, de fato. Mas posso compartilhar o que aprendi desta lição: que não podemos nos submeter a esta sociedade, hierarquizada, que não considera nem respeita as mães, pesquisadoras, em suas múltiplas dimensões. 3.2. Mulher-pesquisadora e mulheres-outras em Regiane Tonatto Sou Regiane Cristina Tonatto, tenho 36 anos de idade e moro na cidade onde nasci, Foz do Iguaçu-PR, e membra12 do Comitê Executivo pela Equidade de Gênero e Diversidade (CEEGED), da UNILA, onde trabalho há 9 anos. Sou formada em pedagogia, com especialização em educação, mestra e doutoranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Mãe da Laura há nove anos e do Miguel há seis anos. Pesquiso na área de Estudos Culturais, na Educação, na perspectiva da alteridade, inclusão e diversidade. E me dedico, desde sempre, a ouvir e compartilhar histórias de mulheres. Sinto-me realizada por desenvolver um doutoramento, no campo da interdisciplinaridade, como pretendia, e reconheço, desde já, meu “lugar de fala”. Independente das dificuldades, neste período de isolamento, sou consciente do quanto as estruturas sociais me beneficiaram e beneficiam até hoje. Neste relato, carrego comigo mulheres que gostariam de ter tido as mesmas oportunidades, em especial as mulheres da minha família. A primeira, minha mãe Tecla, dona de casa, costureira, entregue ao trabalho doméstico muito cedo, sem a chance de se dedicar aos estudos, e a segunda, minha avó materna, Leonilda, mulher dedicada ao cuidado de dezesseis filhos e à lavoura. Sou a primeira mulher, na família, a ter uma carreira profissional e a concluir uma faculdade. Além disso, fui mãe por escolha própria. Acredito que a maternidade nem sempre foi uma opção para a mulher. Recordo-me da minha avó narrar os métodos rudimentares para evitar uma gravidez. Aproximadamente trinta e dois anos de vida dela foram dedicados às gestações e puerpérios. A minha decisão de ser mãe foi no último ano da graduação. Lembro-me que a decisão foi empolgante, naquele período da vida. Nos registros fotográficos da minha colação de grau, em Pedagogia, exibo o lindo barrigão. Em seguida, assumi o concurso de Técnica em Assuntos Educacionais e tive minha filha, meu primeiro “louro”13 e, em 2013, resolvi ter o segundo filho, Miguel. Na volta da licença à maternidade, senti-me desafiada a idealizar um Núcleo de Apoio à Acessibilidade e Inclusão, motivo que me levou a voltar a estudar. Concluí o mestrado em 2015. Tal realização foi possível por meio da concessão do afastamento integral. Foi um período muito feliz para Devido a nossa militância, que busca uma sociedade não hegemônica e patriarcal, optamos pela grafia “membra”, invés de “membro”, já admitida na ortografia brasileira, apesar de eventuais críticas recebidas por linguistas clássico(a)s. 12 Relaciona-se ao nome da primogênita da autora, chamada Laura. “Louro” advém do latim laūrus, -i, loureiro, coroa de louros (planta), triunfo. Seu uso no texto foi para significar a primeira vitória. 13 251 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) mim, o projeto de pesquisa era dentro da escola e pude contar com uma rede de apoio, fortalecida, no cuidado com as crianças. Então, não senti dificuldade para concluí-lo. O processo de doutoramento, por outro lado, tem sido desafiador. Não me sinto mais tão acolhida, institucionalmente, para realizar a pós-graduação. Com dois filhos, em idade de alfabetização, solicitei afastamento e, com muita dificuldade, concederam-me, com restrição: inicialmente, em regime parcial, por nove meses; depois, em regime integral, porém por apenas seis meses. Considero a jornada da mãe, técnica e pesquisadora, incompatível com a produção científica. Este é o principal motivo da concessão ser tão importante para mim. Na jornada diurna, são oito horas de trabalho, em frente a um computador, que se somam às demandas da maternidade e da rotina doméstica, no período noturno. Acredito que um pesquisador pai poderia até ter condições de chegar em casa e produzir, principalmente quando não compartilha da rotina doméstica, mas para uma mãe técnica, esta condição poderia ser considerada insalubre. No dia 20 de março, depois de muita expectativa da minha parte, teve início meu novo afastamento para dedicação, exclusiva, à pesquisa. Doce ilusão! Foi, justamente, na semana em que teve início o isolamento social e o fechamento das escolas — um verdadeiro choque de realidade diante do planejamento que tínhamos construído, eu e minha orientadora. Nas primeiras semanas, vivemos apenas o processo de adaptação, diante das incertezas, pois ninguém fazia ideia de quanto tempo duraria as medidas de enfrentamento da Covid-19. Neste cenário, foi perceptível a insegurança das professoras de meus filhos e de outras mães que conheço. Como pedagoga, senti a educação desmoronar de vez. Minha vontade era abandonar os grupos da escola e das universidades, e desaparecer. Aos poucos, procuramos nos ajudar: as professoras passavam atividades, por meio de uma plataforma digital, e ainda me recordo do desespero de mães e avós, envolvidas nesta tarefa, ao manusear os documentos digitais. Mal nos acostumamos com a rotina, iniciaram as aulas remotas. Agora tenho dois filhos sentados em frente ao computador, todas as manhãs, e com o compromisso de realizar tarefas, online, no período da tarde. Com apenas um computador em casa, obriguei-me a conseguir um segundo, com meu pai. Embora atenda à demanda das crianças, não atende a minha, nem a do meu companheiro que se encontra em trabalho remoto. Estas foram algumas dificuldades da classe média, fico imaginando como o ensino EaD está ocorrendo, de fato, na periferia. Para minimizar o impacto na minha produção, organizei uma rotina. Durante a manhã, procuro prestar auxílio às crianças nas aulas, até porque elas nos solicitam a todo momento, e realizo as tarefas domésticas. Em casos raríssimos, consigo ler um pouco. À tarde, depois das tarefas escolares dos filhos, finalmente, vou para o computador. Estou constantemente de olho na agenda, tentando me planejar para otimizar o tempo. Há dias que consigo completar o planejado, noutros nem tanto. Embora meu esposo compartilhe das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças, percebi que o que mais me impactou, nesta pandemia, foi a falta da rede de apoio, formada pelas professoras da escola, pela minha mãe e pela funcionária responsável pela limpeza da minha casa, três vezes na 252 Maternidades Plurais semana. À medida que escrevo, sinto o peso que carregamos a mais, pois a rede de apoio que me referi é formada por outras mulheres. Sou ciente que não existe apenas um tipo de maternidade. Existem várias e múltiplas variáveis. Quando reflito sobre o equilíbrio entre carreira e maternidade, sinto-me sobrecarregada e, muitas vezes, culpada. Tiveram dias que falei um pouco mais duro com meus filhos e senti-me mal, perdendo a conexão com eles. Confesso que, neste momento, queria ter apenas a casa para organizar, trabalho remoto para administrar, crianças para cuidar, mas não um doutorado a cumprir. Além disso, necessito aproveitar, ao máximo, esse período porque não sei se conseguirei nova prorrogação para este afastamento. Talvez alguns possam pensar que o período de isolamento nos dá a oportunidade de estudar, pesquisar, publicar mais, e quem sabe isso, realmente, possa ser possível aos pesquisadores homens. Mas no meu caso, e no caso de muitas mães pesquisadoras, esta possibilidade é impraticável. Na presença dos meus filhos, em casa, aproveito para tentar ensinar-lhes a importância de perceberem as mulheres, nas suas diferentes jornadas, para que valorizem nossos esforços, e sejam responsáveis, por exemplo pelo trabalho doméstico. Todos, aqui em casa, estão participando da rotina, com suas obrigações diárias. Afinal, o equilíbrio estudo-carreira-maternidade seria facilitado, penso eu, se houvesse divisão igualitária do trabalho doméstico entre homens e mulheres. Com relação aos prazos, não me cobrarei como antes. Farei no meu tempo, como forma de demonstrar que a maternidade precisa ser respeitada — nas políticas das universidades, nos programas de pós-graduação, nos editais e em todos os lugares possíveis. Queremos produzir, sim. Temos muito a contribuir, científica e socialmente, e não podemos, simplesmente, nos adequar aos prazos criados por uma sociedade que não considera e respeita mães na ciência. Nas areias movediças – o retorno O momento nos dá a impressão de que o trabalho invadiu nossos lares e usurpou a maternidade, gerando dilemas que se mantiveram, velados, no privado. Em grupos de mães, no WhatsApp da escola, percebemos o quão desesperador são as incertezas geradas pela pandemia, principalmente quando se trata de mães solo, que não dispõem de uma rede de apoio para contar. Estamos há mais de cem dias, em isolamento social, e não sabemos quando nem como será o retorno às atividades normais. Como “areia movediça”, o futuro é instável e a ansiedade, frente ao regresso, faz com que nos tornemos reféns de grades imaginárias: “Será que conseguirei concluir o curso de mestrado (ou doutorado), agora que minha rede de apoio está limitada?”, “Se devolver este recurso, não serei mais contemplada, futuramente, em editais de fomento.”, “Será que vou perder meu emprego?”, “Como darei conta de tudo, se a educação das crianças permanecer a distância?”. Estes são alguns questionamentos que nós e, muito provavelmente, outras mães pesquisadoras já levantaram, durante a pandemia. Acreditamos que o período pós-confinamento nos levará a construir nova narrativa, feminina, sobre o mundo, independentemente do nível de precarização e melancolia vividos — seja pela mãe, 253 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pesquisadora, que precisa sair para trabalhar ou por aquela que tem o privilégio de realizar o trabalho remoto. Todas, de alguma forma, foram atingidas pelo desamparo das instituições de pesquisa que não as protege porque sua estrutura, colonizada e patriarcal, tem gênero, cabendo às mulheres, e não a elas, o exercício do cuidado. Logo, a saída do confinamento nos trará alguns imperativos epistemológicos: teremos de falar de sobrevivência, proteção do Estado, saúde e interdependência, de maneira que possamos alcançar mecanismos comuns de amparo social. 254 Maternidades Plurais 39 Refletindo sobre maternidade em tempos de pandemia Claudia Regina Nichnig1 Falar e escrever sobre si é algo importante para as mulheres e um exercício terapêutico. Se a fala, nos ensinaram os/as psicanalistas é algo curativo a escrita também foi utilizada com esse mesmo fim, já dizia Virgina Woolf2 quando buscou um quarto, um teto todo seu para escrever e falar de si. Ao se tornar mãe, qual e onde estaria esse espaço de solitude para ter acesso a escrita? Quando perdemos o direito a estarmos só, até mesmo para tomarmos banho e irmos ao banheiro, qual e quando serias esses espaços/momentos de solitude permitido as mães? A minha trajetória de maternagem iniciou antes da chegada de Maya em minha vida. Fui muito próxima das minhas afilhadas e sobrinhos e ainda fui responsável pela curadoria do meu pai, após o falecimento de minha mãe. Com seu falecimento, diante da característica de nossa relação de maternagem, não concebia mais a possibilidade de ser mãe sem a presença de minha própria mãe. Sua partida foi muito dolorida e seu processo de adoecimento foi vivido em minha própria pele, quando passei a sentir os sintomas de sua falta de ar em detrimento do agravamento do tratamento do câncer dela. Por isso que o desejo de ser mãe foi interrompido dentro de mim após a sua partida. Permaneci com a responsabilidade do cuidado do meu pai, que fiz com muito zelo e dedicação até sua partida, e mesmo sendo a filha mais nova de quatro irmãos, fui eu quem (a única filha mulher) ocupei esse papel de cuidora. Por outro lado, tínhamos um problema de saúde que, a princípio, nos impedia o acesso a gestação de modo natural. Por esse motivo, nosso sonho (sim era um desejo comum) de sermos pais, ficou em suspenso e continuamos a viver a nossa vida, ficando em suspenso esse projeto. Mas foi durante a oportunidade de realizar um pós-doutorado no exterior, que incrivelmente gestamos a Maya sem necessidade de qualquer intervenção médica. E como soubemos de sua chegada em um país em que o aborto é permitido, o médico nos perguntou se o feto ali presente (mas que já tinha o coração que soava como uma locomotiva) era desejado ou não por nós. Sim, era um grande desejo nosso e por isso voltei ao país com um feto no ventre. Mas essa introdução foi escrita para deixar claro que mesmo sendo esse um desejo comum meu e de meu marido, esse fato não me impede de refletir como a maternagem afetou (e afeta) a minha 1 Mãe da Maya, sou historiadora e advogada. Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (DICH-UFSC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7664408692666022 2 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. 255 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) vida, impõe desafios e uma forma específica de comportamento e cuidado com a minha filha, marcado por um retorno, após a gravidez e gestação, para esse lugar de quem cuida. Somos, enquanto mães, sempre supervisionadas e percebidas no não lugar, no lugar da falta, pois sempre há algo que não fazemos tão bem, pois não somos suficientemente boas para cuidar das roupas da criança, da comida, ou mesmo não sabemos brincar ou auxiliar no aprendizado de forma satisfatória. Sempre estamos na falta e acho que sempre estaremos. Mas gostaria de compartilhar como foi a minha experiência enquanto mãe e trabalhadora ao migrar para outro Estado e trabalhar como professora visitante em uma universidade federal do Centro-Oeste do país. Termos sido pais e, em muitos momentos, estarmos somente eu e Maya distanciados do seu pai, de nossas famílias de origem e das redes de sociabilidade foi um desafio e tanto. A oportunidade de trabalhar em uma cidade da região de fronteira foi um divisor de água em nossas vidas e na experiência de ser mãe, professora e pesquisadora em um território muito diverso e distante do que conhecíamos até então. Viver a experiência de ser uma professora visitante, impõe algumas questões: primeiro que você está ema situação provisória, ocupando um lugar que não é seu de forma definitiva, mas o que não significa que não desenvolveremos relações forte e afetivas com as pessoas. No meu caso, as amizades e relações afetivas foram cruciais para a minha manutenção nesse espaço. Mas como uma historiadora feminista, levo em conta a minha própria subjetividade nesta experiência e por vezes me senti no programa de pós-graduação em que atuei uma outsider within, como nos ensina a feminista negra estadunidense Patricia Hill Collins, uma “forasteira de dentro”3 . Estava dentro e não, ao mesmo tempo e, portanto, vivia nesse entrelugar. Era uma professora que foi escolhida por seu importante currículo, mas não preenchia os requisitos para algumas atividades. Aliada a essa experiência, estava com a minha filha em uma cidade muito diferente e por isso foi necessário criar redes para me auxiliar e poder trabalhar e realizar várias atividades, em diferentes horários. Primeiro a oportunidade de conseguir uma vaga na creche da própria universidade, em uma parceria com a prefeitura local me facilitou muito, pois a creche dentro do campus universitário auxiliou a minha estadia na cidade e foi extremamente acolhedora para nós duas, além de aproximar a minha filha da diversidade étnica do território de fronteira. Quantas experiências e ganhos nós obtivemos nesse espaço e somos eternamente gratas pelo acolhimento e o crescimento que foi permitido a minha filha, além de permitir que eu trabalhasse com segurança. Mas em 2020, próximo ao fim do meu contrato de trabalho nesse território de fronteira, fomos interpelados por uma pandemia que obrigou o isolamento social devido ao alto grau de contágio do vírus. Mesmo que outras doenças, como a dengue, assolem a região, essa doença causou e causa medo às pessoas, principalmente um sentimento de impotência diante do desconhecimento do tratamento e da inexistência de uma vacina. Mas se a fronteira já está marcada por uma visível ausência do Estado, esta ausência se faz mais presente devido a grande população indígena urbana, em uma das maiores cidades do Estado brasileiro com a segunda maior população indígena. Para mim a presença e ter conhecido fortes e incríveis lideranças femininas indígenas foi um ganho imenso, transformando meu olhar como mãe e pesquisadora, mas percebemos na pele como os/as indígenas são negligenciados, discriminados e pouco 3 COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. 256 Maternidades Plurais valorizados pela maioria da população daquela cidade, principalmente fora dos muros da universidade. Ao invés de termos valorizada a sua cultura e grande contribuição cultural, histórica e social, o preconceito está presente. Também ao ter a oportunidade de discutir sobre materindade com as mulheres indígenas, podemos escutar sobre os inúmeros casos de violências experienciadas, bem como a naturalização das violências obstétricas sofridas por essas parturientes. Mas a experiência da maternagem em meio a pandemia neste território de fronteira foi uma experiência de medo e insegurança, em relação a minha propria saúde e de minha filha. Estar sozinha com uma criança, agora com quase cinco anos, em uma cidade com um atendimento médico público que não contempla a necessidade da população local, e ainda abrange uma quantidade grande de pequenas cidades que não possuem hospitais e centros de atendimento próprios, causa uma sensação ainda maior de insegurança. Experienciamos a ida a unidade de pronto-atendimento público local diante da minha suspeita e da minha filha de termos contraído a doença da dengue e não tivemos uma boa experiência, pois percebemos que naquele espaço, precisar do atendimento público de saúde é quase como experienciar, dentro da UPA e dos hospitais públicos, uma experiência de guerra. É claro que as amizades e os afetos construídos naquele espaço, principalmente na vivência junto a universidade foram extremamente valorosas, e foram de suma importância para a minha estadia na cidade, e por isso agradeço as amigas Marise, Marisa, Cátia, Natalia, Selma, Adriana e ao amigo Fabiano, e também ao carinho das alunas que se tornaram amigas Kleireanny, Elenísia, Camile, Kelli, Vanilce entre outras, que também estiveram próximas e foram extremamente preocupadas e cuidadosas comigo. A experiência da maternidade me mostrou inúmeros desafios e mesmo diante do amor e da vontade ser mãe, esse fato não me impediu de perceber as violências, as decisões que temos que tomar mesmo que contrariavam o meu próprio desejo, mas que por vezes somos levadas a tomar quando temos uma criança sob nossa responsabilidade. Maya, cinco anos, é uma criança aventureira e curtiu comigo as experiências de viver no centro-oeste, mas optar por voltar para a nossa cidade de origem após o fim do meu contrato foi quase uma imposição, diante do medo de vivermos sozinhas o isolamento em uma cidade distante. Estarmos novamente em nossa cidade de origem e viver o isolamento em um momento de pandemia são marcados por múltiplos sentimentos. Compartilhar com meu marido os cuidados, e no meu caso realmente há um exercício da paternidade de forma efetiva, nos permitiu estarmos mais seguras em nossa casa e cidade. Mas por outro lado, os cuidados com a casa, com a criança e com a limpeza foram extremamente aumentados para mim e para outras mulheres, o que significa deixar de lado ou ter afetada a produção científica e acadêmica. Mesmo sabendo que a grande maioria das mulheres não compartilham com os pais ou com outras pessoas os cuidados com as crianças, sendo esta uma atividade ainda mais realizada de maneira solo (ou sem auxílio) por mulheres negras e de classes populares, sendo que muitas delas não tiveram o direito ao isolamento social pois permanecem realizando atividades foram e dentro de casa. Muitas dessas mulheres foram até obrigadas a levarem seus filhos para o trabalho, colocando-os em risco. Tenho ciência de meus privilégios como professora universitária e branca em uma sociedade extremamente desigual, principalmente para as mulheres. Muitas mães solos e afastadas de suas famílias de origem estão totalmente isoladas e sozinhas neste 257 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) cuidado, além de continuar com o trabalho fora para a própria subsistência e de sua família. Os fardos já tão pesados para as mulheres foram extremamente aumentados nesse período de isolamento social e a necessidade de falar sobre o não compartilhamento dos cuidados na família, e principalmente com os homens é uma necessidade. Quando a ONU estipulou como um dos objetivos do desenvolvimento sustentável a serem conquistados a “igualdade de gênero” e impõe em seu item 5.4 a necessidade de “Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social”, impondo ainda que existe a necessidade de “promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais”4 fica claro que o não compartilhamento é uma realidade de mães de muitos países e que culturalmente o trabalho do cuidado é imposto as mulheres, como algo natural. Mas é preciso debater mais como esse trabalho que por nós é feito quase que “naturalmente” e que não pode ser questionado já que é feito “por amor” precisa ser compartilhado entre todos os membros da família e principalmente com os pais, pois há toda uma construção social dessa imposição exclusiva as mulheres. As feministas brasileiras brancas foram questionadas que resolveram essa questão terceirizando o cuidado de seus filhos para outras mulheres, principalmente com suas empregadas negras, o que Lélia Gonzalez nos explica a importância da ama de leite e da empregada doméstica negra na vida na formação das subjetividades de pessoas e famílias brancas brasileira5. Mas é importante ressaltar que esse não compartilhamento do cuidado faz com que as mulheres não tenham as mesmas oportunidades de trabalho, acesso e permanência na escola/universidade quando se tornam mães. Também precisamos falar sobre o direito ao lazer, pois as mães têm direito ao lazer da mesma forma que os pais de filhos pequenos e precisamos falar em compartilhamento do cuidado neste momento mais delicado da vida das crianças. Sim, é preciso falar que as mães podem viver uma vida sem a imposição constante do trabalho e cuidado, pois é preciso que exista algum tipo de prazer e lazer longe dos filhos, sendo este também um direito das mães. Mas discutir sobre essa imposição social que as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado é uma esfera que mesmo para as mães feministas é repleta de desafios, marcada por barreiras pessoas e sociais a serem transpostas, que precisam ser discutidos para que sejam transformados e desnaturalizados. Ainda temos um grande caminho a ser percorrido para uma efetiva e verdadeira mudança, mas falar de maternagem de forma clara e direta, não apenas supervalorizando a sua dimensão afetiva e o lado “cor de rosa” e transformador da maternidade para a vida das mulheres é preciso. Nós, mulheres, aprendemos desde muito cedo como o lar doce lar para meninas e mulheres não rara as vezes em vez de ser o lugar do afeto é o lugar da violência, que muitas vezes leva ao adoecimento e a morte. Debater essa temática é o início desse caminho, que precisa ser desmistificado, pois mesmo que seja um caminho de muito afeto para muitas relações pessoais e familiares, para outras mães é marcado por escolhas difíceis e muitas vezes dolorosas. Como podemos criar relações mais amorosas e respeitosas e ainda espaços de liberdade para que possamos ser nós mesmas 4 Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/ods5/. Acesso: 27 jul 2020. 5 Ver mais em: GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. 258 Maternidades Plurais e ainda sermos mães? É uma pergunta para respondermos juntas, na coletividade, a partir das diferentes maneiras de exercer a maternidade. 259 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 40 Retrato de um dia como outro qualquer durante a quarentena: um relato de uma mulher, mãe, professora universitária Cláudia Roberta Bocca Santos1 São quatro horas da manhã. Está um frio danado. Acordo para continuar aquele capítulo de livro, antes que minha filha acorde e eu mal consiga sentar à frente do computador sem sentir que estou abandonando-a vendo televisão. Enquanto isso, tomo café, quem sabe me ajude a acordar. Mais um dia acordando de madrugada, mais um dia de quarentena, mais um dia que sei exatamente como será: me sinto equilibrando pratos o tempo todo, diariamente deixando algum prato cair (ou alguns) e terminando o dia me culpando por não ter brincado o suficiente, por não ter dado conta do trabalho que precisava ter feito ou pela casa estar imunda e os pés da minha filha — que ama andar descalça — estarem cheios de pelo de cachorro. Opa, espera, ela acordou. Saudade do tempo que conseguia fazer algo sem interrupções. Consegui fazê-la voltar a dormir. São 6h da manhã e, pelos meus cálculos, ela ainda dorme mais uma hora. Temo até falar isso em voz alta, porque sempre que o faço, dá errado. Tento retomar o raciocínio do texto. Nova interrupção: esqueci de colocar a comida do cachorro, que está arrastando o pote de ração pela varanda, fazendo um barulho enorme que pode acabar acordando minha filha e meu marido. Resolvido o problema, sento novamente em frente ao computador. Sinto-me correndo contra o relógio. A imagem que me vem à cabeça é de estar em uma maratona. Minha filha acorda de vez, obviamente antes do tempo previsto. Dois parágrafos. Foi tudo que consegui escrever. Dois parágrafos. Primeira derrota do dia. Sim, porque é assim que me sinto. Todos falam para não nos cobrarmos tanto durante a quarentena, mas o prazo do livro não vai ser adiado porque estou em home office com filha pequena. As mensagens no celular se acumulam. Os e-mails idem. Eu que lute, não é assim que dizem? 1 Docente da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Nutricionista pela UERJ, Especialista em Saúde da Família pela ENSP/FIOCRUZ, Mestre em Ciências na área de Saúde Pública subárea de Políticas Públicas pela ENSP/FIOCRUZ, Doutora em Alimentação, Nutrição e Saúde pela UERJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6023310450555344 260 Maternidades Plurais Às 9h tenho a primeira reunião do dia. Esqueci de dizer. Sou professora universitária de uma instituição pública de ensino. Minha rotina, mesmo antes da quarentena, consistia em um “sem número” de reuniões de comissões e colegiados, além de ministrar aulas na graduação e pós-graduação. Como esquecer dos projetos de ensino, pesquisa e extensão? Já contei que também estou na chefia de departamento? Que sou integrante do Núcleo Docente Estruturante? Que sou uma das coordenadoras de um núcleo multidimensional? Que oriento alunos de graduação e pós-graduação? Não falei nem metade das atividades que preciso exercer como docente de uma universidade pública, mas não posso me esquecer de produzir. Preciso publicar artigos, capítulos de livros... E não serve em qualquer revista. Afinal, preciso ter uma pontuação adequada para me manter no programa de mestrado. Seria muita humilhação ser expulsa do programa por baixa produtividade, certo? Apesar disso, tenho clareza do quanto produzo para a universidade e para a sociedade, apesar das métricas atuais não darem conta de avaliar a relevância do meu trabalho. Outra coisa: o MEC está monitorando as atividades das universidades, não esqueça. Você precisa produzir mais e mais. E isso precisa aparecer, ser registrado. Afinal, as universidades públicas do país, ou boa parte delas, estão com as atividades paralisadas, né? Estão? E não fui avisada? Porque tudo aqui parece igual ou muito mais intenso. Só não estamos ministrando aulas remotamente. Aliás, mais e mais reuniões para discutir como dar aulas remotamente, considerando a exclusão digital que parte dos nossos estudantes enfrentam, sua saúde mental (e a nossa) e as implicações que a educação por meio remoto pode gerar na qualidade do ensino. Enquanto minha filha toma o café da manhã, limpo a varanda. Ela pede para ver desenho. Tento enrolar para não ligar a televisão agora. Vamos brincar com a mamãe? Ligo o desenho quando eu estiver em reunião... Primeira birra do dia. “Nããão! Eu quero agoraaaaaaa!” Falei que ainda não comi nada? Passado o momento de tensão, consigo convencê-la a brincar um pouco. Opa, mal começamos e já está na hora da minha reunião. Ligo a televisão e me sinto culpada de abandoná-la vendo um desenho qualquer, mas preciso trabalhar. Já são 11h30h, nada da reunião terminar, preciso fazer almoço. Vou para a cozinha com o celular dentro do vestido e tento acompanhar a reunião enquanto frito um aipim. Não sei o que eu fiz, mas tem uma labareda indo até o teto. Putz, coloquei fogo na casa! Fico me tremendo toda, respiro por uns segundos e tento prosseguir nas tarefas. Você deve estar achando que essa história de fogo no teto da cozinha é mentira. Não é. Isso aconteceu há um mês e meu teto continua preto da fuligem, apesar das promessas do meu marido de que vai pintar. Talvez ano que vem... Já estou até me acostumando, parece uma obra de arte, já faz parte da decoração. Termino o almoço. Graças a Deus a reunião também terminou. Preciso almoçar e dar banho na menina, antes de começar a próxima reunião. Olho a mesa da sala, que deveria ser a mesa de jantar, mas foi invadida pelo computador, papéis e livros que estão permanentemente ali durante o home office. Ai que preguiça de abrir espaço para comermos juntos à mesa! Vamos ficar na mesinha de plástico da minha filha mesmo. Sento no chão e coloco os pratos na mesa baixinha, com cuidado para o cachorro não avançar na comida. Briga para comer. Não quero isso, quero outra coisa. Empurra o prato. Sinto a raiva percorrer todos os centímetros do meu corpo, mas respiro profundamente e simplesmente respondo: “É o que tem. Se não comer, vai passar fome”. Sigo comendo. Venço mais essa 261 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) batalha, afinal, resolve comer. Graças a Deus. Enquanto almoço, dou comida na boca da minha filha e vejo as mensagens de trabalho do WhatsApp. Ah, sei que ela tem quatro anos, que sabe comer sozinha... Mas meu dia está todo calculado e não posso me dar ao luxo de levar uma hora para almoçar. Terminamos o almoço e meu marido diz: pode deixar que eu lavo a louça. Uau!!! Você deve estar se perguntando onde ele estava esse tempo todo, né!? Afinal, já estamos na terceira página e mal falei dele. Ele acordou, pegou sua xícara de café e sentou no computador para trabalhar. E lá permaneceu, enquanto eu fiz café da manhã, lavei a varanda, fiz comida, participei da reunião e tudo mais... Não quero ser injusta: ele recebe ligações o dia inteiro e seu trabalho tem muito menos flexibilidade de horário que o meu. Quando termina o trabalho, ele lava a louça, coloca roupa na máquina, tira lixo, varre a casa. Alguém diria: um maridão! Não posso reclamar!!! É? Compartilho no grupo de mães minha raiva de ter que conciliar tudo, enquanto ele fica sentado em frente ao computador o dia todo. Minha raiva de precisar fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo, enquanto ele está em uma ligação pelo celular e pede silêncio à nossa filha, que está falando alto. A empresa sabe que ele está em home office com uma criança? Que, em algum momento, a reunião vai ser interrompida com “Papai, terminei! Vem limpar meu bumbum!” ou com choros, porque quer chocolate? Quase me esqueci de falar a repercussão do meu desabafo no grupo das mães. “Os homens são assim mesmo”. “Os homens não conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo”. “As mulheres que são multitarefas”. Confesso que era para eu me sentir melhor, mas “ouvir” isso me faz ficar com mais raiva ainda. Não delas, claro, mas de não ter nascido homem, para poder ter uma justificativa quase genética altamente difundida e aceita socialmente como desculpa para tudo. A sensação que tenho é que preciso ser grata por ser casada com um cara que “ajuda” em casa. De fato, talvez tenhamos alguns espécimes dessa geração de homens bem mais proativos que meu pai um dia fora, por exemplo. Mas, isso é suficiente? Devo me dar por satisfeita? Acredito que não. Desculpem o devaneio, volto à rotina. Minha filha não quer tomar banho. Minha brilhante ideia: vamos tomar banho de piscina no chuveiro! Uhuu!!! Levo os brinquedos e isso me garante uns minutos de paz. Será? Fico sentada no vaso sanitário enquanto trabalho no computador, em mais uma reunião, toda hora sendo interrompida por “Mamãe, olha que legal o que eu sei fazer”. “Mamãe, coloca uma musiquinha?” “Mamãe, essa não, quero a da cinderela em inglês. A música do baile”. Deixo escapulir um palavrão em voz alta e minha filha (aquela de quatro anos) diz: “Mamãe, não pode falar palavrão”. Não sei se começo a rir ou chorar. Mas, olho para aquela carinha de sapeca e me permito sorrir. Às vezes a gente até esquece de fazer isso, né!? Hora de sair do banho. Não quer a roupa que peguei, aleatoriamente, na gaveta. Quer a fantasia da Cinderela. Pego a fantasia. “Essa não, mamãe, quero o vestido de baile”. Vencida a batalha do banho — minha reunião ainda não acabou —, corro atrás do cachorro que pegou o brinquedo dela, e ela, obviamente, está aos prantos. Quando consigo alcançá-lo, meu fone de ouvido cai e ele começa a comê-lo, enquanto minha filha continua chorando por causa do brinquedo que já está nas mãos dela. A essa altura, já estou pensando “que se dane que o cérebro dela vai fundir de tanto ver televisão”. Só preciso respirar. “Quer ver um filme, filha?”. Ligo novamente a televisão, ela assiste ao filme 262 Maternidades Plurais enquanto eu sento no computador para dar continuidade ao capítulo do livro. Onde eu estava mesmo? Tenho que reler tudo para resgatar o raciocínio. Sou interrompida por “Mamãe, quero suco de uva!”. Mas que raios, o pai tá ali também, por que não pede a ele??? O filme só dura uma hora e meia. Calculo mentalmente o que consigo fazer nesse tempo e lembro que tenho que pedir hortifruti, que o remédio de manipulação dela vai acabar e que preciso desmarcar o médico. Embora eu precise focar nas tarefas, não consigo deixar de espiá-la imitando os personagens no filme ou ainda as cenas de amor entre ela e o cachorro... Ah, que bálsamo! Lá pelas 19h, meu marido para de trabalhar e esquenta o jantar dela. Enquanto ela come, ele lava a louça e eu tento responder aos e-mails que se acumularam ao longo do dia. Conto os minutos para o dia finalmente acabar e recorro a uma garrafa de vinho. É, você leu direito. Não uma taça, mas uma garrafa. Ainda ouço do meu marido “Nossa, está bebendo muito, você precisa se controlar”. Respondo, com fogo nos olhos, “por mim já teria começado a beber no café da manhã”. Não, não tenho problemas com bebida, pelo menos não ainda. Mas, não posso negar que tem funcionado como uma anestesia em alguns momentos. Quando ele termina de arrumar a cozinha, vou tomar um banho. Falei que ainda estava de pijama? Tiro a roupa e me olho no espelho. Quem é essa aí? Não me reconheço. Nunca me achei bonita, mas depois da maternidade, me sinto destruída. “Você precisa cuidar de você”, é o que dizem. Quando? Como? Não tenho essas respostas. Entro no chuveiro e deixo a água quente percorrer meu corpo dolorido. Ouço o marido gritando com o cachorro que pulou na nossa filha e a arranhou. Choros. Saio do banho e enquanto meu marido prepara minha filha para dormir, sento no computador. Talvez agora consiga avançar no capítulo do livro. Minha filha grita que quer a mamãe. Meu marido tenta, em vão, dissuadi-la. A culpa me pega e vou atendê-la. Demora séculos para dormir e, quando finalmente acontece, tento voltar ao computador, mas o cansaço é grande e não consigo avançar muito. Decido dormir e acordar cedo no dia seguinte. Deito na cama, vejo dez minutos do filme que estou tentando ver há uma semana e, embora a cabeça esteja cheia, tento dormir. Olho a pilha de livros que compro e que estão na fila dos livros que um dia quem sabe serão lidos. Bom, fica para amanhã. Fecho os olhos. Duas horas depois, acordo com uma lambida de cachorro na cara. Ralho com ele e volto a dormir. Mais duas horas e minha filha acorda chorando porque teve pesadelo. Deito na cama dela, que leva mais de uma hora para voltar a dormir. Perco o sono. Oba, vou aproveitar o silêncio para trabalhar no capítulo de livro! Mal começo e o dia já raiou: tudo vai recomeçar, mais uma vez... Essas linhas saíram abruptamente, sem muito planejamento do que escreveria, quase como um desabafo da rotina diária. Uma rotina que sempre foi minha, mas que certamente está mais intensa na quarentena. Enquanto escrevo, não consigo não pensar no quanto, apesar de tudo, sou privilegiada. Privilegiada por estar em casa, em segurança, com saúde, com comida, sem redução de salário. Não consigo não pensar em todas as pessoas que vão sofrer mais do que já sofrem. Não consigo não me sentir impotente e pequena diante de tudo isso. Apesar de todos os meus esforços, pessoais e profissionais, para tentar mitigar os efeitos dessa crise, pessoas estão sofrendo mais que nunca. E eu estou 263 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) reclamando do cansaço, do home office e da divisão sexual do trabalho doméstico totalmente desigual. Sinto-me um lixo. Mais culpa. Tento não desvalorizar meus sentimentos, buscando seguir a recomendação de uma amiga querida, em vão. Não consigo não me sentir “reclamando de barriga cheia”. Recebo um texto muito bacana sobre o quanto é bom estar na quarentena com crianças, do quanto elas nos convidam a ver o mundo com outros olhos. Embora concorde, afinal, volta e meia meu sofá se transforma no mar da pequena sereia, não consigo não deixar de pensar que, se não tivesse filha, a quarentena estaria sendo muito diferente. Muito menos exaustiva. Mais culpa por pensar assim. Preciso ir. Escrever esse texto já me tomou tempo demais. Ele não conta para produção acadêmica, infelizmente. Mas deveria. Afinal, iniciativas como essa podem mudar o mundo para melhor. Dar espaço para que as pessoas possam se expressar, sem medos de como serão julgadas, podem mudar o mundo. Podem trazer para o debate temáticas que são, propositalmente ou não, invisibilizadas. Ainda quero manter esse sonho — o de mudar o mundo —, por mais que a realidade me convide a todo instante a perceber o quanto é utópico. Enquanto fecho este texto, minha filha chega e me dá aquele abraço quentinho em uma manhã de inverno carioca. Fala baixinho no meu ouvido: “te amo, mamãe!”. Isso me faz ter energia para começar mais um dia. Do que estávamos falando mesmo? 264 Maternidades Plurais 41 Reflexão de uma mãe-pesquisadora em tempos de Covid-19 Cleide Vilela1 Questões sensíveis se tornam mais aparentes numa situação atípica. Ser professora e estudante de um programa de pós-graduação de instituições de ensino públicas me coloca numa situação privilegiada de renda e escolaridade comparada a maior parte da população brasileira. No entanto, ser mãe e pesquisadora são funções pouco compatíveis no cotidiano, o que resulta em desigualdades de gênero. A função de mãe exige ações práticas de demandas sempre urgentes — que não exclui a necessidade da reflexão dessas ações — e a segunda tem natureza reflexiva que nos obriga a ter um tempo solitário de concentração para leitura e escrita. Mais precisamente, ser mãe — e/ou cuidadora não-remunerada — coloca a mulher numa situação desigual em qualquer função no mercado de trabalho remunerado. Cuidar exige tempo, observação e uma série de recursos humanos e materiais e, também, conhecimento prático para manter um ser vivo: oferecer água, alimentar, educar, respeitar, socorrer. Há estudos na biologia que também afirmam a necessidade de amor e afeto para o desenvolvimento psíquico-motor de um ser humano2. Sua cuidadora principal (a mãe) é quem, na maior parte dos casos, oferece esse sentimento à criança. Sabemos também que uma criança representa a possibilidade de manutenção de nossa espécie e, portanto, é dever de toda a sociedade cuidar dessa manutenção. Porém, em sociedades permeadas por um ideário hegemônico patriarcal-capitalista, crianças podem significar meros “gastos” com saúde, educação, cultura, lazer, espaços comunitários de convivência e, também, com direitos trabalhistas conquistados por mulheres-mães. Especialmente às mães e cuidadoras é dado o papel social 1 Docente do IFB/Campus Recanto das Emas. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UnB. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0334101833128528 2 MATURANA, Humberto e Varela, Francisco J. 2001 [1984]. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. 265 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) — que podemos assumir ou não — de preencher as lacunas que pais3, estado e sociedade não asseguram às (também suas) crianças. Escolhi ser pesquisadora na área da sociologia da cultura porque encontro na escrita, no ato de ler ou na apreciação de uma obra de arte uma espécie de aprendizado sentimental sobre a vida, sobre mim e sobre minhas relações com outras pessoas e, especialmente na sociologia, o aprendizado para desnaturalizar nossos comportamentos e relações sociais, explicá-los e pensar argumentos que podem se desdobrar em mudança social. Isso me faz querer seguir essa carreira, ainda que com dificuldades. Tornei-me pesquisadora ao mesmo tempo que me tornei mãe: iniciei meu mestrado, em 2014, quando estava com trinta semanas de gravidez. A primeira pergunta que me fiz e que me fizeram era como iria conciliar duas demandas com pouca compatibilidade. Essa pergunta em si demonstra a desigualdade de gênero, ninguém pergunta a um homem se ele consegue conciliar paternidade e carreira acadêmica. Foi impossível não refletir sobre a maternidade e vida acadêmica e de que maneira as instituições educacionais e a sociedade poderiam oferecer políticas e ações que beneficiem mães e cuidadoras. São necessárias políticas e ações mínimas: licença e salário maternidade para bolsistas, auxílio-creche ou creches para filhas e filhos das pesquisadoras-mães, ampliação do uso do Restaurante Universitário para crianças de mães-pesquisadoras, fraldários, flexibilização de prazos, reorganização de estudos e prioridades, editais diferenciados, apoio psicológico, lugares voltados para crianças durante os eventos acadêmicos são algumas delas. Também percebi o quão pouco esse tema era tratado de maneira pública, uma das motivações para finalizar esse texto. Existem os olhares de julgamento da escolha pela maternidade, os de pesar e aqueles de quem quer ajudar, mas não tem ideia do que fazer. Há também poucas experiências de partilha por parte de minhas professoras, muitas delas escolheram não ter filhas e filhos ou escolheram tê-los mais tarde, após os estudos de pós-graduação. Nesse período, participei de um grupo de mães para demandas pontuais. De algum modo, pude conhecer outras mulheres que se tornaram amigas e interlocutoras, o que faz diferença quando escrevemos um texto ou nos é compartilhada outras leituras. Políticas e ações de apoio à maternidade ainda são pouco implementadas no cotidiano das universidades e instituições de educação. O isolamento social, durante a pandemia de Covid-19, mostra que a corresponsabilidade do desenvolvimento de uma criança entre família, estado e sociedade, previsto na Constituição, ainda é precária. Nesse momento, a maior parte das mães-pesquisadoras se dedicam ao cuidado integral de sua(s) criança(s) sem a possibilidade de dividi-lo com uma instituição educativa, uma cuidadora remunerada e/ou uma familiar. Em nenhum momento, houve qualquer preocupação administrativa estatal, seja por meio de comunicado especial direcionado às crianças ou de 3 No Brasil, mais de cinco milhões de pais não registraram seu nome nos documentos de suas crianças. Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, 5,5 milhões de crianças não tinham o nome do pai no registro de nascimento. In: Conselho Nacional de Justiça. 2015. Pai presente e certidões. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/b550153d316d6948b61dfbf7c07f13ea.pdf. Acesso: 15 mai 2020. 266 Maternidades Plurais políticas e ações efetivas direcionado às crianças e às suas cuidadoras como acompanhamento psicológico, oferta de sinal de internet público para realização de atividades educativas e estratégias para lidar com o luto na infância. Aliás, a ausência de estado que formule ações articuladas é um problema que agrava ainda mais a pandemia. Neste momento, estou escrevendo minha tese de doutorado, qualquer texto que escreva, alguns de modo mais exposto como esse, demonstra quem sou naquele momento, qual minha posição epistemológica e política e, portanto, faz parte do processo de escrita o tremor 4, uma espécie de cautela acadêmica. Essa cautela acadêmica mascara questões que qualquer pesquisadora ou pesquisador faz: quais caminhos seguir para comunicar os resultados de sua pesquisa, que lacunas ainda estão por serem respondidas no processo, quais justificativas de suas escolhas teórico-metodológicas, quem são nossas interlocutoras e como escrever um texto acadêmico que dialogue com a sociedade de maneira mais ampla. Essa cautela se tornou um medo nos últimos meses e paralisou minha escrita, a construção reflexiva de meu texto é constantemente autoquestionada e um dos motivos seria a utilidade de minha pesquisa num contexto em que pandemias podem se tornar o comum. Não acredito que o trabalho intelectual deva ser somente útil, mas a necessidade de utilidade também é uma construção social em mim. Acredito que o questionamento é permeado pelo antiintelectualismo que afeta nosso país de maneira ainda mais exposta nos últimos anos. Pergunto-me sobre a utilidade de meu trabalho intelectual num país em que a maior parte das pessoas não tem condições mínimas de sobrevivência. Por que me é dado um tempo para refletir sobre qualquer questão se as urgências diárias perseguem a todas? Quando a maternidade chegou, há seis anos, as urgências se tornaram materializadas nas necessidades e no cuidado diário de uma criança, por que se dedicar a um trabalho árduo de pesquisa se agora minha criança pede também outros tipos de demandas educacionais e emocionais que não existiam anteriormente a esse período de pandemia? Neste caso, o antiintelectualismo diminui a importância do meu trabalho que é intelectual — o que acarreta em questioná-lo constantemente. Se o questiono e não dou importância para ele, as funções do cuidado que foram construídas socialmente em mim se tornam mais importantes que os afazeres relacionados ao fazer profissional, ainda mais quando esse fazer exige tempo de solidão e concentração5. Tendo a varrer a casa ou fazer comida antes de iniciar meu texto e quando tenho meu 4 Débora Diniz difere temor e tremor durante a escrita. Para a autora, o temor é uma espécie de autocensura que impede a liberdade de pensar e de escrever e o tremor é um sinal de cautela acadêmica, pois as instituições têm seus ritos públicos de enunciação. In: Diniz, Debora. 2013. Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília: Letras Livres. 5 bell hooks argumenta que a vida acadêmica de mulheres negras é constantemente marcada pela dificuldade de finalizar um curso porque há um questionamento sobre a importância do trabalho intelectual. Quando reconhecido, muitas mulheres negras têm dificuldade de exercer a concentração, que é uma tarefa solitária, porque há demandas de cuidado com outros familiares e de trabalho doméstico que são realizadas anteriormente ao trabalho intelectual, o que causa cansaço e exaustão. Acredito que esse argumento pode também ser usado para mulheres-mães responsáveis pelo cuidado materno e afazeres domésticos. In: hooks, bell. 1995. Intelectuais negras. Estudos Feministas n 2. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/10/16465-50747-1-PB.pdf 267 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) momento de concentração, porque consigo dividir tarefas domésticas e familiares com o pai da criança, estou exausta. Acredito que outros saberes são tão importantes quanto o saber científico. Qualquer mãe — mesmo que não reconheça — sabe da importância do conhecimento de senso comum para cuidar de uma criança, conhecimento repassado por outras mulheres. Numa sociedade em que o saber científico é privilégio de poucos e que esses poucos reproduzem lógicas para que a educação não seja garantida a toda população, é necessário valorizar saberes de mestres e mestras cujo conhecimento foi realizado historicamente, mas nunca reconhecido. Não é disso que estou falando aqui. Todo saber pode ser questionado, o saber que passa pela universidade é passível de questionamento, no entanto, é necessário afirmar que o saber científico é avaliado por outras pessoas reconhecidas socialmente na área desse saber, ele necessita ser legitimado dentro das estruturas da universidade, portanto, é sim valoroso. Claro, essas estruturas podem cometer injustiças também. Depois de um mês em isolamento social, consegui manter uma rotina de quatro ou cinco horas de concentração diárias, muitas vezes interrompidas. Em alguns momentos, aumentei em duas ou três horas esse período de concentração ao acordar às quatro ou dormir às duas da manhã para realizar meu trabalho intelectual. No entanto, percebo que fico ainda mais cansada e com imunidade baixa, é necessário manter tranquilidade e uma vida saudável para conseguir dar conta dos cuidados com a criança. Tento manter seis ou sete horas de sono, na maioria dos dias, porque também vivemos o perigo de contrair o vírus corona. Mesmo não sendo meu caso, penso em quem cuidará da criança de uma mãe-solo com Covid-19 que necessita de cuidados hospitalares? Revi várias dicas de manuais de escrita para otimizar esse tempo e uma delas é manter uma rotina diária, nem que seja um parágrafo por dia. Por vezes, não consigo vencer essa meta. Ainda que divida os cuidados e os afazeres domésticos com o pai da criança, não há espaço num dia de 24h que consiga aliá-los ao trabalho intelectual e algum período de distração. Amigas me comentam que conseguiram ler muitos livros e assistir muitos filmes ou séries, não tive esse privilégio por aqui. Muitas vezes, parte do meu tempo de concentração foi dedicado a leituras sobre a Covid-19 — notícias de tragédias diárias reduzidas ao número de mortes, alguma pesquisa relacionada à obtenção de uma vacina e artigos ou livros que tentassem explicar pandemias, mudanças climáticas, novas doenças, antropoceno, fins do mundo e fins da espécie. A novidade talvez explique a necessidade de informação diária sobre o coronavírus. A segurança nos pede buscar outras informações, mais práticas, de procedimentos para conviver com o vírus como limpar e armazenar as compras realizadas. Além das informações sobre o novo fenômeno em si, chega-se a outras incertezas de natureza prático-políticas: será que terei prazo a mais para finalizar a pesquisa? Como a universidade vai lidar com esse período? Será que vai entender que estou em casa e divido meu tempo nos cuidados com minha criança e nos afazeres domésticos? Também, tenho a necessidade de outras informações que estão relacionadas com o desenvolvimento de minha criança, agora com seis anos: como alfabetizar, como ensinar algumas operações matemáticas, apesar de internamente não estar preocupada com o conteúdo do ano que é possível de ser recuperado, há um interesse de minha criança em aprender, como mediar essa necessidade de 268 Maternidades Plurais aprendizagem? Minhas preocupações individuais com a educação de minha filha são compartilhadas por diferentes mães e cuidadoras. Como mãe e professora, me sinto preocupada por saber que muitas famílias não possuem estrutura material (alimentação, computador e internet) e/ou nível educacional suficiente para auxiliar na educação de seus filhos e filhas. Também penso na dificuldade de famílias conseguir um espaço solitário para concentração nos estudos e as possíveis desistências que gerarão evasão escolar num período pós-pandemia. Como pensar em políticas e ações que diminuam essas consequências que podem tornar nosso país ainda mais desigual? Como apoiá-las com materiais e, também, emocionalmente? Por possuir tempo remunerado para me dedicar à reflexão, responder essas questões também se tornam uma urgência, ainda que não faça parte necessariamente da minha pesquisa. Outra questão que me aflige é o aumento no número de ocorrência de violência contra mulheres e crianças. Como oferecer espaços seguros, num período de isolamento social, para nós e nossas crianças? Essas perguntas, vejam vocês, apesar de poderem ser feitas por pesquisadoras, entrega a professora, profissão que também está envolvida com cuidados em nossos imaginários. Espero que essa tragédia, revigore nossas lutas cotidianas porque dividir a vida acadêmica com a maternidade nunca foi um caminho comum, muito menos fácil, as poucas ações de equidade de gênero foram conquistadas por outras mulheres-mães. Na medida do possível, gostaria de contribuir com esses espaços de compartilhamento para identificar nossas necessidades e como podemos incluir o pensamento de outras mulheres-mães nessas questões. 269 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 42 Não existe dieta para o peso que carregamos Daniele Prates Pereira1 Não. Não me refiro a peso em relação ao corpo. Há muito tempo aderi ao movimento Corpo Livre (@movimentocorpolivre), e independentemente de insatisfações momentâneas que logo passam, sou grata pelo corpo que tenho, pela saúde que gozo, pela experiência de ter gerado neste corpo duas pessoinhas incríveis. Me refiro a um peso invisível, naturalizado, cotidiano — o peso das multifunções que acumulamos. Escrevo este relato uma semana após participar de uma discussão literária organizada pelo grupo Leia Mulheres, liderado por uma docente da UTFPR de minha cidade. Trata-se do livro “Morra, Amor”, de Ariana Harwicz. A autora discorre nesta obra sobre seu caos interior, ao construir sua vida com o marido em uma cidadezinha do interior da França, sem familiares ou amigos, vivendo entre a mulher mãe, a mulher que deixou de ser com a maternidade, a mulher e seus desejos, a mulher e sua relação conjugal, a mulher e aquilo que esperam dela... A leitura por muitas vezes nos deixa perplexos, e outras vezes compreendemos completamente como se sente aquela protagonista. Muito peso. Toda esta paralisação da realidade decorrente do isolamento domiciliar na busca por conter o avanço da Covid-19 carregou os sujeitos para o mundo da casa. Atividades laborais foram deslocadas para o ambiente doméstico. Contudo, nem mesmo esta situação excepcional foi capaz de carregar os sujeitos para o mundo da mulher. Para este espaço que é só delas. Este lugar que pesa. Tentarei expor um pouco do meu peso, a fim de torná-lo mais leve. Tenho dois pedacinhos do céu que criam furacões em minha casa. A Olivia, que acaba de completar 6 anos, e o Raul, que fez seu primeiro aninho. Ou seja, o ano passado foi o ano em que meu pequeno nasceu, e estive em licença maternidade até o mês de outubro. Quando retornei à academia, para não prejudicar os acadêmicos, realizei atividades de pesquisa, extensão, bancas de monografia e outras atividades administrativas. Consegui conciliar estas atividades e os cuidados com o meu menino. Entrou recesso, férias e iniciou o ano de 2020. 1 Doutora em Sociedade, Cultura e Fronteiras, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e professora adjunta do curso de Direito da mesma IES. Membra do Grupo de Estudos em Direito, Democracia e Sociedade (GEDDS). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1701069879754260 270 Maternidades Plurais Dúvida cruel, onde matricular minha filha em seu primeiro ano de ensino fundamental. Busquei uma escola reconhecida, afinal, a alfabetização é um momento importantíssimo. O valor é alto, mas é um investimento. Para tanto, precisava que meu filho ficasse no centro de educação infantil municipal. Vai lá a mãe, lutar por uma vaga. Sem sucesso, apenas com um Mandado de Segurança consegui organizar esta parte da vida. No decorrer, meu esposo que tinha um restaurante mexicano na cidade precisou fechá-lo, por diversas razões. Até fevereiro, estava lidando com baixa empresarial e com os últimos detalhes para findar as obrigações e iniciar a busca por uma nova oportunidade laboral. Foi um início de ano bastante conturbado. Mas, tínhamos certeza de que logo ele conseguiria se recolocar no mercado. Passa carnaval, aniversário do bebê, inicia o ano letivo. Programação, reuniões, aulas. Filha começa na nova escola, adaptação. Filho inicia na creche, virose. Duas semanas de atividades acadêmicas, coronavírus, isolamento. Meu filho em casa, educação infantil municipal paralisada. Bebê com virose, durou praticamente um mês. Não melhorava. Tive que passar a dar leite sem lactose porque o intestino estava muito fraco. Minha filha nem conheceu os amiguinhos direito. Nem saiu direito do pré, duas semanas no primeiro ano e foi obrigada a ficar todas as tardes no computador, preenchendo sua apostila. O esposo não havia encontrado emprego quando tudo parou. Iniciou algumas atividades informais junto ao um amigo, para contribuir com as despesas. E eu? As aulas na universidade estavam paralisadas. Porém, as atividades de pesquisa, orientações e projetos permaneceram. Inclusive, fomos incentivados a realizar projetos remotos para mantermos o contato com os acadêmicos e para que eles pudessem manter seu ritmo de estudos. Por sermos uma instituição estadual, nossos conselhos decidiram não realizar aulas em sistema remoto emergencial, iremos repor a carga horária e entregar aos acadêmicos a integralidade dos conteúdos. Então, estou eu em casa, com uma criança de 6 anos precisando ficar em frente a uma tela fazendo atividades; com um pequeno de um aninho, com rotina de alimentação, sono, e com uma curiosidade maior que o universo, subindo pelas coisas; e, ainda, com atividades a serem realizadas decorrentes de minhas responsabilidades funcionais. Some-se a isso, o fato de que a casa precisa ser limpa de forma mais constante, as compras precisam ser devidamente higienizadas, e que, com a insegurança desta situação, dispensamos nossa ajudante para que ela também pudesse se resguardar e se proteger. Desde que a quarentena — que já virou setentena — iniciou, não fiz mais nada que me desse prazer ou descanso. Nem mesmo consegui assistir algo interessante. A Netflix varia entre Galinha Pintadinha e Chiquititas, para que nestes minutos eu possa fazer o almoço. Ir ao banheiro é uma tarefa que exige agilidade — é preciso fazer rápido o que você necessita enquanto dribla um companheirinho que tenta abrir o lixeiro, a gaveta, o ralo. Acorda, veste as crianças, arruma o café da manhã. Tira a mesa, brinca um pouco, faz o almoço. Marido chega, tira a roupa que pode estar infectada, toma banho para poder sentar à mesa. Todos almoçam. Marido sai. Tira a mesa. Arruma a mamadeira. Liga o computador e conecta o Google Classroom. Olivia em aula. Dá mamadeira e tenta fazer o Raul dormir. Quase, quase. Olivia se perde 271 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) na atividade, a professora mudou de página e ela se dispersou. Mãããããeeeee... Bebê desperta. Ajeita a aula novamente, ajeita o bebê. Vamos iniciar o processo soninho novamente. Ainda tem roupa pra colocar na máquina e depois estender. Não gosto destas atividades, gosto de ler, pesquisar, conversar com meus alunos. Serviço de casa pesa, mas tem que ser feito. Faz lanche. Criança até as 17h no computador. Desesperador. Até eu já estou exausta monitorando, imagina a criança de seis anos, uma tarde toda sentada no computador. Sofro. Ela sofre. E sei que amanhã tem de novo. Marido chega, banho, troca de roupa. Ufa, vai segurar o bebê. Não, fome, precisa fazer um lanche. Já são quase 19h. Ele brinca com as crianças enquanto preparo o jantar. Nos alimentamos. Limpa tudo. 21h. Banho nas crianças, pijama. Mamadeira e fazer o bebê dormir. Depois conversar com a Olivia, ler uma história. Estou cansada. Silêncio. Deveria aproveitar e conectar o computador para mim agora, e escrever. Não agüento. Durmo. Como vou trabalhar neste cronograma maluco de isolamento? Eu que estava retornando de licença maternidade, precisava retomar minha identidade docente, parte de mim, além da maternidade. Fui puxada pelo buraco negro doméstico. O que vamos comer hoje? Até esta pergunta me desconcerta. Sei lá, me surpreenda. Contas a serem pagas. Vovô e vovó isolados na cidade vizinha. Os cachorros precisam de banho. As contas... A escola... A escola é uma conta alta. Eu escolhi, primeiro ano, alfabetização. E agora? O aproveitamento não está sendo bom. Inclusive, tem sido um exagero de horas para minha menina, artista da música e dos desenhos. Esse peso meu marido não carrega. Essas decisões são minhas. Ele apenas aceita e apóia. Para ele, ou deixa sem fazer essas atividades, ou coloca ela lá e deixa assistindo. Como se a pessoinha de 6 anos tivesse autonomia para uma videoconferência com 20 outras pessoas, administrando conteúdos e páginas a serem preenchidas. Pesa em mim que não compreendam isso. As reflexões acerca da responsabilidade das escolas particulares decorrentes das relações contratuais de consumo renderam um artigo que fará parte de um e-book. Uma forma de expressar academicamente uma indignação pessoal relevante para muitos pais e mães Brasil afora. Em dupla com uma colega, tendo em vista a logística necessária em meio a minha organização mirabolante. Não vai dar. Não vou conseguir realizar meus projetos remotos com os acadêmicos. Não há como planejar, produzir, e realizar o encontro virtual com essa rotina. Preciso da minha ajudante. Mas ela pode resolver a limpeza da casa. E precisará se cuidar, vir de carro particular, usar máscara. Bem, vamos auxiliá-la nestes aspectos. Vamos? Quem? Eu vou. Mas e as crianças? Como usar o computador, ler, escrever, gravar material, com as aulinhas, as aventuras do bebê e as rotinas que precisam ser observadas? Só sobrou o marido. Vou ter que conversar com ele. Sim. Porque para ele tudo está certo, correndo às mil maravilhas. Tá vendo como pesa? Temos três possibilidades. Me mudar para a casa de meus pais, continuar em isolamento lá, e eles podem brincar com as crianças enquanto eu trabalho. Contratar uma babá e pagar com os recursos financeiros que o marido está recebendo. Ou o marido pode deixar de fazer esse “bico” e cuidar das 272 Maternidades Plurais crianças, organizar suas rotinas, preparar seus lanches, limpá-los, cuidar do Raul e ajudar a Olivia nas aulas. Ele concorda com a terceira opção. Embora seja a mais próxima do ideal, sabemos que ideal muitas vezes se distancia do real. Preciso dele, mas também me dá medo. Pesa. Não quero brigar. Mas quero que seja responsável quando estiver com as crianças. Não é só fazer companhia. É supervisionar. Não é só dar bronca e dar ordens. É auxiliar, brincar, dar suporte. Fico preocupada, e até mesmo a solução para o problema é pesada para mim. A carga mental pesa. Pesa a culpa por não conseguir fazer tudo bem ao mesmo tempo. Ou me dedico às crianças e à casa, e o trabalho fica de lado. Ou realizo bem as atividades acadêmicas, e o Baby Shark e a Sister Shark ficam à margem. Fico dividida. Culpa. Peso. Enquanto isso, os acadêmicos estão mandando mensagens relacionadas às orientações de pesquisa. Preciso digitalizar um documento para que apareça minha assinatura em um projeto que já tramitou e foi aprovado. O bebê melhorou, ufa, intestino funcionando, vitória. Vou terminar meu artigo sobre educação. Concentração. E a filha vem chorando porque o pai brigou com ela ao se perder na atividade. Dá vontade de gritar. Respira. Acalma a filha. Pára. Ajuda a continuar. O pai justifica que ela precisa se concentrar. Ai, ai. Não há como se concentrar o dia todo em frente a um computador nessa idade. Ela deveria estar brincando lá fora. Correndo. Com as amigas. Que tempos vivemos. Quero ampará-la. O pai não entende. Me pesa muito que não entenda. Meu cabelo tem fios brancos aparentes. Minhas unhas estão acabadas. O marido diz, pelo menos não precisa sair. Eu rio. Mas gostaria de um tempo para cuidar de mim. Também sou mulher e não apenas mãe e trabalhadora. Mas tendo em vista que mal consigo dar conta das obrigações, esses pequenos prazeres vão ficando no pote dos desejos que criamos em casa, para realizarmos depois que essa loucura passar. Me lembro da Ariana e de sua escrita em “Morra, Amor”. Como pesquisadora, poder contar com minha colega, líder do meu grupo de pesquisa foi fundamental. Escrever com ela neste momento foi uma forma de debater temáticas importantes, trocar experiências e produzir. Produzir me ajuda a me sentir ativa, e reconhecer que escolhi o caminho certo, e que sou feliz nesta profissão — em que pese as dificuldades enfrentadas no ensino superior publico. Ao mesmo tempo, ser mãe me realiza de maneiras que nem sei explicar. Não existe algo ou alguém a quem eu queira me dedicar mais do que a meus filhos. E ainda como mulher sinto também a necessidade de relaxar, ouvir músicas que eu goste, assistir algum seriado, sair com meu esposo, ler um livro, ficar em silêncio. Somos esses vários espectros incompletos que se somam. Mas as cargas mentais, essas nos absorvem. Não há dieta que diminua este peso. Não há receitas para nos organizarmos de melhor forma. E ainda dizem: você precisa fazer um exercício físico, quem quer consegue. Gente, eu queria tanta coisa e não consigo. Eu queria ter mais paciência com meus filhos. Queria ter mais compreensão comigo mesma e me cobrar menos. Queria render mais. Queria ter uma rede de apoio na minha cidade. Queria que tantas mulheres tivessem menos peso. Menos culpa. Não somos perfeitas. Devemos reconhecer nossa humanidade. Queria que o Lattes também pudesse reconhecê-la. 273 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 43 “Quando eu morrer, vocês vão me dar valor!” A relação entre ciência e maternidade que só quem é mãe conhece Daniella Pereira Fagundes de França1 Desde que me entendo por gente o maior sentido da minha vida é ajudar, ser útil. Pra conseguir isso, pensei em ser freira e até presidente do Brasil. Eu diria que seria a primeira presidente mulher do país. Também sempre quis ser cientista e professora. Eu não sabia como ser cientista, lá no interior de Goiás, de onde eu vim, não existiam cientistas. Eu achava que mulher nem podia ser essas coisas. Descobri que podia ser professora e ajudar muito dessa forma. Entrei em Biologia pra tentar unir um pouco da paixão por Ciências com a paixão por ajudar. O caminho nunca foi fácil, e todos sabem disso. Nós, brasileiros, aprendemos desde cedo que não podemos chorar, não podemos questionar, não podemos nos sentar à mesma mesa do patrão, não podemos estudar na mesma escola daquele menino da mansão. Como milhares ou até milhões de brasileiros, passei fome. Passava fome para guardar dinheiro e poder comprar livro, passei fome para pagar a passagem de ônibus pra chegar no estágio, passei fome pra conseguir ir praquele congresso da faculdade. Mesmo assim, não ouso comparar minha fome de universitária branca que fazia pelo menos uma refeição por dia, com casa pra morar, à fome de milhões de brasileiros em situações infinitamente piores. Ainda falo de uma posição mais privilegiada que de muitas outras minorias, é importante ressaltar isso logo aqui, no começo desta história. É, passei fome de comer, mas a fome de passar por tudo não passou. Ser MÃE ou não ser, eis a questão! Só na faculdade de Biologia descobri que poderia ser cientista. Não sabia como fazer. Aos poucos fui descobrindo. Comecei um estágio no Zoológico de Goiânia e saí de casa. Aprendi a ter responsabilidade cedo porque precisava me sustentar. Estudava à noite e durante o dia cheguei a fazer 1 Bióloga licenciada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); mestra em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Federal do Acre (UFAC); doutora em Ciência Biológica (Zoologia) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP -Rio Claro; pós-doutoranda no Museu de Zoologia da USP (MZUSP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3118071514532805 Parte do texto foi publicado anteriormente no site mulheresnaciencia.com.br. O atual apresenta alterações e partes inéditas. 274 Maternidades Plurais estágios em quatro lugares diferentes em um mesmo semestre. Além disso, um grupo de colegas e eu montamos um grupo de estudos da fauna de vertebrados terrestres em um parque próximo ao município de Goiânia, onde cursávamos Biologia e morávamos. Toda essa vivência de campo e de outras práticas acadêmicas me fizeram amadurecer cedo em relação à minha carreira. No último semestre da faculdade conheci o pai do meu primeiro filho, hoje meu ex-marido. Eu tinha 21 anos quando me formei e apresentei minha monografia com um mês de uma gestação inesperada. Minha vontade pós-formatura era fazer mestrado e doutorado porque eu queria (e ainda quero) ser professora universitária e continuar pesquisadora. O pai do meu filho morava na Bahia e me mudei para lá. Cheguei a fazer uma prova para o mestrado de Zoologia na Universidade Federal da Bahia, logo depois de apresentar a monografia, mas não passei. Adiei um pouco o sonho do mestrado. Fiquei trabalhando como consultora ambiental até os oito meses de gestação (leia-se indo pra campo pegar e estudar bichos). Após três meses do nascimento do meu filho eu voltei a ir pra campo; levava ele e uma babá que ficavam no hotel mais próximo onde eu voltava apenas para almoçar e dormir. Não era fácil, mas eu não queria abandonar meu sonho e nem meu filho. Aprendi a unir as duas coisas e parece ter dado certo, de alguma forma. Quando ele tinha pouco mais de um ano achei que seria hora de tentar a seleção de mestrado de novo. Não foi fácil estudar para enfrentar uma seleção com uma criança pequena agarrada, literalmente, nas minhas pernas (às vezes ele ficava embaixo da mesa abraçado às minhas pernas), principalmente após dois anos afastada da academia. Eu começava a estudar e ele pedia colo. Éramos só eu e ele em casa, eu dava colo... Mesmo assim passei na seleção com boa colocação. Foi assim que tudo começou. Quando fui mãe, tão nova e inexperiente, eu não tive noção de nada, nem do meu lugar como mulher na sociedade, nem no casamento. Era pra ser mãe e eu fui. “Toma que o filho é teu!” Como o "ser mãe" e "ser cientista" vieram com pouca diferença de tempo, de certa forma, acabei sendo beneficiada pela prática, no começo. Tive que aprender a me adaptar à situação desde sempre, então não tinha opção: tinha que produzir e cuidar do meu filho, sem questionar. Eu não tinha o que questionar, era meu filho e eu tinha que cuidar, era minha carreira e eu teria que seguir. Apesar de ter publicado alguns dos meus estudos durante esse tempo, só consegui produzir trabalhos mais densos após ele crescer um pouco. Quase no final do mestrado me separei do pai do meu filho e as coisas pioraram, pois éramos só nós dois e uma dissertação para terminar. Precisei começar a viajar frequentemente fazendo trabalhos como consultora ambiental para conseguir dinheiro para sustentá-lo. Durante o tempo em que eu viajava, ele ficava com meu pai. Fiquei quase um ano e meio trabalhando e não consegui publicar os resultados principais do meu mestrado porque tive que sustentar meu filho com as viagens que fazia. Quando voltava eu só queria ficar com ele. Apenas após começar o doutorado e conseguir ter um pouco de rotina, consegui retomar os antigos trabalhos e publicar um estudo importante que realizei naquela época. Até hoje ainda tenho um artigo sobre o segundo capítulo da minha dissertação para terminar. 275 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Veio o doutorado, me casei de novo e tive minha segunda filha. Apesar de ter produzido várias coisas nesse meio tempo, tenho certeza de que conseguiria produzir o dobro caso não fosse mãe. Meus colegas ficam até tarde no laboratório trabalhando nos artigos deles... final de semana, se não tiverem nada para fazer, vão para o “lab”, terminam aquele manuscrito e já submetem para publicação na revista. Eu tenho que ir embora às 16h porque hoje é meu dia de buscar minha filha na escola, fazer comida, arrumar a casa, ensinar tarefa... e final de semana tenho que levar criança paro grupo escoteiro, arrumar a casa, fazer comida e levar ao parque. Aquela semana de férias (não remunerada) que o colega tirou para descansar, eu não pude tirar porque perdi uma semana de trabalho com a criança doente em casa. E é mais ou menos por aí... Isso tudo porque ser cientista não é profissão, no nosso país! O cargo pesquisador, salvo exceções (poucas instituições brasileiras possuem cargo exclusivo de pesquisador), não existe no Brasil sem estar atrelado à docência superior, ou seja, para ser pesquisador você necessariamente precisa ter passado em um concurso público para... professor universitário! Acontece, meus caros, que produzimos Ciência desde a graduação e não somos reconhecidos por isso! Nem ao menos somos respeitados como cientistas por alguns dos nossos professores! Enquanto as outras profissões tem carteira assinada com direitos — férias remuneradas, décimo terceiro, remuneração por horas extras etc — se naturalizou, no nosso meio, a prática de que o bom cientista é aquele que vira noites escrevendo e que coloca o trabalho antes da própria saúde e... sem receber nada por isso! Ser mãe cientista/mãe é padecer no paraíso inferno, mesmo! E quando uma cientista, mulher, decide ser mãe? Fui perguntada se o Brasil oferece as ferramentas necessárias para que as mulheres equilibrem a maternidade com a produção científica. Vamos supor que você e seu marido façam mestrado, ambos, com bolsas CAPES de 1.500 reais por mês. Com esse valor você precisa custear sua pesquisa, pagar aluguel, comprar comida etc. Certo. Mas e se entra uma criança na “jogada”? Numa cidade como São Paulo, onde moro atualmente, se paga 1.800 reais em um apartamento de 2 quartos (e não é em bairro nobre, não). Sobram 1.200 reais para comprar comida para os dois adultos e uma criança, fora gasto com escola, lazer e cultura (partindo do pressuposto que nós não temos apenas que sobreviver, não é?), vestuário, etc. E se a mulher é mãe solo? Vai ter que pedir ajuda dos pais (caso tenha esse privilégio) ou se matar trabalhando em outra coisa além do mestrado/doutorado para conseguir sustentar a si e a criança. Assim, como é que essa mãe conseguirá produzir ciência? E eu nem mencionei que quando temos bolsa de pós-graduação não podemos ter outro emprego, ou seja, essa mãe solo e essa criança vão precisar se virar com 1.500 reais por mês e a mãe ainda precisará ter equilíbrio mental e físico para produzir artigos científicos, pois precisa mostrar resultados sobre o que pesquisou para a população, que é quem paga sua bolsa. Além disso, se não publicar artigos, não consegue entrar no doutorado e não conseguirá concorrer a uma vaga para professor/pesquisador e todo seu esforço terá sido em vão, pois não poderá continuar sua carreira científica. É uma situação muito crítica. Então, na prática, a mulher que tem filho durante mestrado ou doutorado é vista como louca ou como imprudente! Essa visão tem sido mudada de uns dois anos para cá porque os problemas maternidade versus carreira científica tem sido mais debatidos. Então, pararam de me chamar de louca e 276 Maternidades Plurais começaram a me chamar de “Mulher Maravilha”, porque as pessoas entenderam o ato quase heroico que é ser mãe (ou pai, caso seja um pai presente, como é o pai da minha filha e o meu noivo, que adotou meus filhos como dele) na pós-graduação. Eu não pensei em nada disso quando engravidei... simplesmente engravidei e não teve "ah, agora vai ser difícil, minha vida acabou"; simplesmente fui. Eu sempre quis ser mãe e acho que isso ajudou. Também queria muito ser cientista. Quero! Sou! Quando a gente quer muito algo, se esquece um pouco as dificuldades. Hoje comecei a me dar conta de que não é comum ser mãe e cientista porque isso tem sido mais discutido. Antes eu achava que estava apenas fazendo minha obrigação porque “ninguém me mandou ter filho”. Hoje sei que não é assim! Precisamos ter direito de escolha e condições de sermos o que quisermos sem sermos penalizadas por isso! Tenho que ter as mesmas condições de concorrer uma vaga de emprego com uma mulher sem filhos ou um homem, sem me sentir menos por ser mãe. Então me dei conta de que ser chamada de “Mulher Maravilha” é um jeito de naturalizar o esforço sobre humano que uma mãe precisa fazer para continuar sua carreira científica. Ou ela é uma super-heroína ou ela abandona a carreira, o que é uma realidade para muitas! Nos esquecendo de que o normal seria criarmos formas de incluir todas as mães cientistas para que nenhuma precisasse escolher entre carreira e filhos. Isso não é justo! “Pouco importa às pessoas saber que tem direitos reconhecidos, se o exercício deles lhes é negado na prática.” Atualmente ainda é raro você ver mães no nosso meio. As mulheres geralmente têm filho mais tarde, depois de ter passado num concurso ou após abandonar a carreira (o que não é incomum diante de tudo isso). Veja o que aconteceu comigo durante o doutorado: assim que comecei minha pesquisa, tinha bolsa CAPES. Na época era pouco mais de dois mil reais por mês. Engravidei, bem no comecinho, e quando minha filha nasceu, eu ainda tinha essa bolsa. Meses depois do nascimento, meu projeto foi aprovado pela FAPESP e comecei a ganhar uma bolsa um pouco melhor. Recentemente foi aprovado o direito de licença maternidade remunerado para bolsistas de pós-graduação. Funciona assim: você tem seu filho durante a pós, tira os quatro meses de licença e, após o término da sua bolsa, você tem mais quatro meses com bolsa para terminar sua dissertação/tese. Na prática, seria assim comigo. Apesar do desespero inicial de uma segunda gravidez surpresa (e logo no início de um doutorado), fiquei mais tranquila ao saber que teria a licença remunerada. Apesar disso não fiquei afastada quatro meses após o nascimento. Voltei pouco depois de um mês porque, como já era mãe, sabia que teria que diluir essa licença durante os quatro anos, pra cuidar de viroses, dores de barriga, braços quebrados, festinhas na escola, férias escolares, etc. Então, no começo do quarto e último ano do doutorado eu soube que teria os quatro meses de prorrogação, mas não teria bolsa. Motivo: troquei de agência financiadora. Ninguém previu minha situação e precisei “correr” para conseguir terminar a tese a tempo de não precisar estender o desenvolvimento da minha pesquisa além do término da bolsa. Perdi quatro meses, pois não pude usufruir dessa prorrogação sem ter dinheiro para sustentar meus dois filhos. Precisei encurtar minha tese e não incluir parte dos meus estudos para poder terminar a tempo. Fiz "bicos" como cozinheira, pelo menos três vezes por mês, para conseguir poupar dinheiro caso precisasse ultrapassar esse tempo, tudo isso tendo que ser mãe, produzir artigos e ter uma vida. 277 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) “A mão que balança o berço é a mão que governa o mundo” Por essas e outras coisas ainda me perguntam se a maternidade teve (e tem) impacto negativo na minha saúde mental e na minha carreira. Sei que a resposta que esperam, principalmente depois de tudo que eu disse, é “sim”, mas isso não é verdade. Não, a maternidade não teve impacto negativo na minha saúde mental e na minha carreira. A maternidade só me trouxe benefícios. Consigo ver claramente quem eu era antes e depois de ser mãe e gosto infinitamente mais de quem sou após a maternidade. Observo mudanças como melhor concentração, raciocínio mais rápido, aumento na empatia, maior facilidade na resolução de conflitos e problemas, mais plasticidade em diferentes situações, inclusive as de estresse, entre outras coisas. Como bióloga me arrisco a dizer que há até questões instintivas evolutivas envolvidas nisso tudo. Mas, por causa de problemas relacionados à maternidade passei por situações de estresse complicadas. Como eu disse, o ambiente acadêmico não é para mães. Frequentemente enfrento situações que já me levaram à elevados níveis de esgotamento mental e físico, não por causa da maternidade em si, mas porque não temos (nós, mães pós-graduandas) direitos básicos de uma mãe que trabalha com carteira assinada. Levo meu filho para o laboratório todos os dias (e ainda me considero com sorte de ter essa opção) porque o que sobra da bolsa após pagar as contas é insuficiente para colocá-lo em uma escola integral (e ainda são pouquíssimas as escolas públicas que disponibilizam educação em tempo integral). Precisei "fazer bicos" porque um direito básico me foi negado, que é a licença maternidade remunerada. Quando levo meus filhos em uma palestra (pois não tenho com quem deixar) muita gente fica me olhando feio “porque ali não é lugar pra criança”. Não existe nenhum tipo de apoio para alunas e pós-doutorandas mães (nem para pais!) na instituição onde desenvolvo minha pesquisa (apesar de terem permitido que eu traga meu filho para o laboratório), assim como na maioria das outras. Não posso ficar com meus filhos durante as férias deles, pois um mês de férias é um mês de pesquisa perdida. Tenho que escolher entre terminar um artigo ou assistir um filme à noite com meus filhos (geralmente escolho o filme — risos). Então, a pergunta que deveria ser feita é “O que afeta sua saúde mental sendo mãe/pós-graduanda?”. Respondo que é a falta de empatia diante da situação das mães pós-graduandas no nosso país! Falta de empatia de quem está à frente das instituições brasileiras: homens, brancos, privilegiados em muitos níveis e não é a maternidade! É a falta de empatia da sociedade que vê como obrigação exclusiva da mãe os cuidados e criação dos filhos e exalta o pai que cumpre sua tarefa como pai, reforçando a máxima de que a mãe que troca fraldas e lê histórias está cumprindo seu dever e o pai que faz as mesmas coisas está sendo excepcional. É a falta de reconhecimento, pela sociedade, dos cientistas brasileiros como profissionais extremamente necessários para o crescimento do país! É a desvalorização da educação, a ponto de acharem mais importante deixar de taxar grandes fortunas e isentar pagamentos de impostos de igrejas, que faturam milhões de dólares, que financiar jovens pesquisadores. Com o aumento do ativismo feminista nos últimos anos, assuntos como este e histórias como a minha tem sido cada vez mais discutidos, mas existe um viés: mulheres ainda tem menos representatividade que homens na política e em cargos de chefia. E quem dita as regras e fazem as leis? Quem 278 Maternidades Plurais ocupa esses cargos: homens, brancos! Então, além de incentivar a ocupação desses cargos por mulheres, sobretudo as negras (que são a maioria da população), precisamos entender que mulheres de carreira podem ou não querer ser mães. Precisamos dar condições para que uma mulher possa ser boa profissional e boa mãe e que não tenha que escolher se dedicar a apenas uma das opções. Isso é injusto e ingrato pois isso não é (e nunca foi) cobrado dos homens, apenas das mulheres. “Mas você só estuda ou trabalha também?” Hoje estamos no meio de uma pandemia, e isso só trouxe à tona, ainda mais, todo um abismo social entre homens e mulheres. Quando se fala em mulheres negras pobres e homens brancos ricos, esse abismo é ainda maior. As mulheres fazem parte de uma minoria, ou seja, uma parte marginalizada da sociedade. Minorias tem seus direitos arrancados, suprimidos e negados em benefício de grupos dominantes. Mulheres são uma minoria, mulheres negras são uma minoria ainda mais desfavorecida, assim como outros vários outros recortes da minoria “mulheres” (mulheres lésbicas, trans, periféricas, deficientes, imigrantes etc.). No entanto, a maioria da população brasileira é composta, em sua maioria por... pasmem: mulheres negras! Está surpresa (o)? Dê uma volta na história do Brasil e entenda esta questão. Mesmo as mulheres negras sendo tão numerosas, o país é dominado por uma pequeníssima parte da população: a elite branca masculina. São eles que fazem as leis que nos oprimem. E por que estou dizendo tudo isso? Porque agora, em plena pandemia, parece que muites de nós começamos a entender como funciona a sociedade podre brasileira. Mulher, cientista, estamos no meio de uma cilada e precisamos lutar agora! Eu me vi perdida e desesperada em vários momentos diferentes durante o isolamento social, por motivos diferentes e, todos, absolutamente todos, estão relacionados ao fato de eu ser mãe e não querer abandonar minha carreira. Meus filhos estão em casa, não tem escola. Mesmo que tivesse, eu não os deixaria ir até que tenhamos uma vacina. Minha filhinha fica na casa do pai metade da semana, meu filho fica integralmente comigo e com meu noivo que, como eu disse antes assumiu o papel de pai que o pai do meu filho nunca quis assumir. A rotina é dura. No começo da quarentena eu achei que não aguentaria. Tarefas de escola, videoaulas, correções de tarefas, escotismo, provas... tudo isso em meio ao meu trabalho como cientista, o medo de não ter a bolsa renovada e a falta de perspectiva de futuro em meio a um caos sem precedentes em que milhares de pessoas morrem por dia e todo tipo de atrocidade política e social acontece neste país. Além disso, estou cozinhando mais, limpando mais a casa pois ela suja mais por estarmos mais em casa, e tendo que lidar com a ansiedade causada pelo cárcere privado coletivo de quatro pessoas, sendo duas crianças que não entendem direito e não aceitam a situação. Pensar em desistir? Muitas e muitas vezes durante esses cinco meses de confinamento. Algumas vezes por me sentir culpada de não estar conseguindo acompanhar as tarefas deles como deveria. Outras por ouvir “mas você só trabalha”, pois eles nunca me viram TENTAR trabalhar tanto para cumprir os prazos, mesmo este trabalho não tendo nenhuma qualidade pela quantidade de interrupções diárias para fazer o leitinho, o almoço, lanche da tarde, jantar, acudir uma briga, uma crise de ansiedade, etc. Outras por ser cobrada da mesma forma como pessoas sem filhos, que “aproveitaram” 279 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) a pandemia para produzir ainda mais e que até gostaram disso! Em alguns momentos pensei em desistir porque o sistema tenta jogar para fora da carreira, de todas as formas, as mães cientistas, e a quarentena só aumentou ainda mais este efeito. Agora volto no assunto de dois parágrafos acima: eu ainda me enxergo numa posição privilegiada. Tenho uma casa para morar, um companheiro que me dá suporte, sou branca, mulher cis e faço parte da elite intelectual brasileira, aquela pequena parte que chegou ao nível do doutorado. Por isso não desisto! Além do amor à minha profissão, penso que quando temos certo conhecimento sobre assuntos importantes, como o que estamos tratando aqui, temos a responsabilidade de discuti-los, colocá-los em pauta, de trazê-los à tona, gritar aos quatro ventos, se for preciso! Então penso que como cientista, mulher e mãe, devo continuar pelo amor à minha carreira e para garantir que minha história seja um incentivo para mais mulheres e mães que acham que não vão conseguir, sobretudo aquelas pertencentes aos outros recortes sociais dentro da minoria “mulheres”. Nossa voz, mulheres cientistas, pode ser ouvida e trazer junto com ela a voz de mulheres ainda mais marginalizadas pela sociedade. “Nem só de pão vive o homem...” Por último, quero fazer uma pergunta às agências financiadoras, às instituições de ensino e pesquisa brasileiras, aos nossos políticos e à toda a sociedade: vocês acham justo que tenha sido negado a remuneração nos quatro meses de prorrogação do tempo do meu tempo de doutorado? Acham justo que eu tivesse que trabalhar quatro meses “de graça” por ter perdido (por pura burocracia) um direito BÁSICO adquirido? Acham justo que por causa de uma deficiência no sistema, que não previu uma situação como a minha (que pode voltar a se repetir com várias outras mulheres), eu tivesse que ficar quatro meses sem dinheiro pra comprar comida pros meus filhos? O que sugerem que eu e mulheres que venham a ter o mesmo problema, façamos: que acabemos com o que nos resta de saúde tentando terminar nossas pesquisas e pensando em como conseguir dinheiro para pagar o aluguel; que infrinjamos a lei e arrumemos outro emprego nesses quatro meses, prejudicando o desenvolvimento da pesquisa, nosso desempenho como mãe e dormindo três horas por noite; ou que desistamos de tudo por não conseguir entregar a tese antes de acabar a bolsa? Eu gostaria muito de sugestões, porque “nem só de pão vive o homem”, mas também de políticas públicas que tragam oportunidades e direitos iguais à população! Não tirem de mim e de milhares de outras mulheres com os mesmos anseios que eu, que lutamos tanto na vida, que passamos por tantas barreiras para chegar até aqui, a vontade de fazer a diferença no futuro desse país tão surrado e sofrido! Danielle Pereira Fagundes de França São Paulo, 24 de agosto de 2020. 280 Maternidades Plurais Primeiro acampamento do meu filho Ernesto, com apenas sete meses de idade, na minha primeira expedição científica depois de ser mãe. Da esquerda pra direita: Paulinha, com pouco mais de um mês de idade, dorme enquanto trabalho; Eu e Ernesto prontos pra mais uma noite “pegando sapo”, como ele dizia. 281 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Paulinha pulando no meu colo depois de correr para me alcançar, a tempo de receber comigo uma premiação no Concurso de Fotografia Herpetológica no Congresso Brasileiro de Herpetologia de 2017. 282 Maternidades Plurais 44 Experiências e aprendizados em tempos de pandemia: superando e ressignificando os desafios e adversidades da maternidade e da atividade acadêmica Débora Adriano Sampaio1 Conciliar as funções de mãe, mulher, dona de casa e profissional do magistério superior, em um período de isolamento social não planejado, em vistas do decreto da Organização Mundial de Saúde (OMS) — que declarou situação de pandemia pelo novo Coronavírus — é um caminho que se apresenta repleto de dificuldades, sobretudo, de experiências e aprendizados, um percurso cheio de desafios que deve ser trilhado a cada novo dia. Após um período de quatro anos de afastamento para cursar o doutorado em outro Estado (2014-2018), seguido do período de licença maternidade e, em seguida, de licença para tratar da própria saúde, a qual persistiu por um ano e três meses (de outubro de 2018 a janeiro de 2020), em decorrência de uma depressão pós-parto, os planos, perspectivas e temores eram demasiados ao iniciar o ano de 2020. Voltaria às atividades acadêmicas ao tempo em que minha filha — naquele momento, com um ano e oito meses — iria para escola, e o meu esposo, por sua vez, também voltaria ao trabalho. Sim! Meu esposo, servidor público estadual, também estivera de licença pelo mesmo período. Como apoio, amigo, pai e companheiro presente e inseparável, esteve ao meu lado, distante de suas atividades laborais por todo este tempo, se dedicando aos cuidados com a casa e com a nossa família, entre outros problemas de saúde que acabaram, também, por fim, por afastá-lo de suas atividades. A expectativa de um novo ano e a possibilidade de retorno às nossas atividades, em particular, às minhas, me encheram de esperança e medo. Juntamente com a depressão desenvolvi a síndrome do pânico, insônia e transtornos de ansiedade, específicos do agravamento do quadro, a partir do nono mês de vida da minha filha, após a triste partida de minha mãe ao ser vencida por um câncer. Em meados de 2019, o momento era de programar o retorno às atividades acadêmicas, após este longo período de afastamentos, transformações, dores, luto. A terapia, desde então, juntamente 1 Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora Adjunta da Universidade Federal do Cariri, Centro de Ciências Sociais Aplicadas (UFCA/CCSi). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6540558738558126 283 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com a clínica médica psiquiátrica, trabalhavam no sentido da preparação emocional viabilizando este retorno e a adaptação à nova rotina que estava por vir. Este momento exigiu ainda mais concentração, disciplina, resiliência e a adoção de novos métodos de superação da dor e angústias que, embora amenizasse, não desaparecia. Este, então, era o contexto no qual me encontrava. Em meados do mês de fevereiro, iniciou-se o ano letivo. O receio quanto ao retorno à vida acadêmica, me causava angústia e uma ansiedade descomunal. Neste período, tivemos, ainda, que lidar com a adaptação da nossa filha na escola e com todas as interrogações quanto ao retorno do meu esposo ao trabalho, que se daria no mês de abril do corrente ano. Um momento muito delicado para mim, assim, como acredito, para qualquer mãe que precisa, muito antes do que foi para mim, trabalhar fora e deixar seus filhos aos cuidados de um berçário. Porém, para mim, teve um requinte de pânico, dúvidas, inquietações e os mais diversos ajustes, diante das configurações do cenário em que me encontrava anteriormente. Nada estava fácil. Tudo ainda era muito obscuro. Porém, na segunda semana de aula na Universidade, estava começando a sentir novamente prazer pelas atividades de ensino, elaborava projetos de monitoria, tomava nota de inúmeras ideias para desenvolver posteriormente na pesquisa e organizava o cadastro e credenciamento de uma Núcleo de Estudos e Pesquisa, objetivos, linhas de pesquisa e contactava alguns pares com o objetivo de formalizar o convite para comporem este novo projeto. Entretanto, observo, atualmente com mais com mais clareza e consciência e afirmo, com base em todas as experiências dos últimos anos até o presente momento, que, certamente, não temos como mudar nenhuma vírgula de tudo que acontece. De fato, há muitas coisas que ocorrem que são determinadas por nossas decisões, outras, não! A máxima de Fernando Pessoa que afirma: “A vida é aquilo que fazemos dela2”, talvez, pudesse corroborar com este pensamento, pois, neste caso, não havia decisão alguma que tomássemos que fosse capaz de mudar o contexto mundial que vivenciamos. Contudo, podíamos e podemos ressignificar o que a vida nos oferece enquanto oportunidade ou, quem sabe, possamos construir essas possibilidades. O pensamento de Sartre, quiçá, nos direciona ao entendimento e nos permite compreender a reflexão de Fernando Pessoa, ao expressar tão célebre pensamento: “Não importa o que a vida fez de você, importa o que você fez do que a vida fez de você” 3. Destarte, transcender às circunstâncias, superar a frustração e os limites da ansiedade, da tristeza e dos questionamentos que todos tínhamos dado o início do isolamento social, se apresentava como algo urgente. As alternativas que se apresentavam poderiam ser apreendidas da seguinte forma: ou aguardaria para observar o cenário mundial e local para tomar possíveis decisões ou regressava ao quarto escuro, o qual me convidava a depressão, permitindo que as lágrimas se encontrassem com meus olhos e inundasse o travesseiro e a minha vida. Deveria me sentir vítima da situação? Ou deveria viver um dia de cada vez para entender a conjuntura da condição imposta, as consequências do isolamento social, a curto, média e longo prazo para a minha vida, para a vida da minha família, para a comunidade acadêmica, assim como, para toda a sociedade? Me senti imersa em uma nuvem negra de questionamentos e incertezas. A condição de cidadã, leitora e com a consciência de um ente social 2 SOARES, Bernardo. Livro do Desassossego - Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1982. V. II, p. 387. 3 SARTRE, J-P. O Ser e o nada. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 284 Maternidades Plurais com valores e crenças, me fazia refletir, no contexto da sociedade, como tudo isso poderia ser trágico para aquelas mulheres que vivenciam um quadro de abusos e violência doméstica, as mais diversas. Comecei a me preocupar com aquelas crianças que dependem da merenda escolar para terem o que comer, das mães e pais de família que precisam trabalhar em funções, as quais foram impedidas de serem exercidas enquanto perdurar o decreto de isolamento, como os profissionais liberais, autônomos, pequenos empresários, domésticas, entre outros. A economia sofreria uma recessão, talvez, como nunca vista e depois que tudo passar, seremos nós a pagar a conta de algo que não estava ou, melhor, não está em nossas mãos decidir ou apontar uma resolução e não fazemos ideia do como, quando ou se tudo votará à normalidade. À antiga normalidade. Talvez sejamos direcionados a construirmos o cenário e as condições para um “novo normal”. Após, este, bem como outros momentos de profunda reflexão que seguiram nesta direção, as lágrimas sempre insistiam em fazer o desfecho. E, assim, esse pensamento me acompanhou nas primeiras semanas de isolamento até me dar conta de toda frustração que havia se tornado o meu retorno às atividades acadêmicas e à introdução ao ensino infantil de minha filha. Todos os planos estavam indo por água abaixo. Uma decisão, não menos importante e difícil foi liberar a nossa secretária para cumprir quarentena, afinal, ela também estava sob risco e, consequentemente, a nossa família. Nada mais correto e justo do que garantir-lhe esse período de isolamento, inicialmente de quinze dias. O que não esperávamos, pois tudo se mostrava desconhecido, era que essa situação perdurasse e, com isso, o pânico de adquirir a Covid-19 tomasse proporções maiores, diante de tudo que era possível ler e ver nas redes sociais, noticiários e canais de especialistas, os quais analisam o atual cenário e a dimensão de todo o problema. Assim, passados dois meses, optamos por demitir a nossa funcionária, com todas as garantias legais e cobrindo os dias não trabalhados, tendo em vista o decreto de isolamento e todas as prerrogativas legais. Esta foi uma decisão difícil de ser tomada, uma vez que ela ficaria sem emprego e, portanto, sem remuneração. O sentimento de culpa me consumia, mas não havia sentido mantê-la nessas condições. Tudo mudou, tínhamos mais trabalho em casa, uma nova rotina. A constante exaustão física e mental dos primeiros dois meses de isolamento nos deixava inconstantes sobre o que pensávamos acerca de tudo que acontecia. O peso da responsabilidade sobre a maternidade e os afazeres domésticos, não nos permitia expandir os pensamentos. A crueldade da circunstância que nos impunha a retirada de nossa filha da escola, ao tempo em que já se sentia adaptada, me dilacerava. Ouvi-la, por vezes, suplicando para ir à “escolinha”, segurando sua mochila e caminhando em direção à porta de saída, me paralisava. E agora? Este passou a ser um constante questionamento. E agora? Como será? Como farei para que este momento não se torne um evento traumático para minha filha e para mim? Como será definida essa situação no âmbito da Universidade? Pensava e ainda penso, por vezes, que eu mesma não tenho condições de lidar com os afazeres domésticos e depois ou antes disso, de repente, ser obrigada a ministrar aulas síncronas, de forma remota. E o tempo para fazer este planejamento? E os projetos? E a produção? Como se encaminharão todas essas coisas na minha vida? Essas indagações me acompanham até o presente momento. Em meio a tudo isso, o calendário acadêmico foi suspenso por tempo indeterminado, o que, inicialmente, me trouxe alívio. Afinal, teria tempo para maturar as ideias e refletir sobre como proceder com as demais atividades acadêmicas que não se resumem ao ensino. Conciliar essas atividades, reservar os afazeres domésticos com o meu esposo — que precisou se adequar e aderir ao home office — estar junto da minha filha para a realização das tarefas escolares foi um grande desafio, mas, tive que fazer algumas escolhas. Refletindo sobre o que tivemos que 285 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) enfrentar, todas as dificuldades impostas, tomei a decisão de resistir a todas elas. Pela minha filha, pelo meu esposo, pela nossa família e, principalmente por mim. Decisões importantes precisaram ser tomadas, como por exemplo, o cancelamento do contrato escolar da nossa filha. Não estávamos conseguindo fazê-la assistir atentamente às videoaulas, bem como desenvolver todo trabalho pedagógico que a escola desenvolvia com ela. Tudo isso estava nos desgastando. A sensação era de que não estávamos dando conta de tudo isso e nos sentíamos fracassados nesta tarefa, especialmente eu. A decisão de outros pais da mesma escola, por retirarem os seus filhos neste momento, nos fez analisar os possíveis pós e contras de um possível retorno ou não retorno, ao tempo em que ainda não há vacinas para evitar a contaminação. Não podíamos correr o risco. Uma criança de dois anos ainda não tem condições de colocar em práticas medidas de isolamento e higiene. Mesmo que fosse possível o retorno ainda este ano de 2020, não iríamos arriscar permitindo seu retorno à escola. Afinal, perder o primeiro ano da pré-escola não será determinante em sua trajetória escolar. O receio era e ainda é constante. Entretanto, foi bem mais intenso nos meses iniciais. A aflição ao iniciar uma atividade em home office, em um horário em que minha filha está acordada, para mim, é algo impossível. As reuniões de colegiado e comissões as quais fui indicada durante este período, somente são possíveis quando ela dorme à tarde. Como o seu sono à tarde é uma rotina, consigo participar, na maioria das vezes dessas reuniões, depois que deixo tudo organizado na cozinha, após o almoço, enquanto meu esposo fica com nossa filha e a coloca para dormir. Sem ele, não seria possível nem mesmo participar de nenhuma dessas reuniões e comissões e, muito menos, fazer parte deste projeto. Ele me incentiva constantemente e segura a minha mão para iniciar um novo dia, sobre os quais eu penso não conseguir chegar ao fim, me dar forças para, a partir das vinte e duas horas, quando a nossa filha dorme, virmos ao escritório encaminhar as nossas atividades. Não todos os dias, mas quase todos. Pois o cansaço nos pressiona e, por vezes, consegue vencer. Até o presente momento as atividades de ensino estão paralisadas. Todavia, um possível retorno alternativo se encaminha, com previsão para setembro. Mesmo com todas as adversidades, lutas, angústias e incertezas, já é possível colher frutos da minha escolha. A escolha pela superação, pela resistência. Da escolha que me faz percorrer não o caminho mais fácil, mas o caminho possível, o caminho da transposição, da ressignificação. Cheio de pedras, uma difícil trilha a ser atravessada. Mas quem disse que o caminho que, aos nossos olhos, se mostra fácil é o caminho que irá nos levar aos melhores resultados? Afinal, “somos condenados a sermos vivos” 4. É possível apontar algumas conquistas relevantes neste período de águas turvas, o qual estamos ultrapassando. Até o momento, consegui finalizar três artigos e submetê-los à avaliação em periódicos científicos, dos quais, um deles foi publicado e outro encontra-se em avaliação; o livro, resultado da minha tese de doutorado, o qual submeti à avaliação Ad hoc de uma editora científica, foi publicado no último mês de abril; Consegui encaminhar os dados referentes ao meu Núcleo de Estudos e Pesquisa à análise da Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PRPI), da Universidade, o qual já consta como credenciado pela no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq; No momento elaboro um projeto de pesquisa com vistas ao próximo Edital PIBIC; foi possível o credenciamento ao Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia (PPGB) já consto como orientadora de duas 4 Ibidem. 286 Maternidades Plurais mestrandas; participei como membro de uma Banca de Doutorado; conclui alguns cursos EAD de formação complementar e realizo outros direcionados às minhas linhas de pesquisa e às tecnologias no contexto do ensino remoto; realizei uma palestra, a convite, no formato de live, sobre um assunto específico de uma das minhas disciplinas da graduação, e, consegui concluir a leitura de dois livros. Essas foram algumas atividades realizadas, as quais considero conquistas, resultado de um processo de superação, diante de um momento que se mostra, ainda, tão instável e inconstante. Um período que, diariamente, me causa pânico e profunda angústia. Porém, apesar de todos os percalços, decidi não esperar tudo melhorar. Decidi viver um dia de cada vez e realizar o que for possível, diante do cansaço de um dia de trabalho doméstico, um dia desgastante que apresenta tantos desafios, que me ameaça por meio de dores na coluna, incertezas, por meio das incontáveis birras da minha filha e seus inúmeros pedidos para passear na praça, ir à escolinha ou ir ao parquinho. Depois de um dia que, além de tudo, teve, ainda, momentos contação de histórias e brincadeiras, as mais diversas, sempre com o objetivo de entreter e doar um tempo de “qualidade”. Entretanto, receio que esse tempo não tenha tanta qualidade quanto gostaria. A autocobrança é permanente. O sentimento de culpa por, talvez, não estar cumprindo corretamente o meu papel de mãe, me engasga e, a pergunta sobre o que mais poderia dedicar a minha filha neste momento, por vezes, me tira o sono. De um lado, a preocupação com a maternidade e os incontáveis desafios desta função, de outro, o senso de responsabilidade e compromisso com minhas atividades de trabalho. Contudo, além da parceria com meu esposo, a terapia me permite avançar, direcionar os pensamentos para o que pode me trazer esperança de dias melhores. Sim! Ainda consigo, uma vez por semana, ter duas horas de terapia, de forma remota com minha psicóloga, que também me orienta à meditação. E é neste caminho que persigo o foco, a concentração e a disciplina. Não é um exercício fácil, porém, é possível. O importante é termos em mente as nossas prioridades e acolher o medo, a dor, não fingir tranquilidade e equilíbrio, fugir ou se esconder das dificuldades, mas encará-las ao raiar do sol e decidir se elas ditarão ou não seu comportamento e/ou direcionarão seus pensamentos ao longo de todo o dia. A espiritualidade, também, é um fator que acrescenta positivamente, neste tempo de crises. É excitando a minha espiritualidade que recarrego todas as forças e consigo encontrar sentido e um novo ânimo para a vida e todos os desafios que ela me impõe. Contudo, gostaria de destacar que nada tem a ver com religiosidade, mas espiritualidade. Algo que transcende doutrinas e dogmas impostos pelas religiões. Mas que te conecta a um ser Superior. Assim, penso que cabe a cada um, optar por tomar para si ou não, aqueles problemas cuja solução não está diante de nós, mas para além de nós, resolvê-los. A ciência também nos direciona na rota de construção da esperança. As notícias sobre o estágio do desenvolvimento de uma vacina são animadoras. À propósito, nunca se deu tanta importância e visibilidade à educação e a ciência quanto nesta época, o que analiso como extremamente positivo e como a abertura de novas oportunidades. Por fim, creio que o meu relato sobre este período, como mãe e cientista, difere da maioria das mulheres não só deste segmento da atividade profissional, como de muitos outros. Certamente, ninguém conseguiu desenvolver sequer uma linha inteira de um artigo ou dar prosseguimento a qualquer outro projeto. Muitas colegas estão submersas nas atividades domésticas e com a exclusividade da criação de seus filhos por diversos motivos. 287 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Entretanto, o meu desejo é que todas tivessem a oportunidade de dividir os afazeres domésticos e as responsabilidades que a maternidade confere com os seus parceiros, porém, diante do nosso atual contexto sociocultural e outras peculiaridades dos diferentes e particulares cenários, isto pode não ser possível. Contudo, que possamos, todas, acolhermos as nossas limitações, nossas angústias e frustrações, refletir e ouvir o que elas nos dizem. E, assim, colhermos mais aprendizados, autoconhecimento e experimentar sermos de verdade, sem a capa de “mulher maravilha”, sob a qual a sociedade, muitas vezes, nos visualiza. Que possamos construir novos sentidos e ressignificarmos o isolamento e as nossas prioridades, criarmos mais oportunidades sem a cobrança excessiva pela produtividade. Que consigamos sair fortalecidas deste período e saibamos aproveitar este momento de isolamento como uma oportunidade que a vida nos dá para realizarmos tantas outras coisas que até pensávamos não sermos capazes e que, ao fim de toda essa problemática, tenhamos condições de realizar outros projetos, visualizar novos horizontes, explorar novos caminhos, tomar novos rumos para nossa vida pessoal e acadêmica. 288 Maternidades Plurais 45 Vida de mãe e pesquisadora em tempos de quarentena Débora Borges Martins1 Introdução A presente análise pessoal passou por algumas etapas de construção. Passando pela rede social, algo me chama muita atenção: alguém publicou uma chamada pública para descrever relatos pessoais dos enfrentamentos durante a quarentena: minha vida como mãe, minha vida como dona de casa/esposa, profissional e pesquisadora. Algo real, que realmente me inspirava, como um desabafo, já que não podia pelo presente momento de distanciamento social, marcar um chá com as amigas para desabafar, de sair, de sentar em um shopping e simplesmente ver a vida passar... De uma hora para outra tudo mudou! Quatro meses em casa, sem poder viajar, encontrar com os colegas do curso, sem participar das corridas de rua, simplesmente se distanciar, mas, agora como fica esse isolamento? Como está o nosso psicológico, a nossa privacidade? A nossa produtividade? Essa oportunidade ímpar das organizadoras me ajudou a olhar para mim mesma e ver como estava indo como mulher além de ver dentro de mim essa realização, não foi uma tarefa fácil, pois as lágrimas vieram junto com o pensar. A escrita soou como uma grande amiga na solidão da madrugada... Não sairemos os mesmos desta pandemia, com certeza sairemos transformados, com certeza os professores agora serão mais valorizados, a ciência também, pelo menos é o que esperamos. Afinal, nunca se valorizou tanto o sistema único de saúde, há uma espera pelo milagre da vacina contra a Covid-19, a situação econômica do país e o medo que assola todas as famílias. Com isso, neste contexto pandêmico, nós mães viramos professoras de nossos filhos, e eu, como gestora professora formativa, aluna do curso de mestrado e esposa, me pergunto: como dar conta de tudo isso? O ensino inverteu, tivemos que nos reinventar como mães profissionais e orientandas. ¹ Licenciada em Pedagogia com habilitação em Administração Escolar pela Universidade de UberabaUNIUBE/MG. Especialização em Expressão Ludocriativa pela Universidade de Uberaba- UNIUBE/MG. Pós-Graduação Lato Sensu em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia na área da Educação pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Pós-Graduação em Psicopedagogia pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá/FIJ/RJ. Professora de Educação Básica I com experiência em Educação Infantil (Escola Maiêutica de Igarapava/SP) Ensino Fundamental (Escola Maiêutica de Igarapava/SP), (EMEF Oswaldo Campos/Aramina/SP) Ensino Médio/Técnico: ETEC Antônio Junqueira da Veiga/Centro Paula Souza. Atualmente: Diretora de Escola na EMEI Orlando Gomes da Silva e mestranda na área da Educação pela Universidade de Uberaba/MG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4625984971281389 289 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Minha vida como mãe Sou mãe de dois filhos lindos, inteligentes e criativos. Quando digo criativos, peço para que meu querido leitor imagine uma casa com mil brinquedos esparramados, mas imaginem que os brinquedos que mais chamam a atenção dessas crianças agora são caixas de papelão, garrafas, vasilhas, baldes, pedaços de madeira, areia etc. Minha sala se tornou uma ponte com travesseiros e lençóis viraram casinha. Apesar disso, esse espaço precisa também tornar-se um espaço formativo. Tenho um filho na fase final da etapa três da Educação Infantil e outro no quarto ano do Ensino Fundamental, é muita energia e criatividade, afinal eles também tiveram que se reinventar e aproveitar o espaço que têm com as novas medidas de distanciamento. O Levi, de cinco anos, estuda pela manhã. Minha provação começa logo cedo. Tirar ele da cama não é tarefa fácil, imagine fazer com que ele compreenda que, apesar de ele estar em casa, ele precisa continuar tendo responsabilidades com horário e rotina. Tarefas essas bastante difíceis, mas que, em minha opinião, precisam ser levadas em conta. Afinal, isso faz parte do currículo da Educação Infantil, trabalhar a vida cotidiana agregando valores, responsabilidades e respeito. Todos os dias, a escola procura desenvolver atividades prazerosas e significativas, levando em consideração o contexto e propiciando, com a nossa ajuda, ambiente favorável de descobertas, exploração além de manter o vínculo com as crianças por meio do ambiente virtual. Fazer com o Levi não perca o vínculo com a escola e acompanhe os coleguinhas e a professora é minha missão todas as manhãs. Por ser o filho caçula, chora muito, dá birra, briga com o irmão, e eu ali me mantendo sempre firme para conciliar tudo isso. As aulas do meu filho mais velho, o Davi, são no período da tarde. Ele tem nove anos e, como disse anteriormente, ele está no quarto ano do ensino fundamental. É uma criança muito inteligente, mas que precisa de atenção, sentar do lado e assistir as aulas pelo ambiente virtual junto com ele, se deixar ele enrola, quer apenas ficar de conversa com os colegas na mídia social. Enfim, as áreas do conhecimento já são mais complexas e precisam de mediação e acompanhamento. Sobre este novo contexto de aulas, as que continham experiências sempre eram as mais atrativas. Fizemos tinta de carvão de terra, diversas brincadeiras com interação da família, pinturas, brinquedos não estruturados etc. Com certeza, posso afirmar que professores de meus filhos foram muito criativos e souberam combinar bem o contexto com as atividades das crianças e integração da família. Nos primeiros dois meses, foi mais fácil mantê-los em casa, participar direitinho das aulas, mas depois foi complicando, as crianças ficaram mais estressadas, agitadas, pedindo para sair, querendo comer fora, brincar com os amigos, e confesso que, com toda instrução que tenho há dias, as crises de ansiedade vêm, e eu desabo. Me pego pensando o que irei fazer para protegê-los, e se as aulas voltarem para o modelo presencial, e se eles não forem assintomáticos e o caso da síndrome multissistêmica associada à Covid-19, e se caso eles forem e eu for um alvo ou minha mãe que se enquadra no grupo de risco? Todas essas minhas indagações muitas vezes resultam em insônias, principalmente quando a Covid-19 acometeu pessoas conhecidas e minha família. Manter a fé foi o caminho que encontrei 290 Maternidades Plurais para me ajudar nessa crise existencial, porém ver meus filhos orando para que o papai do céu mate esse vírus, para que eles possam voltar a brincar com os amiguinhos, me corta o coração. Percebi o valor das interações e como fazem falta não só para mim, mas também para eles. Uma das coisas que me chocou muito foram os desenhos das crianças. Um dia cheguei ao quarto, peguei o desenho delas, era sobre o que elas estavam sentindo falta e as brincadeiras que queriam brincar, notei que, em nenhuma dessas brincadeiras, nem eu e nem o pai dos meninos estavam incluídos, o que me fez perceber que nenhuma tecnologia é capaz de substituir as relações entre os pares e como tudo isso têm feito falta para eles. Peço a Deus, todos os dias, que tudo isso passe logo e que a tão sonhada normalidade volte a reinar, que Ele dê sabedoria aos cientistas e que logo essa vacina esteja disponível ao mundo inteiro. Minha vida como profissional Sou diretora de escola de Educação Infantil, coordeno 20 profissionais e preciso me manter forte para ser o apoio de pais, responsáveis e funcionários da escola. Neste período, o município optou por continuar mantendo o vínculo com as famílias. Criamos o blog da escola, grupos de whatsapp, em que os professores interagem com as crianças, sugerem atividades, acompanham os pais no processo de desenvolvimento, levando em consideração os direitos de aprendizagens da criança previsto pela BNCC2, entendendo o contexto atual e a realidade de cada criança, além de levar em conta as aprendizagens vividas pela criança no cotidiano articuladas ao saber sistematizado. Além disso, assumi o papel de organização dos cursos formativos no ambiente virtual, venho dialogando e orientando as professoras nesse processo de formação contínua, buscando contribuir na construção do conhecimento e desenvolvimento profissional. Diante disso, posso dizer que esse processo também tem contribuído para o 3meu desenvolvimento, aprendi a escutar, a entender as indagações, as situações e buscar junto com elas a melhor forma de resolver os dilemas enfrentados no decorrer dessa pandemia. Sempre me pego refletindo se estamos fazendo o correto. Como está sendo oferecida essa educação? E como mãe e profissional, penso que o mais importante nesse momento é pensar no bemestar dessa criança, de modo que algo que tem me preocupado muito é se está tendo alimentação para elas, pois, mesmo após o reconhecimento da Educação Infantil como primeira etapa da Educação básica pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LBD 9394/96)³ e as Diretrizes Curriculares para 2 BRASIL. Diretrizes e bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso: 14 Jun 2020. 3 Id. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de-educacao/base-nacional-comum-curricularbncc. Acesso: 14 Jun 2020. 291 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Educação Infantil4 firmarem isso, ainda temos a realidade assistencialista dentro da nossa escola. Por esse motivo, me preocupo com essas crianças, com os cuidados que elas estão tendo, pois nem todos os ambientes são favoráveis. Outro problema é a devolutiva, muitos pais sumiram, embora tentemos entrar em contato, eles simplesmente não querem saber, acham melhor as crianças perderem o ano do que colaborar com experiências que irão contribuir com o desenvolvimento dessa criança. Outra coisa que muito me preocupa e me tira o sono é pensar nesse retorno. Como organizar tudo isso? Como garantir qualidade de Educação e bem-estar em um contexto pandêmico? Como impedir abraços? Não quero viver isso... Simplesmente não sei como pensar em uma volta na Educação Infantil impedindo interação. Criança troca garrafinha, chupetas, chupa o dedo, brinquedos as cadeiras, como impedir tudo isso? Como garantir a saúde mental dos funcionários com essa volta? E os bebês? E os maternais, eles não usam máscara... Imagina esse bebê com esse funcionário, esse bebê precisa ser acolhido, como esse profissional vai trabalhar com esse bebê, com equipamentos de proteção individual? Como vai ficar o emocional dessas crianças bem pequenas? Isso me fez refletir e embora eu tente buscar respostas em várias lives, ainda não sei o que fazer e como direcionar tudo isso. Minha vida como cientista pesquisadora Sou mestranda em Educação pela Universidade de Uberaba, um sonho que estava distante e neste ano de 2020 começou a ganhar forma. Cursei, neste primeiro semestre, duas disciplinas eletivas e uma obrigatória. Fiz artigos, escrevi memórias de aprendizagens, mas confesso que estou lenta, não estou conseguindo produzir com todas essas inquietações, sento no computador para escrever e parece que as ideias somem. Estou ali assistindo a aula no GoogleMeet e ao mesmo tempo as crianças me chamam, brigam, preciso ficar de olho na aula delas. Não tem sido uma tarefa fácil. O bom desse ambiente é que as aulas ficam gravadas e aí posso assistir quando as crianças dormem. Minha orientadora também é flexível e tem me ajudado muito nesse sentido. Apesar de estar diante de todo esse contexto, procuro me atentar às aulas e estar em dia com as minhas produções. Tenho lido bastante sobre o meu objeto de pesquisa, tenho procurado sempre me inteirar dos assuntos atuais, buscando conversar com os meus colegas, trocando ideias, fazendo uso dessa tecnologia que tenho em mãos da melhor forma possível. Sempre que estou realizando alguma atividade na cozinha ou mesmo na casa, procuro lives que falam sobre meu objeto de estudo que é a Educação Infantil e vou ouvindo enquanto limpo a casa ou passo uma roupa. E posso garantir que tenho aprendido muito dessa maneira. Eu prometi para mim 4 BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 20/2009/DF. Brasília: Ministério da Educação, 9 dez 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09.pdf. Acesso: 14 jun 2020. 292 Maternidades Plurais mesma que quero esse título e vou correr atrás e persegui-lo. Nem passa pela minha cabeça em desistir, mesmo com essa situação adversa em que o mundo inteiro atravessa, quero aproveitar esse tempo para evoluir. Outra coisa que tenho feito é a leitura dos textos, montado a síntese e os mapas conceituais além de colocar na pasta por ordem, o que me ajuda a produzir memórias significativas sobre o assunto. Embora o mundo inteiro esteja vivenciando o mesmo contexto histórico do “Novo Corona Vírus” precisamos nos inovar e buscar da melhor forma possível vivenciar nossas escolhas. Vivenciar intensamente, mesmo que os conflitos na mente e o medo venha nos atordoar, mas temos que nos manter firmes para não desistirmos e sairmos transformados disso tudo. Não sou uma pessoa que tem habilidades com a tecnologia, mas essa pandemia me ensinou muita coisa. Nunca pensei em aprender tanto em tão pouco tempo, aprendi a fazer seminários online, lives e até reunião aberta. Tudo isso na raça. Porém, ainda estou em fase de experiência, mas essa busca pelo aprender, pela pesquisa tem me ensinado que todo ser humano é inacabado e que estamos sempre em construção e, como nos diz Freire (1979)5, com a liberdade o ser humano foi transformando a vida em existência e o suporte em mundo, sendo essa existência que nos faz autônomos, que nos faz assumir nossas escolhas, nossas responsabilidades. E eu escolhi tudo isso e preciso viver, mesmo que o imprevisto dessa pandemia tenha chegado no ano em que escolhi viver meu sonho. Nesse sentido, eu tenho liberdade para escolher entre ficar estática ou transformar contextos. Diante disso, eu optei a ser sujeita em meu processo em construção. “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Paulo Freire (1979, p.84) 6 Considerações finais Aliar a vida de mãe, de pesquisadora e profissional não têm sido fácil. Apesar de estar inserida em um contexto crítico, somos frutos de nossas escolhas e, pensando assim, eu tenho o casamento que escolhi ter, tive filhos por opção, ingressei em uma faculdade de Pedagogia, me especializei na área, prestei um concurso de provas e títulos e fui aprovada. Escolhi estar à frente de uma instituição como diretora, sonhei com o título de mestrado que ainda está em construção e escolho terminar. Mesmo em meio a tanta adversidade, eu quero contribuir da melhor forma possível para que o ambiente que eu trabalho ofereça às crianças uma educação de qualidade. A pesquisa me incentivou a não ser uma pessoa inacabada; que as teorias são hipóteses que precisam ser experimentadas e que o meu processo de busca e experimentação precisa de embasamento teórico e prático, o que depende de mim e das minhas escolhas. Isso me fez refletir como ser 5 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979. 6 Id. 1979, p. 84. 293 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pensante e atuante. O pesquisador vê a realidade e confronta. E isso faz parte de minha busca, contribuir para uma educação que realmente foque no aprendiz como protagonista, sendo essa pedagogia o meu objeto de pesquisa, que se torna incrível ao pensar em uma criança que tem o mundo a explorar, a descobrir... Além de ver a escola como confrontante dessa visão que a criança tem de mundo, articulando ideias e experiências, mostrando para ela que a aprendizagem não está dentro nem fora dela, mas em sua relação com o mundo. Pensar em como tenho me constituído como mãe, profissional e pesquisadora neste contexto histórico, me fez pensar em minhas responsabilidades, pensar que muitos dependem de mim. Não posso simplesmente pelo mundo estar em crise, fazer um distanciamento, me isolando do mundo. Em uma das minhas aulas em um ambiente virtual, meu professor Orlando Fernández Aquino, embasado na teoria de Vygotski, falou algo que quero levar para minha vida inteira como filosofia “Os grandes líderes crescem na crise”. Desse modo, não importa o que estamos enfrentando, o mundo precisa de líderes, pessoas capazes de transformarem o mundo. Com isso, precisamos formar na criança desde cedo pensamento de líder, pois o líder pensa, forma opinião, colabora para o bem coletivo, engaja no processo de mudança, já o seguidor se conforma com aquilo que a sociedade o impõe, ele não se reconhece como sujeito transformador, e Freire (1987, p 38)7 fala dessa importância de usar a teoria e aplicar na prática. Precisamos ter consciência da realidade que estamos enfrentando e compreender a necessidade de nos reconstruir como seres inacabados e nos tornamos sujeitos em nosso processo de evolução como líderes, assumindo o nosso papel na sociedade e nosso processo formativo. Ser pesquisador é algo incessante na busca pelo aprender, é crescer em meio a crise, a adversidade. É pensar em contribuir com o mundo, deixando rastros pela história. Quero que meus filhos um dia tenham orgulho da mãe que tiveram, quero que as futuras gerações pensem em como nós mulheres, em meio a pandemia, crescemos como profissionais e não ficamos estáticas, foi difícil? Sim! Mas, nos tornamos grandes líderes, fizemos dos nossos filhos seres pensantes, viramos professoras deles, trabalhando em parceria com a escola, nos reinventamos como profissionais e não deixamos de lado nosso objeto de pesquisa, mas colaboramos para que as futuras gerações vejam como nós mulheres fizemos da adversidade um salto para o processo de transformação. 7 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 Paz e Terra, 1979. 294 Maternidades Plurais 46 Maternagem Neuroatípica: desafios do isolamento social Débora Santos de Alencar1 Um espectro ronda minha família: o Transtorno do Espectro Autista. O TEA é um distúrbio neurológico, derivado de alterações na estrutura, organização e funcionamento do sistema nervoso, sobretudo do cérebro. Dessa maneira, os indivíduos diagnosticados com essa condição desenvolvem déficits na área comunicativa, social e comportamental 2. Apresentam comportamentos e interesses restritos e repetitivos, movimentos corporais — stims — ou falas sem função comunicativa convencional — a chamada ecolalia. Minha filha, Jade (2 anos e 11 meses), foi diagnosticada dentro do Transtorno do Espectro Autista dias antes de iniciar o isolamento social, decretado por causa da Covid-19. Receber o laudo, diferente do que geralmente se imagina, foi uma grande vitória para mim, para Jade e para toda família. O percurso até aqui foi longo, exaustivo, em alguns momentos, doloroso, mas, por outro lado, cheio de surpresas e conquistas. A gravidez foi uma surpresa: acabara de ter um aborto espontâneo e, no mês seguinte, já estava de volta ao Hospital Universitário da USP (HU/USP), fazendo testes e marcando o acompanhamento pré-natal. À época, cursava o 8° semestre do Bacharelado de História e o 2° semestre da Licenciatura na Universidade de São Paulo, temos a opção de dupla titulação, cursando a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e a Faculdade de Educação (FE). A notícia foi recebida com preocupação por todos. Eu estava na reta final da graduação, meu relacionamento, ainda que estável, era recente e meu companheiro estava desempregado, nada foi planejado. E ainda, tinha histórico de uso de medicamentos antidepressivos e estabilizadores de humor, apresentando um quadro de depressão profunda. Dessa forma, não era o cenário mais propício para se gestar, parir e maternar uma criança. 1 Pós-graduanda em Psicopedagogia e Educação Inclusiva com Ênfase em Tecnologias Assistivas (Universidade Anhembi-Morumbi). Bacharela e Licenciada em História (Universidade de São Paulo). Graduanda em Pedagogia (Universidade Anhembi-Morumbi). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6953772263694320 2 American Psychiatric Association. DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2013. 295 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ainda que a maternidade não seja e não deva ser vista de forma romantizada, alçando-a como único e sagrado objetivo da existência da mulher, na minha experiência, foi um evento transformador — e não é um exagero dizer que redentor. Fazendo acompanhamento pré-natal, psiquiátrico e psicoterapêutico, a gravidez avançou sem muitos percalços. Meu companheiro estava ao meu lado, minha família e amigas formavam uma rede de apoio coesa e eu estava muito feliz. Foi um momento de me debruçar sobre livros, canais e discussões sobre a fisiologia da mulher, preparação e parto natural, violência obstétrica, plano de parto, puerpério, amamentação, busca de doula para acompanhar o processo: um período de ressignificação da minha identidade, não unicamente, mas também como mulher-mãe. O parto não teve intercorrências, apesar de não ter conseguido o parto natural que tanto sonhei, meu parto foi induzido de forma respeitosa e humanizada. Pude vivenciar a experiência mais intensa da minha vida, não somente por ser um processo que envolve vida, morte e sexualidade, mas por ter entendido aquele momento como minha ressignificação enquanto indivíduo. De todas as coisas que realizei, sem dúvida eu enxergo meus partos (o da Jade em 2017 e, após catorze meses, em 2018, do Dante) como ápices da minha força, determinação e capacidade. A maternidade alterou a forma como me vejo, após os partos e após o autismo, me sinto empoderada. Ainda nos primeiros dias, na maternidade, o autismo já dava sinais sutis de estar ali, de compor quem minha Jade é. Ela era uma bebê hipoativa, não chorava quando necessitava de cuidados, não fazia questão de colo e contato, não conseguiu aprender o movimento de sucção. Não poder amamentar foi a primeira sensação de fracasso materno: amamentar é natural, é um ato de amor, como não poderia proporcionar isso à minha filha? Ela vai adoecer, ela não terá um desenvolvimento adequado. E por dez dias insisti na amamentação exclusiva. Aos dez dias de vida internamos nossa Jade, apresentando letargia, palidez e nível glicêmico baixo. Exames feitos, observação e tudo estava normal, era falta de alimentação. Como assim não percebi que ela não estava sugando? Como não vi a perda de peso do recém-nascido? É aqui que a culpa, sentimento que se entrelaça desde o dia que descobre que você está grávida, me atingiu de forma avassaladora. Não fui capaz de fazer o que qualquer mãe faz, a não ser as que decidiram por não amamentar. Era isso que via nas propagandas na UBS, nos grupos de maternagem, nas experiências de amigas que vivenciavam a mesma fase que eu. Esta situação, de medo e culpa, me levou a um quadro de depressão pós-parto. Nesta época tinha abandonado a psicoterapia, não conseguia me fazer entendida e o puerpério foi um período sombrio. Ainda que estivesse extremamente feliz pela existência da Jade, eu olhava as mamadeiras e as fórmulas como sinais do fracasso e as escondia quando recebia visitas. Eu torcia para Jade não chorar pedindo mamadeira e ser descoberta pelos parentes, que da noite para o dia tornam-se especialistas no desenvolvimento e nutrição infantil. Os mesmos que, com meu segundo filho, criticam por amamentar um bebê tão grande (que coisa feia, um seio de fora!). Não carrego mais a culpa por não a amamentar. Uma lição que o autismo me trouxe: nada será como você projetou, imaginou ou desejou. Não amamentei, tudo bem, então vou oferecer uma alimentação variada, rica, seguindo estritamente as orientações do pediatra. A Jade crescia, se alimentava bem. Mas, algo não estava acontecendo como deveria: os marcos do desenvolvimento não eram 296 Maternidades Plurais alcançados nos períodos esperados. Sustentar a cabeça, sentar, engatinhar e andar, todos foram tardios. A Jade amava observar e girar mãos e pezinhos, brincar de forma não usual com brinquedos, observando cada detalhe. Amava e sorria para estampas e cores chamativas. Quando olhava para meu rosto, parecia não olhar por inteiro, focava em partes e detalhes, olhos, nariz, piercing. Parei de ler, assistir ou conversar com outras mães sobre o que um bebê com X meses estava fazendo, não tinha vontade de sair em ambientes públicos. Como iria reagir a comentários dos especialistas em desenvolvimento infantil freestyle novamente? Queria afastar aquela mania de comparar, o sentimento de exigir que minha pequena alcançasse determinada habilidade. Nunca escondi o que acontecia para os mais próximos e os pediatras, que me orientaram a procurar especialistas e realizar exames. Nesta época, estava no 3° trimestre da gestação do Dante. A tomografia da Jade marcada exatamente para a DPP (data provável de parto) do irmão. Decidi, por saber que não seria capaz de suportar um parto, puerpério e o medo por complicações no exame, adiar o processo de investigação do caso da Jade. Veio o Dante, em um parto maravilhoso, natural, sem intervenção e mesmo sem médico na sala, somente meu companheiro, duas enfermeiras obstétricas e um bebê. A amamentação exclusiva aconteceu e, quase dois anos depois, ainda estamos firmes. Dois bebês, 14 meses de diferença, será trabalhoso, mas serão criados juntos, serão melhores amigos. A Jade não se interessa pelo irmão. Pelos adultos da família, ela esboça sentimentos, ri, brinca (ainda que de um jeito particular); pelo Dante, demonstra indiferença e às vezes irritação. As primeiras palavrinhas (mamãe e água) somem repentinamente. Com ajuda da fisioterapeuta e muita estimulação, conseguiu engatinhar e se colocar de pé. Mais consultas, mais anamneses, mais especialistas e exames: não há nada fisiológico, é um atraso do neurodesenvolvimento. Neste ponto e desde o início, o autismo já era uma hipótese que trabalhávamos. Há casos na família. Porém, têm aqueles dias que a criança interage bem, ri, age como qualquer criança e surge aquela esperança de não ser nada, de ser apenas o tempo da criança, de estar procurando pelo em ovo. Durante meses eu me dividia entre a certeza do autismo e o “talvez” e “espero que não”. O período entre a primeira consulta com neurologista infantil até o laudo que a definiu como pessoa autista foi de quase dois anos. Esse intervalo de indefinição foi especialmente difícil. A sensação de incompletude, de não ter qualquer certeza que pudesse abraçar fazia sentir que meu mundo havia se despedaçado e eu não tinha planos de como reconstruir, justamente por não saber com o que estava lidando. Andrew Solomon tem razão quando aponta para os desejos inconscientes dos pais em viver eternamente através dos filhos: Tendo previsto a marcha para frente dos nossos genes egoístas, muitos de nós não estamos preparados para filhos que apresentam necessidades desconhecidas (...). Contamos com a garantia de ver nos rostos de nossos filhos que não vamos morrer. Filhos cuja característica definidora aniquila a fantasia da 297 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) imortalidade são um insulto em particular: devemos amá-los por si mesmos, e não pelo melhor de nós mesmos neles, e isso é muito mais difícil de fazer3. Diante disso, foi em uma sessão rotineira na fisioterapia que pela primeira vez o autismo, a palavra temida e desejada de ser ouvida por mim, foi dita. Sem que eu estivesse preparada, porque não foi como eu imaginava que seria. Não foi pela boca de um sisudo atrás da mesa em um consultório, mas pela fisioterapeuta simpática que fazia os exercícios enquanto brincava e elogiava o cabelo cacheado da Jade. Ouvir um “Débora, você sabe que a Jade está no espectro, não é? Ela sem sombra de dúvidas é autista” sem que a situação toda que imaginei estivesse de pano de fundo, foi desestabilizador. Fiquei atônita e esperando chegar no carro para chorar. Mesmo tentando afastar sentimentos que me levavam à comparação da minha filha com outras crianças ou de projetar nela minha ideia de progresso em direção a uma perfeição (seja lá o que for isso) estava centrada no meu eu ou no que acho que sou. Minha filha seria uma menina e mulher mais inteligente, mais feminista, mais empoderada e mais segura que eu. Como seria diferente se ela receberia mais incentivos do que recebi? O autismo me ensinou — a contragosto, porque não queria admitir que era este tipo de mãe — que eu não tenho direito algum de projetar qualquer coisa em outro alguém. O luto pela perda da criança imaginada foi doloroso, mas como ouvi de minha irmã, é a mesma Jade que você pariu, ela não vai mudar em absolutamente nada. Agora que sabemos, poderemos ajudar melhor no que ela precisar. E assim foi, do luto passamos à luta. O laudo, de fato, demorou um ano depois do baque. Ainda que o diagnóstico precoce seja fundamental para o desenvolvimento da pessoa autista, ele ainda é um privilégio. Segundo um levantamento entre os membros do grupo de Facebook “Pergunte para um Autista”, Carol Souza, mulher autista, ativista da neurodiversidade e autora da página Autistando, explica que o valor gasto por autistas, para finalmente serem laudados, custa de R$1.000 a R$2.000, somando consultas e profissionais. A possibilidade de encontrar profissionais capacitados para lidar com o TEA é rara4, além de poucos profissionais, a demanda por atendimento é crescente. Dessa forma, conclui Carol, o diagnóstico no Brasil é privilégio. Um diagnóstico precoce é um privilégio ainda maior, ainda que seja um direito reconhecido pela Lei 12.764 de dezembro de 2012, conhecida como Lei Berenice Piana, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista5. Mesmo que eu me encaixe em condições socioeconômicas vulneráveis — baixa renda, moradora da periferia, SUS como único meio de assistência e proteção à saúde que disponho e trabalhadora sem carteira assinada — pelo nível de escolaridade, núcleo familiar estável e por ser entendida como “branca” na sociedade brasileira, minha filha conseguiu ter o direito dela atendido, ainda que com muita luta e custo. O vínculo com a Universidade de São Paulo permite que minha filha seja acompanhada por profissionais de referência, mesmo que não tenhamos conseguido em todas as especialidades que ela demanda (como Fonoaudiologia). Ainda 3 SOLOMON, Andrew. Longe da Árvore. São Paulo: Companhia das Letra, 2013. p.11 4 Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2869523089823189&id=100002965778449. Acesso: 9 jul 2020. 5 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso: 9 jul 2020. 298 Maternidades Plurais hoje, com laudo em mãos, aguardamos dar início ao acompanhamento multidisciplinar pelo CAPs Infantil (Centro de Apoio Psicossocial), além de ter passado por triagens em diversos serviços (públicos e em clínicas-escolas). Com isso, decidimos por investir em terapia fonoaudiológica particular, apesar de comprometer cerca de ¼ do orçamento familiar, enquanto estamos aguardando nas filas dos serviços públicos ou gratuitos, para não perder a fase da primeiríssima infância, período em que a criança tem uma capacidade de aprendizagem superior à qualquer outra fase. É neste período que a capacidade de criação de conexões neuronais e a neuroplasticidade estão no auge. 6 A certeza que tenho é que o autismo me convocou a travar uma luta constante, não contra ele, uma vez que é parte constitutiva de quem minha filha é, ainda que não seja a única coisa que a define. A luta é por políticas públicas que deem assistência para minha filha, para que receba acompanhamento multidisciplinar, que a escola seja de fato inclusiva, que seus direitos enquanto pessoa com deficiência sejam respeitados e que o capacitismo seja combatido com informação e ciência. A pandemia e o consequente isolamento social desestabilizaram a vida e a rotina de forma generalizada. Para pessoas autistas, a quebra de rotina pode ser extremamente dolorosa, pela característica de apego à normalidade e previsibilidade, que é comum ao espectro. Além disso, a impossibilidade de sair de casa e frequentar as terapias causaram um prejuízo no desenvolvimento e no bemestar de muitos autistas. Conversando com amigas mães de autistas e ouvindo dos próprios autistas em grupos que participo em redes sociais, tem sido um desafio ainda maior que para neurotípicos. Ainda que não tenha observado uma regressão no desenvolvimento da Jade, me questiono como ela estaria se a terapia não tivesse sido suspensa, se estivesse frequentando a escola, se pudesse andar pela rua, brincar na praça, usar transporte público, atividades que fazem parte da rotina, da socialização e inclusão da pessoa com autismo em sociedade. O isolamento social nos obrigou a nos “esconder” no espaço privado, ainda que seja o único método de se proteger e evitar a circulação do vírus, essa situação tem prejudicado, ou no mínimo, reduzido a crescente de avanços no desenvolvimento que a Jade estava apresentando nos últimos meses. Meu posicionamento e da família, como um todo, foi dizer abertamente a condição da Jade, sem eufemismos. Hoje entendo como um ato político sair na rua com ela, levá-la em festas ou eventos sociais, não reprimir ou tentar disfarçar os traços autísticos e mesmo rebater comentários que pretendem servir de conforto, mas estão recheados de capacitismo. Repetir a história de esconder filhos “defeituosos” no espaço doméstico ou em instituições, prática comum e incentivada pela medicina durante boa parte do século XX, como apontam Donvan e Zucker 7 em Outra Sintonia: A História do Autismo, é algo que não gostaria de fazer, embora, no caso do isolamento social, seja para proteção da criança e da coletividade. Não obstante, esse afastamento do espaço público levou a um aumento do nível de estresse, meu e das crianças. Sinto mais culpa e ansiedade do que sentia enquanto a rotina de trabalho e escola existiam. Hoje, preciso me dividir entre os cuidados com as crianças, tarefas 6 GAIATO, Mayra. SOS Autismo: Guia Completo para Entender o Transtorno do Espectro do Autismo. São Paulo: NVersos, 2018. 7 DONVAN, John; ZUCKER, Caren. Outra Sintonia: A História do Autismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 299 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) domésticas, vida acadêmica e produtividade no trabalho. Resta pouco tempo e, especialmente, energia para brincar e estimular as crianças, ainda mais tendo uma resposta social abaixo do padrão. Além do mais, a sensação de hipocrisia, de síndrome de impostora, tão comum entre mulheres, tornam-se um fardo doloroso de carregar, já que passo horas estudando, escrevendo e produzindo material sobre psicopedagogia, educação inclusiva e autismo enquanto duas crianças estão na frente da TV ou brincando sozinhas. A culpa por não ser a mãe ou a acadêmica que desejo ser se somam e se contrapõem, levando a uma sensação de esgotamento constante. Foi necessário aumentar doses do antidepressivo que tomo há anos. Continuar a amamentação e retomar a medicação para estabilização de humor (contra-indicada para lactantes) têm sido uma questão que me divide, de modo que o aparecimento de sinais de baixa imunidade são reflexos que se intensificaram com a pandemia, ainda que não sejam necessariamente causados por ela. Neste contexto, os momentos em que me afasto por algumas horas para escrever trazem um misto de alívio — já que é algo que me dá prazer, que me faz sentir algo mais do que mãe e dona de casa —, mas também traz enorme culpa pelo alívio de ficar só. Estimular uma criança no espectro em casa, em tempo integral, é um desafio por vezes desgastante. Requer um comprometimento, uma iniciativa em criar diálogos com alguém que não dará uma resposta social esperada. Esse “monólogo” por vezes é desalentador, uma vez que a reciprocidade é crucial para a criação de laços afetivos e, ainda que a fala não seja a única forma de comunicação, vivemos em uma sociedade em que a palavra, escrita ou falada, é condição básica para participarmos dela. Essa sensação de vazio, de estar “falando sozinha” acaba por desencorajar o estímulo. Muitas vezes acabo percebendo que fico muitas horas sem falar por não sentir que sou ouvida ou que serei respondida. Decepção e culpa se misturam: esses sentimentos não são novos e não são exclusivos meu, mas compartilho com várias mães de filhos não oralizados. Esta aparente indiferença ao filho autista foi, inclusive, entendida como causadora de autismo em criança. A teoria da “mãe geladeira”, proposta em 1960 por Leo Kanner — psiquiatra que cunhou o termo autismo em 1943 — serviu de explicação e de culpabilização materna pela condição do filho. O aparente distanciamento da mãe, que não interagia ou brincava com a criança, seria, nessa teoria, que fora refutada posteriormente, o fator causador do autismo. Uma consequência da falta de reciprocidade emocional, e sobretudo, da sobrecarga mental decorrente dos cuidados em tempo integral do(s) filho(s) com necessidades especiais e trabalho doméstico — atividades não remuneradas e invisibilizadas pelos valores patriarcais — e ainda a ausência ou ineficiência das políticas públicas de assistência à pessoa com deficiência mais uma vez recaem sobre a mãe. Apesar da Jade apresentar déficits na área de comunicação e socialização, ela não demonstra déficits cognitivos e vinha respondendo satisfatoriamente às intervenções terapêuticas. Sem acompanhamento profissional, minha mãe e eu temos nos desdobrado para oferecer estimulação para a Jade e o irmão. Brincadeiras sensoriais, pintura com tintas, giz e lápis de cor nos cadernos e nas paredes da casa, brincadeiras no quintal em contato com a terra têm sido formas de proporcionar situações de aprendizagem e exploração. As atividades propostas pela escola, através do aplicativo WhatsApp, as orientações dadas pela fonoaudióloga e os canais do Youtube dedicados à estimulação de crianças no espectro têm dado suporte para desenvolver atividades para reforçar os avanços (como o contato visual, que era praticamente inexistente e hoje é presente e sustentado) e melhorar habilidades sociais, por meio de brincadeiras por turnos e coletivas. Aproveitar as atividades da rotina diária também são 300 Maternidades Plurais oportunidades para que a criança aprenda partes do corpo, cores, alimentos, etc. Dar nomes às coisas, incentivar a comunicação verbal e autonomia da criança é a base da intervenção terapêutica multidisciplinar, e a continuidade desses estímulos pela família é de fundamental importância para o desenvolvimento da criança autista. Antes da pandemia atingir o Brasil e ser adotada a política de quarentena como forma de conter o contágio, a Jade vinha apresentando avanços na socialização e participação de atividades na escola, com os colegas. Em pouco mais de um ano na escola, a menina que não andava sozinha, circulava “sem rumo” pela sala de aula (ela tinha seus objetivos, apesar de serem desconhecidos por nós, que buscamos padrões de comportamento), agora conseguia prestar atenção em atividades, em especial as que envolviam tintas e cores. Já é capaz de compreender a rotina da hora do lanche e do sono e, algumas vezes, até interagia com colegas e monitores, colocando “chapéus” (baldes, cestos e qualquer outro brinquedo) nas cabeças e aplaudindo para demonstrar que gostava da brincadeira. A professora, compromissada com a inclusão e aprendizagem da Jade e de outras crianças autistas, tem sido uma parceira fundamental para nossa caminhada. A pandemia, no entanto, rompeu essa trajetória ascendente. E não foi somente a Jade que teve o desenvolvimento desacelerado, mas o irmão mais novo, Dante, perdeu a habilidade de falar algumas palavras já aprendidas, não tem o mesmo contato visual que tinha e apresenta comportamentos que não apresentava antes, como girar em torno de si e brincar de forma não usual com brinquedos, seja alinhando ou fazendo movimentos repetitivos (como girar rodas de carrinho e balançar o balanço do quintal por muito tempo), traços visivelmente autísticos. Diferente do alívio do diagnóstico da Jade, que o autismo se mostrava com clareza, é difícil conviver com a hipótese de mais um filho no espectro, que até então apresentava um desenvolvimento dentro dos padrões esperados. Ainda que seja sociável, busque contato físico (às vezes até demais!), Dante não tem a fala desenvolvida como era esperada para a idade, tem se comunicado como a irmã, com murmúrios. O menino que tanto buscava contato com a irmã, agora a ignora. Não sei exatamente se é por reciprocidade — já que ela o ignora também — ou se realmente reforça a hipótese do autismo. Essa reviravolta no comportamento e desenvolvimento do Dante coincide com o início do distanciamento social, assim, os sinais podem ser reflexo do pouco contato com os pares — já que frequentou apenas semanas na escola. Entretanto, é muito comum casos em que o autismo se torna visível apenas após o primeiro ano de vida e até o segundo ano, tendo os primeiros meses dentro de um padrão de desenvolvimento. Mais uma vez, minhas expectativas têm sido colocadas à prova, de um jeito mais enigmático que da primeira vez que me deparei com o autismo. Ainda que ou faça as mesmas coisas que uma criança típica de 3 anos faz, como falar, Jade é uma criança inteligente, carinhosa e curiosa. Apesar de não ter ouvido o esperado “mamãe te amo” por meio da fala, eu vejo esse amor através dos olhares que ela me lança antes de dormir e na linguagem gestual própria que inventamos para dizer “te amo” (afastar as mãos e batê-las, representando o tamanho do amor). Não é triste ter um filho autista, nem sou guerreira ou escolhida por Deus. Essa tentativa de confortar mães de filhos com necessidades especiais exime o Estado, a sociedade e, em muitos casos, os pais da responsabilidade de oferecer apoio e assistência. O abandono, culpa e medo extremo pelo futuro do filho com deficiência doem muito mais em uma mãe atípica. Dói mais ainda quando se 301 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) somam questões socioeconômicas, raciais e em pessoas LGBTQI+. Eu sou mãe de uma criança autista (ou talvez duas) plenamente feliz e capaz, que tem limitações e dificuldades, mas que carrega potência. O que precisamos é de apoio, de políticas públicas e respeito. Prefiro olhar o autismo como parte da grande diversidade humana, prefiro abraçá-lo como parte da Jade, mas sem que seja o único definidor de quem ela é e de onde vai chegar. Prefiro ouvir Temple Grandin, mulher autista e cientista, quando diz “em vez de pensar só em acomodar as deficiências do filho, podiam pensar em seus interesses, suas habilidades e pontos fortes. Para mim, o autismo é secundário. Minha primeira identidade é especialista em gado — professora, consultora, cientista.”8 8 GRANDIN, Temple. O Cérebro Autista: Pensando Através do Espectro. Rio de Janeiro: Record, 2018. p.188. 302 Maternidades Plurais 47 Mulher, maternidade e ciência: uma breve análise dos tempos atuais Denise Paula do Nascimento1 Venho pensando muito nesses últimos dias sobre como a categoria mãe nos atravessa nas demandas da vida. Como se o fato de nos tornarmos mães, trouxesse com ele várias questões imbricadas e por diversas vezes questionáveis. Em tempos de pandemia e consequentemente a necessidade do isolamento social, é nítido como as nossas vulnerabilidades enquanto mulher e suas categorias se mostram mais escancaradas na sociedade. A pandemia revela fragilidades diversas, e quando trazemos a vida das mulheres, enquanto trabalhadoras e mães não haveria de ser diferente. Estudo apresentado pela Casa Oswaldo Cruz2, mostrou que embora no Brasil, as mulheres dominem metade dos campos científicos, o que vemos através dos sistemas hegemônicos de informações, é que os homens possuem mais visibilidade nas grandes mídias. E em outra pesquisa apresentada pela USP3 mostra que as categorias profissionais reforçam os estereótipos de gênero, segregando a mulher de diversas ciências ditas de homens, e associando as mulheres nas categorias de cuidadora. Enquanto tento construir um texto, um pensamento, uma análise, sou interrompida diversas vezes pelas tarefas do dia a dia. Faltam horas no relógio para dar conta de tantas tarefas e afazeres, e esse é sem dúvida, um fator adoecedor e exaustivo para mim e para todas as mulheres mães. Não é atoa que muitas mulheres não conseguem dar continuidade na vida acadêmica após a maternidade, e as que conseguem, em meio ao caos dessa rotina, geralmente apresentam uma produtividade menor que as mulheres não mães e obviamente em relação aos homens. Mestranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública – Fiocruz. Lattes: tes.cnpq.br/8953544641628944 1 http://lat- 2 Casa Oswaldo Cruz, 2020 - Mulheres são metade dos cientistas no Brasil, mas TV ainda retrata a profissão como masculina, Por Haendel Gomes. 3 Jornal da USP, 2020 - Preconceito e diferenças salariais marcam o cotidiano das mulheres cientistas, Por Simone Lemos. 303 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Quando eu optei pela maternidade, pensei em desistir inúmeras vezes de levar a frente meu processo acadêmico. Mas, ser mulher é também se acostumar que a vida é sempre cheia desses obstáculos. E lá na teimosia misturada com urgências, eu seguia mais um pouco. Trabalhando muito e ganhando menos, estudando a noite, voltando em transporte público lotado tentando desviar dos assédios e das violências rotineiras que vira e mexe se fazem presente nas nossas vidas. E sabe, valia a pena chegar e ver aquele sorriso banguelo e poder sentir aquele cheirinho de leite misturado com amor. E de uma forma bem maluca, esse amor transforma as nossas dores e nos impulsiona para frente, com mais vontade ainda de brigar por um espaço nesse mundo tão desigual. Eu tenho refletido muito sobre essas nossas possibilidades de viver e de construir, dentro de um mundo que é múltiplo. E dentro desse horizonte, não posso deixar de questionar como as relações de gênero atravessam as nossas questões no âmbito individual e também no coletivo. Uma vez que, enquanto eu trabalho também existem demandas diversas que deveriam ser partilhadas, como a educação e o cuidado dos filhos, por exemplo. A vida materna é composta de aflições e muita solidão, e quem disser o contrário está mentindo. Não existe romance. O que existe são mulheres envoltas entre a dor e a delícia desse lugar que chamamos de maternidade. E nesse mundo de intensidades, loucuras e sorrisos, buscamos avançar na caminhada, na construção de novos saberes e novas possibilidades para habitar este lugar que chamamos de mundo. E tudo isso passa a ter novo sentindo depois que nos tornamos mães. E ele se constrói entre uma escrita e uma lágrima escondida dentro do banheiro. Entre a leitura de um livro e grito de ‘manhê já acabei!’. Entre uma reunião de trabalho e uma aula remota do seu filho de 9 anos. Todavia temos visto mulheres altamente sobrecarregadas, com altos níveis de estresse, tendo de concorrer na produção científica com homens, que na maior parte do tempo se isentam das suas obrigações colaborativas nas rotinas diárias. Dessa forma, pensando em todas as formas em que somos atravessadas na vida, penso ser interessante olharmos nossa condição como ser social, amparada sob três categorias fundamentais para se pensar a mulher no mundo: a) a mulher mãe, b) a mulher trabalhadora e c) a mulher enquanto gênero. Como cita Silvia Frederic em O Ponto Zero da Revolução: ‘No passado, só esperavam de nós que cuidássemos de crianças. Agora, esperam que tenhamos um trabalho assalariado, que continuemos a limpar a casa e a ter crianças e que, ao final de uma jornada dupla de trabalho, estejamos prontas para pular na cama e sermos sexualmente atraentes’. (SILVIA FREDERICI, p. 58) 4 Na maternidade, essa categoria cheia de nuances, que nos trás sentimentos diversos, somos socializadas diariamente, desde muito cedo, a interpretar esse momento na vida da mulher como algo que devemos almejar, juntamente com o lar e o matrimônio. E romper com essa ideia de que somos FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução – trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. 4 304 Maternidades Plurais mais que um corpo reprodutivo nem sempre é tarefa fácil. Leva tempo para entendermos que a maternidade pode e deve ser uma escolha da mulher, e isso se dá no processo da nossa própria autonomia. Todavia existe contradição em toda essa sociabilização feminina acerca da própria maternidade. Pois essa autonomia tem classe e cor padrão. Não precisamos ir muito longe, para vermos mulheres negras perdendo seus filhos e tendo seus corpos objetificados como fábricas da produção capitalista. E assim, enquanto somos exploradas com nosso trabalho diário que por vezes não é remunerado, temos também nossos corpos violentados diariamente parar servir as demandas de uma sociedade capitalista e patriarcal. E como cita Federici (2019, p. 52) ‘o capital ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos’ e acrescento ainda, quando engravidamos e parimos. E nesse processo vemo-nos trabalhadoras desde muito cedo, antes mesmo de entendermos o significado dessa categoria. Somos nós que aprendemos a cuidar ainda crianças da casa, da roupa, da comida e do cuidado do outro. Somos tolhidas e ensinadas a nos adequarmos e a nos contentarmos, enquanto violentam nossos corpos, nosso tempo, nossa sexualidade e nossas decisões. Sair minimamente dessa estrutura, para muita de nós, ainda é algo muito distante. Mas se existe um despertar bonito, é quando temos novas chances de olhar e caminhar, de poder construir mutualmente como pessoas diversas, pensantes, entendendo que podemos ir mais além deste lugar que tentam nos colocar dentro da sociedade. Como diz Lorde, as nossas diferenças são base de polaridades necessárias, onde a nossa criatividade pode faiscar como uma dialética. E ainda que: “a interdependência entre mulheres é o caminho para uma liberdade que permita ao Eu que seja, não para que seja usado, mas para que seja criativo. Essa é a diferença entre o ser passivo e o ativo”. (AUDRE LORDE, p. 1)5 E nesse sentido, eu venho aprendendo enquanto mulher trabalhadora, que a nossa luta é na rua, no fazer e no pensar coletivamente. Donna Haraway (2004)6 em análise sobre o tema gênero e suas interpretações, nos dirá que o “conceito de gênero visa contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas de luta (...) buscando explicar e transformar os sistemas históricos de diferença sexual, onde ‘homens’ e ‘mulheres’ são socialmente constituídos e posicionados em relações de hierarquia e antagonismo”. E nós, como mulheres, dentro de toda a multiplicidade que essa categoria de gênero representa, sabemos bem o que nossas vitórias dizem dentro dessa luta. Vitórias que significam muito para nós, para as que vieram antes de nós, para aquelas que não tiveram as mesmas oportunidades e para as mulheres que ainda virão. LORDE, Audre. As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande – texto extraído de uma conferência em 1979. 5 6 HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. cadernos pagu (22) 2004: pp.201-246. 305 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) E assim, entre as alegrias, dissabores e conquistas, a vida das mulheres vem mudando, através de movimentos de avanços diários, mas também de conflitos, violências, dores e apagamentos das histórias de várias mulheres. Nosso fazer ciência, enquanto mulheres mães têm simbolismo. Não só na nossa construção social e profissional, mas também na vida dos nossos filhos e filhas que ficarão com exemplos e legados de mulheres que fazem história, todos os dias. E nós somos os espelhos mais reais desses pequenos futuros cientistas. 306 Maternidades Plurais 48 Confinada Mente Dirce Mello1 Vinte e três anos não foram vinte e três meses, portanto, era natural estar apreensiva ao voltar a João Pessoa para enfim zerar meu vínculo patrimonial com a cidade. Venderia o pequeno apartamento e, doravante, só a mordomia da casa das amigas! Estas, por sinal, se tinham em alta conta: confessaram que, assim que voltei para o Rio, apostaram que em pouco tempo eu estaria de volta. Amigas pretensiosas servem para muitas coisas, inclusive para levantar nosso ego. Mas, para não embaçar a bola de cristal delas, nunca falei, porém sabia que jamais voltaria para ficar. Adorava o tempo em que dava aula na graduação e na pós; a sala de aula, minha realização, meu palco mágico; a orientação dos estágios e das monografias, a coordenação do núcleo de pesquisas sobre a subjetividade e participar do setor de extensão junto aos movimentos sociais. Mas, gostava, sobretudo, de andar por aquele campus universitário especial, com um resquício de Mata Atlântica dentro dele — um pedaço da chamada Mata do Buraquinho. Em 80, quando cheguei, morava pertinho, atravessava a mata a pé e chegava ao campus. Hoje isso parece história da carochinha... Também sabia que não voltaria à vida acadêmica nem lá, nem em lugar algum. Fiz um estresse mental na elaboração da tese, do qual não me recuperei. Sabe quando você faz um esforço supremo, acima de suas reais possibilidades de realizar alguma coisa? E olha que não tive problema com orientadora, com o prazo, com tema e método de pesquisa... Mas, fui parar no cardiologista, o coração acelerou. Ao fazer essa retrospectiva, percebo que tinha vivido o meu primeiro confinamento. Sim, confinada para fins de tese. Fora de casa, longe dos filhos, do marido, do quintal cheio de bichos e plantas de estimação. Separação total, de corpos, de contatos — não podia nem pensar direito neles “para não perder o foco”. Minha família, minha perdição, que louco! Naquele tempo vivia-se isso assim mesmo, já éramos quarentões e com a vida familiar toda montada, totalmente diferente dos jovens mestrandos e doutorandos de hoje. Feliz de quem tinha um espaço alternativo para se concentrar, estudar, escrever, dormir e acordar respirando tese, comer de 1 Profª Aposentada do Depto. Serviço Social/Ufpb. Mestre em Educação Popular. Doutora em Políticas Públicas e Movimentos Sociais. Terapeuta Transpessoal e Escritora. 307 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pensão para não ter que perder tempo na cozinha, tudo isso era o sonho do doutorando casado. O lugar que fiquei era distante, não tinha telefone nem TV, e celular nem existia. No quesito equipamentos eletrônicos, o confinamento atual é fichinha, mas só nisso, porque tese pode dar estresse ou o que for, porém não contamina! Desse modo, sobrevivi ao meu primeiro confinamento com um comprimidinho sublingual, que controlou a taquicardia e, de quebra, uma sensação esquisita que, na falta de um diagnóstico esclarecedor, chamei de distúrbio neurovegetativo. Heranças familiares dizem que as mulheres da família são chegadas a ter isso, e a minha sorte foi que consegui descolar dessa. Em suma, foi um confinamento desgastante em que quase queimei a “mufa”. Mas, como não há mal que não traga um bem, acabei me reinventando... e me revelando como escritora! É que, paralelamente à escrita da tese, escrevi um livro sobre tudo o que ia me acontecendo — e juro que não foi pouca coisa! A vida afetiva dançou. Me separei, fui fazer o “sanduíche” no exterior, levei dois filhos (por que não conseguimos abdicar da maternidade por um tempo?), me apaixonei lá, outro país, outra língua, outro sistema de vida e interação, e na minha eterna militância, virei vice-presidente da associação dos pesquisadores brasileiros na Catalunha, ufa! Hoje olho perplexa para tudo o que fiz, sem saber como dei conta! Terminei a tese, a defesa foi um grande momento na minha vida, formei uma banca de gente bacana que curtiu trocar conhecimento, e claro, falei dos “Escritos de tese e outras memórias”, mas ninguém deu a mínima bola. O importante ali era eu publicar a tese conforme recomendavam, e ninguém pensava em nada a mais, só eu. Não publiquei nem a tese, nem os Escritos. Nunca soube o que me deu. Tive a oportunidade de publicá-la pela Cortez, mas não preparei o material para entrega. Imputei tudo ao estresse. Quanto aos Escritos, um dia dei para a orientadora ler e pedi que prefaciasse. Ela fez um lindo prefácio, o livro ficou prontinho para impressão e está guardado há anos, virou uma peça jurássica. Meu consolo é que sinto que não morrerei sem publicá-lo. Ah, às vezes, como nos perdemos de nós! Por que será que retenho o fruto tão saboreado do meu voluntário e auspicioso primeiro confinamento? Será que é para nunca esquecê-lo? E revivê-lo assim, quase que traquinamente, como agora? Ao me aposentar e voltar a viver no Rio, foi como colocar um ponto final no que ainda podia haver de sequelas deste confinamento, achava eu. Tudo iria se normalizar! Tudo seria posto em dia! Ah, que beleza a aposentadoria! Novos ares, novos amigos, longe de teses, artigos, pareceres e reuniões, outro mundo, um mundo de novas possibilidades, enfim! Na verdade, nunca substituí as amizades. Aquelas danadas se achavam, mas, por um lado, tinham razão. Também não vi mais daquele nascer do sol de João Pessoa, onde ele aparece primeiro e chega risonho, com cara de bom dia! Deve ser porque vem da África, de Cabo Verde, terra do meu avô. Um dia, atravessei o Atlântico e fui lá buscar o calor e a luz de um sol que não esquecia. Era 308 Maternidades Plurais uma necessidade de me aproximar das origens, me re-conhecer no convívio com a fonte da minha negritude escondida e feminilidade. Trouxe a mala cheia de tecidos. Retalhos que me falam e encantam tanto que não tenho coragem de cortar e usar. São como uma fonte inesgotável de inspiração. Volta e meia abro a gaveta, desdobroos cuidadosamente e os penduro pela casa. Passo horas observando seus desenhos ultracoloridos, cada detalhe me contando mais e mais de uma vida que mal tive tempo de conhecer, mas sinto entranhada em mim. A maior felicidade foi viajar em uma Kombi entre mulheres, crianças, bacias, aves, frutas, mantimentos... sem ser reconhecida como turista, sem ser uma estranha! A vida foi se tecendo e entretecendo no Rio e um dia iniciei a mais longa das viagens, que foi ao meu centro interior. Queria conhecer mais do que havia dentro de mim. Durante onze anos, fui aprendiz de mim, através de muito estudo e muita experiência vivencial. Foi um mergulho autodedicado e autohonesto, em que descobri que nunca vou parar de ser uma pesquisadora, travestida do que for. Passei a ser uma buscadora de mim. A experiência foi um divisor de águas no meu ser. Fazia parte dela um confinamento a cada três meses, em módulos de imersão. De novo preparava a mala para passar a semana fora de casa, longe da família, dos compromissos, de tudo e todos. Desta feita, confinada para fins de autoconhecimento transformador. Era com tempo marcado, mas era confinamento, ainda que necessário e voluntário. E delongado, por onze anos, que o coronavírus não me escute! Acho que tenho um quê para confinamentos, talvez minha mente tenha se tornado apta para confinamentos. Meus hábitos de leitura e pesquisa acadêmica foram tranquilamente substituídos pelos estudos nesta longa formação terapêutica, que tinha um material teórico-metodológico próprio e de uma racionalidade que me fascinava. Foi a sopa no mel, me dediquei com afinco ao mergulho na autoanálise e me certifiquei como terapeuta individual e grupal da abordagem. Adorei trabalhar em consultório, parti para novos cursos de formação e incluía o que assimilava em uma forma característica de atender. O boca-a-boca dos clientes funcionou e, em alguns anos, eu atendia de manhã, de tarde e de noite. Um dia, percebi que aquele ritmo frenético mais parecia o de alguém que ainda ia se aposentar e, aos poucos, fui parando. No fundo, a disponibilidade, a escuta, a empatia, foram a nova forma de re-viver a universidade que ainda havia dentro de mim. Carreiras profissionais se emendam e completam, penso eu. A prática acadêmica fincada no tripé ensino/pesquisa/extensão e a base teórica dos autores da Educação Popular, da Subjetividade e da História Oral de Vida me abriram caminho para ser uma boa ouvinte e cuidadora. Sempre tive a sensação de que, de forma incipiente, já fazia isso na universidade. Ouso dizer que, em alguns casos extremos, com pretensões terapêuticas e tudo. Durante a vida de terapeuta, ainda moravam comigo dois dos meus três filhos, tínhamos faxineira uma vez por semana, e como eles trabalhavam e estudavam, a supermãe então tinha uma jornada dupla. Era muito e, de novo, ultrapassei meus limites. Fechei o consultório, me mudei para um local maior e passei um ano atendendo em casa, até resolver a situação com cada cliente. Mas, foi tarde, 309 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) estresses ficam entocados, se acumulam em algum lugar... e me vi desejando de corpo e alma mais um confinamento! Virei, mexi, reformei e me mudei para o extremo oeste da cidade, para um velho sobrado da família, fechado há anos — o Solar da Pedra, onde vivo até hoje, de frente para a restinga da Marambaia. Novo confinamento para fins existenciais. Silêncio total, só o Sudoeste batendo forte, e garças, maçaricos, cém-réis, mergulhões, gaivotas, marrecos-irerê... Sozinha e tendo o mar como vizinho, em um ano pari meu primeiro romance ficcional! Sigo escrevedora, peguei gosto de brincar de arrumar palavras, adoro usar meu carioquês fluente — mania de gente nascida sob as luzes do século passado, cheio de palavras inovadoras e espirituosas. Vivo no modo carioca da roça, de eterna paixão por quintais. Os filhos já vivem sós e meu confinamento é dedicado a mim, meus rituais cuidadosos de mim, meus escritos e publicações. Senhora de mim, em tempo bom, tempo ruim... Reencontrei o amor e, este quarto confinamento, que ora vivemos todos no planeta, me pegou, literalmente, no quarto, ainda em lua de mel. Esse confinamento, não foi da minha autoria. Neste, nada de teses, nem escutas, nem jogos de palavras. Não o desejei, nem necessitei, pelo menos conscientemente. Era inimaginável. Entrou descarada e enigmaticamente portas adentro, desconhecendo o passado, deslocando o futuro e confiscando o presente. Aparentemente, confina a mente. Entretanto, aos poucos, em cada dor, em cada grito de toda a gente, ele denota inclinação para revoluções por dentro, nos cernes, nos confins das mentes. Denota afastamentos para reencontros. Isolamentos para inclusões. Proteções para distensões. Meu novo e atual confinamento, suspeito, é para fins de agenciamentos. Os anteriores, todos dentro da minha previsibilidade científica, não me prepararam para este. Não, decididamente, este não foi da minha autoria, querida mente! Ainda não sei se teremos o próximo. Intuo que, disparadamente, será o melhor de todos. 310 Maternidades Plurais 49 Mulher, mãe e cientista: a busca por aceitação, respeito e reconhecimento continua mesmo em tempos de pandemia Djenaine De Souza1 Apresentação Eu sou a professora, doutora Djenaine De Souza, pesquisadora/cientista, mulher e mãe. Considero todos os termos em itálico como a descrição mais apropriada de tudo o que sou, faço e represento para meus alunos, orientandos, colegas na universidade, amigos, familiares e principalmente para meus filhos. Adoro todos esses termos, ou títulos, e de maneira nenhuma os utilizo com arrogância, prepotência ou vitimismo. Ser professora é algo que me proporciona imenso prazer, ser doutora me provoca um grande orgulho em função da minha trajetória de vida, ser pesquisadora/cientista é uma realização pessoal e um desafio diário que seria amenizado se existisse maior aceitação e respeito por parte da sociedade e ser mulher e mãe é diariamente laborioso e extasiante. Em todas as etapas da vida, minha trajetória pessoal e profissional se confunde, assim como se enredam as trajetórias da maioria das outras pessoas, mulheres ou não, cientistas ou não, mães ou não. Entretanto, desde a infância, passando pela escolha profissional, a formação acadêmica, as atividades acadêmicas e científicas e a maternidade, a incessante busca por aceitação, respeito e reconhecimento estão constantemente presentes em minha vida. Ser mulher/mãe/pesquisadora/cientista sempre é desafiador, principalmente considerando-se a área das exatas, dominada por homens, mas, em tempos de pandemia, pude observar a existência de um oceano de diferenças cotidianas entre as 1 Atualmente é Professora Associado I do Instituto de Química da Universidade Federal de Uberlândia, com atuação no Campus de Patos de Minas onde é coordenadora do Laboratório de Eletroanalítica Aplicada a Biotecnologia e Engenharia de Alimentos (LEABE) e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Alimentos. É membro da Rede Multidisciplinar de Pesquisa, Ciência e Tecnologia (RMP-CT) sediada no Campus de Patos de Minas, atuando como pesquisadora e membro de comitê gestor. Também é membro da Rede Mineira de Química. Possui graduação em Química pela Universidade Federal de Goiás (1996), mestrado e doutorado em Ciências, área de concentração em Química (Química Analítica) pelo Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (2000 e 2004), ambos desenvolvidos no Grupo de Materiais Eletroquímicos e Métodos Eletroanalíticos (GMEME). Pós-doutorado em Química (Química Analítica) também no Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (2004-2007), como bolsista FAPESP. De 06/2007 a 06/2009 foi pesquisadora e professora voluntária do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos. De 01/2010 a 02/2011 foi pesquisadora do Grupo de Corrosão e Eletroquímica (GELCOR), do Departamento de Química Analítica e Físico-Química da Universidade Federal do Ceará, com bolsa de Desenvolvimento Científico e Regional (DCR). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2330157389721384 311 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) mulheres/mães e homens no desenvolvimento de suas atividades. Desse modo, este texto foi escrito para apresentar as impressões pessoais de uma mulher/mãe/professora/pesquisadora/cientista que enfrenta as dificuldades e as incertezas no desenvolvimento de suas atividades em tempos de pandemia. Escolha profissional e carreira acadêmica Nasci no ano de 1973, em uma família tradicional, em que o pai era o provedor e a mãe a responsável pelos cuidados domésticos e educação dos filhos, criando-nos com disciplina rígida e estreita relação de afeto. Também acreditavam que se nos proporcionassem uma boa formação profissionalizante, estariam preparando-nos para uma vida melhor, a qual incluía o ingresso no mercado de trabalho, independência financeira, casamento estável e filhos. Para mim, a filha do meio, eles acreditavam que me tornar professora primária seria o mais adequado, pois, assim, alcançaria autonomia financeira, mas também me manteriam na função social da mulher: a maternidade e as atividades domésticas. Entretanto, a trajetória inicialmente idealizada por eles sofreu intensas alterações no decorrer destes 47 anos. Desde a educação escolar, eu tinha o desejo de fazer um curso superior, contribuindo com a sociedade através do desempenho do meu trabalho, que também me proporcionaria independência financeira e a autonomia emocional. Apesar de todas as dificuldades sociais e financeiras, filha de lavradores que se mudaram para a capital em busca de melhor qualidade de vida, meus pais sempre nos estimularam à leitura, e a maior parte da instrução e educação (ciências, cultura geral, educação sexual, religião, carreiras profissionais e acadêmicas) vieram por meio dos livros e revistas. Diante disso, com a leitura frequente de duas revistas, trazidas pelo meu pai da grande indústria onde trabalhava, “Química e Derivados” e “Plástico Moderno”, ambas ligadas diretamente à indústria, foi que descobri a química como uma possibilidade profissional. As várias especialidades dentro da química e a possibilidade de empregos em diversos tipos de indústrias me despertaram o interesse por essa área. Aprendi que a química estava presente em quase todos os ramos de atividade e comecei a acreditar que trabalhar no desenvolvimento de novos tipos de materiais, na gestão e no controle de qualidade de diversos produtos seria algo promissor para o futuro, poderia ser minha contribuição à sociedade. Aprovada no vestibular de 1993, iniciei o curso de Química/Bacharelado, na Universidade Federal de Goiás, onde sentia-me orgulhosa por fazer parte daquele universo, mas nem sequer poderia imaginar todas as dificuldades que viriam. A misoginia disfarçada era uma constante nos corredores da universidade, principalmente em cursos da área de exatas, e fazer disciplinas de cálculo e física com alunos das engenharias era um desafio à sanidade e equilíbrio emocional, pois frequentemente ouvia comentários sobre a incapacidade de mulheres aprenderem aquelas matérias, ou que químicos eram piores alunos que os engenheiros. Com grade curricular fatigante, para quem teve formação básica fragilizada pela baixa qualidade no ensino público, as dificuldades com o curso se intensificavam, mas permaneci participativa em todas as atividades da universidade. Fiz vários cursos extracurriculares em diferentes áreas, participei de eventos culturais e científicos, fiz estágios extracurriculares na área de química, me envolvi em projetos de extensão e de pesquisa, e acima de tudo me enamorei pelas pesquisas na área de química analítica. Por isto, com 312 Maternidades Plurais pouco tempo, veio o convite para trabalhar em um projeto envolvendo o desenvolvimento de procedimentos para extração de pesticidas organoclorados em amostras de leite materno. Era um projeto que envolveria várias etapas, desde o estudo das áreas agrícolas onde esses pesticidas tivessem sido utilizados, busca por mulheres em período de lactação, coleta das amostras, preparo e finalmente a quantificação... Pesticidas... Meu primeiro contato com uma série de compostos químicos que fazem parte da minha vida profissional/científica até os dias atuais. Naquele período, além do aprendizado com a rotina básica no laboratório de pesquisa e a percepção do quanto era difícil desenvolver pesquisas científicas em uma universidade pública, também pude acompanhar treinamentos técnicos e conhecer as práticas laboratoriais envolvendo técnicas analíticas empregadas em indústrias químicas e centros de pesquisa. Também foi neste período que reconheci situações de preconceitos e desprezo pela capacidade científica e técnica de mulheres químicas, já que o preconceito com ciências básicas (química, física e matemática) sempre estive presente no meio acadêmico. Foi assim, em meio a dificuldades, frustrações acadêmicas, críticas e expectativas que fiz a escolha por seguir na carreira acadêmica/científica, orientada e estimulada por uma mulher/mãe/professora/cientista incrível (Carolina Maria Goetz), que sempre acompanhou as minhas atividades acadêmicas, me estimulando e mostrando alternativas profissionais. Então, em agosto de 1997, me tornei pós-graduanda do Instituto de Química de São Carlos — Universidade de São Paulo, na área de Ciências — Química Analítica. Na pós-graduação, vivenciei muitas situações de misoginia na ciência, por inúmeras vezes tive minha capacidade científica questionada pelo simples fato de ser mulher... e qual mulher na ciência não passou por isto? Não deveria acontecer, mas sabemos que acontece frequentemente. Nunca, em nenhum momento de minha formação acadêmica, deixei comentários descabidos, preconceituosos e desnecessários interferirem no desempenho de minhas atividades. Entretanto, no meio do mestrado, me envolvi com um homem/professor, de outra unidade acadêmica, mas mesma instituição. Sua área de pesquisa não tinha nenhuma relação com minha área da pós-graduação, e nos conhecemos fora dos portões da universidade. Ele era um homem inteligente e professor brilhante, com carreira estável, eu era apenas uma mestranda sem perspectivas. O relacionamento foi se estreitando à medida que o mestrado foi se aproximando da finalização, houve a aprovação no doutorado e submissão de bolsa de doutorado à Fundação de Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), uma das melhores fundações de auxílio à pesquisa do país. Meu desempenho acadêmico foi aperfeiçoado, pois a maturidade científica foi sendo construída, naturalmente. Assim, à medida que o tempo passava, os projetos científicos e acadêmicos eram ampliados, havia a participação em eventos nacionais e internacionais além da atuação em cursos de formação e capacitação. No entanto, por sucessivas vezes tive minha capacidade científica questionada, por meu orientador, colegas e até mesmo por familiares. Muitas pessoas acreditavam e mencionavam minha capacidade científica e intelectual diretamente relacionado ao casamento, como se tudo o que eu desenvolvesse englobasse ideias e atitudes alicerçadas por meu esposo, de modo que esta foi a minha maior frustração como mulher e pesquisadora. 313 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) É urgente e necessário, portanto, que as intelectualidades, dentro e fora da universidade, sejam transformadas, pois é simplesmente inconcebível que capacidade técnica, científica ou cultural sejam diretamente relacionadas ao sexo (aspecto biológico da identidade sexual), orientação sexual (relacionado à atração sexual e afetiva por outras pessoas) ou gênero (conduta sexual). Não é a identidade de gênero que determina a capacidade técnica, nem mesmo a sapiência, mas sim a dedicação e o esforço empreendidos para acumular, praticar e difundir o conhecimento, em qualquer que seja a área, técnica, acadêmica, científica, pessoal ou profissional. Consolidação da carreira acadêmica No Brasil, a consolidação da carreira científica geralmente ocorre após a aprovação e nomeação em concurso público, seja em instituições de ensino superior, institutos federais ou instituições de pesquisa científica. Não há cargos disponíveis para todos os doutores, e, quando surgem vagas, a concorrência é, algumas vezes, traiçoeira e equivocada, pois frequentemente a identidade de gênero surge, como furtivo, crítico e impactante critério de seleção. O machismo e a misoginia disfarçados, sempre presente nas universidades, precisam ser exclusos e preteridos em bancas de concursos para cargos docentes ou técnicos. Neste contexto, vivi uma experiência nefasta em um concurso público, pois um dos membros da comissão julgadora fez questionamentos acerca da possibilidade de eu trabalhar em uma instituição de ensino superior e manter um casamento com um professor, supostamente, com melhor capacidade científica e acadêmica do que eu. Simplesmente por ser casada com um docente, com carreira estável, com casa própria e condição financeira razoável, fui questionada acerca do que faria com minha casa e meu casamento, caso fosse aprovada no concurso. Sei que essa situação não foi exclusiva, mas que está constantemente presente em muitas comissões e bancas de concursos públicos, e esta prática precisa ser rejeitada pelas candidatas e vedada aos membros participantes. É fundamental que o preceito de que os homens produzem saber e as mulheres possuem a sensibilidade seja alterado. O papel da mulher na sociedade vai além da maternidade e as instituições, seus gestores, nossos colegas de trabalho, alunos, amigos e familiares precisam assimilar e empreender que as necessidades pessoais envolvem a aceitação, o respeito e o reconhecimento. A aceitação de nossas escolhas pessoais e profissionais, o respeito ao desenvolvimento de nossas atividades e o reconhecimento de que atuamos convenientemente no desenvolvimento de todas as atribuições, sejam pessoais, acadêmicas ou científicas, as quais transcendem o sexo, orientação sexual ou gênero. Carreira acadêmica/científica e maternidade Se ser mulher é um desafio. Ser mulher/mãe/professora/pesquisadora/cientista exigem uma performance muito além daquela presumida por nossos pais ou alinhada com nossos desejos da infância e juventude. Para mim esta descoberta iniciou-se em janeiro de 2015, quando adotei dois irmãos, um menino com 2,5 e uma menina 5,5 anos. Como muitas mulheres que optaram pela carreira acadêmica, 314 Maternidades Plurais adiei a maternidade enquanto percorria a trajetória acadêmica até alcançar o cargo almejado, a docência em uma instituição de ensino superior. Após 42 anos, eu me tornei mãe, incorporando essa denominação e esta responsabilidade às outras que já faziam parte do meu ser e meu viver: mãe/mulher/professora/pesquisadora/cientista. Entretanto, entre solicitar judicialmente a guarda provisória das crianças e me tornar mãe, passaram-se apenas três dias, não tive tempo de me preparar para esse processo e sem rede de apoio, pois morava a 550 km do meu esposo e 600 km dos meus familiares, o desafio da maternidade ora parecia surreal, ora inatingível, ora incompreensível e, na maior parte do tempo, desesperador. Naquela época (janeiro de 2015), a licença maternidade a adotantes era de apenas trinta dias, o tempo que tive para adequar toda minha casa, minha vida e minhas atividades à chegada de crianças que necessitavam de cuidados adicionais e especiais, pois vinham de um longo histórico de abandono. Com isso, o período de adaptação à maternidade foi carregado de ansiedades, cobranças e descobertas, e a principal delas é que romantizar a maternidade aliada à carreira científica só seria possível se os ambientes universitários fossem inclusivos, se houvesse respeito à posição de mãe, se a maternidade não fosse uma escolha impeditiva a uma vida profissional plena, se não houvesse nas instituições a prática preconceituosa de que a maternidade é proibitiva à participação em cargos e comissões e principalmente que ter filhos provocaria perdas na eficiência profissional. Em dias atuais, mais intensamente que em décadas passadas, é simplesmente inadmissível os preconceitos que as mulheres/mães sofrem dentro da universidade, caracterizados pela exclusão descarada de algumas comissões, porque algumas pessoas relacionam a maternidade à irresponsabilidade, ao não cumprimento dos prazos e maior probabilidade de fracassos no desempenho dos cargos. Filhos ficam doentes sim, imprevistos acontecem sim, mulheres ficam mais cansadas e indispostas sim, principalmente porque a parentalidade aloja-se, na maioria das vezes, à figura da mulher/mãe, e essa parentalidade, muitas vezes solo, é erroneamente relacionada à improdutividade e à incapacidade acadêmica. Exatamente cinco anos após o processo de adoção, divorciada e com maturidade individual e científica, descortino que nós mulheres/mães/pesquisadoras perdemos tempo demais com cobranças individuais ou com justificativas desnecessárias. Nós não temos que ser produtivas e serenas durante todo tempo, não precisamos ser autossuficientes, temos que aceitar nossas dificuldades e algumas limitações, e principalmente, não temos que produzir todos os artigos científicos que não tínhamos produzido antes. A maternidade é um processo que precisa ser experimentado sem cobranças, sem fadiga e sem expectativas de perfeição. Além disto, independente da maternidade, é necessário aceitarmos que as exigências acadêmicas jamais deveriam afastar o prazer de desempenhar nossas atividades, sobretudo, desenvolver uma ciência de qualidade, pautada na ética e no bem estar coletivo. Ser mulher/mãe não nos torna improdutivas ou incapacitadas a desempenhar cargos administrativos e de gestão. Não produzir cientificamente por um período não significa que não temos capacidade científica. Isto é algo que precisa ser mudado na percepção de nossos gestores, colegas e alunos. Para mim, a maternidade proporcionou maior foco, pensamentos e atitudes mais ajustadas, uma vez que sou mãe solo e não tenho nenhuma rede de apoio, tenho que sempre estar pronta para cuidar 315 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dos meus filhos, afinal, com crianças existem muitas situações inesperadas, sejam por questões de saúde, atividades escolares ou necessidades psicológicas. Entretanto, se considerarmos coerentemente, homens também passam por situações imprevistas, podem adoecer, serem acometidos por uma cólica renal ou um problema de vesícula, sofrerem um acidente automobilístico ou até mesmo apresentarem algum distúrbio psicológico. Como mães, deixaremos de desenvolver alguma atividade para cuidar de nossos filhos, porque a prioridade tem que ser essa, a prioridade tem que ser a maternidade. Contudo, a escolha pela maternidade jamais pode ser argumento para nos impedir de desenvolver plenamente nossas atribuições profissionais. Mulher/mãe/cientista e a pandemia Com a pandemia, caracterizada por um risco potencial de transmissão global e simultânea de doença infecciosa, a maior parte das instituições brasileiras, públicas e privadas, aderiram ao isolamento social, caracterizado por aulas remotas e desenvolvimento de atividades profissionais em casa (home office). Para a maior parte da população brasileira e mundial, essa nova conjuntura evidenciou descaradamente o grande oceano existente quando se faz a comparação entre o processo de parentalidade de homens e mulheres, e a incontestável desigualdade, considerando-se mulher/mãe/pesquisadora e o homem/pai/pesquisador. Esta comparação foi cuidadosamente avaliada por um grupo de pesquisadoras de diversas universidades brasileiras (Parent in Science) 2 que tem trabalhado com o objetivo de avaliar a disparidade entre as carreiras acadêmicas/científicas de brasileiras e o impacto da parentalidade na carreira científica de mulheres e homens, com avaliação realizada durante os meses de abril e maio de 2020. Neste sentido, grande parte da população não estava preparada para esta nova vivência, descortinada repentinamente e carregada de expectativas e incertezas. O uso de plataformas digitais é uma especificidade que inicialmente proporcionou ansiedade e insegurança para todos os membros das famílias. É notório que nenhuma família e nenhuma escola estavam preparadas para viver essa situação de isolamento, a estrutura doméstica não era adequada a manter crianças dentro de casa por tanto tempo, a velocidade da internet não suportaria todos os moradores conectados simultaneamente e o espaço físico não era conveniente para as reuniões virtuais, pois deixaria nossa intimidade exposta. Entretanto, todos tivemos que nos organizar e nos readaptar à nova realidade, incluindo atividades domésticas, escolares e acadêmico/científicas, enfim, novos desafios para mulher/mãe/pesquisadora. Minha instituição aderiu ao isolamento em 18/03/2020, mesmo dia em que a escola dos meus dois filhos substituiu as aulas presenciais por uma série de atividades domiciliares. Naqueles dias, ainda sabíamos pouco de como seria o andamento das atividades remotas ou das atividades domiciliares. Inicialmente, senti como um período para descansar e atualizar atividades domésticas (organizar guarda-roupas e armários, lavar geladeira, faxinar todo apartamento), negligenciadas nos últimos dois meses devido ao intenso trabalho na elaboração e submissão de três artigos científicos. Desde que me tornei mãe, uso as madrugadas e os períodos de férias escolares para atualizar as atividades 2 Parent in Science em: https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science 316 Maternidades Plurais científicas. Mas, ao final da segunda semana, todos já tínhamos consciência de que que o isolamento seria mais longo e éramos obrigados a uma adaptação urgente à nova situação de atividades domiciliares de nossos filhos e às atividades acadêmicas/científicas. O ajustamento dos espaços físicos foi a parte mais fácil no prefácio deste processo de isolamento. No entanto, sem uma rede de apoio, com muitas expectativas, receios, angústias o primeiro mês foi desesperador... Exatamente isto, desesperador, torturante, dramático, penoso, e acredito que muitas pessoas tiveram as mesmas impressões. Divorciada a apenas 18 meses, longe dos meus familiares e amigos, isolada dos colegas de trabalho, eu me vi solitária e, em meio a este caos, finalmente me permiti chorar compulsivamente, desesperar intensamente, tive muita insônia, algumas vezes excesso de sono, algumas vezes falta de apetite e outras vezes uma gula enorme. Em todo este período de isolamento social, tenho conciliado momentos de solidão e profunda angústia com momentos de lucidez e calmaria para auxiliar meus filhos na adaptação e desenvolvimento da nova rotina escolar. O grande desafio da maternidade é exatamente este, nunca pode ser negligenciada, prorrogada ou suspensa. Em momentos de crise, pode-se sobrestar atividades acadêmicas/científicas, relegar atividades domésticas e paralisar as relações pessoais e profissionais, mas a maternidade é uma constante, e foi nela, com ela e por ela que encontrei a energia necessária para romper o ciclo depressivo e improdutivo e retornar às minhas atividades. Esses desafios só não se tornaram intoleráveis, porque, neste momento de isolamento, os amigos e familiares, antes distanciados pelas atribulações das atividades cotidianas, tornaram-se mais presentes, me consumindo maior tempo e dedicação e me trazendo conforto e aconchego em minha ânsia por autossuficiência e supremacia no desenvolvimento de minhas atividades. Na prática, as atividades profissionais em home office se apresentam em maior volume do que se estivéssemos em presença física em nossas instituições. Antes do isolamento, eu recebia cerca de 15 ofícios mensais, que agora tornaram-se semanais, recebo mensagens administrativas nas madrugadas de sábado ou relatórios para dar parecer em plena tarde de domingo. Alunos de mestrado, iniciação científica e trabalho de conclusão de curso, que antes respeitavam a trincheira dos finais de semana e feriados infringiram estes limites, muitas vezes à procura de amparo e consolo em momentos de extrema angústia e incertezas. Entretanto, o maior de todos os desafios têm sido conciliar o excesso de trabalho e a vivacidade e energia de duas crianças pequenas, conciliar as atividades científicas com a formação escolar das crianças e, principalmente, aceitar que não tenho que ser produtiva o tempo todo, eu não tenho que continuar escrevendo todos os artigos que escreveria em situações normais, eu não tenho que ser autossuficiente. Estes últimos dois meses, nos sugeriram que o home office, no serviço público ou privado, é um cenário que tende a se tornar permanente após o período de isolamento social, e que por isto necessita apresentar preceitos e especificações que direcionem o comportamento de nossos gestores, colegas e alunos. É necessário que desde agora ocorra uma completa ressignificação em nossas atribuições como professores, pesquisadores e cientistas, que se manifeste à relevância das atividades por nós desenvolvidas à toda sociedade e, essencialmente, que sejamos resilientes e estejamos dispostos a conferir novas interpretações às interações sociais, acadêmicas e científicas. O momento atual é de muitas expectativas com o início das aulas remotas para os cursos de graduação e pós317 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) graduação, pois conciliar estas atividades, com o domínio das tecnologias e a maternidade será o maior de todos os desafios que quaisquer mulher/mãe/professora/pesquisadora/cientista poderia já ter imaginado durante suas trajetórias pessoais profissionais. Este período de isolamento social mostrou a todas as mulheres/mães/professoras/pesquisadoras/cientistas e principalmente a toda a sociedade (acadêmica ou não) a existência de um oceano de dificuldades enfrentadas por nós no desenvolvimento de todas nossas atividades. Espero que por todo o tempo que este isolamento social perdurar, após o retorno ao convívio social e às atividades presenciais, que nossos filhos não sejam invisíveis aos gestores, colegas e alunos. A maternidade é uma escolha pessoal que não pode ser penalizada e principalmente a posição de mulher/mãe pode ser julgada como impedimento ao desenvolvimento de uma carreira profissional plena, carregada de sucesso e realizações. As desigualdades na parentalidade sempre existiram, e o isolamento social só exibiu descaradamente esta situação, exigindo, assim, que ocorram mudanças e adequações em horários de reuniões e atividades, melhor redistribuição de carga horária e atividades administrativas, editais de incentivo e apoio a mulheres/mães/professoras/ pesquisadoras/cientistas e em especial a alteração nos critérios de avaliação de currículos e competências. Afinal, todas as mulheres/mães/professoras/pesquisadoras/cientistas precisam ter aceitação, respeito e reconhecimento, porque, em tempos de pandemia ou não, desempenhamos nossas atividades, superando todos os desafios de nossa posição, sem romantizar a maternidade ou exigir privilégios, mas afirmando à toda sociedade nossa importância na construção de uma sociedade com mais empatia e respeito, pois como diz a letra da música: “Cada alegria desfaz algum nó Não é preciso entender as paixões Cada manhã vai te encontrar Mesmo sem você querer Mesmo se o sono durar Sim cabe ao amor te aliviar Do que te cansa Sai dança no sol solta tua voz Que a luz te alcança...” (Amores, música e letra de Oswaldo Montenegro) Sendo assim, o maior de todos os desafios é manter a alegria no que fazemos, fazer os outros entenderem nossa paixão e dedicação ao nosso trabalho, superar todos as dificuldades e encontrar o alívio no sucesso e na luz de nossas escolhas: maternidade e ciência. A busca por aceitação, respeito e reconhecimento são constantes para mulheres/mães/professoras/pesquisadora em todos os momentos de suas vidas e permanece durante toda a pandemia. 318 Maternidades Plurais 50 Vivência plural de uma mãe-enfermeira-pesquisadora: cuidar, viver, transcender Edaiane Joana Lima Barros 1 “Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem como tal” (Edgar Morin) “Não seja o de hoje. Não suspires por ontens... Não queiras ser o de amanhã. Faze-te sem limites no tempo. “ (Cecília Meireles) A pluralidade da palavra mãe-enfermeira-pesquisadora é o cotidiano em tempos de pandemia, no qual além do papel de mãe acolhedora e presente, atrela-se ao fato de manter a rotina de estudo relacionada à pesquisa e não ter a oportunidade do home office, pois ser enfermeira é também cuidar do outro e de si em outros ambientes em que os indivíduos necessitam de cuidados. Com isso, é preciso dar conta de cuidar, viver, transcender papeis que, às vezes, se tornam exaustivos, já que em 1 HU FURG. Enfermeira do ambulatório de Estomaterapia em um hospital universitário da região sul do Brasil. Doutora e Pesquisadora. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4204124538966682 319 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) tempos de pandemia não há escolas (e nem deveria2) e as educadoras são as próprias mães a partir da possibilidade da existência da tecnologia à distância, se tiver. As aventuras cotidianas são as mais diversas como estar em uma live tratando de um assunto importante para a comunidade em meio aos colegas de trabalho, e sua filha aparece frente às diferentes peripécias as quais você se sente impotente, pois não pode controlar, restando apenas rezar porque depois o trabalho será redobrado. Estudar e pesquisar em tempos de pandemia se restringiu a ensaios teóricos e reflexões (em sua maioria), mediadas pela tecnologia, pois a aproximação que é um diferencial na compreensão dos fatos está proibida. Além disso, o processo de trabalho desempenhado é mais complexo, pois trabalhar em um hospital e vivenciar os medos gerados nesse período e se entender como ser humano falível e que também pode adoecer, em um sentido maior que é a proteção da minha família, mas por escolha profissional a de cuidar outras vidas também ameaçadas em seus cotidianos, é angustiante e, ao mesmo tempo, surreal. Ser mãe e enfermeira, às vezes, se confunde, porque cuidar é respeitar o outro, acolher, considerar, aprender e retribuir empaticamente, é um processo de identificação com outras mães, o olhar é diferenciado, apesar de que o ser profissional não se desmembra do pessoal, considerando o limite da ética e da moral. Muitos pacientes chegam ao ambulatório e querem uma resposta de quando tudo isso vai acabar, as crianças em casa e a família também fazem o mesmo questionamento e, logo, a impotência toma conta, porque não há um cronograma definido para tudo isso, somente a esperança de que a sociedade seja empática quanto às medidas preventivas. Esse ambulatório que é de Estomaterapia, inserido em uma universidade federal do sul do país, está voltado a atender pacientes com estomias de eliminação como colostomia, ileostomia ou urostomia, em virtude de uma doença ou acidente, podendo ser temporário ou permanente. Estomias de eliminação são orifícios criados pela exteriorização do intestino ou ureter e se faz necessário uso de uma bolsa coletora para fezes ou urina. É um novo processo de vida para esse paciente e este precisa receber cuidados de uma equipe multiprofissional em saúde. Apesar do desafio de atender em um ambulatório específico, as preocupações se acentuam, porque devido às diversas restrições nos serviços de saúde pelo direcionamento às ações da Covid19, o fluxo da assistência pode ficar prejudicado. A pandemia em pleno século XXI seria algo impensado há alguns meses atrás, tendo em vista o desenvolvimento das tecnologias médicas, das pesquisas ora realizadas, do acesso rápido e fácil à informação, porém tudo isso está servindo para mostrar que precisamos evoluir ainda mais, os saberes que se têm sempre serão poucos ou razoáveis. Esse cenário de incertezas mostrou aos pesquisadores que o saber não se esgota, é preciso aprender mais sobre o desconhecido, aliar técnicas já patenteadas, reformular o pensamento no tocante à ciência e à própria humanidade que embora tenha avançado em algumas coisas, ainda comete 2 As escolas são essenciais para a alfabetização, o estudo e a interação, mas, nesse momento, é risco de contaminação pela Covid-19 em crianças e jovens. Nesse novo panorama, é preciso preservar a vida, evitar aglomerações e ressignificar os conceitos como empatia. 320 Maternidades Plurais gafes ultrapassadas. Não respeitar as orientações de isolamento ou distanciamento social, não utilizar a máscara de forma correta, não higienizar as mãos e entre tantas outras medidas é a expressão da barbárie contida em cada indivíduo que, mesmo se deparando com a possibilidade de morte, ainda sim acredita que nada acontecerá. E ser mãe-enfermeira-pesquisadora nesse contexto assusta. Ao mesmo tempo, desperta à reflexão de que nossas escolhas podem fazer a diferença para alguém. A sobrecarga é intensa e, por vezes, leve quando se tem alguém para dividir, pois com o fechamento das escolas e da necessidade de isolamento/distanciamento social, as crianças permanecem mais tempo em casa e exigem mais desse ser plural — mãe. Ora, o ensino era tradicional na escola sob a égide pedagógica curricular e com o bônus da interação social tão rica para as nossas crianças, e, de uma forma brusca, sem esperarmos, as interações se dão à distância por videoconferências não atrativas, pois nada substitui o estar junto, tocar, a alegria real. E, agora, além de mãe-enfermeira-pesquisadora, o sentido de pluralidade se amplia, já que se acrescenta o predicativo “educadora”, como se todos os dias já não fizéssemos isso implicitamente. Educar, como pesquisadora, acadêmicos adultos com uma especificidade técnica parece complexo, às vezes, de difícil alcance para alguns pelo nível de exigência, mas vos digo que educar em nível de alfabetização é um mundo desconhecido que exige perseverança, perfil, ânimo, criatividade e diálogo. Essa conversa perpassa pelo entendimento da criança sobre a situação atual, maturidade de ambos (pais e filhos) porque os processos de vida estão em mudança após essa pandemia. Ensina-se como portarem-se, modos de vida, ser um cidadão, as relações saudáveis com o outro, entre outras maneiras mediante a vida corrida do trabalho, do cuidado com a casa, com os familiares idosos, com o casamento e com as amizades. Mas nada como agora que, ao se deparar com a alfabetização que não está a cargo da escola porque não há escola, somente por videoconferência em poucos momentos com a professora, vemos como mãe ensinar se constitui um desafio. Não é a mesma coisa quando a professora ensina, quando um coleguinha compartilha um material que viu, quando alguém faz uma palestra na sala de aula e instiga a imaginação. Enfim, como mãe não se pode fugir dessa responsabilidade, cabe reinventar-se e acreditar que tudo que pode ser feito, está sendo. Cuidar, viver e transcender, algo tão necessário, sinal de superação, por vezes, essa meta demonstra como somos pequenos, ansiosos, preocupados com a rotina enlouquecedora de trabalhar com o melhor sentido da vida que é cuidar de um ser humano, de viver a família e o que sobrar de nós, bem como transcender quando em um sofá sob um edredom macio e aquecido os pensamentos flutuam e se reorganizam sob a percepção de que as coisas podem estar em seus devidos lugares na medida do possível (momento de repouso!?). Sempre digo que as coisas que você é, são sua escolha, mas como o mundo é redondo (alguns duvidam — risos) e a vida dá voltas como em um feedback, algumas coisas acontecem sem ser uma escolha. Então, isso demonstra que nem tudo é fruto de sua centralidade, você faz parte desse giro, contribui para que ele aconteça, e a partir daí as vivências vão acontecendo. A escolha de ser enfermeira, pesquisadora e mãe foi natural, com apoio da família, sem eles não poderia, ou até poderia, mas com mais dificuldades. Essa escolha se deu por ser enfermeira, oriundo de um sonho de atuar na saúde desde criança e ajudar as pessoas, isso sempre me guiou. A 321 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pesquisa veio com a academia e se faz presente até os dias atuais pela importância de cuidar e da necessidade de desvendar os processos de cuidado. Ser Enfermeira assistencial há 15 anos, atuando na área hospitalar, traz aprendizagens importantes como profissional e ser humano, porque estabelecer uma dicotomia não é possível, constituiume diferente, madura, ética e humana. Ser mãe de duas meninas, Maria Eduarda e Julia, minhas riquezas, herança de Deus, todos os dias me ensinam também a ser um ser humano melhor, tudo mudou depois delas. Ser pesquisadora foi e é outra etapa, tudo se faz necessário, academicamente falando, porque cuidar exige pesquisar, conhecer, compreender os sentidos das coisas, e é sempre tudo novo, a exemplo a pandemia. A pandemia, ainda sob o ponto de vista científico, apresenta muitas perguntas sem respostas e isso nos traz insegurança e angústia pela necessidade de lidar com o desconhecido: a correria do dia a dia foi alterada pela presença das crianças em casa (sem escola), pela busca de coisas que agora pelos decretos municipais se modificaram; as pessoas amedrontadas versus as que ainda acreditam que essa pandemia é um jogo político, cada um optando por uma ideia. As pessoas estão perdidas e mais ansiosas. O interessante de tudo isso, apesar do significado incerto da doença, é que é possível visualizar que muitas pessoas procuram coisas por impulso, sem reflexão e de forma acumulativa. A ideia é compreender a empatia como a palavra chave das relações entre os seres humanos nesse período, mas o ser humano ainda se faz resistente. Como enfermeira, mãe e pesquisadora, é visível essa cena todos os dias, pois quantas vezes nas lives que participo como entrevistada e outras como ouvinte, as pessoas expressam a necessidade do “fique em casa”, “use máscara, “lave as mãos”. No entanto, a realidade é outra. Logo, se colocar no lugar do outro é difícil para alguns. Isso causa apreensão porque, quando se é mãe, a visão é proteger os filhos sempre e como proteger em meio a essas dicotomias? E, como enfermeira, há indignação porque se continua no hospital cuidando do outro, às vezes aquele que sabia das recomendações e preferiu desafiar o indesejável, quase cultural. O limite de cada indivíduo é o começo de outro e, assim, sucessivamente e vice-versa, pois as relações são articuladas apesar de não conhecermos o outro, precisa-se de todos. O interessante, também, nunca tinha participado de tantas lives e cursos à distância, e como aflorou a tecnologia de ensino e pesquisa em saúde via telessaúde em tempos de pandemia. Estamos longe das pessoas pelo distanciamento, mas próximos pela ciência. Mas, agora, os filhos participam conosco das atividades, bem como se desdobrar entre contribuir cientificamente com a ideia a ser debatida no coletivo e atender o chamado do filho pequeno que quer um iogurte ou fruta (os papeis são multidimensionais) (ainda bem que os colegas são compreensivos — risos). As atividades como enfermeira permanecem presenciais, porque não se faz cuidado humano à distância, mas como pesquisadora, lançar mão da tecnologia é utilidade de última necessidade (risos). E, acrescento que o cuidado presencial se beneficia desse artefato tecnológico, como, por exemplo, o whatsapp em que o paciente tem alguma dúvida, quer mostrar algo que lhe incomoda ou até para dar um bom dia, momentos de assessoria e de acolhimento. Sinal de reconhecimento do trabalho realizado e do papel do enfermeiro como profissional multifacetado. 322 Maternidades Plurais Finalizando... Toda essa experiência vai ficar e ainda, historicamente, nos ensinará muitas coisas, porque atuar profissionalmente e ser mãe não é fácil, as tarefas são complexas pelo desdobramento, e principalmente em tempos de pandemia. Anterior a esse novo contexto, essas tarefas não eram dissociadas, mas a sobrecarga emocional atrelada aos riscos biológicos disseminados na sociedade e o medo mundial do desconhecido é assustador. Os diversos cenários e sentimentos oriundos das pluralidades mãe-enfermeira-pesquisadora ensinaram o quão somos capazes de produzir significados e percebê-los complexos todos os dias. É o maior aprendizado como ser humano. 323 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 51 Fragmentos de uma pandemia pedagógica: costuras para novas estampas possíveis Élida Santos Ribeiro1 MATER DOLOROSA Este puxa-puxa tá com gosto de coco. A senhora pôs coco, mãe? — Que coco nada. — Teve festa quando a senhora casou? — Teve. Demais. — O que que teve então? — Nada não menina, casou e pronto. — Só isso? — Só e chega. Uma vez fizemos piquenique, ela fez bolas de carne pra gente comer com pão. Lembro a volta do rio e nós na areia. Era domingo, ela estava sem fadiga e me respondia com doçura. Se for isso o céu, está perfeito. (Adélia Prado) Tenho sido educadora durante toda minha vida profissional — muitas vezes me pergunto se não seria durante toda minha existência. Trabalhei muitos anos como professora de Educação Infantil, o que se transmutou em educação de minha filha nos últimos dezesseis meses, desde quando dei à 1 Mestranda em Educação em Ciências e Saúde pela UFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8159979165291008 324 Maternidades Plurais luz a Aurora. Desde minha perspectiva de educadora, experimento olhar essa pandemia imaginandoa como mestre, colocando-me diante de sua presença como quem quer entender ou aprender algo novo. O que tem sido iluminado nos milhões de lares onde crianças, em “férias escolares forçadas”, não estão viajando com a família, nem brincando na rua, no parque ou na praia (o que dependeria da classe a que pertencessem)? Flávia Azevedo, em seu artigo “O massacre às crianças durante a pandemia”2, chama a atenção para o fato de as crianças serem referidas como obstáculos durante o isolamento social, em casa, onde não podem mais ser “terceirizadas”, atrapalhando videoconferências, demandando atenção de suas mães e pais, chorando, gritando, bagunçando, enfim, atrapalhando. A colunista sugere que quem atrapalha somos nós, mães e pais, nossas más escolhas, nossos traumas. Culpabilizações à parte, cabe nos perguntarmos em que medida estamos refletindo sobre essas questões em meio ao home office, trabalho de casa, cozinha, convivência (forçada?). Essa incitação à alta produtividade que costumávamos viver — e que segue em nós como um imperativo interno —, certamente é bastante conveniente ao sistema e estimulada pelos devidos e múltiplos meios. Mas em que medida isso tornou-se confortável para nós, uma escusa para não ser possível (preciso) entrar em contato? Deixo em suspenso, por ora. Dentro dos meus encontros remotos de orientação do mestrado, temos estudado bel hooks 3, que reflete bastante sobre sua prática como educadora numa visão de “educação como prática de liberdade”, fazendo um diálogo freiriano. Nessas leituras, ela diz — e eu ouço — que, para essa educação acontecer, as educadoras e educadores precisam correr riscos. Ela conta como percebe que os educadores “dão graves sinais de perturbação quando os alunos querem ser vistos como seres humanos integrais, com vidas e experiências complexas”4. Salienta que, para que estejamos, como educadoras e educadores, disponíveis para nos relacionar com esses seres humanos em sua inteireza, é necessário um compromisso com nossos processos de “autoatualização”. Para toparmos correr riscos, ajuda olhar pra dentro, entender nossas vulnerabilidades, encarar as contradições entre nossa vida cotidiana e nossa vida profissional. Daí que isso me leva ao ponto que eu tinha parado: como estão nossas relações com nossos filhos e filhas em nossa vida doméstica, bem lá onde a intimidade transborda de nós e para nós? Eu falava de entrar em contato, e entrar em contato é, de certa maneira, correr riscos. Meu companheiro e eu decidimos que teríamos um bebê em 2016, no final de uma viagem de um ano que fiz pelo mundo (que eu tinha decidido fazer antes de conhecê-lo, no ano anterior). Daí que desde então eu me perguntava em que eu iria trabalhar depois de ser mãe. Isso de ser aquariana 2 AZEVEDO, Flávia. O massacre às crianças durante a pandemia. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/o-massacre-as-criancas-durante-a-pandemia/. Acesso: 8 jun 2020. 3 Hooks, bel. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2013, cap. 1. 4 Ibidem, p. 27. 325 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com lua em virgem acaba me levando a mirar o futuro de forma planejada, e como eu era [sou] professora Waldorf, trabalhava numa escola de segunda à sexta e com dedicação (intensa e) exclusiva, não imaginava seguir trabalhando assim quando minha filha nascesse. Aproveito para falar de uma questão muito feminina: a licença-maternidade. Nas escolas Waldorf, geralmente não temos berçário, alegando a importância de as mães estarem com as crianças em seus primeiros anos de vida. Ótimo. Porém: a licença-maternidade só dura os tradicionais quatro meses (!!!) — seis em algumas escolas — e a escola é formada, basicamente, por mulheres. Busquei algumas vezes inserir essa discussão nas escolas Waldorf em que trabalhei, mas não conseguimos encaminhar praticamente nada de novo. O máximo que consegui nessa última foi o compromisso de a escola estender de quatro para seis meses as próximas licenças que acontecerem. Afinal, como voltar a trabalhar todos os dias, com um bebê em casa, acreditando numa proposta de vínculo e acolhimento? Mais do que isso: como voltar a trabalhar numa escola em que acredito tendo que deixar minha filha numa outra escola — em que não acredito (já que não contava com berçário)? Dizia que, pelo dito, inventava previamente possíveis atividades profissionais para assumir no pós-maternidade. Imaginei um projeto de Consultoria Pedagógica, onde pudesse seguir atendendo a famílias de crianças pequenas, buscando instrumentalizar o olhar das mães e pais para que observassem as crianças sob novos prismas e, assim, transformando as relações e o ato pedagógico. Quando Aurora nasceu, depois de alguns meses, senti forte o impulso de fazer esse impulso encarnar, mas sentia-me insegura para empreender, construir uma possível divulgação, encontrar um formato que fosse significativo para as famílias (e para mim), enfim. Nunca tinha sido autônoma e fazer essa transição causava uma vertigem quase imobilizadora. Veio a quarentena e pensei: e se eu fizesse um formato online? Seria uma maneira de expandir a atuação para além de Macaé — onde moro atualmente e conheço pouquíssimas pessoas —, além de ser uma via talvez mais despretensiosa. É, às vezes o que nos falta é despretensão. Vimos sendo, como mulheres, estimuladas ao longo da vida a sermos primorosas, impecáveis, irreprováveis, cobradas por tantos lados e de tantas maneiras que é quase unânime sermos exigentes demais conosco mesmas. Errar ou fazer “mal feito” é bastante indigesto para nós, mulheres, e eu estou longe de ser exceção. Consegui começar esse trabalho com algumas famílias durante a quarentena. Essa suposta despretensão foi meu álibi e minha terapia. Estou buscando costurar aqui as tramas diversas que me vestem durante a quarentena, desenhando os diferentes papeis-ofícios assumidos. O trabalho de consultoria me apareceu como possibilidade de realização por vários motivos, especialmente o interesse que tenho pela vida familiar e doméstica das crianças, e essa influência no seu desenvolvimento biográfico — assim como os elementos que essa investigação pode trazer para possíveis transformações nessas biografias e, em maior escala, mudanças culturais, políticas e sociais. Buscarei amarrar esse (des)caminho nas minhas indagações iniciais: o que tem sido iluminado por esse momento de isolamento social nos milhões de lares 326 Maternidades Plurais onde há crianças? De que maneira a convivência mais abundante com as crianças pode parecer temerosa para nós, mães e pais? Encontro reflexões pertinentes a essas questões num dos autores que estou estudando para iluminar e fundamentar as consultorias que venho fazendo: Henning Kohler. Em seu texto “Toda criança tem direito de ser tal qual ela é”5, ele nos chama a atenção para um certo temor às crianças, tendo em vista que “Eu não consigo dirigir-me interessadamente a um ser humano cujo comportamento me amedronta.”6. É como se o comportamento vivaz das crianças pudesse ser uma ameaça à ordem ou ao nosso pretenso controle sobre tudo e todos. “Ter-se-ia a impressão de que a criança que quisesse apenas ser plenamente criança já seria vista como areia nas engrenagens pedagógicas” 7. As crianças nos convidam a contar com o inesperado, a não ter receitas ou conduções padronizadas das situações. Apontam para o que está por vir, e nesse processo de transformação certamente há rupturas e desconstruções. Estamos preparadas e preparados para acolher as rupturas ensejadas por elas? Mais do que isso: percebemos, de fato, em nosso cotidiano, que algumas resistências das crianças sugerem (ou exigem) a necessidade de fazer diferente, de rever os valores e posturas tomados até então? Entendemos que seu movimento constante reflete um impulso vital que, em boa parte, perdemos ou aprendemos a reprimir em nós? Durante os dias que passam, não percebemos que nossas condutas autoritárias e taxativas refletem o fato de nos sentirmos ameaçadas(os) pelo seu comportamento. A imposição do medo pode ser uma forma de tornar mais cômodo e menos cansativo o ato pedagógico ou a convivência com as crianças.8 Dissemos que entrar em contato requer correr certos riscos. O que não estamos dispostas(os) a arriscar? Do que não queremos abrir mão, e que o contato com esses seres pulsantes, que são as crianças, parece ameaçar? Na era do não-tenho-tempo-pra-nada e da alta produtividade(?), acabamos tomando tudo que atravessa o caminho da “máxima eficiência” como um obstáculo a ser vencido. Sem perceber, colocamos as crianças constantemente nesse lugar, e boa parte de nossa ansiedade e irritação se deve ao fato de sentirmos que elas “nos atrapalham”. Acontece que nossa desconexão com elas se funda também aí, no fato de considerarmos seu comportamento inconveniente. Se estamos todo o tempo buscando adequar às crianças ao que parece adequado ao mundo dos adultos, estamos com lentes de aumento nas nossas necessidades, negligenciando, de certa maneira, as delas — o que gera frustração e desconexão. O que chamamos de “birra” ou “pirraça” pode ser um pedido de atenção ou ajuda, uma manifestação de suas necessidades de conexão e acolhimento. 5 KÖHLER, Henning. Toda criança tem o direito de ser tal qual ela é. Periódico n. 4. FEWB, ago. 2002. 6 KÖHLER, Henning. Toda criança tem o direito de ser tal qual ela é. Periódico n. 4. FEWB, ago. 2002. p. 4. 7 Ibidem. LIBÂNEO, José Carlos. Tendências pedagógicas na prática escolar. In: Democratização da Escola Pública – a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1992. Cap. 1. Disponível em: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAehikAH/libaneo. Acesso: mar 2020. 8 327 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Recebi, há alguns meses, um link com um curso de Comunicação Não-violenta9(CNV) e não resisti: me inscrevi. Já há anos eu sou entusiasta da CNV e faltava apenas a oportunidade de aprofundamento. Durante esses meses de quarentena, em meio a tantas outras tarefas e compromissos, vou fazendo o curso como posso, mas sempre refletindo muito e buscando pôr em prática as propostas de não-violência. A empatia, a conexão e a liberdade estão na base da CNV, que parte do princípio de que todos temos as mesmas necessidades — embora busquemos atendê-las de diferentes maneiras. Ainda nos estudos que faço durante a quarentena para o trabalho de consultora, motivei-me a imergir em diferentes estudos, passando pela “Disciplina positiva” 10 que, entre outras tantas coisas, chama nossa atenção para o absurdo que é acreditarmos que para que uma criança se comporte melhor, antes ela deve se sentir pior. Outrossim, devemos notar que, para estabelecermos uma conexão íntima e segura com as crianças, elas precisam sentir que são aceitas e importantes. Costumamos dizer que nossas filhas e filhos são o que mais importa em nossa vida, mas será que nossas ações deixam claro isso para elas(es)? Ademais: será que nossas opções e atitudes cotidianas concorrem, de fato, para seu pleno desenvolvimento e realização pessoal? A intenção aqui não é propor receitas perfeitas, mas justamente desinventar formas, descascar as rotinas estabelecidas e abrir brechas e cortinas para a luz entrar. Nesse momento de quarentena, o isolamento social fica da porta pra fora: dentro é permitido ter contato profundo. Sabemos que o tempo de deslocamento e trânsito economizado é sobrepujado pelas tantas tarefas domésticas e pelas demandas de cuidado com as crianças em tempo integral, mas como, em meio ao tempo cronológico, fazer criar outro tempo? Como reverter, em nós, essa lógica produtivista e nos presentear com a possibilidade de parar uma ou duas vezes por dia para lembrar as reais prioridades e olhar para o essencial? “Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava. “ (Adélia prado) 9 A CNV é uma metodologia de comunicação, sistematizada por Marshall Rosenberg, que busca possibilitar relações mais cooperativas, de parceria. O curso a que me refiro é dado pelo jovem Bruno Goulart de Oliveira, que se dedica bastante a essa prática e à sua difusão. O “CNV para curiosos” é dado de forma remota, em regime de contribuição consciente e já está em sua segunda turma. 10 NELSEN, Jane. Disciplina Positiva. Trad. Bernadette Pereira Rodrigues e Samantha Schreier Susyn. 3 ed. Barueri, SP: Manole, 2015. 328 Maternidades Plurais Essa poesia com que pontuo minhas reflexões (que seguem) nos traz uma certa paz. Em meio à rotina potencialmente exaustiva com uma bebê de um ano e quatro meses, almoços e jantares a serem preparados (a quatro mãos, é verdade, nem todas podem contar com um parceiro), um mestrado e uma segunda graduação (EaD) em curso, projeto de consultoria, inventamos tempo de brincar, de tocar música, aprender gaita e cavaquinho, fazer curso de CNV e de Florais da Amazônia para animais e celebrar a Aurora 11. Com isso não quero dizer de uma eficiência, mas de possibilidades de inventar tempo, de acreditar que ele pode ser, sim, criado em meio às exigências e compromissos que nos chamam gritando. Quero dizer que, mais que viver, é preciso encontrar tempo para cantar é possível, é o urgente — afinal, a intimidade é uma festa. 11 Aqui faço referência ao nome de minha filha, Aurora; e também ao amanhecer de um novo dia ou de um novo tempo. 329 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 52 Mães na pandemia: um relato pessoal (e político) das desigualdades Fabiana Jordão Martinez1 Talvez ainda haja um abismo entre a mulher, com suas ambições e projetos pessoais e profissionais e a mãe, dotada de uma suposta “vocação” donde a plenitude é alcançada a partir da criança, pensada como realização e obra de uma vida, um projeto pessoal2. Se há esta vocação, ela é construída desde a infância em nossa socialização feminina. A identificação da maternidade com a feminilidade ainda é um forte atavismo em nossa cultura. Ela se materializa de forma compulsória desde a infância e na socialização feminina em seus jogos e brinquedos; nas roupas delicadas e impróprias a liberdade do corpo; e nos comportamentos e gestos delicados que ensinam como se tornar uma mulher. Enquanto meninos em seus jogos aprendem a criar através de uma educação corporal onde correm, pulam e “matam”, as meninas aprendem a perpetuar a vida através da passividade do gestar, cuidar, alimentar e ser mãe. Desde o início, mulheres são destinadas a tornarem-se presas de sua biologia, reproduzindo a “vocação materna” como projeto primeiro de sua existência. Contudo, na sociedade capitalista, após as conquistas feministas a partir da década de 70, hoje são poucas aquelas para quem a criação e educação de filhos torna-se um projeto pessoal exclusivo. As mulheres cada vez mais têm negociado suas identidades adiando a maternidade: ganhar a vida, ter um apartamento, fazer carreira, encontrar o parceiro ideal e com ele tirar proveito de uma liberdade agradável se tornam projetos mais imediatos e concretos, podendo se tornar até uma tomada de consciência sobre as possibilidades de não se ter filhos. 1 Professora Adjunta de Antropologia do curso de Ciências Sociais da UFCAT. Lattes: tes.cnpq.br/7612331411535491 2 http://lat- BADINTER, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2010. 330 Maternidades Plurais Dados do IBGE de 2017 apontam que as brasileiras têm cada vez menos filhos e cada vez mais optam pela maternidade tardia, entre os 30 e 39 anos3; também decresce a taxa de fecundidade entre mulheres jovens de até 19 anos. Parte destas transformações se explicam pela popularização de pautas feministas e pela ampliação de políticas sociais que beneficiaram as mulheres: programas de renda mínima que permitiram que saíssem da linha de pobreza e políticas educacionais que garantiram o acesso ao ensino superior. Assim, ainda que de forma lenta e gradual, a desconstrução da maternidade como um “destino feminino” tem marcado presença em nossa cultura. Eu também tive o privilégio de priorizar meus estudos e carreira profissional. Só tive filhos aos 35 anos, após concluir meu doutorado em Ciências Sociais e ingressar na carreira docente. Atualmente sou docente em uma universidade pública onde me divido entre as atividades de ensino, pesquisa, extensão e rotinas administrativas. Conto com a parceria de meu companheiro, que sempre buscou se adaptar as minhas demandas profissionais, primeiro dispondo-se a mudança com a família e depois, através do exercício responsável e ativo de sua paternidade. Dentro disso, procuro exercer uma maternidade afetuosa e atenta ao processo de produção de pessoas-sujeitos em que toda a família está envolvida. Como mãe-educadora, me importa antes de tudo, criar laços de afeto e amizade, entrar em seus universos, imagens e significados; falar sobre crenças, e; partilhar com eles reflexões que nos afinizam para além dos papéis estabelecidos de mãe e filho. Importa recriarmos juntos uma ética pautada no amor, na crítica, na indignação diante das desigualdades e do preconceito machista e racista. Importa produzir sujeitos críticos, politizados e conscientes de seu papel nas transformações em curso. Neste processo, as funções entre a profissional (professora, antropóloga, feminista) e a mãe (cuidadora e afetuosa, mas também a que frustra, corrige e ensina as regras) se mesclam. E confesso, não é fácil encontrar o mediador entre estes dois tropos da identidade: requer certa dose de autoridade assertiva, mas também de alteridade, compreensão, paciência e diálogo. Contudo, atualmente todas estas relações parentais se sobrepoem a todas as demais pois encontram-se em uma condição sui generis isto é, foram interpeladas pelo que psicólogos tem chamado de “o maior experimento psicológico da história”: há quase seis meses estamos em completo isolamento IBGE, Pesquisa “Estatísticas do Registro Civil 2017”. Comparando-se os dados em um período de 10 anos (20072017), observou-se um significativo crescimento da taxa de fecundidade entre o grupo de mulheres de 30 a 39 anos: de 23,4% subiu 32,2%. Este fenômeno vem atrelado à queda da taxa de fecundidade entre as mulheres mais jovens até 19 anos de idade: de 20,22%, em 2007 para 15,95%, em 2017. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/10/31/mulheres-tem-cada-vez-menos-filhos-e-escolhem-pela-maternidade-tardia-apontaibge_a_23577014/. Acesso: 21 jun 2020. 3 331 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dentro de casa, sem sairmos para o trabalho ou a escola devido a uma pandemia de coronavírus, cujo alcance é sem precedentes4. Enquanto escrevo estas linhas, passamos de 24 milhões de casos e 820 mil óbitos no mundo; e em um ranking mundial, o Brasil entra para o segundo lugar de mais casos e mortes pela doença, com quase quatro milhões de casos e de mais de 120.270 mil óbitos5. Sendo uma doença viral ainda sem vacina ou medicamentos adequados para seu tratamento, as medidas preventivas mais eficazes contra a contaminação envolvem estratégias cujo objetivo é manter as pessoas em casa, evitando aglomerações, como o isolamento social, a quarentena e o lockdown6. Muitos países que já estiveram como epicentro da epidemia, como China, hoje têm se recuperado lentamente e alcançado estabilidade no controle da doença. Para isso, têm adotado e adaptado sua política a rígidos protocolos de prevenção, controle e segurança prescritos pelos principais organismos internacionais de saúde, como a Organização Mundial de Saúde e a Organização Panamericana de Saúde. Neste cenário, em todos os lugares as escolhas e decisões referentes à gestão pandêmica têm dependido de um delicado cálculo que considere o tênue equilíbrio entre a economia e a vida. Quais são os serviços essenciais que não podem parar? Quem deve sair as ruas para prestá-los? Qual deve ser o fluxo de pessoas nas ruas? Quem deve ficar em casa? Conseguirão as corporações e empresas manter os rendimentos de seus trabalhadores? Em todo caso, numa situação sui generis como esta, é dever do Estado, independente de seu “tamanho”, gerir e colocar a vida se sua população acima de tudo, oferecendo as condições e recursos para que ela possa sobreviver a pandemia. Esse equilíbrio, que por si é muito contingente e de dificil prevenção, vai se tornando irrealizável na medida em que nos referimos a países com altos índices de desigualdade social, como o Brasil. Atualmente o sétimo país mais desigual do mundo, nossas desigualdades se alicerçam em uma herança colonial que se impõe sobre os critérios de raça e gênero, 4 A Covid-19 é uma doença causada pelo coronavírus, nome de uma família de vírus que têm uma estrutura em formato de coroa. Eles causam infecções respiratórias podendo levar a falência dos órgãos respiratórios. A transmissão costuma ocorrer por contato pessoal com secreções contaminadas, como: gotículas de saliva; espirro; tosse; catarro; contato pessoal próximo; contato com objetos ou superfícies contaminadas, seguido de contato com a boca, nariz ou olhos. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca. Acesso: 26 jun 2020. Sobre o atual momento ser o maior experimento psicológico de todos os tempos: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/28/o-confinamento-e-o-maior-experimento-psicologico-da-historia-diz-especialista-em-trauma.htm. Acesso: 29 jun 2020. 5 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/21/brasil-tem-50182-mortes-por-coronavirus-mostra-consorcio-de-veiculos-de-imprensa-atualizacao-das-13h.ghtml. Acesso: 22 jun 2020. 6 Sobre as diferenças entre isolamento social, quarentena e lockdown, ver: https://www.ufrgs.br/telessauders/posts_coronavirus/qual-a-diferenca-de-distanciamento-social-isolamento-e-quarentena/. Acesso: 26 jun 2020. 332 Maternidades Plurais tornando as mulheres negras a base de uma pirâmide de vulnerabilidade social 7. Neste momento, essas desigualdades estão inscritas em um projeto que visa exterminá-las não como se poderia pensar, através de estratégias de ascensão social via políticas de acesso à renda e ao emprego; mas através de um projeto neoliberal que, através de privatizações, venda de recursos naturais e encolhimento do Estado, prioriza os ricos e privilegiados, anula e apaga as minorias e precariza as vidas dos que estão na base da pirâmide. Trata-se de uma necropolítica de Estado que visa exterminar a desigualdade a fórceps, pelo extermínio em massa de parte da população8 A ascensão dessa lógica política consubstanciou os ideais dos estratos mais conservadores de nossa sociedade. De um lado, os segmentos ressentidos com os avanços sociais dos últimos anos; já não era possível para estas classes conviverem com o fato de que pobres e pretos agora tinham acesso à universidade pública; de que a filha da empregada concorria a mesma vaga que o filho da patroa9; de que ricos e pobres agora compartilhavam os mesmos aeroportos e shopping centers. Era importante que cada um continuasse em seu “devido lugar”. De outro, havia aqueles para quem a afirmação da diversidade (cultural, étnico, sexual) figurava como a ameaça progressista de um mundo sem controle. Para estes, a ascensão das direitas conservadoras concatenou uma narrativa sobre a “família tradicional” que caiu como luva entre os segmentos religiosos mais fundamentalistas. O fato é que a síntese entre este fundamentalismo neopentecostal e o neoliberalismo de extermínio culminou na negação absoluta da ciência e dos fatos médicos e na proliferação de notícias falsas e atitudes deliberadamente contrárias às recomendações sanitárias mundiais. No delicado equilíbrio entre economia e vida, os pendores desenfreados e irracionais de setores ligados à política e a economia têm lançado a população a sua própria sorte. Logo no início da crise, enquanto os estados adotavam o confinamento e divulgavam as medidas preventivas contra a Covid-19, estes setores expressavam sua indiferença, omissão e inépcia através de posturas e discursos anti cientificos que incluiam atenuantes sobre a gravidade da doença e do número de mortos, a defesa de protocolos médicos sem comprovação cientifica até o rechaço com medidas de confinamento adotadas pelos estados. Estas posturas congregam doses de dúvida e confusão cognitiva estrategicamente implantadas para o esmaecimento da realidade pandêmica. Além disso, o confronto direto com as próprias instituições 7 O Brasil é considerado o sétimo país mais desigual do mundo, estando a frente apenas das nações africanas. Com IDH (índice de desenvolvimento humano) de de 0,761, o Brasil fica em 79º no mundo e em 4º na América do Sul. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma unidade de medida utilizada para aferir o grau de desenvolvimento de uma determinada sociedade nos quesitos de educação, saúde e renda. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/12/09/com-idh-quase-estagnado-brasil-fica-em-79-lugar-em-ranking-da-onu.htm. Acesso: 27 jun 2020. 8 Necropolítica é um conceito cunhado em 2003 pelo teórico camaronense Achille Mbembe e trata-se da política da morte vinda do Estado através de quem deve viver e quem deve morrer. No contexto brasileiro e de diversos países ex colonias, o controle dos cidadãos — e da morte deles — está diretamente ligado ao processo histórico de colonização e racialização onde se produz práticas e relações sociais extremamente desiguais e cujos sujeitos que sofrem a ação de precarização de suas vidas seguem os critérios de classe, raça e gênero. 9 Este paradoxo de classes foi retratado com brilhantismo no filme de 2015 intitulado Que Horas ela Volta? de 2015 de Ana Muilaert. 333 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) federais, muitas vezes contra toda e qualquer medida de contenção da doença tem levado a um gradual rompimento do Brasil com a OMS10. Contudo, tratar a Covid-19 como algo menor ou fruto de um “pânico infundado coletivo” é banalizar a morte inscrita na lógica da atual necropolítica: algumas vidas valem mais, outras não valem nada; a saber, as vidas periféricas, precarizadas, negras e pobres. Se o Brasil já era desigual, a crise sanitária tem evidenciado os recortes de classe, fazendo das periferias novos epicentros de letalidade por coronavírus 11. A indiferença e a negação da realidade pandemica produziu efeitos e seguidores. Em alguns setores médios da sociedade, a crença na excepcionalidade está atrelada à condição social, a ideia de que por possuírem mais recursos não são grupos de risco. Encabeçados por alguns setores do empresariado, esses segmentos, temendo o “colapso econômico”, foram às ruas pedindo o retorno ao trabalho e à rotina por parte daqueles que os sustentam enquanto classe, os trabalhadores. As narrativas produzidas nesse movimento negacionista buscam neutralizar os impactos da doença, retirar a credibilidade da mídia na divulgação das estatísticas da doença e colocar em xeque as instituições que estão na linha de frente no combate à pandemia. Essa narrativa abrandadora tem se disseminado de forma galopante pelos estratos inferiores da sociedade, onde justificados pela urgência da sobrevivência e do sustento material, ignorar e burlar a quarentena é menos grave do que morrer de fome. Neste contexto, há uma correspondência estrita entre a nossa segurança emocional e a forma com que os governos administram a vida de modo geral. Também chamada de segurança ontológica, ela alude ao sentido de ordem e continuidade originários das experiências individuais; um sentido de identidade forjado através do conjunto de hábitos e rotinas diárias que imprimem confiança desde os primeiros dias de vida12. Estas rotinas e suas formas de domínio produzem a aceitação emocional da realidade do mundo exterior; a sua ausência nos expõe ao caos e à ansiedade. Assim, o estado de liminaridade que caracteriza a nova rotina pandêmica suspensa pelo isolamento social é uma ruptura nos mecanismos de segurança ontológica. Embora estejamos falando nas redes sociais sobre um “novo normal”, é difícil aceitar que a suspensão das atividades rotineiras tenha um prazo indeterminado. Por mais que se forje uma nova rotina de cuidados, ela não possibilita a retomada destes mecanismos. Assim, menos que aceitar e acatar uma nova rotina de cuidados contra o Covid-19, no Brasil o “novo normal” nada tem de novo; trata-se da ruptura com o confinamento e o isolamento social13. 10 Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/apesar-da-politica-oms-continua-a-apoiar-o-brasil-diz-diretor-daopas-09062020. Acesso: 22 jun 2020. 11 Pesquisas têm comprovado que a taxa de letalidade da doença, que de início atingia as classes privilegiadas que viajavam para fora do país, agora tem atingido muito mais as periferias. A vulnerabilidade aumenta devido à falta de recursos médicos e hospitalares, à desigualdade nas condições de saneamento e moradia, e à alta probabilidade de doenças pré-existentes. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/desigualdade-social-e-economica-em-tempos-de-covid19. Acesso: 25 jun 2020. E também: https://www.dw.com/pt-br/como-o-novo-coronav%C3%ADrus-acentua-as-desigualdades-no-brasil/a-53256164. Acesso: 25 jun 2020. 12 GIDDENS, Antony. Modernidade e identidade pessoal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 13 O fato é que no Brasil, logo que chegaram os primeiros casos da Covid 19, os estados declararam quarentena; muitos comércios, parques e praias foram fechados durante cerca de um mês. Acontece que quando os picos da pandemia 334 Maternidades Plurais Restabelecendo suas rotinas como se “nada estivesse acontecendo”, parte da população desloca a evidência da morte como uma possibilidade concreta para um delirante estado de negação e alienação. Aqui, atualmente estamos em confinamento rigoroso no espaço doméstico e, como muitas pessoas, tenho trabalhado remotamente, me dividindo entre as atividades profissionais, os cuidados com a família e o gerenciamento da casa. As escolas estão paradas (algumas adotaram desde o início da pandemia atividades remotas) e por isso, as crianças estão o tempo todo em casa, sem muito o que fazer. Após quase três meses de quarentena, a escola municipal onde eles estudam enviou apostilas de atividades a serem entregues em quinze dias. Contudo, desde o início da quarentena, uma das grandes preocupações tem sido como ocupar o universo das crianças, que agora se veem alijadas não só do conhecimento, mas de toda uma rotina que envolvia brincadeiras, o exercício da imaginação e as marcas de sua socialização. Como suprir esta falta? E como fazer isso diante de circunstâncias tão sui generis como a que estamos vivendo? Devido à sobrecarga mental e emocional que toda esta situação acarreta e, mesmo com uma divisão justa do trabalho doméstico, tenho encontrado dificuldades em dar continuidade à produção acadêmica, como muitas pesquisadoras 14. Sou interpelada pelas demandas afetivo emocionais das crianças com maior frequência: as angústias são expressas na voracidade com que precisam se alimentar ao longo do dia e através da urgente necessidade de fazer coisas juntos, seja as tarefas da escola, brincar, passear com cães, banhá-los, conversar ou assistir TV. Em minha vivência, experimento forte entrelaçamento entre a experiência próxima do confinamento doméstico e a experiência distante da política e dos efeitos devastadores da pandemia em meu país. Os meandros da subjetividade, mais que nunca, são tecidos por aquilo que acontece fora e longe de mim. Na experiência próxima, tudo é liminaridade desde a suspensão da rotina na universidade, dos exercícios em academias e parques e das atividades necessárias como supermercado, padaria, sacolão e farmácia. Em casa, estas atividades estão restritas a duas vezes na semana: é quando aproveitamos para realizar todas as atividades necessárias; quando isso acontece, apenas um adulto o faz tomando todas as medidas de precaução. Ao voltar, desinfectamos as compras com álcool ou água e sabão, tiramos as roupas, colocamô-las para lavar e tomamos banho. Tudo se tornou uma verdadeira uma operação de guerra. De vida e de morte. Tudo aquilo que é vida entrou em suspensão dando lugar a uma insuportável e permanente pulsão de morte, que vai se alojando no cotidiano. Contudo, ainda a morte tenha sido escancarada e posta às claras pela pandemia, para muitas pessoas em estado de negação ela segue sendo um fato banal, experimentado como distante e ocupando os bastidores da vida social. Daqui de onde estou, sinto e vejo as coisas, o negacionismo da pandemia se torna uma começaram se elevar em maio deste ano, as medidas foram sendo flexibilizadas sob a justificativa de um colapso econômico. Assim, apesar de ainda estarmos em quarentena, com esta flexibilização, parte da responsabilidade do confinamento foi transferida aos indivíduos. O resultado tem sido a ruptura catastrófica com estas medidas na maioria do país e o aumento galopante dos casos. Na mídia, grassam imagens de ruas, comércios, praias e parques lotados; nas redes sociais, os relatos são de festas, churrascos e aglomerações em todos os lugares. 14 Um levantamento da Parent in Science constatou que entre os docentes, enquanto 20% dos homens sem filhos disseram não terem conseguido finalizar artigos para submissão durante a pandemia, entre mulheres com filhos, essa marca foi de 51,38%. Disponível em: https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,producao-cientifica-de-mulheres-despenca-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus,70003306675. Acesso: 25 jun 2020. 335 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) fonte permanente de estresse e angústia: do cheiro de churrasco ao som de risadas e músicas altas que saltam da vizinhança aos grupos no mercado com seus imensos fardos de cerveja e máscaras no queixo; tudo remete à indiferença de uma população que afastou de si a morte como uma possibilidade. O imaginário pouco a pouco vai se moldando a este momento tanático. Todos os dias chegam as notícias de diversos lugares do mundo mostrando hospitais lotados, pessoas morrendo em suas casas, corpos sendo depositados nas ruas, cemitérios lotados, covas coletivas, pessoas que enterraram seus entes sem poder se despedir adequadamente (pois trata-se de uma doença contagiosa), jovens saudáveis, crianças, mães, todos falecendo de repente. Sonho com cadáveres, vermes, perseguições, armas, velórios, morte. Temo por minha mãe, longe de mim neste momento, não suportaria perdê-la para um vírus estúpido. Temo a minha própria morte, o abandono de meus filhos, a tristeza deles em se perder a mãe tão cedo. Por outro lado, enquanto escrevo estas linhas, não consigo deixar de rever muitos de meus privilégios: emprego estável, contas em dia, estar segura em casa e a justa divisão de tarefas. Esta não é a realidade da maioria das mulheres que são mães em meu país. Neste cenário de crescente instabilidade e incertezas, são as mulheres que têm arcado com a maior parte dos custos físicos e emocionais da pandemia. Muitas, mesmo dentro de casa, não estão em um ambiente seguro por conta do machismo enraizado15. Outras, neste momento, com creches e escolas fechadas, além da carga redobrada nos trabalhos de cuidados, não terão outra opção a não ser desistir do emprego e conquistar sua autonomia financeira16. Outras ainda, ocupando empregos informais e precarizados estão arriscando as suas vidas e a de seus filhos para trazerem o sustento para casa17. A grande maioria destas mulheres são o resultado de nossas desigualdades históricas e raciais e hoje são alvo de uma política de Estado que torna as suas vidas e a de seus filhos invisíveis, precárias e matáveis. É entre estas mulheres mais pobres (e geralmente negras) que as desigualdades se acentuam durante a pandemia. Creio que, neste momento, são as fraturas expostas de uma mulher pobre e negra que melhor evidenciam a maternidade durante a pandemia em um país desigual como o Brasil. M., empregada doméstica de uma família de grande influência política no Recife, foi instada a trabalhar durante a quarentena. Não tendo com quem deixar seu filho de 5 anos (creches e escolas estão fechadas), levou15 Estima-se que, em São Paulo, o número de casos de violência contra as mulheres durante o período de confinamento tenha aumentado em 50% em relação ao mesmo período ano passado. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarentena-por-coronavirus.shtml. Acesso: 25 jun 2020. Outra pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Decode Pulse identificou um acréscimo de 431% dos relatos de briga de casais no Twitter no período de isolamento. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/20/relatos-de-briga-de-casais-aumentam-431percent-desdeo-inicio-do-isolamento-provocado-pelo-coronavirus-diz-estudo.ghtml. Acesso: 25 jun 2020. 16 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/mulheres-sao-as-maiores-vitimas-da-pandemia/. Acesso: 25jun 2020. 17 Atualmente, entre a população ocupada no emprego informal 42% corresponde ao emprego feminino. MENDES, Janaina D.S. As mulheres a frente e ao centro da pandemia do novo coronavírus. Metaxy Revista Brasileira de Cultura e Politica em Direitos Humanos, no1 v.2. 2019 336 Maternidades Plurais o consigo a casa de sua patroa. Enquanto descia do prédio para passear com o cachorro da casa (função que não era a sua), deixou-o por breves instantes sob os cuidados da patroa. Foi o suficiente para que esta, alegando que o menino fazia birra, o colocasse dentro do elevador, acionando o comando para o nono andar. Quando o elevador chegou, o menino acessou uma área proibida e caiu de uma altura de 35 metros, falecendo logo depois18. Não se sabe por que a patroa de M. acionou um andar mais alto do que deveria, visto que M. estava no térreo; nem por que não pôde ficar alguns minutos a mais com o menino. Ela foi autuada em flagrante, mas foi libertada no mesmo dia sob uma fiança de 20 mil reais e deve responder em liberdade por homicídio culposo. Infelizmente, a história desta mãe não é excepcional devido à precariedade com que vidas negras figuram aos olhos de nossa sociedade19. Mas ela expõe as feridas de uma sociedade onde as desigualdades sociais são fruto da herança colonial que se estruturou sobre os pilares de gênero, classe e raça formando hierarquias que se justapõem. Estas hierarquias são atávicas em nosso sistema e se capilarizam por todo nosso tecido social. Em meio a pandemia, é na dialética das relações entre patroa e empregada que o legado escravocrata se atualiza: a primeira que preserva sua vida em casa, sendo servida pela segunda, que se desloca até ela, arriscando sua vida e a de seu filho para prover o seu precário e urgente sustento material. Soubemos depois que a pequena vida de seu filho, desde o início fadada aos riscos e perigos da vulnerabilidade social, tem seu preço estipulado em aviltantes 20 mil reais. Como mãe, compartilho imensamente a dor de M. Sobretudo a dor moral. Estive por dias refém de uma imagem angustiante ao imaginá-la vendo seu filhinho caído em frente ao prédio enquanto passeava com o cachorro na rua. Não conseguia deixar de sentir sua aflição ao me colocar em seu lugar e imaginar a perda de um de meus filhos de forma tão absurdamente trágica. A dor do outro, mais que nunca, é minha dor. A minha experiência próxima é forjada na experiência distante do Outro. No entanto, infelizmente, em um país forjado pelo abismo das diferenças históricas de classe, raça e gênero que são traduzidas em desigualdades abismais, as nossas diferenças se findam neste complexo denominador comum que é a maternidade. Por mais que a trajetória de vida de uma criança seja um intrincado feixe de eventos contingentes, é possível projetar para meus filhos um futuro relativamente seguro, longe dos riscos de uma morte precoce nas mãos da polícia ou da indiferença dos que ocupam o topo. Enquanto não houver um Estado forte voltado para a preservação e valorização da vida humana em todas as dimensões, mulheres como M. continuarão sendo principais alvos de políticas genocidas como as que agora têm sido praticadas durante a pandemia. E continuarão reféns 18 https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/07/caso-miguel-menino-que-caiu-do-9o-andar-de-predio-nao-tera-missa-de-setimo-dia-por-causa-do-coronavirus.ghtml. Acesso: 25 jun 2020. 19 Além de M., na mesma época houve outros casos de mortes de crianças negras_ algumas delas pelas mãos da polícia. Segundo dados da Unicef, o Brasil é o 5º país que mais mata crianças e adolescentes no mundo. A maioria destas crianças são negras, segundo um levantamento feito pela ONG Rio de Paz que constatou que entre 2007 e 2019 foram 57 crianças mortas entre sete e catorze anos, vítimas de balas perdidas no Rio de Janeiro. In BARROS, Rachel, A letalidade policial e a morte da Infância nas favelas cariocas. FASE. Disponível em: https://fase.org.br/pt/informe-se/artigos/aletalidade-policial-e-a-morte-da-infancia-nas-favelas-cariocas/. Acesso: 25 jun 2020. 337 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) da empáfia e apatia dos estratos mais altos e privilegiados; suas vidas e a de seus filhos seguirão sendo descartáveis. Antes que isso aconteça, jamais será possível falar de um “novo normal”, seja lá o que isso signifique. 338 Maternidades Plurais 53 Narrativas como mãe pesquisadora: as transgressões diárias em tempos de pandemia Fabiane Freire França1 Escrever sobre o momento que vivo hoje, como mãe pesquisadora, me faz ter uma imensa gratidão pela oportunidade cedida pelas organizadoras desta obra, e também por ter o privilégio de elucidar tantas inquietações, provocações e angústias diante do cenário atual em que o não reconhecimento das nossas lutas cotidianas ficam ainda mais evidentes. Chamarei a atenção para dois eixos reflexivos nesta conversa, são eles: “A experiência de ser mulher e mãe pesquisadora” e “O compromisso social como mãe e profissional em tempos de pandemia”. Para pensar estes eixos reflexivos, apresento minha trajetória pessoal e profissional, de forma breve, pois contempla as discussões em destaque deste relato. É imprescindível que o meu lugar de fala2 seja antes apresentado, para que possamos estabelecer a conversa sobre as temáticas em pauta. Sou militante feminista, antes de ser docente do Ensino Superior com doutorado na área de educação, por isso a escrita deste material envolve as minhas inquietações pessoais, acadêmicas e científicas. Sou mulher, nordestina, favorecida economicamente pelo capital intelectual e cultural que a universidade pública me propiciou. Além disso, sou mãe por escolha! Tenho consciência que as decisões e as divisões das atribuições com o meu companheiro me favorecem nesta caminhada. Partilhar estas experiências é um compromisso social que tenho com a sociedade, em particular com as mulheres que vivenciam desafios semelhantes aos meus. As práticas e as ações descritas aqui têm ainda o intuito de sensibilizar as/os leitoras/es sobre as cobranças exigidas às mães, com foco 1 Docente na Universidade Estadual do Paraná - Campus de Campo Mourão. Colegiado de Pedagogia. Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento (PPGSeD). Assessora Seção de Ensino Portaria N. 038/2014-D. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura - GEPEDIC. Coordenadora do Centro de Educação em Direitos Humanos (CEDH Local). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8009677334152001 2 O conceito de lugar de fala é usado em diferentes contextos e por autores como Bourdieu, Foucault, Butler e recentemente teve visibilidade pela autoria de Djamila Ribeiro (2017) que chama a atenção para os feminismos, com destaque para percepções políticas dos lugares que mulheres negras e indígenas ocupam. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 112 páginas, 2017. (Coleção: Feminismos Plurais). 339 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) aqui para as cientistas e pesquisadoras, perpassando pelas hierarquias nas relações de gênero em que indagamos os motivos que levam a maior parte dos homens a assumir o espaço público e as mulheres a ficarem responsáveis exclusivamente pelo espaço privado. A não compreensão e os equívocos relacionados à condição de ser mãe pesquisadora contribuem para a manutenção de práticas cotidianas de exclusão, sobrecarga de trabalho e exaustão. Meninas e mulheres são ensinadas que limpar, arrumar, cozinhar e cuidar das crianças são responsabilidades exclusivas do campo considerado feminino. Não à toa que os homens ocupam as cadeiras de maior escalão no senado, nas empresas e em outros espaços públicos e de poder. Todavia, o próprio momento de pandemia tem evidenciado um protagonismo de mulheres em diferentes países no que tange ao combate à Covid-19. É o que evidencia a reportagem assinada por Pablo Uchoa à BBC News Brasil, em abril de 2020, intitulada “Coronavírus: por que países liderados por mulheres se destacam no combate à pandemia?”3. Um dos argumentos que evidencia este sucesso na liderança das mulheres está justamente na adoção de medidas recomendadas por cientistas e especialistas da área da saúde. Outro fator refere-se ao modo como nós mulheres, socialmente e não naturalmente, somos formadas para trabalhar e liderar de modo mais colaborativo e empático. E tais mudanças na formação de mulheres líderes estão ancoradas no campo dos estudos feministas e de Gênero, que problematizam as relações de poder e modos agressivos de lideranças. Neste sentido, o presente relato tem como objetivo se constituir como possibilidades de reflexão, partilha e ação aos diferentes grupos de mães pesquisadoras que lidam cotidianamente com as exigências sociais e a autocobrança. Espero que as minhas experiências, vivências e sugestões aqui apresentadas possam ser profícuas para a escuta e o acolhimento de outras mães que vivenciam o turbilhão de funções e atribuições que são exigidas das meninas, mulheres, mães, pesquisadoras, cientistas e mães cientistas/pesquisadoras em sua tripla jornada de trabalho. A experiência de ser mulher e mãe pesquisadora Para explicitar os caminhos que me levaram à docência no Ensino Superior e a experiência de ser pesquisadora e mãe, eu preciso retomar momentos da minha vida que foram decisivos para compreender e refletir sobre a minha vivência atual. Essa teia complexa se desenrola ao evidenciar os borramentos das fronteiras geográficas, sociais e culturais ao longo da minha vida. Assim, apresento essa experiência como uma viagem que transformou o meu corpo, a minha identidade o meu modo de ser, assim como expresso por Guacira Lopes Louro 4 (2013, p. 15), quando apresenta a viagem de 3 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52376867. Acesso: 01 jun 2020. 4 LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 340 Maternidades Plurais modo metafórico, “as mudanças da viagem podem afetar corpos e identidades em dimensões aparentemente definidas e decididas desde o nascimento (ou até mesmo antes dele)”. Nasci no sertão nordestino, em uma comarca da cidade de Jequié-BA, onde, na década de 1980, não havia água encanada nem energia elétrica. Minha mãe e meu pai estudaram até a 4ª série dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em uma escola rural que só ofertava essa primeira etapa da Educação Básica. Tenho um irmão mais novo e me recordo que já na infância eu reclamava dos favorecimentos oferecidos a ele pelo fato de ser menino. Em outras palavras, eu desejei ser o meu irmão pelas regalias que ele tinha, tanto na manutenção e organização da casa, quanto na liberdade de se expressar. Foram as leituras e as pesquisas no Ensino Superior que me propiciaram a compreensão de que as cobranças direcionadas às meninas e aos meninos não são naturais, são culturais e sociais. Quando eu tinha quatro anos de idade, minha família mudou-se para a cidade de Maringá, interior do Paraná, pois a minha mãe desejava que meu irmão e eu tivéssemos a oportunidade de concluir os estudos. Minha mãe desconhecia as modalidades de ensino, nem sabia da existência da universidade, mas queria nos oportunizar o que lhe foi impedido, concluir o processo de escolarização da Educação Básica. Toda a minha trajetória escolar foi em escola pública e de periferia e nela encontrei profissionais que foram referências para a escolha da minha profissão. Fui a primeira mulher da minha família, por parte de mãe e de pai, a concluir mestrado e doutorado. Tanto é que algumas tias me pediram para fazer uma consulta médica quando souberam que tenho o título de doutora, afinal, acreditam que só é doutor(a) quem é médico(a). E destaco na linguagem o gênero masculino como uma provocação para repensarmos as profissões reconhecidas como masculinas. Ao explicar que sou doutora em educação e professora, as expectativas em relação à minha profissão já não são as mesmas: “ah, na verdade você é só uma professora! E cuidado, precisa casar e ter filhos, logo!”. É neste contexto que entra a complexidade da maternidade. Sempre me preocupei em concluir todas as etapas acadêmicas, ter um emprego estável e quem sabe conhecer alguém para dividir a vida. Somente a partir de todas estas “garantias” foi que decidi buscar na terapia as respostas sobre a maternidade. E sim, nas sessões com a minha terapeuta, me dei conta que a minha dúvida não estava na decisão de ser mãe ou não, mas na indecisão sobre o parceiro que havia escolhido para compartilhar a vida e esta função que demanda engajamento, afeto e responsabilidade. Com o tempo, passei a entender que esta é uma lógica imposta socialmente e que existem outros caminhos possíveis de ser mulher, profissional, mãe, se reinventar, se relacionar e viver. A Lívia chegou na minha vida em outubro de 2017. Foi tudo muito rápido e as adaptações foram lentas. Mais uma vez, destaco a minha condição de privilégio por ser servidora pública, por ter conseguido aos poucos aprender a ser mãe em um período intenso dos seis meses da licença maternidade, mais um mês de férias. Lamento muito pelas mulheres que não têm o seu direito à licença maternidade, ou mesmo aquelas que precisam voltar ao trabalho após os quatro meses garantidos pelas leis trabalhistas, pois este tempo é curto para readaptação, sobretudo quando se trata de amamentação. 341 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Lamento também pelo curto período de licença paternidade, mais uma norma social que diz o espaço que os homens devem/podem ocupar como pais. Com isso, foi realmente difícil o retorno ao trabalho e ter que deixar a minha filha, com apenas sete meses, em período integral na escola. Por trabalhar em uma cidade à noventa quilômetros da minha residência a rotina da Lívia era muito intensa, pois ela já enfrentava a estrada comigo e minha amiga e companheira de trabalho, Suzana Morgado, a quem devo muita gratidão por também partilhar a maternidade comigo nos dias de longos períodos de trabalho e cuidados com a Lívia. Em relação ao meu companheiro, Júnior Perego, por ser representante comercial, também trabalhava em outras cidades e partilhava comigo a vivência e as responsabilidades com Lívia aos fins de semana. Com a chegada da pandemia, readequamos toda a nossa rotina, e para a Lívia tem sido uma alegria ter a mãe e o pai todos os dia em casa. Na universidade eu desenvolvo atividades de ensino, pesquisa, extensão e de gestão. Extrapolo a carga horária de 40h semanais e por mais que a terapia tenha me mostrado que não há necessidade de provar o quanto posso ser multifuncional, passei a entender, sobretudo nestes períodos de confinamento, que a minha qualidade de vida e saúde mental dependem da organização do meu tempo, dos momentos que passo com a Lívia, dos afetos, mimos e risos. Para isso é preciso reorganização dos períodos de infinitas reuniões remotas, aulas da graduação e pós-graduação, orientações, preenchimento de tabelas e planilhas, pareceres, etc, ainda mais potencializados com o período da quarentena. Aprendi com a Lívia, nesta experiência de ser mãe, a parar, respirar, agradecer e contemplar a vida, seja no momento de dividir o preparo das refeições com o pai dela, seja no momento de me permitir apreciar as plantas, brincar com a nossa cachorrinha, a Lili, fazer uma meditação, um alongamento, estar em contato com a natureza. E estas percepções só puderam ser exploradas após os períodos de confinamento. No entanto, como nem tudo são flores, por diversas vezes cheguei ao meu limite, gritei, chorei, me aborreci. Em algumas ocasiões, por acompanhar o momento político sórdido que vivemos, o que me desgasta demais; outros por não conseguir dar a atenção que a Lívia merece, pois mesmo em casa, com todos os privilégios narrados, tentei reorganizar o tempo, mas por vezes trabalho três períodos por dia, ainda que de modo fragmentado. Além disso, sofro por imaginar as dores, perdas e temores que muitas famílias têm passado com a Covid-19 e também pelas pessoas que não têm condições de sobrevivência digna neste modo de produção capitalista e selvagem, ainda mais agravada neste período. Com efeito, no tópico a seguir passo a dialogar sobre o meu posicionamento e compromisso social como mãe pesquisadora e professora universitária. O compromisso social como mãe e profissional em tempos de pandemia 342 Maternidades Plurais Algumas pessoas que convivo, colegas de trabalho e mesmo familiares, me questionaram sobre quais atribuições eu deixaria de exercer após o nascimento da Lívia. Eu respondia que iria esperar as coisas acontecerem para que pudesse decidir com calma. Para vocês terem uma ideia, nos últimos meses de gestação, eu fui a eventos científicos e cumpri as minhas funções na universidade até a última semana da gravidez. Tive uma gestação tranquila, por isso fiz planos de ir a um congresso fora do país e de levar a Lívia, com apenas dois meses de vida. Idealizações desfeitas, os três primeiros meses de maternidade foram de intensa adaptação, mais especificamente a dor da amamentação. Diversas pessoas me diziam para desistir, que eu não precisaria sofrer tanto com esse processo, mas eu insisti e a Lívia foi amamentada até os dois anos de idade. E afinal, o que eu deixei de fazer após ser mãe? Eu não sei dizer o que deixei, mas posso ressaltar o que passei a fazer com mais vigor: ações, pesquisas e estudos voltados a educar crianças feministas. Sim, a Chimamanda Adichie5 é uma das responsáveis por isso, sobretudo, quando diz que uma mãe de primeira viagem pode permitir-se falhar e que não precisa “dar conta de tudo” como enaltece a cultura social. Com isso, eu consigo ter mais leveza neste caminhar, pois faço parte de uma rede que me apoia, desde o meu companheiro (e a sessões de terapia de casal foram fundamentais neste processo), a minha família e a minha querida amiga e funcionária, Claudineia Guabiraba, que nos dá um suporte na organização da casa, uma vez por semana. Sem a Clau, provavelmente eu não teria concluído este texto e parte de muitas outras atividades que a universidade exige. Também destaco a relação de amizade e sororidade da minha mãe, Miralva Freire, que, ao me ver crescer como pesquisadora, passou também a dialogar comigo e problematizar as questões de gênero, ocupou outros lugares como mulher e foi meu porto seguro, em especial quando descobri que seria mãe e passei a olhar a vida por outras perspectivas. Além disso, tenho outra rede de apoio fundamental, minhas amigas que me motivam a dialogar e discutir sobre os feminismos e suas intersecções de gênero, raça, etnia, classe, geração. Minha amiga e comadre Claudia Priori, que por diversas noites ficou com a Lívia para que eu ministrasse as minhas aulas, assim como as minhas queridas amigas de trabalho que me dão suporte, Suzana Morgado e Ceres Ribas, são exemplos desta aliança potente nesta trajetória como mãe pesquisadora. Há também minhas queridas e eternas professoras e orientadoras da Universidade para a vida: Ana Cristina Teodoro da Silva, Eliane Maio e Geiva Carolina Calsa, dentre tantas outras que não caberiam nestas páginas, vocês me empoderaram! Vocês me permitiram ampliar as minhas visões de mundo, me apresentaram teorias que me desestabilizaram e que me acalmaram, teorias como local de cura, como expresso por bell hooks6. 5 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 6 HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como pratica da liberdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: Ed WMF Martins Fontes, 2017. 343 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Pois bem, ao invés de falar sobre o que eu deixei de fazer ao ser mãe pesquisadora, eu falarei sobre o que eu tenho feito, justamente por contar com mulheres que fazem a diferença e que deixam suas marcas. Faço parte de dois programas de pós-graduação, um Interdisciplinar e outro em Educação. Mesmo após o nascimento da Lívia, eu assumi este compromisso na pesquisa, pois quero que muitas outras alunas, orientandas, estudantes aspirantes nestas discussões possam fortalecer estas redes de pesquisa em um compromisso contínuo de indagação aos padrões de gênero, bem como terem a oportunidade de reconhecer e ocupar outros lugares de fala. Quero também fortalecer as práticas de educar crianças feministas, tanto nas pesquisas das orientandas, quanto dos orientandos. Homens não podem falar por mulheres, mas podem dialogar conosco e problematizar os padrões machistas, sexistas, misóginos, homofóbicos e preconceituosos. Com este compromisso social, oriento também projetos de iniciação científica na Universidade, pois foi no curso de graduação em Pedagogia que tive a oportunidade, oferecida pela minha professora de Metodologia da Pesquisa, de conhecer outras funções da universidade pública que me abriram caminhos para pensar a história das mulheres, o nosso lugar de fala na ciência e as possibilidades de educar como prática da liberdade, como expresso por Paulo Freire 7. Coordeno o Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Diversidade e Cultura com a minha amiga de trabalho e de luta Claudia Priori. Temos ações por meio de seminários, oficinas e cursos de extensão que articulam as discussões da academia - de gênero, raça, etnia, arte, literatura, dentre outras temáticas — com a Educação Básica e a comunidade externa interessada. E os encontros continuam acontecendo de forma remota neste contexto de pandemia. Como docente ministro a disciplina de Metodologia da Pesquisa Interdisciplinar no mestrado e a disciplina de Educação em Direitos Humanos ao primeiro ano do curso de Pedagogia. Tenho muito orgulho de destacar esta disciplina da graduação que foi uma conquista em debates intensos para a garantia desta discussão na matriz curricular do curso. Além disso, no início deste ano, assumi a coordenação do Centro de Educação em Direitos Humanos do Campus de Campo Mourão que foi implantado mediante Resolução nº 007/2016 nos sete campi da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), como CEDH-LOCAL, no ano de 2016, e conta com a articulação de três núcleos centrais de discussões: Núcleo de Educação para as Relações de Gênero (NERG); Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NERA) e Núcleo de Educação Especial Inclusiva (NESPI). A implementação dessa resolução nasceu da inquietação de articular pesquisas e demais projetos já organizados e desenvolvidos pela universidade com o objetivo de expandir e produzir ações em rede voltadas às/aos estudantes, docentes, agentes universitários/as e comunidade externa interessada. Em 2016, logo que saiu a resolução, assumi a coordenação do Núcleo de Educação para as Relações de Gênero (NERG) e em 2018 deixei o NERG ao assumir a coordenação do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NERA), pois reconheci, como professora branca, a necessidade de falar com a população negra e traçar estratégias para a luta por uma representatividade 7 FREIRE, Paulo. Educação como prática a liberdade. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 344 Maternidades Plurais negra também na universidade. A este movimento político agradeço muito as parcerias de produção científica que firmei ao longo da vida com o meu amigo Delton Felipe. Neste período que assumi a coordenação do NERA, abri mão de assumir alguns cargos na universidade, um deles foi a coordenação local do CEDH, por temer não conseguir realizar as viagens e as ações necessárias por causa dos períodos de amamentação. Esta decisão me fez aprender muito com o movimento negro e colocar em ação muitas pautas dos objetivos do NERA com o suporte e a colaboração do representante discente do CEDH e meu orientando de Iniciação Científica, Lucas Alexandre de Lima. Com as experiências das coordenações dos dois núcleos e após a Lívia completar seus dois anos de idade, me senti mais segura e preparada para assumir a coordenação do CEDH-Local neste ano. Assim que entrei na coordenação, conseguimos expandir uma rede de acolhimento voluntário de mais de trinta profissionais da área de Psicologia que fazem atendimentos remotos à comunidade acadêmica neste contexto de pandemia. Antes disso, já tínhamos consolidado uma equipe de cinco psicólogas e um psicólogo que realizava este atendimento presencial no campus da universidade, bem como em projetos de extensão de Plantões psicológicos à toda população, para conhecerem os benefícios da terapia e saúde mental. E neste contexto de pandemia, esse projeto tem sido fundamental para trabalhar temas de saúde mental com muitas pessoas que precisam. Nesta rede de conhecimentos, empatia e alteridade, organizamos encontros virtuais para pensar em estratégias de como atender estudantes sem acesso digital e com dificuldades financeiras. Essas são ações e histórias de trabalho que contarei para a Lívia com muito orgulho do que foi possível fazer neste momento de crise e de reinvenção. Diante disso, estas são somente algumas das ações como mãe pesquisadora, de uma rede que a universidade pública possibilita em tempos de pandemia, por meio do ensino, da pesquisa, da extensão e da gestão. Poderia destacar outras ações, mas deixo o convite para conhecerem também as diversas Lives que emergiram destas iniciativas e com temas sobre educação inclusiva, gênero, ecologia, saúde mental, vidas negras, cotas raciais, artes, dentre tantas outras temáticas. Conteúdos estes que nos afetam e nos ensinam a transgredir os padrões sociais que nos prendem ao que consideramos normal, natural. Afinal, a pandemia veio nos afetar, nos fazer sair da zona de conforto, rever planos de viagens, festas e comemorações, reinventar as formas de contato humano, trabalho, comunicação, empatia, solidariedade, interação e também de vivenciar a maternidade. Ao narrar parte da minha trajetória acadêmica, como mãe pesquisadora, evidencio a relevância destes estudos e ações em uma espécie de rede que contribui para a disseminação dos estudos feministas. Ao encontro desta perspectiva, defendo uma educação transgressora, proposta por Bell Hooks, uma educação como prática da liberdade proposta por Paulo Freire em que estudantes possam narrarse e também conhecer outras histórias de vida, sendo que as narrativas pessoais e as discussões acadêmicas possam ampliar a nossa visão de mundo, como trocas de conhecimentos. Esse posicionamento político e teórico também faz parte do modo como converso com a Lívia, da maneira que exerço a maternidade. Por isso, narrar algumas das minhas histórias e memórias faz parte desta proposta de transgressão, reinvenção e elucidação das premissas feministas anunciadas por Adichie (2017, p. 12) quando afirma “eu tenho igualmente valor”. E vocês mulheres e mães pesquisadoras 345 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) saibam que temos igualmente valor e esse é um modo possível de ensinarmos nossas crianças, sobretudo em tempos de pandemia. Fabiane Freire França Mãe. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (GEPEDIC/Cnpq). Docente do colegiado de Pedagogia, do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento, da Pós-Graduação em Aprendizagem e Desenvolvimento nos Anos Iniciais da Educação Básica, ambos da UNESPAR/Campus de Campo Mourão e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (PPE-UEM). E-mail: fabiane.freire@unespar.edu.br. Coordenadora do Centro de Educação em Direitos Humanos da UNESPAR/Campus de Campo Mourão. Assessora da Divisão de Graduação. Vicediretora da Editora Fecilcam/Unespar. 346 Maternidades Plurais 54 A Fernanda psicóloga, aquela que é mãe do Théo Fernanda Abreu Marcacci1 Fui mãe já bem adulta, aos 34 anos, embora me pareça que nunca se está suficientemente adulta para gerar o primeiro filho. O relacionamento com o pai do meu filho foi péssimo, um filme de terror. Ele é um homem muito bonito, mas com muitas questões internas para resolver, acredito eu. Por carência me envolvi com ele no carnaval e engravidei dois meses depois, não o conhecia direito e, quanto mais conheci, mais conflitos tivemos. Não me culpo, acredito que grande parte do comportamento humano é instintivo. Esse pode ter sido o motivo de ter engravidado tão rapidamente, de alguém que eu mal conhecia, apesar dos meus trinta e tantos anos e do fato de à época eu estar terminando a segunda graduação. Diante disso, quando eu estava grávida e vivendo um relacionamento conturbado, minha mãe descobriu que o câncer dela poderia estar voltando. Eu frágil inventei para mim que deveria ficar com ele para criar meu filho. No entanto, a falta de respeito na relação foi aumentando em histórias que não me eximo a lembrar, mas que em nada contribuem para minha saúde ou felicidade. Foram episódios difíceis. Ele foi embora de casa algumas vezes, mas ele acabava voltando. Na verdade, acredito que era havia uma comodidade na turbulência, nas brigas e em uma relação em que eu ia exausta — física e emocionalmente — trabalhar e, mesmo assim, voltava para casa. Mesmo vivendo esse “inferno”, com sete meses de gravidez, me graduei em História e a beca ficou bem bonita no barrigão. Quando meu filho nasceu, o pai não foi à maternidade ver o parto, que aconteceu de manhã cedo. Chegou à tarde. Dormiu na maternidade conosco naquele primeiro dia de vida do meu filho. O bebê chorava muito e eu não tive leite. Acredito que estes sintomas que eu e meu filho apresentamos foram fruto do estresse que vivemos durante esses nove meses. Acredito até que, se fosse para patologizar, eu poderia dizer que tive um quadro de depressão pós-parto. Algumas vezes me percebia meio alheia ao que estava acontecendo e posso dizer que por isso perdi grande parte da evolução deste período da vida do meu filho. Eu estava meio robótica, prática. O parto foi uma cesariana. Creio que meu filho ainda não estava pronto para nascer, nem o meu corpo estava pronto para parir. Esse pode ter sido um dos fatores da ausência de leite. Todos os profissionais no hospital me pressionaram muito a amamentar, mas não saia leite. Depois de quinze horas 1 Psicóloga e Historiadora. Mestra em Educação. Mestranda em relações étnico-raciais pela UFSB. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0479636696676838 347 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) de muito choro e desespero do neném, uma enfermeira orientou que comprássemos leite em pó. Passei a noite com neném nos braços, pois não tive apoio sequer para que fosse comprado de madrugada. O neném chorou até o dia amanhecer quando meus pais chegaram e foram comprar. Acredito ter vivido uma experiência de violência obstétrica. O enfermeiro pressionou muito a minha barriga. A médica enfiou as duas mãos no corte para puxar o neném e teve que fazer muita força para tirá-lo de dentro de mim. Acredito que toda essa força sobre mim fez com que parte do meu endométrio se deslocasse e hoje eu tenha desenvolvido endometriose. Uns dois anos após o nascimento dele, comecei a ter dores muito fortes no abdome durante o período menstrual. Percebi que tinha aparecido um caroço, pouco acima da minha virilha, isso me deixou um pouco assustada, pois minha avó e minha mãe morreram de câncer de útero. Fiz a biopsia e constatou-se a endometriose. Orientaram-me a permanecer de repouso. O bebê chorava muito e em vez de descansar, tive mais uma briga com o pai do meu filho. Eu não aguentava mais e a situação estava insustentável. Eu disse que ele fosse embora imediatamente, ele não queria, mas eu consegui ser firme e ele saiu de nossa casa pela última vez. Ele se mudou para uma casa em frente à minha e, durante aquele verão, presenciei festas constantes e música muito alta. As visitas ao filho eram inconstantes e depois que mudou de cidade e aparecia poucas vezes no ano. Atualmente, posso dizer que a ausência compõe o cenário final de uma relação marcado por desentendimentos. Fiquei os três primeiros anos morando sozinha com meu filho em minha casa, em um terreno de mil e quinhentos metros e sem vizinhos. Tenho orgulho em dizer que dei conta bem, meus pais me visitavam sempre. Quando terminou a licença maternidade, deixava meu filho na casa de minha mãe com a babá e buscava no fim do expediente. Durante esse período, trabalhei como psicóloga do setor de recursos humanos da prefeitura da cidade onde vivo. Treinei todos os funcionários do município em relações interpessoais no trabalho. Treinei inclusive os secretários municipais, em liderança no trabalho. Quando meu filho estava com dois anos, ingressei no Mestrado em Educação em uma cidade que fica a duzentos quilômetros de onde vivo. Meu filho ficava com minha mãe e eu dirigia 500 km por semana em uma BR. No início do ano em que defendi minha dissertação, minha mãe faleceu. Fiz a última disciplina que faltava no programa enlutada e tirei nota abaixo de oito. No entanto, consegui aprovar e, quatro meses depois, participei da defesa. A minha banca de defesa não foi um momento feliz: recebi duras críticas acadêmicas. Pessoas em posições de poder deveriam entender a responsabilidade de suas palavras sobre as outras. Me senti humilhada publicamente. A minha dissertação foi aprovada, mas aquele momento que deveria ser de conquista, tornou-se um episódio de vergonha e raiva na minha história. Minha mãe ficou internada durante dez dias. Fiquei com ela no hospital e meu pai ficou com meu filho na cidade onde moramos, a cem quilômetros de distância. Eu dormia e passava o dia no hospital e ali preparava as aulas ao lado dela, à noite ia lecionar na faculdade onde nós duas trabalhávamos. Ela havia sido internada por uma infecção urinária que não curava. Em decorrência do excesso de especialização, o médico que a atendeu só cuidava da parte urológica. Não percebeu o tumor que 348 Maternidades Plurais estava pressionando a bexiga e causando a dificuldade de urinar e a infecção. Após uma semana, eu percebi, no meio da noite, que ela estava respirando com dificuldades. Chamei o plantonista que pediu a ressonância magnética, pela manhã o pneumologista constatou a metástase. Em um hospital cheio de médicos e enfermeiros, eu descobri o câncer de minha mãe, depois de uma semana. Uma semana depois da morte dela, eu voltei a lecionar. Minha mãe era psicóloga, assim como meu pai e eu. Como eu e ela trabalhávamos na mesma faculdade, tive de substituí-la em algumas turmas. Ela era uma professora muito querida e, quando entrei nas salas para substituí-la, muitos alunos começaram a chorar. Eu me parecia muito com ela. Tive que controlar as minhas emoções, para acolher a tristeza deles. Consegui! Não foi o meu melhor semestre como docente, mas acredito ter conseguido não prejudicar a aprendizagem dos alunos. Meu filho obviamente era uma criança muito agitada e, por diversas vezes, ouvi de leigos que ele era hiperativo. Eu sabia que ele não era. Sabia que a agitação dele era fruto do estresse da gravidez e da forma libertária que escolhi para criá-lo. A mesma forma com que fui criada, sem punições, apenas com orientações. Com o tempo, ele foi aprendendo a se controlar e se adequar. Atualmente, é um menino adaptado ao sistema, sabe cumprir as normas que lhe são impostas. Nunca recebi reclamações sobre seu comportamento nas escolas onde estudou. No entanto, tenho orgulho de dizer que ele não foi corrompido pelo sistema, é criativo ao extremo e desenvolve maravilhosamente o seu dom musical a cada dia que passa. É um menino gentil e bom. Quando minha mãe morreu fomos eu e meu filho morar com o meu pai para nos apoiarmos mutuamente. Meu pai cumpriu lindamente a função de “avôhai”. Fomos levando a vida, pai com seus atendimentos clínicos, Théo estudando, dançando, tocando e desenhando. Eu no trabalho retornei ao meu nicho de origem, ao campo que amo, que é a saúde mental, voltei a ser Psicóloga do CAPS. No meio disso tudo, fiz mais três pós-graduações. Já havia concluído duas especializações antes do Théo nascer. Há aproximadamente dois anos, ingressei no mestrado em Relações Étnico-raciais na Universidade Federal do Sul da Bahia e hoje, na reta final, concluo a minha pesquisa sobre o peso da interdição às religiões de matriz africana na saúde mental de afrodescendentes. Durante o mestrado, fiz graduação em Filosofia, à distância e me graduo em breve. No início deste ano de 2020, fui ao Rio de Janeiro apresentar um trabalho sobre depressão em um Colóquio sobre Espinosa. Não nego que me senti muito bem em meio àquela gente tão sabida! Meu trabalho foi bem aceito. O negócio é o seguinte, decidi que ia ser uma mãe presente, mas que também ia ser a profissional e a cientista que sempre sonhei em ser. Minha mãe foi meu exemplo, me criou bem, porém nunca deixou de trabalhar para isso. Ela e meu pai eram proprietários de uma empresa de consultoria em recursos humanos durante a minha infância. Eles atuaram nas maiores empresas de Belo Horizonte. Ela também foi instrutora do SENAI por muitos anos e lecionou em diversas faculdades. Eu nunca senti sua falta, ela estava sempre lá para mim. Almoçávamos juntas todos os dias e passávamos os finais de semana em família, conversando, tomando banho de piscina no quintal ou indo para o sítio como todo bom mineiro. Meus pais, apesar de não frequentarem nenhuma religião, não tinham o hábito de beber, então estavam sempre genuinamente presentes. Assim tenho tentado fazer com meu 349 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) filho, quando estou em casa, estamos juntos. Inclusive agora, ele estava aqui ao lado, lendo e corrigindo parte do que escrevi para vocês. Quando me graduei em Psicologia pela PUC de BH, decidimos vir morar em Caravelas no Sul da Bahia. Vivemos em uma vila de pescadores. Por oito anos, eu lecionei em Teixeira de Freitas que é a cidade polo da região. Atualmente, a estrada tem ficado perigosa, ocorreram diversos assaltos e eu cansei de dirigir duzentos quilômetros por três ou quatro vezes na semana. Optei por trabalhar só com pós-graduação. Há seis meses, meu pai descobriu que estava com câncer de pele, fez a cirurgia e teve que ir para BH fazer o tratamento. Ficamos, eu e Théo, três meses sozinhos. Foi desafiador cuidar dele, da casa e dos bichos, e eu tenho vários: gatos, cães, jabutis, galinhas etc. Deu certo, estamos todos bem. Nesta pandemia estamos isolados os três. Estamos nos virando como dá. Minha qualificação no mestrado foi por vídeo conferência e eu não fiquei feliz com isso. Sou um pouco nostálgica, gosto da presença física. Viro-me com as tecnologias, mas prefiro o calor humano. Foi um pouco difícil me concentrar na pesquisa. Acho que é o medo. Em uma vídeo-conferência que assisti, organizada pelo Conselho Regional de Psicologia do DF com o tema: Psicologia e Racismo, ouvi a psicóloga Joyce Avelar dizer que vivemos um momento de luto e de luta. Deve ser isso. Lutar sem agir, talvez seja da forma como faço agora, por meio do uso da linguagem. Espero que as palavras tenham mesmo o poder de transformarem-se em ideias e em ações. Espero que a Psicologia cumpra com o seu compromisso político de fazer com que sejam ouvidas as mulheres e a todas as vozes que não têm vez diante de realidade sociais tão nefastas: machistas, racistas, homofóbicas, tão distantes do amor. Por falar em amor, não havia me relacionado novamente até o ano passado, quando reencontrei um grande amor do passado. Resolvi tentar de novo, não rendeu muita coisa, mas pelo menos me mostrou que ainda posso tentar. Agora que meu filho cresceu, acredito que dá para dividir uma parte do tempo das emoções com as minhas. Estou aberta ao amor, embora me vire bem sem ele. Hoje consegui enviar a minha dissertação para a avaliação da banca, sinto um misto de alívio e apreensão. Minha banca de defesa será virtual. É isso aí pessoal, não sei se era o que tinha que ser feito, mas como gosto de me aventurar, estou aqui, exercendo a minha liberdade de ser. Sigamos tropeçando e seguindo em frente, como dizia uma música daqui do Nordeste: “Beber, cair e levantar”. Sempre avante! Apesar dos vírus e dos tropeços, estamos aí e vamos sair dessa da melhor forma possível. Assim como já saímos de outras tantas. Força para nós, meninas! 350 Maternidades Plurais 55 A maternidade precursora da ciência Fernanda Garrides1 Era a filha da secretária. A mulher com ensino fundamental incompleto que costumava ir acompanhada de suas crianças para o trabalho. Um laboratório de patologia clínica que levava o nome de um dos ex-reitores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor! Era como o chamavam. Mais que o pronome de tratamento, descobri, posteriormente, ser seu título acadêmico. Rompia a cadeia de comando, chamava a filha da secretária, apresentava seus quadros emoldurados de protozoários e a fazia amiga de um microscópio. Muito prazer! Foi assim que a ciência se apresentou a mim. Moradora da Zona Oeste, família do Vale do Jequitinhonha, nenhum título de graduação em casa para pendurar na parede, egressa de escolas públicas e mãe adolescente. Às vezes, ou muitas vezes, a ciência parece inalcançável! Dezessete anos, uma criança no ventre e aquele sonho de ciências no laboratório de patologia clínica afogando-se no oceano da maternidade. Sua vida acabou! Exclamavam os convictos do certeiro naufrágio nesse oceano. E os estudos? Perguntavam os descrentes da densidade do barco em meio às ondas que estavam por vir. Pode uma mãe querer ser cientista? Isso mesmo! Por um segundo mova o imaginário das profissionais de nível superior ou de pós-graduação, cientistas, pesquisadoras, que viraram mães, para as jovens e mulheres que foram mães, “apenas” mães, sem títulos acadêmicos, sem cursos profissionalizantes... Uma mãe que virou cientista! Muito prazer! É assim que me apresento à ciência. Quase 40 semanas de gestação e uma primeira fase de seleção à graduação. Os olhares de julgamento. Mãe prestando vestibular? Vai nascer quando? Banheiro! Respira, concentra. Banheiro! A cadeira é pouco confortável. Banheiro! A compressão da bexiga pelo útero e o aumento de líquido circulando pelo corpo. Banheiro! A gestão do tempo. Banheiro! Não é preciso pesquisar para saber que o vestibular foi invenção de um homem. Ou será que esse realmente não é o ambiente para uma gestante estar? Nasceu! Segunda fase do vestibular. Pós-parto. Agora ninguém vai olhar para a barriga ou fazer perguntas estranhas. Olha! Um recém-nascido no campus. Espera! O que ele está fazendo aqui? A 1 Doutoranda em Epidemiologia em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3549247509161138 351 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) prova ainda é longa, mas o desafio agora é outro. Os seios cheios de leite alertam: é hora da amamentação! Sair para alimentar a criança ou concentrar em uma prova de matemática com questões abertas? Seriam as ondas do oceano da maternidade começando a revirar meu barco? Deixei o leite, ele vai conseguir esperar. Mas e se acabar e ainda estiver com fome? Culpa! Péssima mãe! Mas já? Concentra na área do hexágono. Ele está lá fora, abrindo os olhos para a Faculdade. Esse vestibular é nosso! Passei em primeiro lugar! A aula começa em um mês! Onde está o manual de extração e conservação de leite materno? Perguntam minha idade. O absorvente de seio: preciso trocar! Ah, como você é jovem! Bem-vinda à Universidade! Aproveite todas as oportunidades! Será que aviso que sou mãe? Acho melhor não. Tenho que ser boa aluna. Ótima! Preciso de uma bolsa, um estágio... Vou à assistência estudantil. Só preciso de uma refeição acessível para o jantar. Mas, negaram! Jovem estudante, de 18 anos, que não mora com a família, mãe de um recém-nascido, desempregada... O pai trabalha! Obrigada! Agora sou totalmente dependente de um provedor para estudar. Passagem do ônibus, xérox, impressão, materiais, comida... Sem autonomia! Chego tarde, uma criança chorando, faminta. Tenho trabalhos, preciso estudar. Leio um capítulo de livro enquanto amamento. Provas e mais provas e uma noite inteira no hospital. Crianças adoecem, eles não sabem? Vou faltar à aula para... Estudar! Calourada? Preciso ir para casa! Trabalho em grupo? Vou fazer em casa e entregar minha parte! Encontrar no fim de semana para estudar? Tenho mini roupas para lavar. Artesanato para produzir e vender. Autônoma. Contando o dinheiro da passagem para o ônibus intermunicipal. Agora são quase 2h. Estudo para as provas ou durmo? Melhor estudar! Acidente na BR? De novo? Como vou chegar para a prova? Espero que aquela amiga vá, preciso de carona para voltar. O dinheiro não vai dar. Conceitos A! Ótimo! Preciso de uma bolsa! Abriram vagas no Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde, vou tentar! A chance de vivenciar o cotidiano do Sistema Único de Saúde (SUS) e aprender a fazer pesquisa. A ocupação perfeita! Mas não tem previsão de pagamento da bolsa? Silêncio. Tudo bem! É algo que fico feliz em fazer, vou vender mais artesanato e pagar a passagem. Uma hora a bolsa cai. Deixo a criança na creche. Meu turno começa às 7h. O dia passa. A semana passa. O mês passa. Ainda sem previsão da bolsa? Respira fundo. Vamos seguir com os projetos. Educação em saúde. SUS. Saúde Pública. Mais um mês. E a bolsa? Ainda sem data. O amor à profissão ganha forma, mas ainda sou uma jovem-estudante-mãe, que mora longe e precisa de grana. Vaga para monitoria? Vou tentar! Com quem eu moro? Qual meu tempo disponível para dedicação? Preciso dessa vaga. Se falar que sou mãe vão me julgar: tão jovem e mãe? Irresponsável! Onde está seu filho? E se ele ficar doente? Não! É melhor mentir! Moro com meus pais, dedicação integral aos estudos. A vaga é sua! Monitora de graduação: Bioestatística. Oi, pode entrar. Qual a sua dúvida? Eu vou tirar. Quero ser professora! A bolsa caiu! R$ 400,00! Finalmente não vou precisar contar as moedas para o ônibus. Ah! Mas vou comprar um brinquedo para meu filho. Ele já anda e fala. Escora nas minhas pernas enquanto faço minhas listas de exercícios. Os brinquedos esparramados entre os livros que peguei na 352 Maternidades Plurais biblioteca. Preciso renovar! Ainda preciso ler, e comprar um exemplar? São dois meses de bolsa para pagar. Uma vaga de estágio? Quase um salário mínimo? É a minha chance de melhorar de vida! Com direito ao almoço? Loteria! Posso ir para a aula alimentada. Na Fundação Hospitalar do Estado. Saúde Pública. Aprendo sobre o SUS, aprendo sobre fazer pesquisa em saúde. É o estágio perfeito. Epidemiologistas? Sim, quero aprender, por favor! Fazer um questionário, um banco de dados, análises, associação... Evidências para a prática clínica, estudos de avaliação de tecnologias... Quero ser epidemiologista! O que faço? Pós-graduação? Mas vão aceitar uma mãe? Crianças na sala de aula. O irmão pequeno que ela não tinha com quem deixar. A filha que foi para uma consulta médica, a casa é longe, não dá para levar e voltar. O filho que hoje não tinha onde ficar. Xiiiii! Fica quietinho aqui, atrás dessa pilastra. Ninguém vai notar. Outra mãe chora: o marido não aceita que ela estude. Se as crianças não forem bem na escola, a C-U-L-P-A é sua! Mais uma criança pelos corredores da Escola. Chega! Aqui vai um aviso: é proibido criança frequentar as aulas da graduação. Não tem com quem deixar... O jeito é faltar! Cheguei. Passa de 00h. Quase 40 km dentro de um ônibus. Preciso mudar de casa. Cansada. Minha criança doente de novo? Só queria dormir, mas a noite será toda de tosses e broncodilatadores. Vou passar acordada ao seu lado. Aproveito para estudar. Mais conceitos A. Você não quer fazer algo diferente no seu trabalho de conclusão de curso (TCC)? Pesquisa de campo? Será que é agora que devo contar para a minha orientadora que sou mãe? E se ela achar que isso vai me atrapalhar? Sim, vamos fazer pesquisa de campo. Então, você vai ter que se dedicar! E lá se vão meses de escrita de projeto, preparação de documentos e questionários. Plataforma Brasil. Comitê de Ética em Pesquisa. Aprovação aqui, ali. Outro Comitê. Pronto! Pode fazer. Sem nenhum financiamento. Tudo bem! Na mochila vai tudo: gravador, papel, diário. Motorista, espera! Pego esse ônibus! Entrevistas, transcrições, análises. Quanto trabalho. Quero ser pesquisadora! Uma vaga de estágio em um centro de pesquisas. Vamos tentar! Nossa, quantos candidatos. São jovens, muito jovens. Próximo, pode entrar! Mas eu também sou, tenho o quê? 21 anos. Próximo, pode entrar! Talvez eu devesse usar a maternidade ao meu favor. Próximo, pode entrar! Quer saber? Omiti essa criança até agora nos processos seletivos. Talvez agora seja a hora certa de falar. Próximo, pode entrar! Oi, sim, sou muito responsável. Tenho um filho para criar. Nem frequento festas dos estudantes da Universidade, não curto. Adendo. Mãe adolescente, casa para limpar, roupa de criança pra lavar... Quando serei uma “aluna normal” que frequenta calourada? É óbvio que não vou chegar aqui pós-festa porque não frequento festas. Odeio essas coisas... É mentira! O que eu mais queria era uma festa, mas parece que não sou uma “aluna normal”. Olha o oceano da maternidade me afogando. Estou no fundo, avistando um barco cheio de jovens da minha idade brindando e dançando. Talvez eu possa ir, mas quem perdoa uma mãe que deixa seu filho pra festejar? Afogo mais um pouco. Você foi contratada! Começa já! Alguém jogou uma boia pra me resgatar. 353 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Estou com meu filho. A orientadora liga: você pode passar aqui? É urgente, sua pesquisa. E agora? Não tenho com quem o deixar! Ela ainda não sabe que tenho um apêndice, do lado de fora. Mas já estou no último ano, meu RSG (Rendimento Semestral Global) é alto. Respiro. Vamos lá. Filho, não faz bagunça, por favor! Fica quietinho! Ele balança a cabeça e sorri. Imagina: uma criança de quase 5 anos vai ficar paradinha enquanto você conversa sobre resultados de pesquisa? Toc toc toc. Pode entrar! Quem é essa criança linda? Este? É... Meu... Será que falo que é meu irmão? Chega! Sou boa aluna e sou boa mãe. Este é meu filho! Filho? Você nunca me disse que tinha filho. Por que você nunca contou? Silêncio. Não sei o que responder, não sei o que vem depois. Vou te dar uma coisa!, diz ela olhando para minha criança. Abre o armário e retira uma caixa de chocolates. Senta-se à mesa para comer, enquanto falamos da pesquisa. Que criança de quase 5 anos com uma caixa de chocolates não vai ficar paradinha enquanto você conversa sobre resultados de pesquisa? Tudo certo! Nossa! Parece que finalmente aquela rachadura no barco, por onde entrava água e deixava tudo mais pesado, foi consertada. Vamos, filho! Vamos pra casa. Quem é essa criança? De onde apareceram esses docentes? Vamos lá... É meu filho! F-I-L-H-O??? Como assim você é uma ótima aluna e é mãe? Não sabia que o pré-requisito de ser boa aluna era não ser mãe. Isso ficou só na minha cabeça. Sorria e dê tchau, filho. TCC 1. TCC 2. Sua pesquisa poderia ser uma dissertação. Você deveria fazer mestrado. Você é boa, não vai mais ser estagiária, vai ser contratada! Vou pra casa feliz esta noite. De onde vem esse som? Ah, é só mais uma calourada. Logo vou formar e tudo vai mudar. Estágio obrigatório. Em que hora do meu dia? Deixo meu filho na escola, vou para o trabalho, depois para a Universidade, dou monitoria na graduação, volto de noite... De noite! Plantão noturno. Vou ver a escala do ônibus. Ótimo, volto no último horário. Não posso perder a parada. Medo. Toda noite deixo o plantão e sinto medo. Ficar no ponto de ônibus essa hora da noite. É aquele medo que toda mulher entende. Faço uma prece, preciso voltar para casa, tenho um filho para criar. A rua é escura. Por que tantas árvores? Perdão, Terra. Mas elas deixam a penumbra ainda maior. Vem um homem e um ônibus. Corro, dou sinal. Ufa! Ah, não! Esse ônibus vai me deixar do outro lado da BR. Estou perto de casa, mas agora tenho uma caminhada. Atravessar um viaduto às 1h da manhã. Não tem pra onde correr. Mais uma prece. Cheguei em casa. Meu filho dorme com rosto angelical. Será que passo muito tempo longe dele? Sou uma péssima mãe por isso? Mas preciso trabalhar e estudar! O alarme toca. 5h da manhã. E começa tudo de novo. Vou formar! Primeira graduada da família e em uma universidade federal. Faltam poucos dias de estágio. Vinte e três anos, sem assistência estudantil, com uma criança, excelentes notas, estágios, pesquisa de campo, logo o primeiro artigo sai. Já tenho um emprego durante o dia. Posso dizer que consegui? Que fui uma boa universitária? Não! Falta algo. Os funcionários da biblioteca me conhecem. Os do xérox. Os da Escola. Vivi (n)a Universidade. Fui uma boa universitária? Ainda falta alguma coisa... Que convite é esse? Calourada. Calourada! Mas sou mãe! Mas mães não podem se divertir? Não, mães não podem, segundo a sociedade. Já sei, vou dizer que preciso fazer mais um turno de estágio, mas vou para a calourada. 354 Maternidades Plurais Festa! Será que posso ser presa? Será que é crime? Estar numa festa universitária e meu filho em casa? Será que é crime dizer que vai trabalhar e ir para outro lugar? Mas vou formar! A sociedade quer mais o quê de mim? Quero essa bebida. Quero dançar. Estou viva. As pessoas se aproximam para conversar. Será que sou interessante? Mas sou mãe, se falar isso tenho certeza que ninguém chega perto. Sou a estudante que fecha as provas, ninguém me acha legal. Nossa, uma roda em minha volta. Ainda sei ser jovem e conversar sobre coisas diferentes de pesquisa e maternidade. Hoje vou me divertir! O telefone toca. Meu filho está passando mal. Largo tudo, vou buscá-lo e levá-lo ao hospital. Formei. Estou trabalhando. Submeti artigos. E agora? Vejo uma foto naquele laboratório de patologia clínica e lembro-me dos sonhos de ser doutora. Vou tentar o mestrado. Mas como vou cursar e trabalhar e ser mãe? Bem, consegui até aqui. Concentração em quê? Saúde Pública ou Epidemiologia? Saúde Pública, óbvio. Vivi o SUS todos esses anos. Sou sanitarista. Chego para entregar a ficha. Preenche aqui. Epidemiologia! Prova de inglês? Por acaso eles não sabem que estudantes de escolas públicas não têm dinheiro para cursinho? Que tínhamos uma professora, mas não tínhamos livros? Não sabem que uma mãe que estudou e trabalhou todos esses anos contando as moedas para o ônibus vai aprender inglês é sozinha? No máximo o instrumental que a graduação ofereceu de graça? A pós-graduação exige conhecimento de línguas. Isso explica, em algum grau, porque tudo que a gente aprende nos livros vêm de homens brancos. E, consequentemente, o androcentrismo. Passei! Na prova de inglês. Passei! No mestrado. Intelectual de primeira geração na família. Não tem bolsa? Tudo bem! Estou trabalhando e vou me organizar. Chego uma hora mais cedo, fico até tarde, não faço almoço... Vou dar jeito! A gente não desperdiça um mestrado. Primeira reunião com as orientadoras. Hoje vamos formalizar a orientação. Aí vêm elas. O que vou falar? Fingir ter uma vida tranquila e estável? Dedicação total ao mestrado? Não tenho filhos? Não! Lembra o que ouviu na graduação? Como assim você é uma ótima aluna e é mãe? Chega! Sou uma mãe e, sendo uma mãe, também sou capaz de ser ótima aluna e uma incrível cientista. Oi, tudo bem? Eu tenho um filho de quase 6 anos. Ah, também tinha filho quando cursei o mestrado. Respondeu uma delas. Ufa! Alguém me entende. Planeja ter outro filho? Foi isso que minha amiga ouviu de sua orientadora. Está casada? E vai ter filhos durante a pós-graduação? Foi isso que outra amiga ouviu de seu orientador. Ei, homens! Venham aqui! Digam... O que ouviram na formalização da orientação? Vai fazer o período sanduíche onde? Escolha. Escolha entre cursar seu mestrado ou trabalhar aqui. Precisamos de alguém com dedicação exclusiva. Sua carga de disciplinas é grande. Você já gastou todos os dias de férias que tinha. Não tem mais de onde compensar. E agora? Amo meu trabalho. Amo o mestrado. Filho, o que você aprendeu na escola hoje? Que a gente tem direito a sonhar e ser feliz. Todo mundo. Escolho o mestrado! 355 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Desempregada. Bem feito! Para quê você tem que estudar? Não basta fazer uma faculdade? Tem que continuar? Quando você vai parar? Você tem um filho para criar! Diziam aqueles ainda convictos do certeiro naufrágio nesse oceano e os ainda descrentes da densidade do barco em meio às ondas que estavam por vir. Volto para o artesanato. Vendedora. Aula particular. Bioestatística? Fui monitora na graduação durante 3 anos. Epidemiologia? Estou no mestrado para isso. Revisão de textos? Já publiquei até artigo! Qualquer coisa? Faço! Sou uma mãe, mestranda e desempregada. Meu filho precisa passar por uma cirurgia. Vai ficar ainda mais dependente por uns dias. Ele ainda dorme, foi anestesia geral. Será que sou boa mãe? Será que preciso estudar tanto assim? Quanta coisa para ler. Não é como fazer graduação. Meus colegas vão para congressos. Meus colegas compram livros. Meus colegas escrevem. Como conseguem? Talvez o mestrado não seja para mim. Vou desistir! Seu projeto está muito bom e adiantado. Pode qualificar! O primeiro ano acabou. Vai sair uma bolsa, você pode ocupar. Vou ficar! Escrever. Disciplinas em outras faculdades. Escrever. Estágio docente. Escrever. Cursos de inverno. Escrever. Seminários. Escrever. Análises. Escrever. Reuniões científicas. Escrever. Vou apresentar meu trabalho em congresso! Agora sim, sou uma pós-graduanda. A defesa. Uma banca composta por mulheres. Meu filho acaba de fazer sete anos. É hora de pensar os próximos passos. Concentra na defesa. A primeira mestra da família. Não posso mais parar, mas talvez a universidade não seja mais o meu lugar. Doutorado em outro lugar? São sempre bons novos ares. Em outro Estado? É hora de me lançar em outros mares. Você é mãe! Com quem seu filho vai ficar? Ele tem pai! Alguém pergunta isso para o pai? Com quem o filho dele vai ficar? Você é egoísta! Só pensa em você! Não pensa na sua família. Por que precisa continuar a se formar? Aonde quer chegar? Onde está a humildade? Ah, os homens também respondem essas perguntas todos os dias? Também são questionados sobre suas carreiras? Seus planos profissionais? Mudanças na rotina? Filho, eu vou! Dou minhas últimas orientações. Abraçamos. Ele chora. Vejo meu grande companheiro nessa trajetória acadêmica virar a esquina aos prantos. Um dos primeiros lugares que conheceu após nascimento foi a universidade, naquele vestibular de segunda fase. Cresceu entre os livros de empréstimo da biblioteca e seus primeiros rabiscos foram nos meus cadernos de graduação. Ao contrário da criança que fui, que achava a ciência tão distante e inalcançável, ele nasceu na universidade. Foi uma vez, duas, três... E até participar da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ele participou comigo. A ciência está aqui, meu filho, ao seu alcance! Estava lá quando colei grau, quando celebrei o título de mestra. E, agora, minha escolha profissional nos afastava. Não é que tenha sido fácil estudar com uma criança no colo, mas quando o oceano da maternidade tentava me puxar, era guiada por uma gargalhada de criança. São 441 km. A distância entre meu doutorado e minha criança. Afirmo na primeira reunião: sou mãe! Reafirmo no dia seguinte. E no outro. E depois. A estratégia é sempre lembrar, porque a pósgraduação não é um voto de castidade para se casar com a ciência e privar todos os níveis de vida social. Sou doutoranda, mas sou mulher e sou mãe. E ainda que a maternidade não diminua minha capacidade intelectual para fazer ciência, ela exige de mim tempo e energia. Mas terá mais tempo 356 Maternidades Plurais para estudar e se dedicar! Disse uma pesquisadora ao saber que meu filho estava em outro Estado. De todo, não era mentira. Mas a desumanização também é verídica. Que mãe consegue ser produtiva preocupada com o filho? Com as pedras da sociedade atiradas em seu teto de vidro? Volto para minha nova casa. Tudo é tão vazio sem você aqui. Não consigo estudar. Será que tomou banho? Jantou? Como foi a escola hoje? Vou ligar! De cada 5 palavras, 4 são saudade! Num dia quer contar tudo o que aconteceu. No outro não quer falar comigo. Foi para o hospital e fui a última saber. Afinal, o que uma mãe que está a 441 km pode fazer? Ah, meu filho! Você é todo o motivo que nunca me fez desistir, mas também é o único pelo qual eu desistiria de tudo. Hoje não quero levantar da cama. Não quero mais. Não longe do meu filho. Como faço? Para desistir assim no meio do caminho? Escrevo cartas para ele. Envio. Conta que suas notas na escola são boas como as minhas. Vai vir me visitar. Ele ama o mar. Já sabe escrever e fazer contas. Deixa um bilhete: mamãe, está tudo bem! Eu gosto de você aí no Rio. Obrigada, meu filho! Por não deixar eu me afogar. É o nosso doutorado! Vou continuar! Você será testada por ser mãe. Receberá menos convites para reuniões, projetos, oportunidades. Afinal, você tem uma criança para criar. Ao destacar-se em algo, será vista como a própria Mulher Maravilha, eles vão romantizar sua árdua luta, sem querer saber como podem te apoiar. A falácia da meritocracia. Não será difícil ouvir não sei como você consegue, mas na primeira oportunidade vão te lembrar de se você não fosse mãe... Enquanto isso, seu filho, que agora já tem quase 10 anos, vai periodicamente te questionar: quando você vai tirar férias? Porque a ciência nunca para, mas ser uma mãe que virou cientista exige que você seja muito boa para ser notada. E não é o “muito boa” que exigem que as mulheres sejam na área, é um “muito boa” da carga tripla de além de ser mulher, ser mãe e, sendo essa condição precursora, ainda escolher ser cientista. Você será testada por ser mulher. Um homem vai mudar as cores do seu gráfico e será aplaudido. A sua versão vai para o lixo. Vão falar dos seus hormônios e de como mulheres são assim ou daquela forma. Se você for boa em contas e modelos matemáticos, vão te olhar com estranheza. E se uma pandemia chegar, você pode ser a única epidemiologista na mesa, quem vai ganhar o direito à fala será um homem de outra área com certeza. E quando ligar os noticiários, homens por toda parte vai encontrar. Epidemiologistas, matemáticos, físicos, infectologistas. Não existe mulher na ciência? Mulher? Temos uma grande cuidadora, profissional da Enfermagem, que é referência. Existe algo bom em uma pandemia? Você pode trabalhar de casa, com seu filho, mas tem o desafio de continuar a ser produtiva (onde está o artigo?) com esse mesmo filho te chamando mil vezes ao dia. Sigo daqui, doutoranda. Revelação. Quem me apresentou à ciência não foi aquele homem, ex-reitor da mesma Universidade onde graduei, doutor pela mesma Faculdade onde formei mestra... Foi a minha mãe, a secretária da ciência que, não tendo com quem deixar, levou a menina para um laboratório de pesquisas clínicas. A maternidade dela foi precursora da minha ciência. E minha própria maternidade foi pre- 357 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) cursora da minha ciência. Agora, meu filho diz querer ser cientista. E pergunto: quem gestou os cientistas e as cientistas do mundo? Então, realmente existe alguma área que não nos caiba e não seja nosso próprio campo fecundo? 358 Maternidades Plurais 56 Maternar, pesquisar, existir, resistir: o ser mulher em meio a uma pandemia Fernanda Pinto de Aragão Quintino1 Introdução Falar de si é sempre um desafio, construir um texto que consiga expor um pouco de mim, das minhas experiências, sentimentos e ressentimentos é também uma forma de falar de outras. Outras mulheres mães, outras mulheres negras, outras mulheres nordestinas, outras mulheres pesquisadoras, outras mulheres que assim como eu também estão dilaceradas com a ideia de voltar ao trabalho após a pandemia e não saber o mundo que espera o filho fora das paredes do nosso lar. Este relato tem o objetivo de expor o que eu, enquanto mãe pesquisadora, penso sobre essa categorização a qual ocupo. Seus significados assumem diferentes dimensões em meio a uma pandemia. A Covid-19 e suas consequências para a sociedade global têm me levado a refletir sobre o próprio sentido da pesquisa e da dedicação de mulheres à produção de conhecimentos em espaços que ignoram a maternidade, ou as vezes ironizam e desqualificam as mulheres por isso. A pandemia e a maternidade transformaram as minhas experiências de uma maneira bastante inesperada e profunda. Para uma melhor sistematização deste relato, o dividi em 4 sessões após a introdução. A primeira sessão — “Entendendo a pandemia” —, discorre sobre o conceito de pandemia e discorre sobre as minhas experiências em outra pandemia. Na segunda sessão — “Ser mulher, negra, pobre e estudar” —, trago um pouco da minha biografia norteada por alguns marcadores identitários em que eu me reconheço. A terceira sessão — “O Amazonas” —, mostra meu êxodo para o estado, meu retorno para a pesquisa acadêmica e como a pandemia tem sido vivenciada aqui. Na quarta sessão — “Mulheres na pesquisa” —, trago um pouco da realidade que as mulheres mães enfrentam mesmo antes da epidemia, para continuarem produzindo em meio a maternidade. Entendendo a pandemia 1 Doutoranda em Educação – UFAM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7123068740517454 359 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Pandemia — um termo comum para uma historiadora, mas bastante desconhecido por boa parte da população mundial — se trata da disseminação em escala mundial de uma nova doença. Em uma explicação simples e direta, uma pandemia é uma epidemia que se espalhou para outros continentes além da região onde a doença surgiu. E no dia 11 de março do corrente ano, o diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, anunciou que o mundo passava por outra pandemia. Digo outra pois lembremos que em 2009 a OMS declarou pandemia da H1N1 23, outra doença respiratória que a maioria das pessoas no mundo não tem imunidade. Preciso reconhecer que no ano de 2009 não senti o pavor de ser infectada que tenho sentido com a Covid-19. O fato de morar em uma das cidades mais prejudicadas pela propagação da doença, Manaus, capital do estado do Amazonas, e receber notícias aterradoras o dia todo pode ter potencializado esses sentimentos. Claro, também pelo fato de que a H1N1 não era tão letal quanto a Covid19 e nem houve um isolamento social tão severo no mundo. Algumas cidades exigiram que turistas passassem por protocolos de segurança biológico, em poucos países, aulas foram suspensas e no Brasil não houve paralisações significativas. Até fiquei sob quarentena, pois, no período de maior transmissão do vírus na região norte do Brasil, estava em um congresso estudantil em Belém do Pará e alguns dos participantes apresentaram sintomas da doença. Ao voltarmos para o nosso estado de origem, a Paraíba, nos apresentamos no Hospital Universitário de Campina Grande e passamos por exames, os médicos recomendaram quarentena em casa e, sem muito pavor, todos voltamos para as nossas casas. Hoje sabemos que a transmissibilidade e a letalidade da Covid-19 chegam a ser duas vezes maior que a do vírus de 2009, surgido no México4. Ser brasileira em meio a uma pandemia no ano de 2020 é extremamente angustiante, pois os números oficiais nos trazem uma realidade cruel de inúmeras mortes dentre os quais, inúmeras pessoas idosas. Até o dia 28 de junho já perdemos mais de 57 mil vidas5, são mais de 57 mil famílias devastadas por uma doença que atinge prioritariamente a parte preta e pobre da população, as que mais sofrem, pois esse é o perfil das pessoas que mais morrem de Covid-19 no país6. E foi apenas a partir do dia 11 de abril que os dados das secretarias de saúde pelo país 7 começaram a registrar a raça dos infectados e das pessoas que foram a óbito. Ser mulher, negra, pobre e estudar 2 Doutoranda em Educação – UFAM. 3 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-51842518. Acesso: 25 jun 2020. 4 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52078906. Acesso: 25 jun 2020. 5 Disponível em: https://catracalivre.com.br/saude-bem-estar/numeros-covid-19-brasil/. Acesso: 28 jun 2020. 6 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/05/na-pandemia-de-covid-19-negrosmorrem-mais-do-que-brancos-por-que.html. Acesso: 20 jun 2020. 7 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/05/na-pandemia-de-covid-19-negrosmorrem-mais-do-que-brancos-por-que.html. Acesso: 20 jun 2020. 360 Maternidades Plurais Neta de avós negros de um lado e brancos do outro, mãe branca e pai negro constituem minha descendência. Na minha pele, a cor preta não é tão forte, mas as características negroides se destacam, bem como todo o preconceito, situações de humilhação, exposição a violências de raça, como alisamentos no cabelo ainda na infância e apelidos racistas marcaram a minha existência enquanto negra, na infância e adolescência. Primeira filha de um casal inter-racial pobre na década de 1980, passei por uma criação sexista, em que os serviços domésticos nunca poderiam ser feitos pelos homens da família, fosse meu pai ou irmãos. Estudei em escolas particulares a vida toda, no ensino fundamental fui bolsista, (um ano estudei em escola pública) e em todo o ensino médio tive meia bolsa. Mas, para quem acredita que ter a mensalidade paga em uma escola particular é viver em igualdade com os outros alunos, não sabe como as diferenças de condições sociais afetam a aprendizagem. Ao concluir o ensino médio, passei no vestibular e, graças à expansão das universidades públicas ocorrida nos anos 2000 e à ampliação das vagas, consegui uma vaga no curso que queria e me tornei licenciada e bacharel em História. Em uma década de investimentos no ensino superior, bolsas de projetos de pesquisa, ensino e extensão me auxiliaram a concluir o curso e também a me tornar pesquisadora. Logo em seguida, entrei em um curso de especialização e, no ano seguinte, a conclusão da graduação, passei em um curso de mestrado, também aprovado e possível graças às políticas de expansão da pós-graduação, dessa vez na década de 2010. Na área profissional, ensinei em todos os níveis, ensino infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação de jovens e adultos (EJA) e idosos, ensino técnico, ensino superior e pós-graduação. Também ensinei em projetos do governo federal, como o Projovem Urbano, Projovem Trabalhador, ministrei aulas de reforço escolar. O magistério ainda é um espaço bastante feminino, isso me fazia ter contato com outras mulheres e perceber o quanto é difícil ser profissional da educação, dona de casa, mãe, as vezes esposa e pesquisadora. Muitas desistiam da pesquisa assim que entravam no mercado de trabalho, pois a pesquisa no Brasil acontece quase que exclusivamente nas universidades, mas lá não existe vínculos empregatícios para os pesquisadores se eles não forem docentes e, por mais que o pesquisador passe uma década e meia dedicado ao trabalho cientifico, ao término desse período, ele não terá um único dia de contribuição à previdência social ou mesmo o direito de frequentar os espaços onde desenvolveu suas pesquisas enquanto aluno. O Amazonas Em busca de estabilidade profissional, vim morar no Amazonas, sou professora da rede estadual de ensino, atuo na formação de professores no setor de formação profissional da instituição. Foi aqui na Região Amazônica que voltei, após 6 anos de conclusão do mestrado, à vida de pesquisadora. Após a minha aprovação em uma seleção de doutorado, relembrei que a formação em serviço não é 361 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) frustrante e, por vezes, desesperadora. Vale ressaltar que por lei estadual nº 1778/878 eu teria direito a me afastar temporariamente das minhas funções para realizar meus estudos, contudo, quando entrei no curso ainda estava nos meses finais do estágio probatório, o que me impedia de acessar esse direito. No ano seguinte, quando eu já poderia entrar com o processo que me daria o direito ao afastamento (não é exagero, é um processo extremamente moroso), descobri a gravidez e foi tudo muito rápido, tentar concluir os projetos já iniciados, para que a licença maternidade precedesse esse afastamento. Meu filho nasceu um mês antes da OMS decretar estado de pandemia e a minha produção que já tinha caído bastante durante a gravidez, devido ao trabalho e ao sono típico que o meu estado físico me deixava, quase que paralisou. Uma mistura de sensações se apossou de mim. A primeira e mais forte era a de que eu estaria muito atrasada em relação aos meus colegas que não iam parar por tanto tempo as pesquisas, já que as minhas pararam (as de campo) assim que descobri a gravidez, uma vez que elas precisavam ocorrer em uma cidade onde só se chega saindo da capital Manaus, de barco (pode chegar a 14 dias) e de avião (só saem vôos uma vez por semana em bimotores), ou seja, uma mulher grávida deve evitar passar por essas experiências de deslocamento, mesmo que seja para realizar pesquisas acadêmicas de doutoramento. Com a decretação da pandemia, as sensações são de ineficiência, de incapacidade, pois não consigo me dedicar totalmente ao meu filho sem me cobrar sobre as atividades de leitura e escrita e também não consigo fazer leituras e pesquisas de qualidade, no momento em que pego um livro ou o computador para ler e meu filho chora ou mesmo me olha, o sentimento de culpa por não está dedicando esse tempo a ele tem me levado a repensar o ser mulher e pesquisadora. O que pode soar como uma situação simples, pois tenho um companheiro de vida que assume todas as responsabilidades de criação do nosso filho como pai que é e também realiza algumas atividades domésticas, mas, no geral, do cuidado à criança ao cuidado do lar (planejamento, compras, pagamentos, organização, alimentação) são por minha conta. Institucionalmente, em uma faculdade de educação onde temos preponderantemente mulheres ocupando os espaços, ouvi que nenhuma aluna deveria engravidar durante o doutorado, para não atrapalhar as pesquisas. Justamente no local onde deveria haver sororidade9 esse discurso ficava ecoando na minha cabeça logo nos primeiros dias após o parto. Cheguei a me questionar se era o momento certo de ser mãe. Hoje entendo que a estrutura das instituições é sexista, independente de quem as ocupe. 8 AMAZONAS. Lei nº 1778, de 09 de janeiro de 1987. Dispõe sobre o Estatuto do Magistério do Estado do Amazonas e dá outras providências. Manaus: Assembleia Legislativa do Amazonas. Disponível em: http://.satl.al.am.leg.br_6229_texto_integral.pdf. Acesso: 25 jun 2020. 9 Esse conceito é definido como a união e a aliança entre mulheres baseadas na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum. SOUZA, B. Vamos juntas? O guia da sororidade para todas. 1a Ed. Rio de Janeiro: Galera Record, 2016) 362 Maternidades Plurais Se por um lado o discurso de que a mulher pesquisadora não deve gerar e nem maternar 10 durante a formação, por outro lado tive a compreensão total e irrestrita da minha orientadora, que mais que pesquisadora é também mãe e tenta desconstruir a lógica produtivista do ensino superior. Cobranças pessoais se somaram a cobranças sociais. Em sites, redes sociais, propagandas e todo tipo de meio de comunicação, a produtividade é tida como exemplo de perfeição, quem consegue ser produtivo na pandemia é diferenciado, é alguém capaz de vencer qualquer dificuldade. No meio acadêmico, essas cobranças são mais fortes. Aqueles que conseguem ter um bom desempenho, as vezes fruto de períodos anteriores à pandemia, fazem questão de exibi-lo, o que me leva a mais um círculo de cobranças, frustrações e medos. Mesmo ocupando atualmente um lugar de privilégio social e profissional, pois, em meio a pandemia, posso estar em casa, e a minha estabilidade profissional garante meu salário integralmente todos os meses, as minhas angústias refletidas por desigualdades no tratamento de gênero na academia e na sociedade não diminuem minhas angústias como mãe pesquisadora. Mães na pesquisa Com o isolamento social, o fechamento de escolas e creches e o trabalho de babás sendo proibido na maioria dos países do mundo, as pesquisadoras mulheres precisam se dedicar mais aos cuidados da casa e dos filhos, trabalho tradicionalmente legado às mulheres. Em uma matéria intitulada “Pandemic lockdown holding back female academics, data show”11 que foi publicada no Blog da Times Higher Education (THE), por David Matthews, temos o resultado de uma pesquisa que mostra os efeitos dos bloqueios totais, os lockdowns, e como esses afetam a produção de publicações das cientistas pelo mundo. A pandemia tem me feito repensar o futuro da pesquisa feminina no Brasil e as consequências de gênero para a ciência. São meses com sobrecarga de trabalho, projetos parados, muitos abandonados, outros nem iniciados. Não podemos mensurar o tamanho da perda acadêmica e os impactos sociais que essa situação vai proporcionar, mas já sabemos que as mulheres na ciência estão sendo o lado mais afetado. Diante disso, é preciso discutir a construção de políticas de reparação e auxílio às mães pesquisadoras no pós-pandemia. A preocupação com a produtividade e as cobranças desiguais com as mulheres mães na pósgraduação têm feito algumas universidades pelo país adotarem políticas de apoio a mulheres que são 10 Entendido aqui de forma distinta à noção de instinto: trata-se de um trabalho de care, que exige competências específicas, como afirmam Dorna e Muniz (2018). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v13n2/11.pdf. Acesso: 14 mar 2019. 11 Disponível em: https://www.aguia.usp.br/noticias/49310/. Acesso: 25 jun 2020. 363 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ou se tornaram mães durante o período de pós-graduação, como afirma Andrade (2018)12, que o Instituto Serrapilheira, que é uma instituição privada, lançou seu primeiro edital concedendo às mães um prazo diferenciado para a conclusão do doutorado, variando de acordo com o número de filhos. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) seguem a Lei nº 13.536/1027 e realizam os pagamentos de bolsas extra a alunas de mestrado e doutorado que têm filhos ou adotam filhos no período do curso. Mas, esse prazo extra em que elas recebem bolsas e têm os prazos de conclusão do curso estendidos só se aplicam a alunas bolsistas, no meu caso e no da grande maioria das mães pesquisadoras, o fato de não termos bolsa faz com que essa “benevolência” não chegue até nós. Meu projeto de doutorado, idealizado, escrito, analisado, selecionado e revisado agora precisa ser refeito, talvez desfeito, pois os locais de coleta estão inacessíveis a uma mãe que precisa levar seu filho para “o campo” e, pior ainda, sem saber os rumos de muitas turmas de graduação pelo país, o local de pesquisa pode não mais existir após tanto tempo de isolamento social. Contudo, ao questionar a coordenação do meu programa sobre uma possível extensão do prazo para defesa que levaria em conta a minha licença maternidade e também os 3 últimos meses da gravidez que precisei ficar em repouso absoluto em virtude do risco de aborto, tive como resposta que nada muda, os prazos continuam os mesmos. Ser mãe na pós-graduação soa como um crime, se você praticou o ato da maternidade em curso, precisa pagar o preço por isso. Considerações finais Além dos meses que não pude sair para pesquisar e pouco podia ficar de pé ou sentada e dos meses em que a dedicação ao bebê são extremamente necessários, fui afetada pela pandemia. São serviços domésticos ampliados, o cuidado com o bebê e toda a ansiedade que esses acontecimentos trazem estão refletindo na qualidade e na quantidade da minha produção. Vale ressaltar que a instabilidade política que o país passa, onde ministros da educação não realizam projetos que fortaleçam a pós-graduação e vejam as mães com um olhar diferenciado, baseado na especificidade de gênero, só ampliam essas dificuldades. A naturalização da maternidade precisa ser enfim aceita. Mães não podem ser penalizadas por maternar, ter e adotar filhos é um ato comum, natural, social, e a academia tem o dever de reconhecer essas especificidades e agir de maneira diferente com realidades diferentes. Nós mulheres, mães, pesquisadoras, queremos continuar estudando, produzindo, nos qualificando, fazendo ciência, mas os incentivos e o rigor nas exigências precisam levar em conta o fato biológico e social que é maternar. Ou nós mães é que precisaremos repensar se vale a pena produzir ciência para uma academia que finge não saber que pesquisadoras têm filhos? Enquanto isso, seguimos aqui existindo e resistindo. 12 Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/maternidade-no-curriculo/. Acesso: 25 jun 2020. 364 Maternidades Plurais 57 Moças, creiamos, não tarda a aurora da redenção! Flávia Calé da Silva1 Esse título é uma adaptação de um verso do poema de Castro Alves “O Século”2. Foi dele que se originou o nome da minha filha, Aurora. Eu soube da gravidez em um domingo, do mês de setembro de 2018. Dois meses antes, eu acabara de ser eleita presidenta da entidade nacional de representação dos pós-graduandos, a ANPG – Associação Nacional de Pós-graduandos 3. 1 Mestranda no Programa de História Econômica da FFLCH/ USP, São Paulo e graduada em História pela UFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8422862177044867 2 ALVES, Castro. Obras Completas (volume 2). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921, pp.05. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4985> 3 Disponível em: <http://www.anpg.org.br/04/07/2018/26-cnpg-flavia-cale-e-eleita-a-nova-presidenta-daanpg/#:~:text=O%2026%C2%B0%20Congresso%20Nacional,Econ%C3%B4mica%20da%20USP%2C%20Fl%C3%A 1via%20Cal%C3%A9>. Acesso: 15 jul 2020. 365 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A esta altura, estávamos em meio ao processo eleitoral acirrado entre diferentes visões de mundo e, embora minha função exigisse entregar uma carta compromisso da Ciência e da pós-graduação a todas as candidaturas4 — o que foi feito efetivamente — eu tinha uma preferência: a précandidata Manuela D’Ávila 5. Esse pequeno preâmbulo é importante para compreender algumas questões posteriores. Quando me vi grávida, em meio a um mestrado, atuando na política, vivendo com meu companheiro em São Paulo sem nenhum parente próximo que pudesse formar uma rede de apoio, pensei: não terei um bebê. No primeiro momento, a cada vez que pensava nessa hipótese, meu corpo reagia com crises nervosas e de choro. Foi quase um mês dessa agonia. O segundo momento, o exemplo de uma mulher, pré-candidata, viajando o Brasil com uma menina de 2 anos à tira colo, mudou radicalmente minha percepção. André Tokarski, meu companheiro, atuava na coordenação da campanha da Manu, e ajudava com a organização dos cuidados necessários para as viagens dela em companhia da pequena Laura. Essa experiência foi muito importante para nós dois, mas, para mim, foi injeção de coragem. Por que mesmo a minha vida “acabaria” por causa de um bebê? Por que eu deveria abandonar a função para o qual fui eleita em um congresso representativo, apenas por decidir ser mãe? Por que me preocupava como meu orientador e meus colegas reagiriam quando soubessem da gravidez? De onde vinha meu medo de não conseguir seguir minha iniciante carreira de pesquisadora? Na verdade meu medo era me deparar com as injustiças e desigualdades aos quais as mães estão submetidas. Minha resposta a essas perguntas passou a ser: o problema não é meu, é da forma como o mundo se organiza. O não reconhecimento da função reprodutiva como um trabalho, que faz um momento tão especial das nossas vidas virar um fardo. Aquele bebê tinha uma força completamente arrebatadora. Não pude resistir. Decidi seguir meu coração, e levar a gestação até o fim. Era preciso que a lógica como se organiza o espaço público, que invisibiliza as mulheres e repele as crianças, passasse a responder a novas determinações. Desta forma, consolidava-se, aí também, uma decisão política de contribuir para essa transformação. A gestação foi um novo desafio para a produção acadêmica. Muito sono, muita fome. Nesse período fiz leituras de bibliografias e análise dos documentos que havia coletado anteriormente. Após o parto, voltei a conseguir escrever sete meses depois. Quando meu companheiro, que divide absolutamente todas as atribuições domésticas, de cuidados e afetivas, tirou férias do trabalho, possibilitando mais tempo livre para a escrita. Foi pouco mais de um mês. 4 Disponível em: <http://www.anpg.org.br/18/12/2018/confira-a-retrospectiva-de-2018-da-anpg/> <http://www.anpg.org.br/04/09/2018/plataforma-eleitoral-2018-da-associacao-nacional-de-pos-graduandos-anpg/>. Acesso: 15 jul 2020. e 5 Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2017/11/manuela-d-avilae-escolhida-pre-candidata-a-presidencia-da-republica-pelo-pc-do-b-cj9mydq9802xt01pg6gch5zjt.html>. Acesso: 15 jul 2020. 366 Maternidades Plurais Ele voltou ao trabalho e Aurora iniciou a creche aos nove meses. Foram quase duas semanas de adaptação que demandaram a permanência em apenas um turno na creche e acompanhamento presencial das atividades. É um momento que gera muita ansiedade. Será que estou transferindo para o Estado a responsabilidade dos cuidados com a minha filha? Essa pergunta não me saía da cabeça. Eu chorava um mês antes dela começar na creche, pensando como seria a separação. E chorei depois também. Duas horas antes do combinado de pegá-la na creche já batia aquela angústia e rapidamente me arrumava e saia ao seu encontro mesmo que com muita antecedência. No final dos primeiros quinze dias, a Aurora pegou uma virose. Foi bom, porque gerou imunidade. Mas foram dias muito difíceis. Vômito, diarreia, risco de desidratação, idas ao hospital, exames invasivos. A neném que já tinha consolidado a transição alimentar, desde os seis meses, voltou a mamar quase que exclusivamente. Passava noites em claro velando o sono dela, atenta a qualquer sinal de melhora ou piora do quadro clínico. A Aurora perdeu 1kg. E lá se foi metade do mês. Finalmente, quando nos preparávamos para o retorno à creche o governador de São Paulo anunciou que as escolas fechariam em dez dias em função da Covid-19 6. Era uma sexta-feira e Aurora voltaria na segunda-feira. Era o início do isolamento social, ao qual nos encontramos até o dia em que escrevo esta pequena crônica. Reparem que dia após dia, mês após mês, a maternidade requer uma atenção quase exclusiva para o bebê no primeiro ano e o trabalho acadêmico dia após dias ficando em segundo plano. O tempo se resume a amamentar de 3h em 3h, preparar comida, trocar fralda, dar banho, estar permanentemente em estado de alerta porque absolutamente tudo dentro de casa pode ser perigoso para uma criança de até um ano. O mínimo descuido poderia levar a uma fatalidade, ou incidente importante. O estudo e a produção acadêmica são um desafio hercúleo. Difícil depois de um dia inteiro dedicado às funções reprodutivas, e das noites não dormidas, afinal, a neném mama três a quatro vezes na madrugada e acorda as 4h30 da manhã com a disposição de como fossem 8h da manhã. Como produzir nessas condições? Tem mais de um ano que não sei o que é dormir cinco horas seguidas. Nossa relação com o tempo é completamente subvertida. Houve a época em que a civilização não sabia contar o tempo. Usava-se como referencial a posição do sol e das estrelas. A adoção de tecnologias como o relógio mudou o tempo, que passou a ser dividido em frações iguais que resultam num dia de 24h. O tempo natural dos ritmos biológicos foi gradativamente sendo substituído pelo tempo construído pela sociedade das tecnologias. Cada vez mais acelerado.7 A maternidade, de alguma forma, é um freio às dimensões instantâneas impostas pela revolução tecnológica. A internet ao diminuir as fronteiras e a dimensão espaço, torna o tempo algo imediato, 6 Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/13/sao-paulo-suspende-aulas-gradualmente-partir-do-dia-16-de-marco.ghtml>. Acesso: 15 jul 2020. Sobre a relação entre tempo, modernidade e maternidade ver os documentários “Quanto tempo o tempo tem?” e o “O renascimento do parto”. 7 367 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) influenciando as relações sociais. Junto com ele, a busca pela felicidade se tornou igualmente instantânea, não à toa as epidemias dos nossos tempos são a depressão e a ansiedade. Ser mãe me ajudou a compreender melhor e respeitar o tempo biológico, embora gere vários conflitos com as expectativas que a sociedade nos impõe. O parto natural, em casa, depois de 23h de trabalho de parto foi o auge desse aprendizado e de uma nova conexão com o tempo biológico. E assim seguimos a quarentena. Nós três em casa. Nossa divisão de tarefas, que quase nunca dá certo plenamente, funcionava mais ou menos assim: eu tinha as manhãs para estudo. André as tardes para estudo. Esse tempo em geral são ciclos de, no máximo, 3h. Enquanto um estuda, o outro trabalha, cuida da bebê, faz a comida e arruma a casa. Não é raro que as horas de estudo virem horas de trabalho. Vamos combinar que não é fácil defender a pós-graduação, a ciência, a universidade pública e a educação no Brasil. A ascensão de teorias negacionistas e terraplanistas não ajudam em nada nossa luta pela ciência e pelas pesquisas acadêmicas. Quantas manifestações, entrevistas, artigos, debates, audiências públicas, simpósios, ao vivo ou no estrangeirismo “live”, precisamos realizar para organizar uma defesa de um Brasil mais democrático e equitativo? A luta, ao que parece, é imensurável e contínua. Aqui cabe uma pequena digressão. Houve uma tentativa de corte de bolsas de estudos dos pósgraduandos8 e o orçamento das universidades públicas9, em maio de 2019. Rapidamente, UNE, UBES e ANPG, convocamos manifestações para o 15 de maio, que já havia uma paralisação dos professores marcada pela CNTE10. Foram manifestações gigantes, mais de um milhão de pessoas nas ruas de todo o país. Diante do êxito, convocamos outra para o dia 30 de maio. Ficaram conhecidas como “Tsunami da Educação” 11. A Aurora nasceu no dia 11 de maio, em meio à organização das mobilizações. Entrei em trabalho de parto numa quinta feira, por volta de uma hora da tarde. Fui à sede das entidades estudantis, na Vila Mariana, pois havia um conjunto de entrevistas marcadas. Dentre elas, o Jornal Nacional. Ao longo da tarde, Michel Temer foi preso e essa entrevista, em especial, foi remarcada para Skype, à 8 Disponíveis em: <http://www.diretodaciencia.com/2019/05/08/nos-nao-somos-vira-latas-ministro/>; <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/05/08/concessao-de-bolsas-de-mestrado-e-doutorado-pela-capes-sao-suspensas.ghtml>; <https://www.brasil247.com/brasil/anpg-une-e-ubes-entram-com-mandado-de-seguranca-para-revertercortes-na-educacao>; <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/05/08/concessao-de-bolsas-de-mestrado-e-doutorado-pela-capes-sao-suspensas.ghtml>. Acesso: 15 jul 2020. 9 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/politica/1556819618_348570.html>. Acesso: 1 jul 2020. 10 Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/05/15/estudantes-convocam-novos-protestos-em-defesa-da-educacao-para-o-dia-30-de-maio>. Acesso: 15 jul 2020. 11 Disponíveis em: <https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2019/05/tsunamidaeducacao-manifestacoes30-de-maio/>; <https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/05/30/4-dias-apos-atos-pro-governo-estudantes-voltam-asruas-contra-cortes.htm>. Acesso: 17 jul 2020. 368 Maternidades Plurais noite, pois em trabalho de parto, não poderia esperar a equipe de jornalismo chegar sabe lá qual horário.12 No dia seguinte, sexta feira, minha casa estava duas semanas sem faxina. E meu parto, que seria em casa, tinha certeza que não passaria do final de semana. Pois bem. Minha amiga, que mora no mesmo bairro, cedeu a trabalhadora doméstica que faria faxina na casa dela para faxinar a minha casa. Eu estava 18 kg mais pesada e com mais de 39 semanas de gestação. Meu companheiro foi à feira, pois não havia muita comida em casa para nós e para as parteiras que viriam nos acompanhar. E a última equipe de entrevistas chegou em casa às 11h da manhã, no meio do caos e do trabalho de parto, e assim foi minha última agenda antes do parto. As contrações continuavam aumentando gradativamente, até que, às 17h, rompeu a bolsa. Esse pequeno caos pessoal que relatei é para exemplificar como são os dias em que as lutas precisam ser mais efetivas e atuantes para garantir os direitos à educação pública e de qualidade. Ou seja, foram poucas as semanas tranquilas desde janeiro de 2019, portanto, foram muitas as vezes que a divisão de tarefas que possibilitassem harmonizar trabalho, estudo e cuidados com a Aurora, não funcionaram. Ou por questões relativas à saúde, ou por excesso de trabalho, e principalmente, pela exaustão que nos consome no fim de cada dia, depois que nossa cria adormece. Portanto, voltando à divisão de tarefas, os sábados não tem estudo. É dia de faxina, lavar roupa, fazer comida, colocar a vida em ordem. O domingo, em geral, é o dia da caminhada pela manhã, e a partir da tarde, meu companheiro preparava as aulas da semana. Missão que ia até de madrugada, frequentemente. Segunda feira, ele dava aula remota de manhã e à noite. Ou seja, de domingo a tarde até segunda a noite, a prioridade dos cuidados que a neném era minha, com pouquíssimas possibilidades de fazer algo que não fosse ficar com ela. Na prática, então, na nossa divisão, momentos destinados ao estudo de resumiam às manhãs de terça a sexta. Depois de um mês nessa dinâmica e considerando que quase tudo passou a funcionar de maneira remota, decidimos buscar apoio familiar. Fomos para a casa dos avós paternos da Aurora, no interior de Goiás. A decisão mais acertada. Apoio é fundamental. Mantivemos mais ou menos a mesma divisão dos nossos tempos. Mesmo com mais gente para ajudar com os cuidados da pequena, a função principal e a atenção principal sempre era nossa. Mas só de ter alguém para pegar ela no colo, brincar, dar comida, que não seja exclusivamente você e o pai, já alivia muito o cansaço. O stress diminui muito. Além das vantagens para a educação e criação de vínculos afetivos para a criança. Em São Paulo, estaríamos nós três confinados. A Aurora conhecendo o mundo pelo portão de casa, limitada ao nosso repertório, que nos esforçamos para ampliar, de brincadeiras, mas a criatividade tem limites. Ela teve a oportunidade conhecer mais a vovó e o vovô, a “tia dinda”, “tio cáca” e 12 A matéria não foi feita em tempo do Jornal Nacional e entrou apenas no Jornal da Globo. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/7604421/>. Acesso: 17 jul 2020. 369 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) o “primo legítimo” e amá-los. Conheceu coisas da vida rural, que seria impossível na cidade. O cocó (todos os ciscantes e passarinhos), o booooi, a acaaaa (vaca), o bedebedeooo (bezerro). A escrita da dissertação só está sendo possível pela rede de apoio que nos acolheu durante a pandemia. Em outros termos não sei o que teria sido de nós. Outros fatores têm sido muito importantes, igualmente. Meu orientador, Rodrigo Ricupero, tem sido absolutamente parceiro e atencioso. Em nenhum momento deu qualquer sinal de intolerância ou exerceu qualquer tipo de pressão por prazos, que é algo absolutamente comum na pós-graduação, infelizmente. O outro elemento é o fato da USP ter possibilitado nesse percurso extensão de prazos. O estatuto da pós-graduação da universidade prevê a adoção de 6 meses de licença maternidade. Depois disso, pedi 120 dias de prazo. E durante a pandemia, possibilitou a extensão, por mais 6 meses, a todos que tinham prazos até julho de 2020. Essa medida deveria ser adotada em todas as universidades e programas de pós-graduação do país. Alguns conselhos me salvaram pelo caminho. Mais ou menos quando estava com 4 meses de exercício da licença-maternidade, comecei a ficar muito ansiosa, porque percebia que não conseguia fazer nada além da média de 350 novas atribuições que geram o nascimento de um bebê. A essa altura eu estava com vergonha de pedir prorrogação de prazo. Isso mesmo, vergonha! O primeiro conselho, de uma querida companheira que a USP me deu, Amanda Harumy. Ela disse que a única coisa que eu não poderia ter era vergonha do meu trabalho, ao contrário, deveria ter orgulho. E para isso, eu deveria usar o tempo necessário. O segundo, de uma querida historiadora Mônica Dantas. Numa tarde, fui tomar um café em sua casa. Falei da minha angústia com prazos e ela me perguntou: —Você conhece a minha história? Eu não conhecia e ela me contou. Não falarei disso aqui, mas é muitíssimo comovente. Em síntese, disse que os prazos e o padrão de produtivismo são elaborados por homens. Os mesmos que não cuidam dos filhos, se um parente adoece, não é cuidador principal, que não realiza trabalhos domésticos, que não tem outra preocupação que não seja produzir academicamente. Ao passo que, recai sobre as mulheres todas as outras atividades. Então me perguntou, quantos meninos do meu programa pediram prorrogação? Alguém cobrou eles por isso? Então, por que eu estava me cobrando? São coisas que para uma feminista como me tornei, são elementos que deveriam estar na ponta da língua. Eu deveria estar armada até os dentes para responder a essa lógica. Mas eu me abati, e às vezes me abato ainda, por ela. Incrível a força da cultura de opressão nas nossas vidas. É isso que uma história humana longa de naturalização da submissão das mulheres faz, ainda que conscientes, não nos livramos da culpa. Por fim, apesar da tragédia social e humanitária que vivemos no Brasil, pois temos a estimativa infelizmente de chegar a mais de 100 mil mortos pela difusão da Covid-19, temos vivido no tempo e frequência da Aurora. 370 Maternidades Plurais Em meio ao caos, temos buscado dar o máximo de atenção e estar conectada a esse presente, força da vida que nos anima a enfrentar a força da morte que tomou nosso país. Sem pressa e sem pausa, buscamos manter, desta forma, a saúde do corpo e da mente, só possível porque me foi oportunizado tempo. Eu já tinha terminado este artigo quando recebi uma nova notícia. Estou grávida novamente. As angústias, o medo e a culpa voltaram a habitar meus pensamentos e sentimentos. Agora, mais experiente, tenho certeza que junto com a construção de uma trajetória acadêmica é preciso viver feliz. Nossa realização profissional, sempre que possível, não pode ser um fardo que tornem a maternidade uma experiência triste e violenta. Esse livro de relatos deve nos fortalecer para mudar esse sistema e que, a partir dessas reflexões, surja uma sociedade que acolha o trabalho de gerar vidas como uma tarefa de toda a sociedade. “Toda noite – tem auroras, Raios – toda a escuridão. Moços, creiamos, não tarda A Aurora da redenção. (...) É o grito dos Cruzados Que brada aos moços “de pé!” É o sol das liberdades Que espera por Josué. São bocas de mil escravos Que transformaram-se em bravos Ao cinzel da abolição. É – à voz dos libertadores Reptis, que saltam condores, A topetar na amplidão!...” (“O Século” – Castro Alves) 371 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 58 Por que as mães reclamam tanto? O isolamento social imposto pelo Covid-19 e o cansaço estrutural das mães Flávia Ferreira Pires1 Desde que minha primeira filha nasceu sinto vontade de trabalhar mais e não posso. Não sobra tempo. São agora 01:39h e estou aqui. Confesso a inveja de jovens mulheres sem filhos e filhas que viajam o mundo à trabalho e à turismo, sem hora para voltar para casa. Sinto saudades de mim mesma quando eu era uma dessas mulheres. Tanta saudade que chego a me esquecer a solidão de estar em lugares fantásticos e não ter vontade de sair do quarto de hotel para jantar. Dei azar de ter uma filha que acorda sempre cedo e quando eu tento me levantar mais cedo que ela para trabalhar, ela me surpreende entrando no quarto, com os olhos miúdos, mas excitados, perguntando: o que temos para hoje? Lá se foi meu plano de trabalhar algumas horas na madrugadinha. Daí só volta a dormir lá pelas 21h. Na madrugada não tem interrupções de gritos nem apelos de “mamãe, me limpa, fiz cocô” e posso contemplar a vida sozinha com meus pensamentos. Há mais de três meses estamos em isolamento social. No início, não acreditei. A pandemia foi deflagrada exatamente na semana do aniversário de sétimo ano de vida da minha filha madrugadora. Relutei em cancelar a festa, mas assim o fiz. Fizemos um bolo gostoso e diferente, decoramos a casa e preparamos um almoço especial, cujo cardápio ela mesma escolheu (peixe frito, vinagrete, quiabo e arroz). Apesar disso, até hoje ela diz que não teve festa de aniversário porque não houve convidados. Antes da pandemia Somos uma família de três pessoas, mãe e duas filhas, de sete e quatro anos. Sou divorciada há mais de 5 anos, desde que ficamos sabendo da existência da minha filha mais nova. Não foi ela a razão do divórcio, a relação marido-mulher estava muito desgastada, mas foi decisão do pai delas, meu ex-marido, dar um basta nesse exato momento. Decisão bastante infeliz no entender de uma mulher grávida. Moramos em um apartamento próprio confortável, com 3 quartos, 2 banheiros, DCE completo, numa grande cidade brasileira. Minhas filhas frequentam uma boa escola particular, além 1 Doutora em Antropologia Social (UFRJ/ MUSEU NACIONAL), Mestre em Antropologia Social (UFRJ/MUSEU NACIONAL, Bacharela em Ciências Sociais (UFMG). Professora Associada Universidade Federal da Paraíba.Lattes: http://lattes.cnpq.br/6989436256176648 372 Maternidades Plurais de terem acesso a livros, cinema, aulas extra como natação e balé. Tenho uma funcionária doméstica que cuida da casa, da comida, da roupa e vem à nossa casa todos os dias. Às vezes, nos finais de semana chamo uma babá para me ajudar com as meninas. Até ano passado tínhamos uma babá diariamente pelas manhãs. Sou professora e pesquisadora universitária, meu maior capital é intelectual, embora meu salário esteja muito acima da média brasileira. Sempre fomos muito “rueiras”. Nos finais de semana era difícil nos encontrar em casa. Praias, restaurantes, parques, praças, casas dos amigos. Reconheço que somos uma família privilegiada, especialmente sou uma mãe privilegiada. Tenho salário garantido, trabalho naquilo que gosto, tenho casa própria, capital cultural e político que me permite pensar sobre o mundo, já viajei para países estrangeiros, posso suprir todas as necessidades básicas das minhas filhas sem correr a empréstimos, podemos viajar juntas, ir a passeios, frequentar cinemas e teatros. Ao mesmo tempo, a realidade objetiva pode esconder a realidade emocional. A verdade é que sou uma mãe sobrecarregada, que não passa um dia sem se lembrar saudosa dos tempos sem filhos, que duvida da capacidade de educar as próprias filhas, que se arrasta para o final do dia sempre com a sensação de não ter dado conta das inúmeras tarefas — as demandas do cotidiano e as demandas emocionais das crianças, minha própria saúde física e psíquica. Muitas vezes depois de levar as meninas para a escola, a única coisa que eu consigo fazer é me jogar na cama e dormir. Várias vezes fui ministrar aulas sem tê-las planejado da forma como gostaria. Sinto falta de ter um outro adulto para partilhar momentos, tarefas e desafios; sinto falta de uma conversa de adultos, sinto falta de carinho de homem, de ser amada e admirada como mulher. A verdade é que sofri demasiado com a separação inesperada do pai das minhas filhas, a segunda gravidez não planejada e a passagem de mulher profissional bem-sucedida para mãe “full time”. Sem dúvida, o processo mais difícil pelo qual passei na minha vida foi o da maternidade. Qualquer trabalho me parece fácil frente ao de cuidar das crianças. Estou em tratando psiquiátrico medicamentoso desde o primeiro ano de vida da minha segunda filha, desde 2016. A minha psiquiatra acredita que tive depressão pós-parto com a primeira filha em 2013 e como não tratei, a doença adquiriu características crônicas. Sem dúvida a depressão mal compreendida e não diagnosticada contribuiu para o deterioramento geral do meu estado. Se eu tivesse tido ajuda, eu não teria sofrido tanto para me tornar mãe. Mas por que falar disso quando o assunto do texto é a maternidade durante a pandemia de Covid-19? A pandemia e o isolamento social imposto como medida de prevenção pintaram de cores néon a realidade que já estava colocada, isto é, o cansaço “estrutural” das mães. Voltarei a isso. Depois da pandemia Logo depois que foi deflagrado o isolamento social, nossa babá estava em casa. Era uma sextafeira. Perguntei se ela poderia ficar direto conosco, dormindo no serviço. Ela aceitou. Acertamos o salário semanal. Eu não imaginava que ela ficaria mais de 2 meses. Nunca tinha tido funcionária que dormia em casa. Ela é uma jovem recém-formada em Biologia, sem filhos, que estava completando a formação em licenciatura e buscando emprego na área. Para pagar a terapia semanal, ela trabalhava como babá nos finais de semana. Para nós duas a situação era nova. Ela não tinha costume de fazer trabalho de casa e cozinhar. Eu não tinha costume de fazer trabalho de casa e cozinhar cotidianamente 373 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e ter que cuidar das crianças ao longo das 24h. Revezávamos os serviços e os cuidados com as meninas. Mas, de modo geral, eu fiquei com a alimentação, roupas e alguns cuidados com as crianças e ela ficou com a limpeza da casa e com parte dos cuidados das crianças. A maior parte dos serviços era minha, mas ser a presença de outra adulta em casa também contava como seu trabalho. Vivíamos um clima suportável enquanto as crianças podiam descer para nadar na piscina do prédio, podiam frequentar o parque em frente à nossa casa, podiam andar de patins, de bicicleta e correr. Quando essas atividades foram proibidas e à medida que a imposição da rotina escolar online foi se estabelecendo a tensão em casa aumentou muito. As crianças pouco aceitavam a presença da babá e eu cheguei ao meu limite tendo que preencher todas as lacunas e exercer todos os papéis (claro, que também era eu quem fazia as compras e cuidava da dispensa). Num dia, estava numa reunião online e pedi para a babá adiantar o almoço. As crianças viam algum filme no Netflix (não consegui, obviamente, manter o controle e acompanhar o que elas assistem nas telas). Minha pequena chegou até mim para dizer que Rosa estava chorando. Logo pensei que algum parente dela tivesse contraído a doença, mas ao me aproximar ouvi: “Eu não aguento mais”. Deitada na cama, de bruços, ela chorava copiosamente. “Nem eu”, pensei, mas não posso parar. Ela foi embora um dia depois. Conversei com nossa funcionária sobre a possibilidade de ela voltar a trabalhar, com quem deixar seu filho, como chegar à nossa residência sem correr riscos, etc. Cláudia era também mais uma mãe que não aguentava mais2 e logo, entusiasmada, topou voltar a trabalhar assim que terminou seu contrato de suspensão de trabalho3. Não demoramos muito a perceber que esse arranjo era precário, que ela dependia de quem a trouxesse e buscasse. Novamente assinamos outro contrato de suspensão de trabalho. Foi aí que decidi sair da cidade onde vivo, viajar mais de 3.000 km de avião e vir ficar na roça dos meus pais, na sua companhia, mas também ao lado de outros familiares. Fizemos nossa quarentena de 14 dias, momento sofrido, sobretudo para minha mãe e as crianças. Mas agora estamos todos convivendo como uma grande família. Na roça minha rotina de cuidados com a casa é intensa, alimentação, roupas e casa são por minha conta. Minhas preocupações são menores, minha ansiedade está menos evidente. Ainda trabalho menos do que gostaria, mas trabalho no que realmente importa. A pandemia está me ensinando a focar no que interessa. O incentivo a produtividade na academia acaba nos levando para caminhos pouco satisfatórios do ponto de vista dos nossos reais desejos, atendem ao ego momentaneamente, mas não aplacam a tristeza de pouco contribuir para a mudança real do mundo. Minhas filhas, desde que nasceram, são minha prioridade. Continuam sendo. Na pandemia a convivência é maior, estou conhecendo-as mais e ao reconhecer cada rusga na nossa relação, vislumbro a possibilidade de melhor amar. Menos de um mês na roça, minha filha mais nova quer voltar, ontem à noite chorou com saudade da nossa casa, dizendo que queria dormir na sua cama, que queria abraçar a Cláudia, nossa funcionária. Lá ela mesma chorava de saudades da vovó e do vovô. Conversamos sobre tudo que tinha aqui, a piscina, as vacas, a cadela, o ar livre, os parentes, vovô e vovó. Ela se 2 Além de cuidar da própria casa e dos seus dois filhos, ela cuidava da casa da sogra e da própria que morava ao lado e encontra-se enferma. 3 O Governo Federal abriu a possibilidade de assinatura de contrato de suspensão de trabalho por até 60 dias a fim de evitar a demissão em massa da população. Posteriormente foram assinados outros decretos que permitiram a prorrogação da suspensão do serviço e a redução da carga horário em até 70%. 374 Maternidades Plurais acalmou um pouco. São altos e baixos, sofrimento e liberdade, tudo permeado pela saudade do passado, dos amigos, da escola. Mas como pensar o futuro? Não quero mais repetir o passado. Quero aprender com essa experiência e ajudar as minhas filhas a saírem dessa, melhores do que entraram. O cansaço “estrutural” das mães Uma jovem mulher sem filhos perguntou por que as mães reclamam tanto — afinal, ter filhos é uma escolha. Sua ideia é de que as mulheres são livres para escolherem entre ter ou não filhos. Será que são mesmo? Outra ideia é a de que as mulheres reclamam demais, talvez devessem ficar caladas e aceitar as dificuldades que possam encontrar durante a criação dos seus filhos. Meu objetivo é sugerir que as mães, na sociedade ocidental atual, estão sob um cansaço estrutural, ou seja, o cansaço das mães faz parte da engrenagem das sociedades e da maneira como o sistema capitalista e machista funciona. O capitalismo e o machismo aprisionam as nossas vidas e impedem que as mães possam ser vistas como uma categoria teórica potente, confinando no espaço doméstico e pouco valorizado o cuidado com as crianças (e outros vulneráveis, como os idosos e portadores de deficiências). Esse processo retira da categoria “cuidado” o seu teor político e público, reduzindo a (re)produção de pessoas em mero ato de natureza4. A falácia da escolha – fez por que quis Ninguém tem total controle sobre a fecundação de um feto, a não ser que faça total abstinência sexual, o que não me parece possível nem saudável numa relação matrimonial. Existem filhos e filhas do DIU, da tabelinha, da camisinha, do anticoncepcional oral. Todos os métodos contraceptivos são falíveis. Além disso, há filhos e filhas de abuso sexual, relações não consensuais dentro e fora do casamento. Em países que não permitem o aborto seguro, como o nosso, maternidade não é escolha. Há ainda as demandas sociais para que as mulheres tenham filhos e filhas se quiserem evitar a solidão na velhice e outras ideias preconceituosas que ainda rondam nosso imaginário sobre as mulheres sem descendência. Em alguns países trata-se de sérias imposições tanto em relação ao casamento, quanto à prole. O direito ao planejamento familiar e a educação sexual nas escolas pode permitir que alcancemos um grau maior de escolha no que diz respeito à gravidez. Por enquanto, a escolha entre ter ou não filhos no Brasil é uma falácia. A escolha individual da mãe é apenas uma das muitas razões que permitem a fecundação humana. Há algumas mulheres que realmente escolhem ter filhos. Mas isso não implica que devam ser as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças e que não possam reivindicar direitos. É necessária uma aldeia para criar uma criança 4 Indico a leitura do romance Fica Comigo, de Ayobami Adebayo. 375 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Embora não tenhamos acesso ao aborto legal e seguro, não temos também o suporte emocional, psicológico, financeiro necessário aos cuidados com as crianças. Tudo se passa como se ter um bebê no Brasil fosse uma condenação ao sofrimento. Estamos longe de uma comunidade que acolha mães, crianças e famílias com crianças. Quem pariu Mateus que o balance. Os encargos dos cuidados com crianças são transferidos quase que completamente para a esfera do privado, enquanto o Estado (“que não é nação”, para lembrar Legião Urbano e Renato Russo), historicamente é marcado por uma abstenção em assumir o dever que está na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 de que as crianças são prioridades absolutas da nação. Bulhufas. Não são prioridades. O que acontece é que os responsáveis das crianças ficam com o ônus dos seus cuidados, e essa conta pesa muito mais para as mães. Embora nem todas as mães saibam que seus filhos têm direitos garantidos, todas as mães que conheço sabem que estão cansadas e, por isso, afirmo tem o direito de reclamar. Reclamar por melhores escolas, por cidades acessíveis, por um sistema de saúde de qualidade, por uma política que inclua as crianças como cidadãs. Como afirmou a antropóloga Elaine Muller (2020: em correspondência pessoal) até mesmo as mulheres que escolhem ser mães também têm o direito de “reclamar”. Por que “[o] que estão chamando de reclamação é o político da maternidade. Que bom que as mães estão silenciando menos sobre maternidade compulsória, sobre sobrecarga e sobre a ausência do Estado nas relações de cuidado”. A rede de apoio é muito importante para cuidar da próxima geração. Agora durante a pandemia sente-se a falta da escola, dos parentes — como os avós —, da empregada doméstica, da babá, dos amigos e amigas com ou sem filhos, mas disponíveis, no parquinho e da praia. Por isso o isolamento pinta de cores fortes nosso cansaço que não é novo, mas é preciso ser trazido à tona. Quem se beneficia com o cansaço das mulheres mães? Quem está deixando de cumprir seu papel e sobrecarregando as mães? Ninguém consegue criar uma criança sozinha e se tentar vai ficar doente. Eu posso dar testemunho. Nos primeiros anos, cuidei praticamente sozinha da minha primeira filha e dividi os cuidados da segunda filha com meus pais. Há uma diferença clara entre esses dois contextos que proporcionou um reconhecimento e a criação do vínculo do amor de forma mais saudável, harmoniosa e prazerosa no segundo caso. O pacto geracional As crianças são os sujeitos que habitam a infância, nesse sentido, a infância é uma categorial estrutural como diz o sociólogo Jens Qvrotrup 5. Se focarmos nos sujeitos não temos como ter uma visão macro. Precisamos de um projeto político que realmente promova os 3Ps na vida das crianças: proteção, provimento e participação. É preciso deslocar o olhar das crianças em si mesmas, das mães 5 A ideia é desenvolvida em vários artigos e livros do autor. Para começar a compreender as suas ideias sugiro a leitura de: Qvortrup, Jens. (2010). A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, 36(2), 631-644. https://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022010000200014 376 Maternidades Plurais e famílias específicas, para pensar o todo. A infância permanece e as crianças passam. Nós já fomos crianças. Nossas crianças serão adultas. Mas não importa que coorte geracional habite a infância hoje, essa categoria pensada estruturalmente está sempre em desvantagem em relação aos adultos. Reconhecer essa situação de opressão é importante para que possamos reivindicar os direitos das crianças de serem cuidadas pelo Estado, pela comunidade e pela família. De outro lado, se ter filhos não pode ser pensado como uma escolha individual, os ônus e benefícios advindos das crianças não podem ser privatizados. Os países dependem das novas gerações, a psicóloga e professora da UFRJ, Lúcia Rabello de Castro6 chama a atenção para o Pacto Geracional — as crianças são cuidadas, depois cuidam; elas recebem e depois dão. É rompendo com a suposta inutilidade das crianças que promovemos uma cultura menos hostil às crianças e as mães. Os trabalhos feitos pelos cuidadores das crianças, que são geralmente as mães, devem ser compartilhados com toda a comunidade. As crianças devem ser vistas como bens coletivos. Afinal, quem fará a higiene pessoal das mulheres idosas senis que não tem descendência, e hoje reclamam de supostos “privilégios” das mães — senão os filhos e filhas de outra mulher? Os cuidados com as crianças trazem ônus financeiros, emocionais, na carreira profissional, na vida amorosa das mães. Tudo isso precisa ser levado em consideração. O isolamento social imposto durante a pandemia de Covid19 mostrou de forma mais evidente a sobrecarga e os ônus da criação das crianças enfrentados pelas mães. .... ouço barulhos de passinhos que vem até aqui. E ela chega. Paro, dou abraço, cheiro, dou carinho, volto para a cama. Estamos juntinhas, mão com mão, sinto sua respiração. Agradeço à vida por ter me confiado essa pessoa para eu amar e cuidar. Nada mais me importa. Adormeço. 6 A ideia do pacto geracional é ricamente elaborada em diversos textos da autora. Sugiro a leitura do livro para uma introdução ao seu pensamento: de Castro, Lúcia Rabello (2013). O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, Faperj: 228p. 377 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 59 A outra margem da maternidade: reflexões em tempos pandêmicos Flora Rodrigues Gonçalves1 Despertar é estar em trânsito “O.k., você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem?” (Ailton Krenak) Despertar é sempre uma trajetória. Nesse sentido, escrever a história das mães é não esquecer a história das mulheres, é voltar-se para o tipo de humano que somos, é a possibilidade de escrever sobre uma ciência inclusiva, com corpo, com raça, com gênero. As diversas narrativas que surgem nesse momento tão peculiar da pandemia são de mães sobrecarregadas, pesquisadoras exauridas pela dupla/tripla função, crianças agitadas, descompassadas, a reinvenção do espaço doméstico, a desigualdade de gênero. São nos ambientes da casa, que agora são ambientes de trabalho também, que a reprodução dessa desigualdade acontece: somos acometidas, como uma espécie de prenúncio, pela carga mental das tarefas dos filhos, do almoço ao meio dia, da roupa para lavar acumulada, dos sentimentos do fim do mundo e pelas inúmeras ideias de como adiá-lo. Mesmo antes de acabar o dia, faz-se necessário pensar naquele artigo inacabado, ou/e nas demandas das crianças, ou/e nas reuniões de trabalho interrompidas por gritos, fome, choro, risos, calor, frio, possibilidades infinitas de um dia que (ainda) não acabou. Uma mãe na pandemia (e fora dela) é do tamanho de um punho. Doutora em Antropologia Social. GESEX (Grupo de Pesquisa Gênero e Sexualidade) – UFMG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9050416327462007 1 378 Maternidades Plurais “Um útero é do tamanho de um punho Num útero cabem cadeiras Todos os médicos couberam num útero Não cabe num punho, Quer dizer, cabe Se a mão estiver aberta” Trecho do poema “Um útero é do tamanho de um punho”, de Angélica Freitas No útero, também cabe a dor da partida. É importante pontuar que a maternidade, assim como qualquer outra coisa, tem um marcador de raça e de classe muito evidente. Existem as mães que saem para trabalhar e veem seus filhos sendo mortos, corpos negros que não entram na contagem das vítimas do isolamento. Sim, falo de todas as Anas, Andrés, Luíses, Miguels, Jesus, Marias e Otávios. A maternidade também se faz na ausência. Construir ordem no caos Acordamos tarde pois o filho mais novo caiu da cama. Um arranjo novo com a grade da cama, talvez uma cadeira para apoiar a grade e o menino furacão? O sol estava quente, mesmo no frio do quarto, no choro da madrugada, no café da manhã que era apenas prenúncio. “Mãe, tô com fome”. Naquele momento, penso que se a maternidade é atravessada por mecanismos que estão além de nós mesmas, afinal, todas estamos com fome. Uma fome secular, a mãe é a própria construção de um novo tipo de corporalidade, um devir nutriz eterno. Ainda no preparo do café, vale lembrar daquele artigo encomendado, atrasado, impossível de entrar na ordem das tarefas do dia. Talvez o café preto desanuvie a pressão que chega antes das 10:00 da manhã e você consiga esboçar um sorriso ao ver tanta produtividade alheia nas redes sociais. São receitas de bolo, de posições de yoga, o corpo vigiado e corrigido cheio de aptidões, o corpo-dispositivo foucaultiano, a história, a “ciência” que nos salve dessa pandemia. Seria a ciência moderna produto de centenas de anos de exclusão de mulheres? Sabemos que no Brasil estamos sujeitas à ausência de políticas públicas que garantam à mulher uma inserção ao mercado de trabalho: não existem escolas suficientes, creches suficientes, licenças maternidades estendidas, licenças parentais possíveis. No isolamento, a mãe é a escola, a creche, o alimento, o trabalho doméstico. A casa. O cuidado. O trabalho doméstico é aquele trabalho oculto que não resulta, necessariamente, em pagamento. Ele é como uma prova afetiva, ele é muito mais do que limpar uma casa e cuidar das crianças. Silvia Federeci2 (2019) diz que por trás de toda fábrica, todo escritório, toda escola, há o trabalho oculto de 2 FEDERECI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução Coletivo Sycorax – São Paulo: Elefante, 2019. 379 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) milhões de mulheres que movem todo esse processo de produção. A impressão é que o fato de outras pessoas dependerem de nós faz com que não saibamos onde nosso trabalho começa e nem onda ele termina. É a produção trabalhista do cuidado. Londa Schienbierg3 (2001) já assinalava que o campo de jogo da ciência nunca será nivelado enquanto o cuidado com as crianças e a administração doméstica continuarem a ser consideradas uma responsabilidade da mulher. Nesse sentido, não é suficiente que os parceiros ajudem, mas que se responsabilizem. Afinal, “apenas um corpo sem outros corpos dele dependentes podem ser verdadeiramente transcendentes” (pag.150.). Já está na hora no almoço, e a responsabilidade principal pelos serviços domésticos novamente chega de maneira desproporcional. Seja culturalmente, seja pela divisão sexual do trabalho, seja por ambos: a mãe é a encarnação perfeita não só do alimento, mas do cuidado. O cuidado, responsabilidade feminina, é uma carga que a dinâmica social espere das mães. “Não negligenciem seus filhos”. A tarde chega rapidamente, e os deveres com as crianças também. Sempre pela metade, sempre difícil, sempre intenso. Afinal, somos mães, pesquisadoras, mas não professoras de nossos filhos. Incertezas, trabalho, decisões. A tarde vai embora com o desaparecimento daquela mulher pesquisadora, com sua total certeza de ser um fracasso enquanto cuidadora, nutriz, professora. A ideia que permeia o imaginário é “será possível uma nova revolução sexual?”, digo, temos uma nova condição de corpo, maravilhosa na escrita, um arranjo espetacular entre corpo e máquina, mas o cotidiano continua sendo tarefas domésticas, isolamentos sociais, a realidade da pandemia. Quero uma escrita que faça a prática, que seja feita e não dita (penso antes da janta). A janta anuncia o final do dia, mas ele ainda nem começou. Enquanto antes da pandemia os corpos contrassexuais (de Paul Preciado) eram possíveis, tangíveis à mão, na pandemia eles (me) escapam, eles não existem na esfera doméstica do isolamento. Os corpos que se reconhecem nem como homens, nem como mulheres, esses corpos contrassexuais falantes, eles não são efetivos nem performáveis na realidade materna. Tudo é lindo no papel, mesmo que a jante queime. Tudo é urgente no corpo, mesmo quando o corpo está dilacerado por contradições. Narrativas sobre a origem: o discurso tateante Não temos apenas o problema da linguagem partida. A maternidade marca uma ruptura, uma partilha: é como se o ser mãe fosse tão normatizado a ponto de ser maravilhoso. As representações da maternidade são incompatíveis com cansaço, com dor, com incertezas, com a falta de tempo. Como se tudo, afinal, fosse uma questão de escolhas. A partilha se faz presente na narrativa cansada. A narrativa é, nesse sentido, uma quase-memória. Esquece a pausa, esquece o dever da criança, a roupa de molho, esquece a palavra. Uma narrativa 3 SCHIEBINGER, Londa. O Feminismo mudou a Ciência? Bauru, SP: EDUSC, 2001. Coleção Mulher. 380 Maternidades Plurais de mãe cansada pandêmica é cheia de costuras, é um lento processo de rememorizar, ressignificar a memória. A quase-memória. Ecléa Bosi (2012) disse uma vez, em uma entrevista 4, que temos que aprender a amar esse discurso tateante. Ela diz que esse tipo de narrativa testemunha a complexidade do real, fazendo com que a gente compreenda esse rememorar como História. Das histórias, gosto de lembrar (eufemismo necessário) da época em que a loucura das mulheres — e entenda por loucura qualquer tipo de conduta desviante do padrão esperado – era condicionada, segundo os alienistas, às ordens hormonais, uterinas ou de sexualidade. O fato é que nessa época, finais do século XVIII, os discursos dos profissionais de saúde sobre as mulheres eram de produzir narrativas que corroborassem com a mulher metafísica, aquela ideal. Qualquer desordem dessa mulher esperada, objetificada e disciplinarizada, era tido como loucura (Rohden, 2008) 5. Ainda assim, acreditava-se que para tratar essa mulher louca (triste ou má), a recomendação era ter filhos: Apesar de contradições e dos impasses dos alienistas diante das ambiguidades do ser feminino, eles jamais abandonariam completamente a crença de que a maternidade constituía um dos remédios mais eficazes — senão o mais eficaz — para evitar ou curar as moléstias femininas (Engel, 2000, pag.337)6 Desde muito tempo sabemos qual o papel destinado às mulheres, pelo menos aquele escrito na história ocidental. Também sabemos que esse papel vem mudando lentamente com o tempo — principalmente a desmistificação do “amor materno incondicional”. Esse tipo de representação tradicional, junto com outros “mitos”, é responsável pelo isolamento materno e sua subjugação no trabalho, na sociedade, na família e, pasme, até em alguns movimentos feministas. Em meu percurso acadêmico, todos os meus colegas homens que se graduaram comigo já completaram seus doutorados, alguns são professores de instituições federais. Em retrospecto, penso se minha carreira científica foi boicotada por eu ser mãe ou por ser mulher. Ambas, pois são dissociáveis — nesse sentido. Ainda em desvantagem, vejo os rastros do isolamento social potencializar tudo aquilo que ainda nem fui: a maternidade é atravessada por técnicas de repressão e subjugação a maior parte do tempo, aumentadas pelo anunciado fim do mundo do qual temos assistido, amedrontadas, em nossas casas. O que significa, então, ser mãe nesse intenso processo de desterritorialização que estamos vivendo? Exauridas, queremos alento. Ao mesmo tempo, atentas às teorias negacionistas e ao medo do visível, precisamos de nossas crianças. Reaprender o significado daquilo que elas estão ensinando, 4 BRUCK, Mozahir Salomão. Profa. Eclea Bosi-Memória: enraizar-se é um direito fundamental do ser humano. Dispositiva, v. 1, n. 2, p. 196-199, 2012. 5 ROHDEN, Fabíola. Império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciência, Saúde – Maguinhos, v. 15, supl, p. 133-152, 2008. ENGEL, Magali. “Psiquiatria e feminilidade”. IN: PRIORE, Mary Del (org). História da Mulheres no Brasil. 3a ed. São Paulo: Contexto, 2000. (p.322) 6 381 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) indicar que uma sociedade desigual resulta em uma mãe sobrecarregada — mas isso não é desamor. O amor está em ensinar que isso precisa de mudar. Meus filhos, vocês sabiam que os corpos e seus gêneros não têm sentido fora das suas compreensões socialmente construídas? Espero que, nessa quarentena, vocês tenham apreendido isso. Uma das coisas que essa epidemia descortina é o machismo, a homofobia, o capacitismo, o racismo. “O choro não é feminino, meu filho, por favor, se permita chorar”. Quero pensar que o choro é do mundo, aquele em desencanto, aquele reencantado: o choro é um devir-mundo. Eu quero dar existência a esse choro, quero que ele seja memória. A memória de uma maternidade insubmissa. Apontamentos Finais Ainda que incorpore ao texto minhas experiências pessoais, sei que, ao coletivizá-las para o público, algo novo pode acontecer no mundo. Não (tanto) em termos de visibilidade, mas principalmente de afeto. Além disso, essa maternidade lancinante, inscrita em todas nós nessa quase-memória, não deve ser lida como um refúgio, mas os motivos pelos quais ainda devemos lutar. 382 Maternidades Plurais 60 Na mesma tempestade, não no mesmo barco Francine Cruz1 A pandemia causada pela Covid-19 vem afligindo o mundo inteiro e dificilmente alguém conseguirá passar por ela sem ter algum impacto em sua vida ou ao menos uma mudança em sua rotina. No Brasil, ela demorou, mas chegou. E parece não querer partir tão cedo. Lembro de quando comecei a ouvir falar sobre esse tal coronavírus, lá no começo do ano, de férias na praia, me revezando entre uma leitura na sombra e um banho de mar. Era uma realidade que parecia distante, passageira e um tanto nebulosa. Não me preocupei. Em fevereiro, a doença já mostrava que não era algo a se menosprezar. As mortes aumentaram significativamente, assim como a quantidade de pessoas infectadas e a disseminação do vírus para outros países. Ainda assim, aqui era carnaval, era verão, estávamos alegres com os amigos, pulando em blocos pelas ruas e compartilhando o copo de cerveja gelada. O ano letivo começou com um certo ar de otimismo. Depois de um 2019 bastante difícil, a esperança é de que as coisas só poderiam melhorar. Tenho a vivência de docente na Educação Básica e a de estudante de mestrado e posso dizer: as energias estavam renovadas dos dois lados. Tínhamos nas mãos uma folha em branco para preencher com o nosso melhor! O clima era de cordialidade. Os meus alunos estavam tranquilos, e eu, enquanto estudante, já tinha terminado de cumprir os créditos do programa de mestrado, já tinha feito a pesquisa de campo e agora só precisava me concentrar em transcrever as entrevistas, analisar os dados e finalizar a dissertação. No entanto, ao final deste mesmo fevereiro, as coisas começaram a mudar. Milhares de pessoas estavam doentes ou morrendo, outras tantas estavam isoladas em suas próprias casas, sem poder exercer a liberdade de ir e vir. Diante do novo cenário, começou a preocupação com os amigos e familiares que moram em outros países. As ligações e as mensagens agora traziam sempre o mesmo pedido: se cuidem! Então chegou março, despedaçando nossos corações, afligindo nossas almas. Chegou trazendo lágrimas pelos irmãos italianos, cenas que eu gostaria de nunca ter visto, o nó na garganta pela tristeza 1 Mestranda em Educação pela UFPR. Professora da Rede Estadual de Educação do Paraná. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9207794138031602 383 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que o mundo estava passando. Os jornais anunciavam cidades em quarentena, hospitais superlotados, médicos tendo que escolher quem teria uma chance de sobreviver — o dilema de Sofia deixava de ser abstração para se tornar realidade cotidiana. Alguns teriam prioridades, outros não. Apesar de serem relatados alguns casos no Brasil, a empatia e a compaixão ainda estavam voltadas para outras nações pela gravidade do que estava acontecendo lá fora. Começamos a utilizar álcool gel nas salas de aula, como forma de prevenção à essa nova doença, mesmo assim ainda era algo abstrato. Porém, os casos foram aumentando e, na rede estadual do Paraná, a semana do dia 16 de março marcou o início de uma nova realidade. Os alunos foram deixando de vir às aulas, que se tornaram facultativas para os próximos dias, professores e funcionários do grupo de risco foram dispensados até que finalmente no dia 20 as escolas pararam suas atividades. As escolas municipais e particulares também seguiram a mesma orientação, por isso minha filha de 3 anos, que frequentava o maternal, também passou a não ter aulas. Lembro bem que fizemos uma boa compra no mercado e, como meu marido e eu somos professores, os próximos quinze dias depois do fechamento das escolas foram de certa forma tranquilos em termos de trabalho, já que houve a antecipação do recesso escolar de julho. Mesmo com o recesso da escola, não consegui fazer nada da minha dissertação. Com o passar dos dias, as notícias ficaram piores, a preocupação com nossa saúde e daqueles que amamos também foi aumentando. A cabeça já não conseguia pensar em outra coisa que não no coronavírus. Mesmo estando esses dias em casa e em recesso, sem ter que trabalhar, não havia condições psicológicas para dar continuidade à minha dissertação. A televisão e as redes sociais bombardeavam mil e uma informações, e eu não podia ficar indiferente ao que estava acontecendo. Além disso, era preciso cuidar dos afazeres domésticos, como limpeza e refeições, dar atenção para minha filha pequena, cuidar de sua higiene pessoal, entre outros. Passado esse período de quinze dias, as aulas voltaram, agora de forma não presencial e sim remota, pela televisão e internet. A adaptação à nova rotina de trabalhar em casa não foi (e ainda não é) tão simples, as dinâmicas e as demandas são completamente diferentes do que eram antes. Contudo, não posso reclamar. Embora estejamos todos na mesma tempestade da pandemia, os barcos que temos para nos salvar não são os mesmos. Alguns estão em um navio de cruzeiro com tudo incluso enquanto outros nem barco tem. Não estou em um extremo, nem no outro. Na minha embarcação, estamos em 3, meu marido, minha filha e eu. Temos alimento suficiente para nossas necessidades, um teto seguro que nos abriga, uma boa saúde física e mental, aparelhos eletrônicos e ferramentas que nos permitem trabalhar de casa. Ademais, temos o domínio básico sobre as tecnologias para desenvolver esse trabalho. Por ter um certo domínio das ferramentas tecnológicas, esse período não foi muito desgastante para mim, porém vi muitos colegas de profissão desesperados com a enxurrada de informação e de coisas que precisaram aprender de uma hora para outra. Ajudei no que pude, fazendo vídeo-chamadas que eram tutoriais “ao vivo” e, quando não sabia algo, ajudava a pesquisar uma solução. 384 Maternidades Plurais Começando a trabalhar, consegui me organizar também para voltar a escrever a dissertação. Meu marido assumiu os cuidados com a casa e com a nossa filha na maior parte do tempo, apesar de também estar trabalhando. Minha rotina se tornou acordar cedo para trabalhar e dormir tarde para focar na dissertação o restante do tempo. Como somos dois professores pesquisadores em casa, um dos nossos cômodos virou um escritório, o que facilitou bastante minha vida e, nesses dias de isolamento, tem sido o local em que mais fico. Entretanto, por mais que meu marido seja um grande parceiro e um excelente pai, criança se cansa rápido das coisas e diversas vezes por dia minha filha aparece no escritório com sua carinha fofa para dizer que só quer me dar um beijo. E o beijo vira abraço, que vira colo, que vira uma contação de histórias e assim por diante. É de cortar o coração quando ela pede para que eu pare de “trabalhar” um pouquinho e preciso responder “já vou” umas dez vezes antes de realmente conseguir largar tudo por alguns minutos e lhe dar um pouco de atenção. Nos dias em que meu marido e eu temos muito trabalho, é inevitável deixar a pequena com o tablet ou com o celular por mais tempo do que gostaríamos ou permitiríamos em outra situação. Desse jeito nem parece que tem criança em casa, ela fica quietinha por horas. E eu me sentindo péssima. Quando resolvo deixar o trabalho de lado para dar um pouco de atenção a ela isso significava que irei dormir mais tarde. Normalmente minha filha dormia antes das nove, mas, com a falta de uma rotina mais rigorosa na quarentena, ela tem dormido mais tarde, depois das dez. E então, depois que ela dorme, eu volto a trabalhar até de madrugada. Tem dias que vou dormir às três ou às quatro da manhã já sabendo que às sete ela vai estar sorrindo ao lado da minha cama, me chamando para fazer o mamazinho dela e dizendo que quer brincar. Muitas vezes me sinto mal em relação à minha filha. Queria lhe dar mais atenção, porém, na maioria das vezes, não consigo. É um dilema sem fim: se estou trabalhando (seja com a dissertação ou como professora) penso que deveria estar com ela, se estou com ela penso que estou sendo relapsa com o trabalho. Se me divido entre o trabalho e ela parece que não estou fazendo nenhuma das duas coisas direito. É uma mistura de sentimentos complicada e que ainda não sei lidar muito bem. Ainda assim, minha situação é boa em relação a muitas pessoas. Como eu disse, posso não estar em um iate de primeira classe, mas estou em um barco bastante confortável. Minha geladeira está cheia, meu marido exerce seu papel de pai e companheiro, tenho estabilidade emocional para trabalhar. Muitas colegas de trabalho e de mestrado relatam situações diferentes, estão sobrecarregadas com o peso do trabalho e a responsabilidade sobre a casa e os filhos praticamente recaindo toda só sobre elas. As desigualdades vão se evidenciando conforme o tempo passa. Seja nas condições de higiene e segurança, seja na questão econômica ou na realidade que cada um tem de acompanhar as aulas não presenciais, há um abismo enorme entre os que são de certa forma privilegiados por conseguirem se manter estáveis e os que estão lutando diariamente para sobreviver. Quando uma aluna diz que sua mãe vai fazer uma “diária” (mesmo em meio a uma pandemia) para poder pagar a internet porque ela 385 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) não pode ficar sem fazer as atividades da escola para não perderem a cesta básica que recebem, o abismo é perceptível. E nem só os estudantes da Educação Básica sofrem. Embora eu já tenha coletado meus dados e por isso possa seguir com a análise e discussão dos resultados (de novo estou numa embarcação confortável), muitos colegas de mestrado estão com suas pesquisas paradas, porque dependem do funcionamento das escolas para coletar seus dados ou aplicar suas pesquisas. Os prazos estão ficando apertados e a preocupação em cumpri-los só aumenta, pois a universidade ainda não manifestou a intenção de prorrogação. Estão adoecendo ainda mais os professores (categoria que já vinha com adoecimento físico e mental acentuado ao longo dos anos) com as cobranças excessivas de produtividade e eficácia nessa nova forma de trabalho a que ainda estão se adaptando somadas à preocupação com a pandemia e suas demandas particulares com as próprias famílias. Além de todos os problemas ocasionados pelo coronavírus, no Brasil ainda temos que lidar problemas sà educação e à ciência, especialmente das áreas humanas. Enquanto outros países seguiram isolamentos rigorosos, o que vemos aqui é o desrespeito às normas da quarentena, muitos sem máscaras ou usando-as de maneira incorreta, fazendo aglomerações, vivendo como se tudo estivesse normal. Se no início de março chorávamos ao ver as notícias da Itália, em junho, no Brasil, com a curva em crescimento e recorde de mortes pela Covid-19, o que se vê é a banalização dessas mortes, afrouxamento do isolamento social e pessoas tentando se aproveitar do momento de “crise” para lucrarem às custas de outras pessoas, do meio ambiente e de todas as vidas. É o velho ditado: enquanto uns choram, outros aproveitam para vender lenço. Nesse tempo todo que estou em isolamento, e não são poucos dias, não é fácil para mim ficar com minha filha de três anos em um apartamento de 63m² sem sequer pegar sol e ver meus vizinhos saírem sorridentes sem máscaras ou qualquer proteção, para se exercitarem em uma área comum ou levarem os filhos ao parquinho. Quantos mais terão que morrer até que se perceba que já morreu gente demais? Se fizéssemos um isolamento mais rigoroso, quem sabe já poderíamos estar saindo dele, mas do jeito que as coisas estão, parece-me que ficaremos nesse simulacro de isolamento por muito tempo ainda. De março para cá, já tive algumas crises de ansiedade e estresse. Tive que aprender a fazer “live”, “meet”, baixar aplicativo, mexer no aplicativo, planejar aula, postar aula, escrever dissertação, dar atenção especial a amigos que estão adoecendo pela sobrecarga e pressão sofrida… e muitas vezes tive que fazer isso com minha filha pulando no meu colo implorando atenção. Também já testemunhei uma amiga ficar tão mal de saúde que não conseguia sequer falar pela falta de ar e para quem colocar uma blusa era um esforço descomunal nos dias em que esteve doente. Vi outra amiga perder dois familiares para a Covid-19, rezei com outra para que seu exame desse negativo e vibramos quando soubemos que era “apenas” uma pneumonia. Só em tempos de coronavírus para se comemorar uma pneumonia. 386 Maternidades Plurais Enfim, mesmo em meio às maiores tempestades, surgem momentos de esperança e calmaria. Descobri nessa quarentena que vou ser tia pela primeira vez, fiz novas amizades, retomei velhas amizades, aprendi muitas coisas e tive a arte como minha tábua de salvação. Os livros, as imagens, as músicas, os filmes são o bálsamo que minha alma precisa para se curar das mazelas da vida. Hoje é meu 80º dia de isolamento social, estou escrevendo este relato e brigada com o marido (que está se sentindo sobrecarregado). No entanto, terminei a dissertação. Cento e cinquenta e duas páginas de sangue, suor e lágrimas. Agora é esperar as correções do orientador, arrumar o que for preciso e enviar para a banca. Ainda não sei como será a defesa. Para os próximos dias, os planos são dar um pouco mais de atenção para a filha e fazer as pazes com o marido. Quem sabe ler um pouco de poesia. E seguir sempre em frente com coragem e esperança de que dias melhores virão. 387 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 61 Ondas conflituosas em oceanos plurais de uma quilombola em Horizonte (CE): contaminação do Covid-19 no pós-parto Francisca Marleide do Nascimento1 “Eu não nasci rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras.” (Conceição Evaristo.) No dia 15 de março de 2020, confirmou-se o primeiro caso positivo de contaminação pelo coronavírus no Estado do Ceará. Dias após, fui convocada para uma reunião de emergência pela Secretaria de Ação Social e Trabalho (SAST), da Prefeitura Municipal de Horizonte, onde ocupo a função de coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS Quilombola) e concomitantemente coordeno o Núcleo de Promoção da Política de Igualdade Racial (NUPPIR) Naquele instante, começamos a pensar no que viria pela frente. E no dia 22 de março, uma semana após a reunião, foi decidido pela gestão municipal que suspenderíamos as atividades e informamos aos colaboradores e usuários dos serviços que iniciaria um isolamento social, e que só permaneceria no local de trabalho pessoas que não fizessem parte do grupo de risco. Apesar de que deveria me recolher em casa e esperar a tempestade passar, eu, enquanto mulher negra e quilombola, sei da importância e necessidade de ajudar e auxiliar os demais em um momento tão difícil como este o qual vivenciamos, acredito que minha casa é meu quilombo! E não podia deixar de contribuir no combate a esse vírus que é letal e desconhecido. Aquele momento inicial foi desesperador. Portanto, decidi permanecer na linha de frente na organização e sistematização das medidas iniciais que a PMH e a SAST tomariam naquele momento. Os dias foram intensos e cansativos. E em todo momento me vinham lembranças de minha avó, (Mamedia Gadelha – in memorian) que sempre me dizia: Nós, mulheres quilombola sabemos que já nascemos com uma missão, a de jamais deixar nenhuma outra mulher para trás e de cuidar uns dos outros, até quando nem querem ser cuidados! Mamedia Gadelha. 1 Graduanda em Pedagogia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1878743907259484 388 Maternidades Plurais Houve dias que eu pedi ao sagrado para que meu filho ficasse um pouco mais em meu ventre, pois sabia que ali ele estaria protegido e também por lembrar que embora estivesse no sétimo mês de gestação, não havia comprado nada para a chegada do pequeno. Nas orações pedia para não me cansar tanto, pois precisava ter forças para ajudar no quilombo, as bordadeiras, as boleiras, as artesãs e as comunidades atendidas pelo CRAS Quilombola, que inclusive já estavam sofrendo, pelas famílias que vivem em situação de extrema pobreza, negligenciadas e invisíveis aos olhos do poder público. Em minha cabeça tinha um turbilhão de pensamentos, dentre eles, os casos que começavam a surgir no município, mas principalmente a sobrevivência do meu povo, dos idosos, das crianças, a vida do meu filho Raul de 11 anos que tem problemas respiratórios e, portanto, está no grupo de risco, o medo da contaminação do meu outro filho, Arthur, de apenas 01 ano e 08 meses e, por fim, minha gestação. Os dias foram passando e em todos eu agradecia por não ter nenhum caso confirmado da Covid-19 na comunidade e pelos de casa. Apesar de estar me sentindo bem, com 36 semanas Rhuan, meu filho mais novo, começou a dar sinais que queria vir antecipadamente, então meu medo aumentou, pois não poderia ter um parto normal, pelo fato de ter feito uma cesariana no parto anterior. Nos últimos dois meses, a ansiedade tomou conta de mim, a angústia, o pavor e o receio de trazer uma vida tão frágil ao mundo em meio a esse momento difícil, em meio à pandemia. Chorei, orei, rezei, fiz preces, pedi intercessão às rezadeiras e raizeiras do Quilombo. Vi de longe uma das umbandistas do quilombo, mulher de fé, que leva em seu corpo as marcas da resistência em meio a lutas travadas contra a intolerância religiosa. Em sinal de proteção, recebi um levantar de mãos, um abraço forte e um sorriso me dizendo: “Vá em paz e traga seu curumim para eu conhecer” (Luziene Bento – Mulher de Terreiro), assim segui para a maternidade, no dia 13 de abril de 2020, saudável e sem sintomas da Covid-19. Fiquei internada por 02 dias, pois a diabetes estava descompensada, e assim completei 37 semanas no hospital. Então, os médicos resolveram interromper minha gestação e retirar meu filho, o parto foi feito juntamente com uma laqueadura. Como tudo ocorreu bem, no dia seguinte, recebi alta e fui para casa. A esperança e o medo na incerteza da dor! Em casa, mimando o rebento, começo a perceber os primeiros sintomas da contaminação, tentava sentir o cheiro do meu filho e não tinha êxito, a dor no corpo começou me consumir, uma dor na barriga insuportável acarretada de diarreia. No início pensei que pudesse ser problemas normais ao pós-cirúrgico, mas no quarto dia a garganta começou a incomodar e, mesmo sem tosse, comecei a escarrar um pouco de sangue, conversei então com uma conhecida que é enfermeira e ela me disse pra ir à maternidade de imediato, pois poderia ser embolia pulmonar e assim fiz. A essa altura, o peito já doía muito e o cansaço começava a chegar, foi então que pensei... é Covid! Fui de um município ao outro com meu companheiro, chorando, pensando que, se fosse Covid-19, quem poderia ter contaminado? 389 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ao chegar à maternidade, fui atendida como suspeita e já me levaram para uma sala isolada, sem mais contato com meu companheiro. O médico me avaliou e passou uma série de exames, de raio-x à PCR (Proteína C-reativa), e ao final foi identificada uma lesão leve no pulmão e que não se sabia ao certo se caracterizava Covid-19 ou H1N1. Naquela circunstância, a única fala do médico foi “Vá para casa, caso seus sintomas aumentem, você retorna, pois você está saturando bem e seu cansaço não está intenso”. Eu não me calei e disse: “já que está afirmando que estou com uma lesão pulmonar, vamos tratar para que não se agrave”. Como o plantão precisava ser trocado, pois passava das 19h, no momento do retorno fui atendida por uma médica que, embora branca, ouviu meu apelo. Estava com apenas sete dias desde o parto, com um bebê recém-nascido em casa, outro de 01 ano e um garoto de 11 anos que, por ser asmático, não poderia ter contato jamais com o vírus. Como uma criança quilombola é de responsabilidade de todo o Quilombo, liguei pra meu irmão, retirei meus filhos de casa e os deixei longe de mim. Retornei para casa e comecei a saga em busca de postos ou hospitais públicos que disponibilizassem o Tamiflu, medicação que me foi receitada. Passei 04 dias à procura e, felizmente, consegui através da Secretaria de Saúde do município, foi quando então iniciei o tratamento e pensei, vou morrer! O estômago doía, junto ao corpo, a alma e o coração. Fiquei por dezessete dias usando entre três a quatro máscaras para conseguir amamentar meu filho, sem poder olhar para ele e quando baixava a cabeça e via aquele ser pequeno em meus braços, pedia a Deus que pelo menos pudesse sentir o cheio dele novamente, queria poder banhá-lo com todo aquele cuidado e carinho que nós mães temos. Houve dias em que eu só pegava meu pequeno na hora de amamentar. Usei máscaras para dormir e só via meus outros filhos por vídeochamada e nos dias em que não estava me sentindo bem, não ligava, para que ninguém soubesse que naquele dia eu poderia não sobreviver. Foram 10 dias muito difíceis, sendo que o que me fez suportar foram as vozes externas dos vizinhos nos quintais, as mensagens dos amigos nas redes sociais, a parceria do meu companheiro que cuidou de tudo sozinho e por lembrar todos os dias que agora temos 03 filhos para criar e que eu precisava confeccionar as máscaras para a comunidade. Em meio à tristeza em testar positivo, o amor e o cuidado pelos meus! No décimo dia de isolamento, o exame finalmente chegou e confirmou que era Covid-19 e embora eu já soubesse, chorei muito, por receio de ter contaminado mais alguém e pelo medo em sentir tantos sintomas diferentes e intensos diariamente, embora rápidos. O que me alegrou naquela tarde foi o cheiro do meu filhinho que voltei a sentir, fui tomada por uma emoção sem igual que até me atrevi a abraçá-lo. Fui melhorando aos poucos, das dores nas costas, no peito e do cansaço, então pensei: não posso padecer e nem parar, pois o meu povo preto precisa compreender que somos nós que mais morremos e porque preciso dizer a eles que fiquem em casa e cuidem dos seus. 390 Maternidades Plurais Então fiz um vídeo alertando dos sintomas e encaminhei para circular nas redes e principalmente no Quilombo. Comecei a pensar estratégias de enfrentamento para que a comunidade tomasse consciência de que esse vírus além de ser letal, estava bem perto de nós. Considero que em meio a tudo isso, fui sim privilegiada, por ter um plano de saúde que contribuiu para que fosse rapidamente atendida. Tive ainda um transporte para me conduzir prontamente todas as vezes que precisei, tenho um trabalho formal que me permitiu ficar em casa e, sobretudo, tenho instrução que me auxiliou a discernir e a compreender a necessidade de procurar atendimento. Mas e quem não tem? Quem está nos quilombos mais distantes? Nas periferias ou mesmo nas zonas rurais? E os que não têm condições de ficar em casa e precisam trabalhar? E ainda os que não têm instrução e desconhecem o risco real do vírus? São por essas pessoas que precisamos pensar e sair das plataformas digitais e voltar para a humana. Depois de dezessete dias, procurei a unidade básica de saúde para saber o que fazer. Queria saber se já estava curada e como proceder, se já podia levar meus filhos para casa e etc... pois, afinal, eu não tive nenhum acompanhamento, embora tivesse notificado meu caso ao Estado e município. O médico me deu alta e disse que podia sim levá-los para casa e assim mais uma etapa foi vencida. Arrumei e limpei a casa, juntei todos os brinquedos e organizei o quarto deles, fiz um almoço especial e a sobremesa que eles amam! Até um bolo confeitado eu comprei pra comemorar a vida! E quando meus pequenos chegaram, os abracei e chorei junto com eles, pois foram mais de vinte dias distante. Agradeci ao mais velho por cuidar do pequeno e percebi que nesse período ele se tornou um préadolescente de fato, com uma responsabilidade de gente grande e eles dois estavam mais próximos. Apesar da felicidade intensa pelo retorno dos meus filhos em casa, também pude sentir a exaustão de uma mãe parturiente, no pós-operatório e recém-recuperada de uma doença como a Covid19. Não foi e nem está sendo fácil lidar com toda essa situação, especialmente em não poder ter pessoas em casa que possam nos ajudar a suportar os traumas que sempre vivenciamos no pós-parto e para ao menos contribuir nos afazeres domésticos. O companheiro já retornou ao trabalho, as crianças não param e o recém-nascido ainda se adapta ao novo ambiente. As mães na pandemia sofrem com o isolamento, não apenas pelo distanciamento de quem amamos, mas sofremos pela necessidade do afeto presencial, físico, das visitas no fim de tarde, dos banhos que a avó costumava dar nos pequenos, nos abraços de despedida dos amigos que visitavam o recémnascido. Sofremos, porque a amiga que vinha nos visitar nos momentos em que estamos nos sentindo feias, descabeladas, gordas, estranhas, pelas diversas formas que a maternidade dá ao nosso corpo e ao nosso sentido, agora só pode falar pelo celular, isso se o tempo ainda permitir. O sofrimento e a ansiedade de uma mãe negra em meio à pandemia Desde sempre ser mãe de meninos negros não é fácil, há dias que um chega da escola dizendo que crianças fazem piadas racistas como, por exemplo, “você parece um macaco” ou “ei seu cabelo não entra água”, dentre muitas outras. Às vezes olham pro outro em meus braços e falam: “ele é lindo, mas esse nariz de tomate é engraçado”. E isso não só incomoda, mas também sinaliza o racismo que 391 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) vivenciamos todos os dias e nos maltrata, nos agride e intimida. Então, já era rotina todos os dias, antes da pandemia, conversar e dizer a eles que vamos vencer e que isso vai passar mesmo pedindo que ao sair, levasse a identidade e um número de telefone, caso fosse parado em uma abordagem policial. O medo sempre esteve presente no meu cotidiano, mas em meio à pandemia, a ansiedade tem sido uma forte aliada para intensificar o sofrimento. Sim, estou sofrendo pelo trabalho excessivo que desempenho nesse período, por precisar ser mãe de duas crianças bem pequenas e de um pré-adolescente, de exercer trabalhos domésticos e acadêmicos, por ter que ser liderança na comunidade, pois não posso desistir dos meus e nesse momento eles precisam de mim, assim como eu deles para resistir. Sofro pela impotência em meio a esse caos, por ser estudante e ainda precisar ensinar meu filho nas tarefas da escola. Deparo-me nas madrugadas, pois é o único tempo que me resta, lendo textos, fazendo fichamentos entre uma mamada e outra do filho mais novo, por vezes cochilo em pé, preparando a mamadeira de um dos filhos. Entretanto tenho que produzir, pois a vida acadêmica de muitos não parou, diria que se intensificou! Os professores da especialização não querem saber dos motivos que fazem as mulheres mães não entregarem seus trabalhos, eles querem apenas receber. Têm sido exaustivas e solitárias as escritas, e os fazeres, e por fim, no final do dia, ainda precisar por tantas vezes perguntar ao companheiro se está tudo bem. Como foi o trabalho?! Quando na verdade eu gostaria que essas perguntas fossem direcionadas a mim. Estou ansiosa e com medo de tudo isso demorar a passar. A ansiedade me faz roer as unhas, chorar, brigar, ter medo de ir ao supermercado e até mesmo de levar os filhos nas consultas de rotina. A Covid-19 nos trouxe o receio de abraçar quem amamos e a necessidade de ficar distantes de quem queremos por perto, chego a pensar que seria mais fácil se meus três filhos estivessem em meu ventre, guardadinhos! Esse medo tem afetado as crianças, elas se sentem presas, com muitas tarefas a fazer, e uma delas é conseguir permanecer em casa sem poder ir pra rua soltar pipa com os amigos, jogar bola nas quadras e campos de futebol no quilombo. Sofrem por não irem a casa da avó, abraçá-la e/ou ao menos comer feijão com farinha feito por ela em formato de bolinhos. Eles olham pelas brechas do portão em busca de acompanhar o movimento da rua, mas percebem que não há movimentos e às vezes o mais velho me pergunta: “mãe, a gente pode se abraçar?”. E, então, são esses abraços que têm me fortalecido. A Covid-19 me trouxe o medo, mas também a certeza de que precisamos cuidar um do outro nessa rede de afroafeto! 392 Maternidades Plurais 62 Entre a rede na varanda e a saudade da universidade: os labirintos da maternidade durante a pandemia da Covid-19 numa abordagem autoetnográfica Georgiane Garabely Heil Vázquez1 16 de março de 2020. Logo pela manhã recebo a notícia que a instituição em que trabalho pretende suspender as aulas por tempo indeterminado por conta do novo Coronavírus. Na semana anterior, em reunião com o laboratório de pesquisa que faço parte, ao planejarmos a realização de nosso evento anual, a colega de departamento me alertou: é possível que a professora convidada, vinda de São Paulo, não possa participar pois lá a nova doença já estava mais espalhada. Eu, a princípio, não considerava a possibilidade de adiar o evento e nem compreendia exatamente o tamanho da ameaça que o novo vírus representava. Mas compreendia, como pesquisadora das ciências humanas e sociais, que havia tensão, havia desconforto e receio sobre o futuro do ano letivo a partir de março de 2020. Na tarde do dia 16 minha filha Victória e meu filho Davi entraram no que chamamos de semana de provas. Tudo ainda correu normal naquela segunda-feira. Na hora do almoço, família reunida, crianças de uniforme, caminhada até a escola e o desejo de boas provas. No outro dia, o meu mundo começou a desencaixar, a derreter sobre meus olhos. Na universidade, o cancelamento oficial de aulas, suspensão de viagens de professores, suspensão de todos os auxílios institucionais para eventos e cancelamento de todos os eventos, inclusive da jornada acadêmica de nosso laboratório, que estávamos desde fins de 2019 planejando e sonhando. Na escola das crianças, trocas de mensagens entre alunos e a decisão de não ir para aula, mesmo em semana de provas. Liguei na escola e fui informada que haveria possibilidade de nova prova, sem custo financeiro aos que optassem por não comparecer. Também me informaram que todas as atividades de educação física estavam canceladas e os bebedouros lacrados para evitar ao máximo os contatos. Meus filhos não foram para a escola a partir de 17 de março. Comemoraram! Não precisariam mais fazer aquela prova. O uniforme foi retirado do corpo e jogado sobre a cama. Certa felicidade travessa foi visível nos olhinhos daquelas crianças de sete e onze anos. Teriam a tarde toda para brincar no apartamento, ver televisão, ficar no computador. Nesse dia não dei importância para a falta da escola das crianças. Não lamentei a interrupção da semana de 1 Doutora em História. Departamento de História/ UEPG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6859254801887234 393 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) provas no ensino fundamental, não liguei na escola de meus filhos. Estava centrada na minha dor de cancelamento. Relutava em publicar nas redes sociais que o evento de nosso laboratório seria suspenso ou cancelado. Desde fins de 2019 estávamos trabalhando no evento, nossa II Jornada Feminista Lagedis. Professoras de outros estados contatadas, verbas para passagens cuidadosamente negociadas com Programas de Pós-Graduação. Negociação com Pró-Reitorias da Universidade para financiamento de hotel, elaboração cuidadosa de um site para divulgação do evento, cartazes impressos, amplo trabalho de divulgação nas redes sociais. Um amontoado de lutas e de sonhos de professaras e alunxs para realizar um evento cheio de debates, pesquisas, encontros e abraços. Tudo cancelado. Para mim a dor era imensa, quase uma negação daquela situação. Certa revolta. E por toda essa incerteza e essa dor profissional, meus filhos ficaram de lado nos primeiros dias em que “o mundo foi cancelado”. Maternidade e carreira nunca foram opções excludentes para mim. O preço disso ainda é alto quando se almeja bom desempenho acadêmico como docente pesquisadora do ensino superior. Vou pagando em prestações. Sempre vivenciei minhas experiências de maternidade em conjunto com a profissão. Minha filha Victória, de 11 anos, já foi levada para inúmeras salas de aulas, desde bebê. Já foi trocada de fraldas em cima de mesa de professor em sala, já foi para congressos acadêmicos. Meu filho Davi, de 8 2 anos feitos durante o isolamento social, já frequentou bancas de graduação e pósgraduação, já foi para reuniões, sala de aulas, grupo de pesquisa. Eles, a sua maneira, também vivenciam a Universidade. Correm pelos corredores e durante meu doutorado (2011-2015), muitas vezes brincaram no pátio aberto da reitoria da Universidade Federal do Paraná, enquanto a mamãe participava de atividades do doutoramento. Aprenderam, desde sempre, que preciso viajar para eventos e quando não é possível levá-los, eles ficam com quem for possível. Pode ser na casa do pai, na casa da avó, na casa da professora, da eventual babá. Eles ficam, não reclamam. Havia um mundo estruturado, em que a mãe e a profissional conseguiam conviver. Com a pandemia e o isolamento social essa estrutura relativamente organizada foi desfeita. Tudo passou a existir e a ser pensado, organizado, no nosso apartamento. De repente, estávamos apenas nós: o gato, o Davi, a Victória e eu. Sem rede de apoio, sem a escola, sem a casa da vovó e nem do papai, que havia mudado para outro estado no início do ano. Pela primeira vez senti solidão na maternidade. Refletir sobre esse processo tão pessoal e peculiar do isolamento social, me possibilitou observar a fragilidade de meus laços sociais e redes, no que se refere ao auxílio para a maternidade. E como bem apontou Silvio Matheus Alves Santos3, a redação de um texto a partir da estratégia metodológico da autoetnografia prevê revisitar os labirintos estreitos e seletivos da memória. Em 2 Optei por realizar a festinha de aniversário com um bolo, alguns brigadeiros e beijinhos e um pouco de salgadinhos. Decorei com balões na mesa da sala e fiz uma vídeo-chamada, na qual participaram alguns amiguinhos da escola. Cantaram parabéns ao vivo pelo Google Meet. 3 SANTOS, Silvio Matheus Alves. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.24.1, 2017, p.214241 394 Maternidades Plurais alguma medida, é um exercício de ressignificar sentimentos complexos. Dar sentido ao medo, à dor, à incerteza. Nesse momento de isolamento, não pude contar com visitas e cafés da casa de minha mãe. Embora ela possua casa em uma bela praia de Santa Catarina, optou por deixar sua moradia e regressar para o interior do Paraná, morar temporariamente numa casa pequena e improvisada, no fundo de um quintal, para se proteger da pandemia. Minha mãe, além de idade avançada, possui uma doença pulmonar crônica e severa. Tal doença, a enfisema pulmonar, já danificou mais de 70% de seus pulmões. Para sobreviver, minha mãe deixou a praia badalada, a casa confortável. Optou por não frequentar a casa dos filhos e filhas, por não vir para cidade de porte médio em que vivemos. Optou pelo interior, pelo mundo mais rural e simples. Minha solidão aqui se cruza com a solidão dela lá. Meu conforto é que ela, pelo menos, tem acesso mais facilitado ao sol. Um luxo que não disponho tão tranquilamente em nosso apartamento. Escrever esse texto é, portanto, encarar minha solidão. Dar força a minha força para seguir com a organização da casa, a compra do necessário para alimentação e cuidados, os afazeres burocráticos da vida, o caixa eletrônico, as contas e talões. Dar força para a manutenção do trabalho remoto, reuniões de departamento, orientações de alunos de iniciação científica, de mestrado, eventos e lives que devo ou pretendo participar. Esse texto faz companhia a minha solidão. Escrever e procurar os sentimentos pessoais no meio de uma pandemia é tarefa complexa, mas ao mesmo tempo, registro necessário sobre os dilemas enfrentados por mim e também por outras mulheres-mães e pesquisadoras. A análise a respeito do próprio amor materno é uma oportunidade de problematizar as subjetividades humanas, minhas próprias subjetividades. Sentimentos são entendidos aqui como experiências e percepções que se ligam à dimensão afetiva e sensível da experiência. Eles participam da vida social, definem identificações, estabelecem ou rompem vínculos pessoais, criando ou negando afinidades. Sentimentos são, portanto, potencialidades para a ciências humanas e sociais. Eixos explicativos para se estruturar análises sobre o vivido e o experimentado4. Na segunda quinzena de março de 2020, meus sentidos e ações combinavam com férias em casa. Iniciamos um processo de conexão entre a maternidade e a filiação. Dormir na cama da mamãe era rotineiro naqueles dias para Victória e Davi. E, embora a escola privada tenha desde o início ofertado atividades online, enviando tarefas e sugestões de leituras, de filmes e de atividades lúdicas, optamos por não fazer nada. Na segunda quinzena de março, apenas experimentamos o apartamento e suas potencialidades: a rede na varanda, os raios de sol possíveis, as janelas e vistas, a cozinha e as tentativas de bolos e outras receitas, a visualização de filmes e séries exaustivamente. Contudo, no mundo capitalista, o tempo é implacável e cruel. Pelo aplicativo de WhatsApp podia acompanhar mensagens de outras mães da escola. Todas empenhadas com tarefas e deveres. Eu, como professora do ensino superior público, acreditava que não deveríamos incentivar o ensino remoto na educação básica e me recusava 4 VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Da mãe que não fui. A experiência de ausência de maternidade ao longo do século XX. Tese. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Paraná. 2015. 395 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) a fazer atividades. Contudo, os dias foram passando, as brincadeiras entre as crianças ficando cansativas, a vida foi perdendo a cor e o cotidiano foi implacável em tornar a maternidade e a convivência intensa algo cansativo, talvez até triste. Eu sentia e sinto muita falta do espaço físico da Universidade. Estar lá, com colegas, amigas e alunas/os era tudo o que eu desejava. Precisava ler os textos, debater com eles, cumprir os prazos. E nada daquilo era possível no meu novo mundo, onde apenas existiam o gato, as crianças e eu. Em abril de 2020, a situação ficou desesperadora para mim. Meu sentimento dominante era de desespero vinculado ao isolamento. Eu não cabia mais no apartamento, na maternidade, na cozinha. Depois de semanas de resistência, fui vencida pela escola das crianças e iniciei o auxílio de meus filhos nas atividades remotas. Tal ato me levou a um mundo desconhecido, onde a obrigação materna tinha o peso de mil toneladas. Era insuportável perder todas as tardes em frente aos computadores auxiliando em tarefas, fazendo trabalhos e ouvindo reclamações. Meus filhos tiveram extrema dificuldades em se adaptar ao ensino remoto. Se recusavam a visualizar os vídeos gravados pelas professoras, não desejavam abrir o portal escolar via internet para baixar atividades. Eles choravam quando eu os obrigava a fazer atividades escolares. Eu também chorava muito por precisar obrigar e também chorava por mim, por estar presa ali, no apartamento. Abril foi o mês mais difícil. Cheio de incertezas e receios por conta da saúde de minha mãe, por conta do isolamento mais rigoroso que adotamos, por conta do enfrentamento solitário da maternidade e das infinitas tarefas escolares das crianças. Foi também em abril que meu ex-companheiro nos informou que havia perdido o emprego. Estava sem trabalho, com várias contas a pagar e com poucas possibilidades de encontrar novo emprego por conta do fechamento total ou parcial do comércio. Com isso, meus filhos estavam também sem pensão. Além das dificuldades afetivas e emocionais que estamos enfrentando devido ao isolamento, eu precisava lidar a partir de agora com as finanças absolutamente sozinha. A casa, a escola das crianças, a pressão profissional para que a Universidade iniciasse ensino remoto e a falta de livre circulação pela cidade pareciam me enlouquecer. Eu estava me tornando uma mãe mais agressiva. Gritava com as crianças a todo momento e até seus risos e brincadeiras me atormentavam. Em fins de abril de 2020, depois de muitas tardes de choro gritos e recusas com a escola, tomei a decisão de reduzir ao máximo despesas supérfluas da casa para contratar uma professora que viesse em casa para me auxiliar. Foi a melhor decisão que poderia tomar para minha saúde mental. Procurei entre meus contatos alguém de confiança, que morasse relativamente perto e que aceitasse vir até nosso apartamento pelo menos três tardes por semana para realizar as atividades com as crianças. Um luxo que sei não estar disponível para a maioria das mães trabalhadoras desse país. Desta forma, posso dizer seguramente que sobrevivi com alguma saúde mental até aqui por conta do auxílio dessa outra professora, tia Cris. Além de auxiliar com tarefas e trabalhos, a vinda da professora movimenta a casa. Tiramos o pijama quando ela está aqui. As crianças fazem as atividades sem reclamar, pois enxergam nela uma autoridade escolar, coisa que não percebiam em mim. Ela, por ser professora da educação infantil e 396 Maternidades Plurais fundamental I, possui habilidades com recortes, trabalhos que exigem habilidades manuais e paciência que não disponho. Com a professora em casa, posso conversar pessoalmente com uma adulta. Confidencio as dificuldades do isolamento, as dificuldades da maternidade. É preciso falar e sem ouvida por alguém de carne e osso. Iniciamos um processo de ajuda e amizade. Costumo dizer que a maternidade é uma tarefa deliciosa e cruel. Senti todo seu peso nesse isolamento. A rebeldia de meus filhos por conta do distanciamento social, sua presença constante na casa e a convivência integral me fizeram compreender que era necessário retomar minha vida profissional, ao menos em partes, para conseguir equilibrar a mente, os sentimentos e o espaço da maternidade em meu coração. Desta forma, ressignifiquei a dor e a solidão. Iniciei seleção de iniciação científica sobre os impactos do isolamento social devido à pandemia na vida das mulheres. Registrei, em parceria com minha colega de laboratório, um projeto de pesquisa também almejando investigar a pandemia e o isolamento numa perspectiva de gênero. Articulei, junto com colegas de outros departamentos, a organização de uma coletânea sobre a Covid-19, isolamento social e mulheres na América Latina, buscando reunir pesquisadoras de vários países. Voltei a existir para além da cozinha, da sala, do quarto e da rede na varanda. Nosso laboratório de pesquisa organizou uma live sobre os impactos da pandemia da vida de mulheres com as professoras Lara Floriano, da Universidade Estadual de Ponta Grossa e a professora Letícia Oliveira, da Universidade Federal Fluminense. Tal atividade foi mediada por Fernanda Loch, minha orientanda de mestrado, fato que me deu muito orgulho e certeza de que o laboratório estava vivo, pulsante. Algumas pessoas me questionam, afirmando que deveria ter sido eu a mediar tal live. Contudo, optei por não o fazer. Não quero tirar de meus filhos a liberdade plena dentro do apartamento. Não quero ligar o computador e trancar portas, exigir silêncio, proibir a entrada. Mediar a live, significaria pedir deles um espaço que desfrutam. Não queria isso. Vivenciar a maternidade em tempos de pandemia me possibilitou ter a certeza de que para ser feliz como mãe deles, preciso também ser Georgiane, professora, pesquisadora. Ser apenas a mãe deles me deixou triste, esquecida, com saudades de mim, de minhas roupas e sapatos, de meus livros. Equilibrar a mãe e a pesquisadora, como sempre fiz, foi o que me salvou da extrema tristeza pelo isolamento. Amo meus filhos, amo todos os momentos maravilhosos que vivemos juntos. E também amo meu trabalho, os estudos de gênero, minha carreira. Não há como abrir mão de nenhuma dessas coisas. Por algumas semanas, a pandemia me tirou o norte, a orientação. Felizmente peguei a solidão e o isolamento e os coloquei para dançar. Pesquisar sobre os impactos desse momento na vida de mulheres, eis o foco de análise de nosso laboratório pelo próximo ano. Viva estou! 397 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 63 Uma meta-escrita do cansaço materno: alguns retratos da desigualdade em tempos de pandemia Giorgia Carolina do Nascimento1 Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente. Geralmente enfatizam nossa capacidade de “sobreviver” apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. [...] É preciso criar condições para viver plenamente. bell hooks Ao longo destes últimos anos, tenho concentrado esforços em entender de quais maneiras diferenças, tais como raça e classe social, influenciam no modo com que mulheres negras e/ou de classes populares experienciam seus processos de gestação, parto e puerpério. A partir de minha pesquisa, logo antes de desencadear a pandemia do coronavírus (Covid-19) no Brasil, estava me preparando para a escrita de um artigo sobre cansaço no puerpério, categoria êmica que vem se mostrando de essencial visibilização. Neste singelo relato, pretendo lançar luz ao tema e ao percurso de escrita deste artigo em meio às novas dinâmicas e enfrentamentos ocasionados pela pandemia a partir de minha vivência como mulher negra de vinte e seis anos, dependente das políticas de assistência estudantil e mãe responsável quase que integralmente pelos cuidados com a filha de cinco anos. Partir da própria experiência é um meio de situar a origem das minhas reflexões, mas também de questionar a concepção universal de sujeito e seu lugar no mundo, promovendo ou deslocando o olhar sobre a experiência materna para os corpos negros e de classes populares. Contrapondo a racionalidade iluminista, me valho daquilo que Peirano2 entende por alteridade mínima para produzir formas de saberes acadêmicos. 1 Doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/Unicamp). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7850119165974814 2 PEIRANO, Mariza. A alteridade em contexto: a antropologia como ciência social no Brasil. Série Antropologia. Brasilia. 1999. 398 Maternidades Plurais Meu trabalho só tem sido possível por meio do tipo de relação que pude estabelecer com as mulheres que tive contato a partir de minha pesquisa. Sem que nossas diferenças fossem suprimidas, os diálogos se deram sobretudo na base da troca e não em uma escuta unidirecional. São as experiências de Dandara3 e Laudelina, ambas mulheres negras e moradoras de bairros periféricos na cidade de Campinas-SP, que me inspiraram a tecer tais reflexões. Embora se tratem de realidades distintas — especialmente pela diferença de escolaridade: eu, doutoranda, e minhas interlocutoras de pesquisa, com ensino médio — outros marcadores como raça, faixa etária e classe social fazem com que, a medida que escrevo sobre suas narrativas, eu esteja por muitas vezes também escrevendo sobre mim. Em decorrência disso, esse texto é especialmente de, sobre e para mães negras e as das classes populares, sobretudo as que ocupam um lugar de fala semelhante ao meu, que no universo acadêmico existem, resistem e o ressignificam. Que essas palavras possam promover encontros e afetos. Que possam ser meios para descolonizarmos o conhecimento, promovendo bases para novas epistemologias e, mesmo em processos dolorosos, que também possam servir de acalanto saber que não andamos só. O olhar direcionado é necessário em um contexto em que as maiores vítimas do coronavírus são a população negra e periférica; ou em que vivemos em tempos em que estudos valiosos sobre saúde da população negra são invisibilizados, cujos dados poderiam auxiliar em muito no entendimento das desigualdades sociais e na implementação de mudanças nas políticas de saúde; ou em referência à necropolítica já em curso, que autoriza o sumiço de corpos de crianças Yanomami4, enquanto suas comunidades se desesperam; ou quando nós, mulheres negras, tememos pelas vidas de nossos filhos, irmãos, maridos; ou por nós, com o racismo institucional e a violência obstétrica. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) surgiu de modo a escancarar e aprofundar o abismo da desigualdade já tão profundo no seio da sociedade brasileira. Por isso, o que era uma proposta de se pensar sobre o cansaço no puerpério torna-se não meramente replicável a esse novo contexto, mas faz aparecer, junto a ele, os limites do suportável. Mirando nessa direção, cada palavra vai ao encontro do que nos lembra hooks (1994) em seu texto Vivendo de Amor5, quando nos diz que é necessário “criar condições para se viver plenamente”. Em meu trabalho, pensar maternidades em interface com gênero, raça, classe, saúde, bem como suas articulações com o âmbito das políticas públicas e suas técnicas, é então atualizado por esse novo cenário, em que a bionecropolítica é instrumento que precariza nossas existências. A maneira com que socialmente se imputa à mulher uma série de responsabilidades, faz com que a vida reprodutiva 3 Os nomes presentes nesse texto são todos fictícios, para garantir o sigilo sobre a identidade das interlocutoras. 4 Faço referência a um caso que muito repercutiu nas redes sociais, em que três crianças foram levadas ao hospital, são internadas e morrem sem que suas mães sequer saibam. Não falantes de português, a dificuldade fica também em encontrar os corpos que, ao contrário do que preconiza o rito Yanomami de cremação, foram enterrados. Cf. http://atarde.uol.com.br/brasil/noticias/2131429-bebes-yanomami-sao-enterrados-sem-autorizacao-deixando-familiasdesesperadas. Acesso: 29 jun 2020. 5 HOOKS, bell. Vivendo de amor. Trad. Maísa Mendonça. 2010. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso: 1 mai 2020. 399 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) seja marcada por violências que colocam, ou ao menos tentam colocar a maternidade como o lugar do sofrimento — embora saibamos que, por mais que haja percalços, a experiência não se restrinja a apenas isso. À luz das fronteiras de corpos que não importam (Butler, 2002)6, ou que requerem menos cuidados, ficam as dores físicas e emocionais. Na relação entre o cuidado e o cansaço, é nítido o descompensar da balança que aparece nas narrativas de minhas interlocutoras de pesquisa, que foram especialmente assertivas quando se tratava em comunicar essa estafa. Ambas mulheres negras, moradoras de bairros periféricos na cidade de Campinas-SP, são mulheres que, pela dupla opressão de gênero e raça, passaram por situações difíceis no âmbito familiar e também com as instituições de saúde desde a gestação até seu puerpério. Suas histórias falam de tantas outras que, dentre a série de urgências que se seguiam, as colocavam em uma situação em que, ao invés de serem cuidadas, viam-se na obrigação de cuidar de familiares enfermos, dos bebês e da casa sozinhas em pleno puerpério. No caso de Dandara, seu marido quebra a perna em um acidente de moto — para além dos cuidados com a mãe, deficiente visual e que tem doenças crônicas. No caso de Laudelina, seu marido passa a ter crises sequentes de síndrome do pânico. Ambos os maridos se afastam do trabalho. Ambas as mulheres passaram por situações de racismo nas instituições de saúde que marcaram sua vida reprodutiva. Ou seja, além de não serem cuidadas quando mais precisavam, a vida lhes exigia estarem bem para exercerem suas tarefas cotidianas como cuidadoras do lar e da família. Ainda com a pandemia, a família de Dandara é contaminada com a Covid-19, o que traz momentos de tensão e ainda a responsabilidade de, novamente, cuidar de todos doentes, da casa, da alimentação e dos compromissos da igreja com ela mesma adoentada e amamentando sua filha de 1 ano e 5 meses. No meu caso, não mais puérpera, havia por fim entrado nos trilhos da rotina de mãe solo e acadêmica. Antes, era hábito trabalhar durante o horário da creche, que é integral, eventualmente no final da noite, após o sono de minha filha, e aos finais de semana em que passa com o pai ou a avó. Agora, viver o isolamento tem sido conjugar novos modos de cansaço, já que a dinâmica muda com sua presença integral. Neste contexto, estabelecer uma nova rotina é desafio: os horários de sono e trabalho mudam; a vizinhança não permite o estabelecimento de uma rotina pelo dia, devido às dinâmicas das outras famílias da moradia estudantil onde resido, algumas das quais não é possível manter-me totalmente isolada — o que resultou na criação de pequenos “núcleos” entre famílias7. O pai colabora no cotidiano, mas bem menos do que precisávamos. BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós. 2002. 6 7 Embora haja dificuldades nesse percurso devido as diferentes rotinas e daí uma necessidade de negociar o isolamento, a rotina e os espaços comuns com as crianças e as famílias (de mães solo), há também a satisfação pelo compartilhamento do cuidado. 400 Maternidades Plurais Ainda onde moro, a dificuldade com essa tentativa de trabalho a distância8 se acentua com os problemas pela falta de uma conexão de internet que se atenda às tantas lives e videochamadas que se inseriram em nosso cotidiano. Em meio a isso, há, ainda, preocupações financeiras, já que os gastos com as crianças dentro de casa aumentam de modo inversamente proporcional às possibilidades de fazer “bicos”. A situação se agrava com minha transição do mestrado para o doutorado direto, fazendo com que, no início de 2020, eu espere cerca de meio ano para receber a bolsa. Importante lembrar que minha situação não é das piores, tampouco particular. Ao contrário, é compartilhada neste cenário de pandemia9 entre muitas famílias. Em meio às dinâmicas da mulher que é colocada como responsável não só pela vida reprodutiva, mas também produtiva, de modo que a fragilidade financeira passa a ser um fator de desgaste emocional muito proeminente. Também é dilema durante a pandemia ter a rede de apoio substancialmente diminuída, fazendo com que não sobre espaço nessa equação para um olhar mais minucioso sobre um olhar de si, ou para um amor interno, como nos ensina hooks (1994) O cansaço aparece, de algum modo, mostrando como a conta não fecha. Não ocorre, contudo, que não saibamos conjugar e viver este cuidado consigo mesma. Em nossos diálogos, os desejos e as aspirações pessoais, bem como a lembrança de quem foram antes de tornarem-se mães, falavam sobre a mulher que existe em cada uma para além da mãe. Assim, as imagens de si antes e depois do ciclo gravídico-puerperal denotam um conflito entre a mulher e a mãe (BADINTER, 2010)10, que em uma situação de calamidade mundial como a que vivemos fica suprimido diante de outras demandas. Por me identificar com suas narrativas, nos percebi como parte de um contingente de mulheres que não apenas não nos habituamos com o estado das coisas, como temos feito questão de denunciálo, cada qual a seu modo, mesmo antes da pandemia do coronavírus. Tampouco é agora que nos acostumaremos. É por isso que frente à desumanização de nossos corpos e à invisibilização desse cansaço aprofundados pela pandemia, não será possível um futuro ou um “novo normal” que comporte esses velhos modos de maternar, em que o cuidado é exclusivamente feminino. Ainda, a generificação não existe por fora de processos de classe e da racialização, a medida em que muitas mulheres, tão logo sentem-se sobrecarregadas, terceirizam esse cuidado como exercício de seus privilégios. A cor de quem cuida tem o peso do atlântico. Quando percebemos como o projeto colonial de nação se impõe sobre os corpos das mulheres negras, a imputar a elas a responsabilidade de amamentar crianças brancas, essa relação se mantém metaforicamente. Continuamos carregando o peso dos números. A primeira morte pela Covid-19 no Brasil foi a de Dona Cleonice, uma senhora negra e 8 Importante atentar para como o que está sendo adotado não é homeoffice, tampouco homescholling, sim uma improvisação do trabalho e do estudo em casa. 9 Especialmente onde moro, com as várias famílias de nossa comunidade. A solidariedade local com o compartilhamento de alimentos, a busca por doações e a redistribuição entre a vizinhança tem sido um acalanto em tempos de pandemia. Embora isolados, buscamos cuidar uns dos outros da maneira que podemos, tendo como exemplo de vida mães que também são protagonistas no movimento por permanência universitária. 10 BADINTER, E. O conflito: A mulher e a mãe. Lisboa. Relógio D‘Água Editores.2010 401 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) empregada doméstica. Já a primeira morte materna devido à Covid-19 ocorreu com Rafaela de Jesus, jovem, negra e professora. Se sobre corpos colonizados foram construídos passado e presente, os abismos coloniais aprofundados pela crise do coronavírus têm chamado, ainda, a um questionamento sobre o futuro. Nas reflexões correntes sobre a ideia de um “novo normal”, esquece-se, contudo, da criança como parte elementar desse projeto. A responsabilidade materna acaba sendo, em uma sociedade que não se responsabiliza coletivamente quanto aos cuidados com suas crianças, um chamado solitário para a construção de um futuro. As mulheres negras são aquelas que têm sido alvo do mito da mulher forte. A maternidade vem, desse modo, a sobrepor estigmas quando adiciona a ideia da mulher guerreira, sobretudo tratando-se de mães solo. Mas, não podemos dar nossos corpos, esforços e energia desproporcionalmente para um futuro que será de todos. Sobre corpos cansados, ele estará fadado a ruir. Precisamos falar sobre desigualdades, porque as narrativas mais íntimas e domésticas são, também, políticas. O corpo, por sua vez, ao mesmo tempo que território político é também sujeito do cuidado, do cansaço e de (des)afetos. Enquanto resistimos e pensamos modos de transformação do status quo, tem a louça na pia, a comida por fazer, o banho para dar, os dentes a escovar e o “manhê, terminei!” para atender. O artigo para escrever? Bem, maternidade é também agência e, entre escolhas, não pude finalizar o artigo que tanto quis escrever a tempo de ser submetido. Naquela noite, terminei o percurso um tanto quanto exausta, confesso, mas também aliviada por ter avançado quase ao fim da escrita. Foi bom o exercício de autocompaixão, em entender que dei meu melhor em um mundo caótico. Já agora, quase finalizado, certamente quando vocês, leitores, terminarem este meu relato, o artigo já estará no prelo de alguma outra revista. Como diria a música de Racionais Mc’s, a vida é mesmo desafio! 402 Maternidades Plurais 64 Mulheres, maternidade e pesquisa na pandemia: dialogar para melhores caminhos Gisele de Souza Gonçalves1 Pesquisar é uma tarefa árdua: por trás de cada pesquisa há um caminho de leituras, idas e vindas, construção e reconstrução, escrita e reescrita. A pesquisa é um trabalho amplo não muito reconhecido pela nossa sociedade. Muitos nem consideram o ato de estudar como trabalho; assim como não se considera, muitas vezes, as atividades domésticas como um; bem como o ato de cuidar dos filhos continua sendo para muitos “um dom natural em todas as mulheres”. É neste universo que muitas de nós — mulheres mães pesquisadoras — estamos sentindo intensamente os efeitos da pandemia. O machismo estrutural, a sobrecarga de trabalho — doméstico e home office —, as exigências da vida acadêmica, além das tantas atribuições dadas às mães não são novidade, porém com a pandemia tudo isso se destacou ainda mais. As preocupações quanto à volta daquilo a que chamávamos de normalidade também nos afetam. A produção escrita não rende, as leituras se atrasam, a pesquisa é alterada pelo momento de quarentena, há toda uma demanda maternal, conjugal e doméstica que invade de maneira brusca nossos dias. Preciso assumir, no início foi mais difícil, afinal eu preciso aprender que nem tudo depende de mim, que as atividades domésticas não são apenas minhas, que preciso descansar, tudo isso que foi aprendido durante muitos anos na frase de efeito “mulher dá conta de tudo”, afinal dar conta de tudo faz bem a muitos, menos a nós mesmas. Essa redescoberta de nossos limites numa circunferência familiar precisa ser reconhecida pela nossa pequena comunidade — a família. Somos em três: eu, meu marido e minha filha de 04 anos. Sem que as crianças frequentem espaço escolar e com a rotina do home office, agora convivemos o tempo todo juntos, num emaranhado de atividades escolares da educação infantil, refeições, serviços domésticos, atividades remotas do trabalho formal e atividades acadêmicas. Temos então uma rede de apoio: amigas e amigos, colegas de trabalho e do doutorado. Porque o que me parece é que precisamos mais de apoio emocional e companheirismo para lidar com o momento do que qualquer outra Doutoranda em “Sociedade, Cultura e Fronteiras” pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Campus Foz do Iguaçu. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4552554075626307 1 403 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) coisa — infelizmente esta não é a realidade de muitas famílias, as quais precisam suprir suas necessidades básicas como alimentação e saneamento básico, além da saúde emocional que muitas vezes fica em segundo plano em um país onde a injustiça e desigualdade social favorecem o cenário triste da pobreza. Começo a escrever, minha filha chama. Ela se ocupa de algo — desenhos animados, pinturas, quebra-cabeças —, mas é hora de organizar a refeição. Aquele texto que estava sendo produzido precisa parar no melhor momento das ideias (como, inclusive, aconteceu várias vezes com este relato). Meu marido está trabalhando também, então algumas atividades vão sendo divididas. Conversamos sobre muitos assuntos enquanto a louça é lavada — às vezes por mim, às vezes por ele — que vai me ouvindo sobre tantas angústias que pairam na mente das mulheres. Em diálogos e discordâncias aqui e lá, vamos nos entendendo, equilibrando ou pelo menos tentando. Mas sei que esta não é a realidade de muitas mulheres que mal podem dizer o que pensam em suas casas. Isso também ocupa a minha mente. Em plena pandemia, quando fazemos um pouco de tudo em nossas casas — alguns apenas, porque muitos não podem infelizmente estar em quarentena, enquanto outros podem, mas não querem porque é mais fácil negar que isso seja necessário —, pensamos em tantas situações e pessoas num mundo tão desconfortável e injusto que sentimos o quanto a empatia tem sido pouco praticada. Coisa de mulher se sensibilizar? Nada, coisa de gente humana de verdade. Pessoas podem ser mais sensíveis, mas isso exige muito de cada um. E assim eu sigo ou tento seguir: cuidando da minha filha, dialogando com meu marido, escrevendo e lendo como é possível, ajeitando a casa e preparando as refeições — tarefas que sempre que possível são divididas — selecionando o que favorece ou não a imunidade de nossa família e pensando “quantas famílias podem selecionar seus alimentos?”. Sigo nessa rotina que nem sempre está harmoniosa, pois minhas inquietações são muitas. As produções acadêmicas continuam, param, descansam e seguem com suas pesquisadoras cheias de uma realidade muito nova porque há um vírus lá fora e o tempo não para, os prazos seguem ali para nos impor a necessidade de continuar. Mas a minha filha também está crescendo e está aqui, então a pesquisadora que é mãe, mulher, humanista e, sobretudo, gente tem lá os momentos de dor, de melancolia, de medo e de saudade, também precisa se cuidar para que a vida continue da melhor maneira possível. Muitas pesquisas mudaram o formato ou precisaram fazer recortes, afinal o cenário é outro, há que se ter cuidado e ainda a percepção de que não se sabe até quando estaremos em distanciamento. Então vem mais uma questão: o que eu pesquiso está em consonância com o momento? Tempo e espaço, objetos e sujeitos: tudo deve ser repensado. E para quê? Porque se pesquisamos o fazemos por um motivo: a universidade é do povo. E a pesquisa iniciada na universidade tem sua necessidade para a sociedade, para seus sujeitos que estão em diversos espaços onde várias pesquisas acontecem e favorecem muitas pessoas: outras pesquisadoras e pesquisadores que poderão usar pesquisas anteriores ou contemporâneas para desenvolver estudos extremamente importantes, populações específicas de lugares distintos muitas vezes esquecidos por tantos e vistos por pesquisadoras e pesquisadores deste país que mal conhece a importância das universidades. 404 Maternidades Plurais Nós seguiremos com nossas pesquisas e com nossas angústias que começam a ser lidas, ouvidas e pensadas. Nossa rotina é intensa e precisamos reaprender a viver um dia de cada vez, mas com prazos. E como viver um dia de cada vez se muitas de nós, mulheres, fomos ensinadas a dar conta de tudo, menos de contar o que sentimos? É realmente um momento de muitos diálogos, mesmo distantes não precisamos ficar isoladas desse debate que tem se ampliado em várias categorias: mulheres na pesquisa, machismo estrutural, maternidade, violência doméstica, trabalho invisível das mulheres e por aí segue a lista. Vale destacar que o debate precisa ter a presença dos homens, nessa sociedade ninguém está livre de ter ideias machistas, sejam homens ou mulheres. Então o debate é entre todas e todos, respeitando o lugar de fala de cada um. Muitos homens com quem tenho conversado têm contribuído com seus olhares e estamos todos nos reconstruindo, buscando nos livrar de vários preconceitos que estão enraizados em muitos de nós. Conversar sobre nossa realidade e sobre tantos movimentos que vêm se intensificando nos faz crescer e encontrar mais espaços para pesquisas e, sobretudo, como vivermos melhor. Para pensarmos sobre o diálogo e a possibilidade de um mundo onde o machismo seja enfrentado, segue um trecho de um grande humanista, Paulo Freire 2, que aborda a linguagem como instrumento do machismo e ainda diz sobre si quanto a atitudes machistas: O fato é que eu conheço muita gente revolucionária que dentro de casa é diferente, que manipula o destino da mulher. É claro há anos as mulheres começaram a lutar e estão mais independentes, mas existem contradições enormes, inclusive na linguagem. Nossa linguagem continua sendo uma linguagem de “macho” e dizemos que é uma questão de “sintaxe”, uma questão de gramática e não é. Por exemplo, como explicar que neste lugar com uma quantidade grande de pessoas — suponhamos que haja apenas um homem e todas as demais sejam mulheres eu tenha que dizer “todos vocês”. Por quê? Não me digam, por favor, que é porque quando existe um homem e uma mulher a concordância deve ser feita no masculino. Por que todos e não todas? Quem estabeleceu esta regra? Só existe uma explicação: é a ideologia machista através da linguagem, que não é neutra. Desta forma, também é preciso revolucionar a linguagem. Isto quer dizer, se nós pretendemos fazer transformações no mundo, temos que reinventar uma linguagem para que não seja mais machista. [...] neste último livro que eu escrevi, a Pedagogia da esperança, dedico toda uma parte a isto porque a linguagem da Pedagogia do oprimido é uma linguagem totalmente “machista”. Quando o livro saiu na década de 70, eu comecei a receber cartas dos EUA de mulheres elogiando-o, mas dizendo: o senhor é contraditório, disse em uma parte do seu livro “eu acredito na capacidade dos homens de mudar o mundo”, e por que não das mulheres também? Eu lembro que quando li as primeiras cartas disse para minha mulher: “Meu Deus, quando eu digo homem incluo também a mulher!”. Esta é a explicação manhosa, ideológica, com a qual todas as crianças aprendem e crescem, porque se eu dissesse “as mulheres um dia transformarão o mundo”, nenhum homem se incluiria. Agora, quem determinou que ao dizer “homem” a mulher está incluída? Os homens inventaram isso (FREIRE, 2008, p. 97-8). No trecho, que faz parte do texto “Educação Popular no Paraguai: nossas perguntas a Freire”, publicado em uma coletânea de textos do autor em conferências, entrevistas e discursos organizados por Ana Maria Araújo Freire, entendemos que foi necessário o questionamento de leitoras para que 2 FREIRE, Paulo, 1921-1997. Pedagogia do compromisso: América Latina e educação popular/Paulo Freire; organização, notas e supervisão das traduções Ana Maria Araújo Freire; tradutoras Lílian Contreira e Miriam Xavier de Oliveira. 1ª ed. Indaiatuba, SP: Vila das Letras, 2008. 405 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Paulo Freire percebesse que seu discurso não estava coerente quanto a uma igualdade que ele defendia entre todos os sujeitos. O repensar sua escrita e a ideologia a que estava envolvido fez o autor mudar o modo de sua escrita, rever suas posturas (há um momento no texto em que ele fala sobre isso) e construir este diálogo que teve início com as provocações de suas leitoras. Precisamos falar sobre as estruturas que oprimem vários grupos, a pesquisa é potencialmente um caminho para tal. A partir de provocações construtivas poderemos elaborar bons diálogos sobre diversos temas necessários para nosso entendimento sobre este tema. Nós, mulheres mães pesquisadoras, temos um longo caminho pela frente e para que ele seja cada vez mais acessível a nós e a todas as outras mulheres é preciso dialogar. E para que e com quem dialogar? Acredito que é preciso dialogar com a sociedade sobre quem somos e como temos vivido. Assumindo funções (família e suas atribuições: trabalho doméstico e trabalho invisível — o qual ocupa grande carga mental) que não cabem apenas a mulheres e quando tais funções são prioritariamente deixadas a elas, trabalho remunerado e estudo 3 — especialmente na pandemia — são prejudicados em tempo e/ou espaço, afetando a saúde de diversas mulheres que vão deixando o mesmo exemplo para outras e, assim, modelos são criados e naturalizados em uma sociedade machista e, consequentemente, desigual. O que me dá esperança — “do verbo esperançar” e não do “verbo esperar”, como diz Paulo Freire — é ouvir de alguns homens o sim para um diálogo, é perceber que muitos têm ouvido as nossas críticas quanto a essa desigualdade e assim temos caminhado em casa, na universidade, em grupos de pesquisa e em outros momentos em que se abre espaço para debater sobre o tema. Toda pessoa pode e precisa falar e ouvir sobre as desigualdades, só assim poderemos oportunizar dias melhores, por nós — mães pesquisadoras — e por todas as mulheres. Que este tempo de distanciamento social não nos distancie desse debate que tem muito a contribuir com uma sociedade melhor para todas e todos. 3 Ver CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres, Blog DADOS, 2020 [published 14 May 2020]. Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/ 406 Maternidades Plurais 65 Pandemia Quântica: os muitos mundos e tempos de uma cientista social no Covid-19 Brasilis Gislene Moreira1 Ter um título de doutor não nos faz saber, muito menos responder sobre tudo. Por isso, assumo minha ignorância e dificuldade com conceitos básicos na área das ciências exatas, em especial quando o assunto é a tal da física quântica, teoria da relatividade, etc. Mas, a pandemia está mudando essa realidade. Não que eu esteja fazendo cursos online sobre o assunto, só que agora estou experimentando na prática a perda das noções de tempo e espaço. Graças à maternidade, ao home office, ao homeschooling, ao velho e forte patriarcado, à vida no campo e a essas novas sociabilidades todas que o coronavírus nos trouxe, estou imersa em vários universos paralelos que se intercruzam no meu cotidiano. Há pouco tempo, eu era só a professora Gislene, pesquisadora e militante da área das humanidades em um departamento pequenininho da UNEB e quem escolheu uma vidinha simples em um sítio com cartão-postal na Chapada Diamantina para criar o Chicó (05 anos) e a Luísa (11 meses). Agora, com a pandemia, já não sei descrever quem sou, nem em que mundo vivo. Ainda tenho dificuldades em sistematizar e teorizar sobre os impactos de toda essa onda no meu bucólico projeto de vida, mas me arrisco a usar essas linhas como um exercício terapêutico de expurgo e compreensão do universo de uma mãe cientista. Agradeço à equipe que inventou essa chamada livre e aos interessados na leitura, por me permitirem pensar sobre tudo isso. Aviso que por vícios metodológicos, organizei meu relato por semanas. Em cada uma delas, destaco um dos mundos paralelos que se projetou no momento, mas isso não significa que os outros tenham desaparecido. Eles coexistem e se relacionam entre si. Vamos aos fatos e boa leitura! Semana 01 – MUNDO DA ILUSÃO: Até as vésperas do primeiro decreto de quarentena na Universidade, eu não tinha prestado muito atenção na pandemia. Andava às voltas com 2019, em um semestre que não acabava nunca. Isso acontecia por causa de uma greve decretada enquanto eu estava na licença maternidade. Voltei ao trabalho para cumprir um semestre em que, teoricamente, estava 1 Professora adjunta da UNEB, na Chapada Diamantina, Departamento de Seabra. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9686964496121854 407 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dedicada ao puerpério. Assim, o dia 17 de março de 2020 me pegou assumido mais disciplinas do que poderia, conduzindo um monte de projetos inacabados (incluindo uma feira agroecológica inaugurada dois dias antes) e respondendo no susto pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão e pela vice direção departamental. Nesta rotina, precisava dormir na cidade onde se localiza o Campus alguns dias por semana. Luísa ia comigo. Contra os misóginos, inventei a Unebaby, um espaço para amamentar minha pequena e também para acolher as outras mães (alunas e funcionárias) e seus lactantes, em um departamento que tem mais de 70% de mulheres itinerantes. Por tudo isso, quando soube da suspensão provocada pelo corona, respirei aliviada. Ia finalmente passar uns dias tranquilos no sítio, sem viagens e me dedicar mais ao Chicó, que andava mais na casa da avó que comigo. Era o tempo de amenizar as culpas e ausências, de cuidar dos meus, de arrumar a casa e de ter tempo para mim. Para ampliar, sequestrei minha mãe do povoado onde ela vivia para ficar ainda mais perto. Ia poder cuidar dela também. Meu marido, um engenheiro de telecomunicações e fibras óticas, que agora se dedica a plantar água, nos deu aulas de agrofloresta. As memórias celulares das antigas fomes do sertão elevaram o sentimento de escassez e fome a uma urgência e fez do nosso projeto de rancho ecológico uma prioridade. De maneira consciente, negociei com meu companheiro que ele se dedicaria totalmente ao rancho, enquanto eu cuidaria das crianças e serviços domésticos. Na falta de empregados, seríamos só nós a cuidar de tudo. Eu também queria ajudar. Podia cuidar da horta, das galinhas, das minhocas e das abelhas, também podia fazer podas, talvez aprender a cultivar shimeji e shitake, melhorar a eficiência energética das placas solares... podíamos ser uma alternativa de esperançar no mundo. Celebramos como nosso projeto de uma vida mais verde se antecipou no tempo. Nos fins de tarde, eu ainda fazia bolo e chá quentinho para comermos vendo o pôr do sol. Semana 03 – MUNDO DA TER.A.PIA: A fantasia de manter o sítio em ordem foi dando lugar ao desespero de ter.a.pia limpa, de ter a casa em ordem, de fazer comida três vezes por dia, de cuidar de duas crianças, de alimentar os animais, de eliminar os gafanhotos da horta, de limpar e limpar tudo. O tempo todo. Todos os dias. A obsessão por organizar o mundo da vida se somou ao desespero com a realidade da escola rural em que estuda o Chicó. Enquanto todas as amigas da cidade reclamavam dos excessos do homeschooling, eu me dava conta da completa ausência de atividades a que condenei meu filho, ao achar que podia matriculá-lo em uma escola pública na zona rural. Eu já tinha criado uma creche comunitária para ele, antes da entrada na escola formal por falta de qualquer alternativa de educação infantil por essas bandas. Mas, a experiência foi um completo fracasso e fechou. Com a pandemia, me obriguei a fazer novos cursos rápidos de pedagogia no celular, enquanto amamentava a Luísa. Diante essa realidade, fiz roteiros pedagógicos e ainda apliquei por semanas um currículo especial do que chamei Pedagogia da Roça! Foi neste esquema que o Facebook se transformou no meu principal canal de pesquisa e informação, também sobre a pandemia. A cada notícia, uma lágrima. Mas, para manter o caos interno em paz, abandonei a obsessão de ter.a.pia limpa e me inscrevi em cursos de meditação e yoga online. Semana 04 – MUNDO ZUMBI: Acordei na semana santa com o lago artificial infestado de peixes mortos. Talvez tenha sido uma mudança de temperatura e PH com o frio e a chuva chegando. 408 Maternidades Plurais Mas, aquela cena das carpas boiando me anunciou o fim dos tempos. Os passeios furtivos pelo Facebook para saber dos amigos e entender a calamidade, foi dando lugar a um estado de alerta permanente. Quanto mais eu sabia dos dados, quanto mais notícias eu tinha, quanto mais amigos eu ouvia, mais me aproximava do abismo da realidade. Comecei a fazer cálculos e projeções. A sentir as perdas. A contar os mortos. A ler as entrelinhas e os impactos de tudo isso. A clareza sobre os rumos do país só piorava tudo. Fui invadida por uma onda de tristeza profunda. A insônia automática da amamentação foi preenchida com um choro compulsivo e os sentimentos permanentes de impotência e medo. A principal sensação era de inutilidade, de que tudo que eu sabia não servia para nada. Ou pior. Servia para me preparar para cenários sombrios no caso de acirramentos dos conflitos e de um “futuro repetindo o passado”, como diria Cazuza. Tudo isso me fez questionar a área de pesquisa e até mesmo a profissão. Amo as salas de aula, a pesquisa militante junto aos movimentos sociais, a sensação de que o conhecimento empodera e transforma o mundo, mas na pandemia se sobrepuseram as preocupações com o futuro da educação superior no país e dos meus filhos. A chuva e o frio do inverno resolveram se instalar, e nem a varanda com vista espetacular servia mais. As montanhas se esconderam em dias tristes e sombrios. Minha mãe, que ao invés de ser cuidada, virou dona da minha casa, e esgotada, alegou que estava sendo sequestrada e fugiu para o seu cantinho no povoado. Todos viramos zumbis diante das telas, quebrando as regras que proibiam televisão e celular por muito tempo. Meu filho mais velho viciou nos minicrafts e nossos assuntos se reduziram a vulcões, terremotos e tsunamis. Eu, que em algum momento do passado, tentava não deixar ele se contaminar com esses temas apocalípticos, me rendi. Só queria dormir e esperar a grande onda que acabaria com tudo isso. Semana 06 – O MUNDO PERDIDO: as visitas ao celular tornaram-se um imperativo existencial. Já não para pesquisas aleatórias ou informes matinais. Agora eram uma exigência profissional, com dezenas de reuniões virtuais e inúteis. A maioria acontecia no turno matutino, aquele em que as crianças estão agitadíssimas, que a comida precisa ser feita, a casa amanhece um caos, as galinhas e cachorros exigem cuidados e os questionamentos feministas à divisão sexual do trabalho são mais explosivos e catastróficos. O home office virou mais office que home. A única lembrança de que eu estava em casa era o pijama elevado a farda 24h, os brinquedos espalhados pelo escritório e as discussões com o marido sobre de quem era o turno para lavar os pratos. As reuniões com a reitoria e direção aconteciam sem vídeo, com o microfone no mudo. Foi assim que descobri que eu podia estar em muitos lugares e ser muitas eu, ao mesmo tempo. Na vida real, era cozinheira ou lavadeira descabelada. Na tela, era a foto de uma mulher deslumbrante e empoderada que discutia os rumos da universidade no interior da Bahia. Na pauta, as mesmas velhas disputas e ranços políticos mesquinhos, a mesma burocracia interminável e sem sentido. Em uma dessas reuniões, assisti a defesa de um colega de sua promoção a professor titular. Entramos juntos, no mesmo concurso. Ele já fez o post-doc e agora progrediu na carreira. Eu só fiz filhos. Deu inveja. Deu ódio. Fiz a leitura feminista da diferença de valorização entre trabalho reprodutivo e o tal do trabalho produtivo. Fui na sociedade pré-histórica, da diferenciação entre coletores e caçadores. Respirei. Voltei para a meditação da abundância e da gratidão. Para ser evoluída, é preciso aprender a valorizar o outro. Para fingir alguma racionalidade, anotava os resultados da discussão aleatoriamente atrás da lista de compras. Tudo isso com a pior qualidade de internet do país, com uma conexão por satélite que cobra uma 409 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) fortuna e cai quando venta uma brisa e, enquanto as crianças gritavam pela casa, o arroz queimava e eu chorava. A reunião acabou comigo abrigada em uma barraca improvisada com cobertas no meio do meu escritório, era o refúgio das crianças aos vulcões do fim do mundo. Na fuga para o banheiro, tentei encontrar os traços da bonitona da foto no espelho para dar algum sentido para aquilo tudo. O espelho quebrou e eu era só caquinhos. Semana 08 – O MUNDO DOS MORTOS: No único dia de sol em dois meses, acordei com a notícia de que o povoadinho em que minha mãe mora, há 10 km do meu rancho, ia ter seu primeiro enterro de uma vítima de Coronavírus. O senhor era morador de Salvador e faleceu lá, mas a família tinha terras na Chapada, herdadas dos antigos coronéis, e ia trazer o corpo para descansar no cemitério centenário de uma comunidade com cerca de 700 moradores. Em menos de meia hora, o caos estava armado. A população fechou a entrada do povoado e se recusou a receber o corpo. Teve enfrentamento com a polícia e as autoridades municipais. A briga durou um dia inteiro e o corpo só foi enterrado com escolta às 22h30 da noite, bem longe do lugar de descanso eleito pelo defunto. Enquanto isso, eu tentava mediar a situação. Fui até a barreira para evitar o confronto. Buscava informação junto a fontes confiáveis e fiquei em contato com a imprensa para justificar a reação dos moradores. Na mídia, éramos os irracionais desalmados. Na prática, eram só campesinos indefesos, diante do corona e da tirania dos novos coronéis, que deixaram a comunidade sem informação e sem qualquer atendimento público de saúde. Quando a adrenalina passou, percebi que minha formação originária como comunicadora podia servir para alguma coisa. Chamei aquele cenário surreal de corona brasilis, o que expõe e expande as chagas da desigualdade, do coronelismo, da escravidão, do patriarcado e da invisibilidade. No Brasil profundo, a necessidade de conhecimento e informação viraram uma urgência tão grande quanto à pandemia. Naquela madrugada escrevi um conto, montei personagens e aulas virtuais interativas, e decidi voltar aos tempos de produção midiática. Criei a TV Uneb Seabra para poder eu mesma renascer das cinzas. Semana 10 – O MUNDO DAS ARTES: A ideia do canal virtual foi um alento para muitos. Para minha surpresa, vários colegas do trabalho adotaram a iniciativa e se jogaram na construção de programas, lives, cursos, etc. Ainda estamos em construção e tateando na área. Acabamos de completar os 500 seguidores e já celebramos com uma festa. No mundo virtual, isso parece pouco, mas em um território onde a conexão tecnológica está entre as piores do país e a produção crítica é quase nula, nosso canal tem sido um refúgio. Foi a forma que encontramos para nos fazer presentes e úteis, e falar de uma academia que está atenta e pulsante em temos de pandemia. Já discutimos o avanço do vírus pela Chapada Diamantina, tivemos invasão hacker quando debatemos os protestos Vidas Negras Importam, fizemos passeata virtual LGBTQI+ e teve até forró de São João. Aproveitei o bom momento para fazer cursos na madrugada, me concentrando nos debates sobre ecofeminismo e me apropriando da ideia de que a pandemia é um dos resultados da emergência climática e da falência do modelo patriarcal e capitalista que submeteu a vida aos caprichos da economia. Para enfrentar esses fantasmas, me dediquei a buscar no lúdico e nas outras faces de mim novos formatos. A ideia é me 410 Maternidades Plurais divertir e explorar os sentidos dos conceitos decoloniais que falam do corpo, do sentir e dos aprendizados ancestrais. Foi assim que me encontrei no teatro e conheci Lupita Dolores, Gigi Gangaceira, Amada Gil e tantas outras personagens que saíram do meu espelho quebrado. Uma delas dá aulas de realidade latino-americana, a outra de sertões contemporâneos e a terceira ainda vai estrear com os dilemas de uma vida mais verde. Elas têm sido minhas amigas-irmãs nestes tempos de pandemia. É com elas que converso o dia inteiro, que ajudam a acalmar os pensamentos, que me motivam a acordar, pintar as unhas, encarar as câmeras e tirar o pijama. No São João, inventei uma live de forró para me animar. Era a festa da minha casa. Era a forma de transmitir a tradição para os meus filhos. Era uma aula-espetáculo sobre as festas juninas e a importância da cultura na vida dos sertanejos, mesmo em tempos de pandemia. Convidei amigos-acadêmicos queridos, fiz milho, amendoim e canjica. Contratei até um sanfoneiro virtual. Mas, na hora da live, choveu canivetes, o que só piorou as interferências na conexão. Minha internet caiu e virei expectadora da minha própria festa. Porém, para a minha surpresa, o que ia ser só uma brincadeira, estabeleceu conexões com os corações das pessoas. Foi a live com mais acessos na nossa recente TV. Rompemos o limite das 600 visualizações. Descobri que a arte e a alegria são ferramentas poderosas nestes tempos. São o elemento necessário a uma academia que se quer decolonial, feminista e viva. Ainda há muito o que investigar de possibilidades, mas a arte, com certeza, é o mundo que nunca mais saíra da minha agenda epistemológica. Semana 14 – O MUNDO DE VÓ: Nos últimos dias, comecei a acordar na madrugada com dores fortes no abdômen. Na dúvida se eram cólicas menstruais tentando voltar à ativa depois de tanto tempo amamentando, ou se era coisa pior, contatei a doula e a equipe de parto natural que me assistiu no nascimento dos meus pequenos. Elas disseram que era meu corpo exigindo tempo para cuidar de mim. Parece que os problemas ginecológicos andam acentuados nestes dias. São dores no útero, bem profundas, vindas de feridas bem antigas. Minha avó morreu de câncer de útero. Eu contraí HPV em uma antiga relação amorosa com um hiper cientista social renomado. Nunca curou. No meio do tratamento, senti como se minhas dores revivessem as dores de vó, da mulher analfabeta que foi obrigada a casa, que foi proibida de estudar, que teve de cuidar dos sete filhos sozinhas. Quantas de nós estamos revivendo os impedimentos e as limitações na quarentena? Quem cuida de quem cuida? Como nossos sonhos e pensamentos tendem a ser reduzidos e limitados às obrigações familiares? Tenho me questionado muito esses dias quando o calundu das crianças e demandas domésticas me permitem pensar para fora da caixa e respirar. Diante de tantas solicitações, distrações e obrigações, encontrei refúgio no mundo da fantasia. Mas, o útero me chama para a terra, para a concretude das demandas do corpo feminino e de seus ciclos. Antes de mãe e de cientista, sou mulher. Ainda que não o reconheça, o negue, o questione ou o rejeite. Estou aprendendo a entender a sacralidade do meu ser. Tem uma alma pulsando neste corpo e ela fala de feridas ancestrais em uma sociedade patriarcal que a pandemia só ampliou. Porém, talvez essa alma feminina que grita esteja me impulsando a buscar novos acordos e formas de ser e estar no mundo, nos meus relacionamentos, na minha casa, em mim. Minha medicina tem sido voltar à terra, à dança e aos chás de vó. Talvez seja hora de falar de espiritualidade, de intuição, de afetos e novas formas de interação. Não sei qual vai ser o futuro de tudo isso. Se teremos vacina para o corona, mas também para essas mazelas mais antigas que nos enfermam o colo. Haverá cura para tantos males? No novo normal, terá mais espaço para sermos mulheres e mães? 411 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Tem sido bem difícil ser inteira e integral nestes dias. A psicanálise há tempos que trata de conciliar os pedaços do espelho dentro da gente. E como a física quântica prevê os buracos negros, parece que as sombras sociais andam soltas por aí. A interpretação da “realidade” não cabe mais em fórmulas políticas exatas. Perdemos as contas de quantos dias, de quantos mortos e de quantos mundos outros o Coronavírus nos impôs. Talvez alguns já tenham normalizado a existência do mal e ensaiem voltar ao seu novo normal. Por aqui tenho tentando aprender a ler, a ser e a escrever sobre esses tempos difusos e confusos. Como a física quântica nos trouxe reviravoltas e transformações ao falar de mundos subatômicos, a desfazer as certezas absolutas e exatas, acho que a pandemia pode nos permitir desintegrar os habitus e acelerar as transmutações de nós mesmos e nossas realidades pré-editadas. Trago para a nova ciência política e social a ideia freiriana de esperançar, a urgência em contar e cantar os sonhos de uma nova episteme decolonial, feminina e feminista, em que a intuição, o tecer, o menstruar, o parir e o cuidar façam parte do cotidiano da academia e não da excepcionalidade habermasiana do munda da vida. Se há alguma esperança de cura e futuro para a humanidade, ela passa pela maternidade. Ou seja, ela passa por mim, por nós, mães. Cientistas e não cientistas. E para nós deveria ser dado o olhar mais cuidadoso, afetuoso e atento. Só uma sociedade estéril e morta não percebe a centralidade epistêmica de uma mãe com seus filhos. A terra é uma mãe, a qual se defende com o vírus da agressão cotidiana a suas fontes de nutrição e riqueza. A solução para os problemas de uma vida saudável e plena estão no olhar para essas mães tão maltratadas e invisíveis. Esse texto não tem conclusão. O mundo ainda não chegou ao fim. Nem eu. O que vai nascer disso? Estamos aqui para parir e criar! 412 Maternidades Plurais 66 Mãe possível em um mundo inviável Helena Tavares Gonçalves1 Acervo pessoal da autora, 2020. Parte I: Tradução do mundo. A rotina de mãe solo2 nunca foi tranquila. Nos acostumamos a estar sempre correndo contra o relógio para dar conta da casa, do trabalho, do cuidado com os filhos, do nosso autocuidado. Estava concluindo o primeiro ano do mestrado quando minha filha nasceu. Não sei contar como consegui concluir a pesquisa, mas recordo muito bem do dia da defesa da dissertação. De um lado da 1 Bacharel em Antropologia e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e doutoranda em Ciências Sociais na UNICAMP. Atuou na gestão do Patrimônio Cultural na Superintendência do IPHAN no Amapá e desenvolveu trabalhos de consultoria para a UNESCO no acompanhamento das políticas de Patrimônio Cultural Imaterial na Superintendência do IPHAN em São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1879386812700161 2 Termo que visa substituir a ideia de mãe solteira. Mãe não se define pelo estado civil. Mãe solo diz respeito a condição de mulheres que criam seus filhos sozinhas. Mais informações: A MÃE SOLO. Facebook: Mãe Solo. Disponível em: https://www.facebook.com/amaesolo. Acesso em: 30 jun 2020. 413 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) sala, eu apresentava o trabalho para uma banca de avaliação formada por quatro professores, do outro lado, alunos do curso participavam como ouvintes dessa atividade acadêmica. Enquanto fazia a exposição do trabalho, acompanhava minha filha passeando nos braços dos colegas que estavam no evento. Pode parecer pouco, mas a foto tirada com a dissertação de mestrado em uma mão e a filha na outra tem uma importância imensurável, pois não foi um processo simples, nem leve. A demanda de cuidado de um bebê somada à demanda de dedicação à escrita da pesquisa resultou em uma sobrecarga de trabalho exaustiva. A sensação de superação das adversidades do cotidiano pode até parecer gratificante, mas seria uma experiência muito mais agradável se os cuidados com os filhos não estivessem concentrados na figura da mãe. Afinal, ser uma “super-mãe”, aquela que dá conta do trabalho doméstico, da criação dos filhos, da manutenção da casa e de uma carreira profissional está mais para uma imposição da lógica do patriarcado do que para uma opção em ocupar esse lugar. Não foi uma escolha vestir a capa da mulher maravilha3. Agora cursando o doutorado em Ciências Sociais, já havia domesticado meus hábitos para trabalhar em momentos em que fosse possível alcançar o nível de concentração que essas atividades exigem e conciliar com a rotina de cuidados na criação de minha filha, que hoje tem sete anos. Na prática significa acordar mais cedo e dormir mais tarde que a criança e aproveitar todos os minutos em que ela está na escola para trabalhar na pesquisa. Aos finais de semana, é preciso recorrer as tias, a avó ou alguma amiga. Não por acaso, todas mulheres. Realizar pesquisa no campo das ciências sociais consiste basicamente em traduzir visões de mundo. Ler criticamente uma realidade e se debruçar a entender seu funcionamento, o que envolve um arranjo complexo entre questões sobre o mundo do trabalho, gênero, identidades, religião, noções de família e relações de poder. No meu caso, as atividades ligadas à pesquisa implicaram em deslocamentos e mudanças. Ao longo de sete anos, moramos em diversas cidades das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil. Um dos resultados das andanças é uma criança com gosto em viajar, por conhecer pessoas e lugares, curiosa e com um olhar sensível para lidar com diferentes formas de viver o mundo. “Traduzir o mundo” foi a forma mais bonita que eu pensei que pudesse colocar em forma de texto o ofício da maternidade. Ofício porque, afora o amor, uma série de outras tarefas precisam ser desempenhadas para a manutenção do cotidiano de uma criança e tudo que envolve esse cuidado é trabalho invizibilizado, afinal, roupas não aparecem limpas e dobradas na gaveta por causa do amor, nem uma série de outras tarefas domésticas. Acho que o barato da maternidade mora justamente nesse lugar, onde apresentamos o mundo para os pequenos e, à medida em que crescem, vamos sofisticando a forma de apresentá-lo. No início a mãe é a principal interlocutora, com o passar do tempo, outras vozes imprimem novas perspectivas. Conforme apresentamos o mundo, procuramos a melhor forma de entendê-lo com a criança e, nesse 3 Num momento de revisão, ao ler o texto em voz alta, fui alertada por minha filha de que a mulher maravilha não usa capa. Ainda assim, mantenho a metáfora no texto. 414 Maternidades Plurais balanço entre ideologia e realidade, buscamos priorizar princípios os quais julgamos essenciais para a formação de uma pessoa melhor para um mundo que talvez possa ser melhor. Nos últimos cem dias, vimos nossas rotinas atravessadas pelo perigo de contágio de um vírus que nos coloca, enquanto humanidade, em uma posição de vulnerabilidade nunca antes experienciada. Hoje refaço meu planejamento em relação ao andamento da pesquisa, em relação às despesas da casa e em relação às maneiras de me relacionar socialmente contando com o suporte da tecnologia e ferramentas digitais. Não é uma tarefa fácil e é necessário fôlego para encontrar sentido de viver nesse novo cotidiano. Ainda assim, nós adultos, contamos com um certo grau de maturidade para compreender os processos de ruptura social e frustração pela interrupção de planos e sonhos. Mas, e as crianças? Elas também constroem sonhos, também projetam suas vidas para o futuro e essas elaborações dependem da manutenção de uma vida social que foi interrompida. Como explicar o mundo de hoje para as crianças? Como vamos encarar uma realidade tão dura e cheia de incertezas? Como lidar com uma perspectiva de futuro mais parecida com uma corrida em direção ao abismo do que com qualquer outra analogia? Dói ensinar para minha filha que ela precisa evitar estar perto de gente. Dói ver crianças de máscara. Dói ver a saudade que ela sente de um mundo que ficou no passado e assusta o futuro que tenho para apresentar. Parte II: Quarentena em campo. Para além do embasamento teórico, a pesquisa de doutorado depende do desenvolvimento de uma etapa da investigação que chamamos de pesquisa de campo, que pode durar semanas ou meses e que acontecem várias vezes ao longo do desenvolvimento da tese. Para cumprir essa etapa, mães precisam arquitetar planos capazes de conciliar esses deslocamentos com a maternidade. As possibilidades não são muitas, ou deixar a crianças sob os cuidados de outros adultos (quando isso é viável) ou levá-las a campo4. No início de 2020, em função da necessidade de realizar a pesquisa de campo do doutorado, fomos, eu e minha filha, para mais uma jornada de mudança de casa, de cidade, de estado. Dessa vez o destino era a capital paraibana. Tudo novo, de novo. Apartamento, escola, trajetos, paisagens, comidas, pessoas, praças, parquinhos, praias... Novas dinâmicas de relacionamento social. Uma casa com localização estratégica, perto da escola e perto da universidade e com aluguel que coubesse no valor da bolsa de doutorado. Tudo cuidadosamente planejado. No mês de fevereiro, comecei a ler, com um pouco mais de atenção, notícias sobre os possíveis impactos da chegada do Coronavírus no Brasil, mas ainda sem a perspectiva de encarar a situação 4 A etapa da pesquisa de campo é um dos exemplos de como o desenvolvimento da produção acadêmica, em alguns momentos, pode ser diferenciada de acordo com a condição social do pesquisador. Tarefas acadêmicas aparentemente simples, como participar de eventos científicos, também podem se tornar um obstáculo para mulheres com filhos. Normalmente os espaços destinados para os momentos divulgação e troca de conhecimento científico não são organizados para receber crianças e, por esse motivo, tornam-se espaços de exclusão para mães. 415 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com a seriedade necessária. Com uma ingenuidade quase infantil, tinha dúvidas se a doença chegaria à minha porta. Seguia o cotidiano com certa tranquilidade. Até que, em meados de março, as aulas da escola de minha filha foram suspensas. Nesse dia, a ficha começou a cair. Existem alguns eventos sociais que funcionam como marcadores temporais, dizem respeito ao início ou fechamento de um ciclo. Assim, a suspensão das aulas presenciais marcou para minha família o início dessa nova condição de existir. De lá para cá, já passamos de três meses de isolamento social, em que foi preciso reinventar nossa forma de viver. De início, tudo muito vazio. A sensação de estar sitiada em campo me consumia, recém-chegadas na cidade, nossa casa não era um lar. Estava mais para um abrigo, a casa da quarentena. Não tínhamos muitos pertences a não ser roupas, alguns livros e os brinquedos preferidos da pequena. Aos poucos as paredes brancas ganharam o colorido dos desenhos, foi preciso mudar a disposição dos móveis para criarmos novos espaços necessários ao desenvolvimento das performances artísticas, achamos um cantinho preferido para leituras e para a confecção de nosso “caderno de receitas da quarentena”. Crianças são potência! Um dia a pequena veio em minha direção e disse: “Mãe, a quarentena são umas férias injustas”. Ela tem razão. É injusto a forma como o vírus se propaga5, é injusto resumir a escola às aulas virtuais, é injusto não poder ir ao parquinho, é injusto cantar parabéns sem ter os amiguinhos ao redor do bolo, é injusto receber reclamação do vizinho em função do barulho — inevitável — que uma criança vai fazer quando se está todos os dias em casa. A necessidade da quarentena tem mostrado seu potencial de revelar injustiças, entre elas, a situação de desigualdades nas condições de reprodução do cotidiano das mulheres de forma geral e das mães de forma específica. No meu caso, como mãe solo e cientista, a desigualdade se revela nas possibilidades de dar continuidade à produção do trabalho acadêmico. A pesquisa de doutorado exige horas de dedicação diárias em leituras para articular aspectos teóricos aos dados de campo, que resultarão na escrita de uma tese. Aqui, o exercício da escrita também requer um nível de concentração que é muito difícil de alcançar com sucessivas interrupções por necessidade de atenção e cuidado dos filhos. Acontece que, sem escola e sem convívio com colegas de sua idade, crianças solicitam nossa atenção em tempo integral. Como consequência, o nível de concentração necessário para o trabalho intelectual fica muito comprometido, demoro semanas para realizar atividades que no passado consumiam muito menos tempo. 5 A epidemia de Covid-19 tem impacto desigual na sociedade, formas de contágio, de tratamento e de recuperação estão relacionadas às questões de desigualdade social. A epidemia tem classe, raça e gênero. ZIEGLER, Maria Fernanda. Padrão de disseminação urbana da Covid-19 reproduz desigualdades territoriais. 22 de maio de 2020. Agência FAPESP. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/padrao-de-disseminacao-urbana-da-covid-19-reproduz-desigualdadesterritoriais/33226/. Acesso 30 jun 2020. 416 Maternidades Plurais Conciliar maternidade e pesquisa acadêmica, em um arranjo complexo entre trabalho doméstico, carreira profissional e cuidado com os filhos, me traz a imagem de uma malabarista. Esse desafio foi imposto anos atrás, no momento em que me tornei mãe. Porém, antes era possível planejar, organizar e dividir o dia. Hoje é tudo isso em doses concentradas. Estamos exaustas e, quando se está exausta, não há como se concentrar nas atividades de leitura e escrita, peças chaves para a produção de conhecimento científico. Como resultado, temos que fazer escolhas caras sobre como usar o tempo. Escrever um texto sobre o relato de uma mãe na quarenta ou ler o capítulo do livro que será discutido na próxima reunião virtual do grupo de estudos ou trabalhar na produção de escrita da tese ou lavar o banheiro. A realidade é que neste regime de isolamento social, o pouco tempo disponível vira trabalho. Às vezes o tempo não disponível também, como reduzir as horas de sono para dar prosseguimento às atividades profissionais. A quarentena nos tirou tempo livre. Realizar atividades simples, como assistir um filme (adequado para minha faixa etária), é raro. Parte III: Para que serve uma mãe? Ser mãe significa planejar, coordenar e antecipar tarefas da casa. Ainda que existam pessoas dispostas a ajudar, mães são as protagonistas. Não esperamos, fazemos. Enquanto a ideia de “ajudar” não for substituída pelo entendimento de “dividir”, continuaremos sobrecarregadas. A reprodução da vida humana está ligada às esferas do cuidado e do afeto, tudo aquilo que o capital se recusa a reconhecer como trabalho e que a cultura machista delega ao universo do feminino. Mães garantem a existência das gerações futuras, isso não é pouco. A política de isolamento social, a necessidade da quarentena e os impactos causados pela pandemia tornam urgente questionar e repensar aquilo que é necessário para a manutenção da vida e para quem socialmente atribuímos essas funções. São questionamentos que precisam ser colocados em nível da organização social. A reprodução da vida (nos aspectos da geração e do cuidado), centradas na figura do feminino, é o que vem garantindo a reprodução do capital, o qual é mantido pela exploração de nossa força de trabalho não paga. Nesse sentido, é urgente que discussões sobre a centralidade da maternidade, baseadas em ideias de bem-estar, respeito, afeto e sororidade sejam problematizadas coletivamente, incluindo um debate 417 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) sobre identidades maternas possíveis com base nas diversidades de classe, raça, sexualidade e território6. Iniciativas vêm surgindo a partir de coletivos e redes de apoio organizados por mães. Sendo este texto um relato pessoal, compartilho com o leitor a importância de ter sido acolhida pelo Coletivo Pachamamá7 na minha chegada na cidade de João Pessoa no início de 2020. Trocar experiências, informações, angústias e alegrias com as mulheres desse coletivo tem sido fundamental nesse momento crítico, me faz sentir que não estou sozinha. Para além da troca de experiências em relação ao nosso cotidiano, o grupo também atua na arrecadação de alimentos, agenciamento de doações para mães com dificuldades financeiras, organização de ciclos de debates, rodas de conversa (agora virtuais). Em um momento de crise e de rupturas sociais, é muito importante estarmos organizadas em coletivos. Em um cenário de incertezas, não tem sido fácil sustentar o dia a dia, pois, para além das funções de ordem prática (lavar, secar, cozinhar, limpar, brincar), existe o trabalho relacionado ao planejamento e agenciamento das tarefas, somando-se à difícil missão de manter (na medida do possível) a saúde mental da família. Tudo isso entrelaçado à carreira profissional. No meu caso, me preocupam as pressões relacionadas ao universo acadêmico, afinal, “a Pós não para”, quem vive esse ambiente conhece a expressão. Não importa o que aconteça, é preciso publicar, produzir, participar de eventos, aumentar o número de páginas do currículo lattes e cumprir os prazos. Esse modo de produção precisa ser repensado. O mundo está em suspensão, vivemos um momento de drama social, e a realidade que está posta, principalmente no Brasil, é trágica 8. Nossos objetos de estudos e nossas abordagens (teóricas e metodológicas) vão necessariamente ser atravessados pelo impacto da Covid-19 e inevitavelmente nossa saúde mental será de alguma forma atingida. Nossas condições de produção científica mudaram, queiram ou não os programas de pós-graduação. Não há dúvidas de que a necessidade da quarentena produz desigualdades na produção acadêmica de 6 Uma vez que a maternidade também é atravessada por questões que envolvem diferentes realidades sociais, é preciso estar sensível as diferentes dificuldades que as mulheres mães enfrentam para existir. Uma discussão sobre essa diversidade pode ser acessada em: ALVES, Cida. Coletivo Pachamamá realiza atividades para discutir maternidade contemporânea. 3 de março de 2020. Brasil de Fato Paraíba. Disponível em: https://www.brasildefatopb.com.br/2020/03/03/coletivo-patchamama-realiza-atividade-para-discutir-a-maternidade-contemporanea. Acesso: 06 jul 2020; NASCIMENTO, Silvia. Mães negras não adoecem. 24 de abril de 2017. Mundo Negro. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/maes-negras-nao-adoecem/. Acesso: 06 jul 2020; LISBOA, Ana Paula. Feminismo didático parte 2 – As mães pretas. 11 de maio de 2016. Portal Gledes. Disponível em: https://www.geledes.org.br/feminismodidatico-parte-2-as-maes-pretas/. Acesso: 06 jul 2020. “Coletivo formado por mulheres mães, empreendedoras, cooperadas, militantes que buscam através da consciência de gênero uma transformação dos conceitos pré-estabelecidos pelo patriarcado”. PACHAMAMÁ. Facebook: Pachamamá. Disponível em: https://www.facebook.com/pachamamacoletivo. Acesso em: 30 jun 2020. 7 8 Na data de escrita desse artigo, o Brasil apresenta mais de 1.000 mortes por dia por Corona Vírus, sem contar a subnotificação. G1. Brasil tem 1.199 mortes por coronavírus em 24 horas e mais de 1,7 milão de infectados, mostra consórcio de veículos de imprensa. 09 de julho de 2020. Portal de notícias G1. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/09/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-9-de-julho-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acesso: 10 jul 2020. 418 Maternidades Plurais cientistas que são mães9. Por esse motivo a importância de nós, mães cientistas, questionarmos nosso lugar nesse cenário. Dito isso, vale considerar que sou uma mulher branca com privilégios. Essa posição social me possibilitou, por exemplo, ter condições materiais para ingressar e me manter na universidade. Para questionar o funcionamento das engrenagens que sustentam o patriarcado é preciso pontuar que as experiências de maternidade podem ser mais ou menos violentas, de acordo com a realidade social que estamos inseridas, atravessadas por questões de raça e de classe. Por aqui sigo, sem saber ao certo qual é a direção, procurando quais são os caminhos possíveis de ser mãe em um mundo que se mostra tão inviável. Mas, repito, não estamos sozinhas. Os coletivos de mães crescem e são potentes. As transformações dependem da luta e do questionamento do lugar social que nos foi imposto. Sofremos a violência de nos tornarmos mães, a partir de uma maternidade que foi socialmente e historicamente imposta para as mulheres, ao mesmo tempo em que, quando efetivamente ocupamos outras posições sociais, como ser cientista, sofremos a violência de sermos negligenciadas enquanto mães. Seguimos na luta não apenas para dar visibilidade à nossa existência, mas para alcançar condições de existir que sejam condizentes com a maternidade. As sementes estão em gestação, não subestimem o poder das mães! 9 Sobre o impacto da quarentena na produção científica. PIERRO, Bruno. Mães na quarentena. 19 de maio de 2020. Agência FAPESP. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/maes-na-quarentena/. Acesso: 6 jul 2020. 419 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 67 Como me sinto? Reflexões de uma professora, pesquisadora, militante e mãe de 4 crianças Iamni Torres Jager1 Como me sinto? Ultimamente essa tem sido uma pergunta constante feita a mim mesma, a fim de tentar separar e racionalizar, mesmo que um pouco, todos os sentimentos vivenciados desde o início dessa pandemia. Um dia eu estava apressada, correndo com os afazeres domésticos, familiares e os compromissos profissionais e, no outro, enclausurada, por tempo indefinido, dentro da minha própria casa. Confesso que, em meio ao caos representado pela minha rotina de mãe, mulher, militante, pesquisadora, professora, e tantas outras funções designadas socialmente à nós mulheres, essa pausa soou como um respiro, mesmo que um tanto quanto inconveniente. Era um sopro a mais de ar dentre todas as muitas tarefas executadas por mim todos os dias para dar conta de levar 4 crianças: de 3, 6, 10 e 12 anos em 3 escolas públicas diferentes, pois em nossa cidade os diferentes seguimentos, da educação infantil, primeiro e segundo ciclo do fundamental costumam ser em escolas distintas, muitas vezes até em bairros diferentes. Era um sopro a mais de ar para dar conta de trabalhar em 8 turmas de Ensino Médio, da rede pública e da rede privada, em 3 bairros diferentes da cidade. Era um sopro a mais de ar para conseguir ler o texto semanal do grupo de pesquisa ao qual faço parte e revisar a escrita de alguns textos acadêmicos com prazos a vencer. Era um sopro a mais de ar pra conseguir dirigir 120 km todos os dias ou, pegar 8 transportes públicos para ir e voltar do trabalho. Enfim, era um sopro a mais de ar para sobreviver em uma cidade hostil com as mulheres trabalhadoras e suas crias. Percebo que, após o anúncio da paralisação das atividades escolares e comerciais na cidade, em um primeiro momento, fiquei em negação. Pensei em passear com a minha família, acampar, dar uma caminhada; tirar algo bom dessa situação forçada. O processo, de tomar a consciência de que algo muito sério estava ocorrendo no mundo exigiu de mim, como ser humano, um esforço demasiado. Isso porque, aceitar isso era aceitar que havíamos de fato falhado enquanto espécie. Sim, já falhamos desde sempre. Tragédias humanitárias, guerras, exploração de homens, mulheres e crianças, aquecimento global, não faltam exemplos. Porém, essa me parecia uma tragédia antropomórfica diferente, 1 Mestra em Ciência, Tecnologia e Educação (CEFET-RJ), professora da SEEDUC-RJ e pesquisadora no Núcleo de Investigação em Ensino, História da Ciência e Cultura (NIEHCC) do CEFET-RJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1992276382495300 420 Maternidades Plurais pois, não era necessariamente “planejada”. Ao que me parece, talvez por ignorância, esse vírus mostrou-se como um efeito colateral inesperado, fruto da irresponsabilidade com o ambiente em que vivemos, fruto de uma gestão patriarcal e masculina da nossa terra. Um atestado de que, apesar de toda a tecnologia nós, sociedade pós-moderna e capitalista, temos apenas uma romântica ilusão de controle do mundo. Uma dessas ilusões se deu através da mídia e se mostrou para mim, durante algum tempo, uma forma de tentar dominar o que acontecia com o mundo e comigo. Eram horas do dia lendo e ouvindo notícias, que pareciam dar muitas informações, através de números e mais números, sobre a nossa tragédia atual e, diziam elas, uma ainda maior, num futuro bem próximo, trazida pelo vírus e agravada pelo quadro de profunda desigualdade econômica e social brasileiro. Uma dentre as muitas reportagens que li dizia que lideranças econômicas internacionais e especialistas em epidemiologia já estavam preocupados com a iminência de um novo vírus protagonizar uma possível epidemia mundial, inclusive sugerindo cenários como o Brasil, que ano após ano aumenta o índice de desmatamento da Amazônia. Mas, apesar desses avisos da ciência, acredito que, em nossa arrogância enquanto espécie, acreditávamos sim que tudo estava sobre controle ou que, caso um vírus viesse à tona, poderíamos controlá-lo. Afinal, o mundo serve ao “homem”, não? Conforme os dias passavam íamos vivendo nossas vidas. Segui trabalhando de casa, porém, mesmo com toda a sobrecarga trazida pelo acúmulo das tarefas profissionais e domésticas, em um mesmo espaço e tempo, consegui lidar melhor que antes com todas essas demandas. É imprescindível falar que sou moradora da Zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, e minha casa se localiza há cerca de 40 km do centro da cidade. Era rotina perder ao menos 6h diárias me locomovendo pelos espaços que a obrigação materna e profissional me empunhava. E essa nova rotina trouxe coisas boas. Cozinhamos juntos, dormimos mais, plantamos novas ervas no quintal, tomamos banho de mangueira, fizemos origami, pulamos corda. Porém, conforme os dias passavam, e mais notícias chegavam de países que estavam à frente no processo epidemiológico, fui entendendo, da pior forma, que não estávamos vivenciando um momento de férias. E que, para muitas mulheres essa pausa seria bem diferente da vivenciada por mim e traria ainda mais vulnerabilidade e sofrimento. Como estariam as mulheres que têm como sustento fazer o trabalho doméstico historicamente designado a outras mulheres? Como estariam as mulheres, em sua maioria mães, que permanecem encarceradas por conta de uma política equivocada de combate às drogas? Como estariam as mulheres, que historicamente ligadas ao cuidado, continuavam a trabalhar na linha de frente do combate a esse novo vírus? Como estariam as mulheres que, sozinhas, arcavam com todos os custos afetivos e financeiros do cuidado com os filhos abandonados pelos genitores homens, agora desempregadas? Como estariam? Será que, assim como eu, faziam pacientemente pães e biscoitos com seus filhos sorridentes e saudáveis? Pois bem. Aceitei a situação e me vi, latina, brasileira e diante de uma pandemia global. Porém também me vi, mulher, heterossexual, casada, branca, com ensino superior, pós graduação, emprego formal. Fui aluna da escola pública durante toda a educação básica, cursei o ensino técnico, acessível 421 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) a menos de 3% dos jovens brasileiros. Ingressei na faculdade através do PROUNI e, apesar de ter engravidado no início do curso, com apenas 20 anos, tive apoio da minha família e companheiro para conseguir prosseguir e concluir a graduação. Em nosso Brasil eu não represento a maioria das mulheres. E me conscientizar disso é fundamental para avançar em uma análise conjuntural da realidade e pensar em propostas de ação. Em meio a esses pensamentos, pergunto-me se já vivemos isso antes. Sim, já, mas faz tanto tempo que não existe ninguém vivo que possa narrar essa experiência. E, apesar de documentados, os resquícios históricos da última pandemia em nosso país mostram que haviam muitos Brasis invisíveis. Foram milhares de mortes não contabilizadas nas estatísticas oficiais da época, assim como milhares de pessoas, que foram absolutamente abandonados pelas políticas de estado direcionadas à contenção da epidemia. E, o que podemos aprender com isso é: catástrofes ambientais afetam a todos. Porém não da mesma forma. Apesar do vírus não escolher cor, gênero ou classe social, os diversos muros de exclusão e exploração criados pela nossa sociedade formam um abismo entre os indivíduos e os direitos humanos básicos, como saúde e segurança alimentar. E, passam a colocar, mesmo que não por uma escolha da natureza, quais vidas permanecerão e quais não. Me coloco aqui a partir dessa visão de corpo enquanto existência política porque é assim que enxergo todas as minhas possibilidades de inter-relação e interação nesse momento de pandemia. Só consigo estar aqui, escrevendo isso a vocês, porque faço parte de um grupo minoritário de pessoas no Brasil que possuem acesso à direitos como educação, moradia, trabalho digno e saúde. E que detém também privilégios, enquanto membro desse pequeno grupo. Estar aqui, em casa, isolada com minha família, compartilhando refeições e afetos, não é um direito concedido a todos. Muitos sãos os trabalhadores e trabalhadoras que precisam todos os dias sair para o trabalho, pegando conduções lotadas e deixando seus filhos, agora sem escolas, aos próprios cuidados. Meus próprios pais, aliás, continuam a trabalhar, pois, apesar de idosos, ficaram toda a vida na informalidade e ainda não conseguiram se aposentar. Portanto, entendo que meus sentimentos e experiências estão pautados a partir desse lugar. A minha existência nesse processo é um misto de alívio, medo, culpa e responsabilidade. Alívio por estar bem, saudável, empregada, amada. Por ter a oportunidade de conviver mais intensamente com meus filhos, mesmo que acumulando tantas funções ao mesmo tempo. Em um país tão desigual quanto o nosso ter essas coisas é realmente uma sorte. Sei que as benesses que cito aqui são quase que direitos fundamentais de todos, porém, as dificuldades enfrentadas pela maioria das pessoas são tantas que não paro de pensar que sim, eu poderia estar vivendo uma outra realidade agora. O medo é muito constante também. Me pergunto se conseguirei abraçar novamente meus pais, meus tios e tias, minhas irmãs e sobrinhas. Se poderei me reunir mais uma vez com meus amigos e suas famílias. Me pergunto também se algo acontecerá a mim ou ao meu companheiro? Aliás, ele trabalha em um hospital e esse medo é real. Não existem equipamentos de proteção para todos e os profissionais da saúde estão morrendo. 422 Maternidades Plurais Há também um medo quanto ao futuro. Que mundo teremos? Continuaremos a fingir que controlamos o mundo enquanto exploramos uns aos outros? Quanto mais o tempo passa e mais a pandemia avança, mais esse medo encontra espaço em mim e se traduz em inúmeras perguntas, sem respostas. E a culpa. Essa sempre foi minha companheira. Não é uma novidade trazida pela pandemia. Ela me paralisa e faz com que eu acredite não ter mais saída pra nada. Ela vem principalmente nos momentos de ócio, ou nos momentos em que a tristeza me invade, sem muito motivo racional. Me culpo pois não me sinto no direito de sofrer por amenidades, ou de não reagir ao mundo. Nesse mesmo momento a culpa assume em mim também uma função contrária. Ela passa a me mover. Não tenho o direito de parar, justamente porque a mim esse benefício foi dado. São forças antagônicas de um mesmo sentimento. Mas já convivo com elas faz tempo. Enfim, a responsabilidade. Por mais estranho que pareça, é ela que me traz esperança nesse momento que estamos vivendo. A responsabilidade é para mim a ação da culpa. Explico-me: dentre tantos indivíduos e espaços possíveis, ocupo este. Me entristeço e desanimo, mas não posso. Minhas irmãs, mulheres, estão sendo violentadas, assassinadas, humilhadas, com ainda mais violência nessa realidade de isolamento social. Estão lutando para alimentar seus filhos e filhas, lhes dar segurança e amor. E, por essas e tantas outras eu não posso parar. É sim minha responsabilidade fazer algo. Preciso mover essas estruturas, mesmo que elas pareçam continuar intactas. E daí me esperanço. Porque nesse movimento percebo que não estou só. Me canso novamente, desanimo, mas retomo e me fortaleço na luta de tantas outras mulheres, que vieram antes de mim e que caminham agora comigo. É urgente que nos organizemos. Enquanto coletivos, enquanto grupos de pesquisa, enquanto ciência, em seus mais variados campos. O conhecimento científico não é neutro e, diante desse fato inevitável, precisamos fazer perguntas e encontrar respostas que de fato promovam o bem viver de todos e todas que habitam esse mundo. Não há mais como pensar em uma ciência que não tenha como pressuposto a promoção do respeito e da dignidade humana. É desejável que ocupemos esses espaços de poder a fim de trazer um olhar materno para a ciência, no sentido de olhar para a realidade e propor soluções que visem o cuidado coletivo, em sua individualidade e pluralidade. Então, como eu me sinto? Depende. Hora alegre, hora triste, hora desanimada, hora esperançosa. Mas o que não me sai da cabeça é o entendimento de que é preciso continuar. Por mim, por você por nós. E essa continuação, que não deve jamais significar uma manutenção, mas sim um ressignificar, só se dá no coletivo. Ou, não tem sentido. 423 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 68 Entre a pós-graduação e a mamadeira: a arte da r-existência e de amor frente aos prazos e a pandemia da Covid-19 Iany Elizabeth da Costa1 Este relato de experiência, ou melhor, de vivências sobre a maternidade em tempos de Covid19, na verdade se configura como uma escre (vivência)2 de um processo afetivo diretamente vinculado ao emocional e profissional que se materializa no que sou: uma mãe-estudante ou uma estudantemãe. Não cabe aqui resumir o que o advento da vida do meu filho significa pra mim, talvez nem consiga encontrar palavras que definam a amplitude do amor que sinto por ele. Ser mãe não é fácil, ser estudante também não, tentar adjetivá-los um verdadeiro pecado, o que importa é estabelecer que para mim a maternidade e a pós-graduação são eixos que se conectam na minha vida, como elos que se unem num sonho íntimo meu. Porque, para mim, a maternidade não exclui o direito a continuar estudando, assim como estar na pós-graduação não interferiu no meu desejo de ser mãe. Assim sendo, eu sempre quis ser mãe, dar a meu filho o amor que tive/tenho da minha mãe, que, mesmo trabalhando 03 expedientes e sendo mãe solo, sempre foi e ainda é presente 100% na minha vida e na de meus irmãos. Por isso, para mim, a maternidade se apresenta como o amor, aquele amor que passa de geração a geração e só quando se é mãe que se entende. Um amor que ultrapassa barreiras, que não tem explicação e que se renova a cada olhar, gesto e sorriso do meu filho, um amor que “vai ficar até debaixo d’água” (parafraseando o Buarque), esperando o nascimento de um novo ser para se renovar infinitamente. Por isso, pra mim, meu filho é sinônimo de renovação, renascimento, pois, desde que soube da sua vinda e quando o tive nos meus braços pela primeira vez, renasci, deixei de ser apenas filha, para me tornar mãe. Sendo assim, a outra ponta do eixo que me constitui enquanto mãe e estudante é a pós-graduação que chega para mim ainda na infância, quando, no 3º ano do Ensino Fundamental, tive uma 1 Doutoranda em Geografia – Pos Geo-UFF. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8854295067943318 2 EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, N. M. B; SCHNEIDER, L. (org). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ed. Universitária, 2005, pp. 201-212. 424 Maternidades Plurais professora negra3, que foi a responsável por consolidar um gosto que já no seio do meu lar desenvolvia: a leitura. A ela devo também o primeiro conhecimento primário da palavra: mestrado, pois, esta fazia mestrado concomitantemente às aulas. E eu, no meu universo das primeiras letras, visando seguir seus passos, jurei a mim mesma que seria mestra também. Embasada nesse juramento, venho seguindo o difícil caminho de ser uma estudante-trabalhadora (agora estudante-mãe), vinda do subúrbio, de uma família que sempre teve em mente que a educação é a melhor herança que uma mãe pode deixar para seus filhos. Desse modo, seguindo meu sonho, sou a primeira da minha família a ter graduação, especialização, mestrado, e sigo caminhando para concluir o doutorado, sendo 80 % desta formação realizada no ensino público, o qual defendo veemente como laico, público e gratuito. Dando continuidade a esta reflexão, situando melhor meus eixos intricados de mãe-estudante, discorro que quem me conhece sabe que eu sempre disse que com trinta anos estaria casada, com um filho e no doutorado. Sabe? As palavras têm poder! E cá eu estou com trinta e um anos vivenciando o desejo mais íntimo do meu ser, relatando nessas poucas palavras o mar de significados que ser mãe, mulher, estudante incide sobre mim. Meu filho veio ao mundo no segundo ano do curso do curso de Doutorado no Pós-Geo/UFF, em 2019, e tem atualmente um ano e dois meses, é fruto de uma gravidez planejada e sonhada junto com meu companheiro, mesmo assim, com ele veio também todo um processo de aumento da carga de responsabilidades e a certeza de que, para concluir este Doutorado, tenho que me virar “nos 30”. E é o que eu tenho feito desde então, embora meu companheiro divida as responsabilidades com nosso filho, a realidade é que o filho sempre é da mãe, por especificidades biológicas, sentimentais, culturais, simbólicas. Não importa o quão desconstruído seja seu companheiro, mãe é sempre mãe. Por isso, os impactos que a pandemia da Covid-194 têm incidido na minha vida familiar e profissional são diferentes do ponto de vista da interseccionalidade, tendo em vista que para nós, mulheres, o isolamento social trouxe consigo a tripla jornada de ser mulher, dona de casa, mãe e estudante, o que se configura em uma sobrecarga e denota um duplo esforço meu para continuar na pós-graduação e dar conta das múltiplas funções que exerço. Afinal, não se pode negar que estamos sendo impactadas de diferentes modos por essa pandemia, sendo literalmente varridos por uma onda de 3 A partir do debate da interseccionalidade em CRENSHAW, K. W. Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres não-brancas. 2017 [1993] Trad. Carol Correia. Disponível em: https://www.geledes.org.br/mapeando-as-margens-intercessionalidade-politicas-de-identidade-e-violencia-contra-mulheres-nao-brancas-de-kimberle-crenshaw%E2%80%8A-%E2%80%8Aparte-1-4/>. Acesso: 10 mai 2020, pontuo que minha saudosa professora Damiana, que o Olurun a tenha, era uma mulher negra, como poucas professoras negras que tive na minha trajetória acadêmica até os dias de hoje, um exemplo a ser seguida, uma pessoa que marcou profundamente a minha vida escolar e que me orgulho muito de sempre falar dela quando penso nos passos que dei até chegar aqui. 4 Sem sombra de dúvida a pandemia tem incidindo negativamente na vida das mulheres, reafirmando o oceano de diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais. Ver: https://www.fes-brasil.org/detalhe/a-vida-das-mulheres-emtempos-de-pandemia/. Acesso: 18 mai 2020. 425 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) incertezas que geram: procrastinação, medo, ansiedade etc. E o fato de ser mãe e estudante constituísse em um universo paralelo a todas essas questões que colocam em xeque o século XXI 5, pois, mãe é uma função que não tira férias e não pode falhar, estudante sim, por isso é necessário refletir sobre a seguinte premissa: como ter produtividade, se ao final do dia, depois que o bebe dorme, você tem que escolher entre dormir, comer, estudar ou tomar banho? Sem uma resposta uniforme, asseguro que ao longo do dia vou tentando fazer o que dá, este relato que compartilho é o meu companheiro solitário da madrugada, enquanto espero meu filho acordar pra mamar, com isso, dormir se torna um privilégio e não uma escolha. Mesmo que eu fale de um lugar de fala enquanto bolsista de Doutorado, o que tecnicamente configura-se como uma situação estável frente a outras companheiras que são mães e não bolsistas, ou que tiveram suas bolsas canceladas com os recentes cortes6 na Educação, a vida acadêmica e maternidade não andam juntas7, logo, continuar na pós-graduação sendo mãe não é uma tarefa fácil. Pois, manter o equilíbrio mental, a afetividade, os cuidados com o filho e a produtividade em tempos de pandemia, fez com que eu passasse literamente a matar um leão todos os dias. Sem que, com isso, abandone a sensação de que algum dos elos que me constituem enquanto mãe e estudante, sempre vai ficar de lado. E nem preciso justificar o porquê a produção acadêmica tem ficado de lado, não apenas porque compartilho as dificuldades de manter o pique produtivo em consonância com a maternidade, mas também porque a nova realidade imposta pelo Covid-19, neste ano de 2020, trouxe outra dinâmica que expôs uma realidade que tem sido muito discutida nos coletivos de mães nas UFs 8, mas que não avança como pauta das pós-graduações: o fato que o espaço da casa não é um ambiente pleno para produção acadêmica de uma mãe e, em tempos de isolamento social com filhos, torna-se ainda mais pesado e desgastante. Ser produtiva cuidando de um filho é um desafio diário, que somado ao vendaval de dúvidas, medos, angústias, ansiedades e incertezas em relação ao futuro, vem potencializando a sensação de inércia e o medo de não dar conta. Em mais de 70 dias de isolamento social, está claro para mim que o âmbito da casa não tem sido um ambiente saudável para minha estabilidade emocional para dar conta de uma pós que não para! Como escrever se a todo tempo o radar-mãe está ligado? Afinal, quem se concentra com seu filho chorando? Exercer dois ofícios, o de ser mãe e de ser estudante, não tem sido fácil, as incertezas que a pandemia da Covid-19 tem trazido, somado à pressão da pós5 Sobre a crise e novos rumos neste início de século XXI ver: https://jornal.usp.br/artigos/covid-19-onascimentodeumnovoseculoeoslaboratoriossociais/?fbclid=IwAR3Q3UAUAC2gcbUN_e12MoV7PRKk4I_zY_nCiZhUVL7sx0rxX3nx2W1Pnw. Acesso: 16 mai 2020. 6 Disponível em https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/portaria-da-capes-corta-bolsas-de-diversos-programas-de-pos-graduacao1. Acesso: 1 abr 2020. 7 Sobre o debate da pandemia, pós-graduação e maternidade ver: COSTA, I. E. Coronavírus, pós-graduação e maternidade no Brasil: um difícil diálogo. In: Blog Cientistas Feministas (2020). Disponível em: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2020/05/11/coronavirus-pos-graduacao-e-maternidade-no-brasil-um-dificil-dialogo/. Acesso: 5 jun 2020. 8 Sobre a r-existência desses coletivos citamos como exemplos o Pachatmamá da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o Núcleo Interseccional de Estudos da Maternidade (Niem) da Universidade Federal Fluminense (UFF). 426 Maternidades Plurais graduação são barreiras que se levantam e que têm criado um mal-estar contínuo. Enquanto mãe, eu assumi a função de cuidar, mas e quem cuida de mim? Ninguém, ou busco força do âmago do meu ser ou afundo nas pilhas de livros e fraldas que se acumulam, pois, apesar de contar com meu companheiro para tudo, ele não pode estudar e produzir por mim, nem muito menos dar de mamar, nem acalentar nosso filho na hora em que o choro só se cura com o “mamazinho”. Dessa forma, toda essa sobrecarga, somada a uma sensação de estar à deriva sem saber o que esperar do futuro, denota diversas questões do tipo: como vai ser esse “novo” normal? O que será do meu filho que mal começou a vida? O que será de mim? Será que dou conta de terminar essa tese? O que fazer do meu campo parado há mais de 02 meses? Vai sobrar o que depois do pós-Covid? São muitas questões que não têm respostas no momento, nem sei se terão ou se vão ser substituídas por outras, enfim, em um futuro incerto, a certeza é meu filho e o amor que sinto por ele me fortalecem e, embora esteja submersa nesse vendaval, seus olhos e seus sorrisos são o meu farol, acalmam a ventania e me dizem que vai passar e vamos juntos sair dessa. Nessa pegada de mãe-estudante meus dias têm sido assim: Não durmo direito porque meu filho ainda mama e acorda de madrugada de 2 a 3 vezes, então, do meio da madrugada para o dia amanhecer, é aquela constatação “vem filho pra cama da gente, se não eu caio com você de tanto sono que estou”. Logo, a lógica de manter a imunidade com oito horas de sono não me contempla. Às 7h o relógio toca, cutuco o meu companheiro pra acordar e fazer a mamadeira e o nosso café, porque daqui a pouco o home office dele começa. Às 8h ou 9h, eu e meu filho levantamos, aí é quando a correria começa: dar a mamadeira, trocar a fralda, dar banho (se der, tomo banho também, se não, fica pra mais tarde), tomar o café com meu filho no colo, lavar a louça, estender a roupa que ficou na máquina de ontem — Meu Deus, já são 10h! Saio escondida da sala (quando dá) e deixo meu filho com o pai para poder escrever, ou ler, tentar enfim fazer alguma coisa voltada para minha pós-graduação ao som da playlist infantil na sala. Corre, Iany, são 11h40, hora de esquentar o almoço. 12h30, vamos, filho, abre a boca olha o aviãozinho, amor traz a mamadeira que ele comeu pouco, agora vamos escovar os dentinhos, trocar a fralda e tentar colocar pra dormir. Depois de muita luta, ele dorme, com muita sorte, durmo também, mas fico naquela se eu tiro ele da cama, ele acorda novamente, então é melhor deixa-lo quieto. Pego o notebook e vou escrever deitada — ai minhas costas! Deixa pra lá, não tou me concentrando mesmo, vamos ler um texto. Meu filho acordou, vamos fazer algo para comer, não quer, então vamos ficar no colo. Estudar já era, vamos brincar. Meu Deus, já são 17h30min. Hora de fazer o jantar, se tiver muita sorte ele dorme mais cedo. E eu fico naquela será que eu tomei banho? Ou esqueci? Penteei o cabelo? Não sei, já são 23h, vou tentar dormir porque daqui a pouco ele acorda e começa tudo novamente. E o amanhã? Ninguém sabe, todo dia é um dia novo, a certeza é que a vida depois da maternidade não é a mesma, não porque o filho seja um empecilho, meu filho é o motor que me dá força pra 427 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) lutar todo dia, mas porque a dinâmica da sociedade, mesmo em uma pandemia global, não mudou. No âmbito da academia, a postura draconiana continua, os prazos foram adiados 9, mas na prática é aquele negócio cada um por si e os deuses por todos. Mesmo sendo bolsista, não tenho tido melhor condição de produção do que alguém que não é bolsista, o medo da Covid-19, a pesquisa parada há mais de 70 dias, tendo em vista que pesquiso sobre mulheres quilombolas e estes territórios têm sofrido duplamente o efeito da pandemia e da necropolítica10, logo, não é oportuno, nem primordial “furar” o isolamento para cumprir os rituais de pesquisa que a academia nos determina seguir. Afinal de contas, quem vai pagar a conta do desrespeito à vida frente aos prazos? Somado a isto, meu texto de qualificação segue esperando o aval do orientador e a necessidade de defender em tempo hábil cumprindo o isolamento social com um cronograma inicial de tese que foi para o espaço, mas o calendário acadêmico não, o que acaba por me pressionar cada vez mais a buscar o impossível nesse momento: produzir como se não houvesse amanhã. Aqui fico refletindo sobre os impactos que a pandemia incide sobre mim e os desdobramentos disso na minha vida de mãe-estudante, enquanto paro de escrever mais uma vez para dar de mamar a meu filho, fico pensando que como eu posso escrever com qualidade e ao mesmo tempo dar a atenção que meu filho necessita? Será que vale à pena tanto sacrifício? Quantos desertos uma mãe-estudante passa para poder crescer na vida? Por que a maternidade e a pós-graduação são facas de dois gumes? Sem conseguir responder a esses questionamentos, vou tocando em frente na certeza que em meio à pós-graduação e à mamadeira, fica cada vez mais claro que o trabalho de tese vai ser entregue de todo modo, porque no modelo de construção da pós-graduação brasileira não há espaço para prorrogação, e, quando dá, corre-se diversos riscos, pois nem mesmo em meio a maior crise sanitária dos últimos tempos, a pós-graduação abandona sua velha imagem associada à produção e aos prazos. Em meio aos livros, meu filho vai crescendo enquanto eu me desdobro para ser a melhor mãe possível, pra dar conta da pós-graduação, da casa, da família, enfim, ele não sabe o que passo, só sabe que quando tem medo, fome, receio, saudades, amor é em mim que encontra aconchego, e eu, quando meu mundo parece esfarelar, é nele que encontro a força para continuar quebrando as barreiras, empurrando as portas que cismam em dizer que uma mãe não tem direito de estar na academia. Nós dois seguimos ocupando, porque acredito que a maternidade é revolução, o amor é força, e a universidade é nossa! Filho, nós vamos passar por esse deserto juntos, eu, você e seu pai, mesmo que eu tenha que muitas vezes engolir o choro por me esconder de você dentro de casa para tentar a partir dos livros escrever um futuro melhor para nós, saiba que “mamãe África vai e vem, mas não se afasta de você” 11. 9 BRASIL. Decreto 10.316/2020. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10316.htm. Acesso: 8 abr 2020. 10 A necropolítica em Achille Mbembe A. Necropolítica. Arte & Ensaios | revista do ppgav/eba/ufrj | n. 32 | dezembro 2016. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169>. Acesso: 12 mai 2020 nos diz muito sobre como a organização estatal historicamente fundamentada no racismo estrutural estabelece os sujeitos que são dignos de vida e aqueles que devem ser deixados morrer. Nessa ótica, a violação de direitos humanos e a fragilidade das comunidades quilombolas no Brasil, denunciadas pela CONAQ, estabelecem parâmetros desse discurso genocida. 11 CESAR, Chico. Mama África. Disponível em: https://youtu.be/SYY5BYjSc-w. Acesso: 19 jun 2020. 428 Maternidades Plurais Este relato de vida além da pós-graduação um dia você vai ler, espero que entenda e que perdoe a mamãe pelas ausências, pelo cansaço, tudo que faço é por você. Quero, por fim, deixar registrado que as dores e as delícias de ser uma mãe-estudante grafam profundamente meu ser, inclusive fazem parte da minha virada analítica para a questão de gênero e interseccionalidade que tomou contorno a partir da maternidade, quando passei a entender que as situações que me afligem e me atingem no cotidiano estão grafadas no meu corpo e na minha alma pelo fato de persistir nesta pisada na pós-graduação de ser uma mãe-estudante. A pandemia da Covid19 vem ensinando muitas coisas, a primeira delas é que mais do que nunca meu filho e minha família estão em primeiro lugar, meus projetos, sonhos e a pós-graduação são eixos de apoio, não objetos centrais, digo isso, fundamentada na triste constatação da violência brutal e simbólica que a doença traz para nossa realidade, um luto sem rosto e a impossibilidade de um adeus. Mediante a isso, resistir e amar em tempos de pandemia é matéria de primeira ordem, persistir na pós-graduação é o exercício diário de luta de toda mãe-estudante que é fortalecido em cada sorriso e descobertas no meu filho. Entre a pós-graduação, a mamadeira e a pandemia, é no amor do meu filho que me refugio diante do seguinte prisma “tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado, e assim já não posso sofrer no ano passado, tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”12. 12 BELCHIOR. Sujeito de Sorte. Disponível em: https://youtu.be/5MV_Fa3MQuA. Acesso: 19 jun 2020. 429 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 69 Relato de uma mãe, professora e pesquisadora sobrevivendo no coração da Amazônia em meio à pandemia Ivana Barbosa Veneza1 Em meio ao alastramento mundial das infecções por SARS-CoV-2, minha percepção sobre como seria no Brasil era de muita apreensão, por reconhecer os graves problemas, já enfrentados desde em anos anteriores, na área de saúde e educação aliadas à atual crise de confiança na ciência e na imprensa. Acompanhando o cenário devastador ao redor de todo o mundo, observando países muito melhor estruturados que o Brasil, sem leitos suficientes para seus doentes, sem espaço para enterrar seus mortos, um verdadeiro colapso nos sistemas de saúde, não havia como ter uma projeção otimista para o nosso país. E ainda mais preocupante era pensar na chegada da pandemia no interior do Norte do Brasil, região do Baixo Amazonas, onde as condições de saúde e transporte são ainda mais precárias. O primeiro caso de Covid-19 no estado do Pará foi registrado dia 18 de março, pela Secretaria Estadual de Saúde, 20 dias após o primeiro registro no país. Mesmo o governo do estado tendo se antecipado em tomar medidas preventivas, tais como decreto de lockdown em municípios mais afetados, acréscimo no número de leitos, aquisição de respiradores, instalação de hospitais de campanha regionais, estruturação de navio para atuar como policlínica itinerante e mobilização de campanhas de vacinação contra gripe, o estado vem sendo seriamente acometido pelo vírus, com os casos aumentando exponencialmente na grande maioria dos municípios. Estando hoje o Pará, entre os cinco estados brasileiros com maior número de mortes por Covid-19, até o dia 30 de junho, o estado registrava 105.853 casos confirmados e 4.960 óbitos; nesta mesma data, somavam-se 540 casos confirmados (Figura 1) e 24 óbitos no munícipio de Monte Alegre, Baixo Amazonas, onde moro com minha filha de oito anos e minha mãe de 64 anos. Monte Alegre é um município pequeno, com cerca de 54 mil habitantes, pacato e cheio de belezas naturais, local encantador, de gente hospitaleira. Por outro lado, é de difícil acesso sem muita estrutura em termos gerais — saúde, transporte, educação, serviços. Especificamente em termos de saúde, o município conta com um hospital municipal e nenhum leito equipado para atender pacientes 1 Doutora em Biologia Ambiental, professora no curso de Bacharelado em Engenharia de Aquicultura da Universidade Federal do Oeste do Pará, Campus de Monte Alegre (Ufopa/CMAL). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4570488200672692 430 Maternidades Plurais graves. Monte Alegre se avizinha à Santarém, terceira maior cidade do estado em número populacional, onde há maior estrutura e por isso é cidade polo da região do Baixo Amazonas. Ainda assim, o número de hospitais é reduzido e é ainda menor a quantidade de leitos que está equipado para receber a grande demanda de pacientes de média e alta complexidade, que chega dos municípios adjacentes. Figura 1. Número crescente de casos positivos para de Covid-19 registrados para Monte Alegre, Baixo Amazonas, Pará, Brasil. Fonte: dados notificados do dia 16 de abril ao dia 29 de junho, retirados do Boletim Epidemiológico Monte Alegre, publicado no site da prefeitura municipal (S = Semana). Santarém abriga a sede da Universidade Federal do Oeste do Pará, que é uma instituição de ensino ainda em consolidação, que acaba de completar 10 anos e tem natureza multicampi, contando com mais seis campi fora da sede, nos municípios de Alenquer, Monte Alegre, Itaituba, Juruti, Óbidos e Oriximiná. E é no contexto montealegrense que eu estou inserida, como professora do magistério superior da Ufopa, campus de Monte Alegre. A instituição suspendeu as atividades presenciais oficialmente no dia 23 de março, decisão da sede que se estendeu a todos os campi e desde então tenho desempenhado minhas funções em regime de home office. A escola em que minha filha está matriculada suspendeu as aulas desde o dia 19 de março e nesse âmbito venho acumulando funções trabalhistas, domésticas e maternas e tem sido muito difícil por uma variedade de fatores. Em primeiro lugar, meu emocional já vinha abalado pelo número crescente de casos confirmados e óbitos em todo o mundo, inclusive no Brasil. Cenas chocantes e desesperadoras vinham sendo noticiadas e um sentimento de tensão, angústia, preocupação e sobretudo de impotência já vinha se desenvolvendo. Com a suspensão das atividades de trabalho presenciais, interrompi o andamento de 431 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) projetos e precisei improvisar um espaço adequado de trabalho em casa, onde não havia qualquer estrutura para minhas atribuições docentes. Não havia uma mesa e cadeira confortáveis, num escritório climatizado. E mesmo que houvesse, agora minha filha estava integralmente em casa e precisava de atenção. Eu preciso também arrumar e limpar a casa, uma vez que minha mãe já tem uma idade que não permite realizar determinadas tarefas domésticas e dispensei a diarista para que nós e ela ficássemos mais seguras. Dessa forma, precisei ambientar minha casa para que eu pudesse desenvolver com o mínimo de produtividade e conforto as atribuições docentes de forma remota. No momento em que a instituição suspendeu as atividades presenciais, eu estava ministrando uma disciplina e então, a priori, as atividades de ensino que tivessem iniciado deviam ser concluídas remotamente, utilizando os Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas, em conjunto com outras metodologias e plataformas que achássemos adequadas e viáveis. E assim segui até a conclusão da disciplina, que foi bem traumática, porque nunca passei por qualquer treinamento para ensino à distância. Além disso, temos um problema a mais nessa região do Brasil, que é o de conexão de internet, o que dificulta muito o contato fluido com os alunos, o envio de material de apoio, o envio de atividades avaliativas dos alunos para o docente e ainda, a maior parte dos nossos alunos só tem acesso a internet móvel e não possui um computador, se utilizando apenas do celular para acessar os conteúdos e realizar as atividades. Com isso, o processo de ensino-aprendizagem se tornou pouco efetivo e muito cansativo, sendo as atividades de ensino suspensas por tempo indeterminado. Em meio a isso, tive muita dificuldade de lidar com a escola de minha filha, que optou por retomar as aulas pela internet. Para isso, eu precisava de outro computador além do meu, para que minha filha pudesse ter acesso às atividades, eu precisaria deixar de desempenhar atividades trabalhistas para auxiliá-la e além disso, sou completamente avessa às práticas de ensino à distância, principalmente para crianças, pois não acredito da efetividade da aprendizagem. O que mais me revoltou foi a falta de consulta prévia aos pais e mães na decisão da manutenção das aulas via online. Procurei a coordenação da escola para colocar minha situação e pedir que houvesse uma alternativa, por exemplo, adiantamento das férias, mas não houve acordo. E a indignação foi maior ao consultar as mães dos colegas de minha filha, pois constatei que a maioria delas concordava com a escola pelo simples fato de que achavam que as crianças tinham que ter algo “para preencher o tempo!” Para mim, enquanto docente, aquilo destoava completamente da minha ideia do que é a escola, a aprendizagem. Então optei por não aderir ao sistema de aulas online para minha filha, mas muitas questões passaram a me atormentar: Será que estou priorizando o trabalho à minha filha? Será que estou sendo negligente com ela? Quando isso passar, será que ela conseguirá recuperar o conteúdo que perdeu? Será que ela precisará repetir de ano? Mas depois de alguns dias pensando sobre isso, minha mente e meu coração aquietaram e pensei que se ela tiver de perder o ano, ela perderá, consciente de que estamos vivendo uma pandemia e que ninguém estava preparado para isso. Estou lidando com isso de forma mais leve e desde então, tenho compartilhado com ela leituras infantis sobre a pandemia, tenho incentivado ela a realizar tarefas artísticas, como desenho e pintura e ela também ganhou um cachorrinho do tio, que tem ocupado bastante o tempo dela, pois ela tem atribuições como limpar a sujeira do cachorro, brincar com ele, 432 Maternidades Plurais ajudar a vó dela a dar banho. Além disso, ela também assistiu a uma palestra que ministrei sobre racismo científico, que é um assunto que estou aos poucos querendo sensibilizá-la e educá-la. Ela sente falta de sair, de ir à escola, dos colegas, mas ela está consciente dos motivos e da importância do isolamento. Sobre o trabalho, apesar das atividades de ensino terem sido suspensas, muitas atividades administrativas estão em pleno andamento, já que estou vice-diretora do campus e vice coordenadora de curso. Além disso, há uma enorme pressão para o retorno das atividades de ensino, o que tem sido um problema que não encontra consenso na comunidade acadêmica. Nesse sentido foi proposto um período letivo especial, em que o objetivo era ofertar atividades de ensino que seriam complementares e que não fossem de oferta obrigatória aos professores efetivos e nem adesão obrigatória aos alunos, entre outros detalhes constantes na resolução. No entanto, como boa parte dos alunos não tem condições de realizar as atividades, entende-se que não há uma possibilidade de escolha por aderir ou não as atividades a serem ofertadas, pois essa parcela grande de alunos simplesmente não poderá cursar nenhum componente curricular, mesmo que quisesse, em virtude dos problemas já mencionados. Então, foi realizada uma assembleia tripartite, com participação das categorias docentes, técnicos e alunos em que muitos questionamentos foram colocados, inclusive quanto à falta de treinamento docente para o desempenho de atividades de ensino de forma remota, quanto às particulares de diversos cursos que são majoritariamente presenciais e não tem condições em aderir ao regime remoto e quanto a esse período letivo especial ser excludente sob vários aspectos, quando um dos princípios institucionais versa justamente sobre inclusão. Em meio a tudo isso, preciso lidar com a dificuldade de manter minha mãe em casa, já que ela tinha o hábito de ir diariamente à feira comprar as verduras fresquinhas, às casas lotéricas, à padaria. E a essa altura, a estatística passa a se tornar nomes conhecidos, amigos, familiares, o que agrava a situação emocional que se arrasta desde quando as notícias da pandemia se tornaram um show de horrores. A preocupação em planejar um retorno de atividades presenciais que não tem data para ocorrer tem sido constante. A exaustão do trabalho desempenhado em casa, sem as devidas condições já leva a dores musculares constantes, irritabilidade nos olhos, lesão por esforço repetitivo. O longo período de isolamento já causa o desregulamento do relógio biológico, invertendo os horários de dormir, comer, trabalhar. A preocupação com a evasão dos alunos e com a saúde mental e física deles e dos colegas, isso tudo somatiza e as vezes penso estar à beira de um colapso nervoso. Em algumas reuniões remotas, sinto taquicardia, tremor, sudorese. Já me perguntei se não estou com Síndrome de Burnout, ou transtorno de ansiedade, ou algo nesse sentido. Tem sido difícil e acredito que quando isso tudo passar, não serei mais a mesma pessoa. A única coisa que espero é que eu consiga me manter viva e sã, para que possa continuar criando minha filha, já não me cobro tanta produtividade, numa tentativa de desacelerar e restaurar um equilíbrio. Espero que consigamos atravessar esse momento com saúde e que possamos restaurar nossa paz e nossa vida em um tempo que não esteja mais tão distante. 433 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 70 Saio e bato porta sim, qual o problema? Jacqueline de Souza Gomes1 Certa vez, abandonei um cargo e escutei “Por que fez isto com a instituição? Se ia dar para trás, porque se candidatou?”. A voz vinha de alguém familiar, que parecia ter alguma empatia comigo. No fundo, pensava “Como poderia saber que ficaria em estado de sofrimento intenso a partir das situações que se apresentaram no exercício daquela função?”. Mas este pensamento era profundo demais para emergir. O que prevaleceu foi a certeza de que a pessoa estava certa em seu juízo sobre mim, afinal ela me conhecia intimamente (e até melhor do que eu). Como ela sabia, eu era instável, histérica, distímica, ansiosa, uma “mulher”, afinal. Até este dia não costumava partir para o enfrentamento diante de certos tratamentos que recebia, quer na família, no trabalho ou em quaisquer outros espaços que frequentava. Não me definia a partir do referencial da violência emocional. “Baixa estima” era meu nome, mas este parecia revelar uma espécie de falha de caráter. Alimentava-me de sentimentos amargos e meu corpo resolveu não se calar. Alguns meses depois deste episódio, estava eu numa UTI cardiológica entre a vida e a morte no auge dos meus 37 anos de idade. Ainda que habitar uma UTI não fosse pra mim uma novidade, o que me afligia desta vez? Esta pergunta ecoa em mim até hoje. O abandono ao cargo e os dez dias naquela UTI me forçaram a retornar para meu habitat natural (coisa que havia muitos anos não fazia), qual seja: eu mesma. Despertou-se em mim o que viria a ser um longo processo de resgate emocional e de compaixão sobre a minha própria história. Afinal, qual o problema em abandonar um cargo ao invés de abandonar-me a mim mesma? Isso foi há três anos. Estamos em 2020, em meio a uma pandemia de Covid-19. Novamente estava eu a participar de uma atividade de trabalho quando sou afrontada com uma frase similar: “Eu não vou sair por aí batendo porta, como você”. Marcadores de gênero nunca foram para mim um ponto de partida para qualquer análise das situações que experimentava cotidianamente. Contudo, este segundo episódio me remeteu a uma reflexão menos rasa sobre estes marcadores. Não o exporei às minúcias, mas era um mesmo episódio a gerar dois encaminhamentos distintos, a depender, se homem ou mulher. 1 Mulher, Mãe e Doutora em Filosofia. Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5288043215984971 434 Maternidades Plurais “Não, o mundo não é desigual, é diverso!” — costumava dizer para mim mesma. E na diversidade fui aceitando que desrespeitassem minhas diferenças. Fui naturalizando as tais características próprias do “ser mulher”. Bater porta, aliás, não é coisa de qualquer mulher, mas de uma mulher que também é “doida”. E, assim, fui estudar algumas dessas “mulheres doidas”, especialmente as filósofas (praticamente ausentes de minha formação acadêmica), que se insurgiram batendo portas ao longo da história, para buscar reencontrar-me comigo mesma. Sou mãe e nunca tive uma pessoa a auxiliar nos trabalhos domésticos e, assim, ao passear com meus filhos, fazer o almoço e a janta, limpar, passar e cozinhar diariamente, nunca fui questionada (por mim mesma ou por outras pessoas que me eram próximas) sobre meus desejos, era meu “dever de mãe” cumprir com atividades como estas. Lugar da mulher, especialmente de mãe, é o lar. Trabalho fora do lar deve ser para a mulher, secundário. A maioria dos maridos, “coitados”, não cozinham, não cuidam das crianças, não limpam ou passam roupas por dever, eles “ajudam”, e em poucas situações. O trabalho do marido fora do lar não é secundário, é o principal. E não deve ser principal somente para ele mesmo, deve ser o principal para toda a família. Este mesmo senso comum que delimita os espaços do homem e da mulher nos ensina que a mulher pode (e, talvez, deva) fazer concessões, o homem não. Sou professora há quinze anos e participei de inúmeras reuniões onde homens podiam falar livremente e mulheres tinham seu tempo cronometrado em 3 minutos. Pouco habitual que meus superiores levassem em consideração o fato de eu ter filhos pequenos, inclusive uma com demandas de saúde específicas, para determinarem minhas funções de trabalho. Não tive direito a licença maternidade em nenhuma das duas vezes que pari. Defendi a tese de doutorado acumulando a atividade docente, quando meu filho tinha pouco mais de dois anos. Parte de minha pesquisa de pós-doutorado foi realizada na cantina de um hospital, pois minha filha ficou internada na UTI neonatal por longos quatro meses. Penso até que sempre precisei “mostrar mais serviço” exatamente por ser mãe. Nunca usei as tais “desculpas esfarrapadas” de mãe. Muita gente nem sabia que eu tinha filhos pequenos. E, ainda assim, ouvi muitas insinuações vazias pelo simples fato de eu ter filhos pequenos. Os julgamentos vinham mesmo que pouquíssimas pessoas soubessem quantas vezes fiquei sem dormir com criança passando mal a noite toda e no dia seguinte estava trabalhando. Lembro que quando minha filha voltou pra casa da primeira internação, fiquei um mês sem dormir praticamente nada, velando o sono dela e morrendo de pavor dela ter uma convulsão ou um mal súbito. Aliás, continuei ouvindo os barulhos da UTI na minha cabeça por muito tempo depois... Vivi uma luta com a amamentação do meu primeiro filho, com as inúmeras terapias e consultas médicas da minha filha e com as constantes noites insones por diversos motivos. Meus dias e noites sempre foram (e ainda o são) tumultuados, quer pelas tarefas da maternagem, quer pelo trabalho doméstico ou pelas atividades docentes. Certa vez ouvi: “Melhor um dormir do que os dois acordados”. Assim, todas as noites lá estava eu acordada enquanto meu companheiro ia dormir. E fui me tornando raivosa, agressiva, um zumbi, com olhos esbugalhados, crises de choro, pensamentos depressivos e a indeclinável culpa. Como eu podia não dar conta? Qualquer mulher daria conta. Eu devia ser fraca do juízo mesmo, a tal “mulher doida”, mesmo que não batesse tanto as portas ainda. 435 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Em tempos de pandemia, aliás, a sobreposição de funções passou a abalroar muitas mulheres pelos rincões deste país e, ou têm sido fonte de sofrimento psíquico, ou têm sido fonte de intenso desassossego sobre o “ser mulher” e/ou o “ser mãe”. No meu caso, por exemplo, são meses de intensos desafios e cobranças. Por ter filhos pequenos, equilibro-me entre home office, trabalho doméstico, entretenimento infanto-juvenil e a função de educadora infantil. Se avolumou a responsabilidade do letramento inicial ao mesmo tempo em que passei a ensinar matemática, ciências, português e todos os conteúdos que meus filhos estudavam na escola. Passei a aprender novos jogos de videogame e a assistir canais de youtubers. Tive que me preparar para ministrar as tais “aulas remotas emergenciais”, pois, como pude ouvir, “isto era fácil, não precisava de formação, bastava eu assistir a vídeos no Youtube”. Precisei entender de informática e saber operar as ferramentas indispensáveis às atividades remotas de meus filhos e minhas, bem como encaminhar, com a mesma presteza de um técnico, as dúvidas operacionais insurgentes. No nosso caso, nunca fomos procurados pela escola para saber se estávamos vivos ou mortos, se tínhamos habilidades com as ferramentas tecnológicas, se tínhamos acesso à internet e muito menos como estava a nossa saúde mental. Para a escola, a questão parecia ser simplesmente prestar o serviço a fim de justificar a cobrança das mensalidades. Ensinar para a vida não pareceu ser um objetivo sequer acessório. E, mais, “mãe é para estas coisas”, não é mesmo? Lembro-me aqui de outra intercorrência cotidiana que ocorreu pouco antes da pandemia. Estava dirigindo pela estrada Rio-Teresópolis e meu pneu furou. Parei no acostamento para o trocar (algo que, sem modéstia, faço bem). Já tinha puxado o freio de mão, retirado o estepe, colocado o macaco na canaleta, levantado um pouco minha UNO vermelha e começava a afrouxar os parafusos quando um outro veículo para e desce um homem muito bem intencionado. Primeiro, me dá uma bronca porque eu devia prestar mais atenção nos buracos. Certamente, como toda mulher, eu era uma tola dirigindo e me jogava em todos os buracos que via. Depois, o sujeito pega a chave de roda de minha mão, desce o macaco e o retira. Daí, procura a canaleta para colocar o macaco e não encontra. Para ele, eu certamente não tinha colocado o macaco direito. Gentilmente, mostro-lhe a marcação. Ele finge que nada mostrei, recoloca o macaco na canaleta e reinicia toda a ação. Resolvi deixá-lo sujar as mãos e aguardei pelo fim do serviço, como uma “boa menina”. Concluída a ação benevolente do desconhecido, segui dirigindo solilóquia, entremeada por alguns pensamentos sobre situação tão corriqueira, marcada por elementos ainda mais comuns, mas que nem por isso minimizaram meu espanto aristotélico. Um deles, a me intrigar o pensamento, foi o fato de o homem não perguntar se eu queria ajuda com a troca do pneu. Ora, ele deduziu que, sendo eu mulher, não saberia trocar o pneu. E mais, deduziu que eu não tinha que escolher. Ele já tinha escolhido por mim. Quantas vezes naturalizamos situações como esta? Em casa, no trabalho ou em qualquer lugar que participamos, somos subalternizadas, invisibilizadas em nossas demandas e aceitamos que nosso valor seja determinado por terceiros. Aceitamos que escolham por nós. Mesmo mulheres, especialmente quando ocupam cargos de chefia, se sentem no direito de falarem e decidirem por outras mulheres. E, ao sairmos por aí batendo as portas do preconceito, do desvalor, da culpabilização, dos julgamentos que inferiorizam, somos condenadas por lutarmos para determinarmos, por nós mesmas, quem somos e o que queremos. 436 Maternidades Plurais Em tempos de pandemia nos confrontamos com muitos de nossos papéis sociais definidos para além de nossa própria vontade. Amarguramos sofrimentos intimamente para representarmos “com louvor” tais papéis sociais. E, no meio do caos que também me assola, diuturnamente, tento ressignificar-me a partir da escrita. Escrevo cartas para mim desde os sete anos de idade e, com elas, pude expressar inúmeras histórias e reinvenções de mim mesma. Não costumo as compartilhar, mas as releio usualmente para recuperar o orgulho sobre mim e sobre minha história. Assim, para finalizar este relato quase catártico, recupero e compartilho, com grande afeto, a última carta que escrevi no hospital ao tempo da primeira internação de minha filha: Hoje é possivelmente o último dia de minha filha no hospital. A programação é que ela receba alta amanhã. Esses longos quatro meses de UTI neonatal e CTI pediátrico me fizeram despertar de um sono profundo. Nunca poderia pensar em viver algo semelhante. Saímos daqui sem grandes certezas. Não há diagnóstico. Não há prognóstico. Penso até que hoje não é propriamente o último dia, mas o primeiro dia da mulher que passo a ser para prosseguir pela estrada de mãos dadas com meus filhos. Não vejo minha filha neste hospital faz um bom tempo já. A vejo com o irmão correndo, brigando e brincando em nossa casa. Diante da efemeridade da vida, viver “com saúde” passa a ser a única meta, já que torna possível qualquer outra coisa. Ter a experiência de “quase-morte” da minha filha mudou a minha história. Me fez perceber que nossas histórias são as histórias dos imprevistos, do descompasso, dos atravessamentos... Nunca pensei experimentar amor tão intenso como o que sinto por meus filhos, proporcional às incertezas que nos direcionam os passos. Cá neste quarto de hospital, meu único desejo de mãe é que eles possam crescer com saúde e mais sorrisos que desenganos. Aqui neste quarto de hospital me despeço da dor, do sofrimento, da angústia. Deixo por aqui a covardia, a fragilidade e a ilusão de controle. Sigo desalinhada, mas amparada pelas mãozinhas destes filhos amados... Sigo escrevendo uma história que é “minha” proporcionalmente à história que é “nossa”. Trago esta narrativa em particular, pois ela se renova em tempos de pandemia e nos alerta para a necessidade de que construamos e reconstruamos nossa história de mulheres que batem portas para abrir corações. Corações de resistentes peregrinas no caminho das incertezas. Sinto uma imensa necessidade de integrar uma rede de solidariedade que nos proteja e nos respeite as diferenças, mesmo ainda sob o estigma de “mulheres doidas” e “batedoras oficiais de portas”. Você, mulher que me lê, forme comigo esta rede e “bata portas sim, qual o problema?”. 437 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 71 O efeito “dona coelha” Janaína Dutra Silvestre Mendes1 Nunca me digas que não posso fazer algo. A mim, que dancei com dois corações (...) Que levei em meu ventre o peso de dois mundos, e pari a vida aos gritos. (Eva López Martínez) Começo a escrever este texto em meio a uma negociação: meu filho Nuno, de três anos, pede para sentar-se no meu colo e quando percebe que suas investidas não terão sucesso, começa a apertar todas as teclas do meu teclado (//////////=====[[[[[[[[[ççççççç). O pai tenta atrair sua atenção, e até consegue, mas nesse momento começa um choro sofrido uma vez que quer ver Peppa Pig e seu irmão (Antonio, de cinco anos) está vendo um documentário sobre animais. Quase uma tragédia. Desisti temporariamente, coloquei-os para dormir e na volta para o computador estava tão cansada, que não consegui retomar a concentração necessária a escrita. Tento novamente amanhã. Essa é uma pequena amostra de como têm sido meus dias durante o isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Acordo entre 4h30 e 5h da manhã, em uma tentativa de ter um tempo para mim antes de todos acordarem, passo o dia em função da casa, crianças e o que der pra fazer de trabalho (e nem sempre dá), vou dormir exausta e fim. Compartilho o lugar de onde falo, pois quando falamos de mulheres e mães, há uma miríade de possibilidades criadoras e resultantes desta combinação. Entendo como mulher todas aquelas que reclamam esta identidade para si, não penso em uma mulher universal transcultural e trans-histórica, mas mulheres diversas, atravessadas pelas demandas de seu tempo. O mesmo ocorre com a maternidade, há diversas formas de experimentá-la e performá-la que é impossível traçar uma linha que cruze os termos ‘mulher’ e ‘mãe’ sem ser excludente. Por isso, gosto de situar de onde falo, pois muito provavelmente não serei capaz de me afastar dele. Sou uma mulher branca de classe média, moradora 1 Doutora em Radioproteção e Dosimetria pelo IRD-CNEN. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1661761102945997 438 Maternidades Plurais do Rio de Janeiro com dois filhos pequenos, sou física médica e trabalho em um hospital de referência em assistência e pesquisa. Tendo isso dito, começo meu relato. Figura 1: Tentativas de trabalho em um dia típico durante o isolamento social. Virginia Woolf, no livro ‘Um teto todo seu’2, recomenda às mulheres que gostariam de escrever que tenham um quarto, preferencialmente que possa ser trancado, com uma mesa adequada, de frente para uma janela onde elas possam experimentar o mundo para além das frivolidades da sala de estar. A autora entende que é através das vivências pessoais que essa mulher acumulará e aumentará sua potência de escrita, ou seja, suas histórias serão tão melhores e complexas quanto mais elas tiverem experimentado o mundo. Ela também ressalta a importância que a mulher seja financeiramente independente para que possa priorizar seus desejos de escrita acima de qualquer homem que queira domálos. Já Carolina Maria de Jesus, mãe de três filhos, conta-nos em ‘Quarto de despejo’3 sua rotina e mostra que, se tivesse que seguir os conselhos de Woolf para escrever, nunca o teria feito. Carolina fora despejada de seu teto junto com seus filhos, escrevia com lápis e cadernos coletados do lixo, concentrando-se em meio a uma profusão de sons e estímulos típicos a um lugar populoso e não planejado como a favela em que vivia. Temos aqui, então, duas mulheres que trazem, nos extremos das possibilidades, questões referentes ao ofício da escritora: “Woolf prescrevendo uma espécie de manual do que precisaríamos ter 2 WOOLF, Virginia et al. Um teto todo seu, São Paulo, Brasil: Tordesilhas, 2014. 3 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada, Rio de Janeiro: Ática, 2014. 439 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) para assim nos tornarmos, Carolina de Jesus enfrentando o que não teve para, desafiando a não condição, assim tornar-se”4. Nesse momento, você pode pensar que talvez a algazarra de meus filhos tenha me deixado um pouco confusa e que, por isso, me distanciei do tema do texto: mulheres, mães e cientistas. Mas devo lembrar que todo o prestígio e capital científico concedido a uma cientista se dá por meio de suas publicações (quanti e qualitativamente). Sendo assim, a escrita é ferramenta primeira na criação dos ‘produtos’ de uma pesquisadora que são seus artigos científicos. Engana-se quem imagina que a alta escolaridade prescreve algum tipo de prevenção contra o trabalho precarizado. Ele só aparece no meio acadêmico com facetas mais sutis, mas igualmente violentas e desiguais, uma vez que é maior entre as mulheres e pessoas negras. E esta precarização, exacerbada pelo contexto da pandemia, ainda é percebida como da ordem da natureza e não da culturalidade. Como se fosse natural (ou biológico) que mulheres sejam multitarefa, por exemplo, e não algo para o qual tenhamos sido socializadas desde a primeira infância. Isto é evidenciado, por exemplo, nos tweets sexistas em resposta às editoras de periódicos científicos que começaram a denunciar a diminuição de envio de artigos escritos por mulheres ao mesmo tempo que os artigos escritos por homens tiveram um aumento de quase 50% 5. Voltando às referências infantis, lembro da personagem da Peppa Pig, Dona Coelha. Nos vários episódios que são produzidos desde 2004, ela surge representando o papel atual da mulher que sofre cada vez mais com a precarização do trabalho. Ela aparece como balconista de supermercado, pilota de helicóptero de resgate, motorista de ônibus escolar, enfermeira, vendedora de loja, bombeiro, vende sorvetes e souvenires no parque florestal, muitas vezes desempenhando mais de um papel no mesmo episódio6. O episódio "O dia de folga da Dona Coelha" é icônico: quando ela se machuca ao escorregar num carrinho de brinquedo e não pode trabalhar, a cidade colapsa, pois, ninguém consegue substituí-la. A personagem é caracterizada como uma trabalhadora dócil, versátil e sempre disposta, pronta para atender a qualquer chamado: é a trabalhadora dos sonhos de qualquer capitalista da era pós-industrial. Ela é frequentemente confundida com a Mamãe Coelha, sua irmã gêmea (dona de casa e mãe de quatro filhos), o que também não é mera semelhança com a vida real. Ao nos empurrar dentro do rótulo ‘mulher’, removem nossas especificidades e invisibilizam demandas das mais vulneráveis dentro do grupo. Viramos um grande grupo cuja persona representante é um sujeito-mulher universal, ahistórico e tal representação torna-se tão violenta e opressora quanto as agressões externas ao grupo de mulheres. Também não é à toa que seja uma coelha branca, animal doméstico, dócil, puro, muito fértil e que no hemisfério norte (origem do desenho) é o primeiro animal a ser visto após o inverno, referindo 4 MOREIRA, Jailma dos Santos Pedreira. Carolina de Jesus e Virginia Woolf: em busca de um outro teto para todos nós, in: XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros – Ética, Estética, Curitiba: [s.n.], 2011. 5 Disponível em: https://twitter.com/TPTrost/status/1251906232899768325 6 Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Peppa_Pig_characters#Rabbits 440 Maternidades Plurais talvez à disposição a retomada do trabalho. Esses dois últimos parágrafos são inferências livres exercendo meu direito genuíno ao opinare audei, porém não totalmente dissociado de alguma razão psicanalítica que poderia estar presente no subconsciente de muitos, especialmente no dos criadores da animação. Dentro do contexto da pandemia, as mães cientistas encontram-se na interseção entre Dona e Mamãe Coelha: muito trabalho e pouca produtividade dentro das métricas acadêmicas. Enquanto cientistas, precisamos exercitar e manter nosso pensamento crítico, focado e linear, com um horizonte determinado e disciplina para alcançá-lo. Como mães, precisamos do oposto: concentração multifocal, atenção em várias categorias ao mesmo tempo (alimentação, saúde, segurança doméstica, educação, entretenimento, entre tantas outras) e a completa imprevisibilidade inerente à lida com crianças. A despeito de toda a fantasia que cabe (e é necessária) nos desenhos infantis, o universo da Dona Coelha é bem real. Por exemplo, como o público da animação é entre 3 e 6 anos, não há vilões, nem espaço para grandes antagonismos e a vida acadêmica (especialmente durante a pandemia) é bem similar. Na grande maioria das vezes, o maior antagonista das mães cientistas é o tempo e quem ‘regula’ este tempo. Em um levantamento feito em 2017, no Brasil, dentre os 112 Pesquisadores Sêniores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apenas vinte e sete são mulheres7, isso significa que os chefes de laboratório, líderes de grupo de pesquisa, em sua grande maioria, são homens. E será baseado em suas premissas, vivências e demandas que o tempo das suas colaboradoras será gerido. Há alguns estudos que tentam quantificar essa percepção, mas o pioneiro vem sendo realizado pelo grupo Parent in Science, criado em 2017 com o propósito de discutir a maternidade no universo acadêmico brasileiro. Até 2018, o grupo entrevistou 921 mães cientistas e identificou que a maternidade teve impacto negativo na trajetória profissional de 81% delas. Esse impacto negativo pode se manifestar de diversas formas. Se a mãe trabalhar em áreas como oceanografia ou ecologia, o nascimento de filhos implicará em menor disponibilidade para viagens para fazer pesquisa de campo, por exemplo. Pode significar menos tempo para acompanhar experimentos extensos em laboratório, para outras pesquisadoras. E, na grande maioria impacta diretamente na produção de artigos científicos (gráficos 1 e 2) que é o capital ativo de todas e todos cientistas. MONNERAT, A. “Teto de vidro” na ciência: apenas 25% na categoria mais alta do CNPq são mulheres. Gênero e Número, seç. Ciência e Educação, 17 set. 2017. Disponível em: http://www.generonumero.media/2mulheres-representam-metade-da-producao-cientifica-no-brasil-mas-sao-apenas-25-em-categoria-mais-alta-do-cnpq/. Acesso: 22 jun 2020. 7 441 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Gráfico 1: Produtividade das pesquisadoras que se tornaram mães 8 Gráfico 2: Produtividade das pesquisadoras sem filhos ao longo do tempo 7 A publicação de artigos tem peso importante nos sistemas de avaliação do desempenho de pesquisadores e influencia as possibilidades de se encontrar um emprego, conseguir financiamento de projetos e visibilidade acadêmica. Basicamente tudo na academia funciona sob a moeda das publicações. As mulheres que já eram sobrecarregadas pelo trabalho doméstico não remunerado pré-pandemia, agora se percebem com esta atribuição ainda mais aumentada. Isso sem mencionar os casos das 8 Parent in Science in ANDRADE, R. de. O. Maternidade no currículo. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, ed. 269, seç. Carreiras, 12 jul. 2018. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/maternidade-no-curriculo/. Acesso: 24 jun 2020. 442 Maternidades Plurais mulheres, vítimas de violência doméstica, que estão confinadas com seus algozes9. Chamar esse cenário de home office é muito violento. Home office é um espaço planejado para máxima concentração, com horário bem definido enquanto os filhos e filhas estão na escola. Com tudo fechado, casa cheia 24h por dia, sete dias por semana o momento virou um grande vulcão prestes a entrar em erupção. O trabalho da escrita e criação se mistura com a educação e entretenimento de crianças, limpeza da casa, preparação de alimentos, atenção ao relacionamento, fora o medo perene de contaminação pessoal e de familiares. Isso não é trabalho em casa e não se pode aceitar isso como ‘o novo normal’, isso é o caos. Não se pode admitir que nossas vidas daqui para frente terão esse padrão de ‘normalidade’ mais parecido com uma adaptação pós-apocalíptica. Para isso, é necessário usar a visibilidade que o caos domiciliar está tendo nesse momento, para manter viva na memória coletiva (especialmente de líderes e gestores acadêmicos) os desafios que as pesquisadoras devem sobrepor para manter um mínimo de produção coerente. Esse tema deve ser respeitado como uma questão legítima para a eficiência de um departamento ou universidade e deve ser debatido com todos seus atores a mesa para que possa se chegar a uma configuração que contemple as demandas das cientistas que são mães. Assim, Peppa Pig na subjetividade de seus personagens, do mundo do desenho infantil, mostra de forma doce e inocente o processo de exploração do trabalho, principalmente, das mulheres que obviamente precisam trabalhar e alcançar um futuro melhor como a Dona Coelha. Este é o típico desenho para crianças feito com um aceno maroto para os adultos. E toda vez que ele acena pra mim, percebo, reflito e aceno de volta. i Opinare aude, do latim, ouse opinar. Pensar fora dos muros dos paradigmas estabelecidos, ousar. 9 MENDES, J. D. S. As mulheres a frente e ao centro da pandemia do novo coronavírus. Metaxy: Revista Brasileira de Cultura e Políticas em Direitos Humanos, 20 maio 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/metaxy/announcement/view/467. 443 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 72 Casa: um arquivo zipado Janaína Ferreira Fernandes1 Prelúdio É manhã. As grades na janela do nosso apartamento refletem a luz de um novo dia. Lá fora, o verde claro e alegre das árvores anuncia a continuidade ordinária da vida não humana. A outrora avenida movimentada quase não emite som. É mais um dia de isolamento, dizem. Entre os meus — na maciez de almofadas, tapetes, cobertores e pelagens de gatos, no conforto quente da vida doméstica — é impossível entender essa experiência como de isolamento. Antes, um não isolamento permanente, um nunca estar só, um impedimento à introspecção, sempre a mim tão cara. É constante o convívio, bem como as demandas simplórias de alimentação, cuidado, atenção e afeto inerentes à maternidade. Nas grandes cidades, casas eram quase sempre núcleos fortificados para onde se retornava ao fim do dia, onde entidades coletivas denominadas famílias se encontravam para celebrar, entre seus membros, os laços de parentesco após uma jornada aventurosa pelo mundo exterior. Eram redutos íntimos que tinham por principal função cerrar as portas para os assuntos públicos e impessoais da vida profissional e/ou escolar. Os grandes arquivos da vida social, como política, economia, mercado, ciência, trabalho, costumavam fervilhar nas ruas e logradouros públicos, saltitando entre paralelepípedos, asfaltos e edifícios sóbrios, onde pisavam e passavam a multidão de casacos e sapatos, ansiosos pelo mundo de lá de fora. Todos os dias, os casacos e sapatos perambulavam pelas cidades, agitavamse em meio aos arquivos do mundo: o trabalho com seus ambientes profissionais, frios e distantes; as praças, com seu lazer taciturno e moderado, arreganhado aos pudores inerentes às vias públicas; os mercados, repletos da ponderação econômica, na qual produtos e valores permaneciam oblíquos, aguardando por transformarem-se em refeições e afeto. Passávamos por todos esses arquivos totalmente incólumes à nudez que os casacos e sapatos escondiam, aquela que reservávamos às nossas casas. Como mãe, sempre entendi que esse mundo de lá de fora me era essencial, era o que me permitia não ter uma identidade tão monolítica quanto a de mãe. Dava-me uma certa liberdade. Afinal, embora 1 Doutora em Antropologia. Professora do Instituto Federal de Goiás - Campus Formosa. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3156140369917980 444 Maternidades Plurais se possa dizer que a maternidade é um fato social total2, ou seja, abraça e constrange todos os arquivos existentes no mundo, antagonicamente, mães não deixam de ser pessoas fractais3, o que nos faz desejar espraiarmo-nos em relações plurais que extravasam a domesticidade da relação mãe-filho. Temos lutado por nosso reconhecimento como mulheres, amantes, amigas, profissionais, ativistas, cientistas, pesquisadoras, professoras. Tornar-me, em algum momento do dia, casaco e sapato era o que me permitia ver-me enquanto ser integrante do mundo lá de fora, era o que me fazia antever a potencialidade da fractalidade que em mim estava guardada. Nas casas, no tempo pretérito, os grandes arquivos da vida conseguiam penetrar apenas de forma sorrateira pelas frestas, tornando-se muitas vezes invisíveis a seus moradores, quando muito, relembrados em momentos de comensalidade imiscuídos em comentários opacos sobre o dia do lado de fora. A vida doméstica, a chamada família, um arquivo apartado, resguardado pela casa, guardava ternura, amor, convivência, cotidiano, cuidado e toda sorte de atividades banais. No mundo de fora, esses pequenos detalhes eram subsumidos a uma parte oculta da vida dos casacos e sapatos; uma parte presente apenas nas entrelinhas; uma parte que não merecia ser dita ou sequer mencionada, sob pena de que os outros casacos e sapatos cogitassem que a banalidade presente no cozimento de arroz e feijão, na limpeza de banheiros e roupas pudessem esconder a terrível verdade de que casacos e sapatos pudessem se transformar, pelo menos em algum momento do dia, em pijamas e chinelos. E a maternidade, resguardada pela domesticidade, só podia ser exercida por pijamas e chinelos. Daí ser tão importante para mim, em algum momento do dia, transformar-me em casacos e sapatos. No entanto, a vida de mãe não podia ser compartimentada com tanta facilidade. A maternidade me era lembrada a cada gesto, a cada pensamento interrompido, a cada dificuldade em finalizar um artigo, a cada nova responsabilidade negada em reuniões de colegiado por falta de tempo ou por ter que levar os meninos à escola, a cada congresso que se abria mão, a cada desespero em verem-se prazos se extinguindo. Por trás de meus casacos e sapatos, escondiam-se renitentes pantufas e flanelas. Isso porque o arquivo da casa, da maternidade e da conjugalidade, do parentesco e da banalidade do cotidiano, apesar de subsumido às paredes da casa, guardavam uma parte muito importante das pessoas, estivessem elas de casacos ou pijamas. Trata-se do afeto, do amor, da raiva, da estupefação e do desejo — ou seja, de tudo o que nos torna humanos e nos faz querer vestir casacos e sapatos. Os grandes arquivos da vida social não existiriam sem o arquivo da casa, não teriam sentido sem ele. Era assim que vivíamos. Subitamente, o lá fora tornou-se impedido, dominado pelo perigo invisível da doença e da morte. Nossas casas transformaram-se, então, em um abrigo permanente, último reduto de segurança, única possibilidade de trânsito. Condensou-se nela tudo o que era vivido fora. Os arquivos resumiramse entre paredes, uniram-se em uma promiscuidade obscena e caótica: a casa como um arquivo zipado 2 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 3 WAGNER, Roy. The Fractal Person. In: STRATHERN, Marilyn & GODELIER, Maurice (orgs.). Big Men and Great Men: Personifications of Power in Melanesia. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. 445 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) das nossas vidas. Não há mais o lá fora. Tudo acontece nas fronteiras das nossas soleiras e parapeitos. Sapatos e casacos permanecem guardados em fundos de armários. Os pijamas e chinelos venceram. O cotidiano Saindo de meu quarto, o pequeno corredor leva-me à sala e à mesa de refeições, onde minha esposa já se encontra atarefada no home office, realizando ligações, escutando áudios, preparando materiais dos quais nem desconfio do conteúdo. À sua frente, a mesa do café da manhã já está posta. Nossos dois filhos comem enquanto assistem desenhos animados. Não há para onde ir. E ali me posto, tentando compreender o que de novo há no mundo pelas notícias que me chegam na tela do celular, regando meu desconforto com xícaras de café. Nos primeiros momentos do meu despertar matutino, vejo números de infectados e mortos, manifestações populares, declarações de agentes públicos, investigações, convocações para reuniões de trabalho, vídeos de bebês e filhotes, projetos de lei, notas de repúdio, consultas populares e mais café. A manhã passa. Louças na pia. Almoço. Ligações de professoras. Tarefas de casa. Roupas na máquina de lavar. Pregadores. Álcool 70%. Higienização de banheiros e sofás. Dúvidas nas tarefas de casa. Mais louças. Arroz. Descongelar a carne. Pagar a conta. Acabou o gás. Briga de criança. O gato vomitou na minha cama. Lavar as mãos. Não esquece de levar a máscara. Jogar o lixo lá fora. Tomar banho. Videogame. Televisão. A internet caiu. Tenho reunião daqui a pouco. Almoço atrasado. Alguém viu meu carregador? Para de gritar. Peça desculpas para seu irmão. Chegou mensagem. Você viu o que aconteceu? Agora não dá para falar, estão me ligando. Reunião de família pelo Hangout. Louças. É preciso limpar o banheiro. Não, não dá para ir para a quadra. Não encosta em nada. Estão com fome? Come uma maçã que o almoço sai logo. Café. Louça. Mensagens chegando. Emails chegando. Gente, não grita. Silêncio que eu vou mandar um áudio. Latidos. Campainha tocando. Entrega. Burrifa álcool. Louças. Turbilhão. É como se eu estivesse dentro de um tornado, vendo objetos avulsos sendo lançados de um lado para o outro. Nada que qualquer mãe já não tenha sentido antes. Mas, agora é diferente. Não há para onde ir para além da soleira da porta do apartamento. Não é possível sair. Sem casacos e sapatos para vestir. Apenas pijamas e chinelos, e a nudez doméstica que encabula tudo o que é público. Cada cômodo transformou-se em uma esfera da vida. Quarto e banheiro são por demais íntimos. Não leve seu trabalho para esses lugares. O escritório é ideal para o trabalho, mas, pela manhã, só pode ser a escola de ensino fundamental das crianças. E, a tarde, talvez tenha que ser deixado de lado intermitentemente para apartar brigas de crianças ou preparar um lanche. E, a noite, as demandas afetivas tornam-se mais vívidas, não sendo aconselhável como reduto impenetrável. A sala, a cozinha e a área de serviço são híbridos. Afinal, demandas urgentes de trabalho podem chegar enquanto se estende roupa ou se está jogando o lixo fora. E assim somos expostas a casacos e sapatos enquanto tudo o que nos resta são pijamas e chinelos. Introspecção feita em coletivo 446 Maternidades Plurais Sou mãe, antropóloga, professora, pesquisadora, além de esposa, filha, irmã, amiga, dentre inúmeras outras identidades que tantas vezes aciono — ou sou instada a acionar — em meu cotidiano. Mas, gostaria de falar aqui sobre as relações entre a “mãe”, a “antropóloga” e a “pesquisadora”. Em 2016, quando ainda estava no segundo ano do doutorado, ingressei como professora no Instituto Federal de Goiás, assumindo, pela primeira vez, o meu ofício de antropóloga/professora/pesquisadora. Poucos meses depois, muito antes de me adaptar e me entender dessa forma, recebi uma ligação muito esperada: uma voz desconhecida explicou-me que chegara minha vez na fila de candidatos à adoção. Dois meninos aguardavam minha visita. Gabriel, 5 anos. Guilherme, 4. Por incrível que pareça, aquele ano ainda me guardava mais reviravoltas: um divórcio e um novo casamento. Analisando retrospectivamente, posso afirmar, com certa segurança, que minha aprendizagem dos significados plurais do que é ser mãe deu-se em concomitância ao aprendizado de ser professora e da minha formação mais fastidiosa como pesquisadora: o doutorado. Isso porque, para além daquele ano de tantas situações surpreendentes e desconhecidas, no ano seguinte, partimos a família toda para a realização de meu trabalho de campo: dez meses na terra indígena Tremembé de Almofala, no litoral oeste cearense. Às duas crianças que me impunham sabedoria para compreender a maternidade em todas as suas nuances, somavam-se uma pesquisa de doutorado em etnologia indígena — que me cobrava grande imersão em campo e o estabelecimento de relações profícuas com meus interlocutores e interlocutoras — e um casamento que ainda começava a se consolidar. Por um acaso bem-vindo, minha esposa — fotógrafa — engajou-se na pesquisa com registros visuais. De volta à nossa casa, passou-se um ano e meio de escrita, intercambiada com meu retorno às atividades de docência no Instituto Federal de Goiás. Até que, em fevereiro de 2020, defendi minha tese, um trabalho que ainda me agrada, posto que feito com boas pitadas de afeto. Poderia aqui discorrer acerca dos inúmeros malabarismos que tive que fazer para conseguir conclui-lo, especialmente no que se refere às demandas que a maternidade nos coloca. Mas, não é esse o intento desta publicação. Poucas semanas após a defesa, de posse do título que esperava que me abrisse uma série de novas possibilidades, logo após retornar a um novo semestre letivo — o primeiro no qual eu sentiame realmente livre para experimentar as alternativas de ensino, pesquisa e extensão que a instituição a qual me vinculo me oferece, no momento em que, decorridos três anos da adoção, sentia-me mais próxima dos meus filhos, tinha mais autoconfiança no entendimento que formei para mim mesma do que era ser mãe e — falando de aspectos mais práticos de nosso cotidiano — os meninos tinham acabado de conseguir vagas para o ensino integral na Secretaria de Educação do Distrito Federal, algo nos interrompeu. Diante à pandemia, a vida foi paralisada. Planos, projetos, pesquisas, orientações, aulas, diálogos, debates — tudo em suspenso. Dentro de casa, temor pela situação atípica e absurdamente surreal que se passava lá fora. O vírus havia devorado o cotidiano, dilacerado o familiar. Novos arranjos deveriam ser criados, e rápido. No Instituto, também novos arranjos, sendo preciso conformar casacos e sapatos a pijamas e chinelos. Estamos zipados: cada centímetro da casa é repentinamente trans- 447 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) formado em reuniões online ou áudios e documentos virtuais, demandas, editais. Os horários, o cotidiano, casacos, pijamas: tudo zipado. As interrupções do pensamento, as impossibilidades de conclusão, o confronto entre carreira e maternidade, tudo multiplicado. Será preciso nos reinventarmos. Será preciso resistir e vencer. Se aprendi a ser mãe concomitantemente a ser pesquisadora, antropóloga e professora, agora tenho que reaprender tudo novamente, mas não mais como arquivos separados e sim como uma e mesma coisa. Se nossa casa subitamente transformou-se em família, trabalho, mercado, política, economia, público e privado, será preciso romper os arquivos. Será preciso entender, enfim, que a vida social não é compartimentada. Aliás, ela nunca foi. Nossos esforços com casacos e sapatos eram, no fundo, invenções para ocultar nossa nudez e toda a banalidade humana que se esconde por trás da satisfação de nossas necessidades mais básicas e também de nossos afetos e sentimentos. Não temos data para voltar a nos fantasiar de casacos e sapatos, mas isso não nos impede de ter a certeza de que precisamos continuar a viver da melhor maneira possível. É, talvez o arquivo zipado tenha corrompido todo o sistema. 448 Maternidades Plurais 73 Paralelos e convergências das realidades de duas mães no contexto do isolamento social Jéssica da Costa Marques1 Iasmin Chaves Oliveira da Silva2 Ser mulher é um desafio As rotinas não são muito diferentes. Equilibrar maternidade, serviço doméstico, trabalho, relacionamentos, estudos. Vários aspectos dessas realidades podem ser comparados, possuindo vantagens e desvantagens semelhantes: quantidade de filhos, a existência ou não de rede de apoio, trabalho estável ou freelance, presença e participação dos pais biológicos na criação das crianças, entre muitos outros. Este relato concentra-se nas particularidades da realidade de mães universitárias. Mulheres mães universitárias de instituições distintas: uma de uma Universidade pública, e a outra, bolsista em uma Instituição de Ensino Superior privada. Jéssica, assistente social formada pela Universidade Federal Fluminense, desempregada, divorciada, mãe da Ana Luísa de 5 anos e estudante de licenciatura em Letras Português/Literatura na Universidade Federal Fluminense, em Niterói; e Iasmin, professora concursada da educação infantil numa creche de comunidade do município de Niterói, solteira, mãe da Hinata Vitória de 4 anos e da Hanna Clara de 3, bolsista pelo ProUni no curso de Pedagogia na Universidade Estácio de Sá, em São Gonçalo. Ambas moradoras do município de Itaboraí na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Conheceram-se pela militância feminista em redes sociais e estreitaram laços, compartilhando aqui e agora essa vivência conjunta no contexto da pandemia e do isolamento social. Ser universitária é um desafio Logo que o governo do Estado do Rio de Janeiro e as prefeituras dos municípios determinaram o fechamento das instituições de ensino para cumprimentos do decreto de distanciamento social, na 1 Assistente social formada pela UFF. Graduanda de Letras (UFF). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3867539613975316 2 Professora e graduanda de Pedagogia (UNESA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6495793561676031 449 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) tentativa de diminuir o contágio do novo coronavírus — causador da doença nomeada Covid-19 — pudemos perceber que as rotinas, até então fragilmente estabilizadas, seriam duramente afetadas. A Universidade pública preparava-se para retomar as atividades depois do merecido período de férias enquanto que as instituições particulares já haviam iniciado as atividades do ano letivo de 2020. Nossas filhas, também já inseridas na rotina escolar do ano corrente sentiram conosco a mudança para a qual ninguém estava preparada. Enquanto a Instituição Federal de Ensino Superior suspendia o calendário escolar e administrativo, a Estácio readaptava sua rotina mista (com disciplinas online e presenciais) para uma realidade 100% à distância. O SIA (Sistema de Informações Acadêmicas) — que em dias “normais” já apresentava problemas sistêmicos ficou sobrecarregado com ainda mais acessos. Independente de nossa rotina domiciliar, acesso a computadores ou qualidade de internet, nós — estudantes — contamos e agradecemos a solidariedade de lúcidos professores e a empatia de colegas de classe. Outras ferramentas digitais foram adaptadas para compensar a ausência da aula presencial, mas ficando a cargo de estudantes e professores sua obtenção e uso. Como a plataforma Microsoft Teams, e-mails e até grupos de WhatsApp quando o professor acha conveniente. Iasmin, como os outros alunos, ficou preocupada, tensa e ansiosa, para que todas as plataformas e soluções proporcionadas fossem suficientes para as demandas da rotina dos discentes. Do outro lado, a Universidade Federal Fluminense não parecia se dar conta do impacto que a pandemia e as ações necessárias para abrandar a crescente onda de contágio causariam aos estudantes. O trabalho sendo executado em home office não dá conta de atender as demandas dos estudantes que ficaram dependentes da comunicação com as organizações estudantis. Foi nos Diretórios Acadêmicos e Coletivos (principalmente), mas também Projetos de Pesquisa e Extensão em que alguns estudantes estão inseridos que houve uma comunicação indireta com a UFF, possibilitando acompanhar questões comuns como calendário acadêmico e administrativo, manutenção das bolsas de assistência estudantil, atividades remotas durante a suspensão das aulas presenciais, entre outros assuntos que não foram esclarecidos de forma direta pela Universidade. Para Jéssica, o “Coletivo Mães da UFF” (o qual ela conhece há aproximadamente um ano) tem sido o melhor campo de comunicação com a Universidade. Lá, ela toma conhecimento sobre atualizações relativas ao posicionamento da reitoria nesse momento de crise. Também tem acesso ao “Grupo de Estudos e Pesquisa da Educação Superior” (GEPES), contato que mantém desde a época que cursava Serviço Social e onde encontra professores mais simpáticos às condições nada propícias do corpo discente. Ambas entidades mantêm contato por meio de grupos de WhatsApp durante este período. Depois de várias semanas emendarem-se em meses, receberam um primeiro formulário que objetivava investigar o acesso dos estudantes a computadores, internet, espaço físico apto para estudo, etc. Tudo o que dissesse respeito à possibilidade da aplicação das “aulas remotas” (conceito ainda não muito claro e diferenciado da já conhecida EAD). Intrigante imaginar que uma pesquisa que objetiva saber do acesso dos estudantes a computadores e internet ser enviado por e-mail, exigindo 450 Maternidades Plurais assim que tenham acesso a computadores (ou no mínimo smartphone) e internet, para simplesmente respondê-lo. Algumas semanas depois deste primeiro formulário, a coordenação de curso encaminhou um e-mail similar. Assim, vamos respondendo às perguntas sem termos nossos próprios questionamentos respondidos. Sem sabermos ao certo quais poderiam ser as ações tomadas e os impactos destas na nova rotina construída no contexto da pandemia. Ser mãe é um desafio Dentro de casa, muita coisa teve que ser adaptada. Hinata é matriculada em uma escola de educação infantil pública no município em que mora e, apesar da promessa da prefeitura de fornecer material pedagógico para os responsáveis acompanharem com as crianças em casa, ficou em casa (como as outras crianças) sem nenhum apoio pedagógico dado pela rede, e sem previsão de mudança. Um site foi disponibilizado para os estudantes da rede municipal de educação terem acesso ao material para as “aulas remotas”. Porém o site não contém material algum para educação infantil. O mais irônico é que Iasmin grava, semanalmente, material lúdico para as crianças da classe em que é professora, pela prefeitura Municipal de Niterói, terem acesso de casa. Hanna, apesar dos esforços da mãe por dois anos seguidos, sequer conseguiu uma vaga nas creches do município. Paralelamente, ela participa de reuniões de trabalho semanais utilizando o aplicativo Zoom, equilibrando trabalho e estudo à distância. Já Ana Luísa, inscrita em uma escolinha comunitária já que a mãe não conseguiu vaga em uma escola próxima à residência, recebe semanalmente material em caderno, livro e folhas avulsas para trabalhos de arte. As professoras gravam vídeos onde orientam cada atividade com ludicidade e muito esforço. Ainda assim, exige da mãe uma preparação pedagógica específica para sua fase de desenvolvimento e aprendizagem que a mesma não possuí. Esgotadas as ideais e principalmente os materiais para atividades lúdicas, Iasmin recorre ao YouTube, com vídeos de contação de histórias e desenhos. Mas as crianças cansam rápido. Logo ela passa a comprar livros pela internet, e assim vai substituindo as atividades na medida do possível para ocupar as filhas nos mais de 100 dias em casa. Jéssica iniciou uma rotina que nas primeiras semanas funcionou, mas a convivência intensa com seus pais desequilibrou o frágil sistema de organização que criou para a filha e si mesma. Ter muitas pessoas em volta não retira a carga da mãe, podendo até sobrecarregar ainda mais a criança de estresse, que é o que acontece com Jéssica e Ana Luísa. Ambas, Iasmin e Jéssica chegaram ao final de junho exaustas. As crianças estão estressadas, ansiosas, entediadas e com medo, sem nem mesmo entender claramente o porquê. E talvez nem as próprias mães o entendam também. 451 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ser mulher mãe universitária é um grande desafio Ao longo das semanas, compartilhamos nossas experiências, frustrações, medos e anseios. Nós nos apoiamos e confortamos mutuamente. Eu, Jéssica, fujo da sobrecarga psicológica do isolamento acrescido do estresse da minha filha e do convívio intenso e ainda mais tóxico com minha mãe narcisista com trabalho voluntário, confeccionando máscaras laváveis e doando em troca de alimentos para ajudar famílias da comunidade onde vivo. À distância, acompanho a luta de Iasmin que, já tendo um histórico de depressão e ansiedade, desenvolveu um quadro de pânico durante o isolamento. Ela tem se esforçado. Diria que se esforçado demais. Retomaram o acompanhamento psicólogo, ela e a filha mais velha, Hinata. Sobre os pais biológicos das nossas filhas, não há muito o que falar. Provavelmente, o isolamento social foi-lhes um alívio. E seguimos na luta. Iasmin terminou seu semestre 2020.01 com nota 10 em todas as disciplinas, mas custou muito de sua saúde mental. Estamos ambas cansadas de abraços e chamados “ô mãe” vindo de vozes infantis. Amamos nossas filhas, mas não podemos fingir que amamos a maternidade. Estamos cientes que todos estão um pouco mais frágeis nessa época de tantos modos sombria. Sentimos o impacto de cada decisão social, e infelizmente, temos consciência de classe o que nos angustia demais ao assistirmos ao show de horrores de pessoas e setores que não tem consciência da seriedade dessa crise. Sofremos dentro de nossos corpos o impacto do estresse e da falta de autocuidado. Doamos demais e muito pouco somos reconhecidas ou mesmo respeitadas. Temos um constante sentimento de que estamos sendo desconsideradas e cobradas por todos, indiscriminadamente, como se tudo em nossas vidas fosse propício ao sucesso e que só dependesse de força de vontade. Ao iniciarmos esse relato pretendíamos olhar para o que nos torna mais próximas, mas percebemos que o que mais nos une é a sobrecarga. Eu, Jéssica, encerro este relato, em meu nome e em nome da Iasmin que no momento precisa descansar, pois está no seu limite. Em breve sei que serei eu. 452 Maternidades Plurais 74 Imagem autodefinida de maternidade em contexto de pandemia Josinélia Chaves Moreira1 “Ser Mãe é sonhar cada vez mais alto Minha vida não acabou Ela recomeça todos os dias” (OBACI, Priscila. 2020, p. 41)2 No dia 04 de julho de 2017, dois traços vermelhos me enunciavam Mãe. A palavra mãe, ainda em processo, confesso que ecoou, rasgou e feriu-me como uma navalha, enquanto tentava não acreditar no que estava vendo. As palavras pularam da minha cabeça, me olhando e insistindo em me penalizar, asfixiar: camisinha, pílula do dia seguinte, anticoncepcional, tanta coisa, mesmo assim fui abraçada pela desinformação3. “O que vai ser de mim agora? E o doutorado4? E os concursos? E os meus sonhos?” Essas frases me interrogavam, entoavam como um pouso desordeiro, de emergência, como nos velhos tempos em que a ansiedade tomava o meu corpo, impedindo-me de alçar voos, apenas me comia, comia. A velha sabotagem, autoboicote que me impedia de voar e acreditar que era possível. Como tornar-me mãe e continuar com a minha vida e com os meus planos? A minha memória ancestral foi amordaçada pelo meu inconsciente colonizado que deixou por um bom tempo com esse buraco do vazio, da culpa, do julgamento, da vergonha, do escândalo. Um desafio que (re)elaborava em meu corpo os traços, os traumas e o banzo de uma ancestralidade sequestrada, mutilada e seca da sua potência enquanto mãe, fonte de vida para toda comunidade 5. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura pela UFBA. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2971118370348035 2 OBACI, Priscila. Cada dia mais viva. In: ______. Poesias pós-parto. São Paulo: Oralituras, 2020, p. 41. 3 O sexismo da nossa sociedade nos leva para esses sentimentos de culpa, ódio, desesperança, o peso enorme de uma gravidez que envolve duas pessoas, mas sempre sobra para a mulher a sobrecarga de assumir o erro, a falha e a irresponsabilidade de um ato sexual. 4 Nesse mesmo período, ainda experienciava o júbilo por ter conquistado uma vaga no Doutorado em Literatura e Cultura pela UFBA. 5 Longe de uma imagem universalizante, estigmatizada e romantizada, o caminho que tenho adotado na escrita da minha tese de doutorado é evidenciar como as escrevivências presentes nos corpora escolhidos herdam um legado, que pretende fecundar uma nova travessia de interpretação sobre maternidades negras na literatura das Améfricas. Sobre o 453 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) A enunciação da palavra “Mãe”, marca e redimensiona a minha vida, assim como a de muitas mulheres, sobretudo, negras6, na movência do corpo e na capacidade de (re)inaugurar “vidas”, contornar desafios e impor caminhos outros de fuga e de (re)conhecimentos. Além disso, de experenciar no e com o corpo as fissuras da falta de políticas públicas que atendam as múltiplas demandas que atravessam as mães e suas crianças, especialmente, em tempos de crises sanitárias como a que estamos vivendo agora com o coronavírus. Desde então, os desafios, as descobertas, as vivências e as experiências têm me acordado e exigido novas posturas de enfrentamento da vida, assim como práticas de (des)construção do que sou, sobretudo, das imagens definidas e romantizadas de maternidades, de mães, de maternagens e do que significa ser mulher negra, periférica, a qual tem no próprio corpo a interseccionalidade tatuada. Estou em busca de uma imagem autodefinida, uma construção do “eu” que me conceda o poder da humanidade, o direito de ser negra e mulher e mãe (COLLINS, 2019) 7, para viver e experienciar a maternidade e a maternagem com a minha filha. E, no ano de 2020, essas questões retomam com força nesse meu processo de construção de mãe, de uma criança de 2 anos, que por conta de uma crise sanitária causada pelo surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, muda drasticamente a nossa vida, em todos os sentidos. Além disso, a Covid-19 desnudou o quanto uma determinada ideia de nação, fundada e estruturada nas desigualdades raciais e sociais, assolam o mundo e o Brasil. Em março a Covid-19 foi caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma pandemia e uma das medidas adotadas para conter a propagação da doença foi o isolamento social. Com a suspensão das atividades acadêmicas, o que inclui o serviço creche8, o qual atende minha filha desde os seis meses de idade, nos deparamos conceito de Améfricas, ver GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988. Um estudo que se arquiteta teoricamente e metodologicamente nas escrevivências, por isso também envolve o meu processo de construção enquanto mãe negra, gestando um corpo-tese e maternando uma menina-sereia. 6 Afirmo isso sem a pretensão de tornar essas experiências como universais, mas no intuito de corroborar com a perspectiva da maternidade sem as amarras de epistemes hegemônicas ocidentais. 7 COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. 8 Resgato aqui a necessidade de externar o quanto as Políticas de Cotas, assim como as de Ações Afirmativas e de Assistência Estudantil, foram importantes para o alcance dessa minha trajetória intelectual, enquanto mulher negra, interiorana, oriunda de família de trabalhadores rurais. Se não fosse o Movimento Negro e a sua luta por uma política de reparação, eu não teria quebrado o círculo vicioso do plantio, da colheita de café, estaria até hoje manejando os instrumentos da terra. Adentrar foi uma fissura, mas continuar na UFBA, só foi possível pelas políticas de assistência estudantil, morei durante quatro anos na Residência Universitária da UFBA, a RIII, no Canela. Depois de sete anos, voltei a ser assistida pela Política de Assistência Estudantil e Ações Afirmativas da UFBA (PROAE), com o serviço creche, a qual foi fundada em 19 de setembro de 1983 na gestão do então superintendente estudantil Paulo Viana. Em tempos tão duros e difíceis, não posso deixar de mencionar a importância desse espaço, como lugar de produção de conhecimento da educação e da infância, que atende “aos(às) dependentes de estudantes e servidores(as) docentes e técnico-administrativos da UFBA, contribuindo para seu desenvolvimento educacional e biopsicossocial, na faixa etária de 04 meses a 03 anos e 11 meses.” Disponível em: <https://proae.ufba.br/pt-br/creche>. Acesso: 24 jun 2020. 454 Maternidades Plurais com uma outra realidade que exigia mais uma vez repensar sobre o nosso papel de mãe e de pai de uma criança. Sem contar que todas essas questões surgem em um contexto de uma mãe doutoranda, um pai mestrando em vias de qualificação e realizando home office. Por um momento, pensamos em ir para a casa dos meus pais no interior, como sempre faço, quando termina o semestre e concomitantemente encerram as atividades da creche. Mas, desistimos tanto porque o governo do estado suspendeu os transportes interestaduais para conter a pandemia, quanto porque não temos carro. Além disso, a cidade dos meus pais não possui uma estrutura de saúde pública que atenda a casos especializados como esses, realidade de muitos interiores no Brasil. A saída foi adequar a nossa rotina a essa nova realidade, buscando conciliar as atividades acadêmicas, profissionais e familiares. O que não tem sido fácil, especialmente, por se tratar de uma criança de 2 anos e 5 meses que requer uma atenção redobrada durante as atividades. Tal cenário, me trouxe de volta os velhos e novos sentimentos de uma mãe em construção, doutoranda, no terceiro ano do curso e com uma qualificação atrasada por vários motivos, o que inclui um processo de ostracismo, de não produtividade, sobretudo, por conta de um inconsciente colonizado que me culpabiliza por tudo e por todos, até mesmo pelos vazios que encobrem meu corpo. Escrever a tese, desde o momento que me vi grávida até quando pari e nesse exato momento, tem sido um gesto despir, um processo de limpar as cicatrizes e feridas que têm me impedido de escreviver a maternidade. Algumas perguntas ecoaram e ecoam: por que não consigo escrever sobre maternidade? Quais questões estão imbricadas nessa interdição? Essas indagações têm me levado para dentro da narrativa do conto “Olhos d’água”9, o primeiro e o que dá título ao livro de Conceição Evaristo (2015), o qual colaborou com esse meu processo de retorno para casa em busca do rosto de minha mãe, de outras mães, de todas as mulheres da família e de minhas ancestrais. Sei que tenho mães, estou tornando-me uma, mesmo assim, as palavras se amordaçaram, fugiram e pactuaram pelo nãodito, não querem fazer parte desse processo de descobrimento da mãe que me impuseram; da mãe que está retornando ao útero ancestral da experiência, de uma “gramática ancestral de África e diáspora”, como aponta Carla Akotirene (2018, p. 14)10; da mãe que está sendo gestada desse processo dor-escrita, no (a)feto de cada experiência-vivência para uma instrumentalização teórica-metodológica de um “útero” místico e pulsante. O corpo-tese que se estrutura nesse caos, por fora e dentro, tem levado um tempo-dor para se formar, acompanhado da procrastinação, uma luta com o esvaziamento do ato de escrever. Tenho feito inúmeras atividades adiando essa relação que me é tão constrangedora e invasiva, um lugarincômodo de alguém que não tem autoridade para exercer essa função, a de um intelectual. Nesse período, mesmo sabendo da urgência e da necessidade de colocar para fora os nós que atravessam o meu corpo, queimam minha pele, dei-me o direito de pensar, chorar, desafiar e iniciar um processo de cura das dores de uma vida de autosabotagem, autoboicote que ferem a minha existência e resistência, enquanto mulher-negra-filha-mãe. Na verdade, quando decidi por procurar ajuda, por meio de 9 EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. In: ______. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015, p. 15-19. 10 AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade. Coordenação Djamila Ribeiro. Belo Horizonte: Letramento, 2018. 455 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) terapias, foi quando percebi a necessidade de nomear essas dores, de entender quem sou diante dessas feridas que estavam encobertas, desde criança, mas foram abertas com a gravidez. No entanto, por conta da pandemia e do aumento de custos, tive que suspender esse momento tão importante, o qual colaborava na minha autorrecuperação por uma (re)construção de um autoamor e um ritual de autocuidado. E toda essa situação se avoluma nesse isolamento, mesmo com a parceria de um companheiro que materna comigo11, a minha filha tem exigido mais atenção, um tempo de brincadeiras e de atividades que acaba sobrecarregando o meu tempo e o do meu companheiro. Os sentimentos continuam de culpabilização, sobretudo, pelos padrões e mitos construídos em torno da maternidade que não atende e nem se relaciona com as diferentes experiências de maternidades e a ambivalência de muitas mulheres em relação às maternagens, o que revela o universo contraditório e complexo da maternidade (COLLINS, 2019). Contraditória não apenas pelos sentimentos, mas também pelas desigualdades e opressões que atravessam os corpos de mulheres negras. Dessa maneira, tenho sofrido e me penalizado por uma série de comportamentos da minha filha, muitos advindos desse momento, outros que têm sido protelados por entender que cada criança tem seu tempo e precisa ser respeitado, tais como: ausência de um número maior de palavras e frases; a quebra de rotina que tem afetado o sono, a alimentação, o brincar; nervosismo e irritabilidade tanto nosso quanto dela, diante das birras e da necessidade da nossa presença; a exposição de um longo tempo na televisão e no celular; desfralde; os inúmeros choros, gritos durante a troca de fralda e do banho; estresse; o tempo de dedicação para brincar e se divertir sem a consciência de que poderia escrever aquele artigo ou seção da tese, dentre outros. Estamos chegando ao quarto mês de isolamento, as incertezas nos assombram sobre o que será do futuro do presente, como viveremos pós esse “novo normal” que nos convoca a mudanças de paradigmas e de transformações urgentes na sociedade. Transformações que precisam acontecer imediatamente, mas os compromissos dessa temporalidade ocidental impedem de olharmos com profundidade essa exigência de uma vida sem artificialidade e com outro modo de funcionamento que acolha a diversidade, a “[...] pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.” 12 Como aponta Krenak (2020), o coronavírus coloca em xeque que humanidade é essa que se baseia na desumanização de outras, a exemplo, da necropolítia (MBEMBE, 2018)13 do Estado que decide em fazer morrer os corpos negros, como temos acompanhado nos noticiários e nas redes sociais, as inúmeras mães que choram, sofrem e morrem sobre os corpos de seus filhos assassinados pelo racismo estrutural que 11 Não estou essencializando a figura paterna, que na maioria das vezes aparece como ausente nesse processo, mas meu companheiro tem feito comigo um processo de maternagem que só reforça o conceito de matripotência (OYĚWÙMÍ, 2016), da maternidade não generificada e de envolvimento de toda uma comunidade. A agência da matripotência é entendida pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí como esse lugar não biológico e muito menos de gênero, mas na tese recupero e ressignifico como um percurso teórico-metodológico para entender que ainda é preciso redimensionar o lugar da maternidade para mulheres negras, as quais foram sequestradas e são até hoje desse direito de parir, de maternar, de cuidar da sua prole, desde o período da escravização. 12 KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Edição do Kindle. 13 MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. Ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 456 Maternidades Plurais mata não apenas o jovem mas também aniquila, extermina e fere sua mãe, seu pai, seus/uas irmãos/ãs, parentes e amigos/as, toda uma comunidade que continuará sofrendo com essa enxurrada de mortes, opressões e desigualdades alinhavadas por uma lógica da branquitude elitista que se considera o padrão social. De alguma maneira, me mata também, enquanto uma mãe negra que experiencia esses sentimentos indiretamente. “Quem pariu mateus que balance”, “ser mãe é padecer no paraíso”, “quando nasce um filho, nasce uma mãe”, “mãe desnaturada”, “aproveite para dormir agora, porque depois não dorme mais”, “mãe que é mãe não abandona seu filho”, “só sabe o que é ser mãe, quando se torna uma”, “boamãe”, “a culpa é da mãe que não soube criar”, “que marca de mãe é você?”, “mãe louca, histérica e estressadinha”, “quem mandou abrir as pernas, deveria ter pensado antes”, essas são algumas das falas que ouvi enquanto estava grávida e depois que pari. E elas voltam com força nesse período de pandemia. Todas elas, assim como inúmeras outras que não foram citadas, representam o quanto a maternidade sempre foi um tema tratado como universal, sexista, racista, mas “os processos biológicos que a envolvem permanecem sendo exclusivamente vividos pela mulher” (VASCONCELOS, 2014, p. 66)14. Além disso, essas expressões naturalizadas e essencializadas representam uma das formas de aprisionamento e controle do corpo da mulher, assim como a manutenção de uma imagem idealizadora do que é ser mulher, segundo os padrões misóginos e patriarcais. Reforçam também que a maternidade é um empreendimento capitalista, tendo em vista as cobranças que surgem de diversos campos — legal, social, econômico, físico e emocional —, alicerçadas pela família, comunidade e estado, sem levar em conta a ausência de uma rede de apoio e de meios para atender aos anseios das mães. Diante disso, o meu exercício de maternidade nesse contexto pandêmico tem evocado rasuras e dobras de (re)existências e de (auto)descolonização do meu corpo, principalmente, pelas consequências que as desigualdades e vulnerabilidades socioeconômicas, políticas, culturais imprimem em corpos negros, a precariedade e precocidade de tudo. Lutar tem sido o verbo conjugado pelas muitas mulheres de minha família e continuará sendo das próximas gerações que se despontam, pois ainda temos muitas coisas por conquistar. O meu pacto é acordar e enfrentar todos os dias esses medos, desafios, que me consomem pela minha mãe, cumieira da casa, meu porto seguro e meu apoio desde quando minha filha nasceu; pela mãe negra, e tantas outras, que encontrei no ônibus indo para Vitória da Conquista, chateada, inconformada, com lágrimas nos olhos porque não conseguiu visitar o seu filho, preso no Conjunto Penal de Vitória da Conquista; pela mãe negra, mãe solo, que lida diariamente com a frustação e a falta de amparo do estado, de afeto e de cuidados; enfim, por todas as mães em grandes diversidades que carregam no colo, na pele, as dores e os dissabores dos padrões impostos de maternidade, de acordo os interesses da ideologia patriarcal e racista. 14 VASCONCELOS, Vania Maria Ferreira. No colo das Iabás: raça e gênero em escritoras afro-brasileiras contemporâneas. 2014. 228 f. Tese (Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) —Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/16641. Acesso: 15 jun 2020. 457 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Por fim, ao externar essas questões, fico pensando que as minhas dores, acentuadas nesse período, envolvem não apenas esse momento do caos da pandemia, mas também aquelas que estavam encrustadas na pele, abrigadas e escondidas de mim mesma, por não querer olhá-las e encará-las como deveria. Por isso, considero que também há uma produtividade nesse desamparo por me fazer olhar para tudo isso e pensar em formas de superar e enfrentar esses desafios; de entender que sou uma intelectual, mas não posso e nem devo perder de vista que tenho uma criança que me convoca a viver o momento de construção desses lugares de filha, de mãe, das descobertas, das experiências que envolvem a maternidade e a maternagem. O momento pede uma (re)elaboração de uma imagem autodefinida de maternidade, o meu ponto de vista do que significa ser mãe, um empoderamento individual e subjetivo de construção do meu “eu”. 458 Maternidades Plurais 75 Nem Invisível, nem Mulher Maravilha Juliana Linhares Brant Reis1 Sou Juliana, mãe do Benjamim e estudante de doutorado. É assim que me apresento quando necessário, como no primeiro dia de aula de uma nova disciplina ou em um evento acadêmico. Dizer que sou mãe vem logo à frente simplesmente porque é a melhor parte de mim, a mais importante e é onde está a minha maior dedicação e responsabilidade. Quando engravidei eu cursava disciplinas no PósCom da UFBA como aluna especial e participava do grupo de pesquisa CEPAD. Portanto, já me preparava para tentar ingressar como aluna regular no próximo processo seletivo. E assim foi. Em dezembro saí da entrevista sentindo dores, que me fizeram achar que meu filho ia nascer. Mas não foi bem assim, era só um susto depois de tanto nervosismo. O que me deixou mais nervosa naquela etapa do processo? O barrigão. Sim, infelizmente eu tinha medo de que a minha avaliação fosse influenciada pelo meu status de grávida. Ainda bem que eu estava enganada e uma semana depois do resultado, Benjamim nasceu. E nos primeiros dias de vida dele, eu precisava entregar um artigo como avaliação final de uma disciplina. Ou seja, lia e escrevia com ele no meu colo e quase sempre amamentando (esta prática me acompanha até hoje e me rendeu uma inflamação no punho que durou um ano). E quando as pessoas diziam que a mãe deve dormir junto com o bebê, pra descansar, eu ia (tentar) escrever. A professora foi compreensiva, me deu mais uns 15 dias de prazo, mas, como era de se esperar, não ficou o artigo dos sonhos e eu me senti péssima. Com 50 dias de pós-parto, as aulas começaram e lá fomos nós: Benjamim, meu marido Bruno e eu. Como eu não teria licença maternidade, desde que engravidei o plano era este: os dois ficariam passeando pela UFBA enquanto eu estivesse em aula, para que eu pudesse sair da sala e amamentar ou dar qualquer suporte sempre que fosse preciso. Fiz apenas uma disciplina a princípio, porque sabia que mais do que isso seria inviável. Cabe destacar que o Bruno é professor, pesquisador e me dá muito apoio em relação ao doutorado, portanto, conseguiu organizar seu horário de modo que ficasse “livre” no dia da minha aula. Como nossa família é de Belo Horizonte, moramos só nós três em Salvador e pra tudo que precisamos, somos só nós três. Ou seja, enquanto um trabalha, o outro está 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Pesquisadora do Centro de Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD; UFBA). O CEPAD é coordenado pelo professor Doutor Giovandro Marcus Ferreira (FACOM; PÓSCOM UFBA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5756166031948579 459 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com o filho; e pra tudo que eu preciso fazer, dependo da disponibilidade dele e é assim que a gente se organiza (ou tenta). As aulas rolando e eu ficava com o celular na mão o tempo todo; passava mil coisas na minha cabeça (nem eu sabia que era tão criativa!); saía correndo da sala a cada choro; voltava pra sala com cheiro de leite e roupa molhada. Trocar a fralda era no carro ou em um banco do campus, o que também me deixava suja muitas vezes. Se eu achava aquela situação toda linda? De jeito nenhum. Mas naquele momento era o melhor que podíamos fazer. Por fim, depois da aula, sempre precisava ir correndo pra casa com o Bruno e o Ben porque era a hora do “show” (ele chorava muito às 18h). Não tinha cafezinho no intervalo, não tinha bate-papo com as amigas antes ou depois da aula, mas eu só fui perceber isso muitos meses depois. O único dia que eu precisei faltar à aula porque ele estava com febre, eu teria que apresentar um texto. Uma amiga, então, me socorreu e apresentou por mim. Fiquei extremamente grata, mas ainda assim arrasada, lógico. Outra vez, enquanto eu apresentava um seminário, escutava ele chorando muito alto. Todos escutavam. Comecei a tentar falar rápido pra concluir, minha voz começou a ficar embargada e não deu: pedi desculpas e saí correndo pra encontrar meu filho. Algumas vezes também ele precisou assistir aula comigo. Depois de uns três meses, voltei a participar das reuniões do grupo de pesquisa e eram do mesmo jeito. Mas tinha uma coisa que me confortava nessa entrada e saída da sala ou diante dos sons de choro: os olhares de cumplicidade das colegas, das professoras e do meu orientador. Encontrei pessoas maravilhosas no doutorado e no CEPAD e isso me deu muita força. Os sorrisos de empatia aqueciam meu coração, me emocionavam. O plano, portanto, seguia, porém não era tão exatamente como eu havia imaginado. Cabeça pra ler e participar da aula, quem disse que eu tinha? Eu lia todos os textos, mas parecia que tudo desaparecia da minha mente. Precisava de um botão pra mudar de estação e me sintonizar no canal certo, mas cadê o botão? Queria sair correndo e ficar com Benjamim; e quando estava com ele, me sentia péssima por ter entrado no doutorado, por me propor uma coisa que eu não daria conta de fazer com qualidade. Saía triste da aula por não ter participado; e ficava triste na aula porque meu filho era novo demais para estar fora de casa. E então sempre me lembro da frase: “nasce uma mãe, nasce uma culpa”. Não sei de quem é a autoria, mas concordo. Quando começou o segundo ano do doutorado em 2020, decidimos levar Ben pra um espaço de brincar incrível que encontramos e que ele adora. No primeiro dia eu já consegui me concentrar muito mais nas aulas e tive o meu primeiro cafezinho no intervalo. Nossa! Como eu falei naquele intervalo! Porém, duas semanas depois veio a pandemia do Covid-19, as aulas foram suspensas e muita coisa mudou. Quando a “quarentena” começou, na terceira semana de março, imaginava que não seria tão longa e que eu poderia aproveitar aquele “tempo” para colocar algumas tarefas em dia. Fiz então uma lista, que eu pretendia cumprir enquanto as aulas estivessem suspensas. Dentre aquelas tarefas estavam escrever um capítulo da minha tese; me preparar para a qualificação; submeter alguns artigos da dissertação para publicação; ler alguns livros de literatura que estão me esperando há alguns meses ou anos; assistir a filmes, além de organizar várias coisas em casa. No entanto, em quase quatro meses sem sair, a lista só aumentou. 460 Maternidades Plurais Agora que escrevo, estamos em meio ao isolamento social e a oportunidade deste relato neste momento tão delicado e confuso, me pareceu um refúgio, um espaço pra refletir sobre muitas questões. Pensei que conseguiria me dedicar a escrever e que seria fácil falar sobre minha experiência. E mais uma vez o tempo (ou melhor, a falta dele) me fez vivenciar as dificuldades para desenvolver um texto, ainda que sobre mim. E emocionalmente... quantas lembranças têm surgido e quantas questões adormecidas têm me dado aquela cutucada! Fico entre as memórias desde o dia 1 (um) como mãe e as vivências do presente. Percebi que o tempo é tão curto, que vamos vivendo os dias, os problemas, as dificuldades e as alegrias, sem pensar muito a respeito, sem tempo pra deixar fluir cada sentimento. Benjamim está com 1 ano e 6 meses e por aqui ainda rola a amamentação em livre demanda, sobretudo nesse momento em que estamos vivendo 24h dentro de casa e bem juntinho. Digo isso pra explicar que quando achei que eu teria um pouco mais de condições de me dedicar aos estudos e a mim, tudo mudou. É simplesmente maravilhoso meu marido e eu termos a possibilidade de estar com nosso filho, trabalhando em casa neste momento. Somos muito privilegiados! E diante de toda a preocupação, tristeza e todo o medo que assola o mundo, a saudade da família e dxs amigxs, de todas as questões políticas e sociais que apertam nossa mente, temos o sorriso dele todos os dias e, com isso, a vontade de aprender com esse desafio, de sermos melhores a cada dia por ele e por um mundo melhor. Mas falta tempo até pra gente aproveitar esse privilégio. Desde o início da pandemia, tenho visto muita gente compartilhando dicas de filmes, séries, lives, cursos à distância, com o intuito de ocupar a cabeça, minimizar o ócio e a ansiedade causada por ele. E então, me perguntei em muitos momentos: só eu que não tenho tempo pra ficar entediada? Mas logo entendo que estou na mesma que muitas mães, ainda que não estejamos todas no mesmo barco, muitas vezes nem no mesmo oceano. Algumas estão em navio, lancha, outras remando em canoas, algumas nadando e outras ainda estão em mar aberto sem saber nadar. Eu mesma me vejo às vezes em um “saveiro” das estórias de Jorge Amado e em outros momentos sinto que preciso urgentemente de um bote. Mas independente de qual barco ou situação que cada uma esteja, acredito que todas estamos lutando pra não afogar ou não nos isolar em uma ilha. Se o fazer pesquisa muitas vezes é solitário; e ser mãe comumente deixa a mulher mais invisível, imagine uma mãe pesquisadora em meio a um isolamento social. E como conciliar trabalho, maternidade, as preocupações com tudo e todxs, e as demandas de casa? Home office não é novidade pra quem é pesquisadora, mas com filho pequeno em casa a tarefa fica mais difícil. Benjamim é incrível, muito carinhoso, gosta de colo e companhia e, pela idade, demanda realmente atenção em tempo integral. É uma delícia e preciso mesmo aproveitar essa oportunidade de viver com ele tudo isso, de acompanhar bem de perto o seu desenvolvimento. Este era o plano, inclusive, mais uma vez eu me sinto extremamente privilegiada! Sempre sonhei em ser mãe e de fato é a minha prioridade. Mas sonho também em me realizar profissionalmente e acredito muito na educação, na pesquisa, na ciência. Então fica difícil estar 100% naquele navio maravilhoso com ele e respirar aliviada, sabendo que minha pesquisa está me esperando e preciso redefinir minha metodologia; que tem três congressos à vista; que tenho cinco dias pra submeter um projeto; e ainda tenho vários artigos decorrentes da pesquisa de dissertação que precisam ser publicados (aqui eu precisava muito daquele botão pra mudar de estação). Somando a tudo isso, vem o fato de que o prazo 461 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) do doutorado não mudou em decorrência da pandemia. E lá vem de novo aquela culpa. E lá vem as lembranças e as reflexões sobre tudo isso. Durante a pandemia, precisei me dedicar a construção de um projeto, junto com colegas do CEPAD para concorrer a um edital; também passei a dividir minha atenção com a organização de um Congresso — Intercom—; e apesar de as aulas estarem suspensas, as reuniões do grupo seguem à distância semanalmente e a demanda de leitura exige tempo e concentração. Concentração. Palavrinha que anda sumida por aqui, no meio de tanta preocupação, tanto o que fazer e tanto cansaço. Quando abro o computador, levo tempo até conseguir organizar meus pensamentos, ler com atenção o que preciso e, principalmente escrever. Quando finalmente consigo construir um parágrafo, Benjamim aparece com aquele sorriso mais lindo por ter me encontrado. Para tentar me ajudar, passei a praticar mais yoga, a assistir menos aos noticiários e acessar quase nada de redes sociais. Isso porque as notícias são tão tristes de todos os lados, que consumiam minha energia e meus pensamentos. É Covid-19, racismo, feminicídio, falta de consciência, desvalorização da educação e da pesquisa. O isolamento também faz a saudade apertar e o emocional muitas vezes fica balançado. É muita coisa pra assimilar enquanto estamos trabalhando em isolamento, tentando nos cuidar e, assim, cuidar dxs outrxs. É muita coisa pra preocupar, quando criamos um filho pra esse mundo tão difícil. Procuro então me afastar um pouco dessas questões, pra tentar equilibrar as coisas por aqui e, quem sabe, me concentrar melhor. E diante de todas as dificuldades que nós, mães pesquisadoras, vivenciamos, cada uma a sua maneira, ainda nos deparamos com a falta de informação sobre nossas inúmeras funções. Ser mãe deveria ser a tarefa mais valorizada do mundo, mas sabemos que não é assim, sobretudo nessa sociedade patriarcal. A profissão de professor/a então, nem preciso comentar. E pesquisadora da área de comunicação? O que faz? O que come? De onde vem? Como vive? É frustrante não sermos reconhecidas e descobrir que muitas pessoas não fazem a menor ideia do que fazemos e acreditam que somos “apenas mães”. Quantas vezes eu escuto comentários como: “que bom que você pode ficar por conta do Benjamim”; ou a pergunta: “você tá trabalhando com o quê?”. E ao que eu respondo sobre minha pesquisa do doutorado, a pessoa volta a questionar: “mas você não vai tentar arrumar um emprego?”. Ignoram o que significa ser doutoranda, pesquisadora, ainda que saibam o que significa ser mãe. Para muitas pessoas, fazer tudo isso é “fazer nada o dia inteiro”. Durante a pandemia, então, certamente muitos acreditam que eu esteja à toa. Penso que é falta de informação mesmo ou desinteresse pela escuta. Sobretudo nesse momento de tanta crise que estamos vivendo, é possível perceber que a sociedade sabe pouco sobre o que é pesquisa. Então fica a pergunta: o que podemos fazer para que enxerguem que o que fazemos importa? Como deixar de ser invisível? Por outro lado, essas mesmas questões se apresentam muitas vezes de forma diferente quando se trata da figura masculina. Voltando à sociedade patriarcal... nos dias das minhas aulas, alguém sempre comentava como meu marido é maravilhoso, afinal ele fica com o filho. Ele realmente é um ótimo pai e companheiro, cuidadoso e dedicado, mas nunca ouvi ninguém dizer o mesmo sobre a esposa dele. Acho até provável que pensem que faço doutorado por ele ser professor. E mais: cansei de ouvir críticas de pessoas desconhecidas na rua sobre o que eu deveria fazer com meu filho; passei alguns apertos por estar sozinha com ele e resolvendo mil coisas ao mesmo tempo; almocei inúmeras 462 Maternidades Plurais vezes na universidade com ele no meu colo e não recebi ajuda. Muito pelo contrário. Já meu marido, todas as vezes em que ele estava com o Benjamim (quando menor) na UFBA, alguém não só se oferecia, como insistia pra ajudar. É como se o pai não estivesse preparado para cuidar do seu bebê, enquanto a mulher nasce para ser mãe; é como se o homem fosse vítima por estar ali sendo pai, enquanto a mãe seria uma irresponsável por deixar o filho... (pasmem!) logo com o pai. Há um abismo nas percepções sobre as funções e responsabilidades de ser pai e mãe. O contraditório de tudo isso é que ao mesmo tempo em que nós não somos vistas, muitas pessoas enxergam a mãe como uma mulher-maravilha, que nasceu para dar conta de tudo. Mas e quando pifamos, quem cuida da gente? E quando sumimos da vida social, da sala de aula, do mercado de trabalho, como somos percebidas? Ou ainda: a nossa ausência é percebida? As nossas questões continuam invisíveis e sem voz. O acalento vem das poucas pessoas que conhecem nossas demandas reais. Aos 11 meses de idade, Benjamim já tinha participado de 6 eventos acadêmicos, sendo que a metade deles foi fora de Salvador. Em um deles minha mãe foi junto para me dar suporte; em outros o Bruno estava com a gente; e em outros ainda fomos só nós dois. Recebia olhares de reprovação e precisei sair muitas vezes do auditório pra não incomodar outros participantes. Mas também em alguns desses eventos eu ouvi comentários positivos, de motivação por eu ser mãe e estar ali. E isso foi muito importante pra mim. Em um desses congressos, sobre inclusão na educação, essa questão foi mais marcante: fomos muito bem acolhidos e várias mulheres se aproximavam, ofereciam ajuda e relatavam que tinham passado anos sem participar de eventos ou sem estudar por causa do filho, e então me elogiavam por estar ali. Até alguns palestrantes comentaram sobre a nossa presença. No primeiro dia Benjamim era o único bebê no auditório; no segundo dia, outra mãe chegou com seu bebê e sentou no chão ao nosso lado; no final tinham vários outros e nós, mães, nos sentimos mais fortes e, por que não dizer, incluídas. Sim, acredito ser importante pensar na inclusão de mães pesquisadoras em eventos dessa natureza e na universidade. Algo simples como uma infraestrutura básica com trocador já ajudaria bastante; ter uma monitoria pra dar apoio em alguns momentos, seria maravilhoso! Em todos os congressos que participei com ele, Benjamim chamava a atenção por estar ali e sua imagem circulava nas mídias sociais (inclusive imagem dele no colo do pai). Mas o que significava ele estar ali? O que representa uma mãe com seu bebê em um evento acadêmico, tentando apresentar um trabalho, participar de um minicurso, assistir a uma palestra? Não basta registrar a presença com fotos fofas, é preciso dar suporte, ouvir essas mulheres, contribuir para que esse processo seja mais leve e ainda tornar possível a participação de um número maior de mães. Não achamos lindo levar um filho pequeno pra uma universidade ou um congresso. Se o fazemos é por necessidade, é por não querer ou não poder parar de trabalhar e estudar por ser mãe. E se é difícil estar ali, chegar até ali é ainda mais complicado, uma vez que a sobrecarga da maternidade influencia diretamente na produtividade. Essa pandemia tem mostrado muito isso. As demandas como pesquisadora são muitas e o tempo, curto. E cadê aquele botão pra apertar e sintonizar no canal que eu preciso? Entra na sala de aula, aperta um botão; sai da sala, aperta outro; no escritório em casa, sintoniza no canal das pesquisas. Somos como robôs, andando com uma ferramenta conectada o tempo todo que nos localiza, registra áudio, imagem, acessa internet, nossos dados, etc., mas não temos aquela tecla pra mudar nossa estação. Na ausência dela, crio todo um ritual pra 463 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ajudar na concentração quando vou pro computador: café, guloseima, óleos essenciais (nessa pandemia, então, haja guloseima!). Dá certo, começa a fluir, me empolgo e saio feliz do escritório jurando ter encontrado a receita e que a partir de agora todos os dias serão assim. Acredito que finalmente meu marido e eu aprendemos a organizar nossos horários e tudo vai dar certo. Uma vez por semana tem também yoga pra acalmar corpo e mente. Durmo. A noite é agitada e acordo acabada. Mais café, óleo essencial e vou pro computador; Benjamim quer ver desenho na minha máquina; resolvo deixá-lo assistir e imprimo o texto que preciso ler; ele fica encantado por aqueles papéis e quer desenhar. E como educamos muito pelo exemplo, ele é apaixonado por livros e lê muito todos os dias. Então é lógico que se eu resolvo ler um livro enquanto ele brinca com outra coisa, ele fica muito curioso e quer saber tudo sobre aquela história (aliás, ele lê muito sobre mediatização, acessibilidade e direitos humanos). Se às vezes dou uma surtada? Com certeza! Preciso então respirar fundo, aceitar que não consigo trabalhar naquele momento e ir aproveitar a companhia dele. Porém, esse exercício nem sempre é fácil porque deixa em mim a sensação de incapacidade. Tenho tentado ser mais gentil comigo mesma; entender que desempenho muitas funções e que nem sempre é possível desenvolver todas elas de forma perfeita e no tempo “ideal”. E que está tudo bem. Mas quando tenho prazo pra entregar algum trabalho, aí o surto é mais incontrolável. A construção deste relato foi assim: em algumas vezes Bruno estava com Benjamim; em outras eu escrevi amamentando e ouvindo músicas infantis; em muitos momentos, eu digitava com uma mão e com a outra desenhava pra ele em um papel (com a maternidade, também desenvolvemos diferentes habilidades e nos tornamos ambidestras, desenhistas, musicistas, etc.). Mas especialmente para este texto, não me senti frustrada ao passar por isso. Interessante que só o ato de escrever sobre, fez com que eu me sentisse acolhida, incluída e compreendida. Aprendi com o yoga que olhar para dentro é também um convite pra olhar para fora. E ao me permitir escrever este relato, permiti também o despertar de muitas percepções, o que foi fundamental para escutar, entender e sentir tudo o que tenho vivido. Penso que a maternidade real é como uma montanha russa e às vezes precisamos gritar. Precisamos nos sentir seguras, nos acolher, cuidar, respeitar nossos limites e fazer ouvir nossas narrativas. Esta oportunidade de ler umas às outras e dar voz às nossas realidades, traz um aconchego, a sensação de que não estamos sozinhas. Certamente vamos nos reconhecer em muitos relatos e seguiremos mais fortalecidas. 464 Maternidades Plurais 76 Matern’idade: tempo de produzir Considerações sobre o método de uma pesquisadora que virou mãe Juliana Ribeiro Marra1 Costumo pensar que o ambiente acadêmico ainda precisa de altas doses de decolonialidade para começar a dar conta da integração dos pilares básicos da universidade pública: pesquisa, ensino e extensão. É preciso não apenas ouvir, mas integrar diferentes visões de mundo a fim de construirmos o mundo que sonhamos, ou projetarmos “o mundo depois do fim do mundo”, ou apenas personificarmos o conceito que tanto adquiriu significado nesses tempos de pandemia, o novo normal. E, de fato, parece-nos que as questões que emergem como pontos de culminância e conflitos nesse momento giram em torno de uma polarização comunicativa até então intransponível na sociedade ocidental e, sobretudo, brasileira. Tendo a mesclar intencionalmente meus papeis às inúmeras identificações de que falamos nos Estudos Culturais. Gosto de entrelaçar imagens, histórias, tempos, espaços e pessoas. Desde o início, almejei alcançar o aspecto mais prático da minha profissão de historiadora e pesquisadora, por isso sempre estive também mais próxima do ensino, das artes e de uma abordagem antropológica. Entremeada pelo conhecimento construído entre algum tempo de formação acadêmica e os provenientes da experiência prática, venho conseguindo colorir o que à primeira vista pareceu-me acinzentado e fortificado demais. Ainda assim, sinto-me meio que uma alienígena na academia, frequentemente ironizada por “dar fé” a conhecimentos não científicos — e que sabemos, nem por isso menos conhecimento, menos “formas de entender o mundo” — como, por exemplo, o conhecimento astrológico. Deste modo, seria possível imaginar que minha identidade pesquisadora agregue todas as outras sem abalar-se. Ledo engano. Há coisas que são latentes e pulsantes demais para que passem sem representar um verdadeiro abalo sísmico em nossas existências. Para grande parte das pessoas, ter filhos é uma delas. A grande questão é que essa função representa, pelo menos por um período inicial, uma apropriação das nossas vidas. Quando temos uma filha ou um filho, todas outras coisas que fazemos tornam-se secundárias — as que queremos e também as que gostaríamos de manter, como nosso trabalho — e isso não se trata de força de expressão. As mulheres que se tornaram mães sabem 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1824517316117876 465 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que esse é um aprendizado de experiência, pois de fato só sabemos o que é ser mãe quando nos tornamos. Nesses termos, as funções mãe e pesquisadora podem soar como polos opostos de uma dicotomia inconciliável, mas suponho terem muito mais em comum do que possa parecer à primeira vista. Digo isso basicamente por dois motivos. Primeiro, porque ambas tratam-se de um método e, depois, por serem igualmente invisibilizadas, diminuídas, atividades tidas como “improdutivas” em nosso sistema capitalista e patriarcal, sobretudo por não envolver remuneração do trabalho, no caso das mães, e ocasionalmente no caso das pesquisadoras — como foi minha situação no primeiro ano do mestrado e também do doutorado. Dificilmente alguém discordaria que o trabalho de uma pesquisadora demanda um método. Seja ele qual for, em qualquer área, pois a ciência por si necessita de método. O que irá diferenciá-lo para que esteja em sintonia com o outro método em questão — mãe — será a forma como essa pesquisadora-mãe compreende e experimenta o método científico. Se esse for percebido por ela como um método aberto e processual, haverá sabores, fluidez e intensidade. Provavelmente haverá também dores e conflitos, mas não dúvidas e arrependimento, pois quando os caminhos com coração se sobrepõem aos domínios da razão, todo o corpo trabalha melhor, naquela perspectiva holística de integração corpo/mente. Nesse sentido, acredito novamente que dificilmente alguém discordaria que algo pode ser mais catalisador do amor em nossas vidas do que a chegada de uma filha ou de um filho. A ideia de que ser mãe é um método não foi definida por mim. Aqui busco uma referência, que me foi apresentada por minha irmã, também mãe-pesquisadora, e que incluí como anexo em minha dissertação (2016). Flavia Cera apresentou uma nota sobre o método antecedendo seu texto no Simpósio Performar a Literatura, em que assinalava, brevemente e poeticamente, esse “método-mãe” ao qual me refiro aqui2. Flavia, por sua vez, dialoga com o início do texto de outra pesquisadora-mãe, mostrando-nos como a questão posta aqui pode ser imperceptível perante à academia, mas não é, de maneira alguma, inexistente. Dessa forma, ela diz: Neste momento em que cuido de um bebê, momento em que leio, cozinho, brinco, dou colo, em que o ajudo a ler o mundo, em que imprimo letras para que ele possa ler, escrever e tramar suas letras, seus textos no mundo, o que outrora seria o inacabado ou imperfeito, ganha, para mim, o status radical de começo, de começo da vida, de começo do texto, começo de leitura. Então é a partir dessa experiência vital, desse lugar inédito, absolutamente atravessada pelo corpo, pela bagunça, choros, sorrisos, pelos ruídos de pura língua, pelos começos de palavras, pelo cansaço e pela alegria, por esse que veio de mim e é outro, desse ponto inquietante e êxtimo, dessa experiência que se escreve no meu corpo: só assim e com tudo isso poderei escrever algum texto (CERA, 2016). A nota de Flávia Cera foi publicada pela autora um mês antes da data da banca de defesa de minha dissertação, 27 de outubro de 2016. Minha filha estava então entre os oito e nove meses, mas 2 CERA, Flávia. Pequena nota sobre o método. 25 set 2016. Disponível em <https://voltarapartir.wordpress.com/2016/09/25/pequena-nota-sobre-o-metodo/>. Acesso: 30 jun 2020. 466 Maternidades Plurais para mim a relação entre a maternidade e a pesquisa já vinha sendo trabalhada há mais tempo, desde minha experiência de imersão no trabalho de campo na passagem de 2014 para 2015. Desde então vejo uma “mágica” nessa história que explorei um pouco no texto de minha dissertação. Cultivando e produzindo redes, relações e “visões de mundo”, como apresentei antes, passei a considerar que a anunciação da vinda da minha filha se deu naqueles dias de Folia de Reis e caminhadas musicais atrás da Estrela Guia. Por quê? Intuições, sintonias e sonhos. Ailton Krenak, atualmente talvez o mais importante intelectual indígena do Brasil, lançou seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” pouco antes da deflagração da pandemia de Covid-19. Não por menos, ele tem assumido um destacado papel nas mídias e redes sociais, espaço onde as vozes têm se encontrado, se questionado e estão se fazendo audíveis durante o período de isolamento social. A respeito dos sonhos, ele nos diz que: Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades 3. De fato, ter filhos não estava no meu leque “acordado” de possibilidades naquele momento. Eu havia conseguido minha bolsa de pesquisa da FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) há cerca de seis meses e apenas começara a me estruturar financeiramente. Porém, sempre me lembro de que, independente de toda a razão, todos os pensamentos cautelosos e planejados que controlavam minha mente, olhava ao meu redor, em meio à comunidade foliã da Cidade de Goiás, e meus olhos sempre pairavam nas crianças, bebês, se enchendo de lágrimas e comovendo-me, como nunca antes havia acontecido. Durante a viagem, eu e meu companheiro resolvemos nos casar. Ele vinha do interior, muito jovem, sem estudos, começava sua vida profissional trabalhando como auxiliar de cozinha no restaurante universitário da UFG. Bom, essa é a minha história mística. Depois, tudo se tornou bem mais prático e concreto, tudo se materializou. Um mês depois dessa jornada, eu acabei mesmo engravidando e foi assim que passei o segundo ano letivo do mestrado. Felizmente, praticamente já havia cumprido as disciplinas, restava somente uma para o segundo semestre, que negociei facilmente com a professora, embora houvesse a entrega do artigo prevista para o puerpério. Minha filha nasceu em 17 de novembro de 2015 e minha qualificação foi agendada para o dia 08 de dezembro. Exatamente três semanas depois da experiência de passar três dias em trabalho de parto, eu saí pela primeira vez de casa com minha filha recémnascida, para vaciná-la e qualificar-me. Naquele momento profundamente prazeroso de desenvolvimento da pesquisa, banca composta por professoras e professor muito queridos, muito apoio de minha orientadora (mãe-pesquisadora), 3 KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. p. 25. 467 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) minha filha e minha mãe, foi-me sugerido/solicitado que eu partisse, nos próximos dias para a segunda etapa do trabalho de campo no giro da folia da Cidade de Goiás. E foi assim, no primeiro dia de janeiro de 2016, parti novamente para a antiga capital de Goiás a fim de dar continuidade à minha pesquisa, dessa vez, porém, acompanhada por minha filha, meu esposo e minha mãe. Aproveitei que a folia girava madrugada adentro e emendei algumas noites sem dormir com a pequena, a qual estava com um mês e meio. Assim seguiu-se a jornada recém-mãe pesquisadora no mestrado. Com o pesado adendo de que, além de ter que produzir minha dissertação, a bolsa se encerrou em março, de maneira que os sete meses vindouros, até a defesa, eu era mãe, sem licença-maternidade, sem bolsa, e vivíamos da curta renda do meu esposo. Eu ainda não sei explicar muito bem como, mas eu consegui. Costumo brincar que minha dissertação foi psicografada, pois eu escrevia com uma fluidez que também não havia experimentado anteriormente. Não havia tempo para coisas como “travar a escrita” — devolução da bolsa de pesquisa era algo com a qual eu não gostaria de contar — ou procrastinação. Embora a dupla função fosse pesada, o prazo acadêmico foi cumprido e minha bebê teve suas necessidades atendidas, pois também as madrugadas em claro escrevendo eram as mesmas amamentando. Hoje, com quatro anos e meio, minha filha dança catira, a dança, manifestação da tradição caipira que pesquisei no mestrado. Mas, para além, ela sabe e questiona, assim como eu, o fato de as mulheres não dançarem catira. Tão miúda, ela sente na pele a diferenciação de gênero que oprime as mulheres em nossa sociedade (goiana) tão patriarcal. Observo isso e me farto, me satisfaço, “deu certo!”. Poderia contar muitas histórias sobre isso, mas não vem ao caso. O que vem é que minha pesquisa também deu certo, embora não tenha sido exatamente o que eu pensava — mas isso também acontece, senão com todas as pesquisadoras e pesquisadores, com a maioria com certeza. No entanto, não sou apenas eu quem digo isso, teve a banca, aquelas raras pessoas que costumam ler uma dissertação e, algum tempo depois, fui contatada pelo pessoal do Jornal UFG para fazer uma pauta sobre minha pesquisa, que foi também oferecida a outros jornais de Goiânia. A jornalista se interessou pelo tema em pesquisa no banco de teses da UFG e tomou conhecimento do meu trabalho, procurando minha orientadora para a pauta. O potencial de interesse amplo de minha pesquisa me deixou particularmente feliz. Fizemos uma entrevista que se tornou matérias nos jornais e, posteriormente, fui convidada a escrever um “diário de campo” para uma sessão específica do jornal UFG. Curiosamente, essa publicação saiu no último número impresso do jornal. Nela desenvolvi um breve texto sobre a experiência da pesquisa, no qual não pude deixar de mencionar, ao final, a identidade “mãe-pesquisadora” emergida durante a pesquisa4. Finalizado o mestrado, pensei em descansar um pouco, mas a vida prática não permitiria isso por muito tempo. De qualquer forma, decidi que não era o momento de emendar o doutorado. Apesar da reviravolta que começamos a vivenciar no Brasil após 2015, especialmente no campo da educação pública, ainda não imaginávamos o cenário catastrófico que vivenciamos hoje. Os concursos públicos 4 MARRA, Juliana R. Diário de campo - Catira: performance e tradição caipira. Jornal UFG, Ano XII - Nº 94 abril 2018. Disponível em <https://www.academia.edu/39328714/Catira_performance_e_tradi%C3%A7%C3%A3o_caipira> 468 Maternidades Plurais nas universidades ainda ocorriam normalmente. Foi então que entrei como professora substituta de História no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE/UFG) e uma nova guinada aconteceu em minha vida acadêmica, redefinindo e integrando meus caminhos. A experiência de ensino no CEPAE foi intensa e transformadora e, como a um casulo que se transmuta, provocou também dores e mortes no meu íntimo. Apesar da curta passagem pela escola, de lá eu saí, no entanto, multicolorida e leve, pronta para encarar a nova etapa que se delineava, o doutorado. Contudo, como já disse que o método não é linear, mas processual e multitemporal, me vi novamente na mesma situação tensa do período anterior e inicial do mestrado. Embora cada momento tivesse seus próprios desafios, era a retomada de um ciclo que eu vivenciara cinco anos antes. Com o diferencial de que em 2018, vivemos um clima político intenso e repleto de tensões sociais, e de que eu agora tinha uma filha. Havia muitos outros contratempos nessa fase que não cabem mencionar aqui, sob o risco de incorrer em um diário ao invés de um relato. Também tentando evitar a vitimização, cabe apenas registrar a dificuldade material pela qual eu e minha família passamos. Se por um lado isso nos fez ressignificar muitas coisas, por outro nos fez enxergar outras possibilidades para nossa vida, as que não imaginaríamos antes, senão como sonhos, e que se revelaram, com o passar do tempo, as melhores escolhas. Pelas razões mencionadas, não consegui me preparar bem para a etapa do processo seletivo que definiria a concessão das bolsas de pesquisa, eu achava que era a nota final do candidato que definiria isso, me confundi mesmo e me enrolei. Porém, passei. Eu também achava que muitos cenários de mundo, que hoje são concretos em nosso país, eram apenas “ilusões” passageiras. Daí para frente, me abstenho de maiores comentários, haja vista ser do conhecimento de todas e todos a realidade que estamos vivendo. Contudo, no tocante ao meu percurso acadêmico, assim como passei os seis primeiros meses do mestrado diante de imenso obstáculo financeiro, novamente não recebi bolsa de pesquisa no primeiro ano do doutorado. Apesar de ter planejado minha pós-graduação e minha vida com base nisso, passei todo 2019 trabalhando a aniquilação da expectativa que a bolsa poderia serme concedida, considerando o cenário político e educacional que se instaurou do Brasil. A título de comparação, apesar de todo o trauma que estamos vivenciando em 2020, sobretudo coletivo, ano passado foi tão duro que, em nível pessoal, foi mais difícil passar por ele, sobreviver e, especialmente, não abandonar o doutorado. Era complicado olhar para meus colegas, outros discentes do programa de pós-graduação, e perceber o quanto era injusto aquele sistema de “demanda social”. Quando observo minha trajetória percebo que, assim como em outras fases mais difíceis da pósgraduação, e ainda mais da maternidade, o que mais abalou minha estrutura emocional e familiar foi a escassez de recursos, a falta de acesso ao meu direito de me dedicar à minha pesquisa com a garantia de ter minhas necessidades básicas e de minha família atendidas. Esses foram os momentos mais caóticos, doloridos e decisivos. Decisivos porque foi aí que pude ter a certeza da firmeza do meu caminho, da minha história e sentir segurança em minhas escolhas, feitas, então, a partir do centro do meu ser, e não apenas em longas leituras e ponderações da minha mente. Minha filha me trouxe a clareza desse caminho e a experiência da maternidade me moldou outra, pesquisadora com novo método, em constante aprendizagem, inclusive de mim mesma. 469 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Esse ano, no entanto, reservava-nos mais surpresas do que poderíamos imaginar, literalmente, a todo o mundo. Nos dias em que o novo coronavírus chegou ao Brasil, uma nova portaria da Capes causou uma repercussão extremamente negativa ao propor a redistribuição de bolsas. Meu programa de pós-graduação seria duramente afetado e, nesse ínterim, tomei conhecimento de que, depois de entregar as pontas, minha bolsa tramitava entre a implementação ou não dessa medida. A bolsa de pesquisa saiu no início da pandemia de Covid-19, o que representou um esteio indescritível nessa fase tão difícil que vivemos em todas as esferas no Brasil. Também a essa altura, já estávamos inscritos nos programas de auxílio do governo federal, mas, por outro lado, tão logo foi decretado o isolamento social, meu companheiro, cuja renda nos mantinha até então, e que trabalha no setor do turismo, teve seu contrato suspenso e, posteriormente, encerrado. No início do isolamento social, vi vídeos de pessoas de países que haviam sido anteriormente afetados — Itália e outros países europeus — falando sobre “as fases” do isolamento. Refleti muito sobre isso na ocasião e acredito que passei realmente por vários momentos específicos, até chegarmos ao que estamos chamando de novo normal. E ele não é confortável. Nesse período inicial, por exemplo, relacionei a ideia de “em casa” com “enfim minha bolsa saiu” de forma apressada e supus que teria muito tempo para produzir, desenterrar, por exemplo, os inúmeros artigos que estão à espera de tempo e condições para serem revistos e publicados. Contudo, essa ilusão não perdurou muito, o “curto-circuito” veio ainda no primeiro mês. A realidade se mostraria bem mais dura, além de que sempre que um sistema para de funcionar, precisamos reiniciá-lo e, muitas vezes, reinstalá-lo. Livres de vírus e outros malwares. Para mim, duas coisas foram fundamentais para reexecutar minha programação. A primeira, com significado mais facilmente compreensível, foi um texto5 publicado no início da pandemia por uma pesquisadora com experiência em ambientes adversos. Ali ela dava de fato conselhos, no âmbito acadêmico, de como realizar essa reprogramação para poder abraçar o novo normal. Sua leitura confortou-me, na medida em que eu percebia que o curto era geral, atingia a todas e todos e fazia parte do processo. Por falar em processo, a outra coisa que tem me ajudado a reprogramar é ser mãe. Como já mencionei, essa metodologia não me abandona. Pelo fato de não ser dada, pronta, definida, de ser, em verdade, produzida a cada dia, a cada experiência, é — existe e está — uma estrutura fluida. Como na música dos Novos Baianos6, “Mãe é mar/Mares não, maré, água e terra”. É água e terra, crise que (re)estrutura e ensina o pensamento a funcionar, sob qualquer condição. Na metodologia da mãepesquisadora, as ideias jamais surgem e se concretizam de maneira linear, em linha evolutiva, assim como no desenvolvimento cognitivo das crianças. Pelo contrário, elas nos atravessam, encontram sorrisos, choros ou raiva e voltam, ou se vão... O pensamento se constitui por cima das interrupções, 5 AHMAD, Aisha. Quarentena: porque você deveria ignorar toda a pressão para ser produtivo agora. Uma pesquisadora com experiência em ambientes adversos dá conselhos aos acadêmicos ansiosos com a quebra de rotina causada pelo coronavírus. Trad. Renato Pincelli. 11 abr 2020. Disponível em <https://medium.com/@rntpincelli/quarentena-porque-vc-deveria-ignorar-toda-a-pressao-para-ser-produtivo-agora-3f4f0b8378ae>. Acesso: 30 jun 2020. 6 Música: Sorrir e cantar como Bahia. Álbum: Novos Bainos F. C., 1973. Composição: Galvão/Moraes Moreira. 470 Maternidades Plurais ele não as elimina. Nossos textos e nossos corpos são construídos na interseção entre a razão e a emoção, sendo essa última, locomotiva. Não estou querendo dizer que estamos preparadas para tudo ou que não estejamos sujeitas às mesmas dificuldades que afetam as pesquisadoras e pesquisadores que não vivenciam a experiência da maternidade. Pelo contrário, meu texto desenvolveu-se no sentido de evidenciar as grandes — e invisíveis — dificuldades da realidade de mães-pesquisadoras. Porém, eu acredito também que essa metodologia está em um ponto irredutível do feminino, ela é como uma clarificação e uma dádiva que recebemos ao adentrarmos esse espaço enquanto produzimos e criamos também nossas pesquisas, também fruto do nosso amor, parte de nós e, em algumas vezes, o sentido de nossas vidas. Buscando, finalmente, compreender como tudo isso se apresenta de maneira prática, destaco dois elementos que cabem observar. São elementos que estão “fora” de nós exatamente porque os imaginamos, produzimos e criamos. Fomos nós que demos formas a eles, os tornamos tangíveis: nossas filhas(os) e nossa pesquisa científica, dissertações e teses. Em relação às nossas filhas e aos nossos filhos, especialmente agora, durante a pandemia e o isolamento social, penso que passam a serem os primeiros com os quais o diálogo científico é estabelecido, dentro dessa condição outra da linguagem que defini aqui. Além disso, a educação emerge como o segundo pilar da produção do conhecimento acadêmico, o que se torna latente dentro de casa quando as crianças começam a adentrar a idade escolar. Durante o isolamento, viramos as próprias professoras. Tenho comigo a crença de que uma pessoa terá sempre certa vantagem por ter nascido filha de uma cientista ou, por ventura, de um cientista também. O conhecimento acadêmico é uma fonte inesgotável de sabedoria e os filhos terão acesso a ele pela metodologia aplicada de sua mãepesquisadora. Neste sentido, depois de aprender a dançar catira antes dos três anos de idade, minha filha agora passa longos períodos — em isolamento, inventando atividades — produzindo vídeos “instrutivos” para o YouTube. Trata-se de algo muito similar com o que pesquiso atualmente no doutorado, produção de vídeo por estudantes do ensino básico. Isso reforça minha ideia de que nossas crianças são interpeladas por nossas pesquisas e vice-versa. Neste momento tão crítico e específico, além do ambiente virtual, é nela que tenho a chance de observar e testar, imediatamente, hipóteses de minha pesquisa. O método replica a experiência, interna e externamente, e a construção do conhecimento que ocorre a partir dela. Assim como para qualquer outra profissão, a maternidade não pode mais ser vista como um obstáculo para as pesquisadoras e cientistas, uma interrupção no seu processo criativo ou produtivo. Ela é justamente o contrário e, em tempos cruciais, em que escolhas precisam ser levadas a cabo, é a academia que precisa aprender a receber melhor esse presente, que são suas mães-cientistas. Cabe também à comunidade científica refletir se estamos prontos para abraçar a diversidade em todas as formas que ela se apresenta ou quanto tempo ainda insistiremos na história (moribunda) de humanidade, sustentando a suposta unidade a custas de tantos silenciamentos. 471 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 77 Generatividade e eudaimogênese em tempos de pandemia Juliane Noack Napoles1 Patrícia Falasca2 Cheguei na Alemanha no início de fevereiro de 2020, com a ideia de, com o apoio da Juliane, escrever o meu pós-doutorado. Minha intenção era (e ainda é) a de explorar a temática da saúde da mulher, olhando para esse tema com um olhar eudaimogenético e buscando encontrar, na questão do feminino, como pensar as esferas que podem nos dar a sensação de que “demos certo” na vida e que nos encontramos em um estado de vida que está florescendo e sendo, portanto, agradável e fluida3. Conheço a Juliane há muitos anos e sempre me perguntei como ela conseguia segurar todas as bolinhas no intrincado malabarismo da vida acadêmica, com uma lista imensa de publicações significativas, três crianças, uma casa grande, um marido, e tudo o mais. Eu, no meu pequeno apartamento, nem sempre conseguia ter todo o pique e a disposição dela, mesmo sem ter filhos. Pouco depois de minha chegada aqui, a crise do Corona começou. As escolas e jardins de infância fecharam. Aí não pude mais me segurar: tive que dizer para a minha amiga e colega de trabalho que eu queria poder olhar o dia a dia dela pelo buraco da fechadura, para ver como tudo estava acontecendo ali, agora, com o mundo lá fora virado de ponta cabeça, com as aulas online, as orientações, os artigos, as crianças, o homeschooling, a casa, a comida. Com a vida. Este artigo caiu então como uma luva para podermos, juntas (você, leitora, e nós — Juliane e eu), olhar pelo buraco da fechadura e pensar algumas questões que nos são caras, como mulheres, mães, acadêmicas e cientistas. Antes de espiar, gostaríamos de comentar que a própria expressão “mães cientistas” carrega em si a junção de duas formas de generatividade4 — por um lado, a maternidade, o gerar biologicamente um filho e, por outro, a atividade acadêmica, científica, ou seja, o gerar intelectual. Considerando o 1 Dr., BTU Cottbus tes.cnpq.br/6139290912060879 2 – Senftenberg, Juliane.NoackNapoles@b-tu.de. Lattes: http://lat- Dr., BTU Cottbus – Senftenberg, falasca@b-tu.de. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1212726503568501 3 NOACK NAPOLES, J. Sozialpädagogik eudaimogenetisch denken. In Birgmeier, Bernd/Mührel, Eric/Winkler, Michael (Hrsg.): Sozialpädagogische SeitenSprünge: Einsichten von auβen, Aussichten von innen: Befunde und Visionen zur Sozialpädagogik. S. 186-190. Weinheim, Basel: Beltz Juventa, 2020. 4 ERIKSON, E. H. O ciclo de vida completo. Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, p. 59-60. 472 Maternidades Plurais pensamento de Erik H. Erikson (1902-1994), este texto é, então, uma reflexão sobre o fenômeno da generatividade à luz da confluência entre a maternidade e a vida acadêmica. Fazemos essa reflexão partindo de aspectos que se colocam diante de nós em uma realidade de pandemia mundial, pensando a partir do que podemos ver ao olhar pelo buraco da fechadura da casa onde mora uma família com uma mãe cientista, três crianças e um pai. Convidamos você para esta viagem, no tempo e no espaço, e para pensar este momento de tantas ressignificações, em tantos sentidos. Um olhar pelo buraco da fechadura São sete horas da manhã. O vigésimo terceiro dia sem jardim de infância e escola. Rapidamente, vou para a cozinha, faço um café e me sento no sofá com o meu — estrategicamente pequeno — laptop. O que eu faço primeiro? Minha colega da Áustria está esperando que eu envie para ela o artigo sobre antropologia da vida adulta que estamos escrevendo juntas. Além disso, há os muitos e-mails. Vou orientar a tese de mestrado sobre as mudanças sociais na esteira da crise dos refugiados e os desafios que elas trazem para o campo de Serviço Social? E a tese de Bacharelado sobre a mudança dos objetivos e métodos educativos, comparando diferentes gerações? Das formas mais autoritárias àquelas baseadas na negociação... Maaaaamãe... Eu me encolho. Minha filha Lilia, de três anos, acordou e está se aconchegando em mim no sofá. Lilia: Mamãe, você está trabalhando, né? Eu: Sim, Lilia. Lilia: Você trabalha no seu computador. Eu: Hmmmm. Lilia: Você precisa se concentrar bastante... Eu: Sim, Lilia. E eu consigo fazer isso muito melhor se você não conversar comigo. Lilia: Ah, mamãe, você é chata. E eu nem estou conversando com você! Então, me vem a ideia de que posso me beneficiar da lógica da minha filha de três anos para o meu artigo sobre antropologia da vida adulta, ao mesmo tempo em que consigo deixar de me sentir mal por de ser a mãe chata que não quer conversar com sua filha, só porque precisa trabalhar. Eu pergunto: Lilia, o que é um adulto? Lilia: Mamãe, por que você quer saber isso? 473 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Meu filho de 8 anos, Leandro, que, enquanto isso, acordou, se senta perto da gente. Eu: Isso me ajudaria muito no meu trabalho. Leandro também quer ajudar. Eu fico feliz. As crianças são conhecidas por serem ótimas filósofas e, se eu plagiar a sabedoria dos meus filhos no meu artigo, está tudo bem, já que, se eu não estivesse ocupada com eles o dia todo, teria tempo para pensar por mim mesma na antropologia do adulto. Eu: Então, crianças, eu preciso saber o que é um adulto. Lilia: Adultos são como você, Maaamaaãe. Eu: Mas como, exatamente? Leandro: Quem tem exatamente 18 anos ou mais que isso. Lilia: Adultos são como você, Mamaaaãe. Lilia e Leandro ao mesmo tempo: Agora a gente já te ajudou. Podemos tomar café da manhã? A gente está com fome. E depois podemos brincar juntos! A conversa acontece ao som do piano. Luisa, de 10 anos, também já acordou e está tocando Für Elise5 alta e intensamente. Nesse meio tempo, já são 8:30. Eu preparo o café da manhã. Lilia e Leandro brincam de Lego no quarto do Leandro e Luisa parece estar em seu quarto, ocupada com outras coisas. O café da manhã está pronto. As crianças estão em silêncio. Bem rapidinho, aproveito esse raro momento e pego mais um café para mim, me jogo no sofá e abro meu computador: sim, vou orientar o trabalho de mestrado. O de bacharelado também. Dou mais uma lida rápida no resumo para a conferência sobre empolgação — faz mesmo sentido falar sobre suas metáforas? Tarde demais. O prazo é amanhã… MAAAAAAMMMMMMAAAAÃE... com o susto, derramo um pouco de café quente na minha calça. Por sorte, não caiu no meu computador. Eu corro para o quarto do Leandro. Descalça. Agora eu que grito: MERRRRDDDAAAAA!... as pecinhas de Lego enfincaram nos meus pés. Lilia: Mamãe, não pode falar “merda”. Música do compositor Beethoven, composta em 1810 e conhecida, em português, como “Para Elisa”. Em alguns lugares do Brasil, descontraidamente, é especialmente conhecida como “a música do (caminhão de) gás”. Na Alemanha, é a “música do carro de sorvete”. 5 474 Maternidades Plurais Eu arranco as pecinhas de Lego das solas dos meus pés. O Leandro está morrendo de rir, deitado no chão. Contorcida de dor, eu pergunto: O que aconteceu? Lilia: A gente precisa da sua ajuda. A nave espacial é diferente. Leandro: É, a gente quer ver no seu celular como faz para montar. Eu: Por que vocês não perguntam para o papai? Ele também tem um celular! Lilia: Mamaaaaãe, ele não pode. O papai está dormindo. Luisa se junta a nós: Agora eu estou com muita fome, de verdade. Nós nos sentamos para tomar café da manhã. São 9:15. Aí a porta da cozinha se abre. As crianças gritam: PAPAAAAAII! Seu dorminhoco... Eu me levanto discretamente, vou andando casualmente para o sofá, pego o meu computador e desapareço bem rapidinho para o escritório. Quando as crianças terminam de tomar o café, começa a parte desafiadora: o homeschooling. Mais uma vez, preciso usar todo o meu poder de persuasão para fazer isso dar certo. Eu prefiro não pensar nisso por enquanto. Eu prefiro pensar em como vou continuar o artigo sobre a antropologia da vida adulta. Penso nas respostas dos meus filhos. Eu não esperava tanta precisão da parte deles. Tinha a esperança de que eles me contariam mais coisas e que eu, depois, poderia analisar o conteúdo do que eles disseram. Mas, provavelmente, a frase “adultos são como você, maaamaaãe” não trata de categorias, como a análise de conteúdo se propõe a fazer. Talvez ela trate, na verdade, de estruturas objetivas de significados que questão ligadas a essa expressão, como a hermenêutica objetiva propõe. Passos altos escada acima. As três crianças se colocam ao redor da minha escrivaninha. Eu ainda consigo guardar rapidamente meu pequeno computador e minhas listas de afazeres lotadas. Agora, a minha cadeira também está ocupada. Em pé, repasso a lição de alemão com a Luisa. Explico para o Leandro como somar números maiores que dez e procuro figuras na internet para a Lilia colorir. Finalmente, todos estão ocupados. Eu pego o pequeno livro sobre Identidade Cultural, que há dois meses eu preciso resenhar. Leio uma página. O que a autora quis dizer com a diferença entre valores e atitudes e sua capacidade de mudança? Leandro: Mamãe, você não está prestando atenção no que eu estou falando... Lilia: Meu desenho está pronto. Leandro: Eu falei primeiro. 475 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Luisa: O que é pretérito perfeito mesmo? Leandro: Oh saco. Eu estou falando. Lilia: Mamaaaaãe, olha como o meu desenho está lindo. Eu: GEEENNNNTEEEEE … Desde então, estamos há quase três meses em estado de emergência: Homeoffice, Homeschooling … home, home, home. Há um mês, pelo menos a Luisa e o Leandro vão para a escola em dois dias da semana, por quatro horas, nas quais a Lilia fica entediada até a morte e exige toda a minha atenção. Ainda bem que ela vai voltar, a partir de hoje, ao jardim de infância. Por isso mesmo eu consegui encontrar um tempinho para escrever para este empolgante projeto de livro. A Luisa vem para o andar de baixo. O Leandro já está comigo. Enquanto eu confiro as coisas de escola da Luisa, meu computador continua aberto. Ela começa a ler este texto. Luisa: O que é isso, mamãe? O que você está escrevendo aqui? Eu: É um texto para um livro sobre mães, que são pesquisadoras e que estão escrevendo sobre como estão se sentindo na crise do Corona. Vocês querem ouvir meu texto? Leandro: Não! Luisa: Sim! Eu: Leandro, então vá pra lá. Eu vou ler. Leandro: Então eu vou ficar. Eu: Um olhar pelo buraco da fechadura. São sete horas da manhã. O vigésimo terceiro dia sem jardim de infância e escola... As crianças morrem de rir. Elas querem que eu escreva mais e que, sobretudo, o texto fique ainda mais engraçado. Para mim, já está tudo engraçado o suficiente — talvez seja isso o que a Lilia quis dizer quando disse: Adultos são como você, mamaaãe. Em sua teoria psicossocial do desenvolvimento dos períodos da vida, Erikson vê a idade adulta como sendo composta por quatro estágios: a idade adulta jovem, a idade adulta, a idade adulta madura e a velhice6. Neste texto, vamos pensar na idade adulta, que corresponde à sétima fase no ciclo da vida e que é caracterizada pela crise entre generatividade e estagnação. Por generatividade, Erikson (1998) entende a “procriatividade, produtividade e criatividade e, portanto, a geração de novos seres, novos produtos, novas ideias” (p. 59). Como contraponto desse 6 ERIKSON, E. H. O ciclo de vida completo. Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. 476 Maternidades Plurais processo, temos a estagnação. Na idade adulta, esses dois polos se encaram — o que constitui a crise dessa fase da vida, cuja resolução se encontra em uma relação aceitável, tanto em um plano individual, quanto social de ambos os polos. Com isso em mente, pensamos aqui na maternidade e no trabalho acadêmico como pertencentes a um mesmo campo: o da generatividade. Sendo mulheres, geramos filhos, geramos vida. Sendo mulheres acadêmicas, geramos projetos, artigos, teses e dissertações. Parimos literal e metaforicamente. E encaramos o outro lado desse polo: a estagnação. Ser cientista e mãe, neste turbilhão de sentimentos, incertezas, ideias e desconcertos trazidos por uma pandemia mundial é, certamente, mais um grande desafio, não só pelos questionamentos e obstáculos palpáveis que se colocam a cada dia em nossa rotina, mas também pelo apelo psicológico que eles nos trazem. Em meio a tudo o que vem acontecendo, nós, mulheres, nos perguntamos, mais uma vez, qual é a nossa real posição na sociedade e o que nós esperamos de nós mesmas (e dos outros ao nosso redor) em nossas realidades, tão distintas entre si. Esta nova situação, que nos tirou de nossos relativos confortos e nos colocou frente a frente com a ainda tão jovem luta por igualdade, nos escancara, a cada dia, que, em um mundo onde teoricamente caminhamos rumo aos direitos iguais, alguns ainda têm mais direitos que outros. Alguns são mais iguais que outros. Nos mostra também que, quando a corda aperta, não importa muito em que posição ou que cultura homens e mulheres estão: as mulheres é que, no geral, voltam a assumir tarefas que, historicamente, são percebidas como femininas — somos nós que acabamos assumindo a cozinha, a casa, o homeschooling, as brigas das crianças, os cuidados, as noites com pouco ou nenhum sono para poder seguir, além de tudo isso, com os nossos trabalhos — científicos ou não. Em tempos de crise, vemos o quanto a própria generatividade envolvida em todos esses processos pode nos fazer tender ao outro lado: o da estagnação — quando todas as atividades de criação falham completamente. Então, estabilizar a relação entre a generatividade e a estagnação é possível a partir do momento em que se assume uma perspectiva eudaimogenética. Programaticamente, uma visão eudaimogenética pode ser alcançada da seguinte forma: afastando-se da administração, prevenção e solução de problemas e conflitos sociais e indo em direção à criação de uma vida que floresce, permitindo a surgimento de condições sociais e individuais necessárias para que essa vida ocorra. Assim, por eudaimogênese, entendemos uma perspectiva que se baseia em fenômenos sociais que buscam favorecer essa ideia de vida que floresce e que dá certo, tanto social, como pessoalmente. Nesse contexto, buscamos encontrar pistas sobre como lidar com comportamentos problemáticos. A pandemia mundial do Corona e todas as questões políticas e sociais que estão nela envolvidas nos colocaram, por um lado, frente a frente com desigualdades sociais muito mais profundas do que imaginávamos. Por outro lado, nos abriram a oportunidade de, em uma situação semelhante à de um teste laboratorial, levantar questões sociais e pessoais que, em nossa vida cotidiana, jamais poderiam ter sido trazidas à tona. Sem a mínima intenção de diminuir os contextos em que essa crise trouxe, de fato, sérias questões psicológicas ou mesmo de existência imediata (como as várias famílias que estão passando por sérias crises financeiras levantadas pela falta — de emprego, de comida, de apoio, de ajuda), o novo 477 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) vírus Corona, até certo ponto, tem nos obrigado a considerar uma mudança de perspectiva, especialmente em nível individual, a fim de lidar com a mudança da situação da vida, devido às medidas de contenção da pandemia, desenvolvendo, em paralelo, uma consciência do que contribui para a nossa percepção do que é, de fato, uma vida agradável, em níveis macro (social) e micro (individual). Olhando pelo buraco da fechadura da casa da Juliane, vemos que há, ali, para a mulher, mãe, cientista, o desafio de manter essas esferas da vida em relativa harmonia, mesmo saindo de toda a rotina que a “vida normal”, pré-Corona, favorecia. Não há mais a separação (aparente, nós bem o sabemos) entre o lugar e horário do trabalho, e o lugar e horário das crianças e da família. Não há mais aquela sensação de que as tarefas em casa estão, até certo ponto, em equilíbrio, nem que todas as demandas estão sendo cumpridas. Às vezes, não há mais muito espaço para aqueles cinco minutos de silêncio que a gente precisa ter todos os dias, segundo o que nos dizem os adeptos de uma filosofia mais zen, que se esforçam para ajudar outras pessoas a não surtar. Há momentos em que enlouquecer até parece ser algo palpável para muitas de nós. No entanto, há um lugar privilegiado para a reflexão sobre o que nos faz, no fim das contas, perceber que a nossa vida “deu certo”, que ela está florescendo. E sobre o que podemos fazer, no momento atual, dar realmente certo, no contexto em que temos em nossas mãos. A reflexão, o exame das variáveis, o olhar e a observação atentos, que fazem parte do nosso trabalho como pesquisadoras e cientistas, podem ser o nosso caminho para compreender e extrapolar o que esse novo desafio nos traz, em amplos e variados aspectos. Com isso, vemos que, apesar estarmos novamente lidando com e sendo bombardeadas por todas as injustiças baseadas em questões de gênero, o trabalho acadêmico, científico e em universidades ainda é uma atividade muito privilegiada, tanto por ser uma ocupação, em grande parte, autodeterminada, quanto por apresentar um nível relativamente baixo de alienação de si mesmo — o que, em última análise, pode ser a nossa tábua de salvação no contexto da pandemia. Se retomarmos a ideia de que a maternidade e a atividade cientifico-acadêmica são atividades baseadas em aspectos da generatividade, ou seja, da criação e da criatividade, em variáveis níveis e em uma gama de perspectivas, vemos que o prazer em realizar tanto um quanto o outro papel ligados à nossa vida adulta (“adultos são como você, mamaaaãe”) reside na busca por um significado real para eles na nossa própria existência — como mulheres, mães, adultas, cientistas, acadêmicas, donas de casa, professoras, etc. Assim, essa forma de criatividade, ou seja, de generatividade, e uma relação majoritariamente pacífica na tentativa de manter as bolinhas de malabares no ar, “só é possível se a carga de trabalho se tornar um hábito, se nenhum trabalho parecer desconfortável assim que tiver algum significado” 7. Nesse ponto, podemos substituir a palavra “trabalho” por — ou, melhor que isso, unir a ela — a palavra “maternidade”, para ser possível ver sua relação no plano da generatividade e para poder buscar, assim, sair do lado da estagnação, que muitas vezes nos tem acometido em meio aos acontecimentos do mundo, das nossas vidas e dos nossos trabalhos. 7 MAKARENKO, A. S. Werke. Band IV. Berlin: Volk und Wissen Volkseigener Verlag, 1958. (Tradução nossa, livre). 478 Maternidades Plurais Assim, sem a intenção de florear ou apagar os desafios trazidos pela pandemia, que são reais e que devem ser cuidadosamente analisados e levados em consideração, podemos buscar os aspectos que, em meio a essa nova situação, nos tragam sentidos e percepções criativas que, muitas vezes, nos pareciam impossíveis de alcançar (ou mesmo de cogitar considerar). Podemos aproveitar o lugar privilegiado que, com muita luta, temos ocupado no campo científico-acadêmico (vejam: as mulheres só começaram a ser aceitas em Universidades, tanto na Alemanha quanto no Brasil, há menos de 130 anos — como alunas...). Podemos nos esforçar no sentido de trazer os afazeres inerentes à nossa vida adulta para o lado da significação plena, do hábito e do conforto, na medida do possível, dentro de nossas realidades, considerando os múltiplos e variados contextos em que nos encontramos. E este é, provavelmente, é o ponto no qual convergem a maternidade e a ciência. E, provavelmente, é neste ponto que a ambivalência inerente à obrigação irrevogável é superada — seja na pandemia ou não. 479 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 78 Entre o coletivo e o individual: escritas da vivência de uma jovem, mãe e pesquisadora frente ao isolamento social/quarentena Kamila Eulalio Abreu1 Como cheguei até aqui “Minha escrita é profundamente marcada por minha condição feminina e pela minha negritude.” (Conceição Evaristo.) Muitas vezes, quando se está na “Academia” fica difícil se desvencilhar de todo o discurso próprio dela, além dos paradigmas de pesquisa e metodologias para produções. Estou na universidade desde os 18 anos de idade e aos poucos fui aprendendo e adquirindo o ethos2 que a Universidade exige. No ethos que tive que adquirir destaco, como exemplo, um habito de leitura intensificado, onde se inserem “normas cultas” que ficam implícitas quando se está dentro de um espaço tão elitizado quanto uma Universidade Pública. Não irei me estender sobre a minha entrada na Universidade, pois esse é um longo assunto e que ainda gera muitos outros paralelos. Mas, para contextualizar, entrei na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) no ano de 2015. Acredito ser importante salientar que acessei à Faculdade de Ciências Sociais por meio de ações afirmativas (cotas) e que recebi bolsa de permanência durante todo o meu período de graduação, tendo passado apenas os 2 primeiros meses da graduação sem um auxílio financeiro. Gosto sempre de mencionar sobre essas questões, pois acredito que 1 Graduada em Licenciatura em Ciências Sociais. Mestranda Em Políticas, História e Cultura em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9268590580350879 “O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente.” Trago então a noção de habitus, para explicar que é através do ethos que as pessoas conseguem adquirir o habitus dentro da sociedade. (CATANI, Afrânio Mendes et al. Vocabulário Bourdieu. Wacquant, Loïc “Habitus”. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.p.214) 2 480 Maternidades Plurais minha entrada foi possibilitada por Políticas Públicas de ampliação do acesso ao Ensino Superior que ocorreram entre os anos de 2003 e 2016. Tais políticas, como a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação das Universidades Federais (REUNI)3, Programa Universidade para todos (PROUNI)4, Programa de Estimulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES) 5, Sistema de Seleção Unificada (SISU)6, Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) 7, Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES)8 e a Lei de cotas9, possibilitaram a entrada de milhares de jovens das classes mais baixas dentro das Universidades públicas. Entretanto, não estou aqui para falar mais do mesmo, sabemos que essa entrada ainda é falha e que muitos jovens brasileiros não conseguem acessar tal espaço. Meu objetivo com este artigo é trazer como minha pesquisa e a minha permanência na Universidade se unem em tempos de Pandemia e Isolamento Social e tal união se tornou ainda mais complexa. Pesquiso sobre as formas de acesso e permanência que as jovens mães recorrem para entrar e prosseguir na graduação. A partir do referencial consultado e de minha experiência pessoal é possível afirmar que a entrada na graduação é marcada por muita luta e esforço, no caso de jovens que já entram sendo mães, muitas vezes é marcado por julgamentos machistas que querem cercear o lugar da mãe ao trabalho e ao lar, invisibilizando o direito dessas mulheres de poderem estudar. Por outro lado, quando tais jovens engravidam durante a graduação, além do já mencionado, elas sofrem com o problema do retorno a Universidade após a licença maternidade. No meu caso, passei pelo segundo processo. Retornar a universidade após ter dado à luz a minha filha foi um processo complexo, pois dependia de um combinado com o progenitor, que foi desfeito. Assim, tive que passar a levá-la comigo para as aulas, até conseguir uma creche municipal para ela. Na época, morava em Ramos e a creche dela era em Copacabana, então fazia o percurso Ramos-Copacabana-Urca todos os dias. Após alguns acontecimentos voltei a morar em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, que ficava cerca de 2h da Universidade. Tais questões se intensificaram muito ao final da graduação e me fizeram questionar como as outras mulheres, que assim como eu eram mães, faziam para não abandonar a faculdade, vontade que tive durante muitos momentos. Fiz um trabalho de conclusão de curso voltado para a área de Sociologia da Educação com essa temática e escrevi um projeto para o mestrado em Educação também 3 Decreto nº 6.096 de 24 de abril de 2007. 4 Lei nº11.096 de 13 de janeiro de 2005. 5 Lei nº 12.688 de 18 de julho de 2012. 6 Política criada pelo Ministério da Educação em 2010 com o objetivo de substituir os vestibulares tradicionalmente proporcionados pelas universidades pelos país. 7 Lei nº10.260 de 12 de julho de 2001. 8 Decreto nº 7.234 de 19 de julho de 2010. 9 Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012. 481 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com essa discussão. Aos poucos, meu trabalho se voltou para como a Universidade, no caso as Próreitorias de Assistência Estudantil, nos setores de assistência social e que são os que mais tem contato com as jovens mães, atendem e procuram auxiliar a essas mulheres em questões de permanência. Quando a pandemia começou eu estava nos prazos de me qualificar10. Que, diante te tantas incertezas, ainda não ocorreu. Ao mesmo tempo em que eu ficava angustiada com tais situações, tentava me concentrar em realizar atividades físicas e manter a rotina que a escola da minha filha orientava. Com a constante extensão da quarentena, toda a rotina que eu havia me proposto no início do ano, como a entrada na academia para realizar exercícios físicos, levar minha filha para escola todos os dias e buscar (algo que não era possível no ano anterior pois tinhas muitas aulas), as sessões presenciais de terapia e as idas à psiquiatra, foi interrompida. Meus dois dias sozinha a cada duas semanas, aos finais de semana quando o progenitor ia buscar minha filha. Também foram interrompidos. Covid-19 e cuidado: questões de classe e raça, separações e isolamento “Não acredito que seja saudável escolher uma luta e dizer que é mais importante do que outra, mas sim, em reconhecer como as diferentes lutas se conectam” – Angela Davis. As questões que antes eram tão importantes foram tomadas por uma onda de medo e solidão. O medo constante de pegar o Coronavírus e o principal, o de passar para as pessoas que moram comigo, era algo impossível de descrever. Faço parte daquele grupo de risco, pois possuo doença crônica, assim como todas as cinco pessoas que moram na minha casa. Logo, eu, como a mais nova e ao mesmo tempo maior de idade, sou basicamente a única a sair de casa. Minha avó materna sai de casa apenas para ir ao mercado, que ela se recusa a deixar de ir, minha mãe fica em casa junto com minha filha e irmã mais nova. Ao mesmo tempo em que tentamos seguir os protocolos de isolamentos sociais, somos rodeadas de pessoas que não fazem questão de seguir tais procedimentos e esnobam a existência do vírus. No centro da cidade onde eu moro, pessoas são constantemente vistas em aglomeração, não utilizando mascaras de proteção e lojas funcionando na irregularidade. Essas situações ocorrem mesmo no momento em que o Brasil já tem 51.271 mortes11 confirmadas devido a Covid-19. Apenas recentemente, o Primeiro Hospital Federal de Campanha foi inaugurado no país, no dia 5 de junho em Goiás12, quase 4 meses após o primeiro caso de Coronavírus ter sido confirmado no 10 Processo em qual o estudante de Mestrado ou Doutorado passa por uma avaliação preliminar, para verificação do trabalho realizado até o momento. 11 Dados retirados do site do Governo Federal para boletim diário sobre a Pandemia. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso: 23 jun 2020, com atualização do dia 22 jun 2020. 12 Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/06/05/bolsonaro-inaugura-em-goias-o-primeiro-hospital-de-campanha-federal.ghtml. Acesso: 23 jun 2020. 482 Maternidades Plurais Brasil13. No entanto, é preciso salientar que o Centro-Oeste, até o momento possuí cerca de 66 mil casos confirmados, sendo a segunda menor região do país com casos ficando atrás só da Região Sul com 52 mil casos. Em compensação, as Regiões Sudeste e Nordeste possuem respectivamente 384.247 mil e 384.892 mil casos confirmados14. Outro fato alarmante é a incidência de aumento de casos entre os negros no país. Sabemos que, historicamente, os negros são uma população que vem sendo excluída nos espaços sociais e deixada à mercê de sua própria sorte, como vem ocorrendo desde o “fim da escravidão”. Dados da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz)15, já mostravam que no início de maio, as mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) eram 5 vezes maior em negros. O mesmo estudo mostra que no Estado do Rio de Janeiro, a morte por Coronavírus é muito menor em bairros que a média de moradores negros é menor. Enquanto em bairros que a média de moradores negros a é maior, as mortes são ainda maiores. Pensando transversalmente e intersseccionalmente, os bairros citados pela pesquisa são também os com maiores índices de pobreza no Munícipio do Rio. Não à toa os pobres e negros tenham sido os mais atingidos por essa pandemia. Além da questão da desigualdade social que já é intrínseca no nosso país, que já causa a morte de milhares de pobres e negros, podemos pensar que as filas de desemprego que antes da pandemia já eram enormes, aumentaram com o fechamento dos comércios e acirramento da quarentena. Vivemos agora um processo de reabertura, onde cada munícipio vem adotando suas próprias práticas para tal processo, mas que, ao mesmo tempo, acontecem enquanto as mortes diárias não param de crescer. De uma maneira subjetiva, conciliar o bombardeio constante de informações como as que já citei acima e ainda dar conta de cuidar de sua família, trabalho e estudo pode ser enlouquecedor. Cada vez que piso fora de casa tenho o medo de trazer o vírus ao retornar. De alguma forma, mesmo com todos os procedimentos higiênicos e de proteção posso ter adquirido o vírus. Na verdade, como grande parte da população que está em subnotificação, eu acredito ter adquirido o vírus, passei pelo processo de isolamento e tomei os medicamentos recomendados pelos médicos. E fiquei 14 dias isolada da minha família dentro da mesma casa. O desespero de estar com a doença e não saber realmente o que se tem é indescritível, pois os exames para comprovar se tive ou não custam caro e simplesmente não são uma prioridade no atual momento. Parece complexo escrever isso, mas como se trata de um artigo voltado para a vivência de mães durante essa Pandemia, acredito ser interessante pontuar que nós mães, principalmente nós mães solos temos uma lista grande de quais são as nossas prioridades. E entre comprar comida e realizar um exame, logicamente irei ficar com a primeira opção. 13 Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-denovo-coronavirus. Acesso: 23 jun 2020. 14 Dados retirados do site do Governo Federal para boletim diário sobre a Pandemia. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso: 23 jun 2020, com atualização do dia 22 jun 2020. 15 Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48879. Acesso: 23 jun 2020. 483 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Voltando á questão do Isolamento, acredito ter sido um dos momentos mais complexos da minha vivência materna. Ao mesmo tempo em que nos primeiros dias eu me sentia tão mal que não conseguia nem levantar da cama e precisava de cuidados de outras pessoas, minha filha exigia uma atenção e cuidado também grande16. A Maternidade não vai embora de você após a maioridade de seu filho. Ela continua. Você continua sendo mãe, mesmo não tendo de lidar com a pressão de “criar”. Em situações como essa, ela se intensifica novamente e você passa por toda a questão relativa a cuidado, a carinho e proteção que antes haviam sido deixadas em um subconsciente. Ao mesmo tempo, ser a pessoa cuidada não é algo que estou acostumada há algum tempo. Me senti muitas vezes incomodada com o fato de estar sobrecarregando a minha mãe. Ao mesmo tempo, culpada por não saber como tinha contraído a doença, mesmo com todos os cuidados que havia tomado. A culpa materna é algo já estudado por diversas autoras e autores, e em mim recaiu tanto pelo fato de estar sobrecarregando minha mãe com cuidados comigo, quanto pelo fato de não poder cuidar da minha filha. Chorei todas as noites antes de ir dormir, ouvindo a chorar da sala porque queria me ver. Uns dias antes de acabar meu isolamento, minha filha ficou com uma febre muito alta, foi medicada pela médica dela em uma consulta online e ainda assim não deixou de se sentir mal. Só após eu pegá-la no colo que a febre baixou. Nos últimos dias fizemos uma sessão de cinema, ela deitada no chão de um lado de fora da porta do nosso quarto e eu do lado de dentro. Assistimos dois filmes separadas por uma parede e ao mesmo tempo nos sentindo mais conectadas do que estivemos durante os dez dias que haviam se passado. Recuperação e a volta às atividades Os fatos narrados dentro desse artigo, não desejam mostrar mais uma história de quem conseguiu sobreviver ao pegar essa doença, isso levando em consideração de que eu tenha realmente pegado, já que, como contei acima, não consegui fazer o teste na rede pública e nem ao menos na rede privada, mas, sim trazer como as diferenças que me constituem singular (ser mulher, negra, periférica, mãe e pesquisadora) se intensificam, assim como se intensificam na vida de outras várias mulheres. Mesmo sendo experiências individuais, acredito que tais sentimentos aqui narrados são recorrentes em muitas mulheres e por isso, devem ser explicitados. Após ter ficado doente e me recuperado, tentei retomar a minha vida “normal” dentro da quarentena. Voltei a realizar pesquisas dentro da minha área e trabalhar em um projeto, de ler apenas autores negros durante a quarentena. Comecei minha busca por textos que nunca tinha lido e por 16 Minha irmã mais nova também teve os sintomas e ficou em isolamento logo 3 dias após eu ter tido os primeiros sintomas, também foi levada ao médico e necessitou de cuidados da minha mãe. Ela e minha mãe que dividem o mesmo quarto ficaram separadas e minha mãe teve que dormir na sala juntamente com a minha filha por 2 semanas. Acredito que ainda tivemos sorte, pois nossos sintomas foram intensos nos 4 primeiros dias e depois se suavizaram, ficando apenas a dor de cabeça, febre ocasional e a falta de paladar e olfato. Embora, a situação tenha sido “leve” e não precisarmos recorrer à internação, a pressão que foi posta para minha mãe de ter duas filhas nessa situação era desgastante e preocupante. 484 Maternidades Plurais conta das atividades da faculdade, do mestrado e da maternidade nunca tive tempo e sempre fiquei adiando. Já li textos de Bell Hooks, Angela Davis, Conceição Evaristo, Franz Fanon, entre outras autoras e autores negros. Outro investimento que realizei foi utilizar meu tempo para fazer pequenas reformas no meu quarto e tornar um lugar mais confortável para meus estudos. Criei uma estante com caixotes que recolhi do lixo, usei tintas que já tinham em casa para pintar o quarto e um móvel. E entre erros e acertos dei para mim e minha filha um quarto mais bonito. Gostaria de saber como finalizar esse relato, mas, com toda a conjuntura que estamos vivendo acho complexo dar uma conclusão, queria poder dizer que vai ficar tudo bem e que iremos todos conseguir voltar à normalidade. Mas não acredito ser possível, tivemos muitas perdas, tivemos muitos desafios e lutas diárias. Sinceramente, não sei bem como vai ser explicar para minha filha que ela perdeu familiares e amigos para essa doença e que tudo poderia ter sido tratado de forma diferente, como mostram diversas experiências de outros países. Não sei bem, como iremos todos continuar após essa quarentena, que em muitos lugares vem chegando ao fim, mas que no Brasil não está nem perto de acabar porque acredito que ela nem ao menos começou para muitas pessoas. Não sei dizer se um dia irei conseguir lagar o procedimento que é lavar todas as coisas após chegar do mercado ou de qualquer outra compra. Como bem diz uma amiga: “Nunca imaginei ter que lavar um saco de batata palha”. Não sei como as coisas serão. Só sei que iremos continuar aqui lutando por um mundo mais justo. Por um lugar onde as mulheres e, principalmente, as mães sejam ouvidas e não tratadas como apenas alguém que deve apenas cuidar de um outro. Parafraseando uma querida professora, chamada Regina Novaes: “Nada será como antes”. E disso podemos ter certeza. 485 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 79 A conquista que somos: reflexões sobre a maternidade e a vida acadêmica durante a pandemia Kenia Gusmão Medeiros1 As escritas de si, ou para ressignificar o termo de “escrevivência” de Conceição Evaristo, não são muito comuns para quem está habituado aos modelos científicos que possuem outras regras e métodos. A busca da suposta imparcialidade na qual alguns ainda acreditam, não me afeta, penso que existe uma distinção entre a fundamentação científica metodológica e uma neutralidade que só seria possível com a absurda ausência do pesquisador. Então, acredito que escrever, mesmo que com métodos e rigores, constitui também o ato em que se assume uma posição política sobre algo. Mas mesmo com os lugares de fala e de dor que a escrita acadêmica pode guardar, a escrita de si traz uma liberdade com a qual, uma historiadora como eu, sempre comprometida com fontes por dever do ofício, sente quase como uma vertigem, daquelas que temos quando olhamos para baixo de uma altura que impõe perigo. Desse modo, minhas palavras nesse texto são sobre experiências do cotidiano, dimensão temporal na qual tenho minha maior sensação de segurança e que com a pandemia foi transformada. A maternidade significa coisas muito diferentes para cada mulher. Mesmo para uma mesma mulher que viva essa experiência mais de uma vez, ela pode ter sentidos distintos. Fui mãe aos 24. Não era meu sonho, não foi planejado. Não gostei de estar grávida. Não me senti bonita. Não me senti feliz. Não tirei fotos para guardar. Me sentia confusa e com um desconforto físico que me consumia. Minha filha nasceu exatamente às 10 e 10 do dia 10 de maio de 2010, demorou chorar, parecia estar dormindo. Admiro e respeito quem tem coragem para partos naturais. Eu optei por uma cesariana e sei que foi a escolha certa pra mim naquele momento. Quando ela chorou, eu chorei também e senti naquele instante que meu mundo havia se transformado. Depois que a gente se torna mãe, algumas pessoas e, às vezes, até a gente mesmo vai se esquecendo do que já éramos antes e do que ainda podemos vir a ser. É normal que a gente passe a organizar nossa vida em função das necessidades e do cuidado com a criança, mas ainda assim, continuamos sendo muitas outras coisas além de mães. Somos trabalhadoras de diversas áreas, somos companheiras, vizinhas, amigas, filhas, amantes, colegas, chefes, autônomas, donas de casa e em todas 1 Doutora em História. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1047083335922979 486 Maternidades Plurais essas atividades, não deixamos de ser mães nem por um segundo. Isso não nos diminui competência. Mas isso significa que temos que nos organizar de maneira específica. Durante minha defesa de dissertação de mestrado em 2011, eu o fiz com a Malú presente e, em alguns momentos, amamentei enquanto falava. Muitos eventos acadêmicos, fraldas trocadas, dentes nascidos, joelhos ralados, artigos publicados depois, defendi minha tese de doutorado, ela estava lá novamente. Com nove anos foi mais tranquilo, ela já tem alguma experiência em bancas. Ainda assim, em determinado momento, quando fizemos uma pausa para um café e ela ouviu meu orientador dizendo que seriam dez minutos, ela começou a chorar e falou em altíssimo e bom som: “Eu esperei esse tempo todo dessa falação pra ter só dez minutos de recreio? Como vou comprar meu lanche?”. Enfim, as maternidades e seus cotidianos são muitos e diversos mesmo para uma mãe que desempenha atividades acadêmicas, mas certamente todas nós temos muitas histórias dessa combinação que faz parte do que somos. Assim como outras mães professoras e pesquisadoras, eu já venho desde que minha filha nasceu me equilibrando entre oferecer os cuidados e a atenção de que ela precisa e o meu trabalho. No doutorado eu via possibilidades de bolsa sanduíche como quem vê algo bonito e absurdamente distante do que eu poderia. Também olhei ao longo dos anos, muitas chamadas para as quais gostaria de escrever, mas sabia que não tinha tempo. Infelizmente perdi muitas apresentações escolares nos últimos anos, pois trabalhei há 300 km de casa e nem sempre estava com ela no dia certo. Nesses dias de isolamento social pela pandemia tenho lido, escrito, participado e eventos online entre a produção milhares de lanches ao dia e o desespero por ter que ajudar nos deveres enviados pela escola. Eu não me lembro mais as regras das divisões por dois números, mas infelizmente ser de humanas, nesse caso não me salva desse reencontro. No meu caso, minha produtividade com a pandemia não foi drasticamente alterada por questões de tempo ou de esgotamento pelos novos hábitos. De alguma maneira que fui me adaptando e como venho fazendo desde que fui mãe, alguns dias as coisas dão certo, em outro nem tanto. Um fato, entretanto, destaca-se nessa nova dimensão do dia-a-dia. Há cinco anos eu tentava redistribuição para o instituto federal da minha cidade, já até havia iniciado alguns processos. Em 2017 um deles chegou até a fase final e então foi suspenso. Quando começou a pandemia eu estava novamente tentando uma redistribuição. Dessa vez tudo parecia que ia dar certo, com o processo tramitando com rapidez, foi para o MEC e aí veio a pandemia. Pensei que ia ser interrompido, mas para minha surpresa houve continuidade e no meio da pandemia saiu minha sonhada redistribuição. O dia em que a portaria saiu foi diferente de tudo o que eu tinha imaginado nesses cinco anos, ainda sim o olhar incrédulo e o abraço apertado da Malú perguntando: “Então você não vai mais ficar longe toda semana, mãe?”. Como foi bom responder a ela que não, eu não ia mais estar ausente toda semana. Eu não ia mais dar boa noite pelo telefone. Eu não sairia mais de madrugada e passaria dias fora até voltar cansada demais para brincar com ela. Portaria publicada, família feliz. Mas com a pandemia o calendário está suspenso, decisão acertada dadas as graves circunstâncias. Agora trabalho numa instituição na qual nunca pude entrar como professora. Tenho alunos que ainda não vi. Colegas que não conheço e que me cordialmente me 487 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) enviam e-mails com informes sobre os quais pouco tenho a acrescentar devido ao meu desconhecimento da realidade prática do campus. Continuei com minhas atividades de pesquisa. Estou organizando um dossiê para uma revista em parceria com duas amigas e escrevendo, na medida do possível, para outros projetos. Fazendo alguns cursos, vendo algumas lives, vivendo as cotidianidades pandêmico-acadêmicas. Eu havia terminado meu doutorado em abril do ano passado. Doutoramento marcado por um divórcio, três mudanças de cidade, a descoberta de uma doença crônica, um novo casamento e uma depressão. Poucos meses após o término fui afastada do trabalho por laudo psiquiátrico. Acabou não sendo a tese que eu havia sonhado, mas ela foi se transformando comigo e eu gosto dela. Antes da pandemia, recebi algumas propostas para publicação e aceitei uma delas. E na pandemia foi publicado meu primeiro livro, a mesma tese que foi mandada ao repositório institucional, mas com alguns acréscimos e correções que somente o tempo permite que façamos. Logo após a defesa eu entendia que deveria rever e mudar algumas coisas, mas ao entrar no texto ele parecia escuro, mesmo em seus percursos conhecidos pra mim. O livro foi quase um acerto de contas comigo mesma e com tudo o que não pude fazer naquele tempo em que eu estava automatizada por prazos em todos os lugares que eu existia. Mas pra acabar essa história do livro, preciso abrir espaço para uma breve digressão. Antes de tratar com a editora, escrevi um capítulo publicado num livro organizado pelas profas. Ana Carolina Eiras Coelho Soares e Jaqueline M. Zarbato. Nesse livro, a Ana colocou como capa um desenho da sua filha, achei uma ideia linda, o desenho de uma criança estampando aquele trabalho. E foi então, que pedi à Malú uma capa. Expliquei o tema da tese e ela captou bem os sentidos. E assim ela desenhou uma pessoa num barco no mar com a lua ao fundo para a capa do meu livro À DERIVA: temporalidades, história e filosofia em Paulinho da Viola. Livro publicado, a capa foi imediato sucesso entre os amigos e colegas nas redes sociais, muitos brincaram que a pesquisa tinha que estar muito boa para corresponder às expectativas geradas pela ilustração. Ela ficou extremamente feliz e vaidosa. Reclamou de ter foto minha e não ter dela na orelha do livro. No meio da pandemia, ao publicar esse livro que foi escrito em condições difíceis, percebi como a maternidade me fortalece, me inspira, me acrescenta enquanto mulher produtora de saberes. Não acredito que toda mulher precise ou deva ser mãe, essa é uma escolha pessoal e qualquer opção deve ser respeitada. Mas sobre mim, posso afirmar que a maternidade não me faz uma pesquisadora melhor ou pior, mas me faz trazer para o que produzo, o meu local de fala e resistência. A capa é a marca da posição social e política de uma pesquisadora que realizou este trabalho sendo mãe a cada dia. A capa é um presente meu para Malú e dela pra mim. É ainda um presente de nós duas para as mães e suas filhas e filhos que resistem entre desenhos e produções para abastecer a plataforma Lattes. Não romantizo a maternidade. Há dias e noites bem difíceis. Há escolhas e nelas o que você realmente gostaria às vezes se torna último critério. A vida acadêmica por sua vez, costuma ter muitos dias de esforço, dificuldades e alguns poucos de glória. Defendo, contudo, que essa condição precisa ser cada vez mais entendida, respeitada e pesquisada enquanto condição social que transforma, mas que infere além de possíveis adequações e dificuldades, um lugar de observação que pode também ser benéfico para a construção científica, entendendo que toda ciência em uma de suas atribuições 488 Maternidades Plurais mais importantes, deve responder às demandas por melhorias da e para a sociedade. Os sujeitos homem, mulher, branco, negro, indígena e as especificidades de suas contribuições científicas a partir de seus locais de fala e vivência já são debatidos e considerados, começamos recentemente a perceber uma proliferação de olhares e análises para as identidades das mães e isso é animador. Dentre as questões que especialmente nós pesquisadores das áreas de humanas podemos tirar desse período de tanta dificuldade e preocupação, é a necessidade de repensarmos padrões de normalidade cotidiana nas relações sociais, de trabalho e afetivas. Nessa reflexão, as condições da maternidade entrecruzadas com outros papéis sociais, como estudante, professora, pesquisadora, trabalhadora, dona de casa, esposa, colega, precisam ser observadas com um olhar mais detido. A maternidade apesar de em alguns casos ser também um fato biológico, é indiscutivelmente uma condição social atravessada por relações de poder, dominação e discriminação. Ela precisa estar presente na academia como objeto de estudo, mas também no olhar de pesquisadoras que tenham essa vivência. Nesse mar agitado e repleto de incertezas no qual se transformaram nossas vidas, ao escrever este texto, parei para refletir sobre os sentidos que transbordam em tantas mulheres, cientistas e mães, com as quais tenho dividido caminhos acadêmicos. Em tantas diferenças que fazem parte de cada uma de nós, nossa presença na produção científica e acadêmica marcam uma conquista de lutas de outras que vieram antes de nós. Nossas muitas cargas identitárias e trajetórias profissionais que coexistem com nossa maternidade reforçam que essas são hoje escolhas possíveis, resultados de uma luta a ser sempre lembrada, celebrada e renovada. Construindo essa reflexão que envolve o tema proposto, conversas e vivências pessoais recentes, entendo que estou onde devo estar. Atuo numa rede que atende pessoas distintas em várias modalidades e níveis de ensino. Escrevo em diálogo com autores com quem tenho bastante o que aprender, mas também em diálogo com quem não escreve e mesmo assim ensina. Estou em movimento, circulando, aprendendo e produzindo saberes para e com pessoas que observam e falam da realidade de locais diferentes. Na assimetria desses diálogos, uma das minhas plataformas de observação das realidades que me cercam é a minha condição de pesquisadora que também é mãe. Malú fez dez anos no dia 10 de maio de 2020, num dia ensolarado no Centro-Oeste, a nuvem da pandemia, no entanto, se impôs nesse dia mais do que em qualquer outro. Ela está no quinto ano do ensino fundamental. Diz há algum tempo quer ser arquiteta quando crescer, já quis ser veterinária, “artista como a Frida” e carnavalesca. Atualmente gosta de artes, de geografia, de educação física e de português (as variações de gosto são frequentes). Ela diz que de história ela gosta “só um pouquinho”. Outro dia saiu do quarto dela, parte da casa na qual ela hoje faz suas atividades escolares, muito feliz com uma situação ocorrida no encontro da turma com a professora de história. Somente ela soube o significado da palavra “curumim” quando a professora perguntou. Ela contou com muito entusiasmo que recebeu um elogio da professora por ter explicado o significado e ainda emendado uma explicação do porque é preferível usar o termo “indígena” e não “índio”, argumentando sobre a diversidade desses povos. Talvez ela goste mesmo só um pouquinho de história, mas já usa o seu conhecimento sobre história na construção de uma atitude de respeito e empatia. São momentos em que você sente que aquela criança vai fazer do mundo um lugar um “pouquinho” melhor e que a história é também uma maneira de amar o mundo. No cotidiano de ser mãe, também não deixo de ser 489 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) professora e observo como a consciência histórica se forma bonita quando estimulada, como é caminho para um mundo de mais respeito. Enfim, nesses dias de isolamento dou continuidade às minhas pesquisas, leituras escritas, participo de reuniões e me preocupo com a Malú que anda passando muito tempo e frente ao computador e pegado pouco sol, a vitamina D dela já não tem índices muito bons e ela tem muitas alergias. Nesse exato momento, ela aguarda que eu faça para ela uma vitamina, já respondi que estou indo, enquanto encerro lembrando às mães que porventura venham a ler essas palavras, que ainda temos muito que conquistar, mas nossa atuação profissional recoberta por nossas identidades, dentre elas a que se refere à maternidade, já é uma conquista. 490 Maternidades Plurais 80 O espaço virtual enquanto espaço de ensino: desafios de uma professora e mãe solo em tempos pandêmicos Kryshia Freitas Ribeiro1 Inicio o presente relato agradecendo às organizadoras Ana Carolina Coelho, Vanessa Clemente e Camilla Cidade pela iniciativa e espaço. Me chamo Kryshia, sou graduada em História e Mestre em História da Cultura pela UFG. Desde 2010 tenho me dedicado ao estudo da imagem quando, inicialmente, fora associado ao fotógrafo Henri Cartier-Bresson e sua noção de instante decisivo. Este primeiro objeto levou ao desenvolvimento de um outro recorte, quando voltei à pesquisa da representação fotográfica da velhice. Nesse sentido, o estudo, que correspondeu à dissertação de mestrado, revelou uma incoerência entre o conceito de envelhecimento, sustentado nas últimas décadas, para com a representação fotográfica da velhice assistida. Ao passo que há uma compreensão de que a pessoa idosa deve ser ativa, se submetendo a variadas atividades, estímulos e resgate de seus projetos pessoais, a imagem fotográfica de idosos reproduzida em mídias sociais de casas de repouso ou asilos, remete à uma noção de velhice fadada ao abandono, à dependência, a atividades em grupo e ao tratamento infantilizado. A dissertação, inclusive, contou com a análise de três eixos de imagens: aquelas associadas aos “cuidados médicos”, “interação social” e “terapia ocupacional”. Retomo à alguns resultados da pesquisa de mestrado, por esta estar associada a elucidação do envelhecimento na atualidade que, mediante o contexto pandêmico, ganhou novos contornos. A velhice em tempos de Covid-19 passou a representar não mais a busca pela preservação da independência e estímulos diversos, mas um risco em potencial. O risco do qual refiro pode ser entendido tanto do ponto de vista da vulnerabilidade e maior propensão ao desenvolver complicações em decorrência do contágio, quanto ao critério de ocupação e permanência dos leitos de UTI. Ser idoso, em 2020, passou a representar uma ameaça à juventude. Juventude essa que é preservada às custas da vida de quem é idoso. A expressão do envelhecimento na atualidade, também ganha novos contornos devido às medidas de distanciamento e isolamento social. Tal fenômeno, nos permite inclusive, compreender a desigualdade social como potencializador do risco de vida da pessoa idosa. O isolamento social de 1 Mestra e Graduada tes.cnpq.br/7708572351109076 em História pela Universidade Federal de Goiás. Lattes: http://lat- 491 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) indivíduos de idade avançada demanda uma rede de apoio constante para que este consiga ter acesso aos itens de utilidade básica. Sobretudo, este apoio é um privilégio e não condiz com a realidade da maioria dos idosos. Assim, talvez essa realidade se aproxime mais de um distanciamento social, uma vez que o próprio idoso se expõe indo em supermercados e farmácias. Garantir a supressão da estrutura básica, portanto, passou a significar um risco de vida. Além da temática do envelhecimento, tenho pensado a minha própria experiência enquanto professora e mãe solo diante do contexto pandêmico. Sem dúvida, reconheço meus privilégios por estar tendo, desde março, condições de submeter junto à minha filha ao isolamento social. Sobretudo, os efeitos deste tem sido em certa medida exaustivos considerando as constantes alterações relacionadas ao trabalho, maternidade e demandas domésticas. A formulação de um espaço híbrido que representasse segurança, conforto, trabalho e maternidade tem, ao mesmo tempo, construído um lugar cansativo e pesado. Em certos momentos parece ser impossível, e talvez realmente seja, conciliar a transferência do espaço de trabalho para o ambiente familiar. O grau de exigência das instituições de ensino privadas tem comprometido de modo significativo às minhas responsabilidades enquanto mãe. Penso que deva estar sendo ainda mais confuso para a minha filha de quase três anos que, já havia assimilado o fato de a mamãe trabalhar fora, entendendo que a nossa casa era um espaço só nosso e simbolizava alegria e conforto. De repente, toda a nossa rotina passou a se estruturar em função das transmissões de aulas ao vivo. O meu grande desafio, e em certos momentos o meu maior desespero, tem sido garantir os cuidados para com a minha filha e uma aula “online” de qualidade, morando sozinhas. Devido ao risco de contágio e questões financeiras passou a ser inviável contar com o trabalho de uma babá, tal como anteriormente à pandemia. Outro grande ponto que exerce forte impacto em nossa rotina é a falta de correspondência entre carga horária e o real tempo destinado à elaboração de aulas, a partir do registro exclusivamente virtual. Uma aula de quarenta minutos transmitida em plataformas de reuniões requer apresentação de slides adaptada e que já esteja disponível no computador pessoal. Assim, pensando naquilo que será entendido por aula de qualidade e como isso pode servir ao aumento do controle da docência. Do mesmo modo, é preciso estar atenta quanto à plataforma digital da editora que fornece os materiais didáticos, utilizando o modo “caderno digital” permitindo que a aula expositiva seja acompanhada do livro adotado por aquela turma. Como o tempo entre uma aula e outra é de apenas dez minutos, que são utilizados para baixar a gravação da aula finalizada, são inúmeros os recursos que ficam “engatilhados”: Caderno 1, Caderno 2, Caderno 3, Caderno 4, Arte Grega, Arte Gótica, Barroco, Revisão ENEM. Com muita frequência, preciso destinar os corridos dez minutos de intervalo para ir até à sala dar atenção para minha filha que fica sob a supervisão de uma querida vizinha que se dispôs a ajudar. Enquanto a aula recém finalizada é baixada, já me vi preparando refeições para que ambas tenham o tratamento que merecem, café da manhã e almoço preparado na hora ou momentos antes do início das transmissões. Momentos esses, repletos de uma ansiedade, preparativos e ritmo acelerado divididos em: preparar a aula, colocar roupas na máquina, organizar os brinquedos, higienizar algum cômodo da casa, cuidar do gatinho de estimação, persistir no desfralde, retirar a roupa de cama 492 Maternidades Plurais colocada na noite anterior, por o colchão no quintal para pegar sol, ir até a vendinha do bairro correndo para comprar leite ou algum item de necessidade, preparar o quadro da primeira aula, que fica apoiado em um móvel atrás do meu escritório improvisado no meu quarto, abrir a cortina para melhorar a luminosidade, conectar a extensão, a fonte do computador e da luminária, comprada com o meu próprio dinheiro, verificar se a conexão de internet da casa está estável, caso não recorro à rede de uma moradora do condomínio que, por várias vezes, também forneceu apoio. Ainda, é necessário arrumar o cabelo, escolher uma roupa formal e maquiar para que ninguém perceba o cansaço da professora, do contrário, transmitiria uma imagem pouco profissional. Fazemos selfies felizes em nosso escritório, mas constantemente estamos exaustas. Então, trato de camuflar a expressão exausta, ansiosa e preocupada. Depois desta maratona de afazeres, que também inclui trancar a porta do meu quarto para que minha filha não “invada” o espaço da nossa própria casa, começa um outro efeito de grande impacto: a solidão. Nunca me senti tão solitária como quando passei a explicar “a linguagem visual do rococó” para uma tela de computador. Não há vida, não há calor, não há olhos assustados, ansiosos ou interessados, há fotografias de personagens animados ou “memes”. Não poderia deixar de comentar uma imagem muito curiosa que me aparece nas manhãs de sextas-feiras: um rato e um lagarto. Sempre dou uma gargalhada nervosa pois sei que o rato e o lagarto simbolizam a dificuldade de serem que são naquele espaço virtual. Não há familiaridade com a plataforma como meio pedagógico. A natureza que permeia a interação social nas redes sociais se difere da experiência de um espaço virtual voltado ao ensino, que permite a reprodução de imagem e fala. São tomados pelo medo da voz trêmula, dos possíveis erros de pronúncia ou equívocos quanto ao conteúdo abordado. Pela vergonha da própria imagem, do quarto muitas vezes desarrumado, do irmão mais novo aparecer de supetão ou da mãe que esbraveja tentando lidar com a nova rotina da casa. Percebo que meus alunos de 14 a 18 anos não conseguem participar do seu próprio processo de aprendizagem. Tenho a impressão de que a exposição do conteúdo é, por vezes, como uma música ambiente de supermercado. É ouvida, mas não percebida. No entanto, a cada vez que interrompo a explicação e pergunto “ok meninos, podemos avançar?”, eles respondem com “joinhas” ou “ss” que significa sim. Nos últimos dez minutos da aula, tento fazer um breve resumo na esperança de ajudar quem esteve disperso e abro espaço para perguntas. São raras as vezes que alunos ativam o microfone e fazem a pergunta utilizando o recurso de voz, em outras utilizam o chat em modo privado com receio dos colegas acharem sua dúvida boba ou sem importância e nos casos mais preocupantes, não conseguem sequer formular uma pergunta. Talvez o momento mais triste, seja após semanas de tanto esforço perceber que os alunos talvez não estejam aprendendo direito, que podem não contar com o suporte emocional apropriado, que à essas alturas, se encontra tão abalada quanto a minha. Outra lembrança que me marcou bastante, aconteceu em abril, quando eu ainda não conseguia lidar tão bem com as plataformas e me deparei com a possibilidade de ameaças virtuais já que as plataformas online não são totalmente seguras. Essa noção produziu um efeito violento tão grande que senti dor física. Meu bálsamo tem sido as diversas mensagens de incentivo e reconhecimento. Esse vínculo mais estreito para com aqueles que acompanho desde o ensino fundamental, permite inclusive, um melhor aproveitamento das aulas, pois se sentem mais confortáveis para interagir. Di493 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ferentemente das turmas de terceiros anos, os alunos dos primeiros além de serem mais novos, demonstram uma adaptação mais lenta, não interagem pela fala e ainda convivem com a novidade de terem acabado de entrar no Ensino Médio. Pensando em aprimorar o espaço virtual como espaço de ensino, desenvolvi o projeto “Você não é um robô” voltado às rodas de conversas livres buscando o compartilhamento de percepções e experiências de professores e alunos, para que ambos, construam um caminho de maior familiaridade e intimidade com o espaço virtual enquanto lugar de aprendizagem. Percebi, mediante o recebimento de inúmeras mensagens, vindas de alunos através de redes sociais e até mesmo via WhatsApp, que a interação desvinculada da instituição de ensino é mais fluida. Portanto, considero que o formalismo envolto às aulas ao vivo regulamentadas pelas escolas, construiu um paradoxo à medida em que a supervisão institucional durante as transmissões compromete a interação entre alunos e professores. Imagino que isso também ocorra, pelo fato de as instituições fazerem a postagem das aulas gravadas em seus sites ou canais no Youtube. Portanto, o grande problema é que na possibilidade de ter a sua participação na aula transmitida ao vivo, gravada e postada o aluno opta por não interagir. Não sei como nesta altura do presente texto, não havia mencionado que sou vinculada a três instituições de ensino privadas. Desta forma, lido com três diferentes formatos pedagógicos desde o início do regime de aulas não presenciais. Nesse sentido, além da odisseia envolvendo as aulas ao vivo, tenho plantões de dúvidas à tarde exigindo a mesma preparação que as aulas transmitidas pela manhã, mas que por se tratar de um espaço voltado às dúvidas, nenhum aluno comparece. No entanto, a rotina da casa é pensada em função do horário do plantão assim como é feita toda a montagem do espaço e tecnologias necessárias, para eu ficar sentada em frente ao computador por improdutivos quarenta minutos. Assim como tenho aulas ao vivo, plantões de dúvidas, tenho também a modalidade de construir um curso em uma plataforma própria da instituição, que consiste na postagem de uma aula gravada. Sobretudo, para que a aula seja inteligível elaboro outros recursos didáticos como um quadro digital contendo anotações importantes acerca do conteúdo, gravação de áudios, link de vídeos do Youtube, quiz, perguntas dissertativas, vinheta para despertar o interesse dos alunos, citações, apresentação de slides convertida em PDF, um material textual transcrito por eu mesma utilizando autores da minha preferência, uma vez que a instituição não adota livro didático para a minha disciplina de História da Arte, entre outros. Ao passo que escrevo esse relato, fui tomada por um grande sentimento de culpa. Claramente tenho me dedicado muito mais tempo ao trabalho que para minha filha. No entanto, também sou tomada pelo peso de ser a única provedora do meu lar e eu não ter outra opção a não ser me submeter a essa carga horária exaustiva de trabalho, que inclui o serviço doméstico. Tenho me desdobrado para manter a casa minimamente limpa com medo de comprometer a imunidade da minha filha tendo que lidar com gripes ou alergias. Do mesmo modo, tenho dado mais atenção a qualidade das refeições que ofereço a ela. Por várias vezes ao dia, me pego fazendo um cálculo, imagino que bastante falho, das propriedades nutricionais dos alimentos oferecidos. Talvez para amenizar a culpa que sentiria num caso hipotético dela ser contagiada com a imunidade baixa. Tenho tentando criar espaços lúdicos no meio da sala, construindo barracas utilizando poltronas, cobertas e almofadas. Assim, consigo 494 Maternidades Plurais garantir que ela se divirta enquanto fico no sofá com o computador no colo dizendo “que linda a sua casinha filha, parabéns”, quando na verdade eu gostaria de estar debaixo da cabana improvisada com ela. Agora, me pergunto, em que momento eu cuido de mim? Silêncio. Confesso que sinto dificuldade para continuar escrevendo. Não consigo nem mesmo ter memória de quando eu tive a oportunidade de tirar um momento somente para me cuidar. Com exceção dos cuidados para com higiene ou quando faço uma pausa para as refeições, talvez eu só tenha este momento durante as sessões de análise. A dois dias atrás, no domingo, foi meu aniversário. Passei o dia todo lutando contra a minha individualidade que gritava “você merece um dia de descanso!” contra a realidade massacrante das trezentas notificações via e-mail de provas para serem corrigidas, já que nesta semana devo entregar as notas do trimestre. Ao final desta noite, vi que não compensaria me dar ao luxo do ócio mesmo que nada data festiva, pois isso poderia comprometer outros deveres ao longo da semana. Então, coloquei minha filha na cama, engoli a vontade de existir e fui para o meu quarto corrigir a maior quantidade de provas que eu pudesse dar conta. Fico feliz que a vontade de existir persiste e foi suficiente para escrever essa narrativa. Obrigada. 495 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 81 Cartas por entre janelas Laís de Paula Pereira1 Miguel Pereira, 05 de julho de 2020. Sentada na minha poltrona, que outrora foi usada para amamentar a minha filha e hoje é o que tenho de mais confortável para trabalhar horas em frente ao laptop, vejo a minha janela. Nem é sobre isso essa carta, mas não poderia deixar de te falar do vento nas folhas do pé de carambola. Está frio e a janela está fechada, não o sinto, mas o vejo através das folhas que dançam enquanto as nuvens passam, se deslocam, se movimentam como nômades que não suportam a fixidez imposta. Sigo em casa de quarentena há exatos 112 dias com a minha filha de 4 anos e meu companheiro. Se distraída, poderia dizer que estou parada, fixa nessa condição, sedentária. Mas essa é uma perspectiva. Me vejo nuvem, folha ao vento. Talvez seja sobre isso essa carta, ainda não sei. Desculpa já começar a falar assim, sem parar. Você me conhece, sabe que gosto de divagar um pouco… Quis inserir umas palavras-gestos nesta carta, quem sabe não nos sentimos mais perto? Imagino que esteja achando estranho tudo isso. Realmente, nem eu me lembro a última vez que enviei uma carta a alguém. É estranho mesmo. Mas sabe que está sendo gostoso? Já vejo você recebendo, lendo, curiosa querendo saber o que me move a te escrever. Muitas coisas me movem. Tá vendo? É isso! Disse que não estava parada. Poderia falar aqui de diversas coisas que estou vendo, vivendo e sentindo. Não tem sido fácil. Mas não quero me alongar a esse respeito. Quero te contar outras coisas, algumas das quais nunca seriam noticiadas. Como diria Rubem Braga, “(...) os jornais noticiam tudo, tudo, menos, uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida…”. E escolho falar, aqui, da potência da vida que tem pulsado entre paredes e janelas-brechas. Tem algo que surge como “novo” mas que, confesso, talvez não seja tão novo assim. Acontece que a vida andava corrida, horas de trânsito — uma viagem de ida e volta para o Rio de Janeiro toda semana — que às vezes não via, sentia e me afetava com as pequenas coisas desimportantes. — Mamãe, quero sentar ali para ver o mundo! — Lila, 4 anos recém celebrados. 1 Doutoranda na Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: laisbiouff@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2923524194623709 496 Maternidades Plurais Sentamos para comer. Depois de algumas garfadas, vem essa frase acompanhada de um movimento ligeiro para mudar de lugar e se sentar numa cadeira em frente a uma das janelas da sala. Minha filha quer (des)ver o mundo, como diria Manoel de Barros. Já-nela: brecha das margens da casa que nos permite estar entre-lugares. (Des)vemos, inventamos e imaginamos mundos em frestas, brechas, fissuras. A minha casa tem muitas janelas. Janelas-portas, portas-meio-janelas, janelas redondas, retangulares, que abrem para cima, para os lados, com vidros, madeiras, telas, redes. Com cortinas e sem cortinas. Tem também sombras de janelas. Nas paredes as janelas ficam desenhadas, deformadas pela luz e pela sombra que vão fazendo delas pinturas móveis. Múltiplas, as tantas janelas são abertas para diferentes direções, paisagens, expansões, luzes e sombras. Também são fechadas mudando o clima, as visões, as escutas, as sensações, as cores, as texturas, as vibrações e os desejos. Vivendo nesse entre-lugar, dentro e fora já não são lugares concretos de cortinas e rotinas previsíveis. Assim, dia a dia, numa tentativa de romper com o pragmatismo da percepção, tenho me importado mais com os acontecimentos, as coisas banais e desimportantes que antes passavam despercebidas no tic-tac do relógio. A partir dessa mudança de perspectiva, os meus dias de quarentena têm transbordado o tempo Cronos — esse tempo do presente “vivo” — e seguido de encontro ao tempo Aion, um tempo que inclui um passado e futuro ilimitados. Esse descronificar do tempo permite que eu componha vida no entre, em devir. Sigo trabalhando, escrevendo e pesquisando. Tenho prazos, reuniões e diversas demandas que sim, requerem uma conexão mínima com a temporalidade cronos. Mas ando distraída com as coisas da vida. Nos últimos tempos, tenho sentido um excesso e uma rapidez nas coisas que, parar para escrever essa carta e sentir que posso demorar um pouco mais nas palavras, é um acalento. Tenho recebido muitos textos, vídeos e áudios que parecem ser maravilhosos. São instigantes, com certeza. Mas li poucos, vi e ouvi quase nenhum. Sinto que estou com o mundo em casa, mas não tenho conseguido acessá-lo tampouco tocá-lo. O mundo tem pres-sa! Eu também tenho, tinha, teria... já não sei mais. A vida não pode parar, o trabalho não pode parar. E algo parou? Quero pre-sen-ça. Por aqui o coração ainda bate, os movimentos ainda acontecem. Tenho o privilégio de ainda comer e respirar em segurança. Pas-so-a-pas-so sem pres-sa escolhi caminhar. E eu pos-so escolher, quantos privilégios. Todos os dias acordo e abro as janelas. São muitas as janelas, mas não te falei de uma delas: a do meu laptop. Nele, apenas uma janela. Muitas abas. Às vezes dúzias delas. Como frestas das tantas outras janelas que tenho em casa, em cada uma das abas algo novo e diferente se apresenta para mim. Enquanto abro abas que podem se fechar em questão de segundos, minha filha brinca de escrever cartas. E escreve-desenha lindas cartas com diversas cores, fitas penduradas, clips para todos os lados, dobraduras diferentes e sempre com uma caixinha que as guarda como um tesouro. O meu laptop? Ligo na tomada. Abro a sua tela, clico no ícone da internet, vejo uma janela e muitas abas. Claro que há algo de precioso nisso: poder trabalhar com o que gosto, me dedicar às minhas coisas. Mas veja só, decidi escrever essa carta. Queria mesmo era estar colando pequenos papéis cortados em outro papel colorido por lápis de cor e colocando tudo num baú de tesouro. Talvez por isso te envie essa carta. Pronto, acho que é isso. Não, também é muitas outras coisas. 497 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Quantas abas cabem numa janela? Essa pergunta me veio à mente no dia em que uma amiga me mandou um print de algo que queria me mostrar e pude observar que na sua janela cabiam mais abas do que eu poderia imaginar. Uma janela, muitas abas e uma tentativa incessante de nos relacionarmos, trabalharmos, escrevermos e aprendermos na/com a virtualidade em plena pandemia. Muitas lives, trabalhos remotos, reuniões, congressos, colóquios e seminários online, cursos diversos. Outrora sonhei em poder fazer tudo isso. Mas a minha rotina de casa, filha, trabalho e doutorado não permitia. Eu mesma não me permitia ser capturada por certos desejos. Hoje, com o meu companheiro sem trabalho — ele é autônomo, professor de circo e não pode trabalhar enquanto a pandemia não acabar —, pela primeira vez, depois da maternidade, consigo ter mais tempo para mim. O combinado é: ele cuida da casa e das coisas da filhota e eu escolho os momentos que acho mais propícios para trabalhar e ficar com ela. Imagino que eu esteja sendo uma das exceções entre as mães nesse período. Consegui escrever mais do que nunca e ler livros que já estavam cansados de me esperar. Descobri com isso tudo, afinal, que o que eu queria mesmo era um pouso. Não uma pausa. Mas um pouso que me permitisse realizar e sonhar coisas em outra temporalidade, com outra qualidade e a partir de outras perspectivas. Tive o tempo do relógio disponível e escolhi não fazer tudo o que aparecia como estímulo para mim. No fundo, as minhas questões não diziam respeito (só) à falta de tempo. Não à toa, nesse pouso-quarentena, tenho me dedicado às coisas desimportantes e banais. Acontecimentos. Sou contaminada dia a dia pelo devir-criança da minha filha e faço sobrevir o meu devir-mãe-pesquisadora-criança. É bonito, sabe? Eu gosto desse pouso, me faz bem. (...) Enfim, já estou eu divagando novamente. Será que você vai receber essa carta? Como você está? Como tem sido os seus dias? E o seu gatinho? O seu filho? Vocês têm dançado? A cada pas-so um novo pas-so des-se (des)com-pas-so. Como eu queria dançar com vocês nesse (des)iso-la-mento. Tenho dançado e todos os dias minha filha dança balé. Pede uma música e dança como se sempre tivesse feito isso. Desconfio que sempre tenha feito. Cada dia um passo novo, um gesto e uma expressão diferente. Inclusive, enquanto escrevo essa carta, escuto uma música de balé vindo da sala. Mas nem tudo é essa tranquilidade com gestos suaves. Também tocamos atabaque e fazemos uma roda com saia rodada e muito pé no chão, do jeito que a gente gosta! Saudade de fazer uma roda de danças populares na praça da cidade, né? Bom, quero terminar essa carta-divagação te falando do texto "Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise"2, escrito por Bruno Latour (2020) e, imagino eu, você vai adorar ler. Essa leitura muito me inspirou nessa quarentena, pois ele propõe que façamos um inventário a respeito das atividades que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas no pós-quarentena. O convite do autor se dá individualmente para, posteriormente, ser estendido ao coletivo. Ele traz a importância fundamental de usarmos este tempo 2 LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. São Paulo: n-1 edições. 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/008-1 498 Maternidades Plurais de confinamento imposto para descrevermos aquilo a que somos apegados, aquilo de que estamos dispostos a nos libertar, as coisas que estamos prontos a reconstituir e aquelas que estamos decididos a interromper. Olha que reflexão incrível: Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos somos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo "distanciamento social", de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes, ou pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra. (LATOUR, 2020, p. 3) É sobre isso essa carta. Como eu não tinha entendido antes? Fico aqui pensando que, nessa tentativa de viver na temporalidade Aion, o presente se torna o futuro que logo vira passado. Ou seja, o presente não existe, ele é uma passagem. Essa percepção de que o futuro construímos no agora (presente que já não é mais), me gerou muitos movimentos internos e externos. Pude compreender que as perguntas de Latour deveriam me fazer questionar coisas por vir que já estavam sendo, já tinham sido. Pareço confusa? Deixa-me tentar fazer entender: tive a compreensão de que o que me movesse a responder as perguntas levantadas por Latour deveria também fazer sobrevir gestos mínimos na temporalidade Aion. “O que fazíamos e não queremos mais fazer? O que temos feito nos dias de isolamento? O que tem nos (i)mobilizado? Quais gestos poderíamos ventilar para barrar o retorno a uma normalidade produtivista e irracional?” Essas e muitas outras perguntas me movem neste mo(vi)mento. Eu topei esse exercício de escrita-pensamento-gesto que Latour propõe em seu texto. E você, topa? Sem pressa. É pos-sí-vel? Conseguimos? Queria que essa carta chegasse até você pelos correios, num envelope muito bonito, cheio daqueles selos coloridos. Sempre tive um interesse genuíno pelos selos. Fiquei a imaginar essa carta escrita à mão. Que poético. Que patético. Se eu tivesse mais tempo (Será que não tenho? Estou confusa, seria um sintoma? Sintoma de que mesmo?) escreveria esta carta à mão e colocaria clips, fitas, desenhos e algumas coisas mais que encontrasse pelo caminho. Mas o tempo está pas-san-do e, sem pres-sa, ainda tenho muito o que fazer. — Mamããããe, acabei! Vou lá, meu tempo acabou! Foi bom falar com você. Aguardo ansiosa por uma carta sua. Me escreve qualquer dia desses, você tem o meu endereço (de e-mail). Ah, aproveito para enviar umas fotos. É bom poder ver outras paisagens, imaginar e criar outras brechas em tempos de (des)isolamento, né? Um beijo com carinho. 499 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 500 Maternidades Plurais 501 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 502 Maternidades Plurais 82 Pesquisar na pandemia: persistir ou desistir? Laura Janaina Dias Amato1 Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declara o novo Corona vírus (Covid19) como pandemia. No dia 13 de março, a prefeitura da minha cidade, Foz do Iguaçu-PR, decreta a suspensão das atividades escolares a partir de 16 de março. No mesmo dia, publica-se o decreto 4.230 do Estado do Paraná, o qual suspende todas as atividades em escolas e universidades públicas e privadas a partir do dia 20 de março. Como mãe de duas crianças em idade escolar e sendo professora, minha rotina mudou completamente com essas notícias. Um distanciamento social que teve seu início decretado e legislado, mas um fim sem qualquer perspectiva. Enquanto mãe trabalhadora, minha rotina sempre foi muito planejada e controlada, pois o ritmo de vida acelerado era dominante: acordar cedo, arrumar-se, acordar as crianças, arrumar as crianças, tomar café da manhã, levar para escola, ir trabalhar, buscar da escola, fazer almoço, almoçar, ajudar nas atividades escolares, trabalhar em casa, levar para cursos e atividades extraescolares, fazer compras, fazer o jantar, jantar, dar banho na mais nova, mandar o mais velho tomar banho, ver desenho e brincar com as crianças, dar boa noite para o mais velho — que lê antes de dormir, colocar a mais nova para dormir após a contação de histórias e cantar de músicas de ninar. Aí sim, só depois de todos os afazeres, talvez sobrava um pequeno tempo exclusivo para mim, pois também não podia me esquecer do meu parceiro e a atenção dedicada a ele e ao nosso casamento. Rotina diária e atribulada que foi rompida e não planejada por mim ou pelas crianças. De repente, as aulas foram suspensas, as crianças ficaram em casa e eu também. Como docente em uma universidade pública, estava afastada das minhas atividades de ensino para me dedicar à pesquisa de pós-doutorado, no qual etnografava práticas escolares. Assim, me vi também impedida de continuar minha pesquisa, pois a etnografia no ambiente escolar era a base dela. A mudança não planejada de rotina não foi fácil e agora, mais de 90 dias após a suspensão da vida antiga, já passei (passamos) pelos mais diferentes estágios de ansiedade e frustração. Tentando (ainda) lidar com a nova rotina de afazeres domésticos e cuidados com as crianças, me vi praticamente impedida de continuar meu trabalho: pelo tempo e pelo espaço. 1 Docente da área de Letras e Linguística. Curso de Letras - Espanhol e Português como Línguas Estrangeiras e Curso de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos. Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0986145314688863 503 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Cabe salientar que, enquanto docente pesquisadora, a divulgação dos resultados das pesquisas é fundamental, ou seja, precisamos publicar e ser avaliadas por colegas. Além disso, é preciso dizer que o trabalho intelectual não pode ser comparado a um trabalho de escritório. Não se começa um artigo às 8h da manhã e o finaliza às 18h, tendo duas horas de almoço no turno. As horas de trabalho em um artigo não são medidas assim. Para além do trabalho de pesquisa prévio, tanto de campo, quanto bibliográfico, há o tempo de amadurecimento para a compreensão e análise dos dados, além do tempo e espaço — solitário e isolado — que é a escrita. No meu caso, a pesquisa não depende de resultados de laboratório e, na maior parte dos casos, desenvolvo pesquisas de cunho qualitativo trazendo então um novo caráter para os artigos também. Voltemos à pandemia. Distanciamento de outras pessoas, pois em uma casa com crianças o conceito de isolamento e distanciamento não se aplicam. E quanto menor a idade da criança, menos isolamento e distanciamento são possíveis. Segundo Staniscuaski et all (2020)2, durante a pandemia as mulheres são muito mais afetadas do que os homens e as mães são duplamente penalizadas, pois ainda contam com as atividades de ensino remoto com as crianças. Na carta à revista Science, o grupo afirma que deve haver políticas e ações para mitigar a penalização das mães durante esse período, assim como a prorrogação de todos os prazos, pois só assim podemos criar um ambiente justo e equitativo para homens e mulheres na ciência. Quando vemos os dados de Candido e Campos (2020)3 concordamos com o posicionamento de Staniscuaski et al (2020), Candido e Campos (2020) apresentam uma significativa diminuição na submissão de artigos escritos por mulheres (28%) ou com mulheres como primeira autora (13%), no trimestre no qual o distanciamento físico foi decretado em todos os Estados do Brasil e a consequente interrupção de aulas presenciais, ou seja, crianças em casa. Com a produção em queda, mulheres terão menos chance de ter suas pesquisas financiadas, pois o critério de produtividade é um dos grandes balizadores. Na minha universidade — assim como em muitas outras — a produtividade é um dos parâmetros para a distribuição de bolsas de Iniciação Científica, por exemplo. Contudo, produtividade fica basicamente dirigida a publicação de artigos científicos em periódicos indexados, ao financiamento de pesquisa e a orientação de estudantes. Ora, se teremos menos artigos publicados, o financiamento será prejudicado e sem ele haverá menos estudantes dedicados à pesquisa, tornando um ciclo vicioso preocupante, pois o impacto não é imediato e poderá ser sentido a médio e até mesmo a longo prazo, já que, na maior parte dos casos, a pontuação da produtividade é contada por um interstício, variando entre 3 a 5 anos em média; se em 2020 a mulher não conseguiu publicar nenhum artigo, ela será prejudicada até 2025. E não podemos esquecer que muitos artigos submetidos em 2020 são publicados somente em 2021, assim, podemos supor que haverá uma diminuição também de publicação feminina no primeiro semestre de 2021. Posto acima, como pensar o home office de uma mãe pesquisadora? Há várias páginas dando dicas “preciosas” sobre como organizar o tempo do trabalho em casa, assim como milhares de dicas 2 STANICUASKI, Fernanda Staniscuaski, et all. Impact of Covid-19 on academic mothers. IN: Science, Vol. 368, Issue 6492, pp. 724. Acesso em 15 de junho de 2020. 3 CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres, Blog DADOS, 2020 [published 14 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/pandemiareduz-submissoes-de-mulheres/. Acesso: 15 jun 2020. 504 Maternidades Plurais para administrar a ansiedade. Ah, e não podemos esquecer das dicas em como manter uma criança entretida e fora das telas, várias brincadeiras e jogos, livros e atividades. Nenhuma dessas dicas infalíveis fala sobre prorrogação de prazos ou impacto na progressão da carreira. Agora tente administrar seu tempo em home office com duas crianças, uma na Educação Infantil e outra no Ensino Fundamental II, ambas com atividades enviadas pela escola e um com atividades síncronas diárias. Ambos me veem na casa deles, no ambiente doméstico eu sou a mãe, não a professora, a pesquisadora ou qualquer outra função social que eu possa assumir, para eles, neste ambiente eu sou mãe, às vezes, mamãe. Sendo mamãe, sou interrompida constantemente, seja para alimentar ou limpar, seja para ensinar ou entreter. Com o trabalho sendo seguidamente pausado, não há concentração suficiente para que um artigo seja produzido de forma clara e objetiva, como deve ser feito. Muitas mães realizam seu trabalho no período noturno, o chamado terceiro turno, que na maior parte das vezes adentra pela madrugada, prejudicando horas de sono que prejudicam a concentração. Então o dilema: continuamos fazendo o de sempre ou desistimos? Continuar a fazer o de sempre é manter o mesmo padrão social de manutenção de uma sociedade patriarcal capitalista. Desistir é se entregar ao sistema e mostrar que nessa batalha, ele é o mais forte e molda a todos às suas vontades, deixando os mais “fracos” sempre à margem. Mas será que não há um meio termo entre persistir e desistir? Qual ou quais as possibilidades de haver equidade entre os gêneros e as funções sociais durante a pandemia? Aqui estou me baseando exclusivamente na minha experiência e nos tipos de pesquisa que realizo. Não posso me furtar em dizer que me sinto privilegiada por estar com meu salário integral, ter um companheiro e pai presente, e em não estar lecionando ou executando outra função— mesmo de maneira remota — neste momento; neste momento me divido em casa entre ser mãe e pesquisadora, na maior parte do tempo. Mesmo sabendo disso, é impossível negar as dificuldades de produção e execução das duas funções sociais que executo, pois ambas reivindicam uma dedicação de quase exclusividade que, pelo tempo e espaço, não é possível. A culpa em não estar com os filhos e não executar o trabalho são constantes e por isso é preciso pensar em estratégias para obter resultados satisfatórios em ambas funções. Persistir ou desistir não devem ser cogitados, quando, ao invés da competição promovermos a colaboração empática e a compreensão na academia. Compreender que a maternidade exige de cientistas, principalmente neste momento de distanciamento social, um tempo de dedicação singular, no qual o cuidar e proteger estão demandando atenção quase plena destas mães-cientistas. As crianças longe dos seus espaços e companheiros exigem de uma mãe-cientista uma adaptação: de rotina e espaço do lar; a casa acaba sendo o substituto padrão de parques, praças e outros locais de entretenimento. Quando se mora em uma casa com quintal ou área de lazer, ótimo; e quando se mora em um apartamento de dois quartos? Então, compreenda que uma mãe-cientista está, agora praticamente em tempo integral, muito mais dedicada a criação de um ser humano melhor e mais consciente para esta sociedade. Colaborar é auxiliar na realização de algum trabalho ou atividade; na pesquisa científica muitas de nós já utilizamos esse formato de ação nas nossas pesquisas, contudo uma colaboração empática, na qual eu me coloco no lugar da outra pessoa raramente acontece. A vivência de outrem nunca será a minha, porém entender que as experiências se complementam de forma não-excludente não é uma 505 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) lição fácil em um ambiente de relações desarmônicas — para usar um termo da Ecologia — como a academia. Colaborar de forma empática é trabalhar com as limitações de todos integrantes e assim respeitar as histórias e narrativas que compõe os pesquisadores e as pesquisadoras. Quando falamos de mães-cientistas, a colaboração empática respeita os tempos e limites dessa mulher, sem excluí-la dos procedimentos e etapas de pesquisas. Além disso, uma colaboração empática é não-competitiva e busca flexibilizar metas e objetivos. Não podemos ou não devemos, em tempos de extremos, manter os mesmos padrões e não podemos e devemos ser cobrados por isso. A urgência de se repensar formar de inclusão de mães-cientistas na agenda de pesquisa é premente e necessária, e essa deve respeitar as peculiaridades destas sujeitas. Tal como afirma Boaventura Sousa Santos: “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” 506 Maternidades Plurais 83 Sobre Sir-ley, ou como me sinto do avesso Leicy Francisca da Silva1 Eu nasci em 1976. Meu pai no dia seguinte foi ao cartório. Disse ao atendente em bom som que eu me chamaria Leysir.2 Entre o dito e o escrito havia uma distância. Se tivesse sido suas mãos a rabiscar num português pobre e de letras tremidas o seu desejo de homem de pouco estudo, ele teria anotado no papel sem erro. O auxiliar rebuscado considerou-se no direito de reavaliar o ditado por aquele caipira malvestido. Enfeitou, estrangeirou e rabiscou no impresso caro da certidão, pago com alguns dias de trabalho suado, Leicy; no direito de decidir o destino e nomear a filha de outro, fruto do prazer de um saber soberbo que pouco compreendia. Sua falsa onisciência desconhecia eu ter sido concebida após uma pandemia. Documento em mãos, olhos nas letras, leu vexado e cerrou os lábios em silêncio. E por que isto tem importância no meu presente pandêmico? Porque existe uma falácia que insiste que o passado já passou. Contradizendo a ela, ele pulsa e insiste ser presente em minha memória; de certo modo ressoam em meu ouvido as palavras afirmando que “o passado é um pedaço de nós próprios” e, impossibilitados de viver sem ele, melhor seria que pudéssemos colocá-lo “ao serviço da vida”.3 Claro é que o incômodo melancólico de um passado presente, tomando de assalto minhas lembranças, entona certa poesia, muita incoerência e um punhado de dor. Ambiciono transformá-lo em estória, sem apagar a brasa quente das imagens entrecortadas de minhas reminiscências e do que me foi contado. Em casa, chovia forte, mais que outros veranicos de janeiro. A fornalha acesa servia para secar fraldas, mantas e cueiros deixando um perfume de defumado no tecido. Disseram que tendo seios onde abundavam leite, eu acintosamente reclamava a fome, enquanto as mamas maternas pulsavam. Mãe experiente, eu era a sexta, para ela a sétima, e desdobrava-se agora para acalentar-me, sem canto algum. Talvez entonasse, sem voz, um canto compassado, que saí pelo nariz, quase lúgubre, como 1 Professora no departamento de história, Programa de Pós-graduação em História, e Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências da Universidade Estadual de Goiás. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3259263386022720 2 Leia se Leissir. 3 RUSEN, Jorn. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história. In História, verdade e tempo. Marlon Salomon (org). Chapecó, SC: Argos, 2011, p. 260. 507 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) espantosamente eu sempre fiz para acalmar a minha cria. Quando eu nasci, poucos sabiam que dois anos antes, em 74, crianças morreram. Todas elas possuíam nomes pensados com cuidado. O escrivão era o mesmo e copiou vários deles em certidões de óbitos. Desenhou em notas frias, resquícios de vidas perdidas, transformadas em números. Pouco lhe interessava que minha irmã mais velha chamasse Sirley. O que conhecia o escrevente sobre homenagens? Ele nunca adivinharia que em mim se registrava a memória da filha pranteada, que aquelas letras ressuscitavam a lembrança de uma vida de 9 meses e imprimiam o desejo de um devir outro. Como adivinharia que pobres roceiros expressassem poesia às avessas. Meu nome feio destilava amor Leysir! Naquela época, alguns homens de letras sabiam ser doutores em certezas vãs. Dois anos antes, um deles afirmara à minha mãe que ela não soubera proteger a filha e colocou em seus braços fortes um caixão lacrado, sem flores, sem rito, sem lápide, sem epitáfio. Só lágrimas que nunca secaram. Todos os anos nos mesmos dias eu a via se esconder e envermelhar os olhos. Indizível sentir: se traduz no silêncio. Ela, que pouco mostrava, escancarou-me um dia sua dor, só eu vi, sou hoje a única testemunha. Com nove anos e ciente que meu nome terminava com y, assisti atônita àquela cena feroz. O sábio, de branco, proferiu a ela de novo, bons conselhos sobre seu papel e esclareceu assertivo do seu domínio, que me curaria. Ela ouvia aquelas palavras com cuidado, compreendia de sua pouca ilustração e respeitava quem muito lia. Eram palavras grandes: Hepatite. Tratamento. Infecciosa. Isolamento. Cura. Dessa história ela conhecia a sequência advindo de aprendizado padecido. Doeu lhe forte o temor. Da outra vez que ela acatara, a continuidade fora: isolamento, morte! Eu a vi gritar como louca enfurecida, num canto do corredor branco do Juarez Barbosa, arregalei os olhos e chorei sem saber porque. Nove anos antes, ali do lado, eu dava meus berros de bemvinda ao mundo na Santa Casa. Agora eu ouvia seus urros de fêmea procriadora que protege a cria. Uma assistente foi chamada, disse alto e eu ouvi acuada, “se ela morrer você vai à prisão”. Ela gemeu, grunhiu com a força que tinha “Já me tiraram uma”! Ela assinou papéis, eu não decifrei aquele cerimonial. Lembranças desconcertadas me trazem a imagem de mulheres, seriam um fruto reconstruído de minha dor? Uma se debatia insana, outra me acalmou, havia alguém que conferenciava ao médico no canto do consultório. Houve quem tentasse me tirar à força. Todos tinham o mesmo pensar: eu precisava ser salva; ninguém, pensaria em perguntar: Dona Ana, porque agir assim? Sua razão legitimava o ato de desespero, convencida que seu afeto me salvaria; implorava em rugidos por uma humanidade que não lhe havia sido oferecida em outra ocasião. Aquele edifício, ora reconfigurado, existe vivo em minha memória. E minhas lembranças, exponho — acalentada pela letra de outro — não são explicitação do desejo de “auto-revelação de experiências narcisistas”, eu “creio que as revelações apresentadas ultrapassam o estreito espaço do meu mundo particular”, revelando o que se passava fora e dentro “dos corredores reais e simbólicos do histórico daquela instituição”.4 Esse relato, insignificante para muitos, diz sobre mim e outras existências banais, razão do merecimento da escrita. Em minha memória não estaria mais que minha 4 JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Seminário da Prainha: limites e possiblidades da ego-história como opção metodológica. Disponível em: http://www.uece.br/mahis/dmdocuments/gisa.pdf. Acesso em: 4 jun 2020. 508 Maternidades Plurais própria existência? As santas regras da produção acadêmica me gritam que são intocáveis, nelas não cabem as letras da nudez de alma exposta: respeitemos o tabu. Tenho a minha vida situada entre duas epidemias. A primeira é objeto quase ausente da memória histórica brasileira, pois ocorrida em um país que vivia em estado de exceção e cujos poderes silenciavam, pela censura, os meios de comunicação. Entre 1971 e 1974, muitas sirleys sucumbiram a dois tipos de meningites, cuja incidência se transformou em epidemia no Brasil; as crianças foram as principais vítimas diretas.5 Para além dos números frios e corpos mortos, ficaram almas flageladas pelas perdas. Por isso, só o que sei: é que ela me levou para casa. Houve ali uma enfermeira, assistente social, médica? Eu não sei, sei que talvez tenha escutado o que eu nunca a ouvi dizer. Pediu que ela esperasse. Voltou com medicamentos, explicou como usar, deu recomendações para a proteção de toda a família: eu não era única. De mãos dadas, dentro de um ônibus lotado, eu descobri muitas coisas, ela podia abraçar tão apertado que sufocava, quereria proteger a mim e aos outros? Grudada a meu corpo ela inspirava forte, eu sentia os músculos, parecia buscar nas entranhas um alívio ou entendimento de seu padecimento. Quem poderia acessar aquele mundo mudo? Eu penso que naquele instante sua certeza cedia à dúvida, que retomava uma convicção hesitante, se interrogava se era equívoco, duvidava de seu convencimento, sofria! A enfermidade — este abstrato que ocupava o seu corpo e o meu — objeto capaz de transformar experiências de homens e mulheres comuns em dados possíveis de serem acessados e expostos para além de seus corpos, suas vidas, suas histórias. 6 Na mesa margeada por dois largos bancos de madeira, houve longa discussão e quase briga, eu ouvia atrás das paredes. O pai que neste meio caminho gastara com exames caros, me acalentara em seu colo, na cozinha argumentou. Apavorou-se, os dois sabiam sem nunca falar, poderia ser uma conta de subtração, e se perdesse mais uma, ou duas? Naquele dia articulou forte Leysir, como me apelou por toda a vida, demandou alguma coisa, já não me lembro, ou teria apenas olhado meus olhos de icterícia! A primeira, aquela com sílabas trocadas, saíra de casa com sintomas de febre e se perdera em números. Na segunda, reconheciam a trilha das lágrimas. Desconfiavam da distância, do conhecimento, do cuidado. Um acordo foi selado. Assumiram e preferiram o risco da cadeia. Não queriam 5 Trata-se da epidemia de meningite ocorrida em todo o país (causadas pelo meningococo sorogrupo C e meningococo sorogrupo A). As análises epidemiológicas feitas para São Paulo expõem que entre as vítimas do primeiro tipo, 40,9% eram crianças de 0-4 anos de idade e no caso do segundo, 9,5% dos doentes estavam nesse grupo etário e 42,8% tinham 15 a 29 anos. IVERSSON, Lygia Busch. Aspectos epidemiológicos da meningite meningocócica no município de São Paulo (Brasil), no período de 1968 a 1974. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 1-16, mar. 1976. Disponível em:<http://www.scielo.br/>. Acesso: 3 jun 2020. SCHNEIDER, Catarina, TAVARES, Michele, MUSSE, Christina. O retrato da epidemia de meningite em 1971 e 1974 nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo. In RECIIS – Ver. Eletron. de Comum. Inf. Inov. Saúde. 2015 out.-dez.; 9(4). 6 REVEL, Jacques e PETER, Jean-Pierre. Corpo: o homem doente e sua história. In História: novos objetos. Jacques Le Goff e Pierre Nora. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995. 509 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) me trocar por madeira morta. Foram dias difíceis depois. Orações e promessas foram feitas a um deus que era primeira opção, chá de picão, imersão em efusão de rama de mandioca, toda a farmacopeia de conhecimentos populares foi atualizada; ingeri os medicamentos da farmácia, religiosamente; certo dia, ainda amarela, fui levada a um curandeiro, toda a ajuda era necessária. Vó Maria, suas mãos, raminhos e dizeres de benzedeira sabida foram monopolizados em meu favor. Além de tudo, eu fui amada de um modo maior que os cuidados que tive. A Sirley, disseram, parecia com minha mãe: olhos grandes, cabelos pretos, pele alva. Eu era diferente, nasci no meio de uma dor sem fim e me parecia à magreza do Seu Raimundinho. Eu vim ao mundo sem peso no corpo, não quis o leite do peito, minha alma trazia memória/gene de outrem? No ventre eu senti seu pânico, no colo eu sofri sua angústia, eu sou fruto da epidemia de 74. Concebida no desgosto de uma perda, gestada no luto da morte, amada como se reencarnação dela fosse, eu sobrevivi, inclusive ao risco inerente da reação insana e contraditoriamente consciente de quem tem medo e não sabe o que pensar/fazer. Hoje, eu melhor compreendo minha história e ressinto todos em mim, Sirley sucumbiu à meningite ou paralisia infantil — ninguém se dignou a informar — sozinha em um quarto frio. Retornou ao colo dos seus em um caixão minúsculo, sem ser revista. Ela não se materializou em foto, ela existe na lembrança de um nome que de algum modo se inscreve em mim. Agora ouço e vejo dia a dia a dor de perdas sofridas por outros, penso nela. Doutora, sem veste branca, volto aos arquivos e busco em jornais digitalizados, que acesso fácil do meu home office (tendo ao meu lado uma filha que faz em breve nove anos): não existe nenhuma Sirley; também não se encontra muito sobre epidemia; inexistem ou pereceram, como Raimundos e Anas, em silêncios traumáticos que cobravam gritos. 7 Por que eles estão duplamente apagados? Pela relação lógica entre saúde e política, a doença foi, naquela época, considerada questão de segurança nacional e censurada; porque incapaz de dar resposta à epidemia (importando vacinas em curto prazo), o estado brasileiro, sob regime ditatorial/militar, impediu a menção à doença nos meios de comunicação; o que foi possível enquanto a moléstia estava restrita às regiões e populações carentes, mas a notícia ganhou as páginas dos jornais e a sensibilidade da opinião pública quando os bairros nobres começaram a ser atingidos. 8 Em 1974, muitas vozes foram caladas, palavras embelezadas para mascarar a crueza de desaparecimentos como o de Sirley. Eles tinham uma experiência de dez anos no assunto. Em 1985, os gritos de Anas acordavam sensibilidades e mostravam feridas abertas. Histórias de tantas vidas, perdidas! Em 2020, uma epidemia escancara o risco de um retorno atormentador. E por isso, talvez, socialmente afastada, eu anseio recordar. Eu aspiro poder escrever por Sirleys, por Anas, por Raimundos, por corpos e almas, por vidas que sofrem, por mim; mas receio repetir o atendente de cartório que anota o que quer; ou me perder em um apanhado de angústias subjetivas e passadas. Há medos incompreensíveis aqui onde habito, deve haver em outros lares de quarenteneers como eu, vozes 7 Em Goiás, a situação começa a preocupar. Estado de São Paulo de 26 jul 1974. Foto: Acervo Estadão. Disponível em: http://m.acervo.estadao.com.br/. Acesso: 3 jun 2020. 8 Uma epidemia sob censura. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/revolta/pdf/M9.pdf 510 Maternidades Plurais abafadas, sofrimentos não explicados. Quem sabe? Quem perguntou? A quem interessa o estardalhaço ou o mutismo? Sou levada a acreditar que a afonia dos corpos comuns, expostos em números ou enterrados em covas comuns, expõe sinais que eclode nas telas, reflete em nosso espírito, desgosta nossos sentidos e grita que o silêncio histórico sobre o acontecimento banalizado da vida e da morte não é mais possível. Me parece que nunca o passado se mostrou tão presente. Quando a epidemia migra dos bairros de classe média/alta para os populares, perigosamente, as estratégias, medidas e ações restritivas e de distanciamento social são flexibilizadas, números questionados e revisados, a imprensa — seu papel, seu modo de divulgação de informações — criticada. E meus olhos gotejam pelas imagens dos que enterram os seus sem poder se despedir. Queria descrever esses ressentimentos, encontrar esse mundo inteiro, tateá-lo nos fragmentos de mim. Qual seria o caminho de acesso a essa escrita sensível? Talvez haja a demanda por outra racionalidade, onde a verdade daqueles que não são heróis e não possuem grandes feitos a apresentar não pertença a história dos historiadores, talvez o seu lugar seja a história dos poetas, onde ficção não se confunde com mentira.9 Onde o valor da verdade, para além do vivido, situa-se no peso de seu significado, deste modo “o real deve ser ficcionado para ser pensado”.10 Seria a ficção o modo de acessarmos corpos que sofrem, mães que decidem sobre vida/morte, enfermeiros, assistentes e médicos que precisam seguir normas estabelecidas em escritórios e ministérios, crianças/adultos/velhos objeto de decisões alheias? O subjetivo no político se alcançaria na opção pela via literária, onde a identificação do eu é potencializada. De diversos modos eu sinto forte o passado no presente. De 1974 restaram espíritos fustigados pelo sofrer calado. É desse modo, que individual, particular e afetivamente o meu cotidiano de afastamento social é habitado pelo passado e seus fantasmas, que têm nomes, rostos, histórias que se transfiguram em mim. O passado presente, revisitado e anotado expõe minha sensibilidade, mas permanecem os vazios de sentimentos intransponíveis. Nas fisionomias que recordo Ana, Raimundo não consigo traduzir o que havia, só vejo silêncio. E é ele que revela. Eu chamada Leysir me fui inscrita outra. De modo único, nesse momento, me sinto mais que duas. E todos os não ditos, os incômodos silêncios que explicam nosso passado, me colocam do avesso. Escancaram meu corpo/alma no espelho, mas não se deixam escrever. Estas lembranças têm me infligido dias sem fala e escrita. Meu exercício cotidiano, tentando melhorar o passado, tem sido o de migrar do espaço do vazio e silêncio para o das palavras e imagens. O objetivo buscado é o de reconfigurar o subjetivo no político, e o político no subjetivo de modo compreensível para mim e para outros. Acurar meus ouvidos, olhos e sentidos para a voz, pensamentos e corpos dos outros. Encontrar-me fora. Os fantasmas, estranhamente íntimos, ocupam meu escritório. Bagunçam minha mesa. Eles gritam os tantos silêncios sofridos. Desejo preencher os papéis e ocupar o espaço branco. Voltando a 1976, ressuscitar, pelo avesso, os mortos de 1974. Eles exigem aparecerem nos meus escritos, como em meu nome. Fazer as pazes com o escrivão que tenta tomar possessão de minhas mãos e poetizar as angústias. Passar por 1985 e pensar que o poder, o medo, a frieza e desumanização 9 RANCIÈRE, Jacques. Le partage du sensible: esthétique et politique. La fabrique éditions. Paris, 2000. 10 Idem, p. 61. 511 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) das instituições devem ser questionados e vencidos. Alcançar 2020 sabendo que há muito passado pela frente: melhoremo-lo. 512 Maternidades Plurais 84 Pesquisa e maternidade: como conciliar tudo isso com a pandemia de Covid-19? Leile Camila Jacob Nascimento1 Antes de mais nada, gostaria de me apresentar e contar um pouco de minha trajetória até chegarmos à situação que estamos vivendo hoje. Sou Camila, biotecnologista, desde o primeiro ano na universidade já fazia iniciação científica (IC), ao longo destes oito anos, acabei fazendo três projetos de IC e engrenei no mestrado. Casei, mudei de casa duas vezes, hoje tenho 29 anos e há dois tive meu filhote, o pequeno Ulisses. Estou finalizando um mestrado longo, marcado por licença maternidade, altos e baixos e reviravoltas. O planejamento para este ano seria até o mês de junho defender o mestrado, tentar o doutorado, avançar, concluir projetos, marcar “check” em mais uma porção de coisas em uma lista que tinha feito para minha vida. No caso de mães cientistas e pesquisadoras, a carga mental, que já existiria de qualquer modo, muitas vezes só pelo simples fato de sermos mulheres, agrava-se mediante à profissão que escolhemos. Nosso trabalho não acaba quando saímos da universidade/ laboratório/clínica/instituição. Afinal, o terceiro turno começa assim que chegamos em casa. A penumbra da chegada do novo Coronavírus no Brasil assustava, no final de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, mas nem nos piores pesadelos imaginaríamos que hoje vivenciaríamos uma pandemia. Tudo foi muito rápido e intenso, não tive tempo de respirar, de pensar, de refletir. Eu tinha uma viagem a trabalho marcada, mil planos, muitas análises para finalizar e, nessa rotina complicada, cansativa e intensa, uma criança pequena. Um serzinho que precisa de cuidado, de amor de atenção, que precisa ser levado à escola, que precisa de banho, de fraldas limpas e que não dá a mínima se você tem que publicar um artigo ou se seu experimento está atrasado. Quem não tem filhos faz ideia, mas só quem sabe do que realmente estou falando são as mães. Mães que dão tudo de si no trabalho e que fazem de tudo por seus filhos. Durante esse novo cenário e decisões para conter o avanço da Covid-19, muitas de nós não tiveram a oportunidade de fazer teletrabalho ou terem suas aulas suspensas. Diante disso, imagino as adaptações e as dificuldades que estão enfrentando diante de escolas fechadas. Mas, aqui trago o meu 1 Bacharel em Biotecnologia. Mestranda no Programa de pós-graduação em Biotecnologia em Saúde e Médica Instituto Gonçalo Moniz, Fundação Oswaldo Cruz, Salvador, Brazil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7245315938979879 513 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) relato. O relato de uma aluna de mestrado em fase final de entrega de uma dissertação com um filho de 2 anos para cuidar sozinha durante uma pandemia. As aulas para meu filho foram suspensas no dia 15 de março de 2020, desde então tenho ficado em isolamento social com ele, em casa. Meu marido é do grupo de risco para a Covid-19, pois tem asma brônquica e não parou de trabalhar (outra questão para me preocupar, mas vamos adiante). Então, de segunda a sexta de 6h às 18h (às vezes um pouco mais que isso) somos só eu e meu filho. Acordar, fazer café, comer, dar o “gagau” da criança, lavar louça, lavar roupas, fazer compras, limpar compras, varrer, cozinhar, brincar, dar colo, dar banho, colocar para dormir, gritar “Cuidado!” e “Vai cair!” várias vezes ao dia. É incrível como mãe não tem rótulos nem títulos! A instituição que faço parte, minha equipe, orientadores e o programa de pós-graduação foram extremamente assertivos nas decisões de parada de atividades e no entendimento da seriedade do cenário epidemiológico e das medidas a serem tomadas. Me sinto privilegiada, pois sei que nem todas as mulheres na mesma situação que me encontro tiveram o mesmo tratamento e oportunidades. No entanto, e como era de se esperar, não havia condições de finalizar a dissertação no tempo previsto (04 de maio de 2020) e tive que solicitar a extensão do prazo de entrega ao colegiado da minha pósgraduação. No meio de tudo isso, a readaptação de uma rotina de trabalho com meu filho, que antes eu coordenava e, a partir de agora, é nova, indefinida, incerta. Essa falta de controle, principalmente no primeiro mês de isolamento social, me levou a ter crises de choro, de ansiedade. A pressão que sentia era tanta que não conseguia fazer tarefas domésticas direito, cuidar do meu filho direito, dar atenção ao meu marido, e fazer atividade relacionadas ao mestrado era quase impossível. Eu precisava ser produtiva no meio desse turbilhão de atividades a cumprir, vírus novo, recomendações, máscaras, álcool em gel... Isso é possível? Como é possível? Para entender tudo que me angustiava, eu precisei desacelerar, respirar. Diante disso, quero aqui trazer algumas reflexões sobre a quarentena. Apesar das reuniões constantes, das análises e dos prazos, ninguém estava me cobrando nada, a maior pressão estava vindo de mim mesma. Então, comecei a conversar com amigas que estavam passando pela mesma situação que eu, com minha família, e ler conteúdos sobre o tema. Recomendo muito as páginas: Parent in Science e Cientista que Virou Mãe. Saber que não estamos sozinhas nos empodera. Assim, comecei a buscar o equilíbrio, a tentar me permitir não fazer nada, a dormir quando o bebê dormisse, em vez de ir correndo para o computador tentar ler artigos e produzir algo em 1h, ou a usar esse tempo para lavar pratos e varrer casa. Me dei conta de que não precisava deixar tudo sempre limpo, que a louça na pia podia esperar. Percebi, já imersa no problema, que minha saúde mental estava sendo comprometida. Caso alguém esteja passando por uma situação igual ou parecida com a minha, aí vão algumas dicas: você não TEM QUE ser produtiva, você não TEM QUE manter tudo em ordem, você não TEM QUE se envolver em projetos novos ou fazer 10 mil cursos online. Se pessoas que não têm filhos, nas mesmas condições que nós, estão tendo dificuldades, imagina a gente? O momento que estamos vivendo vai entrar para a história mundial, daqui a 100 anos ainda falarão sobre isso. Claro que a vida precisa seguir e os planos também, só que estamos vivendo algo sem precedentes. Isso é fato! 514 Maternidades Plurais A partir do momento que entendi isso e internalizei essas questões, as coisas começaram a melhorar. Eu consigo cuidar do meu filho, brincar com ele, dar amor e atenção. Consigo cuidar da casa, do marido, ter contato saudável com família e amigos e manter uma rotina para o trabalho. É importante deixar bem claro que isso não acontece de forma linear, acontece ao longo dos dias, não controlo como vou me sentir amanhã, não controlo se meu filho vai dar porre, o horário que precisará trocar a fralda, se vai faltar luz em casa, se vou ter um desentendimento na família, se vou ter dor de cabeça. Eu tenho focado em um dia de cada vez, eu tenho feito o que posso, na medida que eu posso e QUANDO eu posso. Essa é outra questão muito importante salientar, a culpa é traiçoeira, não se culpe por estar cuidando de seu filho, não se culpe por estarmos em uma pandemia. NÃO SE CULPE! Isso tem feito uma diferença enorme na minha saúde mental e espero que, depois de ler este texto, faça diferença para você também. Desde então o contato com orientadores começou a ser menos frequente e mais objetivo. A primeira versão do manuscrito ficou pronta, mas ainda restam a correção dos orientadores, ajustes etc. Eu tenho seguido me informando sobre os casos de Covid-19, a situação da minha cidade, as perspectivas para curto e médio prazo. As redes sociais viraram um resumo dos jornais. Por esse motivo, tenho filtrado o que quero ver para evitar que a ansiedade tome conta. Soube da oportunidade de compartilhar essas experiências a partir de uma postagem em um grupo de pós-graduação. No mesmo instante, sabia que precisaria achar tempo para contar minha história. Só que não existe tempo ideal para quem vive uma situação como a nossa. Os desafios não param. Escrevo este texto na sala, com Ulisses andando de um lado para o outro no sofá e a televisão ligada no desenho animado. A luta diária continua, não tem sido fácil, não é fácil. Nosso país vive um momento de muitas crises e, mesmo que a pandemia da Covid-19 acabasse hoje, ainda teríamos de lidar inúmeras outras questões contemporâneas e históricas no Brasil. Se como ser humano já é difícil lidar com todo esse cenário, sendo mulher, mãe e pesquisadora a dificuldade é muito maior. Às vezes me pergunto como os meus colegas me veem, como a academia me vê. Será que sou útil? Será que eles enxergam o fato de eu ter um filho como um defeito? Será que eu estou no lugar certo? Eu não tenho todas as respostas, mas eu posso dizer como eu me vejo. Me vejo como uma mulher batalhadora, independente, multitarefas. Vejo uma mãe amorosa, atenciosa, cuidadosa e apaixonada por seu filho. Vejo uma pesquisadora competente, inteligente e segura, prestes a concluir o primeiro passo de uma carreira promissora. Assim sendo, procure refletir o tanto de atividades que você realiza, mesmo diante de tanta coisa. A forma como nos vemos impacta diretamente como os outros irão nos ver. Nós, mães, mulheres, cientistas precisamos saber que nossos filhos não nos minimizam, que ter uma família e vida social não é defeito. Muito pelo contrário, justamente por causa desta ideologia de que você tem que viver para a pesquisa, a qual foi construída ao longo dos anos na academia, é que muitos pós-graduandos têm desenvolvido depressão, ansiedade, síndrome de burn-out, entre outros transtornos psicológicos.2 2 WOOLSTON, Chris. PhDs: the tortuous truth. Nature, v. 575, n. 7782, p. 403, 2019. 515 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nós não somos robôs, nós temos — e precisamos ter — uma vida fora da academia. E nossa vida pessoal, nossas escolhas, nossos amados filhos, eles não deveriam ser motivo para nos sentirmos diminuídas. São motivo de orgulho, de incentivo. Eles são nossa força motriz. Esta pandemia irá passar, as coisas irão se ajustar, nós iremos retomar os projetos e as pesquisas como tanto almejamos. Mas, para tanto, é preciso sobreviver! E isso envolve nossa saúde física e mental. Na minha opinião, ainda existem muitos tabus a serem quebrados no que diz respeito às relações entre maternidade e academia. Assim, não se negligencie, o mestrado/doutorado pode aguardar, seus filhos não! Para finalizar eu queria trazer a reflexão das coisas positivas que a quarentena me trouxe. Poder passar esses meses bem juntinho de meu filho não tem preço. Estes seriam meses em que ele estaria mais tempo na creche do que comigo. Não teríamos um tempo de qualidade juntos, eu estaria cansada, sem paciência. Com isso, eu tenho aproveitado cada segundo com ele, tenho dado muito carinho, tenho deixado ele fazer bagunça na casa, tenho sido compreensiva com ele e comigo mesma. Nossa vida não precisa ser um eterno dilema entre maternidade e ciência. As duas coisas podem e devem caminhar juntas, na medida do possível, com adaptações, algumas limitações, mas definitivamente não como um empecilho. 516 Maternidades Plurais 85 Carta às mães cientistas, aos nossos filhos e aos que virão depois Liana Hilda Golin Mengarda 1 Caras colegas mães cientistas, Confesso que não me confesso faz tempo. Quando eu era mais jovem costumava escrever no meu diário, que era também meu confessionário. Eu costumava transformar as minhas confissões em letras de música. Eu escrevia cartas para as minhas amigas de adolescência, minhas confidentes. Fui crescendo e parei de me confessar; deixei de escrever sobre coisas cotidianas. Aliás, meu cotidiano passou a ser a sala de aula, a bancada do laboratório, a pesquisa. Então passei a escrever artigos. E nenhuma confissão por um bom tempo... Mas agora tenho uma confissão a compartilhar: embora escrever faça parte da minha vida, sinto que somente com a existência da minha filha eu comecei realmente a escrever a história — a nossa história, aquela que será contada a diante. Pois filhos são herança, são obra, são jornada. Filhos são o nosso futuro! Ah, o futuro!?! Temos uma novidade quanto ao futuro: um vírus que atravessou todas as barreiras sanitárias e da nossa sanidade. E por uma infinidade de circunstâncias atribuídas a ele acredito que a maioria de nós esteja reescrevendo as suas histórias e reescrevendo o nosso futuro. Ouvimos muito que a pandemia Covid-19 está sendo um marco para uma nova Era da Humanidade. Que a vida não será a mesma quando a pandemia passar. E não será mesmo! Afinal, a vida já não é igual a um segundo atrás. Foi preciso passarmos por isso para entendermos coisas tão simples? Este momento tão atípico nos fez entender alguns dos mais complexos dilemas de nossa própria existência. Autoconhecimento!?! Também tivemos a oportunidade de nos aproximamos verdadeiramente dos nossos familiares; passamos a apreciar e a tentar entender seus dilemas existenciais também. Quanta riqueza! 1 Mãe da Catarina Liz, 2 anos. Bióloga, Doutora em Produção Vegetal pela Universidade Federal do Espírito Santo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4212047276110003 517 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Não confundam isso com otimismo! Muito pelo contrário, sendo bióloga e pesquisadora, reconheço que o realismo do qual sou adepta conversa bem melhor com o pessimismo. Mas reconheçamos que também há beleza no caos. Há oportunidades de crescimento e de enriquecimento. Neste momento, a verdade é que, se temos saúde, somos privilegiados. Se temos um lar e uma família, somos ricos demais... E se temos filhos, ah... somos muito felizes! (Gratidão imensa pela vida de minha filha) E voltando a falar em futuro... Imaginem só por um instante: esta publicação datada do ano de 2020 sendo “descoberta” daqui há milhares de anos por uma civilização vindoura. Nossos descendentes? Espero que sim! Esses textos seriam lidos como agora lemos os pergaminhos ou as inscrições rupestres. Seriam relatos suficientemente intensos e claros para que soubessem o que vivemos e o que sentimos? Ou nossos textos seriam poéticos e misteriosos... para que eles precisassem “montar o quebra-cabeças”, assim como um paleontólogo monta o corpo do dinossauro a partir dos fragmentos de ossos de uma costela fossilizada; e que, a partir daí, tirassem suas próprias conclusões sobre nossos hábitos de vida, nossas atividades e nossas emoções? Pessoalmente, eu prefiro o lado misterioso e poético. Mas, como cientista, e neste momento em particular, preciso problematizar a questão! Afinal, a ciência se nutre de um problema, de uma boa justificativa, de hipóteses e da experimentação. Então vamos lá:    Certamente temos um problema: devido a pandemia vivemos sob preocupação e estresse constantes, em quarentena e praticando distanciamento social, mães e filhos em casa todo o tempo, com as aulas suspensas e em home office. A “minha” justificativa: compartilhar experiências com as colegas mães cientistas me encoraja, me fortalece e me anima! Algumas das possíveis hipóteses: 1. o período de quarentena tem sido especialmente estressante para as mães de filhos pequenos, assim como eu; 2. o desejo de contribuir social e cientificamente das mães cientistas é maior mediante a esta situação de crise, mas esbarra numa situação cotidiana atípica de estar em casa com os filhos o tempo todo, assim como eu estou.  E, finalmente, a experimentação: nossas aventuras cotidianas com nossos filhos! Eles fundamentalmente são a nossa prioridade. Mas estamos experimentando uma nova rotina, tão deliciosa e prazerosa quanto sufocante e exaustiva. Vivendo intensamente, mergulhando profundamente num oceano de incertezas sobre o futuro que essa pandemia nos apresentou. Certa vez em um teste de personalidade era solicitado que se atribuísse um adjetivo para a palavra “oceano”; depois relacionava-se a ele o “significado da sua existência”. Ao responder este 518 Maternidades Plurais teste, o meu adjetivo para oceano foi “profundo”. Penso que faz muito sentido — que cada vida é, verdadeiramente, um oceano profundo, vasto, imenso... Acontece que o significado de existência se intensifica com a maternidade, se expande para outra vida... Maternar é navegar em águas profundas, misteriosas e tempestuosas. É verdadeiramente assustador para uma mãe de primeira, segunda ou quantas viagens ela tiver pela frente. E numa situação como esta, em meio a uma pandemia? Então, se nesta viagem a nossa existência é um oceano... eu posso ser o barco e minha filha é o meu tesouro, enquanto o amor é a nossa bússola. E só por causa do imenso amor de Deus por mim, e do meu amor incondicional pela minha filha, que por mais forte que seja o vento e mais altas que sejam as ondas, vamos chegar ao outro lado. Vamos passar por essa pandemia e vamos sair mais fortes. E espero que com o passar dos anos, quando tudo estiver bem, possamos recordar disto como uma grande (e assustadora) aventura... Muitos de nós têm filhos com idade suficiente para compreendem bem os fatos e acontecimentos. Os que têm filhos pequenos poderão contar em detalhes como foi quando eles forem maiores. Mas aos que virão depois, como esta história será contada? Eu desejo que eles se apropriem desta lição que estamos vivendo. O que aprendemos com isso, de fato, não será publicado em artigos científicos. Eles saberão pelas histórias que vão ouvir de nós ou, por que não, que contaremos a eles através deste livro... Aos nossos filhos e aos que virão depois Meus queridos, Nós somos os antepassados que estavam aqui neste local chamado de planeta Terra no ano de 2020. Graças a generosidade quase infinita da mãe natureza pudemos desfrutar de uma vida maravilhosa. Neste ano, infelizmente, algumas coisas mudaram e desfrutar da natureza tem sido minha maior carência. Sabe, quando eu era criança o ano de 2020 estava tão distante... Por vezes achei que neste futuro a gente teria roupas tecnológicas multifuncionais que nos permitiriam voar, mergulhar e correr. Com elas poderíamos nos deslocar para onde quiséssemos sem usar combustível e sem lançar nenhum poluente no ambiente. Nunca imaginei que, em 2020, estaríamos fazendo coleção de máscaras de tecido (pois as descartáveis não se encontram facilmente para comprar). Elas são um acessório agora indispensável. Nunca pensei que estaríamos impedidos de transitar livremente, e não me refiro a convenções, leis ou regras, mas sim a necessidade, ao medo, e a consciência de cada indivíduo. Também pensei que nesta data já haveria caminhos para a humanidade ser menos agressiva ao planeta... 519 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nunca fui otimista (eis um dos meus maiores defeitos). Mas nem mesmo a pessimista que sou poderia ter imaginado viver essa singularidade. Não tenho outro nome para isso, pois é um momento tão particular e inédito; tão singular que estamos todos meio perdidos sem saber como agir e o que fazer. E sabe mais o quê? Temos vocês, nossos filhos! Tão pequenos, tão frágeis e dependentes de nós. Filhos, saibam que não tem sido simples nem fácil. Mas somos fortalecidos e encorajados pela sua pureza e ingenuidade. Aprender a lavar a mãozinha direito, espirrar e dizer “aúdi (saúde) mãe”, achar o máximo usar máscara, tudo é festa, descoberta e alegria! Traz leveza aos nossos dias. Obrigada por existirem e serem a força que precisamos para seguir! Aos que virão depois, espero que o futuro incrível que sonhamos para nós mesmos quando ainda éramos crianças seja de vocês. Espero que a humanidade reconheça seu egoísmo e imediatismo, entenda e reescreva sua história a partir daqui. Este é um breve relato de como estamos vivenciando juntas (minha filha e eu) algumas particularidades deste momento. Os primeiros dias da quarentena: Minha menina, tão sagaz, inteligente. Me fita com esse olhar de confiança plena e mal sabe ela que eu não sei o que fazer. E agora? O foco é priorizar a saúde e a segurança, nosso núcleo familiar está fechado em quarentena. Ela não compreende a gravidade da situação, mas sabe que algo está diferente. Está curtindo muito ter o papai e mamãe em casa quase o tempo todo! Mas sente falta dos lanchinhos no calçadão, dos encontros com os amiguinhos, o parquinho na praia ao entardecer, nossos rolezinhos no shopping. Mas vai passar logo! Vamos suprir essa demanda com novas brincadeiras. Vai dar certo! Tutoriais e lives da internet. Não vamos deixar o tédio entrar neste lar! Uma nova diversão é olhar pela varanda e gritar para as outras crianças nas outras varandas. E chamar a atenção das senhorinhas, com tchauzinhos e beijinhos... Vai passar logo (que logo que nada)! Ela vai sentir falta sim, vai ficar mais agitada, vai dormir menos, comer algumas besteiras, assistir mais tv. Mas vai passar logo (que logo que nada)! Primeiro mês da quarentena: 520 Maternidades Plurais A casa está virada num caos, o meu humor muda a cada 20 minutos, não consigo trabalhar, a webconferência acontece em meio a guloseimas, playlist infantil, gritos, choro e resmungos. — Mãaae, cóio (colo)! — Não estou dando conta! (Ei, não se cobre tanto...) Já que eu não consigo produzir o quanto gostaria, vou “ajudar” respondendo todas as pesquisas online das universidades e dos institutos. Enquanto isso, sou colo, sou mãe. Vai passar logo (que logo que nada)! Será que a carência de socialização vai prejudicar o desenvolvimento dela? Poxa, logo nesta fase tão importante para a formação da personalidade, da fala... Mas vai passar logo (que logo que nada)! E as semanas se estendem. E os dias se repetem. O esforço para entender é enorme, mas também inútil. Oração, aceitação, gratidão pela saúde. Não deverá passar tão cedo! E passado o tempo: Minha filha, escute o que sua mãe tem a dizer! Somos humanos, tão falhos, e tão egoístas, trancados em nosso mundinho, preocupados com o pão de cada dia. E esquecemos de nos compadecer com as vidas, com as perdas, e com as vidas perdidas... (imenso pesar pelas vítimas e suas famílias). Sinto muito por isso! Me perdoe! Demorou! Mas então começamos a entender, e voltar a viver! E agradecer mais e mais pelas pequenas coisas, engrandecer a esperança, pois dias melhores virão. Temos que cultivar a esperança, sentimento mais nobre não há! E agora, minha filha, sobre as lições que aprendi. Sou grata por isso! Entre as coisas que se tornaram explícitas para mim após a maternidade e, especialmente, durante essa pandemia, quero compartilhar algumas:     O ontem é experiência, o amanhã é esperança, e o hoje é dádiva. Tão importante quando a experiência e a esperança é aceitar a dádiva, viver e agradecer por hoje. Sejamos sempre gratos! Ter saúde e estar com quem amamos são os maiores luxos da vida. Virtual é o novo normal. Mas vídeo chamadas não matam saudades! Poder ficar em casa é privilégio de poucos. 521 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.)        Compassividade e conivência estão bem próximas, mas não são a mesma coisa. Além de sofrermos com a pandemia, também sofremos com uma “infodemia” — doença causada pelo excesso de informação e pela enxurrada de desinformação (Fake News). É preciso se cuidar e não se deixar contaminar. Mães têm medo, filhos têm confiança. Uma criança pequena confia em seus pais, se estes a chamam para sair ela simplesmente vai, sem perguntar para onde ou por que, e nem que horas volta. Devemos nos colocar no lugar de filhos de Deus (verdadeiramente) e confiar mais. A quarentena nos provou o quanto somos resilientes — nos adaptamos facilmente. Reclamamos demais, é verdade! Mas podemos mudar, e rápido! Precisamos levar isso em conta para aperfeiçoarmos nossos hábitos e nossas atitudes, termos mais responsabilidade social e ambiental. Nossa vida não será a mesma depois que a pandemia passar. Ela não é a mesma ao abrir e fechar os olhos! A cada segundo que passa aprendemos algo, mesmo que involuntariamente. Crescemos e achamos que não precisamos aprender mais. Temos preguiça. Mas uma das coisas mais incríveis de ser mãe é aprender. Tão lindo e emocionante quanto ver uma criança aprender — eles são telas em branco, ávidas por cores, com todos os tons, nuances texturas e sabores! Nunca tenha medo (ou preguiça) de reescrever, mil vezes se for preciso. Faça disto um exercício. E lembre-se que os rascunhos fazem parte da sua vida também, não os jogue fora! Eu acredito mesmo que a maioria de nós esteja reescrevendo as suas histórias! Muitos que antes se achavam moldados e completos estão se descobrindo disformes e vazios (e vice-versa)! É um processo, e cada um está vivendo o seu — particular, difícil e doloroso. Me compadeço das suas dores e angústias. Mas saibam, ao reescrever nossa história em particular, mudamos o destino de muitos, e o futuro de todos! Tenham consciência disso, sejam mais altruístas e constantes. Nossa mãe natureza com sua generosidade quase infinita nos permitiu desfrutar de uma vida maravilhosa. Tenho certeza de que o desejo de conceder isso aos nossos filhos (e aos que virão depois) é de todos nós! E quanto a nós mães, vamos levantar a bandeira: a mão que embala o berço é a mão que rege o mundo! Concordo sobre a quão poderosa é a influência que nós mães exercemos sobre as gerações futuras. Tenhamos consciência disso. Me reconheço na realização do meu sonho em ser cientista. Mas volto a me confessar aqui: tenho convicção que o meu melhor papel na sociedade é a maternidade. Maternidade é também a minha profissão! Prazer, sou mãe e cientista! E voltando a falar em confissões, quero deixar uma última. Confesso que depois da estranheza e do desespero inicial, eu estou apreciando essa quarentena. Logicamente não podemos desconsiderar o motivo, que representa uma tragédia sem precedentes, não me entendam mal. Eu me refiro sobre a 522 Maternidades Plurais história “de verdade” que eu mencionei estar escrevendo junto com minha filha. Aquela que eu tanto me orgulho por estar escrevendo. Este capítulo vai ser especial, sensacional. Porque eu tenho a ela, e ela tem a mim! 523 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 86 Ser mãe e cientista na pandemia Lirian Melchior1 Regina Melchior2 A maior dificuldade em ser mãe e cientista e estar em isolamento por conta do Covid-19, é entender que é impossível ficar em total isolamento sendo mãe e que, para ser cientista, este é necessário. Vivemos dias bastante controversos: o fato de estarmos em casa nos faz pensar que estamos com um tempo maior, temos mais disponibilidade para ler, escrever, pensar, pesquisar e produzir! Não temos outras tarefas que a vida acadêmica nos cobra em nosso cotidiano: nossas aulas são dadas de forma remota; de início, as reuniões se apresentavam com um número reduzido; não temos as sucessivas interrupções que aparecem em nossos laboratórios nas universidades; e até aquele social do cafezinho que nos faz perder tempo, nos distrai, mas também informa sobre o que está acontecendo em nosso departamento não estamos vivenciando. Não temos que nos deslocar no trânsito, fazer paradas para almoço e não precisamos nos importar com a falta de equipamentos e suprimentos que vivem as universidades públicas por conta de sucessivos cortes que a Educação vem sofrendo. Em um universo hipotético estaríamos no melhor dos mundos, afinal quem nunca sonhou ter tempo suficiente para se dedicar à pesquisa e fazer leituras somente de temas que lhe fazem evoluir em seus questionamentos para a pesquisa? Um mundo em que o olhar pudesse estar centrado no seu foco de análise, o que lhe faria produzir muito e com uma grande qualidade? No entanto, este mundo sonhado, que no início da pandemia parecia ser super promissor, passou a tomar outros rumos e que, para não ser cruel demais adjetivando-o como um pesadelo (!), podemos dizer que estamos vivendo um momento único, singular e que torcemos para que acabe logo! É interessante pensar que vivemos sentimentos bastante paradoxais: se de um lado sonhamos com uma vida produtiva academicamente, cheia de descobertas e aprofundamentos teóricos, também, enquanto mães, sempre idealizamos um mundo em que pudéssemos dar uma atenção integral e com Professora Associada – Departamento de Geografia – IA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6002890196808326 1 Professora Associada – Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6855186768690746 2 524 Maternidades Plurais bastante qualidade aos nossos filhos! A ideia de fazer todas as refeições juntos, acompanhar mais de perto a vida escolar dos pequenos, ajudar em suas tarefas e entender suas angústias e preocupações de uma forma mais presente e eficiente — poder dar colo, abraços, colocar para dormir e ver acordar, brincar, assistir filmes, séries e desenhos que inundam suas mentes e formam sua personalidade — enfim, ser a mãe que está disponível e pode entender os sentimentos de seu filho somente pela sua respiração (!) é algo que nos é cobrado, sobretudo por nós mesmas e que nos fez pensar que este seria um momento em que nos tornaríamos esta super mãe!! Mas e agora? Depois de mais de 100 dias isolados em nossas casas, presos em alguns metros de nossos apartamentos, com nossos livros, computadores e filhos, por que não conseguimos concretizar nossas expectativas enquanto mães e profissionais? Criança trancada em casa fica deprimida, fica ansiosa e clama a atenção dos pais o tempo todo! Criança trancada em casa, não consegue extravasar suas emoções e energias, não consegue dividir seus sentimentos por meio de palavras, e a rotina doméstica vira um turbilhão de emoções ao longo do dia, uma montanha russa de sentimentos e, infelizmente, não podemos fugir deste parque! As crianças só têm aos pais neste momento, são pequenas, não entendem o que está acontecendo — nem os adultos entendem — e o sofrimento é inevitável e se manifesta de diversas maneiras e, mais uma vez, acabamos por carregar uma culpa visceral por não dedicarmos tempo suficiente aos filhos. Por que a vida como mãe com tempo integral para os filhos se torna tão sacrificante? O que houve com estes dois mundos que construímos em nosso universo ideal que não se apresentam de maneira tão perfeita assim? O fato é que estes conflitos maternos e profissionais que vivenciamos em nosso cotidiano, quando unidos, intensificam ainda mais nosso sentimento de insegurança e cobrança pessoal. Conciliar estes dois mundos nos trouxe mais angústia e frustrações por não conseguirmos corresponder ao nosso ideal. Percebemos que nossas cobranças pessoais diárias existem porque a perfeição não é um elemento a ser encontrado; precisamos de nossas angústias e insatisfações para tentarmos superar os problemas e continuar nossa caminhada buscando nossa própria definição. Há muito somos cobradas, desde que saímos para trabalhar fora de casa, que temos que ser profissionais como se não tivéssemos filhos, todavia, temos que cuidar de nossos rebentos como se não tivéssemos um trabalho; e o pior é que assumimos esta culpa e sempre tentamos fazer mais e melhor do que os outros. A vida íntima, durante o isolamento, passou a ser angustiante por percebermos nossa limitação e que este mundo idealizado, enfim, não existe! E isso não está necessariamente relacionado com parceiros descomprometidos ou machistas. Mesmo quando temos parceiros que entendem a educação dos filhos e a administração doméstica como algo a ser partilhado, ainda assim, a construção histórica do papel da mulher na sociedade nos atinge, não nos poupa e nós mesmas assumimos ou nos impomos tarefas além das nossas forças. Centralizamos cuidados, nos cobramos responsabilidades que em nosso cotidiano fora de pandemia são delegadas a outros e outras e, neste momento, a cobrança pessoal pela perfeição parece não saber dividir. Por outro lado, buscar o isolamento dentro de sua casa para conseguir fazer atividades de pesquisa, leituras e reflexões parece uma missão impossível. A privacidade não existe em nenhum ambiente e as demandas dos filhos parecem ser infinitas! Como se concentrar, escrever, produzir se aquela voz de criança está sempre te chamando e pedindo alguma coisa? E como não dar atenção a 525 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) esta pessoinha que, naquele momento, precisa de você para compartilhar suas inquietações? É impossível ser insensível às necessidades das crianças! Este mundo que lhes está sendo apresentado é muito estranho e cheio de incertezas e, neste momento, nós mães (sobretudo cientistas) que sempre gostamos de dar respostas e acolher nossos pequenos, também não temos respostas! Como manter uma rotina normal de trabalho? Como ter momentos de auto isolamento e deixar os filhos mais isolados ainda? Além de tudo, nos reconhecemos ainda mais como seres sociais e a necessidade da informação sobre a pandemia é muito necessária. Sofremos com o número de pessoas que está morrendo da doença, pensamos no sofrimento de suas famílias e nos preocupamos em proteger os nossos. Precisamos de um olhar mais atento sobre a humanidade que construímos até agora. As incertezas quanto ao novo mundo que está sendo desenhado e quais serão os valores que nossos filhos irão tirar disto tudo é bastante inquietante. Mais uma vez, essa necessidade de proteção da prole, que também nos é socialmente introjetada, toma conta de nossos mundos e deixa nossos dias mais angustiantes. O fato é que ser mãe e cientista durante a pandemia e o isolamento social nos fez refletir no quanto somos dependentes de outras instituições: escolas, parques, universidades, são fundamentais para que consigamos unir plenamente este mundo que escolhemos para nós — mães e cientistas — precisamos dividir o cuidado de nossos filhos porque precisamos de um isolamento diário para conseguirmos pensar! Precisamos ter a segurança que ao deixarmos nossos filhos na escola estarão seguros (sujeitos talvez a apenas pequenos acidentes) e que voltarão para casa ansiosos por nossos abraços, assim como nós vamos adorar ouvir sobre seu dia. O isolamento social e o confinamento com nossos pequenos nos fez perceber que nosso amor por eles é imenso, mas que uma distância diária é saudável e necessária para nosso desenvolvimento (enquanto pessoas) e que eles também precisam de nossa ausência para se tornarem menos dependentes. Assim, não é somente o nosso tempo que a escola protege! A escola se vê reafirmada em seu papel de formadora, no tocante a educação formal. Sermos mães e ao mesmo tempo professoras de nossos próprios filhos se mostrou uma tarefa muito maior do que jamais imaginaríamos. Sentimos nosso direito de sermos “apenas” mães violado pela necessidade da “escola em casa”. Nossos filhos não nos veem como professora e nós tampouco os vemos como alunos, gerando assim mais um desgaste durante o confinamento. A tarefa de ensinar conteúdos escolares aos filhos em seu cotidiano, envolvidos por todos os distratores que o ambiente doméstico possa lhes trazer, sem a responsabilidade e os vínculos sociais que a escola determina é extremamente penoso. E, ainda, nos vemos imersas em uma série de conteúdos que não fazem mais parte de nosso universo de análise e muito menos temos o conhecimento e a didática para qual seus professores se formaram. A escola em tempos de pandemia teve de ser reinventada, assim como nós, mães, tivemos nossos papeis ressignificados no que se refere a capacidade da apreensão escolar de nossos filhos. Mas, talvez, o mais interessante destes tempos seja essa redescoberta quanto a nossa definição (se é que ela existe), e a consciência de que amamos os dois mundos que construímos, que temos limitações e que por mais que a cabeça não pare de pensar e ter uma ansiedade pela produção, sabemos discernir o que é mais fundamental neste momento e quem de fato necessita de nossa atenção, se não integral, que possa ser de grande qualidade. A vida acadêmica continua, nossas pesquisas 526 Maternidades Plurais continuam, mas as angústias geradas por este momento em especial, precisam ser trabalhadas e atendidas agora, porque nossos pequenos formarão as próximas gerações e não seria saudável — para o mundo — sermos responsáveis por possíveis futuros adultos frustrados, depressivos, melancólicos ou violentos porque não assumimos a nossa responsabilidade de zelar por eles e ajudá-los (por conta do nosso individualismo) a superar as dificuldades destes dias gerados pela pandemia do Covid-19 . Por outro lado, estamos vivendo um momento único para a ciência. Estamos no meio de um novo problema que, se já teve precedentes na história, agora surge em outra época em que as relações são outras, a forma de organizar e de sobreviver da sociedade é ímpar. Como não desejar estudar e pesquisar sobre a pandemia e sobre seus mais diversos aspectos, desde os estritamente biológicos até os mais amplamente sociais? Vários colegas, desde o dia zero do confinamento, saíram em uma corrida para montagem de projetos e logo os primeiros resultados começaram a pipocar em uma velocidade própria de nossos tempos. Isso gerou nos nossos corações de mães-cientistas uma angústia, vinda de uma cobrança maior que a institucional: a auto cobrança! Nas reuniões virtuais, muitos já envolvidos em projetos de pesquisa ou fazendo discussões sobre notícias, lives ou artigos e nós, nos sentindo encolhendo como cientista enquanto o papel de mãe passava a ganhar dimensões descomunais. Por que as mulheres/mães acadêmicas diminuíram tanto sua capacidade de produção 3? São tempos excepcionais, não devemos nos cobrar e tampouco cobrar as crianças! Mas como fazer isso se toda a lógica de organização da sociedade não mudou? Vivemos no mundo regrado pela lógica capitalista que somente atribui valor ao trabalho pago e quanto mais, melhor e não somente isto: quanto mais divulgado, publicizado ou quantificado na plataforma Lattes, mais valor! Os nossos parâmetros de avaliação continuam sendo métricos, tanto da universidade, quanto do ensino básico. Muitas mães reclamam nos grupos de debate que nossos filhos estão perdendo conteúdo, estão em desvantagem em relação ao colégio X, Y, Z; como será o vestibular e o ENEM? Que preocupações banais diante do iminente risco de adoecer ou morrer! Será que esta forma de ensinar que conhecemos ainda terá tanta relevância no mundo pós-pandêmico? Ou pior, será que nada irá mudar depois de tantos sofrimentos (mortes, adoecimentos, sequelas físicas e sociais) e angústias que estamos vivendo trancados tanto tempo em casa? Enquanto cientistas, como explicar para as nossas crianças que a sociedade vem repetindo seus erros há tanto tempo e que não conseguimos fazer nada para melhorar o sistema? Qual será o aprendizado disto tudo? Certamente estas reflexões sobre ser mãe e pesquisadora não são exclusividades destes tempos de pandemia. Este momento só fez amplificar algo que já vivíamos nos tempos “normais”. Desde que decidimos ser pesquisadoras e mães, vivemos nos nossos dias estes dilemas: me dedico a estudar sobre minha linha de pesquisa ou me sento ao lado de meu filho e leio histórias para ele? Dedico-me a escrever um artigo ou utilizo o final de semana para um passeio ao ar livre ou para assistir um filme? 3 Pesquisa publicada no The Lilly, April 24, 2020 Women academics seem to be submitting fewer papers during coronavirus. ‘Never seen anything like it,’ says one editor. Men are submitting up to 50 percent more than they usually would. Disponível em: https://www.thelily.com/women-academics-seem-to-be-submitting-fewer-papers-during-coronavirus-never-seen-anything-like-it-says-one-editor/. Acesso: 28 abr 2020. 527 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Sabemos que não é uma experiência individual, mas própria das relações de gênero estabelecidas em nossa sociedade. Não é incomum ouvirmos de nossas colegas de trabalho ou de nossas alunas que elas só conseguem estudar ou fazer seus trabalhos ou escreverem seus artigos após colocarem seus filhos na cama, quando a “casa está em silêncio”. E como já dissemos, não se trata de apenas termos ou não parceiros que revezem ou dividam tarefas conosco, mas sim, de como nós mesmas entendemos nosso papel e nossa responsabilidade ou da percepção de como somos socialmente cobradas. Mas voltemos à pandemia. Será que estas reflexões realizadas a partir dela podem nos apontar também novos caminhos para as mães-pesquisadoras? Acreditamos que sim, e que não é por ser algo tão estrutural em nossa sociedade que essa seja uma situação sem solução. Iniciativas como a do grupo de pesquisa Parent in Science4, que vem colocando este assunto em pauta na comunidade científica e que já obteve importantes conquistas, como o de ter critério específico para licença maternidade nos editais de financiamento e bolsas de várias instituições, ou mesmo, a proposta deste livro, que busca dar visibilidade à questão, são avanços. Mas acreditamos que seja possível mais! Por que não pensarmos em jornada de trabalho reduzida ou uma menor carga de atividades acadêmicas para que seja possível uma maior dedicação aos filhos? Ou mesmo, pensar em sermos avaliadas mais pela qualidade do que produzimos do que pela quantidade? E aqui, naturalmente, pensamos que não seja algo restrito às mães, mas para todos que assumem essa missão de cuidar e educar nossas futuras gerações. Seria contraproducente? Mas não é justamente a produção desenfreada que apenas tem feito destruir nossa saúde e nosso planeta? Obviamente que essas ações compensatórias não mudam estruturalmente as relações de gênero da sociedade. Mas além de trazer algum fôlego para quem vive este dilema de se equilibrar entre estes dois mundos, também podem, por meio dos debates que certamente trariam, criar processos de subjetivação crítica com potencial de impulsionar essas transformações sociais. Por fim, desejamos neste momento que não sabemos quanto tempo irá durar, que todos possamos viver com mais condescendência uns com os outros. Que nossas crianças, adolescentes e jovens, não sejam obrigados a serem alunos produtivos, com uma preocupação escolar puramente conteudista e de cumprimento de carga horária, visando tão somente uma vaga de sucesso da vida. Que possamos estar agora mais próximas de nossos filhos, sem estarmos preocupadas o tempo todo com seu rendimento escolar. Que possamos pesquisar porque é algo prazeroso a nós e por conta do nosso compromisso social e não por uma preocupação com a métrica de nossos currículos. E que possamos entender que o sentido da vida é buscar a felicidade em sentido pleno! 4 Parent in Science: conheça o projeto que discute a maternidade (e paternidade!) dentro do universo da ciência brasileira. Disponível em https://www.paramulheresnaciencia.com.br/noticias/parent-in-science-conheca-o-projeto-quediscute-a-maternidade-e-paternidade-dentro-do-universo-da-ciencia-brasileira. Acesso: 10 jul 2020. 528 Maternidades Plurais 87 Não termino em mim mesma: a luta é constante, e seguirei (r)existindo nos ideais de meus filhos e de minhas companheiras Luana Karoline Gonsaga1 Estou sentada diante do computador, uma taça de vinho me acompanha e só consigo pensar nas diversas caixas de papelão espalhadas pela casa, aguardando as coisas que vão dentro delas para que eu possa ver meu filho. Há três meses não nos vemos pessoalmente por causa da pandemia, e não, ele não mora comigo. Pedro mora com o pai dele, há cerca de 700 km de distância da minha casa, que fica nos arredores da Universidade Federal de Santa Catarina, onde sou graduanda em psicologia. Com essa breve introdução, agora você que lê este relato já sabe que sou mãe do Pedro, divorciada, moro em Florianópolis e estudo psicologia. Agora completo minha apresentação com meu nome: Luana. Muito prazer em lhe escrever. Confesso que me é estranho escrever em primeira pessoa, pois desde que Pedro nasceu, passei a ser primeira pessoa do plural e tudo o que eu falo, escrevo, penso e busco é para “nós”. Inicialmente, esse “nós” éramos Pedro, o pai dele e eu, e o que eu queria para nós era um mundo tranquilo, paz e bem para todos, até que saímos de São Paulo e nos mudamos para Santa Catarina, onde me dei conta de que paz e bem para todos, necessariamente passam por justiça social. Sem justiça social, sem paz. Se a paz não é para todas e todos, não há justiça social. Foi difícil compreender essa simples equação, mas quando a compreendi, foi impossível não a perceber por todos os cantos do mundo. Dentro e fora da minha casa. Bom, ordenando melhor minha história, trago-a aqui em forma de relato — e olha, estou com muita dificuldade na escrita. Desde que escrevo de maneira científica, acho que desaprendi a relatar como quem conversa: mas vamos lá! Sente-se e beba comigo, enquanto lhe conto como vim parar nesse relato que agora você lê. Em 2015, após cansar da selva de pedra paulistana, de mala e cuia nos mudamos pra “Floripa”, a Miami brasileira, paraíso sulista de areia que canta debaixo dos pés e água cristalina, de churrasco 1 Graduanda em psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4559287289240535 529 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) abundante, boas marcas de cerveja e vinhos excelentes com preços acessíveis. Parques e áreas verdes nos bairros, escolas de educação infantil maravilhosa. E RACISMO. Lembra da equação que mencionei anteriormente? Uma vida sem racismo é basal para paz e bem para todos, mas em 2015 eu ainda não sabia isso tão bem quanto sei hoje, e descobri de uma forma bastante dolorosa. Estava eu, enchendo minha cestinha de produtos de beleza em uma loja de cosméticos, com Pedro bebê mamando no sling, quando uma senhora me confundiu por três vezes com a vendedora da loja, inclusive me perguntando se eu tinha certeza de que não trabalhava mesmo naquele lugar. Após várias negativas, me dispus a ajudá-la. Resumidamente, a conversa que tivemos foi a seguinte: — Não eres daqui, né? — perguntou-me a senhora. — Não. Sou de São Paulo, por quê? — Percebi. Tu dizes “você”, e aqui na minha terra nós dizemos “tu”. Meu filho, que se formou em letras na — aqui um adendo: eu, Luana, não me recordo a faculdade onde o filho dela cursou letras, mas deveria ser um lugar importante, para ela mencionar — disse que o certo é falar “tu”, pois “você” vem de “vós mercê”, que é língua de escravos. Mas combina contigo. Essa senhora me disse isso como quem diz ao padeiro “me vê 4 pães dos mais assados porque os crocantes são mais gostosos”, assim, como se fosse algo corriqueiro e saiu andando para pagar sua tintura loira que eu a havia ajudado a escolher. Eu, por outro lado, deixei minha cestinha na prateleira, recolhi para dentro da blusa o seio onde meu filho agora dormia após mamar e fui para casa, me sentar e chorar. Com o tempo, fui me dando conta de que eu, Rodrigo — o pai de Pedro — e Pedro éramos pessoas negras em uma cidade sulista racista. A vida seguiu, como sempre segue, mas meus ouvidos passaram a ficar mais atentos depois disso e eu entendi aquela equação lá, e passei a perseguir um mundo de paz e bem onde meu filho pudesse crescer sem ouvir o que eu ouvia e ainda ouço. A coisa foi tão potente, que no fim do ano resolvi prestar vestibular e me inscrevi no curso de psicologia da UFSC. Aqui conto a você que prestei vestibular para psicologia desde os dezessete anos, já passei algumas vezes em universidades renomadas privadas e públicas, mas por falta de condição financeira nunca pude me dedicar a um curso integral como é o de psicologia, mas dessa vez talvez eu pudesse. Como são esses acasos nos quais não acredito, eu passei com louvor no vestibular e fui lá encarar minha jornada. Não sabia muito bem o que esperar, mas sabia que não queria ser como a senhora que usava a faculdade importante do filho para me dizer o quanto sou inadequada para a sociedade que ela considera ideal. Sabe a Dora Aventureira? Se você é mãe, com certeza sabe. Pois então! No primeiro dia de aulas eu era a própria Dora Aventureira, de mochilinha nas costas, sorrisinho no rosto, amiga dos 530 Maternidades Plurais amigos com mil sonhos e toda a vontade do mundo. Um baita maridão que sempre cumpriu suas funções de pai e assim eu conseguia assistir aulas em período integral, estudar nos laboratórios e participar dos projetos. Mas vocês sabem que a Dora, mesmo sabendo o objetivo, encontra obstáculos no caminho e olha em direção aos espectadores esperando respostas, né? De repente o semestre começou a apertar, os prazos ficaram irreconciliáveis com a agenda materna, a casa ficou uma bagunça, o filho queria atenção e o marido queria esposa. E eu queria tudo o que tinha antes e mais um pouco, mas nenhum espectador me dizia como fazer e não tinha nenhum mapa à vista, me apontando a saída daquela sinuca de bico. Foi assim, capengando, que terminei o primeiro ano sem reprovações e com boas notas, mas lá no fundo, a mágoa de ter deixado de fazer algumas disciplinas para poder dar conta de outras. Nesse mesmo ano, no ato de posse do novo reitor, o movimento estudantil em luta por permanência marchou gritando palavras de ordem. Eu saí da aula, corri para casa, peguei Pedro na escola e fomos engrossar o ato, sendo eu a única mãe que levou a cria. Fui xingada pela elite de Santa Catarina, por políticos e suas esposas, por empresários, todos que estavam no imenso auditório aplaudindo a posse do reitor. Meu filho mamava e dormia tranquilamente dentro do sling. Vieram as férias e, como boa filha da deusa, aproveitei bem o verão, curti a praia e a família, e as aulas recomeçaram. Foi o ano do primeiro 8M no Brasil, e eu participei das reuniões de organização, onde para meu espanto, as mães não eram uma temática relevante para as membras organizadoras. Lá fui eu questionar esse “Nem uma a menos” onde as mães não estavam, e de repente me vi cercada de mulheres maravilhosas, mães ativistas, que me deram a mão e construímos juntas uma tenda exclusivamente materna no evento no dia da greve internacional de mulheres, e lá discutimos a maternidade como papel social e político, compartilhamos informações preciosas sobre maternidade, gestação, puerpério, amamentação e muitas outras mais, acolhemos dezenas de mulheres mães e lemos uma carta intitulada “Mãenifesto 8M”, onde em 13 páginas, exigimos direitos e denunciamos as violências que sofremos por sermos mães. Se nos esforçamos diariamente para construir redes, ficou claro naquele movimento que fizemos que não é possível movimentar um único fio de uma rede, sem que a rede toda se movimente junto, e a efervescência do nosso movimento materno chegou aos jardins da universidade. Algumas mulheres mães que estavam no 8M me reconheceram da UFSC e propuseram um ato em frente à reitoria para o dia 12 de maio, uma sexta-feira antes do dia das mães, onde faríamos a exposição de nossas reivindicações em termos de permanência estudantil. Vocês já viram um ato de mães dentro de uma universidade? Tinha meia dúzia de mulheres (mesmo que sejamos 11% do número total de estudantes2), ninguém do movimento estudantil — que aliás, recomendou que lutássemos sozinhas por nossa pauta e, qualquer coisa, eles iriam dar uma forcinha se precisasse —, e crianças. Isso mesmo, levamos nossas filhas e filhos. (Sério, levem suas V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES – 2018. Disponível em: http://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2019/05/V-Pesquisa-do-Perfil-Socioecon%C3%B4mico-dos-Estudantes-de-Gradua%C3%A7%C3%A3o-das-Universidades-Federais-1.pdf 2 531 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) crias nesses atos onde é seguro para elas, pois elas produzem uma riqueza de informação que chega a ser absurda!) Dentre todas as nossas queixas, as crianças pediam por cadeiras adaptadas a elas no Restaurante Universitário; espaço adequado para crianças na biblioteca; acesso ao laboratório de informática; mais respeito dos professores para com elas quando estivessem com suas mães em sala de aula… Iiihhh! Uma infinidade de coisas que só o brilhantismo infantil é capaz de perceber como necessárias em um lugar projetado para tipos específicos de adultos. Infelizmente nem tudo são flores, e toda a energia do andar de baixo da reitoria não funcionou durante nosso ato, o que impediu que usássemos a caixa de som que levamos para por músicas infantis, mas penduramos cartazes, faixas e estávamos ali, sendo vistas, questionadas, deslocando o olhar dos frequentadores da universidade para o estranhamento que causava nossa presença e de nossos filhos. No domingo seguinte, dia das mães, enquanto aproveitávamos a data cada uma em sua casa, chegou por WhatsApp um áudio de uma das companheiras que estava no ato, e logo após nos dispersarmos, presenciou uma cena lamentável de professora extremamente violenta com uma aluna gestante. Pensamos e pensamos, discutimos sobre o quanto o movimento de Pais e Mães da UFSC — que existia há alguns anos — estava parado após conquistas pontuais, e sobre o quanto o perfil de parentalidade estudantil na UFSC havia mudado nos últimos anos, sendo composto majoritariamente por mães-solo. Ali, entre garfadas de frango e macarronada, propus que fundássemos um coletivo, com reivindicações políticas, com presença e atividade constante, e no dia 14 de maio, dia das mães, nasceu o COLETIVO MÃESTUDANTES/UFSC. Um coletivo independente e anticapitalista, pioneiro na construção de política de permanência para mães universitárias e que luta pelo reconhecimento do papel social e político da maternidade, e pelo direito de sermos mães e produzirmos ciência para a modificação da realidade social de todas e todos. Nosso primeiro ato oficial como coletivo, foi construir uma página no Facebook (segue a gente lá!) para que déssemos início a uma campanha chamada de #SerMãeNoCampusÉ. Confesso que nossas pretensões eram pouquíssimas, pois imaginávamos que o alcance seria baixo, mas vou colocar abaixo alguns dos relatos que recebemos de estudantes mães da UFSC: #SerMãeNoCampusÉ entrar em uma discussão teórica super qualificada e quando o "coleguinha" começa a perder o debate ele fala com aplausos dos "amiguinhos”: "Não tem um ‘cado’ de fralda para lavar, não?" #SerMãeNoCampusÉ dizer ao orientador de mestrado que tem uma notícia ruim para dar e ele perguntar "Você não está grávida, está? Porque você sabe que não pode engravidar no meio do mestrado." #SerMãeNoCampusÉ Saber que está menos qualificada porque não tem tempo para horas de extensão, monitoria, laboratório, etc. #SerMãeNoCampusÉ não existir de maneira acadêmica por não poder participar de congressos e eventos porque crianças não são bem-vindas lá. 532 Maternidades Plurais #SerMãeNoCampusÉ ouvir de uma professora, na fila da lanchonete: "Eu vou por no meu Lattes que não aceito mães e nem mulheres que pensam em engravidar. (risos da rodinha de amigos). Essa gente não sabe que não dá tempo para isso?" #SerMãeNoCampusÉ estar de licença maternidade e receber e-mails de professores ameaçando com reprovação, caso você não vá fazer prova presencial. #SerMãeNoCampusÉ fazer medicina e quando ficar grávida ouvir comentários maldosos e depreciativos de professor ginecologista e obstetra, dizendo "Mas parece que essa gente não tem aula sobre anticoncepcional não?” #SerMãeNoCampusÉ não poder ir às festas de integração porque todas são pensadas para adultos sem filhos. Espero que você tenha seguido meu conselho do início deste texto e tenha se sentado, porque se você for como eu, ficou com as pernas bambas e um pouco sem fôlego ao ler esses relatos, que são apenas alguns dos que recebemos. Os outros estão postados em nossa página do Facebook. Enquanto eu lia os relatos que chegavam, e ia postando na página, um bichinho da luta crescia dentro de mim e se alimentava de uma mistura de raiva, indignação, ódio pela violência e muita ternura por todas essas mulheres que contavam os absurdos que sofreram. O tal bichinho passou a morar dentro de mim e resolvi que ele seria meu companheiro, e não meu parasita, e assim ganhei uma espécie de Grilo Falante, que me ajudava a identificar situações que precisavam de mudanças urgentes. O ano de 2017 foi bastante profícuo e o Coletivo conseguiu se organizar para ocupar os espaços universitários, incluindo uma excelente roda de conversa na Tenda “Mundo de mulheres”, dentro do 13º Fazendo Gênero, um evento gigantesco que reúne uma pluralidade imensa de cientistas para falar sobre questões de gênero. Ali, divulgamos nosso projeto mais ambicioso: um espaço de contraturno dentro da universidade, que funcionaria como um programa de extensão, abrigando projetos de extensão voltados para filhas e filhos de mães estudantes e que seria criado como política de permanência. Muitos professores manifestaram interesse em propor projetos para o contraturno e já havíamos encontrado um espaço físico dentro da UFSC, porém, de novo, nem tudo são flores. Fomos ameaçadas de diversas formas, inclusive de uma suposta entrada em um processo no Ministério Público, por parte de um grupo de professoras que queriam uma escola particular para seus filhos dentro do campus, no prédio onde faríamos o contraturno escolar. Tivemos que brigar muito, até que em maio de 2018 (novamente o mês das mães), a administração universitária lançou a Portaria 1004/2018, instituindo um grupo de trabalho que pensaria a criação de uma política de permanência materna na UFSC. E assim, pusemos a mão na massa e elencamos todas as coisas necessárias para que mães estejam em condições de igualdade com os demais estudantes, e resumidamente são elas: fraldários em todos os banheiros (alguns centros já instalaram!); cadeiras adaptadas para crianças no restaurante universitário; espaço infantil na biblioteca; espaço família no laboratório de informática 533 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) (já conquistamos esse!); espaço família com sala de amamentação, microondas, etc. (a sala de amamentação também já foi conquistada!); coleta, extração e análise de dados sobre as mães estudantes da universidade para a formulação de políticas mais assertivas; formação para professores e técnicos administrativos em estágio probatório sobre direitos sexuais e reprodutivos e legislação sobre mães e crianças; campanhas informativas e de conscientização sobre direitos sexuais e reprodutivos, legislação que protege mães estudantes e crianças para toda a comunidade universitária; alteração da resolução universitária que versa sobre tempo de jubilamento, para que este possa ser ampliado para mães; alteração dos editais de auxílios financeiros em relação ao número mínimo de créditos cursados por mães, para acesso às bolsas disponibilizadas (entendemos que, muitas vezes, o número mínimo de créditos exigido para acesso às bolsas de permanência é maior do que a capacidade de conciliação que as mães conseguem fazer entre os estudos e os cuidados com filhos); aceitação do atestado médico da criança para justificar ausência materna nas atividades acadêmicas e solicitação de prova substitutiva; alteração de edital para vagas de moradia estudantil, para que mães com seus filhos tenham acesso à moradia (atualmente os editais não permitem mães na moradia estudantil da UFSC); ampliação do auxílio creche; e por fim, o espaço de contraturno escolar. A política conta com mais itens dos quais não me recordo agora, mas entendo que esses aqui mencionados são básicos para acesso igualitário das mães. Desde que iniciamos nosso trabalho, recebemos dezenas de mensagens de mulheres inspiradas por nós, criando coletivos de mães em suas universidades, e isso nos enche de alegria e esperança, pois sabemos que assim ninguém fica só. Nossa política ainda não passou pelo Conselho Universitário para aprovação, mas não paramos a luta nela! Desde lá, já compusemos espaços formativos, participamos ativamente de diversas manifestações importantes, que afetam e prejudicam diretamente o ensino, a pesquisa e o trabalho acadêmico-científico, e eu pude participar de espaços ímpares onde minha voz ecoou para centenas de mulheres. Entendemos que política se faz com presença! E eu disse para vocês lá no começo do texto que não sei escrever em primeira pessoa, já virei “nós” novamente, mas isso diz muito sobre mim! Ser mãe me possibilitou ver a vida com olhos de luta e me trouxe companheiras incríveis, com quem divido os sonhos de um mundo melhor. É a luta materna que tem me levado a conhecer os mais diversos cantos do país, por onde peregrino auxiliando outras mulheres a construírem seus coletivos e fortalecer suas redes dentro das universidades. Ser mãe universitária me colocou diante da luta pela universidade pública, gratuita e de qualidade, que sirva a seu propósito de mudança social através da ciência à serviço da realidade da classe trabalhadora. Como já contei, sou divorciada e meu filho mora com o pai, bem longe da minha atual casa, e isso tudo aconteceu porque mesmo sendo uma lutadora, a realidade também me afeta, e com todas as conquistas já alcançadas, ainda não foi possível ser mãe e acadêmica ao mesmo tempo, podendo cuidar e estar perto do meu filho e construindo a universidade ideal. É estranho ter guardado Pedro por tanto tempo seguro na barriga e no colo e agora vê-lo somente pela tela do celular. É esquisito, apesar de acalentar um pouco, colocar ele na cama contando historinha por vídeo chamada. Hoje, 534 Maternidades Plurais construo para mim a maternidade possível, não a idealizada, mas isso é bom, pois me permite descansar de uma carga que não mereço carregar: a de ser a mãe perfeita. E dessa forma, posso me dedicar a fazer uma universidade ideal para todas as mães e seus filhos e filhas. Sendo uma mulher negra, saída de uma favela em São Paulo, e mãe jovem, tenho muita admiração e respeito pela minha história, e principalmente por todas que dividem suas histórias comigo e me permitem ser tocada e tocar suas vidas para a mudança. Ainda não temos um mundo de paz e bem, mas a esperança de dias melhores habita meu peito, dividindo espaço com o bichinho da luta em busca da justiça social. Se você já me viu dando uma palestra, falando em uma assembleia, participando de um debate, uma live ou sendo mediadora de alguma atividade de construção de política de permanência materna em alguma universidade do país, sabe que falo sempre a partir de dados retirados da realidade, de evidências científicas e do incentivo à produção de conhecimento científico sobre mães estudantes, pois é extremamente necessário que nossa prática se baseie em uma robusta teoria que reflita a realidade, para que retornemos à teoria para alterá-la sempre que a necessidade se apresentar; todavia, é importante perceber que não perdi o laço com minha história pessoal. Que sou eu, e que sou feita de nós. O vinho da taça já acabou, e sinto que minha parte em nossa conversa finda também, então gostaria de lhe convidar para uma última coisa: à rejeição. Rejeitemos o que já está posto como normal ou única saída para as coisas; Rejeitemos os argumentos de que nossa função como mães é sermos relegadas ao âmbito privado da criação de filhos; Rejeitemos que nosso destino seja apenas gerar mão de obra para a classe trabalhadora; Rejeitemos que a parca atenção dada para nós em todos os nossos direitos seja considerada suficiente; Rejeitemos que a responsabilidade por criar nossos filhos, transformando-os em sujeitos bons para o mundo, seja responsabilidade apenas nossa; Rejeitemos que a universidade pública seja precarizada e que o ensino superior seja sucateado; Rejeitemos o alijamento da classe trabalhadora, da negritude e das mães da universidade pública, gratuita, crítica e de qualidade; Rejeitemos que a vida de nossos filhos seja ceifada por guerras sociais não declaradas e claramente higienistas e classistas; Rejeitemos que decidam por nós sem nós. Convido à rejeição absoluta a tudo o que cerceia nossos direitos e reduz ou tenta aniquilar nossa potência de transformação do mundo. 535 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Somente com a rejeição de todas as coisas que vilipendiam as possibilidades de uma insurgência na construção de um mundo melhor, é que conseguiremos abrir espaço para a formulação de parcerias, de possibilidades, de escuta e de produção daquilo que verdadeiramente nos acolhe, nos abarca e nos engrandece. Sejamos gentis umas para com as outras, para que possamos educar nossos filhos e filhas na direção da luta em conjunto. Se a liberdade é uma luta constante, sejamos gratas porque a maternidade nos torna infindáveis, uma vez que continuaremos existindo em nossos filhos. Obrigada pela companhia até aqui, espero ter lhe afetado de alguma forma, e saiba que estou aqui seguindo na caminhada por mim, por Pedro, por você, por nós e por todas que nunca vi e nunca ouviram falar de mim. Encerro meu relato para retornar às caixas com objetos da mudança. Mal posso esperar para ver meu filho novamente, dar um beijinho de esquimó, e enxergar todo um futuro de maravilhas naqueles olhos enormes, brilhantes e cor de jabuticaba. Eu sou porque nós somos. Axé. 536 Maternidades Plurais 88 Da janela, minha tela Luciana Fernandes de Medeiros1 Eu estava olhando pela janela do meu quarto e observando o movimento das folhas da árvore da calçada, uma tela ao vivo, naquele meio de tarde, no final do mês de maio de 2020. Nem acreditava que já iriamos entrar em junho, mês das festas juninas, em que sempre festejávamos com muita comida de milho, fogueira e quadrilhas. Não iríamos ter. Já não tivemos a festinha do dia das mães na escola dos meus filhos. Também não teríamos os festejos juninos. Suspirei. Olhei para os prédios ali tão longe e imaginei cada família naqueles apartamentos, o que estavam fazendo, como estavam se sentindo, no que estavam pensando desse tempo de pandemia. Ouvi a estática no meu notebook. Estávamos em uma reunião online. Eu tinha desligado, por um momento, minha câmera e meu microfone, enquanto outras pessoas falavam, e havia me levantado para olhar pela janela. Alonguei minhas pernas, fiz movimentos com a cabeça para relaxar a cervical, subi e desci com as pontas dos pés. Estava sentada já há quantas horas? Duas ou três, eu acho. Bebi um copo de água e respirei fundo aquele ar de tarde. Quando pensei em me sentar novamente de frente para a tela, minha filha de oito anos entrou no quarto. Ela estava no meio de uma de suas aulas remotas e deixou a professora falando para o nada em sua tela. Veio até o meu quarto, onde eu estava, para rolar pela cama e pedir dengo. Isso significava que tinha que me deitar um pouco com ela, abraçá-la, beijá-la e dizer como a amava, “mais que o infinito e além”, parafraseando aquele filme infanto-juvenil conhecido. Depois de muitos beijos e reclamações dela sobre a chatice da aula, eu a incentivei para que voltasse e eu também me motivei a voltar para a minha atividade. A reunião não estava desagradável, mas exigia um grau maior de atenção, uma vez que a maioria das pessoas estava com sua câmera desligada e a gente apenas ouvia uma voz por vez. Naquele momento, eu havia perdido o fio da meada e precisei de mais energia para compreender o que estava se passando. Não. Não imaginei nem por um minuto que naquele dia em que deixei a cidade onde trabalho, em um campus do interior, iriam se passar, até o momento, três meses. Tempo sem ver os alunos, sem orientar estagiários e extensionistas, sem tomar café com alguns colegas, sem levar meus filhos à escola, sem encontrar minhas amigas para bater papo e sem fazer planos de viagem de férias. Três meses trabalhando em casa e cuidando dos meus filhos, para que eles suportassem as tais aulas online 1 Doutora em psicologia, professora da Facisa/UFRN. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8836670351638806 537 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e incentivando, orientando e explicando a necessidade de acompanhar essas aulas o máximo possível, porque era o que tínhamos no momento. Sempre que olhava pela janela, eu refletia sobre o fato de que, poder trabalhar em casa, eu e meu marido, com acesso à Internet e aparelhos que ajudavam no trabalho, era um privilégio de poucos. Uma realidade bem diferente da maioria da população. Em um país tão desigual como o Brasil, quem mais estava adoecendo de Covid-19 era justamente aquele grupo que tem piores condições de vida e que raramente tem acesso aos serviços mais básicos, como saúde e educação. Outro grupo bastante vulnerável era o daqueles que não podiam trabalhar em casa e o dos profissionais de saúde. Essas reflexões me traziam preocupação pelos outros que estavam batalhando por suas vidas de diferentes maneiras lá fora. Essa preocupação era uma a mais no meu já vasto rol de preocupações. A reunião continuava rolando lá na tela do computador. Eu já estava um pouco cansada. A tarde ia se esvaindo e aquele dia tão lindo e brilhante, pontilhado por passarinhos cantantes e saguis, que pulavam pelos galhos das árvores na rua, ia lentamente alaranjecendo e, na minha rotina de isolamento social, estabeleci que tinha que fazer atividade física no final da tarde. Esperava que a reunião terminasse logo para não perder o ritmo e movimentar o meu corpo que estava começando a reclamar da postura inadequada diante do computador. Anotei os principais pontos de nossa conversa virtual e fechei a janela do quarto para não entrar mosquitos. Os passarinhos faziam uma algazarra nesse horário, mas a minha escuta de sua melodia foi interrompida com o som da professora da minha filha no outro quarto. Fui até lá ver como estava em sua aula e percebi que ela estava deitada de pernas para cima em sua cama e a professora falando lá na bancada. Ao me ver, ela correu para a cadeira e fingiu que estava folheando o livro da escola. Tentei disfarçar meu sorriso e voltei para minha reunião. Já teve um dia, no meio de todos esses dias, que precisei realmente chamar a atenção da minha filha porque ela simplesmente não estava prestando atenção na aula, não sabia nem qual era a página do livro que a professora estava lendo. Sentia o tempo todo que estava perdendo algo em seu desenvolvimento: o brincar em grupo, a socialização, a resolução de problemas que só surgem durante o recreio da escola e o convívio com as diferenças. Numa aula online, a interação social é um desafio constante, quando existe. Me preocupava com isso, mas decidi que nesse período de pandemia, iria olhar os aspectos positivos: ficar em casa com eles, acompanhar suas emoções através de conversas, filmes, leitura de livros, e deixá-los se responsabilizar pelas tarefas escolares naquilo que fosse possível. Finalmente, a reunião terminou, faço uma lista mental das atividades pendentes. Mas, continuo com as minhas reflexões diante da janela. Também tenho um filho de 14 anos. Ele começou na escola nova em fevereiro, assim como a menina, depois de 4 anos estudando na escola na cidade do interior em que trabalho. Eles tiveram apenas um mês de aula e não tiveram tempo de fazer novas amizades. Quando penso nisso, me dói. 538 Maternidades Plurais É uma forma de perda para eles. Mas, como falei, estou tentando focar nos aspectos positivos: o fato de podermos ficar em casa com boas condições materiais. Aproveito o tempo sem aulas para escrever, algo que não conseguia fazer quando estava ministrando aulas por quase toda a semana e me deslocando 120km semanalmente para ir ao campus onde trabalho. Aproveito algumas chamadas de periódicos científicos e me motivo a escrever artigos de pesquisas documentais, submeter outros artigos que estavam meio que engavetados, e pensar temas interessantes para escrever. Submeti dois artigos e três dias depois, recebi-os de volta com o aviso de que estavam em desacordo com as normas e que preciso corrigir e submeter novamente. Fico nesse processo várias horas porque por mais que eu leia as normas, e tente adequar todo o texto do jeito que exigem, sempre encontro algo que não sei fazer e que preciso gastar um tempo aprendendo. E ainda assim, está errado! Essa é a ironia, eu consigo escrever um artigo, mas ele é barrado por causa das normas! Para mim, meros detalhes, porque o mais difícil mesmo é escrever e ter a coragem de enviar para publicação. Fico em dúvida se escrevo outros textos ou se passo uma tarde corrigindo as normas. Ou seja, o tempo que gasto corrigindo essas normas, eu conseguiria escrever um outro texto. Isso mostra que no Brasil, o professor pesquisador, precisa entender de um monte de outras coisas, não só de sua área de expertise. Tem que saber informática, tem que entender os meandros do Word e se preocupar com as vírgulas das vírgulas. Mas, tudo bem, faz parte do jogo e nem tudo o que precisamos fazer, precisamos gostar. Eu adoro escrever, mas não gosto de normatizar. Paciência. Nesse período de pandemia, muitas reuniões continuam acontecendo, como as do projeto do PET-Interprofissionalidade do qual faço parte, as reuniões de colegiado e as atividades da residência multiprofissional que estou coordenando. Enfim... minha rotina de trabalho está sendo todas as 40h da semana e ainda revezando com os serviços domésticos: lavar banheiros, limpar a casa, preparar comida. Eu e meu marido dividimos as tarefas domésticas. E eu ainda tentei colocar meus filhos para fazer algo. Algumas coisas pontuais eles até fazem, mas achei mais fácil assumir junto com meu marido e deixar eles mais à vontade com as aulas, os estudos e o lazer. O lazer, em casa, diante de telas. Cada um com a sua. Nunca passei tanto tempo diante de uma tela. Eles também. O tempo passa, a gente se ocupa, como diz Heidegger... e cadê o sentido disso tudo? No nosso caso, procuramos encontrar prazer em ficar em casa, em curtir esse tempo, já que temos boas condições. Preciso ficar bem para os meus filhos. Não sou só pesquisadora, pensadora, professora, sou também uma mãe, responsável por duas vidas em formação que precisam encontrar sentido por si só, mas eu quero estar lá para fornecer um lastro seguro e estável de amor, carinho e proteção. Então, se tiver que assistir aulas online, que assistam, que estudem o que for possível. Mas, que fiquem bem, apesar dessa tragédia chamada pandemia. Que entendam que tudo o que temos foi fruto de esforço e também oportunidades que tivemos na vida, e que nossa situação, diante de tantas, é até tranquila do ponto de vista material. Então, não basta só se ocupar, mas encontrar o sentido das coisas. Se tiver que ficar deitada, contemplando os galhos das árvores se movendo ao sabor do vento, que eu fique. Não adianta me 539 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) encher de projetos e querer saber de tudo porque não vou conseguir. Posso fazer o melhor possível com aquilo que eu sei, com aquilo que eu gosto, com o que faz sentido para mim. Isso me tranquiliza um pouco, porque nesses tempos de pandemia, a ansiedade e a necessidade de rápidas mudanças nos fazem sair do eixo e ter que encontrar soluções para uma série de demandas que se encadeiam. Isso traz mal-estar, sofrimento difuso, dores incógnitas, sensações de quase morte. Que eu não perca meu sono, como vem acontecendo quase toda noite, nem fique ansiosa, como acontece todos os dias. Ansiedade pelo porvir, pela incerteza, pela preocupação com meus pais que estão no grupo de risco, pelo sentimento de perda já que meus filhos estão sem brincar com os colegas, e ficam o dia todo de frente para uma tela. E eu também, trabalhando, escrevendo, pensando formas de contribuir com a ciência e com o nosso país. Mas, me dando ao luxo de olhar pela janela, com esperança. De ler romances leves. De não assistir os noticiários da TV. De evitar leituras mais densas. Porque não podemos adoecer. Não podemos nos sobrecarregar de trabalho, como querem muitos. Muitos que acham que fazemos nada. Que ficamos o dia todo numa rede. Olho mais uma vez pela janela, vejo as folhas se balançando e a lua que vem mostrando sua cara. A hora da atividade física chegou e passou, meus filhos já me procuram para o jantar. Lembrei de tarefas pendentes, mas agora só amanhã. À noite, preciso descansar. Sair da tela. Olhar mais para a tela dos olhos dos meus filhos. Eles me pedem para contar histórias e brincadeiras de minha infância. Lembro das minhas amigas da rua, dos momentos em que ficávamos na calçada conversando até dez da noite, sem preocupações, sem chateações. E vejo o brilho no olhar dos meus filhos dizendo: “devia ser muito chato não ter celular”. Fico triste ouvindo isso. Eles não sabem o que é ficar na rua brincando com os vizinhos, nem sabem o que é viver sem esse apêndice chamado celular, tão útil, mas tão escravizador. E agora, com a necessidade ficar 24h do dia em casa, mais ainda. Estamos todos mesmerizados diante das telas, trabalhando, se ocupando, se distraindo. Quero sair disso, me volto para os livros. Quero sair disso, vou para a minha janela. Olho para o céu, olho para as estrelas, olho para a lua, e vejo que está tudo lá. O tempo está passando e cada vez mais perto de um desfecho dessa situação de pandemia. Assim, espero! Enquanto isso, procuro fazer o que tem sentido e deixar para trás aquilo que não tem. Olho para a frente. Mudanças serão necessárias em nosso cotidiano, precisaremos de flexibilidade, resiliência, paciência. Talvez uma academia mais poética. Talvez escritos com mais sentido e menos pontuação. Talvez aulas remotas mais interativas do que as presenciais. Há muitas restrições dentro daquilo que estávamos, mas há várias possibilidades naquilo que estamos agora. É só ver. Pela tela, pela janela, pelos olhos dos meus filhos. 540 Maternidades Plurais 89 Maternidade e doutorado durante a pandemia: um tsunami no meu equilíbrio Luciana Ferreira Leite Leirião1 Pensei muito sobre como começar a escrever o meu relato de mãe e doutoranda durante a pandemia. Confesso que abri a chamada dezenas de vezes para ler o título do livro e buscar algum insight que puxaria o fio condutor da minha história. No entanto, todas as vezes que abria a publicação do Facebook com a chamada, o que gritava para mim era a imagem. Uma onda. A imagem que poderia me trazer paz, memórias de uma semana de férias, me despertava um sentimento oposto. Para mim, essa onda, no contexto da maternidade e da pandemia, não é uma simples onda, é um tsunami. E foi assim que percebi que eu não poderia começar o meu texto pelo tsunami causado pela pandemia. Precisava voltar um pouco para águas mais calmas (ou, melhor dizendo, menos agitadas). Decidi começar o meu relato pela minha decisão de ser mãe e doutora. Talvez, para muita gente, seja estranho pensar em uma maternidade planejada em meio a um doutorado (bolsa com valores defasados, perspectiva do desemprego ao fim da pesquisa, licença-maternidade quase inexistente etc.), mas, para mim, as decisões da maternidade e do doutorado foram tão intrínsecas que não consigo descrevê-las separadamente. Sou bióloga (aliás, acabei de perceber que não me apresentei. Prazer, Luciana). Me formei na USP, uma universidade na qual o caminho natural é: graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Eu contrariei esse fluxo. Quando me formei, uma série de acasos me levaram ao mercado de trabalho, onde fiquei por seis anos. Nesse período, me descobri extremamente workaholic. Trabalhei em empresas de consultoria no ramo da educação básica. Estava acostumada com pelo menos dez horas de trabalho por dia, viagens frequentes por todo o Brasil e caixa de e-mails lotada. Mesmo com a rotina intensa, durante esses seis anos, acabei conciliando um MBA e um mestrado. Foi em 2018 que um sonho que eu já nutria há muito tempo tomou conta de mim. Eu já estava casada há um ano e queria ser mãe. E eu não queria ser mãe com a minha rotina. Eu queria estar em casa com meu filho, acompanhar cada conquista e ter tempo para ele. Enxerguei no doutorado minha melhor opção. Sempre gostei de estudar, meu mestrado havia aberto portas para um doutorado e, por 1 Mestre em Ciências e Doutoranda em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/0185218541045231 541 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) não depender de experimentos, poderia desenvolver a maior parte da pesquisa de casa, acompanhando meu filho. Entrei no doutorado em agosto, engravidei em setembro. Durante a gravidez, todo o plano foi se encaixando. Consegui cumprir todos os créditos, me mudei para uma cidade mais tranquila (São Paulo não compunha meu cenário ideal de maternidade) e consegui engatar três publicações. O mundo parecia um conto de fadas e, quando achei que o bebê era o que faltava para deixar tudo ainda mais mágico, o tremor que deu origem ao meu tsunami aconteceu. Meu filho nasceu em maio de 2019 e, como qualquer grávida deslumbrada, levei um “tapa na cara” da maternidade real. Hoje, olho para trás e vejo que a rotina workaholic que eu levava funcionava para mim justamente porque ela era uma rotina. Eu tinha uma agenda, previsibilidade e conseguia me organizar. Percebi que a maternidade tira isso da gente. Os quatro meses de licença concedidos pela CAPES e pelo meu programa de pós-graduação passaram e eu nem percebi. Eu e meu marido (que é pós-doutorando e também trabalha de casa) elaboramos um plano no qual cada um trabalharia meio período. Enquanto um trabalhava, o outro ficaria responsável pelo bebê. Pra ele essa estratégia funcionou. Pra mim, foi um fiasco. O meu meio período de trabalho era constantemente interrompido por conta das mamadas e o sono me consumia de uma maneira que olhar para o computador era impossível. Entre o fim da licença maternidade (em setembro) e janeiro de 2020, segui assim, fingindo que conseguia dar algum seguimento a minha pesquisa. E, claro, que todo esse período não passou sem uma boa dose de culpa por não estar rendendo. Além de sofrer com a minha autocobrança, sofri com a falta de preparo do ambiente acadêmico de uma forma geral. Em algumas oportunidades que tive de conversar com outras mães pesquisadoras, sempre ouvia que eu deveria matricular meu filho em uma creche, pois “é assim que funciona”. Me senti em um círculo vicioso, no qual as pessoas não tiveram apoio e, por isso, agora também não dão apoio. Senti que, de uma hora para a outra, fui deixada de lado nas pesquisas pelo simples fato de ter me tornado mãe. Antes da maternidade, eu sempre era envolvida em parcerias e publicações. Após a maternidade, passei a ficar sabendo das coisas quando elas já tinham acontecido e sempre ouvia “não te envolvi, porque você tem menos tempo disponível”. Tudo isso bombardeava ainda mais meu psicológico. O período de festas de 2019 chegou e eu estava decidida a abandonar o doutorado. Não suportava não ter o rendimento que desejava, nem ser deixada de lado nas pesquisas do laboratório. O alto rendimento acadêmico e a disponibilidade para o meu filho pareciam coisas 100% divergentes e entre os dois opostos, eu tinha a minha escolha. Entre os milhões de inconvenientes que as reuniões de família em dezembro trazem, uma conversa rendeu. Entre tias me questionando sobre ainda amamentar um bebê de sete meses e me dizendo que o bebê tem que chorar para aprender a dormir à noite toda, engatei uma conversa com a esposa de um primo que vejo com pouca frequência. Ela também trabalha em home office e tinha a expectativa de conciliar isso com a maternidade. Doce ilusão que nós, vítimas da romantização da maternidade, temos. Ela me contou que, quando o 542 Maternidades Plurais filho completou sete meses, resolveu dar uma chance para a “escolinha”. Era isso ou abandonar a carreira e um cargo concursado. Ela me contou como a adaptação havia sido fácil e como ela ainda tinha bastante tempo com o filho. Ela estava feliz com o trabalho e o tempo que passava com o filho tinha muito mais qualidade, já que ela não estava com o cansaço causado pelo cuidado full time. Engraçado que, escrevendo esse texto, percebi que ela me deu essencialmente a mesma sugestão que as mães pesquisadoras que me sugeriram a creche, “pois é assim que as coisas funcionam”. No entanto, a sugestão da esposa do meu primo foi muito mais empática, foi um relato real. Por que as mães pesquisadoras não foram assim? Após muita conversa com meu marido, decidimos procurar uma escolinha para matricular nosso filho. A ideia sempre foi colocá-lo por meio período. Teríamos meio período em família e meio período de trabalho focado. A procura pela escolinha renderia um texto a parte. O mercado chega ao cúmulo de tentar empurrar educação bilíngue para um bebê! E apostilas, claro! Foram algumas semanas de procura até encontrarmos um espaço que nos agradou e que coube no orçamento (afinal, somos dois bolsistas por aqui). Meu filho começou a frequentar a escolinha na primeira semana de fevereiro. Nos primeiros dias, um sentimento horrível me consumia. Era como se eu estivesse terceirizando meu filho. E se ele tivesse saudade? E se ficasse assustado? Saberiam acalmá-lo? Saberiam colocá-lo para dormir? Pensei muito sobre a decisão que estava tomando e quase voltei atrás, mas as funcionárias da escolinha foram maravilhosas. Sempre que eu ligava, demonstrando alguma preocupação, elas me acolhiam e mostravam meu filho feliz e brincando. Em uma semana, ele já sorria quando chegava na porta da escola e abraçava as funcionárias da hora de ir embora. Com o coração tranquilo, o doutorado começou a fluir. Mesmo me dedicando por apenas meio período, meu rendimento voltou a ser o que era antes. Eu tinha foco e, finalmente, alguma rotina. Em março, recebi uma proposta de uma das empresas que trabalhei para um trabalho de elaboração de material didático. A proposta era a produção de um texto por semana. O trabalho parecia fácil (consigo escrever um texto desse tipo em cerca de 3h) e agregaria bastante ao orçamento familiar. Aceitei. Na mesma semana, recebi ainda uma proposta de elaboração de materiais para uma universidade privada. Com medo de negar e “sair da lista de contatos” da universidade, aceitei também. A carga de atividades estava crescendo, mas, com uma rotina, as coisas estavam fluindo. Eu aproveitava a soneca que meu filho tirava no período da manhã para fazer os trabalhos extras e mantinha toda a tarde para o doutorado enquanto ele estava na escolinha. Finalmente, eu estava me encontrando como mãe e como pesquisadora. Como é de se prever pela linha do tempo, a alegria durou pouco. Mais precisamente, ela durou até o dia 27 de março, que foi quando a escolinha encerrou as atividades por conta da pandemia. Nessa data, a cidade em que moro ainda não havia nem registrado casos de Covid-19, então confesso que estava achando as medidas exageradas. 543 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Seguindo minha analogia com o tsunami, a maternidade foi o tremor inicial; nos primeiros sete meses, achei que estava vivenciando o caos, mas ainda era apenas uma grande onda no oceano. Foi com a chegada na quarentena que o tsunami chegou de vez na minha vida. Logo quando a escolinha comunicou que pararia as atividades, eu e meu marido pensamos em um “plano B”. As coisas estavam funcionando tão bem que não queríamos perder essa rotina. Combinamos com a minha mãe e ela estava disposta a ficar com nosso filho durante as tardes. No passado, essa nunca tinha sido uma alternativa, pois minha mãe sempre deixou muito claro que gostaria de ser “apenas avó” e que não gostaria de ser envolvida nos cuidados diários. Mas, como a quarentena era algo para durar umas duas semanas, uma exceção poderia ser feita. O plano era ótimo, mas nunca chegou à prática. Apesar de, em um primeiro momento, ter achado a quarentena uma medida exagerada, minha opinião mudou completamente em dois ou três dias. As notícias dos efeitos da pandemia na Itália inundavam os noticiários e passei a ficar muito preocupada com o meu filho. Desde os primeiros meses, ele tem rinite alérgica e já chegou a ter complicações que nos levaram ao pronto socorro algumas vezes. Como noticiava-se que doenças respiratórias pré-existentes caracterizavam grupo de risco, passei a temer por ele. Meu pai trabalha em indústria, um setor que não foi paralisado, e, por morar com a minha mãe, eles poderiam ser vetores do coronavírus até meu filho. Decidimos nos trancar em casa. Eu, meu marido e nosso filho. Sem nenhuma rede de apoio, duas pesquisas a serem seguidas e muitos materiais didáticos a serem entregues. Voltamos a estratégia do trabalho em períodos alternados. Desde o início, eu sabia que não daria certo, mas qual seria a alternativa? Por aqui não enxergamos nenhuma. Assim como um tsunami chega à costa e uma coisa é lançada sobre a outra (casa, carros, árvores etc.), aqui a pandemia lançou todas as coisas que eram encaixotadas dentro de uma rotina sobre o meu colo. Tenho entre quatro e cinco horas diárias na frente do computador para analisar dados, ler artigos, orientar uma iniciação científica (mais uma coisa que surgiu no fim de 2019) e elaborar materiais didáticos. Horas que são interrompidas para mamadas e por um filho que aprendeu a gritar “mamãe” e a bater na porta do escritório. Durante a pandemia, meu filho cresceu. Em março, havia acabado de aprender a engatinhar. Hoje, já anda. Ele é um poço de energia que não damos conta de gastar em um apartamento. O acúmulo de energia e o confinamento o incomodam. Ele ainda não sabe comunicar isso, mas nós percebemos. A criatividade para inventar brinquedos e brincadeiras acabou, os brinquedos e brincadeiras já ficaram chatos. A energia explode e o estresse vem. Com o excesso de energia, o sono passou a ser mais curto e os dias passaram a começar as 5h da manhã aqui em casa. Nesse horário, “o sol ainda nem raiou na fazendinha” (analogia a uma famosa música infantil do grupo Mundo Bita). Além do cansaço, o sono torna tudo mais difícil. Semanalmente, meu grupo de pesquisa faz uma reunião científica para nos atualizarmos das pesquisas de cada um. Semanalmente, pratico minha criatividade para dizer que fiz alguma coisa que me tomou muito tempo, quando, na verdade, tudo me tomou muito tempo e eu não fiz nada. Mais 544 Maternidades Plurais uma vez, estou sendo colocada de fora das parcerias porque “tenho menos tempo disponível que os outros alunos da pós”. Vejo as pessoas exaltando a alta produtividade proporcionada pela pandemia e me pergunto o que estou fazendo de errado. Sim, tenho um companheiro que divide comigo igualmente os cuidados com nosso filho. Além disso, também dividimos a cozinha e a limpeza da casa. Ainda assim, é muita coisa. Pessoas sem filhos não têm que se preocupar com a alimentação balanceada em todas as refeições ou com a casa sem pó para não desencadear uma crise de rinite no filho alérgico. A carga mental em relação aos cuidados com a casa é alta. Enquanto tento produzir alguma coisa ou enquanto brinco com meu filho, minha cabeça está a mil. Será que a lista de compras está completa? Preciso tirar a carne do freezer. Sobrou feijão de ontem? Preciso trocar o lençol que vazou xixi. Será que já recolhi os brinquedos que ficaram espalhados pela cozinha? Por diversas vezes, tentei estabelecer um filtro para descartar as preocupações que não são essenciais, mas tudo parece essencial. Mesmo o trabalho com materiais didáticos que era apenas uma renda extra, se tornou essencial na pandemia. Com a paralisação de diversos setores, a renovação da bolsa do meu marido atrasou e a perspectiva é que, a partir de julho, nossa renda seja apenas a bolsa de doutorado e o dinheiro vindo dos trabalhos extras. Não saber quanto tempo esse tsunami vai durar é agonizante. Já li vários planos de retomada para instituições de ensino, mas não sei quando me sentirei segura para voltar a levar meu filho para a escola. É difícil de admitir (ainda mais pra mim que tinha a expectativa de fazer um doutorado com o filho o tempo todo em casa), mas não vejo as coisas fluindo enquanto eu não voltar a ter um tempo exclusivo para o doutorado. Em meio a toda essa loucura, só espero ter algum resultado até a qualificação, que acontecerá em dez meses. O prazo parece largo, mas quase três meses de isolamento e de falta de produtividade já se passaram. Ainda aguardo uma resposta para o meu pedido de prorrogação de prazos e de bolsa em decorrência da pandemia. Curioso é que, em toda a justificativa para a solicitação da extensão de prazo, não pude citar os cuidados com meu filho uma única vez. Aparentemente, isso não é um argumento válido para redução de produtividade. Apelei novamente para a criatividade e justifiquei que perdi o acesso a softwares disponíveis apenas nas dependências da universidade. Bom, sinto que já me estendi muito meu relato e que devo parar por aqui. Encerro agradecendo a iniciativa de publicação deste e-book, pois mesmo que ninguém leia o que escrevi, considerei uma sessão de terapia tecer cada palavra. Também gostaria de conhecer a situação de outras mães pesquisadoras para que eu me sinta menos sozinha nessa trajetória. Sigamos com a esperança de que tempos melhores virão e que, um dia, a questão da maternidade possa ocupar pautas dentro da universidade. 545 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 90 De repente uma nova realidade: como a pandemia da Covid-19 aproximou mães e filhos/as Luciana Gomes da Luz Silva1 Introdução O ano de 2019 foi bem atípico em comparação aos anos anteriores pois iniciei o curso de Mestrado. Fazia 10 anos que estava afastada do ambiente escolar e foi bem intenso esse recomeço. Em minha rotina cabia o cumprimento de uma jornada de trabalho de oito horas diárias. Findo o horário do trabalho, iniciava-se o segundo tempo, comum à maioria das mães, dessa vez em casa, no tocante aos afazeres domésticos e cuidados com as filhas. Com a chegada do mestrado essa rotina mudou. E a nova realidade incluiu a necessidade de cursar as disciplinas acadêmicas e atender às demandas de orientação do projeto de estudo. Vale ressaltar que dentro desse tempo já bastante encurtado, era necessário encontrar um tempo para as leituras. Enfim, a rotina ficou pesada de vez. Importante salientar que nesse processo muitos atropelos aconteciam. Impossível atender a todas as demandas do curso, do trabalho e da família com a mesma presteza de antes. Alguns prazos passaram naturalmente a se alongar. Exceto, no curso de mestrado onde não havia essa possibilidade, os prazos corriam em dias objetivos, sem chance de serem prorrogados. E nessa corrida contra o tempo, sobrava pra família a menor fatia do bolo. O crescimento profissional e pessoal almejado pela pesquisa, superava em parte, a frustração de não dar conta de todos os projetos de vida. Afinal de contas, seriam dois anos, intensos, mas dois anos, não mais que isso. A academia não permitia o alargamento de prazos. E com essa meta a vida seguia. Considerando que era essa a realidade, sigamos em frente. E assim, com esse objetivo bem fixado, restava dar andamento à pesquisa com dedicação, em prol do melhor que podia ser feito apesar do contexto, adverso, às vezes. Vale ressaltar que o novo conhecimento adquirido até aquele momento e as trocas com os colegas proporcionaram momentos importantes que serviam pra mostrar que tudo valia à pena. Afinal, a correria passaria e logo a vida voltaria ao normal. E voltaria com um novo título acadêmico, adquirido com bastante suor, lágrimas e sorrisos também. 1 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e especialização em Democracia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Mestranda em Educação – Promestre/FaE/UFMG. Servidor efetivo UFMG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9511893032351387 546 Maternidades Plurais Ao final do ano de 2019 havia muitas expectativas para o próximo ano, ou seja, 2020. Considerando que este seria o ano para a finalização do curso de mestrado e a tão almejada defesa da dissertação. Existia a possibilidade de conclusão em fevereiro de 2021, mas a meta era finalizar o quanto antes, até mesmo para que os resultados do estudo fossem logo conhecidos e publicizados. Sabia também que se o ano anterior foi puxado em razão das disciplinas e leituras que passaram a fazer parte da rotina, o ano do trabalho de campo e defesa, com certeza seria infinitamente mais intenso. E assim, com essa expectativa, iniciei o novo ano, focando em prazos, tempos, atividades, compromissos. A meta principal era a defesa da dissertação. A pressão por prazos, datas, cronogramas, excluía uma participação mais intensa nos momentos de lazer em família. A possibilidade de férias com viagens estava descartada. Neste ano de 2020, a ausência da mãe era certa nesses momentos. Tratava-se de um tempo de reclusão totalmente voltados para a pesquisa. Ao final, tudo seria recomposto e recolocado de volta ao lugar. Em dezembro de 2019 começaram a circular informações sobre a descoberta de um novo vírus letal, até então chamado de o novo coronavírus. Em janeiro de 2020 nomearam o tal vírus de Covid19. Mortes estavam ocorrendo na China e o alto potencial de transmissibilidade do vírus deixava o mundo em alerta. Apesar disso, a vida seguia no Brasil e no resto do mundo. Passamos pelas férias de janeiro, pelo carnaval no final de fevereiro e o ano começou pra valer em março. Tudo parecia transcorrer dentro da normalidade. No entanto, o vírus atravessou a fronteira da China e se instalou na Europa, disseminou-se por lá provocando mortes na Itália, Espanha e outros. A Organização Mundial da Saúde declarou que o mundo estava diante de uma pandemia e que a medida para controle da disseminação era o isolamento social. Até então não havia vacina ou medicamento contra o vírus. O isolamento foi a única medida indicada para proteção das vidas e principalmente, para evitar a sobrecarga nos sistemas de saúde. Definiu-se quais eram os grupos de risco: idosos e portadores de doenças crônicas. O vírus tem um alto índice de contágio. As crianças estão nas escolas, as faculdades estão cheias de pessoas, os shoppings e locais que causam aglomeração, funcionando e lotados. Mas, os familiares idosos e com doenças, daqueles que estão circulando, correm mais risco de adquirir a forma severa da doença, e todos podem ser contaminados. O que fazer? O Brasil entrou em isolamento social, em meados de março. Vivendo sob a perspectiva da pandemia E assim, o imprevisível aconteceu, de repente, todos ou a grande maioria das pessoas se viu ‘presa’ em casa, em isolamento social. Todas as aulas foram suspensas desde a educação infantil até o ensino superior. Locais que causam aglomeração como shoppings, parques, restaurantes, foram fechados. A pandemia trouxe consigo a ideia de sobrevivência e cuidado com o outro, se não sou idoso ou tenho alguma comorbidade, não tenho que me preocupar por mim, mas tenho que cuidar para que as pessoas do grupo de risco não adoeçam. Esse foi o cenário não imaginado para o ano de 2020. Para esta mãe cientista, tudo estava meticulosamente calculado e moldado pra caber dentro de um calendário rígido e fixo, com normas e 547 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) regras improváveis de serem alteradas. De repente, aquilo que ficou fora da minha agenda, em razão do planejamento proposto, passou a ocupar integralmente os dias, as horas, os minutos, os segundos, ou seja, a convivência intensa com as minhas duas filhas. O ano em que a mãe cientista estaria muito ausente para cuidar mais de perto da pesquisa passou a ser o ano em que o cuidado com as filhas seria mais intenso, sobretudo, geograficamente falando e a pesquisa correria pela tangente, sendo realizada, dentro das possibilidades das limitações impostas pela pandemia. Esse contexto me levou a refletir sobre mulheres e saúde mental. A maternidade é um acontecimento que significa e ressignifica o estar no mundo dos pais. Para a maioria das sociedades o sentido de existir da mulher está intimamente ligado à procriação, sendo este o legado maior de sua existência. Sabemos que nem todas as mulheres se inserem nesse universo, por razões que dizem de sua individualidade, liberdade dentre outros, o que indubitavelmente, não afeta a sua essência. Mas, para aquelas que se aventuraram pelo caminho da maternidade, vale refletir sobre a experiência desses cuidados maternos num momento tão atípico do mundo, cheio de incertezas e tendo que de alguma forma, propiciar conforto aos filhos e filhas e a si mesma. No estudo de Pegoraro&Caldana2 as autoras retomaram a história da Idade Média onde estava determinado socialmente às mulheres que aquelas que não seguiam a determinação de se casarem, ficando assim contidas no ambiente doméstico e sujeitas à procriação, eram consideradas bruxas. Já na Idade Moderna essas mesmas mulheres eram consideradas loucas e a internação surgia como destino principalmente para as prostitutas e pobres. Vale ressaltar que as autoras identificaram nos documentos pesquisados que essas mulheres podiam ser identificadas como imigrantes que não conseguiam falar a língua do país e mulheres negras saídas da escravidão. Vale o destaque: Para os alienistas, o padrão a ser seguido era o das mulheres “de família”, vistas como sadias e com condutas classificadas como “normais”, isto é, exercendo papeis dentro do seio familiar. A despeito da inferioridade feminina, Cunha (1998) destaca a importância do relato paterno para a efetivação da internação e para o diagnóstico da loucura, quando na defesa de que “... mulheres que, podendo viver de acordo com as normas, se furtaram ao seu papel ‘natural’, que insistiram em viver suas escolhas, que não se conformaram ao papel que lhes era socialmente destinado” (Cunha, 1998, p.15) e estavam destinadas à degeneração. (PEGORARO & CALDANA, 2008, p. 86) Percebe-se claramente a ideologia de inferiorização das mulheres, elas são apresentadas quase como que objetos, os quais devem ter seus destinos orientados de fora, por aqueles que se consideram seus donos, no caso, os homens. Embora tal pensamento se justificasse no contexto em que foi estabelecido, a ideologia da suposta inferioridade das mulheres, atravessou a época e se perpetuou pelas 2 CALDANA, R. H. L.; PEGORARO, R. F. Mulheres, loucura e cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda por cuidados em saúde mental. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/sausoc/2008.v17n2/82-94/. Acesso: 26 jun 2020. 548 Maternidades Plurais próximas gerações. Vale mais uma vez o destaque do texto que diz da ‘importância do relato paterno para a efetivação da internação e para o diagnóstico da loucura’. E assim o domínio masculino ou patriarcado foi sendo assumido para definir o destino das mulheres. Após a passagem desse período e entrada no mundo pós-moderno houve avanços nas políticas públicas que culminaram com a presença das mulheres no mercado de trabalho. Mas ainda assim, em razão da ideologia de inferiorização, é possível perceber que as mulheres que se sobressaem no trabalho, nos estudos, ainda são vistas de maneira diferente, como se os resquícios do tempo em que eram associadas à loucura ainda estivessem presentes. E a forma de barrar esse avanço feminino no mundo se apresenta com a desvalorização salarial em comparação aos homens e com a ocupação menor em cargos de chefia. Por sorte, apesar das condições nem sempre favoráveis, nós mulheres nos engajamos no campo da ciência, como uma forma de transcender ao esperado socialmente. Com essa atitude somos capazes de levar o feminino onde quer que seja e não seremos taxadas de loucas. Assim como não enlouqueceremos na pandemia. Evidente que há sobrecarga de trabalho para as cientistas mães, pois, não é possível terceirizar nem a maternagem, nem o trabalho, nem os estudos. E nem queremos isso. Então, se as mulheres eram associadas à loucura, como estão sobrevivendo à pandemia sem ‘enlouquecer’? Acredito que é exatamente pelo fato de estarmos envolvidas com as pesquisas que a maioria de nós conseguirá reagir positivamente a todo esse processo. Destaco, felizmente, que a oportunidade da continuidade da pesquisa se apresenta pra mim como um alento que me permite sobreviver a tudo isso com mais serenidade. Sinto que é estressante, exaustivo, angustiante, mas percebo que preciso viver essa experiência, tendo em mente a excepcionalidade do momento. Se é para estar com os filhos por mais tempo, quero me permitir que essa interação ocorra, a despeito de todas as intercorrências e mesmo diante de tantas incertezas quanto a tudo, da melhor maneira possível. Entendo que são necessárias estratégias de enfrentamento e empoderamento de nós mulheres, para atravessar o momento atual, preservando assim a saúde física e mental. Concordo com Dessen&Braz3 que é necessário haver uma ‘rede social de apoio das famílias, que vem sendo destacada como um dos fatores responsáveis pela manutenção do equilíbrio e da dinâmica familiar’ (2000, p. 222). O estudo em questão abordou a chegada do segundo filho na família, mas a conclusão de que é necessária uma rede de apoio para dar suporte pode ser ampliada para o contexto da pandemia. Contar com uma rede de apoio em períodos específicos contribui para a travessia de várias situações. Vale lembrar a lista extensa de agradecimentos encontrada nas páginas iniciais das pesquisas. O apoio de familiares e amigos é fundamental para esses enfrentamentos. O contexto da pandemia limitou o suporte presencial, mas, o apoio remoto tem tentado suprir essa lacuna. O estudo apontou que o apoio do marido/companheiro e da mãe, onde o contexto permitia, foi identificado como o mais necessário para o equilíbrio emocional das mães pesquisadas, e, em contrapartida, também contribuía 3 BRAZ, M. P.; DESSEN, M. A. Rede Social de apoio durante transições familiares decorrentes do nascimento de filhos. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722000000300005. Acesso: 26 jun 2020. 549 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) para o desenvolvimento dos filhos. (DESSEN; BRAZ, 2000). Vale a provocação que mesmo em contextos familiares diferentes do apresentado pelas autoras, permitir-se dividir experiências de sobrevivência apesar do caos aparente, pode ser uma das melhores formas de passar por tudo isso com mais leveza, tendo sempre em mente que tudo vai passar. O isolamento ou distanciamento social não pode ser entendimento como eliminação de contatos externos àquele núcleo familiar. Nesse sentido, as novas tecnologias surgem como uma ferramenta de aproximação. Considerações finais Passar por mudanças nem sempre é fácil. Algumas ocorrem por escolha e nem por isso se isentam de conflitos. E há aquelas mudanças impostas que impedem uma escolha diferente, como é o caso da pandemia, que afetou a todos de uma vez e mostrou que as certezas não estavam tão certas assim. O caminho para seguir em frente é viver, sobreviver, seguir. Trazer pra si o que de pode haver de melhor mesmo diante do caos. As mães cientistas e também as outras, de repente, viraram professoras de seus filhos ou, pra suavizar mais a nova função, viraram tutoras das crianças. A soma das funções no ambiente doméstico requer disciplina e negociações. O tempo precisa ser escalonado para que funcione. Os espaços foram ocupados por cadernos, livros, recados diversos, textos. Tem ainda os combinados para que as reuniões de trabalho, de orientação e aulas possam de fato acontecer, minimizando ao máximo as intercorrências externas: cachorro latindo, carro da vassoura, manhêee. É tudo muito novo. Nem sempre ocorre tudo como planejado. A internet pode cair e não ter a velocidade adequada. Os aparelhos eletrônicos disponíveis (celular, computador) podem estar aquém do necessário para suportar determinadas mídias. Diferentemente do ambiente escolar onde o silêncio será o principal condutor da pesquisa, em casa, será preciso se adaptar aos sons da casa. O que vale também para o home office. É preciso se concentrar com todos os barulhos possíveis. Concordo com Amazonas et al4 que apontou em seu estudo que “solidariedade é uma forma de a classe popular garantir a sua existência ante um contexto que oprime seu desenvolvimento” (2003, p. 13). Essa manifestação das classes populares nunca se fez tão presente no momento atual. A possibilidade de execução de todas as atividades de trabalho, estudos, limitado nesse momento à esfera doméstica, só poderá acontecer caso haja solidariedade entre todos. Nessa mesma lógica, tem surgido várias frentes de ações solidárias para além dos muros das casas. No caso das mães cientistas destaco como de fundamental importância, o suporte online oferecido por uma rede de psicólogos, disponíveis para esse tipo de atendimento. 4 AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida et al. Arranjos familiares de crianças das camadas populares. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722003000300003. Acesso: 26 jun 2020. 550 Maternidades Plurais A vida certamente não voltará ao normal. Uma nova forma de se relacionar surgirá. Cabe a nós estarmos atentas para manter os cuidados aprendidos e sobreviver. A meta principal para viver o ‘novo normal’ será o sucesso das pesquisas em andamento. E que as novas relações desenvolvidas com os filhos e filhas favoreçam o estreitamento dos laços. 551 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 91 A pandemia de uma mãe solo de três: sobrevivência mental e redução de danos Mádhava Hari Cezar dos Anjos1 O presente texto em formato de relato traz algumas reflexões subsidiadas a partir do estudo das ciências sociais no que compreende a organização social e os recortes que fundamentam a nossa sociedade na atualidade. Dessa forma o relato nos leva a refletir a organização social a partir da estrutura patriarcal e os impactos delas no cotidiano de uma mãe solo 2 de 3. Recortes de classe, são pertinentes de serem evidenciados tendo em vista que este recorte proporciona a mim alguns privilégios que não se caracteriza a realidade da maioria das mulheres, onde até para irmos buscar os nossos direitos e de nossas crianças, sai na frente quem não está lutando por sobrevivência. Isso evidencia ainda a importância de políticas públicas para democratizar o acesso e promover melhorias dignas no cotidiano dessas mulheres, cuja responsabilidade exclusiva lhe foi imposta e não se constitui numa escolha, afinal nenhuma mãe solo o escolhe ser, a escolha é sempre do outro que abstém de sua responsabilidade: “uma maternidade forçada, a ausência das políticas públicas necessárias que deem suporte social para o exercício da maternidade mostra-se ainda mais perversa e danosa” (DINIZ, 117, 2012)3. Sendo assim, segue o relato de uma mãe solo de 3, lutando pela sobrevivência mental em meio ao caos provocado por uma pandemia de nível mundial. É importante contextualizar, tendo em vista 1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação, Identidades e Culturas (PPPGECI) Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/ Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9055251486744817 Definição de mãe solo, tiradas do vídeo “Mães solo - o que são o que comem onde vivem”, a cineasta Helen Ramos, no canal do Youtube Hel Mother: “Mas, Hel, o cara lá que assume, pôs o nome na certidão e paga pensão, essa mulher, ela é mãe solo? — olha, se o pai não está dividindo a criação igualitariamente, cinquenta/cinquenta por cento, sim, ela é considerada mãe solo. Uma coisa muito importante a se dizer é que uma mãe solo com exceção da produção independente, quando digo produção independente, gente, é quando a mulher foi lá e fez inseminação e, realmente, desde o início, ela quis ser mãe solo. Tirando essa exceção, da produção independente, nenhuma mãe escolhe ser mãe solo. Por quê? Porque ninguém escolhe passar por um processo de vida tão difícil.” 2 3 MATTAR, L. D; DINIZ; C.S.G. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdade no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface. Comunicação, Saúde e Educação. V16. N.40. p.107-119. jan/mar. 2012. 552 Maternidades Plurais que pra mim, quando falamos de mãe, devemos diretamente falar de pais. Dessa forma acho importante contextualizar a composição de minha família três filhas(o) de três pais diferentes. Um deles apenas conheceu o filho apenas este ano, pouco antes da pandemia, pela primeira vez. O outro pai mora há 5 min de nossa residência, o que não significa presença garantida. E o terceiro pai mora em outro Estado, mas apesar de vir regularmente à Recife e passar em média 15 dias, nem sempre, igualmente, está presente. Três realidades paternas bem distantes, mas com um aspecto em comum: a possibilidade da escolha da presença e/ou ausência. A minha opção nos três casos foi a separação, mas nunca optei por assumir toda responsabilidade sozinha, isso me foi imposto, e a mim não restaram escolhas. Hoje é dia 01 de junho, estou há 76 dias em quarentena. Hoje encerra 15 dias de lockdown em minha cidade. Não faz muita diferença pra mim, pois estou há 76 dias em lockdown, sou mãe solo de três. Tenho um filho de 18 anos, que há um ano mora com a avó materna e duas filhas que moram comigo, uma de dois anos e a outra de onze anos, completados durante a quarentena. Quando iniciou a quarentena, dia 16 de março, eu comuniquei a babá que ela ficasse em casa de quarentena, pois ela utiliza transporte público. Como a ideia do mestrado era qualificação em abril, eu vinha produzindo. Estava com a babá em casa há apenas 16 dias. Foram 16 dias de muita alegria pra mim, voltei a ter tempo de malhar, caminhar, ir num cinema sem crianças, passar um creme no rosto sem pressa, tomar um banho sem preocupar-me se “o mundo tá caindo”, fora do banheiro. Ela já cuidava de minhas filhas há anos, mas na casa dela, considerando que ela também cuidava de outras crianças. Acontece que ela foi gradativamente sendo dispensada das outras crianças e eu vi a oportunidade de trazê-la pra minha casa. Com meus privilégios de classe, estava conseguindo ter o mínimo de dignidade no meu cotidiano, estava amenizando uma sobrecarga de anos. Estava feliz e me sentindo liberta! Ainda deu tempo de ir num “rolê” noturno com as amizades da faculdade, outra libertação que há anos não fazia, sair só pelo prazer das companhias, no horário em que desejava e não no que era conveniente pra as crianças. Por mim, pra mim. Sem esperar e sem ter noção da dimensão, pois estava acompanhando apenas poucas notícias sobre o Coronavírus, não tinha ideia do que estava por vim, ninguém tinha. No domingo 15/03 o prefeito de Recife comunicou que no dia 18 entraríamos em quarentena. Não acreditei totalmente. No dia seguinte o Estado de Pernambuco, também comunicou que todo estado entraria em quarentena. Daí sim, comecei a acompanhar as notícias sobre o Covid-19, mas não tinha dimensão dos impactos e do tempo ao qual seríamos submetidos de quarentena, pensei 15 dias ou no máximo um mês, voltamos a normalidade. Dispensei a babá, pra que ela cumprisse a quarentena, pois ela pega transporte. Ela levou um susto, “mas tu achas que precisa? Eu posso vir”. Disse que não que ela iria se arriscar com transporte público que eu iria ficar resguardada e ela também. Que eu continuaria os pagamentos e depois veríamos como ficaria. No começo estava animada com a possibilidade de TER TEMPO. Pesquisei cursos online, fiz alguns, treinei uma rotina com exercícios físicos, comida fresca, brincadeiras com as meninas, ser professora da minha filha, seria legal.... Ah! Aí pensei nos livros do mestrado pra ler, nas resenhas pra fazer e na qualificação pra concluir... 553 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Os dias foram se passando eu não conseguia dar conta de tudo que havia planejado. No primeiro mês não havia conseguido nenhum dia sentar com minha filha para as atividades da escola, que jorravam diariamente pelo WhatsApp. Ficando pra trás, eu estava me sentindo angustiada e incapaz de dar conta de tudo. Depois da primeira semana desisti da rotina de exercícios físicos. A todo momento minha filha caçula insistia que eu desse atenção exclusiva. Eu, muito dispersa, acompanhando as notícias diariamente, e ela pedindo: “Olha ta mim!” (Olha pra mim!), segurava meu rosto em direção a ela, impunha que eu a desse atenção. Os absurdos diários das notícias durante a pandemia, a falta de dados e conhecimento da doença e o desconhecido, estavam me abalando psicologicamente. Parei de acompanhar os boletins e os jornais. Estava extremamente cansada, isolada e diariamente sozinha com duas crianças com as quais eu tinha que dar...comida, atenção, banho, ocupação...eu tinha que me doar o tempo todo. Por dias chorava, as vezes implorava pra ficar só por 5 minutos. Não tinha dia pra acabar! As vezes passávamos o tempo em videoconferências com os familiares. Eu nunca acertava o dia em que estava, apenas queria que passasse rápido, porque queria que acabasse, mas não sabemos quando vai passar e esse passar parece que tá cada vez mais distante. A ordem era proteger minha saúde mental. Eu precisava estar bem, as meninas precisam de mim bem. Cancelei a matrícula da minha filha na escola produtiva na quarentena, não era possível eu acompanhar, na configuração familiar que eu tinha. Uma das minhas filhas havia visto o pai pela última vez no Natal! Enquanto a outra havia visto o pai no início de março. Eu estava em período de qualificar no mestrado, precisava fazer alterações no texto para agendar data e eu não havia pego no texto nos últimos 30 dias. Quando perdi a rede de apoio da escola, da babá, das visitas de familiares...eu parei! Tentava manter a casa higienizada, mais ainda, diante da ameaça do Covid-19. A alimentação diversa, pra garantir uma imunidade boa pra mim e para as meninas e tentar leveza pra elas diante do confinamento, porque pra mim já estava pesado demais. As crises de choro eram cada vez mais constantes, crises nervosas. Mesmo diante de explicar minha situação, minhas dificuldades, sempre escutava que era preciso caminhar rumo a qualificação do projeto de mestrado. Quando minha filha caçula dormia e eu aguentava ficar acordada, passei a ler e tentar escrever. A mais velha estava sempre na tela e eu não tinha nem condição de tirá-la. Com o passar dos dias percebi que ela estava ficando mais triste. Passei a conversar com ela, dizer que estava muito difícil pra mim e que eu sabia que pra elas também, mas que eu não conseguia fazer melhor, agora. Ela disse que entendia, sempre compreensiva. Sobretudo eu sentia muita falta de estar em contato com as pessoas. De 15 em 15 dias eu saía pra fazer compras. Era um momento em que me sentia livre. Geralmente as meninas ficavam com meu irmão nesses momentos, que mora no mesmo condomínio que o nosso, assim eu não precisava levá-las. Eram duas horas de liberdade, ver a rua, as pessoas, me faziam bem, mas logo voltávamos ao confinamento. As áreas de lazer do condomínio foram interditadas logo no começo. Os nossos horários, passaram a não serem marcados. Geralmente eu acordava 554 Maternidades Plurais às 8h, minha caçula às 9h e Ananda ao meio-dia. Durante a manhã eu me ocupava nos afazeres domésticos, preparo das refeições, logo após o almoço, colocava a caçula pra dormir, era quando a mais velha estava acordando. Quando a calculava acordava, muitas vezes o sol já tinha ido, por isso passávamos muitos dias sem nem nos expor ao sol. A noite era longa, sempre dormíamos tarde e era o momento onde as duas estavam acordadas. Eu ainda tinha que gerenciar os conflitos, isso as vezes me deixava com nervos à flor da pele. Passei a discutir muito com as amigas, também mães que estavam confinadas com suas filhas(os) e pude identificar o quanto a sobrecarga, fica sempre sob a responsabilidade da mulher, mesmo muitas delas tendo companheiros. Sempre reclamavam que “não descansava”, principalmente as que crianças pequenas, na primeira infância. Que os pais saíam, estavam tendo vida normal, mas que elas estavam cansadas, com muito trabalho e confinadas, longe da rede de apoio, que deveriam ser os companheiros, mas na real, eles não assumiam este papel. Eu pensava que então não estava muito diferente de mim, o que me fazia crer que existem muitas mães solo, mesmo com seus companheiros dentro de casa. “Ausências presentes” e “Presenças ausentes”! Às vezes eu queria apenas que alguém ficasse conversando com elas por telefone nem que fosse por 30 minutos, já seria um tempo ocupadas, sem que fosse por mim. Por vezes conseguia que uns parentes ligassem, a babá e depois tudo voltava pra mim. Passei a compreender que home office para uma mãe solo, em confinamento era algo inviável. Enquanto isso via nas redes sociais as pessoas desfilando seus “cantinhos” home office e eu pensava, “isso não me cabe”. Minha realidade não cabe nesse home office, estou aqui lutando pra manter a saúde mental e lembrei que havia recebido alta da psicóloga um dia antes da quarentena. A alta do psiquiatra para tratar as crises de ansiedade havia sido dada ainda anterior a alta da psicóloga. E agora eu tinha que lutar pra não cair, por que não tinha atendimento médico eletivos. Estavam suspensos, apenas a emergência, do plano e eu não queria ir num hospital me arriscar. Passei a ter crises de asma constantemente, mas tentava resolver com os aerossóis em casa, não podia me arriscar a nebulizar numa emergência. Quando entramos no terceiro mês de confinamento tentei incluir no cotidiano leituras e escrita do mestrado, mesmo que fosse por pouco tempo. Me sentia pressionada a produzir pra “não ficar pra trás por ser mãe”. Tinha dois meses pra qualificar e não conseguia mexer no texto, tentaria fazer as alterações e alguns acréscimos pra cumprir a qualificação, online, já o seria anteriormente, considerando que a componente da banca está em outro estado. E por isso, agora estou aqui, fui dormir 1h da manhã e acordei às 5h pra trocas as fraldas da minha filha e então perdi o sono, resolvi tomar café e escrever. Não sei que horas irei dormir novamente, torço que a tarde ela cochile para que eu possa completar o sono que não tive esta noite. Consegui fazer alterações no texto, leituras, resenhas...mas sei que seria bem melhor se eu o fizesse sem tempo marcado, sem tempo corrido, sem a preocupação que ela vai acordar, sem que eu precise trocar meu curto descanso por produção, por que no final é isso, deixamos o descanso de lado pra bombar o Lattes. Semana passada pensei com seriedade em pedir pra que a babá viesse passar alguns poucos dias que fossem aqui, pra desafogar a carga mental e pra que eu conseguisse escrever, parece que a todo tempo precisamos medir entre o risco da contaminação e o risco de não conseguir 555 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) manter a sanidade mental. No entanto, ela apresenta os sinais de Covid-19 e uma sobrinha dela também. Além do mais eu não tinha o direito de colocá-la em risco, no transporte público, por minhas necessidades pessoais, consciência de classe tinha que ser prática e não apenas no discurso e nos debates. Há quatro dias um amigo em comum meu e da babá, faleceu de Covid-19 depois de ficar dias entubado. Nem deu tempo de elaborar o luto ainda. Um tio dela também faleceu, a família não aceitou que foi Covid-19 por ele ter sido internado por outro motivo. Meus irmãos trabalham na linha de frente, na segurança pública. Enfim...estou só no cuidado com as meninas, e continuarei assim, até quando? Não sabemos... Durante esse período tentei criar cenários para como devem estar os pais na pandemia. Em nenhuma das cenas, eu os vejo tão cansados, sobrecarregados e mentalmente estafados, como eu estou e como vejo as mães desabafando. Fico tentando compreender como atua o patriarcado para retirar toda consciência de responsabilidade dos homens de modo que eles conseguem seguir ausentes da vida de suas crianças sem nenhuma demonstração de culpa por esta ausência ou de responsabilidade perante as(os) filhas(os). Como conseguem seguir ilesos e alheios?! Por outro lado, eu sigo criando pontes, tecendo redes que me apoiem nessa empreitada materna e também tentando ser apoio. E percebo que as questões que me atravessam e atravessam tantas mulheres além de se repetirem, o ponto chave pra diminuir e carga das mães solos, são sempre uma rede de apoio formada por outras mulheres, seja uma avó, uma tia, uma amiga e assim vai. Ainda encontro um apoio em dois homens, meus irmãos, com quem posso contar para os cuidados, mas foi a muito custo e processo de conscientização a partir das problemáticas que eu e minha irmã levamos, que consigo este amparo. Não é algo que ocorro a partir da autonomia deles, mas sempre induzido. O excesso de carga mental pra mim, hoje é meu ponto fraco. Tendo em vista que tenho privilégios de classe, pois trabalho há bastante tempo como professora. Nesse ponto financeiro, identifiquei no fato do auxilio emergencial para mães solos, ser proporcionado um maior valor, se constitui num grande avanço. A emancipação das mulheres perpassa pela emancipação financeira, isso também vivo no cotidiano. 556 Maternidades Plurais 92 Escrevivência de uma mãe, revisora, ex-futura pesquisadora em meio ao fim de mundos Maiara Moreira Andraschko1 Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Adélia Prado, Bagagem. São Paulo: Siciliano. 1993. p. 11. A todas as autoras que enviaram seus relatos para este livro. Como vim parar aqui: Uma das organizadoras deste projeto, Dra. Vanessa Clemente, é minha amiga-referência e, dentre os vários projetos em que me inclui, essa mulher, mãe, pesquisadora, multitarefa, mil grau, me falou sobre este livro, o qual eu me ofereci prontamente para revisar. Sou graduada e mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás. Tive um percurso em Psicanálise, participei de formação e atendi em consultório por um período, mas como tive que pausar minha formação, parei de atender. Hoje atuo apenas como professora no ensino básico na rede privada. Mas assim que o fim do mundo acabar, quero começar a me preparar para a seleção do doutorado unindo literatura, psicanálise e educação. Antes eu tinha medo, agora sou mãe. Um breve percurso sobre meu percurso: Estou atrasada com este texto. Nunca fui muito organizada com prazos, o que me fez sofrer muito no mestrado, mas isso foi antes de ser mãe (outra vida, uma vida a menos), mesmo bagunçada, 1 Mestra em Letras tes.cnpq.br/2689060997488507 e Linguística pela Universidade Federal de Goiás. Lattes: http://lat- 557 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) dava-se um jeito. Era possível trabalhar dias a fio sem outras preocupações. Sem interrupções. Saudades. Mesmo assim não foi fácil entregar a dissertação2 em meio a uma depressão pós-divórcio, pesquisando uma autora que escrevia sobre as dores de mulheres em formação. Pesquisei como a mulher contemporânea é retratada na literatura e vi que ela é o que somos: fragmentadas, marcadas e resistentes. “Escrevivência”, esse termo de Conceição Evaristo não sai de minha cabeça desde que li seu livro de contos-relatos “Insubmissas lágrimas de Mulheres”. Foi o primeiro que consegui finalizar pós-maternidade. E chorei bastante. Chorei com as mulheres que foram ouvidas pela escritora, por elas, por mim. Nossas dores nos irmanam. Sempre fui muito privilegiada3, estudei em colégios particulares, minha família é estruturada, cresci com pais e irmãos amorosos. Sempre amei ler e tive todos os livros que desejei. Então não foi novidade, pelo menos para mim, quando decidi fazer Letras na graduação. E foi na Universidade Pública que comecei a me tornar a mulher que hoje me orgulha. Foi no campus que saí da bolha classe média branca em que vivia para me dar conta das desigualdades sociais. Colegas que não tinham dinheiro para xerox faziam-me sentir vergonha de sempre ter tido livros. O ensino superior público me humanizou, meus estágios em escolas públicas me fizeram ver a necessidade de lutar por um ensino público de qualidade e por um outro mundo. Foi lá que me tornei militante, feminista, anticapitalista, logo, gente. O ensino crítico liberta. Na militância, confesso que sempre tive preguiça das pautas sobre maternidade, achava um papo muito esotérico de útero sagrado e de um feminismo liberal. Isso não fazia revolução. Mas aí engravidei, com 3 meses de namoro. Morava numa quitinete com meu companheiro e minha vida virou do avesso. Fui demitida de uma das escolas quando avisei que estava grávida e, como não havia contrato formal, não tive forças para entrar na justiça. Vivia cansada. Não houve nada de mágico em minha gestação. Só medo e incômodo. Sempre quis ser mãe, mas ela veio num momento sem planejamento, eu nem conhecia direito meu companheiro, apesar de muito apaixonada. Então tudo se transformou. Tivemos que mudar de casa, começar a montar o enxoval, economizar dinheiro. O pai era profissional liberal e não estava conseguindo manter uma renda para que eu fosse gradualmente reduzindo meu trabalho, então trabalhei até a última semana de gestação. Não tive tempo nem disposição para fazer atividade física. Não tirei fotos. Não me alimentei adequadamente. O sonhado parto normal não ocorreu. Mudamos para uma casa grande, o aluguel era alto, arrumamos uma cachorra enorme, Gaia, do tamanho de minhas expectativas para o meu final feliz. Eu estava montando minha família margarina, 2 Aqui deixo novamente meu agradecimento a minha orientadora, Dra. Renata Rocha Ribeiro, sem a qual seria impossível ter concluído minha pesquisa. Acredito cada vez mais que somente uma mulher seja capaz de tamanha empatia. 3 Vale pontuar como em todos os relatos que revisei, todas as mulheres reconhecem seus privilégios, mesmo quando eles nem são privilégios, por exemplo, ter um marido companheiro ou ter bolsa para fazer a pesquisa, o que me dá a impressão de que de fato um mundo regido por mulheres sempre será mais democrático, já que conseguimos enxergar as desigualdades que sustentam este sistema. 558 Maternidades Plurais nem que pra isso eu não pudesse descansar. Afinal eu engravidei, eu que desse conta de preparar tudo pra chegada desse bebê que não pediu pra nascer. Quem pariu Otto que balance. A culpa em mim nasceu antes do filho. [Uma pausa: é difícil, né? Essa escrita de si, o medo de ser lida em sua intimidade, o desnudar das tristezas. A lembrança, a memória. É mais fácil ler vocês do que me juntar a vocês. Mas é mais justo e necessário, é preciso dizer, lembrar, deixar registrado. Nossa caminhada nunca é inédita.] A pandemia, o fim do mundo, e os planos pra depois dele: Escrevo este relato cansada, entre as mamadas noturnas do meu bebê que mesmo no fim do mundo está aprendendo a andar. Ele é tão bonito. Tão. Viemos passar a quarentena na chácara de meus pais, pois meu companheiro não tinha como trabalhar com o comércio fechado e eu estava dando aulas online, então parecia um bom refúgio para termos ajuda no cuidado com nosso bebê de 10 meses. Porém, com o advento do apocalipse, ruiu também meu casamento. Meu 2º divórcio, agora com um filho e presa em uma quarentena. Mas, assim como meu filho está aprendendo a andar, segui. Não há tempo para dor de amor sendo mãe de bebê e trabalhadora. Além disso, tenho muita consciência dos meus privilégios, mesmo agora sendo mãe solo4, não vou passar necessidades, tenho meus pais pra me auxiliar financeiramente e possuo uma rede de apoio maravilhosa. Muitas não possuem. Minha consciência social me impede de acessar algumas dores individuais, desculpa, Freud. Me sinto um pouco como Conceição Evaristo [vejam que honra!], revisando este livro de mães cientistas: ouvindo mulheres diversas e insubmissas contando um pouco de suas trajetórias. Quantos relatos potentes, pesados, resistentes. Uma metaescrita de vida definitivamente não é um livro fácil de ser lido. Chorei com todas as histórias. Enquanto revisora, corrigi algumas crases e vírgulas 5, mas enquanto linguista e mãe o desejo era deixar tudo do jeitinho que recebi: porque definitivamente algo tem que se mover com esse oceano de mães que insistem em não sucumbir diante de tantas adversidades, nem que sejam as convenções da língua normativa. Confesso que me sinto uma grande intrusa aqui escrevendo meu relato, pois não estou fazendo pesquisa no momento. Só sou mãe e professora, dou aulas de redação e literatura no ensino médio. Assim que, e se, conseguir uma vaga na creche municipal para o meu filho, aí sim voltarei a me organizar para o doutorado. Mas já garanto que se um dia minha tese sair, a dedicatória será para as mulheres deste livro, que mesmo escancarando as desigualdades de gênero e de classe as quais estão 4 Que mãe não é solo? Lendo os relatos de tantas mães, essa pergunta surgiu para mim: mesmo quando há um parceiro, é a mãe quem organiza a rotina, é ela quem fica quando as crias adoecem, é ela a responsável pela agora escola EAD. É sempre ela quem carrega bandeiras e se desdobra. 5 Fiz o meu máximo para não interferir no estilo de escrita de nenhuma autora. Mantive os desvios à norma que não prejudicavam a compreensão do significado, por exemplo: “pra” ao invés de “para”. Uma boba formalidade pra quem está sobrevivendo a uma pandemia fazendo pesquisa e com filho em casa, não é mesmo? 559 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) submetidas na academia, me ensinaram que não podemos sair de cena. Pelo contrário, é por dentro e na luta que revolucionaremos. Reflexões finais: Como deve ser a vida de uma mãe que pode descansar quando a cria dorme? Como era ser mulher não mãe? O que eu fazia com tanto tempo? Durante esse breve período em que me tornei mãe, quando o bebê dormia, eu trabalhava. Como ter tempo pro casamento, se não há tempo nem pra si? Desde que ele nasceu, acho que assisti no máximo a cinco filmes, nunca mais vi séries, consegui finalizar a leitura de UM livro. Rapei minha cabeça. Nunca mais fiz as unhas. Não tenho ideia de onde estão minhas maquiagens, não que eu usasse com frequência, mas pelo menos tinha uma gaveta para elas. Não sei mais a numeração que visto, ainda uso a calça jeans de grávida, porque continuo com 10kg a mais. E nisso tudo, do que mais sinto saudade é de poder trabalhar em paz. Sem interrupções, a não ser as que eu mesmo causava. Mesmo quando tentei organizar a rotina: o pai cuidava pela manhã e eu pela tarde, ainda assim era interrompida porque tem hora que o bebê quer a mãe, quer meu colo, meu leite. É lindo e potente poder nutrir meu filho, ele hoje pesa 11kg, eu gerei e nutri 11 kg, tenho orgulho, mas quem entende isso? Quem sabe ou se importa com o trabalho full-time de uma mãe trabalhadora? Eu mesma não tinha paciência antes de ser mãe para esses assuntos. Com tantos métodos contraceptivos, por que engravidar? Se desejava ser mãe, por que reclamar? E muitas mães, especialmente as de gerações passadas, não entendem também o porquê de tanta dificuldade: se o bebê não dorme a noite toda, é só tirar o mamá da madrugada, o deixe chorando por duas noites que resolve. Veja bem, gente, eu li Winnicot, sou uma histérica analisada e estudada, não há vida fácil no meio de tanta informação. Meu filho tem um ano e sabe imitar animais, mas sinto que estou atrasada porque ele ainda não sabe as partes do corpo. Tenho que treinar mais a coordenação motora fina dele, ainda está grossa. Enfim... Contudo, tenho pra mim que uma mãe que assume que está sobrecarregada e que luta por outro mundo para maternar não é uma mãe que ama menos, pelo contrário, é uma mulher que não admite deixar para suas crias este mundo tão injusto. A luta faz parte da maternidade, quer as mães estejam conscientes disso ou não. Assim, com muito orgulho e emocionada por ter tido essa oportunidade de entrar em contato com as escrevivências de todas, vejo que todas as mulheres-pesquisadoras-mães deste e-book têm plena consciência de seu lugar e de sua importância para as mudanças tão urgentes que devem ocorrer neste mundo cão, capitalista, racista e patriarcal. De coração, espero que a escrita desses relatos tenha sido terapêutica para vocês, assim como foi para mim, para exorcizar as dificuldades que só nós, mães, sentimos. Ser mãe é solitário. Pesquisar é solitário. Solitárias estamos todas, em diferentes medidas, no meio do furacão desta pandemia, resistindo e sobrevivendo, nesse cenário atual tão devastador. Por fim, resta dizer que: ficou evidente que na academia os prazos para as pesquisadoras mães devem ser maiores. A infraestrutura deve mudar. As bolsas são fundamentais. As licenças devem ser estendidas. Congressos devem ter espaços kids. 560 Maternidades Plurais Não há dúvidas, também, de que as mães movem o mundo e de que vocês movem a ciência. Que honra! Obrigada! Sigamos! Hasta la vitória, companheiras! Maiara Moreira Andraschko 561 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 93 Inquietações de uma mãe em meio a uma pandemia Maria Carolina Loss Leite1 A frase que me marcou, até agora, durante esta pandemia me foi dita em um dia que eu e minha filha (seis anos) estávamos à mesa comendo e conversando em um final de tarde depois de uma ensolarada segunda-feira. Perguntei para Alice o que estava sendo de bom e de ruim neste período. O bom nem preciso comentar. O que me chamou a atenção foi o ruim: “Ruim porque tem gente morrendo”. No início da pandemia, pensei que seria o melhor momento para passar com a minha filha, já que estaríamos 24h, literalmente, juntas. Muitas brincadeiras, comidinhas feitas por receitas nossas, filmes e dormir sem horários para acordar. Lições da escola? Sim! Nas regras que, na minha cabeça, iriam servir perfeitamente para este momento. Quando o isolamento social começou no Rio de Janeiro, em março, confesso que achei que seria fácil passarmos juntas por mais este período de turbulências, já que tivemos em 2018 alguns acontecimentos pessoais que nos marcaram para sempre de maneira negativa, mas que conseguimos emergir. Estávamos já pensando em sua festinha de aniversário, que ocorreu em maio (sem os colegas da escola e remota com os avós). Quem convidar, qual tema seria, quais seriam as lembrancinhas. Tudo planejado há um ano em minha cabeça, claro. Ao início da pandemia, o primeiro baque: não poder descer e brincar. Não ir para a escola. Explicar o que estava acontecendo para que ela pudesse compreender da sua maneira como estava não apenas a nossa vida, mas a de todos. E no mundo inteiro. Mas, ainda assim, menos ruim em relação à daqueles que estavam perdendo seus entes queridos por conta da doença, que a cada dia nos mostrava sua agressividade e seus números fatais. Ou seja, explicar que corríamos risco de vida se estivéssemos expostas na rua. O que fazer, então? A primeira coisa foi pedir sua opinião para a “nova” arrumação do seu quartinho: mudar móveis, roupas, brinquedos, livros. E, a cada dia, a arrumação era “nova”. Em seguida, separamos os dvd’s — antes empoeirados e agora nossos melhores amigos — para as jornadas intermináveis de filmes de princesas, heroínas, terras de faz de conta. Mas, quando a criança ia dormir, eu aproveitava e chorava copiosamente por tudo. Olhava o pôr do sol pela janela e me sentia sozinha, me cobrava (e ainda o faço) sobre atividades de um recém 1 Doutoranda e Mestra em Sociologia – IESP – UERJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9138807249277379 562 Maternidades Plurais iniciado doutorado, tão sonhado e comemorado na mesma instituição que realizei o mestrado. A única coisa que eu via de positivo era de que havia me mudado antes de tudo isso. Sou uma mãe e pesquisadora. E sei que minha realidade é diferente de muitas outras mães durante esta pandemia. Segundo relatos já publicados2, existem mães em situações muito mais precárias, como as residentes do conhecido “bloco das mães” do Crusp, por exemplo, que alegam estarem passando por uma situação de caos e abandono. Além da estrutura física do local ser precária para atender às estudantes, por conta dos contágios ocorridos no local, elas dizem ter ficado abandonadas em meio a um isolamento total. A preocupação daquelas mães é de manter a saúde dos filhos em meio ao maior problema sanitário já visto na contemporaneidade. E justamente pelo fato de morarem com suas crias, os desafios são ainda maiores, pois não há com quem deixar as crianças neste momento, tendo em vista que a creche também fechou e para usar a internet, por exemplo, as mães precisariam se deslocar até uma sala de estudos, em meio à pandemia. Ou seja, pedir comida, ajuda ou até mesmo tentar estudar, para elas, está sendo um enorme desafio. De vida de e de morte. Mas também estou longe das mães servidoras públicas, como as do Judiciário 3 — juízas, promotoras, defensoras públicas — que além de manterem suas rotinas familiares —, muitas delas ainda estão tentando auxiliar mulheres vítimas de violência doméstica. Em período de isolamento, a difícil tarefa de denunciar seu agressor passou a ficar quase impossível, já que as delegacias estão trabalhando com menos estrutura pessoal e para fazer uma reclamação online, são demandados recursos tecnológicos como uma rede de internet, um celular ou um computador. Sem contar que vítima e agressor estão passando mais horas dos dias juntos. A meu ver, estamos enfrentando uma “nova maternidade”, muito mais pesada, em todos os sentidos. Muito mais desafiadora, pois não temos certeza de nada, temendo pela saúde de nossas crias e ainda precisando trabalhar para trazer comida para dentro de casa, escrever, cuidar dos mais vulneráveis como avós, mães, sogras em meio à pandemia do Covid-19. Realidade sociais distintas, medos e angústias parecidas. Reconheço meus privilégios de poder ficar em casa com minha filha segura, com a comida do outro dia garantida. Mas, e para as mães que não têm a quem recorrer, pois ficaram sem trabalho, sem ajuda, sem amparo? Mesmo com a liberação de um auxílio emergencial4, as despesas de uma mulher com crianças são muitas e constantes. E como se não bastasse nossas preocupações com a alimenta- THE INTERCEPT. Coronavírus: ‘fomos abandonadas pela USP durante a pandemia, e não podemos nem morrer porque nossos filhos dependem de nós’. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/04/01/coronavirus-maes-dormitorio-universitario-usp/>. Acesso: 1 jun 2020. 2 3 FOLHA DE SÃO PAULO. Mulheres fazem jornada tripla, e home office na pandemia amplia desequilíbrio de gênero na Justiça. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/home-office-na-pandemia-amplia-desequilibrio-de-genero-na-justica.shtml>. Acesso: 1 jun 2020. 4 UOL. Tias, avós e irmãs que sustentam família podem pedir auxílio de R$ 1.200. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/14/auxilio-emergencial-mulher-mae-solteira-familia-direito-coronavouchermenor.htm>. Acesso: 1 jun 2020. 563 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ção, saúde e bem-estar de nossas famílias, as necessidades agora, além da comida, também se alteraram. A compra de mais material de limpeza, produtos que antes sequer faziam parte das listas de compras de mães brasileiras — como o álcool em gel e máscaras — agora se tornaram produtos indispensáveis para a sobrevivência de todos. E como adaptar o orçamento às necessidades de uma família, seja ela de mães solo, seja ela com um ou mais filhos? Pensei que por conta do isolamento social, conseguiria ler todos os livros obrigatórios do semestre do doutorado, passar momentos de lazer e de aprendizado formal, de forma remota, com a Alice, que conseguiria dormir melhor, já que não teria os horários certos para fazer as coisas. E que tudo passaria. Sairíamos ilesas. Mas, não. Meus sentimentos de desgaste, minhas cobranças pessoais, meus medos e fraquezas, minhas tristezas viraram minha rotina, juntamente com a limpeza diária da criança, da gata e da casa, a comida para preparar, as plantas para cuidar e a sensação de que o dia nunca irá acabar. Mas ele acaba. E começa tudo outra vez. Como em um recurso da tecnologia que voltamos de onde paramos, porém, não avançamos. Estagnamos. E cansamos. Entretanto, me vem, com a mesma força que venho sentindo tudo, a pergunta: como será o “novo” normal? Como será o “novo” futuro? E por mais angustiante que possa parecer e entristecedor, me lembro que há uma criaturinha que precisa, agora mais que nunca, de uma diretriz, um corpo forte e disposto a lhe conceder carinho e atenção neste momento delicado a todas nós. E cada uma a seu jeito de se doar. É sabido que as mulheres, independentemente de sua posição social e em diferentes locais do mundo, estão mais sobrecarregadas neste momento. Já éramos. Mas a pandemia acirrou esta desigualdade. E não deu para esconder. Agora, vimos o papel fundamental da mulher na sociedade: líderes sensatas comandando suas nações em meio à crise econômica e sanitária com pulsos firmes e emoções controladas se tornando, em todos os sentidos, referências mundiais de bons governos. Mas será que de nada servirá este isolamento social, senão apenas nos trancafiar? O que mais aprendi — e venho aprendendo, pois estamos longe do fim — é que ainda carrego a crença de que a próxima geração entenderá que muitas pessoas estão morrendo por ações irresponsáveis de outras pessoas, que só pensam em lucros e proteção àqueles que sempre detiveram privilégios e posições favorecidas. E que o racismo, em meio a isso tudo, se demonstra claro e vivo. E precisa ser combatido. Mesmo que seja de máscaras de proteção, mas precisamos salvar vidas já perseguidas por terem peles de tonalidades diferentes, pois elas importam. A certeza de que o amor pode salvar uma alma, já que vimos tantos exemplos de pessoas cuidando umas das outras, desconhecidos que receberam auxílio de outros desconhecidos, cujo intuito era apenas de serem humanos. Ou de corredores humanos para salvar os alvos fatais da brutalidade policial. Talvez nunca eu tenha questionado tanto a humanidade. E talvez eu nunca tenha me sentido mais humana. Derramei minhas lágrimas a cada morte de mais um ou de uma brasileira, que, por desinformação, falta de acesso à saúde básica ou por azar, não resistiram ao vírus. Ou sucumbirão. É uma doença 564 Maternidades Plurais séria e precisamos ter responsabilidade. E reforcei aquilo que já sabia: uma criança pode ser um caminho para a transformação. A minha me ensinou a dizer: “agora vamos brincar, depois você faz isso”, sentindo menos peso nas costas e mais leveza em viver. Nesta pandemia, ainda em curso, rimos muito, apesar da situação, do nosso cotidiano. Dos nossos pijamas e meias furados. Das nossas histórias nos banhos quentinhos. Na calmaria depois de um dia cheio... de nada. E choramos também, por tiroteios perto de casa, na véspera do Dia das Mães. Onde corpos infelizmente foram acertados. Choramos pelos tantos Joãos, Marias e Georges. Mais uma vez. Mas esse “nada” está sendo mais enriquecedor que se possa imaginar. Atividades laborais são importantes para manter nossa mente funcionado e a economia girando. Mas está sendo no “nada” que a ideia de que apenas servimos para “servir” está sendo posta à prova e cabe a nós, mães da pandemia, mostrar que estamos preparando meninas, meninos e menines para serem antirracistas, feministas, democratas. Mesmo com todas as dificuldades que ainda estão impostas a nós. Este “nada” poderá nos trazer uma nova promessa de um futuro promissor e fazer a gente romper barreiras que nos são impostas desde que nascemos como mulheres. Por isso, com o final do confinamento, estaremos em um lugar diferente, no que tange às relações de trabalho e sociais. E para muitas mulheres brasileiras, este enfrentamento poderá decidir seus futuros, seja como mães, como profissionais ou simplesmente como mulheres. Afinal, como será o amanhã? Descubra quem souber. 565 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 94 A pesquisa virtual como indutora da colaboração entre gerações: superando o impacto do distanciamento social Maria do Carmo Pierry Barreiros1 Depois de anos de trabalho chegou o dia da aposentadoria. Ficar parada de uma hora para outra? Melhor não. Acostumada com a lida diária, continuei a trabalhar, a ter ganhos e a arrumar a vida, com tranquilidade, para ficar perto do mar e da família. Passados cerca de dez anos, a empresa propôs um plano de demissão voluntária (PDV). Chegou a hora de parar e ainda com bônus. Perfeito! Melhor do que planejado: de volta à beira-mar e para perto da família. Porém, nem tudo saiu como planejado. Ainda cumprindo o aviso prévio do PDV, mamãe faleceu. Pouco tempo depois, meu filho e sua companheira resolveram fazer um 'mochilão' pela Europa. Nesse momento, era preciso continuar, mas de outra forma. Uma das alternativas seria voltar a estudar na perspectiva, não só de estudar por estudar, e sim, visando algo que desse algum sentido a uma vida futura, quem sabe, abrindo possibilidades reais de inserção no meio acadêmico, há tempos um caminho idealizado, mas sempre deixado para depois, em função da correria do dia a dia e das atividades profissionais. A partir dessa decisão, pesquisei os cursos disponíveis e respondi a um edital de seleção para ingresso de discentes no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação, da Universidade Católica de Santos – SP. Ingressei no mestrado no início de 2019. Vida agitada e animadora: aulas, trabalhos em grupo, almoço com os colegas e, claro, muita leitura de textos, artigos, livros e referências, bastantes distantes daqueles que eu tive contato durante a vida profissional. 1 Possui graduação em Administração pela Universidade Metropolitana de Santos (1976) e graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Braz Cubas (1977). Especialista em Qualidade e Produtividade pela Fundação Vanzolini (2004) e em Jornalismo Digital pela FAMECOS, da PUC-RS (2014). Mestranda em Educação na Universidade Católica de Santos- SP - UNISANTOS. Instrutora em gestão organizacional de projetos pela Academia de Formação de Instrutores do PMI-SP (2018). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9033532465681889 566 Maternidades Plurais Nesse meio tempo, o referido 'mochilão' de meu filho foi concluído e eles retornaram ao Brasil. Casaram-se em abril de 2019 e estão morando em São Paulo – SP. Sem problemas, é perto, vamos nos ver com frequência. E assim foi por quase um ano. Mais uma vez, a vida saiu do controle: em meados de março de 2020, a pandemia do novo coronavírus chegou e me empurrou para dentro de casa, pois o isolamento social mostrou-se como a alternativa mais acertada ao risco de contaminação, sobretudo na minha faixa etária — estou com 66 anos. Mudança de planos Com a pandemia do novo “corona vírus”, em um primeiro momento, pretendíamos aguardar o retorno das aulas presenciais. No final de março, com o distanciamento social implantado, optamos por estudar alternativas 'virtuais' para prosseguir na pesquisa de campo. Nesse mês de março enviei uma mensagem às escolas propondo que parte das atividades com as alunas fosse feita virtualmente. As escolas, ato contínuo, adiantaram as férias de julho e as providências com relação à minha pesquisa foram adiadas. Passado o mês de abril e constatada a impossibilidade do retorno às aulas presenciais em curto espaço de tempo, a coordenação das escolas foi impelida a enfrentar o planejamento e a execução do ensino à distância de todas as séries e turmas e, por justa causa, mais uma vez ficamos para depois. A mãe-pesquisadora ficou em estado de abandono e, pior, com a perspectiva de interromper as atividades acadêmicas externas: a pesquisa de campo, presencial, programada para ouvir as alunas de escolas públicas de ensino médio em Santos – SP, parecia comprometida. Previamente, já havia ocorrido um encontro com as jovens para a apresentação do objetivo e das atividades em que estariam envolvidas, explicações sobre a participação voluntária e anônima de cada uma das participantes. No entanto, esse contato inicial com as alunas não passou da apresentação das informações preliminares sobre as atividades previstas, suas finalidades e como seriam realizadas. Passada a imobilidade momentânea — umas poucas semanas, na verdade — era preciso continuar, pois, certamente, eu não estava sozinha nessa enrascada. Muitos pesquisadores estavam enfrentando situações semelhantes, ou até mais complexas. Paralelamente, em ambiente virtual, as disciplinas oferecidas pela Universidade para o curso de mestrado foram retomadas, indicando que as soluções à distância, também, poderiam ser consideradas para as atividades programadas com as alunas, de maneira a dispensar as visitas às escolas. Em maio de 2020, por não haver ainda uma data, sequer provável, para o reinício das aulas presenciais e seguindo essa possibilidade de retomar as atividades com as alunas e seguir com a pesquisa nas escolas de ensino médio, pedi o apoio de meu filho, hoje com 35 anos, para me orientar com relação às tecnologias digitais de comunicação e às possibilidades online. No entanto, era preciso resolver, além dos aspectos tecnológicos, os meios capazes de motivar as alunas a participar, voluntariamente. 567 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Fazendo acontecer Fabio, 35 anos: o filho Começamos, ele na casa dele, fazendo um sem número de outras atividades e eu, ansiosa, focada em minhas dificuldades. Houve várias interrupções: cachorros em desespero para comer, saco de lixo que se rompeu e outras interferências menos significativas, para ele, absolutamente admissíveis em uma troca de ideias. Nesse ambiente, que beirava ao caótico, não só fiquei mais tranquila, como foi possível desenhar a pesquisa online e dar boas risadas. Para meu filho, tudo muito fácil, mas para mim nem tanto. Era necessário conhecer como funcionavam os 'aplicativos' que ele citou, que poderiam suportar a pesquisa virtual. Debrucei sobre os tutoriais dos aplicativos citados para descobrir, por exemplo, como elaborar e gravar vídeos, como utilizar formulários online e coletar respostas, automaticamente. Passada a fase de exploração das possibilidades, iniciei a preparação de um formulário no Google Forms®, adaptando um Jogo de Livre Associação de Palavras, prevendo que, a partir de "um termo indutor, ou de uma série de termos, [...] o sujeito produza termos, ou adjetivos que venham a sua mente" (ABRIC, 1994, p. 59)2. Após testar várias versões do conteúdo dos formulários preparados e realizar diversas gravações experimentais cumpri a missão. As 'peças' estavam minutadas depois de alguns dias de dedicação. Encaminhei o resultado para o meu filho para análise e comentários. Em mais uma conversa, ele fez algumas observações para melhorar a aparência e a linguagem do formulário preparado, inicialmente, muito formais. Sugeriu, ainda, algumas alterações no vídeo que incorporei, sem hesitação. Meu avatar no vídeo Dando seguimento, submeti à professora orientadora para análise e, eventual, complementação. Na devolutiva, ela informou que o instrumental virtual para a pesquisa de campo estava em condições de ser aplicado às alunas, desde que feitas algumas alterações para melhor se alinhar aos métodos associativos, especificamente, à associação livre de palavras, retro referida. Feitas as devidas correções, inicia-se, então, a pesquisa virtual contando com a indispensável facilitação do Professor Coordenador Geral, também, na casa dos 30 anos, de uma das duas escolas estaduais selecionadas pelos critérios de seleção firmados. Destaca-se que na outra escola estadual não houve possibilidade operacional para se levar a pesquisa às alunas, ainda que virtualmente. Cabe enfatizar que o vídeo convidando as alunas a participar das atividades relativas à associação livre de palavras e o formulário preparado para tal finalidade foram disponibilizados com a intermediação do professor coordenador, sem que houvesse a minha interferência no ambiente virtual 2 ABRIC, Jean Claude et al. Prácticas sociales y representaciones. México: Ediciones Coyoacán, 1994. 568 Maternidades Plurais da escola, criado para a realização das classes online, como forma de superação da paralisação das aulas presenciais. Terminado o período previsto para a coleta das respostas, por meio do formulário supracitado, constatou-se a participação das jovens em número e de forma satisfatórios, deixando evidente que a colaboração de meu filho, com o apoio do Professor Coordenador, foi essencial ao prosseguimento da pesquisa, virtualizando a atividade programada com as jovens, sem perder a intenção da pesquisa de campo. Com isso, parte relevante das dificuldades provocadas pela pandemia estava equacionada. Porém, e as atividades complementares e programadas necessárias à qualificação? Pouco a pouco os congressos, os simpósios, os seminários, as mostras de pesquisas em andamento e outros encontros presenciais, foram sendo descartados, ou adiados. Por outro lado, passarem a dar publicização, por meio da internet, a uma enxurrada de encontros, palestras, ciclos etc. Participei de alguns, fiz cursos relacionados ao tema tratado em minha dissertação, mas a incerteza persistiu: vão ser considerados? As escolhas foram corretas? Certamente, as dificuldades que enfrento e já enfrentei são muito tolas diante daquelas encaradas pelas mães em distanciamento social com seus filhos em idade escolar em casa, que ainda assumiram a quase totalidade dos serviços domésticos. Nesse ambiente há quem esteja exausta de tanta ocupação, do excesso de bagunça, do barulho perturbador e rezando por um momento de sossego, isso considerando, somente, a sobrecarga de tarefas que recaiu sobre as mulheres 3. No entanto, ficar cercada de livros e textos, não é sinônimo de tranquilidade e sequer substituem os encontros com amigos, com a família e, sobretudo, a presença e o aconchego, agora adiados, indefinidamente. É inegável que as tecnologias virtuais de informação e comunicação dão conta de conversas virtuais com amigos, presenças via telas de vários tamanhos, cursos à distância e encontros acadêmicos, mas, ainda assim, a maior parte do tempo, o silêncio é ensurdecedor. Porém uma coisa é certa: ser pesquisadora e ter algo relevante para fazer e, ainda, contar com o apoio dessa geração de trintões é um grande privilégio. 3 Segundo Diogo; Coutinho (2006, p. 131) em artigo publicado em Interações, Vol. XI, n.º 21, p. 121-142. 2006, "Na imensa maioria das vezes, as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado com a casa e com os filhos." 569 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 95 Da cultura patriarcal que propagamos enquanto culpa materna e dos significados dos espaços ocupados pela mulher mãe contemporânea Maria Eugênia Rodrigues Alcântara1 “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” (Che Guevara) É interessante pensar hoje que a posição da mulher dentro das universidades pode parecer um campo largamente conquistado por conta das inúmeras figuras femininas dentro dessas estruturas. Sabemos que as conquistas de hoje são frutos de inúmeras lutas feministas de muitos e muitos anos a fio. Mas por mais grata que eu me sinta com minhas antecessoras nessa luta, é preciso pontuar e nos situar no lugar em que nos encontramos atualmente diante da visão macro desse cenário: mulheres ainda recebem menos que homens por executarem as mesmas funções; mulheres ainda sofrem com inúmeras regulações de seus corpos; e, principalmente, levar em conta a ainda maior disparidade com mulheres mães que acabam sendo ainda mais cerceadas por conta de um suposto ‘débito’ com a sociedade chamado ‘criação de seus filhos’. Acredito que é preciso tomar para si o desamparo para nos familiarizarmos com nossa colocação social em busca de soluções para nossa conjuntura. Eu cresci em uma família pobre que, naturalmente, tinha na mulher uma figura doméstica. Meus bisavós eram pessoas de fazenda, que só foram conhecer a urbanidade na geração de minha avó — década de 40 mais ou menos. Minha avó, como poucos casos que se pode ter naturalizado para a época, foi uma mulher que se mudou sozinha para a cidade em busca de trabalho para seu sustento. Ela foi se casar com meu avô depois de chegar sozinha na cidade e não teve oportunidade alguma de se graduar, embora tenha estudado ate o fim do ensino fundamental II — um caso raro para a época, e em especial, para mulheres que não pertenciam à elite. Minha bisavó lavava as roupas da professora para que minha avó pudesse frequentar as aulas e, ainda assim, não pode terminar os estudos porque se sentia mal pelas críticas dos colegas a respeito de sua presença na sala de aula, em meio a uma classe que não lhe contemplava. Minha avó talvez tivesse alcançado uma nova forma de vida com o pouco (e ainda assim muito) estudo que lhe foi proporcionado. Após anos de casada com meu avô, com 3 filhas e trabalhando como cabeleireira e costureira, minha avó decide se separar de meu avô 1 Mestranda em Design pela UnB com pesquisa voltada para os impactos simbólicos da cultura capitalista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5805708144556873 570 Maternidades Plurais por descobrir traições. Na década de 70, minha avó se divorcia de meu avô e passa a viver uma vida sozinha, sustentando a si, às suas 3 filhas mulheres e a uma irmã mais velha que passa a morar com ela. Minha avó nunca mais se casou nem se relacionou com mais ninguém. Todas as minhas tias concluíram todo o ensino básico, mas nenhuma conseguiu ingressar na universidade — ao menos no tempo convencional. Minha mãe, que é a filha mais nova, só foi conseguir ingressar na faculdade depois que eu já havia completado treze anos, por volta do ano de 2006, e eu a acompanhava nas suas aulas diariamente até sua conclusão de graduação. Minha tia, filha do meio, conseguiu entrar na universidade já depois de ter criado seus dois filhos e de ter se divorciado. Foi a primeira a entrar numa universidade pública em toda a família. Por volta de 2003, estava se graduando em Design de Interiores na UFG, em função de uma ampliação das vagas das universidades públicas. Minha tia mais velha nunca conseguiu ingressar numa universidade. Ela teve três filhos e foi quem ficou casada por mais tempo. Todas acabaram se divorciando e cuidando de seus filhos sem a ajuda dos devidos pais. De todos os seis netos da minha avó, e das três mulheres, eu sou a mais nova com mais de dez anos de diferença dos outros e a única que conseguiu entrar na universidade pública na devida época. Desde a minha bisavó, levou mais de três gerações para que as mulheres da minha família conseguissem entrar na universidade. Um dado importante a se levar em consideração quando se pensa que meu avô, quando casado com minha avó, já era contador com sua devida formação. A minha história, em particular, é diferente da de todos os meus primos. Eu sou filha única de uma mãe solo, que a vida inteira fez questão de não pedir nada ao meu pai porque conseguia me sustentar sozinha. O saldo disso era baseado em um trabalho de três períodos. Minha mãe saía de casa para trabalhar e eu ainda não havia acordado. Quando ela chegava em casa, eu já estava dormindo. Eu só conseguia ver minha mãe aos fins de semana e minha maior memória dela era de seu cansaço: ela brincava comigo em raras ocasiões. Ainda assim, dentro de suas condições econômicas e de capacidade física, me proporcionava tudo o que conseguia. Eu frequentei aulas de dança, de teatro, de música, sempre estudei em escolas particulares de classe média-baixa, tive acesso a museus, teatros e cinema e tive acesso a computador ainda muito nova, quando quase ninguém sabia muito bem o que era isso — algo que considero decisivo para a minha área de formação hoje. Por muito tempo achei que ela me negligenciou com sua pouca presença, mas depois que tive meu filho, passei a entender sua posição e tentei entender a conjuntura dessa decisão dela. Acabei entendendo também que, apesar de não substituir a presença dela, ela tentou me proporcionar experiências maravilhosas de vida mesmo não podendo me acompanhar nas apresentações de dança ou de teatro porque estava trabalhando. Até que ponto a mãe ideal não é uma construção burguesa que aprisiona mães em um eterno loop de culpa? O que significa o trabalho da mulher mãe em nossa sociedade atual? Eu cresci sem saber se queria ter filho e só de poder ter me questionado isso já fui muito privilegiada. Eu tinha em mente que se eu fosse ser mãe, queria me dedicar mais e ser diferente do que a minha mãe foi pra mim. Queria que meu filho não se sentisse tão sozinho quanto eu me sentia na infância. Como minha mãe trabalhava o dia inteiro, e eu nunca tive pai, eu passava o dia e, nos momentos fora da escola, com a minha avó. Ela foi a pessoa que eu mais amei em toda a minha vida. Minha avó, que encarou uma separação em uma época pouco convencional de se ser divorciada, 571 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) sempre me educou profundamente a me dedicar aos meus estudos e que eu só deveria me importar em ‘me casar com minha profissão’. Ela me ensinou a ter ambição e conhecer o mundo e foi quem mais me incentivou nas minhas escolhas ao longo da minha vida. Crescendo em uma casa que só tinha mulheres, foi natural para mim não almejar um casamento. Minha profissão sempre foi a prioridade, não apenas minha, mas de todas as mulheres da casa. Eu fui a mulher criada para alcançar a universidade. Estudei muito para conseguir bolsa de estudos em um preparatório de vestibular que, ainda com bolsa, precisava da ajuda da minha avó e da minha tia para pagar. Eu estudava, com dezessete anos, em um colégio de classe média alta. Minha prima, 14 anos mais velha que eu, em seus dezessete anos estava tendo seu primeiro filho e se casando. Ela nunca conseguiu terminar sua graduação que só pode dar início depois dos 15 anos de seu primeiro filho. O feminismo sempre me soou como algo normal. O mínimo. Antes mesmo de ter noção da palavra e de seu significado, eu já questionava o porquê do campo de escrever o nome da tarefa constava escrito “Aluno(a)” com o sufixo feminino optativo e o masculino como regra. Eu questionava isso comigo mesma sem saber verbalizar como aquilo fazia eu me sentir como alguém forçando um espaço que não me pertencia. Como se a escola estivesse fazendo um grande favor em me deixar existir ali. Acredito que só fui capaz de me familiarizar com o feminismo sem nunca questionar a sua relevância, porque vivia o feminismo de forma empírica, sem que meus exemplos nem se dessem conta de suas próprias forças e representatividades. Eu nunca questionei a minha possibilidade de entrar em uma universidade. No máximo, questionei se realmente alcançaria uma universidade pública, mas fazer ou não uma universidade não era uma questão. Era um caminho inquestionável. Até que em meu segundo ano de faculdade, em universidade pública, descobri que estava grávida. Foi uma gravidez completamente não planejada, desejada ou até mesmo, amada. Eu tive muita depressão durante a gestação e a causa era uma: eu me sentia acorrentada ao meu próprio corpo, presa a uma decisão que não me pertencia e fadada a uma vida que não escolhi. Quando descobri que estava grávida, eu senti um desespero único e profundo. O medo de não conseguir terminar minha graduação. O medo de não conseguir ter uma profissão. O medo de ter que abandonar todos os meus planos. Eu pensei em parar aquela gravidez porque eu tinha apenas vinte anos de idade e muitos sonhos que não contemplavam uma criança, mas acabei não optando por isso por medo de machucá-lo, ainda que não o quisesse. Decidi abrir mão de muito de mim mesma em função dele e tinha em mente o que isso significaria na minha vida profissional. Escondi a barriga até não conseguir mais. Lembro que, apesar de já morar com meu parceiro, o pai do meu filho; resolvi que compraria uma aliança para “justificar” semioticamente a minha gravidez a todas as caras de dó ou reprovação que me alvejavam nos corredores da faculdade. Eu tinha tanto preconceito com minha condição quanto qualquer outra pessoa que me via ali, grávida no corredor da faculdade de artes visuais. Foi só depois de meu filho nascer que comecei a entender o que realmente significava minha presença nos lugares... O que significava o incômodo que eu levava comigo quando estava grávida e do quão simbólico foi não ter parado e nem trancado minha graduação depois que meu filho nasceu. Eu percebi que eu incomodava porque uma vez grávida, eu não pertencia àquela conjuntura acadêmica. A mulher grávida pertence ao espaço doméstico, não ao espaço público. A reprovação era porque eu insistia em estar onde não era bem vista; onde não era meu lugar. Era como se eles dissessem: 572 Maternidades Plurais “podemos até aceitar mulher, mas mãe... Mãe já é demais”, e cheguei até mesmo a escutar algumas das perguntas de ‘avaliação materna gratuita’ como: “cadê seu filho?”; “Quem está com ele para que você frequente às aulas?”; “Você está cuidando bem do seu filho mesmo? Porque criança precisa de mãe e você não está se dedicando a ele”. Ao longo do primeiro ano de vida de meu filho, comecei a fazer terapia para conseguir lidar com todas as frustrações de não ser boa mãe e de não conseguir cumprir com todas as demandas que uma boa mãe moderna deveria dar conta: amamentação exclusiva até, no mínimo, os dois anos de idade; não dar açúcar; alimentação balanceada e em BLW; alimentos com sal rosa do himalaia; yoga para bebês; introdução musical para pequenos gênios; introdução de escola com home schooling; tudo isso dando conta de uma carreira impecável e bem sucedida. Essa é a mãe moderna. Com a escolinha, vieram novos desafios: as tarefinhas mirabolantes que nos pedem recorte de revista em pleno 2020, sendo que tem pelo menos uns cinco anos que não vejo revista impressa; é o lanche nutricionalmente equilibrado sem gerar lixo ao meio ambiente, que me custa acordar 1 hora antes do meu companheiro todos os dias, pra bater o suco e fazer o lanche da cria; fora o tempo levando e buscando a cria na escola. E claro, essas tarefas eram minhas porque o salário que sustenta efetivamente a casa não é meu, então o meu atraso no trabalho é mais plausível. A tarefa de limpar o caminho de qualquer imprevisto nos horários recaía sobre mim, para o bem do humor do patrão de meu companheiro. Eu vivia minha vida pública (e ainda hoje vivo) nos intervalos da minha maternidade porque nem meu trabalho e nem minhas formações me contemplam plenamente como quem sou: além de mulher, mãe. Sou bem aceita até onde posso ser apenas mulher para ser bem recebida com: salários inferiores; menores chances de vagas de trabalho por ser mulher e poder ficar grávida; ser questionada sobre quem vai buscar meu filho na escola caso ele se machuque, para que o fluxo de meu serviço não seja comprometido; para sofrer assédio moral, sexual e derivados, apenas por ser mulher. Vivo no intervalo da maternidade porque o tempo “normal” das coisas não foi feito pra mães. O tempo não pensa em mães porque mães não pertencem ao campo público do tempo. Com a ajuda de muita terapia, percebi que não conseguiria ser a mãe que eu desejava ser para meu filho. Era importante pra mim e pra formação dele que eu desistisse de ser aquela mãe idealizada que me custava caro por se dedicar quase que exclusivamente ao filho, para provar que era uma boa mãe. Se ir trabalhar era importante pra mim, eu precisaria explicar pro meu filho que isso significaria que ele ficaria com o pai dele ou a avó durante o período em que eu trabalhava. E claro, essas são questões que pude questionar. Um privilégio de classe, pois por mais que eu realmente precise do dinheiro de meu trabalho, há mães que não possuem sequer o tempo de questionar isso. Mas a culpa, garanto... A culpa é generalizada. Acredito que meu filho precisa saber que não temos esse luxo da presença constante, e que a mãe dele também não se sente feliz assim. Encaro que faz parte da formação dele entender das limitações dos outros para que ele não cobre a felicidade dele às custas da infelicidade de outro. E muito desse sofrimento foi imaginação minha. Meu filho nunca se importou em ficar com a avó ou com o pai. Ele se dá bem com outras pessoas e nunca deu sinal de que sofre pela minha ausência. Só depois de aceitar essa limitação de gênero e classe em que me encontro, é que fui capaz de entender quem eu queria ser de verdade, sem a cobrança social de ser a mãe ideal pelo bem do meu filho. 573 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Foi nesse período em que decidi sair do emprego em que estava para tentar entrar no mestrado. Mas a dificuldade maior não era de entrar no mestrado apenas, tendo que estudar nos horários de almoço e fazer o projeto de pesquisa nas madrugadas, depois que a cria ia dormir. Caso eu conseguisse passar, eu teria que viajar semanalmente para Brasília para cumprir a carga horária necessária do currículo. Eu consegui passar e ainda consegui bolsa de pesquisa da Capes por apenas um ano. Eu passei um ano e meio pegando estrada semanalmente e ficando em Brasília por metade da semana. Foi quando eu consegui desenvolver a maior parte da minha pesquisa porque ali conseguia ser apenas mulher, já que as obrigações de mãe eram passadas quase que integralmente para meu companheiro ou para a avó paterna de meu filho. Foi de fundamental importância para mim e para minha formação que eu passasse pela experiência de não ter a vinculação do filho, ao menos por alguns dias da semana. Foi quando mais fui capaz de produzir. Mas seria uma alienação fingir que essa era a minha realidade. Era só voltar pra casa pra não conseguir ter rendimento nenhum. Quando as matérias do mestrado acabaram, passei a ficar direto em casa, ficando “por conta da dissertação”. Desde então nunca mais tive mais o mesmo rendimento que tinha nos meus dias em Brasília. No início, me senti completamente inútil e já não me reconhecia na pessoa em que eu estava sendo. Entrei numa crise muito forte, pois não conseguia ver propósito no que estava fazendo. “A quem eu estava enganando?”. Eu pensava que não conseguiria segurar por muito tempo essa farsa de que eu conseguiria fazer esse mestrado, sendo quem eu sou. Eu não pertencia a esse lugar. Eu poderia ser bem aceita enquanto mulher, mas as limitações que a maternidade me coloca me obrigam a escolher entre o rendimento, a minha sanidade, os cuidados do meu filho e de tudo mais que envolve minha existência. O tempo não foi feito para as mulheres, em especial para as que são mães. No ambiente acadêmico, foi comum ver que a figura da ‘mãe’ é vista como uma figura inferior. Ainda com o discurso feminista, muitas mulheres consideram que a mulher que é mãe se curvou ao sistema e se deixou ser colocada em servidão. Esse é um discurso muito comum de muitas feministas que veem a maternidade como uma vulnerabilidade da capacidade da mulher. Eu infelizmente entendo o medo que elas enxergam na posição da mãe, apesar de não concordar com o preconceito. Seria muito cômodo aceitar a premissa dessas mulheres às custas de culpar outras mulheres por serem mães — como se elas tivessem plena escolha disso. Mas em muitos casos, a mulher sofre uma gravidez compulsória, porque vivemos em uma sociedade que não nos dá o direito de controle de nossos próprios corpos. É por isso que eu entendo o medo das mulheres que condenam a maternidade. Porque eu sei que ainda hoje ser mãe é ter que abrir mão de muito. É ter que escolher entre si e seu filho — a pessoa que você mais ama no mundo. Nos colocam nessa escolha porque não tem meio termo: ou se é uma boa mãe, ou não é. E boa mãe é, quase sempre, quem mais se anulou em função de seu filho. Ainda que a gente se supere e abra esses espaços, o fluxo contra nossos passos é grande e forte. Afinal de contas, o que significa uma mãe entrando nos espaços públicos? Vivemos em uma sociedade patriarcal que coloca a figura da mulher como algo que pertence ao ambiente doméstico. A mulher sofre a desigualdade, e a mãe é vista como se não tivesse utilidade fora do espaço privado da casa. Como é bem sabido, é impossível para uma mulher ser apenas mulher depois de se ter um filho. Não apenas porque a mãe dificilmente vai negar seu filho (desde que tenha 574 Maternidades Plurais a possibilidade de escolha), mas também porque a sociedade faz questão de que mulheres mães sofram as consequências por serem mães fora do ambiente doméstico. Essa observação é a nível macro da conjuntura. Ainda nesta sociedade patriarcal, somos capazes de encontrar pessoas maravilhosas que nos auxiliam em nossas limitações, mas infelizmente a mãe não deveria ser tratada com caridade; e sim como alguém digna de direitos de equidade e capacidade plena de produção. Isso não significa dar o simples direito de se candidatar a vagas de trabalho, ou de enviar artigos acadêmicos para revistas. A equidade das mulheres e das mulheres que são mães é mais complexa 2 e deveria ser mais pensada e discutida nas comunidades acadêmicas. Ainda hoje, mesmo com todas as conquistas femininas de espaço e representatividade, nos deparamos com uma enorme construção imaginária 3, a nível do senso comum, que questiona a presença de mulheres na universidade. A prova dessa desigualdade naturalizada vem à tona, por exemplo, com o rendimento feminino durante a atual pandemia de Covid-19 no Brasil. Segundo pesquisas da revista de Ciências Sociais do IESP na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, houve uma redução de 12% na submissão de artigos acadêmicos que são assinados por mulheres. Os dados indicam que entre 2016 e 2020, no primeiro semestre do ano, as mulheres como autoras ou coautoras representavam uma média de 40% das submissões de artigos para revistas. Em 2020, essa porcentagem caiu para 28% no segundo trimestre do ano, que corresponde ao período de quarentena por conta da pandemia. Quando se examinam os números de mulheres como autoras principais, a diminuição é ainda mais expressiva: a média de 2016 a 2020 é de 37% em condições normais. Em 2020 durante a quarentena, esse valor caiu para 13%. Uma queda de 24 pontos percentuais.4 Eu, enquanto mulher branca, mãe, mestranda — e tantos outros atributos que me individualizam nessa sociedade — nunca imaginei que passaria por uma pandemia com meu filho. Quando descobri que seria mãe, tinha em mente muito do que isso me custaria, mas nunca me ocorreu que temeria pela vida de meu filho, diante de uma pandemia. Claro que não era de se surpreender muito, afinal faz parte do ‘desenvolvimento’ capitalista que o mundo se deteriore para fins lucrativos. Mas ainda tendo em mente toda a desgraça do mundo, não tive capacidade imaginativa para tanto. Ser mãe é, antes de “É comum que recaia sobre as mulheres, ainda que sem filhos, diversas obrigações para além das obrigações profissionais (sejam elas acadêmicas ou não). Ainda que a mulher não tenha filhos, recai sobre ela muitas das obrigações domésticas. E ainda que a mulher more sozinha, é comum que os cuidados com — por exemplo — parentes próximos, recaia sobre ela.” (RAMOS, Raphaela. Submissão de artigos acadêmicos assinados por mulheres cai durante a pandemia de coronavírus. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15 de maio de 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/celina/submissao-de-artigos-academicos-assinados-por-mulheres-cai-durante-pandemia-de-coronavirus-24428725>. Acesso: 26 ago 2020). 2 3 Segundo Armando Silva, o imaginário é uma camada de nosso subconsciente da qual, naturalmente, não temos o domínio racional. Essa camada influencia, constantemente, nossos raciocínios e se manifesta através de símbolos que constituímos por meio da vida em sociedade e da cultura. (SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo: Editora perspectiva. 2001). 4 RAMOS, Raphaela. Submissão de artigos acadêmicos assinados por mulheres cai durante a pandemia de coronavírus. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15 de maio de 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/celina/submissao-de-artigos-academicos-assinados-por-mulheres-cai-durante-pandemia-de-coronavirus-24428725>. Acesso: 26 ago 2020. 575 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) qualquer coisa, se dar conta da fragilidade da vida humana e da responsabilidade com a dor de um outro que não é a gente, mas dói como se fosse. Talvez por isso a mulher tem a fama e a incumbência de sempre cair na figura de quem cuida. Era mais fácil lidar apenas com a minha própria dor. Hoje me vejo diante de uma realidade completamente distópica, a qual nem eu mesma estou sabendo lidar, tendo que fingir normalidade para tantos ‘prazos pro pensar’ que, em conjunturas normais, já questiono, e diante da atual conjuntura, não vejo nem propósito. Será que devo fingir que está tudo normal para não atrapalhar o fluxo contínuo do sistema? Será que devo colocar meu filho em um sistema de rotina rígida para que ele não seja capaz de se afetar pelo mundo caótico a sua volta? Isso vai ajudá-lo? Ajudar em que? A ser um ser humano alienado a sua própria realidade?! Como posso fingir para meu filho que a realidade é outra quando nada está no meu controle? Eu decidi que faz parte do meu “trabalho de mãe” educar meu filho para ser capaz de se afetar pelo mundo a sua volta. Acredito que só quem consegue ser tocado pelo mundo, ainda que diante de tanta desgraça, é que consegue ser capaz de achar soluções. De nada adianta viver numa redoma à prova de traumas. Meu lugar de mãe é em auxiliar meu filho a lidar com esses traumas e não anular toda e qualquer pedra que tenha no caminho dele. Eu quero que ele seja capaz de ser inteiro e de somar em sua sociedade. De crianças burguesas, alienadas à realidade, já temos gerações e mais gerações e sabemos que isso só soma mais problema. É preciso saber que um filho não é propriedade; um filho é parte da sociedade. Meu filho é criado para a vida em comunidade; tanto quanto minha produção acadêmica também se direciona para a comunidade. Acredito que é em pensamentos como esse é que somos capazes de identificar nossas índoles liberais que tanto prejudicam a sociedade. É inevitável. E talvez essa pandemia nos enfatize justamente isso. Não dá para pensar só em si ou em nosso núcleo familiar. Só seremos capazes de trazer novas possibilidades de vida se conseguirmos entender o real impacto do que produzimos, principalmente enquanto mães. Não acredito na criação ‘dentro da redoma à prova de traumas’. Eu não sou humanamente capaz de proteger meu filho de traumas e preciso que ele saiba interpretar o que sente e também que seja capaz de se compadecer pela dor do outro; que seja capaz de se afetar e de se indignar diante de injustiças. Essas questões me foram levantadas por conta dessa quarentena que me fez colocar em crise muito da mãe que achava que já tinha resolvido em mim. Discuti com muitas amigas sobre a completa impossibilidade de dar conta de tantas demandas em casa, e da escola, e do ideal de criação de meu filho, e de minha vida acadêmica e profissional. Algumas amigas disseram ter instituído uma rotina militar em casa para que a criança não sentisse a mudança do período de quarentena. Nem que eu quisesse fazer isso com meu filho, eu não conseguiria. Eu tenho sentido profundamente o desespero e o medo que esse tempo tem proporcionado. Por mais que não quisesse, eu me afeto com tudo o que tem acontecido e me preocupo com tantas incertezas que esse mundo tem gerado; me preocupo com a possibilidade de perder minha mãe que mora em outro continente e que corre o risco de morrer sem eu poder nem me despedir. Eu tentei trocar conversas com outras mães, tentei desabafar sobre a dificuldade de não ter tranquilidade de produzir minha pesquisa; da culpa que sentia por não estar colocando meu filho pra assistir as tele aulas da turminha de quatro anos (isso dá pra ser chamado de aula?); por não estar conseguindo acompanhar todas as infindáveis tarefinhas de fim do mundo. Eu cheguei no meu limite 576 Maternidades Plurais quando, após perder meu trabalho, (e meu companheiro perder significativa parcela de seu salário) me queixei de pensar em tirar meu filho da escola particular e tive, à prontidão, a notícia de que eu estaria infringindo leis caso o desmatriculasse da escola. Meu filho precisaria estar matriculado em uma escola para que o conselho tutelar não fosse uma ameaça. Recebemos até um memorando da escola com a notícia oficial do conselho de educação da região. O que significa a matrícula da escola quando a escola não é uma possibilidade? Significa que meu filho frequenta aulas? Dá pra chamar as tele aulas para crianças de quatro anos de aula? Não consigo considerar que aquilo que estava sendo oferecido pela escola pode ser chamado de aula, mas para além do que eu achava, também estava lidando com um colapso econômico dentro de casa que me impossibilitava de arcar com o custo da escola — que, até então, não oferecia nem 1% de desconto pelas aulas virtuais. Por fim, ainda fui julgada por estar preocupada com meu trabalho e minha produção acadêmica em vez de estar brincando com meu filho. A crise foi — e tem sido — enorme. Comecei a questionar novamente a mãe que eu estava sendo. ‘Por que eu não consigo me dedicar tanto ao meu filho?’. Talvez porque existe uma dead-line me perseguindo para entregar uma dissertação. Talvez porque eu preciso me mudar de casa no meio de uma pandemia para reajustar o orçamento familiar. Talvez porque eu tenha perdido meus trabalhos com os cortes de custo que a pandemia ocasionou. Talvez porque eu sou uma, das tantas mães, que não podem se dar ao luxo de se questionar tanto. Eu deveria estar brincando com meu filho, apesar disso tudo? A cabeça tem cobrado e as instituições também. Eu deveria me sacrificar e fingir que está tudo bem pra meu filho? Para poupá-lo do desconforto do mundo? Me vi novamente me baseando pelo imaginário de mãe salvadora. ‘Mas o que significa essa mãe salvadora?’, pensei bem aqui comigo. A mãe salvadora que ‘prefere a maternidade a tantas outras tarefas que lhe são tão caras, tal qual o trabalho’. Essa mãe me passou a soar basicamente como uma mãe burguesa que tem a possibilidade de abdicar de sua vida pública, para se dedicar exclusivamente à criação de seu filho — sobretudo em meio a um colapso do sistema, onde temos mais pessoas desempregadas do que empregadas no país. Veja bem... A possibilidade de escolha é a própria cara do privilégio burguês. Há mães que se questionam isso sem nem poder ter escolha de abdicar da vida pública para dar a atenção que julga ser ideal para seus filhos, e se martirizam pela impossibilidade de ser “uma mãe boa”. Uma boa mãe não deveria ser avaliada pela quantidade de tempo que consegue se inserir no padrão estabelecido, mas pelo quanto você consegue oferecer sem se anular e sem perder sua consciência de classe. O trabalho da mulher, sobretudo da mãe, não deve ser avaliado como uma negligência do filho. O trabalho da mulher e da mãe é fundamental para a atual circunstância capitalista em que vivemos! Sem querer glamourizar o trabalho, que tem infindáveis problemas. Pontuo aqui o fato de vivermos em uma sociedade patriarcal e capitalista. O que significa ser mulher, e mãe, nessa sociedade? É preciso abrir espaços de possibilidade, reivindicar direitos, provar que mães cabem onde quiserem, principalmente, na produção acadêmica! É preciso haver o ponto de vista de mães dentro da produção acadêmica, para que consigamos participar ‘do tempo’ sem sermos exploradas. É preciso haver equidade e tudo isso só acontece com mulheres e mães ocupando espaços, tendo visibilidade e sendo 577 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) vistas por outras tantas mães que acreditam que não conseguem ou que não pertencem à vida pública. O trabalho da mulher deve urgentemente ser redimensionado no impacto que tem em seus filhos. Pensar que a mulher que trabalha só gera ausência e que isso só dá prejuízos a criança, é mais propagação de uma cultura patriarcal que aprisiona mulheres no sentimento de culpa por abandonarem afazeres domésticos em busca de liberdade e autonomia feminina. É preciso naturalizar para os filhos que a saúde emocional de suas mães é importante, e que uma mãe que se anula e se sente infeliz não é prova de uma ‘mãe boa’. É prova apenas de uma mãe infeliz (novamente pontuo que essa possibilidade de questão é de grande privilégio. Na maioria dos casos, mães não têm opção). Não é essa a imagem que quero cultivar em meu filho. Quero que ele seja uma pessoa capaz de se compadecer pela dor do outro, e que não vincule sua felicidade aos sacrifícios de outro (principalmente se tratando de um menino em um mundo patriarcal). Se há quem defenda a redoma anti-traumas nos filhos como justificativa de que a dor do mundo está demais para crianças hoje, talvez devesse repensar em que mundo é esse que insistimos em colocar nossos filhos. Pensar também se é justo que façamos isso com eles, pois o mundo cão está dado. Se não somos capazes de nos abalarmos pelo mundo a nossa volta, talvez não sejamos dignos dele. Vocês já pararam pra pensar por que o mundo está como está? Por que diante de uma pandemia global, ainda priorizam o dinheiro, mesmo que isso custe 70 mil vidas só no Brasil? O que significam as vidas perdidas? O que significa o dinheiro perdido? Esse, infelizmente, é o mundo em que vivemos e em que criamos nossos filhos. Um mundo que vive a eminência de uma crise climática, econômica e social. Devemos mesmo fingir que está tudo bem? Eu educo meu filho para um mundo melhor que depende de mim e dele também. Preciso que ele consiga se afetar pelo mundo, para o bem dele mesmo, e dos filhos dele, e de seus netos. Eu preciso que meu filho me veja como uma pessoa que também sofre pela incerteza de uma pandemia. A pandemia é uma experiência tão inédita pra mim quanto é pra ele e não consigo fingir naturalidade com algo tão evidente em nossas vidas. Eu sinto tanto medo quando ele de que a avó fique doente. Acredito que é preciso desconstruir esses ideais absurdos de mãe que já não correspondem mais à realidade de nossos tempos. A vida cobra, cada dia mais, que sejamos coerentes com as circunstâncias. É preciso se abalar por tudo o que nos rodeia. É preciso educar crianças para o mundo real. A posição da mãe é fundamental na reconstrução de um mundo melhor. O que estamos ensinando para nossos filhos? O que estamos propagando para nossas companheiras de maternidade? Estamos cobrando e culpando, ou estamos nos compadecendo e tomando consciência? É preciso estar ciente do impacto que é ‘ser’. Viver é um ato estético. 578 Maternidades Plurais 96 Mãe, doutora, professora e pesquisadora: sim, esse bicho existe! Maria-Maria Martins Silva Stancati1 Relatos da experiência na pesquisa e docência pós-maternidade. Escolhi Direito como graduação, mas sempre fiquei na dúvida se não deveria ter escolhido letras para ter uma carreira docente e de pesquisa. Na minha visão infantil achava belo o professor doutor da universidade, pesquisador, titular da cadeira. Passava horas folheando o álbum de formatura em Direito do meu pai e parava em cada foto dos professores homenageados. Às vezes me surpreendia imaginando se um dia eu estaria naquele lugar: o de professora. A graduação em Direito permite sonhar com salários elevados, estabilidades no serviço público, um excelente escritório de advocacia, ternos e mais ternos, formalidade, sucesso, mas eu buscava algo diferente: queria entender o que era pesquisa, como ser um professor pesquisador. Porém, como cursei uma universidade privada, não tive estímulo à pesquisa pois, na época, só se falava em concurso público. No meu último ano de graduação eu estava literalmente angustiada, tensa, nervosa, pois teria que deixar os bancos da academia para ingressar no concurso, mas visando a carreira da docência. Parece incongruente, porém este era o caminho que eu havia traçado. Formei-me em dezembro, em fevereiro estava na etapa da entrevista do mestrado num programa de uma conceituada universidade privada no Rio de Janeiro. Fui a única reprovada pois não soube fazer um projeto, afinal, eu não sabia o que era pesquisa. Com esse descontentamento da reprovação, afundei de cabeça nos concursos públicos, mas com o coração apertado pela docência superior. E, após seis anos voltada só para o concurso com uma aprovação que não levou ao resultado prático, que era um emprego bem remunerado, decidi seguir meu sonho. Decidi que seria professora. Minha primeira experiência se deu em dois cursos preparatórios para a carreira de cartório extrajudicial. Eu estudava para esse concurso e ministrava aula ao mesmo tempo. Dessa experiência surgiu meu problema de pesquisa: o que seria a Jurisdição Voluntária Extrajudicial que eu precisava aprender para o concurso e para ensinar nas aulas. Logo, percebi que deveria 1 Doutora em Direito pelo PPGD-UNESA/RJ. Professora de Direito Civil UNESA/RJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2566805284846215 579 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ingressar num programa de pós stricto sensu. Apesar de durante esses seis anos ter tentado o ingresso na pós, agora eu tentaria com um problema de pesquisa em mente. Preparada. Aprendi a fazer o projeto de pesquisa, comecei a frequentar grupos de pesquisas com alguns professores, aprendi a diferença da pesquisa doutrinária (clássica no direito) da pesquisa empírica, aprendi a não escrever em formato de manual de direito ou de petição inicial. Um mundo se abriu para mim. E, finalmente, ingressei no programa de pós stricto sensu em Direito Público e Evolução Social, com a possibilidade de pesquisar meu problema, que já estava definido, e ainda aprender sobre doutrina reflexiva, autoridade do argumento, análise do discurso, pesquisa empírica... um mundo de novidades, e como se pode perceber, maternidade era a última coisa que poderia passar pela minha cabeça, afinal eu repudiava a ideia de ser mãe. Isso era para os outros. Não para mim, por vários motivos, e um deles era a carreira. Ingressei no programa em 2014, ingressei na docência superior em 2015, ingressei no doutorado em 2016 e participei de congresso internacional, recebi cargo de coordenação junto com as turmas regulares em 2017 e fiz a pesquisa de campo para o doutorado, engravidei em 2018 e, ainda sim, consegui participar de um congresso internacional. Meu filho nasceu em 2019 e defendi a tese em fevereiro de 2020, quando ele tinha um ano, um mês e nove dias. E, ainda recebi bolsa de pesquisa produtividade na universidade que sou vinculada nos entre os anos de 2018 até janeiro de 2020, por pesquisas realizadas totalizando 20h na carga horária. Ufa!!! É simples de verificar que na subida meteórica da minha carreira, em que a cada semestre eu recebia mais turmas e recebia o prêmio de professora mais bem avaliada pelos alunos (2016, 2017 e 2018), houve um corte, uma queda, um nascimento, um renascimento, uma vida, que preencheu minha vida, de uma forma que não imaginava que pudesse estar vazia. Na pesquisa do doutorado resolvi aceitar o desafio proposto por minha orientadora de fazer pesquisa empírica no Direito. Assim, primeiro eu precisava entender o que seria pesquisa empírica, esse método, estudar um pouco de sociologia, antropologia, metodologia, para saber o que perguntar e meu campo era muito próximo a mim, então precisava enfrentar o outro desafio, que era o olhar de estranhamento. Trabalho árduo foi realizado nesses dois primeiros anos do doutorado com coletas de dados, leituras e mais leituras, e no momento de refletir, analisar, descobrir o que os dados falavam, faltava concentração. Havia uma pressa na conclusão do doutorado, uma instabilidade interna. Pensava ser stress, mas na verdade já era meu bebê, mexendo com a mãe pesquisadora. E foi assim, no terceiro ano do doutorado, que deveria ser o mais produtivo, era regado em enjoo, cansaço, tensão, preocupação e principalmente querer achar meu lugar de mãe e pesquisadora; achar um meio termo onde ambas as coisas poderiam existir. O primeiro pensamento foi da carreira desabando. Logo agora que tinha achado meu lugar, que tinha feito a junção do eu interno com o externo. Logo agora! Pensar em desistir era simples, mas muito dinheiro já tinha sido gasto, pois a pós-graduação era em universidade privada, logo paga, e não pude continuar a receber o subsídio do Prosup-Capes pois estava empregada. Muitas noites em 580 Maternidades Plurais claro pensando em como conciliar carreira e maternidade; e tentando entender a maternidade, afinal, aquilo não era para mim. Os dias se passavam, a barriga crescia, não conseguia posição para sentar, tranquilidade e concentração para escrever e simplesmente nenhuma palavra conseguia ser escrita. A tese estava parada. Gestando. E assim ficou, por alguns meses; mas a cobrança interna não parava. Era preciso defender antes do bebê nascer, pois depois seria muito difícil. Ouvi essa frase de muitas pessoas. Até gostaria de ter concluído antes do nascimento dele para que seu primeiro ano fosse mais tranquilo. Porém isso não ocorreu. Travei, bloqueei, amarelei, não consegui. Eis que Luidgi Antonio nasceu. E com ele nasceu uma mãe. Mãe que eu desconhecia, preocupada, cansada e principalmente culpada, por não ter terminado a tese antes do nascimento. E, neste primeiro momento, durante a licença maternidade de quatro meses, mesmo que o aleitamento materno seja recomendado por seis meses, ficou a culpa, a preocupação, o medo. A vontade de desistir. Era para ser um momento entre mãe e filho, momento de maternagem, de descobertas, de alegrias. Mas o prazo para a entrega da tese estava correndo. Agora as ideias de escrita borbulhavam, mas o cansaço de dormir em intervalos menores que três horas esgotavam a mente, a ponto de tê-las, mas não conseguir pôr no papel. E com isso vem a frustração; o medo; será que o sonho da qualificação acadêmica seria perdido. Mesmo com todo o apoio e avós por perto, pai presente, ainda sim a cobrança interna era muita e a qualificação não tinha sido feita. Como pensar em tese finalizada? Nesses quatro primeiros meses do meu filho buscava forças para continuar. Todo dia era um exercício de persistência, tanto na maternidade quanto na pesquisa, e ainda a preocupação com as turmas na docência, pois sou professora horista em universidade privada. Neste momento em que eu gostaria de ter tranquilidade para ajudar meu pequeno cientista a explorar o mundo, tinha preocupação da qualificação e do trabalho. Mesmo com todo apoio dos meus pais em cuidarem da minha alimentação, do meu esposo em cuidar da casa, ainda sim a culpa rondava, pois se com este apoio não conseguia produzir, quiçá sem ele. Mas a verdade é que cada mãe sabe onde a ferida está, e a minha era interna. Era entender esse novo papel de educar uma criança para ser sociável, afetuosa, crítica e ao mesmo tempo gerenciar minha carreira acadêmica. Sonho de ser doutora versus ser uma boa mãe. Duas coisas que pareciam conflitantes, em especial com um bebê recém-nascido, que precisa de colo, amor, tranquilidade. Situação essa mergulhada nos hormônios pós-parto. E, novamente, a ideia de desistir vinha. Será que não seria mais fácil agir como antigamente deixando a cargo do marido a remuneração financeira da família e da mulher a educação dos filhos? O antigo era tentador, mas: e os sonhos, e a autorrealização? Filho faz parte da minha vida, mas não é o resumo dela. E, apegava-me a ideia de que quando meu filho crescesse e na escola fosse perguntado o que a mãe dele fazia, ele diria: “Ela é doutora. Pesquisa e dá aula.” E, foi olhando para aqueles olhos pequeninos, para o sono tranquilo dele, para seu olhar de confiança em mim que retirei forças e voltei 581 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) a escrever. Aos poucos fui retornando, em casa, durante esses quatro meses de licença-maternidade. Escrevia e parava, escrevia e parava. Mas após este período, chegou o dia da separação. Ele é tão pequeno, tão indefeso. Chorei por ter que ir. Sofri por ter que deixar. Eu sabia que precisava ir, mas não estava preparada. E, novamente eu me culpava. Porque meu horário de retorno era flexível, porque eu trabalhava perto de casa, porque meu filho ficava com os avós, e com todo este aparato, ainda sim eu não escrevia. A grande questão é que no momento em que nasce um filho, nasce uma mãe, nasce a aprendizagem, nasce o momento à dois, nasce a cumplicidade, nasce o amor incondicional e esses laços criados precisam de um tempo para serem estabelecidos, fortificados, mas o mundo contemporâneo ignora este tempo de amor. Ignora a continuação da gestação fora do útero, a mudança de rotina, a construção da relação. Ignora porque a mulher recém-parida deve estar linda para receber visitas, ter a casa impecável, comida pronta à mesa, sexo conjugal em dia e ansiedade para a volta ao trabalho como se nada tivesse mudado em sua vida. Ledo engano. O pijama só saia do corpo ao meio-dia quando uma música era colocada para que o bebê ficasse quieto e a mãe pudesse tomar banho. As preocupações sobre pegada correta da mama, peso em dia, tempo de mamadas, livre demanda ou regra de 3h/3h? Quantos questionamentos! Quantos livros lidos enquanto meu filho estava em meu peito mamando. Quantas acordadas durante a noite para saber se ele estava respirando, se o Moisés estava no ângulo correto para não ter refluxo, quantas incertezas. O que o mundo não sabe é que a mãe cientista estuda seu filho, lê livros sobre amamentação, marcos de crescimento, primeiros cuidados. O filho vira o melhor e mais lindo objeto de pesquisa, que mesmo com todo o cansaço, puerpério e saudade da liberdade de antes, ainda sim, é infindável de exploração. É o sorriso que aparece na madrugada mais cansativa e você pensa “que safadinho, fez isso na hora certa”, amoleceu meu coração. É a observação de um ser que tem a mãe como marco teórico e de sobrevivência; que confia plenamente nela, se deixando levar pelo sono profundo e aconchegado em seu colo. É a observação do lado visceral da sua cria, do cheiro, do tato, da visão, do sentir, do corpinho quente do bebê. É a mais bela observação participante que pode existir. E, a mãe continua a pesquisar seu bebê; a verificar se o crescimento está correto, se não há atraso cognitivo, se o peso está correto, se o dormir está sendo restaurador. A mãe vira cientista full time. Presente. Essa troca de objeto não é compreendida pelo mundo. Não que a mãe pesquisadora não queira terminar sua tese, seu projeto, sua dissertação, mas que naquele momento há um objeto de pesquisa mais interessante, que lhe traz, amor, harmonia e calma na observação. Observar a respiração do bebê é realmente relaxante! Aclara a mente. E, à medida que os meses se passam, a mãe pesquisadora quer estimular seu filho. Ao invés de brigar com o bebê porque jogou o brinquedo no chão pela décima vez, ela entrega inúmeros brinquedos, de diversos formatos e densidades para que ele jogue e teste a lei da gravidade, suas habilidades 582 Maternidades Plurais motoras, causa e efeito. Estimula dizendo para jogar forte ou devagar, levantar bem alto ou jogar baixinho. E o bebê gosta de ser esse objeto de pesquisa. Ele gosta de ser estimulado. A mãe cientista deixa seu filho colocar o pé na terra, na grama, no barro, fazer lama, pegar nas plantas, passar a mão nos bichos, sentir texturas, temperaturas, pesos, densidades; deixa fazer bagunça, deixa brincar com a comida, deixa sujar a boca porque sabe que os diversos estímulos são essenciais para o desenvolvimento cognitivo do bebê. Mas essa mãe docente, pesquisadora não pode usar todo o tempo que gostaria com seu objeto de pesquisa mais lindo que existe. Precisou voltar ao trabalho; precisou voltar a tese. Neste momento, uma dualidade se instalou. Era bom o retorno à vida de antes, mas era difícil deixar o bebê. Fazia bem para a estima ser professora e não somente mãe, mas a saudade apertava no fim do dia, pois o amor de mãe e filho nasceu. E, em muitos momentos, às vezes entre lágrimas, voltei a escrever a tese pela segunda vez. Esse ciclo precisava ser findado para que novos fossem abertos. Se não fosse meus pais e meu esposo cuidando do meu filho, se não fosse o retorno ao trabalho, eu não teria conseguido terminar a tese. O esforço de foco neste momento precisou ser extraordinário pois alguém mais importante demandava minha atenção. Durante o início da maternidade até o momento atual (meu filho tem um ano e meio) percebo que o bebê tem um tempo de maturação que precisa da mãe, do pai, dos avós, mas também de interação social. O apego inicial aos pais, aos poucos é liberado pela autonomia que a criança vai desenvolvendo. Ver e auxiliar neste crescimento é a coisa mais gratificante que existe. É o título acadêmico mais valioso. Por isso, nos primeiros três anos da criança, a produção do cientista cai. O que o mundo não vê é que a produção caiu externamente, em eventos, anais, capítulos de livros, mais internamente ela subiu de forma estratosférica. A mãe cientista ensinou, estimulou, auxiliou a um ser a ser independente, humano, sociável, curioso, explorador. Cuidou da primeira infância onde o caráter é formado. Infelizmente os prazos não conhecem os caminhos do coração, a carreira não entende, a universidade não entende, o mundo não entende a necessidade dessa parada para o mundo exterior e a exploração do mundo interior. Nenhuma mãe pesquisadora/cientista passa pela maternidade do jeito que entra. Pelo contrário, esse chacoalhar de hormônios traz maturidade, serenidade e paciência para as novas escolhas da vida, pois agora além da carreira, do casamento, da família, há alguém no mundo pelo qual a mãe é responsável. E, nesse mundo de descobertas nasceu minha luz, meu farol; que a todo momento me traz de volta ao eixo, ao que importa, à vida. Por isso, dedico este meu relato ao meu filho Luidgi Antonio por me transformar a cada dia, como mãe, como cientista, como pessoa. 583 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 97 Pandemia científico-puerperal: maternar e investigar como experiencia en tiempos de Covid-19 Mariana Garzón Rogé 1 Anoche J. se despertó doce veces. Eso dice mi registro de sueño, el que estoy haciendo según la propuesta de un libro de crianza respetuosa que bajé por Telegram. Lo leo desconfiada, bajo la sombra de un comentario que me hizo una puericultora-influencer cuando el bebé tenía sólo unos días de vida. Frágil y puérpera, en ese lugar de la consultante de lactancia, me hice decir: "¿sacar la teta antes de que se quede dormido? ¿por qué vas a privar a tu bebé de dormirse en un océano de oxitocina? El conductismo no va más". Ahí estaba el rótulo y yo, con la guardia baja, disponible para hacerle lugar. Mamis canguro, mamis llenas de leche y oxitocina, mamis “al encuentro de nuestra propia sombra”, mamis fisiológicas… estas mamis no deberíamos ser conductistas. Adjetivos de un lenguaje estático que vuelan como cucarachas marrones de verano. Andamos patrullando nuestras prácticas, buscando coherencias, idealizando la vida de otras familias, criticándonos, culpándonos, midiéndonos con una vara abstracta que marca los modos en lo que deberíamos desear vivir y (sorpresa) hablan, en verdad, todo lo que no estamos pudiendo ser/hacer. Mi cuarentena, como época de gran vulnerabilidad e intensidad en términos de cuidados, está siendo abundante en ese tipo de mandatos. En el corazón de esa hogaza caliente está la diatriba entre la novel madre de dos en la que me convertí hace nueve meses y la investigadora who must go on. ¿No había yo perjurado, mucho antes de avizorar cualquier confinamiento, que esta segunda maternidad iba a ser libre de educadores internos? ¿No estaba yo convencida de que podría inventar un modo de vivir que no disociara mi vida profesional y mi vida “privada”? Puedo buscar pruebas, estoy segura de haberlo dejado por escrito. ¿Cómo puede ser que, incluso teniendo claridad en el diagnóstico, repita la historia, seis años después, y con el agravante de hacerlo en un contexto devastador en términos de ausencia de ayuda? Repaso para mí misma cómo fueron las cosas. Marzo iba a ser el momento de volver de lleno a la investigación: el verano habría acabado; el bebé podría quedarse de a ratitos con una niñera en el cuarto de al lado; A. pasaría las mañanas en la escuela (¡primer grado!) y algunas tardes disfrutando 1 Dra. en Historia. Investigadora Adjunta del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET, Argentina) en la Universidad de Buenos Aires. https://conicet-ar.academia.edu/MarianaGarz%C3%B3nRog%C3%A9 584 Maternidades Plurais del fantástico cronograma de actividades estructurado (lunes: arte; martes y jueves: música; viernes: circo y tela). Una suave transición de vuelta a la vida académica perfectamente diseñada. No contábamos con que iba a venir una pandemia... bueno, decir que “vino” no hace justicia con el fenómeno (al que llegamos como parte de nuestro trágico viaje por el antropoceno). Inesperada para el mundo; totalmente increíble para mí, cuando justo empezaba a asomar el hocico afuera de la madriguera. Así que aquí estoy: sin escuela, sin niñera, sin familia ampliada, sin tribu, sin ayuda doméstica, limpiando con alcohol cada cosa que entra a casa, sanitizando alimentos, con miedo a enfermar porque en mi vida cotidiana no entra un alfiler. Yo y mi compañero: lavaplatos experto; encantador de bebé; genio de las compras y de los trámites; jugador de ludo y armador de rompecabezas; especialista en desayunos, hamburguesas y asados; jardinero delicado; entre otras tareas domésticas que son de su exclusividad y realiza con cuidado y agilidad. Yo y mi compañero en su otra faceta: antropólogo, investigador hiperproductivo, de un estilo que tiene el efecto de subrayar mi talante más bien slow. Y también vive en casa esa fastidiosa voz interna que me acusa de no estar trabajando lo suficiente, de estar perdiendo un año de mi preciada carrera académica, de avanzar sólo con lo que tiene fecha de entrega y con suerte. Me culpa de no poder escribir más rápido, de no poder mandar un manuscrito así nomás, de no poder dejar de revisar varias veces un informe, de no poder soltar los detalles, de no poder concentrarme en períodos cortos. No caben dudas: me falta corazón para ofrecer algo de empatía a esta puérpera agotada. Cuando nació A., esa voz también vivía conmigo. Me amenazaba cuando estaba maternando (por no estar trabajando) y me cargaba cuando estaba trabajando (por perderme el tiempo precioso de ver crecer a mi hija). ¿Quién hubiera creído que me iba a arremolinar así en el universo maternante? Poco tiempo antes una psicoanalista me había preguntado en seco, como un rayo: "¿cuál es tu deseo?". Yo había quedado neutralizada, impotente, mirando por primera vez al vacío después de años de hacer una tesis de doctorado, de viajar por el país tomando seminarios y consultando archivos, de andar por el mundo hablando de cosas con certeza, legislando con mi moral progresista acerca de cómo debía funcionar la realidad. La pregunta fue una compuerta, no sólo a la decisión de quedar embarazada, sino también a la de maternarme a mí misma, a la de mirar para adentro y escuchar lo que aquella negación revelaba. Una profesora me había preguntado cuando estaba por inscribirme en el doctorado, si tenía pensado ser madre en los años siguientes, sugiriendo que eso podría ser un problema para desplegar mi visible entusiasmo. No dimensioné, en ese momento, el sentido de aquella pregunta-opinión que me quedó, sin embargo, grabada. Después de todo, yo viajaba más de 1000 kilómetros desde Mendoza a Tandil para tomar seminarios en un doctorado en historia que consideraba más prestigioso que el que había en mi ciudad. También hacía 700 km para tomar los cursos de una maestría sobre partidos políticos. Y para agregarle millas, tenía una relación de pareja con un porteño. Una vida familiar era incompatible con la carrera que tenía planeado hacer. Recuerdo haber pensado que una colega de mi instituto había arruinado sus proyecciones cuando quedó embarazada por segunda vez durante su beca de posgrado. ¿Cuántas veces escuché comentarios en esa línea de investigadores e investigadoras senior que admiraba? Lo tragicómico es que yo no tenía idea de lo que significaba ser madre, ya 585 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) no de la dificultad para viajar, sino de la consciencia más terrenal de tener 24h a alguien a cargo, sin devolución. En parte como resultado de la violencia obstétrica que sufrí cuando nació mi primera hija y de la falta de redes para encarar mis primeros pasos como madre, lejos de mi familia y sin amigasmadres, estuve confundida, sin lucidez, baby-brain, le llaman. Perdía el hilo de las conversaciones, tenía miedo de cualquier instancia que me expusiera, sufría quedarme en congresos más del tiempo justo y padecía las invitaciones a tomar una cerveza de rigor después de una reunión. No veía el horizonte, nadie me decía que ya iba a pasar y, aunque me lo hubieran dicho, no iba a creerlo. Poco a poco volví a tener algo de autonomía (estábamos en París haciendo una estancia de investigación y comencé a ir a trabajar a una oficina, algo que en Buenos Aires nunca hice). Entonces empecé a desplegar el tema de la historia pragmática, a modelar lo que sería mi proyecto de los años siguientes. Los motores volvieron a encenderse, aunque nunca más volvería a trabajar 15/16/17h por día. Cinco años después, en la semana 38 de mi segundo embarazo, estaba cerrando un seminario bellísimo sobre ese tema en el Centro Franco-Argentino. A punto de parir, armada de oxitocina y convicción para hacer llegar a mi hijo en casa, convencida de la conexión con la fisiología del parto, viajaba en colectivo al centro de la ciudad en hora pico para celebrar un proyecto precioso y exigente. Me sentía feliz de poder gestar ambas cosas con esa alegría. Parecía que había conseguido, significativamente, una armonía entre mi trabajo académico y mi maternidad. Después vino el puerperio inicial, ese que está a flor de piel, el que tuerce la voz en cualquier atajo, el que tiene siempre al filo del ojo un borde salado de lágrimas calientes, listas para rodar. Esta vez, no por azar, me tocó vivirlo en un nido de amor y movimiento. Trabajé años para que eso pasara. Tener una pequeña niña en casa convertida en hermana, atravesada existencialmente por el fin de su reinado, aportó intensidad y un orden de prioridades claro. El verano pasó entre la belleza de la vida y la necesidad de organización. Y ahí llegó marzo y el coronavirus como fenómeno social... Si alguien me hubiera avisado con tiempo que iba a estar en casa más de cinco meses con mis dos hijxs sin soporte externo, me hubiera dado a la fuga. Nunca hubiera creído, de todas maneras, que éramos capaces de atravesarlos de la manera en la que lo hemos hecho: ajustando y desajustando, armando y desarmando, llorando, paseando, contando, cantando y saltando, inventando, desvelando, dormitando, cocinando, precisando, respirando, redibujando, replanteando, amenazando, explotando, leyendo, calcando, bordando, alimentando, amamantando, bañando, sanando, cuidando, conectando, acompañando, diviertiendo, abrazando. Lo que no he hecho ha sido dormir más de dos horas seguidas, ni ver una película, ni estar sola más que los minutos que dura una ducha o una escapada al almacén, ni trabajar más que de a pequeños fragmentos de tiempo (sí, yo, la que necesita horas para entrar en el trance de la concentración o soltar un párrafo enrevesado). Cuando hablo con colegas, pienso que hay algo de patético en lo que les digo: digo que estoy ocupada, agotada, con mínimo margen de maniobra para incorporar nuevas tareas a las que ya tengo comprometidas. Parece como si quisiera victimizarme. Y, por un lado, sí, hay una necesidad de reconocimiento viva. Leer tres textos para una reunión o ver una lista de películas seleccionadas por Lucrecia Martel... me parece increíble que alguien crea que yo tengo tiempo para hacer eso. Al principio 586 Maternidades Plurais del confinamiento, circularon unos memes en donde se veía a un historiador trabajando con archivos y se leía "historiador antes de la pandemia" y abajo se replicaba la misma imagen diciendo "historiador durante la pandemia". Nada más lejos de mi realidad. Los cientos de gigas de documentos que prolijamente he sabido recolectar de tantos archivos no han sido de ayuda para escribir una gran obra en estos meses. Apenas si estoy sobreviviendo: voy del día a la noche resolviendo lavarropas, angustias, qué comer, un párrafo, siestas, búsquedas de algo que se perdió, llantos, la tarea de la escuela, dos mails, los pañales, el zoom, la clase de euritmia de A., los seminarios de M., las hojas que se juntaron en el patio, los deadlines, las lecturas estrictamente necesarias. Al mismo tiempo, no me siento víctima. Me pregunto qué hubiera hecho en este tiempo sin los bailes después de cenar, sin los berrinches que me reflejan asuntos propios, sin los cuentos de Gustavo Roldán o Elsa Bornemann. Qué sería de mí sin esos cuerpos pequeños que necesitan mis abrazos y caricias, que se giran mientras juegan o escupen un tomate para confirmar que estoy ahí y sonreírme. Qué cuarentena hubiera pasado sin el versito gracioso de las buenas noches que inventamos sobre los besos de queso, sin esa maravillosa indiferencia a los noticieros, sin su capacidad de conectarme al presente a través del juego. En cuarentena vi a mi pequeño pikleriano rolar, reptar, sentarse, pararse y gatear. Salieron sus primeros tres dientes y empezó decir "A" para llamar a su hermana, a gruñir en respuesta a un gruñido, a reírse a carcajadas cuando sacudimos una cama o alguien tose, a dar besos babosos y a jugar al “¿A dónde está J.? ¡Acá está!” escondiéndose debajo de su chaleco de lana percudido. En cuarentena A. empezó a leer, se durmió sola por primera vez, aprendió a jugar al fútbol y a saltar la soga, perdió las dos paletas y un diente a abajo, se enamoró del helado de membrillo casero, empezó a pedirme un “té con nubecita” cada mañana como hacía mi abuelo Mago. Cambió los libros álbum por textos largos de Roald Dahl y el Dailan Kifki de María Elena Walsh. Empezó a trabajar en su primera novela, según dice, en una computadora vieja revivimos para ella. Claro que me agradaría haber visto (aunque sea) una película, haber dormido (aunque sea) algunas horas seguidas, haber terminado (por lo menos) esos dos artículos que están a medio camino y haber avanzado con el libro que creía que necesitaba tan poco tiempo más. Seguro que mis colegas (del meme) ya tuvieron la oportunidad de hacer lo que se supone que “somos”: proyectos, lecturas, archivos, datos, manuscritos. ¿Me importa? La verdad es que no. El puerperio es un momento en el que las escalas de valores están trastocadas, lo sé. Tengo un sentimiento de gratitud profunda por pasar este tiempo con mis hijxs. Y al mismo tiempo, pienso: ¿cuán indiferente pueden ser los avances de les demás si hago una “carrera”, por definición, en relación a otrxs? Hace unos días leí un artículo, de esos muchos que han circulado, en el que se pone en palabras la desigualdad. Los hombres están enviando a publicar muchos más papers que las mujeres. La pandemia está cargándonos más pronunciadamente, como no podía ser de otro modo. El texto denunciaba esa situación y reivindicaba medidas de acción positiva con las cuales, por supuesto, estoy de acuerdo. Sin embargo, en ningún momento asomaba el más mínimo cuestionamiento a la lógica homogeinizadora de la competencia. Es el sistema y no la pandemia, a mi modo de ver, el origen de la desigualdad que padecemos. La pandemia viene a mostrárnoslo. Se supone que el mérito es nuestro orgullo: la evaluación de pares, los estándares de excelencia, las calificaciones, los puntajes, los dobles ciegos, los tribunales y mesas examinadoras. Sí, la carrera es una carrera. Sus mediciones son supuestamente 587 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) el único modo de construir conocimiento de calidad, de seleccionar quiénes pueden ser financiadxs y quiénes no, de determinar quiénes tienen derecho a los premios, promociones y aplausos. Ese sistema es valioso, nos dicen. Solamente “falla” cuando no tiene en cuenta las desigualdades. Pero no todas las desigualdades son visibles del mismo modo. No solemos evaluar con otra escala a colegas que crecieron en hogares menos confortables o cuyas familias no tenían formación universitaria. En el mejor de los casos, destacamos su esfuerzo extraordinario, su biografía “tránsfuga”, como dirían los conocedores. La maternidad se tiene en cuenta, sí, pero nadie la celebra. Las tareas de cuidado son trabajo, no pueden ser pensadas en términos de amor y recluidas a las sombras de la “vida privada”, por supuesto. Lejos de morigerar esa reivindicación, lo que quiero resaltar es que el sistema de evaluación basado en la homogeneidad (del cual muchxs investigadorxs llegan a enorgullecerse, en parte, por todo lo que sufrieron para poder tener éxito en la competencia) tiene un problema de fondo difícil de subsanar. Y es lo que, desde una perspectiva feminista, maternante, humanista, podríamos quizás comenzar a desarmar con mucho cuidado a la luz de este momento extraordinario. Sería un gran desafío empezar a imaginar maneras de escribir y de investigar, de construir conocimiento y de enseñar, que no necesitaran de los acicates de la competencia fundada en evaluaciones que, por más acción positiva que haya, pretenden hacer igual lo diferente. La semana pasada asumí que iba a faltar a una reunión de equipo de investigación. Lo dije a media lengua en el grupo de whatsapp: “no alcancé a leer, no me voy a conectar”. Otra compañera del equipo también dijo que no iba a poder ser de la partida, porque festejaban por zoom el cumpleaños de su hijo con el grupito de la escuela… Tiene costos blanquear esa indisponibilidad. Sabemos que si rechazamos varias invitaciones, por ejemplo, posiblemente dejen de invitarnos. Es una trampa ponernos en “pobres madres”. Si mi compañero — ya comenté que es colega — aparece en una reunión con el bebé a upa, sus colegas valoran la deconstrucción de su masculinidad: “qué bien, cómo se hace cargo de la familia y comparte las tareas de cuidado”. En sus clases virtuales de la facultad disfruta de que nuestra hija esté sentada a su lado pintando un collage o completando un libro de figuritas. Es una escena bella. Sus estudiantes lo ven así como un “padre responsable y presente” que puede hablar de Los Nuer o explicar las estructuras de parentesco y, al mismo tiempo, cuidar a una pequeña curiosa que chusmea de qué hablan lxs antropólogxs. El papi inteligente, progre y canchero me hace gracia… y me da un poco de bronca… qué lindo debe ser ser padre y además mostrarlo como un complemento de la inteligencia. En cambio, si mis hijxs irrumpen en mi escritorio mientras estoy en una reunión, a lo sumo quedaré agradecida de que no haya habido gritos y berrinches en vivo antes de que consiga disimuladamente sacarles. Mis colegas podrían pensar que gestiono mal la distribución de las tareas con mi pareja, que yo debería “defender mis espacios” para “no volverme loca”. La desigualdad no se subsana exigiendo menos papers en un pedido de promoción de categoría en el CONICET. No es obvio, para mí, sin embargo, que la diferencia que da origen a la desigualdad tenga por destino ser un obstáculo para el desarrollo profesional. ¿Sería posible crear abundancia entre maternidad y vida académica en lugar de que una cosa reste a la otra? ¿Sería posible la excelencia más allá de esa abstracta norma no-materna que veneramos por igual quienes reivindicamos ser vistas y quienes prefieren no vernos? ¿Confiar en el poder creativo de los procesos de la vida para potenciar la 588 Maternidades Plurais escritura, para refrescar las búsquedas, más allá del mérito y de la productividad? ¿más allá de cuánto nos haya costado llegar hasta donde hemos llegado? Quizás esta gran pausa sea una oportunidad para sembrar paisajes en los que puedan habitar las nuevas subjetividades de muchas de nosotras que ya no estamos, como quizás sí estuvieron nuestras mayores, dispuestas a dejarlo todo por una profesión prestigiosa. Queremos equilibrio entre lo público y lo “privado”, autenticidad en nuestros deseos y menos mandatos, más conexión entre la realidad y nuestras aspiraciones, un lugar para los cuidados que implica cuidarnos. Y queremos que no nos dé vergüenza eso que queremos. Frenar un poco y no tener miedo de hacerlo. Confiar en que nuestra potencia como cientistas no reside en hacer como si no pasara nada sino en acompañar la vulnerabilidad de la existencia y dar cuenta de sus oleajes delicados. 589 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 98 Cadê o livro que estava aqui? Não mexa nos livros da mamãe! Marina Carla da Cruz Queiroz1 Maria José de Pinho2 Este artigo nasceu da ideia de um grupo de mães pesquisadoras como instrumento e espaço onde a partir de um relato reflexivo fosse possível compartilhar um pouco sobre os desafios, angústias e alegrias de mulheres mães e pesquisadoras, onde são feitos relatos de como está sendo a experiência de dar continuidade em nossas pesquisas neste contexto de pandemia, onde passamos a maior parte do tempo em casa com nossos filhos. O objetivo deste artigo é mostrar que mesmo diante de todas as dificuldades e desafios nós mães, esposas, donas de casa e pesquisadoras estamos conseguindo dar continuidade em nossas pesquisas sem negar nosso ofício materno. A atual realidade trouxe com essa pandemia do Covid-19, uma desordem em todas as dimensões de nossas vidas, seja ela humana, afetiva, psíquica entre outras e a pesquisa não ficou fora dessa desordem. Até então tínhamos um planejamento em nossas mãos e conseguíamos ter controle sobre grande maioria das atividades que realizávamos em nosso dia a dia, ou pelo menos pensávamos assim. De repente acordamos com a notícia em todos os canais de telecomunicações informando do surgimento de um vírus até então letal para alguns grupos de pessoas. Partindo do pensamento de uma era planetária formado de maneira errônea, numa visão fragmentada, linear e separatista imaginávamos que esse vírus não conseguiria ganhar tamanha proporção para alcançar outras nações, quem dera estivéssemos certas. Foi questão de dias, meses para o vírus chegar no Brasil e fazer sua primeira vítima no país. Além de evidenciar que vivemos em um mundo cheio de indeterminismo e incerteza, essa pandemia nos mostrou o quanto somos frágeis e precisamos romper com a forma que fomos alienados a pensar e a ver o mundo e as coisas. Pegamo-nos refletindo que não havia aprendido a viver e sendo 1 Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Membro do Grupo de Pesquisa em Rede Internacional de Escolas Criativas (RIEC) e professora da Educação Básica. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4967625376932485. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7182-3520. 2 Pós-doutora e Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Membro da Rede Internacional de Escolas Criativas (RIEC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7113857811427432. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2411-6500. 590 Maternidades Plurais assim como poderia ensinar a nossos filhos a viver e a conviver em isolamento social depois da recomendação dos órgãos mundiais de saúde, foi ai que fizemos uma conexão muito forte tendo por base as leituras de Morin3 (2015) um autor complexo que nos alerta todo momento em suas escritas não somente para professores, como também para pais, e demais pessoas, que precisamos aprender ir além dessa construção de conhecimentos disciplinares, precisamos aprender a viver de maneira consciente, ampliando os níveis de realidade e visão de mundo como cidadão em prol de uma cidadania planetária, onde possamos nos enxergar seres interconectados interdependentes. Suanno4 (2015) complementa abordando que precisamos de uma formação de atitude, principalmente para nós mães pesquisadoras, que mesmo diante dos desafios que temos enfrentados em nossos lares, em termos de dedicação em tempo integral às crianças, por ser mãe precisamos dar continuidade em nossas pesquisas e, ao mesmo tempo, não perder esses momentos de convivência com nossos filhos que a pandemia está nos proporcionando e ficar mais tempos perto deles e eles de nós. É preciso que haja um equilíbrio, para que nenhum dos lados fiquem prejudicados, podendo assim caminharmos de mãos dadas enquanto mães e pesquisadoras sem precisar resolver conflitos internos e externos durante a caminhada científica. Confesso que nossas vidas estavam precisando desacelerar um pouco, e essa desordem sem dúvida está fazendo com que a maioria repensasse muitas coisas e quando tudo voltar ao novo normal sem dúvida uma entropia irá emergir em meu viver, onde possivelmente teremos uma nova maneira de ver e conviver no mundo junto com nossos filhos e nossas famílias. A pandemia mostrou que somos capazes de viver só com o necessário, sem coisas que antes acreditávamos que era impossível, isso nos ajudou a repensarmos e refletir sobre muitas coisas, inclusive sobre o consumo sem antes questionar sobre o meu querer e a real necessidade. Tenho conversado muito com meus filhos mostrando que devemos nos cuidar e nos amarmos para termos condições de amar o outro, que devemos cuidar e respeitar o nosso planeta. Como bem aborda Morin5 (2020) recentemente em entrevista em uma revista espanhola: “Esta crise interroga sobre as nossas verdadeiras necessidades mascaradas na alienação do cotidiano”. O que nos leva a compreender que esse tempo em que o mundo parou fez com que enxergássemos situações que devido a linearidade que estávamos acostumados a viver não nos permitia enxergar o que estava em nossa volta e reconhecer nossas verdadeiras necessidades que muitas vezes não é nada físico, apenas um gesto de carinho, uma palavra de amor e ânimo. Estávamos deixando de ver e viver a boniteza da vida, do estar junto, do fazer uma refeição com a família, um passeio ou até mesmo assistir um filme comendo pipoca juntos em casa. 3 MORIN, Edgar, 1921- A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento / Edgar Morin; tradução Eloá Jacobina, 8a ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 4 SUANNO, M. V. R. S. Didática e trabalho docente sob a ótica do pensamento complexo e da transdisciplinaridade. 2015. 493 p. Tese de Doutorado em Educação, pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília-DF, 2015b. 5 Entrevista com Morin. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598378-esta-crise-nos-interrogasobre-as-nossas-verdadeiras-necessidades-mascaradas-nas-alienacoes-do-cotidiano-entrevista-com-edgar-morin 591 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Essa nova maneira de viver que o vírus nos condicionou nestes últimos dias requer um pouco mais de disciplina, não podemos nos deixar levar pela comodidade e conforto de casa e descansar em nossos estudos e leituras. Um cronograma de estudo e uma conversa com os filhos é algo necessário, logo no início começamos a colocar em prática essa atitude, houve dias em que as crianças foram compreensivas, porém, houve dias em que as colaborações deles foram poucas, afinal são crianças Algumas madrugadas de estudos e produção foram necessárias, as vezes é o único horário em que conseguimos de fato ler, interpretar e escrever. É preciso muito diálogo com as crianças, houve momentos em que eles choravam e eu fui grosseira por não saber como agir principalmente quando as demandas eram maiores, quando havia prazos para entrega de trabalhos a serem cumpridos, porém eu nunca coloquei meus filhos como empecilho para eu fazer algo, sempre gostei de pontualidade na entrega das atividades. Muitos finais de semana também foram sacrificados e ainda precisam ser, mas uma coisa positiva da pandemia é que como temos que permanecer em distanciamento social isso nos impede de sair com os filhos, para resguardar a saúde deles e a nossa. Ficamos em casa, então passeios em shoppings, praias, cinemas é algo que foi interrompido e eles, embora não compreendam o poder letal do vírus (Covid-19), já demonstram que precisam se cuidar, como lavar as mãos com água e sabão e na falta destes usar álcool em gel, manter o distanciamento e usar máscaras ao sair de casa. Por várias vezes o quarto de estudo da mamãe é o local ideal para brincar, ali o caçula (três anos de idade) brinca até adormecer no chão bem próximo ao pé da cadeira, a filha mais velha devido à idade já compreende um pouco mais, então procura fazer suas atividades, assistir TV, ou fazer outras atividades sempre pensando em não atrapalhar. Com o caçula esse processo está mais complicado e doloroso, se tratando de uma criança pequena. As canetas das mães, os livros e cadernos servem de brinquedos e devem ser monitorados a todo momento, várias canetas já se foram neste período pois o caçula sempre fala: “quero fazer tarefinha mamãe!”, foi preciso organizar ali na biblioteca junto com os demais livros e cadernos um caderno para ele e alguns materiais, o caderno funcional agora os materiais como caneta, lápis até hoje ele prefere os da mamãe. Resiliência e a capacidade humana de superar situações difíceis Resiliência6 é algo que se faz presente diuturnamente em tempos tão sombrios, em tempos de pandemia para nos auxiliar no enfrentamento à diversidade de perguntas sem respostas. Isso nos leva a refletir e a compreender que mesmo diante a adversidade o ser humano é capaz de reconstruir-se e aprender a viver e a conviver diante de restrições. Esse processo não está sendo fácil. Nestes dias de pandemia a resiliência é constante em nossas vidas, na nossa família juntos com os filhos, procuramos sempre focar nos meus objetivos e isso é algo que nos dá força para continuar Para Moraes (2004, p. 305), resiliência é uma “capacidade humana universal que faz com que o indivíduo seja capaz de enfrentar as adversidades da vida, de superá-las e transformá-las”. 6 592 Maternidades Plurais a seguir em frente e dar continuidade em nossa pesquisa. Moraes7 vem trazendo que (2008) as pessoas precisam perceber; A riqueza de casa momento da vida, para exercitarem o sentido de oportunidade, de casa ocasião. Para que possam perceber a importância de casa momento de sua vida, de casa momento de dor ou de alegria, como oportunidades importantes para sua evolução. Para isso, eles precisam perceber que a felicidade depende, antes de tudo, de seu grau de consciência e de compreensão, de seu poder transformador, de seu espírito em evolução. (p. 260) Isso nos prova que todos temos o poder e a capacidade de ser resiliente, e que juntos vamos conseguir sair dessa ainda mais fortes do que quando entramos. Podemos até estar sendo desafiadas pelo fato de termos que lidar com a presença dos nossos filhos pequenos de maneira mais intensa em nossas vidas, exigindo presença constante de nós mães. Sendo assim me pergunto: Será mesmo que sabemos viver e conviver com eles? A questão de passar o dia juntos todos no mesmo espaço tem revelado verdadeiramente quem somos? Será que sabemos respeitar as vontades, desejos e até mesmo espaços do outro? Quando digo isso é porque acredito que mesmo sendo crianças os filhos precisam ser respeitados. Tem uma frase do escritor Martin Luther King que me emociona, “Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas ainda não aprendemos a viver juntos.” Isso nos revela o quanto ainda temos que aprender a ser, viver e conviver. Por isso que esses dias em isolamento convivendo mais com os filhos constituiu como um grande desafio. É bem claro que para nós, mães pesquisadoras, e grande parte dos pais, estes momentos podem nos oferecer infinitas possibilidades de autoconhecimento, criatividade, renovação, evolução da consciência e nos potencializar para sermos resilientes com nossos filhos e nossa família. O diálogo está mais presente com os filhos e isso nos emociona, contribuindo para o surgimento de novas formas de relação humana consigo mesmo, com os outros e com a natureza. Nem sempre esse processo é algo fácil, mas podemos perceber que é a partir das dificuldades, da desordem, do desequilíbrio que podemos criativamente emergir situações que estimulem a renovação da humanidade do humano8 (MORIN, 2002). Assim encerramos nossa escrita mesmo que provisoriamente deixando aqui nossos aplausos a nós, mães pesquisadoras, que mesmos diante de tantos desafios relacionados a pandemia e ao isolamento social não temos medido esforços para continuar sendo mães e pesquisadoras que inspira muitos em nossa volta: parabéns! 7 MORAES, Maria Cândida. (2008) Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais. São Paulo: Antakarana/WHH – Willis Harman House. 8 MORIN, E. O método V. A humanidade da humanidade: A identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2002. 593 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 99 Quando a casa vira brasa: narrativas de experiência cotidiana e produção de (des)afetos Mayara de Oliveira Nogueira1 Você tem que produzir! Você tem que produzir! Tem que escrever artigo, capítulo de livro, conteúdo para os alunos. Você tem que produzir! Tem que preparar roteiro para lives de divulgação científica, de trabalho ou para fomentar a propagação da extensão da academia. Você tem que produzir! Há prazos improrrogáveis. Você tem que produzir! Tem que preparar o almoço, lavar as roupas, as louças, as lobas. Você tem que produzir! Tem que alimentar o cachorro, limpar sua sujeita e o levar para um passeio. Você tem que produzir! Tem que fazer compras, lavar as compras e guardar as compras. Você tem que produzir! Tem que pesquisar sobre vírus, causas, sintomas e distâncias mesmo sem domínio técnico de termos. Você tem que produzir! Precisa pensar em atividades lúdicas para estímulos adequados. Você tem que produzir! Telas em exposição não podem mais ser objetos de tantas culpas, afinal, você tem que produzir. Você tem que produzir como antes! Como nunca antes! Você tem que produzir! Ter que produzir como antes da instauração de toda turbulência desencadeada pela pandemia do Covid-19 é uma das maiores angústias pessoais nesse momento. Como bolsista de um dos campos da ciência menos valorizados no cenário atual — as Ciências Humanas — ter que produzir como antes é imperativo para sobrevivência. Afinal de contas, que emprego resta para nós, mães cientistas, em eventual corte de bolsa? Quem nos contrataria em plena crise mundial? Números e quantidades de publicações e atividades são a ordem do dia. Como Tomé, agências de fomento precisam ver em periódicos de bom qualis uma realidade não televisionada. Uma ficção, na realidade. Ou melhor: um parto a fórceps. Mulher e mãe de um menino de dois anos e nove meses. Quase dez. Como máquina, tem que produzir. Os números de outrora precisam se sustentar e perdurar para que não haja corte de sua verba. Que se rasgue toda, mas que saia algo. Qual custo disso? não importa. Você tem que produzir no tempo e velocidade de outrora. Você tem que produzir porque o 1 Pós-doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES/CAPES/FAPES). Doutora em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduada em Letras-Português pela UFES e em Direito pela Universidade Vila Velha (UVV). Advogada e Professora recémdoutora da UFES. Conselheira Estadual da OAB/ES e presidente da Comissão de Direitos Sociais da OAB/ES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2011664722861211 594 Maternidades Plurais medo constante de cortes e demissões está à espreita, como um animal rastejante a espera de um descuido seu. E não se esqueça: você não deve engordar. Precisa se alimentar bem, manter uma rotina de atividades físicas no interior de sua casa ou, em caso de semi-loucura, na escada de seu prédio. Endorfina te ajudará a produzir. Baixa autoestima consumirá energia e será um errôneo direcionamento do seu tempo de produção para uma melancolia dos corpos inatingíveis e repletos de filtros e correções. Não! Espera! Você não pode cair nessa! Levante! Leia! Leia! Leia! E consuma um conteúdo condizente com a decolonização do corpo. Corpo, gênero e sexualidade. Olha essa fala! Me lembra um pouco sobre inscrição social em uma determinada situacionalidade — Goffman — e o corpo como performance de Butler. Olha! Isso me lembra da chamada temática em aberto... Tenho que produzir! Mas não se esqueça de não cair na epistêmica eurocêntrica como aconteceu em seu insight e as ligações estabelecidas agora, heim!? Fazer da casa um ambiente minimamente habitável. Não se esqueça disso também. Não digo de uma casa com milimetria de detalhes em organização. A louça deve estar lavada e guardada. Os tapetes limpos e aspirados. A roupa não se passa, mas deve estar com o cheiro do amaciante bacana que nesta semana entrou em promoção naquele mercado da Avenida Champagnat. A propósito: álcool setenta em tudo. Álcool setenta no novo vidro de álcool setenta que por esta porta entra. Uma criança com dois anos e nove meses precisa de uma casa organizada para se organizar em suas ideias. Quase dez. Em pouco tempo entramos nos três anos de idade e os sinais de abertura para um desfralde gentil se anunciam. Cueca cheia de xixi e chão ensopado. Preciso lavar o tapete que acabo de aspirar. A paciência que me falta se torna combustível para ler sobre desfralde após os cochilos da tarde embalados por lobos, florestas, fadas, bruxas, príncipes e reinos. Espere um pouco. Você precisa acordar. Você é uma linguista. Não percebeu ainda que seu filho está com prolongamentos de sílabas e gagueira? Emocional ou algum fator de ordem biológica? Será que é reflexo dos traumas que passou da internação hospitalar pré-isolamento social? Você precisa encontrar um caminho de terapias. Mas antes disso, anote para que não se esqueça: planeje um mínimo de brincadeiras e atividades com algum propósito pedagógico. Sem se cobrar. Mas já não é isso uma cobrança? Não se demore. Você tem que produzir. Produzindo (des)afetos Tomo ar para pensar no que de proveitoso esse momento possa ter nesse meu lugar classe média repleto de privilégios. Busco tomar ar, mas ele me falta. Assim como me falta o sono por um crime ocorrido em virtude do racismo estrutural que assola a sociedade brasileira. Ontem uma mãe enterrou seu filho. Ontem uma mãe, empregada doméstica, negra, periférica, perdeu seu filho porque sua patroa branca de sobrenome escravocrata lidou com seu filho como se não fosse gente, como se não fosse uma criança de cinco anos que busca a mãe quando de sua ausência. Uma mulher branca de sobrenome escravocrata que fez com que a mulher preta se expusesse ao risco em plena pandemia para levar seus cachorros para passear. Uma mulher branca que precisava de outra mulher — possivelmente negra — para pintar suas unhas em plena pandemia. Uma mulher branca que no alto de sua 595 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) branquitude perpetua a ideia de que crianças pretas não precisam de assistência, que se viram, que são sagazes. Uma mulher branca que no alto de sua branquitude perpetua a ideia de que crianças brancas precisam de tutela para estar no play do prédio ou entre os espaços carro-escola. Uma mulher branca. Uma mulher preta. Uma mulher preta que esteve à frente dos cuidados dos filhos de uma mulher branca. Uma mulher branca que não poderia parar de pintar suas unhas para cuidar de um menino preto. Eu, mulher branca, classe média, acadêmica, não preciso que meu filho esteja sob os cuidados de uma outra mulher durante a maior crise de saúde de minha geração. Eu, mulher branca com um filho branco, não vejo ou verei meu filho ser tratado sem a atenção requerida para sua idade. Benjamin. Dois anos e nove meses. Quase dez. Quase três anos afasta sua idade do menino morto. Não nos esqueçamos de uma morte causada porque uma mulher branca não poderia parar de pintar suas unhas em plena pandemia. Quando uma mãe perde um filho, todas as outras perdem um pouco. Nesse meu lugar classe média repleto de privilégios tenho um trabalho que me permite cuidar de meu filho. Os cuidados básicos são supridos na medida de suas necessidades: banho, roupa condizente com o clima e temperatura, alimentação, leituras, afeto. Sinto culpa, pois, para sustentar esse meu lugar classe média repleto de privilégio, preciso trabalhar. Muito. Incessantemente. O que significa não brincar com Benjamin o tanto que gostaria ou as brincadeiras que gostaria. O que significa também não ser a mãe que me imaginaria sendo. O que significa algumas boas horas em que meu menino ficará em frente à televisão. Culpa. Esse corpo que é parido no mesmo ato em que se pare um filho. Hoje Benjamin disse: “mamãe qué eu não”. Eu precisava fechar um texto. Fechei a porta. Ah, pequeno Benjamin... Suas palavras me dilaceraram e me fizeram chorar a cada toque de meus dedos sobre as teclas do teclado desse pequeno computador que agora escrevo — o único que está funcionando em nossa casa, mas não posso gastar dinheiro para comprar um outro. Não posso esquecer: não se pode gastar dinheiro nesse momento e também tenho que produzir... Lá se fez presente o corpo parido junto ao seu: a culpa materna. Preciso de meu trabalho não apenas por uma questão financeira. Obviamente ela é muito importante, mas ele me faz gente. Ele me faz ser quem sou e sem ser quem sou, o que eu seria para ele? Nada ou muito pouco. Eu sou antes de ti, meu filho. Nesse meu lugar classe média repleto de privilégios ainda que não sendo a mãe que me imaginaria ser, mas sendo uma mãe possível, tenho construído memórias afetivas com Benjamin: pintamos por dias e dias os vidros da varanda de nosso apartamento com tinta guache (flores, árvores, corações, estrelas, luas, bês e ês); armamos piscina plástica e nos imaginamos na praia tomando picolé de chocolate, montamos reinos e casas de contos de fadas em quebra-cabeças 3D nas tardes de domingo, reconhecemos letras e nomes, fizemos cabanas e assistimos ao filme de Moana por uma dezena de vezes pelas manhãs. E como se esquecer que foi no espaço apertado de uma sala que aprendeu a andar de bicicleta? A bicicleta que ganhou de natal da Vovó Dolaci e da Tia Juju. Que saudade da Tia Juju... quantas chamadas de vídeo diárias... 596 Maternidades Plurais Falta é algo que se tornou uma velha conhecida. Quatro pessoas de minha família se foram em virtude do vírus. Dois parentes distantes. Dois próximos — e nesses estava Cineia. Cineia e seu percurso para o trabalho, a Padaria da Neide, duas ruas à frente da casa de minha infância, é uma de minhas memórias mais fortes. Seu sorriso branco, sua pele negra, seus cabelos sempre presos e suas saias nos joelhos eram elementos que todos os dias passavam por meus olhinhos infantis. Seu sorriso, casado com sua simpatia e trabalho duro, é algo que me marca profundamente, que me atravessa enquanto sujeito. A forma como me tratava e cumprimentava — como gente! — ao se deparar comigo brincando na rua em seu trânsito para o trabalho, mostra-me muito do que quero ser. Cineia se foi, vítima da Covid-19, assim como seu pai, que foi um dia antes de sua partida pela mesma razão. Não pude ver seu rosto por uma última vez em cerimônia de estilo; tampouco pude abraçar minha Tia Ceia, quem perde filha e companheiro. Dias tristíssimos para a Família Oliveira, mas uma memória pulsante de Tio Bino e Cineia, cujo sorriso em mim permanecerá eternamente... Falta, uma velha conhecida. Há falta, mas há também permanências. Os olhos de Benjamin e todo seu azul reluzente é um deles. Poder olhá-los detidamente e sem pressa por ausência de compromissos rotineiros com hora fixa e pré-determinada é o maior deles. Os olhos de Benjamin que sorriem ainda mais que seus lábios grossos e carnudos, ainda mais que seus pequenos brancos dentes de leite milimetricamente espaçados. Os olhos Benjamin permanecem. Os olhos de Benjamin me atravessam por inteira e me dão a certeza de que sou a melhor mãe possível num período de tantos impossíveis. Os olhos de Benjamin permanecem. O quê, para quê e para quem estamos produzindo? É preciso estar atenta e forte, não temos tempo de temer a morte. Gal Costa e sua voz ressoam por minha cabeça nesses dias e me fazem lembrar de que não é momento de ter medo da morte, mas de resistir com as armas que temos. Se temos técnica e conhecimento científico a nosso favor, que os usemos contra tudo que de mais tacanho se tem feito ou discursado nos dias de hoje. Espaços como esse livro são importantíssimos para que nós, mães cientistas, saibamos que não estamos a sós; que juntas, compartilhando experiências, culpas e angústias, andamos muito melhor. Espaços como esse livro é campo para que reconheçamos ainda nossos privilégios e que propaguemos o que mães subalternizadas têm vivido nesse momento pandêmico. Que escrevamos sobre nós. Que façamos desse livro um registro de nossas experiências. Da nossa vida cotidiana. Que façamos desse livro um retrato de nossos lares e que foquemos o quanto desigualdades históricas de gênero são escancaradas por entre os muros de nossos prédios e casas. Que sobretudo usemos desse espaço de registro e denúncia para transgredir e nos indisciplinarmos. Que produzamos nossa história com canetas autônomas e conscientes das forças centrípetas que nos querem fora da escrita da história oficial do momento pandêmico em que estamos vivendo. Que, 597 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) sobretudo, as mãos que constroem essas narrativas venham de muitos lugares e tenham muitas cores. É a nossa hora de falar e de contar as histórias por trás dos nomes em números de produção para relatórios de agências de fomento ou em revistas de bom qualis. Se se tem que produzir, que produzamos também para nós. Porque a gente vai falar. Porque a gente vai se ouvir. E é porque a gente vai falar e se ouvir que aqui escrevo. Para você, minha leitora, minha parceira desconhecida. A culpa materna que te faz, também me faz. Mas não permitamos que o patriarcado nos consuma ainda mais. Ou mesmo que a massificação da produção acadêmica nos leve para longe do que verdadeiramente importa: eu e você. Eu e você que somos mães na universidade. Eu e você a quem querem o fardo da famigerada culpa materna. Eu e você, que um dia carregamos o medo de, na academia, dizer-nos mãe. Eu e você, sobre cujas costas pesam as estruturas patriarcais que querem permanecer sustentando a produção científica. Eu e você, filhas bastardas de uma academia masculinizada. Eu e você, mães trabalhadoras cujos filhos precisam ocupar nossas salas de aula ou reuniões em aplicativos. Eu e você — esgotadas. Esgotadas porque temos que produzir quando nossos companheiros — ainda que em luta pessoal contra a lógica patriarcal — persistem em serem interpelados por ajuda para óbvias coisas fazer. Esgotadas porque toda a carga mental de tarefas cotidianas nos pesa. Esgotadas porque nossos filhos nos consomem e de nós se alimentam em literalidade. Esgotadas porque temos que produzir, e porque temos que produzir perdemos noites, viço e vida. Esgotadas de ter que estar em prontidão para lutas e combates. Esgotadas porque mães trabalhadoras numa sociedade desigual. Esgotadas porque por recortadas em gênero, raça, classe e sexualidade lutas incessantes diárias são travadas. Esgotadas porque eu e você. Esgotadas porque temos que produzir. E porque temos que produzir e por sermos protagonistas de nossas histórias, que produzamos para consumirmos o que produzimos em pares. Que produzamos para as nossas parceiras cujas lutas em muito se assemelham e desassemelham com as nossas. Que leiamos umas às outras e que fomentemos essa leitura. Que produzamos para outros, mas, sobretudo, para nós. Um “nós” não academicista, um “nós” de mulher em múltiplos nós. Para além dos limites dos muros dessa academia distante de nossas camaradas e do chão do fazer social. Mulher — sujeito generificado, trans ou cis, impregnado por processos históricos e sociais. Produção para transgressão. Resistência e reexistências. Que nós, mães acadêmicas, produtoras de conhecimento, nos firmemos nesse espaço excludente e que transcendamos para que outras de nós, para as que vierem após nós, sejam em plenitude porque nós o somos. Em espaços que recebam nossos corpos e nossos filhos. Em espaços de gozo de direitos civis e trabalhistas. Em espaços que sejamos em plenitude, porque nós somos. Considerações possíveis Aqui escrevo como um desabafo. Numa mistura entre aproximações e distanciamentos próprios de uma escrita de fluxo automático. Sem revisões. Uma tomada de fôlego antes do vômito de algo a 598 Maternidades Plurais que se rumina. Afinal de contas, esse texto me serve como subterfúgio de confidências lançadas a quem não se conhece, a uma leitora não endereçada, mas que se me lê, em mim se encontra; esse texto é, acima de tudo, sintoma de que eu tenho que produzir. Você tem que produzir como antes! Como nunca antes! Você tem que produzir! Esse texto é acima de tudo um registro de dias tão estranhos que de dentro de minha conhecida solidão materna insisto em não me permitir culpas ou aprisionamentos patriarcais. Esse texto é um registro de imprecisões, pensamentos e vivências numa automatização de escrita. Numa escrita possível entre lanches, banhos e cochilos de Benjamin. Uma escrita libertadora porque toda minha. Esse texto é uma fotografia do que se passa em minha casa em plena pandemia: uma casa que virou brasa para que muitos afetos entre três fossem possíveis, mas que muitos desafetos também fossem erigidos. Esse texto é um pouco do que há de íntimo e do que guardo aqui, em minha memória. Por memória ser e por aqui escrito — aqui em mim escrito — tenho para mim. Guimarães Rosa já dizia: o que lembro, tenho. Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheia de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Tenho apenas duas mãos e essas lembranças escorridas são essas memórias desse instante que me faz, desse instante de mundo em doença viral. Desse instante de tempo quando. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morta, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Mortas por essa necropolítica que se coloca e mata a nós, a nossos filhos e a nossas irmãs. Ou melhor: vivas. Porque a gente vai resistir e por cuidado, teimosia ou poesia: estaremos vivas apesar daquele “você”. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sintome dispersa, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Que me perdoem, caras leitoras, caso algum feixe de fogo ou nutriente vital para essas ponderações aqui não se fizeram para vocês presentes, acontece que essa guerra dita é um pouco do que há em mim e de mim — portanto, fatalmente parcial e pessoal. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinha desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite. Dessa noite que é também dia. Carlos Drummond de Andrade. Pois sem poesia, sem arte, o que nos resta, companheiras, nesta tarde? Ah, sim... Nós temos que produzir como antes! Como nunca antes! Nós temos que produzir! Mas não se esqueça: esse tecido-tempo é do tipo quando. É esse instante que já passou, que passa, que você produz, que acolhe, que ama, que escreve, que transcende, que politiza, que mãe, que cientista. 599 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Esse tempo em nossa casa é do tipo brasa. 600 Maternidades Plurais 10 0 Uma mãe, uma pesquisa e, no meio, uma pandemia Michelle Reinaldo Protasio1 — Droga, já são onze horas?! Abri os olhos, em sobressalto. Ao tentar me mover depressa, fui contida por uma fisgada nas costas. Suavemente, tentei liberar o braço direito debaixo do corpo de João. Incrível como um menininho de dois anos e meio parece pesar o dobro quando está dormindo. Ainda bem que era perita na arte de deslizar sem fazer alarde. Sentei na cama, abri a gaveta do criado-mudo e coloquei um comprimido de 50mg de sertralina na boca, que foi empurrado com um ligeiro gole d’água, disponível na garrafa que havia deixado à mão na noite anterior, pois não queria correr o risco de esquecer a medicação de novo. Fiz um rápido alongamento no pescoço e vesti um casaco por cima do pijama. Não importava o quanto de espaço houvesse, João amanhecia, sempre, espalhado por cima de mim. Ainda que amasse dormir abraçada com meu pequeno, as dores matinais sempre me faziam jurar que aquela noite seria a última. Como só conseguia pensar em café, me dirigi até a cozinha. — Não acredito que acordei tão tarde! Queria tanto aproveitar a manhã pra estudar um pouco. — Bom dia pra você também, amor. — Desculpe... bom dia. É que estou decepcionada... queria retomar os estudos pela manhã. É o horário em que rendo mais. — Entendo. Vou te preparar um café. E o João? — Tá dormindo pesado. Passou a noite rolando na cama, com nariz um pouco congestionado. Tomou ‘tetê’ umas quatro vezes. Resultado, madruguei com um olho aberto e outro fechado. — Assim que acordar, lavo o nariz dele com soro, ‘tá’ bem? Acho que vai melhorar. — Tomara mesmo. Só falta esse inverno ser igual ao do ano passado... Lembra? Um mundo de ranho! 1 Doutoranda em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2905732331505175 601 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) — Aham! — Mas me conta, o que ‘tavas’ fazendo agora de manhã? Acordou cedo? — Sim, tive uma reunião on line às nove horas. Vou concorrer em um edital de pesquisa. ‘Tava’ falando com o pessoal sobre a proposta. Ensino de robótica. É uma ideia bacana, vai envolver órgão de gestão pública, universidade, escolas. Por último ‘tava’ em outra reunião sobre o projeto de confecção de máscaras faciais para doação. Fiquei de sair para distribuir material para o pessoal trabalhar nisso. — Puxa, que bom que rendeu... Precisa mesmo sair? Pretendia estudar um pouco... desde que o João parou de ir pra creche, com essa função de pandemia, caiu pela metade minha dedicação a pesquisa. — Vou num pulo e volto no outro. Juro que vai ser rápido. É que me comprometi e o pessoal vai ficar parado se eu não entregar hoje. Já temos comida pronta aqui, é só aquecer. Deixa a louça que eu lavo. — Está bem então, mas não demora! João seguia dormindo. Tive a intenção de pegar o computador. Antes, cumpri o ritual de sempre. Abri as janelas da casa, recolhi roupas do chão do banheiro, coloquei a máquina de lavar para funcionar, organizei dezenas de brinquedos que estavam espalhados pelo chão, botei o lixo na rua. Sentei no sofá com a televisão desligada. Nem terminei de acomodar o notebook no colo, ouvi uma vozinha suave, choramingando várias vezes “Mamãe, mamãe”. — Mamãe já vai, filhinho. Me aproximei da cama e encontrei João sentado sobre os joelhos, com os bracinhos estendidos, esperando para ganhar o colo de toda manhã. Me aproximei carinhosamente e cumpri a sua expectativa. — Vem, meu macaquinho. Vamos lá pra sala ver uns desenhos legais? “Será que todas as mães usam essa voz derretida para falar com os filhos pequenos?”, pensei. Larguei João no sofá, o cobri com uma mantinha e coloquei seu programa favorito na tv. Esse momento do dia era especial. Lembrava-me do tempo de criança, quando meu pai realizava exatamente o mesmo ritual comigo. Amava ficar aninhada no sofá, assistindo desenhos, enquanto tomava chocolate quente com pão e doce de leite. Uma delícia de memória. Servi João e sentei-me ao seu lado. Ficamos abraçados, conversando sobre o programa. Vez ou outra, erguia o bracinho, empolgado, e apontava para que eu reparasse em algo que ele tinha gostado muito, enquanto fazia comentários em seu dialeto (nem sempre compreensível para mim). Aproveitei para realizar mais uma rotina: dar a ele os 5ml de estimulante de apetite e os 4ml de suplemento vitamínico, ambos receitados pela pediatra. Diferente da comida, João apreciava os remédios de sabor doce, tomava sem reclamar. 602 Maternidades Plurais Passado um pouco do meio-dia, Pedro retornou da tarefa de distribuir materiais para a equipe de costureiras. Sempre voltava da rua “ligado”, compartilhando alguma novidade sobre a qual conversávamos durante o almoço. Enquanto ele aquecia a comida, eu coloquei a mesa e acomodei João em sua cadeirinha, de onde dava seu show diário. — João, come só um pouquinho. Experimenta, pelo menos. Em vão. Afastou o prato para deixar clara sua posição. Então, coloquei o celular em frente dele, que, satisfeito, prontamente selecionou os vídeos que gostaria de ver. Dividida entre a perplexidade com a sua habilidade em manusear o aparelho (“com dois anos eu só brincava de boneca!”) e a culpa por cometer o pecado de oferecer telas em troca de algumas garfadas, dei um suspiro sentindo-me derrotada, mais um dia. Pedagoga, constrangia-me por não encontrar estratégias cientificamente comprovadas para dar conta da inapetência de João. Para mudar o rumo dos pensamentos, fazia algum comentário sobre qualquer assunto com Pedro. — Nossa, até quando vai essa situação de pandemia? Que loucura tudo isso! Finalizamos o almoço com uma xícara de café passado cada um. Recusei, com dor no coração, o pedaço de chocolate que Pedro me ofereceu. Dez quilos excedentes pesavam ainda mais na consciência do que na balança. Sentei no canto ensolarado do sofá e aproveitei o descanso pós-almoço para verificar e-mails e conferir a agenda do dia no celular. Constava um lembrete para finalizar e enviar o relatório do afastamento, referente ao semestre anterior. E também estudar inglês, trabalhar na tese, escrever mais um pouco do conto e fazer yoga. Não importava o que houvesse, essas atividades deveriam ser realizadas diariamente. Engoli o café e, para não perder tempo, me pus a limpar. Recolhi a louça, lavei tudo, passei desengordurante pelas bancadas da cozinha e nos azulejos, varri o chão, estendi as roupas que já estavam lavadas dentro da máquina, arrumei os quartos, guardei roupas e calçados do Pedro que estavam em cima da cama. Ufa! Não nego, passava um pouco de raiva toda a vez que estava a organizar a casa. Pedro e eu compartilhávamos as tarefas domésticas. Ele era o cozinheiro oficial (atividade que sempre detestei!), cuidava da higiene dos banheiros, dava banho no João, trocava fraldas melhor que eu. Entretanto, era completamente desligado e não se incomodava que as coisas ficassem espalhadas. Os utensílios que usava na cozinha raramente voltavam para o lugar, suas roupas estavam por todos os lados exceto no guarda-roupa, seu escritório improvisado era uma grande bagunça, suas ferramentas eram encontradas por toda a casa. Era mais forte do que ele. Já eu, ficava desnorteada com coisas fora do lugar. Posso dizer que passava boa parte do dia catando tralhas (do pai e do filho) que encontrava pelo caminho. Enfim, perto das dezesseis horas aprontei um chimarrão, disponibilizei massinhas coloridas para o João e intercalei o trabalho no computador com a brincadeira de moldar bichinhos. Pedro se 603 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) juntou a nós. Ficamos assim por umas três horas. Finalizei a leitura de um artigo, respondi um formulário enviado pelo programa questionando sobre minhas condições para realizar atividades online durante a quarentena, fiz uma girafa amarela com bolinhas cor de laranja, estudei um pouco de inglês, moldei um monstro verde de um olho só e enviei o bendito relatório do afastamento. Algumas pausas para empurrar comida para João. Sorte que gostava de frutas, era um devorador de maçãs e bananas. Depois disso, João me convidou para ‘dicar’ (brincar) em seu quarto. Não havia como escapar desse convite. Decidido, me puxou pela mão e quando chegamos no quarto, sentou-se no tapete, bateu com a mãozinha direita no chão e disse “senta, mamãe”. Brincamos de construir torres com os blocos, de curar o dodói do ursinho de pelúcia, de fazer comidinhas e de montar quebra-cabeças de madeira. Dessa vez, não intercalei a brincadeira com nenhuma outra atividade. Estava inteiramente ali, com ele. Se tinha algo que eu valorizava profundamente era a brincadeira na vida de João. Os brinquedos e o jogo simbólico estavam no centro do desenvolvimento cognitivo e emocional dele, além de serem seus instrumentos de expressão no mundo. Mergulhar no seu mundo de ludicidade e fantasia era um ato de amor, um modo de legitimar suas linguagens de criança. Além disso, estreitava nossa relação, nos tornava íntimos. Graças a mediação da Senhora Mamãe Coelho e do Filhinho Coelho, por exemplo, estávamos avançando no desmame de forma gradual e gentil (para nós dois). Lembrei de quando estava grávida e buscava maneiras de organizar o espaço de modo a deixar todos os brinquedos ao alcance de João. Não, não era uma réplica fiel de um quarto montessoriano, apenas tínhamos clareza de que se o quarto era dele, deveria estar cem por cento acessível ao dono. E João adorava seu cantinho, brincava com todos os brinquedos. Fim da tarde chegando, servi João com um copo de leite e suas bolachinhas favoritas. Peguei meu tapete de yoga, acendi um incenso de canela e fui para a sala fazer mais uma aula online. Postura da vaca e do gato, prancha e posição do cachorro olhando para baixo. Saudação ao sol. E João no meio das minhas pernas. Fazer o exercício com ele por perto era mais difícil, mas muito encantador. Eu sorria ao vê-lo imitando desajeitadamente os movimentos com seu corpinho e ele se divertia. “Ele é lindo! E fui eu quem fiz!”, pensava, orgulhosa. E foi assim que completei quarenta dias seguidos de trinta minutos de yoga. Um bálsamo, cuja regularidade estava possibilitando perceber seus benefícios impressionantes. Não fosse a yoga, as noites de contorcionismo ao lado de João teriam feito um verdadeiro estrago em meu corpo recémchegado à casa dos quarenta. Pedro não dormia conosco. Era impossível. Assim, passava as noites no quarto reserva, até que conseguíssemos transferir João para seu quarto. Uma missão tão complexa quanto o desfralde. Para lidar com essas situações, Pedro e eu havíamos firmado um pacto: respeitar os tempos de João. Ambos concordávamos em não usar de comparações ou pressões desnecessárias para acelerar processos que são dele. Estávamos conseguindo cumprir. Ao fim da yoga, sobrava o cheirinho da canela espalhada pelo ar e o total relaxamento por todo o meu corpo. Não abandonava esse ritual de autocuidado nem morta! Me organizei para tomar um 604 Maternidades Plurais banho. Enquanto estava no chuveiro, discutia mentalmente sobre os próximos passos da pesquisa. Estava programada para a elaboração dos textos de campo no primeiro semestre de 2020. Faria as entrevistas com os participantes, mas precisou ser adiado para o segundo semestre. Faltava, também, pesquisar revistas para submeter o artigo que estava finalizando. E revisar o que já havia escrito da tese. Nesse momento, me veio à mente a conversa que tive com uma potencial orientadora, pesquisadora reconhecida pela alta produtividade, quando estava grávida de João, sem saber. A primeira pergunta que ela me fez foi “tens filho pequeno? Crianças são uma dádiva, mas dão muito trabalho.” Respondi que não. Um mês depois, descobri que sim. Eu teria um filho pequeno. E adiei os planos de doutorado por mais um ano. E ingressei em outro programa, com outra orientadora. Tudo isso também me fez pensar o quanto minha produtividade desabou após a deflagração da pandemia. Não apenas porque passava o dia com uma criança pequena enredada em minhas pernas, mas também devido ao aumento da ansiedade. Tantas incertezas... como ficar tranquila? O Covid-19 ditava um novo modo de viver, isso porque as medidas de proteção que deveriam ser adotadas pelas populações não tinham prazo certo para acabar. Diferentes variáveis em jogo, uma situação desconhecida. Só o dia presente era acessível, o amanhã era incógnita pura. O vírus causava mortes sem despedidas, roubava as rotinas e subvertia os rituais. Colocava de ponta cabeça as relações humanas com o espaço-tempo. Bagunçava as estruturas que organizavam o cotidiano e davam sentido às vidas. Um roteiro digno de Saramago. A pandemia, aqui no Brasil, tinha tudo para fazer grandes estragos. O Brasil sempre foi conhecido pela desigualdade social, um fosso intransponível existente entre ricos e pobres. Isso sem contar as denúncias, investigações e escândalos de corrupção que, esses sim, pareciam não mudar apesar de tudo. Nem mesmo uma pandemia era capaz de inibir ou constranger aqueles que cometiam crimes contra a máquina pública. As notícias de escândalos e desvios de verbas fazia o meu sangue ferver de raiva e indignação! A sensação de impotência era esmagadora. Por vezes, cansava de mim mesma. Não estava conseguindo ser e fazer tudo o que achava ser o ideal. Não era a mulher saudável e equilibrada que gostaria, não fazia escolhas conscientes como deveria, não sentia vontade de passar a maior parte do tempo conectada a tecnologias para me comunicar sob quaisquer condições, não tinha a saúde mental que me deixaria orgulhosa. Exatamente como antes da pandemia, mas com um pouco mais de intensidade. Muitos altos e baixos. E ficou ainda pior quando ficamos sabendo que o primeiro caso confirmado na cidade era nosso vizinho de porta. Ele era médico e acabava de retornar de uma viagem à São Paulo. Casado e com um filho, ainda mais novo que João, apresentou sintomas leves e ficou em quarentena até recuperar-se totalmente. Então, percebi que a doença não era apenas notícia de jornal, mas estava bem próxima de mim e de minha família. Levei a sério o isolamento social. Passava os dias dentro de casa e só levava João ao pátio para tomar rápidos banhos de sol. Virei consumidora 605 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) virtual, algo que nunca me agradou muito. Comprava roupas, frutas, legumes, medicações, brinquedos. E familiarizava-me cada vez mais com os rituais de assepsia. Nunca imaginei que um dia precisaria dar banhos em sacos de batata palha. Tive a ideia de manter a televisão desligada o máximo possível ou de investir em serviços de streaming. Aprendi a maratonar séries (hábito que desconhecia) e a explorar os canais disponíveis na internet (é possível aprender sobre qualquer coisa por lá). E criava alternativas para encontrar um pouco de privacidade e solidão — achava paradoxal que, em meio ao isolamento, minha maior dificuldade fosse, justamente, ficar sozinha por alguns minutos dentro da minha própria casa. Me escondia no banheiro para olhar o celular, fazia a TV de babá, mentia que o “tetê tava dodoi” para despistar João, entre outras traquinagens maternas. Quem nunca? Incrível o quanto essa realidade pode ser tão cansativa de administrar quanto maravilhosa a ponto de não mais ser possível me imaginar sem ela. O confinamento aproximou ainda mais nossa pequena família. Coisa boa poder maternar João. Acompanhar cada pormenor do crescimento do meu pequeno, poder aninhá-lo quando tivesse vontade, tomar banhos demorados, dividir um chocolate, inventar brincadeiras, ler os mesmos livros todas as vezes que sentíssemos vontade, não tinha preço. Observar João progredir na pronúncia das palavras era uma alegria sem comparação. Vitórias cotidianas disfarçadas de detalhes. Acompanhar o desenvolvimento de uma criança é contemplar o nascer de uma consciência. A maior e mais incrível expedição humana. O grande poder não reconhecido das mães! Nem mesmo as brutalidades da dominação patriarcal, eram capazes de apequenar a sacralidade da maternidade, do feminino, representada pelo ser e pelo devir daquela pessoinha. Essa reflexão sempre fazia-me sentir poderosa. Eu observava que aquela situação difícil pela qual todos estavam passando continha a potência de ensinar a valorizar o presente e a encontrar felicidade em qualquer lugar, especialmente onde estamos e com o que já temos. Revisitar o cotidiano com estranheza, dar-se tempo para pensar diferente sobre coisas que já pareciam conhecidas surgiam como grandes gestos de sabedoria. Ressignificar. Não demorou para que eu percebesse o quanto precisava aprender a ser flexível, a encontrar algum conforto em meio ao caos, à dúvida, à revolta, ao adiamento. Não era ingênua a ponto de acreditar em uma revolução social a partir da pandemia. O capitalismo, como sempre, daria um jeito de se adaptar e tirar proveito da nova ordem das coisas. Entretanto, percebi que era impossível seguir vivendo sem otimismo e fé em dias melhores. E, apesar de tudo, eu tinha motivos para agradecer. Onze horas da noite e João foi vencido pelo cansaço. Levei-o para a cama e me deitei ao seu lado. Exausta, antes de dormir, prometi que na manhã seguinte acordaria cedo para trabalhar na tese e que aquela seria a última noite de João em nossa cama. 606 Maternidades Plurais 10 1 (Des)caminhos: vivência de uma mãe adoecida na academia Nathalia Pereira de Oliveira Sousa 1 Confesso que hesitei muito em escrever esse relato. Minha relação com a academia, Mestrado, gestação, parto, pós-parto e, por fim, diagnóstico de câncer, fizeram meus últimos três anos de uma intensidade louca e dramática. Tudo ainda me dói na carne e na alma. E escrever essas linhas que se seguem não foram fáceis. Chorei muito, quase sangrei, tamanha a dor. Às vezes, olho minha trajetória e me sinto fracassada. Outras, consigo me olhar com mais carinho. De toda forma, não consegui pegar meu título de Mestrado. Nem por isso, essa deixa de ser uma história de sucesso. A maternidade não me era sonhada ou desejada. Na verdade, tinha muito medo de engravidar. Eu almejava uma liberdade que, na minha cabeça, era incompatível com a criação de uma criança. Sempre gostei muito de estudar. Fui iniciação científica desde meu segundo ano de graduação. Fiz inúmeras viagens, participei de projetos e pesquisa-ação em escolas públicas, fiz monitorias na Educação Intercultural para formação de professores indígenas, conheci algumas aldeias, visitei quilombo urbano, me apaixonei pela ciência. Com o diploma na não, meu objetivo era, agora, entrar no Mestrado. E entrei. Fiz o processo seletivo final de 2016 e fui aprovada. No final desse mesmo ano, um susto: estava grávida. Eu sabia que a academia é pouco receptiva com mulheres que decidem por ser mães. Que o nosso tempo de dedicação, disponibilidade, estudo, congressos e escrita ficam limitados. E que por isso, muitas vezes, nos cobramos e nos são cobrados muito mais. Mas era meu sonho, eu queria estudar. Mas tinha um bebê sendo gerado no meu ventre. E eu me cobrava muito mais. Comecei a desenvolver ansiedade. Só pensava no Mestrado. As aulas ainda nem tinham começado e eu já me martirizava com a ideia do que seria de mim, de nós, nos próximos meses, nos próximos anos. Levei quase seis meses para conseguir contar para minha orientadora que eu estava grávida. Contei e desabei. Estava muito insegura. Chorei. Fui acolhida. Minha orientadora foi muito querida. Me contou da sua experiência e que também passou pela mesma situação: gravidez e parto durante o mestrado. Nos identificamos. E ainda rimos disso tudo. Que alívio. Saí dali revigorada, plena, confi- 1 Especialista em Educação Infantil, Alfabetização e Letramento pela FABEC. Graduada em Letras-Português pela UFG. Graduanda em Pedagogia pelo IPF. Membra do Mamães na Pós-Graduação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2630250121181945 607 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ante. Lembro de uma fala dela nesse dia que mexeu muito comigo e acalmou minha ansiedade: “Nathalia, você não sabe se viverá outra gestação novamente. Agora é o momento de você curtir o seu bebê. Cada coisa tem seu tempo. Tem seu lugar”. E eu abracei aquela ideia. Eu seria mãe, professora e pesquisadora, qual o problema? Assim, foi. Eu não fui contemplada logo de início com bolsa para cursar o Mestrado. Então, continuei trabalhando como professora de Literatura e Produção Textual, para a segunda fase do ensino fundamental, em uma escola privada. Também estava terminando uma Especialização que tinha começado no ano anterior. Como sabia que depois que o bebê nascesse meu tempo seria ainda mais restrito, aproveitei enquanto ainda estava grávida para adiantar o máximo de disciplinas que fosse possível cursar. Eu estava em plena atividade. Foram três dos quatro créditos obrigatórios cursados ainda nesse primeiro semestre de Pós-Graduação, segundo e terceiro trimestres de gestação. E foram muitos os comentários que ouvi de colegas, professores e professoras. Alguns motivadores. Outros nem tanto. E mais alguns, insinuando que aquele espaço não era pra mim. Não era para crianças. Não era para mães. Conclui as três disciplinas cursadas com A. Que orgulho. Estava dando tudo certo. E eu estava tirando de letra. Um sucesso. Como toda mulher apaixonada por ciência, eu também queria entender tudo de gestação e parto natural. Fiquei especialista no assunto. Eu me preparava para ter um parto natural com o mínimo de interferências. Estava pronta e confiante. Fiz todo o meu pré-natal e parto pelo SUS. A maternidade que escolhi é referência em parto humanizado, seria um sucesso. Completamos 38 semanas de gestação no final de semana, na segunda entrei em trabalho de parto. Apesar das dores, só me dei conta de que estava em trabalho de parto quando minha bolsa “estourou” na madrugada de segunda para terça, quando fomos para o hospital. Quando dei entrada, no início da manhã de terça-feira, já estava com 5 cm de dilatação. Fui encaminhada para o quarto, por volta das 10h. Ali ficamos apenas eu e meu companheiro, juntos, naquele processo de parir nossa criança, que era só nosso. Estava sendo acompanhada por uma enfermeira obstétrica de tempos em tempos. Tudo certo. Ela ensinou meu companheiro a fazer massagens para aliviar as dores, tínhamos óleos, bola, chuveiro quente e banheira disponíveis para que meu parto fosse o mais natural possível, como eu havia sonhado. Me lembro que por volta dos 7/8cm de dilatação, pensei que não aguentaria mais a dor. Estava insuportável. Mas eu queria parir. Era logo após o almoço e eu, além de não conseguir comer, ainda estava fraca por conta da limpeza que meu corpo fazia. A enfermeira me sugeriu que eu tomasse um pouco de analgesia para aliviar a dor. Aceitei. Mas não fomos de imediato. Quando sai do quarto para tomar a medicação, já estava com 9 cm. Minha filha poderia nascer a qualquer momento, e a dor não estava mais tão intensa assim. Fui levada para o centro cirúrgico. Ali, sentada na maca, pronta para tomar a analgesia, escutei “Fulano, você quer aplicar?”. E fulano aceitou. Ele veio. Não me perguntou nada. Pediu para que ficasse quieta entre as contrações e aplicou uma injeção nas minhas costas. A dor passou. Mas também já não sentia minhas pernas. O erro. A dose da analgesia foi aumentada. Me aplicaram anestesia como se eu fosse fazer uma cesariana. Não poderia voltar para o quarto. Meu trabalho de parto parou. 608 Maternidades Plurais As contrações diminuíram... O parto agora demandava acompanhamento médico constante e tive que tomar muita ocitocina para voltarmos a trabalhar. Não sentia as pernas, as dores, as contrações. Lembro de que meu parto virou um evento no hospital. Muitos médicos e enfermeiros se juntaram ali. Meu companheiro apoiava as minhas costas, uma enfermeira apoiando cada um dos meus pés, outras acompanhando os batimentos cardíacos da minha bebê, a pediatra ao lado, o obstetra me dizendo quando tínhamos contração e a hora de fazer força. Mas que força? Eu não sentia nada. E também não sabia tínhamos, agora, um parto de risco. Eu tinha estudado tanto, mas não tinha me preparado para isso. Eu não fazia ideia. “Agora, faz força”. E eu fazia (?). Se passaram uma, duas, três, quatro horas ali. Eu nem percebi. Comecei a sentir meus pés novamente. O efeito da anestesia estava passando. Já conseguia mexer os dedos dos pés. A cabeça da minha filha começou a apontar. Vai nascer. Faz força. “Em quinze minutos ela nasce”. E se passava meia hora. E nisso a cabeça apontou e voltou diversas vezes. E nasceu Amana. Às seis e meia da tarde. Fraca. Cansada. Conseguimos, filha. E sorri, aliviada. Saberíamos em breve que, devido ao parto prolongado, nossa bebê acabou sofrendo uma lesão intraventricular craniana grave, do lado esquerdo do cérebro, e que teria de ser acompanhada por um neuropediatra. Os riscos de sequelas e morte eram altos. Meu chão abriu. Meus primeiros meses com minha filha foram de intensa perturbação. Eu acompanhava o sono com medo de convulsões. Lia e relia inúmeros artigos médicos acerca desse tipo de lesão. E paranoiava com a possibilidade de a minha filha não poder ser uma criança plena e ter seu desenvolvimento comprometido. Não existia espaço para pensar em Mestrado, pesquisa, texto. A lesão interna seria (e foi) absorvida pelo próprio organismo. Mas o prognóstico ainda era muito incerto. De acordo com o neuro, teríamos de dar tempo ao tempo e acompanhar para ver como seria o seu desenvolvimento cognitivo, “tem de esperar para ver se ela vai enxergar, segurar a cabeça, sentar, andar, falar”. Desesperador. Então, começamos a fazer estimulação precoce, duas vezes por semana, com pouco mais de um mês de vida. Sabíamos que a estimulação precoce era importante por conta da plasticidade do cérebro do bebê, caso ficasse alguma sequela, a estimulação poderia amenizar sua intensidade; e nos desdobramos para estimulá-la o máximo possível. Era novembro quando minha licença maternidade acabou, estava no final do primeiro ano de pós-graduação. Voltei acompanhada da minha filha aos encontros do grupo de estudo e às reuniões de orientação. Eu tinha muitas dúvidas no desenvolvimento do meu projeto. Ainda não tinha conseguido escrever nada da minha dissertação e tinha uma disciplina a ser cumprida. Ao fim da primeira parte da reunião, pedi para conversar em particular com a minha orientadora e compartilhei as intercorrências com a minha filha. Chorei novamente. Disse que não tinha cabeça alguma para dar continuidade com a pesquisa e que me cobrava muito por isso, estava emocionalmente fragilizada. Pensei pela primeira vez em desistir. Conversamos e decidimos continuar com o projeto. Como tantas outras recém-paridas, fui demitida da escola que trabalhava em dezembro, cinco meses após o nascimento da minha bebê. Em março fui contemplada com uma bolsa de Mestrado da Capes. Um alívio em meio ao sufoco. Aos poucos, eu ia conseguindo voltar a concentração à pesquisa, mas ainda eram muitas dúvidas. Eu me cobrava muito. Queria dar conta de tudo. Tinha que 609 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) estar disponível para estimular minha filha, levá-la aos muitos acompanhamentos pediátricos, neurológicos e motores que se estenderam por todo o seu primeiro ano de vida. E tinha que estudar. Tinha que ler. Eu precisava escrever. Me restava a madrugada, os horários da soneca. Mas eu estava exausta. Física e emocionalmente. Comecei a sentir fraquezas e algumas dores. Início de julho fiz minha última disciplina obrigatória do Programa. Era uma disciplina condensada e tínhamos aula o dia todo. Eu estava muito animada. Sentia muita falta desse tempo/momento na universidade e estar de volta no espaço acadêmico me fazia me sentir mais produtiva. Nessa época, além da fraqueza e dores, comecei a ter uma tosse estranha, sempre procurando atendimento em emergência ambulatorial. E cada atendimento era um diagnóstico. Primeiro, sem exame algum, concluíram que seria estresse, privação de sono e fraqueza por conta da amamentação em livre demanda. Me receitaram vitaminas que de nada resolveram. Outra vez, fiz exames e concluíram que seriam gases. Por fim, numa das noites que virei estudando, durante esse último curso condensado, me senti muito mal; muita dor e a tosse ficava cada vez pior. Procurei novamente uma emergência ambulatorial e fui diagnosticada com pneumonia. Logo que comecei com a medicação todos os meus sintomas, finalmente, sumiram. Ufa, agora eu melhoro! — pensei. Eu queria estudar. Eu precisava estar ali. Não podia “perder” tempo ficando doente ou passando horas na fila de um hospital. Eu precisava de tempo e disposição. Não tinha espaço para ficar doente. Ao final da disciplina, faltava menos de uma semana pra minha filha completar seu primeiro ano. Na estimulação, tinham me dito que, caso ela começasse a andar nesse tempo de recesso de julho, estaria de alta: teríamos completado um ciclo de desenvolvimento dentro da normalidade e não necessitaria mais de acompanhamento especial. Eu vibrava com essa ideia. Tinha certeza de que Amana andaria em breve. No entanto, as fraquezas, dores e tosse voltaram com tudo assim que finalizado o tratamento para a pneumonia. Mas agora eu estava envolvida em organizar uma pequena festa de aniversário nos próximos dias. Retardei a volta ao médico e aguentei as dores, havia muito a se comemorar. Convidamos alguns amigos e parentes mais próximos para a festa de um ano da Amana. Eu estava exausta, cansada e com uma tosse horrível — não conseguia conversar pequenas frases sem entrar em uma crise de tosse e/ou sentir uma falta de ar tremenda. Muita gente se preocupou. Mas o dia era de alegria. Eu precisava comemorar a vida e saúde da minha menina. Antecipamos os parabéns e me recolhi. Amamentei e pedi para minha mãe ficar com a bebê porque eu não estava me sentindo bem. Meu companheiro que recebia nossos parentes e amigos na garagem de casa, não concordou em me ver naquele estado, recolhida, chorando de dor e me levou, apesar da minha resistência, mais uma vez para uma emergência ambulatorial. A suspeita agora era de tuberculose, eu estava com uma tosse constante há mais de um mês. Me passaram o pedido para o exame que deveria ser protocolado no início da semana. Mas o médico achou “estranhas” as imagens de todos os meus raio-X, antes e depois do tratamento para pneumonia, e me encaminhou para uma tomografia de emergência. Passamos o resto da noite e madrugada no hospital e, finalmente, descobrimos um enorme tumor entre o pulmão e o coração. 610 Maternidades Plurais Era uma massa gigantesca. Mais de 13cm. E um laudo médico com mais de 10 linhas de complicações relacionadas. Foi desesperador. Tive medo de não conseguir realizar os meus sonhos e projetos, de não estar aqui para ver a minha filha crescer. Eu vi a cara da morte e pensei, várias vezes, que ela me levaria consigo, mas me mantive serena todo o tempo: faríamos o que tinha para ser feito. Eu não tinha histórico na família e jamais tinha ouvido falar em uma massa tumoral tão grande. Então começou a correria para iniciarmos o quanto antes o tratamento. Dei entrada para fazer meu acompanhamento oncológico pelo SUS. Enquanto aguardava ser chamada, juntamos nossas economias e já adiantei meus primeiros exames e atendimentos de forma particular. Final de agosto saiu minha primeira consulta no SUS. Como tinha conseguido adiantar os primeiros atendimentos, exames e biópsia de forma particular, já estava os resultados em mãos: Linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer do sistema imunológico. E, da minha primeira consulta, já saí do consultório direto para a internação no Hospital do Câncer de Goiânia. A massa que já estava enorme quando a descobrimos e causava um derrame pleural do lado direito, tinha crescido ainda mais e já comprimia a circulação do sangue para a cabeça. Estava com síndrome da veia cava superior. Era urgente iniciarmos o tratamento. Até esse momento, eu ainda não tinha compartilhado nada do que estava acontecendo com minha orientadora. Ela estava totalmente alheia ao turbilhão que estava minha vida e saúde. Minha produção acadêmica novamente foi interrompida. Fiquei duas semanas internada. E, no auge da minha inocência, selecionei uma lista de livros e textos para me fazerem companhia nesses dias de internação. Eu era a “menina dos livros” e logo fiquei conhecida no hospital por conta da sala de estudos que virou o meu quarto (compartilhado com outras duas pacientes hemato-oncológicas). Acreditava que poderia aproveitar esse tempo para colocar minha escrita em dia, estudar, ser produtiva. Eu não fazia ideia da complexidade do tratamento e (ainda) me cobrava demais. Iniciamos a minha primeira quimioterapia venosa ainda em internação. As demais, seriam feitas de modo ambulatorial, por cerca de seis meses, de quinze em quinze dias. Pensei em “trancar” o Mestrado porque, logo no início do tratamento, me dei conta de que não tinha a mínima condição de continuar com as minhas atividades e compromissos. Mas o Programa não previa trancamento, assim, entrei de licença por motivo de doença na pós-graduação nos meses seguintes que seriam prorrogados no meu prazo final. Foi um período bem difícil, ainda que de licença, o fato de estar vinculada ao Programa me gerava grande cobrança por (não) estar produzindo. Durante todo o tratamento, devido ao estresse natural da doença e os efeitos colaterais da medicação apresentei crises de insônia, tristeza profunda, dificuldade de concentração e de memória o que desencadeou o desenvolvimento de ansiedade e depressão, autoalimentando esse ciclo. Apesar do sentimento de impotência frente à academia, ainda assim, pessoalmente, encarei muito bem o diagnóstico e tratamento do câncer. Tive homéricas “ressacas” de quimioterapia e experiências singulares nas diversas idas ao hospital para exames, consultas e quimioterapias, conheci pessoas e histórias de vida fantásticas. Foi também um momento de grande aprendizado, crescimento e memórias maravilhosas. Mas quando meu cabelo começou a cair não foi fácil, eu tinha um cabelo grande, volumoso, cacheado, lindo. Aquele cabelão farto, sempre solto, era minha identidade. Doía muito meu cabelo caindo aos montes e não me reconhecer mais na imagem que via no espelho, então decidi raspar a cabeça porque queria decidir a hora do meu 611 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) cabelo sair de cena e ser mais sujeito dessa situação toda que eu não tinha controle nenhum. Foi a melhor escolha. Eu mesma raspei minha cabeça, sozinha, e me achei linda, plena e potente! Me fortaleci novamente para seguir o tratamento. Me refiz mulher, mãe e também fui amiga de pessoas que nunca mais vi. A fragilidade da doença e a possibilidade real da morte nos torna mais humanos e sensíveis. A dor e a doença aproximam as pessoas e ressignificam nosso olhar e o sentido que damos à vida. Início de 2019, terminado meu tratamento quimioterápico, eu estava retomando as minhas atividades acadêmicas e realizando o estágio curricular obrigatório que também teve de ser interrompido por conta de complicações no meu tratamento oncológico. Apresentei uma complicação pulmonar aguda, logo após o tratamento radioterápico, e tive de tratar uma inflamação pulmonar actínica desencadeada pela radioterapia. E, mais uma vez, fui internada no Hospital do Câncer, no início de maio de 2019. Essa última internação fez com que meu quadro de depressão e ansiedade, desenvolvido ao longo dos últimos meses, se acentuasse ainda mais. Nunca foi tão difícil continuar. Eu não sabia, mas curado o corpo, não necessariamente, a cabeça estaria curada também. E tive muita dificuldade de concentração e escrita. Eu não conseguia ler nem escrever absolutamente nada. Me sentia improdutiva, impotente, incapaz. E fui alimentando esses sentimentos mais e mais. Era como se eu estivesse presa em uma espécie de limbo, paralisada e cheias de cobranças. As pessoas ao meu redor e eu, principalmente, me cobravam que minha vida e rotina voltassem ao normal... mas eu ainda processava todas as emoções, traumas e acontecimentos dos últimos tempos. Então, em meio a um forte estresse e desgaste físico e emocional, minhas atividades com a pesquisa foram ficando cada vez mais comprometidas, gerando ainda mais estresse e ansiedade. Eu me cobrava muito, mas não encontrava mais forças então, entrei com o pedido de desligamento do Programa em julho de 2019. Entreguei os papéis chorando porque queria, mas não tinha mais condições de continuar e acreditando ser o melhor para a minha saúde naquele momento. Apesar do desejo, ainda me sinto insegura para voltar para a pós-graduação. E, talvez, de fato, não consiga mais voltar. Apesar de terminado o tratamento oncológico, foram tempos que me deixaram tantas marcas: se me fortaleceu, por um lado; também escancarou minhas fragilidades, por outro. De fato, fazemos planos, mas a vida acaba nos surpreendendo com o imprevisto. Agora, novamente, quando estava retomando à vida normal, fomos, todos, surpreendidos com uma pandemia de nível global, nos obrigando a nos isolarmos uns dos outros a fim de conter o avanço rápido e os perigos da doença. Puerpério, licença-maternidade, câncer e pandemia mundial; estou a quase três anos em isolamento total e/ou parcial. Já me perdi e me reencontrei inúmeras vezes nesse tempo todo. Mas agora, estamos todos fragilizados, assustamos, sob risco. E alguns ainda mais do que os outros dados os abismos sociais e a falta de políticas públicas atuais para lidar com o problema. Em tempos de pandemia, as interseccionalidades da exploração de classe, das distinções de raça e da sobrecarga emocional do patriarcado decaem ainda mais sobre nossas cabeças. Escrever esse texto, apesar de ter me feito reviver tantas dores tão profundas, foi uma possibilidade de olhar com mais carinho minha trajetória, ressignificá-la e percebê-la em sua potencialidade. 612 Maternidades Plurais Foram tantas experiências em tão pouco tempo! Não tenho o tão sonhado título de Mestrado, mas aprendi e vivi tanta coisa nos últimos anos que academia nenhuma poderia ter dado conta de tamanha complexidade e potência. Minha filha anda, corre, pula, conversa pelos cotovelos e tem me ensinado dia após dia como ser uma pessoa melhor. Ela é toda iluminada! Chegou de surpresa, nos deu um baita susto e se mostrou essa mistura de fé e força que só as crianças são. Mesmo o seu primeiro ano em que me desdobrava para levá-la para a estimulação precoce foi tão enriquecedor... Conheci tantas mães, tantas histórias, tantas crianças fantásticas. Eu, sem dúvida, me tornei uma pessoa melhor, mais sensível e mais humana depois de tudo isso. Em seguida, meu diagnóstico de câncer veio para me lembrar de que, apesar dos prazos, existe a vida e que apesar de tentarmos controlar a existência, a poesia da coisa está justamente nesse improviso, naquilo que foge ao nosso controle, no inesperado, na surpresa. E, agora, uma pandemia de nível global que nos escancara as urgências e necessidades fundamentais da vida, nossos privilégios e necessidades de mudança. Todas as experiências pessoais e/ou coletivas podem nos servir de aprendizado e acredito que podemos melhorar, nos humanizar, dada essa necessidade de nos reconfigurarmos, nos reinventarmos, nos isolarmos coletivamente. Mesmo que seja uma mudança interna, individual, familiar, local ou comunitária. Vivemos um momento potente de transformações. Não é mais possível continuar igual. Estou aqui, novamente, com lágrimas nos olhos e sorriso no rosto e certa de que “não sei onde estou indo, mas sei que estou no meu caminho”. Avante! 613 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 2 Uma escrita para nossas filhas Pâmella Passos1 Comecei esse texto com a sensação de que ele não seria enviado. Mas, como tenho aprendido com as escritoras que ando lendo para minha pesquisa e também para a minha vida: a escrita cura, a escrita é uma forma de seguir. Confesso que recebi com grande alegria e entusiasmo a divulgação deste livro, que tem por objetivo dar visibilidade a luta das mães pesquisadoras e cientistas nesse contexto de pandemia. Li a chamada e pensei: vou mandar um texto! Logo após esse primeiro ímpeto já sai disparando a mensagem para várias amigas mães que, assim como eu, são pesquisadoras e com certeza teriam muito a dizer. Hoje, faltando apenas dois dias para terminar o prazo de entrega do texto2 me pego aqui, escrevendo seus primeiros parágrafos e pensando: como eu não me dei conta que aquela grande onda que ilustra a chamada deste livro me pegou também? Pois bem, pegou. E até que eu me considero uma boa sobrevivente deste tsunami da maternidade. Mãe de uma menina de 6 anos de idade, a Cecília, sigo em meio a pandemia, cumprindo o isolamento social e tentando dar conta de um estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal Fluminense. É preciso ressaltar que, contrariando as estatísticas de uma sociedade racista, machista e classista sou uma mulher negra, professora federal desde 2008, cujo pai da minha filha divide comigo todas as tarefas3. Mas qual a relevância desta informação aqui? A relevância é: muitas mães cientistas não tem esta realidade. Algumas não tem estabilidade financeira pois temos um histórico social de pouco investimento na ciência e pesquisa, outras são mães solos ou com pouquíssima colaboração 1 Doutora em História. Professora do IFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8296847771958564 2 No meio da escrita do texto soube da prorrogação do prazo, no entanto, resolvi seguir com receio de novamente ser afogada pelo tsunami da maternidade. 3 Ressalto a urgência de aprofundar o conceito de interseccionalidade entre nós, mães cientistas. No Brasil, temos a importante contribuição de Lélia Gonzales que nos aponta a necessidade de compreender a opressão em suas dimensões de gênero, raça e classe. De forma indisciplinar e transgressiva precisamos identificar as diferentes correntes que nos aprisionam, para assim poder rompê-las. 614 Maternidades Plurais dos pais de seus filhos. Ter consciência deste meu lugar, até certo ponto de privilégio, me fez sentir que eu precisava escrever. Mas sobre o que escrever? Li e reli a chamada para o e-book algumas vezes. Mesmo sendo uma pesquisadora que defende arduamente o conceito de experiência e os estudos com os cotidianos, foi bastante difícil aceitar que a escrita seria simplesmente sobre: a minha experiência de pesquisadoramãe durante uma pandemia. Após escrever esta frase já posso afirmar que não tem nada de “simplesmente”. Foi e está sendo difícil, envolve esforço físico e mental. Envolve também acreditar que contar essa história importa, que não é apenas mais uma “autoajuda”. Insegura e indecisa, resolvi arriscar essas páginas. Acredito que neste e-book terão outros capítulos embasados em teorias e dados numéricos que falem sobre a participação das mães na pesquisa, eu inclusive estou ansiosa por lê-los, porém, este não será o meu caso. Tenho um propósito muito mais modesto com esse texto. Escrevo para dar vazão ao que senti, na condição de mãe, pesquisando nesses últimos três meses de pandemia. Escrevo para quem sabe, através de minha história, dar visibilidade a outras histórias que não puderam ser escritas. Escrevo para desabafar, acolher, curar.4 Escolhi a maternidade e acho que este é um direito de toda mulher. Cecília chegou ao meu ventre no exato mês em que defendi minha tese de doutorado e, após seu nascimento, contei com uma rede familiar de divisão de tarefas e apoio que me possibilitaram seguir como pesquisadora realizando meu primeiro estágio de pós-doutorado em 2014, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ. Lembro-me de sair de algumas aulas correndo pois estava com dor de tanto leite em meus seios. Eu ainda amamentava. Até hoje me faço algumas perguntas: por que eu fiz um pós-doc no mesmo ano em que minha filha nasceu? Por que eu não pedi licença qualificação naquele ano para fazer um pós-doutorado com calma? Por que eu não levei minha filha para as aulas e assim poderia amamentá-la e não sair correndo já que minha supervisora era árdua defensora da amamentação? Inúmeras perguntas que, somente com o passar do tempo, pude perceber que não diziam respeito somente a questões individuais, mas sim a um sistema social no qual estou imersa. A difícil decisão entre: aproveitar o “momento auge da carreira” e seguir com a pesquisa, neste ano eu tinha sido contemplada por dois editais da FAPERJ5, ou me dedicar com tranquilidade a maternidade. Eu não consegui escolher, eu quis tudo. Mas eu tinha que escolher? As mulheres são obrigadas a escolher? 4 Inspiro-me no texto de Glória ANZALDUA, Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas. Vol.8, n.1, Florianópolis, 2000. 5 Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. 615 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Como disse, minha família me apoiou e fomos juntas e juntos nessa loucura. Na época eu pesquisava os impactos culturais das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) e percebi que meu corpo não era mais o mesmo, pois ao me deparar com armas do aparato policial ou pegar um moto táxi, meu leite começava a vazar. Era emocional, era físico. Assim percorremos, como diria Chico Buarque “Como fui levando, não sei lhe explicar, fui assim levando ele a me levar”6. Com a devida e necessária flexão de gênero, minha guria foi me levando também. E agora, em 2020, ela mais independente e eu mais madura, seguimos para um novo desafio. Iniciei um segundo estágio de pós-doutorado. Desta vez solicitei e consegui uma licença para me dedicar aos estudos. Seria diferente. Eu teria tempo para ler e escrever tudo com calma, sem precisar sacrificar minhas horas de sono e meu emocional. No entanto, veio a pandemia, o isolamento social, a reorganização da vida. Reorganizar é preciso! Retomando meu modus operandi workaholic achei que poderia dar conta de tudo: leituras, brincar com a filha, escrever artigos, limpar a casa, participar de reuniões e lives, cozinhar, trabalhar o emocional de uma criança de 6 anos que não pode ver familiares e amigos e ao mesmo tempo trabalhar o meu emocional. Fui indo, chegamos até aqui. Mais de cem dias de pandemia e seus efeitos. Cumpri grande parte da lista de produções e tarefas que eu mesma criei, mas não estou orgulhosa, estou exausta. Tomei consciência que não posso mais naturalizar essa situação e continuar a cumprir o que foi planejado antes da pandemia. Tudo mudou! É necessário reorganizar a rota e esse texto está sendo importante também por isso. Ele não estava na minha lista de planejamentos para 2020, ele chegou como um respiro para que eu também pudesse escrever sobre coisas que importam muito e são invizibilizadas e/ou silenciadas. Tenho a característica de escolher temas de pesquisa que me mobilizam muito, eu diria, me apaixonam. Talvez essa não seja uma característica exclusivamente minha, mas isso faz com que eu sempre queira ler e encontre mais referências para o assunto que estou pesquisando. No momento, investigo os impactos do Conservadorismo no Ensino de História. Como professora de História atuando na educação básica esse tema me atinge diretamente. As chamadas “Fake History” e a perseguição/desqualificação das professoras e dos professores são a tônica do atual momento histórico vivenciado, gerando processos judiciais, demissões e adoecimento de docentes. Frente a esta realidade me vi lendo uma carga extensa de textos, participando de inúmeras reuniões de pesquisa e orientações online, organizando dossiês para periódicos, escrevendo artigos, elaborando material didático, participando de banca e mantendo as atividades da maternidade como: alimentação, educação, ludicidade, carinho. 6 Referência a música “Meu Guri” de Chico Buarque. 616 Maternidades Plurais Ao final do dia, não é raro que eu esteja exaurida e culpada, pensando em como poderia ter sido melhor mãe e melhor pesquisadora. “Eu poderia ter feito um joguinho novo com a Cecília ao invés de ter visto filme”, “Eu deveria ter incluído mais uma referência no artigo que eu submeti”. Adormeço nesses pensamentos e no dia seguinte me esforço para “melhorar um pouco mais”. Lembro aqui do dia em que minha filha disse: “Mãe, você ama mais as lives do que a mim”, ou mesmo de sua reclamação: “Mãe, você não sai do celular”. Obviamente, temos que pensar em quanto de nosso tempo gastamos com as tecnologias não dando atenção as pessoas que amamos, como nossos filhos. Sou atenta e adepta do controle de acesso às telas e em casa estimulamos muito a Cecília com jogos, brincadeiras, leituras e tudo mais que pudermos inventar, mas a realidade da quarentena é pesada. O trabalho remoto com filhos em casa impõe uma dura realidade onde a criança terá que brincar sozinha ou assistir tela. Ou ainda, como fazemos aqui em casa, organizar um revezamento para que em parte do dia ela esteja com o pai e outra comigo. Mas tem dias que não dá. Tem dia que os dois tem reunião, tem dias que chegam as compras e um tem que desinfetar tudo enquanto o outro faz uma orientação online. Tem dia que precisamos fazer faxina braba, e não dá para criança ficar perto ou junto se divertindo, pois produtos de limpeza são perigosos e dão alergia. Tem dia que precisamos cozinhar rápido para terminar de ler um texto para reunião logo depois do almoço e por isso não dá para cozinhar junto com a filha porque tudo com criança demora mais. Tem dia que eu odeio todas as centenas de dicas que recebo no WhatsApp sobre “o que fazer com crianças na quarentena” e que parecem viver num mundo onde temos todos os materiais em casa e que o tempo é exclusivo da maternidade. Tem dias que eu só quero chorar! Conto aqui um episódio muito engraçado, nas primeiras semanas do isolamento vi um vídeo que dizia ser super fácil fazer massinha caseira. Peguei farinha de trigo, óleo, água, corantes e fui para aventura com a Cecília. Um detalhe básico: não sou afeita a trabalhos manuais. Pois bem, ficou uma gosma, definitivamente não deu certo. Eu fiquei tão arrasada, pois eu não consegui fazer algo que todos os youtubers diziam ser tão simples. Aliás, uma pausa para dizer que: eu odeio slime! Voltando...minha filha vendo minha cara desapontamento falou “tudo bem, mamãe” e então nós rimos e eu falei para o vídeo (sim, essa geração quer filmar tudo) “quem não quiser fazer massinha em casa, porque as vezes não dá certo, compra na papelaria pronta que também fica ótimo”. Todos os dias eu me esforço para fazer um mundo melhor para minha filha crescer. Eu quero que ela tenha orgulho da mãe como pesquisadora e também que tenha ótimas lembranças de uma mãe que brinca e se diverte com ela. No isolamento, eu que não sou de cozinha, já fiz várias comidas e bolos com ela. O campeão foi o rocambole monstrengo, pelo nome vocês já podem imaginar o visual do prato, não é mesmo? É um esforço contínuo para dar conta de tudo. Nesse esforço eterno não percebo a enorme cobrança que me imponho. Sigo como se pudesse dar conta de tudo, mas não posso. Não podemos! Infelizmente a pandemia no Brasil está longe de garantir algum retorno seguro. Na contramão das pesquisas científicas, alguns setores parecem não 617 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) se importar com a letalidade da doença, colocando a vida de toda a população em risco, e como consequência direta, teremos mais um longo período de isolamento social, para quem puder fazê-lo. Então, para esses próximos caminhos decidi ser mais acolhedora comigo mesma. Compreender melhor a pedagogia desta pandemia7 e internalizar que o futuro não é uma promessa mais sim um agora que precisa ser preservado 8. Sigo então assumindo minha maternidade de outra forma, e essa escrita é parte deste processo. É incrível que a sensação que tenho é que quanto mais eu faço mais ela pede. Notoriamente a cobrança que ela tem em relação ao pai não é a mesma que em relação a mim. Mas fico pensando: como posso ao mesmo tempo acolher minha filha, ser uma mãe da forma que acredito e ao mesmo tempo ir produzindo uma educação não sexista para que ela perceba determinadas coisas, para que possamos ir amadurecendo juntas: ela e eu, para que tenhamos uma relação de mais amor, cumplicidade e menos culpa? Ainda não tenho as respostas, mas perguntar me faz caminhar e trilhar novas rotas... Uma escrita para a minha filha Em 2019 li um livro de Maya Angelou que me marcou bastante, ele se chama “Carta a milha filha ”. Dividido em textos curtos, a escrita da autora que me conquistou com seu famoso poema “Ainda assim eu me levanto” me fez pensar sobre a necessidade de escrever sobre coisas que eu gostaria que minha filha lesse no futuro. Destaco aqui algumas de suas palavras: 9 Querida filha, Esta carta levou um tempo enorme para se formar. Durante todo esse tempo eu soube que queria lhe contar algumas lições que aprendi e em que condições aprendi. (...) Você encontrará nesse livro relatos sobre amadurecimento, emergências, uns poucos poemas, algumas histórias leves para fazê-la rir e algumas para fazê-la meditar. (...) Eu dei a luz a uma criança, um filho, mas tenho milhares de filhas. Vocês são negras e brancas, judias e muçulmanas, asiáticas falantes de espanhol, nativas da América e das ilhas Aleutas. Vocês são gordas e magras, lindas e feias, gays e héteros, cultas e iletradas, e estou falando com todas vocês. Eis aqui minha oferenda. (ANGELOU,2019. p.15) 7 Faço referência a leitura do livro A cruel Pedagogia do Vírus, de Boaventura de Sousa Santos. Coimbra. Edições Almedina,2020. 8 Faço referência a leitura do livro O amanhã não está à venda, de Ailton Krenak. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 9 A referência completa do livro é ANGELOU, Maya, Carta a minha filha. Rio de Janeiro: Agir. 2019. 618 Maternidades Plurais Após ler essas palavras de Maya Angelou passei a fazer um diário temático que, espero eu, um dia Cecília possa ler. Mas como disse anteriormente não é algo apenas individual, não se trata de uma trajetória específica. Ser mãe-pesquisadora numa sociedade patriarcal é romper paradigmas, é ter sobre trabalho, é estar sempre exausta. Isso não pode ser naturalizado, mas sim pesquisado, escrito, denunciado como está sendo nesta publicação. Que este movimento crie mais condições objetivas para as pesquisadoras que optaram pela maternidade. Que não sejamos pressionadas, ou não nos pressionemos a amar nossos filhos ou nosso trabalho. Que possamos identificar na culpa materna e no modelo de mãe perfeita mais uma estratégia do patriarcado capitalista. Que possamos ter congressos acadêmicos com espaços infantis. Que possamos ter nossa licença maternidade reconhecida na contagem pela cruel produtividade. Que possamos gestar uma nova forma de produzir ciência. Isso é por nós e pelas nossas filhas! 619 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 3 Relatos e reflexões sobre o isolamento de uma mãe-solo-cientista Patrícia de Abreu Moreira1 “Será que dessa vez vai?”. Essa é a pergunta que me acompanha todas as noites quando vou me deitar com minha filha, de apenas quatro anos! É uma questão que nasce nas minhas divagações que se relacionam com as minhas atividades profissionais e as minhas inquietações como mãe-solo. Uma interrogação que se acentuou a partir do nosso isolamento social devido à sugestão da Organização Mundial de Saúde (OMS) diante da pandemia associada à doença infecciosa causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) ou Covid-19 (do inglês COronaVIrus Disease 2019). A reclusão social trouxe à tona uma rotina estressante para muitos, visto que, além do necessário trabalho remoto (home office), muitos tivemos que nos dividir entre os afazeres domésticos, entre os cuidados com os familiares, considerando ainda toda a preocupação com a segurança e saúde frente ao caos instaurado. Um caos que não se restringe às questões de saúde pública, mas se amplifica em consequências econômicas e redefinições sobre o nosso trabalho no tempo presente e implicações futuras. Essa recomendação da OMS também resultou no fechamento de escolas e creches e, ainda, no isolamento dos familiares e amigos que compõem uma “rede de apoio” fundamental para as mães, muitas destas solteiras, divorciadas, viúvas, mães solo, que precisam trabalhar, cuidar da casa e educar os seus filhos. Infelizmente não dá para minimizar o “cuidar da casa” apenas com esse jogo de palavras. Vou tentar expressar em texto essas tarefas para oferecer uma percepção sobre o tempo que lhes é dedicado. Esse cuidado implica em guardar os objetos fora do lugar, os brinquedos das crianças, varrer a casa, passar pano no chão da casa, tirar o pó sujo dos móveis, lavar o(s) banheiro(s) e outros cômodos necessários. Além disso, é preciso lavar as roupas sujas, estendê-las no varal, passá-las e guardá-las. Em tempos de pandemia, precisamos considerar ainda a limpeza e desinfecção de toda mercadoria adquirida antes de adentrar nossas casas. Incluímos nessa lista todos os alimentos, pois, claro, precisamos ainda cozinhar, preparar o café da manhã, o almoço, lanche(s) da tarde e o jantar. Consequentemente, temos que lavar todos os utensílios utilizados na preparação de cada uma dessas refeições. 1 Doutora em Genética de Populações pelo Departamento de Evolução, Biodiversidade e Meio Ambiente, Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3453951631458342 620 Maternidades Plurais Quando falamos em “educar e cuidar os filhos”, os verbos aqui utilizados também condensam múltiplas ações. A educação e o cuidado com as crianças implicam em uma dedicação, muitas vezes exclusiva, devido à perda da rede de apoio habitual causada pelo isolamento social. Assim que a criança desperta de seu sono, precisamos alimentá-la. Em seguida, precisamos dar atenção para aquele ser que amamos e que quer colo até que se desperte por completo ou ainda brincar. Porque sim precisamos brincar com elas, afinal de contas, elas também estão isoladas, sem os amigos, colegas e outras crianças para poderem brincar e se divertir. Lembrando que, como seres sociais, o contato com outros, as brincadeiras são essenciais para a construção de nossa humanidade. As crianças precisam ser alimentadas e, novamente, isso inclui o tempo de preparo e arrumação dos utensílios após a alimentação. Não podemos nos esquecer ainda da higiene pessoal das crianças, da lavagem das mãos antes de alimentar e da escovação dos dentes após o término da refeição. Ao longo do dia precisamos ainda dedicar um tempo ao instaurado ensino domiciliar (homeschooling), uma tarefa muito complicada para algumas de nós. Muitas crianças não conseguem perceber os pais como agentes de uma atividade de educação deliberada, intencional e planejada. E podemos culpá-las? Afinal, também nós não sabemos até que ponto estamos exigindo pouco dos nossos filhos enquanto alunos ou se estamos avançando demais nos ensinamentos para com eles. Após as tentativas frustradas ou improvisadas de fazermos as atividades de ensino com as crianças, precisamos ainda providenciar o banho. A hora do banho implica na escolha da roupa a ser trocada, dar o banho em si na criança, enxugar e vestir a criança, arrumar todo o banheiro depois e deixar as coisas no lugar. Não podemos esquecer ainda do jantar dos filhos que, como descrito acima, inclui o tempo de preparo e arrumação dos utensílios após a alimentação. Ao final do dia, o “cuidar das crianças” nos exige também um trabalho que não é simplesmente colocar pra dormir, temos que auxiliar na escovação dos os dentes, colocar o pijama, deitar com eles, contar uma(s) história(s) e lutar para não pegar no sono, pois tem aquele e-mail para responder ainda hoje! E aqui, podemos chegar a outro ponto que, até agora foi omitido deliberadamente dessa história, em mundo paralelo na mesma casa da professora, cientista e mãe-solo, existe o home office. Imaginem o quão difícil é realizar as atividades do nosso trabalho mediante todas essas tarefas acima descritas?! Eu não imagino, eu vivencio essa rotina de segunda a segunda. Sou Professora do Magistério Superior desde 2013, um cargo que está muito além dos afazeres do ensino e implica ainda em realizar demandas administrativas, de pesquisa e extensão. Nesse sentido, me considero também gestora e uma cientista, faceta que darei um maior foco nesse texto. Apesar de não encontrarmos cientista na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) foi também a ciência, representada pelos projetos e artigos científicos, que me permitiram ingressar na universidade pública federal no concurso para Professor do Magistério Superior. A carreira do cientista é construída por inúmeros questionamentos que surgem após observações de fatos, testes de hipóteses e muita leitura. Em seguida, uma dedicação enorme na escrita científica da pesquisa concluída, claro, em inglês. Assim, uma das nossas principais ferramentas de trabalho é o nosso cérebro, estamos sempre lendo e escrevendo artigos científicos. Tanto para o momento de leitura, quando para o momento da escrita, e até mesmo para o momento de orientação/discussão com os nossos alunos e colaboradores, 621 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) precisamos de concentração. A pergunta que surge nesse momento é: como conseguir essa concentração necessária durante todas as atividades de educação e cuidado acima descritas? No meu caso, especificamente, essa concentração é muito difícil de conseguir. Como disse no início, sou, desde a gestação, mãe solo de uma menina. O isolamento social acentuou todas as dificuldades que eu já tinha para desempenhar as atividades de uma mãe solo cientista! Passo todos os dias me dividindo entre atividades como limpar a casa, cozinhar, participar de inúmeras reuniões, sem contar as tentativas fracassadas de ensinar matemática e língua portuguesa para minha filha; orientar meus alunos e escrever os artigos científicos. Completamente iludida no início do isolamento social, eu achei que finalizaria todas as minhas produções científicas! Durante a pandemia, tenho participado de maneira intensa de reuniões remotas, as quais são extremamente necessárias, mas também, extremamente invasivas. Por diversas vezes fui, e ainda sou, interrompida com gritos de “Mamãe, quero fazer cocô, vem comigo?!” ou “Mamãe, acabei!” ou “Mamãe, estou com fome!”. Já deixei uma reunião correndo após ouvir minha filha chorar pois havia se machucado brincando no cômodo ao lado. Já esqueci panela no fogão pois me concentrei em um artigo, ou de dar a fruta para minha filha, porque me dediquei a responder a um e-mail da diretoria da unidade, dentre outros esquecimentos. Temos visto, frequentemente na mídia, informações sobre o quão diferente o isolamento social é para as pessoas pertencentes a classes sociais diferentes, classe econômicas distintas e de setores econômicos diferenciados, mas ele também é diferente para os pais que compartilham a guarda de uma criança, afinal, estar com seu(sua) filho(a) é um direito e não um dever. E, com a perda da nossa rede de apoio, temos nos sufocado cada vez mais para conseguir realizar todas as atividades. O isolamento social É diferente ainda quando comparamos OS cientistas e AS cientistas, isso porque a nossa trajetória na carreira científica não é a mesma dos homens2, ou seja, é também uma questão com recorte de gênero. As cientistas que decidem se tornarem mães-cientistas convivem, diariamente, com o dilema, e a frustração, de não conseguirem se dedicar aos filhos como gostariam e de não serem produtivas como gostariam (e precisam!) 3. E como vários outros problemas de desigualdade, este também foi acentuado e se mostrou mais visível pelo quadro de caos resultante da pandemia. As relações acadêmicas e, consequentemente, as carreiras científicas são muito competitivas e os sistemas de avaliação do desempenho estão relacionados com a produção científica. E como manter nossa produção científica sendo que a maternidade e a ciência são competidoras? Essa disputa retarda a nossa ascensão na carreira científica4. É extremamente complicado para uma mãe, exausta pelas demandas da maternidade, conseguir forças para se concentrar e fazer ciência. No meu caso, SILVA FF, Ribeiro PRC (2014) Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista” e “ser mulher”. Ciência & Educação, 20: 449-466. 2 3 VELHO L. Prefácio. In: Santos LW, Ichikawa EY, Cargano DF (2006) Ciência, tecnologia e gênero: desvelando o feminino na construção do conhecimento. Londrina: IAPAR, 242 p. 4 ICHIKAWA EY, Yamamoto JM, Bonilha MC (2008) Ciência, Tecnologia e Gênero: desvelando o significado de ser mulher e cientista. Serviço Social em Revista, 11: 1-15. 622 Maternidades Plurais foi algo praticamente impossível. A maternidade criou um gap de publicações no Lattes da mãecientista e o tempo necessário para minha recuperação está muito além do período da licença-maternidade, afinal, depois do nascimento, a minha filha precisou, e ainda precisa, de uma dedicação praticamente em tempo integral da mãe. Toda essa atenção redobrada e quase exclusiva tem um preço muito alto para a mulher cientista. Como mãe solo cientista, o tempo que possuo para dedicar à ciência é muito menor do que antes da maternidade. A diminuição na produtividade causada pela maternidade já foi demostrada, bem como a duração de, aproximadamente, quatro anos desse impacto negativo 5. Imaginemos isso agora no contexto de uma pandemia que nos levou ao isolamento social! A minha pergunta no início do texto é exatamente sobre o reconhecimento dessa rotina intensa, agora escancarada para a sociedade, que nós mães solo cientistas já vivenciamos há algum tempo, mas que antes era velado, interpretado como uma reclamação lamuriosa, mas que agora, com a grande maioria da sociedade experimentando algo “tão novo” essa sobrecarga passa a ser considerada e, até mesmo, reconhecida e questionada. Muitas pessoas têm se considerado improdutivas diante dessa pandemia, mas nós, mães solo cientistas vivemos essa “pandemia” diariamente, há tempos. Já estávamos isoladas muito antes desse novo mundo começar, sem o reconhecimento acadêmico e de nossos pares, por todo nosso esforço e dedicação à ciência e aos nossos programas de pós-graduação, mesmo diante de todas dificuldades e limitações, produzimos conhecimento científico e lutamos pela melhoria da educação superior brasileira. Sem a devida consideração da maternidade nas competitivas relações acadêmicas e no sistema de avaliação de desempenho científico, afinal, como comparar de maneira isonômica uma mãe solo cientista que ficou afastada entre quatro a sete meses por licença-maternidade do seu par que estava trabalhando no mesmo período a todo vapor? É essa mesma mãe solo cientista afastada que permanecerá se dedicando, exclusivamente, por anos, a essa criança, enfrentando, dia após dia, todas as dificuldades já descritas... “Será que dessa vez vai?”... Será que agora as pessoas irão reconhecer o trabalho árduo que é ser mãe solo e fazer tudo o que a academia exige? Infelizmente me parece que não, estamos longe de termos a maternidade verdadeiramente reconhecida e considerada no contexto científico. A sobrecarga de atividades e, consequentemente, o possível impacto negativo na produtividade dos cientistas durante o isolamento é algo já em discussão e que, provavelmente, será considerado pelos sistemas de avaliação de desempenho científico. Entretanto, talvez as planilhas dos avaliadores, muitos dos quais nossos colegas que compartilham gabinetes ou corredores conosco, não contemplem como variáveis significativas às particularidades que infligem as mães cientistas. Em uma postura analítica de mensurar a produção acadêmica talvez ainda não haja espaço para alteridade e empatia e, que para 5 MACHADO, L.S. et al., Parent in science: The impact of parenthood on the scientific career in Brazil, Proceedings of the 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (2019), pp. 37-40. 623 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) esses pareceristas, a capacidade e competência das pessoas só possa ser traduzida por índices tão frios que se resumem a siglas, FI6, WEBQUALIS7, Índice-H8. Em apenas três meses houve uma sobrecarga e um acúmulo de atividades imensuráveis provocados pela reclusão social. O que apenas escancara, novamente, a desigualdade existente entre OS cientistas e AS cientistas, pois, o gap na publicação de artigos científicos das mães cientistas precisa ser superado por elas mesmas, sem a consideração da sobrecarga de atividades acumuladas por nós. Agora, o possível gap de publicação previsto na vida dos cientistas causado pela pandemia instaurada pelo coronavírus, que resultou no acúmulo de atividades durante o home office, poderá ser considerado pelo sistema de avaliação. Algo que mães cientistas também estão sentindo e, nós mães solo cientistas, estamos sentindo ainda mais após perder toda a rede de apoio e ter que manter, ou recuperar, a queda produção científica ainda causada pela maternidade. Enquanto o sistema não perceber e atuar contra algumas cruéis discrepâncias, nós, mães-cientistas, mães-cientistas-solo permaneceremos na nossa árdua tentativa de nos mantermos na ciência. E, durante o isolamento social, vamos lutando contra a louça suja acumulada na pia, contra as roupas sujas amontoadas no tanque, contra todos os brinquedos espalhados pela casa, contra a dificuldade do homeschooling com nossos filhos, contra a dificuldade do acesso à internet, contra todas as interrupções inesperadas de nossos filhos durante as reuniões remotas, contra todas as dificuldades de concentração devido ao acúmulo de atividades. Lutamos na esperança, de que possamos ter nosso reconhecimento no âmbito científico, de maneira específica para retomarmos e/ou melhorarmos nossas carreiras sem termos a difícil tarefa de escolher entre a maternidade e a ciência, ou ainda sermos questionadas por nossa competência e o merecimento de ocupar lugar de produtoras de conhecimentos científicos significativas para os nossos campos de atuação. 6 FI – Fator de impacto, principal métrica utilizada para avaliar revistas científicas. 7 Sistema nacional de qualificação de periódicos. 8 Parâmetro avaliativo do autor que relaciona o número de publicações científicas do autor com o número de suas citações. 624 Maternidades Plurais 10 4 Fazer-se mãe, fazer-se pesquisadora: questões diante dos bloqueios do isolamento Paula de Mattos Colares1 Ser mãe é, para mim, uma produção que se faz e se fez, sempre, indissociável dos caminhos de minha vida acadêmica. Quando me descobri grávida, inesperadamente, aos 21 anos, havia chegado à metade de meu curso de graduação. Menos de dois meses antes, consegui uma bolsa de iniciação científica, enveredando pelo rumo da etnologia indígena e imaginando ir pela fronteira do Brasil com o Peru, buscando narrativas sobre povos em isolamento voluntário, tema de meu primeiro projeto de pesquisa. A maternidade me fez encontrar lugares e objetos diferentes, fechou caminhos, mas abriu clareiras que me mostraram outros encantos. Por isso começo esse texto com as lembranças dessas andanças que são minhas e dela. Na graduação, se seguiram ainda dois anos com minha filha no colo, quando eu a amamentava e acalentava durante as aulas. E então veio o mestrado, quando nos afastamos fisicamente por algumas horas diárias, indo eu para um lugar, ela para outro — a creche. Começando a delinear meu objeto de pesquisa, não me parecia viável fazer o trabalho de campo que havia imaginado, em lugares a dias de distância da cidade mais próxima, já que eu partia da certeza de que queria viver a experiência da pesquisa junto de minha filha. Encontrei, para me abrir possibilidades, uma orientadora que acreditava na potência do trabalho de campo com crianças, tendo ela mesma levado seus filhos em diversas etapas de sua pesquisa junto a um povo indígena na região amazônica. Esse incentivo, e o encontro com ela, foi fundamental. No mestrado fiz um breve trabalho de campo, que se prolongou no doutorado, tendo minha filha morado na aldeia em que trabalhei, comigo, em quase todo o processo. Isso me proporcionou vínculos, relações de afeto, novos olhares e uma proximidade e um interesse muito produtivo com as crianças, que se tornaram também parte de meu interesse como pesquisadora. Meus problemas de pesquisa, desse modo, foram se enveredando para a vida das crianças e seus processos de aprendizagem — dentro e fora da escola. O convívio com as crianças, que eram nossa companhia constante, Doutora em Antropologia Social – PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. Docente na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2671545682956673 1 625 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) me possibilitou ver e pensar questões que me seriam inacessíveis se eu fosse uma pesquisadora solitária. Me permitiu também perceber sutilezas e nuances que seriam, de outro modo, invisíveis. Ao mesmo tempo, desafios certamente se colocaram, ainda que na maior parte do tempo na aldeia eu tivesse também o apoio de meu companheiro nos cuidados com ela. Na escrita da tese, já tendo passado certo tempo daqueles períodos prolongados no campo, eu transcrevia as gravações de entrevistas e conversas e pude, com alegria, me deparar com as intrusões sonoras de minha filha. Numa delas, que me levou de volta à aldeia e ao dia preciso captado pelo áudio de um gravador, eu entrevistava um dos moradores mais velhos da comunidade. Eu estava tentando há semanas ter esse momento com ele, que sempre tinha coisas mais importantes para fazer — o roçado para cuidar, o acampamento na praia para assar um peixe, a bebida de mandioca na casa de um parente — o que acabava fazendo com que ele desmarcasse o tempo de responder às minhas questões. Certo dia finalmente poderíamos conversar com calma, e para isso atravessamos o rio em direção a casa de um de seus filhos, um professor de quem muito me afetuei. Esse filho, assim como outros homens, seus afins, haviam ido para o roçado em uma minga, uma espécie de mutirão realizado muitas vezes por lá, nesse caso para a derrubada de troncos para dar início à um novo momento de plantio. A casa, assim, estava quase vazia, com algumas mulheres da família preparando a comida para ser compartilhada junto à cerveja de mandioca, quando os homens retornassem. Na canoa para chegar lá, nos acompanharam alguns dos muitos netos desse homem, as crianças que estavam sempre junto de mim e de minha filha. Eu havia levado comigo folhas de papel e lápis de cor e canetinhas, como sempre fazia para agradar as crianças, incluindo a minha. No entanto, no meio da entrevista, que trazia tantas histórias que me interessavam e podiam trazer luz à problemas de minha pesquisa, começou uma briga de minha filha com uma de suas amigas inseparáveis na aldeia — amigas que falavam línguas diferentes, mas conseguiam perfeitamente se comunicar e se gostar. A menina, sem nenhuma maldade, fez um desenho na folha em que minha filha desenhava, o que desencadeou uma crise de choro em minha menina de 4 anos de idade. Na hora, me senti profundamente abalada pela situação, que por eu não conseguir manejar por muito tempo, acabou por interromper e dar fim à entrevista, me deixando também envergonhada. Eu não lembrava bem desse episódio — que, no entanto, fora marcado em meus diários de campo, assim como muitas outras situações envolvendo os efeitos positivos, assim como os desconcertantes do trabalho de campo como mãe. Foi escutando a gravação da entrevista que me vi tomada dessas memórias, podendo olhar para essa situação com encanto e generosidade. Ao longo dos anos com momentos de vida na aldeia, minha filha e eu aprendemos muito, expandimos nossas experiências, vivemos com uma família amorosa, minha filha cresceu e até fez aniversário por lá, com direito à festa e a casa lotada de crianças de toda a aldeia. Essa digressão pelo trabalho de campo como mãe tem o propósito de acompanhar a reflexão que faço agora, vivendo a quarentena e o isolamento: se fomos capazes de fazer tanto e crescermos juntas, se consegui concluir minha graduação, fazer mestrado e doutorado com ela, começar minha vida como professora universitária e ir viver num lugar distante de nossa família e de onde nascemos, porque agora é tão difícil me sentir “produtiva” no isolamento de nossa casa? Por que a tal culpa materna é agora maior do que sempre foi? 626 Maternidades Plurais Assim, me vi diante da necessidade de dar conta da manutenção da vida cotidiana — casa, comida, limpeza, que sempre foram de responsabilidade exclusiva minha e do meu companheiro, mas que aumentaram expressivamente de intensidade no isolamento — e ao mesmo tempo cuidar para que esse momento não fosse demasiadamente traumático para a minha filha, com o afastamento da escola, da convivência com amigas e amigos, dos passeios e do mundo lá fora. Além disso, talvez a coisa mais importante, nos vimos tendo de enfrentar nossas angústias e nossa saúde emocional já impactada, vivendo ainda o luto da morte de minha mãe — e avó tão presente, que se foi logo antes de descobrirmos que o (nosso) mundo iria mudar ainda mais. No meio de tudo isso, me dei conta de que se, quando eu fazia trabalho de campo e ela tinha três, quatro ou cinco anos, eu era de alguma maneira a companhia constante “suficiente”. Agora, tendo ela chegado aos dez, a vida junto à outras pessoas e a manutenção de relações que não passam por mim, meu companheiro e nossa família, é um imperativo em seu processo de crescer, algo que, ao menos fisicamente, está agora interdito a ela. Estarmos em casa a todo tempo, juntos — eu, minha filha e meu companheiro — logo se mostrou uma dificuldade para trabalhar e escrever. Certos problemas têm mesmo a ver com o espaço — afinal, meu “escritório” é uma escrivaninha na sala. Especialmente no início da quarentena, não havia momento em que eu me sentasse na frente do computador e que a primeira linha de um esboço de texto não fosse logo interrompida por uma criança entediada: “Mãe, brinca comigo?”, “mãe, vamos pular corda?”, “mãe, até quando vamos ter que ficar em casa?”. “mãe, olha o meu desenho!”, “mãe, tô com fome!”. O dia passando e a sensação de que eu não “produzia” nada. E então nos grupos de e-mail e de whatsapp da universidade, colegas professores (a maioria deles homens, não por acaso), anunciavam lives, publicações, encontros virtuais com alunos (aqueles pouquíssimos com acesso à internet). Entoavam a visão empreendedorista e descabida de que tínhamos que “aproveitar” a crise e o isolamento como oportunidade para produzir mais, nos reinventar, aprender a usar novas tecnologias! Cada mensagem daquelas era um gatilho para mim, uma sinalização de que ou eu estava completamente perdida, ou estavam eles, alheios ao efeito devastador da pandemia nas nossas experiências cotidianas e nas nossas relações. Eles não estavam angustiados como eu? A rotina com a casa, filhos e as horas lavando as compras ao chegar do mercado não os deixava exaustos também? Comecei a escrever artigos. As ideias pareciam não encontrar terreno firme, os documentos de word se multiplicavam com parágrafos soltos, era difícil fazer sentido. Eu estava escrevendo sobre minha experiência como professora num projeto institucional de ação afirmativa junto a estudantes indígenas e pensando a questão dos efeitos da presença indígena no ensino superior. E então vinham notícias de alunos, eu lia outras nos jornais, colegas me diziam de tantas mais. A Covid-19 tinha chegado nas aldeias, os velhos — sua memória viva — estavam morrendo. Os estudantes indígenas, em sua maioria, depois da paralização do calendário acadêmico na universidade, haviam voltado para as suas comunidades. Manter qualquer tipo de atividade de ensino seria insensível e excludente, mas eu ainda via colegas dizendo que tínhamos de nos reinventar e perder o “medo da tecnologia”. Eu sentia muito a falta da troca com os estudantes, de estar junto a pensar numa sala de aula. Ao mesmo tempo pensava com ansiedade no futuro, na banalização do tal “novo normal” anunciado por todo o canto, que os impactaria de forma desproporcional. Essas coisas me paralisavam. 627 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Junto disso, meu pensamento se voltava à realidade concreta em que me situava, a vontade de “dar conta” das necessidades da minha filha, de querer vê-la alegre e criativa, de fazer com que ela se mantivesse motivada. Conversava com mães amigas, e via mães colegas de trabalho contarem de sua incredulidade com as escolas particulares que queriam fingir que a pandemia era um detalhe, inundando as crianças de “atividades” e sobrecarregando as mães, que acumulavam trabalhos, dores e jornadas múltiplas. Minha filha, por outro lado, é aluna de uma escola pública na pequena “vila” onde moramos. Não existe qualquer presença da escola na nossa vida no isolamento. Demorei um tempo para entender que tudo bem, minha filha “perderia” um ano. Esse não era o maior dos nossos problemas, afinal, com 50.000 mortos por uma doença devastadora enquanto filas eram postas à porta de shoppings reabrindo. Mas a responsabilidade com a “formação” da minha filha, o medo de que esse ano e o afastamento da escola possam ter um impacto na vida dela, nunca me abandonaram completamente. As amigas e sua solidariedade foram fundamentais — uma passou a dar aulas de francês por vídeo, para a minha filha, outra a incluiu num projeto seu de aulas virtuais de cinema para crianças. Foram um respiro, assim como as ligações de vídeo que ela fazia com suas amigas (e eu com as minhas). Para nós duas, me parece que a solução que desafogou um pouco essa enxurrada de questões foi a literatura. Quando eu parei de insistir na ansiedade de tentar “produzir” e inevitavelmente cair no ciclo da frustração, fui ler os diários de Sylvia Plath e Virginia Woolf. Depois fui ler outros livros dessas mulheres e deixei de olhar, por algumas semanas, para qualquer texto de minha área acadêmica. Minha filha, que sempre gostou muito de ler, terminou as coleções de Harry Potter, Fronteiras do Universo, Terra de Histórias... Mergulhou na fantasia. Depois partiu para as nossas estantes, para buscar algo que a interessasse nesse novo mundo que descobriu. Leu as tirinhas completas da Mafalda e os livrinhos de Liniers, me perguntou o que é poesia e eu li para ela Manoel de Barros, depois me perguntou se tinha algo do Paulo Freire que uma criança poderia ler. Indagava-me sobre as coisas que eu lia e então ia formulando suas questões: o que é poesia? O que é um xamã (lendo o subtítulo do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert)? E isso se desvelava em tantas e interessantes conversas. Dos assuntos que pululavam de conversas entre mim e meu companheiro durante a quarentena, ela ia pescando dúvidas: e assim conversamos sobre colonização, vírus, fascismos... As lições de matemática podiam não estar presentes, mas ela aprendia uma porção de coisas (e nós também). As coisas começaram a se assentar assim: passávamos grande parte de nossos dias cozinhando, limpando, cuidando, mas também brincando, quando possível. Às tardes sempre combinávamos um momento de leitura, as vezes entrecortado por outras atividades que se faziam necessárias. Eu me sentava para escrever, todos os dias, mesmo com as ideias soltas e um pouco desconexas, por cerca de três horas depois que minha filha ia dormir. Virou um ritual de quase sempre. Isso acontecia no ritmo dos dias, mas às vezes vinham aqueles em que não tínhamos vontade de fazer nada, aqueles dias que pareciam custosos de viver com as notícias que não paravam de chegar, com o isolamento doendo na gente, com o desespero por saber que tanta gente estava vivendo esse momento com muito mais dificuldades que nós, com as muitas saudades. E era preciso parar e ter dias “inúteis”. A literatura me deu um interesse para manter a sanidade na quarentena, um ponto de organização para mim e para a minha filha, e me ajudou a escrever, por fim. Fui encontrando maneiras de 628 Maternidades Plurais organizar as ideias e escrever textos que pareciam fazer algum sentido sobre os meus temas de pesquisa. Revi a tese e preparei um artigo, escrevi sobre o meu atual projeto. Continuei me recusando a participar daquilo que exigia de mim mais forças do que conseguia oferecer e segui tentando ver o que podia me potencializar, nas tentativas meio mambembes de continuar a exercitar o duplo lugar de mãe e pesquisadora. As vezes sinto que estou falhando miseravelmente. As vezes sinto um certo orgulho de ver que consigo dar conta. E assim vamos sobrevivendo, sempre juntas. Uns dias são melhores do que outros. 629 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 5 A matemática em ser mãe de três Pollyana Volpato1 Meu nome é Pollyana Volpato, tenho 30 anos, sou graduada e mestre em Matemática pela UFG e concursada pela Secretaria de Educação de Goiás. Comecei minha graduação em Matemática na UFG em 2007 com 16 anos. Sabia, desde o início da faculdade, que ser professora seria minha profissão principal durante toda minha vida, pois desde o ensino médio já lecionava como substituta e tinha uma vasta clientela de alunos particulares. Em 2013, já formada há 1 ano e meio, fiz a prova do mestrado profissional (PROFMAT) e fui aprovada em 2° lugar. Me lembro bem do meu patrão dizer 'não comemore a entrada, comemore a saída'. Sabia que tinha um longo caminho a percorrer, mas não tinha ideia de que teria mais distração do que deveria. Com três meses do início do Mestrado, descobri a gravidez. Eu estava trabalhando em três escolas durante o dia, dando aulas de dança a noite, fazendo as aulas do mestrado no sábado e grávida. Sabia que não conseguiria conciliar tantos pratos nessa balança e comecei pedindo demissão em uma 1 Mestra em Matemática pela UFG. Concursada Estadual pela Seduc. Professora da rede pública. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5952382223261048 630 Maternidades Plurais das escolas e parando de dar aulas de dança. Foi a primeira grande mudança necessária pela maternidade. Tive uma gravidez relativamente tranquila. Meu bebê nasceria até o dia 10 de janeiro e minhas aulas do curso de verão começariam dia 5 de janeiro. A prova de qualificação dependia do verão e aconteceria no final de fevereiro. Se eu não fizesse a prova naquele dia, teria que esperar mais um ano e meu curso atrasaria todo. Pois bem, meu filho nasceu no dia 27 de dezembro de 2014 e eu retornei para as aulas na universidade no dia 5 de janeiro de 2015. Com exatos nove dias de um parto cesárea. Ia pra faculdade eu, um RN, minha mãe pra dirigir e pra olhar o bebê, os pontos do corte e mais uma mala de coisas, afinal o curso era o dia todo! Venci o curso de verão amamentando durante as aulas, aprendendo a ser mãe e com noites de sono que nem existiam direito. Estudar e realizar as atividades em casa eram um dilema que exigia um sacrifício que só quem é recém mãe sabe. A minha sorte é que, como morava com a minha mãe, estava livre do serviço doméstico. O curso de verão durou até dia 24 de janeiro e no dia 27 de janeiro voltei para a sala de aula como professora. Financeiramente eu não estava pronta para diminuir tanto o salário, então segui com uma jornada tripla no primeiro semestre de vida do meu filho: mãe, professora e aluna. Se já era difícil manter uma rotina de estudos com o bebê, manter os estudos com um bebê e trabalhando quase custou minha sanidade mental. Não tive sucesso na primeira prova de qualificação. Tirei exatamente 0,5 pontos a menos do que precisava e assim precisaria repetir a prova no final do mês de julho. Apesar da frustração, me mantive forte e estudando. Junto comigo, outros 16 colegas da minha turma (de 26 alunos) repetiriam a prova. Assim que encerrei as atividades e aulas do primeiro semestre, estabeleci uma rotina ainda maior de quantidade de horas por dia para estudar. Eu não me perdoaria perder a minha vaga no mestrado por causa da qualificação. Estudei muito. Muito mesmo. Revezava entre bebê e livros dia após dia e fiz a prova tendo 90% de aproveitamento e sendo a maior nota da turma. Me senti vitoriosa, eu sabia do tamanho do meu esforço, mas ainda assim, por diversas vezes durante o mestrado, parecia que eu ocupava um lugar que não era meu. Me sentia menos que outros colegas do curso — composto por vinte e dois homens e apenas quatro mulheres. O primeiro grande obstáculo eu tinha conseguido vencer, o segundo era a tese. As disciplinas consegui passar em todas sem nenhum grande susto. Tecnicamente eu deveria apresentar minha tese a partir do mês de dezembro, mas obviamente estava inviável conciliar trabalho, disciplinas, maternidade e a escrita. Decidi por finalizar as disciplinas para só então começar a escrever minha tese. Ou seja, só comecei a desenvolver a tese de verdade quando meu bebê tinha onze meses e demorei onze meses desenvolvendo. Segui por um tema que não era meu preferido, mas era o que tinha “sobrado”. Nos onze meses que passei pesquisando e desenvolvendo meu trabalho — que tinha uma única referência — pensei em largar tudo pelo menos uma vez por dia. Incontáveis vezes escrevi com meu 631 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) filho dormindo no meu colo (santo computador portátil), ou durante a noite. Várias vezes ficava semanas sem mexer no meu trabalho pois meu filho adoecia e/ou as coisas no trabalho apertavam demais. Cheguei a ficar um mês sem aparecer na orientação. Meu orientador foi crucial para conseguir chegar até o fim, por várias vezes ele, que é pai de trigêmeos, me dava o incentivo necessário para não parar de escrever. Quando finalizei meu trabalho, eu simplesmente não acreditava e mais uma vez a síndrome de impostora me assombrava. Será que eu merecia mesmo o título? Será que eu não tinha falhado como mãe para conseguir escrever essa tese? Sentimentos que hoje me parecem distantes, mas que na época me deixavam frustrada. Enfim a semana da defesa chegou. Já não bastava a ansiedade a mil a semana inteira, no dia anterior a minha defesa, meu filho teve uma convulsão febril. Foi o momento mais aterrorizante da minha vida. Ver meu filho de 23 meses desmaiado nos meus braços, enquanto minha mãe dirigia loucamente, e sem poder fazer absolutamente nada. Chegamos no hospital com ele ainda desmaiado, conseguimos reestabelecer e ainda passei a noite inteira acordada monitorando para ver se ele teria algo de novo e, felizmente, essa cena nunca mais se repetiu. Logo cedo fui defender minha tese, sem ter conseguido treinar o tempo da apresentação em casa, sem ter revisto os slides, sem ter relido meu resumo, tendo passado a noite em claro e com a cabeça no meu filho o tempo todo. Eu, sinceramente, só tenho flashs do momento da apresentação. Acho que só consegui falar porque foi no automático de tudo que estava pesquisando há tantos meses e porque meu orientador foi um pai pra mim durante a apresentação. Quando saí da sala para que eles discutissem minha aprovação, desabei em choro, sozinha, e ainda ligando desesperadamente para ter notícias do meu filho. Meu orientador me chamou bem rápido, e minha aprovação veio. Inacreditavelmente eu estava a apenas algumas correções para pegar meu título de mestre. Me tornei assim uma mãe mestre, ou uma mestre mãe. Hoje sou concursada, fiz a prova do concurso grávida de 6 meses, recebi a aprovação do concurso menos de um mês antes de parir. Assumi o concurso trabalhando em mais uma escola, com 2 filhos, sendo um deles com apenas alguns poucos meses de vida. Iniciei a quarentena grávida de 32 semanas do meu terceiro bebê, com uma filha de um ano e seis meses e um filho com cinco anos. Vivi momentos aterrorizantes de medo do vírus e do parto, ao mesmo tempo que lidava com o regime de ensino à distância, tanto como professora quanto como mãe. Como professora: lidando com o desafio de gravar aulas, ensinar matemática à distância sem o contato imediato com o aluno, aprender a organizar horários com as crianças em tempo integral, receber um beijo dos filhos durante uma aula ao vivo, enfim, um desafio que foi bem intenso. Com dois meses de isolamento social, tive meu filho e pelo menos do papel profissional tive uma pausa. Como mãe: criar atividades lúdicas em meio a pandemia tem sido um desafio imenso e nem sempre satisfatório. Acompanhar o ensino à distância do meu filho, me exigiu uma nova versão de 632 Maternidades Plurais ser professora. Lidar com as frustrações das crianças presas dentro de casa dia após dia, sem contato com os amiguinhos, sem poder frequentar parques, cinemas, feirinhas e clubes tem me exigido muito mais. Estou em licença maternidade com três crianças em casa, duas delas em amamentação. Passo boa parte do dia sozinha com os três. Alimentando, ensinando, guiando, amando. Não tem sido fácil, mas seguimos com a ideia maior da maternidade: um dia de cada vez. Sei que o laço com meus três filhos está ainda mais forte e sei que essa conexão dos primeiros anos de vida é um bem permanente. Entendo o tamanho do meu privilégio de estar em tempo integral com meus filhos, principalmente em licença maternidade, pois não preciso me preocupar com datas, trabalho e horários, o que com toda certeza tem facilitado meus dias, na medida em que isso é possível. Mas ainda assim sinto falta da rede de apoio que teria fora dessa pandemia. Não desisti de estudar, de pesquisar, de voltar para a parte do aprender. Isso está inerente ao meu ser e, em breve, eu voltarei a ser aluna cientista mãe. Ou mãe cientista aluna. 633 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 6 Um mundo colorido na sala de casa: vivências da maternidade em tempos de pandemia Priscila da Silva Castro1 O encontro com a maternidade Sou uma recém mãe, minha trajetória com a maternidade em breve completará sete meses. Estou ainda me familiarizando com essa nova vida, aquela em que alguém depende de mim e eu nem mesma me reconheço. Recordo com muita clareza dos planos que fazia ainda grávida e das expectativas para vivenciar esse momento. Lembro de cada compromisso, comigo ou com outras pessoas, que posterguei ao final da gestação por estar muito cansada e pensar: Quando ela nascer, no momento em que ela dormir, eu retomo tal projeto. Não aconteceu! Não sei ao certo o que passava pela minha cabeça, não foi por falta de aviso, por não terem outras mulheres/mães/docentes/pesquisadoras que me servissem de espelho para o futuro que se desenharia. Mas quis acreditar que seria diferente. Que seria focada, que seria produtiva, que seria a mesma de antes. Não sou! Nem mesmo a sempre presente independência me pertence mais. No momento em que recebi minha filha nos braços percebi o quanto estar cercada por uma rede de apoio me seria essencial. E minha rede estava formada, contando inclusive com pessoas que eu não sabia que fariam parte tão diretamente dela. Meu esposo e eu somos docentes em uma Universidade no Sudeste do Pará, sou do Rio de Janeiro e ele, do interior de São Paulo. Não temos qualquer familiar por perto, algo que nunca havia pesado tanto quanto agora, em que eventos comemorativos foram completamente ressignificados. Mas, felizmente, recebemos meus pais pelos primeiros quatro meses de vida da minha filha e, sem eles, não realizo como seria. Três meses após me tornar mãe, passei a me cobrar de forma mais intensa a retomada da vida acadêmica. Retomei as orientações de alunos na biblioteca da Universidade, usava algumas horas da noite para escrever e ler algumas bibliografias há tempos esquecidas. A proximidade com o retorno dos meus pais para o Rio de Janeiro fazia acelerar essa necessidade de voltar, de retomar, uma vez 1 Doutora em Saúde Coletiva. Professora Adjunta da Faculdade de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5591239821993143 634 Maternidades Plurais que meu esposo já estava de volta as suas atividades e seríamos apenas nossa filha e eu, sozinhas em casa. Uma amiga, também recém mãe, porém com longos dois meses a mais de experiência, me alertou que nunca haveria tempo e que as madrugadas precisariam ser utilizadas ou não retornaria ao trabalho sem ter feito nada do que havia me proposto. Fui procurada mais de uma vez no meio da minha licença maternidade para tratar sobre a avaliação de estágio probatório de outros docentes, uma vez que ocupava cargo de direção e precisei negar, não sem culpa, e esclarecer que só retornaria após as minhas férias no meio de junho. Por outro lado, assumi a orientação de trabalho de conclusão de curso de uma turma de médicos de uma especialização que, por ser online, segue normalmente e, confesso que, mesmo exigindo um novo ritmo e muita organização, me fez um enorme bem. Agora, no meio desse caos eu penso, e se não tivesse feito nada? Afinal, a licença maternidade não é um tempo para cuidar da minha bebê? Eu não estava fazendo exatamente isso? Mas quando se vive imersa na vida acadêmica, qualquer coisa fora dela, por mais nobre e importante que seja nos parece ócio. E eu me culpava por isso. Acredito que a culpa ande de mãos dadas com a maternidade para toda mulher e conseguir me realizar lá e cá, como mãe e como profissional é o meu novo grande desafio. Agora, meu único desejo é que seja mais leve a cada dia. A assombrosa realidade da pandemia Meus pais retornaram para casa e, junto com eles também viajamos. Meu esposo precisava fazer uns exames para operar em São Paulo e aproveitamos para apresentar nossa filha para a família. Era dia treze de março quando chegamos com a previsão se ficar por quinze dias. Na época, os primeiros casos estavam sendo confirmados e começava-se a falar em quarentena. Ainda na minha sogra recebemos a notícia de que as aulas na nossa Universidade haviam sido suspensas, na época pelo período de um mês, mas seguem suspensas até agora sem previsão de retorno. São Paulo concentrava a grande maioria dos casos, o número de óbitos aumentava a cada dia, as prefeituras do interior começaram a determinar o fechamento do comércio. Por outro lado, estávamos na cidade onde meu marido cresceu, próximo a família e sem contar com a compreensão de que tínhamos uma bebê e queríamos fazer o isolamento. Arriscaria dizer que, cem por cento das vezes em que saímos de casa alguém tentou pegar nossa filha no colo, beijou e segurou sua mãozinha. Se isso já seria um risco para uma criança de quatro meses em outro momento qualquer, imaginem no meio de uma pandemia! O comércio fechou e as ruas e calçadas se encheram. Não tínhamos mais paz e nem saíamos de casa, nada resolveu! Passamos a receber visitas dia e noite, pessoas com presentes, que queriam matar as saudades, conversar, interagir. Não estávamos na nossa casa, não controlávamos e nem conseguíamos sensibilizar os moradores da casa para restringir as visitas ou mesmo sair somente caso fosse muito necessário. Acordávamos e não saíamos do quarto, passávamos o dia trancados em um cômodo com festas, churrascos e conversas no portão acontecendo ao nosso lado. E se alguém ficasse doente? Não havia resposta! O stress tomou conta da nossa rotina! 635 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Começamos a receber constantes e-mails da companhia aérea dizendo que o nosso voo havia sido cancelado. As notícias informavam que os aeroportos seriam fechados. Comecei a ter febre alta, fiquei um dia inteiro de cama, enquanto as festas seguiam sendo frequentadas, como se fossem férias. Recebemos mais um e-mail de cancelamento do voo, não pensamos duas vezes, vamos embora agora! Calculamos o tempo necessário para chegar até São Paulo, devolver o carro alugado, despachar as malas e remarcamos para o mesmo dia. Partimos muitos corações com a mudança de planos, mas ir embora foi necessário para ter paz. A viagem até São Paulo foi tranquila como nunca, com estradas praticamente vazias. Fizemos uma parada e a loja onde compramos água e algo para comer estava deserta. Devolvemos o carro e chegamos ao aeroporto. Na época, a orientação era pelo não uso de máscaras, que estas fossem deixadas aos profissionais de saúde. Para nossa surpresa, todo mundo estava de máscara (muitos também de luvas), somente nós três ali, em um local com grande circulação de pessoas de diferentes lugares e com grandes chances de contaminação sem qualquer proteção adicional fora os muitos frascos de álcool gel espalhados por todos os bolsos e mochilas. O isolamento no aeroporto quase deserto funcionava, não havia aglomerações. As pessoas nos olhavam de cara feia, nos julgando, afinal, qual a necessidade de estar com uma bebê em um aeroporto? É mesmo preciso viajar agora? Ouvi de uma senhora que passou por nós. No nosso caso era, precisávamos chegar em casa! Meu conforto veio da atendente da companhia aérea que explicou que não havia mais como sentarmos juntos pelo mapa do voo, mas que estes estavam partindo vazios e certamente seríamos realocados, como ocorreu. Estávamos visivelmente nervosos e, ao finalizar o atendimento ela nos disse: Vão em paz, vai dar tudo certo e vocês chegarão bem em casa. Foi o suficiente para mim... Na nossa conexão em Brasília, um aeroporto ainda mais deserto com poucas opções de alimentação. Fizemos os pedidos em um totem e recebemos por uma grade entreaberta. Nunca senti nada assim, parece que o mundo já girava diferente, a rispidez, os olhares tortos, me sentia em um filme desses de fim do mundo, todos agiam diferente. Mas valeu à pena, finalmente chegaríamos em casa! E um mundo colorido se fez Posso dizer que nossa quarentena começou no dia vinte de março e, desde esse dia, saímos de casa cerca de três vezes. Contamos com a sorte de ter um amigo, também docente, que precisa sair diariamente para levar o esposo ao hospital em que trabalha. Assim, semanalmente faço uma lista e recebemos nossas compras em casa. Não nos falta nada, temos tudo o que precisamos para seguir o isolamento à risca e nos mantermos seguros. Nas poucas vezes que saímos, ponderamos muito sua real necessidade. Minhas consultas de pós-parto foram interrompidas, sequer fui buscar os exames que havia feito antes de viajar. O acompanhamento pediátrico do primeiro ano de vida da minha filha foi suspenso por nós, julgamos que, se ela está bem e sem queixas, não vamos nos expor. Mas aí nos deparamos com o atraso do calendário vacinal. Fizemos uma vacina em São Paulo e seria necessário fazer outra na semana que retornamos 636 Maternidades Plurais para casa, que coincidia com imagens na televisão de idosos se aglomerando nos postos de saúde em função da vacina da gripe. Na época, a orientação do Ministério da Saúde era atrasar as vacinas e aguardar um pouco. Foi o que fizemos. O tempo passou e as vacinas seguintes começaram a acumular. Uma pediatra entrevistada em um programa conceituado chama a atenção para a importância de manter a vacinação, afinal, as outras doenças seguem circulando. Nos sentimos perdidos, o que fazer? Conversei com outras mães, li mais a respeito e, por fim, entrei em contato com a gerente da minha unidade de saúde de referência para saber sobre o fluxo de pessoas. Decidimos levá-la no dia e horário indicado como mais vazio. Nós a levamos por duas vezes nesse tempo para vacinar e, posso dizer que o sentimento beirava a síndrome do pânico. Não dormi na noite anterior, meu estômago doía, cheguei a suar frio. Meu esposo aguardava com nossa filha no carro enquanto eu esperava a vez dela dentro da unidade de saúde, lotada. Outra vez parecia um mundo paralelo! Pessoas sentadas lado a lado, conversando, sem máscaras ou com a máscara de forma inadequada, crianças brincando no chão, correndo de um lado para o outro. Como passar com nossa bebê naquele longo corredor até chegar na sala de vacina? E como retornar para casa com o coração em paz depois de tudo isso? Em menos de dez dias teremos mais uma dose e meu psicológico já está abalado. Seria um exagero meu? Os números não mentem e não param de crescer! São vidas interrompidas, famílias que sofrem por seus entes queridos. Digo e repito mentalmente quase que como um mantra, várias vezes ao dia: Não podemos reclamar de nada! Somos muito privilegiados! Quantas pessoas gostariam de estar na minha posição? Tenho meu esposo todos os dias aqui comigo, podemos ficar em casa e assim proteger melhor nossa família. Infelizmente, ter conhecimento desse privilégio não tem me impedido de sentir uma enorme frustração. Mas e os planos que eu fiz? Nossa viagem na páscoa para rever os avós e conhecer a cidade, a família e os amigos da mamãe foi adiada. Nossa viagem das férias, já paga para outro país está, por hora, suspensa. Mas as viagens são apenas detalhes. Voltando à época da minha gestação, lembro de passar pelo gramado do condomínio e concretamente visualizar um tapete, alguns brinquedos e minha filha sentada para um banho de sol. Essa cena, como tantas outras, nunca aconteceu. Fomos, talvez como muitos pais de primeira viagem, extremamente rigorosos com nossas visitas. Recebemos pouquíssimos amigos e, depois da notícia de novos casos de sarampo no Brasil cortamos as poucas visitas recebidas. Iniciamos uma quarentena sem saber. Moramos no Sudeste do Pará, a saúde aqui é extremamente caótica, faltam vários especialistas mesmo para aqueles que tem plano. Não podíamos nos dar ao luxo de deixar algum problema de saúde mais grave acontecer em função de uma negligência nossa. Hoje não tenho mais certeza se estávamos certos. Minha filha vai fazer sete meses na próxima semana, ela nunca pisou na grama do nosso condomínio, nunca passeou na orla da cidade, não foi a pracinhas e sequer interagiu com outras crianças. Além dos meus pais, com quem conviveu nos primeiros quatro meses de vida e com quem “fala” por vídeo chamada com frequência e dos familiares do meu esposo que conheceu por um breve tempo, 637 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) seu ciclo social se restringe a mamãe e papai! Parece ironia, uma vez que somos extremamente sociáveis, adoramos uma festa e celebramos todas as ocasiões possíveis. Nossa filha ainda não conhece essa nossa característica, as únicas comemorações que participa são os seus mesversários, onde somente nós três celebramos sua vida. Uma vida que foi por nós tão desejada, esperada, planejada. Por isso insisto que a pandemia e o isolamento social têm me levado a extremos de sentimentos. Se por um lado sou imensamente grata por tudo que tenho, por outro sinto uma tristeza profunda. Sou adulta, certamente minha vida será sempre marcada por esse período, é algo com o qual terei que lidar. Mas e minha pequena? Ela segue crescendo, cada dia mais linda, mais forte, mais saudável. Uma vida que desabrocha dentro de casa. Suas novas descobertas diárias se restringem ao espaço do nosso lar. Ela não faz ideia de que existe um mundo lá fora. Um mundo que sonhei tanto em apresentar para ela. Tudo o que ela conhece são nossas paredes, nossas vozes, nossos olhares, nossos cheiros. Como fazê-la entender que há muito mais? No meio do caos, criamos uma rotina confortável em que fazemos de tudo. Pela manhã tomamos café, trabalho até a hora do almoço, e ela brinca com o papai e cochila. Almoçamos, dormimos os três e ela brinca com a mamãe para o papai trabalhar até a hora de lanchar. Papai é o responsável pelo banho, eu troco sua roupa, faço massagem e amamento até ela adormecer. Temos também uma rotina de limpeza da casa, um cronograma para lavar, estender e guardar as roupas, nos revezamos para cozinhar e lavar as louças. Nosso sistema, implementado tão logo chegamos de São Paulo, tem funcionado desde então e me permitido sentir útil sem enlouquecer. Mas essas coisas todas são necessárias a nós, adultos! Seguimos criando uma criança dentro de casa, justo eu que prezo tanto por memórias felizes, e isso em muitos dias tem sido motivo de insônia. Não faz muito tempo precisei dar mais atenção a essa questão das experiências que estávamos proporcionando à nossa filha. Ela só terá esse primeiro ano uma vez, precisamos fazer dele memorável! Acredito que tinha dois meses na primeira vez que estive na praia, acampei pela primeira vez aos oito meses. Não tenho lembranças desses fatos, mas adoro ouvir sobre esse tempo tão distante. Se não posso oferecer o mesmo, farei por ela o que é possível. Assim, surgiu o mundo colorido, lúdico, musical. Ela fica no meio da nossa sala, mas às vezes fica também no meu quarto e em outras no quarto da minha pequena. A mobilidade desse mundo é uma vantagem incrível e fazemos uso dela com muita sabedoria. Enquanto a piscina do condomínio, os rios e praias não são uma possiblidade, se está calor, banhos de balde, de banheira e de tanque ganham espaço na nossa rotina. Parte do mundo colorido nos segue nessas horas também. Nele há histórias de aventuras, de princesas, de fadas. Há bonecas, ursinhos, potinhos coloridos, chocalhos, mordedores, musiquinhas e muitas gargalhadas. No mundo colorido estamos aprendendo a engatinhar, já conseguimos levantar apoiando nas coisas, ficar em pé é super-divertido. No mundo colorido só há coisas boas, há carinho, há amor, há sorrisos. O barulho que escutamos vem da gargalhada mais gostosa de uma boquinha linda e ainda sem dentes. No mundo colorido não há Covid-19, não há quarentena, não há isolamento social, não há morte, não há dor, não há 638 Maternidades Plurais sofrimento. Criamos um mundo colorido na sala de casa! Não podemos reclamar de nada! Somos muito privilegiados! Isso tudo, logo vai passar... 639 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 7 Às vezes falta fôlego… mas não é Covid, é sobrecarga materna! Priscila Marconcin1 Os desafios que a pandemia, pela qual estamos vivendo, me trouxeram, em relação à maternidade e à minha vida profissional, começaram muito antes do primeiro espirro na China. Sou mãe de duas crianças maravilhosas, Maria Luísa de 6 anos e Pedro de 2 anos. Sou doutora em Educação Física, professora universitária e pesquisadora, atualmente desempregada. Condição que demorei para assumir. Vivo em Lisboa, Portugal, terra que nos acolheu pela segunda vez. Já vivemos aqui quando minha pequena tinha apenas 6 meses, moramos por três anos para a realização de um sonho, o doutorado. Não consigo falar sobre o que estou vivendo hoje sem antes dizer um pouco do que já vivi. Os desafios da pandemia, acredito eu, trazem à tona aquilo que temos de pior e de melhor. E isso é construído ao longo de uma vida. Este texto vai flutuar entre passado e presente. Entre o que já fui e o que sou hoje. Sou filha de uma “mulher batalhadora”, entenda-se por “mulher batalhadora” uma mulher que casou, se formou em psicologia, foi mãe, passado três meses, engravidou novamente, e foi mãe pela segunda vez, trabalhou como psicóloga, vendeu bolo, decidiu fazer outra faculdade quando a filha mais velha tinha 5 anos, se formou em direito, trabalhou muito para dar “o que tinha de melhor” para as filhas. Para ela “o que tinha de melhor” era estudar em uma excelente escola e fazer aulas de piano, para nós era ouvir 365 dias por ano a frase: “não dependa nunca de ninguém, principalmente de marido”. Eu falo como mulher branca, classe média, heterossexual, casada e mãe. Esta é a minha realidade. Em julho de 2019, meu contrato como professora substituta na Universidade Tecnológica Federal do Paraná se encerrava. Foram dois anos maravilhosos, todos os dias eu agradecia por ter tido a oportunidade de estar ali, de exercer meu trabalho em um ambiente que admiro, com alunos que eu respeito e cercada por colegas de profissão que muito me ensinaram. Foram dois excelentes anos. Porém, o contrato acabou e não havia perspectiva, por causa do cenário político vivido, de que um novo concurso fosse abrir. Meu marido estava como bolsista em um programa de pós-doutoramento 1 Pós doutoranda em Atividade Física e Saúde pela Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6642518786436965 640 Maternidades Plurais na Universidade Federal do Paraná. Estava feliz, satisfeito, mas também vivendo em meio à muitas incertezas sociais e pessoais com relação ao futuro. Precisávamos de um plano B. Foi nesse contexto que meu marido recebeu uma proposta para trabalhar em Lisboa, posição excelente, coordenar um curso em uma renomada instituição de ensino, assim, decidimos em conjunto, que nossa vida iria mudar. Ele aceitaria o trabalho, viajaria primeiro, arrumaria o nosso lar e nós iríamos em seguida. Isso significou que eu seria mãe em tempo integral por 6 meses. Aceitei. Tinha meu dinheiro, poderia aproveitar meus filhos, principalmente o meu mais novo que usufruiu de uma licença maternidade de menos de 4 meses. Ok. Essa era minha nova realidade. Passou! Finalmente chegou o dia de nos reencontrarmos. 27 de novembro. Viajei com duas crianças. Morro de medo de avião. Logo na saída de Curitiba, uma tempestade em São Paulo faria nós permanecermos na aeronave em solo por duas horas. Ok. Respira. Brinca. Come. Filha chora. Eu queria chorar junto. Mas, a consolo com aquela sabedoria que só uma mãe no auge do desespero tem. Decolamos. Aterrissamos em Lisboa. Vida nova. Marido ansioso pela nossa chegada. Apartamento novo. Carro bacana. Bairro legal. Amei. Acho que vamos ser felizes aqui. Maria Luísa sofre com a adaptação na escola, eu ajudo, sou mãe, ainda não preciso pensar na minha vida profissional. Deixa janeiro chegar que as coisas ficam mais tranquilas para mim. Procuro escola para o Pedro. Fevereiro chega. Consigo um trabalho. Nada do que eu imaginava, mas já dá para começar, só duas vezes por semana. Chega meu cunhado, vem para procurar trabalho e quem sabe viver em Lisboa. Não sabemos muito bem seus planos, mas apoiamos e comemoramos. Três dias depois chega minha sogra. Vai ser bom, vai ficar até abril, tempo em que consigo adaptar o Pedro à escola e me dedicar ao meu trabalho. Tenho alguns contatos, vou começar um pós-doutoramento. Março chega, são os primeiros dias do Pedro na escola. Muito choro, sofrimento da separação, insegurança, ele frequenta três dias e adoece. Uma semana em casa para se recuperar e já vai retornar. Doce engano. No meu trabalho, no dia 10 de março, estou no meio de uma aula e uma senhora do centro de saúde pede licença, entra e diz: “não podemos mais continuar com as aulas, a sala destinada para tratamento do Covid-19 é mesmo ao lado”. Eu digo, ok, sem problemas, irei falar com a minha coordenadora. Ela diz, você não entendeu, a aula acaba agora. As alunas pegam suas coisas e eu fico quase paralisada. Ainda digo: “semana que vem me tragam o que solicitei, ou então na próxima, não sei quando iremos voltar”. Meu Deus! Eu realmente estava vivendo um estado completo de negação. A escola da minha filha mais velha também fechou. Eu penso, ok, está certo, temos que cuidar das crianças que também são muito vulneráveis. Nada de mais. Meu marido começa a dizer que a coisa é séria, que vai fechar tudo. Eu rio. Digo, você acha? Sabe quando nesse nosso mundo capitalista vai fechar tudo? Nunca! Não tem a menor hipótese de um shopping fechar, pense o impacto disso. Não vai acontecer. Ele diz que a faculdade onde trabalha já está começando a estruturar o trabalho remoto. Aí a gargalhada é maior ainda. O quê? Você vai trabalhar de casa? Jamais! Com as crianças fazendo barulho? Duvido. Dia 16 de março, meu cunhado recebe uma carta de demissão do restaurante onde estava trabalhando. Eu digo, poxa que pena, mas em abril eles vão voltar a te contratar. Isso não vai durar muito. Dia 18 de março, o presidente de Portugal decretou estado de emergência. O que isso significa? Eu realmente demorei para entender a nova realidade. As semanas seguintes foram um misto de “vamos aproveitar que estamos todos em casa” com o desespero de “aonde isso 641 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) vai parar”? Nas últimas semanas de março, organizei uma rotina meio estranha, fazia exercícios, escutava meditações e palestras motivacionais, brincava com as crianças, conversava muito com meu cunhado e minha sogra. Estávamos todos meio em choque. E eu, incansavelmente positiva, não parava de repetir que tudo ia melhorar e que no máximo depois da páscoa as coisas iam voltar ao normal. Meu marido completamente realista sabia que até o final do semestre as coisas não seriam muito diferentes. Foi tenso. Mas, por outro lado, estávamos em uma realidade muito mais favorável do que a maioria das pessoas. Meu marido tinha um contrato de trabalho. Tínhamos casa, comida e dinheiro para pagar as contas. No meu ouvido, ressoava a voz da minha mãe: “Não dependa nunca de ninguém, principalmente de marido!” Mas, não havia muito o que fazer naquele momento. Abril chegou. Minha ficha caiu. Isso não vai mudar tão cedo, tenho que me adequar à essa nova realidade e fazer o melhor possível. Meu trabalho já não existia mais. Pensei, tenho que produzir. Tenho que publicar. Tenho que correr atrás do meu objetivo profissional, me recolocar no mercado de trabalho, lecionar no Ensino Superior. Porém, nem sempre eu tive essas certezas dentro de mim… Eu construi uma carreira acadêmica. Desde o ingresso na faculdade, sempre participei de projetos de pesquisa e extensão. Ao finalizar o curso, alguns meses depois, ingressei no mestrado, ao finalizar o mestrado, também alguns meses depois ingressei como professora do Ensino Superior, me afastei para o doutoramento, retornei e poucos meses já estava novamente dedicada às funções como professora universitária. Mesmo assim, durante esses intervalos, esses meses, muitas dúvidas pairavam à minha cabeça, mesmo tendo dentro de mim a certeza de que sou boa no que faço e gosto muito do meu trabalho, a sensação de dúvida sempre existiu. Sempre me passou pela cabeça questões como: será que não devo fazer outro curso mais “a sério”? será que não devo arrumar um trabalho que me dê mais certeza? Será que não seria melhor arrumar qualquer coisa só para não ficar sem trabalho? Por mais estranho que isso soe, só em janeiro de 2020 em uma conversa com a minha irmã, que não deve ter durado mais do que 20 minutos, essa certeza veio. Ela disse, não fique se sabotando, você é boa no que faz, é apaixonada pelo seu trabalho, tenha paciência e lute pelo que você quer. Ouvir aquelas palavras da pessoa que eu mais admiro e respeito ressoou na minha alma. Pela primeira vez assumi a posição de que sou uma professora universitária desempregada e uma pesquisadora sem bolsa para exercer a pesquisa. Isso me fez pensar, quantas mulheres desistiram dos seus sonhos porque ouviram uma voz interior de que não são capazes, de que não são boas o suficiente. Agradeço a essa mulher que silenciou essas vozes dentro de mim. Agradeço por mais esse despertar de ser mulher e profissional. Abril eu assumi um outro comportamento, decido que vou trabalhar nos artigos que me faltam publicar. Aqueles que ficam sempre para depois, pois são mais trabalhosos, mais chatos, exigem mais. Durante o mês de abril, trabalhei e organizei dois artigos, comuniquei os demais autores, fizemos duas revisões coletivas e submeti dois trabalhos. Mas, vocês devem estar se perguntado, como? Com dois filhos em casa e com o marido trabalhando o dia todo com as portas trancadas. É ai que entra outra mulher. Minha sogra. Receber a sogra em casa é sempre uma questão muito complexa. Que espaço essa outra mulher vai ocupar na casa? 642 Maternidades Plurais Que tarefas ela exercerá e que outras tarefas ela não poderá assumir? Inicialmente minha sogra tinha passagem para o dia 23 de abril, então deixei de lado todas essas questões e em um ímpeto de egoísmo e de amor próprio pensei, tenho que aproveitar. Combinei com ela que as manhãs eu ficaria com as crianças, afinal minha pequena já estava em aulas virtuais e precisava de ajuda e, no período da tarde, ela assumiria com as crianças. Com isso, eu poderia trabalhar tranquila. E assim foi, eu trabalhei muito e trabalhei bem, contando com o prazo do dia 23. Mas, claro que mãe não consegue se “desligar” completamente. A porta do pai nunca pode ser tocada, já a da mãe… A da mãe está sempre aberta, seja para consolar, resolver uma discussão mais acirrada, escolher o lanche da tarde. Além disso, deixar com que minha sogra assumisse o controle da casa e dos filhos também foi um desafio pessoal. O que ela pode pensar de mim? Foram outras vozes e sentimentos que tiveram que ser silenciados durante este processo. Rendi. Consegui trabalhar muito bem. Além dos artigos, fiz um curso de especialização. E no meu interior um desejo confuso torcia para que minha sogra não voltasse, para que ela ficasse mais para eu poder trabalhar mais. E assim foi, passagem adiada para início de junho. Vibrei. Vibrei internamente. Posso trabalhar mais. Vou retomar aquele contato com o professor que falei em fevereiro e que gostaria muito que me orientasse para um pós-doutoramento. Vou enviar um e-mail para ele. Maio inicia e eu já tenho um novo projeto para me dedicar. Produzir um artigo em conjunto com esse professor. Porém, é de uma área em que eu não domino. Não interessa, vou dominar. Mas, é com uma análise estatística que nunca trabalhei. Não interessa, vou aprender. E foi assim que, durante o mês de maio, produzi o melhor artigo da minha carreira como pesquisadora. Sem nenhum financiamento. Sem pertencer a nenhum grupo. Variando o local de trabalho entre o quarto das crianças com as portas fechadas, a cozinha podendo ser interrompida a qualquer momento ou a sala com toda a confusão das crianças sendo crianças. Ressalto novamente o papel da minha sogra. Por muitas vezes, vi no semblante dela o cansaço. Não é fácil assumir os cuidados das crianças. Por muitas vezes, ouvi as lamentações de quem gostaria muito de voltar para sua rotina, para o seu lar. Me senti egoísta. Mas, eu estava feliz. Estava feliz porque tinha uma mulher para me apoiar. Tinha uma mulher que poderia assumir os cuidados enquanto eu me dedicava à minha vida profissional. Quem é essa mulher que hoje cuida da minha casa e dos meus filhos, e indiretamente cuida de mim, e me ajuda a crescer? Me dá um fôlego para subir minhas escadas. Essa mulher é nordestina, mãe de dois filhos. Teve um casamento difícil e se divorciou para buscar a sua felicidade e a dos seus filhos. Educou os meninos da melhor maneira possível. Como a minha mãe, que também permitiu que ambos estudassem em uma das melhores escolas de Recife. Conquistou uma casa e se livrou do aluguel. Casa que ela se orgulha muito e tem muito apresso. Por um tempo, teve que deixar os filhos morando sozinhos, adolescentes com 16 e 14 anos e foi trabalhar em outro estado, para mandar dinheiro para os filhos estudarem. Sempre foi pulso firme e amorosa na medida certa. Teve por trás dela outras mulheres também. Uma mãe e uma irmã com quem pôde dividir os cuidados na criação dos filhos. Hoje vive sozinha. É independente e feliz da sua maneira. Gosta das coisas do seu jeito. 643 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Também viveu sem depender de homem nenhum, para nada. É mais uma mulher apoiada por mulheres. Talvez ela não imagine que eu a vejo dessa maneira, pois nunca verbalizei isso para ela. Eu a admiro muito e a agradeço. Um dia minha filha entrou no quarto e falou, mãe, chega, para de trabalhar um pouco e vem brincar com a gente. Eu respirei, peguei nas duas mãos dela, olhei nos seus olhos e disse: — Eu não posso filha. Sabe por quê? Porque eu estou subindo de escada, enquanto muitos homens estão dentro do elevador. Ela deu risada como se a mãe estivesse ficando doida, falando coisas sem sentido. E eu continuei. Nunca se esqueça disso, para nós mulheres muitas vezes o único caminho que temos para subir são as escadas. É difícil. É pesado. Falta fôlego. Mas, quando percebemos que tem um elevador subindo ao mesmo tempo e indo muito mais rápido o fôlego vem. Ganhamos uma força indescritível nas pernas e subimos mais rápido. Minha filha ouve muitas vezes minhas reflexões sobre o feminismo e o ser mulher. Meu filho também. Eu ouvi. De um jeito diferente. Mas, ouvi. Sempre fui incentivada a não desistir. Minha mãe nunca falou sobre feminismo, porém sempre falou sobre feminismo, se é que me entendem. Pode parecer que estou com raiva dos homens e não acredito no apoio masculino, mas isso não é verdade. Meu marido é um companheiro excelente. É um homem muito honrado e que me vê com muito mais potencial do que eu mesma me vejo. Ele apoia todos os meus projetos e sonhos. Talvez seja eu que não tenha sensibilidade para ouvi-lo. O fato dele, nesse momento, ter se fechado mais para trabalhar é justificado pela configuração que estamos vivendo hoje. Ele é o único responsável por manter quatro adultos e duas crianças. O machismo também afeta os homens e ele cresceu com a mensagem de que era o “homem da casa”, o que significava garantir o sustento e a felicidade de todos. Já verbalizei muitas vezes de que ele não é responsável por mim. Nem pelo meu sustento nem pela minha felicidade. Mas, sei que ele carrega essa responsabilidade. Meu cunhado, que também passou essa quarentena junto com a nossa família, também me ensinou muito. Ele é padrinho dos meus dois filhos. E por muitas vezes assumiu também o cuidado com as crianças. De um jeito só dele, que eu observei e admirei de longe. No final de maio, quando começou a esquentar decidi desfraldar o Pedro. Fui ao mercado, comprei 10 cuecas e, pensei comigo, hoje eu não trabalho, pois a cada 15 minutos vou ter que levar o Pedro no banheiro. Comecei a trabalhar e, antes da primeira pausa, escutei meu cunhado levando o Pedro para fazer xixi. E isso permaneceu pelos próximos dias. Vi meu cunhado inventar jogos para entreter minha filha mais velha. Vi ele perguntar se eu precisava de alguma coisa, se eu queria uma xícara de café para ficar mais desperta para estudar. Senti uma admiração pela mulher, mãe e profissional que eu sou vindo dele. Senti respeito. Senti que um homem tem, mesmo sem ser pai, as mesmas condições de cuidar e criar dos filhos que uma mulher. Estamos em junho. Consegui neste período submeter três artigos. Ainda vou submeter mais um. Fiz uma formação online de 60h. Fiz um curso de formação online de 120h. Iniciei um projeto de aulas de exercício físico e autocuidado online, tenho hoje cinco alunas. Estou no momento construindo meu projeto para iniciar no pós-doutorado. Não sei se teria feito tanto pra mim, para minha vida profissional se não fosse o apoio dessas mulheres. Além delas tenho um grupo de amigas que troca644 Maternidades Plurais mos muitas mensagens, verdadeiros relatos de vida e que sempre me apoiam. Nos momentos de dúvidas e incertezas, foram o fôlego que me faltava para subir minhas escadas. Eu acredito em uma sociedade que caminha para ser mais justa, mais igualitária, mais humana. No entanto, acredito muito mais na força das mulheres. No apoio que uma mulher pode oferecer a outra mulher nos momentos mais difíceis. O fôlego que muitas vezes nos falta vem sempre de outra mulher. Subimos pelas escadas, mas quando chegamos lá em cima estamos mais fortes! É nisso que acredito. Agradeço e honro a todas essas mulheres que me cercam e que me ajudam a ser mulher, a ser livre e a ser feliz. 645 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 10 8 Um corpo marcado: ancestralidade e reflexões sobre sexualidade de uma mulher (mãe) cientista Priscilla Almaleh1 Este texto surgiu como um desafio. Muito desafiante, aliás. Apesar da leitura e da escrita estarem dentro da minha rotina como historiadora, venho me questionando sobre essas ferramentas de linguagem, principalmente, a partir de uma crítica feminista à ciência. Como diz Djamila Ribeiro, o primeiro passo para a mudança social é a teorização. Minhas leituras, minhas experiências e, principalmente, a minha ancestralidade, me fizeram pensar na construção dos textos, da linguagem acadêmica como um espaço de privilégio, inacessível e inteligível para a grande maioria das pessoas, enfim, dessa inacessibilidade e do valor da minha experiência. Como juntar tudo isso em um texto? E em um momento tão conturbado socialmente surge essa oportunidade, em que me deparo fazendo um texto mais do que autoral, um texto que parte totalmente de mim. Um texto que me faz manter a confiança no meu trabalho, na minha vida acadêmica, mas, especialmente, a confiança no meu propósito de vida. Essas linhas, nada mais são, do que uma reflexão e exposição da busca sobre quem sou e o que quero ser bem como a retomada na minha história. Afinal, história pode ser isso, libertação. É conexão com minhas ancestrais. Em um primeiro momento, pensei em falar sobre sexualidade, uma questão que me atormenta, me sufoca, mas que satisfaz. No decorrer da escrita, vi o quão difícil é falar sobre. Quão íntimo, porém libertador. Vi, também, que para falar de mim, precisei me reconectar e no fim foi isso que eu escrevi. Um complexo de tudo. Mas, como não ser? Se todos os dias precisamos acordar e ser “fortes”, “dar conta”, pensar em nós, na família, nas amigas, na casa, na comida, no afeto, na responsabilidade de criar pessoas que se importem, em um mundo de fachada e na nossa ciência desmerecida e desacreditada por tantas pessoas nos dias atuais. Ancestralidade... 1 Mestra em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduada, Mestra e doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista de pesquisa Capes/PROSUP. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6030197090822544 646 Maternidades Plurais Pensar as nossas ancestrais é pensar em mulheres que fizeram parte da nossa essência. É reviver como elas lidavam com as situações, filtrar e ressignificar. Espero que vocês entendam a lógica. Com todas as reflexões que este texto trouxe, eu constatei que vivi uma infância e uma adolescência com a minha sexualidade negada. E isso não significa falta de experiência sexual, mas falta de conhecimento sobre corpo, sexo e, principalmente, autoconhecimento. Me questiono: por que a minha sexualidade foi negada? Está aí um grande problema. Para explicar isso, eu vou parar e voltar a me apresentar. Eu sou a Priscilla, como devem ter lido, autora deste texto, mas prefiro que me chamem de Pri. Nesse processo de busca pela minha essência, eu vi que gosto de manter relações abertas, por mais que elas machuquem, então, por favor, me tratem por Pri. Mulher branca, com recém completos trinta anos, filha de mãe solteira e neta de mulher que teve que se virar. Aí. Aí. Eu vou ter que parar mais ainda para vocês me localizarem nessa trama toda. Minha avó — como a maioria de seu tempo — foi uma mulher massacrada pelo seu tempo. Inteligível para hipócrita burguesia e apunhalada pelos seus. Uma outra mulher branca, que ressaltava sobre sua ascendência alemã, típica da época. Uma menina arrancada da infância, estuprada aos 14 anos, jogada na rua. Casou para comer, se divorciou em um período muito, muito difícil para as mulheres pobres, em que as opções eram quase nulas. O que restava para uma mulher pobre e divorciada no início da década dos anos 1950? Prostituição e emprego doméstico. Ela fazia ambos os trabalhos. Como historiadora, afirmo que não foi só a minha avó que precisou se “virar”, mas, sim, a maioria das mulheres pobres. Esqueçam os preconceitos morais e pensem na exploração dos corpos, no subemprego — que ainda é —, do emprego doméstico e da prostituição. Pensem isso nos anos 1950. Ela viveu todas as cargas que isso podia gerar. Seu corpo deixou de ser seu, seus filhos não lhe pertenciam. Como prática histórica de mulheres pobres, ela também precisou se desfazer, abortar e abandonar. Minha avó também era uma mulher que praticava rituais. Minha avó baixava o santo, como se referiam, benzia, jogava cartas, praticava cura e conforto. Todos brancos, racistas — infelizmente —, mas criados no meio de pretos velhos, do linguajar escravo e da vovó Benedita, guia espiritual. Cantos, rezas, espiritualidade, seguranças, trabalhos. Pensem no estigma! Acredito que meu potencial como historiadora das mulheres populares da cidade de Porto Alegre, no final do século XIX, vem desse compromisso. Ressignificar essas práticas. O triste é saber que ela morreu na miséria e sem o entendimento da maioria dxs filhxs. Não entendia muito bem, no que sua espiritualidade refletia e hoje fica a curiosidade de saber como ela adquiriu esses dons. O fato é que essa nossa espiritualidade familiar sempre teve uma chama acessa. Sonhos, dores e sentimentos. Isso fez parte da criação da minha mãe, uma menina abandonada pelo pai, a mais velha que ficava responsável pelos irmxs, que cresceu de doações espíritas e que diz que fez um “trabalho” — no sentido espiritual — para casar e sair da fome e dos compromissos com xs menores. Menina de pé descalço que dormiu na frente da praça da Santa Casa, mas que pela sorte, não foi abusada, porém viu muita coisa. Até lobisomem. Estranho, né? No entanto, a mente de uma criança é livre, e essa referência, metade homem e metade animal, me deixa em conflito. No casamento uma esperança, mas a realidade, solitária. Como outras tantas donas de casa dos anos 1980, com três filhxs, cansou. Cansou das traições e da vida. Foi viver uma vida mais difícil ainda, sozinha 647 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) com três crianças, precisando de doações e indo na porta da Igreja, chorar e pedir uma casa. A crença sempre presente. Diferente da minha avó, ela nasceu com o estigma da prostituição e precisou utilizar maneiras de separar a honra dela com a reputação da minha avó. E por que escrever tudo isso? Essas são as minhas raízes. Doloridas? Sim. Porém, essa é a realidade de tantas. Isso ainda não mudou. Isso, também, traduz a minha sexualidade e a negação dela por muitos anos. Voltando só um pouco no tempo. Sim, isso faz parte do nosso fazer histórico, ir e voltar, voltar e ir, tudo ao mesmo tempo. Nestes dias de pandemia, fiz uma apresentação, em formato virtual, sobre um texto para uma disciplina da pós. Um texto da Lélia Gonzalez, que eu amei, mas que me deixou nervosa. No meio da tarde, uma amiga, a qual eu já tinha confidenciado nervosismo, alertou sobre algo que eu fiz: pedi sete ou oito vezes desculpas em uma apresentação de no máximo quarenta minutos! Me desculpei pelo possível barulho, pelo possível desentendimento de uma leitura, pela tossida. Enfim. Me desculpei pela minha insegurança e por coisas que talvez — possivelmente — ocorressem. Isso gerou desconforto, o que me fez ver que, apesar de termos — eu e minha mãe — lutado tanto para minha formação, para que uma mulher nessa família contasse uma trajetória de vitórias, ainda existia um lado, digamos que, subalterno. Eu tive que mergulhar nas minhas memórias para achar fragmentos que fizessem sentido. Nessa retomada eu precisei entender como ela, minha mãe, tratava certas situações. Lembrei como ela aceitava o espaço destinado a ela, esse mesmo, o de inferior. Espaço esse em que “doutores”, pessoas com dinheiro, tinham privilégio. Quem são esses doutores? Geralmente oportunistas dxs pobres. Vivi isso de perto com algumas pessoas de meu círculo íntimo. As mulheres pobres são conduzidas a aceitar determinadas coisas, em não se posicionar, desculpar e estar disponível sempre, seja na vida afetiva ou laboral. Diante disso, precisamos sempre nos desculpar. Tudo tem a ver e tudo faz sentido. Esse meu processo de autodescobrimento vem do mesmo ponto que é compreender como nossas escritas são direcionadas e como é difícil sair dessa relação. A educação nem sempre é libertadora, apesar de acreditar em todo seu potencial, ela ainda é uma máquina ideológica do capitalismo, em que só alguns valores ainda são mais interessantes de apresentar do que outros, direcionando e conduzindo os corpos, de modo a excluir a pluralidade. Uma máquina de modelagem. E como desvencilhar disso e saber o que realmente me afeta? O que, como mulher que foi criada, realmente me satisfaz? Não sei. Está aí outro exercício que eu me vejo descobrindo aqui. Abismos e reflexões... E o que tudo isso tem a ver com maternidade e ciência? Tudo. Como parto da minha experiência, do meu relato de como me descobri mulher, desejada e desejável após a maternidade e após a descoberta de teorias feministas. E não, eu não acredito na maternidade como um conto de fadas. A partir do momento que eu me descobri grávida — de forma indesejada, apesar de ser privilegiada, não nego — comecei a perceber os impactos na mudança do meu corpo, do meu tempo, das minhas decisões de vida, do meu rendimento acadêmico e, enfim, em todas as esferas da vida. Porém, não é nada novo o que estou falando. 648 Maternidades Plurais As mães ainda são vistas, como mães. É isso. Mãe é mãe, não é mesmo? Só muda o endereço. Não, não é mesmo. Nem todas as mulheres colocam a maternidade acima de tudo, no sentido que foi socialmente construído a nós, mães, o que não significa falta de comprometimento com as crianças, mas sim, aceitar que não temos direito sobre nossos corpos, quem dirá, nossas vidas e nossas formas de relações. O fato é que mães transam. Mães também são mulheres que desejam e querem se sentir desejadas. Mães buscam o prazer no seu corpo e em outros corpos. Gostaria de estar escrevendo este texto na expectativa de contar um relato mais libertador, mas ainda é um tema complexo. Pensar na sexualidade negada das meninas, adolescentes e mulheres e a maternidade como um local onde as mães são santificadas me desconectou, confesso. Isso. Me desconectou. Me fez perceber que todas as relações que eu tive não eram minhas, eram para outros, eles, homens. Assim fico pensando no meu lugar no meio de tudo isso, como uma mulher que busca novos conhecimentos sobre sexo, corpos e desejos. Eu fui criada por essas mulheres que já apresentei. Como ter uma relação saudável sobre sexo quando todas as relações delas não foram? O fato é que a maternidade tem diferentes lados, tem mulheres que adoram todo o processo, outras não. E precisamos falar sobre isso. Precisamos falar sobre como algumas mulheres abrem mão de muitas esferas da vida só porque são mães, o que não é legal. Precisamos falar sobre sexualidade e liberdade de corpos, liberdade de relacionamentos e prazeres, porque, repito, a sexualidade é negada para muitas meninas e mulheres. Bom, para falar sobre sexualidade, é preciso pensarmos na construção dos relacionamentos. Outro assunto tabu. Mulheres livres? O que é isso? Liberdade não é transar com todo mundo. Isso é uma falácia capitalista liberal que usufrui e terroriza os corpos femininos em prioridade aos masculinos. Liberdade é entender os processos, ter conhecimento e ressignificar. Bom, pensem comigo. Quando falamos sobre relacionamentos, logo os associamos à heterossexualidade e à monogamia. Mas, uma relação não precisa ser assim, ela pode se moldar da forma que melhor nos adaptemos, desde que haja conhecimento e responsabilidade. Há muitas formas de relacionamentos, há muitas estratégias de convivência e de exercer a sexualidade. Neste meu processo de descobrimento, eu questiono a construção dos relacionamentos baseados em relações de poder, em que só um corpo é o monogâmico, porque a história já nos mostrou os casos de infidelidade masculina. Até que ponto, como feministas, conseguiremos mudar uma sociedade — sendo que ela é completamente impregnada de complexas redes de poder — sem modicarmos nossas práticas e entendermos todas as implicações sem negacionismos? Feministas que não se repensam, não pensam nos seus privilégios e se voltam somente para as opressões, não estão fazendo o trabalho completo. Esquecem das nossas ancestrais que carregaram um mundo nas costas e o compromisso que temos. Esquecem os explorados na construção da nossa Amefricanidade. Conceito esse que me gerou infinitas desculpas, como viram, mas que me abriu um horizonte. Lélia Gonzalez, intelectual negra que expõe o racismo e o sexismo na construção cultural do nosso território e mais, explica as nossas raízes. 649 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Entretanto, apesar dos avanços intelectuais e de todo o processo que já conhecemos com as mulheres que ascenderam dentro da academia, continua-se sem falar sobre maternidade. Talvez, porque, seja um assunto que reflete a um espaço que desejamos tanto separar, mas que, neste momento de pandemia, nos aproxima muito: o lar. Sabemos que esse espaço é um local de privilégio. Que na história, a maioria das mulheres vieram da classe trabalhadora, muitas delas, escravizadas, sem tempo para o monótono lar. Talvez, isso seja reflexo das consequências de um feminismo liberal, adotado pelo capitalismo como uma estratégia de negócios, em que os métodos contraceptivos deram falsas sensações de liberdade, falsas sensações de poder sobre os corpos e a sexualidade, em uma sociedade em que apenas algumas mulheres conseguiram ascender em posições de poder — e ainda — negando a maternidade. É, talvez isso faça sentido. Outra coisa: também fui criada dentro de um padrão de estética, bombardeada pela geração “corpos saudáveis”. Nós, mulheres, não nascemos desconstruídas. Não é fácil aceitarmos nossos corpos e entendermos eles como livres, porque eles não são. Como não nos cobrarmos por uma estética se ela impõe seu espaço a todo momento? A realidade é que é difícil mudar as consequências de anos de convivência com uma cultura sexual em que só o corpo do homem é pensado para o prazer, o da mulher, apenas um estímulo para a prática dos atos sexuais que são explorados pelo capitalismo, pelo machismo e racismo, como a pornografia, o cinema e a mídia reproduzem. Não nos deixam pensar sobre sexo em uma perspectiva sensível e de conhecimento de nossas próprias vontades. É isso. Fui mãe no mestrado. Qualifiquei uma semana antes de parir e defendi com dois bebês. Esse processo dolorido, de se entender como mãe, como mulher, companheira, amiga, dona de casa e intelectual se estende para muitas esferas. Perpassa muitos caminhos, muitas identidades, e só ali, quando eu vi que os espaços iriam se fechar, em que eu tive que lutar muito para não desistir dos meus sonhos, foi que eu parei, sentei e me ressignifiquei. Mulheres que não são mães talvez demorem mais para perceber como nós precisamos privilegiar umas coisas dentre outras ou nos sobrecarregamos. Não entendam o peso que é criar seres humanos neste mundo que beira o colapso. Fica aqui a minha crítica às feministas, principalmente às acadêmicas. Olhem as colegas mães, as escutem, carreguem também essas demandas como suas. Compreenda a diferença da maternidade nas diferentes camadas sociais e raciais. Há urgências nas políticas públicas. Há mães que perdem seus filhos pelo racismo, mulheres violentadas pela dor mais profunda, que é perder os seus. Sabemos que a maternidade é usada pelo capitalismo como forma de benefício sobre o nosso corpo. Mulheres mães têm menos acesso ao mercado de trabalho, acabam tendo que aceitar meios de vida exploratórios e de violência por causa das crianças, além de outras questões que não são menos exploratórias e que fazem parte desse mecanismo político, como vou pontuar: Direito de escolha: a mulher não tem direito sobre a escolha da sua vida. Não tem direito de escolha sobre seu corpo. Antes, durante e depois. Não tem direito de escolha pós-maternidade. Ou vocês pensam que é simples sair de uma relação abusiva, ou de qualquer relação, com crianças no colo? Sem ter para onde ir? Sem meios de sustento e redes de apoio? Não é, e ainda, precisamos 650 Maternidades Plurais pensar nas pequenas e pequenos. Não exijam algo que não podemos dar. Perdoem os nossos “comodismos”, eles doem. Sobrecarga: a mulher que tem filhos e tem que de se dividir em tarefas de casa, a criação das crianças e a pesquisa, o compromisso com a ciência, como eu, é uma mulher sobrecarregada. Ponto. Não, não é uma mulher forte, por mais que motive nos virem como excepcionais. Nós somos cansadas. Por mais que as mulheres tenham parceria com as crianças ou rede de apoio na criação e na organização da casa, ainda assim possuímos uma sobrecarga gigantesca. Essa divisão continua desigual. As tarefas são invisíveis. O cuidado é invisível. E até que ponto nós, mulheres brancas e privilegiadas socialmente, não exploramos outras mulheres na criação de nossos filhos? Pensemos nossos privilégios e onde está a raiz da nossa luta! A mãe: a figura da mãe é algo muito complexo de desmistificar. Mãe é santificada, sagrada. Claro, ela se doa de corpo e alma, mas ela também é uma pessoa, uma mulher. Mãe e cuidado são sinônimos intrínsecos. Tiraram o desejo sexual das mães. Seja pela sobrecarga, como também por toda essa dramatização na figura da mãe. Mas, me pergunto, até que ponto, nós mesmas não abrimos mão disso? Não sonhamos com uma maternidade perfeita, não julgamos e não apontamos dedos para outras mulheres? Estética: a maternidade traz de fato um corpo marcado. Como mulheres vivemos dentro de um formato de beleza, que nos é exaltado a todo momento pela apropriação dos corpos, como disse, seja pelo capitalismo como forma de estruturação de poder e a colonialidade como organização social. Nossos corpos e mentes sofrem as consequências de não corresponder a uma estética marcada. E nem sempre o conhecimento sobre como foi estruturada a interferência nisso tudo é suficiente. Somos humanas e não redentoras. Muitas vezes sentimos as marcas da gravidez, o que reflete, e muito, na nossa sexualidade. Nem toda a maternidade é planejada, desejada e aceita. A maternidade pode ser negativa, o que não significa ser negligente com as crianças, mas ter uma percepção diferente de como sentir o peso do maternar. Fim. Antes de exigirmos uma maternidade livre, precisamos pensar sobre o que é liberdade, o que significa, mas, inicialmente, é revisitar as nossas referências. Monogamia? Sexualidade? Maternidade? Ser mulher? Tudo está entrelaçado, posto e pode ser revertido, mas é uma luta contínua, diária e sofrida. Precisamos pensar nas nossas ancestrais, com carinho, admiração e com crítica. No meio de tudo isso tem uma mulher, uma mulher em construção. Uma mulher marcada pela maternidade. Porém, a maternidade, como essa construção social, não me define, a coloco como uma dentre as identidades que exerço. É errado? É errado buscar se conectar de forma livre? Para nossa sociedade é. Os marcadores de relacionamentos, de corpo e vida estão impregnados nos movimentos, na vida acadêmica e nos espaços que eram para ser acolhedores. Percorremos uma eterna busca para transcender as experiências que diziam para termos em um processo de re-imaginação da própria existência. É reinterpretar a vida, a sexualidade, a forma como fomos interpretando as informações, 651 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) os conhecimentos que nos foram passados e tudo que filtramos e que nos faz ter uma visão sobre a forma de existir. Um corpo que existe. Este texto é sobre mim, mas espero que signifique, de alguma forma, algo para você. Gratidão por ter chegado até aqui. 652 Maternidades Plurais 10 9 Um pouco de mim morreu quando você nasceu Quézia Lopes1 Não quero mais andar sozinha. Existo em toda minha potência. E tantas formas há de existir quanto de afetar e ser afetado. Maternidade é sobre afetos e atravessamentos. É sobre partidas. Partir e nunca mais voltar para o lugar de onde se partiu. É sobre abandonos também, às vezes do outro, às vezes de si. A mulher mãe tão poucas vezes pode escolher, pode decidir. Isso tem atravessado meus dias, cortando-os, mutilando-os. O que eu queria agora é um encontro com a mulher que fui. A jovem inconsequente que fabulava castelos de areia e a mulher mãe preta e feminista de hoje. Meu medo me guiou até aqui, e, de certa forma, você também, filho. Você esteve comigo até aqui. E choramos juntos muitas vezes quando nem eu nem você nos compreendíamos, choramos porque tantas vezes tivemos de nos aturar, tanto tempo juntos a ponto de confundirmos quem era você e quem era eu, e quem dependia de quem. Não importa o tudo que eu fale ou sinta, eu serei sempre mãe. Esse é meu lugar, minha condição, não há como suspendê-la. Não conseguirei, nunca mais, dizer ou fazer qualquer coisa desconectada do meu lugar de mãe. A maternidade determinou minha existência. E se não há como mudar isso, devo aceitar? Não se pode deixar de ser mãe nem por um minuto, isto, a partir de agora, está impregnado em quem sou. Me assustam os amores eternos, definitivos, como se nada nunca mudasse. Mas, você vem me ensinando a senti-los. Não que eu ache que mães amam para sempre, eu acredito que os encontros nos mudam, mas há tanta romantização em torno de nós que nem sei mais o que é coerção social e minha própria medida de amor. Ser todos os dias atravessada por você me ajuda a aceitar ou recusar isso. Ainda não sei o que senti no primeiro minuto em que te vi, mas sei que só aceitei a maternidade quando já haviam se passado cinco longos anos desde nosso primeiro encontro. É preciso aceitar (ou recusar) a maternidade, ela não vem circunscrita em nós. A maternidade forjou minha identidade, mas meio a contragosto. Eu não escolhi. Mas, o que na vida se pode escolher? Eles falam de livre arbítrio, aquilo que só algumas pessoas têm. Quando você nasce mulher, no seu primeiro ano de vida, já tentam te convencer da maternidade. É possível escolher ser mãe quando já decidiram por você? 1 Bacharela e Licencianda (concluinte) em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5665931348929332 653 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Eu digo de um modo completamente autônomo, é possível escolher? Nascer mulher determinou minhas escolhas, nada autônomas, e a maternidade determinou quem eu sou, me levando até você, filho. Quero te ensinar empatia, para que, quando você ler essa carta, entenda minhas palavras sem julgamentos morais, ressentimentos ou equívocos. Tem sido muito caro a mim ser mulher e mãe. Caro porque toda construção implica em desconstrução, todo nascimento implica em morte, toda mudança implica em dor em alguma medida e é custoso mudar. Sei que também determinei sua subjetividade, não foi apenas você que determinou a minha. O tempo veio, como as águas dessa praia, me levou para longe de mim, mas te trouxe para mais perto, como se dissesse, “deixa ela ir, não sem dor, mas abraça aqui esse alguém que você mal conhece, que será sua mais longa relação, um longo afetar-se mutuamente”. Deixar morrer um pouquinho, para que outras coisas, afetos e pessoas possam nascer. Eu nunca tinha enxergado de verdade minha mãe antes de você chegar, filho. Hoje, eu a vejo. Eu vejo o quanto a maternidade também determinou quem ela é, principalmente para mim, que até alguns anos atrás só via nela maternidade, cuidado e proteção. Minha mãe poderia ter sido tantas coisas, mas para mim ela tornou-se apenas mãe, me contentei, com o resto do mundo, a reduzi-la, porque somos ensinados a esperar apenas cuidado e amor incondicional de mães. Não sabia o quanto isso é doloroso. E é por isso que te digo que o medo me guiou até você. Com o tempo, você se tornou o repositório das minhas expectativas. Isso é tão cruel com você e foi cruel comigo. Me ensina a te deixar ser você! Você veio para me tirar desse lugar autocentrado onde me isolei. De repente mãe e mãe de um menino autista, precisei desconstruir tudo ao meu redor. A maternidade chegou me trazendo presença e solidão, por vezes, não havia ninguém perto de mim, filho, só você. Não quero romantizar a dor, nem aceitá-la como natural ou necessária. Por tantas vezes, você sofreu comigo e eu com você. Quero te tirar dos lugares onde o meu medo te coloca. Quero te tirar dos lugares onde as minhas expectativas e o meu desejo por segurança te colocam, porque eles, numerosas vezes, anulam ou diminuem sua capacidade de agir, aprender, sentir. Descobrir seu diagnóstico, em um primeiro momento, suspendeu minhas expectativas, elas caíram em um grande vazio, porque eu te reduzi, porque eu olhei para você com os olhos amargos e descrentes de quem patologiza alguém, de quem mede ou hierarquiza capacidades, necessidades. Você foi me tirando desse lugar, você mudou esse olhar. Eu não via tantas felicidades na vida, aí, chegou você, querendo descobrir um mundo que eu já conhecia, mas parecia que o mundo que você agora descobria era tão diferente, tão mais encantador que o meu. Será que estamos vendo ou falando da mesma coisa, do mesmo lugar? Me conta mais sobre ele… Me ensina a entender que quando você fala do mundo, você me diz mais sobre você. É você que vê o mundo diferente. Não foram apenas seus medos que me guiaram até você, foram também os afetos, as descobertas, as alegrias, o desejo constante de conhecer. Olhares de mundo. 654 Maternidades Plurais Você me ensinou que você não é a negação de um padrão ou da normatividade, você é a afirmação da vida, tão diversa quanto tantas pessoas há no mundo. Somos todos expressões dessa diversidade, que não diz só sobre o outro, mas sobre todos nós, eu e você, nós e eles, eu e o Outro. Caminha pela vida, pelos lugares que te fazem bem, os que não fazem, ocupa-os e transforma-os, você é potência e afirmação da vida. Enquanto, no mundo, tudo se agita, você me acalma. Se tudo me parece trevas, encontro em você meu pequeno feixe de luz. Se tudo me parece distante, seu abraço nos aproxima. Se enfraqueço, em você me faço forte de novo. E permaneço. Se me confundo, em você me esclareço, me envolvendo em seus afetos, seus pequenos gestos, tão grandes pra mim. E faço de você meu cúmplice, minha pequena cura, meu pequeno pedaço de calmaria. Se visito minhas lembranças, você está lá, me tirando de um silêncio sofrido, onde tantas vezes me escondi. Teus afetos, teus beijos, teu amor sempre oportunos, tantas vezes me aplacaram a dor. Mas se há lágrimas nos meus versos, há também você, com seu sorriso feliz, sem medo de ser notado, e esse olhar curioso que investiga o mundo em seus aspectos que todos dizem mais insignificantes. E lá, nesse meu lugar onde te acesso, a gente se ensina, se aprende. Do que mais gosto em você é te aprender. Esses versos são para você, filho, mas também são para minha mãe. A quantas dores e abusos nós sobrevivemos caladas depois de nos tornarmos mãe? É hora de falar e você me faz ver que quero inventar esse lugar de maternidade. Quero de novo e de novo inventar um lugar diferente, porque não nos encaixamos na maternidade romântica que nos colocaram. Obrigada por ser meu cúmplice, meu pedacinho de sol. Isso me faz ver que ainda existe força em mim para querer mudar tudo. 655 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Todos os dias, divido com você meus saberes, mas é você quem me ensina. Esqueça as hierarquias que o mundo te coloca e que a vida naturaliza, todos temos a ensinar e a aprender sem disputas de saberes. Às vezes, nos aborrecemos mutuamente um com o outro, mas tudo bem. Eu não quero ser perfeita, nem você. Eu quero ser e quero que você possa ser humano e não um herói, a vida não é sobre superação. É sobre olhares, discursos, potências, afetos e sobre sujeitos tão diversos como somos capazes de ser. Não é sobre padrões ou patologias, é sobre expressividades, subjetividades, interioridades, protagonismos de si, comunidades e pertencimento. Não somos iguais e que bom que não somos. Às vezes, me perco em você. Me deixa atravessar esse lugar de amor despretensioso e de tantas descobertas e afirmações que é você. 656 Maternidades Plurais 110 Ressignificações em meio à pandemia: o fazer científico de uma mãe pesquisadora Rafaela Araújo Jordão Rigaud Peixoto1 Ser mãe: momento mágico e gratificante. Adversidades são uma realidade, mas não são o principal dessa experiência. Em meio à pandemia, passamos a viver momentos de certas restrições às nossas liberdades de ir e vir, no sentido de que estamos limitados em nossas escolhas de rotina diária. Celebrações, reuniões e algumas consultas médicas passaram a ser realizadas via plataformas digitais de videoconferência. O tradicional seminário anual do Grupo de Estudos em Inglês Aeronáutico (GEIA) será apresentado este ano em uma interface multimodal, com a disponibilização online de vídeos e textos acerca das pesquisas realizadas, e fórum para discussão; e as reuniões do Grupo de Pesquisa Narrativa e Interação Social (NAVIS) passaram a ser realizadas por meio de sala de conferência em ambiente virtual. É certamente um período de ressignificação de nossas relações pessoais, dado que o foco será a interação propriamente dita, imbricada de aspectos subjetivos que, algumas vezes, devemos admitir, são relegados a segundo plano. Não mais poder realizar atividades físicas costumeiras, como nadar, caminhar, pedalar com meu marido ou fazer pilates. Não mais poder tomar um café no fim de tarde, olhando, por exemplo, o pôr do sol na Confeitaria Colombo do Forte de Copacabana; ou tomar um chá em algum recanto charmoso desta cidade maravilhosa. Não mais caminhar a esmo em um domingo ensolarado na Lagoa Rodrigo de Freitas e ver a alegria das crianças brincando ao ar livre, andando de patinete ou de patins. Não mais fazer minha caminhada matinal até o metrô, acompanhar o rebuliço das ruas ou ouvir o canto dos pássaros na pracinha do bairro. Não mais conversar com amigos no trabalho, tomar um café filosófico e debater sobre temas interessantes, cuja reflexão nos pega de surpresa em um pós-almoço em uma quarta-feira banal. Não mais sair para almoçar com o grupo de amigas do trabalho e também conversar sobre assuntos de mulheres. Não mais sair com amigas do doutorado, para uma noite de 1 Pesquisadora e Tradutora. Doutora em Letras / Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e Tradutora do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA), onde desenvolve pesquisa sobre terminologia na área de aviação. Filiada ao Grupo de Estudos em Inglês Aeronáutico (GEIA | Instituto de Controle do Espaço Aéreo) e ao Grupo de Pesquisa Narrativa e Interação Social (NAVIS | Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), cadastrados no CNPq. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3992590052645432 657 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) conversa agradável. Não mais marcar de jogar partidas de War em casa com casais de amigos. Prazeres singelos da vida, que nos conectam à nossa essência e nos trazem uma adorável harmonia. E, embora esse hiato fosse ocorrer, de qualquer forma, após o parto, com o início de minha licença maternidade, o fato de essa rotina ter cessado de forma abrupta foi o que despertou essa sensação de tolhimento de liberdade. Talvez a falta momentânea de tudo isso nos traga algum ensinamento. E talvez estejamos diante da antecipação de uma “nova era” em que as pessoas estarão majoritariamente centradas em interações a distância, seja em função de trabalho, seja em suas relações pessoais. Nesse contexto, profissionais freelancers já estão, de certa forma, mais adaptados a essa realidade, como no caso de tradutores independentes. Dia 16 de março de 2020. Início do período de quarentena para mim. Uma segunda-feira qualquer, em que fui autorizada pela instituição em que trabalho a realizar minhas atividades remotamente, dado que eu estava no final dos meus sete meses de gravidez e, portanto, era considerada parte do grupo de risco. Minha adaptação à rotina de trabalho remoto exigiu certa flexibilização da minha agenda tradicional, uma vez que, com a descontinuidade de atividades físicas regulares e um dia a dia mais sedentário, o próprio metabolismo do meu corpo sofreu impacto, o que afetou o sono e, consequentemente, o rendimento das atividades por mim realizadas. Demorou cerca de duas semanas, entre períodos de insônia e de sonos entrecortados, e períodos de horários tradicionais, para que fosse restabelecido meu ritmo produtivo de atividades. No meu caso, continuar as atividades de casa de certa forma tornou mais cômoda a minha condição de gestante em terceiro trimestre, com menor susceptibilidade a dores de coluna e outros desconfortos. Ao mesmo tempo, o sedentarismo dificultava uma maior disposição até mesmo para atividades cotidianas. Estar em casa também demandou ressignificação do meu fazer científico, na medida em que a falta de debate cotidiano com colegas no ambiente de trabalho me tornou um pouco mais alheia a algumas questões pertinentes à minha pesquisa, embora eu tenha compensado um pouco essa lacuna com conversas de texto e áudio via aplicativo de celular, o que, convenhamos, não é a mesma coisa. No entanto, essa maior flexibilização do horário do trabalho e menor tempo gasto com trajetos urbanos permitiu maior concentração nas minhas atividades acadêmicas, o que resultou, somente neste primeiro semestre, na submissão (e aprovação) de três artigos científicos 2 (e estou atualmente finalizando o quarto, em parceria com outra colega), versão de três artigos para o inglês como trabalho freelance e emissão de parecer de avaliação de três outros artigos para um periódico. Esses resultados também despertaram em mim um forte sentimento de que nós, mulheres pesquisadoras, não podemos nos deixar limitar por questões externas e, principalmente, [culpas] internas, dizendo-nos quando 2 I) Nas asas da tradução: elaboração de glossário de Meteorologia Aeronáutica. Revista CBTecLE, Santa Ifigênia (SP), v. 2, n. 1, jul. 2020. 19 p.; II) Aeronautical Meteorology glossary: a discussion on term definition in the ANACpedia termbase. The ESPecialist. No prelo 2020; III) Terminology of Aeronautical Meteorology codes: a systematization by using corpus. TradTerm. No prelo 2020. 658 Maternidades Plurais podemos ou não produzir. Na véspera do meu parto, eu estava enviando revisão final de um dos artigos aceitos para publicação e, pouco depois, entre uma mamada e outra, prosseguia com minhas atividades de pesquisa, em ritmo prudente. Nós, mães, é que sabemos e devemos decidir como viver nosso momento de maternidade, único para cada uma. Nesse sentido, discussões para a desconstrução do estereótipo de gênero estão, felizmente, ganhando cada vez mais espaço, a exemplo do projeto “Women in Science”3, do Conselho Britânico, iniciado em 2018; e de debates acadêmicos sobre como conciliar filhos e carreira, como realizado no 2º Encontro de Pós-Doutorandos da USP4, também em 2018. Considero-me uma privilegiada por ter tido condições de manter minha produção acadêmica e profissional nesse período pandêmico, e particularmente por ter conseguido conciliar isso com o fim da gestação e os cuidados com minha filha recém-nascida, cujo parto ocorreu em 13 de maio, bem no pico da pandemia. Dia 15 de maio de 2020. Início da convivência, em seu próprio lar, de uma família com três integrantes: eu, meu marido e Ana Raquel. Nossas famílias não são do Rio de Janeiro e, por isso, não contamos com mais ninguém nessa fase inicial. A partir do 15º dia de pós-parto, comecei a caminhar na área de recreação do meu prédio, o “play”. Além da necessidade de manter uma rotina de atividade física, essa caminhada também é essencial para permitir que o meu corpo possa sintetizar vitamina D, aumentando a minha imunidade, o que ajuda na resistência a um eventual contágio por Coronavírus. Para esse fim, tento caminhar por volta do meio-dia, assim como os outros condôminos, que também descem para caminhar ou levar seus pequenos para brincar, ou simplesmente para pegar o almoço comprado na cantina do prédio. Guardando distância uns dos outros e usando máscaras, os frequentadores do play conversam alegremente. Parecem amigos de muito longa data. Alguns, de fato, são; outros, não. A pandemia, na verdade, fez com que nos aproximássemos de mais vizinhos, aqueles de andares ou blocos diferentes, mas que agora estão praticamente todos confinados a um mesmo espaço de lazer. Nossa querida vizinha do nosso andar, com quem sempre interagimos, agora detém-se conversando conosco por mais tempo do que o usual. Mais recentemente, seu marido faleceu de câncer, durante esse período pandêmico, o que nos trouxe bastante pesar, por nos fazer compreender que nossos entes queridos podem estar conosco hoje, mas, repentinamente, não mais amanhã. Duas horas da manhã. Acordo para amamentar. Olhos cor de mel encantadores, absortos em observar tudo ao seu redor. Uma luz ao fundo desperta na Ana Raquel uma curiosidade fascinante, O projeto “Women in Science” oferece programas de formação, webinars e também publica a Revista “Mulheres na Ciência”, que já teve duas edições: a primeira, em novembro de 2018; e a segunda, em julho de 2020. Mais informações podem ser obtidas no site https://www.britishcouncil.org.br/mulheres-na-ciencia. 3 4 A discussão ocorreu no terceiro debate, mediado por Ana Paula Magalhães (FFLCH / PRP USP), cujo tema foi “Filhos e Carreira”, e as participantes Rossana Soletti (UFRGS) e Silvana Bitencourt (UFMT) “discutiram o impacto da maternidade na carreira científica das mulheres brasileiras em tempos da produção científica e o gênero na cultura acadêmica/científica atual” [Disponível em: http://prp.usp.br/encontro-de-pos-doutorandos-da-usp/]. 659 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) como se quisesse compreender a origem desse reflexo. Ainda meio grogue, eu troco a fralda da Ana Raquel e depois passo cerca de trinta minutos amamentando. Ela desfalece de satisfação logo após a sessão, mas, alguns minutos depois, começa a chorar novamente. Não é fome, nem “fralda”, então dou gotas de um remédio para cólica, mas não surte efeito. Eu a coloco no colo e, enfim, ela para de chorar, mas não consigo ficar o tempo todo acordada com ela no colo. Fico cerca de meia hora e depois, quando ela adormece, eu a coloco no berço de novo, bem ao meu lado. São quase quatro horas da manhã. Eu geralmente não durmo antes das quatro horas da manhã e houve dias em que fui dormir por volta das seis e meia. Esse é o meu turno de cuidados com a Ana Raquel e, depois, meu marido fica com ela, até cerca de dez horas da manhã, para que eu possa dormir um pouco. Nesse período ele dá uma mamadeira com “fórmula” porque, infelizmente, não consigo dar conta cem por cento do tempo. Muitas vezes a Ana Raquel quer mamar em intervalos menores do que uma hora, a contar do fim da mamada anterior e início da próxima mamada. Durante as sessões de amamentação, aproveito para fazer leituras de artigos, pois é mais fácil posicionar o mouse sem fio do notebook a uma distância confortável, que não interfira na minha posição para amamentar (e eu não precise usar canguru com frequência), e me permita marcar o texto e fazer breves comentários por meio do recurso de nota no editor de “.pdf”. Quando estou muito cansada, simplesmente escuto alguma música ou assisto a algum episódio de série no celular. No intervalo das mamadas, eu faço análises de corpora para minhas pesquisas de tradução, faço fichamentos de texto e escrevo artigos. Escrever tem diminuído um pouco essa angústia “intramuros”. E, claro, cuidar da minha pequena também inclui outros momentos de lazer, como ler livrinhos infantis para ela e estimulá-la a fazer exercícios no momento “tummy time”. Essa atividade, bastante interessante, foi descoberta pelo meu marido e serve para estimular a musculatura do bebê como um todo, principalmente o pescoço, para que ela possa desenvolver sustentação mais rapidamente. O saldo da pandemia até que foi positivo para mim, pois, por um lado, possibilitou melhor ajuste de tempo e desenvolvimento de atividades de pesquisa, embora tenha distanciado certo número de pessoas do meu círculo de amizades. Por outro lado, em relação a pessoas mais próximas, a pandemia promoveu maior interação a distância, ressignificando construções de sentido, na medida em que as conversas poderiam ser mais direcionadas para um objetivo específico ou favorecer um maior grau de intimidade. Agora, com quase quatro meses de quarentena, praticamente sem poder sair de casa por causa de minha filha pequena, que ainda não tomou todas as vacinas, tudo isso começa a parecer sufocante. Compartilho os meus dias, fisicamente, com minha família querida no Rio, mas a trivialidade da vida intramuros passa a exigir cada vez mais de nossas almas mortais. Uma certa mesmice avassaladora tira um pouco o brilho de nosso olhar e apenas ansiamos o amanhã, talvez como um aprendizado permanente de como viveremos nesta “nova era”. Ao mesmo tempo, em contraste com essa “mesmice”, também tive muitos novos ensinamentos, sobre a rotina com o bebê, vacinas, brincadeiras, fases e saltos de desenvolvimento, sobre como compartilhar amor com uma criança. 660 Maternidades Plurais Tentamos ser criativos e nos dedicamos a organizar melhor a rotina do dia a dia, algo que geralmente não é tão aperfeiçoado na vida diária com trabalho externo. Em relação aos cuidados com a minha filha, faço registro, em planilha compartilhada em ambiente online, com o meu marido, de todas as mamadas, trocas de fralda e banhos dela. Faço a estimativa de quanto ela mamou efetivamente e da “qualidade” das mamadas, comparando o tempo versus a quantidade de leite verificada na quantidade de fraldas que ela utiliza em um dia. Às vezes me pego pensando se estou fazendo pesquisa com a minha filha. É engraçado. “Objetivo geral: analisar o rendimento das mamadas da Ana Raquel. Objetivos específicos: contabilizar o tempo das mamadas e o volume de leite mamado; e contabilizar a frequência das trocas de fralda e o volume de elementos fisiológicos eliminados. Metodologia: estudo quali-quantitativo, com registro, em uma planilha online, dos períodos de mamada e da quantidade de fraldas; e observação das práticas de interação da participante durante o estudo. Análise e discussão dos dados: observou-se regularidade das mamadas e das trocas de fralda, e volume satisfatório de elementos fisiológicos eliminados, compatível com o previsto em função das mamadas. Isso demonstra que as mamadas estão sendo efetivas, com bom fluxo de leite e aproveitamento da Ana Raquel, sem muitos momentos de distração durante a mamada. Conclusão: O rendimento da mamada está satisfatório, de forma a promover o esperado desenvolvimento da bebê. Destaca-se, como limitação deste estudo, que os cálculos são baseados em um volume de mamada estimado, haja vista não ser possível contabilizar ao certo o volume mamado. Espera-se que essa análise melhore a gestão das mamadas, para um melhor aproveitamento, promovendo um sadio ganho de peso do recém-nascido e evitando prolongamento desnecessário do tempo da sessão, de forma a evitar lesões na mama, o que viria a prejudicar a continuidade da prática a longo prazo.” É, ser pesquisadora não é fácil. A verdade é que nosso olhar muda. Avaliamos tudo. Ser terminóloga, tradutora e analista do discurso também tornam você aquela pessoa que nunca mais escuta um “querida” de forma neutra. “O que será que a pessoa quis dizer?” Confesso que, antes de me mudar para o Rio de Janeiro, ouvia esse “querida” algumas vezes sendo usado de forma pejorativa, para referir-se a alguém que estava incomodando ou simplesmente para marcar certa condescendência. Mas aqui no Rio de Janeiro as pessoas geralmente usam essa palavra em sua acepção primária. É curioso, pois, mesmo tendo percebido isso, it always rings a bell: eu automaticamente sempre tenho a mesma indagação. “Afinal, a pessoa quis ser atenciosa ou ela estava sendo irônica?” No segundo seguinte essa dúvida se desfaz, mas é, de fato, instintivo. Parece meio exagerado, mas até que esse movimento interpretativo é interessante. Bem, por isso somos pesquisadoras, não é? Amamos o que fazemos, adoramos descobrir padrões em coisas inicialmente tidas como banais. Harvey Sacks5, em seu texto “On doing ‘being ordinary’”, já nos ensinava que as interações e as narrativas produzidas estão longe de serem triviais. Isso é, de uma certa forma, desafiador, pois parece que confere ao pesquisador certo poder: a habilidade de “entrar na alma das pessoas”, e de ter essa perspectiva visceral acerca de atitudes e de percepções que talvez nem mesmo essas pessoas saibam sobre elas mesmas. SACKS, Harvey. On doing “being ordinary”. In: ATKINSON, J. Maxwell; HERITAGE, John (Eds.). Structures of Social Action: studies in conversation analysis. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1984. pp. 413-429. 5 661 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Acho que, ao final disso tudo, não há como nós, mães pesquisadoras, não nos sentirmos mulheres-maravilha, não é? Mesmo não me sentindo linda neste pós-parto, eu me sinto uma guerreira, alguém capaz de mover montanhas, e de aprender sempre mais. E, em meio a esse caos, a graça. Ana, nome próprio originalmente escrito como Hannah, que significa ‘graça’, é a luz norteadora dessa ressignificação em meio à pandemia. Ressignificar aprendizados e desafios, e persistir para a inclusão de mães pesquisadoras, que não se deixam rotular por posições tradicionalistas ou pré-determinadas. A liberdade, como dizia Amartya Sen6, em seu livro “Development as Freedom”, é sobretudo determinada por nossa liberdade de escolha e, dessa forma, estar no mundo significa interagir e ocupar espaços conforme nossas escolhas, e não nos resignarmos a ocupar apenas aqueles “permitidos” ou “instados” por outrem. 6 SEN, Amartya. Development as Freedom. New York: Anchor Books, 1999. 662 Maternidades Plurais 111 Resistência: a voz que ecoa em tempos de crise Raquel Ferreira1 Me senti comovida e acolhida com a possibilidade de compartilhar sobre os tantos desafios que surgiram nesta pandemia. Desta forma, começo as primeiras linhas já trazendo o óbvio para mim: Vivenciar esta pandemia tem sido barra pesada. E digo sem floreios ou firulas, pois não estávamos preparados e preparadas, talvez nunca estaremos. Neste sentido nem me refiro ao sistema sanitário, à superlotação e ao colapso dos sistemas de saúde, que por si já nos remetem à imagem do caos, falo isso no sentido emocional. Não estávamos preparadas para ficarmos longe dos abraços e muito menos dos sorrisos, que agora estão cobertos pelas máscaras. E neste contexto de mulher cis, parda, mãe, trabalhadora que traz o sustento para casa, filha que se preocupa com a saúde dos pais e médica que tem o cuidado também como profissão, venho aqui escrever algumas linhas das experiências vivenciadas nesta pandemia. Como Médica de Família e Comunidade, a realidade assolou minha casa bem no início. Quando declarada transmissão comunitária em Brasília do SARS-COV-2, o novo coronavírus responsável pela Covid-19, foi grande a preocupação de poder me contaminar e transmitir aos meus. Não só em mim, mas na grande maioria das colegas de trabalho cresceu o sentimento de apreensão. Passamos a não usar acessórios como brincos e anéis, a manter os cabelos sempre presos, a usar aventais descartáveis ou capotes hospitalares, máscaras e óculos de proteção desde o início ao final do plantão. O contato físico ficou escasso. Chegar em casa, deixar os sapatos na entrada com solado imerso em água sanitária, retirar a roupa e separá-la em sacolas específicas para serem lavadas em separado das demais; o banho da cabeça aos pés com muito mais empenho. Logo neste início, já sofremos. Eleanor, minha filha de 2 anos e 5 meses àquela época, ficou sem atividades da Escola Infantil. Sem coleguinhas para brincar, sem visitar as vovós, sem visitar as priminhas, sem visita ao parquinho, muitas vezes me pedia para eu não ir trabalhar: “Mamãe, se você trabalhar, eu não vou ter nenhuma amiga para brincar”, dizia ela enquanto meu coração despedaçava. Por sorte meu esposo estava sem trabalho e pôde dedicar seu tempo para cuidar dela. Mesmo com seus esforços de entreter a Eleanor, quando eu chegava era só meu colo. Ela mal aguentava esperar eu entrar em casa e, inevitavelmente, acontecia o choro! Eu precisava chegar e fazer toda aquela 1 Mestra em Saúde Pública pela University of Glasgow. Membro do Grupo de Trabalho de Mulheres na Medicina de Família e Comunidade. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8640936636064780 663 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) higienização antes de pegá-la. Roberto, meu esposo, dizia: “Mamãe está com o corona, filha. Ela precisa tomar banho pra ele ir embora, pra gente não pegar”. Ela, com saudades, querendo me abraçar e amamentar quando eu chegava, vinha correndo e me rodeava. Colocava as mãos ao meu redor, sem me tocar e chorava... Eu evitava prolongar o sofrimento e me direcionava ao banheiro, pedindo para que não chorasse, que mamãe já iria voltar. E isto se repetiu por algumas semanas até ela se conformar e entender que era para um bem maior, que teria que ser daquela forma. Por uma vez ela se achegou e me abraçou logo de uma vez. Eu com muito amor no coração, não consegui evitar, pois também queria aquele afago. Os dias foram passando e eu constantemente estudando sobre possíveis formas de tratamento da Covid-19, me observei estafada. Três semanas a fio, ciência sendo desafiada contra o tempo, protocolos atrás de protocolos sendo revisados e já me sentia daquele jeito, mas era apenas o início. Observei que, naquele momento, ninguém falava sobre saúde mental. Comércio fechado, pessoas em quarentena, eu trabalhando, mas como eu queria estar dentro de casa, com minha família, em segurança! Pessoas reclamando, dizendo-se cansadas do isolamento e eu querendo poder me isolar, ao mesmo tempo em que pesava perceber-me com aquela vontade. Eu tinha parado de fazer minhas aulas de yoga, parado de ir a parques, parado de visitar pessoas queridas por medo de contaminá-las (com o vírus que eu não sabia se tinha contraído). O que me restava era, ao chegar em casa, a alegria de ver a vivacidade da Eleanor, mesmo nestes tempos difíceis. Ao longo desta jornada, realizando atendimentos, tive a oportunidade de ouvir diversas histórias e algumas delas me marcaram. Uma, dentre tantas, me trouxe reflexões pessoais e escrevi sobre isto. Em “Uma das várias vezes quando me percebi na outra”2, relatei sobre o encontro com uma paciente, mulher trabalhadora, que dentre diversos outros problemas também estava fragilizada pela possibilidade de contaminação com o novo coronavírus e temerosa com a possibilidade de transmissão a seus filhos, ficando afastada deles. Me percebi em sua história fiz reflexões sobre o quanto nós mulheres passamos por problemas semelhantes. As reflexões feministas surgiram diversas vezes. Fazendo parte do Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres na Medicina de Família e Comunidade, me percebi inserida em um contexto de mulheres fortes, com pensamentos progressistas, humanistas, maternos e envolta por temas de cuidado, como são esperados entre mulheres3 e médicas. Durante o período, nosso grupo foi mobilizado a levar as mulheres participantes a se fazerem presentes em uma série de vídeos informativos sobre a Covid- 2 FERREIRA, R. Uma das várias vezes quando me vi na outra [Internet]. Causos Clínicos. 2020 [citado 6 de julho de 2020]. Disponível em: https://causosclinicos.wordpress.com/2020/06/01/uma-das-varias-vezes-quando-me-vi-na-outra/ 3 ZANELLO, V. Saùde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. 2018. Valeska Zanello traz em seu livro explicações sobre como, historicamente, nós mulheres somos moldadas através dos dispositivos amoroso e materno e como estes moldes interferem em nossos relacionamentos interpessoais, bem como em profissões que escolhemos, muito associadas à educação primária (com o cuidado de crianças) e relacionadas aos cuidados em saúde. Um motivo que explicaria a feminização destes tipos de trabalho, assim como o menor prestígio e os menores salários. 664 Maternidades Plurais 19, que a SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) estava promovendo. Na ocasião, decidi me voluntariar para falar sobre cuidados com a saúde mental em tempos de pandemia. Estudei bastante o tema, mas parecia que não era suficiente. A “síndrome da impostora” sempre me perseguia e sentia que precisava estudar mais. Demorei umas duas semanas para entregar um vídeo de pouco mais de três minutos4. Fiquei feliz, afinal tinha produzido algo de caráter científico e informativo no início da quarentena. Incomodada com minha própria saúde mental, tive a ideia de escrever um projeto de pesquisa para avaliar a saúde mental dos colegas de trabalho, profissionais da Atenção Primária à Saúde. Convidei mulheres entusiastas como eu para participarem desta jornada. Todas nós cobertas de afazeres, mulheres trabalhadoras com duas jornadas de trabalho, fazíamos o que era possível com o tempo que tínhamos. Neste período, conseguia dedicar poucos momentos da semana para ler e escrever. Lembrei-me de algo que uma vez meu pai me disse: “Para o trabalhador, é importante fazer um pouquinho de cada vez. Se tentar fazer tudo de uma vez, você não consegue continuar nos dias seguintes”. E com este pensamento, não perdi a esperança. Durante a semana usava curtos períodos para a pesquisa ou leitura de pequenos textos, principalmente em intervalos de almoço, no trabalho. Aos finais de semana, tentava me organizar na escrita. Me aventurei na Plataforma Brasil5 e dediquei-me a explorála. Nestes últimos cinco meses me percebi cansada acima do normal. Provavelmente o estresse do trabalho, somado ao cuidado redobrado para evitar contaminação dos meus e, quando estava em casa, a dedicação integral à minha pequena e ao lar, se uniram e me causaram sobrecarga, haja vista que válvulas de escape estavam limitadas. Em vários dias da semana, percebia-me chegando em casa, tomando banho, jantando e deitando. Já chamava Eleanor para cama, para lermos livros, porque eu não conseguia ficar de pé brincando com ela. Me sentia culpada, obviamente, como de costume nós mães nos sentirmos, de não ter maior energia para estar a seu lado, mas aquela era minha melhor forma de me fazer presente: deitada, amamentando, conversando e lendo os livrinhos para ela. Tive momentos em que chegava do trabalho e ficava dentro do carro, por alguns minutos sozinha, aproveitando o silêncio ou ouvindo uma ou duas músicas. Nestes momentos eu me deixava relaxar (e é claro, me sentia culpada por estar gastando um tempo que poderia ficar a mais com minha família). Pensei em voltar à psicoterapia, mas não conseguiria tempo ou espaço adequado para fazêla. Não funcionaria para mim: seria necessária uma privacidade que eu não teria. E assim, aceitei minhas limitações, aceitei a quarentena e o distanciamento social como situação de exceção e tentei trabalhar a resiliência. Fui deixando o tempo passar e torcendo para que acabasse logo. Quase dois meses se passaram até eu conseguir terminar de escrever o projeto de pesquisa e enviá-lo à avaliação do Comitê de Ética e Pesquisa. Meu esposo contribuiu compartilhando o cuidado 4 FERREIRA, R. Como manter a saúde mental em isolamento social e pandemias? [Internet]. Facebook. 2020 [citado 6 de julho de 2020]. Disponível em: https://www.facebook.com/393769660680717/videos/2970063543083948 5 Plataforma Brasil [Internet]. [citado 7 de julho de 2020]. Disponível em: http://plataformabrasil.saude.gov.br/login.jsf. A Plataforma Brasil é uma base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para todo o sistema CEP/Conep. 665 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e entretendo Eleanor para que eu conseguisse esta façanha nos finais de semana. Após duas semanas de envio, com muita celeridade, o projeto foi aprovado! Quanta alegria! Me percebi como um ponto privilegiado fora da curva. Estava conseguindo, como mulher parda e mãe trabalhadora, iniciar uma pesquisa científica em época de pandemia6. Tendo dito isso, recentemente foi publicado um levantamento sobre a produtividade acadêmica durante a pandemia7. Neste documento, como era de se esperar, mulheres negras com ou sem filhos e mulheres brancas com filhos (especialmente de até 12 anos) foram as mais afetadas na submissão de artigos científicos durante a pandemia, sendo que a produção acadêmica de homens, especialmente os sem filhos, foi a menos afetada. Durante este tempo vi direitos das mulheres, garantidos em lei, entrarem em risco. Direitos reprodutivos sendo questionados me fizeram recordar que “Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”, como dissera sabiamente Simone de Beauvoir8. Direitos básicos como o acesso a métodos de contracepção, consultas pré-natais, direito ao aborto seguro já previsto em lei (em situações de estupro, anencefalia do feto e risco de morte para a mãe) passaram a ser questionados. Posicionar-se em favor da manutenção destes direitos tornou-se motivo para sofrer retaliação. Imergimo-nos, assim, no ativismo feminista nas redes sociais e construímos (o GT de mulheres na MFC) uma nota técnica dando ênfase a importância da manutenção de direitos das mulheres nesta época de pandemia9. Antes da construção deste texto, achei que não teria muito a dizer. O quão especial seria minha história dentre tantas? Mas de fato, escrevendo e relendo, percebi que fiz bastante dentro de minhas limitações. Nós mulheres passamos por muitos obstáculos, duvidamos de nossa capacidade, resistimos no dia a dia para termos voz na sociedade e sempre temos algo a dizer, nem que seja dizer que está tudo bem em achar o momento difícil. Vivenciando tudo isso, percebi o quão importante é a união entre as mulheres para alcançarem objetivos comuns. Devido, principalmente, ao apoio de outras mulheres cientistas, tenho sido estimulada a ocupar meu espaço de fala e conseguido também me fazer ser ouvida. Os dispositivos materno e amoroso nos construíram desta forma e termos consciência de que estamos em um contexto de 6 FERREIRA, R. Avaliação da saúde mental dos profissionais da Atenção Primária à Saúde que trabalham na Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal em tempos de pandemia da Covid-19 [Internet]. ResearchGate. [citado 7 de julho de 2020]. Disponível em: https://www.researchgate.net/project/Avaliacao-da-saude-mental-dos-profissionaisda-Atencao-Primaria-a-Saude-que-trabalham-na-Secretaria-de-Estado-de-Saude-do-Distrito-Federal-em-tempos-depandemia-da-Covid-19 7 Parent in Science. Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade. [Internet]. Maternidade&Ciência. 2020 [citado 6 de julho de 2020]. Disponível em: https://www.parentinscience.com 8 BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo – fatos e mitos. 4 ed. Tradução de Sérgio Milliet; 1980. 9 GT de mulheres. Nota técnica da SBMFC sobre a exoneração de técnicas e da coordenadora de saúde das mulheres do Ministério da Saúde [Internet]. Facebook. 2020 [citado 7 de julho de 2020]. Disponível em: htps://www.facebook.com/SBMFCoficial/fotos/a.394354480622235/3168122443245411/ 666 Maternidades Plurais patriarcado é o primeiro passo para uma revolução: na conjuntura de uma sociedade permeada em preceitos machistas, fazer-se ouvir, como mulher, é um ato de resistência. 667 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 112 Os papéis sociais e (im)possíveis conciliações de uma mulher, puérpera, mãe de dois, cientista e professora durante a pandemia de Covid-19 Regiane Sbroion de Carvalho1 Isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, maternidade e trabalho científico… somada a isso tudo, a chegada de um bebê. Antes de iniciar o texto, um suspiro... nem sei por onde começar. O feminismo assume uma nova configuração quando nos tornamos mães. O trabalho e o mundo ficam diferentes. Sou Psicóloga do Desenvolvimento, professora em uma Universidade reconhecidamente inclusiva, em um curso de formação de professoras. Esse lugar que ocupo diz muito sobre mim e sobre o que acredito... acredito na mudança, na potência de o ser humano em aperfeiçoar-se e fazer o melhor dele mesmo a partir do que o mundo, suas relações e suas experiências lhe proporcionaram. Sou uma otimista por natureza, como costumo dizer. Entretanto, não tem sido fácil permanecer assim. Tenho um filho de 3 anos e 4 meses e uma bebê de sete meses. O isolamento imposto por uma pandemia chega quase que junto a meu segundo puerpério, com meu segundo renascimento, meu segundo luto pela mulher e mãe que era, com o luto da mãe de um filho só, com os lutos de tantas vítimas e de tantas lutas... são muitos lutos. Mas, também muitos (re)nascimentos: com o nascimento de minha filha e, com ela, o poder feminino; do irmão mais velho com sua preocupação e cuidado; da nova mãe de dois que busca sua força e descobre o quanto os braços, tempos, beijos se multiplicam. Entre tantos lutos e renascimentos, e-mails institucionais que falam sobre bolsas que se finalizam, relatórios, projetos, supervisões... Sim, essas são atividades que não param na licença maternidade. O presente texto vem como uma tentativa de organizar o tumultuado momento, de dar um respiro quase terapêutico em meio ao caos que se instaura sobre minha vida e de uma tentativa de (re)conhecimento de mim mesma neste momento tão angustiante e desafiador. Pensando e esboçando o texto, cheguei à conclusão de que a perspectiva teórico-metodológica de que me aproprio para pensar o ser humano, seu desenvolvimento e suas relações muito poderiam me auxiliar nessa fase para pensar sobre mim, minha vivência, minha maternidade e os desafios enfrentados. Trata-se da perspectiva 1 Professora Adjunta na Universidade do Estado Departamento de Estudos da Subjetividade e da Formação tes.cnpq.br/0854241858722871 do Rio de Janeiro UERJ Humana (DESF). Lattes: http://lat- 668 Maternidades Plurais histórico-cultural, notadamente embasada nas proposições de Lev Seminovich Vigotski 2. Para o autor, nosso desenvolvimento é social, isto é, se dá a partir das interações sociais que ocorrem em sociedade e é marcado pelo lugar social que ocupamos, com suas características históricas, econômicas, de gênero, etárias, entre outras. Assim, antes de me tornar indivíduo, sou um ser social que, a partir da internalização das interações e relações sociais, desenvolvo uma subjetividade particular. Pensar em quem somos é pensar o momento histórico que vivemos, as questões econômicas que marcam nossas vivências, possibilidades e as visões sociais atribuídas a nós por nosso gênero. Devo destacar que as visões sociais não são homogêneas, sendo, muitas vezes, contraditórias. Para Vigotski (2000), nossa personalidade é também compreendida como “o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo” (p. 33), compreendida enquanto drama em que ocorrem lutas internas entre os diferentes papéis sociais por nós vivenciados e que nos compõem. Assim, somos compostos por diferentes papéis sociais — por vezes, contraditórios — que, a partir do drama e de seus embates internos, configuram as formas como nos portaremos, as atitudes, pensamentos, formas de estar e vivenciar o mundo e nossas relações. Pensar sobre minha vivência enquanto mãe, mulher, cientista neste difícil momento que enfrentamos diante uma pandemia que nos faz entrar em um isolamento social, sendo instruídos a permanecer em casa, mudar nossas rotinas completamente de um dia para o outro (pausa para amamentar e ninar novamente), faz com que eu me depare com alguns dos papéis sociais por mim vivenciados nesse momento e faz com que eu compreenda como estou me constituindo nesse momento. Assim, na busca da síntese que me constitui como sujeito e compreendendo que muitos dos aspectos por mim vivenciados são comuns a outras mulheres que ocupam papéis sociais análogos, mas também muito diferentes dessas mesmas mulheres devido a nossas condições concretas nesse momento e também por nossas histórias de vida, proponho essa reflexão trazendo o particular, que é composto pelas minhas vivências e interações únicas, e também o coletivo, com os determinantes sociais que a todas nós atravessam e marcam nossas vivências, sentimentos e nos forjam enquanto mulheres, mães, pesquisadoras. Só para contextualizar: estou no interior de São Paulo (em Ribeirão Preto), na casa de minha mãe, desde novembro de 2019. Em nossos planos, já estaríamos em casa, mas a pandemia nos pegou aqui e ficamos. Estamos em casa, em isolamento social, eu, meu companheiro, nossos filhos e minha mãe há quatro meses. Só saímos de casa (meu companheiro e eu) uma vez ao mês para vacinar a bebê e saímos duas vezes para um piquenique com as crianças em um terreno na saída da cidade e tentamos uma volta no quarteirão interrompida pelo medo do encontro com outras pessoas que estavam sem máscaras. No restante do tempo, permanecemos em casa o tempo todo. A partir de agora, relatarei alguns dos papéis por mim vivenciados nesse momento tão surreal de pandemia de Covid19. O papel de mãe em puerpério 2 VIGOTSKI, L. S. (2000). Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, 21(71), 21-44. VIGOTSKI, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes. 669 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Minha pequena nasceu em dezembro de 2019. Em meio às noites em claro amamentando, eu ouvia as primeiras notícias da doença desconhecida que surgia na China. Minha filha nasceu de uma já mãe, o que é muito significativo, pois eu já havia passado por essa experiência, o que traz certa tranquilidade frente a algumas situações já vivenciadas, mas traz marcas e traumas de outras tantas situações. O parir, para mim, fazia parte desse segundo grupo de experiências. Um primeiro parto cheio de intervenções e intercorrências que terminou, após 24h de trabalho de parto, em uma cesárea, uma hemorragia, transfusão de sangue e que gerou tantas outras situações de estresse que impactaram minha amamentação, que não foi exclusiva e foi marcada por muito sofrimento. Mais do que isso, esse trauma minou minha crença de que eu poderia ser verdadeiramente mãe, pois eu não havia parido e nem nutrido meu filho. De que mais uma mãe é feita? Descobri, nos anos posteriores, que é feita de muito mais do que isso, mas demorou e a marca estava em mim, ainda não cicatrizada. Assim chego ao segundo parto. Queria que tudo fosse diferente, que, mesmo que a via de parto fosse a mesma do primeiro, o sentimento fosse outro. Tentei me preparar, pensei melhor em uma equipe e quis ter junto de mim a única pessoa que acreditou em mim em meu primeiro parto. E assim foi, minha filha nasceu de um parto natural, vaginal, rápido e potente. Meu marido conta que assim que minha filha nasceu eu fiquei perguntando a ele se ela realmente havia nascido, acho que isso mostra o quanto duvidava de mim mesma. Junto com minha filha, nasceu um poder, uma força que nunca imaginei que poderia existir. Tornei-me fera, forte, brava e parida. Se no primeiro puerpério eu era dor, fragilidade e dependência, nesse eu era fera, potência, arisca. O puerpério não começou fácil, veio acompanhado de dor, de necessidade de apoio e de uma força que se transformava em potência, uma razão apaixonada que me fazia enxergar com clareza o que ninguém mais via. Tudo era tão claro, mas ninguém entendia. Isso se tornou brigas, angústias, afastamentos. Foi difícil e demorado até que as coisas fossem ditas e ressignificadas. Minha filha fez três meses, as coisas começaram minimante a entrar nos eixos, não temia tanto a fragilidade do recém-nascido, tinha a esperança de que dias com mais passeios, menos enclausurada se aproximavam. E aí chegou o isolamento social imposto pela pandemia. Mais do que nunca, ficamos dentro de casa. O medo da fragilidade da pequena me desesperava. Dizia-se que o vírus não era tão perigoso e letal em crianças, mas pouco se sabia do vírus. Mais um medo se colocava. Foram muitas as noites acordada chorando desesperada pelo que estava por vir. Hoje, eu estou no interior e estamos piorando a cada dia. Estamos próximos à saturação de leitos de UTI e o medo prevalece, mas penso e vivo um dia de cada vez fazendo minha parte. Dói-me muito pensar que minha pequena passou, até agora, mais da metade de sua vida dentro de casa. Podemos contar nos dedos as vezes que saímos e, na última vez que saímos para uma vacina, escorreram muitas lágrimas de seus olhinhos ao entrar em contato com a luz do sol. Também escorreram lágrimas de meus olhos e não foi devido à luz do sol. O medo enfrentado no puerpério foi e é potencializado pela incerteza e medo do vírus. A cada dia, com a pequena crescendo, ficando mais forte, o medo diminui um pouco, mas as incertezas me fazem temer o futuro, as relações, a forma como minha pequena está e vivenciará seu primeiro ano de vida. Ela está sendo privada de passeios, de ver o mundo lá fora, de se relacionar com os avós, tios, primos. A insegurança paralisa, nos ilha e faz com que sejamos o mundo todo de nossa pequena, que poderia estar iniciando suas aventuras, vivências e descobertas desse mundão. Esse puerpério está um pouco mais doído. 670 Maternidades Plurais O papel de mãe de dois Neste período de isolamento social, tive que me descobrir mãe de dois — uma criança e um bebê — que não podem sair de casa. Eu ainda estava tentando me achar e me compreender enquanto mãe de dois quando a pandemia se instaurou e a rotina com o mais velho, que ajudava a pensar e definir o papel de todos nós, se foi. Não havia mais escola, não havia mais passeios com o pai, com os tios e brincadeira com os amigos. O pequeno furacão de três anos tinha que agir somente dentro de casa, mas, mais difícil do que isso, dividir o tempo, atenção e a mãe com um bebê. Foi (e está sendo) muito difícil me constituir como mãe de dois que vivem 24h sob o mesmo teto tentando se descobrir nesse novo contexto. Tento, a todo momento, dividir o tempo a atenção entre os dois, mas me vejo falhando (e sofrendo com isso) quando ora estou com toda atenção para a pequena que está sofrendo com cocôs, assaduras e desconfortos provenientes de uma possível alergia à proteína do leite de vaca em investigação, ora quando me pego há muito tempo brincando, conversando ou dando atenção ao mais velho enquanto a pequena chora, me olha e dá os braços. Fatos que tomam 24h na pandemia. Os momentos, que antes eram mais delimitados com a ida do mais velho para a escola, agora se confundem, todo mundo precisa da mãe urgentemente o tempo todo. Obrigada, papai e vovó, por tentarem dividir essa demanda, mas a mãe, é sempre a mãe que eles querem. O que tenho tentado é dividir o colo, porém nem sempre dá certo. E a culpa? Ah! A culpa é minha companheira de todas as horas, e se intensifica nesse momento de pandemia. Culpa por manter as crianças dentro de casa (temos que cuidar da saúde mental e do desenvolvimento físico-psico-emocional-espacial das crianças). Culpa por levá-las para UM passeio pelo bairro (temos que ficar em casa e poupá-las de qualquer possível foco de contaminação). Diante disso, várias noites me peguei em companhia da insônia, desculpando-me mentalmente com meus filhos por tê-los metido nessa enrascada que está sendo esse mundo. Não apenas pela pandemia, mas principalmente pelas pessoas que aqui habitam. Pessoas sem empatia, com total falta de coletividade, de amor e cuidado consigo mesmas e com o próximo. Porém, com eles a esperança em um mundo diferente também desperta e não apenas depositando neles a responsabilidade da mudança, mas em mim também, porque tento ser uma pessoa melhor a cada dia por eles e para eles. O filho mais velho passou, no início da pandemia, pelos pesadelos. Acordava chorando no meio da noite acompanhado da frase: “Me protege, mãe?”. As lágrimas escorrem pelo meu rosto até hoje quando descrevo a cena e lembro de tudo que passava pela minha cabeça enquanto eu o abraçava e dizia que eu faria tudo para protegê-lo sempre, mas sem saber como enfrentaríamos o que nos esperava e nos espera. O papel de recreacionista Descobri-me recreacionista nesse período. Lembro-me que, assim que a escola fechou, pedi a meu marido que fizesse uma grande compra em uma papelaria: lápis de cor, canetinha, giz de cera, tinta guache, aquarela, papéis de dobradura, cartolina, EVA e assim vai... usamos nos primeiros dias... hoje, tem muito papel no canto sem usar. 671 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nos primeiros dias, procurei brincadeiras na internet, fiz algumas, outras foram negadas antes de seu início. Hoje as brincadeiras são mais fluidas, surgem das atividades cotidianas, dos materiais da casa. Acho que nos tornamos menos recreacionistas e mais brincantes. Menos voltados para pensar e propor brincadeiras planejadas e mais para tentar brincar a cada atividade, mas não é fácil ser um tiranossauro Rex de bracinhos curtos, unhas afiadas e grunhido amedrontador enquanto tentamos dar banho ou alimentar um, servir o outro, não tropeçar no cachorro e ouvir as noticias do jornal tentando não transparecer o desespero e o medo por viver uma pandemia com tantos mortos e novas descobertas a cada dia. O papel de pesquisadora Em meio a todos os papéis domésticos nos quais encontrei-me submersa no momento de minha licença maternidade durante o isolamento social, os papéis profissionais não deixaram de existir. Fui convidada por minha orientadora para participar de uma pesquisa sobre a vivência das famílias na relação com as escolas de educação infantil de seus filhos no momento de isolamento social. Sim, em parceria com minha orientadora e uma colega, resolvemos realizar uma pesquisa sobre a vivência de famílias nesse momento. A dor, o medo, a sobrecarga transformaram-se também em trabalho científico e acadêmico, porque é isso que sei fazer e é como posso ajudar outros grupos, compreendendo como eles têm passado por esse período e servindo como subsídio para ações das instituições e poder público. O papel de orientadora Além de fazer pesquisa no momento de pandemia sobre como a família vivencia sua relação com as escolas de educação infantil de seus filhos, o trabalho de orientação de outras pesquisas permanece. Mais uma vez, sobrepõem-se à licença-maternidade, a pandemia com uma criança e um bebê demandando 24h de cuidado e atenção com as demandas de trabalhos que não param, e orientar trabalhos de Iniciação Científica e monografias é um deles. Devo destacar que não ingressei e nem cogitei tentar ingressar na pós-graduação pela demanda de trabalho incompatível com uma mãe de criança pequena, sem rede de apoio na cidade em que moro, e sem creche integral disponível. Temos um auxílio creche que não paga nem meio período da creche, sendo necessário complementar com meu salário. Portanto, fico com essas orientações que continuam ininterruptamente. Foi e continua sendo muito difícil realizar essa atividade em tempos de pandemia. Somam-se os medos, os sofrimentos, os receios e as inseguranças minhas e de minhas orientandas com a demanda da produção, da vida que continua (até quando?). Depois de algum tempo de paralisia, as orientações foram sendo retomadas aos poucos. Inicialmente à tarde, no momento em que a bebê dormia e que meu companheiro ou minha mãe ficava com o mais velho, mas essa dinâmica é impossível. A todo momento somos interrompidas por choros, demanda de atenção e brincadeira, o que inviabilizava um trabalho que necessita de atenção, fluxo, continuidade. A alternativa foi realizar essas atividades à noite, após o sono das crianças. Entretanto, as noites (inclusive as de final de semana) são divididas com o pai, que também as utiliza para trabalhar com atendimentos psicológicos a outros pais e mães que só 672 Maternidades Plurais conseguem realizar essas atividades após o sono de seus filhos. A sobrecarga e os trabalhos das noites não é algo só daqui. Nas últimas semanas, estou vivenciando, mais uma vez, um processo de seleção para bolsas de iniciação cientifica. Entre os fatores avaliados, estão: o projeto que escrevi em dois dias em meio a brincadeiras, choros, amamentação na pandemia com todos em casa; o relatório da última pesquisa que orientei com uma criança pequena na escola apenas nos momentos em que eu estava em sala de aula (as orientações, portanto, foram dadas em momentos em que o pai estava com a criança e as leituras nas madrugadas, competindo com as preparações e correções de aulas e, em parte, durante uma gravidez com enjoos e tudo mais que essa fase traz) e minha produtividade nos últimos dois anos. Obviamente, a produtividade não foi adequada. Não consegui publicar/produzir o esperado. Esperado por quem? Esperado de quem? Vamos à luta novamente. Como podemos ver, os desafios não ocorrem apenas no momento da pandemia, mas ficam mais evidentes. Enquanto vejo colegas “aproveitando” o momento para colocar as publicações, estudos em ordem (quando o desespero emocional possibilita isso), aqui, o cuidado com os pequenos toma 24h por dia, restando-nos apenas as madrugadas, o que impossibilita uma produtividade e um trabalho conforme cobrados pela Universidade. O papel de companheira Tenho muita sorte pelo companheiro que tenho na parentalidade de meus filhos. Nestes anos de construção, meu parceiro tem se constituído como uma pessoa que exerce suas atividades, obrigações emocionais e suas tarefas enquanto pai, responsável por seus filhos. Sei que sou exceção, e fico feliz por isso, mas a vida não fica menos cansativa ou pesada. Algumas atividades ainda são mais pesadas para mim, como despertar à noite. Minha bebê acorda praticamente de hora em hora e, quase sempre, só volta a dormir ao mamar no seio. Assim, não tenho noites de sono, o que dificulta muito os dias e as minhas outras atividades. O pai tenta, à noite e em outros momentos, me proporcionar horas de sono, porém são raras. Hoje a rotina é cansativa para ambos, mas vivível para mim. Meu companheiro também está trabalhando online e podemos vivenciar o isolamento social em casa sem a necessidade de sairmos para trabalhar, o que nos dá mais tempo para as crianças, mas menos tempo para as demandas de nossos trabalhos. Dentre os papéis descritos, esse é o que está mais apagado e distante. Se ser companheira já é difícil com filhos pequenos em tempos normais, em época de pandemia torna-se ainda pior. As demandas dos filhos se multiplicam, os trabalhos domésticos também, além do estresse que acompanha as atividades cotidianas. A chegada de cada compra é uma tormenta. Manter as crianças longe das compras, higienizar cada item, cuidado, banho. Estresse e medo são sempre presentes. Muitas brigas aconteceram e acontecem por questões da vida na pandemia sobre os cuidados, os escapes, as pequenas desatenções. Com isso, a vida fica pesada. O cuidado e o companheirismo nos pequenos suspiros de tempo ao longo do dia em um olhar que atravessa, um beijo ao nos cruzarmos pela casa correndo entre um e outro filho ou tarefa, um abraço que acolhe e dá força no desespero e cansaço. Para mim, está sendo crucial ter com quem dividir esse momento, as atividades, os cansaços, os medos, o cuidado das crianças, o estresse, a vida e, principalmente, a esperança. Em tempo, nos últimos dias, meu companheiro foi acometido por uma dor nas costas que o incapacitou. Em exames descobriu-se uma 673 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) hérnia de disco. Repouso, dor, medo de como realizar o tratamento. Sim, as emoções por aqui não param! O papel de filha Desde o nascimento de minha filha, estamos na casa de minha mãe em uma cidade diferente daquela onde trabalho e moro. Viemos para cá em busca de uma melhor assistência para o parto. Acabamos ficando um tempo maior e, quando nos organizávamos para voltar para nossa casa, a pandemia chegou e ficamos por aqui. Ser filha e mãe foi e está sendo desafiador, principalmente em tempos de pandemia. A vivência 24h por dia há quatro meses faz surgir novas questões. É maravilhoso e especial também poder ser cuidada nesse momento. Minha mãe assumiu praticamente todas as atividades domésticas e nos ajuda com alguns cuidados, especialmente com o filho maior. Sou muito grata e tenho sorte em contar com minha mãe e correr para ela quando algo acontece. Desde o início da pandemia, ficando em casa por muito tempo, os acidentes domésticos aumentaram. As quedas no piso molhado, as batidas de cabeça nos armários, os saltos e os movimentos que acabam por encontrar e, às vezes, machucar outras pessoas. Se fossem outros momentos, a ida ao hospital seria certa, mas, em época de pandemia, a ida ao hospital é algo que só ocorreria em caso de extrema necessidade e, assim, corro para a minha mãe. Olhamos, afinal ela tem experiência em ajuda nos cuidados, nas constatações e nas saídas possíveis. Ser cuidada e não apenas cuidar está fazendo com que a vida seja possível nesse momento. E no drama da vida... os papéis Escrevo na madrugada, depois de um dia exaustivo — com choros, crises, tombos, assaduras e uma avaliação de financiamento de projeto de pesquisa com possível penalidade no conteúdo do projeto (também escrito em meio ao caos do isolamento social), por minha produção ter sido “insatisfatória” nos últimos dois anos, sendo os últimos sete meses vividos com uma bebê recém nascida e uma criança de três anos e os últimos quatro meses em isolamento total, sem sair à rua e com uma pandemia matando pessoas... Mesmo com as dificuldades enfrentadas, reconheço meu lugar privilegiado, com meu salário assegurado, o que possibilita que eu possa sustentar meus filhos sem me preocupar (pelo menos a curto prazo) com nossa subsistência, a minha vivência deste momento com pessoas com as quais divido os afazeres e labutas diárias e, ainda, por não estar realizando as atividades de ensino curricular à distância, uma vez que a Universidade encontra-se discutindo os planos de retomada das atividades e eu ainda estou em licença amamentação (obrigada ao Estado do Rio de Janeiro, que nos dá mais 3 meses de licença após a maternidade para que continuemos amamentando). Entretanto, minha vivência enquanto professora do Ensino Superior e pesquisadora é marcada pelo exercício desse novo papel de mãe. Nesse período de isolamento social, essas marcas e abismos que dificultam o trabalho, orientação e produção ficam ainda mais evidentes com a vivência e com o cuidado das crianças em tempo integral em casa. As atividades são realizadas na madrugada, quando possível. Muitas ficam 674 Maternidades Plurais pelo caminho. A saúde — mental, física — deteriora-se e a culpa explode — com relação tanto ao trabalho não realizado quanto à atenção e vivência com os filhos. A pandemia coloca uma lupa em questões que encobrimos e driblamos na vida cotidiana. Os desafios da maternidade, da mãe trabalhadora pesquisadora, que são diluídos nos pequenos respiros produtivos que ocorrem nas atividades das crianças fora do ambiente doméstico e dos cuidados parentais e nas madrugadas; as ações individuais das pessoas que se sobressaem ao cuidado com o coletivo; pessoas que dão mais valor ao dinheiro do que à vida. Essas questões, diluídas na vida “acontecente”, saltam aos olhos na pandemia e na vivência do isolamento social com as crianças e familiares em casa. As dificuldades em mantermos as crianças e a nós mesmos em casa enquanto as praças, praias estão lotadas. Lojas, shoppings abrindo enquanto o número de mortes pelo vírus continua subindo. Pessoas sem crianças lotando espaços públicos, o que impede que possamos levar nossos filhos para correr, brincar, tomar sol, questões vitais para elas. O trabalho que não cessa mesmo com o cuidado de crianças pequenas, nem na licença maternidade. O medo da imposição de retorno a atividades presenciais sem que a pandemia esteja controlada. Penso que esse momento traz à tona alguns dos principais problemas que enfrentamos em tempos “normais”, mas que são relativizados e algumas vezes maquiados. Na pandemia tudo isso fica claro e só não vê quem não quer ou não se importa. Os papéis que vivenciamos tomam novos contornos na pandemia. No meu caso, sinto que estão mais intensificados e nítidos. Muitos desses papéis são contraditórios e fazem com que ajamos de formas diferentes nas diversas situações vivenciadas. Olhar e pensar sobre alguns dos papéis por mim assumidos dentre tantos outros nesse momento de crise me auxilia a me aprofundar em quem estou sendo, mas também ajuda a colocar as coisas em perspectiva, pensando o quanto dessas questões são compartilhadas com outras tantas mulheres que ocupam lugares semelhantes ao meu. A crise tem sido potente em evidenciar dores, desigualdades, ações, pessoas, e estou tentando tornar essa potência em ação de superação para a pós-pandemia. Algo de positivo há de surgir, além dos banhos demorados e da possibilidade de viver meus filhos integralmente nesse momento. Termino com o diálogo que tive com meu filho mais velho: — Quando o vírus for embora, eu vou voltar para a escola? — Vai sim. Você está querendo voltar, né? Tem perguntado muito dos amigos, da professora... — Eu quero, mas vou sentir saudade de ficar assim com você, papai, vovó e a irmã. É gostoso ficar assim juntinho... 675 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 113 Sobre maternidades e vida acadêmica em tempos de pandemia Renata Ghisleni de Oliveira1 Laura Cristina Eiras Coelho Soares 2 Lisandra Espíndula Moreira3 Optamos escrever esse texto como um diálogo ou um diário aberto de rotinas e de memórias direcionado a outras mães pesquisadoras. Uma conversa compartilhada entre nós — três mães pesquisadoras — e vocês. Navegamos em mares da maternidade e da vida acadêmica, enfrentando calmarias e turbulências entre as urgências do cuidado e os prazos urgentes. Construímos esse entrelaçamento de histórias que mostram nossas semelhanças e diferenças, experiências carregadas de desafios, mas também com facilidades que infelizmente ainda não estão consolidadas como direito de todas, constituindo-se em privilégios de classe, de raça, de escolaridade e de territorialidade. Atualmente, nós três vivemos em Belo Horizonte, mas essa não é a cidade de origem de nenhuma de nós. Somos migrantes de outros Estados, atraídas por diferentes oportunidades de trabalho. Estarmos afastadas da rede familiar tem um peso importante na maternagem, mas também se diferencia conforme o tempo da maternidade (filhos/as pequenos/as, filhos/as maiores). Cem dias entre maternar e pesquisar - Relato de Renata 1 Pós-doutora pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG. Doutora em Psicologia Social pela PUCSP. Psicóloga e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E, dos títulos, o mais importante: mãe do Caio e da Alice. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3715975435139174 2 Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Mestre e Doutora em Psicologia Social pela UERJ. Autora do livro “Pais e Mães recasados: vivências e desafios no ‘fogo cruzado’ das relações familiares”. Mãe do Arthur. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8820390638683747 3 Doutora em Psicologia (UFSC), Mestre em Psicologia Social e Institucional e Psicóloga (UFRGS), docente do curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG. Mãe do João Pedro que está com 15 anos e da Maria Elisa, 13 anos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9536102634454549 676 Maternidades Plurais Minha trajetória acadêmica é anterior à maternidade. No entanto, esta experiência radical que é a chegada dos/as filhos/as, trouxe, sem nenhuma dúvida, novos contornos para minha vida como pesquisadora, psicóloga e professora universitária. Defendi minha tese de doutorado grávida do meu primeiro filho, o Caio, que teve uma passagem breve e intensa por aqui. Os 26 dias de sua existência produziram uma infinidade de movimentos em mim, e, entre voltas, revoltas e reviravoltas, segui a vida que ganhou novos e outros sentidos a partir desta experiência. Alice, minha “bebê arco-íris”, assim chamada porque veio depois da tempestade, chegou logo depois de uma mudança de cidade e estado. Habitar um novo território trouxe consigo um tempo oportuno, no qual não ter uma vinculação institucional possibilitou gestar em repouso e acompanhar minha filha em tempo quase integral durante, praticamente, todo seu primeiro ano de vida. O retorno ao trabalho caminhou junto com os primeiros passos da Alice. Éramos as duas buscando o equilíbrio. Eu, entre as demandas da pesquisa de pós-doutorado, das aulas e orientações na universidade e das rotinas da casa e dos cuidados com uma filha de um ano de idade. Ela, nas descobertas do próprio corpo, nos limites entre ela, o outro e as coisas, ora esbarrando e caindo, ora experimentando o gostinho da liberdade que o andar com as próprias pernas possibilita. Se Caio inaugurou, de um modo muito especial, a maternidade em mim, Alice abriu espaço para o exercício da maternagem no dia a dia, para as alegrias das descobertas compartilhadas, para a beleza quase inenarrável do amor cotidiano — o amor (extra)ordinário — e, também, para as inúmeras tarefas de cuidado que uma criança exige — o que nem sempre é fácil e leve. Tenho me perguntado o que a pandemia trouxe de novidades e desafios para as mães pesquisadoras, se boa parte do trabalho acadêmico já era feito em casa — preparação de aulas, leituras e estudo, correção de trabalhos, avaliação de monografias, dissertações e teses, pareceres de artigos, elaboração de textos científicos, entre outras tantas tarefas que permeiam a rotina de quem se ocupa do universo acadêmico? Ocorreu-me que este trabalho “dos bastidores” da vida acadêmica costuma também ser invisibilizado como o trabalho não remunerado que recai maciçamente sobre as mulheres — os ofícios de cuidado. Não é incomum, ao nos apresentarmos como professoras ou pesquisadoras, ouvirmos “ah, mas você só dá aula”. Um enunciado que nos traz uma pista para pensarmos o quanto as tarefas do âmbito privado tendem a serem desvalorizadas e invisibilizadas em detrimento às atividades que se publicizam. A pandemia agrava uma problemática de desigualdades, já posta anteriormente, na divisão radicalmente desigual de tarefas e nos seus desdobramentos de carga mental, efeitos do trabalho invisível de planejamento, organização e tomada de decisões do trabalho doméstico. Na medida em que se intensificam as experiências no reduto onde moramos, é como se uma lente de aumento fosse posta nestas desigualdades, interferindo no equilíbrio metaestável que torna possível conciliar tantas demandas. 677 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No nosso caso, a distância da família e de boa parte das/os amigas/os é uma realidade, pois meu companheiro, Miguel, e eu somos gaúchos e vivemos longe do Sul há mais de uma década. Esse devir migrante nos levou a contar com uma rede limitada de apoio mesmo antes da pandemia, o que torna nossas rotinas bastante complexas. Sem dúvida, as orientações de distanciamento e isolamento social para conter o avanço do coronavírus trouxeram grandes desafios — o teletrabalho passou a ser mais uma atividade compartilhada entre meu companheiro e eu, as tarefas de cuidado da casa e da Alice tomam mais o nosso tempo — e mais ainda o meu, malabarismos cotidianos mil para manter em casa uma menina de 3 anos de um modo que seja saudável para ela e para nós. Meu sentimento tem sido de que trabalho nas beiradas, quando sobra tempo, quando dá. Antes do sol raiar, nas madrugadas, entre tempos. Quando Miguel termina sua jornada de trabalho, eu corro para fazer minhas tarefas acadêmicas. A cena é cômica (se não fosse por vezes trágica) — eu trancada no quarto em frente ao computador com Alice gritando “mamãeeeeeee”, e quase derrubando a porta na esperança de entrar. Respiro fundo, coloco fones, uma música bem baixinho, e tento me concentrar para um trabalho que exige sempre uma grande elaboração de ideias. Não são raras as vezes que Alice me pergunta “você vai trabalhar?”, fala “eu também quero trabalhar!” e nos provoca “agora não posso, estou trabalhando”. Ecos de uma quarentena. Ecos de vidas que optam fazer isolamento social por uma escolha ética de cuidado consigo e com o outro e que podem ficar em casa porque possuem condições para o exercício de uma quarentena quase irrestrita. Importante destacar que ocupo uma posição privilegiada como trabalhadora e mulher — pesquisadora, pós-doutora, branca, de classe média com um companheiro que divide esse barco comigo, navegando ao meu lado nesses mares. E essa posição/ condição deve ser levada em conta em qualquer análise. Sem dúvida, conciliar maternidade e vida acadêmica é fazer uma travessia repleta de desafios: é navegar num mar com muitas tempestades, é tomar um tanto de caldos, é nadar contra a corrente, é suportar o tempo de estar à deriva e é, também, aproveitar e apreciar a tranquilidade dos dias de mar calmo. São raros, mas eles existem. Finalizo essa escrita atravessando mais de cem dias de “quarentena”. Ao mergulhar nessa experiência intensiva, lembrei do livro “Cem dias entre céu e mar”, de Amyr Klink 4. Numa obra de dimensão pequena, Amyr relata uma incrível odisseia: a travessia realizada por ele do continente africano ao Brasil (cerca de 6.500 quilômetros), de forma solitária, a bordo de um minúsculo barco a remo. Sim, você leu certo. Era ele, um pequeníssimo barco, um par de remos, o céu e o mar. Numa aproximação de vivências, dadas as devidas diferenças entre elas, sinto-me radicalmente marcada por esses mais de cem dias entre maternar e pesquisar. E espero que a odisseia cotidiana que experiencio e que é, sem dúvida, compartilhada por muitas mulheres, possa ser vivida de forma apoiada e cuidadosa; não só com estratégias (de sobrevivência) construídas por cada mulher e seu núcleo familiar, mas que passem pela elaboração de políticas ampliadas que permitam navegar sob diferentes condições e nos mais diversos mares. 4 KLINK, Amyr. Cem dias entre céu e mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 678 Maternidades Plurais Uma surfista iniciante - Relato de Laura Meu filho dorme nesse momento no colo do pai e, só assim, consigo escrever. No entanto, preciso limpar as compras que chegaram, inclusive itens de geladeira que repousam há horas no calor do chão da sala no cantinho de descontaminação que criamos. Além disso, preciso limpar o espacinho dos brinquedos dele, que tem poeira que vem da avenida localizada em frente e também tem restos de pão. Outras preocupações em minha mente se misturam: a papinha que cozinhamos e congelamos está acabando e tenho que revisar os novos artigos que chegaram, pois sou editora de uma revista científica. E, bem, agora tento me concentrar para escrever. Observo a lista de afazeres acadêmicos ao lado do computador: parecer para duas revistas (recebi sete pedidos nas últimas semanas), finalizar artigos (alguns atrasados desde o início da jornada materna), ler material de orientandos de pós-graduação, e a lista segue, segue, segue. Nenhuma novidade nas tarefas cotidianas de uma docente universitária, mas estamos em uma pandemia, o que mudou? Bem, não possuo rede familiar em um raio de 450km e tenho um neném de pouco mais de um aninho cuja dependência, obviamente, é total. No entanto, no meu lugar de privilégio não me sinto no direito de reclamar, mas posso dizer que há cansaço. O cansaço físico das atividades domésticas e o psíquico de pensar na infinidade de coisas a fazer, no malabarismo de responder mensagens de whastapp enquanto balanço um coelhinho e canto uma música. Do impacto de receber mais um email agendando uma reunião online e pensar que poderia ser substituída por uma mensagem escrita de whatsapp ou, no máximo, por um áudio de até dois minutos. No meu espaço de privilégio conto com o pai do meu filho, sim, triste chamar de privilégio a presença paterna atuante. Mais triste ainda dizer que é meu privilégio e não talvez do meu filho, o que convenhamos, também não seria menos triste. Desde que meu bebê nasceu, sempre me pego pensando nas mães solo: minha nossa! Sem palavras para descrever minha admiração e preocupação com a saúde delas! Podemos ainda acrescentar outros marcadores nesse cenário: somos brancas e de classe média. Escrevo no plural, pois esses aspectos se aplicam às três pesquisadoras que aqui se apresentam e falar sobre nossa vivência não pode ser descolado desses lugares. Então, como está sendo essa experiência da maternidade sendo pesquisadora? Essa pergunta, proposta por este livro, é muito complexa, pois não há uma maternidade única e o exercício da maternidade depende de muitos fatores. O maternar também vai se modificando, como podemos perceber aqui no relato de três pesquisadoras com filhos com idades e, portanto, demandas diferentes. Assim como, não há uma única maneira de estabelecer sua relação com o trabalho de docente/pesquisadora, algumas atividades são comuns, outras são escolhas, outras armadilhas e ainda dependerá de como você lida com essas exigências e esses prazos. Ainda estou construindo a prática do trabalhar com filho, meu mergulho nesse mar é recente, estou molhando pulsos e nuca para me acostumar com a temperatura ao mesmo tempo em que algumas ondas estouram em meu rosto. A pandemia nos capturou cerca de duas semanas após ter retornado à sala de aula presencial. Logo, minha experiência até o momento é home office com filho sem a questão de me ausentar de casa, posso abrir a porta do escritório e amamentá-lo praticamente a 679 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) qualquer momento. Sair de casa será o estranho para mim, pois eu já estava praticamente em isolamento em função da epidemia de sarampo que atinge nosso país. Agora ele está vacinado contra sarampo, porém não há vacina para Covid-19. O suposto “novo normal” talvez seja o que já se tornou normal para mim — tive uma gravidez de risco que exigiu repouso por muito tempo — e esse período, somado aos primeiros meses que eu não saía em decorrência do risco de contágio de sarampo, totalizam mais de um ano. Em decorrência da Covid-19, estamos isolados desde março e como meu filho é muito novo, para ele, o mundo somos nós três. A lembrança de outros familiares se resume a chamadas de vídeo, bem, isso me preocupa. Como estimular o desenvolvimento do meu filho em uma fase tão importante, durante uma pandemia que impede a interação social, residindo em um apartamento que dificulta tomar sol, sentir a chuva, ter contato com a natureza e impossibilitados de ver o mundo que gostaria tanto de apresentar a ele? Aqui o conhecimento acadêmico se mistura à maternidade e mais uma preocupação aparece na lista infindável de coisas a resolver. Esse é um ponto que difere na pandemia: a rede de apoio profissional e familiar sumiu em nome da proteção de todos os envolvidos. Assim, as atividades se acumularam para os pais e o tamanho do mundo ficou menor para meu filho. Ouço barulho, ele acordou, hora de mamar e brincar, em poucas horas será jantar e banho, acho que o chão da sala deve estar molhado das compras e não deu tempo de terminar de escrever tudo que eu queria e …frghygrfdedfjussdrtf... Pronto! meu filho ajudou a concluir o pensamento. Calmaria, como assim? - Relato de Lisandra Pensando sobre a maternidade na quarentena, com a imagem desta chamada remetendo aos oceanos que nos movimentam ao pesquisar e maternar, fico tentada a pensar que vivo em tempos de calmaria. Tenho filhos adolescentes e talvez alguém se espante em ver a adolescência associada a qualquer ideia de calmaria. Posso explicar. Vivenciei o início da maternidade ainda em período de formação acadêmica (como se um dia ela acabasse…) cursando mestrado e doutorado. Foram sem dúvida grandes tempestades. Talvez diferente de muitas mães pesquisadoras, minha inserção na pós-graduação aconteceu após o nascimento do meu primeiro filho. Até então, eu estava inserida no mercado formal de trabalho, atuando na minha área de formação. Assim como não raras vezes vi acontecer, trabalhando na área de recursos humanos, fui demitida ao fim da licença maternidade, sob a justificativa de que eu não teria como manter o ritmo de trabalho sendo mãe. Esse foi um momento divisor de águas para mim. Não seria mais possível continuar trabalhando na interface da Psicologia do trabalho sem colocar em questão as diferenças que são impostas às mulheres trabalhadoras. O mestrado foi uma tentativa de contribuir com esse debate e investir na vida acadêmica. Foi também uma estratégia de viver a maternidade com uma rotina mais flexível de horário (antes eu trabalhava 40h semanais numa empresa) e com a possibilidade de renda contando com a bolsa. Eu também não estava sozinha e contava com os horários de trabalho alternativos do meu marido. 680 Maternidades Plurais Minha segunda filha nasceu ao longo do mestrado (2007) e ainda não havia a previsão de licença maternidade para bolsista. Fiz o campo até o oitavo mês e depois escrevi a dissertação com ela bebê. Pesquisei a articulação entre trabalho e maternidade em diferentes contextos sociais. Desde essa época, sempre fiz o exercício de pensar a articulação entre maternidade e vida acadêmica, tanto olhando nossos pares para visibilizar o quanto as tarefas de cuidado impactam a pesquisa, quanto olhando também outros espaços de trabalho e com isso reconhecer que há algumas facilidades, às vezes traiçoeiras do trabalho acadêmico. Depois segui o doutorado, me aventurando em uma universidade em outro estado. Diz a sabedoria africana que é preciso uma aldeia para educar uma criança e tínhamos a facilidade de morar na mesma cidade da minha rede familiar. Nossa aldeia se fez presente. Na época da escrita da tese, eles já estavam um pouco maiores (sete e cinco anos) e tentavam compreender o que afinal era o meu trabalho, as horas de dedicação em frente ao computador, as leituras, a escrita. Certa vez meu filho explicou a alguém que queria saber então o que era a tese: “É como um cadernão que minha mãe escreve, escreve...”. No dia em que enviamos os exemplares da tese para os membros da banca, saímos da agência de correios com um carrinho de feira vazio, antes carregados com os cadernões. Meu filho no alto de seus sete anos anuncia em tom solene: “Agora acabou, mãe”. Estávamos eu, meus filhos e minha mãe emocionados. Ninguém na rua teria a dimensão do que significava aquela cena. Claro que nunca acaba, depois tem a banca, tem a elaboração de artigos, vieram concursos, mudança para outra região do Brasil, posse, probatório, projetos de pesquisa… Perdemos nossa rede de apoio familiar morando em outras regiões. Fomos descobrindo caminhos, desenvolvendo estratégias. Assim, foram também crescendo meus filhos e minha trajetória. Na articulação da maternagem com a pesquisa, a adolescência chegou como calmaria e veio articulada com a estabilidade numa universidade federal. As demandas de cuidado já quase não existem, mas persiste a demanda de presença, agora uma via de mão dupla e os grandes desafios e conflitos dessa fase. Então, em 2020, fomos lançados nessa rotina estranha da quarentena. Convívio intensificado, divisão de tarefas em casa, escala do uso do computador. Agora as aulas vêm em videoaulas, o encontro com os amigos e família são em vídeo-chamadas. As demandas de trabalho e de estudo não diminuíram, mas a forma de dar conta delas se transformou, exigindo ajustes, conversas, combinações entre todos. Penso que se a quarentena tivesse nos atingido em momentos anteriores, minhas possibilidades de responder às demandas de trabalho e de cuidado com eles menores seriam diminuídas. Diferentes marés, mesmo oceano Nessa escrita, a variação está relacionada às tarefas conforme a idade dos filhos, mas há outros atravessamentos. Há situações de familiares com necessidades especiais, filhos com alguma demanda específica mesmo maiores, cuidado com pais idosos, distanciamento ou ausência de rede de apoio familiar, as divisões de tarefas por questões de gênero, dentre outros. De outro lado, a vida acadêmica também tem as suas variações, desde o tipo de vínculo em instituições públicas ou privadas, o nível da carreira, as exigências de projetos que estão em desenvolvimento, a rede/equipe de trabalho dis681 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) ponível, as funções assumidas na instituição, dentre outros. Nessas diferenças estão alguns dos desafios de pensar a partilha do cuidado e a construção de suportes que permitam escolhas laborais e familiares com mais tranquilidade. Somos muitas e muito diferentes. Escrevemos esse(s) texto(s) ao longo de algumas semanas, com a facilidade de um documento online aberto que possibilitou que cada uma de nós, a seu tempo, quando tivesse tempo, viesse, abrisse e escrevesse. Aqui, entre as horas da escrita e as horas do cuidado, o tempo se transforma em muitas dimensões. Os relatos que fizemos dizem respeito às nossas vivências específicas, mas nos impulsionam a pensar o trabalho científico e as maternidades. Maternidades sempre no plural, jamais encapsuladas em imagens estáticas e padronizadas. Maternidade é movimento, são ondas levadas pelas mudanças decorrentes do crescimento dos/as nossos/as filhos/as. Somos as mães que conseguimos ser nesse cenário das (im)possibilidades sociais, históricas, culturais e pandêmicas. 682 Maternidades Plurais 114 Uma onda no oceano Renata Rocha Ribeiro1 Para minha familinha: Anderson e Lauro e Marina Quando recebi a chamada para escrever este relato e, em seguida, quando decidi que iria fazêlo, comecei a pensar sobre qual pergunta eu deveria me fazer para tentar responder nestas linhas. Diante do banner da proposta, que trazia a ideia de “diferentes oceanos de mães cientistas” e com a imagem de uma onda no momento anterior ao de sua quebra, me questionei: quais as minhas “aventuras cotidianas” como mulher, mãe, esposa, professora diante do cenário de pandemia? Além disso, como essa situação de exceção tem me afetado? Confesso que não consigo chegar a outro ou a outros questionamentos. Vou deixar que o fluxo me conduza em um tipo de escrita, a do relato pessoal, ao qual não estou tão acostumada a fazer devido às minhas exigências profissionais. Creio que, antes de qualquer coisa, eu deva me apresentar. Meu nome é Renata, sou professora de Literatura Brasileira e Estágio do Português na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (FL/UFG), na cidade de Goiânia. Estou também vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL) da mesma instituição, onde desenvolvo pesquisas voltadas aos Estudos Literários, bem como oriento alunas e alunos em seus percursos de mestrado e doutorado. Meu vínculo profissional com a UFG já dura praticamente dez anos e o ensino superior sempre foi meu desejo quando ingressei nesta mesma casa, como aluna da graduação. Persegui esse desejo fazendo mestrado e doutorado, também na UFG, sendo orientada pela profa. Dra. Goiandira Ortiz, a quem devo grande parcela de meu trajeto acadêmico, bem como respeito e admiração. Nesse ínterim, fui aprovada em concurso público para professora na Universidade Estadual de Goiás (UEG), onde permaneci por seis anos, ministrando aulas de literatura (Teoria, Literaturas Brasileira, Portuguesa, Goiana e Comparada) em curso de graduação de Letras no campus da cidade de Inhumas, a uns quarenta quilômetros da capital. Recentemente, concluí meu primeiro estágio pós-doutoral, realizado junto à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 1 Bacharel em Letras/ Literatura (2003), mestre em Estudos Literários (2005) e doutora em Estudos Literários (2010) pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é professora associada, nível 1, da Universidade Federal de Goiás, em regime de dedicação exclusiva. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9766358738375689 683 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Mas esse resumo profissional não diz tudo ou muito sobre mim. Sou casada há doze anos com meu companheiro de vida, Anderson, também funcionário público, e que é o pai de nossos dois filhos: Lauro, um menino muito curioso de oito anos e Marina, uma menina de enorme coração de seis anos. Poderia aqui contar sobre como conheci meu marido, bem como da escolha dos nomes de nossos filhos, ou ainda de suas peripécias e gracinhas, porém creio que assim eu extrapolaria muito mais que o limite físico da escrita que aqui me foi permitido. Poderia, ainda, da perspectiva de mulher, dizer da minha experiência como mãe já funcionária da universidade, da batalha travada em torno da amamentação, do retorno ao trabalho após a licença-maternidade, mas, para o momento, fiquemos apenas com essas informações iniciais. Além disso, gostaria também de tentar voltar meu relato mais para esse momento de pandemia. Mais uma vez, ao refletir sobre minhas “aventuras cotidianas” dentro dessa pandemia, consigo organizar meus sentimentos, pensamentos e ações em dois campos: o individual e o coletivo. Contamino aqui esse relato por um discurso categorizador, típico da pesquisadora, eu sei, mas do contrário talvez esse relato fosse um monólogo interior confuso e sem sentido. Recordo-me novamente da imagem do banner da chamada deste livro: uma sensação possível nesse momento caótico seria essa, a de ser uma onda que se avoluma diante da iminência de uma quebra. Qual o meu oceano? E, novamente, como tudo isso me afeta, afeta aqueles com quem convivo? Creio não ser inocente aqui o fato de a palavra “afetar” ter me ocorrido. Não vou novamente me furtar do discurso acadêmico, então faço uma citação. Para os psicanalistas franceses Laplanche e Pontalis2, o termo “afeto” exprime um estado afetivo qualquer (no que tange os sentimentos ou interesses pessoais de um indivíduo), que, por vezes, pode se manifestar em uma espécie de “descarga maciça” — imagino aqui a onda como representação dessa densidade. Seria uma metáfora possível? Ou são só devaneios meus? De todo modo, é essa a impressão que por vezes me ocorre neste instante singular por que passamos: parece que sempre há algo por vir, como essa onda que se engrandece e em um momento vai se rebentar. Assim, individualmente, de imediato, quando começou o período de quarentena, vi que minhas atribuições e tarefas cresceram e me preocuparam. Creio que a palavra não é cresceram, mas a ideia é algo como choque — as coisas começaram a se chocar. Parece que tudo ocupava o mesmo lugar no mesmo tempo. Antes tínhamos uma rotina bem delineada que funcionava para nossa família: horário de escola, de trabalho, de afazeres domésticos, de lazer. Isso sem nem entrar no mérito de meu lugar de privilégio, porque acredito que ele tenha ficado claro quando me apresentei — de classe média, tive a oportunidade de concluir todos os níveis de instrução etc. A realidade é que, mesmo eu sendo uma pessoa desde sempre mais caseira, experimentei uma sensação muito ruim ao me ver impedida de simplesmente sair para um passeio qualquer com as crianças, com o marido, encontrar as amigas ou fazer as demais atividades rotineiras. Passei por muitos altos e baixos emocionais, com dias em que não conseguia produzir nada, mas também acabei por tentar respeitar meu tempo, na medida do possível. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Diccionario de psicoanálisis. Tradução de Fernando Gimeno Cervantes. 6a reimp. Buenos Aires: Raidos, 2004. p. 11. 2 684 Maternidades Plurais Quando o afastamento social se fez obrigatório, no mês de março (e é importante informar que já estamos em julho), meus filhos deixaram de ir à escola. Aí se iniciou parte da aventura como mãe. Foi um momento um pouco tenso pois não sabíamos como a escola deles iria lidar com a situação de imediato. Além de professora fora de casa, me vi às voltas com uma situação análoga à de homeschooling, pois Lauro está no terceiro ano e Marina, no primeiro ano do fundamental 1, sendo alfabetizada. Por mais independentes que sejam ou tentem ser, dependem ainda da orientação de um adulto, seja para manejar o computador ou para a compreensão de alguma tarefa. Logo, minhas manhãs (são alunos do turno matutino) estão voltadas para o acompanhamento das atividades escolares dos dois: vídeo-aulas, tarefas, pequenos projetos optativos, aulas semanais no modo conferência para verem as amigas e os amigos da escola. Gostaria de registrar que a admiração pelo trabalho das pedagogas e, em especial, pelas professoras deles já existia, mas nesse momento se somou ao espanto, na ausência de melhor termo, de se verem obrigadas a se imiscuir no ensino digital assim, de chofre, usando o método da tentativa e erro em um tempo recorde. Isso me levou a relembrar, como professora de um curso de licenciatura, que a formação de um/a professor/a não se acaba. Além disso, me fez pensar que nós, professores/as, à exceção daqueles/as que se dedicam ao ensino à distância, não fomos preparados/as ou até mesmo levados/as a ter algum interesse para atuar dessa maneira, mesmo rodeados/as das mais diversas tecnologias. Mas creio também que esse grupo de professores/as não devamos nos culpar, uma vez que optamos pelo ensino presencial. Nossas escolhas determinam nosso campo de atuação e especialização. Além da questão escolar, a aventura materna se desenrolou em torno de propiciar um ambiente saudável para as crianças, uma vez que o espaço delas se tornou muito restrito, apenas a nossa casa. Estamos seguindo o isolamento sem visitas, apenas com as chamadas saídas necessárias, como mercado e o trabalho de meu marido, que exige que ele saia e tenha contato com diversas pessoas ao redor da cidade. Em outras palavras, estamos em situação relativamente considerável de exposição, mesmo adotando todos os cuidados necessários, o que não deixa de gerar certa apreensão. Não mais festas de aniversário que as crianças tanto amam, casa dos padrinhos, tios e primos, dos avós, dos amigos. Vejo que há pessoas que encaram isso como “maldade” com os pequenos, mas como visitar ou receber visitas, mesmo que das pessoas mais próximas, se na maioria de nosso círculo familiar há a combinação de fatores de risco, como doenças preexistentes? De qualquer forma, se a saudade aperta, ainda podem ver as pessoas queridas da calçada ou conversar por telefone/internet. Quando tenho um tempinho de sobra, tento fazer atividades diferentes com eles, mas nem sempre isso é possível. Tentamos então assistir todos juntos aos seus desenhos preferidos, brincamos de suas brincadeiras favoritas, lemos — e nesse sentido, tem ajudado muito a disponibilização gratuita de e-books. Mesmo tendo condições favoráveis, confesso que me deixa triste ver duas crianças saudáveis e que precisam ver o mundo, meu filho e minha filha, circunscritas ao mesmo espaço todo dia. Também me preocupou conseguir explicar aos dois as circunstâncias de modo que entendessem, mas que não ficassem muito amedrontados. E, claro, como crianças, manifestam suas insatisfações com todo esse contexto. Quanto à minha aventura profissional, assim que a quarentena se impôs, se iniciou um período em que me afastei da universidade para capacitação profissional, cuja duração é de três meses. As atividades que propus em meu plano de trabalho foram duas: a realização de um curso online e a 685 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) participação em um projeto de pesquisa de uma colega de outra instituição. Meus objetivos iniciais eram, de um lado, concluir o curso e obter seu certificado e, de outro, escrever um artigo com temática vinculada ao projeto, a fim de submetê-lo a algum periódico especializado. Consegui começar e concluir o curso, obtendo o certificado. Nesse sentido, minha “sorte” é que tive de ler uma lista de obras literárias muito interessantes, o que acabou me ajudando nesse início de isolamento, já que ler literatura faz parte do meu trabalho e, por que não, da minha vida. Por outro lado, não consegui escrever o artigo que me propus, pois não tive tempo para me dedicar à revisão bibliográfica, praticamente toda em espanhol, tampouco à leitura do corpus que escolhi. Essa é uma atividade que vai ficar para depois. Também tinha planejado, após o afastamento, a (re)leitura da obra de uma das autoras que abordei em meu pós-doutorado, a fim de organizar uma entrevista, mas não foi possível concluir essa tarefa. Assim, estou me dedicando à orientação de minhas alunas e de meus alunos de mestrado e doutorado online, bem como às atividades de pesquisa de modo mais lento que o esperado. Participo de reuniões online dos colegiados de minha unidade acadêmica. Estou tentando também me inteirar sobre plataformas digitais de ensino, conhecimento que eu não possuía, uma vez que a universidade está debatendo sobre o retorno de algumas das atividades de ensino obrigatórias. E devido ao meu afastamento, estou sem disciplinas distribuídas para mim e isso me gera certa tensão quanto ao retorno das aulas. Mas esses rearranjos, readequações e frustrações individuais não se comparam ao que eu experimentei em relação às questões que eu havia adiantado aqui como coletivas. Sim, todo o nosso contexto social tem me afetado tanto e de tal forma que nem sei por onde começar. Mas, de forma resumida, meu desencanto se divide na forma como se tem lidado com a situação de exceção e no modo como nos comportamos como sociedade. As preocupações com a educação e os rumos sociais se assomam no dia a dia. Creio que toda pesquisadora e todo pesquisador têm observado a ascensão de um discurso de descrédito para com o conhecimento científico e a universidade pública. Não vou entrar no mérito dos vários interesses escusos que estão por trás disso tudo, mas é com tristeza profunda que contemplo esse cenário. Como professora universitária, não acredito que toda pessoa seja obrigada a ter um curso superior. Isso, a princípio, seria um absurdo partindo de uma pessoa como eu, escolarizada em todos os níveis. O que tento dizer é que existem inúmeras profissões, mais ou menos técnicas, que não exigem um diploma superior para sua atuação — e tudo bem. Só que toda profissão exige algum tipo de domínio, conhecimento, não necessariamente relacionado à sua atuação direta. Meu ponto é que toda pessoa que tenha interesse possa ter acesso ao ensino superior público e de qualidade, seja de qualquer área, ainda que não vá atuar nela, pois a universidade é conhecimento, é lugar de troca. Entretanto, vivemos um momento muito utilitarista e de busca por muito dinheiro — e, de preferência, com pouco esforço. Se o jogador de futebol é milionário, não precisa ir para a escola. Se o dono da start up é milionário sem ter concluído curso superior, não há necessidade de estudo formal. Poucos são os que discutem questões sociais que possibilitam, por exemplo, a existência da riqueza e da pobreza extremas. Como se para ser bem-sucedido bastasse seguir os conselhos do lifestyle coach. E o que é ser bem-sucedido? Ser rico? Famoso? Aí entra em alta o discurso antiacadêmico e anticientífico. Isso é muito perceptível, por exemplo, no contexto da internet e das redes sociais. Mesmo nas áreas em que há o embasamento em evidências e que exigem formação superior (a medicina, para ficar em um exemplo bem claro), muitas pessoas se voltam contra elas e preferem 686 Maternidades Plurais acreditar em alguém que não tem conhecimento algum da área, segundo um viés conspiracionista absurdo. A coisa fica muito pior quando partimos para as humanidades, vistas como um lugar desnecessário. Ora, se o saber que se debruça sobre as questões relacionadas ao que é humano é visto como inútil, o que resta ao ser humano? Pensar que só vai ter sucesso (dinheiro) se acordar cedo? É devastador ouvir tantos despautérios e a desqualificação de conhecimentos como os de filosofia ou sociologia. Não quero nem dizer que projeto de educação é esse. Enfim, não consegui expor da forma como eu queria toda essa questão que abrange a coletividade, mas é um emaranhado que tem me atravessado e feito os piores momentos de toda essa conjuntura pela qual atravessamos. Como diriam os mais antigos, estamos tocando tambor para doido dançar. Tive dias muito ruins, angustiada com tudo isso: com a extrema polarização das discussões sobre economia e saúde; com as notícias de avanço rápido de mortos; com gente que manda a vida se danar; com patroa que deixa o filho pequeno da empregada sozinho em um elevador; com a luta das minorias ainda muito subvalorizada. Creio que eu poderia ainda me alongar nos pontos levantados, mas vejo que meu espaço está sendo quase todo preenchido. Posso ter caído em armadilhas dos truísmos ou do simplismo, mas, paciência, não vou me punir por isso. Gostaria de dizer que, apesar de tudo isso e apesar de parecer clichê, é importante a união nesses tempos difíceis, pois ela nos renova a esperança. É importante poder falar, ter espaço para isso. Nesse sentido, parabenizo iniciativas como a deste e-book, que tentam apoiar e unificar grupos — no caso, o de mães cientistas e agradeço pela oportunidade de participar dele. Gosto de imaginar, agora, que somos sim várias ondas em um oceano, sendo que uma transmite a outra suas experiências para que possamos continuar nossas trajetórias. Essa é uma das belezas do símbolo: não se prende a uma só coisa. A onda pode ser destrutiva, mas também potência; pode ser o movimento invariável, mas também ligação. Nossa rebentação é força motriz de nossos anseios. 687 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 115 Entre bolos, balões e brigadeiros: mães cientistas fazem epistemologia crítica Rosamaria Carneiro1 Sou antropóloga e há anos me dedico às investigações sobre saúde sexual e reprodutiva, mais especificamente sobre modos de nascer, aborto e mais recentemente maternidades. Sou mãe de dois meninos, atualmente com 5 anos e 11 meses. Refletir sobre as vidas maternas e as experiências corporais que podem envolvê-las ocupa, portanto, uma dupla entrada em minha vida: pessoal e profissionalmente. Faço ciência também a partir do que vivo, do que experimento em minha pele. Dessa maneira, os dilemas das mulheres com as quais dialogo em minhas pesquisas são também meus, me afetam e me atravessam. Há quem suspeite disso na antropologia e, assim, sustente e enalteça o tão famigerado “distanciamento necessário”, o “estranhamento”, a “neutralidade científica” e/ou a “objetividade”. Essas expressões não são necessariamente sinônimos, mas por vezes poderiam funcionar como se fossem. Por isso, há mais de uma década, vivo em um limiar talvez incomodo: o da familiaridade. Esse talvez seja mesmo o tom de minha vida acadêmica e investigativa. Ao longo de minha trajetória profissional, sempre pesquisei questões de gênero e que afetassem às mulheres. Questões que também me afetavam, como os feminismos latino-americanos e, depois, maternidades, partos e políticas do corpo. Tornei-me mãe depois de ter terminado o meu doutoramento, mas em meio a uma série de investigações sobre experiências de parto no Brasil e modos de maternar. Ou seja, sempre foi “afetada” (Favret-Saad, 2001)2 pelo meu campo. Mas talvez, mais do que isso, “me deixei propositadamente afetar”. Partindo da premissa de que é possível pesquisar e “estranhar o familiar” (Velho, 1981)3, de que é importante e factível fazer antropologia daquilo e a partir daquilo que está perto de 1 Doutora em Ciências Sociais pelo UFCH-Unicamp. Professora Adjunta Universidade de Brasília (UnB). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5760185568410598 FAVRET-SAADA, Jeanne. Être Aecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. 1990. pp. 3-9. 2 3 VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (Org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 36-47. 688 Maternidades Plurais nós. Talvez no jogo entre o de “perto e de longe” de Levi-Strauss4, em que pese o mesmo ter escrito mais sobre outros modos de vida. Mas o que me parece importar é que, nesse “de perto e de longe”, “afetação” e “familiaridade” entre minha vida e minha obra, funciona e faz sentido a ideia de Donna Haraway5 de que o conhecimento é “parcial”, “situado” e “apaixonado”. Nesse sentido, minhas pesquisas e meus escritos não pretendem esgotar um universo temático; circunscrevem-se a um nicho da vida social e me mobilizam internamente, a ponto de, por vezes, misturarem o pessoal e o profissional. Misturar no sentido de um campo da vida me ajudar a colocar foco ou questões sobre o outro campo, diverso. Exigindo, para parafrasear Malinowisk (1921), a reflexão constante sobre “o que faz, o que pensa e como faz”. Separar esse joio do trigo e fazer a vida pensar sobre a obra têm sido meus exercícios diários há anos, com rigor, com ponderação sobre teoria social, sobre o que importa descrever e como arquitetar linhas de pensamento. Se assim tem sido há anos, o que poderia acontecer durante uma pandemia de Corona Vírus em 2020? Em que poderia eu pensar ao estar há mais de 100 dias em casa, com meus filhos pequenos, com meu trabalho por fazer e com a casa para cuidar? Obviamente, pensar sobre a vida das mulheres mães, sobre esse universo doméstico; e, para este livro, pensar em como tenho feito ciência nesse contexto. Partindo de mim para refletir sobre as mulheres antropólogas e cientistas em geral. Sobre o que temos pensado e como temos feito nosso trabalho? Vida e obra, portanto, atravessam-se novamente. Virginia Woolf6 escrevera sobre a importância de as mulheres terem “um teto todo seu”, bem como tempo para escreverem. Mas como temos tempo e espaço para escrever, pesquisar e refletir se estamos, nesse momento, sem tempo e espaço nossos? Sempre que me sento ao computador, nas poucas horas que tenho, depois de lavar a louça, arrumar a cama, trocar a fralda, ajeitar o almoço e pendurar a roupa da máquina, sou poucos minutos depois interrompida por um de meus filhos. Mesmo que meu companheiro esteja em casa e divida as tarefas comigo, as crianças acessam mais às mães. Por pura cultura. Mas acessam mais. “Mamãe, troca o meu desenho, por favor?” ou “Mamãe estou com fome!” ou “Mamãe vem brincar comigo” ou “Mamãe já vai trabalhar de novo, né?”, são frases constantes em minha rotina. Ou então, quando finalmente me sento a escrever ou ler as primeiras linhas de algo que já me fora muito recomendado, escuto um choro ao fundo. O bebê acordou. A leitura, as linhas, a inspiração, o insight teórico, a capacidade de concentração imediatamente se perdem, assim como a capacidade das mães, que ama- 4 LÉVI-STRAUSS, C./ÉRIBON, D. De perto e de longe. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, pp. 155-162). (A frase de abertura citada por François Hartog encontra-se em LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris, Plon, 1962, p. 348; edição brasileira: O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989, p. 291 - NT). 5 HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 2009. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51046. Acesso: 24 dez 2016. 6 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. SP: Tordesilhas, 2014. 689 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) mentam à noite, lembrarem do que sonharam. Estou muito às voltas com os escritos e ditos do neurocientista Sidarta Ribeiro7, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sobre a importância do sonho. Mas nós mulheres mães, quando aleitamos, somos acordadas repentinamente, produzindo o hormônio da dopamina, que nos impede de recordar do que sonhamos. Em uma espécie de metáfora, não produzimos cientificamente quando e como poderíamos também quando temos filhos pequenos. Para isso, contamos com nossas redes de apoio: escolas, creches, amigas, avós e contra-turnos, para citar alguns. Sonhos e escritos acadêmicos terão então mais em comum do que imaginamos? Mas agora, durante o isolamento social, estamos sem nossas redes, com os filhos em casa, sem espaço e tempo nossos para escrever, ler e pesquisar. Tentamos fazer tudo junto e misturado. Somos constantemente interrompidas para brincar, cozinhar, trocar fraldas, alimentar. Mas também somos diariamente impulsionadas a refletir sobre tudo o que acontece aqui dentro e lá fora. Ao amamentar, quando as crianças estão dormindo ou em minhas poucas de trabalho isolada, no quarto de dormir das crianças, consigo ter acesso às notícias, estórias de vidas e pesquisas recentemente divulgadas. Enquanto cozinho ou limpo a casa, consigo escutar um podcast dos muitos que têm sido produzidos em antropologia no Brasil. Ao perceber como me sinto e ao ler mensagens ou escutar áudios de amigas, pesquisadoras e acadêmicas que também são mães, imediatamente me vejo pensando sobre os meus temas de pesquisa de outrora, mas também de agora. Tudo isso me leva a pensar, a encadear leituras, ter insights teóricos, me lembrar de teoria e referências que me ajudariam a interpretar aquele fato. Ou todos aqueles fatos, todos “fatos sociais” dotados de “valor”. Tenho muita vontade de escrever, de colocar no papel, de arquitetar um artigo, um texto, um raciocínio qualquer. Surgem temas e o desejo de elaborar projetos de pesquisa. Minha cabeça ferve de tantas ideias e possibilidades de trabalho. Precisaria de algumas horas ao dia para dar vazão a tudo isso. Fazer escoar. Simplesmente vazar tudo o que brota e borbulha em minha mente investigativa. Acontece que não tenho tempo, essas horas ou esses minutos. Nem sempre e tampouco de modo integral. Como acontece com o sono da mãe que amamenta e que dificilmente se lembra de sonhar, a dopamina também é produzida quando somos chamadas a atender as crianças pequenas e as demandas da casa. Ao escutar um “mamãeeeee ...” ou o choro do bebê que acordou, essas muitas ideias para articulação teórica, sacadas analíticas, possibilidades de releitura ou interpretação de um assunto já estudado são postas, momentaneamente de lado. Ao poder voltar, por vezes (ou quase nenhuma) me lembro de todas elas. Anoto em um bloco de notas ou em minha agenda, abro arquivos no computador intitulando um possível artigo futuro. Ou passo horas, quando a casa está em silencio, depois das 21h, a trabalhar e escrever. Mas já sempre cansada e sem a inspiração e respiração necessárias para fazer escoar os pensamentos, as pesquisas e as leituras. Por isso, penso que muito produzimos. Estamos a produzir mentalmente. O nosso intelecto não para. Mas precisamos de tempo para que o processo desça corpo abaixo e possa ocupar os nossos braços e as nossas mãos. Precisamos poder deixar descer ao corpo. Esse processo, entretanto, o de não poder dar vazão ao trabalho não me parece saudável para a vida das mães cientistas, que além de sobrecarregadas, se veem também angustiadas e frustradas de não conseguirem construir o raciocínio e as pesquisas como gostariam. Talvez muitas de nós 7 RIBEIRO, Sidarta. O oraculo da noite. SP: Companhia das Letras, 2019. 690 Maternidades Plurais estejamos, por isso, adoecendo. Pelo não poder escoar. Pelo não poder fazer, mesmo querendo e tendo todas as faculdades necessárias. Quase não consegui terminar essas páginas e talvez ainda não consiga. Hoje é o último dia do prazo. Muito embora esteja há semanas com a chamada aberta em meu computador, na última semana consegui ter um tempo miúdo para organizar as ideias que queria nesse artigo-relato compartilhar. Ocorre que, para além do escasso tempo de qualidade sozinha para escrever, nos últimos dias participei de uma banca de mestrado; analisei artigos em uma revista em que sou editora; atendi orientandas de mestrado; revisei o manuscrito de uma orientanda de doutorado que será publicado em breve; estive em duas reuniões de grupo de pesquisa e respondi a uma série de e-mails sobre tarefas editoriais e organização de pesquisas. Hoje à tarde, darei uma aula em um curso livre sobre antropologia e epidemias. No mesmo dia em que pretendo entregar esse artigo-relato. Mas o que ninguém sabe, a não ser as mães cientistas, é que ontem foi o aniversário de meu filho mais velho, que me pediu durante dias um bolo de chocolate com bolinhas coloridas e morangos; que idealizou há meses o café na cama no dia do aniversário e um almoço especial, com muito brigadeiro de granulados coloridos. Ele agora tem cinco anos. É uma criança confinada em um apartamento há mais de 100 dias e os seus únicos pedidos foram esses: coloridos, leves e gostosos de serem comidos, cantados e vividos. O que uma mãe cientista pode fazer nesses casos? Assar o bolo, enquanto faz o almoço e envia o link do googlemet para as famílias amigas; pendurar balões pela casa; trocar a toalha colorida e pendurar fitas em um varal de barbante; fazer um suco de melancia fresco; enrolar brigadeiro e decorar o bolo com um topo de bolo já antigo, mas o único existente na casa. Em plena pandemia. Os pedidos do menino foram tão mágicos e tão possíveis. Desejo de afeto e de ritualização. Para uma mãe antropóloga há que se ritualizar, ainda que os rituais nada tenham de extraordinário. Bem ao contrário, sejam na ordem do ordinário. Em meio a tudo isso, ao mexer o brigadeiro, pensava também no que aqui queria escrever, em como queria costurar teoricamente que uma mãe cientista pode sim fazer ciência e problematizar os seus cânones no que tange às ideias de neutralidade, do que vale e pode ser pensado, de que o pessoal é político, como diria o feminismo, mas também epistemológico. O pessoal é epistemológico e urgente. No dia ontem, por exemplo, pude refletir sobre a naturalização da ideia de cuidado na sociedade brasileira, da idealização da figura da mãe, da invisibilidade das crianças brasileiras nesse momento, sobre a desigualdade de classe e raça/cor entre as mulheres; sobre a divisão social e sexual do trabalho; sobre a desconsideração de nossos corpos nesse momento; sobre os impactos da pandemia na produtividades das mães acadêmicas; sobre ausência de amparo estatal e pactuação coletiva no Brasil; sobre o cru e o cozido e sobre economia e sobre sonhos. Sobre a possibilidade e impossibilidade de se sonhar nesse momento. Entre tantos outros assuntos. Todos eles seguiram comigo todo o dia, permaneceram a noite. Alguns pensamentos mais íntegros do que outros. E agora, tento, nesse último dia, concatenar as ideias em algumas páginas do que acho importante, enquanto o bebê dorme e o horário de minha aula ainda não chegou. O mais velho já veio me pedir para trocar o filme. Sim. Tudo isso compõe o nosso dia a dia. Sim, eu escolhi ser mãe. Mas não quero compactuar com uma representação social, idílica e sacrificial que circula em nossa sociedade sobre o ser mãe. E sim, a academia e a ciência precisam ser atravessadas por tais questões e urgências. 691 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nós mulheres mães produzimos muita ciência. Ciência com C maiúsculo, de qualidade. Mas a comunidade cientifica que nos contorna precisa saber como e quando produzimos tamanha grandeza, de modo a desconstruir estereótipos e as desigualdades de gênero. Em Sobre o artesanato intelectual, o sociólogo Wright Mills (1965)8, ao ensinar Ciências Sociais e como fazer uma pesquisa social, assevera sobre o seu caráter manufaturado, reflexivo e provisório. Segundo ele, o bom pesquisador coleta dados a partir do que o instiga, do que lhe provoca e assim os coleciona, junto dos fichamentos das teorias a serem lidas e estudadas. Para o sociólogo, é tolice pesquisarmos por algo cuja resposta encontra-se em uma biblioteca e não abrir portas ainda fechadas. Uma resposta é que você deve organizar um arquivo, o que é, suponho, a maneira de um sociólogo dizer: mantenha um diário. (...) Num arquivo como eu vou descrever, há uma combinação de experiência pessoal e atividades profissionais (...). Nesse arquivo, você, como artesão, tentará reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa (MILLS, 2009, p. 22). E ao final enumera algumas recomendações para uma boa pesquisa, tais como: seja um bom artesão, evite todo conjunto rígido de procedimentos; escreva de maneira simples; estude os ambientes e suas estruturas; compare; elabore e reveja continuamente suas ideias sobre os problemas de história, os problemas de biografia e os problemas de estrutura social; tente compreender o homem não como um fragmento isolado, não como um campo ou sistema inteligível em si e por si mesmo. (MILLS, 2009, p. 56/58). Essas foram as linhas de um homem em um texto de 1960. É certo que de um homem bastante crítico aos formalismos abstratos, mas ainda assim um homem cuja obra influenciou e teve destaque na teoria sociológica de maneira geral. Ora, suas linhas em nada diferem do que as mulheres cientistas têm começado a dizer no Brasil. Sobretudo, as cientistas sociais. Parece-me que, só mais recentemente, as mulheres que pesquisam e fazem ciências sociais passaram a pautar que a epistemologia também é política. Donna Haraway vem da biologia, assim como Anne Fausto-Sterling9, ambas aportaram muito aos estudos de gênero no mundo e no Brasil. Haraway radicaliza ao sustentar o “conhecimento apaixonado”, escrevendo nos anos de 1990. Ou seja, bem depois de escritos masculinos que sustentavam parcialmente esse ponto de vista, como os de W. Mills. Contemporaneamente, o debate sobre autoetnografia, por exemplo, tem ganhado folego também na antropologia brasileira (Gama, 2020). Mas ainda assim, quando comparadas com os campos das ciências duras e biológicas, as cientistas sociais parecem tímidas no que tange a assumir a sua parcialidade e passionalidade diante de suas pesquisas, temas e escrita. Pergunto-me os motivos, mas no momento não cabe aqui me deter. 8 WRIGHT, Mills. Sobre o artesanato intelectual e outros escritos. SP: Zahar, 2009. 9 FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Campinas: Cadernos Pagu, 2001, pp. 9-79. 692 Maternidades Plurais O importante é ressaltar que brechas foram, estão e tem sido cada vez mais abertas. A meu ver, precisamos radicalizá-las, com rigor e excelência cientifica. Nesse sentido, fazer de nossas emoções, limites e percepções teóricas/analíticas durante a pandemia, no interior de nossas casas e a partir de nosso cotidiano, em contraste ou não com os de outras mulheres, semelhantes ou diferentes de nós, me parece um excelente exercício de refletirmos e fazermos ciência: artesanal, situada e com marcado recorte de gênero. Uma ciência feita a partir das experiências dos outros, mas também de nossas experiências. Postas lado a lado e com o mesmo estatuto de valor, no momento de burilarmos a nossa linha de argumento e escrever. O que acontece e tem acontecido em nossas casas vidas e nas vidas de nossos filhos devem importar e devem constar em nossos escritos, ideias de pesquisa, diários de pesquisa, artigos e teorias. Nesse sentido, a pandemia descortina as nossas dificuldades de escrita e de trabalho, ou as acirram, mas também abre nichos para escrevermos de outros modos, para denunciarmos as desigualdades de gênero na vida acadêmica e para nos fazer pensar a partir do cotidiano e de como pode nos render em termos de compreensão do mundo. Entre o de perto e o de longe, podem existir mais semelhanças do que imaginamos, assim como as diferenças podem a partir deles serem bem compreendidas e tematizadas. Para uma boa antropologia essa é uma premissa. Penso que para uma ciência feita e tecida por mães também. Nesse sentido, que venham mais festas de aniversários, mais bolos e mais antropologia e epistemologia que nascem na cozinha, junto das panelas, dos adereços e dos festejos miúdos. Mas também os questionamentos sobre os lugares de falas das cientistas mães, a valoração de suas tarefas e campos de atuação, de seus modos de pensar e de produzir e sobretudo a desigualdade com que a academia e a ciência as têm tratado e sobrecarregado nos ditames de uma prática científica ainda masculina, patriarcal e na realidade misógina. 693 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 116 Restrições e privações impostas pela pandemia de Covid-19: algo terá mudado no cotidiano das mães? Roselaine Pontes de Almeida 1 Acordar mais cedo para conseguir cumprir responsabilidades, dormir bem tarde, para aproveitar o tempo de sono da criança para trabalhar. Sentir-se culpada por não conseguir dar conta de tudo, tendo a frequente sensação de que é preciso aproveitar cada tempo livre, cada momento de sono dela, cada instante em que está com o pai ou que tenha conseguido, finalmente, brincar ou distrair-se sozinha, para ser produtiva. Este é o cotidiano de uma mãe. E, não, este relato não se refere (apenas) ao período da pandemia. Este é o cotidiano comum de uma mãe. Talvez não apenas de uma, mas de muitas mães. A pandemia de Covid-19, decretada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde, trouxe várias modificações na vida das pessoas. Mas, em que medida essas mudanças alteraram também o cotidiano das mulheres mães? Será que essa (nova) realidade também faz parte da rotina de boa parte da população já acostumada a tantas restrições e privações? Com a inexistência de uma vacina ou de medicamentos eficazes para o tratamento do Novo Coronavírus, o isolamento social tem se apresentado como a medida mais eficiente de proteção contra o contágio. Autoridades de saúde têm recomendado a permanência em casa e (partes dos) setores do governo têm se mobilizado para garantir menor circulação de pessoas em locais públicos. Com essas medidas, a convivência social ficou restrita e, em decorrência da crise econômica, houve queda na renda de muitas famílias. Restrições sociais são comumente experimentadas por mulheres que se tornam mães. A mulher recém-parida logo descobre que vai passar boa parte do tempo longe do mundo e da convivência com as pessoas. Bem cedo ela se dá conta de que vai ser muito difícil manter os programas sociais que costumava fazer, seja porque não tem com quem deixar a cria ou até mesmo por indisposição. A maior parte das mães que frequentam esses eventos ainda precisa lidar com olhares, dedos apontados e perguntas do tipo: “com quem você deixou?”. “Você não tem dó?” 1 Mestre em Educação e Saúde na Infância e Adolescência pela Universidade Federal de São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7410438499006081 694 Maternidades Plurais A baixa na renda também é uma realidade vivida pelas mulheres e, mais ainda, pelas mulheresmães. Grande parte de nós sofre com a vergonhosa licença maternidade que vigora em nosso país, nos vendo praticamente forçadas a abandonar o trabalho fora de casa apenas quatro ou seis meses depois ter dado à luz. Muitas, ainda, perdem o emprego por terem se tornado mães ou precisam se submeter a receber baixos salários, sem perspectiva de aumento ou promoção no cargo. Na vida acadêmica, também sofremos com a impossibilidade de acompanhar o ritmo produtivo de nossos colegas homens. Sabemos que muitos estudos dependem de pesquisas de campo, realização de entrevistas, experimentos e aplicação de testes. Como esperar produção científica daquelas que poucos meios encontram para produzi-los? Nos parece lógico que alguém que tenha sob sua tutela, guarda e cuidado um ser humano completamente indefeso e dependente não apresenta condições para ser plenamente produtiva. Agora, durante a pandemia, alguns pesquisadores têm comemorado a liberação das atividades administrativas e de ensino, sob a alegação de maior tempo para o desenvolvimento de trabalho independente. Pessoas com filhos, em especial mulheres (que são ainda as principais responsáveis pelos cuidados das crianças), também gozam desse privilégio? Sabemos que não. Mães cientistas provavelmente dedicarão muito tempo para o cuidado dos filhos, em apoiá-los no ensino remoto, além de se dedicarem ainda mais às tarefas domésticas. Será que essas condições tão desiguais não aumentam ainda mais a distância entre homens e mulheres na pesquisa? É mesmo justo usar a mesma régua de avaliação da produtividade para todos? Sabemos que os impactos da pandemia vão para além das restrições sociais e laborais. Muitas famílias estão sofrendo as consequências da fome, do luto, da violência, isso é inegável. Se pensarmos na perspectiva de gênero, nós, mulheres, somos a parcela da população que mais sofre violência, mesmo dentro de nossos próprios lares. A mídia tem estampado frequentemente a dura realidade do aumento de casos de violência doméstica no período de confinamento. Também somos a maioria dentre as trabalhadoras que estão na linha de frente ao combate da Covid-19. Sabemos que nossa rede de apoio e sororidade vem (em grande parte) de outras mulheres, por isso a preocupação e importância de lembrar aqui das nossas irmãs-companheiras que também estão vulneráveis pelo simples fato de serem mulheres. Diante dessa realidade e com todos os protocolos e restrições vivenciados neste momento da pandemia, me pergunto constantemente: o que, de fato, tem mudado na vida das mães? Sei que falar das mães, assim, no plural, possa não fazer tanto sentido, já que não conheço as diferentes experiências que mulheres mundo afora estão vivenciando neste momento. Então, para evitar equívocos ou demagogia, falo da minha experiência, do meu lugar de mãe, tendo minhas dores e limitações no isolamento social como fonte para este relato. Posso estar errada, mas tenho constatado o quanto muitas restrições, limitações e privações deste período já faziam (fazem) parte do “ser mãe”. Neste papel já estou acostumada a ser multitarefas (embora eu saiba que não precisaria e nem é para ser assim). Ser mãe, esposa, mulher e profissional, assumindo múltiplos papeis e funções é algo comum, que faz parte do cotidiano. 695 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Muitas de nós acordamos cedo (e, por muito tempo — ou até hoje — várias vezes durante a noite e a madrugada), dormimos tarde. Desenvolvemos muitas atividades simultaneamente ao longo do dia. São tarefas intermináveis que tomam quase (ou todo) o tempo do nosso dia e da nossa noite, deixando pouco ou nenhum espaço para o descanso, o conforto e o ócio. Autocuidado? Entretenimento que não envolva enredo ou personagens infantis? Existem, mas são raros. Quantas de nós não conseguimos sequer deitar um pouco para relaxar durante o dia ou mesmo acompanhar uma série que tanto apreciamos, no ritmo que gostaríamos? Quem de nós consegue estabelecer e seguir à risca os planos pessoais ou profissionais? Será que isso é possível? São demandas, processos, deadlines e o famoso “timing” que não se pode perder das coisas. No meio disso, choro, criança agarrada nas pernas, “manhê” a cada cinco minutos e várias, várias interrupções do que foi (foi?) iniciado. Cansaço, irritação, mau humor... e culpa! Isso, não raras vezes, de forma frequente e intensa. Então, novamente me pergunto: em que medida e pandemia mudou o que já existia no universo materno? Ou será que a pandemia revelou ao mundo um pouco de como vivem, trabalham e também o que sentem as mães? Será que agora as pessoas entendem como é tentar trabalhar sem conseguir manter foco de atenção ou plena concentração? Estarão tendo a dimensão da importância da privacidade, do tempo para si? Será que também têm experimentando de forma intensa a autocrítica, o sentimento de inadequação, o desejo de que o dia poderia ter mais de vinte e quatro horas para conseguir terminar um trabalho ou a escrita de um artigo, quando, na verdade, o que você realmente precisa é de um pouco de paz, um bom banho quente e uma noite de sono ininterrupta? E a saudade dos amigos e dos lugares? A vontade de dar só uma voltinha ali na rua ou de ir bem rapidinho aproveitar o sol, o verde, o mar... Será que as pessoas estão se dando conta de que essas vivências são a realidade de muitas mulheres com quem convivem na família, na faculdade ou no trabalho? É claro que a falta de contato real e frequente com a família estendida, com os amigos, com colegas de trabalho, parceiros de estudo e demais pessoas do círculo de convivência traz importantes impactos para a vida das pessoas. Experimentamos isso no puerpério e também depois dele. Estamos, de certa forma, acostumadas a essa solidão. Daí a importância fundamental das redes de apoio na maternidade. Como é bom ter alguém para abraçar! Como é reconfortante ter com quem contar! Como salva a vida poder ter alguns minutos de paz e tranquilidade, sabendo que seus filhos estarão sendo bem cuidados e que tudo ficará bem! Como a rede de apoio tem feito falta também na quarentena! O isolamento social é muito doloroso para grande parte das pessoas. É inegável que os sentimentos negativos têm estado muito presentes neste momento. É quase que um puerpério da sociedade, com ansiedade, medo e incerteza tomando conta. Sairemos mais unidos e solidários dessa experiência? Muito também se tem falado sobre o impacto na saúde mental da população por causa dessa crise atual. Há previsões de que a conta será bem alta e que irá demorar alguns longos anos para ser 696 Maternidades Plurais paga. Várias pessoas já estão sofrendo esses efeitos. Como, então, manejar a culpa materna por não estarmos dando conta de tudo? Por que temos tão baixa tolerância quando falhamos? Será que é mesmo preciso estar o tempo todo no controle ou dar conta de equilibrar todos os pratinhos enquanto eles rodam, de uma só vez? As pessoas terão se dado conta de que é assim que geralmente nos sentimos quase que todos os dias? Saúde mental precisa ser uma preocupação de todos e as práticas que visem sua promoção devem ser realizadas diariamente. Nós só conseguiremos cuidar bem daqueles que amamos se também estivermos nos sentindo bem. Receber ajuda, dividir responsabilidades, encontrar tempo para o ócio e para desfrutar de diferentes formas de autocuidado, assim como ter uma rede socioafetiva fortalecida faz toda a diferença para a saúde e o bem-estar das pessoas. E nós, mães, também temos esse direito? Contar as nossas dores e nos fazer ouvidas pode ser a chance de fazer ecoar aquilo que diariamente nos atormenta e inquieta. Temos muito a dizer e somos potência demais para nos mantermos caladas. E o futuro? O que será dele? Assim como na maternidade, o “vir a ser” está ligado ao que fazemos hoje. Se desejamos ter filhos gentis, devemos hoje praticar e estimular a gentileza, a paciência, o cuidado com o outro. Quem sabe a pandemia não seja uma boa oportunidade para desenharmos (ou sonharmos) um futuro diferente, em que as mulheres mães sejam vistas e ouvidas?! Quem sabe o escancaramento da nossa realidade cotidiana não mude algo nas pessoas ao nosso redor. Por mais que pareça pura utopia, mães costumam ser otimistas e, mais do que isso, buscam de forma incessante lutar para tornar o amanhã um lugar mais humano e gentil, não apenas para seus filhos, mas também para todos. Seguimos sonhando. Seguimos lutando! 697 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 117 Crianças e o meio científico: elementos que não se juntam, mas se completam Rosicleide R. Garcia1 Prólogo Afinal, o que é ser uma mãe pesquisadora? Basicamente, não existe uma resposta pronta para isso: o que existe são vivências distintas que exemplificam essa realidade. E neste relato pessoal, falarei sobre a minha experiência. Mas, veja bem, eu não falarei apenas sobre a difícil tarefa da mãe pesquisadora ter de ter de desenvolver um estudo ao mesmo tempo que tem de desenvolver seu filhote, dando-lhe todo suporte necessário. Também não falarei sobre a difícil situação de ser vista como alguém que não retornaria um trabalho a que lhe foi destinado, mesmo sendo uma pessoa com a plena capacidade de dar conta de tudo: de filho, pesquisa, trabalho e casa. Nem falarei sobre o número de sua produção científica que pode ser mais reduzido do que uma pessoa sem filhos (ou que não cuida deles), e que se recusa a entregar estudos com menos qualidade. Nem de ser a pessoa que se desdobra e, mesmo assim, dificilmente tem reconhecimento. Não que essas sejam questões não precisem ser discutidas. Mas, neste relato, exporei como um filho pode fazer toda a diferença num processo científico. Como se não bastasse a preocupação em melhorar a nossa sociedade, é importante mostrar como eles nos motivam para que sigamos em frente, dando-nos inspiração, mesmo mediante todas as dificuldades expostas para nós. Neste relato, também exporei que pesquisar e o quanto ter isso como exemplo para o seu filho são importantes, mesmo que não se esteja ligado a nenhuma instituição de nível superior, mesmo que não se receba bolsa para exercer essa prática, mesmo que não se tenha nenhuma obrigação em continuar pesquisando após a obtenção dos títulos. E que, no fundo, a maternidade e a ciência são muito parecidas, pois ambas são um ato de amor. 1 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6326557768305788 698 Maternidades Plurais Nana e o processo científico Sim, cuidar de um bebê é difícil. Cuidar de um bebê tendo de passar uma dissertação de mestrado para o inglês a fim de ser publicada por uma editora estrangeira é muito mais. Cuidar de um bebê, com a obrigação de produzir artigos e corrigir pilhas de provas é inacreditavelmente complicado. E Nana cresceu nessa realidade. Minha Nana tem dez anos agora. Ela nasceu três meses depois da defesa da minha dissertação de mestrado. Ela já nasceu envolvida nesse mundo de livros, pesquisas, diálogos sobre resultados e hipóteses. Quando eu estava com sete meses de gravidez, lembro-me de ter ficado acordada até as quatro da manhã para entregar a edição final de minha dissertação para a defesa. Porém, justamente dias antes da data de entrega, minha impressora decidiu que não iria trabalhar — todos temos uma história sobre isso também —, atrasando-me o suficiente para eu dormir apenas três horas, acordar em cima da hora no dia seguinte a ponto de não tomar café, chegar à USP e desmaiar aos pés da escadaria do departamento. Sim, uma gravidez fragiliza a mulher desde seus primeiros meses, mas ela só começa a ser respeitada quando a barriga desponta. Mas, de modo geral, não podemos transparecer fraquezas, pois, como o ditado popular diz “gravidez não é doença”. Está certo que a mulher tem seus órgãos exprimidos, funções biológicas mudadas, o centro de gravidade também, mas ela deve permanecer plena e mostrar que a gravidez é apenas um detalhe. E, com esse pensamento, independentemente do que tenha havido, levantei-me rapidamente, recompus-me, e a edição final da dissertação estava nas mãos do orientador, conforme combinado! O mestrado foi defendido com sucesso, e talvez fosse hora de parar para cuidar dela e do emprego. Certo? Essa é a percepção de quem está de fora, pois a pesquisa é uma planta que vai abrindo galhos. A defesa da dissertação apenas abriu mais perguntas, e a avidez de saber mais não foi diminuída por causa do belo bebê que crescia em casa. Na verdade, ela me motivou a seguir mais fundo, pois o crescimento da ciência significa o crescimento para ela também. Então, segui, mesmo diante das dificuldades de se desfraldar uma criança ao mesmo tempo que se percebe que um dialeto é muito mais que um conjunto de caracterizações de uma região. Além do fato de ter de reorganizar os horários de meu local de trabalho juntamente com o da escolinha de minha filha, e de estar presente cuidando de sua educação. Nana e sua contribuição para a ciência Quatro anos depois, Nana foi levada para pesquisa de campo do meu doutorado, e lá ela se demonstrou essencial. O estudo consistia em buscar idosos com mais de 60 anos que tivessem vivido nas cidades pesquisadas por toda a sua vida, assim como ter um baixo grau de escolaridade. E sem conhecer 699 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) absolutamente ninguém dessas cidades, fomos às ruas, abordar pessoas, apresentar-se e fazer com que elas contribuíssem com o propósito da pesquisa... uma tarefa não muito fácil para os dias atuais. Porém, ninguém fala nada sobre isso: como um pesquisador, carregando uma criança pequena, consegue arrebanhar um bom número de informantes, ainda mais idosos e desconfiados, desconhecidos, em praça pública, quando são abordados por uma pesquisadora querendo saber sobre suas infâncias a fim de conhecer mais sobre os seus dialetos. O fato é que, com a Nana, a coleta fluiu com muito mais facilidade. Vendo a garotinha, os informantes tornavam-se muito mais solícitos, brincavam com ela, e ali abriram toda a sua vida contando até a mais do que era necessário saber. E essa informação foi novidade no meio acadêmico, isto é, de como fazer pesquisa com uma criança ajuda muito no levantamento de dados, pois muitas pessoas ficam mais abertas e felizes quando as veem. Mas, claro, essa informação não foi passada a frente. Afinal, aparentemente crianças e meio científico não se misturam muito — a não ser que sejam elas o objeto de pesquisa. A questão é que Nana auxiliou muito principalmente em Portugal, para onde tive de ir para testar uma hipótese. E a metodologia era a mesma: encontrar idosos para resgatar-lhes histórias de sua infância e adolescência. E com Nana ao meu lado, os vinte dias de pesquisa foram mais do que suficientes para completar a quantidade de informantes de que eu precisava. Em mais uma defesa, lá estava Nana de novo, mas dessa vez fora da barriga, vendo a sua própria contribuição para a construção da tese... sempre ao meu lado. Todavia, mesmo dentro desse mundo científico, Nana permanecia fora. Não tanto assim, pois, mesmo ela tendo crescido sem entender sua importância para a vida de sua mãe, esta a observava durante a aquisição da linguagem e de sua leitura, e o desenvolvimento do seu gosto por ela. Na verdade, a minha menina faz parte da minha pesquisa de pós-doutorado cuja motivação verdadeira foi ela! Nana e o início de um novo estudo Há uma bonita história sobre isso: num dia, na sala de aula, um aluno me perguntou o porquê de ele não entender a própria leitura, mas a compreender quando ela era feita por outra pessoa. Quando fui informar a mãe do rapaz sobre a sua dificuldade, esta respondeu que a culpa possivelmente era dela, já que costumava ler para ele todas as noites, incluindo os livros de literatura do ensino básico... e ali a mãe do meu aluno percebeu que o tornou um ótimo ouvinte, mas que não possibilitou que ele desenvolvesse sua própria habilidade com a leitura autônoma. Mães... sempre buscando o melhor e, mesmo assim, sentindo culpa pelos resultados... E eu, a professora-pesquisadora, ouvi atenta... e percebi que estava indo para o mesmo caminho, pois Nana, iniciando seu segundo aninho do ensino fundamental, amava livros por causa dos momentos em família que eles lhe proporcionavam, mas não gostava de ler... Ela cresceu ouvindo uma história a cada dia, tendo livros como brinquedos, companheiros, diversão... Mas quando entrou na es700 Maternidades Plurais cola e começou a aprender a ler, viu que não lia da mesma forma que fazíamos para ela: ela decodificava as palavras, mas não as entendia. Tentava ler em voz alta, mas não saia entoação. Então, em meio à frustração e por não entender que o processo estava ainda em construção, ela se achou incapaz. Assim, observando minha própria filha e a experiência da progenitora de meu aluno, eu, a mãepesquisadora, compreendi como a entoação estava ligada ao processo de aquisição de aprendizagem. Que pessoas podem ser expostas a milhares de livros, mas elas podem não gostar deles se a sua entoação não for bem desenvolvida. Que, talvez, o fato de muita gente não gostar de ler não tenha a ver com a falta de interesse ou oportunidade de se ter acesso a um bom livro ou uma boa história: mas porque não entendem o que leem. Aquela garotinha em idade de alfabetização me mostrou isso, dessa maneira, decidi mover uma pesquisa sobre o assunto. Mas antes, dentro da minha casa, comecei a agir para que minha filha não virasse mais um índice nas estatísticas sobre como os brasileiros leem pouco: eu tinha de reverter aquela situação. E enquanto fazia o levantamento da entoação de professores do ensino fundamental e de crianças de 5 até 18 anos de idade, além de correr para pedir autorização para a Plataforma Brasil liberar minha pesquisa com esse público — de modo a conseguir entender como funciona a entoação durante o processo de leitura —, eu também educava e observava a minha garotinha. Paralelo ao estudo, em casa eu fui fazendo o processo de leitura alternada com a minha filha, negando-me a ler diversos trechos para que ela promovesse sua leitura autônoma, orientando para que ela levasse a entoação às suas leituras em voz alta. Afinal, se ela lesse em sua mente com emotividade, ela descobriria um dos maiores prazeres que essa vida pode nos dar. Porém, como doía esses momentos em que eu me negava a ler para ela... Afinal, o ato da leitura antes de dormir era o momento principal entre nós, pois era a hora em que eu me dedicava exclusivamente à filha, que, durante todo o dia, via a mãe envolvida com aulas, estudos, pesquisas, papéis diversos, arrumação de casa e cuidado com sua educação formal e informal... mas algo deveria ser feito, não poderia ser diferente. De fato, ações que estão ligadas a valores afetivos são muito complicadas de serem desvencilhados. E quando se tem consciência científica do que é preciso fazer, a decisão parece se tornar mais difícil, pois não há como argumentar contra a ciência, e, às vezes, eu acho que a parte mais difícil de ser mãe é ter de ser racional. As pessoas ao meu redor viam-me lamentar sobre isso, e, como quisessem me ajudar a manter a prática de ler todos dias para minha filha, diziam que Nana não gostava de praticar leituras para si por não ser algo de sua personalidade. Mas eu não me convenci. Esse é o outro mal da mãe-pesquisadora: ela sempre tenderá a buscar a verdade. De qualquer maneira, a mãe aqui cansou de ouvir dessas pessoas que ela teria de admitir que a filha poderia não gostar de ler ou estudar. Ao contrário disso, eu não me esqueci que, durante a primeira infância, Nana dava mais trabalho nas livrarias do que numa loja de brinquedo, logo, deveria 701 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) haver uma razão pelo desinteresse pelas obras. E por esta mãe-pesquisadora aqui não entender que seria “normal” essa possível falta de interesse, eu continuei a levantar dados, e, por fim, a pesquisa com professores e alunos trouxe resultados interessantes comprovando que a leitura autônoma com uma entoação mal realizada pode trazer problemas de compreensão de texto. Sim, ao final do estudo, minha hipótese estava correta. Fiquei feliz? Claro que sim! Ainda mais porque o processo realizado em casa reverteu a frustração que minha filha tinha ao ler. Hoje Nana “devora” livros com a mesma gana de um leitor naturalmente apaixonado. E hoje é ela quem pergunta “posso ler antes de dormir?”. Ou seja, a aplicação da minha hipótese na minha filha foi um sucesso. Porém, essa é uma observação linda que não pode ser registrada em autos científicos, porque a ciência não admite essa subjetividade por ser traduzida como sentimentalismo. Falar em público sobre isso num seminário é interessante, cria empatia. Mas num documento publicado? Não... isso pode tirar a credibilidade do texto. Se a professora-pesquisadora não pode nem colocar em primeira pessoa a sua experiência com o aluno, o que dizer para sobre sua experiência como mãe? E, assim, essa rica experiência e humanização perde-se no meio de um estudo que deve ser objetivo e direto, já que a subjetividade, segundo muitos, torná-lo-ia impreciso... como se os sentimentos nada tivessem a ver com as decisões das pessoas. Nana e o início da adolescência Como dito, Nana hoje tem dez anos de idade, e agora está começando a compreender o que significa pesquisar, a importância dos estudos e o motivo de nos dedicarmos tanto a ele. Neste ano, eu terminei o meu estudo de pós-doutoramento. Enquanto redigia o relatório final, Nana olhou para mim e perguntou o que eu tanto escrevia. Aquela pergunta me impressionou um pouco, pois para mim era tão natural fazer o que faço que nunca imaginei que ela não soubesse... Então, expliquei-lhe sobre isso, que o ato de pesquisar era mais uma paixão da mamãe e uma tarefa que eu assumira além da profissão professora. O fato é que eu sempre estou ocupada me dividindo entre as 3 principais funções da minha vida: o ato de educá-la e deixar a casa organizada para ela, o ato de educar os meus alunos e manter os materiais preparados para eles, e o ato de educar as pessoas de um modo geral contribuindo com minhas publicações — as quais me comprometi a fazer, por ano, pelo menos uma. E o orgulho de saber que estou auxiliando pelo menos um grãozinho neste mundo me veio com uma expressão da minha própria menina: outro dia, procurando um livro na estante, ela se deparou com as minhas dissertação e tese. Ela, que sempre estivera tão envolvida, sem saber, em ambas as obras, falou-me admirada: “nossa, mãe! Esses livros aqui têm o seu nome!”. Eu sorri, peguei-os e mostrei a ela, explicando o quanto aqueles estudos têm ajudado o processo educacional, já que as pesquisas de base caminharam para a minha percepção do quanto ela poderia evoluir se tivesse domínio sobre sua leitura. 702 Maternidades Plurais E, assim, continuo. E embora seja maior que o sentimento de dificuldade, tenho de dizer que não é algo fácil... Nana está na puberdade agora. Engana-se quem acha que essa fase seja menos complicada do que o desfraldamento: na primeira infância, a criança exige muito de nós, para aprender a comer, aprender a andar, aprender a fazer as funções básicas. Mas na adolescência, eles exigem toda nossa parte psicológica: temos de ficar atentos com a sua formação e escolhas, com as influências externas e o impacto que a vida exterior começa a ter sobre eles. Ficar atentos sobre o desenvolvimento da sexualidade, sobre a conquista de suas primeiras experiências, de suas primeiras frustrações e traições de amigos... Poucos falam sobre isso, de como é uma fase que nos consome psicologicamente... Nesta pandemia, dividida entre fazer materiais mais assertivos para meus alunos que estão imersos na educação remota, cuidar de toda a burocracia que a finalização de um projeto de pós-doutoramento exige, cuidar das publicações que temos de fazer para divulgar o estudo, e da aprendizagem da própria filha, há também a carga mental de observar que ela está chorando todas as semanas... Sim, Nana tem chorado pelo menos uma vez por semana. Isso ocorre, penso eu, porque os hormônios dela estão em plena ebulição. Outro dia, ela fez um desfile de modas para mim e para o pai, perguntando sobre estilos e demonstrando vaidade. E é complicado saber que esse momento também era para ser dividido com os amigos, não apenas conosco! Afinal, é a afirmação dela enquanto pessoa. E ela chora, porque os problemas estão se tornando enormes segundo sua visão de pré-adolescente, em que os sentimentos se tornam mais intensos e maiores do que realmente são. E eu não posso menosprezá-los, afinal, mesmo sendo uma pessoa privilegiada, esses são os problemas dela, e eu tenho de ajudar a superá-los. E ela chora, porque, nesse contexto de quarentena, ela sente falta dos amigos, das fofocas, e das brincadeiras, afinal, ela ainda é uma criança... E eu, como mãe-pesquisadora-professora, devo me dividir em 3 para que tudo se torne uma bonita história no fim, tal qual contei sobre o crescimento dela no meio de tudo isso... Tenho de me segurar para não ter de escutar depois que meu trabalho ou minha pesquisa eram mais importantes do que ela. E a mãe se culpa, e a mãe já sofre antes mesmo de acontecer qualquer coisa com sua menina... como deve ser com toda mãe... A cobrança nunca é fácil E assim seguimos com nossas cobranças. Atualmente, não estou ligada a nenhuma instituição de ensino superior. Trabalho no mesmo local em que a Nana está matriculada, e isso foi uma escolha minha: entrei na escola para garantir a melhor educação formal para ela, e lá continuo, como uma boa mãe leoa, para sutilmente guiar seu caminho e saber o que ocorre com ela. Haveria outras opções? Talvez sim, mas como todos, tenho de fazer escolhas, e as escolhas da mãe são sempre prioridades, por isso tento me satisfazer com a pesquisa voluntária. 703 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Isso me faz lembrar de um último fato: quando Nana tinha dois anos, trabalhei em uma faculdade. A faculdade estava buscando a certificação do MEC, por isso recebíamos com muita frequência a visita de fiscais. Em uma delas, o fiscal me interpelou sobre minhas produções, afirmando que eram muito poucas e eu precisava de mais. Sorri, expliquei-lhe que lecionando trinta horas-aulas no ensino básico, mais as 12h da faculdade, e com um bebê em casa, eu me sentia muito rica com tudo o que eu fazia. Ele se calou, e ali eu senti que o meu máximo é mais que o máximo para muita gente. Por isso, diante de tudo o que foi exposto, creio que a sociedade deva valorizar um pouco mais o trabalho da mãe pesquisadora e de suas escolhas, pois decidimos ser mães duas vezes: de nossas crianças e da própria obrigação social. E que nossas crianças possam se orgulhar disso tanto quanto nos orgulhamos delas! 704 Maternidades Plurais 118 O contexto familiar em tempos de pandemia Rúbia Gisele Tramontin Mascarenhas 1 Entendendo o contexto de que a pandemia Covid-19 alterou a rotina de muitas famílias, apresentamos aqui um relato de rotinas, fatos e ocorrências considerando a família unida nesse ambiente do lar, em que ao mesmo tempo convivemos com o doméstico o trabalho e o estudo. Portanto, apresentamos aqui, o dia a dia em home office e estudos em modo remoto, com retratos da mãe cientista, pesquisadora, professora, tendo a família que se reorganizar e se adaptar a esse momento tão particular que nos trouxe o isolamento social. É comum à mãe pesquisadora desempenhar diversos papéis coordenando várias ações como ser aluna, pesquisadora, mãe, esposa, professora, desenvolver atividades profissionais e administrativas e outros que acabamos acumulando neste ritmo acelerado em que vivemos. Porém, 2020 chegou nos obrigando a fazer uma parada brusca em rotinas agitadas, e a repensar, reorganizar e redefinir as atividades, o que não significa de modo algum que essa mudança tenha trazido fôlego ou descanso, pelo contrário, trouxe muitas vezes novas funções e atividades na organização de estudo, trabalho e rotinas dentro dos lares. Para expressar esses relatos, o texto desenvolve-se apoiando se em Bosi2, trazendo o texto “Lembranças de família” para embasar as questões domésticas familiares com o momento tão singular em que nos encontramos considerando a pandemia em que estamos passando. Para a autora: Quem penetra um grupo familiar, através do matrimônio, por exemplo, encontrará uma atmosfera à qual deve adaptar-se; uma unidade e coesão que se defende o quanto pode da mudança. Essa atmosfera própria, essa força de coesão lhe vem do fato de que ela representa uma mediação entre a criança e o mundo. Todos os acontecimentos de fora chegam até a criança filtrados e interpretados pelos parentes. (1979, p. 423) Aqui trazemos a questão de que estamos constantemente nos adaptando, ao formar uma família, temos a união de dois grupos que podem ou não serem similares, terem características que por vezes 1 Doutora em Geografia pela UFPR. Professora Adjunto do Departamento de Turismo da UEPG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6976086545282916 2 BOSI, E. Memória & Sociedade: lembrança de velhos. Lembranças de família, p 423-433. São Paulo. SP. T. A. editor, 1979. 705 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) são parecidas, e, por vezes, costumes e tradições diversas, diferentes. Até que com o passar do tempo formamos o nosso modelo, e que, com a presença das crianças vão se constituindo laços cada vez mais sólidos nas determinações da rotina e do lar. Pessoalmente a pesquisa sempre fez parte da rotina na minha família, constantemente estando junto aos aspectos internos do lar, sou mãe, professora e pesquisadora, e assim como eu vim ao mundo durante o período de mestrado da minha mãe, também tive minha filha durante a etapa do mestrado e meu filho chegou durante o doutorado. Portanto, nossa rotina familiar sempre foi ao redor de computadores e brinquedos. Lembro-me por diversas vezes em que fiz o convite: vamos todos juntos para o município vizinho para que mamãe possa fazer uma entrevista, ou buscar dados e informações para as pesquisas. Para que isso ocorresse de modo organizado contei com a família em seu sentido amplo de muitas mãos para me auxiliarem no cuidado das crianças, enquanto eu corria para coleta de dados, viagens para orientações do trabalho, conciliando a rotina de mãe e de pesquisadora. Minha família é a grande família, conforme Bosi (1979, p.423) retrata, não apenas constituída pelos pais e filhos, mas entendida como “uma larga parentela de tios, primos, padrinhos rodeava de tal maneira o núcleo conjugal que ele se sentia parte de um todo maior”. Sempre contei com um grande grupo familiar que tomavam conta dos pequenos para que pudesse organizar as atividades e rotinas e, seguir, nos muitos papeis sociais da pesquisa e da profissão. Com a questão do isolamento social essa grande presença de muitos auxílios para cumprir a rotina agitada, acaba se quebrando, e temos então a convivência intensa do grupo pais, mãe, filhos e pets. E a cada momento, novas fases das crianças, da carreira profissional, assim como também novas histórias ou particularidades do momento vivido. Como, por exemplo, quando precisava ir à capital com minha filha de três anos e meu filho bebê, as mudanças na rotina ocorriam até no sentido de que somente um restaurante tinha o silêncio e o conforto para que nossa refeição pudesse atender ao todo, pois a correria dos grandes restaurantes do centro assustava o bebê e não permitiam que as atividades de mãe servindo sopa de legumes pra um e um gostoso prato no buffet a quilo pra outra fluíssem conforme o cronograma mãe/pesquisadora. Tanta correria naquele momento, e hoje temos isso na família se configurando em doces lembranças de conversas em nossos almoços, quando lembramos ao telefone com minha mãe, que viajava junto para olhar as crianças enquanto eu seguia na correria de pesquisadora. Pois bem, os tempos vão caminhando as pesquisas vão ocorrendo e novas fases na vida deles também nos trazem muitas felicidades. Hoje tenho dois adolescentes em casa, estamos vivendo a rotina de acompanhar as atividades do ensino fundamental anos finais e do ensino médio, compartilhando momentos maravilhosos em companhia desse grupo que nos é tão especial. A restrição das atividades presenciais, o ensino remoto, chegou em nossa família quatro dias antes da esperada festa de 15 anos, trazendo com essa brusca mudança, todas as questões de organização, no cancelamento, no adiamento ou para comunicar a todos, convidados, fornecedores e prestadores de serviços, que em função do Covid-19 teria, a festa, que ser remarcada. Ao mesmo tempo, 706 Maternidades Plurais isto ocorria conjuntamente com a adaptação de atividades online, home office e novas rotinas que abruptamente foram implantadas. Recordando do início do isolamento social, é com sorriso farto que lembro, quando tive a entrada do filho durante a reunião online com a comemoração “mãe tirei nota máxima na minha prova online”. Me vi, naquele momento, com sentimentos em conflitos, pensando: grito junto em comemoração à nota e compartilho a felicidade dele ou vou fazendo o pedido pra sair da sala porque estou em reunião de trabalho. Pensando e tentando organizar isto tudo, ao mesmo tempo que, meus colegas da reunião parabenizavam a conquista do meu filho. Temos assim, a mistura de todos os contextos, o trabalho, o estudo a família vivendo intensamente e de modo integral. Não há mais separação alguma, é almoço e escola convivendo, rotina de trabalho e momento de lazer, um nas atividades esportivas on line, enquanto outro necessita de silêncio e concentração. Aquela grande família sempre disposta a auxiliar já se vê mais pelas redes sociais. E assim, fomos nos organizando conforme a possibilidade e a condição do momento. Estamos a mais de 90 dias nessa rotina doméstica, escolar online, pesquisa e trabalho em sistema remoto. É possível afirmar que, agora todos já nos adaptamos ao contexto. Porém com certeza, este momento tão peculiar traz mais deveres a figura de mãe, pois se em tempos normais levamos as crianças no colégio e vamos buscar ao findar as atividades escolares, ao deixá-los no portão da escola saímos com a certeza de que estão recebendo não somente a educação formal, mas a supervisão o convívio com amigos e demais questões sociais tão importantes ao desenvolvimento de crianças e jovens. Para as mães, sobretudo aquelas que já carregavam em sua rotina o desempenho de múltiplas tarefas, o contexto do isolamento traz a sobrecarga de cuidar dos horários de chats, de verificar se o friozinho do inverno não está provocando um cochilo durante as aulas, se as atividades foram de fato executas e postadas na plataforma do colégio, se a internet caiu ou travou com tantos tentando conectar ao mesmo tempo, ou mesmo, quando temos que refletir a alguns questionamentos que vem com aquele sorriso maroto e brincalhão próprio da idade adolescente, e com ele a pergunta: “Mãe se não posso levar o celular na aula, porque devo assistir aula no celular?” e muitos risos com a brincadeira do trocadilho. Assim sendo, o amplo convívio no lar, nos traz o doce sabor da convivência desenvolvendo momentos em que a mãe aproveita para confraternizar um receita feita a muitas mãos, pra dividir ensinamentos sobre a rotina doméstica do cuidado da casa, também para sentar e conversar tentando entender a fundo o que se passa nessas cabecinhas em idade adolescente, e ainda, o que passa nos corações desses jovens privados do convívio com amigos, pois os grandes grupos que sempre estavam juntos agora são grupos virtuais de ligações em chats com muitos amigos e de comemorações de aniversários em chamadas por vídeo. Vamos assim, aproveitando as tecnologias para manter trabalho, pesquisa, estudo, atividades esportivas, conversas com amigos e dividindo com todos dentro de casa a questão da família e de suas particularidades, entendendo que as individualidades são tão importantes quanto o todo no grupo 707 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que formamos. Ressaltamos as facilidades da comunicação, ao mesmo tempo que, destacamos também as preocupações maternas, e as perguntas de sempre: “quem é, com quem está conversando on line, tá no game com quem” exercendo o papel cuidador ressaltado por Bosi: Hoje se impõem como mediações também os meios de comunicação. D. Brites se admira: “Minha casa tinha portão fechado, nós vivíamos ali dentro e entrava só quem nossa mãe achava que podia entrar, que devia entrar. Agora não, você está fechada dentro de casa e cata pelo ar tudo quanto é anúncio. Você não tem mais uma casa fechada”. (1979, p. 425) Para a mãe pesquisadora as pesquisas não podem parar, a pontuação, os relatórios as questões profissionais seguem seja com todos em casa ou na rotina convencional, e no momento de atividades remotas, temos relatos da correria ao atender a vídeo chamada da orientanda quando distraidamente estava organizando a roupa no varal e se perdeu no tempo, ou de quando as crianças entram no escritório e silenciam ao ver-nos com o celular fazendo uma entrevista online. Ou, outro exemplo, foi o fato de quando o cachorro resolve se enfurecer com as pessoas passando na rua e você se vê entre latidos e resoluções a propor durante um encontro virtual com outros pesquisadores. A pandemia Covid-19 trouxe inúmeras mudanças no cotidiano familiar, tivemos nossas rotinas viradas de cabeça pra baixo, mudanças abruptas em muitos sentidos, mas temos a certeza de que aqueles finais de tarde, todos na cozinha preparando um doce gostoso, um bolo, uma guloseima, com certeza serão as lembranças mais doces da intensa convivência em família que o isolamento social nos trouxe. Pois, conforme aborda Bosi: As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada. trocando opiniões, dialogando sobre tudo suas lembranças guardam vínculos difíceis de separar. (...) Esse enraizamento num solo comum transcende o sentimento individual. (1979 p. 423) No momento em que nos encontramos em casa em função do isolamento social, as horas já não são mais contatas como antes, nossas rotinas foram quebradas sem horário inicial das atividades, sem as atividades complementares para as crianças que iam até certas horas invadindo o período noturno, e agora dão espaço a rodar dvds da família, gravados em festas de aniversários e datas relevantes, a virar álbuns de fotos a partilhar momentos do passado, trazendo-nos novos laços que se constroem solidamente no grupo familiar, e que mais tarde, serão lembrados do tempo de reclusão que estamos vivendo. Espero que as lembranças desse convívio intenso possam constituir-se em novas memórias, que sejam recontadas pelas crianças de hoje em seus futuros papéis de pais, tios, avós considerando as dificuldades aprendizados e memórias dos tempos do Covid-19 para a formação de uma sociedade melhor para eles e para os que virão nessa linha de família e sociedade. Mais uma vez, trazendo Bosi para a análise: 708 Maternidades Plurais Tal como as plantas, que na estação da seca se imobilizam e brotam nas primeiras chuvas, certas lembranças se renovam e em certos períodos dão uma quantidade inesperada de folhas novas. Como planta que se fortalece com a enxertia — outros ramos se nutrem de suas raízes e frutificam com vigor renovado, chamando para si a seiva dos galhos originais — a enxertia social não deixa que as lembranças se atrofiem. (1979, p.425) Na certeza de que tudo vai passar, e que novas histórias e memórias virão, seguimos nos divertindo bastante e trabalhando muito, carregando agora a sensação de que trabalhamos mais até do que antes da nossa rotina sofrer tais alterações, reafirmando de que somos mães, e assim, também falhamos ao esquecer de algum horário de aula deles, ao nos perdermos no tempo com a pesquisa e não acompanhar se os filhos se organizaram, ou não, para as atividades escolares, mas sobretudo, na certeza, de que estamos construindo um período a partir das histórias vividas em nossos lares. Estamos escrevendo um novo capítulo que será contado nos livros das histórias e das memórias, e também, nos livros didáticos, científicos e pedagógicos no que se refere à pandemia. Contando aos pequenos que muitos estão lá fora constituindo a linha de frente ao combate, nos bastidores em atividade de desenvolvimento de tecnologias para melhoria de toda a sociedade, na nova organização social, seja no delivery, seja na internet. Tentando de dentro do lar mostrar o mundo exterior e sua complexidade. Finalizando, somos mães, e vamos ensinando que em nossos lares, vamos construindo um período a partir desse momento de isolamento social que a pandemia Covid-19 trouxe a toda a sociedade. Nossas memórias vão se formando, e irão caminhar conosco durante toda existência, serão histórias que irão nos fortalecer, poderão criar cicatrizes e marcas que irão mostrar quem somos, nossas tristezas e alegrias, conquistas, vitórias ou momento difíceis que passamos. Os filhos um dia vão partir dessa casa, seguir seus rumos, podem escolher novas localidades geográficas para moradia, mas certamente os dias passados nessa ampla convivência familiar, serão raízes que ficarão fortalecidas em suas vidas, de um tempo de muito trabalho reordenado, de ampla convivência e de toda a demonstração de família que estamos tendo. 709 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 119 Maternidade e vida acadêmica em tempos de Covid-19 Rúbia Gomes Morato1 Apresento neste texto um relato de experiências pessoais relacionadas com a maternidade no ambiente acadêmico durante a pandemia da Covid-19. Tenho uma filha que tinha três anos e sete meses no início da pandemia e agora está com quase quatro anos e moramos com o Fernando, meu companheiro, em um apartamento da zona oeste de São Paulo. Quando a Flavinha tinha seis meses, foi diagnosticada com alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e ovos. O consumo de qualquer um destes alimentos pela mãe passa para a bebê pelo leite materno, provocando dermatite e problemas gastrointestinais. A recuperação de cada episódio de manifestação da alergia demorava longos dias. Desde então, excluímos o leite, os ovos e todos os alimentos que continham algum derivado da dieta da família. Foi um processo que causou mudanças consideráveis, demandou muitos testes, o aprendizado de novas receitas, com substituições de ingredientes e a redução drástica tanto no consumo de industrializados como de alimentação em restaurantes. Por conta das alergias, sempre tivemos receio de matricular minha filha na creche. A experiências de outras mães com crianças alérgicas eram desanimadoras. A Universidade de São Paulo (USP) fechou uma das duas creches do campus da Cidade Universitária e chamou a creche mantida de unificada. Por anos seguidos, não houve a abertura de vagas para a faixa etária da Flavinha. As creches que se mostravam mais capacitadas para lidar com as alergias tinham mensalidade muito caras. Assim, eu mantinha um revezamento com meu companheiro para cuidar da Flavinha, e sempre foi um grande desafio conseguir conciliar nossas agendas profissionais com os cuidados da bebê. Minha sogra sempre foi muito colaborativa e cuidava da Flavinha em alguns momentos. À medida que ela foi crescendo, começou a frequentar também a casa da tia e brincar com a prima maior. Nestes momentos, eu trabalhava com muita intensidade para conseguir um bom rendimento. Alguns dias eram bem produtivos, mas outros nem tanto. 1 Geógrafa, com mestrado em Geografia Física e doutorado em Geografia Humana pela USP. Professora do Departamento de Geografia da USP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6900518116634499 710 Maternidades Plurais Eram nestes momentos também, que eu conseguia ordenhar leite materno para doação para o Banco de Leite Humano do Hospital Universitário (HU), mas logo após o início da pandemia na cidade, eu não consegui mais realizar as doações. Em 2020, finalmente a USP abriu quatro vagas para filhos de professores na creche, contemplando a faixa etária da Flavinha, e com a diminuição da severidade das alergias, decidimos inscrevêla para concorrer à uma vaga. Preenchemos cuidadosamente os formulários, anexamos os comprovantes e tínhamos uma boa expectativa, pois somos professores em início de carreira, com salários mais modestos, não temos imóvel próprio e alugamos um apartamento. A Flavinha foi classificada em quinto lugar e foi uma grande decepção. Começamos a pesquisar as possibilidades em creches particulares. Ao mesmo tempo, em fevereiro e início de março, os noticiários sobre a Covid-19 e seu impacto na China e Europa, sobretudo na Itália, impressionavam e preocupavam muito, mas ainda não estavam tão próximos. Na terça-feira, dia 10 de março, estava trabalhando normalmente no Laboratório de Cartografia (Labcart) quando chegou a notícia de que havia o caso de aluno com coronavírus. Todos ficaram muito preocupados e a chefia do Departamento decidiu suspender todas as atividades do dia seguinte, 11 de março, e aguardar os encaminhamentos da USP. Já se sabia que o vírus se propaga muito facilmente, mas as demais atividades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) foram mantidas. A imprensa noticiou uma situação pontual, que não afetava os demais cursos 2. O Departamento preservou a identidade do aluno, que também é funcionário da USP, mas havia uma grande curiosidade. Logo em seguida circulou uma mensagem de WhatsApp de autoria do aluno, relatando o despreparo dos profissionais que o atenderam sua ex-esposa no HU. Mesmo apresentando sintomas e informando a viagem recente para a Itália, no primeiro atendimento houve pouco caso e até deboche por parte da médica. O estudante que a acompanhava foi orientado a trabalhar e assistir as aulas normalmente, sem a necessidade do uso de máscara. Ele assistiu as aulas, teve contato com várias pessoas, utilizou a caneta e assinou a lista de presença que passou entre os demais alunos da turma. Pouco tempo depois o estudante manifestou os sintomas, voltou ao HU e só então foi atendido da maneira esperada3. Na quinta-feira, dia 12 de março, eu tinha aula prevista com a turma da pós-graduação. Todos no Departamento estavam ansiosos em relação à orientação da FFLCH e da reitoria da USP sobre os procedimentos a serem adotados, mas não houve a suspensão das aulas. A informação que circulou 2 G1. USP suspende aulas do curso de Geografia, na FFLCH, após aluno comunicar que tem coronavírus. 11 de março de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/11/usp-suspende-aulas-do-curso-degeografia-na-fflch-apos-aluno-comunicar-que-tem-coronavirus.ghtml. 3 Fórum. Estudante da USP com coronavírus diz que foi alvo de deboche ao procurar Hospital Universitário. 12 de março de 2020. Disponível em: https://revistaforum.com.br/coronavirus/estudante-da-usp-com-coronavirus-diz-quefoi-alvo-de-deboche-ao-procurar-hospital-universitario/. 711 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) na imprensa foi de que os professores que decidissem suspender as atividades, deveriam repor as aulas perdidas4. A maior parte dos professores do Departamento sabiam da necessidade de suspender as aulas, mas esperavam um respaldo institucional que não chegava e a ansiedade aumentava. Assim, juntamente com outros colegas suspendi a minha aula do dia 12. Enviei um e-mail para todos os alunos no mesmo dia. Na sexta-feira, diante do aumento do número de casos suspeitos, o Departamento suspendeu as aulas até a terça-feira, 17 de março. Era o dia que eu tinha a defesa do Trabalho de Graduação Individual de uma orientada agendada, que foi cancelada. Os pais da aluna são do grupo de risco para a Covid-19. Na mesma sexta-feira, a USP divulgou a suspensão das aulas a partir da terça-feira, 17 de março. Foi uma semana muito tensa, que pareceu uma eternidade. Vários alunos, alguns professores e funcionários apresentaram sintomas e parte deles procuraram atendimento médico. Nem todos tiveram a oportunidade de realizar o teste, mas alguns casos foram confirmados. Eu também apresentei febre, dor de garganta, tosse e muito cansaço, assim como minha filha e meu companheiro, mas não procuramos atendimento médico porque não foram sintomas graves. Meu olfato continua afetado após quatro meses, mas não realizei teste para confirmar. Temos seguido rigorosamente as recomendações de isolamento social. A maior parte das saídas são feitas pelo Fernando para compras de alimentos perecíveis, principalmente. Temos realizado muitas compras online, mas o recebimento demanda contato com outras pessoas, mesmo que de menor duração e a limpeza de tudo é bastante trabalhosa e precisamos fazer sem a participação de nossa filha. Normalmente ela participaria de tudo. Após algumas semanas, ela aprendeu que não pode tocar nas coisas que chegam e tem sido menos difícil do que no início. Mesmo assim, em alguns momentos, ela esquece a acaba tocando em algo, passamos álcool imediatamente nas mãozinhas e nem sempre ela reage bem. As aulas foram suspensas e outras atividades foram mantidas remotamente. As defesas da graduação e pós vem sendo feitas por videoconferências, assim como reuniões departamentais e da faculdade, orientação de alunos da graduação e pós-graduação. A própria adaptação para estas reuniões por videoconferência foi um desafio, permeado por algumas incompreensões ao longo do processo. Quando participei da primeira reunião por videoconferência, combinei com meu companheiro para ficar com a nossa filha. Estava na sala quando entrei na reunião, nem tinha percebido que meu microfone estava ligado e minha filha começou a chorar no quarto. Como ela estava com o pai, continuei por alguns instantes na reunião, mas tive dificuldade para me concentrar. O choro não parava, mas aumentava e me causava aflição. Deixei o tablet no sofá e fui imediatamente para o quarto. Ela mamou um pouco e se acalmou. 4 R7 Educação. Coronavírus: professores da USP decidem suspender aulas. 12 de março de 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/educacao/coronavirus-professores-da-usp-decidem-suspender-aulas-12032020. 712 Maternidades Plurais Quando voltei para a sala, aliviada, vi que um professor tinha enviado mensagens pelo WhatsApp pedindo para desligar meu microfone, pois era possível ouvir o choro da Flavinha na reunião. Meu companheiro também recebeu a mensagem da mesma pessoa, pedindo para me avisar que meu microfone estava ligado e que era possível ouvir o choro. Foram apenas alguns instantes! Este senhor é pai de dois meninos. Para que este constrangimento? A participação em atividades online de maior duração como as bancas da pós-graduação tem sido um problema. Minha filha brinca com o pai, conversa com a avó, a tia e a prima por chamadas de vídeo nestes momentos, mas se cansa rapidamente de algumas atividades, como é o normal para crianças da idade dela. Eu tenho sempre sido muito objetiva em minhas participações, mas outros membros até citam a necessidade de objetividade, mas na prática se alongam desnecessariamente. É sempre muito angustiante participar de atividades mais longas, vendo que minha filha está cansada e demandando minha atenção. É muito difícil manter o foco. Precisei realizar algumas entrevistas com alunos no período da manhã por videoconferência com outros três professores. Eram cinco entrevistas seguidas. A Flavinha estava dormindo durante as primeiras entrevistas, mas acordou querendo mamar. Ela tem o hábito de mamar ao acordar. O Fernando explicou que eu estava trabalhando, mas ela não se conformou e começou a chorar. Eu desliguei o microfone e a chamei. Alterei a posição da tela do computador para me mostrar do pescoço para cima e a amamentei durante a entrevista. Ela mamou quietinha e nem cheguei a comentar com ninguém durante a entrevista. Acredito que não deve ter sido perceptível. Durante uma reunião em que represento o meu departamento na Comissão de Pesquisa da FFLCH, minha filha por várias vezes sorriu, deu tchauzinho e mandou beijinhos. Ela estava muito carinhosa, mesmo de longe e eu me sentia mal por não corresponder, tentando manter a postura. Sem pensar, em um momento, eu sorri de volta e acenei com um tchau discreto. No mesmo instante, a professora que coordenada a reunião interrompeu e perguntou se estava tudo bem comigo. Respondi apenas que minha filha estava ao lado. Em outras reuniões da mesma comissão, passei a desligar a câmera em alguns momentos para interagir com minha filha. Essas interações são importantes para ela, que se sente mais tranquila e tem menos chances de se sentir ignorada, se chatear e chorar, dificultando minha participação nas reuniões. A professora que coordena a comissão sempre interrompe a reunião para perguntar se eu continuo presente nestes momentos. No dia 26 de maio, soube do falecimento de uma tia que tinha se mudado para o interior. Eu não tinha contato recente com esta tia, mas convivi bastante durante a infância, sempre brincava com as filhas delas, que são minhas primas e guardo boas recordações daquela época. Ela passou alguns dias internada, foi intubada, mas não resistiu. Foi bem triste. Na mesma noite, o vizinho de apartamento debaixo interfonou após a meia noite para reclamar de barulho. Ele já tinha interfonado uma outra vez pelo mesmo motivo, o Fernando atendeu e pediu desculpas, pois estava brincando de modo mais empolgado com nossa filha. Na noite do dia 26 de maio, eu saí do quarto e fui até a cozinha para pegar água, minha filha percebeu e percorreu correndo 713 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) a distância do quarto até a cozinha, com seus pezinhos de uma criança de três anos. O vizinho reclamou que havia passos após as dez da noite, e que ele havia acordado. Ele se alongou por cerca de vinte minutos numa conversa repetitiva e incompreensiva em relação à uma criança pequena há muitas semanas dentro do apartamento. Foram apenas alguns passos por alguns instantes! A recordação que ficou desta noite, foi que no dia que meu pai perdeu a irmã e minhas primas perderam a mãe, o desabafo mais contundente que eu ouvi foi do vizinho incomodado com o barulho da corrida minha filha descalça do quarto até a cozinha à meia noite. No Departamento, houve longos debates acerca da manutenção do semestre letivo de forma online ou a suspensão as aulas até a possibilidade de retorno das aulas presenciais de forma segura. As dificuldades enfrentadas pelos alunos, principalmente os de renda mais baixa foram pontuadas. O Centro de Estudos Geográficos "Filipe Varea Leme" (CEGE) realizou levantamentos, assembleias e se posicionou contra as aulas online. A reitoria, sob o slogan de “A USP não parou”, incentivou fortemente as aulas online5. Diante da imprevisibilidade de um retorno próximo das aulas de forma segura e da manutenção até então do vestibular, foi decidido pela continuidade das aulas online a partir de 1o de junho. O início das aulas online não foi confortável. É bem estranho dar aula olhando para a tela do computador, sem ver o olhar dos alunos. O olhar dos alunos sempre foi um indicador do entendimento dos conteúdos. A interação com os estudantes sempre foi importante nas aulas e se reduziu no ambiente online. As disciplinas de Cartografia que ministro envolvem vários trabalhos práticos. A maior parte destas atividades tiveram que ser reformuladas completamente para se tornarem viáveis online. Esta reformulação tem sido bastante trabalhosa porque o ambiente online é limitante. Ao final das minhas aulas e do Fernando, minha filha sempre gosta de participar para dar tchau aos alunos. Ela conversa com mais facilidade com alguns orientandos da pós, com outros ela tem receio. Ao longo do dia, minha filha demanda muita atenção, os afazeres domésticos também demandam tempo e tenho enfrentado grande dificuldade para a realização de atividades que demandam concentração. Sempre há interrupções. A avaliação de trabalhos que exigem leitura minuciosa tem sido muito prejudicada, assim como a escrita de artigos e capítulos de livro. Então, tenho trabalhado frequentemente de madrugada para a realização estas atividades. Em razão da necessidade de reformular várias atividades, a preparação de aulas tem sido frequente nas madrugadas. A escrita do presente capítulo foi realizada integralmente durante as madrugadas. Este problema tem sido sentido mais fortemente pelas mulheres, principalmente as que tem filhos, como apontado no levantamento com mais de 5.000 respostas consolidadas do Projeto Parent in Science 6. Apenas 9,9% das mulheres com filhos revelaram conseguir trabalhar remotamente, entre 5 Sala de Imprensa da Universidade de São Paulo. A USP não parou. 14 de junho de 2020. Disponível em: http://www.usp.br/imprensa/?p=996. 6 PIERRO, B. Mães na quarentena: isolamento social lança luz sobre desigualdade de gênero na ciência. Pesquisa Fapesp. Maio de 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/maes-na-quarentena/. 714 Maternidades Plurais os homens com filhos a proporção foi de 17,4%, entre as mulheres sem filhos, 32,8% e entre os homens sem filhos, 36%. O número 39 da Revista do Departamento de Geografia da USP (RDG), publicado em julho de 2020, com quinze artigos de trinta e oito autores, contou com apenas 28,9% são mulheres. Entre os primeiros autores, 26,7% são mulheres. O desequilíbrio é maior do que o encontrado no levantamento sobre o perfil dos profissionais de Geografia, realizado em 2015 com 480 participantes, dos quais 35,4% foram mulheres e 64,6% homens7. Este desequilíbrio não ocorre no início da carreira, ao menos entre os alunos do curso de Geografia da Universidade de São Paulo, com 49% de mulheres e 51% de homens, em levantamento realizado com 290 estudantes8. Assim, a RGD convida as geógrafas brasileiras e do exterior para submeter seus trabalhos para avaliação, ciente das dificuldades, mas comprometida com o equilíbrio de gênero e apoiando a participação ativa das geógrafas em todas as frentes da ciência geográfica 9. 7 MORATO, R.G. Perfil e percepção dos geógrafos brasileiros sobre suas formação e condições de trabalho. Confins [Online], v.37, 2018. DOI: 10.4000/confins.15854 8 GIROTTO, E.D. A classe trabalhadora vai a universidade: análise das implicações político-pedagógicas a partir dos dados do departamento de Geografia – USP. Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE). v.13, n.20, 209-235, 2017. DOI: 10.5418/RA2017.1320.0010 9 MORATO, R.G. Editorial. Revista do Departamento de Geografia, n.39, 2020. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdg/issue/view/11115/1850. 715 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 120 Uma carta aos meus pequenos, no ano das aflições Sara Regina Munhoz1 2020, o ano da escrita. Para mim, é claro, em meu cronograma vaidosamente impresso em uma tabela detalhada, precisa e imperativa, aprovado sem ressalvas por meu/minha parecerista. Tantas semanas para cada capítulo, umas brechas para os artigos, para os congressos, uma atenção especial aos períodos previsivelmente turbulentos das férias escolares, a esperança de uma adaptação mais tranquila das crianças às escolas, rotina bem estudada dos trajetos, dos horários e das demandas. De tanto que tantos perderam, perder a escrita parece menor. E é. E é. Mas é imenso, também. Meu doutorado em Antropologia nasceu como ato de coragem e de violência contra mim mesma. Veio quando deixei de achar que a maternidade tinha me roubado o desejo breve e potente da pesquisa e da escrita. E quando veio, veio com vida nova. Nas disciplinas do primeiro ano, fui acompanhada por uma barriga crescente, casa de gente em formação. De novo. Os artigos, os trabalhos, tudo foi se ajustando aos tempos que não eram bem os meus, mas da vida que em mim marcava meus próprios ritmos. Por oito dias, depois de meses emperrada na burocracia dos financiamentos, perdi o direito a uma licença-maternidade remunerada. A esperada e necessária bolsa só veio quando o caçula já tinha chegado, bebê fresquinho, leite descendo, pesquisa parada. Como não era bolsista daquela agência de fomento oito dias antes, na manhã de sua chegada, lá se foram os quatro meses (tão breves, tão raros) que nos garantiriam um puerpério mais tranquilo. Passamos por isso e passamos bem. Em terra de pesquisa sucateada, violentada, encurralada, ter uma pesquisa financiada é motivo de muita comemoração. Sabíamos, minha família, meu orientador e eu, que os tempos precisariam ser enxutos e as produções multiplicadas. Se esse era mesmo 1 Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos, pesquisadora do Hybris – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades, e do Nuap – Núcleo de Antropologia da Política. Bolsista Fapesp (Processo 2017/02467-4). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7134597984469299 716 Maternidades Plurais meu desejo, seria preciso ser violenta comigo, me empurrar e não me deixar esquecer. Não há romantismo na maternidade, tampouco no trabalho. Há afecções, desejo e o movimento constante contra o torpor, contra o automatismo, contra a rendição. Nos dois anos seguintes, 2018 e 2019, passamos por uns bocados. A pesquisa, ao menos em meu caso, quando aliada à maternidade, envolve o esforço de entender, moldar e aceitar os ritmos e as cadências. Não tem resposta fácil. Domar o corpo pra que ele escreva e leia nos horários comerciais, enquanto os filhos estão na escola, não sem uma dose de agonia e de culpa repetidamente rechaçadas. Parar para medicar, pra cuidar, pra amparar, pra vestir e alimentar. Fazer caber, fazer render. Não há nada de muito heroico nisso, nem de exemplar. É mais um exercício diário de compreensão do espaço que a criação — manifesta, em meu caso, na pesquisa e na escrita — ocupa em minha existência, e o que, para efetuá-la, preciso e sou capaz de fazer (ou, ainda mais difícil, de deixar de fazer). Aqui em nossa família somos rodeados de privilégios. Um deles inclui o salário de meu companheiro que, na verdade, aparece como privilégio quando comparado ou contraposto à minha bolsa, que tem data pra acabar, que não prevê férias nem décimo terceiro, que não entra no cálculo de minha aposentadoria. A carteira assinada obriga, vincula, pro bem e pro mal, mais escancaradamente. Por ela, agradecidos e dependentes, imersos em uma sociedade que garante bizarros cinco dias de licençapaternidade e que quase nunca vê os pais em reuniões escolares ou em salas de espera de pediatras, cedemos vários de meus dias de trabalho. Desejo contido de criar, de escrever, que roubava a leveza do desejo também presente de cuidar. Quando não compartilhadas, as demandas da parentalidade viram fardo pesado. Estamos bem cientes desses processos todos, Felipe e eu. E nos esforçamos com tudo que podemos para driblar tudo que podemos. Revisão, readequação e desnaturalização constantes dos papeis e das obrigações em nossa casa. É claro que sempre sobra, sobra por todos os lados. Nos empenhamos também, eu e ele, em nomear corretamente as coisas aos nossos filhos. A principal delas talvez seja a de chamar meu trabalho de trabalho. Ainda que sem carteira assinada, ainda que com prazo pro fim, ainda que sem garantias, é trabalho e trabalho que desempenho com prazer. Eu sou feliz quando posso criar e escrever. Eles sabem. Assim como espero que saibam que sou feliz por amá-los. Afetos felizes, potências elevadas. Era dia 15 de março, um domingo. Durante a semana toda que o antecedeu, sabíamos, Felipe e eu, que tudo iria mudar mais uma vez. O governo do estado de São Paulo anunciou que as escolas deveriam suspender suas atividades e que os que pudessem permanecer em casa, deveriam se resguardar. Há uma semana eu havia chegado, eufórica, abastecida, de uma viagem a dois campi da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Entre amiga/os e pesquisadora/es que muito admiro, apresentei os resultados parciais de minha pesquisa de doutorado, me extasiei com o Rio São Francisco, com a Serra, com a caatinga verdejante e com a potência da universidade pública quando ela se propõe a ser realmente inclusiva, gratuita e de qualidade. Os desvios, as derivas que esses encontros podem provocar em nossos trabalhos e em nossas vidas dificilmente podem ser mensurados. Essas encruzilhadas. Foi essa a viagem em que mais tempo estive longe de meus dois filhos. Foram dez dias fora e eu me senti muito bem. 717 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) O ano prometia ainda outros períodos de curtas ausências. Uma delas já logo três semanas depois de meu retorno. Uma breve viagem de campo que não chegou a acontecer. Porque o vírus não esperaria. Naquele 15 de março, decidimos, Felipe e eu, que Teresa e Sebastião, nossos filhos de 6 anos e de 2 anos e meio, já não voltariam à escola até que a escola voltasse a ser um ambiente seguro para todos nós. Eu, talvez a mais assustada, hipertensa e com um rim meio esquisito, achei prudente nos cuidarmos das melhores formas que pudéssemos nos cuidar. Decidimos que não contaríamos também com a ajuda de nossos pais e irmãos, muitos deles pertencentes aos grupos de risco e muitos deles não dispensados de seus trabalhos. A pandemia chegou e escancarou as diferenças nos cuidados por aqui. A ausência por quase doze horas todos os dias se fazem sentir quando estamos já há quase três meses ilhados. Teresa, Sebastião e eu. E foi nessa ilha, numa casa acolhedora, mas pequena, num escritório que também é sala de jantar e espaço das atividades e brincadeiras que se multiplicam, que fui percebendo ser preciso, de algum jeito, voltar a escrever. Quando me dei conta, o pânico chegou primeiro, depois uma frustração enorme e a vergonha pela paralisia delongada. A tese já não seria a mesma que sonhei e construí um tanto orgulhosamente até dezembro passado. As possibilidades de financiamentos futuros escassearam ainda mais. Ainda mais, imagine. Os encontros, tão urgentes, foram suspensos. Como sentar e escrever? Com o que de mim? Como? Parando a cada minuto pra cuidar, para acolher, para ensinar? Como manter-nos saudáveis e inteiros? E a angústia, e a saudade, e os riscos todos, e a exaustão. Num desses dias de choro fácil e pouco espaço para chorar, um empurrão, um estímulo também doído, mas tão necessário, me acertou. Escreva. Qualquer coisa. Qualquer coisa e logo a tese. Primeiro, qualquer coisa. É preciso dizer, é preciso registrar. A mim, pessoa que escreve, caberá escrever. Será necessário. Então, aos meus filhos, meus amores e minhas companhias incansáveis — sufocantes e desopressoras — escrevi. Já se passaram mais de dois meses desde essa primeira carta. Muito mudou e, ao mesmo tempo, quase tudo segue igual. Ela está aí. Para lembrá-los e para me lembrar: São Carlos, 22 de maio de 2020 Teresa, Sebastião Não houve tempo de despedidas, queridos. Fiquei me lembrando dos últimos dias seus, Teresa, na escola antiga. Seria bom para mim que você fosse até o final, eu tinha que trabalhar. Seria bom pra você também, me parecia, fechar o ciclo do jeito que melhor lhe satisfizesse. E assim foi. Insistimos uns dias, mas os colegas deixaram de ir. Abraçamos forte as professoras, agradecemos. Sabíamos que era a sua última vez naquele espaço que acolheu suas lágrimas e suas alegrias. Que cuidou de você enquanto eu cuidava de mim. Emocionada, com Sebastião pendurado em meu quadril e sua mãozinha segurando tão forte a minha, tivemos nosso ritual. 718 Maternidades Plurais Dessa vez, não deu tempo. Depois de uma sexta-feira corriqueira, com um de vocês finalmente adaptado e sorridente e a outra retardando sempre nossas saídas, delongando todo adeus, tudo seria diferente. Não me lembro se houve sorvete naquela sexta-feira, vocês não haverão de se lembrar também. Para nós, seus pais, uma sombra já rondava. Do medo e das poucas alternativas. Eu pude ficar com vocês, queridos. Não foi uma opção, mas foi um privilégio. Privilégio de parar, por mais que doesse, para conservar a mim e a vocês. Não precisei recorrer aos meus pais, arriscados, nem aos do Felipe, também encarregados de outros tantos cuidados. Vocês, meus, ficariam comigo. Eu sinto muito que aqui não haja espaço para que corram, e que o sol precise ser perseguido nas horas certas e por poucas horas. Sinto que não tenham histórias pra me contar no fim do dia. Do parquinho, dos amigos, das aulas. Sinto que tudo que estejam vivendo, tudo mesmo, seja aquilo que eu posso dar. Não é o suficiente, queridos. Porque o mundo, como eu e vocês o conhecíamos, é enorme e enorme. Eu já sabia disso quando fui casa de vocês. Era pro mundo que vocês viriam. E vieram, e foram. Aqui em casa, há quase dois meses sendo barco, bote, amparo uns dos outros, achei que deveria, uma vez mais, ser recipiente de umas memórias que vocês não terão. Muito do que vivemos nesses dias impactará as existências de vocês dois. Estou certa disso. E, ainda assim, de que se lembrarão? Ao mundo pós-pandêmico, do controle e da falta de controle, das distâncias e assepsias, que levarão? Teresa, você nos surpreende com suas lembranças. A máquina de barbear foi comprada em Sevilla, não em Madrid. Durante quase toda a noite, você esteve acordada no voo. O dia do tombo na Cônego, o aniversário do Joaquim, o dia em que cortei meu dedo. Quando caiu no vão do trem e quando levaram meu celular. Você pede que a narrativa seja contada infinitas vezes, infinitas. E então, escolhe o que dela lhe convém e cria a sua, e a repete pra sempre, com a certeza de quem sabe o que viveu. Alguns filmes, passeios, algumas coisas bem mais corriqueiras vêm à sua memória e te escapam, e nos flagram. Está tudo aí, guardado em você. Sebastião, você confabula, imagina, divaga. Diz que lembra. Lembra da cobra que te picou, do carro pegando fogo, do leão. Diz que quer ir à São Paulo em nossa próxima viagem, mas conta pra todo mundo que já esteve dentro de um avião. Marcela é a sua professora, mas não revela o nome de um amigo sequer. Lembra que havia peixes na praia (embora não houvesse), e também bichos e ondas e areia. Lembra do Benfica e da águia grande. A comida da creche era boa, diz que lembra, e gostava do escorregador. Você é casa e é imensidão. Tá disposto a se lembrar, a construir qualquer memória que lhe pareça sedutora. Embarca nas de Teresa, se encanta com as nossas. Pois então, vou escrever um pouco das minhas, que talvez seja um pouco das suas também. Contaremos, mudaremos, selecionaremos o que nos convier. Algumas delas, mesmo que rejeitadas, insistirão em permanecer. Outras, por mais que tentemos segurar, vão fugir. Escrevo, então, meus queridos. Foram dois meses de uma nova era. Dois meses da maior crise que vivi desde que vivo. E vocês aí, desmemoriados e fantasiosos, já a enfrentaram. 719 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Estamos em um momento abominável. Vocês já sabem. Adoeci, quase enlouqueci, me entristeci nesses últimos anos. Mudamos as rotinas e os círculos que vocês costumavam frequentar. Deixamos amigos, nos afastamos de conhecidos, nos apoiamos em novos companheiros. Nunca escondi de vocês o que vivíamos. O caos, a violência, a barbárie. Primeiros pros distantes, pros que estão longe de vocês, privilegiados que são. Mas logo sentiríamos o baque aqui mesmo, em nossa casa. Os maiores deles foram o desrespeito em relação ao meu trabalho. O que eles dizem quando se referem às mulheres, o que pensam da vida dos que merecem viver. O elogio à burrice, à ignorância. Terraplanismo, negacionismo, racismo, homofobia, incêndios, lamas e mortes. Mas nos recusamos a morrer. Vocês aprenderam as canções e nós aprendemos que nossa casa seria lugar de afeto e de resistência. Aqui, não. Há dois meses, queridos, sob esses dias sombrios, (quem nos dera fosse isolado, mas reverbera, contagia, tá em todo canto e lugar), vivemos o tempo da pandemia. A primeira, pra nós. Dificilmente a última. Aqui, vocês e eu. Com saudades do Felipe, preocupados com ele, aprendendo a nos proteger. Mãos limpas, máscaras, aulas. A rede, o sol, os livros. Televisão, exercícios. Lego, quebra-cabeças, sulfite e reciclagem. Fizemos o que pudemos. Gritamos pouco, choramos muito. Não houve um dia em que não nos abraçássemos. Um sequer em que não disséssemos que nos amávamos. Houve dança e música, e uma amizade que brotou em junho do ano passado começou a germinar. Sem alternativas, vocês se encontraram. Houve muito cansaço, muita saudade, raiva, medo, rancor. Aprendemos o que nos faz mal e tentamos deixar de lado. Os noticiários foram os primeiros. Mas, por nenhum segundo, nos rendemos à ignorância. Há perigo, há violência e estamos, menos que outros e mais que alguns, expostos a eles. Vocês viram a falta que me faz poder fazer o que amo fazer. Espero muito que tenham visto. Porque espero que vocês nunca tenham medo ou vergonha de fazerem o que amam fazer. Espero que não se acovardem. Eu tenho tentado não me acovardar. Nem sempre com sucesso, mas tenho tentado. Vocês também viram o que uma fábrica faz às pessoas, e espero que tenha ficado impresso em vocês a crueldade e a sedução do capitalismo. Não se conformem, não compactuem. Aliem-se aos incomodados, aos indignados, aos desesperançados. Mas guardem a alegria, porque sem ela não há revolução. Em nosso quintal de menos de 5m² fomos alegres. Barco, massinha, planta, giz, guache, folhas. Vocês inventaram histórias enormes, brigaram horrores, dormiram abraçados. Me consolaram e foram consolados. Vimos o outono e o inverno chegarem margeados pelo arame farpado, mas preenchidos pelo azul que essa cidade sabe pintar. Vocês assaltaram a fruteira e largaram mil maçãs pelo caminho, pela metade. Nunca encheram suas garrafinhas d’água. Reivindicaram mais um desenho, sempre só mais um. Mas vocês também criaram, e embarcaram nas minhas inquietas vontades de mudar. Chuva de mangueira, amora, banho em dupla e em trio. Os berros pelo shampoo escorrendo e a urgência inoportuna de usar o banheiro. Celebramos a vida. A dele, que mudou com a de vocês. A casa arrumada, o desenho feito. Sempre ao menos uma planta na mesa. Brindamos, olhando nos olhos, 720 Maternidades Plurais porque é assim que se faz. Adormecemos todos tortos e abraçados, mesmo quando o que queríamos, Felipe e eu, era nos abraçar. O álcool, o cloro, os sapatos na porta. A saudade dos avós, dos tios, dos amigos. A casa quieta e a urgência de som. Lemos Harrys e Shakespeares e Carmens e Gabrielas. Lemos almanaques e guias do corpo humano. Exaltamos o poder da natureza, a galáxia e seus planetas tão redondos. O xadrez, as bandeiras, os carros e os dinossauros foram nossas companhias constantes. Seus cabelos, cortados logo antes do fim, cresceram. Tão lindos e despenteados. Os dentes amoleceram, as pernas alongaram e as canelas ficaram frias. Teresa, você desfilou. Recombinou suas roupas, descobriu as minhas, esteve em gala. Sebastião, seus tênis me enlouqueceram, mas você passou a calçá-los sem ajuda (ainda que quase sempre os invertesse). Desenhos de canetinhas pelos braços, maquiagem, capas e máscaras. Vocês brilharam e jamais se entregaram ao amargor. Irritados, cansados, mal-humorados, talvez, mas jamais entregues. Não houve longa conversa online que não terminasse em caos e em choro, mas nas lembranças e nas histórias, ah, os queridos sempre estiveram perto. Vocês vibraram e se prepararam para cada esporádica volta no quarteirão — atenta, cuidadosa, desconfiada mesmo. Bateram panela. Escreveram bilhetes, ilustraram. Seguraram o impulso do abraço e esperaram o banho. Depois do banho, depois do banho. Vimos menos filmes do que gostaríamos, Felipe e eu. Mas vimos alguns muito bons. Vocês ali, interessados nos cavalos e nos lindos quimonos de Ran, atentos às mulheres hipnóticas do Goddard, impactados pela imensidão do mar de Besson, cantarolando as músicas de Chomet, impressionados com a Morte de Bergman, sensibilizados com o café de Violeta e de Margarida. Também rimos com Gumball, rimos muito. Vocês sofreram com isso das aulas online. Os dois. E com a minha atenção dividida, e com minha ansiedade e o medo de não conseguir. Me aninhei em vocês tantas vezes, meus amores. “Você é a pessoa mais incrível que eu conheço”, você me disse, Teresa. “Eu te amo também”, você completou, Sebastião. E ainda, não bastasse isso tudo (e já nos teria bastado), uma leu, outro falou. Já lia algo, já falava alguma coisa. Mas leram e falaram, meus queridos, aos cotovelos, sozinhos, conosco, em alto e bom som, sem medo nem amarra. Revolução. Eu vi, assisti a expansão do universo estupefata, apaixonada. Não sabemos o que virá. O mundo que foi, já foi. E eu não quero me entregar à melancolia. Quero é saber o que virá. Sem esperança, sem ilusão. Mas a vida teima, queridos. Ela teima, ela grita e ela acha seus meios. A nós caberá teimar também, se debater pelo chão, esgoelar. Fazer essa vida ser vivível para nós, conscientes da potência dos encontros e da beleza do que se recusa a envergar. Negar todo fascismo, toda tristeza, toda submissão. Dá pra começar aqui, em casa, no quarto que acolhe as leituras, na mesa que promove os brindes, no quintal que emoldura o sol, no box que aquece os banhos. Essa é a nossa vida, meus amores. Poderosa demais pra deixar de viver. 721 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Amo vocês, meus vendavais, minhas tempestades, minhas temperanças Sua mãe 722 Maternidades Plurais 121 Pós-doutorado, maternidade e Covid-19: modos de existência de uma mulher-mãe-pesquisadora Silvana Claudia dos Santos1 Introdução Como docente, há quase nove anos, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), a qual faz parte de um conjunto de instituições que concentra a maior parte da pesquisa científica realizada no país, em março de 2020, tive a oportunidade de me afastar de algumas atividades acadêmicas 2 para a realização do estágio pós-doutoral em Educação Matemática na Universidade Estadual Paulista, campus de Rio Claro – SP (UNESP – RC). A minha pesquisa atual trata das possíveis relações entre o pensamento computacional3 e o desenvolvimento do pensamento matemático na infância. O interesse por esse tema nasceu da minha própria prática como docente do Departamento de Educação (DPE) da UFV, por meio da qual, desde meu ingresso em 2011, venho atuando na formação matemática de licenciandos do curso de Pedagogia e, a partir de 2014, orientando pesquisas na Pós-graduação em Educação. Também não posso negar que a maternidade tem, em alguma medida, moldado as minhas atuações profissionais, de modo que cada vez mais me vi envolvida pelas questões da infância. No momento da escrita deste texto ainda não é possível saber como estaremos em relação à pandemia causada pela Covid-19 quando ele for publicado. Mas, já podemos afirmar que a situação se mostrou extremamente delicada e que sobrecarregou, física e emocionalmente, as mulheres, espe- 1 Pós-doutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Universidade Federal de Viçosa (UFV). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2643407913432790 2 Embora licenciada formalmente para a realização do pós-doutorado, algumas atividades diretamente vinculadas à instituição de origem continuam sendo desenvolvidas, tais como: orientação de estudantes da pós-graduação, reuniões, participação em comissão, coordenação de curso de extensão, etc. Uma das compreensões de pensamento computacional adotadas na pesquisa consiste “[...] um processo de pensamento que usa ferramentas abstratas e conceitos da Ciência da Computação para resolver problemas, atividades ou tarefas, gerando novos processos mentais a cada momento que novas informações são incorporadas a esse processo” (SILVA, 2018, p. 33). SILVA, Eliel Constantino da. Pensamento Computacional e a Formação de Conceitos Matemáticos nos Anos Finais do Ensino Fundamental: uma possibilidade com kits de robótica. 2018. 264 f. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Educação Matemática), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2018. 3 723 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) cialmente as mães. E, claro, não podemos atribuir, exclusivamente, à pandemia essa sobrecarga. Historicamente, as mulheres, sobretudo, as mães-trabalhadoras vêm sofrendo com uma construção social que as tem colocado em situação de desvantagem perante aos homens, seja pelos menores salários quando comparado aos dos homens que ocupam os mesmos cargos, seja por desempenharem jornadas triplas acumulando tarefas profissionais e domésticas (HIRATA; KERGOAT, 2007)4. O modo como ocorreu a concessão da licença para a realização do meu pós-doutorado, já referenciado neste texto, consiste em mais um indicativo dos desafios enfrentados por mulheres-mães, mais especificamente, no meio acadêmico. Inicialmente, destaco que esta não foi a primeira oportunidade que tive para realizar o pós-doutoramento desde a defesa de minha tese de doutorado5 em 2013. A minha condição de mulher e, principalmente, de mãe levaram ao adiamento desse projeto profissional em dois momentos anteriores, caso contrário sofreria as consequências de ser mãe do meu primeiro filho e assumir o compromisso institucional de desenvolver uma pesquisa de pós-doutorado e todas as demandas que um estágio desta natureza acarreta. Embora o adiamento deste projeto tenha ocorrido em dois momentos distintos, pode-se dizer que o motivo foi o mesmo: a maternidade. Na primeira oportunidade prevista para a realização do pós-doutorado fiquei grávida. E na segunda, dois anos depois, a atenção que uma criança pequena exige trouxe um sentimento de insegurança, quando associada ao compromisso de realizar o pósdoutoramento, que me fizeram reconsiderar a possibilidade de afastamento. São responsabilidades de naturezas diferentes, pensei na época, mas que juntas demandariam uma dedicação e controle da situação que, naquele momento, não me sentia preparada para assumir. Sempre me perguntei qual seria o preço que eu estaria disposta a pagar para efetivar o projeto do pós-doutorado e o que isso representaria para a minha vida pessoal e profissional. Valeria a pena? Além disso, me perguntava: que impactos uma tomada de decisão representa na vida de meu filho? Nesta época, meu esposo, e pai de nosso filho Arthur, trabalhava em uma empresa no interior de Goiás e voltava, apenas, uma vez por mês para nossa casa, permanecendo lá não mais que uma semana. Esse cenário me colocava diante de uma realidade na qual não era possível contar com a participação efetiva de outra pessoa na gestão da vida privada, impactando diretamente na minha vida pública. A história de luta das mulheres por condições de trabalho mais igualitárias tem explicado o quanto ser mulher em um contexto que privilegia o mérito e a produtividade desumanizam a nossa existência. A perversidade é ainda mais marcante quando escolhemos ser mães. E, sim, essa é uma escolha da mulher, uma vez que abdicarmos ao direito reprodutivo pode implicar arriscarmos direitos em outras áreas da vida (HOOKS, 2018) 6. Quando digo desta escolha pessoal, não estou afirmando 4 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007. 5 SANTOS, Silvana Claudia dos. Um retrato de uma licenciatura em matemática a distância sob a ótica de seus alunos iniciantes. 2013. Tese (Doutorado em Educação Matemática), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro. 6 HOOKS, Bell. O Feminismo é para Todo Mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. 724 Maternidades Plurais que cabe às mulheres decidirem por uma carreira profissional em detrimento do desejo de exercer a maternidade com tudo o que ela exige. Sob esse aspecto, a escolha por ter um filho envolve as condições sociais, econômicas, políticas e psicológicas necessárias para garantir o bem-estar da criança, o que tem sido caracterizado, grosso modo, por parentalidade. Para Iaconelli (2019)7 toda a sociedade é, também, responsável por este bem-estar. E, diante disso, deveríamos ter à nossa disposição todas as condições e apoio para desempenhar, sem sofrimento e adoecimento, tanto a maternidade quanto a carreira profissional. Nesse sentido, cabe ressaltar que o momento de pandemia causada pela Covid19 só tornou a situação ainda mais evidente. Contudo, é mister reafirmar que ela já existe há muito tempo! Quando me mudei com Arthur, de quatro anos, de Viçosa-MG para Rio Claro-SP com o intuito de realizar o pós-doutoramento na UNESP, as orientações de distanciamento social haviam acabado de ser implementadas por boa parte dos Estados e Municípios. Sendo assim, passei a conduzir minhas atividades de pesquisa, ensino e extensão remotamente e com a presença do meu filho em todas as ocasiões, uma vez que pelo mesmo motivo ele não estava frequentando à escola. Tivemos que construir, juntos, um outro ritmo de vida, um outro modo de existência. Desta construção, destacarei dois aspectos que se mostraram marcantes para mim como mulher-mãe-pesquisadora: a dimensão do trabalho enquanto pós-doutoranda e sobre o uso das tecnologias digitais pelo Arthur nesse período. “Mamãe, por que você trabalha?” Partindo de uma perspectiva histórico-cultural8, entende-se que o trabalho é o que nos torna verdadeiramente humanos. Foi durante o distanciamento social, em meio à pandemia causada pela Covid-19, que meu filho aos quatro anos de idade perguntou o porquê eu, sua mãe, trabalho. É interessante quando as crianças começam a ensaiar as primeiras reflexões sobre questões da vida como essa, por exemplo. Na tentativa de formular uma resposta à pergunta que intitula esta seção do texto, o que me veio à cabeça foi uma perspectiva baseada no consumo: “Porque é por meio do trabalho que a mamãe consegue comprar aquilo que precisamos e desejamos.” Claro que é muito mais do que isso! Para além da questão do consumo, próprio da nossa sociedade capitalista, é importante destacar que trabalho porque gosto, porque quero, porque isso faz de mim quem eu sou. Parecia difícil para meu filho entender que, mesmo estando em casa, precisava trabalhar e, principalmente, compreender que trabalho é algo importante para mim. Diante disso, foi no silêncio e tranquilidade das madrugadas que consegui me concentrar, sem interrupções, ao trabalho. Em geral, o dia era reservado para participar de reuniões virtuais, fazer 7 IACONELLI, Vera. Criar Filhos no Século XXI. São Paulo: Contexto, 2019. “Um dos pressupostos fundamentais da teoria histórico-cultural, advindo da teoria marxista, é o papel central do trabalho, atividade humana por excelência, no desenvolvimento humano. Nessa perspectiva, o trabalho é aquilo que fundamentalmente humaniza e possibilita o desenvolvimento da cultura” (RIGON, Algacir José; ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira; MORETTI, Vanessa Dias. Sobre o Processo de Humanização. In.: MOURA, Manoel Oriosvaldo de (Org.). A Atividade Pedagógica na Teoria Histórico-Cultural. 2 ed. Campinas: Autores Associados, 2016. p. 18). 8 725 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) algumas leituras, responder a e-mails e a dezenas de mensagens que chegavam pelo aplicativo de comunicação instantânea. Ademais, era durante o dia que eu cozinhava, lavava, limpava, me dedicava aos cuidados com meu filho, dentre os quais estava o brincar. Aquela leitura mais densa, aquele refinamento no artigo para submeter à revista, aquela escrita reflexiva e bem fundamentada do capítulo de livro em construção não tinha espaço na agenda convencional do dia. Um levantamento realizado pelo projeto Parent in Science9, de 1 a 8 de abril, com mais de quatro mil participantes, indicou que a produtividade acadêmica das mulheres-pesquisadoras durante a pandemia reduziu. Segundo esse levantamento, apenas 13% das estudantes de pós-graduação que têm filhos estão conseguindo trabalhar neste período de distanciamento social. Os resultados desta pesquisa me fizeram refletir sobre o que se entende por produtividade no contexto acadêmico e como a meritocracia consiste na forma mais ofensiva de análise do trabalho desenvolvido por mulheresmães neste contexto. Da experiência que tenho vivido nesse momento de distanciamento social, posso dizer que muito tenho produzido. São reuniões virtuais frequentes (grupos de pesquisa e estudo, orientações de estudantes, comissões institucionais), curso online de extensão, organização, apresentação e mediação de palestras online, leituras, escrita e revisão de artigos para livros, periódicos e eventos científicos, organização de livro, dentre outras atividades acadêmicas, além de toda a intensificação trazida pela pandemia em si. É lamentável a visão que se tem de produtividade acadêmica sem considerar a complexidade da vida das mulheres-pesquisadoras, principalmente, aquelas que são mães. A figura 1, a seguir, ilustra uma tentativa de realização do trabalho acompanhada das interrupções de Arthur que, muitas vezes, só queria atenção. Na imagem à esquerda, Arthur se aproxima para solicitar a minha atenção, deita em minhas pernas e adormece. Já na imagem da direita, ele senta em meu colo para que eu participe do jogo que está jogando e anuncia que não é mais hora de eu trabalhar. Em ambas as situações apresentadas na figura 1, eu estou trabalhando em frente ao notebook. Frases do tipo: “Mamãe, fica aqui comigo!”, “Oba, acabou a reunião! Agora, você vai brincar só comigo!”, “Mamãe, agora você é só minha?” ressoavam diariamente durante esse processo de reinvenção da realidade profissional e pessoal. 9 Para mais informações acesse: https://www.parentinscience.com. 726 Maternidades Plurais Figura 1: Situações em que Arthur interrompe meu trabalho demandando atenção 10. Fonte: arquivo pessoal. Tecnologias digitais, crianças e o cotidiano de mães-pesquisadoras Desde o curso de Mestrado tenho estudado sobre o papel das tecnologias digitais em processos educativos diversos, problematizando e explorando potencialidades. A pandemia causada pela Covid19 trouxe à tona a necessidade de usos dessas tecnologias para viabilizar a manutenção de determinadas atividades, bem como minimizar o distanciamento entre amigos, familiares e colegas de trabalho. Sem dúvida, serão necessárias pesquisas que investiguem os impactos destes diferentes usos e suas consequências positivas e negativas. De fato, a pandemia criou uma agenda de pesquisas em distintas áreas do conhecimento que não devemos ignorar. Nesse sentido, uma reflexão, ainda carecendo de maior aprofundamento teórico, que quero trazer nesse relato pessoal, trata do papel que certas tecnologias digitais têm assumido durante o distanciamento social compulsório em relação ao uso mais frequente pelas crianças. Há décadas pesquisadores discutiram como a televisão se tornou, para famílias de classe média baixa, uma distração para as crianças enquanto as suas mães, que não podiam pagar uma pessoa para cuidar dos filhos ou que não conseguiam vagas em instituições públicas, tinham que trabalhar. O excessivo tempo que as crianças ficavam à frente da televisão acarretou várias críticas de especialistas em infância e da sociedade em geral, seja pelo conteúdo de qualidade muitas vezes duvidoso, seja pela exposição à tela que eram submetidas. Ao que parece, algo semelhante, e possivelmente com maior intensidade, vem acontecendo nos últimos anos em relação aos dispositivos móveis, principalmente celulares. Sobre esse aspecto, é possível perceber dois grupos extremos: aqueles que demonizam o uso desses equipamentos pelas crianças pequenas e outros que acreditam no seu potencial educativo. 10 Parte dos registros do cotidiano, durante o distanciamento social, foram produzidos por uma amiga, doutoranda da UNESP, que nos ofereceu o seu apoio. Agradeço à Lahis Braga por toda ajuda e parceria enquanto estivemos em Rio Claro-SP. 727 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No primeiro grupo, críticos ferrenhos, defendem que esse tipo de tecnologias digitais causa mal às crianças. Dentre esses males são destacadas consequências físicas, psíquicas, cognitivas e até mesmo no que se refere à segurança das crianças quando a internet está associada ao uso destes dispositivos. No outro extremo, os argumentos perpassam a questão do desenvolvimento da criatividade, acesso a conteúdos educativos de diferentes áreas, contato com outras línguas e culturas, etc. Como pesquisadora das tecnologias digitais na educação, sempre acreditei que não devemos nem demonizar nem endeusar as tecnologias. Em outra direção, defendo que é fundamental que tenhamos uma visão crítica em relação à presença de diferentes tecnologias em distintos momentos da história, de modo a refletirmos sobre suas potencialidades e, também, os seus limites. Como nos diz Pierre Lévy11 (1999) em seu livro “Cibercultura”, nem veneno, nem remédio. Nesse momento de distanciamento social e fechamento das escolas, as crianças passaram a ficar em casa ao mesmo tempo que muitos de seus responsáveis tiveram que se organizar para desenvolver suas atividades profissionais de maneira remota. Muitas escolas se mobilizaram para enviar atividades para que as crianças e adolescentes as realizassem em casa com o devido acompanhamento de adultos, o que intensificou a responsabilidade das famílias pela educação escolar dos filhos. No meu caso específico, tenho um filho matriculado no primeiro período da Educação Infantil. A escola também tem enviado semanalmente, via comunicador instantâneo, atividades para serem feitas em casa, sem a exigência de uma devolutiva por parte das famílias. Embora tenhamos que reconhecer e valorizar o esforço das profissionais da escola em promover experiências educativas para as crianças nesse momento de pandemia, nem sempre as atividades são aquelas que julgo as mais adequadas, uma vez que fica evidente um movimento de escolarização precoce na Educação Infantil que muito me preocupa. Sendo assim, busco fazer com Arthur apenas as atividades que mais se aproximam das suas necessidades como criança e daquilo que acredito ser o mais adequado para ele, sobretudo, nesse momento de extremo desgaste emocional. Portanto, opto por realizar as atividades que privilegiam a arte, a brincadeira, o desenvolvimento motor, a imaginação, etc. Contudo, devo confessar: nem sempre damos conta de realizar tais atividades. Paralelamente a isso, chamo a atenção, especificamente, sobre como o celular, tablet, notebook e tecnologias associadas a essas máquinas têm ocupado um papel semelhante ao da televisão em décadas passadas. Arthur tem um tablet onde ele joga, assiste a desenhos animados variados, lê e ouve histórias, ouve e assiste a clipes de músicas infantis dos mais diversos temas e formatos. Para isso, ele tem instalado alguns aplicativos e acessa o youtube kids. Cabe destacar que, durante a pandemia, a escola também tem lançado mão destas tecnologias digitais, uma vez que algumas atividades propostas se baseiam em vídeos infantis que abordam as temáticas trabalhadas, tais como: letras, números, datas comemorativas, cores e formas, dentre outras. Embora Arthur já fosse um usuário de tecnologias digitais antes da pandemia, não posso negar que ele tem permanecido diante das telas muito mais tempo que eu gostaria e acredito que deveria. É claro que desejava que ele estivesse frequentando à escola, brincando com outras crianças, convivendo em harmonia com a natureza, conhecendo outros lugares, explorando outros espaços, dada a 11 LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. 728 Maternidades Plurais importância de esse tipo de atividade para o desenvolvimento infantil. Por outro lado, entendo que o acesso às tecnologias digitais que ele possui também influencia na construção de um repertório repleto de possibilidades. Nos usos que ele faz das tecnologias digitais busco fazer o melhor possível, mediando e acompanhando as atividades e, além disso, aproveitando para também trabalhar no notebook. Deste modo, aproveito para explicitar que o meu trabalho intelectual é muito desenvolvido na frente de uma tela, seja lendo artigos, avaliando trabalhos de estudantes, produzindo textos, realizando reuniões, etc. Na figura 2, a seguir, pode-se observar um desses momentos. Figura 2: Arthur assiste a um desenho chamado “number blocks” no youtube kids enquanto trabalho em meu notebook. Fonte: arquivo pessoal. Em geral, ele me pergunta sobre que jogos pode “baixar”, me convida para jogar e ver desenhos com ele. Além disso, constantemente, avaliamos juntos a adequação de determinados recursos para a sua idade e necessidades. A oferta de aplicativos e jogos é tão grande que, por vezes, tenho que conversar com ele e filtrar aqueles que são “baixados”, de modo a decidirmos sobre quais são adequados à sua faixa etária. Outro aspecto interessante observado no uso das tecnologias digitais disponíveis, se refere ao espaço limitado no tablet de Arthur. Essa limitação acaba se tornando motivo de sua frustração, pois muitos recursos que ele tenta “baixar” não são possíveis de acessar por não haver espaço suficiente no dispositivo. Em virtude disso, em muitas situações ele prefere usar outra tecnologia. Recentemente, Arthur fez alguns ensaios de manuseio do meu notebook (como ilustra a figura 3, à direita). 729 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Figura 3: À esquerda, Arthur joga no celular enquanto leio um livro. E à direita, ele assiste à “Turma da Mônica” no meu notebook. Fonte: arquivo pessoal. É muito interessante como uma criança pequena como Arthur não sente qualquer dificuldade de manuseio do mouse, algo que se mostrou desafiador para mim quando iniciei minhas, já quase extintas, aulas de informática em um cursinho sobre o pacote office, da empresa Microsoft, em meados da década de 1990. O mesmo vemos acontecer, atualmente, com pessoas de mais idade, tais como os idosos. Sem qualquer instrução, ele começou a explorar os recursos disponíveis no notebook com naturalidade. É muito característico das crianças pequenas assistirem várias vezes o mesmo desenho e ouvirem a mesma história repetidamente. Na figura 3, à direita, é possível observar o pequeno usando o mouse para retornar ao exato ponto que deseja rever do desenho que está assistindo. Nesta mesma figura 3, à esquerda, é possível observar Arthur sentado em meu colo fazendo-me companhia durante a leitura de um livro, mas o que não aparece nesta figura é que ele está imerso em um jogo cheio de desafios e aventuras disponível no meu celular. Como toda a criança, Arthur adora brincar. E não há dúvidas sobre a importância da brincadeira para o desenvolvimento infantil. Penso que o que ele faz com as tecnologias digitais também pode ser compreendido como brincadeira, sobretudo, se entendermos o brincar como uma linguagem própria da criança. Na figura 4, a seguir, ilustro outro momento da relação mãe-pesquisadora, em que estou fazendo uma leitura na tela do notebook enquanto Arthur brinca com suas miniaturas sentado em meu colo. 730 Maternidades Plurais Figura 4: Arthur brinca, sentado no meu colo, enquanto leio um texto na tela do notebook. Fonte: arquivo pessoal. Arthur gosta de tecnologias digitais, mas também gosta de histórias, gosta de brinquedos (como ilustra a figura 4), gosta de brincar livremente. Como uma das responsáveis por sua educação e seu desenvolvimento, busco proporcionar diferentes vivências que sejam significativas e que garantam o seu bem-estar. O sentimento de culpa que muitas mulheres-mães carregam consiste em um dos mais pesados fardos de nossa existência. Como mãe-trabalhadora, nesse momento de pandemia e distanciamento social compulsório, prefiro acreditar que faço o possível para conciliar atividades profissionais com o que a vida nos demanda. E sobre esse aspecto, as tecnologias digitais podem assumir um papel importante na produção de um suporte às mães-pesquisadoras nesse momento. Considerações finais Este texto teve como propósito narrar alguns episódios do cotidiano de uma mulher-mãe-pesquisadora nos primeiros três meses de realização do pós-doutorado em Educação Matemática em plena pandemia causada pela Covid-19. Nessa narrativa, foram priorizados dois aspectos: a dimensão do trabalho e o uso de tecnologias digitais pelo meu filho Arthur. No momento da escrita deste texto, eu ainda estava realizando o pós-doutorado em Rio Claro. Mas, decidimos que, devido à intensificação do contágio da doença, na ocasião, aliada às perspectivas pouco animadoras de retorno às atividades presenciais para o resto do ano, nos pareceu mais sensato voltarmos para casa em Viçosa. Possivelmente, lá continuaremos recriando novos modos de existir. Continuarei sendo mulher-mãepesquisadora. O nosso retorno à Viçosa não implica em desistência do projeto de pós-doutorado, uma vez que darei andamento às minhas atividades acadêmicas remotamente, tal como já vinha fazendo desde seu início. Também, não deve ser caracterizado como derrota para o coronavírus, já que a luta continua e precisamos manter a nossa crença na Ciência. O nosso retorno à Viçosa representa a manutenção do desejo de muitas mães-trabalhadoras como eu: garantir conforto, segurança e bem-estar a seus filhos e a nós mesmas. 731 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Em 17 de junho, a UNESP lançou uma nota12 informando que manterá “85% a 90% das Unidades com aulas remotas na graduação e na pós-graduação no primeiro semestre e iniciará o segundo semestre também com ensino remoto, podendo evoluir para híbrido. Portanto, é possível afirmar que o ensino 100% presencial para todos os estudantes é pouco provável em 2020”. Diante disso, chegamos a conclusão — esse encaminhamento foi discutido com a supervisora do pós-doutorado — que o meu trabalho poderia seguir remotamente de casa. Além disso, não recebo bolsa para a realização da pesquisa, o que envolve arcar com os custos de uma moradia em Rio Claro e ao mesmo tempo manter a nossa residência em Viçosa vazia, uma vez que meu esposo está trabalhando em Goiás. No início deste texto afirmei que a pandemia intensificou a situação de desigualdade que mulheres de diferentes contextos vivenciam diariamente e que já existia. Apesar dos desafios que a maternidade e, mais recentemente, a pandemia colocou para mim, nem de longe se compara à realidade de muitas mulheres-trabalhadoras que desde sempre vivem em situação de opressão e vulnerabilidade social. Esse momento só escancarou essa realidade. É fundamental que aproveitemos o que a pandemia tem corroborado em relação às mulherestrabalhadoras, especialmente as pesquisadoras, para pensarmos em uma pós-pandemia com condições mais equânimes de trabalho e de exercício da maternidade. Nesse bojo, espero que as mulheres-mãespesquisadoras possam ocupar papeis de destaque na academia, que a elas seja garantido o espaço de publicação científica — a exemplo do que este livro digital proporcionou— e que as agências de fomento à pesquisa possam olhar para essas mulheres por tanto tempo invisibilizadas e induzir políticas afirmativas para que tenhamos mais mulheres-mães com bolsa produtividade do CNPq, por exemplo. Algumas iniciativas estão em curso, mas ainda é pouco frente aos desafios que precisam ser superados. 12 Disponível em: https://www2.unesp.br/portal#!/aci_ses/notas-e-comunicados/nota-sobre-o-ensino-remoto-nosegundo-semestre/. 732 Maternidades Plurais 122 Reinvenções de quarentena: tentativas de conciliar maternidade e pesquisa Simone Mestre1 Eu e meu filho reinventamos o nosso "brincar" de futebol nesta quarentena. Temos dois times e cada um com apenas um jogador. Nos nossos times, somos, simultaneamente, atacante, ala, centro e defesa. O espaço foi adaptado: o corredor lateral se transformou em campo. O nosso gramado é cimentado e as nossas minitraves foram improvisadas com pedaços de uma cama desmontada. As paredes do corredor viraram auxiliares na hora de dar o passe para um drible. As regras também foram reinventadas. Nada de bola alta, para não manchar as roupas nos varais. Além disso, se for muito alta, a bola periga cair no quintal do vizinho, e, então, a brincadeira pode ficar suspensa por alguns dias. O parágrafo anterior é um pequeno fragmento do meu diário de quarentena, que escrevo no meu home office itinerante. Tanto o diário quanto o home office foram espaços que, assim como o futebol com o meu filho, precisaram ser reinventados. Essas reinvenções e readaptações que marcam o meu cotidiano como mãe e pesquisadora foram desencadeadas por tentativas de aprender a lidar com as minhas angústias e com os bloqueios na escrita durante estes tempos de Covid-19. E é sobre esses sentimentos que quero falar a seguir. Angústias e bloqueios na pandemia Neste período de confinamento, precisava escrever os primeiros capítulos da tese para fazer o ritual de qualificação do Doutorado. Entretanto, passei por momentos de angústia com a pesquisa e acabei sofrendo um bloqueio de escrita. Estava com uma grande dificuldade de conciliar os afazeres domésticos, o acompanhamento dos estudos do meu filho, as leituras, atividades acadêmicas e tantas outras demandas que temos. Um certo dia, um colega de um grupo de estudos de que participo indicou uma live sobre saúde mental e o trabalho acadêmico em tempos de pandemia com o professor e psicólogo Robson Cruz. Lembro-me de ouvir o vídeo enquanto lavava louças, e parecia que aquele conteúdo era direcionado 1 Doutoranda em Sociologia tes.cnpq.br/6597882082398090 pela Universidade Federal de Minas Gerais. Lattes: http://lat- 733 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) para mim. No final da live, o professor mencionou um curso que ele oferece gratuitamente no YouTube sobre escrita acadêmica. Assisti a todos os vídeos. A somatória dos conteúdos desse curso com conversas-desabafos com as/os colegas da pós-graduação e as leituras de algumas autoras que especificarei mais a diante ajudaram muito a pensar sobre o meu processo de produção acadêmica e a traçar uma estratégia para trabalhar na quarentena. Assim, tentarei, neste relato, compartilhar resumidamente quais estratégias adotei e quais reflexões foram proporcionadas por essas experiências. Mas, antes, é importante apresentar brevemente a minha trajetória acadêmica — que é vinculada à minha trajetória de mãe — e em qual contexto me encontro nesta pandemia. Uma síntese das minhas trajetórias: acadêmica e materna Sou uma pesquisadora mãe ou uma mãe pesquisadora... Bom, a ordem dos fatores, neste momento, não altera o fato de que exercer essas duas funções é uma tarefa extremamente complexa. Em um contexto pandêmico, essas complexidades acentuam-se de forma assustadora. A minha trajetória acadêmica corresponde exatamente à idade do meu único filho: 10 anos. No início de 2009, ingressei grávida no curso de Ciências Sociais, e o meu parto deu-se em outubro do mesmo ano. Graças à colaboração do meu companheiro e da minha mãe — minha rede de apoio — consegui não apenas concluir o curso sem precisar trancar nenhum semestre, como também fui aprovada na sequência em um Programa de Pós-graduação. Entre fevereiro de 2014 e março de 2016, o meu percurso no Mestrado em Antropologia foi extremamente simbólico. Foi uma ocasião de reafirmação como pesquisadora feminista 2. Nesse contexto, conduzir uma pesquisa sobre mães de jovens encarcerados da perspectiva dos estudos de gênero, sendo orientada por uma mulher, tendo sido uma banca composta apenas por participantes mulheres e, para coroar, tendo a defesa da dissertação3 acontecido em 8 de março de 2016. Passei os anos seguintes trabalhando como professora de Sociologia e Filosofia do Ensino Médio e me preparando para a seleção de Doutorado. Em 2017, decidi mudar de área e fui aprovada no Programa de Pós-graduação em Sociologia com um projeto de pesquisa sobre mulheres lideranças comunitárias que residem em um território estigmatizado. Estou, inclusive, na fase de realização da pesquisa de campo. Desventuras pandêmicas As adversidades são uma constante nestes tempos, como será possível observar a seguir. Antes do carnaval, eu havia sido aprovada em um concurso para professora substituta em uma universidade 2 Os desdobramentos das minhas pesquisas estão identificados com maiores detalhes no meu Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6597882082398090. : Mestre, Simone De Oliveira (2016). “Mães guerreiras”: uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUBD-AQPFL. 3 734 Maternidades Plurais federal em um município que não é aquele em que moro. Por se tratar de uma oportunidade preciosa para quem busca uma colocação no mundo acadêmico, estava muito feliz, apesar da aflição provocada pelo impacto que isso significa na convivência com o meu filho. Eu e o pai dele morávamos em casas separadas e tínhamos a guarda compartilhada. Ainda que tenhamos as nossas diferenças, quando o assunto é o nosso filho, sempre entramos em um consenso sobre o que é melhor para ele. Naquele momento, consideramos que, por se tratar de um contrato temporário, não seria justo com o nosso filho mudar de cidade e de escola e sair de perto do convívio com os demais parentes para me acompanhar. Então, decidimos que ele ficaria com o pai nos dias de semana e que eu retornaria aos fins de semanas e feriados para ficar com ele. Conversamos com o meu filho, que compreendeu a situação, e tudo parecia estar caminhando com certa tranquilidade. Uma semana antes de iniciar o isolamento, recebi um e-mail da universidade solicitando a minha apresentação para assumir o cargo. Na sequência, providenciei e apresentei toda a documentação requerida e fiquei no aguardo de notícias para assinar o contrato. Paralelamente, pensando na mudança de cidade e que teria que alugar um novo imóvel, solicitei à imobiliária o encerramento do contrato de aluguel da casa onde estava vivendo. Com o início do isolamento, aconteceram três coisas: primeiro, decidimos passar a quarentena todos juntos, eu, o meu filho e o seu pai (fomos casados e estamos namorando); segundo, a universidade resolveu suspender o calendário letivo e, consequentemente, a minha contratação foi adiada; e, terceiro, com o fim do prazo para devolver o imóvel e a iminente possibilidade de mudança para outro município, a solução encontrada foi levar a mobília para a casa do meu namorado. Em resumo, sou uma mãe pesquisadora, quase professora universitária, com todas as coisas entulhadas em uma garagem, convivendo temporariamente com o namorado e cuidando e acompanhando o meu filho, que recebe semanalmente roteiros de estudos específicos de cada componente curricular4. Nesse contexto, precisei escrever os primeiros capítulos da tese, para qualificar. Recentemente, para ser mais precisa, no final do mês de junho, quando estava escrevendo o presente relato, fui comunicada pela universidade que, em função da retomada de aulas remotas, serei convocada para trabalhar. Ou seja, estou qualificando e entrando no mercado de trabalho em plena pandemia. Como darei conta de todas as funções? Provavelmente, da mesma forma que fiz desde que entrei na Graduação: reinventando possibilidades e com sacrifício; afinal, se tem algo que eu sei, é que, em se tratando de vida acadêmica e profissional, nós mulheres, principalmente quando somos mães, temos uma trajetória marcada por privações, renúncias e escolhas difíceis de serem feitas. Frequentemente, preciso parar de brincar com o meu filho ou deixar de fazer alguma coisa na casa para me dedicar à pesquisa acadêmica. Embora tenha buscado fazer várias tentativas de estabelecer limites e horários, colocá-los em prática é simplesmente impossível. Por enquanto, tudo é imprevisível neste momento. Em algumas ocasiões, os horários e as atividades escolares do meu filho são modificadas; em outros, uma entrevista online que estou realizando para a pesquisa extrapola o 4 São atividades e aulas de Língua Portuguesa, Matemática, Inglês, História, Ciências da natureza, Geografia, Músicas, Artes e Ed. Física. Isso tudo somada às aulas de violão e às aulas de inglês do cursinho, que permaneceram no formato online. 735 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) tempo previsto. Sem contar as mensagens e notificações que não param de chegar no nosso WhatsApp e na caixa de e-mails, demandando a nossa atenção e nos lembrando dos compromissos. Até uma ida ao supermercado que, antes, demoraria uma hora, pode, hoje em dia, demorar três e até quatro horas. Enfim, é difícil programar durante uma quarentena. Na minha pesquisa de Doutorado, precisei readaptar a forma de realização das entrevistas: antes estavam programadas para acontecer de forma presencial e, atualmente, estão sendo realizadas de forma online. Além do tempo que a realização da entrevista demanda, gasto, em média, de 50 a 60 minutos para prepará-la. É o momento no qual testo o gravador, verifico a bateria do smartphone e faço uma releitura do roteiro da entrevista, além de avisar aos demais moradores da casa, inclusive ao meu filho, para não fazerem barulho durante a entrevista, de modo a evitar interferências na gravação. Grande parte das participantes avisa que está impossibilitada de fazer a entrevista poucos minutos antes do horário agendado e combinamos para outro momento. Os motivos que impedem a maioria delas estão relacionados aos cuidados com os filhos e imprevistos domésticos. Eu, sinceramente, não fico chateada com as remarcações. Pelo contrário, o fato de essas mulheres toparem participar da pesquisa no atual contexto, fornecendo voluntariamente seu tempo, gera apenas sentimentos de gratidão por tamanha generosidade. Ademais, se tem algo no mundo que tem toda a minha compreensão é uma mulher. Nos próximos tópicos, falarei sobre as estratégias que estou adotando para produzir e como o diário tem sido uma ferramenta para trabalhar as minhas aflições pessoais e profissionais. Home office itinerante Para conciliar todas as demandas provocadas por essas desventuras pandêmicas, trabalho no que chamo “home office itinerante”. Para realizar as entrevistas, improviso um espaço no quarto do meu filho, que, além de ser o lugar mais silencioso da casa, tem uma bancada de estudos e uma cadeira de escritório, que ele reveza comigo e com o pai. Quando é para realizar as leituras, utilizo a mesa da cozinha, sempre na madrugada, pois é o único momento em que tenho um pouco mais de tranquilidade para me concentrar. No tocante às atividades de escrita, um exercício que particularmente considero complexo, preciso me isolar das vivências domésticas para concentração. Ao longo da minha vida acadêmica, desenvolvi o hábito de escrever fora da minha casa: deslocava-me para espaços vazios ou bibliotecas públicas para conseguir escrever. Como é difícil pensar em bibliotecas diante da atual conjuntura, a solução foi me deslocar para a casa de uma tia. Adaptei a sua área de lazer em um espaço de trabalho e estou conseguindo produzir. Até conseguir encontrar essa solução, a escrita foi algo que estava bloqueado e provocando muitas aflições. Como mencionei, escrever um diário de quarentena está contribuindo muito para melhorar a minha saúde mental nesse período. Por isso, faço um esforço de escrever nele no mínimo 736 Maternidades Plurais 15 minutos todos os dias. Realizo os meus registros no diário por meio de um software de gerenciamento de notas 5. Com ele, é possível sincronizar o computador com o smartphone, adicionar fotos, fazer desenhos e incluir áudios nas anotações, além de ter outras funcionalidades. Por fim, o que pude perceber é que essa ferramenta otimiza o meu trabalho e o controle das minhas atividades. Diário de uma quarentena Entre as dicas fornecidas pelo professor Robson Cruz6 em seu curso, a que mais me ajudou foi a de reservar alguns minutos do dia para exercitar a escrita livre. Foi quando, então, decidir iniciar um projeto de escrever um diário pessoal da quarentena. E foi colocando esse projeto em prática que escrevi o relato apresentado no início deste texto. Manter um diário pessoal sobre o meu cotidiano na quarentena foi mais do que um exercício de autoconhecimento, foi um processo de mapeamento de emoções que me permitiu identificar duas questões e superar dois problemas que estão interligados, sendo o primeiro de ordem pessoal e desencadeador do segundo, que afeta as minhas atividades de pesquisa. A primeira questão que identifiquei é decorrente de uma situação extremamente vexatória que vivenciei na infância: a minha irmã mais velha pegou o meu diário e leu no almoço de domingo, tendo minha família como espectadora. O constrangimento foi tão grande que nunca mais consegui escrever sobre algo íntimo. Voltar a escrever em um diário pessoal permitiu superar esse trauma e, ao mesmo tempo, simbolizou um espaço material no qual consigo dar vazão para esse turbilhão de sentimentos e pensamentos causados tanto pelo processo de isolamento, quanto por esse lugar de conciliar maternidade e pesquisa. Estou compreendendo que esses sentimentos não cabem dentro da minha memória, nem na oralidade. Assim, aprendi que nunca mais irei renunciar ao bem que faz escrever aquilo que se sente. A segunda questão que consegui perceber diz respeito à forma como o meu trauma de infância estava limitando a utilização de uma ferramenta metodológica extremamente importante para uma etnóloga: o diário de campo. Deixe-me explicar: “etnógrafa” é o termo que utilizamos nas Ciências Sociais para identificar uma pesquisadora que, ao longo de sua carreira acadêmica, dedica-se a fazer “formulações teórico-etnográficas” (PEIRANO, 2014)7. A condução de um estudo etnográfico demanda descrever os acontecimentos e as vivências da pesquisa em seu diário de campo, uma ferramenta essencial no trabalho de uma etnógrafa. Então, embora eu tivesse aflição em escrever em um diário pessoal, eu já tinha o costume de fazer o registro das atividades no meu diário de trabalho há alguns anos. 5 Utilizo o OneNote, mas percebi que softwares como o Evernote e o Google Keep possuem funcionalidades similares. 6 O curso é oferecido gratuitamente no YouTube. Os vídeos estão disponíveis em: https://bit.ly/2Z8JDqL. 7 PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, v. 20, n. 42, p. 377-391, dez. 2014. 737 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) No entanto, somente agora percebo que esse trauma de infância não permitia que eu usasse o diário de campo para registrar aspectos do meu cotidiano como mulher, negra, mãe e pesquisadora. Era como se esses aspectos da minha vida estivessem distantes uns dos outros, o que é um grande engano. O meu trauma operacionalizou um processo cognitivo de escrita no qual eu fragmentava as experiências da pesquisa, classificando-as em vivências subjetivas e vivencias registráveis. As primeiras eram constituídas dos meus sentimentos, problemas pessoais e anseios e eram guardadas dentro da minha memória e silenciadas na minha escrita, daí o bloqueio que não me permitia escrever sobre emoções internas. Já as últimas eram constituídas de registros pontuais sobre os acontecimentos relacionados ao campo e às reflexões teóricas sobre a pesquisa. Embora eu escrevesse em primeira pessoa, pouco tinha sobre a minha individualidade nesses registros. Todavia, isso não anulou o fato de que as minhas vivências subjetivas tiveram impacto na minha escrita. Basta ler a introdução da minha dissertação para perceber esse movimento de me colocar e me posicionar na minha escrita acadêmica. Esses aspectos, geralmente, são colocados no processo final de escrita e não no processo de registro da pesquisa, o que não deixa de ser um prejuízo. Afinal, ao longo desse tempo, limitei possibilidades reflexivas. Hoje, percebo que o meu diário pessoal não é completamente desvinculado do meu diário de campo, em função de as fronteiras entre maternidade e vida acadêmica serem borradas e se afetarem de forma recíproca. Inspirações para escrever Neste projeto, estou permitindo-me, nos termos de Margareth Rago8, “a aventura de contar-se”. O diário, assim como outros registros, permite, segundo a autora, “cartografar a própria subjetividade (RAGO, 2013, p. 33). A leitura dessa obra é inspiradora. Porém, a maior influência de autoras na minha escrita diária vem das contribuições de Carolina Maria de Jesus9 e Conceição Evaristo10. O grande impacto das obras dessas autoras na minha vida é provocado pelo fato de ter uma grande identificação com elas, pois somos mulheres negras buscando escrever sobre as nossas realidades e subjetividades de forma simples e acessível. Espelho-me nessas mulheres e simplesmente não poderia escrever um relato sobre ser mãe, pesquisadora, negra e de origem popular sem mencioná-las. Afinal, buscar aproximações com mulheres, sobretudo com mulheres negras, ao longo da minha vida, me trouxe benefícios afetivos e me permitiu ampliar um arcabouço de vivências que sinalizaram que eu não estou sozinha. Reflexões finais 8 RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas: Unicamp, 2013. 9 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Ática. 10ª Edição. 2019. 10 EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 738 Maternidades Plurais Acredito que as questões e os problemas que pontuei neste relato permeiam a rotina de outras mulheres. O meu cotidiano nesta quarentena é marcado pela reinvenção: de repente, na esfera materna, preciso reinventar formas de brincar e cuidar em um momento em que, simultaneamente, somos arremessados em labaredas de atividades escolares para serem realizadas em casa. O início da quarentena deu-se bem no momento em que, na vida acadêmica, acabava de iniciar o meu trabalho de campo: de repente, vi-me precisando readequar os meus planos metodológicos, fazer pesquisa de campo de forma online e, ainda, escrever o texto da qualificação. Não posso deixar de mencionar as afetações provocadas pelo atual contexto político e social brasileiro, no qual parecemos viver em uma distopia em que grupos negacionistas ultrapassam todos os limites aceitáveis: banalizam a vida, negam o racismo, o sexismo e a LGBTfobia, atacam os direitos humanos e promovem ataques constantes à Ciência e às instituições democráticas, agravando a instabilidade provocada pela pandemia de Covid-19 e contribuindo para a disseminação desenfreada da pandemia de fake kews. Para finalizar, percebo o quanto o isolamento social provocou a necessidade de reinventarmos as nossas práticas cotidianas e reforçarmos os nossos valores humanitários. Ao escrever este relato, refleti muito sobre o meu lugar e cheguei a uma conclusão que pode parecer óbvia: nós, mães pesquisadoras, reinventamo-nos desde o momento que colocamos os pés no ambiente acadêmico e precisando lidar com processos de reinvenção em plena pandemia, uma tarefa árdua. Nessas circunstâncias, para citar um conceito de Conceição Evaristo, a “escrevivência” é um exercício de resistência, com efeitos terapêuticos e extremante necessário. Assim como eu e o meu filho reinventamos o nosso “brinca de futebol” e diversas outras coisas nessa quarentena, a nossa vida de mães pesquisadoras é uma reinventação constante. Aprendi, ao brincar com o meu filho, que é possível os verbos improvisar, criar e cuidar serem ações sincrônicas em um espaço-lugar. E, se isso é possível para uma mulher, não há limites para o que podemos conseguir juntas. 739 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 123 Maternidade, política e pandemia Simone Piletti Viscarra1 Minha filha nasceu em 29 de novembro de 2017. Em termos de saúde e bem-estar, tive uma boa gestação e não deixei de trabalhar um dia se quer até a manhã do dia do seu nascimento. Fico feliz de ter conseguido conciliar minha gravidez com o trabalho, afinal, faziam poucos meses que eu havia passado num concurso público para Professora Adjunta de Ciência Política. Sem saber, estava me preparando para esse cargo desde o ano 2001, quando terminei e ensino médio e fui estudar para o vestibular. Lembro do nervosismo da primeira vez que pisei na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; cheguei duas horas antes do início da matricula. Estava muito feliz por estar numa instituição pública, uma vez que essa era a única possibilidade que eu tinha para poder estudar. Sempre soube que iria para área de humanas, mas ciências sociais era apenas um teste. Me identifiquei com o curso rapidamente e já no final do segundo semestre passei a ser bolsista de iniciação científica na área da ciência política. Como trabalhei naqueles anos. Por morar longe da Universidade, levava duas horas para ir e mais uma hora e meia para voltar para casa. Pelas manhãs e noites tinha aula praticamente todos os dias e, durante a tarde, trabalhava na bolsa de pesquisa. Foi difícil, mas aproveitei cada segundo. Os cinco anos que passei na graduação foram tão rápidos que quando percebi já estava formada. Literalmente. A época em que entrei na Universidade foi muito positiva, pois haviam bolsas de pesquisa nas mais diversas modalidades e foram criados os programas de cotas, o que aumentou a diversidade não só de cores, mas de ideias e opiniões. Ou seja, vivenciei um período de forte investimento educacional por parte do Governo Federal. Quando terminei a graduação, ao contrário do que esperava, que era ficar desempregada, consegui uma bolsa AT (apoio técnico) e o valor mensal que eu passei a receber para estudar/pesquisar dobrou. Que felicidade. Quem depende de bolsa sabe o quanto isso vale. 1 Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Adjunta de Ciência Política na Universidade Federal do Vale do São Francisco. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6090073546689041 740 Maternidades Plurais Aproveitando o ensejo, fiz seleção para o mestrado em Ciência Política. Passei achando que, em termos de estudo e pesquisa, nada iria mudar. Que engano! A carga de leitura e as tarefas quadriplicaram. Foi um processo extenuante e haviam momentos em que estudava tanto que nem sabia se era noite ou dia. Passava semanas dentro de casa, basicamente lendo e comendo qualquer coisa. Quando defendi a dissertação, saí correndo da Universidade. Precisava de férias. Mas em poucos dias consegui um emprego como analista social na esfera privada. Na empresa privada eu tinha hora para começar e terminar. As tarefas eram mais específicas e havia toda uma equipe de apoio. Porém, os anos que trabalhei ali serviram para eu entender que precisava voltar para a academia. Sentia falta de algo. Foi uma ótima experiência para saber que, embora o ambiente acadêmico fosse extremante desgastante, era para ele que eu queria voltar. Na academia, não temos hora fixa de trabalho e ao mesmo tempo que temos pessoas nos orientando, enquanto estudantes, o trabalho a ser desenvolvido é apenas nosso, depende integralmente da nossa dedicação. A mente nunca para. E quanto mais nos envolvemos com a pesquisa mais intenso esse processo fica. Quantas vezes me perdi no que estava fazendo pensando nas minhas hipóteses. Ou as inúmeras vezes em que fui ao mercado e esqueci de comprar metade da lista porque estava focada no livro que lia para a pesquisa. Nesse processo já haviam se passado quase 10 anos desde que tinha saído da escola, mesmo tempo que mantinha um relacionamento estável com meu companheiro atual. Queríamos casar e ter filhos, mas era sabido que se optássemos por esse caminho, eu certamente não conseguiria fazer um doutorado com a qualidade que queria, pois sem criança já foi difícil no mestrado, imagine só um doutorado com bebê. Inimaginável2. Eu precisava fazer o doutorado, já que, depois de idas e vindas dentro e fora da academia, eu tinha certeza que só me sentiria plena quando fosse professora. Mas professora Universitária Federal. Meu desejo era poder devolver para a sociedade aquilo que ela havia me ofertado durante minha graduação e sentia que isso só poderia ser feito se eu virasse servidora pública. Assim, abdicamos de começar nossa família para que eu pudesse estudar. Lá se foram mais 4 anos de doutorado para, então, correr atrás de um emprego. Em 2016, um ano após o término do doutorado, passei no concurso para Professora Adjunta de Ciência Política na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Juazeiro/BA). Lá fomos nós, com mala, cuia, gato e livros. E como se eu tivesse planejado, poucos meses depois da minha posse descobri que estava grávida. Foi um momento muito difícil. Recém tinha conseguido o emprego que queria e junto dele vem um bebê. No meu mundo ideal, esse bebê só deveria chegar depois dos 3 anos do meu estágio probatório, pois a gravidez nos impõe limites físicos que não são uma escolha e que eu não queria ter naquele momento. E eu sabia que, quando ela nascesse, teria ainda menos tempo para o trabalho. 2 Minha admiração eterna as mamães, papais e responsáveis de crianças que conseguiram estudar (independente do grau educacional), se formar e cuidar dos seus bebês ao mesmo tempo. 741 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Então, durante a gestação, passei a realizar minhas atividades focada na minha volta pós-licença, qualificando minhas aulas, organizando uma disciplina optativa, estruturando um grupo de pesquisa, publicando minha tese, terminando alguns artigos e, pela primeira vez na vida, fazendo exercícios físicos diários. Trabalhei até o meio dia de 29 de novembro de 2017. Minha filha nasceu no final daquela noite. Acredito que a possibilidade de exercer um trabalho que me dá prazer justifica boa parte do meu bem-estar durante a gestação. A licença maternidade também foi um momento tranquilo. Meu companheiro decidiu cuidar de nós duas e, por isso, passou a trabalhar de casa. Assim, pudemos ficar os três bem juntinhos. Até viajamos de férias para a Europa. Alugamos um apartamento em Paris quando a bebê estava com 5 meses e essa foi a primeira vez que tirei férias desde que decidi fazer vestibular para Ciências Sociais. Sempre viajei a trabalho e em várias dessas oportunidades meu companheiro foi junto, mas férias, tipo férias mesmo, de poder passear tranquila, sem carregar computador, papéis, livros ou ensaiando apresentações e cumprindo hora marcada para tudo, foi a primeira vez. Até esse momento eu nem sabia o que era esse tipo de liberdade. Durante todo meu período de estudante eu tive um bom orientador, que não só cuidou da minha formação intelectual e técnica como me ensinou que a vida era feita em etapas. Ele sempre dizia que a vida é dividida em três fases. A primeira, de autoconhecimento, até decidirmos o que queremos e não queremos para o nosso futuro. A segunda, de batalhar para alcançar nossos objetivos, a mais difícil, pois sempre fui muito rígida comigo mesma, talvez pelo fato de ter saído de casa cedo e ter pouco apoio familiar, em termos financeiros e afetivos. E a terceira, que seria o momento de colher os frutos. Quando ele falava isso, eu não entendia. Só depois dessa viagem de férias percebi que estava no terceiro estágio. Eu cheguei onde estou hoje por mérito e sorte. Só pude alcançar o que alcancei porque cruzei com pessoas e instituições que me apoiaram. A família do meu marido sempre me ajudou em tudo e, além disso, tive bons colegas, amigos, professores e, sobretudo, vivenciei um momento em que o governo federal investia em educação. Se não houvessem bolsas de pesquisa, eu nem teria terminado a graduação. No final da licença maternidade, optamos por colocar nossa filha na creche. Pela manhã, ela ficava comigo, pela tarde, ia na creche e a noite, ficava com o pai, enquanto eu estava no trabalho. Não foi fácil voltar a trabalhar. Ter um bebê cansa demais e tudo fica um pouco comprometido, trabalho, casa, família. Não existe mais o tempo que havia antes. Mas a gente segue fazendo o melhor, até encontrar uma rotina saudável para todos. Essa rotina levou muito tempo para ser alcançada. O mais difícil foi ser educada com pessoas que questionavam quando eu dizia que minha filha ia para a creche desde os 6 meses. Falavam como se eu a estivesse abandonando e só faltava perguntarem se eu realmente a amava. Mas a gente precisava trabalhar e as 4 horinhas que ela ficava lá permitiam isso, mesmo que de modo muito limitado. 742 Maternidades Plurais Quando as coisas finalmente se organizaram e eu consegui sistematizar a rotina do trabalho com marido e filha, ficamos os três presos em casa devido a pandemia do Covid 19. Nossa organização volta à estaca zero. Precisamos continuar trabalhando, mas agora de casa e com nossa pequenina aqui, integralmente. No primeiro momento, o esforço foi para aceitar a situação, entender que não adianta brigar com a quarentena e que não é culpa de ninguém. No segundo momento, o foco foi cuidar do psicológico, para não pirar com as notícias. E por último, tentar mostrar para nossa filha que a vida é algo positivo de ser vivido e ficar em casa é muito legal. A quarentena tem sido uma experiência complexa. Uma mistura de bons momentos com altos níveis de cansaço. Não está sendo fácil, nunca estive tão cansada física e mentalmente. Nem durante o doutorado me senti assim. Tem momentos em que quero fugir pelo ralo da pia, sumir por uns minutos. E sei que isso se deve às responsabilidades que carrego. Além da minha filha, me sinto responsável pelos meus alunos, pois meu trabalho vai muito além de dar aula e fazer pesquisa, é também cuidar deles e prestar suporte. E ao contrário da minha época de estudante, quando eu estudava para mim, agora o foco é ser o melhor possível para poder formar novos profissionais com qualidade técnica e moral. Mas no meio dessa pandemia, como trabalhar? Onde e como encaixar minha vida profissional dentro de tudo isso que está acontecendo? Para mim, dar aula, estudar, pesquisar, publicar e atender meus alunos é tão necessário quanto respirar. Por mais que eu ame minha filha e por mais que a quarentena tenha oferecido a nós duas momentos maravilhosos de aproximação, a sensação de asfixia é inevitável, pois quase não há tempo livre para trabalhar. Quando chega no fim do dia, depois de brincar, rir, chorar, limpar o chão de comida, trocar fralda, pular, pintar, assistir o mesmo desenho animado várias vezes, limpar o chão novamente, dar banho, dar beijo, fazer comida, ler um livro, ler outros três livros, contar história, trocar outra fralda, ligar para a vovó, escovar o cabelo, fazer penteado, ser penteada, imitar os animais, imitar um gigante, fazer carinho, afagar quando cai no chão, responder perguntas, desenhar, limpar outra coisa, fazer a janta, montar quebra-cabeças, desmontar, remontar, brincar mais um pouco, dar mais um pulo, cantar outra música e dançar ciranda (com isso, talvez ela durma cedo); então, só falta arrumar tudo que não deu para organizar com ela, programar algumas atividades para o próximo dia e, finalmente, trabalhar. A maioria das pessoas crê que quando o professor não está em sala de aula ele não está trabalhando. O ato de fazer pesquisa ainda é a função de professor mais desconhecido para as pessoas, para muitos é como se os resultados fossem gerados naturalmente. Alguns até compreendem que isso leva tempo, mas não sabem como isso é feito. A carga de horas que precisamos investir em leitura, coleta de dados, organização, elaboração de projeto, desenho metodológico, conversas com pares, entre tantas outras funções, é imensa. E essas atividades não têm hora de início e fim. Se trabalha sempre que possível. No meu caso, adiciona-se a tudo isso a necessidade de acompanhar e entender os desdobramentos da pandemia na esfera social, econômica e política atual. Não posso ser omissa quanto a isso, afinal, sou pesquisadora, professora e cientista política. Faz parte da minha profissão analisar o que está ocorrendo. 743 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ciência Sociais é o estudo das sociedades em seus mais diferentes aspectos. No meu caso, a ciência política diz respeito, mais pontualmente, ao estudo do poder que está por trás da organização das normas e leis que vão gerir a vida pública de um grupo social. Logo, não posso ficar alheia. A pandemia está alterando praticamente tudo que conhecemos como “normal”. Ações diárias estão sendo ressignificadas, assim como a forma como entendemos o mundo e nos relacionamos com ele. Nesses dias, a minha carga de leitura se tornou ainda mais intensa, tanto teórica quanto de notícias. A parte mais complicada é a segunda. Tem dias que ler as notícias sobre política, especialmente a brasileira, é tão devastador que o ânimo para sentar e trabalhar nas poucas horas que me restam acaba em poucos minutos. A formação da política brasileira é um processo intenso, sobretudo em termos culturais. Temos uma história marcada por características que obstruem a consolidação de uma democracia de fato. Valores como machismo, autoritarismo, racismo, clientelismo, misoginia, homofobia, discursos de ódio e mandonismo ainda permeiam fortemente o processo de decisão das escolhas políticas dos brasileiros e nosso dia a dia. O resultado é que ainda hoje temos um cenário de diversas manifestações de apologia à tortura, preconceito religioso, descaso social, negacionismo científico e uma dinâmica sócio-política de distribuição de favores e cargos que passa longe do bom senso. Não é nem uma política de articulação de apoio, popularmente conhecida como “toma lá dá cá”, mas de distribuição desesperada de recursos públicos para se manter no poder. E soma-se a isso uma lógica neoliberalismo educacional contrária a manutenção de universidades públicas e o fato de estarmos, na área da saúde, vivendo um cenário generalizado de incertezas, no meio de uma pandemia com mais de 50 mil mortos3. A sensação é que estamos, como sociedade, sendo massacrados por todos os lados. E é impossível não pensar em como eu pude ter sido capaz de colocar um bebê dentro dessa loucura toda. Antes dela, eu não tinha medo de nada. Mas ser responsável pela segurança de outro ser humano é algo enlouquecedor. A pobrezinha, tão pequena, já está inserida em um jogo de regras sociais que são reflexo de condicionantes negativos. Nunca vou me esquecer de quando, para elogiá-la, a “tia” da creche falou: — Com essa pele tão branca, quem não ama? Ou quando meu vizinho falou: — Que linda, quando crescer vai dar trabalho pro papai cuidar. É impossível protegê-la de tudo. E fica ainda mais difícil quando se tem uma visão crítica sobre o mundo que se vive. Às vezes, penso se não teria sido melhor que eu tivesse escolhido outro caminho profissional. Não que determinadas profissões isentem a pessoa de conhecer e estudar a realidade social e política 3 Esse texto foi escrito em 21/06/2020 quando as estatísticas indicavam aproximadamente 50 mil mortes e uma média (dos últimos três dias) de 1100 mortos por dia. 744 Maternidades Plurais de sua sociedade, mas no meu caso isso está intrínseco no meu trabalho. É parte. E observar o que está acontecendo no Brasil hoje dói muito. Passei anos dedicada ao meu aprimoramento técnico e moral, aprendendo sobre um assunto que quanto mais a gente compreende mais difícil fica de aceitar. Eu sei que as coisas estão sendo feitas da maneira errada, não só no Brasil. A extrema direita e a política de ódio têm crescido em diversas partes do mundo. Golpes institucionais estão se tornando cada vez mais comuns e normais, como na Bolívia e no Paraguai, tão perto de nós. E no meio de tudo isso, estamos passando por uma pandemia com consequências catastróficas para o nosso país. Cada morte dói. E soma-se a essa dor, no caso de nós pais, mães e cuidadores, a preocupação com o futuro de nossas crianças. Prepará-las para um mundo cada vez mais violento, cheio de estereótipos desnecessários, pré-conceitos que dificultam a construção de uma vida social solidária e justa e a ascensão de medidas políticas que aumentam a desigualdade social é uma tarefa complexa. Além disso, esse momento de isolamento social se torna ainda mais cansativo quando alguém fala com você e diz: — Nossa, está tão difícil né? Ainda mais para pessoas como você que tem criança pequena em casa, deve ser enlouquecedor. Por mais que tais comentários sejam feitos na tentativa de apoiar as mamães, que caso “surtem”, não devem se preocupar, afinal é difícil “aguentar” e “distrair” uma criança pequena dentro de casa, no meu caso apartamento, por tanto tempo; a sensação que tenho é que elas falam como se a criança fosse um problema a mais na nossa vida. Mas o meu sentimento é o contrário. No meio desse turbilhão todo que estamos passando, minha filha é a melhor parte do meu dia. Ao mesmo tempo que ela é minha maior preocupação e fonte do meu cansaço, é ela que traz leveza e me dá forças para continuar. Com a pandemia, passo as noites trabalhando e esperando que o próximo dia chegue logo para fazer tudo novamente com ela. Ao contrário do que muitos pensam, ter uma criança em casa nesse momento é sorte. O que não exclui o fator cansaço. Mas se não fosse ela, minha quarentena seria muito pior. É nossa amizade que alimenta minha vontade de seguir adiante. É por ela que não desisto das coisas. Eu poderia virar uma profissional burocrata, passar esse tempo simplesmente esperando as coisas acontecerem. Mas não. Mesmo cansada, todas as noites tento ser um pouquinho produtiva porque, no final, isso me deixa feliz. Mãe feliz, criança feliz, casa feliz. E eu também tenho outros “filhos para cuidar”, nesse caso, meus alunos. Em algum momento as aulas irão voltar e eles precisam o melhor de mim. E como disse, hoje eu não estudo e pesquiso apenas para mim. Isso só vale a pena por que tenho eles e ela. Felizmente, estou tendo uma quarentena positiva, tanto com minha família como no trabalho. Tenho desenvolvido habilidades de canto, dança e culinária incríveis junto com minha filha. Estou 745 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) quase uma cabelereira profissional de bonecas e nunca pensei que poderia decorar tantos livros infantis ao mesmo tempo. E quando dá, continuo minha pesquisa, organizo meus artigos, alguns relatórios e atendo meus alunos online. Isso se deve em grande parte ao apoio do meu companheiro, que é um pai tipo pai. Aqui em casa não tem “coisa de mãe” ou “coisa de pai”. Todo mundo faz tudo. Outro apoio também deriva de conhecidos que nunca me excluíram, pelo contrário, me convidam a participar de projetos e entendem que eu demoro um pouco mais para terminar. Afinal, hoje meu trabalho acontece em meio a brincadeiras, sobras de tempo e muito cansaço. Mas eu sei que eu sou privilegiada. A minha realidade é diferente da maioria das mamães, que mesmo com companheiro ou família, levam a carga de mãe solo. Ser mulher é resistir. Acordar todos os dias e tentar resolver vários problemas juntos e ainda tentar mudar algo para melhor. 746 Maternidades Plurais 124 Ensino remoto e suas nuances Suzana Lopes de Albuquerque1 A flor que tem me ensinado a ser mãe chama-se Lis. A escolha desse nome que significa “Deus é meu juramento e abundância” também é marcado pela etimologia da palavra: ramificação de um lírio, que é uma parte intrínseca ao meu nome. A leveza poética e estética contida na beleza lírica das flores que nossos nomes carregam engendrada ao significado transcendental de um posicionamento religioso não contrastam com a percepção de maternidade enquanto questão política e social. Longe de romantizar essa função contribuindo com o discurso da “mãe mulher maravilha” que consiga conciliar diferentes ofícios ou polarizar ao ponto de a mulher ter que optar por ser mãe ou profissional, pesquisadora, dentre outros. Esse relato explicita o trabalho envolvido na função social de reproduzir vidas, em um movimento permeado consciente ou inconscientemente por uma cobrança social, autocobrança e sentimento de culpa contido na carga emocional que envolve a maternidade e o tempo dedicado à ciência. Impossível não rememorar com muita emoção nesse relato os exemplos históricos e familiares das mulheres que me trouxeram a existência e que lidaram com a maternidade, com um contrato de trabalho e com a inserção em espaços científicos. Vovó Zeza (in memoriam), mãe de 9 filhos naquele momento no sertão nordestino, tornou-se professora e seguiu trilhando nos desafios da educação, caminhando quilômetros até chegar à antiga escola rural de Pindorama/AL. Levava os filhos menores para suas aulas e numa dessas caminhadas percebeu que minha mãe tinha sido alfabetizada com 5 anos juntamente com seus alunos. Na minha infância e na infância das minhas duas irmãs (Lud e Naty) minha mãe adentrou no espaço acadêmico, concluiu o curso superior, trabalhando até o momento nesse ofício. Vivenciando essas histórias e memórias de cotidianos marcados pela luta para conciliar a maternidade com as demandas profissionais faz-se necessário o reconhecimento da rede de apoio que essas nossas três gerações tiveram. Tia Zefinha foi a grande rede de apoio da minha avó; meu pai João foi essa rede para minha mãe e no meu caso, meu esposo Edinho, meu grande companheiro em um processo de democratização do cuidado e educação com a nossa pequena. 1 Doutora em Educação pela USP, mestra em Educação pela UFAL e graduada em Pedagogia pela UFG. Professora da área de Educação no IFG – Campus Goiânia Oeste. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8411090283710343 747 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ao lado de meus pais, irmãs e sobrinhos, também os tios, vovó Nice, vovô Bilo e a bisavó Maria (in memorian) também se emaranharam nessa rede. Cada um com sua bagagem, experiências e saberes contribuíram para ampliar o universo da oralidade da pequena Lis. Ah, falar e contar histórias era mesmo coisa que a bisa Maria amava fazer, em um tempo que definitivamente não era o nosso, um tempo não ritmado pelo nosso “tic tac” acelerado; e como a pequena gostava de ouvi-la! Aos primos cabiam e ainda cabem momentos cercados do riso, alegria, travessuras, brincadeiras e lembranças que certamente serão carregadas por todas as fases de sua vida. Devido a impossibilidade de pensar na vida pessoal e profissional de forma dicotômica, essa rede de apoio e a pré-escola em um segundo momento possibilitaram a articulação entre as minhas atividades científicas com a maternidade. Lis nasceu em 2014, no final de seu primeiro ano de vida me ingressei no Doutorado em Educação na PUC-GO e cursei um ano de disciplinas. Em 2016, quando a pequena estava com 2 anos, ingressei no Programa de Doutorado em Educação na USP e incorporei à maternidade as inúmeras lutas para a elaboração de um trabalho científico, as idas e vindas semanais de Goiânia para São Paulo, as idas e vindas de Goiânia para Anápolis (60 km), cidade que estava o campus onde eu era lotada naquele momento no IFG. Apesar de não ter sido contemplada na seleção para concessão de afastamento integral visando a capacitação em programas de pós-graduação stricto sensu e, consequentemente ter que conciliar maternidade, viagens, pesquisas, aulas e estudos, fui selecionada no IFG com a bolsa PIQS (Programa de Incentivo de Qualificação do Servidor) durante o período de um ano que somaram na renda da família cobrindo uma parte dos custos que envolveram essas idas e vindas. Enquanto doutoranda não precisei levar a minha filha para as aulas ou para os diferentes acervos aos quais me debrucei. Foi uma realidade privilegiada em relação às várias mães que tenho encontrado enquanto docente, na condição de alunas, e que necessitam levar seus filhos às aulas noturnas por não contarem com uma rede de apoio para democratizar esse cuidado, apontando para as questões políticas e sociais que permeiam a maternidade e que fragilizam os direitos da mulheres enquanto mães e estudantes. A minha pesquisa científica envolveu desde 2010 inúmeras idas aos acervos históricos. Inicialmente, trabalhei com diversas fontes no Arquivo Público de Alagoas, em Maceió, nos anos de 2010 a 2013, no momento em que fiz meu Mestrado em Educação no PPGE da UFAL. Apesar de ter inúmeras fontes e já conter a questão central do meu doutorado, após o ingresso na USP e já com a Lis no colo, precisei garimpar inúmeras outras fontes em arquivos e bibliotecas nacionais e internacionais. Envolta de vários sentimentos como o desejo pelos rastros dos sujeitos da minha pesquisa com nacionalidade brasileira, portuguesa e francesa foi necessário realizar várias viagens para vasculhar acervos em diversos lugares devido a dispersão dessas fontes históricas. Em algumas dessas viagens em buscas por fontes e para a participação em evento científico, tive a grande alegria de ir com a família completa. 748 Maternidades Plurais Sabe-se que um grande desafio nesses espaços acadêmicos para com as pesquisadoras e que se torna uma questão política de inclusão da mulher mãe nesse espaço refere-se aos investimentos financeiros necessários para o deslocamento e hospedagem das crianças. Em um cenário que a produtividade de artigos e a participação em eventos científicos constitui o pesquisador, rearranjar esses espaços para incluir a criança e a mãe auxiliam na dessacralização de um estereótipo ideal de cientista e da ciência. As concepções a respeito da maternidade e da construção científica me desafiaram a criar estratégias nesses dois ambientes para conciliar os múltiplos papéis. Foi necessário ter o primeiro entendimento e aceitação pessoal de que não seria a única capaz de cuidar da pequena bem como não dispensar uma supervalorização na produtividade científica para evitar uma falta excessiva e uma terceirização demasiada dos cuidados da pequena. Como meu doutorado foi um desdobramento do trabalho com as fontes realizado desde 2010, no momento de escrita da tese, consegui diminuir as viagens voltando mais para o cotidiano de casa associado à docência e ao trabalho científico que estava sendo escrito. Notícias que me trouxeram muita gratidão e que coroaram essa conciliação entre maternidade e ciência e que dedico à minha pequena e que partilho com a rede que me cerca, foi a indicação da minha tese para concorrer ao prêmio CAPES 2020 pela FEUSP e ainda o título de melhor tese de doutoramento na área da História da Ciências pela FEUSP e indicado para concorrer ao prêmio Nacional de História da Ciência da Sociedade Brasileira de História das Ciências (SBHC). A questão central da minha tese perpassou os métodos de ensino de leitura e escrita sendo apresentada a história de duas matrizes no Brasil Império, temática essa que me acompanha desde a graduação e que se tornou um desafio no meu primeiro ano de docência na Rede Municipal de Educação de Goiânia, em 2007. Esse entendimento do processo que engloba a alfabetização para além de uma querela metodológica e que a trata sob uma perspectiva dialógica, fez com que eu e minha pequena desenvolvêssemos práticas de letramento, de leitura do mundo, em uma perspectiva freireana, e que sua inserção na cultura escrita fosse cercada por uma leveza em um ritmo próprio e ao seu tempo. Lis leu nesse espaço doméstico com a minha mediação. Da pré-escola, espaço de socialização, troca, partilha, espaço este que não deveria servir para antecipar a liturgia da escolarização moderna, Lis trouxe e traz inúmeras histórias, amiguinhos e cada aprendizado torna-se essencial para sua constituição enquanto humana. Nesse ano de 2020 a pequena entrou no 1° ano do Ensino Fundamental. Frequentou menos de dois meses e fomos surpreendidos com a suspensão das atividades presenciais devido a Pandemia do Coronavírus. Para iniciar a escrita de um relato sobre as aventuras cotidianas nos diferentes oceanos das mães cientistas na Pandemia considero essencial reconhecer como maior oceano a luta que muitas famílias têm enfrentado para garantir o direito básico concebido por uma mãe: a vida. Com um profundo sentimento de solidariedade para com as famílias enlutadas, há inúmeros outros direitos negligenciados. Esse momento desnuda o quanto estamos distantes da efetivação de direitos básicos e de condições dignas e objetivas como o salário, emprego, moradia, saúde, alimentação, saneamento, dentre outros a todos os cidadãos, indistintamente. 749 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nesse tempo histórico marcado por incertezas e desafios que nos levam para o interior de nossas casas em um processo de distanciamento social, os portões das escolas encontram-se fechados, mas os saberes, práticas, vivências e lutas que essas nos ensinam urgem mais latentes do que nunca. Na condição de mãe que não possui Instagram, Facebook ou qualquer outra rede social, o primeiro impacto que esse oceano da pandemia causou no cotidiano doméstico da minha família foi a ampliação do uso do Instagram de meu esposo para as aulas da pequena e uma substituição da rede de apoio presencial para uma rede de conectividade virtual. Adentrou no nosso cotidiano, já ao acordar, o ato de abrir o Instagram para assistir as aulas remotas e manter um contato possível para o momento com a professora e amiguinhos. Na condição de professora, tenho condição de relatar minhas vivências no IFG, que suspendeu o calendário escolar logo no início da Pandemia, o que não significou a suspensão de trabalho. Mesmo sem aulas, além de inúmeras reuniões, deu-se continuidade em projetos de pesquisa, extensão, orientações e projetos de atividades complementares englobando a comunidade escolar sendo todo esse trabalho mediado pelo uso das tecnologias. Algo desafiador foi realizar reuniões em que prezamos pelo diálogo e que comparece o contraditório de forma virtual, passando por uma adaptação de abrir e fechar o microfone no seu tempo de fala. Na condição de mãe, docente e pesquisadora, trazendo os pressupostos histórico, político, social e filosófico que fundamentam a concepção de educação e didática nas minhas aulas, consigo por um lado acalmar a agitação da ansiedade quanto ao calendário letivo e escolar e ao mesmo tempo indignar/rechaçar/denunciar e lutar contra as consequências que a estrutura social injusta tem impactado na vida dos oprimidos, na concepção freiriana. A suspensão do calendário no IFG caminhou com estudos, composição de comissões para sua retomada de forma remota e presencial frente aos desafios como assegurar o direito à educação de todas pessoas em igualdade de condições, garantir a equidade institucional de equipamentos, conectividade e tecnologias. Esse desafio de garantir uma educação com igualdade de condições de acesso às múltiplas redes a todos indistintamente torna-se central nesse contexto. Nos parágrafos acima, com minha vivência nesse oceano, foi exemplificado o cotidiano da minha pequena que tem acesso às diferentes mídias para a materialização de suas aulas em contraposição à nossas lutas enquanto educadores para garantir a todos os alunos a equidade institucional de equipamentos, conectividade e tecnologias. Nesse momento de escrita houve uma retomada do calendário acadêmico juntamente com lançamento de edital de Programa Permanência Conectividade destinando auxílio para acesso à internet; apesar de anunciar tais iniciativas, não posso inferir se tal programa conseguirá alcançar o slogan de #nenhumamenos#, pois ainda está na fase inicial. Ao repensar o papel da escola e da educação na sociedade em tempos de isolamento, fica mais clara a necessidade de compreender o seu conceito e papel na luta histórica por condições humanas dignas a todos, indistintamente, e sua função social que extrapola os muros da escola. 750 Maternidades Plurais Nesse oceano que invade o interior de nossas casas, que mistura a live da criança, aulas e lives que englobam o círculo do trabalho remoto da mãe professora e pesquisadora, afazeres domésticos, notícias e incertezas que muitas vezes abalam nossa saúde mental, emocional e psicológica, há uma necessidade, mais do que nunca, de redimensionar o sentido do tempo de conciliar trabalho, maternidade e vida à garantia da saúde. Acredito ser prioritário nesse momento retomar à uma política de sensibilidade com a reprodução da vida, garantindo sua manutenção em todos os aspectos que envolvam a totalidade do ser. 751 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 125 Mulheres e crianças: sozinhas em casa, outra vez? Suzana Marcolino1 Dedico esse texto à Fernanda Cristina de Souza, Andréia Regina de Oliveira Camargo e Walburga Maria dos Santos, mães cientistas, artistas e de luta! Inspirações Inspirei-me no trabalho de Andréia Regina de Oliveira Camargo (2019) para construir um relato no qual reflexões sobre o vivido entre mulheres e crianças, mães e filhos no período de crise sanitária dialoguem com notas do cotidiano, registros fotográficos e imagens. Segundo Camargo (2019)2, as imagens: (...) me parecem um clamor, uma forma de nos colocar numa relação de escuta das vozes/imagens que ecoam no cotidiano, uma possibilidade de aguçar e inverter os sentidos, de nos atormentar a visão, o olfato, o tato, o paladar... (CAMARGO, 2019, p.45) 1 Doutora em Educação (UNESP, Marília), professora do Setor de Educação Infantil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4235351112811483 2 CAMARGO, Andréia Regina de Oliveira. Foto-grafando infâncias: experiências imagéticas e poéticas e currículo na educação infantil. 2019. Tese (Doutorado em Educação - IBRC), Universidade Estadual Paulista (UNESP). Rio Claro, 2019. 752 Maternidades Plurais As imagens convidam a adentrar outros lugares e tempos e nos colocam em movimento de busca de descobertas, curiosidades, novidade (CAMARGO, 2019). Nota do cotidiano: “Mãe, tira uma foto que parece que estou voando...” (Junho, 2020). 753 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Para explorar o papel das imagens na construção dos sentidos, elas serão apresentadas, em alguns momentos, em página inteira. As notas do cotidiano, são também registros, retirados de diários da mãe ou publicações das redes sociais e funcionam como uma memória do vivido. Dessa forma, por meio do diálogo entre reflexões teóricas, notas do cotidiano, imagens e registros fotográficos, busco a abertura para novas descobertas sobre a relação entre mulheres e crianças em períodos de crise. Crianças e mulheres Na obra Êxodos, Sebastião Salgado registra a vida e o cotidiano de populações que, em função de guerras, fome, falta de trabalho e de terra são obrigadas a emigrarem. As imagens revelam que, embora as crianças sejam vítimas fisicamente mais frágeis do movimento migratório, paradoxalmente, elas brincam e mantêm entusiasmo e curiosidade diante de diversas situações (SALGADO, 2020)3. E, num olhar feminino para a obra, identifica outras imagens nas quais as crianças estão junto de mulheres, possivelmente as mães, nas andanças à procura de outro lugar para viver, no cuidado com as crianças mais novas, no trabalho rural. As imagens das crianças com homens, pais ou com toda a família são mais raras do que as crianças na companhia de mulheres. A infância é uma construção social e se tornou, conforme Postman (1995)4, necessária e, até mesmo, indispensável em certo momento do desenvolvimento do capitalismo, no qual era preciso maior preparo para ingressar na vida social. Para Badinter (1985)5, feminista francesa, a sociedade patriarcal considera e exige os cuidados em relação à infância, mas se descompromete do cuidado, fazendo com que as mulheres sejam responsabilizadas por ele. Estabelece-se para a mulher o espaço do privado, da casa, dos cuidados e da afetividade, enquanto o homem ocupa os espaços públicos, da produção, da racionalidade. Essa construção social é perversa com as mulheres, principalmente as da classe trabalhadora: mulheres, mães, avós, tias, por vezes, vivem e trabalham, quase exclusivamente, para prover o sustento das crianças. Mulheres, no caso das (trabalhadoras) cientistas, abandonam oportunidades, não produzem como antes e sentem-se sempre sobrecarregadas de trabalho, exauridas. 3 SALGADO, Sebastião. Exodus. Nova Iorque: Taschen, 2020. 4 POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Tradução: Suzana M. de Alencar Carvalho e José Laurentino de Melo. Rio de Janeiro: Graphia; 2005. 5 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. Tradução: Waltensir Dutra. 754 Maternidades Plurais Pressionadas a atuarem nos espaços privados da casa, emerge um processo de invisibilização das mulheres. O mesmo ocorre com as crianças: são tomadas como incompletas e incapazes de participação, nessa sociedade patriarcal e adultocêntrica. Toda essa construção marca a vida das mulhe res e das crianças (GIBIM, 2019)6. Nota do cotidiano: “ — Mãe, você pode ficar aqui comigo?”. A necessidade de estar juntos, leva o trabalho para outros lugares da casa. O trabalho, muito mais do que outros momentos, ocupa (invade) outros lugares da casa, muda tempos e espaços. (Junho, 2020). Em situações de pobreza extrema e de crises (guerra, desastres ambientais, pandemias), a situação das mulheres e, também, das crianças, complica-se: agrava-se as desigualdades, com mulheres 6 GIBIM, Ana Paula Gomes. Infâncias e diálogos feministas: representação sociais das mulheres na sociedade patriarcal. In: SILVA, Adriana Alves; FARIA, Ana Lúcia Goulart; FINCO, Daniela (orgs.). Isso é rachismo! Feminismo em estado de alerta na educação de crianças pequenas. Pedro e Jõao editores, 2019. 755 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) e crianças mais expostas à fome, à violência, a doenças — pois estas se responsabilizam, também, pelo cuidado dos idosos e pessoas da família, implicando no aumento da sobrecarga de trabalho e desgaste psíquico. Do ponto de vista das reflexões feitas, o encontro das mulheres com as crianças é históricosocial, demarca espaços de atuação, subjetividades e as identidades. Nós, mulheres cientistas e mães, vivemos e sentimos os desafios de atuar profissionalmente em um espaço que, tradicionalmente, é dos homens: o lugar da produção e da divulgação do conhecimento, do intelecto e do não afeto. Ser mãe e pesquisadora Nos primeiros anos da maternidade, sendo já doutora e professora substituta de uma universidade federal, localizada no interior paulista, o sentimento de inadequação tornou-se meu companheiro. Esse sentimento acompanhava a constatação de que não conseguia mais estudar como antes, escrever como antes, produzir o que é estipulado como o necessário. Por vezes, o ambiente e as relações acadêmicas pareciam exigir a negação da maternidade e dos sentimentos e emoções que atravessam a condição de ser mulher, mãe e pesquisadora. Foi na própria maternidade, encarada de forma mais crítica a partir dos estudos feministas, que encontrei os recursos para resistir: não sufocar minha maternidade, mas apresentá-la como uma dimensão da minha existência e do meu fazer profissional. Acredito que essa forma de encarar e viver a situação não apenas fortalece as mulheres cientistas que são mães, mas dá visibilidade às crianças, sujeitos que, historicamente, vivem a situação da invisibilidade. Nota do cotidiano: Desde criança, nas mais variadas situações — na militância, na sala de aula, nos eventos acadêmicos e até em festas — vejo as mulheres que são mães sempre no fundo da sala com as crianças, cuidando delas para que não atrapalhem as discussões. Eu também passei (e passo) por isso. Muitas vezes tenho que levar meu filho de três anos a uma palestra ou curso sobre meu tema de estudo. Às vezes até acabo desistindo de ir a algum evento.... Nesta semana participei de um evento e era uma das palestrantes e como não tinha ninguém para ficar com o meu filho, tive que levá-lo. Chegamos antes e mostrei a ele a mesa que antecedeu a que eu ia participar. Expliquei que, depois daquelas pessoas que estavam falando para o auditório, eu iria falar. Ele me disse animado: “ — ENTÃO SERÁ A NOSSA VEZ?”. Respondi que eu ia falar, mas que ele podia ficar brincando lá fora, que pedia para alguém ficar com ele. Mas, ele achou essa coisa de subir na parte mais alta do auditório e falar, muito legal. Quis participar e ficou na mesa comigo! 756 Maternidades Plurais É claro que ele não ficou sentado e quieto. Ele pulou, correu, quis ir ao banheiro, quis comer alguma coisa, fez desenhos e mostrou para a plateia, se cansou, perguntou alto se já estava terminando... Eu falei de coisas que me preocupam: os sinais de abreviamento e os movimentos de hostilidade contra a infância, entre eles, o childfree. Falei da importância de defender a escola da infância que abrigue o brincar — atividade que mais representa a infância em nosso tempo histórico. Falei, também, que se a escola for um lugar de manifestação da infância, ela pode cumprir um importante papel em sua defesa! Quando agradeci o convite, disse que estava muito honrada de participar do Seminário com pessoas tão importantes e de ter o meu filho na mesa comigo. E, pensando bem, ele teve uma participação muito especial na mesa. Filho, eu entendi! Foi mesmo “A NOSSA VEZ!”. Uma mulher e mãe com seu filho sair das portas dos fundos de um Seminário Internacional em uma importante Universidade e ir para frente do auditório! Filho, obrigada por me explicar! Registro feito em 14 de setembro de 2017, referente à participação no I Seminário Internacional do Brincar, ocorrido na UFSCAR, Campus de Sorocaba e publicado nas mídias sociais. Outro sentimento presente na maternidade foi o da solidão. Demorei para entender esse sentimento. Mais tarde entendi que, embora não estivesse sozinha, considerando a convivência com outras pessoas e com o pai do meu filho, as determinações sobre o cuidado e educação dele e muitas decisões influenciavam minha carreira e estavam facultadas a mim: mulher e criança sozinhas em casa (tomando essas como do âmbito do privado). Mesmo com uma atuação nos espaços públicos, estávamos sozinhos, no que diz respeito ao âmbito das decisões e escolhas importantes sobre as nossas vidas. Penso que esse espaço social reservado para as mulheres como principais responsáveis pelos filhos produz esse sentimento (histórico e individual) de solidão das mulheres. Por isso, muitas vezes, mesmo vivendo com os parceiros, as mulheres se sentem sozinhas (TELES, 2019) 7. 7 TELES, Maria Amélia de Almeida. Feminismos, divisão sexual do trabalho, maternidade e creches! Ou quem se lembra das crianças pequenas?. In: SILVA, Adriana Alves; FARIA, Ana Lúcia Goulart; FINCO, Daniela (orgs.). Isso é rachismo! Feminismo em estado de alerta na educação de crianças pequenas. Pedro e Jõao editores, 2019. 757 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) “— Mãe, é você! — É? Onde eu estou? — Na porta do Museu! ” Mulheres e crianças: sozinhas em casa, outra vez? O isolamento social foi vivido por mim como mais um dos momentos de solidão: era preciso trabalhar, cuidar da casa, cuidar da saúde (minha e de meu filho) e ainda elaborar sobre vírus e a as inúmeras mortes que se assomam em nosso país. Tudo isso sozinha! Mesmo com uma boa rede de apoio, contando com vizinhos e minha mãe, o sentimento de solidão — que é individual, mas também histórico — tomou conta de mim. Nesse período, retomei o texto “Educar e cuidar ou, simplesmente, educar?”, buscando a teoria para compreender discursos e práticas (2005), de Léa Tiriba, professora da PUC-Rio. Tiriba debate sobre a importância de valorizar a experiência feminina, desconstruindo elementos da subordinação patriarcal, “sem jogar fora o saber que é fruto de seu modo histórico de pensar-sentir-fazer” (p. 13). Para Léa, a experiência feminina pode oferecer elementos para reestruturar instituições, movimentos sociais, políticos, “superando a difamação do cuidado, do afeto, como empecilho à objetividade, à eficácia” (BOFF, citado em TIRIBA, 2005, p. 14)8. 8 TIRIBA, Lea. Educar e cuidar ou, simplesmente, educar: buscando a teoria para compreender discursos e práticas. REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 28, 2005. GT: Educação da Criança de 0 a 6 anos, n. 7. Caxambu. Anais... Rio de Janeiro: Anped, 2005. Disponível em: http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt07939int.pdf. Acesso em: junho 2020. 758 Maternidades Plurais A ideia de retomar a experiência feminina, desconstruindo elementos da subordinação patriarcal, fez-me refletir que tinha muita experiência no cuidado e em superar situações complexas junto com meu filho (doenças, questões de trabalho, viagens de trabalho, mudança geográfica de domicílio — do Sudeste para o Nordeste) e que isso era uma potência! Penso a partir disso, e busco viver, a potência desse encontro (histórico-social e de cada uma) entre mulheres e crianças: o que pode ser criado de novo no encontro com esse entendimento da valorização da experiência feminina? Qual a potência desse sentimento vivido entre mulheres e crianças? Fico pensando, também, na importância de nós, mulheres, superarmos concepções adulto-cêntricas, olharmos para as crianças como seres capazes para decisões — para decidir sobre a rotina da casa, sobre que roupas vão vestir, sobre o que vamos comer, aceitar a bagunça como uma das ações do ato de criar — uma das funções mais importantes da infância, aceitar a fala da criança... Pensar assim, não resolveu todos os problemas de ordem prática, mas me libertou da solidão! 759 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 126 As dicotomias da quarentena e a busca por equilíbrio Tainá Amorim1 O cenário imposto pela pandemia da Covid-19 me “deu” algo que eu sempre quis: participar, de forma mais ativa, da rotina das minhas crianças e estar mais com elas. Logo, é motivo de felicidade e privilégio poder ficar em isolamento social com a minha família, mas quem disse que seria fácil? Quem disse que eu ficaria feliz todos os dias? Afinal, o nosso lar, lugar que deveria ser abrigo e aconchego, vira também prisão. E assim começa a dicotomia da minha quarentena. Eu trabalho desde os 18 anos e quando a minha primeira filha nasceu eu tive o privilégio de ter a minha licença de 6 meses e mais 1 mês de férias (acho pouco, mas isso fica para outro relato). Passados esses sete meses, eu precisei retornar ao trabalho para cumprir as minhas 8h diárias de trabalho remunerado. Doeu deixar a minha filha na creche por 10h todos os dias? Claro que doeu. Eu chorei? Claro que chorei! Eu vacilei? Não mesmo. Não retornar ao trabalho não era uma opção, então eu precisava ser forte e enfrentar o momento com leveza e sabedoria, assim foi feito e foi ótimo. Além de precisarmos do dinheiro, retornar ao ambiente profissional fez com que eu me sentisse produtiva, apesar de nem gostar muito dessa necessidade que sinto de estar sempre produzindo algo, pois sei que o ócio também tem o seu valor. Com o meu segundo filho foi da mesma forma, a diferença é que a partir daquele momento eu deixava duas crianças aos cuidados de outras pessoas para ir trabalhar. Sempre saindo antes delas acordarem e retornando já na hora de dar a janta, escovar os dentes para colocar para dormir. Essa rotina me deixava com vontade de poder estar mais em casa com elas, sendo mais presente na criação e acompanhando mais de perto cada conquista delas. Até que um vírus mudou essa rotina: nos trouxe para dentro de casa. Não só os/as integrantes da família, mas também o trabalho, o estudo e o lazer. Se algum dia eu quis participar mais da rotina das crianças essa foi a minha grande oportunidade. Mais uma vez eu tive o privilégio de continuar empregada e trabalhando de casa — o famoso home office —, motivo de felicidade e tristeza; prazer e incômodo; tranquilidade e estresse; e orgulho e frustração. 1 Mestre em Comunicação Social pela PUC Rio. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3868548761657141 760 Maternidades Plurais Atividades domésticas: entre a felicidade e a tristeza Na primeira semana de isolamento social eu estava muito feliz com a nova rotina. Apesar dos desafios de ter que trabalhar com as crianças em casa, estar com elas me fazia bem. Me sentia, inclusive, incomodada com os “memes” de mães desesperadas com o “hell” officce, afinal todas estávamos vivenciando a oportunidade perfeita de conviver com as nossas crianças. Eu estava equivocada, pois conciliar atividades domésticas, acadêmicas e profissionais com a criação sensível que as crianças merecem exige muito de um ser humano. E exigiu muito de mim. Estávamos na terceira semana da quarentena e naquele domingo eu acordei às 5h, como de costume, fiz um chá e li um livro até a primeira criança acordar (6h30) indicando que era a hora de iniciar os preparativos para o café da manhã. As minhas crianças amam café da manhã e eu curto estar com elas na cozinha cortando frutas, quebrando ovos e “passando” o café. Às 8h, Jefferson, meu companheiro, acordou e eu ainda estava preparando tudo — estar com as crianças é legal, mas deixa o processo mais lento —, então pedi para ele nem sentar no sofá e ir me ajudar. Ele sentou. Eu fiquei chateada e, como sou muito transparente, ele percebeu assim que entrou na cozinha. “Você está chateada porque eu não ajudei com o café? Você precisa relaxar! Se fazer as atividades da casa te incomodam tanto, não faz. Vai ler seu livro do Harry Potter e relaxa”. Eu chorei, chorei de tristeza, pois eu estava me esforçando demais para dar conta de tudo. Nessa época, eu estava finalizando a apresentação da minha dissertação para a defendê-la nas próximas semanas, fazendo um slide a cada máquina de roupa lavada, a cada refeição e lanches — intermináveis — oferecidos, a cada fralda trocada, a cada cômodo varrido... A felicidade da quarentena está nos cafés da manhã em família, no “bom dia” com direito a beijo e abraço, nas brincadeiras rapidinhas após o almoço, nas gargalhadas das crianças pela casa e nas atividades compartilhadas entre os/as membros/as da família. A tristeza está na sobrecarga, nas demandas diárias, que são intensas e cansativas e me lembram a todo momento que sou humana e tenho limites; estão nas respostas atravessadas e na falta de sensibilidade. Esses sentimentos são tão diferentes e é incrível como apenas uma ação — ou uma frase — possa separá-los. Amamentação: entre o prazer e o incômodo Eu amamentei a minha filha mais velha até o um ano e nove meses, quando engravidei do meu caçula e decidi que não queria amamentar duas crianças ao mesmo tempo. Fiquei de 29 de dezembro de 2017 a 5 de agosto de 2018 sem amamentar. Kalú tem 1 ano e 11 meses, mama muito e eu não faço ideia de quando vou parar de amamentá-lo. Estar com ele mais tempo durante o dia resultou em mais mamadas também. No segundo mês de quarentena, no horário de almoço de algum dia da semana, estávamos todos à mesa para almoçar e Kalú não queria comer. A gente tenta explicar que aquele momento é o de se alimentar e etc., mas não obrigada, nenhuma das crianças a comer. Eu sentei ao lado do Kalú e comecei a falar sobre a importância do almoço e ele começou a chorar muito. Um choro desesperado. 761 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Eu o tirei da cadeira, coloquei no colo e ele abaixou a minha blusa para mamar. Eu não queria amamentá-lo naquele momento, pois eu estava comendo. Penso que ele tem quase dois anos e precisa aprender a respeitar o meu momento também. Ele chorou até eu terminar o meu almoço e “dar o peito” para ele. Essa cena se repetiu algumas vezes e, mais do que isso, o choro e a insistência por mamar na hora que deseja acompanha a nossa rotina e, assim, eu o amamento estudando, trabalhando, fazendo comida, no banho, dormindo, etc. Nem sempre eu me incomodo, mas há situações nas quais eu preciso me concentrar para finalizar um texto e ele ali “chupando o meu peito” não ajuda muito. O prazer está em tê-lo em meu colo, aconchegado e me olhando profundamente. Já o incômodo se faz presente nas inúmeras mamadas diárias, em momentos inoportunos, nos gritos e choros descontrolados e na minha falta de sensibilidade para lidar com isso. Educação das crianças: entre a tranquilidade e o estresse Já estávamos no quarto mês de isolamento e com a rotina muito bem estabelecida. Era uma sexta-feira e tinha sido uma manhã prazerosa e leve, com flores naturais decorando a nossa mesa, café da manhã nordestino e uma manhã de brincadeiras no quarto e um pouco de música na televisão. Após o almoço, a Amora, minha filha de 4 anos, queria brincar, mas estava sem companhia, pois o seu irmão estava dormindo e o avô paterno — que mora na nossa casa — não quis passar esse momento com ela, mesmo ela pedindo e insistindo. Eu fiquei bem chateada com a atitude dele, pois acredito que temos que nos ajudar. Já que Jefferson e eu estávamos trabalhando, ele poderia brincar com a criança, que só pensa nisso. Vendo a cena da Amora de cabeça baixa com as bonecas na mão, eu fiquei comovida e levantei falando que brincaria com ela, enquanto trabalhava. Eu precisava finalizar um conteúdo para uma disciplina EAD para colocar na plataforma virtual de aprendizagem, então eu escrevia um tópico e “ia à praia”; escrevia outro item e “mergulhava no mar”; desenvolvia uma atividade e “montava um castelo de areia”. Conciliar o trabalho com a brincadeira é, sempre, um desafio muito grande para mim, pois preciso de concentração para produzir conteúdo e encenar com bonecas não me proporciona isso. Logo a Amora ficou chateada porque eu não respondia no momento que ela queria e me deixou trabalhando sozinha, o que foi um alívio — por dez minutos. Kalú acordou e ela resolveu pintar um papelão com tinta guache, eu pedi para ela não o fazer, pois eu não estava com disponibilidade para acompanhar a atividade. Ela me desobedeceu e, além de pintar o papelão, pintou o seu irmão e toda a varanda. Após uma hora de muita arte, resolveram que queriam tomar banho e assim o fizeram. Seria ótimo se não tivessem sujado toda a casa de tinta vermelha. Eu precisei parar de trabalhar para passar pano na casa e ir lavar a varanda, antes que a tinta grudasse e ficasse pior de fazê-lo. Resumo: eu não consegui cumprir o meu prazo e fiquei muito estressada. A tranquilidade está nas leituras de livros, nas brincadeiras rápidas e na companhia que um irmão pode fazer a uma irmã — e vice e versa. O estresse está na falta de compressão do outro, na falta de controle da situação, nas falhas e na dificuldade de lidar com a desobediência das crianças. 762 Maternidades Plurais A rotina: entre o orgulho e a frustração Durante a quarentena, vivemos dias diferentes, apesar de todos terem sido dentro de casa e com uma rotina aparentemente igual. Eu defendi a minha dissertação de mestrado, o que me deixou muito orgulhosa de mim mesma, afinal não é todo dia que se torna Mestra. Tivemos dias sem telas; com refeições saudáveis; crianças dormindo cedo; Jefferson e eu bebendo vinho e comendo pizza no final do dia, e com a casa limpa. Conseguir manter o mínimo de ordem na rotina me deixa orgulhosa. Não só de mim, mas na nossa família. Pois vejo a maturidade da Amora para colaborar com as atividades, o desenvolvimento do Kalú imitando a irmã e o companheirismo do Jefferson assumindo as responsabilidades de pai e de “dono de casa”. A família funciona como uma equipe, cada um fazendo a sua parte, numa sintonia linda. PORÉM, nem sempre é assim e, quando a rotina sai completamente do controle, vem a frustração. O cenário global nos impôs uma nova forma de (não) convivência e relacionamento humano. A troca de afeto físico ficou limitada entre os/as integrantes da família que vivem na mesma casa e a falta de outros familiares e amigos/as fazem parte do dia a dia, assim como dos passeios ao ar livre e das festas de aniversário, que muito animam e divertem a nossa vida. Ter uma família unida é motivo de orgulho, mas perceber que o convívio desgasta e que precisamos de alternativas para “sair da rotina” me frustra. O convívio intenso dentro de casa nos leva aos extremos e intensifica os sentimentos. Eu me preocupo demais com a saúde mental da minha família, pois no final desse período podemos pintar a casa, consertar móveis quebrados e fazer muitos passeios para compensar o período de isolamento, mas recuperar marcas negativas é difícil. Lidar com a felicidade e a tristeza; com o prazer e o incômodo; com a tranquilidade e o estresse; e com o orgulho e a frustração é um desafio. Penso que buscar o equilíbrio é uma estratégia para conseguir conviver com esses sentimentos e emoções tão dicotômicas. Como conseguir esse equilíbrio? Vivendo, convivendo, errando e aprendendo — consigo e com o outro. Se tem uma coisa que eu quero preservar nessa quarentena é o meu relacionamento com a minha família. Entendo que, para isso, precisamos ter bons momentos nesses dias que passamos juntos, confinados dentro de casa. Essas memórias ficam marcadas e é isso que quero levar da quarentena: lembranças de uma rotina intensa e de muito convívio, desafios e superações. Quanto a fazer parte da rotina das crianças, é uma felicidade, um prazer e um orgulho, mas acredito que o ideal seja um equilíbrio, talvez estar presente durante a metade do dia e na outra metade as crianças vão para a escola, num cenário normal, é claro. 763 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 127 Maternidade e ciência: um oceano de aprendizados, incertezas e buscas Tainá Fernandes Alves Oliveira1 O encontro da academia (rio) com o maternar (mar) em tempos de Pandemia e medidas de Isolamento Social Ser mãe é um mar aberto de oportunidades, frustrações, conquistas, satisfações, perdas, imposições e cobranças. Muitas, se não a maioria, das mães não têm escolhas sobre quais dessas características irão prevalecer, permanecer ou se tornar passageiras. Ser mãe é acreditar — ou ser levada a crer — que grande parte do que somos pode ser facilmente substituído ou reduzido à apenas "ser mãe". É um processo de se doar sem expectativas de retorno e a partir disso podem surgir as anulações ou os preenchimentos. Uma das frases que mais escutei desde que engravidei: "ser mãe é padecer no paraíso". Quão romântico pode parecer imaginar essa imagem ou quão desesperador ela pode soar? Aliás, as estruturas sociais, políticas e econômicas nos fazem acreditar que devemos “querer ser”. A sociedade não é tão flexível com o "aprender a ser mãe". Para quem opta por aceitar a maternidade muitas vezes não nos é dada a opção de aprendiz sem julgamento, de ter limite no amar, de ter essa experiência de longa data de vida de forma lúdica, como um simples aprendiz. E não, não é somente de fatos ou dados levemente desastrosos na vida de uma mulher que se tornou mãe que segue a caminhada. Associar a maternidade juntamente com o mundo acadêmico a um oceano de circunstâncias, ou a própria água em essência, é associar inicialmente a necessidade da água. Não temos escolha, nós precisamos dela, em sua maioria não temos escolha, nós precisamos assumir esse papel, e falo aqui do meu em específico como de uma mãe solo. E no mar de imensas possibilidades, em alto mar, a paisagem é a mesma. É uma trilha sem trilha, pois a chegada e a partida são iguais. Ser mãe é ser. São várias águas, imensidão de água, parece solitário e às vezes confortador. Quando próximo à praia, 1 Cientista Social, Consultora Socioambiental, prestadora de serviços para empresa de Consultoria Ambiental Dossel Ambiental. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0995903659756597 764 Maternidades Plurais em contato com a terra firme, é possível abranger mais a visão, novas paisagens, novos rumos, possíveis escolhas. Será que no mundo acadêmico mulheres que se tornaram mães têm a escolha individual de se ancorar em terra, de levantar após a onda, de não naufragar, de boiar, de sentir a maresia, de admirar ambos os mundos que não parecem muito iguais ou complementares? Acredito que sim. No meu caso, não é bem uma escolha individual e não é uma alternativa individual que me faz seguir acreditando que vou alcançar meus objetivos acadêmicos. É uma estrutura social que me permite acreditar que é possível. Quando comecei o processo de pesquisa acadêmica, logo após um trabalho de consultoria sócio ambiental que exerci, questionei o que muitos colegas e professores falavam sobre o processo de escrita ser um processo solitário. Hoje em dia penso que, antes, quando eu escutava relatos, parecia amedrontador pensar nessa possibilidade de imersão tão profunda para conseguir produzir algo notoriamente acadêmico. E hoje em dia me parece um momento e uma experiência um tanto alegre e reconfortante pensar na possibilidade de estar só para poder produzir. Uma das coisas que ouvi sobre pós-maternidade é que eu nunca estaria só. Realmente, acentuado por um período de isolamento social, eu não estou e não estive só durante pouco mais de dois anos. Que nesse caso corresponde ao processo de gerar finalizando com a idade da minha filha. Como poderia ser uma escrita solitária quando não disponho de um tempo regular para mim mesma, sem ter que pensar em casa, comida, roupa, fralda, televisão ligada no desenho... a palavra “mamãe” a ecoar 24h do meu dia? Antes de abordar sobre esse momento, eu preciso contar um pouco sobre minha trajetória acadêmica antes de me tornar mãe. Sou graduada em Ciências Sociais com habilitação em Licenciatura, e graduanda em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia. Estou definitivamente no final do curso, faltando somente produzir e defender a monografia exigida. Durante a graduação em antropologia, me vi rodeada de possíveis temas que geravam grande fascínio, porém nem tanta satisfação. Após conseguir um estágio e consequentemente conseguir uma contratação na Fundação Cultural Palmares, passei a ter vontade de pesquisar sobre questões voltadas às comunidades quilombolas, claro, com recortes bem específicos para uma possível produção de graduação. Foi então quando, após me formar em licenciatura e partir para a oportunidade de me debruçar em uma pesquisa, eu engravidei. Naquele momento eu estava junto com o pai da minha filha e continuamos juntos até pouco mais de um ano de vida dela. E logo de início, com alguns poucos meses, eu saía com a Verônica para conversar com os sujeitos relevantes para minha pesquisa. Em alguns momentos de gravação de áudio, Verônica chorava ou queria mamar, e por mais que eu quisesse transformar no meu íntimo que aquele momento era natural, me parecia um pouco anti-profissional e, melhor dizendo, anti-acadêmico. Estar realizando uma pesquisa que iria desaguar em uma monografia, ou seja, um trabalho de finalização de um curso, simbolizando a finalização de um ciclo. Me parecia que não conseguiria finalizar daquela forma, não me sentia confortável em ter que exercer duas funções muito distantes ao mesmo tempo. Ser mãe e realizar uma pesquisa, fazer entrevistas, ou demais ações relacionadas ao fazer antropológico que pra mim estava exposto. Nunca me foi apresentado por parte das pessoas que conversei um problema, mas eu me via indisposta por não ter o “auxílio” tanto do pai dela, como de outros familiares ou amigos, ou qualquer pessoa que talvez eu sentisse que pudesse me ajudar a tentar continuar. 765 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Durante todo o curso, eu sempre permaneci me questionando sobre a eficácia da antropologia nos espaços práticos e sobre a quão acadêmica eu poderia ser, sendo que não tinha feito programa de iniciação científica, apesar de ter participado de um projeto de extensão. Esses questionamentos nunca foram sanados e, neste momento, escrevendo esta linha eu ainda me questiono, será que eu vou dar conta? Será que eu insisto nisso? Será que vale à pena? Após quase oito anos na Universidade, com uma graduação concluída e permanecendo mais dois anos na tentativa de finalizar, eu me repreendo quando faço esses questionamentos. Penso a quantidade de dinheiro público que foi investido em mim durante esses anos, por cursar um curso em uma Universidade Federal, penso o quanto que eu e minha mãe investimos para que essa trajetória fosse possível. Hoje, após um campo onde eu me desloquei aproximadamente 1300 quilômetros, parece incabível a ideia de desistir. Esse campo foi onde encontrei o tema definitivo da minha pesquisa para a finalização do curso de Antropologia. Voltando a falar sobre quando engravidei, eu permaneci na Palmares até minha licença e logo após, por estar trabalhando para uma empresa privada que já não tinha contratos com a Palmares, eu fui demitida e assim permaneci por alguns meses, até me surgir a proposta de trabalhar em uma consultoria sócio ambiental com comunidades quilombolas que estão localizadas em alguns municípios do Estado da Bahia. Foi então que concretizei o tema da minha pesquisa, sendo ele sobre uma das comunidades onde estava trabalhando. Quando iniciei o trabalho na consultoria, o meu ex-companheiro estava desempregado e quando precisei viajar à Bahia, ele ficou com a responsabilidade de ficar com nossa filha. Isso com certeza foi fácil, o difícil foi perceber que aquele era só o início. Para essa consultoria, eu necessitei elaborar um Estudo sobre cinco comunidades quilombolas na Bahia. Por conta de não ter com quem deixar a Verônica para poder ir a campo cumprir o calendário da consultoria, e também por coincidir que nesse momento o pai dela estava cogitando sair do emprego que a pouco entrara, fomos todos juntos para o “meu” campo. Foram vinte dias de trabalho intensivo na busca de coleta de dados para a produção do estudo, que possuía um caráter mais técnico. Vinte dias como pesquisadora e mãe em campo. Até então havia sido tranquilo também, apesar de alguns atritos sobre divisão de tarefas com a Verônica; como quando eu passava o dia inteiro trabalhando, fazendo entrevistas e reuniões que algumas vezes duravam até a noite e ao voltar ainda tinha que ser mãe, amamentar e na maioria dos dias, colocá-la para dormir, bem como acordar de madrugada para voltar a fazer dormir, já que o pai ficaria o próximo dia “inteiro” cuidando dela. Esse papel do cuidador, de em uma suposição “Já que eu irei cuidar dela para você trabalhar, você realiza suas tarefas com ela durante o período que estiver”. Falo que é tranquilo, mas não foi nada tranquilo, é só porque aqui o objetivo da escrita é outro. O que não exclui o fato que irei relatar mais à frente sobre redes de apoios e sobre papéis que não deveriam ser “ajuda” e sim ser papéis, concretos e sólidos apenas. Refletir sobre a realidade da maternidade, é pensar em caminhar no escuro, e quando metaforicamente associo a maternidade a um oceano é exatamente na tentativa de aproximar a maternidade ao desconhecido. A humanidade através da ciência, hoje em dia, possui mais conhecimento sobre o universo do que sobre o próprio oceano. A maternidade é isso, é uma constante maneira de se rein- 766 Maternidades Plurais ventar e ressignificar as vidas para expandir o horizonte dentro de uma infinita possibilidade de acontecimentos. Não ter a certeza do que vai acontecer e acreditar que a impermanência de circunstâncias é a sua própria capacidade de transformação. É ter uma certeza... quando não se tem nenhuma. Pouco antes de iniciar as medidas de controle para prevenção do contágio pelo novo coronavírus, eu tive que viajar a trabalho cumprindo com o rito de licenciamento ambiental, no final do carnaval. Literalmente, no último dia de carnaval, dia 25 de fevereiro, momento que antecedeu as medidas de isolamento, me desloquei de Brasília para Salvador e posteriormente para os municípios interioranos da Bahia próximos à região soteropolitana. Realizei meu campo e ao retornar, na mesma semana, foram suspensas as atividades da creche que a Verônica frequentava. Hoje em dia resido com minha mãe e Verônica, logo, a minha rede de apoio mais próxima é minha mãe. Verônica, nos dois anos de vida, está em um processo de desenvolvimento que requer ainda muita atenção, tanto para o afeto quanto para segurança. A partir dessa atenção constante que eu precisava dar a ela durante o dia, combinei com minha mãe de tentar produzir de noite até a madrugada. Quando ela chegasse do trabalho, eu sairia de casa e iria até a casa de uma amiga para ter foco, produzir e conseguir entregar meu produto no prazo curto estipulado. Foram-me dados quinze dias para a produção de um documento que tinha em seu cerne o desenvolvimento e descrição de programas de incentivo e mitigação para duas comunidades quilombolas. Obviamente eu não consegui fazer e entregar no prazo exposto, porém tive grande flexibilidade da empresa que me contratara, expandindo assim os dias para execução do produto. Essa amiga que me recebia em sua casa para que eu pudesse produzir de forma mais tranquila também é mãe. Ela tem uma hamburgueria vegana e também se desdobra entre seu empreendimento, as tarefas acadêmicas, o trabalho à distância e a maternidade. Esse foi um momento inicial de grandes desafios e demonstrações de apoio e incentivo de mães para mães, incluindo obviamente nossas próprias mães, que são nossas redes de apoio. Ou seja, lá estávamos nós, trabalhando e exercendo funções infindas durante todo um dia. O que parecia em alguns momentos de diálogo um eterno choro de cansaço, esgotamento e indisposição, se tornava também um auxílio mútuo de troca de experiências e esperanças de que iríamos conseguir, se já não estávamos conseguindo. Ter o auxílio da minha mãe para poder exercer minha profissão e realizar trabalhos acadêmico foi de uma imensurável satisfação pessoal, já que em um enfrentamento constante com o pai da Verônica, eu abri mão da sua presença e da sua paternidade consciente. Eu estava esgotada de ter que “pedir ajuda”, quando na verdade não era uma ajuda, deveria ser uma obrigação. Então se eu poderia pedir realmente uma ajuda, que fosse a alguém que não tinha essa “obrigação” na criação da minha filha. Essa figura foi da avó. Durante meus momentos noturnos de trabalho na casa da minha amiga, minha mãe ligava inúmeras vezes para eu poder falar com a Verônica, pois, segundo ela, ela estava sentindo minha falta. Quando o motivo não era esse, era pra fazer algumas queixas, completamente aceitáveis, de que ela não quis jantar direito, ou não queria ir dormir. Eu jamais questionei o cansaço da minha mãe para exercer esse papel de cuidadora, tendo em vista que ela trabalhava o dia todo e de noite ainda se dispõe a me auxiliar cuidando da Verônica. Algumas vezes eu perguntava se ela queria que eu voltasse para casa e então eu tentaria continuar a trabalhar no dia seguinte. Algumas vezes ela respondia 767 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) que sim, outras que não. E assim foram aproximadamente vinte dias no cumprimento de medidas de isolamento e vinte dias na tentativa de finalizar meu trabalho. Eu assumi para mim que trabalhar em casa era impossível por conta da presença da Verônica. Eu entendia as limitações que eu tinha. Como, por exemplo, a nossa realidade de durante dois anos em que eu fui e sou a referência de cuidado que ela tem, estando comigo sempre e somente comigo em sua maioria. Quando eu me sentava na frente do computador pra escrever, ela queria sentar-se no meu colo, ela queria escrever também, na verdade ela só queria fazer o que eu estava fazendo, ficando próxima de mim. Com isso, eu não estava conseguindo focar e produzir da forma como eu precisava e queria. Minha saída era sair de casa e ficar distante das demandas por algum tempo para conseguir. Essa saída me levou a várias outras questões que, em um momento de pandemia, pairavam sobre minha existência. Além do medo inicial de contágio, estando em contato com outras pessoas, por mais que eu acreditasse na segurança desse contato, havia os questionamentos e os sentimentos de culpa, de estar provavelmente expondo tanto minha mãe — que faz parte do grupo de risco — quanto minha filha e em contrapartida expor também a família da minha amiga a um possível contágio. Além dessas preocupações constantes, chegou um momento que eu estava completamente esgotada, de trabalhar em funções domésticas e maternais durante o dia, sem pausa ou descanso e durante a noite me privar de sono para conseguir produzir, o que era meu dever profissional. Então, se eu disser aqui que pela privação de sono e, com isso, a insônia não vieram algumas situações amedrontadoras, estaria mentindo. Já cheguei a achar que estava tendo alucinações, o que me acalmava era pensar que não, o que eu tinha visto era só minha mãe andando pela casa por conta de seu sonambulismo. Porém, o momento de escrita solitária foi um período que desencadeou uma insônia e um desgaste psicológico, refletindo no físico, que eu não estava mais suportando. Por conta disso, contei minha realidade ao meu supervisor desse trabalho de consultoria. Ele, preocupado com minha situação, disse para eu ter calma e dormir um pouco. E eu segui essa orientação? Não. Eu só queria finalizar meu trabalho e entregar um bom produto, o que finalmente aconteceu. As sequelas da falta de descanso demoraram um pouco a passar após eu finalizar esse trabalho. Até o presente momento, a insônia ainda faz parte da minha rotina. Penso que se tornar mãe é ser dependente o resto da vida. Isso é ruim? Não necessariamente, mas hoje em dia sei que essa minha busca por independência não é mais possível. Uma independência total não. Se a mãe tem uma rede de apoio familiar, ela acaba dependendo da disposição de outros para o cuidado com sua/seu filha (o). Se a mãe tem uma situação financeira estável que ela pode arcar com a contratação de serviços de creche para o cuidado da (o) sua/seu filha (o), ela depende do sistema privado, e se ela utiliza do sistema público de creche, ela ainda está dependendo de outras pessoas para o cuidado da (o) sua/seu filha (o). Isso me faz querer focar nas redes de apoio a serem construídas. O modelo de família que hoje temos como ideal é de um núcleo onde se tem os cuidadores essenciais, sendo eles mãe e pai, mãe e mãe, pai e pai. Na ausência de um, o núcleo se torna mais limitado com a obrigação total ou parcial de forma mais desigual para uma das partes. Sendo assim, como me denomino mãe solo? Nosso espectro de obrigação com a criança é muito limitado nessa sociedade atual patriarcal e individualista. 768 Maternidades Plurais Se compararmos às estruturas de comunidades tradicionais, adentramos no aspecto da criação conjunta e coletiva. É possível uma distância daquele sentimento de obrigação total sobre a vida de alguém. Um sentimento que pode refletir frustrações futuras, como um sentimento de incapacidade, ou um questionamento se fez o melhor ou o certo, mas é um período que também pode ser um grande fortalecedor. Na criação conjunta e coletiva, todos são responsáveis pela construção daquele (a) ser humano (a). O que percebi e comparo, de forma bem particular, com a nossa atual estrutura familiar é aquela necessidade ou vontade de quando sair da casa dos pais se distanciar da figura deles em termos de distância. Parece que essa é a forma correta e ideal que vai refletir na busca e concretização da independência. As comunidades tradicionais possuem a peculiaridade de ocupação de um território por pessoas com laços consanguíneos, então todos são ou parecem ser, a meu ver, considerados família. Nas comunidades onde estive, percebi que no momento em que a mãe está ocupada com alguma outra atividade, qualquer pessoa que estiver ali se torna responsável pela criança. As residências são próximas por famílias, ou sobrenomes. E mesmo a tia avó, se estiver ali, assume a responsabilidade. Não tenho muita legitimidade para falar se é assim sempre ou se essa foi só uma observação rasa que eu fiz. Do pouco que consegui observar o coletivo, a comunidade além da responsabilidade sobre a vida da criança, também faz parte do seu desenvolvimento, podendo atuar como parte do desenvolvimento. E quando penso em rede de apoio, me questiono sobre quais figuras se apresentam realmente dispostas a participar da criação da minha filha. Minha mãe de uma forma mais impositiva dela com ela mesma, mas também sempre delimitando meus limites: “Eu faço isso, mas eu sou a avó. Você que é a mãe”. E em outro momento a minha amiga, que também é mãe, que também estava cansada, e que independente disso, por entender minha realidade aproximada à dela, me ofereceu ajuda para ficar com a Verônica nem que fossem duas horas, para eu poder fazer qualquer coisa que eu quisesse, podendo ser aproveitar o ócio. A rede de apoio é uma questão muito presente no oceano das mães, pois é com ela que alcançamos nossas metas e desejos com menos dificuldade. Além da questão mais apontada sobre minha função profissional na produção de um estudo e programa para as comunidades quilombolas, agora também se inicia mais uma saga. Na tentativa de produzir e escrever a monografia para ser apresentada e defendida com o objetivo de finalizar minha graduação em antropologia. Como eu vou conseguir? Eu definitivamente não sei, só sei que eu vou conseguir. Independente da rede de apoio ou não, o meu sentimento é de que eu irei conseguir. Mas quando penso na falta dela, visualizo aquele oceano, em mar aberto com a paisagem repetida por todos os cantos. Como vai ser difícil sem uma bússola ou se não estiver ventando encontrar uma direção mais tranquila e que eu chegue ao destino com maior facilidade. Eu sempre me pergunto se as coisas parecem estar se tornando mais fáceis porque elas realmente estão, porque o desenvolvimento da Verônica vai se tornando mais leve definitivamente, ou se é por que eu que me adaptei ao caos da maternidade e a ressignifico constantemente, tornando-a mais leve. Talvez sejam os dois. Portanto, diante de um oceano e suas circunstâncias imprevisíveis, aprendemos com a maternidade a remar com ou contra a maré. Aprendemos a furar a onda e mergulhar sem “tomar um caldo”. Aprendemos que em cima do barco, na tempestade, podemos segurar na proa ou no timão e com 769 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) calma esperar ela passar... Pra assim poder ajustar a vela e seguir na direção que se espera ou se gostaria. Aprendemos a lidar com o medo da solidão sem estar só. Aprendemos a reconhecer dentro de nós a própria força vital da criação, da manutenção, da necessidade da água, em outras palavras: da Mãe. 770 Maternidades Plurais 128 Quarentena de sempre Taís do Santos Abel1 Mãe de Autista? Acadêmica? Professora? Esposa? Mulher? Ativista? Doutoranda em Literaturas Africanas – UFRJ. Integrante do Grupo de pesquisa Escritas do Corpo Feminino – UFRJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7589793240996493 1 771 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) É possível todos esses predicativos pertencerem a uma só sujeita? Muitos diriam que não. Muitos dizem que não. Duvidam da capacidade de um ser humano atender tantos ofícios, principalmente se for mulher. Eu sou essa mulher que malabariza2 diariamente a vida acadêmica, profissional com os desafios da maternidade e da sociedade patriarcal. Tenho que lidar com uma rotina estressante — pouco reconhecida por quem diz ser meu parceiro — que começa, em tempos de pandemia às 7h da manhã e finaliza às 24h mais ou menos. Eu acordo às sete para acordar a família: a filha autista para terapia e o marido para o trabalho. Minha filha, lindinha, demora a acordar e tem todo um ritual fofo para seu despertar. Por isso, minha felicidade, mesmo que seja artificial, não pode faltar! Preparo seu mingau, conto a história da Cachinhos Crespos, versão adaptada da Cachinhos Dourados, enquanto a preparo a fim de estimulá-la a fala, já que faz parte da vida de uma mãe de autista estimular o tempo inteiro. Após o mingau, esperamos a terapeuta da parte da manhã chegar. Tendo iniciada a sessão, fico observando a sessão pela câmera e permaneço aflita: “Será que está dando certo?” “A postura da terapeuta está adequada?” Minha filha atingiu critério?” “Fugiu de alguma demanda?” Levanto-me e retorno a acordar o marido que também demora a acordar. Às vezes preparo marmita para ele levar e muitas vezes não preparo. Neste momento, reflito e sinto uma culpa enorme por não ser a esposa perfeita. Faço a contagem e percebo que estamos há muitos dias sem sexo. Penso só na frase que intitula o discurso de Sojourner Truth3: “E não sou uma mulher?” Me questionando por que não consegui atender às expectativas do sistema patriarcal em que fui criada. Nesse discurso pioneiro de Truth, ela questiona sua feminilidade diante do fato de nunca ter sido auxiliada a subir numa carruagem ou a pular numa poça, enquanto ela era obrigada a conviver com a dura realidade da venda de seus treze filhos para escravidão. A inquietação desta mulher perpetua por anos a frente em outro discurso em que ela aponta o machismo negro. Os homens negros avançam em relação ao sufrágio e não se preocupam em trazer as mulheres negras junto com eles. A pensadora denuncia assim a “infantilização” da mulher negra, uma vez que ela é subalterna aos senhores da casa grande e, quando chega a sua casa, continua o regime de subalternidade a seu marido. De acordo com Akotirene (2019), “no pensamento de vanguarda de Soujoner Truth, raça impõe à mulher negra a experiência de burro de carga da patroa e do marido”. Diante dessa reflexão, fico pensando se minhas ancestrais lutaram tanto, por que eu ainda me sinto tão refém desse sistema em que a mulher/ esposa tem que ser tão moldada e preocupada em ser “a bela, recatada e do lar”? Imaginei-me que elas sentiriam vergonha de mim. 2 Neologismo criado pela autora proveniente da palavra malabarismo. Tornou-se pioneira do feminismo negro em discurso de improviso “Eu não sou uma mulher?”, proferido em 1851, durante a Convenção dos Direitos das Mulheres de Ohio. (AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo. Pólen,2019) 3 772 Maternidades Plurais Nossa! A manhã passou rápido! A terapia acabou e já está na hora de fazer com minha princesinha as atividades da escola. Nesse momento, o varão já foi trabalhar. Nós duas sentamos e trabalhamos os deveres adaptados que a escola fez com bastante carinho. Converso bastante com ela com a certeza de que ela me entende. É um momento de muita sintonia e vibro com cada progresso dela. Porém, tem dias que perco a paciência facilmente. Respiro fundo e sigo, pois, sei que o mundo azul é de muitas repetições para alcançar o sucesso. Dali, partimos para preparar o almoço bem rapidinho antes que a terapeuta da tarde chegue. Vou para a cozinha e sempre monitorando se a menina de 4 anos vai fazer xixi no chão ou se vai ao banheiro; se vai jogar algum objeto pela janela ou colocar algo na boca; etc. Sei que o almoço deve estar pronto na hora da vinheta do jornal de 12h senão minha menina desregula. Conseguindo, ela almoça brilhantemente. A terapeuta da tarde chega. E eu tenho um momento e fico na dúvida como usá-lo: estudo, durmo, vigio a terapia, ligo para o marido, lavo a louça, adianto o jantar, arrumo a casa, vejo uma série... oscilo nas tarefas. Há dias que tenho que aproveitar esse tempo para gravar as aulas EAD para envio. Nunca escolho algo que beneficie a mim diretamente. Com o término da terapia, faço de tudo para a criança dormir e eu conseguir participar da reunião do meu maravilhoso grupo de pesquisa Escritas do Corpo Feminino – UFRJ. Só que ela não dorme. Então, busco colocá-la confortável, assistindo uma sequência de desenhos favoritos com intuito de me satisfazer na reunião. Sou interrompida algumas vezes pela minha filhinha, mas meu grupo me entende e interage com ela. Deixo o áudio bem alto para que eu possa levá-la ao banheiro, dar-lhe o jantar e intervir se ela fizer uma travessura sem eu perder fala alguma da reunião. Mesmo assim, consigo fazer algumas anotações pertinentes a minha pesquisa de Doutorado. Por muitas vezes saio antes do fim do encontro, ao perceber a intolerância de minha criança, e temer uma crise ou uma desregulação sensorial. Deste momento até a hora de dormir, minha cria fica literalmente em cima de mim, me beijando e abraçando. Canto músicas com ela, faço chamadas de vídeos com avós e primos e nos preparamos para dormir. Inicialmente, alimentava (e acho que ela também) uma expectativa do pai chegar para fazer a rotina do sono. Com o tempo, fomos abandonando essa prática. O pai não chegava cedo para isso. E minha anjinha agarrada a sua bonequinha favorita inicia seu sono merecido, após a leitura da historinha do Meu Crespo é de Rainha, da bell hooks. Eu me preparo para ser a esposa, apesar de estar esgotada. Como fui criada para crer, o marido serve para trabalhar para o sustento da família. Diante do diagnóstico de autismo, comecei a trabalhar com carga horária reduzida e ele aumentou a dele. No momento, a decisão me parecia óbvia. O sacrifício parece ser todo dele, “coitado”. E eu, a esposa, devo recebê-lo no aconchego do lar com sorriso no rosto, “descansada” e com a vagina molhada. A nossa maior frustração, minha e dele, é que muitas vezes falho quando chega nesse tal momento. Fico me perguntando se uma mulher poderia ser ativista e casada. Então, eu me coloco ali, “feliz”, assistindo série no sofá, comendo lanche e vivendo a tensão entre me escolher ou ser “apenas” uma sobremesa que eu nem mesmo desfruto. 773 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Biroli4 (2018) ao se tratar de família e maternidade esclarece que: A família toma forma em instituições, normas, valores e prática cotidianas. Sua realidade não é da ordem do espontâneo, mas, sim, dos processos sociais, da interação entre o institucional, o simbólico e o material. Ganha sentido em contextos históricos específicos e modifica-se no tempo e em diferentes ambientes culturais, mas corresponde a uma pluralidade de arranjos em um mesmo local e tempo. Sua definição legal, no entanto, estabelece fronteiras entre diferentes formas de organização da vida cotidiana e de vivência das relações afetivas, conjugais, de parentalidade e de coabitação. (p.91) A pandemia do Covid-19 deixou mais relevante ainda as relações conjugais e familiares. Por isso, ficou cada vez mais evidente que a maioria das relações não são baseadas na espontaneidade e a convivência tem sido o maior desafio. E para minha surpresa tive uma grande revelação: nunca havia percebido que o meu parceiro de 20 anos talvez possa não ser o “príncipe” que eu esperava. Somada a essa revelação, poderia dizer que sempre vivi em tempos pandêmicos, assim como, possivelmente, muitas mães acadêmicas. Somos sempre encarceradas em vários sistemas dos quais tentamos nos libertar: sistema patriarcal, o acadêmico, o psicológico, o interseccional e outros. Sempre me senti isolada no ambiente acadêmico por ser negra e pobre. Tal isolamento se intensificou ao acrescentar o fato de ser mãe de uma criança especial. Despertei para quarentena acadêmica quando, diante de uma banca de avaliação, me vi reprovada após ser questionada se seria capaz de contribuir para academia, sendo mãe de uma criança especial. Dentro dessa quarentena acadêmica, consegui reverter a situação, me candidatar de novo à uma qualificação acadêmica, e me tornar uma doutoranda bolsista, cursando as disciplinas com êxito. Mas o meu silêncio em relação aos questionamentos feitos me incomoda até hoje. Também me fez perceber que para mulher negra não há outro caminho senão o da dor, pois qualquer resposta ou reação que tivesse diante deste evento eu sofreria. Essa dor aproxima-se do termo dororidade cunhado por Vilma Piedade5 (2017): que carrega no seu significado a dor provocada em todas as mulheres pelo machismo. Contudo, quando se trata de nós, mulheres pretas, tem um agravo nessa dor. A pele preta nos marca na escala inferior da sociedade... a palavra dor tem origem no latim, dolor. Sofrimento moral, mágoa, pesar, aflição, dó, compaixão” (p.17) Convivo com sentimentos conflitantes em relação a esse evento marcante de minha trajetória. Entre a denúncia e a comprovação, viveria um longo calvário de provações. Talvez eu evitasse, como mulher/mãe ativista, que outras irmãs vivessem essa situação. Minhas reflexões concluem que não tinha chance de chegar à redenção. Só que esse silenciamento aterrorizante também é uma postura 4 BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. 1ed. São Paulo: Boitempo,2018. 5 PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017 774 Maternidades Plurais que não me deixa confortável. Faz-me sentir fraca e colaboradora do sistema que tanto crítico. Sintome egoísta e fere minha autoestima. Portanto, uso esse espaço, agora, para pontuar com TODAS AS LETRAS POR ESCRITO: somos capazes sim, de sermos doutorandas e mães de crianças especiais. Eu sou a prova viva disso. Somente após a leitura do ensaio de bell hooks6 (2019), negra e mulher: reflexões sobre a pósgraduação, não me senti tão sozinha em relação a meus pensamentos e atitudes, uma vez que a feminista em questão foi perseguida por muito tempo durante sua pós-graduação. Inclusive lhe disseram que “ela não tinha a postura adequada de uma estudante de pós-graduação”. Apesar de ter sido menosprezada a todo tempo no ambiente acadêmico, bell hooks reforça a ideia de que os negros desprivilegiados só são capazes de cursar a faculdade e ir além na pós-graduação porque desafiam aqueles que não acreditam no potencial deles. Então, é isso que me faz caminhar nessa quarentena de sempre: desafiar aqueles que não acreditam em mim. Lutar pelos meus, pois sei que numa perspectiva interseccional represento os pobres, as mulheres, as negras, as mães, as mães acadêmicas e as mães acadêmicas de crianças especiais. Este último grupo pouco conheço mães no ambiente acadêmico, mas brigo por elas porque sei que elas existem e estão brigando por mim por aí. 6 HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019 775 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 129 Isolamento social na pandemia – realidade ou mentira? Tatiana Viana De Oliveira1 Sou formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Antropologia, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em dezembro de 2019, fui aprovada no Programa de Mestrado em Antropologia, também na UFF. Sou casada há sete anos, mãe da Marina, de 06 anos e madrasta do João Bento, de sete anos, que não mora conosco. Sou servidora pública do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro. Meu trabalho envolve pesquisa de empresas devedoras em ações trabalhistas e essa tarefa exige muita concentração e o manuseio de diversas ferramentas de pesquisa. Moramos numa casa espaçosa e confortável no bairro Grajaú, cidade do Rio de Janeiro. Temos dois cachorros e uma gatinha. Para trabalhar, estudar e cuidar da casa, conto com uma rede de apoio: meu marido, minha mãe e uma doméstica, que é minha secretária. Descobri que estava grávida logo que comecei a cursar o primeiro período da graduação em Antropologia. Assim, desde o início desta segunda graduação, me interessei pelo assunto da maternidade. Meu Trabalho de Conclusão de Curso (monografia) foi sobre o Coletivo de Mães Universitárias da UFF, coletivo do qual fiz parte entre os anos de 2016 e 2019. Na verdade, ainda acompanho o Coletivo mas participo muito pouco atualmente. Também faço parte do Coletivo Nacional de Mães Universitárias, o que me possibilitou contato com mães de coletivos de outras universidades no Brasil. Assim, a maternidade é algo que eu vivencio e pesquiso. Conciliar trabalho, maternidade, casamento e uma nova área de estudo (Antropologia) foi sempre um desafio para mim. Então, me interessei em saber como essa conciliação da maternidade com outras esferas da vida social é vivida por outras mães. No mestrado, pretendo ampliar esta pesquisa para além do Coletivo de Mães da UFF. Eu e minha filha iniciamos nosso afastamento social em 13/03/20. No início do mês de março de 2020, nós brasileiros estávamos comovidos e apavorados com o que estava acontecendo na China, Itália, Espanha, diante da chegada do Corona Vírus por lá e muito preocupados com a velocidade com que o vírus se espalhava por todos os recantos do mundo, batendo às portas do Brasil. 1 Mestranda em Antropologia tes.cnpq.br/9560101555262810 – Universidade Federal Fluminense (UFF). Lattes: http://lat- 776 Maternidades Plurais Neste mês de março, meu pai estava completando 80 anos de idade e estava tudo planejado para fazermos uma grande festa em família aqui em casa. Tenho quatro irmãs e três delas moravam fora no momento: Canadá, Estados Unidos e Alemanha. Duas delas participariam da festa. A empolgação de todos era grande. Mas estávamos acompanhando a chegada do Coronavírus ao Brasil e estávamos cientes de que a festa poderia ser suspensa, dependendo de como se mostrariam os números do contágio nos dias seguintes. E os números cresciam assustadoramente. No dia seguinte à minha colação de grau em Antropologia, que se deu no dia 12/03, no meio do meu expediente de trabalho, a Presidência do Tribunal decidiu que todos os servidores ficariam, por duas semanas, trabalhando em casa, diante do avanço do número de infectados e mortos. A decisão foi recebida com um certo alívio e, enquanto eu reunia o material necessário para levar para casa, minha irmã me ligava de Montreal para avisar que estava sendo pressionada no trabalho para não vir para o Brasil, pois as fronteiras canadenses provavelmente fechariam a qualquer momento e ela poderia não conseguir voltar para casa. A outra irmã, que mora na Alemanha e que já estava no Brasil, já não sabia quando conseguiria voltar para casa. Meu pai, por sua vez, me enviava mensagens para saber da minha opinião de manter ou não a festa. Enfim, era uma sexta-feira 13, bastante tumultuada e tensa. Saí do trabalho e fui para o mercado. Havia um grande temor de desabastecimento e eu também queria evitar saídas nos próximos dias. O mercado estava bem cheio, as pessoas estavam atônitas e havia um clima de calamidade próxima. Saí do mercado direto para buscar Marina na escola e ali fui avisada que as crianças ficariam também duas semanas sem aula. Chegando em casa, havia um email da coordenação do mestrado informando a suspensão do início das aulas, que também iniciaria naquele mês. Então, aquela sexta-feira terminava com notícias de aumento de mortos por Covid-19 no Rio de Janeiro, aulas e a vinda da minha irmã suspensas, festa cancelada, trabalho em casa. A tensão estava em todos os lados. Iniciava o nosso confinamento social. Apesar de toda preocupação em torno da doença, que se espalhava a passos largos no país, confesso que havia uma certa satisfação, da minha parte, por poder ficar uns dias com minha filha, trabalhando em casa. A questão é que meu marido é bancário e continuou saindo para trabalhar. Então, desde o início, sabíamos que o nosso isolamento não seria total e o medo de contágio é uma constante que nos acompanha desde sempre. Assim, eu vivenciava um misto de felicidade, tristeza e medo. Fichas caídas, eu tinha que organizar a nova rotina que, a princípio, duraria quinze dias. Minha mãe decidiu ficar na minha casa para me ajudar com Marina. Dispensei minha secretária mantendo seu salário integral. Nos primeiros dias, procurei me informar de todas as medidas sanitárias necessárias, acompanhava os números de infectados e óbitos, as medidas políticas, o confinamento e as tragédias nacionais por jornais e Facebook, chorando pelos cantos da casa, escondida da minha filha. 777 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Também participava ativamente dos grupos de mães e pais da escola, participava do grupo do Coletivo de Mães da UFF e do Coletivo Nacional, todos via WhatsApp. Logo vieram os primeiros desabafos de mães quanto às novas rotinas com seus filhos. Mães solteiras, mães casadas sem participação dos maridos nos cuidados dos filhos e da casa, mães que tinham que sair das suas casas para morar com familiares, por questões financeiras, mães que tinham que sair para trabalhar e que, por isso, não podiam ver seus filhos. E mais meus olhos viviam marejados. Percebi que a pandemia proporcionava um vasto campo de discussão sobre maternidade: os desafios de ficar com crianças trancadas em casa (ainda mais difícil para as mães que moravam em espaços pequenos), de trabalhar em casa com os filhos em casa (e ociosos), de estudar com os filhos, de conciliar tarefas domésticas e cuidados dos filhos, de ficar em casa com filhos sem renda e sem rede de apoio, de dar conta das notícias da pandemia, de mães contaminadas, de crianças internadas sem serem acompanhadas pelas mães, do aumento da violência doméstica. Eram muitas as possibilidades para pesquisa da maternidade naquele momento. Assim, propus, nos grupos de mães, que elas me enviassem relatos de suas vidas na pandemia e eu faria uma espécie de diário. Algumas mães aceitaram o convite e uma delas começou a me mandar relatos imediatamente via WhatsApp. Mas minha rotina já estava a todo vapor e, quando acabava o dia, eu estava morta de cansaço, não conseguia ler nada. Todos os dias, eu tentava acompanhar as notícias, limpar a casa, trabalhar e dar atenção para minha filha, com um sorriso no rosto, agradecendo pela oportunidade de estar com ela naquele momento e não estar passando por problemas financeiros ou de outra ordem. O medo de contágio, porém, era muito forte. Estabeleci um protocolo de entrada do meu marido em casa (que era o único que estava circulando até então) e já até desviava dele quando nos cruzávamos em algum lugar estreito da casa. A paranoia estava instalada dentro da minha casa. Eu sabia que estava numa situação bem mais confortável em relação a muitas pessoas, talvez a maioria delas. E isso virou um mantra para mim: não me permitia reclamar e decidi fazer o meu melhor em tudo, inclusive tentando acompanhar, por celular, aquelas pessoas próximas que eu achava mais vulneráveis. Com o dinheiro que não gastei por não sair para trabalhar, fiz doações e, inclusive, uma vez saí uma vez de carro com minha mãe para distribuir arroz e feijão. Assim, apesar de todo entorno caótico e absurdo, eu estava fazendo um grande esforço para contribuir com a vida social e a pandemia. Apesar toda esta “clareza” da condição afortunada e específica da minha casa, o humor era variante. A sensação era de que os sorrisos eram apertados e esmagados pela vontade de gritar. Gritar de horror e de raiva. Por tanto descaso e despreparo diante da chegada do Coronavírus no Brasil com retoques cruéis de menosprezo pela vida humana. Mas eu não me sentia assim somente pelas notícias que eram cuspidas em alta velocidade através dos meios de comunicação. A angústia e o medo de morrer ou perder minha filha ou minha mãe vinham de dentro de meus ossos. No início, eu mantive minha rotina de acordar antes das seis da manhã. Ao invés de me arrumar para sair para trabalhar, eu me alongava por 10 minutos e ia limpar cocô de cachorro, lavar roupa e 778 Maternidades Plurais botar o lixo no portão. Depois, tomava um café rápido, regado de própolis, para ajudar na imunidade, e começava a trabalhar por volta de 7h30. Mas não era tão fácil me concentrar. Buscava conciliar trabalho com algumas tarefas domésticas e atenção para minha filha. Entre 11 e meio-dia, eu parava meu trabalho. Até as 18h, horário em que marido costumava chegar, eu me revezava entre limpar a casa, fazer compras pelo WhatsApp ou telefone, higienizar produtos da rua, brincar com minha filha e responder às inúmeras mensagens dos grupos sociais. Quando meu marido chegava, ia direto tomar banho, de acordo com o protocolo de higiene que eu estabeleci, e eu finalmente voltava a trabalhar até 21 ou 22h. Era uma maratona dentro de casa. Após esta maratona, era chegada a hora de colocar Marina para dormir. Para o ritual, líamos livros e contávamos histórias. Com a nova rotina, este horário começou a se estender de 21:30h/ 22h para por volta de 23h. Marina estava bem animada com a presença em casa, 24h por dia. Algumas vezes, ela levava mais de uma hora para pegar no sono e me vi brigando para que ela fosse dormir e eu pudesse descansar. E, quando ela dormia, a culpa vinha pela minha falta de paciência e eu já estava tão exausta que não conseguia fazer absolutamente nada. Quando muito, ficava olhando o Facebook e ia dormir com o coração ainda mais impregnado de raiva, tristeza e medo. Passados cerca de quinze dias, a escola da Marina começou a mandar atividades por e-mail e isso também precisava entrar na rotina. No início, eu me sentia bastante eficiente e performática e me vi, algumas vezes, enumerando, para minha mãe ou meu marido, a quantidade de coisas que tinha feito durante um dia, com quem tinha falado (e como estava a pessoa), do que tinha brincado com Marina. Como eu já disse, estava feliz, por um certo lado, com esta nova rotina: cuidando da casa, trabalhando em casa e com minha filha por perto. No entanto, as saídas para trabalhar do meu marido e o crescimento dramático do número de mortos, contagiados, desempregados, da violência doméstica e tantas outras injustas notícias cotidianas faziam com que o medo, a tristeza e a raiva se entremeassem a esta pequena felicidade. Com o passar de quase trinta dias, fui percebendo que era difícil manter aquele ritmo intenso. Meu corpo doía muito à noite e pela manhã, eu já não estava tão rápida nas tarefas domésticas e, apesar de todo meu esforço, a casa estava cada vez mais suja. Além disso, notava que minha produção profissional tinha despencado. Eu não conseguia ler os poucos relatos que algumas mães haviam me enviado, perdia mais tempo acompanhando as notícias, era rasa nas respostas dos grupos de que participava, minha filha me solicitava em praticamente tudo que fazia, até naquilo que já fazia sozinha com desenvoltura, como comer, passar sabonete, colocar a roupa, escolher a roupa, dentre outros. A cada dois ou três dias, então, eu tentava criar novos protocolos e rotinas, tentando ajustar e equilibrar as tarefas, mas as coisas só funcionavam bem por poucos dias. Essa rotina pesada, a sensação de que não estávamos de fato isolados, as notícias cada vez mais frequentes de pessoas próximas contaminadas começavam a pesar mais a cada dia. Era um constante adiamento de uma nova possível “normalidade” pois não havia uma congruência coletiva de proto- 779 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) colos e ações sociais com o que de fato estava acontecendo. Assim, víamos a necessidade de prorrogação do isolamento social, para um período indeterminado e isso exigia novo gás para manter a rotina. Além disso, eu e meu marido estávamos discutindo muito, pois eu entendia que ele era o principal canal de insegurança da casa: além de sair para trabalhar, meu enteado estava circulando livremente, vindo para cá em fins de semana alternados, como sempre fez, a despeito de todas as recomendações médicas e cientificas. Que tipo de isolamento estávamos fazendo, na verdade? De que valia limpar as compras da rua ou ficar sem sair, se havia pessoas que entravam e saíam frequentemente de casa? A minha sensação, portanto, era a que de minha fortaleza tinha muros baixos. Assim, fui percebendo que muitas informações não estavam funcionando para mim. Era necessário que eu fizesse algum tipo de isolamento mental. Decidi então fazer novos ajustes: decidi acordar mais tarde, saí de alguns grupos de redes sociais, silenciei outros, abandonei a ideia de casa limpa, abdiquei da pesquisa acadêmica, aceitei o fato de que minha produção profissional não seria boa, saí do Facebook e parei de acompanhar boa parte das notícias. Também decidimos que meu enteado deveria circular menos, e proporíamos que ele ficasse 15 dias aqui e 15 dias com a mãe. Essa ideia veio bem a calhar, pois ele, que estava sem ver a mãe por cerca de um mês em virtude de ela ter pego Covid-19, estava na casa dos avós maternos, entediado, engordando, dormindo e acordando muito tarde, sem fazer qualquer atividade típica de sua idade, como brincar, ler, pegar sol ou mesmo estudar. A mãe dele aceitou a proposta e alguns dias depois, tínhamos um novo integrante em casa. Nesta época, já estávamos há quase dois meses em casa. O período de pico da infecção por Covid-19 já se projetava para as próximas semanas, apesar de os números oficiais já serem, por si, estarrecedores. As pessoas mais próximas, então, começavam a mostrar seus primeiros sinais de profundo cansaço pelo confinamento. Meu pai estava bem desanimado — toda vez que eu ligava por vídeo, ele estava deitado, com barba por fazer e sonolento. Uma sobrinha minha, que é uma jovem professora e mora sozinha, estava tendo depressão e crise de ansiedade. Minha comadre estava sem dormir bem e ficava dias sem responder às minhas mensagens. Era hora de repensar nosso isolamento. Eu e meu marido decidimos abrir, mais uma vez, as portas do nosso castelo de areia para receber outras pessoas em casa. Meu pai não quis vir, mas minha sobrinha não olvidou. E, então, por cerca de 15 dias, a casa ficara mais habitada e mais animada. Foram momentos de prazer e tensão. Uma jovem estudando com crianças gritando e correndo pela casa, tretas infindáveis de irmãos, todos tensos com as incertezas da pandemia, a casa mais suja, com mais roupas para lavar, mais comida para fazer e mais vozes falando ao mesmo tempo — porém, o trabalho árduo doméstico não tinha sido dividido com os novos habitantes. Fizemos bolos, pavês, pães, pães de queijo, pizza, brigadeiro, cachorro-quente, waffles, tapioca, hamburguer, acarajé, empadão. Fizemos também fogueiras, cineminhas, acampamentos, churrascos, 780 Maternidades Plurais cabanas, brincamos de boneca, de dançar, de cantar, de fazer rap, piques-escondes, piques-altos, piques-tudo, galinha choca, adedanha, mímica, passa anel; pulamos corda, deitamos na rede e inventamos tantas outras brincadeiras e jogos que não sabemos qual o nome. Até uma pequena festa junina fizemos, com direito a alguns pratos típicos e brincadeiras. Ao final deste período, lá se iam quase três meses em casa, e era hora de minha sobrinha e meu enteado irem embora. Foi um dia de domingo chuvoso e nós, que ficaríamos aqui, nos sentimos bem nostálgicos. Percebi que todos os cantos da casa tinham sido espaços de brincadeiras e praticamente todos os brinquedos tinham sido brincados. É claro que tivemos muitos momentos de tédio, discussões, disputas e irritação. Mas, apesar de tudo isso e do medo sempre à espreita, a vinda de alguém dava um novo colorido a uma rotina tão fechada, trazendo novos ares. Alguns dias após a saída deles, percebi que não conseguíamos retomar à rotina anterior. Marina estava enfastiada de todas as brincadeiras e brinquedos. Não havia ninguém na casa que gargalhasse como ela e o irmão juntos, nem que conseguisse inventar tantas histórias que envolvesse melecas, cocôs, xixis, lacraias e baratas. Sentia também falta do discurso jovem politizado da minha sobrinha, com um computador na mão transitando pela casa, tentando achar um bom sinal de internet e falando de LGBT´s, da prova de doutorado e das exasperações típicas da idade e da dura realidade em que vivemos. Quando eles foram embora, ficou um vazio, precisávamos de uma nova rotina — eu já não sabia mais como manter a limpa a casa, já não sabia como entreter minha filha, o trabalho já estava deixando a desejar por longo tempo em uma produção abaixo do normal. Estávamos tão enfastiados que, para variar, minha filha passou a tomar banho no quarto da minha mãe e dormiu por duas noites lá. Mas logo uns dias depois, um casal muito amigo, compadres do meu marido, que morava em São Pedro da Serra (Nova Friburgo), anunciava que em breve se mudaria para o prédio ao lado da nossa casa. A notícia foi recebida com muita alegria. Decidimos ir buscá-los e trazê-los para a nova casa, pois possuem uma filha adolescente e um bebê. Não queríamos que viessem para cá por transporte público. Ao chegarem, encontraram a nova casa inabitável de imediato. Precisava de boa limpeza e alguma manutenção. E, então, eles passaram um fim de semana aqui conosco antes de se tornarem nossos vizinhos. O nosso isolamento cedeu mais pouco. Decidimos também que minha secretária voltaria para ajudar na limpeza da casa, de duas a três vezes na semana. Pagaríamos Uber para ela não pegar transporte público e combinamos que ela ficaria de máscara o tempo todo e que não ficaríamos no mesmo ambiente que ela. Também, nos últimos dias, estamos recebendo a melhor amiga da minha filha, durante o dia. Os pais estão se separando, embora morando ainda no mesmo apartamento. Estão passando dificuldades financeiras. A menina, de 06 anos, estava se mordendo, com dificuldades para comer e com muitas crises de choro e birras. Expliquei para a mãe dela que nosso isolamento não tem sido como 781 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) deveria, mas, ainda assim, ela entendeu que as duas deveriam se encontrar. E foi muito emocionante ver o encontro das duas. Já são quase quatro meses que estamos em casa. O isolamento social oficial está cedendo. Nós sempre estivemos na borda do isolamento. Estas decisões tomadas de cessão são originadas de madrugadas de reflexão e questionamento, de mal-estar e sempre crivadas de incertezas. Experimento um misto de carinho e preocupação, mas também de ilegalidade e insegurança. Acabei também me afastando de algumas pessoas muito queridas, porque sinto uma certa vergonha — é como se eu cometesse uma espécie de infidelidade social. Meu marido, desde sempre, saiu para trabalhar, meu enteado veio para cá várias vezes, minha sobrinha veio duas vezes, temos um casal de amigos vizinhos, agora a amiguinha da minha filha está vindo. É um pesar constante, um medo incessante, que impõe diversas ponderações. Mas também é gratificante. Gratificante no sentido de sabermos que somos pontes seguras para estas pessoas, alicerces de sanidade delas, mas longe de qualquer garantia de infecção por Covid-19. Não sei como nós nos sairemos disso, ao final, mas pudemos perceber que nossa preocupação com os demais supera nosso medo, mas não o anula. Talvez até os aumente. E eu sinceramente não sei se queria que fossemos assim. Gostaria de ser mais firme e não ceder, pois ter sua mãe e sua filha nesta linha de risco é muito pesado, muito angustiante, é tormentoso. Houve discussões, brigas e desconfortáveis silêncios. Noites mal dormidas, e até orações pedindo desculpas e proteção. Não é uma escolha simples. Estar estruturado e ver pessoas ruindo ao seu redor, sabendo que o que está em jogo é a sua vida, a vida de pessoas importantes que moram com você e a vida de pessoas também importantes que não moram com você levam a decisões que demandam muita energia e nenhuma segurança na resolução. Dia desses, ouvi uma história de Margareth Mead, famosa antropóloga, falecida em 1978, que eu não sei se é verdadeira. Segundo esta história, um aluno de Mead perguntou qual seria, para ela, o primeiro sinal de civilização. Talvez ele esperasse que a resposta fosse algo sobre pinturas na parede, artefatos confeccionados ou coisas assim, mas dizem que ela respondeu que o sinal era um fêmur quebrado e cicatrizado. O ser humano, quando ainda não estava no topo da cadeia alimentar, tinha o hábito de fugir e correr diante de uma situação de desproteção ou perigo. Neste sentido, um fêmur cicatrizado significava que alguém abdicou de correr ou fugir para cuidar de outro alguém que estava com um fêmur quebrado e, portanto, impossibilitado de se se defender. Abdicou de sua própria proteção para cuidar de um outro ferido. Não procurei saber da veracidade desta história. Mas certamente esta ideia traz um pouco de conforto ao meu coração atormentado. Até que ponto minha fortaleza forjada pode se manter diante da vulnerabilidade de outras pessoas? O quanto posso arriscar? Quais as margens de segurança? Todas estas perguntas retóricas eu e meu marido nos fizemos. Nunca houve uma resposta segura e eficaz. Foram madrugadas discutindo sem chegarmos a uma conclusão e, no dia seguinte, quando percebíamos, tínhamos aberto a porta de casa, com um bolo de chocolate ou uma taça de vinho na mão, regados de borrifadores com cloro e muito álcool gel pela casa. 782 Maternidades Plurais Ao final deste relato, que não coincide com o fim da pandemia nem do isolamento social (apesar de ter sido bastante flexibilizado na última semana), posso afirmar que tivemos vários tipos de quarentena e, apesar de todo meu desespero e precauções iniciais, não conseguimos manter o isolamento indicado, desde o início. Obviamente eu acredito que o isolamento precisa ser rígido e tentei agir assim, desde o início. Mas meu marido tinha que sair para trabalhar e as exceções se tornaram parte do nosso cotidiano. O fêmur quebrado e cicatrizado é uma ideia que poeticamente nos cabe nestas inúmeras aberturas de exceções. No início do confinamento, eu entendi que minha pesquisa só teria consistência se eu entendesse primeiramente de que forma o isolamento impactaria minha vida e a própria forma de maternar. A ideia de maternidade hoje, para mim, se alarga, mas eu não posso delimitar ao certo seu contorno ainda. Não posso afirmar que meu amor pela minha filha e minhas preocupações com o bem-estar dela estão em pé de igualdade com as preocupações que tenho com outras pessoas. Não se tem um quadro de comparação ou uma balança. A ponderação requer diversas esferas de negociações. Mas certamente a pandemia me trouxe novos elementos e talvez seja o momento para prosseguir na minha pesquisa, mas não consegui abrir espaço nesta apertada rotina para tanto. A pesquisa científica foi deixada no plano mais remoto de todos. Sei que o final feliz destas exceções só realmente ocorrerá se eu conseguir chegar ao final (final este que ninguém sabe quando será exatamente), sem uma perda de vida próxima por conta destes pequenos riscos que escolhi correr. Porém, caso isto ocorra, espero que consigamos nos lembrar da história do fêmur. Se a quarentena está sendo um período negro e cinza, posso afirmar que aqui tivemos várias quarentenas coloridas pelo calor de cada pessoa que habitou esta casa, ainda que por algumas horas. Que sejam doces lembranças de tempos árduos e que sirvam de forças motrizes para os momentos futuros de intempéries, a fim de que jamais deixemos de acreditar e cuidar do ser humano. E foi esta crença que me fez arriscar e ceder os nossos (supostos) muros de segurança. 783 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 130 Mãe no armário: uma carta sobre isolamento social das mães-solo dentro e fora da pandemia Thaís Teles Rocha1 É tanta coisa pra fazer que falta tempo pra mudar as coisas. (Victoria Pinheiro, 2018 [material de campo]) O que chamam de amor nós chamamos de trabalho não remunerado (Silvia Federici, 20192) São exatamente 03h18 da madrugada do dia 10 de julho de 2020. Enquanto escrevo este breve relato, ainda sem contornos, e que aos poucos toma forma de ousadia, desabafo e um pouco de fúria sedimentada em cansaço, eu penso em minhas mãos. Minha avó, mãe de minha mãe, mão que me moldou gente no mundo, sempre me diz que “mão de mãe não queima no fogão”. Mas ontem mesmo me queimei feio fritando batatas. Ainda não entendi se as mãos de minha avó não se queimam mais pelos anos de prática, ou se estão calejadas demais para sentir as queimaduras, depois de tantos anos. Eu poderia, além disso, dedicar todo este texto em contar a ensurdecedora história invisível de minha avó que desistiu de ser enfermeira para cuidar. E de como isso é redundante, mas também muito cruel, já que como enfermeira ela já trabalharia com cuidado, porém seria remunerada (ainda que muito mal remunerada). O cuidado como trabalho, pago ou não, me parece ser historicamente desvalorizado nas “mãos de mãe” das mulheres pobres. Eu também poderia pensar como, em certa medida, sou uma continuidade do que foi minha avó. Diferente dela (e também graças a ela e suas mãos), consegui me formar. Mas continuei trabalhando com cuidado (remunerado ou não). Como forma de sustento, trabalho a cinco anos como doula, em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). Morando sozinha com minha filha, era o que 1 Mãe-solo, Bacharela em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do Projeto de Iniciação Científica “Mãe-solo: Conjugalidades e Parentalidades” do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, orientado pela profª dra. Sabrina Deise Finamori. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1000155894974900 2 Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-eles-chamam-de-amor-nos-chamamos-de-trabalho-nao-pagodiz-silvia-federici/. Acesso: 11 jul 2020. 784 Maternidades Plurais pagava algumas contas, até que a pandemia foi apresentada como justificativa para que todos os hospitais SUS da minha cidade suspendessem a entrada de doulas até segunda ordem (mesmo havendo uma lei estadual que garanta nossa entrada). Não há equipamento de proteção individual (EPI) para profissionais da enfermagem, quiçá para doulas, muitas vezes vistas como “leigas” (e portanto, menos capacitadas à atuação). Além disso, o cuidado de uma doula, mesmo que essencial na assistência ao parto, parece não ser serviço essencial na pandemia. Minhas mãos, que antes amaciavam dor de parto, hoje estão ásperas e isoladas. Mas quando não estiveram? Penso em minhas mãos que se desacostumaram com o teclado do computador e até mesmo com tomar notas de um texto acadêmico, fazendo fichamentos à mão. Fico pensando nas “técnicas do corpo” de Marcell Mauss3, texto elementar para a antropologia clássica. Será possível desaprender a escrever? Desaprender a pensar em como escrever? Será que ainda me lembro como é pensar um argumento em formato de texto escrito, em silêncio, depois de longas reflexões? Eu não me lembro de ter esquecido. Minhas mãos, fazedoras quase automáticas de almoço, de faxina e de desenhos para colorir, quase separadas de minha mente melancólica, parecem escrever por pura insistência, porque algo em mim insiste em não esquecer. E existe um pequeno prazer febril nos dedos, no som da digitação e no silêncio que vem como o triunfo de fazer algo que é puro desejo e singularidade. Minhas “mãos de mãe” cuidam do não se esquecer de quem cuida. Se eu tiver desaprendido a escrever como escrevia e mesmo assim queimar minhas mãos, ainda prefiro escrever, sempre reaprendendo e com bolhas nos dedos. Continuo contemplando minhas mãos, desacostumadas a escrever artigo, mas também expostas demais para não se queimarem. Afinal, de quem são as mãos que escrevem publicações de artigos acadêmicos? Essas mãos lavam roupa? Limpam bunda de criança? Uau, dizer “limpam bunda” já no começo de uma tentativa de publicação. “Será que é por isso que eu não sou publicada? Será que eu não deveria estar dormindo?”, eu penso, enquanto faço as contas e vejo que minha filha deve acordar daqui a três horas querendo mamar. E não, não estou dizendo de limpar bunda e escrever artigo durante a chamada “quarentena” característica da pandemia de Covid-19. Estou dizendo sobre algo que transborda o isolamento da pandemia, algo que estrutura o saber-poder escrever e isola mães do trabalho científico, sistematicamente, muito antes do coronavírus. As mãos que escrevem publicações de artigos em revistas científicas bem avaliadas são mãos de mães? E, se são mãos de mães, qual a cor, endereço e tarefas dessas mãos e mães? Elas limpam como escrevem? Elas cuidam como produzem conhecimento sobre cuidado? Quem limpa e frita batatas enquanto elas pensam suas ideias? E isso lá é possível? Muito se fala sobre “a crise da pandemia”, frequentemente a partir de uma retórica que causa a impressão de que as crises econômicas, ecológicas, trabalhistas, e sanitárias, dentre outras dimensões, são partes de uma calamidade inaugurada no fim de 2019 pelo adoecimento global, e não o contrário. Aqui, devo admitir minha grande preocupação em negritar que a letalidade do vírus descortina arestas já consolidadas pelo capitalismo, pelo racismo e pela produção da desigualdade através da lógica de 3 MAUSS, M. As técnicas corporais. In: Ensaios de Sociologia. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. 785 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) mercantilização da vida. Como diversas pesquisadoras têm refletido 4, a pandemia de Covid-19 não inaugura, mas escancara abismos sociais previamente estruturados. O fato de o cenário não ser inédito, entretanto, não pode nos indignar menos. Ele não deve ser lido em tom tranquilizador, no sentido de normalizarmos seus impactos devastadores, quando fica posto que suas causas primordiais não são decorrentes da pandemia. Muito pelo contrário. Mais do que uma fatalidade, a pandemia tampouco é apenas um fenômeno descortinador de desigualdades perversas. A deflagração de um vírus com alta letalidade e potencial transmissivo, se trata, em verdade, de uma consequência iminente do comportamento social dos nossos tempos. Afinal, o desmatamento das florestas e as mudanças climáticas decorrentes da destruição do habitat natural da fauna silvestre favorecem diretamente o surgimento de novas epidemias zoonóticas 5. Estamos vivendo a verdade sombria das consequências de grandes descuidos. Nesse triste cenário, tendo a apontar que quem mais sofre é quem não tem acesso ao cuidado. A partir da ponderação crucial de que uma pandemia da proporção como a que vivemos não é mero acaso, mas sim um resultado inevitável do descuidado comportamento humano na Terra, penso que seja relevante ressaltar a permeabilidade das fronteiras entre o que é público e o que é privado e como é necessário polítizar nossas dinâmicas domésticas para compreender. O desmonte dos direitos e seguridades sociais mínimos, causados pela atual agenda ultra neoliberal, de fato age na esfera pública como catalisador da crise. Mas não se pode perder de vista que a dita vida privada do “fritar batatas e queimar as mãos” é tão política quanto deliberações dos que detém o poder. Nossas mãos queimadas fazem parte do mesmo pano de fundo das reuniões de especialistas, produzindo ciência, deliberando protocolos coletivos, em ambientes virtuais, gravados, transmitidos por plataformas online, filmando suas realidades de figuras poderosas, suas casas limpas, com refeições magicamente produzidas e prateleiras de livros ao fundo. Se a dimensão pessoal é tão política quanto a pública, como lidar com o desafio de transformar mães-solo, sobrecarregadas no provimento familiar, em uma categoria pública de direitos específicos, diante das estratégias de enfrentamento à pandemia? Um exemplo significativo foi a votação da lei 13.998, de 2020, que regulamenta o auxílio emergencial no país e prevê que mulheres chefes de 4 DINIAZ, D. Covid-19 e a Ferida no Útero. Coluna para o jornal ElPais 27 jul 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-06-27/covid-19-e-a-ferida-no-utero.html; FEDERICI, S. Pandemia, Reprodução e Comuns. 28/04/2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/pandemia-reproducao-e-comuns/. 5 CHARLIER, P. et. al. Re-emerging infectious diseases from the past: Hysteria or real risk? European Journal of Internal Medicine, Volume 44, outubro 2017, P. 28-30. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4342959/. Acesso: 10 jul 2020; 786 Maternidades Plurais família6 recebam duas parcelas do valor previsto de seiscentos reais, considerando que o máximo por família seriam mil e duzentos reais. Para requisitar o auxílio, existiam dois caminhos: Via Cadastro Único ou pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal. A etapa chamada “Composição Familiar” diz: "Caso seja mulher e chefe de família, única responsável pelo sustento de todos os membros, marque esta opção" 7. Apesar de representar um ganho, o auxílio emergencial “em dobro” para mães-solo gerou uma indignação em certos nichos que parece ser seletiva, quando o trabalho de cuidado dobrado para só uma mulher é tão normalizado na sociedade. Afinal, elas recebem em dobro ou fazem, sozinhas, o trabalho em dobro? O conceito de “mulher provedora” dentro de uma política pública de enfrentamento à calamidade revelada pela pandemia pode ser considerado histórico naquilo que traz nas entrelinhas, ao equiparar “mães-solo” a “pessoas responsáveis pela família” para que recebam renda básica. Afinal, se o valor máximo por família é estipulado e uma só pessoa é responsável pelo sustento familiar, entendese que mães-solo “valem por dois” e “recebem por dois”, não só em termos de sobrecarga de trabalho, mas também como detentoras de direitos. Entendo que o binômio mãe-solo, ou seja, mãe chefe de família que cuida sozinha (ou majoritariamente) do sustento domiciliar da unidade familiar, das crianças, idosos e/ou pessoas com deficiência é a descrição de um microcosmo com potência altamente analítica. A extensão dos alcances sociais das discussões acerca da sobrecarga materna, para além da expressão, oferece subsídios para compreender pactos hegemônicos e implícitos da sociedade, da família e das dinâmicas de reprodução social da vida8. Arrisco dizer que a figura social da mãe-solo seja uma alegoria fiel do cruzamento entre as desigualdades de gênero, raça, classe e cuidado, esse último como um marcador social determinante no Brasil. O pacto capitalista de desvalorização do trabalho das mães-solo pobres desse país talvez seja uma das articulações invisíveis, primárias e estruturantes do processo colonial e escravocrata que tanto marca as relações no país. Segundo algumas escolas da literatura bio-antropológica, um dos marcadores mais determinantes entre natureza e cultura é o fato de que bebês humanos nascem extremamente dependentes de cuidado externo, uma vez que que a estratégia evolutiva para o impasse entre estreitamento pélvico e 6 Importante destacar que mulheres que não são mães, mas sustentam sua família (como tias, avós e irmãs) também são consideradas elegíveis para receber o auxílio emergencial de mil e duzentos reais. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/14/auxilio-emergencial-mulher-mae-solteira-familia-direito-coronavouchermenor.htm. Acesso: 11 jul 2020 7 Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/14/auxilio-emergencial-mulher-mae-solteira-familia-direito-coronavoucher-menor.htm. Acesso: 11 jul 2020. 8 Termo utilizado pela teórica marxista feminista Silvia Federici sobre a esfera da vida relegada às mulheres, no que tange ao cuidado, como um trabalho que historicamente não é remunerado. Isto é, gestar, parir, cuidar, limpar, nutrir e educar crianças que mais tarde se tornarão adultos com força de trabalho e consumo. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017; 787 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) crânio aumentado e mais desenvolvido foi o parto “prematuro”. Um recém-nascido nasce sem aptidões básicas para a sobrevivência, como, por exemplo, andar e ir em busca de alimento. 9 Nesse sentido, para Margaret Mead (1901-1978), antropóloga, bissexual e norte americana, as principais evidências do que hoje chamamos de humanidade estariam no comportamento e nos padrões de cultura. Um exemplo fatídico é o caso da ossada com um fêmur fraturado e cicatrizado, utilizado como evidência de que quem fraturou recebeu suporte e cuidado de outrem para se recuperar. Diferente do que, segundo sua teoria, aconteceria no reino animal, uma vez que a impossibilidade de se movimentar, seja para buscar alimento ou escapar de predadores, expõe quem está machucado ao risco de morte, sem tempo suficiente para uma cicatrização óssea10. Ao meu ver, o cuidado, antropologicamente, é umas das atividades mais essenciais do comportamento humano e da manutenção da vida, consequentemente. Por isso, desde o parto dos primeiros humanos até o lugar social da mãe-solo pobre no Brasil, o que proponho é um processo de análise que se dá a partir do eixo do cuidado. Entendo que tais figuras sociais evidenciam, portanto, de fenômenos e narrativas de cunho metonímico, em que a parte contém o todo. Em outras palavras, a marginalização do cuidado nas sociedades pode ser um aspecto primordial para analisar a própria marginalidade de certos grupos sociais que passam a não ter acesso ao próprio cuidado. Exercer sozinha (ou de maneira mal distribuída) o trabalho de cuidado doméstico, das crianças, idosos, etc. é um marcador do que é a real família tradicional brasileira: mães sustentando lares com crianças e idosos. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), o número de famílias chefiadas por mulheres mais que dobrou nos últimos dezessete anos, saltando de 14,1 milhões, em 2001, para 28,9 milhões, em 2015, um avanço de 105% que seguiu ascendente em 201711 O termo “mãe-solo” segue em disputa em diversos espaços, dentre eles o acadêmico. É comum que, ao apresentarmos nossas pesquisas, colegas critiquem o que chamam de correção terminológica da maternagem solo, acusando-nos de politizar a análise com nossas próprias visões de mulheresmães pesquisadoras. Por algum tempo, mantive-me descrente quanto ao alcance político do discurso acadêmico enquanto instrumento para provocar fissuras na vida vivida, incidindo, por exemplo, no plano legislativo. Questões de vulnerabilidade social me pareciam urgentes demais para aguardar o devido financiamento para pesquisa e publicação no Brasil. Porém, universidade pública e para todas também é uma urgência e um serviço essencial. Como podemos ver, a pandemia tirou o véu que 9 ROSENBERG K & TREVATHAN, W. Evolução do nascimento humano, Scientific American apud Laboratório do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Disponivel em: http://labs.icb.ufmg.br/lbem/aulas/grad/evol/humevol/evol-nasc-humano.html. 10 BYOCK, I. The Best Care Possible: A Physician’s Quest to Transform Care Through the End of Life, 2012; Em 15 anos, número de famílias chefiadas por mulheres cresce 105%”. Disponível em: <https://observatorio3setor.org.br/carrossel/289-milhoes-de-familias-no-brasil-sao-chefiadas-por-mulheres/>. Acesso: 10 jul 2020. 11 788 Maternidades Plurais cobria a relevância da pesquisa e da universidade de qualidade na garantia da sobrevivência e dos direitos sociais. Nesse viés, dizer mãe-solo ao invés de “mãe-solteira” não se trata apenas de uma correção para um “politicamente correto”. Mas uma mudança de paradigma que extrapola a simples atualização do termo e nos provoca a repensar noções engessadas de família, cuidado, parentalidade e conjugalidade em sociedade. Para começar, mães se denominam mães-solo não porque concebem crianças fora da instituição do matrimônio, mas porque assumem todas ou a maior parte das responsabilidades que deveriam ser distribuídas, no mínimo, entre as pessoas envolvidas na concepção. Mães também podem ser solo quando escolhem conceber ou adotar crianças de forma autônoma. Mães podem ser solo mesmo casadas, caso se encontrem sobrecarregadas no cuidado. Em resumo, não é sobre estado civil, é sobre repensar toda a fábula da família patriarcal e encarar de frente a marcante condição monomarental12 das famílias brasileiras. Manter a sobrecarga multidimensionada do trabalho de cuidado majoritariamente sobre as mulheres, apesar de cruel, é um projeto efetivo, uma vez que muitas vezes isola da possibilidade de refletir sobre sua própria condição — e pensar em estratégias de mudança — mulheres, mães e pessoas que cuidam da possibilidade de. A produção científica desses marcadores, que potencialmente embasa nossas políticas públicas, nossa sociologia e nosso processo histórico, pode ser uma forma de provocar rachaduras, por dentro, no sistema desigual de papéis de cuidado. Talvez, o colapso do sistema de saúde e o fato do Brasil ser o campeão em mortes de enfermeiras e profissionais do cuidado pela Covid-1913 e um dos países onde menos se respeita as medidas de isolamento social14 (uma prática de cuidado coletivo) estejam mais entrelaçados com o paradigma das mães-solo do que se pensa. Penso que seja também a desvalorização do cuidado que estrutura a morte do menino que caiu do nono andar do prédio onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica, sem direito ao cuidado coletivo do isolamento15. O que proponho, com o enquadramento antropológico das mães-solo no Brasil, é que ter direito (ou não) a ter cuidado é um marcador social determinante, assim como gênero, raça e classe. Quem cuida notadamente é quem menos recebe cuidado (de si e de outrem). Sendo o cuidar um trabalho silenciado, invisibilizado, com pouca ou nenhuma remuneração e mal distribuído entre papéis de gênero, raça e classe é possível projetar que ainda temos poucas mães-solo, não-brancas e Termo sugerido pela cientista social Carla Cristina Garcia como forma de reescrever a expressão “famílias monoparentais” de forma mais fiel à predominância de mães-solo chefes de família. GARCIA, Carla Cristina. Entrevista ao Programa Bom Pra Todos, da Rede TVT. Vídeo publicado em 6 de fevereiro de 2019. Disponível online na Plataforma YouTube pelo link: https://youtu.be/_pSurT9Lwkc. Acesso: 10 jul 2020. 12 13 Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/27/brasil-e-o-pais-com-mais-mortes-de-enfermeiros-por-covid-19-no-mundo-dizem-entidades.ghtml. Acesso: 11 jul 2020. 14 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/brasil-vai-na-contramao-da-quarentena-e-ve-explosao-de-mortes-por-covid-19.shtml. Acesso: 11 jul 2020. 15 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/07/caso-do-menino-miguel-otavio-e-a-sintese-das-relacoes-desse-pais.shtml. Acesso: 11 jul 2020. 789 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) pobres sendo lidas academicamente em suas análises sobre a própria condição. É preciso mais do que se indignar com a invisibilização das mães-solo na produção acadêmica. É preciso que haja condições para novas formas de construção de contra-narrativas, acadêmicas ou não, contanto que sejam socialmente factíveis. Lembro-me nitidamente de uma aula de 2018, em que ouvi a professora usar pela primeira vez a expressão “mãe no armário”. Era uma aula sobre gênero e sexualidade, em que discutíamos direitos da comunidade LGBTQIAP+. Com grande perspicácia, ela descreveu a si mesma como uma “mãe no armário”, fazendo alusão à expressão “sair do armário”, comum em debates sobre assumir publicamente sexualidades não heterossexuais. Acontece que o armário, enquanto uma forma de invisibilização compulsória, também pode ser uma expressão perfeitamente transplantada para a dimensão do gênero e do cuidado. Ela dizia que estava em seu armário quando tentava ao máximo se comportar como uma “não-mãe”, ao nunca faltar em reuniões na faculdade, para que nenhuma ausência se tornasse brecha para ataque à sua maternidade, no famoso “faltou por causa do filho”. Afinal, em nossos tetos de vidro, quem nunca foi mãe no armário que jogue a primeira fralda suja. Eu mesma já fui mãe no armário em diversas situações — uma delas enquanto bolsista de um projeto de extensão que, ironicamente ou não, dizia oferecer suporte a mães em situação de vulnerabilidade extrema acompanhadas pela rede sócio-assistencial local. Eu sempre compareci às reuniões semanais com meu coordenador, tendo matriculado minha filha, na época com 6 meses, em uma creche pública, com medo de não atender às expectativas e demandas da agenda do projeto. É um medo real de quem é vulnerável e não tem as garantias sobre seu lugar em instâncias de poder, como a academia. Mais tarde, esse mesmo coordenador se referiu a uma professora parceira, mãe e ausente em uma reunião, como alguém que trabalhava “no tempo do filho”. Ainda mais tarde, saí do armário e, consequentemente, do projeto. Ser “mãe no armário” talvez já seja uma maneira sofisticada de isolamento social pré-pandêmico de mães dos espaços sociais de poder e de saber — que diz muito sobre a sociedade, mais do que sobre a própria maternidade, enquanto um suposto imperativo que “naturalmente” retire mulheres e cuidadoras da participação política. Não estamos isoladas exclusivamente pela pandemia. Estamos isoladas pelo armário. O armário que transforma a invisibilização do cuidado em “problema pessoal”, portanto menos debatido publicamente e menos encarado como deformação social. Trabalhando dentro ou fora de nossas casas, o armário existe no trabalho remunerado, nas relações sociais e conjugais, na divisão ou sobrecarga de tarefas domésticas e na responsabilização pelo cuidado. Diante disso, é impossível não lembrar de minha querida amiga Victoria Pinheiro, mãe cansada como eu, que me disse que “é tanta coisa para fazer que falta tempo de mudar as coisas”. Enquanto equilibrávamos trabalho, universidade, janta das crianças e muita exaustão acumulada, tentamos construir juntas um coletivo de mães do campus da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2019. Ainda não tivemos sucesso, já que todas as mães do grupo estão super-atarefadas demais para assumirem mais uma demanda. Em outras palavras, assim como o racismo e o patriarcado sustentam o capitalismo, o trabalho de cuidado não-remunerado (ou sub-remunerado) estrutura o próprio mecanismo de isolar quem cuida do direito a ser cuidada. Mães não vão deixar de ser sobrecarregadas enquanto o restante da sociedade não assumir suas respectivas funções coletivas. 790 Maternidades Plurais Concluo contando do segundo dia de escrita deste texto, quando minha filha se trancou no banheiro por engano enquanto eu redigia, usando fones para me concentrar. Por longos 25 minutos, experimentei toda a infinidade de ferramentas disponíveis em casa para tentar destrancar a porta por fora, até que arrombei meu próprio banheiro com um saca-rolhas, enquanto tentava instruir uma criança de três anos, aos prantos, a virar a chave que trancava o banheiro somente por dentro. Após chorarmos juntas, cada uma por seu isolamento compulsório, voltei para a escrita, com o saca-rolhas nas mãos, mas sem o alento do vinho. Não me entendam mal, a academia já falou (e muito) sobre mulheres, mães e maternidade. Mas a porta da academia, para mães-solo, talvez só se abra por dentro, assim como a porta de meu banheiro. Porém, talvez ela também possa ser arrombada com um item de cozinha, por “mãos de mãe”, como diz vó. Até quando teremos que trabalhar como equilibristas isoladas no armário da maternidade? 791 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) 131 Fridas em iso[lamentos]: professora e estudantes engendrando autorretratos entre artes e solitudes Thaiz Barros Cantasini1 Comecemos por reler anotações que fiz em minha agenda/diário. Aqui, um recorte de meu planejamento como professora. 2020.1. Destaco aqui duas datas:  Aula dia 06 de fevereiro de 2020: [Primeiro dia de aula] práticas corporais, sala cheia, suor, jogos teatrais e musicais, olhos nos olhos, caminhadas pelo espaço trabalhando a ideia de foco e visão periférica. Finalizamos com um forte abraço coletivo. Sondagem das turmas 2 e 3 para alicerçar planejamento teórico-prático sobre arte contemporânea. Entusiasmos e muitas possibilidades de experimentação. Aula dia 19 de abril de 2020: [Quarentena. Primeiro dia de aula] Web-Aula na Plataforma Famart - Leitura do artigo "Variações em torno das pesquisas em Educação e Arte com Imagens" (Cristian Mossi e Marilda Oliveira) - Atividade relacionando o conteúdo do artigo (Obras de Shannon Rankin) com a pandemia atual (Covid-19).  Opto por iniciar a escrita em primeira pessoa, uma vez que tratarei aqui sobre o exercício solitário de peregrinação para encontrar saídas para aulas de Artes em formato digital e em caráter emergencial. Este material, basicamente, quer contar sobre produções artísticas encharcadas de vida, apesar do medo da morte. Em breve dilatarei o discurso para “nós”. E o uso do “nós”, nesta escrita, merece uma dimensão poética. Chegaremos lá. Sou professora em duas turmas do curso de Pedagogia. Disciplina: Arte e Linguagem. Somos todas mulheres. Em ambas as turmas, muitas gestantes, muitas mães de primeira e segunda viagem. Mulheres que trabalham durante o dia, cuidam de suas crianças, estudam no período noturno e que, muitas vezes, levam suas crianças para a faculdade. Assim como foi conseguir concluir minha graduação. Batalha. Maratona. Assim como acontece com a grande maioria das mulheres que querem fazer um curso superior no Brasil. Ainda sobre as estudantes: a maioria namora ou é casada. A maioria 1 Mestre em Processos e Poéticas da Cena Contemporânea PPGAC UFOP. Faculdade Famart. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8791446984937535 792 Maternidades Plurais é heterossexual. A maioria é cristã. A maioria é classe média. Tem mulheres negras. Tem mulheres brancas, não-brancas. Falam pouco sobre seu posicionamento político. Bom, afinando ou desafinando (como disse o Riobaldo de Guimarães Rosa2), temos aspectos sociais em comum. Ser mulher é o que mais nos aproxima. Sou uma professora feminista. Artista. Ativista. Sou uma professora-mediadora e, por isso, ouvir faz parte da minha abordagem em sala de aula. Segui meu planejamento dando aulas de forma presencial até meados de março. Depois, tudo aconteceu de maneira muito rápida. Afinal, estamos falando de uma pandemia que tem encerrado milhões de vidas em todo o mundo. Paramos. Conversamos. Câmeras e áudios ativados. Única possibilidade de encontro. Na semana seguinte já estávamos com as estudantes experimentando as aulas em salas virtuais. Confesso que, para minha disciplina Arte e Linguagem, que abarca as artes da presença/artes do corpo, foi uma mudança extremada. Optei por começar lendo um artigo junto com as turmas. Recurso didático utilizado: slides. Nunca havia dado uma aula utilizando slides por tanto tempo. Meu corpo inquieto. Meu corpo ansioso. Meu corpo distante da minha fala. Uma hora e quarenta minutos de áudio e um belo chá de cadeira. Café esfriando na caneca. Esfriamos. Foi entediante para mim. Foi entediante para elas. Quais as referências e/ou estudos acerca das Pedagogias do Teatro poderiam inspirar práticas sem a possibilidade do encontro presencial, considerando que as turmas já haviam comprovado que o epicentro da disciplina se daria por meio de experimentos sensoriais e coletivos? (Sendo assim, as metodologias usuais voltadas para a Educação a Distância não atenderiam minha nova demanda). Meu desejo foi insistir em um formato teórico-prático e adaptá-lo para as web-aulas. Não encontrei disparadores teóricos para nutrir possíveis metodologias em um momento tão incomum na Educação. Depois da primeira web-aula, mergulhei em uma semana de pântano epistemológico. Constatei que algo teria que surgir da fratura do corpo-arcabouço-teórico no qual eu havia me debruçado nos últimos anos. Tempo que pede reinvenções. Tempo das micro e macro-precariedades, do corpo precário.3 2 O personagem Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", obra-máxima escrita por Guimarães Rosa (1908-1967) diz: "As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior.” “(...) o caráter de expansão da linguagem, sobretudo atualmente; a sua “natural” resistência à apreensão cognitiva racionalista, a sua amplificação geográfica, a sua reverberação em vários contextos (ela mesma sendo um), sua congenialidade a outras formas emergentes de invenção artística que resultam de misturas e apropriações de formas tradicionais ou sucatas culturais, a sua predileção pelo evento efêmero, precário, dificilmente apreensível, a sua resistência às clássicas ordens identitárias, o seu caráter de proximidade ao subalterno, a sua expansão em lugares antes ignotos, sua formulação em uma temporalidade espiralada (sem a teleológica perspectiva de um progresso linear-ascendente), a amplitude de seu campo de pesquisa, sua ilógica, sua predileção pelo paradoxo, o experimental. Por que deveríamos abrir mão desta conquista que é dispormos de um modo de dizer/fazer/pensar em arte que resiste às definições? Vamos adiante afirmando a dúvida.” (AGRA, 2009/2010 , p.6,7. Grifos meus.) 3 793 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Constatando a precariedade bibliográfica sobre as questões que assombraram meu ofício como professora por consequência da pandemia Covid-19, resolvi revisitar teóricas e teóricos4 da performance art, da arte e tecnologia e da educação libertária por pensarem o próprio corpo como substância precária. Por pensarem o corpo fluxo, o corpo experimentação. Por pensarem o tempo precário como instante-já. Espacialidades invisíveis, espacialidades equilibristas, precárias e minuciosas ações. Por pensarem a Educação precária como terreno fértil para a exploração de possibilidades e, por isso, incitar o “correr riscos” e outras adrenalinas: fraturar um osso? Por encorajarem a transmutação do precário em novo ou em erro. Por fim: viver o medo da morte, a solidão do isolamento social, a quarentena da falta de contato, a internet como uma extensão dos corpos e o desejo de voltar a ser aglomeração fora dela. Neste ano ou no ano que vem? Eu não sei. Não sabemos. Viver a precariedade da nossa mais legítima e atual dúvida. Não fugir da precariedade da vida e das diversas formas que as precariedades têm tomado forma em nosso mundo. Não fugir da precariedade da arte. Tempo de repensar os mecanismos que operam nosso fazer artístico dentro e fora das salas de aula. Observo, enquanto pesquiso, a polifonia discursiva dos meus/minhas contemporânexs e a existência de novas dimensões de espacialidades que carecem de exploração: as salas virtuais, por exemplo. As questões no âmbito das Artes são profundas, sérias, especialmente sensíveis e se dão em estados relacionais. O afeto é nosso material de trabalho. E o isolamento social que nos acometeu provoca o fluxo desses afetos: como estar perto estando longe? A potência transformadora da arte é uma comprovação. Agora, é conversar novamente com o mundo em toda sua complexidade atual. Acredito nas artes como alimento. Como possibilidade, inclusive, de manutenção da própria vida quando as potências de morte latejam em nossas subjetividades. Arte, uma das vacinas contra o coronavírus. A arte hackeando cotidianos adoecidos. E foi por este caminho que quis seguir minhas aulas com as estudantes de Pedagogia. Então, rascunhei minha proposta precária, teórico-prática e não-presencial pensando numa abordagem ética e estética da Arte. Experimental. O inacabado: aquilo que toma forma quando lançado no âmbito coletivo. As estudantes aceitaram a proposta e falaremos sobre ela, com minúcia, mais adiante. E combinamos de aparar possíveis arestas que, porventura, surgissem no decorrer de nossos encontros. O 4 Fontes utilizadas: DIÉGUEZ, Ileana. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Coleção Teoria Teatral Latino Americana. Uberlândia: EDUFU, 2011. DOMINGUES, Diana (org.). Arte e vida no século XXI: Tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003. FABIÃO, Eleonora. Performance de teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta, p. 235-247 São Paulo, nº 8, 2008. FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: O Corpo-em-experiência. Revista LUME Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais UNICAMP n.4. Campinas, 2013. HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. Ed. São Paulo, 2013. 794 Maternidades Plurais diálogo e a troca, para quem está em estado de isolamento social, também pode ser uma espécie de arte. Potências possíveis. Precisamos vivenciar o precário com toda a sua latente fragilidade. E esta será nossa potência, nossa salvaguarda. As aulas da disciplina Arte e Linguagem acontecerão em uma sala virtual e, para além de conteudismos, elas moverão o que em nós restou daquela ideia que tínhamos de presença. Acontecerão entre um encontro e outro através de experimentos produzidos no espaço doméstico. Dialogaremos as obras de artistas que hibridizaram arte e vida (ética e estética) em momentos de isolamento/confinamento com o abissal de nossa atual experiência de isolamento social. Produzindo arte. Resignificando a vida. Dos artistas elencados para as aulas, escolhi versar sobre as aulas ministradas acerca da vida e obra da pintora Frida Khalo (1907-1954). Aulas que nos serviram de mote para a produção de nossos autorretratos. Experiência que nos atravessou e, por esta razão, possa inspirar práticas que, porventura, venham a ter contato com este material. Que possa lampejar outras práticas. Outras educadoras. Outras estudantes. Outras Pedagogias. Sigamos. Nós, Fridas. Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón é Frida Khalo. Nasceu em 1907. Morreu em 1954. Mexicana de Coyoacán. Frida foi e é cravada internacionalmente num panorama poético de [re]existência. Sua vida, marcada pela potência de um relato carnal através de sua obra, foi pele-impressa em suas pinturas e também em um diário conhecido como “O Diário Íntimo de Frida Kahlo”, traduzido por Mário Fontes para o português em 1996. No diário (que foi guardado por cerca de quarenta anos e teve sua primeira edição em 1995, Nova York) Frida descreve as privações sociais, as idas e vindas dos leitos de hospitais, os longos cárceres domésticos, seu romance caótico com o pintor Diego Rivera, suas dores físicas, suas pisaduras emocionais. Frida viveu uma série de isolamentos sociais. Isolamentos que marcaram seu fazer artístico. Seu diário é apresentado de forma fragmentada: plena confluência com a vida da artista. Frida passou pela poliomielite ainda menina, o que causou alterações na anatomia de sua perna esquerda. Aos 18 anos, sofreu grave acidente dentro de um bonde: acontecimento que a isolou por cerca de nove meses em uma cama, completamente imobilizada. Dali, as primeiras borboletas foram pintadas na superfície do gesso inteiriço. Pele-gesso. Mutilações, as tantas cirurgias e abortos marcam a narrativa vida-diário-obra. Sua pintura, farta em cores vivas, metaforiza sua luta pela vida, sua sede de existir. Relatos em cores. Uma vida fundida à arte. Uma arte testemunho da vida. Trata-se, então, de um trabalho artístico autobiográfico e tecido por uma mulher. Uma mulher que viveu isolamentos sociais e que dialoga, em certa medida, de frente com nossas mais atuais limitações mediante a epidemia coronavírus. Até aqui, tivemos um prelúdio entre Saúde e Arte. Confinamento. Para nós, notícias de hospitais nos feeds de nossas redes sociais. Uma contabilidade de corpos mortos, feita diariamente. Relatórios mundiais. Podemos pensar em processos criativos pelas vias dessas imersões? Na condição de professora, mulher, artista e isolada socialmente percebi a inevitabilidade de apresentar Frida Kahlo para as estudantes de Pedagogia. Aliás, [re]apresentar Frida. Sigamos. 795 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Frida é uma referência unânime: uma mulher que possui uma expressiva monocelha, uma penugem sobre os lábios e que aparece em imagens coloridas geralmente estampadas nas canecas, nos isqueiros, nas capas de agenda, nas camisetas, nos chaveiros das lojas. A Frida de imagem vinculada ao movimento feminista. A Frida de imagem vinculada ao movimento surrealista. A Frida pelada com o sovaco cabeludo. A Frida vestida, grafitada no ponto de ônibus. A Frida convertida em desenhos para tatuagem e cravada no braço da transeunte. A Frida bordada na almofada. A Frida cortina de sala. A Frida moda e tendência. A Frida fantasia-bloco-de-carnaval. Contudo, para além das distorções e esvaziamentos causados pela saturação de sua imagem, lanço uma pergunta: Frida Khalo, hoje, é realidade ou ficção? Daí, a urgência de levar o nome “Frida” para as salas de aulas (reais e virtuais): quem foi essa mulher para além da popularização e apropriação, muitas vezes leviana, de sua imagem? O pensamento de Pelbart nos parece salutar para um possível [re]conhecer Frika Kahlo. Ele afirma que, na contemporaneidade, todxs somos consumidorxs de bens, mas também de formas e sentidos de vida através de dispositivos de “captura do desejo” e “colonização do inconsciente”, gerando processos de esvaziamento do ser a serviço de uma “megamáquina de produção de subjetividade”. Sendo assim, a “megamáquina” opera em montagens não apenas de lugares, mas atua nos interstícios do corpo e da subjetividade5. Por comprovar o esgotamento da “marca/ficção Frida Kahlo” em decorrência de uma massificação promovida pelas lentes de uma megamáquina mercadológica e, consequentemente, percebendo o esvaziamento de sentido sobre a relevância de sua obra no âmbito das artes, ou seja, sob um prisma sensível, foi que optei por trabalhar a partir de sua vida e obra nas turmas de Pedagogia através de uma proposta de aula teórico-prática de contrafluxo e resistência. [Re]apresentar Frida Khalo para as turmas de uma forma democrática, horizontal e, sobretudo, verossímil com sua ética e estética na História da Arte. Iniciamos o trabalho assistindo ao filme “Frida” (2003), direção de Julie Taymor6. E na semana seguinte, discutimos em web-aula sobre impressões, atravessamentos e provocações que o contato com o filme havia nos inspirados. Não é nosso objetivo fazer a crítica ou resumir o conteúdo do filme neste artigo. Portanto, elencamos abaixo alguns apontamentos sobre a reverberação dessa experiência nas turmas 2 e 3 do curso de Pedagogia. São eles: a descoberta de Frida Kahlo como artista; a maioria das estudantes teve contato prévio com a imagem da artista, porém, vinculada a outros referenciais distintos do seu fazer artístico; a identificação da relação entre Frida Kahlo e Diego Rivera como 5 PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. O drama biográfico “Frida” da cineasta estadunidense Julie Taymor, foi inspirado no livro de Hayden Herrera“Frida: a Biografia” (Hayden Herrera é historiadora, curadora e professora de história da arte, especializada em arte latino-americana). O filme “Frida” foi premiado em muitas categorias no Oscar (2003), Globo de Ouro (2003) e BAFTA (2003) pela excelência de roteiro em virtude das estratégias transparentes de diálogo com a vida e obra da pintora Frida Kahlo, que extrapolam, inclusive, a produção literária de sua biografia pela riqueza de detalhes. Porém, parte da crítica sobre o filme vê que certos assuntos, como a sua verdadeira militância no Partido Comunista Mexicano, não são devidamente explorados no roteiro. 6 796 Maternidades Plurais relacionamento abusivo; a problematização e revolta das estudantes acerca da traição de Diego Rivera7 com a irmã de Frida Kahlo; a descoberta de uma vida marcada por cirurgias, dores intensas no corpo e isolamentos sociais/confinamentos que serviram de motor para toda a criação artística de Frida; a problematização sobre os inúmeros abortos que acometeram a vida da artista, decorrência das sequelas causadas pelo acidente que sofrera aos 18 anos dentro do bonde, causando o impedimento da maternidade, a problematização sobre a liberdade sexual da artista e sobre sua orientação sexual (uma mulher bissexual); a percepção de uma narrativa que torna a criação artística de Frida Kahlo indissociável de sua vida. Pronto. Tínhamos, então, uma versão humanizada da artista Frida Kahlo: o tecido que nos reveste e os papéis sociais que foram culturalmente impostos ao nosso ser-mulher, dialogaram com o universo da artista e com suas lutas e resistências. Conversamos sobre relacionamentos abusivos, sobre aborto, sobre orientação sexual e sobre a produção artística de Frida — que foi vista pelas estudantes como uma espécie de relato pessoal de grande potência: uma forma de alento e alívio que marcaram profundamente a existência da artista. A ação de relato de si mesma, feita coletivamente, pode ser entendida como uma prática de reconhecimento. O encontro, em tempos de políticas de afastamento, “marcam um lugar de ruptura no horizonte da normatividade e implicitamente pede pela instituição de novas normas” 8. E aí está sua potência: encontrando (mesmo que em uma sala virtual) transpasso e sou transpassada pela existência das outras. Os relatos foram feitos e depois procuramos as conexões possíveis entre eles, dialogando. Conversamos sobre os isolamentos/confinamentos que acometeram a vida de Frida e também sobre o confinamento que tem operado de forma tão brusca na vida de todas nós. As mudanças profundas em nosso cotidiano. Arte e pandemia. Arte e isolamento. Arte e transformação. Diferentes matizes para o verbo “identificar”. Partimos para a proposta de um experimento artístico a partir das reverberações do diálogo por nós erguido. Optamos pela criação de instalações artísticas no espaço doméstico. Orientei as turmas a experimentarem parar por cerca de 5 minutos na frente de um dos espelhos da casa percebendo imagem e o que habita em nós, para além do reflexo cotidiano. Um exercício árduo de ultrapassar espelhos, prestando a devida atenção ao percurso para dentro de si. Regra: “sejam sinceras em suas peregrinações”. Ademais, seguimos movidas pela produção de autorretratos e escritos de Frida Kahlo em seu diário íntimo. Pensando nas relações fronteiriças dos espaços público/privado, arte/vida, atos éticos/formas estéticas que marcam a obravida de Frida Kahlo, convoco o pensamento da pesquisadora cênica 7 Diego Rivera foi reconhecido como um dos maiores pintores mexicanos. Casou-se muitas vezes e sempre mostrou dificuldades em ser leal em suas relações: um típico homem fruto de uma cultura machista e privilegiada. Teve um tumultuado e longo relacionamento com a pintora Frida Kahlo. Das inúmeras traições que marcaram o casamento de Frida com Diego, a mais conhecida aconteceu entre Diego e a irmã de Frida. 8 BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução: Rogério Bettoni. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p.37. 797 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Ileana Diéguez, que utiliza o corpus conceitual — arquitetônica — de Bakhtin para elaborar seu pensamento: Bakhtin propõe “a forma como forma arquitetônica”. Não como técnica: “A arquitetônica se dilata a partir da vida como ato estético”, sendo assim há um lidar ético até a forma arquitetônica do objeto estético. Ileana complementa citando mais uma vez Bakhtin: “Na forma me encontro comigo mesmo”9. Ileana Diéguez convoca o pensamento de Bahktin pensando em práticas artísticas que problematizam o tecido inter-humano das relações para pensar “fenômenos artísticos que propõem inversões paródicas do status quo”10. Desta forma, considerando que a feitura dos autorretratos se deu a partir da troca de experiências [tendo como motor os períodos de confinamento/isolamento social de Frida Kahlo], percebemos a dilatação da ideia de vida e da ideia de obra até a formação de sua arquitetônica, que aqui confluímos com a realização de nosso experimento artístico. Houve muita entrega e superação de desafios para as estudantes na composição dos autorretratos: para algumas, a dificuldade em lidar com o espelho por tanto tempo. Para outras, a provocação em relação aos moldes impostos ao gênero-mulher. Para a maioria, a limitação no uso de materiais para o processo criativo — uma vez que estamos vivendo uma redução de espaços e acessos. Um exercício de reinvenção de nós mesmas, de uma delicada percepção em tempos de isolamentos, pandemias, pavores, mudanças bruscas. Para o ensino das Artes, a comprovação de sua urgência de investigação por novos fluidos e brechas em tempos sem abraços, sem a potência que habita o ato, relato, feito “olhos nos olhos”. Para cada feitura de autorretrato, sugeri a criação de uma frase autoral que arriscasse sintetizar a experiência. E também uma assinatura. As orientações foram amalgamadas aos autorretratos. As estudantes enviaram fotos dos experimentos em nosso grupo de whatsapp. Autorretratos que, atualizados, são selfies11 artísticas, foto-performances. Fomos profundamente afetadas com a chegada de cada foto no grupo. Reagimos, compactuamos, comentamos, somamos afetos. Houve troca, houve parceria. Ademais, em nosso último encontro sobre Frida Kahlo, pontualmente juntas em nossa sala virtual (agora encharcada de vida, presenças em teia), abrimos a janela de texto da plataforma virtual e “A arquitetônica de Bakhtin é uma estrutura relacional, um sistema de relações personalizadas e variáveis, construídas por nossa interação com o mundo, determinada pelas posições e a partir das quais desenvolvemos as relações com os outros; é cronotópica, é construída pelo ato realizado em circunstâncias concretas, a partir de um ponto singular, que ao transformar-se, também modificaria o sentido do ato” (BAKHTIN apud DIÉGUEZ 1961. p,53) 9 10 DIÉGUEZ, Ileana. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Coleção Teoria Teatral Latino Americana. Uberlândia: EDUFU, 2011. 11 Selfie é uma palavra da língua inglesa e adotado também no Brasil. Significa o mesmo que autorretrato, ou seja, quando alguém faz uma foto de si própria utilizando um celular ou câmera digital. (Via Dicionário Popular disponível em: https://www.dicionariopopular.com/selfie/) 798 Maternidades Plurais criamos, juntas, um poema sobre a vivência acerca de Frida Kahlo, acerca de nossas lutas e expressividades. Uma por uma, frase por frase, tecemos juntas nosso testemunho. O “eu” sendo “nós”: numa espécie de acordo íntimo. “O autorretrato é uma expressão que expressa sua alma. Sua personalidade! Expressa tudo de dentro para fora. Um olhar que vai além, E que demonstra o que há dentro do nosso âmago. O autoretrato diz quem nós somos. Nos faz desenhar não só traços, mas nossos sentimentos numa sensação de amor consigo mesma que retrata as imperfeições como uma das maiores dádivas do ser humano. Ele é pessoal, mas pode incluir tantas coisas que nos surpreendemos com nós mesmas! Muitas vezes não sabemos dizer com palavras, então desenhamos aquilo que julgamos nossos defeitos físicos são nossas principais características. A arte é importante, É cheia de realidade, faz refletir. Expressamos através dela! Traz-nos a verdade Porque traz aquilo que muitas vezes é abafado por situações ou padrões. Nos leva a olhar a vida por outro ângulo... nos traz alegria! Nos faz expressar de várias formas. Até mesmo para aqueles mais tímidos! É a forma mais autêntica de representar a vida Nos da oportunidade de expressar um sentimento, que muitas vezes é lido apenas por nos mesmas. Nos proporciona viver sentimentos que nem sabíamos que tinha dentro de nós! Faça e viva sua arte Seja você mesma. Crie arte, seja a arte. Expresse a arte que esta dentro do seu íntimo! Jamais tente ignorar qualquer forma de arte, é impossível! É fatal... Não tenha medo de expressar o que esta sentindo ou vivenciando. A arte somos nós, ninguém pode nos tirar isso. Seja corajosa e crie sua arte, enfrente seus medos e mostre a você mesma que é capaz! Viver é uma arte!”12 12 Poema produzido coletivamente. Autoras: Sara Isabela, Mayra Gonçalves, Maiara Morais, Vitória Cristina, Gabriela Souza Gonçalves, Stephanie Julia, Roberta Lara, Gabriela Silveira, Thaiz Cantasini, Stefanie Azevedo, Patrícia, Yara e Elizângela Rodrigues Gomide (Turma 3). 799 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Instalação Artística feita no espaço doméstico pela estudante Rafaela Fonseca, “Autorretrato” (2020). Uma tela de computador, fria assim, convertida em uma tela viva num efêmero que acalentou as solitudes de nosso tempo. Sigamos. 800 Maternidades Plurais 132 Do presente, para quando for passado, ser lido por ti, no futuro Vanessa Clemente Cardoso1 Enquanto a minha filha morar na minha barriga Vou falar com ela como se Ela já tivesse mudado o mundo Ela vai sair de mim num tapete vermelho Totalmente munida do conhecimento De que é capaz de Tudo que ela quiser (Rupi Kaur 2) São 20h, dia 7 de julho e depois de dias exaustivos, estou na sala, com o computador no colo tentando escrever este relato e ao mesmo tempo respondendo mensagens do celular. Meu esposo está na cozinha preparando um lanche. Nossa filha está ao meu lado, colocando um sapato maior que o seu pé, com a mochila repleta de brinquedos e livros, desfilando com o discurso de que está indo para a escola. O percurso não é o mesmo que se fazia pelas ruas da cidade, em meio ao trânsito e à ânsia de não nos atrasarmos diante de tantos compromissos, foi substituído entre a sala e a cozinha de um pequeno apartamento, ambientes ocupados por brinquedos espalhados pelo chão. Vestígios de infância. Faz tempo que me dei a liberdade de não me cobrar tanto pela organização. 1 Mãe, feminista e sonhadora. Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG - 2010), com mestrado (2013) e doutorado (2019), em História, defendidos no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, na Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades, na Linha de Pesquisa: Fronteiras, Interculturalidades e Ensino de História. Tem experiência nas áreas de História e Educação. Em pesquisa científica, trabalha mais especificamente nos temas: Ensino de História, História da Educação, historiografia brasileira, livro didático, ditadura civil-militar e maternidade. É criadora e administradora do grupo Mamães na Pósgraduação e da página Mães na Universidade. Ajudou a fundar o grupo do Coletivo Nacional de Mães na Universidade e o Coletivo de Mães da UFG. Participa como pesquisadora do GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais (UFG). Atualmente atua como professora de História e História da Arte no Ensino Básico. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6657917763682883 2 KAUR, Rupi. O que o sol faz com as flores. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018, p. 237. 801 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Os dias se passaram e a única coisa que consegui concluir foi um único parágrafo. Hoje são 09 de julho e se tem algo que não combina com a maternidade são prazos. Estou aqui, novamente tentando escrever, e a minha filha sempre encontra como lugar predileto da casa, aquele que nós estamos. Ser mãe também é ser moradia. Entre as ideias que vagam na minha mente e a necessidade de comunicar o que sinto, sons interrompem a minha narrativa, são as vozes da televisão na sala, os brinquedos caindo no chão e as palavras da minha filha demandando por atenção. De repente sou surpreendida pelas mãos pequeninas, gordinhas e gostosas no meu rosto me acariciando. É a forma mais pura de dizer que sente saudade. Te amo! Parei, suspirei e tentei vislumbrar a cena. Senti os momentos passando rapidamente diante da minha incapacidade de tê-los por completo em mim. É como se nada fosse vivenciado por inteiro, nem a escrita e nem a maternidade. Culpa! Culpa que nasce com a mãe com o nascimento do filho. Deveria ser assim? Parei, abracei a minha filha, disse que a amava, tentei arrumar o brinquedo quebrado e voltei para o computador. O retorno é doloroso, mas é necessário, por ela e por mim. Nem sempre foi assim, eu já existia antes de ser mãe e antes de ser cientista. Já existia antes de pandemia e antes de me tornar mulher. A realidade é que a maternidade é um processo, construção que nos traz desconstrução, renascimento e culpa. Aquela mulher que existia antes da maternidade se foi, constrói-se cotidianamente como um caleidoscópio e é tão dolorido desfazer, dizer adeus e refazer. Eu renasço em cada prática, culpa, cobrança, prazo perdido, texto enviado, aula ministrada, beijinhos no rosto, fralda trocada, abraço apertado, boa noite mamãe, eu te amo, gestos de amor... Vivencio uma revolução constante, inquietante, incerta, gostosa e incomparável. Essa revolução me fez evolução. Aprendi que de certo e definitivo no tempo, a única coisa que posso carregar é o AMOR. Sou melhor, cansada, mas ainda assim, um ser humano muito melhor. Universidade por que, pra quê e pra quem? Engravidei em 2016, durante o segundo ano do doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás. Foi uma gravidez muito desejada, fazia um bom tempo que eu queria ser mãe. Uma das primeiras pessoas para quem liguei foi a minha orientadora profa. Dra. Sônia Maria de Magalhães, que me acolheu desde o primeiro momento com palavras honestas e carinhosas. Perguntei se eu ia conseguir e ela disse: “Claro que sim!”. Durante a gravidez, concluí o meu estágio de docência e escrevi apenas um capítulo da minha tese. Quando a minha filha nasceu, levei meses para conseguir ler um artigo. Era simplesmente impossível. As pessoas não te falam a verdade sobre o quanto os primeiros momentos da maternidade são difíceis. Eu costumo dizer que nos primeiros meses nós tentamos sobreviver. Aqui éramos somente eu e o meu esposo. Ele sempre foi muito presente e só por isso já tive um imenso privilégio. Eu não conseguia ler pelo celular e, mesmo quando tentei, estava tão cansada que não entendia nada. Muitas vezes chorei, chorei e chorei. Acreditava que seria impossível terminar a tese e tinha medo, pois eu era bolsista CAPES. Os meses foram se passando e com o tempo fui conseguindo estudar, pouco, mas ainda assim, era um avanço. Conforme ela foi crescendo, ficava mais com o pai e quando ele trabalhava, eu ficava com ela no colchão no chão, tentando ler enquanto ela engatinhava 802 Maternidades Plurais pelo quarto. Muitas vezes tentava estudar na madrugada, mas bebês não dormem a noite toda. A privação de sono é enlouquecedora. Eu tinha uma lista imensa de prazos para cumprir, e uma vontade maior ainda de aproveitar cada segundo da infância da minha filha. Confesso que muitas vezes tive vontade de desaparecer, desistir das dores e cobranças... O fato é que às vezes precisamos valorizar nossas conquistas, elas foram difíceis, terrivelmente insanas, doloridas, amargas e prazerosas. Meus pais concluíram o ensino até a quarta série. Cresceram na roça, os cabos das enxadas eram seus melhores amigos. Eu não! Eu pude estudar em boas escolas, não tive que trabalhar, acordava e tinha café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. Tive estojos de lápis de cor. Minha mãe não! Seus lápis eram guardados em uma caixinha de linhas. Lembro de ela contar que bateu em coleguinha da escola porque ele ria das suas roupas e do seu "estojo". Ela queria ser pediatra. Teve três filhos. Não concluiu os estudos. Cresci ouvindo sobre o seu sonho com a medicina. O meu pai também veio de uma vida paupérrima, queria ser engenheiro, comeu o primeiro pão com manteiga de um coleguinha da escola e foi chamado pela professora na frente da turma, pois: "João, você está proibido de vir para a escola com essa blusa velha e curta que mostra a barriga". O fato é que ele veio de uma família longa, de 9 filhos, na qual as roupas eram repassadas. Os privilégios que eles não tiveram, me deram. Cresci ouvindo do meu pai que estudar era a salvação da lavoura! Não vejo expressão melhor! Eu tinha que tentar. Então, como eu consegui? Como eu consegui? Como eu consegui? Sabe aquele martelo que afunda o prego ou o seu dedo? É isso, tive que mirar no prego! E eu tive privilégios para conseguir mirar e acertar no prego. Consegui concluir essa etapa porque não estive só, tive apoio. Puxa vida! Sou privilegiada e vim aqui falar disso? É preciso reconhecer privilégios para lutar contra a desigualdade. Quantas mães estão sozinhas nesse momento, estraçalhadas, sem nenhuma alternativa, entre a cruz e a espada e leem o tempo todo que pessoas conseguiram porque tiveram apoio! E quem não tem? Quem não tem ninguém? É disso que precisamos falar! Mesmo achando que eu estava em uma situação difícil, ainda assim possuía privilégios. Para a mãe solo, preta, indígena, pobre, que o pai do filho sumiu no mundo, não paga pensão... para a mãe que não tem apoio de ninguém... Vocês precisam saber que nessa sociedade patriarcal, machista, misógina, elitista, branca, homofóbica, racista e com raras políticas públicas destinadas para mães estudantes, muitas vezes o ÚNICO apoio que muitas mães vão ter é da amiga, da vizinha, da colega de quarto, da professora, ou seja, outras mulheres. Tem gente que terá somente o SEU apoio. E tem gente que não terá o apoio de ninguém. Foi nessa busca por identificação com outras mulheres que vivenciavam problemas relacionados à maternidade e a produção científica que criei no dia 11 de novembro de 2017, no Facebook, o grupo Mamães na Pós-Graduação. Atualmente ele tem mais de 2000 membras que postam notícias sobre maternidade, ciência, tiram dúvidas, conversam e comunicam quando conseguem concluir uma fase na vida acadêmica. São relatos potentes, fortes, emocionantes e desafiadores. Entretanto, mães cientistas não são bem vistas no meio acadêmico, de tal modo que entre relatos prazerosos, temos narrativas extremamente tristes que revelam o quão cruel e hostil pode ser esse ambiente pra nós. 803 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Nesse contexto de discriminação, em 2018, teve um caso envolvendo uma mãe estudante que gerou muita comoção, não apenas nas mães do grupo Mamães na Pós-Graduação, mas também no grupo Bolsistas Capes. Nele, muitas cientistas passaram a postar fotos e a contarem suas conquistas acadêmicas sendo mães e estudantes/professoras. A historiadora e mãe, Fernanda Moura, que atualmente é doutoranda na UFF, me convidou para ajudá-la a administrar uma página recém-criada que tinha como objetivo reunir todos esses relatos que estavam espalhados em grupos fechados como o Bolsista Capes e Mamães na Pós-Graduação. Aceitei o convite e assim passamos a pedir autorização para a publicação das histórias que tomávamos conhecimento pelos grupos ou que nos eram enviadas no privado pelas próprias mães estudantes/professoras/técnicas administrativas. Foram mais de 200 relatos pré-agendados e publicados em um curto espaço de tempo. A tentativa era dar visibilidade para o fato de que nós, mães, existimos e que vamos ocupar esses espaços. No mesmo ano, no dia 08 de junho, o Coletivo de Mães da UFG foi criado por alunas da graduação, mestrado e doutorado dos cursos de Química, Antropologia Social, Arte Cênicas, Filosofia, História e por professoras e técnicas administrativas. Tenho imensa admiração e respeito pelas mães que o compõe e torço para que o coletivo consolide muitas conquistas. As questões sobre maternidade e universidade me colocaram em contato com mães de várias partes do Brasil, de tal modo que passamos a dialogar sobre ações que outros coletivos tinham realizado. Nesse sentido, tive a ideia de criar um grupo no facebook para reunir as mães que estavam em outros coletivos para compartilharem informações, discutirem estratégias de atuação e repassarem os meios utilizados para os demais coletivos, facilitando o processo o processo da luta, sistematizando as ações a nível nacional. Foi assim que nasceu o grupo no facebook do Coletivo Nacional de Mães na Universidade, no dia 02 de julho de 2018. O Coletivo, embora tivesse essa ideia de integração e comunicação, ficava muito parado, até que a mãe universitária Natacha Barbosa criou um grupo no Whatsapp. A partir da ação da Natacha, a comunicação ficou mais forte. Assim, o Coletivo existe em dois espaços, atualmente no Facebook, com quase 300 membras, e no Whatsapp de forma mais restrita, entretanto mais atuante. O Coletivo não tem liderança, é autogerido e está crescendo e amadurecendo. Eu sou uma membra, como todas as outras mães, e torço muito para que ele cresça, se organize e traga conquistas efetivas. Atualmente, uma onda tem levado mulheres mães cientistas a denunciarem o machismo, o patriarcado, o elitismo, a misoginia e o assédio perpetrado contra aquelas que buscam conciliar a maternidade com a formação científica. Sabemos que ser mãe é um ato subversivo, trata-se de uma afronta ao establishment universitário. As coisas já estão dadas e quem é você para querer modificálas? Mulher? Mãe? Pobre? Negra? São exatamente as minorias que são jogadas para as margens e que fique claro, não ousem ultrapassar o limite! O recado é dado no assédio, nas ameaças de cortes de bolsas, na recusa da licença-maternidade, na intromissão nas escolhas pessoais, na intimidação, nas piadinhas, na falta de creches, na inexistência de fraldários, na ausência de licença-paternidade que coloca criação sob o cuidado único e exclusivo da mulher, nas avaliações de produtividade, nos editais que desconsideram a realidade da mãe e 804 Maternidades Plurais nas leis que não são criadas ou aprovadas. Atualmente temos duas leis que pensam na questão maternidade e ensino. A primeira, Lei Federal nº 6.202, aprovada em 1975 e a segunda Lei nº 13.536/2017, aprovada em 2017. Há ainda em tramitação desde 2018, o Projeto de Lei da Câmara nº 12, de 2018 e o Projeto de Lei do Senado nº 185, de 2018, que visa estender a licença-maternidade para mães não bolsistas. Ainda há muito para ser construído e conquistado. Não somos invisíveis, somos deliberadamente ignoradas. Existimos marginalizadas. Somos condenadas por sermos mulheres, forçadas a escolhermos entre a carreira e a maternidade, como se uma impossibilitasse a outra. São comuns relatos nos grupos de mães cientistas dos quais participo sobre assédio. Professores que não dão credibilidade para mães cientistas, mulheres que sofreram ameaças de terem suas bolsas de pesquisas cortadas ou de nãos serem mais orientadas caso engravidem. Mulheres que foram questionadas em momento de entrevistas em processos seletivos se teriam filhos. Ora, cientistas estão sendo alijadas da academia porque são mães. Que tipo de universidade queremos para o futuro? Inclusiva ou excludente? Além da estrutura física, é preciso superar esse modelo imposto. Precisamos de políticas públicas efetivas e de uma rede de apoio. Há um provérbio africano que sabiamente afirma que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. É isso que as mães na universidade anseiam, uma aldeia que abrace suas dores, suas lutas, seus medos, seus receios e que crie alicerces para conquistarem seus sonhos. Nesse sentido, a criação de coletivos é muito importante. Vejo com um espaço para empatia, reconhecimento, sororidade, debate, diálogo, construção e luta. Em cada história que li nas páginas, nos grupos, nos coletivos e também para a composição deste livro, encontrei trajetórias de lutas, vivências únicas, duras, amargas, doces e dignas de filmes, daqueles que se aprecia com o coração nos olhos e lenços nas mãos. Repita comigo: a minha luta foi árdua e eu preciso saber que qualquer pequeno passo é uma grande vitória. Somos incríveis e muito melhores juntas. Pandemia, perda, luto e luta. 805 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) É muito comum as pessoas indagarem qual foi o motivo ou percurso que te levou a sua profissão. Essas fotos representam grande parte da minha escolha, é um lindo pedaço da minha vida. Na primeira, do lado esquerdo, você pode observar meus avós paternos. José nasceu em 1924, no período entreguerras, o pai dele no final do século XIX, após a abolição da escravidão no Brasil. A mãe dele, minha bisavó, perdeu a mãe ainda muito jovem e foi criada por uma mulher muito culta. Um dos sobrenomes que a minha bisavó recebeu foi Sperssola. Ninguém sabe a origem ou a grafia correta, mas recentemente descobri que Sperssola assemelha-se a grafia de Aperssola, que em latim significa sozinho(a). Não vejo nada mais significativo e dolorido do que a solidão para aquela que perde a mãe tão jovem. A minha avó paterna, Maria, nasceu no contexto da Quebra da Bolsa de Nova York e a mãe dela, minha bisavó, trabalhou na lavoura de café, no período da República Café com Leite. Ficou cega jovem, viúva também, e teve que trabalhar para sustentar as três filhas. Não estudou. O meu bisavó, faleceu aos 38 anos, trabalhou na lavoura até o dia da sua partida. Cresci ouvindo a minha avó lamentar a falta que o pai fez em sua vida. Ela já conhecia a narrativa da perda e da saudade, seu avô, meu tataravô, foi deixado na “roda dos enjeitados”, na Itália, e recebeu seu sobrenome Castrucci de uma freira. Laços que se rompem e que se unem pelo destino, pelas dificuldades e pela morte. Minha avó paterna aprendeu a escrever com muito custo e sempre errou as palavras. Tenho cartas dela com "casa" escrita com Z e "saudade" com L. A grafia correta é privilégio, coisa que não puderam ter. Eu nunca vi a minha avó de calça ou bermuda. Ela também nunca pintou o cabelo. Para fazer arroz, catava cada grão em uma bacia, mesmo que eu falasse: "Vó, os grãos já foram selecionados na fábrica". Nunca dirigiu ou andou de bicicleta. Quantos privilégios eu tenho e ela nunca pode ter. Meu avô foi verdureiro, minha avó lavadeira e dona de casa. Minha infância foi assim, rodeada de primos e de estórias que eles contavam sobre a juventude. Convivi menos com os meus avós maternos, Antônio e Maria, mas recordo que ainda na infância, foi na casa deles que eu vi pela primeira vez um monóculo. Além disso, eu achava engraçado o fato do meu avô ter um carro azul royal e ter o portão pintado da mesma cor. Pedreiro por longos anos da vida, construiu a sua própria casa, sem faculdade, sem curso de arquitetura ou engenharia. Sua moradia está lá, em pé! Com os muros na cor laranja e com o carro azul na garagem. A minha avó materna sempre foi muito bonitinha, pois é pequenina e tem um coração muito puro. Lembro que quando recebeu o dinheiro da herança da minha bisavó, coisa muito pouca, correu para o comércio e comprou um papai noel e um passarinho de brinquedo que cantava. Presentes que ela teve a liberdade e felicidade de se dar. Sempre de vestidos floridos na altura do joelho, ela adorava pintar os cabelos de loiro e as unhas de rosa. Com o passar do tempo, abandonou o hábito. Todas as vezes que eu faço visitas, ela me leva para o quarto e abre uma gaveta repleta de panos de prato e tapetes que compra na “cidade” e me presenteia como se estivesse me dando algo ilegal. Minha avó cresceu na roça, e mesmo após décadas morando no ambiente urbano, se refere ao centro como “cidade”, é como se ela ainda habitasse o campo. Tradição e memória. 806 Maternidades Plurais Meus avós paternos tiveram nove filhos e cresci com eles falando alegremente da conquista que era não ter perdido nenhum para a morte. Meus avós maternos tiveram cinco filhos. Não tiveram a mesma sorte. Perderam dois ainda pequenos. Em uma das últimas visitas, me confessaram que os rostos dos filhos e a saudade nunca são curados. São as dores da vida, que nos seguem até o fim. Uma das coisas que a pandemia me impediu, foi a possibilidade de visitá-los nas férias. Espero que tudo passe e que eu possa novamente abraçá-los para dizer que os amo. José, Antônio e Marias. Nomes comuns, brasileiros comuns. Nenhum completou os estudos. Foi assim que me interessei pela ciência histórica. Eu queria compreender o mundo que eles viveram e assim entender o meu. Minhas aulas possuem essa referência. Em 2011, José partiu; no dia 06 de abril de 2020, Maria, minha avó paterna, também. No meio da pandemia, sem chances de visitas e com um velório rápido. Chorei por culpa, por saudade e por medo do “novo normal”. Minha filha não pôde conhecê-los. Das Marias, herdamos a pequenez e a grandeza. Mamãe, eu tô com saudade de você! Eu defendi a minha tese de doutorado em junho de 2019 e iniciei uma segunda graduação EAD que tento concluir no meio da pandemia. O fato é que nós saímos e retornamos para a universidade, porque a ciência não sai da gente. E nessa loucura, preciso cuidar de casa, família e também trabalhar. Professores e escolas foram surpreendidos com a notícia de que as aulas seriam suspensas. Lápis, giz, quadro, apagadores e canetão foram substituídos rapidamente por aulas remotas via internet. A maioria dos professores nunca tinham dado uma aula sequer online, eu era um deles. O medo bateu à porta, tive que rapidamente conhecer plataformas e aplicativos que eu nunca tinha ouvido falar. Aulas que antes poderiam ser facilmente ministradas com giz e livros, agora necessitavam de roteiros, slides, gravações, ambiente adequado na minha casa, iluminação, tecnologia e uma internet com boa qualidade. 807 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) O trabalho foi tomando o meu cotidiano. Não sou boa com tecnologia, tive que assistir tutoriais, treinar, errar, treinar novamente, comprar um fone de ouvido com melhor qualidade e buscar inovação. Passei a dormir muito menos, nunca antes da meia noite. Alguns professores tiveram mais facilidade; outros, maior dificuldade; oceanos diferentes, barcos diferentes. Passei a ver cada vez menos o meu esposo e a minha filha. Dentro de casa, estava a cada dia mais isolada no quarto tentando me resolver com a tecnologia e com a internet que muitas vezes estava péssima. Ouvi muito choro e uma reclamação constante: “Mamãe, eu tô com saudade de você!”. Para confessar, até eu tive saudade de mim! Se eu não tivesse o apoio do meu esposo e parceiro de vida, seria impossível. Diante desse novo que muitos colocam como “normal”, tento retomar para a minha família. Confesso que para isso tenho visto menos televisão e lido menos notícias. Estamos perdendo memórias, amores, risadas, sonhos, mães, pais, filhos (as), avôs e avós, famílias... histórias. Silêncio por eles. Oração pelos que aqui ainda estão. Busco forças na fé em Deus e refúgio com os meus. É madrugada e num baú florido, macio e recheado de objetos, Bianca encontrou uma pequena lanterna. O teto do nosso quarto é repleto de estrelas que brilham no escuro. O pai pegou a lanterna e as iluminou de tal modo que o ambiente foi resplandecendo para nós. Depois, as estrelas do teto abriram espaço para um teatro de sombras. Com as mãos, meu esposo fez uma grande aranha que parecia se aproximar cada vez mais de nós. Bianca amou e, intrépida como é, queria recriar o animal e iluminar as estrelas. Brincamos, sorrimos e a vida ficou um pouco mais leve. Desliguei a lanterna e sussurrei em seu ouvido: “Shiuuuuu, é hora de dormir. Te amo infinito, minha filha. Você é maravilhoooooosa”. Ela me abraçou e disse: “Hummm... que gostoso que é a mamãe! Te amo, mamãe, pá tudo, pá sempre, infinito! Você é maravilhoooooosa”. Recordei de uma frase dita pelo meu pai, durante um dos nossos longos telefonemas na quarentena: “A vida é como um sonho que não cabe no sono”. Tive a sensação de que ali era o melhor momento e lugar onde eu poderia estar. Da vida, quero levar apenas o amor. Do presente, para quando for passado, ser lido por ti, Bianca do futuro. 808 Maternidades Plurais 133 “Relatos e experiências”: maternidade e pós-graduação em tempos de distanciamento social Vanessa Fonte Oliveira1 Estamos caminhando para o quarto mês em isolamento social. Desde março de 2020, permanecemos em casa enfrentando adversidades e vivenciando diversas sensações. Nesses últimos meses, acompanhamos diariamente o avanço da pandemia da Covid-19, que apresenta aspectos clínicos marcados por alterações de quadros assintomáticas a infecções respiratórias gravíssimas. Desse modo, em consequência da disseminação da doença infecciosa causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, atualmente nos encontramos em distanciamento social. Contudo, essa realidade não é exclusiva à grande parte dos brasileiros, muitas pessoas não possuem o privilégio de estar em casa, alguns não possuem residências e vivem vulneráveis em situação de rua, outros necessitam trabalhar, para levar o sustento aos seus familiares. Diante disso, é nesse cenário que meus pais se encontram, meu pai desempregado desde setembro de 2018. Após dois pedidos de aposentadoria negados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), começou a atuar como autônomo. Por um período curto, permaneceu em casa e cumpriu as medidas de isolamento, porém, com a finalidade de sobreviver e com o auxílio emergencial negado, se viu obrigado a retornar ao trabalho aos seus sessenta anos. Minha mãe que atua nos serviços gerais recebe um salário mínimo. Incialmente, cumpriu o isolamento em razão de usufruir de suas férias, porém, a empresa retornou com o percentual de funcionários reduzidos, e assim teve um corte alto em seu salário, visto que trabalha em um comércio em bairro periférico. Com isso, regressou ao trabalho. Minha família, pais e irmãos residem no coração do Brasil, na cidade de Goiânia, em Goiás, e atualmente eu estou na região sul em Santa Catarina. São cerca de mil e quinhentos quilômetros de distância, e para aliviar a dor no coração, nos últimos meses, conversamos diariamente através de 1 Mãe de Terena Sofia Fonte Ribeiro. Licenciada em Ciências Sociais (2016). Universidade Federal de Goiás. Graduada em Pedagogia (2018). Universidade Vale do Rio Doce. Mestra em Antropologia Social (2019). Programa de Pósgraduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de Goiás. Doutoranda em Antropologia Social. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de Santa Catarina. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5591869576537219 809 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) trocas de mensagens pelo aplicativo para celular WhatsApp, inclusive, quando é possível realizamos vídeo chamadas, para tentar matar um pouco a saudade. As perguntas são sempre as mesmas, está tudo bem? Como estão os casos de Covid-19? Quais são as medidas que a cidade vem adotando, está tendo sucesso? As pessoas estão respeitando o distanciamento social? Etc... Questões, indagações e conclusões marcadas por sentimentos de apreensão, medo, angústia, ansiedade, temor, expectativas, esperança, fé e confiança. O avanço e a disseminação do coronavírus são assuntos mais comentados, e que atualmente vêm ocasionando muitos transtornos. Nessa perspectiva, contextualizando o texto, este ensaio tem por objetivo partilhar um breve relato sobre a minha experiência com a maternidade articulada à vivência universitária de uma pós-graduanda em tempos de distanciamento social. Coronavírus e o distanciamento social Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)2 (2020), nos últimos meses, estamos vivenciando uma emergência de saúde pública, ocasionada pelo alto contágio da Covid-19. Também conhecido como novo coronavírus, a doença foi detectada na cidade de Wuhan na China em dezembro de 2019 e se espalhou rapidamente. No momento em que ocorre a propagação de uma doença com uma alta transmissão, observase o avanço e a consolidação de uma pandemia3. Dessa forma, OMS declarou oficialmente, no dia 11 de março de 2020, que a Covid-19 se caracteriza como uma pandemia, sendo que, até o momento no mundo, já foram contaminados 11.994.182 e a doença levou ao óbito 547.9314 pessoas. A Covid-19 é transmitida por meio do contato por espirro, tosse, catarro, gotículas de saliva, superfícies, objetos etc., que estão contaminados, sendo assim, sem os devidos cuidados de higiene, o indivíduo leva as mãos à boca, olhos e nariz, em que acontece o contágio. O coronavírus é capaz de provocar quadros clínicos assintomáticos e graves infecções respiratórias, os sintomas variam de tosse, febre, dor de garganta, coriza, falta de ar que podem ocasionar resfriados e/ou pneumonias graves. Até o momento, não existe nenhum remédio específico para o tratamento do coronavírus. Vários países estão desenvolvendo meios de combate à doença, através da criação de medicamentos e vacinas. Considerando esse contexto, a OMS estabeleceu recomendações para a prevenção do contágio da Covid-19. Todas as orientações permeiam medidas de higiene, como: cobrir a boca e o nariz ao espirrar e tossir, evitar tocar a face, lavar as mãos com água e sabão ou higienizar com álcool em 2 OMS. Organização Mundial da Saúde. 2020. Disponível em: https://www.who.int/. Acesso: 31 mai 2020. 3 Momento em que uma epidemia se espalha rapidamente com alta transmissão. 4 OPAS. Organização Pan-Americana da Saúde. 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/. Acesso: 31 mai 2020. 810 Maternidades Plurais gel 70%, preservar os ambientes ventilados e limpos, evitar compartilhar objetos de uso pessoal e higienizá-los com frequência. Além disso, sempre utilizar máscaras e manter a distância mínima de cerca de um metro de qualquer pessoa. Nessa perspectiva, aconselha-se permanecer em casa, para evitar aglomerações. Segunda a OMS (2020), com a inexistência de um medicamento específico, a melhor forma de se prevenir da doença é evitar o contato, portanto, recomenda-se permanecer em isolamento, adotando as medidas de higiene e distanciamento social para se proteger do contágio da Covid-19. Nesse sentido, várias cidades brasileiras adotaram as medidas que consideraram as mais cabíveis de acordo com as suas realidades, tais como a quarentena5, o isolamento social e/ou lockdown6. Desse modo, por observarem o rápido crescimento do contágio da doença, muitas cidades adotaram regras rígidas e obrigatórias, sendo o distanciamento social o mais utilizado. O isolamento social permeia pacientes diagnosticados, ou/e que aguardam o resultado do exame de contaminação e/ou que tenha tido contato direto com alguma pessoa infectada, sendo assim, com as pessoas em casa, sem circulação e/ou aglomeração, funciona-se apenas serviços essenciais à sociedade. Cabe destacar que o isolamento social também é conhecido como distanciamento social e pode ser vertical ou horizontal7. Ao observar a realidade materna brasileira em tempos de distanciamento social, notam-se inúmeras experiências vivenciadas por questões sociais, históricas, culturais e econômicas. De fato, é um grande desafio. Dessa forma, a proposta de reflexão do texto parte do objetivo em retratar brevemente minha experiência materna, marcada pelas dificuldades de uma pós-graduação em tempos de distanciamento social. Maternidade pós-graduação e o distanciamento social Prosseguir a carreira acadêmica e realizar a tão sonhada pós-graduação, como ingressar aos cursos de mestrado e ao doutorado, são caminhos difíceis para a grande maioria dos estudantes. Empenhados em realizar a ciência brasileira e, possivelmente, no futuro tornarem-se renomados cientistas ou docentes, eles se esforçam a longas horas de trabalho, estudo e pesquisa, porém, lamentavelmente não recebem a devida valorização social. 5 Refere-se a uma medida de restrição, no período de quarenta dias. Restringindo a circulação de pessoas contaminadas, além disso, visibilizam casos assintomáticos da doença, tornarem-se sintomáticos, para serem identificados. 6 É uma medida imposta, que se consolida por regras mais rígidas e obrigatórias, quando verificam que o isolamento social ou quarentena, não estão sendo suficientes para barrar o avanço da doença. 7 O isolamento vertical é limitado apenas a um grupo específico e o isolamento horizontal não há limitações de grupos e todos devem permanecer em casa. 811 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Essa caminhada pode ser visivelmente individualizada, marcada por longas horas de escrita e dedicação à ciência. Mas, como proceder no momento em que uma pós-graduanda vivencia os processos da maternidade? Para muitas pessoas, é necessário realizar escolhas fundamentais, como, por exemplo: concentrar-se inteiramente aos cuidados e à educação de suas crianças ou dedicar exclusivamente à pesquisa de mestrado/doutorado e abrir mão da criação dos filhos. Invisivelmente, não encaram a possibilidade de conciliar a maternidade e a universidade, de modo em que se apresenta como dois mundos diferentes. Ao iniciar a pós-graduação, assina-se o termo de compromisso e os documentos referentes à bolsa de dedicação exclusiva (o processo ocorre apenas com a existência de bolsas disponíveis), apoiada pelos recursos de financiamento das instituições de fomento à pesquisa, tais como: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nos documentos, não existem cláusulas que impedem uma pós-graduanda de engravidar ou exercer a maternidade no período do contrato. Entretanto, ser mãe e pós-graduanda pode se tornar um problema. O mestrado e o doutorado são marcados por pesquisas, disciplinas, estágios, produções científicas, apresentações em eventos, seminários, congressos etc... Inúmeras atividades, que, para serem realizadas em um curto período de tempo, necessitam empenho e dedicação. Mulheres, mães são pressionadas por seus/suas orientadores/as e pelos Programas de Pós-Graduação a deixarem suas crianças e dedicarem-se exclusivamente à pesquisa e, se não for possível, desistir da pós-graduação, retornando em outro momento quando for plausível se dedicar unicamente a pesquisa, ou seja, talvez nunca. No entanto, a realidade nos demonstra a existência de cientistas mães que conciliam a maternidade, o trabalho, a pesquisa, o estudo e outras atividades, a fim de se realizar profissionalmente. Cabe destacar a existência de Programas de Pós-Graduação e docentes de departamento que apoiam os processos maternais vivenciados por mães estudantes, porém a temática ainda é encarada como um ‘tabu acadêmico’. Conciliar a universidade e os processos maternais é um desafio que se desencadeou no início da minha carreira acadêmica. Diferentemente de mulheres que se tornam mães na pós-graduação, faço parte estatisticamente das mulheres jovens que engravidaram cursando a graduação. Vivenciei os processos gestacionais no último ano da graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás - UFG, que, consequentemente, se estendeu por mais um ano. Dessa forma, por intermédio das minhas experiências, despertei o interesse em pesquisar no mestrado8 os processos de gravidez e maternidade de jovens em Goiânia-Goiás. Durante essa caminhada, nos últimos dois anos, notei a necessidade em abordar a temática da maternidade universitária. Assim, esse momento, no doutorado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, estou pesquisando sobre a Dissertação: “Meninas de Luz: Redes de afeto, desafios e experiências na gravidez e maternidade” realizada no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás (UFG) (2019). 8 812 Maternidades Plurais permanência de mães negras universitárias, a fim de compreender as adversidades vivenciadas por mulheres condicionadas a duplas e triplas condições. Em março de 2020, completou um ano de mudança para Santa Catarina, lamentavelmente, neste período iniciamos o distanciamento social em consequência da Covid-19. A cidade de Florianópolis adotou o isolamento social em março, suspendendo por tempo indeterminado várias atividades, dentre elas as aulas presenciais em todos os níveis educacionais. Antes do início da pandemia da Covid-19, minha filha frequentava, no período matutino, o Núcleo de Educação Infantil Municipal (NEIM), no qual, desde a mudança para Florianópolis, aguardamos, por aproximadamente quatro meses, por uma vaga disponível, que só foi possível no segundo semestre de 2019. Enquanto ela estava no NEIM, regularmente me dedicava às atividades de estudo e pesquisa do doutorado. Contudo, anteriormente no primeiro semestre, sem rede de apoio, minha filha me acompanhou ativamente em todos os processos acadêmicos. Nesse contexto, apesar das inúmeras dificuldades, seu pai se mudou para Florianópolis para contribuir em conjunto no seu intenso cuidado. Diante desse cenário, nos últimos meses, com o avanço da Covid-19, com as implementações das medidas instauradas, como o distanciamento social e aulas suspensas em todos os níveis, o andamento da minha pesquisa de doutorado ficou comprometido. Durante a semana, procuro estabelecer uma rotina fixa, pelo menos no período matutino, buscando algum equilíbrio. Apesar das dificuldades, tento dedicar diariamente duas horas à pesquisa do doutorado, especificamente na escrita do projeto para qualificação. Anteriormente à pandemia, minha produção já era limitada. Com isso, nesses três meses, as coisas se declinaram bastante, porém, o desafio maior é se reinventar cotidianamente para enfrentar esse período pandêmico. Como minha filha ainda está na educação básica, não foi implementado o ensino à distância, por isso, conjuntamente buscamos estabelecer uma rotina diária para realizar as atividades do dia a dia e consumir um pouco de sua energia. Entretanto, existem certas adversidades que nos impedem de realizar nossas atividades cotidianas com êxito. Dessa forma, a possibilidade de se reinventar está sempre presente. A primeira dessas adversidades é a estrutura física, o espaço em que residimos é muito pequeno, são apenas dois cômodos (sala/cozinha e quarto) e uma estreita varanda. Além disso, moramos em conjunto com mais dez famílias. A segunda questão gira em torno da convivência. O contexto pandêmico afetou todas as famílias, e com o distanciamento social, o número de pessoas em casa triplicou, assim, certas dificuldades tornaram-se evidentes, tais como: a efetivação das medidas básicas de higiene em um ambiente coletivo e a prática consolidada de um verdadeiro isolamento social. Ademais, os problemas maiores variam da ausência de energia e internet à falta de água, em consequência da escassez de chuva em Santa Catarina. Desde o início do isolamento social, a falta de água acontecia uma vez na semana, atualmente, isso ocorre todas as tardes. Dessa maneira, além de estabelecermos a redução do consumo, guardamos litros de água em decorrência dos inúmeros apuros. 813 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) É importante ressaltar que permanecer por três meses em um espaço limitado, com a falta de água e luz, em companhia de uma criança de quatro anos é bem desafiador. Cotidianamente, é necessário se reinventar, por exemplo, itens recicláveis, como caixas e papéis, tornam-se jogos; nas refeições realizo criações artísticas e a sala/cozinha transforma-se em um restaurante; o pisca pisca, que era utilizado no natal, converte-se em um item de decoração da ‘festa de pijama’. Assim, nosso dia a dia, é marcado pela imaginação e a criatividade, em alguns momentos sou amiga, irmã, cachorro, professora, tia, princesa, robô, mamãe, etc. Contudo, nem todos os nossos dias são marcados de alegrias e brincadeiras, o fato de apenas estar em casa influencia certas mudanças emocionais. Além disso, é bem cansativo se dedicar sem interrupções aos processos maternais. É interessante ressaltar que, apesar dos momentos difíceis em manter-se em casa, é um privilégio estar em isolamento. Enquanto permanecemos em Florianópolis, vivenciando dificuldades de adaptação domiciliares, meus pais e familiares estão em Goiânia, trabalhando e exercendo suas funções normalmente para sobreviver. Medo, insegurança, temor, receio, apreensão e outros sentimentos nos atravessam todos os dias. O coração fica aflito e angustiado preocupado com os familiares. Diante disso, são inúmeras as sensações que giram em torno da culpabilização em de fato conseguir cumprir as medidas impostas pela Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde em se proteger, enquanto outras pessoas se arriscam cotidianamente. O objetivo nesse momento é permanecer bem, criando possibilidades para confrontar os problemas, sejam estruturais ou interpessoais. Assim, é necessário reinventar novas maneiras de lidar com as mudanças sociais e emocionais, que refletem no dia a dia das mulheres como, por exemplo, o cansaço mental, o estresse, a impaciência, a angústia, a tristeza e outros sentimentos. Para além disso, ao observar a realidade de mães negras, no período de distanciamento social, nota-se que é marcada por vários enfrentamentos. A população negra segue sendo a mais afetada pela pandemia, sobretudo, tristemente essa é a realidade enfrentada pela população negra que para sobreviver encara uma longa batalha cotidiana contra os problemas raciais, sociais e econômicos. Além do mais, ao acompanhar os números crescentes de casos e vítimas da Covid-19 no Brasil, um cenário desolador, todos os brasileiros estão sendo afetados com a pandemia, e inúmeras famílias estão sendo destruídas pelo novo coronavírus. Segundo os números disponibilizados no site da Organização Pan-Americana da Saúde9 (OPAS), no Brasil foram confirmados 1.716.196 casos de Covid19 e 68.055 mortes até 09 de julho de 2020. Apesar de tudo isso, deve-se ainda ressaltar vivemos em tempos muito difíceis e conturbados no Brasil. Infelizmente, todos os dias o racismo vem matando (crianças, adolescentes, adultos e idosos). Desse modo, nossos objetivos permeiam não apenas vencer uma batalha na área da saúde contra o coronavírus, mas também derrotar os processos de preconceito e desigualdade social no Brasil. 9 OPAS. Organização Pan-Americana da Saúde. 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/. Acesso: 31 mai 2020. 814 Maternidades Plurais 134 Refazendo-se: sobre maternidade e deficiência Waleska Aureliano1 2h23min. Começo este texto pensando se invisto duas ou três madrugadas nele ou vou dormir e ter umas seis horas de sono até meu filho acordar e a rotina de cuidados ser retomada, intercalandose com momentos de trabalho acadêmico e doméstico. É difícil dizer onde o dia começa e termina, porque cada dia termina no começo de outro. Acabo de responder vários e-mails, enviei um parecer de artigo, revisei o sumário de TCC de duas orientadas, organizei as três pastas de artigos que devo desenvolver em breve com outras colegas. Ainda tenho que tirar o peixe do congelador para o almoço de amanhã (hoje, no caso), mandar uma mensagem remarcando a teleconsulta do meu filho que se chocou com a minha reunião de departamento, colocar um postit no computador para me lembrar de fazer as compras de mercado online. Não, eu não faço tudo sozinha, tenho um companheiro que também faz coisas e cuida do nosso filho, mas ele não pode fazer as coisas relativas ao meu trabalho, e a madrugada é o momento que tenho tido para me concentrar e produzir textos. Faz pouco tempo que começamos a discutir o quanto a rotina de cuidados com os filhos interfere no cotidiano de trabalho das mulheres cientistas. O debate levantado por grupos como o Parent in Science e o Observatório Cajuína tem rendido bons frutos para se construir políticas acadêmicas mais igualitárias2. Análise recente do Parent in Science, que investigou o impacto da pandemia sobre a produtividades das mulheres/mães nesse período, apontou para complexidade do universo de mulheres pesquisadoras ao inserir marcadores como idade e raça/cor3. No entanto, percebo que um outro marcador importante, com forte impacto sobre a maternagem, ainda é o pouco explorado no debate envolvendo maternidade/produção de ciência/usos do tempo: a questão da deficiência. Eu poderia mencionar tanto as mães cientistas que têm alguma deficiência como mães de filhos com deficiência nesse recorte, mas como estou inserida na segunda condição é a ela que me reporto. 1 Doutora em Antropologia Social. Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6921083969355653 2 A partir da atuação desses grupos várias universidades e agências de fomento tem incluído pontuações e critérios específicos de avaliação em seus editais que levam em conta a maternidade. Ver: https://www.parentinscience.com e https://observatoriocajuin.wixsite.com/cajuina 3 Para acesso aos resultados da pesquisa ver: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true 815 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Este texto está estruturado de uma forma livre através da qual desejo expor algumas questões relacionada à maternidade, deficiência, pandemia e cuidado, evocando para isso a minha experiência pessoal recente como mãe de uma criança com deficiência e meu percurso como pesquisadora, anterior à maternidade, junto a pessoas vivendo com doenças raras que geram deficiências. Dois dias atrás. Percebo que meus joelhos estão com a pele grossa em alguns pontos. Efeito do tapete antiderrapante que usamos na prancha de equilíbrio, no qual faço exercícios de fisioterapia com Miguel, meu filho de um ano e nove meses. Eventualmente sinto dores nas costas, na nuca e, frequentemente, dores de cabeça, pois não tenho o preparo físico nem habilidade técnica de uma fisioterapeuta para fazer o manuseio do meu filho nos exercícios. Mesmo assim, as terapeutas dizem que como antropóloga sou excelente fisioterapeuta! E, modestamente, eu acredito nelas. A rotina antes da pandemia era intensa: fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional (TO) todos os dias. Eu e o pai nos revezávamos nessa agenda. Sempre foi importante para nós acompanhar as terapias para repetição das orientações em casa. Mas, muitas vezes esse tempo da terapia era usado para preparar uma aula, ler um texto, uma dissertação para uma banca, responder mensagens, ali mesmo na sala de espera. O pai também é pesquisador e professor universitário. Com o isolamento social, buscamos formas de manter o tratamento do Miguel de alguma maneira e a solução encontrada foi o atendimento remoto (ou teleatendimento), autorizado pelos conselhos dessas profissões. Os consultórios foram transferidos para nossa sala: a fisioterapeuta emprestou alguns equipamentos, a TO outros, a fono orientou sobre uso dos brinquedos, pediu para comprar alguns itens. Em 15 dias havíamos retomado a rotina de terapias, com orientação em tempo real por vídeochamada e suporte constante por WhatsApp. Eu sabia que nós éramos afortunados por termos condições de contar com o acompanhamento dessas profissionais, e me recordava das mães atendidas no serviço público que estavam também sem atendimento presencial para seus filhos e não gozando dos mesmos recursos que eu. Conheço um pouco da vida dessas mulheres, porque, antes de ser mãe de alguém com deficiência, eu era uma pesquisadora da área da antropologia da saúde que há quase sete anos pesquisava pessoas com doenças raras, muitas das quais provocam deficiências que podem ser severas. São consideradas raras doenças que afetam 65 pessoas a cada 100 mil (definição atualmente usada no Brasil). Cerca de 80% das doenças raras têm origem genética e podem ser hereditárias. Estima-se que há cerca de oito mil doenças raras. Cada uma delas isoladamente afeta um número reduzido de pessoas, mas, no seu conjunto, envolvem muitos sujeitos. Minha pesquisa começou a ser desenvolvida em 2013 no pós-doutorado em Antropologia Social realizado no Museu Nacional/UFRJ, com bolsa do CNPq. Em 2014 ingressei como professora adjunta na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e dei continuidade a essa pesquisa, tendo recebido dois editais, FAPERJ e CNPq. A investigação foi desenvolvida em diversos contextos: observei consultas em ambulatórios de genética médica em hospitais universitários; acompanhei atividades de associações de 816 Maternidades Plurais pacientes; entrevistei seus líderes e pessoas afetadas por algumas doenças raras; participei de congressos e eventos realizados pelas associações e por profissionais de saúde, no Rio de Janeiro e em Brasília; entrevistei representantes do Ministério da Saúde; participei de audiências públicas sobre o tema. Esse percurso, próprio de uma pesquisa etnográfica, foi significado por algumas pessoas das minhas relações como “uma preparação” para eu receber meu filho, uma criança que nasceu com uma síndrome cromossômica ultra rara. Abril de 2018. Onze semanas de uma gravidez planejada. O exame da translucência nucal dá alterado, 4.3. Eu tenho 40 anos e o feto está com hidropisia fetal. O médico recomenda uma amniocentese com 12 semanas. Dias depois o resultado do cariótipo: normal, menino 46XY. Ultrassom com 13 semanas sem indícios de hidropisia. Teria sido tudo um susto! Não exatamente. Ao longo da gestação, uma pequena quantidade de líquido na cavidade torácica dava o sinal de que, de fato, algo estava errado, mas os médicos não poderiam dizer o quê. “Você tem muitas perguntas, mas nós não temos as respostas”, disse-me um deles. Segundo morfológico com 22 semanas: edema nasal, artéria umbilical única, derrame pleural discreto no pulmão direito, "pequenos achados”, nas palavras do médico que realizou o exame. A saúde geral do bebê era boa, mas algo ali estava “errado". Cariótipo normal agora não significava mais nada. Eu sabia que síndromes genéticas e microdeleções cromossômicas não eram detectadas nesse exame. Eu poderia fazer outro exame invasivo que coletaria sangue do cordão umbilical e sua análise apontaria com precisão o problema…ou não. Poderia vir um resultado inconclusivo e outra técnica diagnostica teria que ser usada para analisar o sangue. Quando esses exames ficassem prontos eu já estaria pelo sexto ou sétimo mês, o que faria com esse resultado? A todo momento eu me lembrava das mães que observei no ambulatório de um hospital público realizando seus pré-natais, investigando malformações fetais. Ao serem orientadas a fazer a amniocentese para ter um diagnóstico, muitas questionavam os médicos: “e o que eu faço com esse resultado?”. Implícita na pergunta sua continuidade: “se no nosso país o aborto por malformação não é permitido”. Ou ainda a recusa do exame por ele colocar em risco aquela gestação que, embora fosse potencialmente problemática, era muitas vezes desejada. Mesmo eu sendo uma mulher com recursos para recorrer a uma interrupção da gestação de forma mais segura, se o desejasse, me fiz a mesma pergunta e fiquei diante da mesma dificuldade de realizar a tomada de decisão quanto ao uso ou não uso de tecnologias médicas para o diagnóstico de uma doença no contexto do pré-natal. Para além da condição de classe e escolaridade que me distanciavam da maioria das mulheres atendidas naquele serviço público, a dificuldade de fazer “escolhas” (fazer ou não o exame, interromper ou não a gestação) era a mesma, ou muito parecida. Pesei vários fatores: o medo de realizar novos exames invasivos, a angústia pela espera dos resultados que poderiam ser inconclusivos, a preparação prévia de alternativas se a interrupção fosse o caso. Sairia do país para fazer isso de forma segura com uma gestação avançada? Como iria acessar os serviços de saúde em outro país, mesmo no particular? 817 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) Poderia pagar por esse atendimento? O que diria no trabalho para me ausentar, e à família? Não fiz os exames recomendados. Agosto de 2018. O ultrassom mostra que o bebê não estava mais crescendo como deveria. A medida do perímetro cefálico estava abaixo do normal para idade, puxando sua curva para um percentil baixo. Depois que o médico me mostrou as curvas, eu não conseguia mais ouvir os sons ao meu redor. Tudo ficou paralisado. A única palavra que ressoava na minha mente era “microcefalia”. A epidemia do Zika vírus era muito recente e, embora a condição do meu filho não fosse causada por contaminação pelo vírus, eu entendia que era muito semelhante a ela. Toda produção de vínculo que eu vinha tentando construir com meu filho, ao longo de uma gravidez marcada por incertezas e tensões, foi estilhaçada naquele momento. Além desse novo achado, o derrame pleural, que sempre havia sido discreto ao longo da gestação e apenas no pulmão direito, agora era severo e bilateral. Ele podia ter uma doença pulmonar ou linfática grave. Um pânico indescritível tomou conta de mim. No dia seguinte, eu estava sentada nos bancos de espera do setor de medicina fetal de um dos hospitais onde fiz pesquisa de campo. Implorei para que um dos médicos da instituição, especialista na área, avaliasse meu caso na esperança de ter ocorrido um erro. Ele tentou me dar um fio de esperança ao dizer que o bebê era na verdade todo pequeno, simétrico, sendo a microcefalia relacionada com a baixa estatura geral do bebê. Ele não observou lesões na estrutura do cérebro ou microcalcificações, muito comuns nos bebês afetados pela Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV). Daí em diante foram três semanas de muitas lágrimas e tristeza, um sentimento de fatalidade, e o pior: o desejo de que meu filho não nascesse com vida tamanho era o pânico que eu sentia ao lembrar das inúmeras pessoas que conheci com deficiências severas e as enormes dificuldades que elas e suas famílias enfrentavam para terem uma vida digna. Eu não queria que meu filho passasse por esse embate, eu não queria passar por ele. Não por considerar que a vida das pessoas com deficiência é menos significativa, mas por saber como pesquisadora e cidadã que vivemos numa sociedade que não acolhe e não é amorosa com a diferença. Uma sociedade que isola as mães de forma geral e, de forma muito mais cruel, isola as mães de filhos com deficiência4. 28.09.2018. 35 semanas. Contrações na madrugada, sangramento intenso, uma cesária de emergência que não durou 20 minutos. Vi meu filho de relance na sala de parto, nasceu hidrópico, muito inchado, roxo, não chorou, não respirou. Estava certa de que ele morreria em função do derrame pleural. À noite fui vê-lo na UTI: havia fios, sondas e drenos invadindo seu corpo. Estava entubado. Embora seja chocante a imagem de um bebê invadido daquela forma, naquele momento eu fiquei tranquila: 4 Para uma abordagem sobre a solidão das mães com filhos deficientes ver palestra de Lau Patrón em: https://www.youtube.com/watch?v=9eyCmr7At04. 818 Maternidades Plurais ele não se parecia com a imagem que eu havia pintado de forma dramática na minha mente. Durante os três primeiros dias, a expectativa era de que ele ainda poderia vir a óbito. No entanto, no quinto dia foram retirados os tubos de respiração. Com noves dias, retiraram os drenos dos pulmões. Em menos de 30 dias, ele respirava sem ajuda de aparelhos. Estava determinado a ficar, e ficou. Depois de 64 dias de UTI, a alta e um diagnóstico: síndrome da microdeleção do cromossomo 13, bandas 33.1q34. Uma parte pequena de um dos cromossomos do par 13 foi “apagada". Consequências da perda desse material genético: atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor, afetando principalmente a fala, podendo cursar com malformações de outros órgãos. Miguel não teve nenhum órgão malformado. Sim, tem microcefalia, mas em um fenótipo distinto dos casos que nos acostumamos a ver na mídia relacionados à SCZV. Os pulmões inspiram cuidado até hoje por causa das injúrias que sofreu com o derrame pleural severo. Exames de imagem levantaram a suspeita de uma doença pulmonar grave que, felizmente, não tem se manifestado clinicamente e está controlada com uso de corticoide inalatório, única medicação que ele utiliza. Ainda na UTI, fizemos exames para avaliar visão e audição, ambos deram resultados preocupantes: hipoplasia do nervo óptico e ausência ou baixa emissão de ondas, nos dois ouvidos. Depois da alta fez novos exames. Enxerga de modo compatível com a idade. Na avaliação de um ano e seis meses, a oftalmo descartou a hipoplasia — “na verdade, como ele é todo pequeno, então o nervo dele pode estar no tamanho compatível com seu biotipo”, disse ela. Escuta perfeitamente, adora música, entende bronca, resmunga e gargalha como ninguém. Miguel passou dois meses em uma UTI e não teve nenhuma infecção, nunca usou antibióticos. Teve apenas quatro resfriados desde que veio para casa, dois evoluíram para bronqueolite, mas nunca fez pneumonia e não foi preciso interná-lo. Uma amiga diz que ele adora contrariar a medicina. Ele realmente se esforça para isso. Onze meses depois de seu nascimento, voltei a dar aula. Além da medicina, Miguel também contrariou sua mãe que acreditava que sua vida de pesquisadora seria desestabilizada pelo diagnóstico de uma síndrome ultra rara. 2020. Festas de fim de ano na Paraíba, onde vivem nossas famílias. Os avós felizes por estarem com o novo neto na passagem de ano. Férias em Florianópolis em janeiro, um dos lugares que eu mais amo estar. Mar gelado, lagoa morna, trilhas, passeio na feirinha de Santo Antonio de Lisboa e de barco na Lagoa da Conceição, jantar com amigas, e Miguel participando de tudo, tranquilamente contrariando a mãe e a medicina. Ainda não sentava sozinho sem apoio, mas tomou banho de lagoa. Não balbuciava uma sílaba, mas comeu com apetite uma deliciosa anchova com batatas e banana assada. O ano começava bem. O primeiro semestre de 2020 exigia preparativos, um pós-doc na Espanha nos esperava, ou nós esperávamos ansiosamente por ele. Depois de dois anos muito sofridos, finalmente a vida parecia estar entrando nos eixos, eu conseguia trabalhar com alguma calma interior, embora em ritmo mais lento. Já era possível retomar projetos e fazer novos planos. Com dois anos, Miguel iria para escolinha, eu teria mais tempo livre, ele iria se desenvolver ainda mais junto de outras crianças. Estabeleci 819 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) contato com associações de pacientes raros e com serviços de saúde na Espanha, tanto para seguir com o tratamento do meu filho lá como para continuar minha pesquisa, que agora seria voltada para pensar o ativismo das mães/pais de pessoas com doenças raras na construção de políticas públicas e o lugar das emoções nessa atuação política voltada para o cuidado. No dia 09 de março, fomos ao ato pelo #8M, na Avenida Rio Branco. Miguel ficou muito tranquilo apesar do barulho e dançava a cada grito de guerra bem entoado. Encontramos amigas, protestamos, gritamos, pulamos, tiramos muitas fotos…a vida fluía. Dois dias depois, eu estava nos corredores da UERJ quando recebi o áudio de um médico falando da gravidade do coronavírus ao se observar exames de imagem dos pulmões de pessoas afetadas na China. Na mesma hora, escrevi para o pediatra e ele retornou com uma ligação: “suspenda as terapias, isso é muito grave, o Miguel é do grupo de risco”. Durante o fim de semana, todas as terapeutas dele decidiram fechar seus consultórios. Começava o isolamento social. Ao final da primeira quinzena, frente à evolução da doença no cenário nacional, percebemos que nem tão cedo voltaríamos ao "normal". Planos suspensos. Frustração. Novas demandas, faxineiro dispensado (com pagamento), construção de um plano terapêutico por teleatendimento. A intenção era de que Miguel pelo menos não perdesse as habilidades já adquiridas. Como ele gosta de contrariar, além de não perder habilidades ganhou outras: se em janeiro não sentava sem apoio, hoje se arrasta, gira em torno do próprio eixo, desloca-se para alcançar objetos. Se não balbuciava um áááá no começo do ano, hoje tem duas sílabas: "bá" e “bu”, a última usada para se referir a um balão de gás preto de bolinhas brancas com o qual adora brincar. Esses avanços são fruto de um trabalho intenso, muitas vezes físico e emocionalmente desgastante, porque ser mãe e terapeuta não é uma tarefa simples. As primeiras semanas foram particularmente difíceis: dores musculares, estabelecimento de uma nova rotina, estresse pela recusa do Miguel em aceitar algumas manobras e procedimentos mais complexos ou invasivos, desgaste com a constante queda da conexão de internet que dificultava o andamento das sessões virtuais. Cansaço, cansaço, cansaço…e eis que um dia ele amanhece sentado no berço e os ânimos são renovados. Mais um tempo e passa a entender conceitos como dar, abrir, fechar, dentro, fora. Está dando certo! Respiramos…ainda cansados, mas respiramos. Tempo, tempo, tempo. Essa semana faz quatro meses que Miguel está em isolamento, saiu duas vezes para uma volta no condomínio. Não sabemos quando ele poderá ir para escola, talvez apenas quando houver uma vacina. Não sabemos se será possível retomar as terapias presencialmente no curto prazo, nem quando iremos fazer nosso pós-doutorado na Espanha. A frase que ouvia da chefe da UTI virou um mantra na pandemia: viver um dia de cada vez, porque o amanhã ainda não existe. Sabemos que o tempo vira outro quando uma criança chega nas nossas vidas e nos faz perder (a ilusão do) controle sobre tudo. No caso de uma criança com deficiência, essa alteração temporal se amplia consideravelmente, porque se o mundo já não está preparado para a temporalidade infantil, 820 Maternidades Plurais menos ainda para aquelas crianças que vão “se desenvolver no tempo delas”, que vão precisar “de mais tempo” para aprender a sentar, falar, andar, comer sozinha, desfraldar, fazer sua higiene. Em alguns casos, elas não aprenderão a fazer nada disso, outros farão por elas a vida inteira. Quem tem um filho com atraso neuropsicomotor aprende que o tempo é algo precioso, arrastado, devagar, paciente, escasso. A todo momento essa categoria emerge diante de nós: é preciso aproveitar os dois primeiros anos da criança, porque esse seria o “tempo ideal" para se apostar na plasticidade cerebral, realizando muitos estímulos para desenvolver suas habilidades. Em casa, é preciso que os pais "dediquem tempo" para reproduzir as orientações terapêuticas, pois não será apenas com oito ou dez horas de terapias por semana que a criança irá evoluir adequadamente. Leva-se geralmente um “bom tempo" para se achar uma escola que seja de fato inclusiva e possa auxiliar no desenvolvimento da criança. Gasta-se muito mais “tempo" em consultas médicas com diferentes especialistas até que alguns diagnósticos sombrios sejam descartados…ou confirmados. A fisioterapeuta do meu filho diz que nós estamos “modelando o Miguel”, “fazendo seu corpo” a cada alongamento muscular, alinhamento de coluna e cabeça, a cada vez que trazemos sua escápula para posição correta ou quando alinhamos seus ombros quando ele está de prono. Nenhuma pessoa nasce pronta, todos somos de algum modo “feitos" a partir do cuidado, das relações sociais e afetivas. Mas, uma criança com deficiência precisará de mais tempo para ser “feita”. E seus pais demoram mais tempo para aprender como fazê-la. Aprendi mais sobre o corpo do meu filho nesses quatro meses de confinamento do que no ano e meio em que estivemos juntos. Hoje, entendo melhor a complexidade dos movimentos que precisamos fazer para nos locomover, falar, alcançar um objeto ou segurar uma colher. Compreendo de outra forma o trabalho de formiguinha das terapeutas e o que elas queriam dizer com “vamos com calma”, “é preciso comer o mingau pelas beiradas”. Na minha ânsia de ver progressos no Miguel, eu às vezes achava que as coisas poderiam ser mais rápidas, que as sessões terapêuticas poderiam ser mais longas para ter mais aproveitamento. Com a pandemia, aprendemos que terapias e terapeutas não fazem milagres, elas respeitam o tempo da criança e do seu corpo. Nem guerreira, nem especial. Humana. Sendo pesquisadora e professora de uma universidade pública sei que falo de um lugar privilegiado, pois tenho um trabalho que me permite flexibilidade de horários e segurança financeira, o que não ocorre com boa parte das mulheres das camadas economicamente menos favorecidas, que precisam abandonar suas carreiras para cuidar de seus filhos com alguma deficiência grave. Muitas passam a viver com um salário mínimo pago pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), que cessa no momento em que seu beneficiário falece. As necessidades dessas cuidadoras não têm sido incorporadas em políticas públicas, impedindo que se promova um modelo de atenção no qual Estado, sociedade e família realmente dividam as obrigações do cuidado. Quando exponho minha trajetória na gravidez e a rotina de cuidados com meu filho durante essa pandemia, algumas pessoas imediatamente dizem que eu sou “uma mãe guerreira”. Embora em 821 Ana Carolina Coelho; Camilla A. S. Cidade; Vanessa C. Cardoso (org.) termos analíticos eu compreenda o uso recorrente dessa expressão no campo de pesquisa sobre deficiência, sendo ela uma categoria nativa, pessoalmente, eu a recuso, pois ela carrega uma perspectiva individualizadora da luta contra o sofrimento e a aflição, calcada na ideia do amor materno como algo “natural"5. Esperam da "mãe guerreira" a superação de qualquer problema para manutenção da vida e saúde de seus filhos, sendo essa disposição algo pessoal, particular, inabalável e obrigatória. Essa mãe é quase um não humano tamanha a carga física, emocional e psicológica que esperam que ela suporte ao buscar cuidados médicos para sua prole, sem nunca perder a esperança e a determinação. A figura da "mãe guerreira" desresponsabiliza todos os demais agentes sociais frente ao cuidado e não permite que essa mãe seja vista como alguém que também precisa de cuidado. Em oposição a essa linguagem bélica, também comum no momento atual, evoquemos a ideia de aldeia e rede capazes de permitir um cuidado partilhado que avance em um projeto de sociedade mais igualitária e inclusiva, capaz de reconhecer nas mães com filhos deficientes sua humanidade. Abacateiro. Quando estava grávida aprendi a letra da famosa música “Refazenda”, de Gilberto Gil, e cantava para o Miguel. No final da gestação, estava tão devastada pelo prognóstico sombrio que imaginei que jamais conseguiria ouvir essa música novamente. Felizmente eu estava enganada. Praticamente todos os dias eu canto essa música para ele, que me olha nos olhos e sorri. Aprendemos nesta pandemia que "enquanto o tempo não trouxer seu abacate/amanhecerá tomate/anoitecerá mamão”. Acatamos esse ato de recolhimento. Não sem pesar e tristeza por tantas mortes e sofrimentos que poderiam ter sido evitados. Porém, no microcosmo do nosso universo particular foi possível desfrutar nesses quatros meses de muito amor e compreensão. É cuidando que se aprende a amar. 5 Para uma leitura crítica ao mito do amor materno ver: BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2009. 822 Editora Bindi A joia da sua estante! A Editora Bindi foca na publicação de novos e conceituados autores no meio literário atual. Uma Editora que não abre mão do bom trabalho desenvolvido por sua equipe, para que seus livros cheguem aos leitores, levantando suspiros de satisfação. Nossa equipe trabalha lado a lado com o autor para que sua obra tenha a sua cara e personalidade, afinal, ela embelezará sua estante e a de seus leitores por muito tempo. www.editorabindi.com.br