Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas
Universidade Federal de Goiás
I S S N: 1 9 8 4 – 2 6 6 X
Dezembro de 2012.
Ano V, Número 14.
Dossiê Temático:
Tópicos de História Antiga [2ª Parte]:
Antigüidade Tardia
Imagem de Capa: Cristo e São Menas, ícone copta (sécs. VI – VII). Museu do Louvre, Paris.
Revista Chrônidas
DEZEMBRO DE 2012
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ISSN 1984-266X
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Ano V, N. 14 / dezembro de 2012
Sumário
Dossiê
Tópicos de História Antiga [2ª Parte]: Antigüidade Tardia
Aspectos da Geografia Antiga
Pedro Paulo A. Funari...............................................................................................................07
Fortalecimento, Sacralização e Cerimonialização da administração romana na
Antiguidade Tardia (sécs. III / V d.C.)
Otávio Luiz Vieira Pinto...........................................................................................................20
O crime de ‘Maiestas’ na História do Império Romano: o caso do Levante das Estátuas
em Antioquia de Orontes
Érika Christyane Morais da Silva.............................................................................................44
A retórica de Ambrósio, bispo de Milão, exaltada por seu discípulo Agostinho
(séc. IV d.C.)
Janira Feliciano Pohlmann........................................................................................................64
A figura político-religiosa de Idácio de Chaves na Gallaecia romana tardia
(427 d.C. – 469 d.C.)
Danilo Medeiros Gazzotti.........................................................................................................77
A atuação estrangeira na Guerra Vandálica de Procópio de Cesaréia
Lyvia Vasconcelos Baptista......................................................................................................96
História e Cinema em sala de aula: reflexões a partir do filme “Alexandria”,
de Alejandro Amenábar
Semíramis Corsi Silva & Daniel de Figueiredo......................................................................110
Política e Poder na Antiguidade Tardia: a questão da cultura material
Cláudio Umpierre Carlan........................................................................................................135
Dossiê
Tópicos de História Antiga [2ª Parte]:
Antigüidade Tardia
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas
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ASPECTOS DA GEOGRAFIA ANTIGA
Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari1
Titular do Departamento de História da Unicamp
Bolsista de produtividade do CNPq
ppfunari@uol.com.br
Resumo
O artigo inicia-se com a discussão da relação entre a Geografia e História desde a
Antiguidade até a constituição das modernas disciplinas acadêmicas. A interação de
ambas as disciplinas no Brasil dá continuidade ao estudo, antes de tratar da maneira
como gregos e romanos interpretavam o mundo à sua volta e como isso resultava de
suas aventuras e cosmovisões. Por fim, o artigo volta-se para a geografia econômica do
Mediterrâneo antigo e de como o mar e os rios marcaram suas relações.
Palavras-chave: geografia; Antiguidade; Mediterrâneo antigo
Aspects of ancient geography
Abstract
The paper starts by discussing the relationship between geography and history from
ancient times to the modern constitution of scholarly disciplines. The interaction of both
disciplines in Brazil is then briefly dealt with, before turning to how ancient Greeks and
Romans interpreted the world around them and how this resulted from their adventures
and worldviews. Then the paper deals with the economic geography of the ancient
Mediterranean and how sea and rivers shaped their relations.
Keywords: Geography; Antiquity; Ancient Mediterranean
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Professor Titular do Departamento de História, Coordenador de Centro de Estudos Avançados da
Unicamp.
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas
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Introdução: Geografia e História em diálogo
A Geografia e a História compartilham uma trajetória comum, desde a
Antiguidade, a ponto de serem mesmo confundidas. É difícil separar a Geografia
Econômica e a História Contemporânea, a tal ponto que os mesmos temas, como o
imperialismo, as regiões produtoras e consumidoras e as relações de poder entre as
nações, aparecem nos livros didáticos de Geografia e História. Isto se deve ao fato de
ambas partirem dos mesmos dois conceitos: tempo e espaço. Mas essa relação é muito
mais profunda, como veremos, a começar por terem em comum o mesmo fundador:
Heródoto de Halicarnasso (484 - 425 a.C.). Houve viagens e geógrafos gregos
anteriores, cuja obra, contudo, não foi preservada senão em fragmentos. Heródoto, por
outro lado, escreveu suas Investigações – esse o sentido original da palavra História, em
grego – para ser lida e ouvida como um conjunto de pesquisas sobre a terra e os homens
no tempo e no espaço. Heródoto foi chamado pelo romano Cícero (106 - 43 a.C.) de
“pai da História” e ele realmente também pode ser considerado o primeiro historiador.
Heródoto não era um homem de gabinete e de arquivos – como se imagina, hoje, a
figura do historiador. Era, antes de tudo, um geógrafo de campo, alguém que não
esquentava cadeira - como dizemos - mas que sempre estava a observar, em lugares
próximos ou distantes, tudo o que podia, anotando, ainda, tudo o que lhe diziam. Era
fascinado pelo exótico, por tudo aquilo que parecia digno de admiração, seja no âmbito
natural, como humano. Assim, buscava entender o curso dos rios e as estações chuvosas
e secas, assim como os temas humanos e históricos: as dinastias dos faraós tais como
contados pelos egípcios. Talvez o que o mais fascinasse fossem...as mulheres! Heródoto
vivia em uma sociedade grega na qual as mulheres eram segregadas em espaços
privados – o gineceu –, escondidas e misteriosas. Já as mulheres que Heródoto
encontrou em suas andanças eram muito diferentes, saíam à rua, algumas eram rainhas e
governavam, tinham prerrogativas diversas. Eram egípcias, babilônicas ou amazonas.
Essa sua preocupação com os costumes e com os povos faz de Heródoto também o
primeiro geógrafo humano e historiador cultural. Nada mal para o fundador da
Geografia e da História!
Na Antiguidade, tanto a Geografia como a História eram, na verdade, gêneros
literários, ou, em outras palavras, deviam ser obras para ser lidas em voz alta e
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apreciadas por sua beleza. Por isso mesmo, as descrições geográficas sempre faziam
parte da narrativa historiográfica, tanto pela importância da paisagem para que se
pudesse entender uma batalha ou uma descrição qualquer, quanto pela própria beleza do
que se pintava com palavras. Assim, um historiador como o latino Salústio (86-35 a.C.),
que escreveu obras sobre guerras, descreveu as paisagens do norte da África que ainda
hoje nos atraem para aquelas terras entre o deserto e a costa mediterrânea. Mais do que
isso, ele considerava que as condições geográficas eram decisivas não apenas em
batalhas, como para determinar as características culturais que condicionavam os feitos
históricos. Neste sentido, foi precursor da moderna preocupação da História com o
ambiente geográfico.
A historiografia moderna surgiu no século XIX, como uma busca pelos fatos que
realmente aconteceram, numa perspectiva positivista. Como disse o “Heródoto”
moderno, Leopold von Ranke, em 1823, o historiador devia buscar “o que propriamente
aconteceu”. Era uma mensagem cifrada para banir Deus da explicação histórica,
afastando os milagres do âmbito da historiografia que, por tantos séculos, considerava
Adão e Eva como personagens de carne e osso e o Jardim do Éden um lugar concreto a
ser localizado...Haja Geografia, para encontrar onde seria o paraíso perdido! Por muito
tempo, a historiografia lutou contra essa tradição religiosa por meio da busca de uma
objetividade ao extremo e de uma descrição dos fatos de maneira monótona. Enquanto o
romance “Guerra e Paz” (1869) - a descrição da guerra de Napoleão na Rússia - pelo
literato russo Leão Tostoi (1828-1910) era um monumento literário, de leitura superagradável e atraente, os historiadores escreviam obras descritivas, de leitura difícil e,
muitas vezes, chatas. A renovação da historiografia se daria no século XX, em particular
com uma ampliação das preocupações da História para além da descrição de fatos, em
direção às outras disciplinas e, nesse sentido, a Geografia exerceu um papel único. O
grande renovador da disciplina foi Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores do
que viria a ser a Escola dos Annales (1929) e cuja obra iniciadora do movimento foi
dedicada, justamente, à “Terra e a evolução humana, introdução geográfica à História”
(1922). Nesta obra que marca a ruptura com a concepção descritiva e positivista da
História, Febvre centra a metodologia histórica na geografia humana e política, que
estava em plena renovação àquela época, mas sem deixar de lado a geografia física e
sua interação com a biologia. Como ele alertava, “tudo depende de um trabalho inicial
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de Geografia física”.
A História reconhecia como elemento essencial para sua
renovação a volta ao espaço físico, sem o qual nada se pode entender do passado.
Esse ímpeto geográfico encontrou um impulso adicional com outro grande
historiador do mesmo grupo dos Annales, Fernand Braudel (1902-1985), hoje bem
conhecido aqui no Brasil pelo Instituto que leva o seu nome (http://pt.braudel.org.br/) e
cuja ambição é imensa, como se lê no seu portal: “o Instituto Braudel é uma iniciativa
pioneira formada em 1987 em São Paulo por um grupo de economistas, empresários,
lideranças públicas e jornalistas, buscando formas de superar os problemas
institucionais que inibem o desenvolvimento humano na América Latina”. Mas, quem
foi Braudel? Este historiador francês seguiu os passos de Febvre ao colocar uma
abordagem geográfica no centro da historiografia, com sua obra monumental, “O
Mediterrâneo” (1949). Essa verdadeira geo-história, propõe compreender não mais
apenas os acontecimentos – como as mortes, assassinatos, ou guerras – mas o que
chamou de longa-duração, como, por exemplo, a navegação no Mediterrâneo, da
Antiguidade à Modernidade. As condicionantes geográficas, claro, são fundamentais
para compreender a navegação mediterrânea, mas também contribuíram para conformar
maneiras de pensar e agir. Não cabe dúvida que o próprio conceito histórico de longa
duração deve muito à Geografia, com seus tempos longos, por oposição à efemeridade
dos acontecimentos, que haviam sido o objeto primeiro da historiografia positivista.
Com isso nos aproximamos do Brasil, pois Braudel esteve na fundação do curso de
História da Universidade de São Paulo (1935-7) e fez parte da fermentação geohistórica que renovava a historiografia brasileira.
No Brasil, a moderna historiografia surgiu apenas no século XX e dois nomes
contemporâneos devem ser destacados, ambos na interface da Geografia e da História,
um brasileiro, o outro francês: Caio Prado Júnior (1907-1990) e Pierre Monbeig (19081987). Caio Prado Júnior pode ser considerado, junto com Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), o grande iniciador da moderna historiografia brasileira. A formação
original de Caio Prado era em Direito e Geografia – não havia curso de História àquela
época – e suas obras, desde a década de 1930, dão grande destaque à Geografia na
interpretação do passado brasileiro. Assim, ele descreve, com uma narrativa clara, mas
bonita e atrativa, como se fosse uma obra literária, os rios, matas, animais e plantas que
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condicionaram a colonização do continente a partir da costa brasileira. Tal como
Heródoto, Caio Prado pode ser considerado pai das duas disciplinas no Brasil,
Geografia e História, tendo sido fundador da primeira sociedade científica brasileira, a
Associação dos Geógrafos Brasileiros, em 1934, juntamente com Pierre Monbeig, nosso
outro personagem.
Monbeig veio da França para iniciar o curso de Geografia na primeira
Universidade brasileira, a recém-criada Universidade de São Paulo (1934), tendo
permanecido aqui no Brasil até 1947, quando retornou ao seu país. Sua formação, na
esteira da renovação tanto da Geografia como da História na França, combinava as duas
áreas de maneira muito próxima àquela que propunha, ao mesmo tempo, Caio Prado.
Monbeig também aspirava a explicar o passado do Brasil a partir de uma perspectiva de
longa-duração, como no seu clássico “Pioneiros e fazendeiros de São Paulo” (1952).
Sua descrição geográfica e das suas condicionantes para o desenvolvimento da cidade
de São Paulo, além de ser também muito agradável, marcou época por sua compreensão
de largo prazo do assentamento humano no Brasil. Segundo suas palavras, “os
bandeirantes descobriram a situação geográfica de São Paulo”, que era privilegiada e
permitiu não apenas o assentamento urbano, como a expansão em direção ao sertão.
Assim, Geografia e História, tanto na Antiguidade, como na nossa época,
estiveram em íntima relação e em enriquecimento mútuo. Nas últimas décadas, a
historiografia diversificou-se em muitas vertentes, mas o influxo fertilizador da
geografia é mais atual do que nunca, tanto lá fora, como aqui no Brasil. Heródoto, Caio
Prado, Pierre Monbeig e Fernand Braudel ficariam satisfeitos.
Como gregos e romanos viam o mundo?
Será que os antigos gregos e romanos, que viveram há milhares de anos, tinham
conhecimentos de geografia? A pergunta pode parecer boba, se atentarmos para a
própria palavra geografia, que é grega e significa “a escrita da terra”, ou seja, a
representação do planeta por meio da escrita. Foram os gregos os inventores dessa
disciplina, afinal. Mas, não é bem assim, pois a Geografia como ciência moderna é o
resultado da luta contra concepções teológicas do mundo que predominaram por séculos
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e que tinham por pressupostos que a terra era chata e que o sol girava em torno dessa
terra plana. Portanto, a Geografia moderna é herdeira direta de Galileu – a terra gira em
torno do sol, não o contrário – e do conceito de terra redonda, algo que já Cristóvão
Colombo havia mostrado, contra a visão predominante no século XV. Portanto, a
geografia grega e romana se havia perdido, em grande parte, tendo sido retomada, em
parte, pelos modernos.
Os gregos propuseram que a terra era redonda e chegaram mesmo a calcular,
com grande precisão, qual o diâmetro do planeta. Erastóstenes, no século III a.C., a
partir do Egito, onde vivia, por meio da observação e de cálculos matemáticos foi capaz
de uma precisão impressionante. Supondo que a Terra era redonda e que o Sol enviava
raios de luz paralelos, em um solstício de verão do hemisfério norte, ao meio-dia, em
Alexandria ele mediu o ângulo de incidência do raio de sol e, com o auxílio da
matemática euclidiana e comparando com o que se podia observar em outra cidade
distante, em Assuã, 800 km ao sul, propôs que a circunferência do planeta seria de
aproximadamente 6.366.19 km (hoje, propõe-se 6.378 km).
Essa proeza mostra como os antigos tinham proposto que a terra era redonda e
que podiam conhecer mesmo o tamanho geral do planeta, ainda que o tenham feito por
inferência, já que não puderam viajar para comprovar essa suposição. Mesmo assim,
sem a viagem de tira-teima, eles representavam a terra como uma esfera e não
hesitavam em imaginar um planeta imenso e, à época, fora do seu alcance direto. Isso já
mostra como a Geografia grega era - a um só tempo - baseada na experiência prática e
no raciocínio lógico. Erastóstenes usou a observação empírica para suas medições, mas
também o cálculo matemático, que é pura abstração.
Esses dois aspectos marcaram toda a concepção geográfica antiga. Em primeiro
lugar, o conhecimento geográfico foi o resultado da aventura dos antigos pelo mundo,
das suas viagens. Gregos e romanos viajaram por todo o Mediterrâneo, com seus barcos
e, com isso, descobriram uma imensa variedade de terras, vegetações, populações e
animais. Foram para além dessas desse mar, explorando o Oceano Atlântico, o Mar
Negro, o Golfo Pérsico, para não mencionar as imensidões terrestres da Europa, do
norte da África e da Ásia ocidental. Inauguraram o gênero literário chamado Geografia,
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que consistia em narrar tudo que encontravam por onde perambulavam. Antes disso, um
poema como a Odisséia de Homero, datada do início do primeiro milênio a.C. já
narrava as paragens pelas quais passava Ulisses, em versos que eram também parte do
conhecimento e descrição da terra.
Com o tempo, multiplicaram-se as narrativas geográficas, tendo sido Heródoto,
no século V, o grande geógrafo, mas também historiador, que descreveu boa parte do
mundo conhecido pelos gregos àquela época. Heródoto foi chamado de pai da História
pelo orador romano Cícero (século I a.C.), mas ele foi um grande viajante que procurou
descrever os costumes dos povos que pode conhecer. Suas investigações (este o sentido
de “histórias”) eram tanto geográficas como históricas, se é que podemos usar tais
termos, pois, para ele, eram uma só busca de compreender os povos da sua época. Como
quer que seja, Heródoto sistematizou, de forma admirável, tanto a topografia dos
lugares que conheceu, como os povos que encontrou. Reportou, ainda, tudo que lhe
informaram e preferiu arriscar e apresentar o que lhe diziam, mesmo sem saber se havia
como verificar. Assim, por exemplo, tentou explicar as cheias do rio Nilo pelo que
diziam, sem nunca ter podido saber sobre as fontes do rio na África equatorial.
Outro grande geógrafo antigo foi Estrabão, grego de época romana (séculos I
a.C. e I d.C.), cuja obra reflete toda a tradição geográfica anterior, mas que incorpora as
possibilidades abertas pela paz imperial romana, a partir de 31 a.C., com o fim das
guerras civis e com Augusto como imperador (31 a.C.-14 d.C.). A Geografia grega
havia prosperado graças às andanças gregas por toda parte e ao ímpeto grego em direção
à explicação racional do mundo. Mas os gregos nunca chegaram a constituir um poder
político unificado duradouro em grandes áreas, apesar das conquistas inigualáveis de
Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Ele permitiu que os gregos conhecessem, de
primeira mão, a Pérsia (atual Irã), e o que viria a ser a Índia e o Paquistão atuais, mas
não forneceu um quadro político estável para os séculos seguintes. Já os romanos
conquistaram todo o Mediterrâneo, que chamaram de mare nostrum (nosso mar), e todo
o interior da Europa ocidental, norte da África e a Ásia ocidental. Isso permitiu, com a
paz imperial, que Estrabão escrevesse a primeira grande síntese geográfica que chegou a
até nós. Ele descreveu tanto os aspectos naturais como humanos. Fez o primeiro grande
inventário geográfico do mundo, com esse nome.
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Os mapas da Antiguidade não chegaram até nós, embora saibamos que os
antigos faziam representações por imagens do mundo conhecido. Contudo, pelo que nos
chegou da antiguidade tardia, a partir do século IV d.C. e pelo que se pode deduzir das
poucas imagens anteriores que chegaram até nós, os mapas nem sempre estavam
preocupados com uma representação do planeta que fosse como se o observador
estivesse voando ou no espaço, como são os mapas desde a época moderna. Os mapas
modernos partem de uma perspectiva de cima para baixo e, por isso mesmo, não fica
muito difícil para nós observarmos a semelhança entre uma imagem de satélite e um
mapa atual ou da época moderna, a partir do século XVI. Não era essa a concepção
antiga, contudo, que não imaginava a terra vista de cima, mas a via a partir da
superfície. Por isso, os mapas registravam o espaço pelas distâncias em solo, o que fazia
todo sentido, pois era a única maneira realista de chegar de um lugar a outro. A imagem
resultante era como se fosse uma seqüência de pontos em uma viagem concreta de um
lugar para outro. Por isso mesmo, os antigos representavam uma planta de cidade de
forma muito próxima à de um guia moderno de ruas, pois os pontos eram todos visíveis
e caminháveis. Já os mapas que retratavam espaços mais amplos não podiam fazer
referência a essa visibilidade urbana e eram mais uma junção de pontos de referência
das distâncias de viagem, por terra ou por mar.
Há, ainda, um aspecto da Geografia antiga que merece menção: o papel
desempenhado pelo que se pode chamar de sentimentos ou religiosidade, como se
quiser. De fato, Gé, era também uma deusa, e não apenas o planeta Terra. Os antigos
não costumavam separar essas esferas, mesmo quando faziam experimentos e usavam
cálculos matemáticos e racionais. Muitos criam que em baixo do solo estava o lugar dos
mortos, assim como Heródoto mencionava seres que para nós seriam fantásticos e
inacreditáveis, sem distinguir muito entre o observável e o imaginável. Ulisses, o grande
viajante mencionado no início, não é um personagem histórico que tenha existido, mas
um herói que, se para nós é uma miragem, era para muitos antigos um homem no meio
entre o céu e a terra. Portanto, a Geografia antiga, também neste aspecto, diferia da
moderna ciência surgida com o Renascimento e, mais ainda, com o Iluminismo do
século XVIII. Mesmo assim, o legado geográfico grego e romano não deixa de ser
relevante, tanto por suas imensas contribuições para a ciência posterior, como, mais
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ainda, por nos ensinar que o conhecimento da Terra não é nem tão recente nem tão
unilinear como muitas vezes se imagina.
A Geografia Econômica do Mediterrâneo Antigo
A Geografia Econômica é uma disciplina moderna, talvez a mais sexy das
especializações geográficas: afinal, tudo gira, no mundo de hoje, em torno da produção
industrial e agrícola, fluxos de capital, regiões produtoras e consumidoras, temas
centrais da Geografia Econômica. Chega a ser mesmo difícil diferenciá-la da Economia,
a não ser por dois aspectos: está muito ancorada no espaço e no tempo (o que nem
sempre é o caso da Economia) e todos a conhecem, pois ela figura com destaque nos
livros didáticos. Por tudo isso, pode parecer que o estudo da Geografia Econômica só se
aplica à nossa época, mas ela também pode ser muito útil para compreender outras
épocas. Este é o caso do Mediterrâneo na Antiguidade e, isto, por dois motivos: pela
abundância de textos de geógrafos antigos e pelas pesquisas arqueológicas, desde o
século XIX.
Os antigos inventaram não apenas o nome “Geografia” (que significa “a escrita
sobre a terra”), como foram os primeiros geógrafos. O mais antigo geógrafo cuja obra
chegou até nós é o pesquisador Herótodo (484-425 a.C.). Proveniente de Halicarnasso,
na Ásia Menor (atual Turquia), Heródoto viajou pelo Mediterrâneo e publicou suas
Pesquisas (Histórias, em grego, significa “investigações”), uma obra monumental e que
procurava relatar tudo o que ele havia visto ou ouvido, sem esconder que havia sempre
muitas versões e explicações para um mesmo problema geográfico, como no caso das
cheias dos rios Tigre e Eufrates. Heródoto foi informado (e comprou a ideia) que os rios
mesopotâmicos não produziam cheias como o Nilo, mas que havia que usar máquinas
para que houvesse maior fluxo d’água. Heródoto não tinha domínio dos idiomas locais e
deve ter compreendido mal uma explicação de algum nativo que se referia a canais de
irrigação, não à cheia em si dos rios. De todo modo, o que importa é que Heródoto nos
fornece uma quantidade imensa de dados sobre produção e exportação de produtos
embora, como vimos, nem sempre ele tivesse boas informações.
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O outro grande geógrafo antigo também escreveu em grego: Estrabão (64 a.C. 20 d.C). Ele viveu em outra época e circunstâncias e pôde fornecer informações muito
mais precisas e seguras do que Heródoto. No século V a.C., Heródoto viajou por regiões
de povos independentes e teve que fiar-se de tradutores locais. Já Estrabão viveu no
ápice do domínio romano e pôde viajar pelo imenso território sob controle romano,
tendo, ainda, fontes e informações de primeira mão em grego ou em latim (que,
provavelmente, ele conseguia ler e entender, embora escrevesse em grego). Neste
sentido, foi o primeiro geógrafo que teve essa facilidade de tratar de um território
unificado, com acesso muito mais amplo às fontes de informação e com facilidade de
transporte seguro por mar e terra. Todo o mundo conhecido – que eles chamavam de
ecomene, “a nossa casa”, de onde deriva a expressão ecumênico, “de todos” – estava
disponível, algo que até hoje não voltou a acontecer, pois o mundo numa mais esteve
sob um só controle. Claro, hoje temos muitos mais meios de conhecer o mundo do que
há dois mil anos, mas, mesmo assim, a soberania nacional impede o acesso aos dados
dos países. Quem sabe qual a produção agrícola da Coréia do Norte? Estrabão, por isso
tudo, escreveu a sua Geografia, obra que se mantém como a mais preciosa para
sabermos da Geografia Econômica há dois mil anos.
Além dos geógrafos antigos, a Arqueologia tem produzido muitas informações
sobre a produção e comércio de produtos na Antiguidade. Há dois tipos de vestígios
arqueológicos de importância para isso, a começar pelos restos de fazendas, fábricas e
lojas. Escavações em fazendas produtoras de vinho, azeite e trigo – a tríade da
alimentação mediterrânica – permitem que saibamos onde esses produtos eram
produzidos e em quais circunstâncias concretas. Fábricas de diversos produtos são
conhecidas, como as feitorias para a preparação dos famosos temperos à base de peixe,
que existiam em toda a costa mediterrânea e atlântica, ou as padarias e tinturarias em
centros urbanos. Por fim, as lojas são bem estudadas, desde os bares até os mercados
municipais, onde havia feiras e se vendiam todos os produtos. Eram chamados em
grego...empórios! Também os armazéns são bem conhecidos, como os imensos galpões
às margens do rio Tibre, em Roma, destinados a guardar trigo.
Além dessas estruturas fixas, encontramos em grande número objetos ligados ao
comércio, como, em primeiro lugar, as ânforas. Eram feitas de cerâmica, em sua
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maioria, e serviam para transportar líquidos, como vinho, azeite e temperos, por navios
e por estradas. Pesavam de 5 a 20 quilos e podiam carregar de 5 a 60 quilos. As ânforas
foram, em determinadas épocas, marcadas com informações escritas sobre o produtor, o
transportador ou comerciante, assim como sobre a origem e qualidade do produto
transportado. Eram rótulos de propaganda, também, quando, por exemplo, se anunciava
um tempero como...uma flor!
Tudo isso nos permite pintar um quadro muito detalhado da geografia do
Mediterrâneo antigo, entendido não apenas como a região que circundava o Mar
Mediterrâneo, propriamente dito, mas toda área que com ela se comunicava, indo das
Ilhas Britânicas, Portugal e Marrocos, a ocidente e chegando à Mesopotâmia a oriente.
O comércio já caracterizava essa imensa área à época de Heródoto, no século V a.C.,
mas se tornou um único mercado quando Estrabão viveu e, por isso, podemos traçar um
quadro mais preciso e detalhado à época do nascimento de Jesus, em 4 a.C. e no
Principado de Augusto (31 a.C. – 14 d.C.), primeiro imperador romano, com alguns
acenos para o que veio antes e depois. O que chama a atenção, de início, é como a
especialização na produção rural e artesanal se havia consolidado. À época de Heródoto,
ele descreve muitas áreas periféricas que produziam para o auto-consumo, sendo pouco
integradas ao Mediterrâneo. Este é o caso da imensa área que viria a ser a Europa
Ocidental e Norte da África. Já à época imperial romana de Estrabão, o comércio era
intenso e a especialização se havia generalizado. Algumas regiões se especializaram na
produção de trigo, como era o caso da Sicília e o Egito, cuja produção era escoada em
grandes navios cargueiros. A Itália produzia vinho e azeite para consumo local, mas
também para exportação em ânforas, que chegavam a todo o império. As províncias
gaulesas (atuais França, Bélgica e Suiça) produziam vinho e azeite, além de cerâmica
que abastecia mercados distantes interessados em pratos, copos e taças. As províncias
hispânicas (atuais Espanha e Portugal), além de vinhos e azeite, eram grandes
produtoras de temperos de peixe, com grandes fábricas costeiras e com uma exportação
dessas iguarias para todo o mundo. O oriente grego produzia trigo, azeite e vinho, além
de ser a fonte dos produtos orientais exóticos que vinham de fora do Império, da Pérsia,
Índia e China, como as especiarias e a seda.
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Esse mercado integrado não era regido apenas por regras do livre comércio,
contudo. O império romano favoreceu o florescimento da livre-iniciativa, da produção
para o mercado e visando o lucro, mas havia dois aspectos muito particulares e que
estavam fora do que chamaríamos de mercado: os impostos e a manutenção de
subsídios para a plebe romana e para o exército. A plebe da cidade de Roma recebia
trigo a preços subsidiados – uma espécie de bolsa família da época – e para custear esse
programa – chamado de Anona – produtos como o trigo e azeite eram comprados a
preços abaixo do mercado, como parte do pagamento de impostos devidos. Além disso,
o exército romano precisava ser alimentado e esse suprimento vinha, em grande parte,
de impostos pagos em espécie (trigo, azeite e vinho). Claro, também, que a produção
para o mercado nunca foi majoritária no império romano, com seus estimados 50
milhões de habitantes, pois a produção para subsistência e comércio local era
predominante.
Como quer que seja, a Geografia Econômica do Mediterrâneo Antigo permite
observar como a unidade política e monetária – como à época do Império Romano – é
uma condição importante para que a especialização econômica seja bem sucedida. Seria
esta uma mensagem para a União Europeia, hoje?
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FORTALECIMENTO, SACRALIZAÇÃO E CERIMONIALIZAÇÃO DA
ADMINISTRAÇÃO ROMANA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SECS. III / V D.C.)
Doutorando Otávio Luiz Vieira Pinto
Bolsista CAPES, University of Leeds
rocha.pombo@hotmail.com
Resumo
Este trabalho ter por objetivo contextualizar o desenvolvimento peculiar da
administração romana (em especial a partir do século III), localizando seus mais
importantes personagens – como Diocleciano, Constantino e Teodósio – e, a partir das
constantes mudanças e transformações nesta esfera, compreender o que chamamos por
“virada burocrática” e “ideologia burocrática”. Assim, ao passo em que percebemos as
mutações no gerenciamento do Império Romano, buscamos entender também a
importância de um nascente grupo administrativo tanto num nível prático quanto num
aspecto simbólico e ideológico. Em suma, objetivamos entender os níveis políticos,
sociais e culturais da burocracia romana em relação à estrutura governativa do império.
Abstract
This paper aims to contextualize the peculiar development of the Roman administration
(especially since the 3th century), localizing its most important characters – such as
Diocletian, Constantine and Theodosius – and, taking into consideration the important
changes and transformations in this sphere, understand what we call “bureaucratic turn”
and “bureaucratic ideology”. Thus, as we perceive the mutations in the management of
the Roman Empire, we try to comprehend also the importance of a springing
administrative group, both in a practical and in a symbolic and ideological way. In
short, we objective to understand the political, social and cultural aspects of the Roman
bureaucracy in relation to the imperial governative structure.
Parte I – Diocleciano, Constantino, Teodósio e a virada burocrática
Se, de qualquer forma, alguém comparasse todo o tempo, desde Augusto,
quando a soberania dos romanos transformou-se num poder pessoal, não
encontraria, no fluir dos cerca de duzentos anos até Marco [Aurélio], tal
sucessão ininterrupta de Imperadores, nem tais mudanças na fortuna de
guerras civis e externas, nem tal comoção de povos ou tomada de cidades –
tanto aqui em nossas terras [Império] quanto em terras bárbaras –, nem tais
movimentos sísmicos e nem tais pestes no ar, e nem vidas de Imperadores e
Tiranos tão incríveis que, em tempos anteriores, eram raras ou sequer
recordadas. 1
“ε οῦ
ε ο α χα
ἐπα
ου
σε
α ασ έω
1
πα α
ο π α
ἀπ οῦ Σε ασ οῦ χ ο , ἐ οὗπε
̔ ω α ω υ ασ ε α ε έπεσε
, οὐ ἂ ε ο ἐ ἔ εσ πε που α σ ο έχ
Μ
ου α
ο ε ασ ε
ο ω
α οχἀ ο ε πο έ ω ἐ φυ ω ε α έ ω
χα πο
α ἐ
ε
σε α π εω
ε ἐ ῆ ε απῆ α ἐ πο οῖ α
ο , ῆ ε σε σ ο
α ἀέ ω φ ο
υ
ω ε
ου πα α ου π ε ο σπα ω
η ᾽ὅ ω
η ο ευ
α ”. Herod. Hist. I.I, 4.
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Os tempos mudavam rapidamente, como observou Herodiano, num testemunho
de sua época. Aos olhos do autor grego, na primeira metade do século III, os assuntos
imperiais pareciam imprevisíveis: a sucessão no trono era instável, os levantes
populares constantes e as vicissitudes de poder iminentes. Com efeito, a historiografia
optou por denominar este momento como uma centúria de “crise”, onde Roma pôde
antever a sombra de sua queda. 2
Independente das posições epistemológicas acerca da abordagem deste período
(e de suas implicações positivas ou negativas)
3
, mudanças cruciais na ordem
sociopolítica vigente podem ser percebidas neste contexto, em especial se
direcionarmos nosso foco para a passagem governamental entre Marco Aurélio para seu
filho Cômodo, em 180 d.C.. “Dum Império de ouro para um de gusa e ferrugem (...)
decai esta história” 4; na asseveração de Cássio Dio, a morte do princeps filósofo Marco
Aurélio demarca o momento em que Roma inicia sua decadência, já que esta transição
representa, grosso modo, um rompimento com uma tradição que remontava ao próprio
Augusto: a sucessão entre imperadores dava-se por meio da adoptio, ou seja, o soberano
atuante selecionava um jovem, geralmente de seu próprio entourage, para que este fosse
preparado e, no futuro, o substituísse na Púrpura. Mesmo que houvesse aproximação
pessoal nesta prática, a passagem direta do poder entre pai e filho era condenada 5.
Assim, quando Marco Aurélio quebra este costume e seu filho ascende ao poder, ele
invariavelmente afeta a estrutura imperial, desgastando o sistema de adoptio e
instaurando a sucessão hereditária (FRIGHETTO, 2010: 107). Para autores como
2
O exemplo mais cristalino vem de Géza Alföldy, no final da década de 1980, cf. ALFÖLDY, Géza. Die
Krise des römischen Reiches, Geschichte, Geschichtschreibung, und Geschichtsbetrachtung: ausgewählte
Beiträge. Sttutgart: F. Steiner, 1989. Mais recentemente, a perspectiva de uma crise durante o século III
d.C. ainda pode ser encontrada, em historiadores como Peter Heather, in: HEATHER, Peter. The Fall of
the Roman Empire: a New History of Rome and the Barbarians. Oxford: Oxford. Univ. Press, 2006, pp.
58 – 59 & HEATHER, Peter. Empire and Barbarians: Migration, Development and the Birth of Europe.
Londres: Macmillan, 2009, pp. 108 – 111.
3
Uma série de trabalhos, hoje, questionam a validade do conceito “crise” quando aplicado ao mundo
romano da terceira centúria. Liebeschütz faz uma ótima revisão bibliográfica do assunto, elencando
pesquisadores que trabalham com essa ideia, bem como aqueles que a rejeitam – ele próprio se
posicionando deste lado do debate. LIEBESCHÜTZ, Wolf. “Was there a Crisis of the Third Century?”,
in: HEKSTER, Olivier; KLEIJN, Gerda de & SLOOTJES, Daniëlle (edit.). Crises and the Roman
Empire: Proceedings of the Seventh Workshop of the International Network Impact of Empire. Leiden &
Boston: Brill, 2007, pp. 11 – 22.
4
“ἀπ χ υσῆ ε ασ ε α ἐ σ η ᾶ α α ω η (...) α απεσο ση ῆ σ ο α ”. Cass. Dio.
Hist., 72.36, 5.
5
Lembrando que, já no século I, com Vespasiano, temos uma sucessão hereditária a partir de seus filhos
Tito e Domiciano. A prática, porém, não se configurou como um processo formal e, em seguida, a
adoptio retornava como mecanismo comum. In: LEVICK, Barbara. Vespasian. Nova Iorque: Routledge,
2005, pp. 184 – 196.
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Cássio Dio e Herodiano, esta alteração dá brecha para uma lógica imperial desfalcada,
onde líderes com pouco tino político abusam do trono e cometem excessos, dando as
costas para as questões administrativas (BLOIS & SPEK, 2008: 269 – 274). De
qualquer maneira, o Império Romano enfrenta, de fato, uma conjuntura difícil durante
todo o século III, num contexto demarcado por usurpações, conflitos internos e
campanhas externas, até que surge um personagem que, novamente, opera mudanças
substanciais e pragmáticas na máquina governativa: Diocleciano (284 d.C.). 6
Diocleciano, atento às dificuldades políticas de seu tempo, força a centralização
do poder na imagem do Imperador, afastando-a do estigma iniciado com Cômodo e
aproximando-a, cada vez mais, da esfera divina. Todo um escopo ritualístico é
incorporado no quotidiano político, e a cerimônia passa a ser prova ateste do poder
sagrado que emana do cetro de Roma (TAKÁCS, 2009: 88 – 89). Num plano
efetivamente administrativo, Diocleciano operou também novos dinamismos, como a
delegação de mando entre dois Césares e mais um Augusto – três personagens que, ao
lado do próprio imperador, formavam uma tetrarquia –, o que expandiu sua presença e
forçou a observância de suas ordens; internamente, levou ainda seu esquema ritualístico
para o corpo de funcionários, que então dividiam com ele algo deste aspecto
sacralizado. Segundo Christopher Kelly, a sedimentação cerimonial estendida também
aos membros da administração profissionalizava-os e formava ligações de lealdade,
justamente por uni-los num esprit de corps (KELLY, 2004: 186 – 187).
Concomitantemente ao fortalecimento simbólico de sua imagem, Diocleciano também
promoveu reformas na própria divisão imperial que permitiram a solidificação desta
força administrativa, aumentando o número de províncias para aproximadamente cem e
criando novas dioceses e prefeituras (o que demandou, naturalmente, uma atenção
maior à formação burocrática dos servidores imperiais) (SLOOTJES, 2006: 17).
Alguns anos depois, o Imperator Constantino deu prosseguimento ao esquema
ritualístico do qual Diocleciano se aproximou, com uma diferença, porém, fundamental:
a cerimônia do poder agora se imiscuía no cristianismo. Fortalecendo ainda mais o
caráter inédito e único de sua condição imperial, Constantino foi também responsável
6
Para os aspectos reformadores do governo de Diocleciano, ver SOUTHERN, Pat. The Roman Empire
from Severus to Constantine. Londres & Nova Iorque: Routledge, 2004, pp. 134 – 169.
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pelo retorno ao governo monárquico 7, ou seja, restringido somente a um líder, e pela
fundação, em 330 d.C., de uma nova capital, Constantinopla, nas bases da ancestral
cidade grega de Bizâncio.
A paulatina transladação da representatividade política entre Roma e
Constantinopla encarnava, para Constantino, uma empenhada estratégia de unificação
política e centralização imperial: enquanto o Imperator tornava-se novamente único em
seu mando, ele coroava esta glória com a criação de uma esplendorosa cidade, símbolo
de seu poder e de sua crença, afinal, sua capital nascia como uma cidade cristã, cujos
olhos fitavam somente um senhor no céu – Deus – e um senhor na Terra – o próprio
imperador (SILVA & MENDES, 2006: 203 – 207); Constantinopla não apenas coroava
o novo, mas rompia com o velho, com a velha estrutura política do passado, com as
tradições de outrora. Roma renascia em Cristo, em Constantino e em uma reedificação
pragmática de sua administração (KELLY, 2004: 187).
Enquanto novo coração político de Roma, a recém-fundada capital passava a
funcionar como nervo administrativo do império (KELLY, 2004: 187): longe das
tradicionais aristocracias senatoriais, havia a necessidade da forja e do preparo de novas
elites que dessem conta do serviço funcionarial, de forma que o peso da distinção social
de grupos eminentemente burocráticos foi intensificado. O que se tem no contexto,
portanto, é um processo que se inicia, grosso modo, com Diocleciano e suas reformas
estruturais e ganha forma material com a cidade de Constantino – epítome da
centralização imperial característica do século IV. Tal virada, naturalmente, exigiu de
seus realizadores a constituição de uma burocracia eficiente e especializada. Como
notou Sinésio de Cirene, no final do século IV:
De fato, para se conhecer cada lugar, homem ou discussão, muita inspeção
seria demandada, e nem mesmo Dionísio [de Siracusa], que estabeleceu seu
mando sobre uma ilha – e nem o todo dela –, poderia realizar tal tarefa. Mas
através de poucos funcionários 8 se pode lidar com muitas preocupações. 9
7
Neste contexto, entende-se por monarquia não o sistema de governo régio, mas sim a atribuição do
poder a somente um personagem (em oposição à tetrarquia diocleciana).
8
᾽ π ε η
no original. A palavra refere-se ao funcionário ligado a administração pública. Em outras
palavras, um burocrata.
9
“᾽ ασ ο ἐ
πο , α ἄ α, α ἀ φ σ ησ
έ ε ε έ α , πο ῆ ε ῆ ἒ πε
εω , α
ο ᾽ἂ
ο σ ο ἤ εσε ,
ῆσου ἄσ, α οὐ έ
α η ἀ χ
α ασ ησ ε ο , ἐπ ε εῖσ α .
᾽ π ε η
᾽
ω ἔσ
πο
φ ο σα ”. Syn. 30 1104
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O bispo de Ptolemaida, neste discurso de conselho ao imperador Arcádio, advertia-o da
necessidade de um corpo administrativo para lidar com os problemas de Roma
(CAMERON & LONG, 1993: 127). Essa perspectiva pode ser retrocedida ao período
de Diocleciano e também ao de Constantino, quando estes iniciam as reformas que
visavam fortalecer a imagem e o poder imperial.
Todo este processo evidencia uma grande mudança na tecitura social romana: a
representatividade de uma aristocracia senatorial (imbuída do peso da tradição, o
chamado mos maiorum
10
) decai paulatinamente diante do imperador, até que
Diocleciano leva ao Zênite tal mudança, a ponto de ser chamado pelo historiador M.
Arnheim como “a marreta da aristocracia” (ARNHEIM, 1972: 39). Como vimos, este
imperador trouxe novos dinamismos para a máquina imperial, de forma que um
crescente corpo de funcionários tomava o espaço político deixado pelas recuantes
famílias tradicionais. De acordo com Gilvan Ventura e Norma Musco Mendes:
A administração pública tornou-se amplamente burocratizada em virtude da
criação de uma forte hierarquização na formação do corpo de funcionários,
responsável pelo surgimento de uma aguda consciência de posição social e
prestígio político entre as distintas categorias de serviços estatais: vir
perfectissimus, clarissimus, spectabilis, illustris, títulos atribuídos a
indivíduos que eram igualados socialmente aos membros da ordem senatorial
pelo fato de exercerem algum tipo de atividade administrativa. Outro
elemento fundamental para o processo de burocratização característico do
Baixo Império foi a crescente especialização das funções. (SILVA &
MENDES, 2006: 203)
O câmbio socioadministrativo, porém, não se realiza apenas por um incentivo estrutural,
como se depreende do texto de Gilvan e Norma. Ainda que, naturalmente, a práxis
política tenha exercido impacto indelével em seu contexto, as transformações do mundo
romano são engatilhadas também, como vimos antes, em um nível retórico e simbólico.
Mos maiorum é a expressão latina que se referia aos “costumes ancestrais”, ou seja, a lei não escrita
que previa a superioridade política, cultura e social daqueles que dividiam um passado considerado
exemplar e glorioso. Para uma detalhada explanação do peso do mos maiorum na sociedade republicana e
imperial, ver GOWING, Alain. Empire and Memory: the representation of the Roman Republic in
imperial culture. Nova Iorque: Cambridge Univ. Press, 2005; ORLIN, Eric. Temples, Religion and
Politics in the Roman Republic. Boston; Leiden: Brill, 2002 & PEREIRA, Maria Helena da Rocha.
Estudos de História da Cultura Clássica. II volume – Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 2002. Devemos ter em mente, contudo, que a inserção do governo de Diocleciano no
ambiente da religião era bastante conservadora, assumindo uma postura negativa e mesmo violenta contra
o cristianismo. Assim, havia uma defesa retórica (e religiosa) da ancestralidade do mos maiorum, ainda
que, numa vertente político-administrativa, Diocleciano buscasse novas possibilidades.
10
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A centralização imperial, motivo de onde derivaram paulatinamente as mudanças
operadas entre os séculos III e IV, deu-se, em grande parte, por meio do cerimonial, da
sacralização do poder e de uma argumentação retórica que apontava o início de uma
Nova Era para Roma, coroada pela famosa constatação da Historia Augusta,
“Diocleciano, pai de uma era de ouro”
11
. A “era de ouro”, símbolo então incorporado
pelas diretrizes políticas de Diocleciano, seria marcada pela adoção da divinização da
Púrpura e pelo afastamento de concepções passadas
12
. Pode-se imaginar que a
manutenção de um status santificado para o imperador (neste momento, portador do
autocrático título de dominus, senhor) tivesse grande impacto sobre a percepção política
dos coevos. Stephen Williams faz uma boa descrição da posição de Diocleciano diante
de seus súditos e delegados:
Delegações, por exemplo, seriam cerimonialmente conduzidas por longos,
vastos salões de mármore (...) para um sanctum 13 interno. Lá estava,
entronada e impassível, a divina fonte de poder terreal: o Senhor do Mundo
com uma coroa de raios de sol, paramentado em ouro e púrpura, e incrustado
com pedras preciosas até os pés, empunhando os emblemas de poder
absoluto. Para uma quase-divindade, o gesto apropriado não era mais a
saudação, mas a prostração. (...) As muitas ocasiões em que este poderoso
imperador mostrava-se para seu povo ou dirigia-se aos soldados, eram uma
forma de festival, uma epifania em que o Deus-rei concedia-lhes graça com
sua aparição. 14
A figura imperial era, em si, uma imagem do próprio poder. Se na fundação do Império,
com Otávio Augusto, o princeps era um primus senati, ou seja, um igual selecionado
entre as aristocracias senatoriais para governar, com Diocleciano esta perspectiva é
sepultada e o dominus passa a ser uma figura demovida da presença de seus súditos por
11
“Diocletianus aurei parens sæculi”. HSA, Elag. XXXV, 4. Segundo Takács, o termo parens, em
oposição ao mais comum pater, emula Júlio Cesar, também considerado um grande operador de
mudanças estruturais em Roma (TAKÁCS, Sarlota. Op. cit., p. 88).
12
Naturalmente, esta realidade se dá num campo retórico. Diocleciano, como vimos, também operou
reformas administrativas mais concretas, de forma que ambos os planos são indissociáveis. Porém, para o
desenvolvimento de nosso argumento, o foco recairá – neste caso – no aspecto simbólico.
13
Sanctum é a designação tradicional para um local sagrado. Neste contexto, representa o aposento ou a
sala imperial.
14
“Delegations, for example, would be ceremonially conducted through long, vast marble halls. . . to an
inner sanctum. There was the enthroned, impassive godlike source of all earthly power: the Lord of the
World with a crown of the sun’s rays, robed in purple and gold, and encrusted with precious stones down
to his very shoes, holding the emblems of absolute power. To such quasi-divinity the proper gesture was
no longer salutation, but prostration . . . on the many occasions when this mighty Emperor showed
himself to his people or addressed his soldiers, it was automatically a form of festival, an epiphany in
which the god-king imparted grace by his very appearance to them” In: WILLIAM, Stephen. Diocletian
and the Roman Recovery. Nova Iorque: Methuen, 1985, pp. 111 – 112.
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meio da cerimônia e da pompa (TAKÁCS, 2009: 88). Isso significa que, efetivamente,
estar na presença do imperador era uma honra, criando assim uma nova hierarquia
sociopolítica, baseada naqueles que cercam e servem diretamente à Púrpura – o mos
maiorum, portanto, cede espaço ao sagrado corpo imperial. Em ultima instância, isso
significa que uma gestada aristocracia burocrática e especializada, nascida em especial
das reformas de Diocleciano, passa a assumir em definitivo funções que cabiam aos
ilustres senadores – e a função civil torna-se, cada vez mais, tão prestigiosa quanto a
função social (e tradicional) das antigas famílias.
Destarte, tanto num plano pragmático (a necessidade de especialização e de um
corpo administrativo vasto para manter um poder centralizado) quanto num plano
retórico (a cerimônia sacralizante de que se imbuia o imperador e aqueles que detinham
a honra de cercá-lo e servi-lo), a terceira e a quarta centúria de nossa Era assistem ao
crescente prestígio dos funcionários civis, dos administradores e dos burocratas do
Império Romano. Tem-se uma virada sociopolítica, onde a força senatorial decai diante
da verve desta nova aristocracia especializada e atuante: a manutenção do poder
dependia cada vez mais destes personagens. Esta necessidade institucionaliza-se no
governo do também reformador Teodósio I.
Tendo assumido a Púrpura em 379 d.C., o mando de Teodósio destaca-se, entre
outros, pela adoção do cristianismo como única e oficial religião do Império e pela
divisão perpetrada após sua morte (Teodósio lega uma pars orientalis para seu filho
Arcádio e uma pars occidentalis para seu filho Honório) 15. A efetiva divisão imperial,
por si só, forçava uma iniciativa de fortalecimento administrativo, em especial por
tornar Constantinopla – como vimos, uma cidade nascida no apogeu da “virada
burocrática” – um centro próprio e focado em sua própria realidade; naturalmente, a
separação orientis / occidentis reduzia também a extensão territorial sob mando de um
15
Já em 364, Valentiniano I concede a tutela de uma porção oriental do Império para seu irmão, Valente
(morto em 378, na batalha de Hadrianópolis), iniciando assim uma prática de separação administrativa.
Tal segmentação, porém, só se tornaria institucional com os irmãos Arcádio e Honório. Após 395, com a
morte de Teodósio, o Império Romano passa formalmente a ser composto de uma ala ocidental (pars
occidentalis) e uma ala oriental (pars orientalis). Ainda que, em teoria, ambas as partes fossem gêmeas de
uma mesma realidade, na prática elas seguiam realidades políticas distintas, de forma que nunca mais, na
história romana, um líder teria hegemonia sobre o território imperial como um todo. ERRINGTON,
Robert Malcolm. Roman Imperial Policy from Julian to Theodosius. Chapel Hill: Univ. of North Carolina
Press, 2006, pp. 1 – 7 & GORDON, C. D.. The Age of Attila: Fifth-Century Byzantium and the
Barbarians. Michigan: Univ. of Michigan Press, 1972, p. 1.
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único imperador ou corpo funcionarial, o que consequentemente abafava problemas
mais sérios, como chefes locais abusando de sua autoridade (KELLY, 2004: 108 – 109).
Com Teodósio I, portanto, a vida administrativa de Roma sofre uma inflexão em
si mesma. Formalmente, a porção oriental do Império – mais vigorosa e hábil que sua
contraparte ocidental
16
– segue em rédeas próprias, apenas virtualmente atenta aos
problemas da capital itálica (em especial, na medida em que os assuntos mediterrânicos
lhe afetavam) e num processo de fortalecimento burocrático cada vez maior: nas portas
da quinta centúria, o poder do Imperador não existia mais sem o suporte de funcionários
e de uma faminta e poderosa máquina administrativa. A autoridade da Púrpura, neste
momento, dependia da delegação de funções aos funcionários especializados (como
notou Sinésio em conselho a Arcádio, filho de Teodósio e herdeiro desta realidade);
poder delegado é poder emancipado (KELLY, 2006: 191). O que passa a suceder com o
universo político-administrativo do Império, então, é uma situação paradoxal: a
autocracia do líder dependia de uma burocracia forte e especializada, e justamente esse
nível de dependência e especialização fazia dos oficiais administrativos elementos com
mando crescente e, em certa medida, independente do próprio trono imperial.
É neste ínterim, portanto, que o universo da oficialidade civil passa a exercer
influência tremenda no andamento do império e atrair para si todas as preocupações de
mando e governo. Sua lapidação, especialização e organização são chaves centrais para
o bom mando. Por alto, pode-se dizer que o poder romano, na Antiguidade Tardia,
caracteriza-se por ser um poder de cunho burocrático
17
, e a produção documental
jurídico-administrativa do século V sedimenta esta hipótese. Em 438, o Imperator
Teodósio II, filho de Arcádio e neto de Teodósio I, emite o Codex Theodosianus, um
código de leis e formulações compiladas desde os tempos de Constantino I. É
sintomático que, dos 16 livros do Codex que nos foram legados, 11 tratem acerca da lei
pública e, consequentemente, de aspectos administrativos (SIRKS, 2007: 79); destes, o
primeiro e o sexto são dedicados totalmente à especificação e normatização de cargos
Enquanto o ocidente sofria desgastes internos e externos desde, pelo menos, os séculos II – III, o
oriente se beneficiava de uma administração jovem, firme e planejada, nascida poucos anos antes de
Teodósio, como fruto do julgamento de Constantino. A pars orientalis, assim, adentrava o século V com
fôlego que parecia faltar ao universo político ocidental. Cf. GORDON, C. D.. Op. cit..
17
Para um contexto geral que corrobore tal afirmação, ver BARNISH, Sam; LEE, A.D. & WHITBY,
Michael. “Government and administration”. In: CAMERON, Averilν WARD-PERKINS, Bryan &
WHITBY, Michael (edits.). The Cambridge Ancient History XIV – Late Antiquity: Empire and
Successors, A.D. 425 – 600. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2008, pp. 164 – 203 & KELLY,
Christopher. Op. cit..
16
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burocráticos e civis. Infere-se, assim, que a importância dos oficiais administrativos
fosse notável, já que o próprio código legal do período se inicia com atenção ao “ofício
dos prefeitos do Pretório”, “ofício do prefeito da urbe”, “ofício dos questores”
18
, et
cetera. Todos estes cargos compunham um cenário de burocratização e, mais e mais,
serviam também como gatilho de um status quo almejado – como vimos, aqueles que se
tornavam oficiais do Império mantinham-se próximos ao imperador (proximi) (KELLY,
2004: 193) e, assim, angariavam posições sociais e poder. Tal lógica hierárquica foi
também, na quinta centúria, formalizada num documento imperial, a Notitia
Dignitatum. Publicação chancelar concernente às divisões dos cargos administrativos do
Império tanto na pars orientalis quanto na pars ocidentalis, a Notitia Dignitatum nos
apresenta a complexa estratificação hierárquica de funções burocráticas no início do
século V (e mesmo em fins do século IV). Mais do que um panorama acerca do
funcionamento interno de Roma, este rico documento indica a distinção social atribuída
a cada ofício. Honrarias cedidas tão somente aos aristocratas senatoriais
19
agora eram
inerentes aos cargos, imbuindo àqueles que os ocupavam independentemente de sua
origem ou passado tradicional. O alto título de Vir Illustris [varão ilustre], por exemplo,
era concedido ao ocupante de cargos como o de Prefeito do Pretório, Prefeito da Urbe,
Mestre dos Exércitos, Prepósito do Cubículo Sagrado
20
, Mestre dos Ofícios, Questor,
entre outros 21. A gradação honorífica seguia com a designação de Vir Spectabilis [varão
respeitável] para o ocupante do ofício de vigário da Urbe e de Chefe do Cubículo
Sagrado 22. A Notitia Dignitatum torna claro, portanto, que a distinção sociopolítica, nos
séculos IV e V, passa a estar relacionada não aos personagens, mas aos cargos, à
estrutura burocratizada de poder.
Tem-se, portanto, uma longa conjuntura de mudanças e reformas no que diz
respeito à práxis política do Império Romano. Na busca por um fortalecimento do poder
“De officio præfectorum prætorio”, 1.5.0, “De officio præfecti urbis”, 1.6.0, “De officio quæstoris”,
1.8.0., Cod. Thed. I.
19
Para detalhes, ver FRIGHETTO, Renan. “Estruturas Sociais na Antiguidade Tardia Ocidenta (séculos
IV/VIII). In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (org.). Op. cit., pp. 223 – 240.
20
Præpositus Sacri Cubiculi. Neste caso, o “Cubículo Sagrado” designa o aposento mais íntimo do
Imperador, de forma que seu prepósito tinha o benefício da proximidade e da importância cerimonial.
21
“Insignia viri illustris præfecti prætorio (...)” IIν “Insignia viri illustris præfecti urbis Romæ (...)” IVν
“Insignia viri illustris magistri peditum (...)” Vν “Insignia viri illustris magistri equitum (...)” VIν
“Insignia viri illustris magistri officiorum (...)” IXν “Insignia viri illustris quæstoris (...)” Xν “Insignia viri
illustris comitis sacrarum largitionum (...)” XIν “Insignia viri illustris comitis privatarum (...)” XII, not.
dig. in par. occ..
22
“Sub dispositione viri spectabilis primicerii sacri cubiculi (...)” XIV; “Sub dispositione viri spectabilis
vicarii urbis Romae (...)” XIX, not. dig. in par. occ..
18
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central e da figura do líder autocrático e cerimonializado, personagens que assumem a
Púrpura cultivam, paulatinamente, um novo grupo social demarcado pela especialização
civil e pela burocratização ao redor de cargos e ofícios. Na medida em que o princeps
afasta-se da imagem do cidadão aristocrático e torna-se um dominus, um senhor
inatingível e apoteótico, a antiga elite senatorial, responsável pela tradição e distinção
honorífica, se afasta da feitura política e aqueles que cercam o dominus imperator, ou
seja, este novo estrato responsável pela oficialidade administrativa, passam a tomar as
rédeas do poder efetivo. Assim, o peso e a manutenção de um status quo não orbitam
tão somente o bom nascimento e as famílias ancestrais, mas passam a ser inerentes a
ocupação de cargos administrativos dentro do Império – denotando a capacidade,
habilidade e valor daqueles que os ocupam, independente de uma noção tão somente
senatorial. Portanto, podemos afirmar que, solidificada em especial nas imagens de
Diocleciano, Constantino e Teodósio (I e II), os séculos III, IV e V são testemunhas
operantes de uma virada burocrática, ou seja, uma maior valorização, dentro do
universo da prática política
23
, daqueles que ocupam cargos especializados e civis; em
outras palavras, a administração passa a ser o centro nevrálgico do Império Romano,
fundamental para seu funcionamento e para a manutenção de seu poder. A burocracia,
mais e mais, torna-se o coração da Romanidade.
Parte II – Lógica e Ideologia Burocrática
A perspectiva de uma burocratização do Império Romano opera, portanto, em
dois âmbitos: as ocasiões externas que levaram a formatação de uma elite administrativa
e a lógica interna, ou seja, o funcionamento e a retórica valorativa dos ofícios civis e
burocráticos. Como vimos a pouco, o contexto que levou à criação deste corpo
funcionarial responde, grosso modo, às necessidades centralizadoras dos imperadores (e
suas diversas implicações, como o cerimonial e a ritualística que passaram a envolver a
política mesmo em seu nível prático 24). Com efeito, a manutenção desta nova ordem e
23
Dada a miríade de definições e posições sociais do Império Romano Tardio, em especial após a
inserção do cristianismo como elemento majoritário no contexto (e de como estas definições se cruzam e
se misturam), optamos por frisar que nossa perspectiva de Virada Burocrática pauta-se
fundamentalmente nas atribuições daqueles que ocupam lugares na efetiva práxis política e administrativa
de Roma.
24
O aspecto cerimonial que cercava o dominus romano na Antiguidade Tardia não funcionava apenas
como propaganda e emulação de poder, mas encarnava a própria existência política da instituição
imperial. Era um dos braços governativos do líder e funcionou como um aspecto prático de reestruturação
29
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da existência da força administrativa passou a depender de sua justificativa, eficácia e
representação social, elementos plasmados, portanto, numa ideologia burocrática
estabelecida, paulatinamente, desde o século IV. Assim, elementos externos e internos
se confundem neste momento em que o mando autocrático divide-se, paradoxalmente,
entre o Imperador e seus oficiais 25.
A lógica interna do funcionamento burocrático, quando relacionada à política e
ao exercício do poder na Antiguidade Tardia, reside num campo ideológico antes de
conceitual, ou seja, pode-se definir o universo e o funcionamento administrativo por
meio de uma perspectiva ideológica, ainda que pareça lacônica a não-presença de um
conceito facilmente delimitável. Do ponto de vista historiográfico, inexiste
necessariamente uma noção clássica ou tardo-antiga para a ideia de administração –
naturalmente, a palavra indica uma prática política já em sua etimologia (“ajuda”,
“assessoria”)
26
, e pela abertura e aplicabilidade do termo, não necessitou de uma
definição mais verticalizada. Isso significa que o vocábulo não encerra em si, além de
seu significado lexical, necessariamente uma teorização mais específica, mas sim um
tipo de aplicação sociopolítica maleável, condizente com as variações contextuais. A
ideia de administração, portanto, emula uma particular conduta no âmbito governativo,
sem representar, como dito, um conceito pensado em trabalhos filosóficos ou mais
abstratos. Formular uma diferenciação entre um escopo conceitual e ideológico, dessa
forma, significa dizer que, apesar de não configurar-se como um nome pensado e
imbuído de significados teóricos, a administração era um aspecto contundente da prática
política, por isso necessitava de constante normatização, de forma a tornar-se um tipo de
ideologia política / administrativa, ou seja, uma prática (ou ideia) que estabelece formas
e expectativas para um determinado objetivo.
de uma nova ordem social, com o afastamento das tradicionais aristocracias e a aproximação de elites
especializadas e burocráticas. In: TEJA, Ramón. Emperadores, Obispos, Monjes y Mujeres: Protagonistas
Del cristianismo antiguo. Madri: Editorial Trotta, 1999, pp. 51 – 54.
25
Paradoxal porque, apesar de autocrático, o poder do Imperador neste momento dependia
fundamentalmente da delegação de funções aos oficiais administrativos. Assim, ainda que o dominus
emanasse autoridade de sua própria imagem, ele necessitava da existência de uma burocracia. Tal relação,
por sua dependência mútua, acabava por conceder certo grau de autonomia aos funcionários mais ilustres,
já que neles repousava a execução dos desígnios imperiais.
26
Administração, do latim administratio, corresponde à junção do prefixo ad- e do substantivo –
ministratio. Enquanto o último designa a idéia de assistência, serviço, o primeiro indica aproximação.
Assim, a idéia de administratio enfatiza a assessoria de forma incisiva, ganhando historicamente
contornos de atuação política ou oficial.
30
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A ilustração dessa perspectiva epistemológica é fundamental para que
compreendamos as transformações e aplicações da administração no decorrer do mundo
romano – e, em especial, no momento em que ela se torna um poderoso distintivo
social, como vimos anteriormente. A importância de se pensar a assessoria funcionarial
na práxis política já se fazia perceptível no período republicano: quando Cícero nota o
crescimento do poder pessoal de personagens nos afazeres da República (como no caso
de Júlio César) já no fim de sua vida, empenha-se por escrever um trabalho que versaria
sobre as obrigações morais daqueles que assumiam ofícios públicos, num trabalho
intitulado De Officiis
27
. Nesta obra, Cícero se mostrava preocupado com o que
considerava desmandos e excessos governativos, e numa tentativa de correção,
estabelece modelos de conduta e moral política
28
. O que Cícero percebe, já no
crepúsculo da República, é que a liderança de seu tempo deveria se beneficiar de uma
oficialidade e de uma assessoria que fosse moralizada e capacitada, ou seja, de uma boa
administração. A aproximação entre o homem público (no sentido de suas obrigações
governativas) e a moral indica, neste momento, uma necessidade de se estabelecer um
corpo que impedisse, justamente, o abuso do poder pessoal. A perspectiva
administrativa, como advinda da pena ciceroniana, assim, prega pelo estoicismo
29
no
plano teórico e pela efetiva divisão de poder entre os aristocratas tradicionais no plano
prático: a gestão da coisa pública (Res Publica) dependia, de forma crucial, tanto da
inexistência de um líder destacado e autocrático como do bom equilíbrio entre os
cônsules instaurados e o corpo senatorial – todos distintos socialmente de forma
isonômica, separados apenas por um específico arranjo político (STROUP, 2010: 118 –
Cf. Cic. De Offic. I – III.
Para uma explanação mais detalhada acerca do contexto de produção das obras de Cícero e de suas
possíveis intenções no andamento política da República, cf. NARDUCCI, Emanuele. Cicerone: La Parola
e La Politica. Roma: Laterza, 2010; MAY, James M. (Edit.). Companion to Cicero: Oratory and Rhetoric.
Leiden; Boston; Colônia: Brill, 2002 & WOOD, Neal. Cicero’s Social and Political Thought. Berkeley:
Univ. of California Press, 1991.
29
A partir de 45 a.C., se intensifica a produção filosófica de Cícero. Naturalmente, enquanto político e
orador, ele não elabora um sistema de pensamento original, mas apóia-se no pensamento grego clássico e
helenístico para embelezar sua estética literária e, principalmente, para atribuir valor moral aos homens
que ocupam cargos. Cícero torna-se, assim, um pensador da política, um filósofo voltado eminentemente
para a aplicação direta de suas ideias no mundo administrativo, e tal perspectiva toma forma,
principalmente, no trabalho de officiis, escrito com forte base no trabalho do estóico do século II a.C.,
Panécio. Assim, o estoicismo, nesta obra, torna-se uma moldura que, sob as intenções ciceronianas,
concede os valores morais do homo honestum para que eles sejam plenamente aplicáveis na vida pública
(numa espécie de resumido estoicismo político-administrativo). Cf. LEONHARDT, Jürgen. “Cícero:
Filosofia entre cepticismo e confissão”. In: ERLER, Michael & GRὕSER, Andreas (orgs.). Filósofos da
Antiguidade: do Helenismo à Antiguidade Tardia, vol. II..São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 85 e pp. 98 –
99.
27
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120). Em outras palavras, administração era (se tomarmos Cícero como um dos grandes
representantes do século I a.C.), ideologicamente, uma aristocracia funcionante,
temperada por uma forma particular de moral estóica e pela perspectiva do bom
governo. Administrar é bem governar e dependeria, portanto, da boa capacidade de seus
partícipes, exaltando assim o preparo e a instrução daqueles que assumiam a toga
(STEEL, 2001: 162):
Mas aqueles que tem da natureza a assistência para a gestão das coisas devem
abdicar de toda a hesitação e buscar as magistraturas e o direcionamento da
administração [res publica], pois não há outra forma para se reger uma
cidade ou manifestar a grandeza da alma. Porém, aqueles que tomam parte
das coisas públicas devem, assim como os filósofos – ou talvez até mesmo
mais do que estes – possuir magnificência, consideração pelas vicissitudes
humanas (...) e tanto segurança como tranqüilidade no espírito. (...). Tal
situação é mais fácil para os filósofos, já que suas vidas sofrem menos com
assaltos da Fortuna, suas necessidades são menores e suas quedas menores
em seus fracassos. Neste sentido, aqueles que gerem os afazeres públicos são
mais acometidos pelo zelo e por sentimentos agitados do que aqueles que
vivem na calmaria, e por isso devem possuir uma mente plena e indolência
para com a aflição. Portanto, aquele que aceita o gerenciamento das coisas
deve julgar quão honesta é sua empreitada e se ele é capaz de realizá-la; que
ele considere, também, não se desespere temerariamente diante do
desencorajamento nem se torna confiante demais por conta da ambição.
Deve-se ter uma preparação diligente antes de todas as empreitadas. 30
A perspectiva da administração romana, neste caso, repousa na própria noção de
política: para Cícero, o homem administrador é aquele que adentra a gerência pública,
que representa o senado e o povo, são os optimates e os populares. Depreende-se,
“Sed iis qui habent a natura adiumenta rerum gerendarum, abiecta omni cunctatione adipiscendi
magistratus et gerenda res publica est; nec enim aliter aut regi civitas aut declarari animi magnitudo
potest. Capessentibus autem rem publicam nihilominus quam philosophis, haud scio an magis etiam, et
magnificentia et despicientia adhibenda est rerum humanarum, (...), et tranquillitas animi atque securitas
(...) quae faciliora sunt philosophis, quo minus multa patent in eorum vita, quae fortuna feriat, et quo
minus multis rebus egent, et quia si quid adversi eveniat, tam graviter cadere non possunt. Quocirca non
sine causa maiores motus animorum concitantur maioraque studia efficiendi rem publicam gerentibus
quam quietis, quo magis iis et magnitudo est animi adhibenda et vacuitas ab angoribus. Ad rem
gerendam autem qui accedit, caveat, ne id modo consideret, quam illa res honesta sit, sed etiam ut habeat
efficiendi facultatem; in quo ipso considerandum est, ne aut temere desperet propter ignaviam aut nimis
confidat propter cupiditatem. In omnibus autem negotiis priusquam adgrediare, adhibenda est
praeparatio diligens”. Cic. de. offic. I, 72.
30
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assim, que existia a necessidade de uma formação filosófica
31
e de um preparo prévio
para a assunção republicana. 32
Esta imagem do administrador enquanto homem político (e, consequentemente,
bem preparado para a vida pública) dava o tom, como vimos, da ideologia de gerência
durante a Republica e, de certa forma, caminhou pari passu com as transformações
estruturais do universo romano quando este ascende como um Principado instaurado
pelas reformas augustanas. O corpo senatorial, ainda detentor de primazias na hierarquia
social, passa a atuar como uma egrégia reunião de conselheiros imperiais, calcados
muito em uma tradição ancestral e numa pretensa experiência política que datava
imemorialmente – em outras palavras, o Senado romano, enquanto repositório de
passado, história e prestígio mantinha-se próximo da administração e da política, mas na
medida em que o princeps concentrava para si o poder efetivo, esta instituição ocupavase muito mais de um retorno aconselhativo (POHLMANN & PINTO, 2007: 175 – 176)
do que mando real:
Mérito ao Senado, que censura aqueles que preferem seu próprio poder à
reputação do Príncipe [Imperador]. Mas é nosso dever olhar pelo mando de
vossa Clemência. Pois é mais apropriado que defendamos as instituições de
nossos ancestrais, a justiça e o destino da Pátria ou a glória de nossos tempos,
que é tão maior quando vós entendeis que nada deve ser feito contra os
costumes de nossos antepassados? 33
Tal posicionamento implicava que a pertença a uma ordem senatorial (ou, de forma
mais relativa, a uma ordem socialmente elevada) laureava determinado personagem
31
A analogia entre o homem que adentra o serviço público e o filósofo cria uma ponte com a República
de Platão, uma influência bastante forte para o romano. Reminisciências, similitudes e diferenças entre
Cícero e o pensador grego são elucidadas no decorrer do texto de CORBEILL, Anthony. “Ciceronian
Invective.” In: MAY, James M. (Edit.). Op. cit., pp. 23 – 48.
32
Ao que se depreende das fontes, a perspectiva administrativa orientada pela práxis política era tão
contundente em Cícero que a própria designação de Optimus ou Popular não era claramente definida,
mas respondia ao posicionamento político de certos personagens; assim, antes de uma estanque etiqueta
social, estas denominações indicavam, respectivamente, aquele que se voltava para os interesses do
Senado e aquele que se voltava para os interesses das massas. In: MORSTEIN-MARX, Robert. Mass
Oratory and Political Power in the Late Roman Republic. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2003, pp.
204 – 205.
33
“merito illos senatus insequitur, qui potentiam suam famae principis praetulerunt; noster autem labor
pro clementia vestra ducit excubias. Cui enim magis commodat, quod instituta maiorum, quod patriae
iura et fata defendimus, quam temporum gloriae? Quae tunc maior est, cum vobis contra morem
parentum intellegitis nil licere”. Symm. Relat. III, 3. Nesta famosa passagem, Quinto Aurélio Símaco,
politico e orador do século IV, protesta contra a remoção do Altar da Vitória (símbolo da Roma pagã e
tradicional), alegando que é dever do Senador olhar pelos costumes ancestrais e, assim, defender a glória
da instituição imperial.
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com a distinção necessária para o exercício administrativo (sempre sob vistas
imperiais). Ideologicamente, os últimos anos da República e, de forma mais ou menos
análoga, os primeiros anos do Império atrelavam à administração o status quo, ou seja, a
posição social, o preparo de um determinado grupo de personagens (ANDO, 2000:
153).
De acordo com nossa explanação anterior, a realidade imperial romana
caminhou de tal forma em seus primeiros três séculos que, especialmente durante as
governações de Diocleciano, Constantino e Teodósio (I e II), reformas estruturais
acabaram por alterar de forma indelével as definições sociais, operando algo que
optamos por chamar de “virada burocrática”, ou seja, uma gradual valoração dos ofícios
administrativos diante da política do Império. Naturalmente, esta virada engendrou (e,
de certa forma, foi também engendrada por) uma alteração na perspectiva ideológica
acerca do homem administrador, afastando-o de forma fundamental da imagem gestada
por Cícero e aplicável ao fim da República (a do homem político) – e, em proporções
filosóficas, ao início do Principado (a do homem que aconselha). O homem preparado
aos moldes ciceronianos cede seu espaço público; fundamentalmente, a própria
concepção de poder e da imagem imperial, a partir deste contexto, sofrem alterações e,
assim, carregam em sua crista novos dinamismos entre os partícipes de sua realidade.
Isso significa que o afastamento entre a Púrpura e a cúpula senatorial (ou seja, a
transmutação gradual do princeps em um dominus)
ecoa
numa
concepção
hierárquica e faz emergir novas necessidades – como vimos, “necessidade” é a palavra
de ordem diante do fortalecimento da burocracia.
Para que se aborde uma ideologia administrativa, neste contexto, faz-se
necessário pensar, antes, noutra nominação utilizada ao largo deste texto: a burocracia.
De forma semelhante ao que se compreende como administração, burocracia não se
configura como um conceito facilmente tangível – ainda que carregue uma significação
moderna no que diz respeito a um tipo específico de poder baseado numa aparelhagem
estatal, uma aplicação verticalizada para a Antiguidade Tardia pouco se aproxima desta
perspectiva. Antes, burocracia evoca também uma espécie de ideologia governativa, ou
seja, uma percepção acerca de uma determinada práxis política, um posicionamento
referente ao âmbito gerencial e administrativo, cuja abrangência extrapola os limites do
poder e emana para toda uma definição social. É, portanto, entendida aqui como uma
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orientação relacionada ao mando imperial, mas que congrega em si forte influência
sobre a holística de uma sociedade – entenda-se: toca aspectos econômicos, políticos,
sociais, culturais, et cetera. Enquanto a administração é compreendida como uma forma
de assistência que carrega uma forte manutenção ideológica, burocracia, em nossa
redação, é o fortalecimento e a ênfase nesta forma de assistência quando se toma como
parâmetro a maneira com que os imperadores lidavam com seu mando durante este
períodoν é, portanto, a “aplicação” de uma lógica administrativa para o exercício
imperial (ou ainda a necessidade dessa “aplicação” para o funcionamento do Império).
É cabal que se esclareça, contudo, que esta percepção de burocracia responde à nossa
inferência a partir da apreciação contextual: ao contrário do termo administratio, a
palavra burocracia não se encontra em fontes do período. Contudo, observamos uma
clara alteração na ordem socioadministrativa do mundo romano a partir dos séculos III e
IV, o que demanda uma específica designação para a ideologia administrativa coeva; é a
essa alteração de pensamento, portanto, que optamos por chamar de burocracia.
A ideologia burocrática esquematiza-se em vários níveis dentro dos
fundamentos de uma elite administrativa. Talvez o mais perceptível seja aquele que
opera na visualidade: quando o princeps torna-se um dominus, um diuus e se retira da
presença pública por meio de um cerimonial, o corpo administrativo mais próximo que
suporta sua política torna-se, este também, repositório de sacralidade. A divinização
imperial materializa-se na Púrpura, no ouro e nas pedras preciosas que adornam o deus
vivo. Igualmente, os personagens que, na cúpula do governo, levam a cabo as ordens do
líder, travestem-se com majestade, com paramentos ricos e impositivos, com insígnias e
preciosidades que imitam o imperador e que denotam, perante a sociedade, suas funções
e seu prestígio (RUMMEL, 2007: 91 – 92). João da Lídia, oficial romano oriental do
século VI, afirma que uma das vestimentas do Prefeito do Pretório, a Paragauda (uma
túnica púrpura majestosa e tradicional), diferia-se do indumento imperial somente pela
ausência da segmenta (espécie de tiras de metal ou ouro decoradas)
34
. O autor lídio,
grande defensor do ofício pretorial, segue descrevendo toda a especificidade e
importância do paramento burocrático, apontando peças como a tubulamenta, o mantion
“Γ
ἔπα χο πε ε α ε ο Κ α (...) ση
ω οὐ ἐπ α ο ω
α η (...). α α η
,
χ
α απ φυ ο (…)” Johann. De mag. II, 13. Para descrições acerca deste tipo de traje, cf.
KLEINBAUER, W. Eugene. “The Iconography and the Date of the Mosaics of the Rotunda of Hagios
Georgios, Thessaloniki”. In: Viator: Medieval and Renaissance Studies. Vol. 3. Berkeley: Univ. of
California Press, 1972, p. 47 & LEADER-NEWBY, Ruth. Silver and Society in Late Antiquity: Functions
and Meanings of Silver Plate in the Fourth to Seventh Centuries. Surrey: Ashgate, 2004, p. 36
34
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e a tablia
35
. Fica evidente o valor dado, neste momento, ao que se depreende da
materialidade, da dimensão visual destes personagens; uma vez que o dominus torna-se
uma figura dotada de sacralidade, sua presença transforma-se numa constante epifania,
e suas aparições públicas são como revelações, contam com o peso e o mistério de uma
apoteose (TEJA, 1999: 51). Assim, a ritualização do poder força um suporte ideológico
apoiado em sua imagem, em sua visualidade, e numa mimese representativa, oficiais e
altos funcionários administrativos adotam vestiduras impressionantes, distintivos sociais
que apontam seus cargos e sua glória. A singularidade e riqueza do traje burocrático são
como um microcosmo tangível da glorificação imperial. 36
A exaltação administrativa por meio da vestimenta acompanha outro forte
elemento ideológico desta lógica burocrática: uma nova hierarquia social engendrada
pela aproximação com o imperador. Como afirmamos anteriormente, durante os
primeiros séculos do Principado, o líder (ou seja, o princeps) era tido como um senador,
o primeiro cidadão, e seu mando advinha da retenção pessoal de poderes magistraturais
(ele detinha a chefia militar por meio do imperium, a autoridade de veto e de
intermediação através do tribunicia potestas, além dos encargos de cônsul, pró-pretor,
triunviro, primeiro do Senado e sacerdote máximo)
37
. Nos séculos seguintes, a
consolidação e a centralização da liderança imperial tornam-se uma constante, e
atingem seu zênite com as reformas de Diocleciano. Este momento funciona como um
marco simbólico do afastamento do princeps e a afirmação do dominus. O imperador
aporta-se não mais na detenção de magistraturas, mas sim em sua sacralidade – a
instituição imperial, antes baseada num eco republicano, agora é imbuída de um poder
divinizado (McCORMICK, 1990: 152). O distanciamento com relação ao passado
senatorial implica, de certa forma, num paulatino afastamento político das elites
senatoriais e, no vácuo deixado, surge a necessidade da edificação de um novo grupo
funcionarial.
“(...) ου α α
ο (...)”, “(...) α ο (...)”, “(...) αυ
(...)” Johann. De mag. II, 4ν 13.
A própria construção etimológica do termo Burocracia aponta, historicamente, para a relevância do
paramento oficial. Ainda que advenha do francês antigo bure (que indica uma veste) acrescida do sufixo
grego que indica poder (-kratia,
α), a inspiração para a palavra pode vir do latim tardio burra que
designa, por sua vez, um traje oficial feito de lã.
37
“ (...) imperium mihi dedit. Res publica ne quid detrimenti caperet, me propraetore simul cum
consulibus providere iussit. Populus autem eodem anno me consulem, cum cos. uterque bello cecidisset,
et triumvirum rei publicae constituendae creavit” Res Gest. Iν “(...) agebam septimum et tricensimum
tribuniciae potestatis” Res Gest. IVν “Triumvirum rei publicae constituendae fui per continuos annos
decem. Princeps senatus fui usque ad eum diem quo scripseram haec per annos quadraginta. Pontifex
maximus (...) fui” Res Gest. VII.
35
36
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É fundamental que este ponto seja sempre ressaltado, uma vez que denota forte
inflexão na ideologia administrativa do momento. Na concepção Tardo-Antiga, quando
a fonte do poder romano passa a emanar da própria figura imperial, a proximidade com
este é tida como uma espécie de “termômetro distintivo”, ou seja, a presença ao lado do
imperador é, por si só, um elemento de glória e de manutenção de um status quo. Por
sua vez, na medida em que o dominus abandona um embasamento imperial e torna-se,
em pessoa, uma representação divina, deve romper com antigos laços, apresentar uma
nova realidade e imbuir toda a Roma com a glória e majestade nascente; é fundamental,
em teoria, que as antigas elites, símbolos do passado senatorial, afastam-se de práxis
política e cedam espaço para funcionários especializados, gestados no seio deste novo
tipo de poder, desta cerimonialização do Império Romano.
Num plano prático, essas reformas não significam, naturalmente, que antigas
elites e membros senatoriais tenham perdido prestígio. A mudança ocorre muito mais
em nível ideológico: a glória e a ilustração residem na ocupação de determinados cargos
e na proximidade com o imperador, independente de quem preencha estes requisitos.
Como notamos no início deste texto, isso indica que a distinção social deixa de recair,
necessariamente, no bom nascimento aristocrático, mas advém de posições, de scrinia e
ofícios. Não é mais o aristocrata quem faz a Prefeitura do Pretório, por exemplo, mas a
Prefeitura do Pretório é que faz o aristocrata. Esta nova concepção permite uma relativa
mobilidade social no mundo romano, e é desta possibilidade de ascensão que surgem
novas elites, novas lideranças e novas hierarquias. Corrobora-se a isso uma análise das
designações sociais neste momento. Como vimos, títulos como o de Vir Illustris ou Vir
Spectabilis, antes de posse exclusiva do Senado, passam a ser prerrogativa também dos
ocupantes de certos cargos. É interessante notar, porém, que além dessa mudança na
designação, a realidade burocrática e a alta valoração de alguns ofícios forçam
denominações ainda mais pomposas: entram em cena os Viri Gloriosissimi
(ἐ ο
α ο em grego) e os Viri Magnificentissimi ( ε α οπ επέσ α ο em grego).
Em especial nos últimos anos de efetiva existência de uma autoridade romana no
Ocidente (e no decorrer do século VI, fundamentalmente no mundo Oriental), esta
titulação surgia para suprir a necessidade de uma cada vez maior distinção social entre
as elites administrativas. Ainda mais grandiosa que os títulos de Viri Illustri e Viri
Spectabili, estas novas denominações apontavam toda a glória dos oficiais e dos homens
próximos ao imperador (KAZDHAN, 1991: 855).
37
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A valorização administrativa, ou seja, o regime burocrático que passa a imperar
em Roma opera grandes transformações não apenas na dinâmica civil, mas na própria
cúpula do poder. Grosso modo, o mundo romano torna-se mais e mais um mundo de
corte, uma realidade onde o dominus é o sol (McCORMICK, 19--: 219) e seus
funcionários são corpos que orbitam em sua majestade; a estratificação funcionarial e a
especificação de cargos é a forma encontrada para que a sociedade imite o tom cortês
dado pelo líder, ou seja, todo o corpo civil se aglomera ao redor da Púrpura, enquanto
todo tipo de ofício passa a cortejar e orbitar a instituição imperial. Numa concepção
ideológica de burocracia, a política é feita por meio da divisão e da delegação. A
pretensa isonomia entre segmentos aristocráticos tornava-se incompatível com a corte
de um Imperador-Deus.
Assim, portanto, é a ideologia burocrática. Uma concepção de poder que se
aporta numa realidade de corte, na cerimonialização imperial, na visualidade e na
materialidade das funções por meio de paramentos e insígnias, na especialização de
cargos e na edificação de uma nova elite marcada pela capacidade administrativa e pela
importância ao bom funcionamento do Império Romano. Em suma, esta linha simbólica
demarca de maneira cabal, para o historiador interessado, a importância e a crescente
influência da máquina e do corpo burocrático no mundo político do Império Romano e
da Antiguidade Tardia.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
Documentação primária:
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O CRIME DE ‘MAIESTAS’ NA HISTÓRIA DO IMPÉRIO ROMANO:
O CASO DO LEVANTE DAS ESTÁTUAS EM ANTIOQUIA DE ORONTES1
Profa. Dra. Érica Cristhyane Morais da Silva2
ecmsilva@gmail.com
Resumo
Na História do Império Romano, maiestas era uma importante concepção entre
os antigos romanos. No presente texto, buscamos compreender o que significa maiestas
na qualidade de ‘crime’ e dentro do contexto de uma importante sedição chamada de
Levante das Estátuas ocorrida na cidade de Antioquia de Orontes em 387 d.C. onde
imagens imperiais foram zombadas e destruídas. As ações contra as imagens imperiais
nesse levante implicariam na acusação de crime de maiestas também concebido sob os
termos gregos ¢sšbeia e kaqos…wsij contra a população antioquena. Nesse sentido,
inferiremos os testemunhos de João Crisóstomo e Libânio, autores antigos e importantes
personagens da sociedade antioquena que discorreram sobre esse conflito, de modo que
possamos apresentar alguns elementos que caracterizem o crime de maiestas em termos
do universo de penas e legislação criminal romana disponíveis no contexto da
Antiguidade Tardia.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia, Império Romano Tardio, Antioquia de Orontes,
Conflitos Políticos-Culturais, Crime de lesa-majestade.
THE CRIMEN MAIESTATIS IN THE HISTORY OF THE ROMAN EMPIRE:
THE RIOT OF THE STATUES IN ANTIOCH-ON-THE-ORONTES
Abstract
Maiestas was an important Roman concept for the ancient Romans. In this paper
we will try to understand maiestas in the context of an important sedition called The
Riot of the Statues that happened in Antioch-on-the-Orontes in 387 AD where imperial
images were destroyed and mocked. These acts against imperial images could be
interpreted as a high treason crime an offense against the Roman state. Therefore the
Antiochene inhabitants could be charged under the maiestas law and accused of crimen
maiestatis or in greek crime of ¢sšbeia or kaqos…wsij. In this sense, we will analyse John
Chrysostom and Libanius testimonies on the riot in order to present some characteristics
of the crimen maiestatis in the context of the Late Antiquity.
Key-words: Late Antiquity, Later Roman Empire, Antioch-on-the-Orontes, Political
and Cultural Conflicts, High treason crime.
Este texto é uma versão da conferência intitulada ‘Maiestas na História do Império Romano: Os casos,
os crimes e as penalidades previstas na lei romana para ofensas cometidas contra estátuas imperiais’
proferida em ocasião do IV Encontro Regional do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império
Romano (GLEIR - Unesp/Franca) – ‘Diálogos Historiográficos: Antiguidade Clássica e Tardia’,
ocorrido na UNESP/Franca nos dias 12 e 13 de setembro de 2012.
2
Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ (UNESP/Campus de
Franca). Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES). Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
1
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A destruição de imagens sempre foi algo ofensivo, embora seja também algo que
aconteça em qualquer contexto e em qualquer sociedade3. Na História do Império
Romano, a destruição e a zombaria contra imagens e, especificamente, contra as
imagens imperiais, parecem ter sido um acontecimento comum e recorrente
(STEWART, 1999:160-166, 2003:267-278). Libânio (Or. XIX, 6) argumenta que “não
se pode negar que o tratamento dispensado às estátuas do imperador foi um choque” e
que “aquele dia deveria ser chamado de dia sombrio”. Todavia, para o sofista,
acontecimentos dessa magnitude parecem ser possíveis de ocorrer em qualquer
momento, a qualquer hora, uma vez que as cidades são propensas à “sedição”,
“contravenções”, “violências” devido à existência de “espíritos” e “intervenção de
forças malévolas” (Libânio, Or. XIX, 5-11; Or. I, 252). Ainda segundo Libânio (Or.
XIX, 11), “se examinarmos a história do Império Romano”, seríamos capazes de
encontrar “essas epidemias de violência”. Contudo, João Crisóstomo (De Statui, Hom.
III, 3) destaca de forma bastante enfática de que o que aconteceu em Antioquia foi algo
singular e único na história dessa cidade, uma das mais importantes urbs do Império
Romano da Antiguidade Tardia.
A destruição de imagens imperiais (quaisquer que sejam seus suportes:
mármore, madeira, bronze, em forma de esculturas, estátuas ou pinturas, moedas)
parece, de fato, algo ordinário e reincidente4. Todavia, parece-nos que acontecimentos
3
A reação dos antigos com relação a atos de destruição ou zombaria era, em alguma medida, caso de
reprovação. Recentemente, em março de 2001, o The New York Times noticiou que estátuas de Buda
datadas do século XVII seriam destruídas por uma iniciativa do governo Taliban no Afeganistão. Toda a
comunidade internacional se mobilizou para tentar salvaguardar essas obras. Sobre esse caso em especial,
conferir algumas das reportagens noticiadas que podem ser encontradas no site do Jornal The New York
Times:
http://www.nytimes.com/2001/03/03/world/un-pleads-with-taliban-not-to-destroy-buddhastatues.html. http://www.nytimes.com/2001/03/19/world/19TALI.html?searchpv= nytToday. Interessante
recordar aqui também, dentro do contexto brasileiro, em 1995, o episódio de um pastor evangélico que
chutou uma imagem de Nossa Senhora durante a transmissão de um programa televisivo tendo, inclusive,
que responder criminalmente. Esse ato suscitou uma reação pública de repúdio com dimensões nacionais.
4
Conferir, por exemplo, o estudo de Peter Stewart sobre a maneira como aconteciam a destruição e ações
contra estátuas. Stewart argumenta que há um topoi comum de destruição que pode ser identificado em
vários casos de ações contra estátuas durante toda a história romana, o que poderia relacionar todos os
casos dentro de “uma tradição romana de destruição de estátuas” inserida num padrão de desordem
urbana. Por outro lado, podemos considerar também que, se conferirmos a documentação produzida em
vários contextos do período da história romana, podemos extrair casos de destruição de imagens bem
como de imagens imperiais. Os casos sobre estátuas encontradas e reutilizadas são abundantes, casos de
damnatio memoriae – uma medida oficial contra pessoas consideradas inimigas de Roma no qual suas
imagens são destruídas da memória e história, e casos que nos interessa particularmente de zombaria e
destruição de imagens numa ação deliberada e consciente que pode ser interpretada como crime de
maiestas.
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dessa envergadura tenham sido compreendidos a partir de novas perspectivas e, no caso
de estarem incluídos sob a rubrica de “crime”5, os atos contra esses objetos poderiam
apresentar motivações diversas, bem como poderiam receber penalidades particulares e
específicas a cada caso e a cada contexto histórico.
O Levante das Estátuas permanece resguardado naquilo que poderíamos chamar
de História da Antiguidade Tardia, no geral, ou de História do Império Romano, em
particular, como uma sedição importante acontecida em uma das mais reputáveis
cidades do Império Romano do século IV d.C., Antioquia de Orontes, que envolveu
ofensas graves contra as imagens imperiais. Nesse sentido, e mesmo que as ações contra
imagens fossem algo recorrente e pertinente a “uma tradição romana de destruição de
estátuas”, como argumenta Peter Stewart (1999:164ν 2003:272), aquele levante
apresenta particularidades que o singulariza de alguma maneira como, por exemplo, a
forma como podem ter sido interpretados os atos cometidos contra as estátuas e os
painéis de madeira do imperador Teodósio e sua família.
A característica mais marcante, em qualquer menção que se faça desse levante
e, possivelmente, o ato mais grave cometido pelos sediciosos é a destruição e zombaria
das imagens imperiais. J.N.D. Kelly (1998:74) argumenta que todo mundo sabia que
insultar ou mostrar desrespeito para com as imagens de imperadores em governo era
equivalente a insultá-lo pessoalmente e, por conseguinte, considerado como um ato de
alta traição. Stephen Williams e Gerard Friell (1998:44-5) argumentam que as imagens
eram “objetos políticos sagrados do Império” e que “todos sabiam que profaná-los era
um gesto claro, não apenas grave, mas de alta traição e revolta...”.
O sentido evocado pelo termo contemporâneo “traição” e, por vezes, por
“lesa-majestade” não corresponde, no entanto, inteiramente, ao que os romanos
O termo “crime” é algo também muito significativo e passível de uma análise mais detalhada dentro do
vocabulário grego e romano para compreendermos o termo legal apropriado e que designa uma ação
determinada por lei [dentro do contexto da Lei Romana] como um ato de caráter criminoso e previsto no
sistema legal romano e que pode ser sujeito a uma ação punitiva particular. Conforme Adolf Berger
(1953:418-9), “crime” pode denotar o próprio crime ou o julgamento que se segue. Na definição dos
delitos e penas, a terminologia clássica e pós-clássica é importante e, para o caso de crimen maiestatis, os
termos mais comuns são: imminutae, laesae, violatae, “qeiÒthj, semnÒthj, ¢xiopršpeia, megalopršpeia, megalosÚnh
(Dumézil, 9-10, 14) e megaleiÒtej, dÒxa, ™xous…a (Gundel, 295)”. Sendo ainda importante a compreensão dos
termos utilizados em cada caso e autor antigo em particular e, por essa razão, no caso do Levante das
Estátuas consideraremos os termos utilizados por João Crisóstomo e Libânio em seus testemunhos para
designar as ações contra as imagens imperiais e, por conseguinte, o ‘crime de maiestas’ no contexto desse
conflito.
5
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entendiam
por
crimen
maiestatis.
Traição
e
lesa-majestade
expressavam,
imediatamente, definições como “uma ofensa à dignidade do soberano”, ou “um crime
contra a ordem permitida por Deus”, ou “um ataque ao estado ou nação” e ainda “o
crime mais doloso, hediondo e atroz” podendo ser previsto, como punição, a pena
capital (RAYMOND, 1992:61 E 514; BAUMAN, 1974:2; KELLY, 1981:269). Estes
conceitos não evocam, a priori, um sentido estrito, muito menos se pode dizer que seu
significado tenha permanecido fixo por longos períodos de tempo, pois, as “ofensas” as
quais são compreendidas sob a órbita desses conceitos e que definem o conteúdo e o
escopo desse tipo de crime variam no tempo e no espaço (HAZARD & STERN,
1938:77; KELLY, 1981:269; ENZENSBERGER, 1982:79-93; BELLAMY, 1970:1-14
e 102-137; CUTTLER, 2002:4-54; STRECKFUSS, 2011:194-200).
O crime de alta traição ou de lesa-majestade é traduzido pelo conceito de
maiestas no contexto do Império Romano, ou seja, contemporaneamente, o que alguns
autores designam de crime de alta traição ou, por vezes, como crime de lesa-majestade
é designado pelos romanos como crimen maiestatis populi Romani imminutae ou,
simplesmente, maiestas, ou crimen maiestatis (BAUMAN, 1967:1, 1974:2; HARRIES,
2001:128; WILLIAMS & FRIELL, 1998:44-5; KELLY, 1998:74; GUÉRILLOT,
2008:45). O termo maiestas, segundo argumenta Richard Bauman (1967:1), foi um
conceito romano peculiar e que autores gregos, na falta de um termo equivalente,
recorreram a aproximações. E, etimologicamente, maiestas é derivado de maior que
expressa uma comparação, uma relação desigual na qual um dos participantes ocupa a
posição superior e o outro de inferior (BAUMAN, 1967:1; LEAR, 1965:11).
Cícero (De Oratore, 30, 105; De Inventiones, 2, 53) parece ser o autor antigo
que melhor esclarece e sistematiza esse sentido de maiestas durante o período da
República Romana (CASTRO-CAMERO, 2000:26). Essa concepção de maiestas como
uma relação de superioridade/inferioridade fundamenta a ideia de maiestas como
relativo a determinado tipo de crime. Sendo maiestas compreendida como uma relação
onde o conjunto do populus romanus ocupa a posição de superior, qualquer um ou
qualquer coisa que prejudique a continuidade dessa posição e destitua os romanos da
posição superior estaria sob o risco de acusação de crimen maiestatis (BAUMAN,
1967:4). Para o sentido estrito de crime de maiestas, os termos gregos mais recorrentes
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e que mais se aproximam da ideia evocada por esse termo latino são, conforme Bauman
(1967:1; 1974:4), ¢sšbeia e, durante a época bizantina, o termo kaqos…wsij.
O conceito de maiestas, na sua concepção como crime, inclui uma série de ações
e atitudes diversas e casos múltiplos (KEAVENEY & MADDEN, 1998:316-320;
ROGERS, 1935:1-205; CHILTON, 1955:73-81). Bauman (1967:8) sintetiza alguns
casos de crime de maiestas: “[...] conspirar contra a res publica”, “contra o Estado ou
ser conivente com o inimigo”ν “perder uma batalha”ν “ignorar presságios”ν “maltratar
prisioneiros de guerra”ν “deixar a província sem autoridade”ν “usar violência contra um
magistrado”ν “interromper um tribuno”ν “fornecer falso testemunho a um cidadão
romano”ν “visitar um prostíbulo investido de capacidades oficiais”ν “ocupar a corte em
estado de embriaguez”, “vestir-se com roupas femininas”ν “incitar desordens civis”ν
“falsificar documentos públicos”ν “publicar panfletos difamatórios” e, por fim, “cometer
adultério com a filha do imperador”.
Jill Harries (2001:128) completa ainda que, mesmo que maiestas seja definida
como “traição ou como qualquer outro crime cuja intenção seja atingir a majestade ou
os interesses não só do imperador, mas também do Estado romano em geral”, ainda se
pode adicionar a isso uma série de outros crimes equivalentes à traição, como:
“falsificação de documento imperial” e “práticas inefáveis (nefanda dictu), ou seja,
práticas mágicas e feitiçaria, e práticas divinatórias por membros do comitatus
imperial”. E, Floyd Seyward Lear (1965:29) ainda argumenta que o conceito de crime
de maiestas se traduz também pela “falta de respeito contra as imagens do imperador,
incluindo atos inapropriados, reais ou declarados, cometidos na presença ou nas
proximidades de uma imagem imperial; e o ato de desfigurar, derreter ou destruir uma
estátua do monarca a qual foi consagrada” estava entre as ofensas ao imperador o que
implicaria crime de maiestas. Em contrapartida, Harries (2007:79) argumenta que as
estátuas imperiais eram algo problemático, uma vez que é difícil definir em que medida
esses objetos representavam o imperador e sob quais circunstâncias, o que implicaria
também uma dificuldade de definição do que poderia ser considerado um caso de
crimen maiestatis quando se fala em ações que envolveriam aquelas imagens.
O crimen maiestatis configura-se, portanto, a partir de uma múltipla gama de
‘ofensas’ e, por conseguinte, implicará também uma diversidade de punições que
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estarão de acordo com as leis aplicadas e a gravidade das ações empreendidas pelos
‘acusados’ desse tipo de crime (Cf., por exemplo, o conceito de maiestas em Tácito,
Annales, I, 72; Suetônio, Tibério, III, 58 que oferecem alguns casos). As ações que
diminuíam a dignidade do Populus Romanum e, portanto, interpretados sob a rubrica de
crimes, aparecem na forma de res repetundae, perdulleio, vis e a forma,
especificamente, de maiestas que somente foi desenvolvida durante o II e I séculos a.C.
(ROBINSON, 1995:74-75). A violência, na forma de vis, inclui violência política e
comportamento sedicioso e essa concepção foi expandida tanto para as leis de sicariis6
– esta também inclui assassinato, envenenamento e outras violências – quanto para as de
maiestas (ROBINSON, op.cit.). Originalmente, repetundae designa o montante
recebido indevidamente por magistrado ou juízes em ofício em Roma, na Itália ou nas
províncias e isso deu início a ações para a recuperação dos benefícios daqueles que o
tinham dado (LÉCRIVAIN, s/d:837). Assim, res repetundae tem sido interpretado
como casos de processos acerca de extorsão envolvendo magistrados ou qualquer
pessoa que estivesse ocupando cargos públicos e no desempenho de seu ofício num
sentido de violação do serviço público ao receber benefícios, qualquer tipo de
enriquecimento ilícito sendo interpretado, inclusive, com a ampliação desse crime, sob a
Lex Iulia de vis (ROBINSON, 2007:78-81). Nesse caso, pode constituir-se em uma
forma de diminuição da dignidade do Populus Romanus e se aproximar, por
conseguinte, das acusações de maiestas.
Primariamente, perduellio se refere a um ‘inimigo’ interno definido como um
ato hostil contra o Populus Romanus, em particular, do ponto de vista militar e recaía
sobre essa lei também acusações de líderes de sedições de cidades localizadas na
península itálica contra Roma (BAUMAN, 1967:19-23; LÉCRIVAIN, s/d:388). Esta lei
ainda existiu no contexto do Império foi incluída nas leis de maiestas, mas sua prática,
6
Inicialmente, os casos vinculados à Lex Cornelia de sicariis et veneficis, por exemplo, são: 1) Uma
ameaça de acusação pela morte de M. Ario em 81 a.C. e o julgamento teria sido feito, eventualmente, sob
essa acusação se tivesse acontecido, mas essa lei ainda não tinha sido promulgada na época da ameaça; 2)
Sabemos apenas que um caso ocorreu depois de 86 a.C., mas antes de finais de 81 e início de 80 a.C. e
que o iudex quaestionis foi M. Fanio; 3) Em finais de 81 e início de 80 a.C., um outro caso, Sex Rocio foi
acusado pela morte de seu pai mas foi absolvido; 4) Escamander foi acusado de tentar envenenar
Cluencio em 74 a.C. e foi condenado mas a punição parece desconhecida; 5) C. Fabricio de Alatrio
também foi acusado de envenenar Cluencio em 74 a.C. também condenado e punição também
desconhecida; 6) Estalio Albio Opianico foi acusado de tentativas de envenenamento em 74 a.C., vítima
desconhecida, veredito de culpado (ALEXANDER, 1990:64; 66; 74).
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por vezes, ainda concorria em paralelo com esta última (BAUMAN, op.cit..;
LÉCRIVAIN, op.cit.). As leis romanas de maiestas também são múltiplas. Existiram,
provavelmente, quatro leis referentes a este crime: a Lex Appuleia de maiestate; a Lex
Varia de maiestate; a Lex Cornelia de maiestate ou Lex Cornelia de Sila; a Lex Iulia de
maiestate (CASTRO-CAMERO, op.cit; SEAGER, 2004:144-153).
A Lex Appuleia de maiestate minuta parece ter sido a primeira lei referente a
esse tipo de crime e data, aproximadamente, do ano de 103 a.C. (CASTRO-CAMERO,
2000:39; SEAGER, 2004:144; BAUMAN, 1967:16; FERRARY, 1983:556). Esta lei foi
proposta pelo tribuno L. Apuleio Saturnino, um popularis, e a intenção era, de acordo
com Seager (2004:144), “fazer valer os direitos da plebe de legislar, administrar
assuntos públicos” e “controlar e punir oficiais nomeados” e fazer tudo isso sem a
dependência do Senado. O conjunto de ofensas julgadas sob essa lei deveria dizer
respeito, em teoria, à má conduta e à gestão de consulares e proconsulares, mas
direciona-se a ações contra o alto escalão de magistrados e, conforme as acusações,
parece ter servido como um importante instrumento político nos conflitos entre facções
(SCULLARD, 2011:46-47; CASTRO-CAMERO, 2000:39; ROBINSON, 1995:75;
SEAGER, 2004:144-145).
A Lex Varia de maiestate datada, aproximadamente, do ano de 90 a.C., dentro
de um contexto de guerras sociais e lutas políticas internas, foi instituída pelo tribuno
Vario Severo Hibrida que foi, inclusive, acusado sob essa lei (SEAGER, 1967:37-43;
GRUEN, 1965:59-73). A Lex Varia referir-se-ia a uma forma de maiestas específica
que não era prevista em leis anteriores, a saber, a ofensa de incitar, promover e ser
cúmplices dos aliados em sedições contra Roma, incluindo assim ao escopo de leis de
maiestas o elemento externo [aliados] (SEAGER, 1967:40; CASTRO-CAMERO,
2000:39; BAUMAN, 1967:59). Essa lei parece, contudo, ter sido utilizada como um
instrumento político com a intenção de acusar membros da oligarquia de incitar aliados
à sedição, tornando possível a tentativa de consolidação do controle do estado pela
ordem equestre (SEAGER, 1967:38 E 40; GRUEN, 1965:59).
A Lex Cornelia de maiestate (Lex Cornelia de Sila) foi estabelecida por volta do
ano 80 ou 81 a.C. (SEAGER, 2004:148; CASTRO-CAMERO, 2000:40-41). Parece ter
sido considerada como uma lei ampla de maiestas que poderia ter incluído uma série de
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casos e ofensas, mas Bauman (1967:69-75) argumenta que as evidências apontam para
uma interpretação estrita da lei e não ampla.
A Lex Iulia de maiestate, cuja atribuição ainda permanece controversa ora
podendo remeter à César, ora sendo considerada como obra de Augusto, é a lei sobre a
qual temos mais informações (CASTRO-CAMERO, 2000:41-44; BUNSON, 2002:319;
BAUMAN, 1967:266-292; LEAR, 1929:78; LEVICK, 1979:358-379; CHILTON,
1955:73:81). Como destaca Bauman (1967:266), a Lex Iulia de maiestate tem sido,
geralmente, reconhecida como um estatuto que incorporou todas as leis que regulavam
os crimes de maiestas anteriores, e que teria também acréscimos e inovações, sendo
considerada ainda como a única lei para casos dessa natureza à qual se recorreria.
Entretanto, parece-nos mais provável (como assume Bauman e mais alguns estudiosos
do tema) que o conjunto das leis de maiestas continuaram a coexistir, podendo-se
recorrer a uma ou outra lei, podendo ainda ser conjugada com leis de outra natureza
dependendo do caso, da ofensa cometida e das circunstâncias e contextos históricos
implicados. Em nossa opinião, o Levante das Estátuas parece ter sido um caso no qual
se pode observar que diversas leis de maiestas foram evocadas. Logo, consideramos
apropriado pressupor que uma única lei não seria capaz de abarcar todas as dimensões
de casos múltiplos e diferenciados de maiestas. O conteúdo da Lex Iulia de maiestate
parece ser o maior dentre as leis dessa natureza, como observa Castro-Camero
(2000:41-44) ao discorrer sobre o elenco de ofensas consideradas sob esse estatuto e
que está presente no Corpus Iuris Civilis, especialmente, na análise do excerto do
Digesto de Justiniano 48, 4 que disserta sobre essa lei.
A historiografia sobre o tema propõe duas possibilidades de penas previstas sob
essa Lex Iulia de maiestate: a execução [Capitis Supplicia, Capitis Diminutio] ou o
exílio [Aquae et Ignis Interdictio] (LEVICK, 1979:358; CASTRO-CAMERO,
2000:53-58). Para a Lex Iulia de maiestate, Barbara M. Levick apresenta duas hipóteses
interessantes: em primeiro lugar, segundo essa autora, as leges maiestatis não faziam
diferença ou gradação de maiestas, o que implicaria pensar que havia uma única
possibilidade de pena a ser aplicada nesses casos e, em segundo, que a pena possível e
previsível sob a Lex Iulia de Maiestate seria a pena capital, no sentido que evoca morte
e execução, e não o exílio.
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A proposição de Levick é, no entanto, referente ao contexto do Principado. Mas
mesmo que a pena para a Lex Iulia de Maiestate fosse apenas a pena capital, no sentido
de execução, como sugere Levick, Castro-Camero (2000:53-58), demonstrou que
mesmo essa pena capital apresentava várias formas e gradações dos tipos de morte
sugeridas que incluíam crucificação, morte por fogueira e decapitação.7 Neste sentido,
parece-nos possível argumentar que havia também distinção e gradação de tipos de
maiestas.
No caso específico da relação entre estátuas [ou quaisquer imagens que
portassem a efigie imperial] e crime de maiestas, esta relação não é fortuita e nem
arbitrária. Durante a História do Império Romano, é possível mapear casos de acusação
de maiestas relacionados a esses objetos que eram considerados ainda mais sagrados no
contexto da Antiguidade Tardia (BONFANTE, 1964:408), sendo possível recuar à
história da República romana onde temos conhecimento do caso, por exemplo de Gaio
Verro. As denúncias contra Verro foram trazidas em nome da população da província da
Sicília ao Tribunal de Repeduntae e o conjunto das acusações foi interpretado sob a
conjugação de várias leis: a Lex Cornelia de Repetundis; a Lex Cornelia de Peculatu; a
Lex Cornelia de Maiestate (COWLES, 1929:429; ALEXANDER, 1990:87, 88, 91) só
pra citar um exemplo dentre tantos outros que se seguiram no contexto do Principado
mas que não nos cabe aqui no espaço desse artigo discorrer sobre esses casos). Nos
concentraremos a partir de agora apenas no contexto da Antiguidade Tardia e do
Levante das Estátuas em particular.
No processo de mapeamento dos casos8, encontramos, sem dúvida, muitos
exemplos de destruição de estátuas, mas, em grande parte, tratava-se, por um lado, de
7
Mortes com métodos diferentes evocam uma série de significados também diversos. Donald G. Kyle
(2001:128-154), por exemplo, argumenta que, em Roma, os indivíduos não eram igualmente tratados no
modo como morriam ou eram mortos, bem como os seus restos mortais eram tratados e/ou se eram
lembrados ou não. E cada tipo de morte, cada tipo de sepultura ou falta dela constituem mensagens
específicas. Assim, utilizando essa mesma lógica para se compreender crimes e leis, podemos supor que
se há uma variedade de significados e gradações de mortes, achamos possível também no caso dos crimes
de maiestas haver diferenciações e nuances e, por conseguinte, o recurso à várias leis disponíveis ao
contexto da Antiguidade Tardia.
8
Esse mapeamento foi feito mediante algumas documentações escritas de que tivemos acesso e
possibilidade de leitura e por intermédio da historiografia contemporânea.
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casos de processos de Damnatio memoriae9 empreendidos em nome do Imperador,
como casos oficiais de apagamento da memória de pessoas concebidas como inimigas
do Estado romano e, por outro lado, de casos em que houve um processo de reutilização
de material para a confecção de outras estátuas10, ou ainda, alguns casos, nos quais as
estátuas podiam ser confiscadas pelo governo imperial e derretidas para cunhagem de
moedas (Carrié & Rousselle, 1999:245-247). Nenhum desses casos poderia ser
compreendido como casos de maiestas (¢sšbeia / kaqos…wsij) ou foram interpretados
pelos antigos como crimes.
No contexto da Antiguidade Tardia, os casos de maiestas relacionados às
estátuas parecem terem sido pouco explorados, em nossa opinião, talvez por uma falta
de dados e/ou documentos que discorram sobre esse tema, talvez por uma pouca atenção
dada a essa temática pela historiografia especializada11 ou ainda, por nossa
impossibilidade de explorar tamanho manancial de documentos provenientes deste
contexto histórico, o que não significa, em qualquer dos casos, que estes exemplos de
maiestas não tenham existido. Pensamos que estes casos existiram juntamente com uma
9
Os processos de Damnatio Memoriae, no século IV d.C. também são significativos. Conferir o capítulo
Décimo da obra Mutilation and Transformation: Damnatio Memoriae and the Roman Imperial
Portraiture, de Eric R. Varner (2004:214-24), o qual discorre sobre alguns casos de damnatio memoriae.
10
A reutilização de materiais de estátuas, reciclagem e substituição mediante transformação da imagem
inicial em uma outra imagem como representação de um outro imperador são procedimentos recorrentes
dentro da História do Império Romano. Conferir, por exemplo, vários casos nas Crônicas de João
Malalas. E os trabalhos recentes de Carlos Augusto Machado conjuntamente com o Prof. Bryan
Ward-Perkins sobre o projeto das últimas estátuas da Antiguidade Tardia.
11
Os casos de crime de lesa-majestade relacionados a estátuas nos contextos da República Romana e do
Principado são significativamente mais explorados pela nossa historiografia contemporânea. Embora
esses casos de maiestas específicos sejam pontuais podemos ter mais detalhes dentro desses contextos. Na
República Romana, conferir, por exemplo, o caso de Gaio Verro que foi acusado de ser responsável por
um mau governo durante seu mandato como praetor na Sicília e, em razão disso, um tribunal foi
instaurado para julgar os atos considerados ilegais daquele magistrado e Cícero, nomeado promotor do
caso, escreve os discursos que ficaram conhecidos como Verrines (ou In Verrem), nos quais apresenta as
acusações e o processo contra o acusado. As acusações contra Verro eram as mais diversas. Dentre essas
acusações, consta a acusação de maiestas relacionadas à remoção de algumas estátuas. No Principado,
temos notícia, até o momento, de dois casos de acusação de maiestas relacionados a estátuas e que foram
citados nas Annales de Tácito. Primeiro, é o caso de Faiano e Rubrio acusados de maiestas porque havia
colocado à venda uma estátua de Augusto (Tácito, Annales, 1, 73, 2-3). Segundo, é a acusação de crimen
maiestatis contra Grânio Marcelo. Tácito (1, 74, 1-6) nos informa sobre o caso de Grânio Marcelo que na
época era Governador da Bitínia e recebeu uma dupla acusação: Cépio Crispino, quaestor de Grânio
Marcelo, o acusou de ter caluniado Imperador Tibério e Hispo Romano, acusou esse governador de ter
colocado uma estátua dele em posição mais alta do que as dos Césares e ainda de ter removido a cabeça
de uma estátua de Augusto e colocado em seu lugar uma cabeça de Tibério. A acusação de maior
gravidade e que fez Tibério refletir sobre a seriedade do caso repousará, no entanto, na segunda acusação
a qual se referia às ações contra a estátua de Augusto (KATZOFF, 1971:682), o que nos indica que as
acusações envolvendo a manipulação desses objetos apresentavam agravantes já neste contexto.
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série de outras acusações de maiestas mais exploradas nesse período, como os casos de
acusação ilegal de magia, adultério (ROBINSON, 2007:135-137). Assim, embora não
possamos contar aqui com um conjunto agregado de casos de maiestas associado à
destruição e zombaria de estátuas, de ponto de vistas diferentes provenientes de
documentações diversas, nós podemos, pelo menos, inferir o caso do Levante das
Estátuas, no que se refere às penas aplicadas e considerando todo esse panorama
apresentado anteriormente.
Para o estudo desse caso, o Levante das Estátuas, nos fundamentamos em duas
documentações escritas: as 5 orações de Libânio de Antioquia e as 24 homilias de João
Crisóstomo. Esse conjunto de obras ficaram conhecidas como relativas à esse levante.
O mais interessante das perspectivas de João Crisóstomo e de Libânio é a
promoção, realizada por ambos, de um veredito favorável à cidade e à população
antioquena. A impressão que podemos ter, a priori, é de que o imperador foi, de fato,
piedoso e leniente [seja por persuasão da Providência e de toda uma hierarquia
eclesiástica de acordo com Crisóstomo, seja pela interferência de magistrados e da elite,
na concepção de Libânio como sugere uma historiografia específica] quando, na
verdade, várias penas foram instituídas e aplicadas no decorrer dos acontecimentos do
Levante das Estátuas. O que seria mais apropriado relatar é o que Libânio (Or. XX, 36),
muito timidamente, afirma e, em apenas, uma ocasião: “[...] e assim ele [o imperador],
rapidamente, reverte para uma política da clemência estabelecendo mais provisões
mediante essa ação do que pelo caminho da punição.” Libânio reconhece, portanto, que
as penalidades estavam sendo aplicadas no caso do levante e, assim sendo, o que
aconteceu foi uma ‘reversão’ da política penal inicial. Mesmo havendo reversão,
leniência ou filantropia imperial, a questão seria, portanto, compreender se as sanções
aplicadas correspondiam às ofensas e crimes cometidos. As penalidades, claramente,
identificadas em nossa documentação demostram o universo de possibilidades penais
destacadas pelos ‘rumores’, evidência que é encontrada tanto em João Crisóstomo como
por Libânio. Em Libânio, por exemplo, o rumor era de que os militares pilhariam as
propriedades dos habitantes da cidade, haveria massacres, instituição de multas e
derramamento de sangue dos líderes da Boulé antioquena.
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O sofista, em outra passagem, ainda completa (Libânio, Or. XX, 33) que uma
longa lista de execuções ainda estaria por vir . E, de fato, Libânio (Or. XX, 11)
confirma que a previsão de execuções tinham fundamento nas leis romanas: “Assim,
não deve ter havido reclamações contra a imposição da pena capital para tal
comportamento, pois esta sentença era prevista em lei.” Por outro lado, dentre essas
possibilidades, parece ter força e ser mais concreta, pela insistente explicação e súplica
realizada pelo sofista, a aplicação de uma pena em forma de multa cujo valor parece se
refere à alta soma de dinheiro que parece recair somente sob um grupo específico de
pessoas e do gênero masculino apenas.
Ainda reforçando essas penas de dimensão econômica – incluindo pilhagem e
apropriação de bens privados – a pena de morte aparece de novo e relacionada
novamente aos boleutários acrescentando que uma parte da população antioquena
também seria julgada sob a pena capital.
João Crisóstomo (De Statui, Hom. III, 13) começa a discorrer sobre a
maledicência e o falso testemunho, desenvolvendo toda uma linha de argumento acerca
dessa temática para vinculá-la mais adiante (De Statui, Hom. III, 17) com o problema
dos rumores e a propagação de ideias e pressuposições acerca da reação imperial.
Assim, embora abordada de maneira diferenciada, também podemos observar em João
Crisóstomo, portanto, mediante o relato desses ‘rumores’, o universo possível de penas
que podiam ser aplicadas ao tipo de ação empreendida contra as imagens imperiais no
caso do Levante das Estátuas. Não obstante, ao contrário do que evidenciamos em
Libânio, a pena de morte parece ser mais destacada em João Crisóstomo (De Statui,
Hom. V, 10).
João Crisóstomo enfatiza a morte como única possibilidade, nesse momento, de
pena, ao contrário de Libânio. Mas isso pode ser compreendido dado o contexto e a data
de pronunciamento da Homilia V, da qual o excerto foi extraído. A zombaria e
destruição das imagens imperiais, o evento inicial do levante, aconteceu em,
provavelmente, 25 ou 26 de fevereiro (PAVERD, 1991:27) e a Homilia V foi
pronunciada em, talvez, 2 de março (PAVERD, 1991:299 e 363). A proximidade dos
acontecimentos justificaria, portanto, esse destaque à pena de morte, seria esta a pena
em jogo aos amotinados que seriam julgados e responsabilizados pelos atos naquele
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momento, durante o primeiro momento de contenção da desordem e gerenciamento e no
decorrer do primeiro julgamento.
Nos dias que se seguiram às ações contra as imagens imperiais, uma série de
medidas foram tomadas para o restabelecimento da ordem pública e, segundo João
Crisóstomo, houve um julgamento inicial com apreensão de pessoas e execução de
sentenças.
Em 27 e 28 de fevereiro,12 Crisóstomo já anunciaria que uma penalidade já havia
sido instituída e executada. Houve a condenação e morte. Mas ainda assim, na Homilia
V, pronunciada em 2 de março, insiste na ameaça de uma pena de morte ainda recaindo
sob a população o que significa que esta ainda continua sendo a penalidade a ser
aplicada e instituída pelo Imperador que ainda não havia se pronunciado a respeito e
muito menos estava a par dos acontecimentos. E assim, em João Crisóstomo, o tema da
morte se estenderá, pelo menos, até a Homilia VI, 9, pronunciada em 3 de março,
retornando ao tema das penalidades na Homilia XII, 3, pronunciada em 23 de março13
onde João Crisóstomo indica outras penalidades possíveis, conforme indicou também
Libânio, a saber: a confiscação de bens e inventivas militares contra a população
antioquena.
Aqui já vemos uma mudança de tom no relato de João Crisóstomo. Algo já
reverteu a situação, a pena de morte já não aparece como possibilidade. Paverd
(1991:123) destaca, no entanto que, na Homilia XIV, 1, João Crisóstomo, atesta com
base em eventos contemporâneos, que somente com a decisão imperial e a reconciliação
deste com a cidade se poderia ter a certeza da volta a normalidade. Mas talvez, na
Homilia XVII, 3, João Crisóstomo já teria informações o suficiente para declarar uma
possibilidade múltipla e diferenciada de penas: “Nós esperávamos penas inumeráveisν
que nossos bens seriam pilhados, que as casas seriam queimadas junto com seus
habitantes, que a cidade seria extirpada do centro do mundo, que seus estilhaços seriam
completamente destruídos e que seu solo seria colocado sob o arado!”.
Diante dessas possibilidades destacadas tanto por Libânio quanto por João
Crisóstomo, no cenário geral das penalidades aplicadas à cidade e à população,
podemos inferir apenas algumas características e aspectos gerais em termos de
12
13
As datas de pronunciamento, respectivamente, das Homilias II e III (PAVERD, 1991:293 e 297-363).
Ainda seguindo as datas de pronunciamento sugeridas por Paverd (1991:300-301, 328-332 e 363).
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atribuição de penas criminais aos amotinados e responsabilizados pelos atos ocorridos
durante o conflito do Levante das Estátuas. Primeiro, se considerarmos as homilias de
João Crisóstomo como contemporâneas aos acontecimentos sendo reportados por este
presbítero, os eventos ao calor do momento, as penas criminais podem ser colocadas
numa determinada ordem cronológica e, portanto, passível de compreendermos a lógica
de interpretação dos atos durante o desenvolvimento de todo o acontecimento desde sua
irrupção até sua resolução final em termos de como uma ofensa relativa à,
provavelmente, pena de morte tenha se convertido em uma penalidade mais ‘branda’, na
concepção de ambos os testemunhos antigos, empreendida por Teodósio com o perdão
imperial e a anulação das penalidades infligidas anteriormente.
Uma primeira medida e penalidade aplicada teria sido, portanto, a partir das
observações iniciais realizadas anteriormente: I) a apreensão e execução dos primeiros
amotinados considerados culpados quando da irrupção do conflito. O primeiro ponto a
se colocar neste momento é a definição, se possível, daqueles que foram apreendidos e
executados. João Crisóstomo destaca que qualquer pessoa estava arriscada a ser
responsabilizada e, por isso mesmo, não era seguro o espaço público. O presbítero ainda
argumenta que crianças e não somente homens estavam entre os que foram executados.
Libânio (Or. XIX, 37) comenta que apenas aqueles que eram culpados foram punidos
porque os “inquisidores aplicaram procedimento tão rigoroso a todos que ninguém
poderia escapar da verdade”.
Esse cenário de mortes e indistinção entre culpados e inocentes, ou numa
possibilidade
mais
sistemática
e
provável,
todos
tinham
em
algum
grau
responsabilidade pelos atos, é possível de ocorrer como se pode atestar em outros
exemplos de controle e gerenciamento de sedições (Conferir, por exemplo, Eusébio de
Cesarea, VC, I, 35; João Malalas, Crônicas, 12, 49). E, geralmente, os tipos de morte
são: por decapitação, por fogo, jogado às feras, como discorre tanto João Crisóstomo
quanto Libânio sobre as execuções iniciais.
Em 15, 16 e 17 de Março, com a chegada de Elébico e Cesário (PAVERD, 1991:
57, 363), ocorre um segundo grande evento: II) a prisão dos boleutários e se inicia a
investigação e a instauração de um tribunal no qual parece ainda estar em jogo a
sentença de morte. Entretanto, essa pena não teria sido aplicada e outras penalidades
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aparecem, como sendo mais toleráveis, mas ainda assim sérias. Estavam em jogo: o
fechamento das Termas, do Teatro e do Hipódromo. Na perspectiva de Libânio (Or.
XX, 6), o fechamento do teatro aparece como uma forma alternativa de pena. A
descrição de João Crisóstomo (De Statui, Hom. XIV, 15) sobre essa medida repressiva
revela aspectos importantes, inclusive, acerca de como ele interpreta essa sanção (de
fechamento das termas).
Para João Crisóstomo, parece-nos que essa penalidade é árdua, uma vez que
destaca as utilidades medicinais às quais as termas estavam vinculadas. Mas, segundo
ele, nem mesmo essas qualidades foram postas em consideração para se questionar,
particularmente, essa pena. Assim, o presbítero ainda completa que ninguém se opôs e
que, dentre as possíveis penalidades, essa parece ser suportável. Crisóstomo tem uma
visão positiva acerca das termas e das suas funcionalidades. Já o teatro é colocado em
oposição direta com a Eclésia, na perspectiva de João Crisóstomo (De Statui, Hom. XV,
1) o que de alguma maneira se configuraria como uma penalidade tolerável e benéfica
em última instância tanto para cidade como para seus habitantes.
Antioquia perde o status de metrópole em razão do Levante das Estátuas, o que
nos leva à uma outra possibilidade penal: IV) a revogação do ‘status’ de metrópole de
Antioquia. A historiografia que compõe tal temática destaca, insistentemente, apenas
esse episódio como o momento mediante o qual Antioquia estaria desprovida do título
(Cf. NORMAN, 2000: nota 67, p. 32). Todavia, Antioquia teria sido ameaçada de
perder esse título bem como teria sido desprovida dele em outras ocasiões. Em 194,
como recorda Herodiano (III, 3, 3), numa disputa pelo império entre Septímio Severo e
Pescenio Niger e no qual Septimio saiu legitimado como imperador, Antioquia, em
razão de seu apoio à Pescênio, foi rebaixada ao status de vila e submetida à Laodicéia
que, por ter apoiado o imperador que saiu vitorioso, foi laureada com o título de
metrópole (MILAR, 1993:123; LEVINE, 1975:47, 64, 66, 109, 182, 192 cf. n. 25;
BUTCHER, 2003:102). Assim, Antioquia mostra-se constantemente sendo ameaçada de
rebaixamento de seu status de metrópole, e isso se revelava muito vinculado ao
problema de um comportamento sedicioso geral da sua população e, aqui nesses casos,
particularmente, vinculados a imperadores. Tanto João Crisóstomo (De Statui, Hom.
XVII, 10) quanto Libânio (Or. XX, 6) também se referem a essa penalidade. Para
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ambos, a cidade ter perdido o seu status significou uma série de consequências para
uma cidade que é considerada por ambos como uma metrópole distinta seja como
Metrópole da Ásia, seja como a metrópole de todo o mundo.
Outra possibilidade penal conjugada com as anteriores, talvez, tenha sido: V) a
interrupção do suprimento de víveres (?). Nas Orações XIX, 22 e XX, 14, Libânio
recorre a um caso específico que trata de acusações tão graves quanto as que têm sido
apresentadas no caso do Levante das Estátuas, mas que Teodósio teria optado por uma
pena considerada menor em razão da gravidade do crime que não é identificado, mas
supomos que seja o de maiestas, já que este caso se compara e serve como precedente
de uma reação imperial de Teodósio que converteu uma penalidade extrema para,
provavelmente, uma mais branda que seria a interrupção da distribuição de víveres.
Esse procedimento de interrupção de suprimento de víveres também parece ser
uma punição recorrente em casos extremos (Conferir Sócrates Escolástico, HE, II, 3).
Aqui também, parece-nos possível ter havido a interrupção de abastecimentos para a
cidade. Com o fim desse processo sedicioso e a resolução do conflito mediante perdão à
cidade e revogação das penas aplicadas é, muito provável, a continuidade do suprimento
de víveres. Após todo esse panorama, parece-nos ser o caso de interpretação do
conjunto das sanções aqui empreendidas contra a cidade de Antioquia e a população
considerando todas essas possibilidades apresentadas no caso do Levante das Estátuas.
Logo, a partir das penas previstas nas leis romanas de maiestas, achamos possível
interpretar esse ‘crime’, no caso do levante, como passível de punições múltiplas se
conjugadas com outras leis conforme situações determinadas. A partir dessa sedição,
também parece ser aceitável observar, que havia várias penalidades possíveis e
disponíveis e que eram aplicáveis no contexto da Antiguidade Tardia.
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A RETÓRICA DE AMBRÓSIO, BISPO DE MILÃO, EXALTADA POR SEU
DISCÍPULO AGOSTINHO (SÉCULO IV D.C.)
Doutoranda Janira Feliciano Pohlmann
Bolsista REUNI/CAPES, UFPR
janirapo@yahoo.com.br
Resumo:
Sob um ponto de vista que preza pelas particularidades do processo histórico,
debruçamos os estudos presentes neste artigo sobre documentos elaborados no seio da
sociedade romana ocidental no final da IV centúria; escritos que nos permitem analisar
a prática da retórica levada a cabo por Aurélio Ambrósio. Sabedores da importância
deste sujeito para a história da Igreja ocidental, nossas pesquisas destacam sua atuação
pública. No caso específico deste artigo, em seu desempenho como orador perante a
eclésia da cidade de Milão (374 – 397).
Palavras-chave: Aurélio Ambrósio; Império; Eclésia; Bispo; Milão.
Abstract:
From one point of view that values the particularities of the historical process,
we work, in this article, on documents drawn up within the western roman society in the
end of the IV century; writings that allow us to analyze the practice of rhetoric
conducted by Aurelius Ambrosius. Knowing the importance of this subject to the
history of the western Church, our researches highlight his public performance. In the
specific case of this article, in his performance as speaker before the ecclesia of Milan
(374 – 397).
Keywords: Aurelius Ambrosius; Empire; Ecclesia; Bishop; Milan.
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Durante muito tempo, a historiografia relacionada à sociedade romana
considerou os anos compreendidos entre os séculos III e início do V como um período
de “crise” que teve como consequência a decadência do Império dos romanos e o
mergulho da humanidade na escuridão. Um claro exemplo desta noção de decadência
foi proporcionado por Edward Gibbon em sua tese Declínio e queda do Império
Romano. Esta obra monumental, escrita em seis volumes, foi publicada entre os anos de
1776 e 1788. Apresenta-nos a abordagem de um historiador inglês afincado aos
princípios iluministas, portanto, noções de civilização, progresso, declínio e rupturas
integram o livro. Entretanto, por tratar os eventos históricos pelo viés da política e da
cultura, e não mais a partir da teleologia divina, esta obra é tida como um marco para a
História, lida e relida por gerações de historiadores que lançaram mão das ideias ali
oferecidas.
Por volta de 1960 – 1970, as teorias e metodologias propostas por historiadores
voltados aos estudos da época clássica convidaram muitos europeus a rever concepções
de rupturas, grandes crises e quedas de impérios1. Tal chamado tem se dissipado nos
estudos brasileiros, promovendo releituras de documentos e reelaborações de histórias
que primam pela compreensão de um período histórico rico em transformações e
heterogeneidades específicas. Conforme afirma Guarinello, os estudos históricos dos
últimos decênios têm se dedicado a criticar e reconstruir este quadro que propõe “uma
ruptura radical entre razão e desrazão, entre luz e trevas, que só o Renascimento teria
começado a recompor” (SILVA, 2003:12). Este cenário, antes entendido como caótico e
causador do declínio da civilização romana, tem recebido novos matizes e suas
singularidades têm ganhado mais lucidez.
Sob este ponto de vista que preza pelas particularidades do processo histórico,
debruçamos nossos estudos sobre documentos elaborados no seio da sociedade romana
ocidental no final da IV centúria; escritos que nos permitem analisar a prática da
retórica levada a cabo por Aurélio Ambrósio. Temos como elementos de observação a
formação, a carreira pública e eclesiástica deste autor, bem como o papel deste bispo
diante de sua comunidade de fiéis. Neste ínterim, acreditamos ser crucial esclarecermos
1
Entre estes trabalhos destacamos: MARROU, H. I. Decadência romana ou Antiguidade Tardia?
Lisboa, 1979; BROWN, P. O fim do mundo clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Tradução de Antônio
Gonçalves Mattoso. Lisboa: Editorial Verbo, 1972.
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nosso entendimento sobre alguns conceitos-chave que serão apresentados ao longo
deste artigo.
Iniciamos com o conceito de Império. Compartilhamos a assertiva de Norberto
Guarinello no que se refere a este termo, por isso, nossas análises são pautadas em um
Império formado ao longo de séculos de conquistas militares e centralização política,
“primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria península sobre as demais
regiões que margeiam o Mediterrâneo” (SILVA, 2006:14).
É interessante observarmos que em sua contribuição para esta obra, elaborada
em conjunto com outros historiadores brasileiros, Guarinello afirma que: “A despeito
das profundas alterações que conheceu ao longo de sua existência, [o Império Romano]
nunca chegou a se constituir no que hoje entendemos por Estado nacional” (SILVA,
2006:14). Alegação da qual somos partícipes. Todavia, o capítulo XI deste trabalho, de
autoria de Gilvan Ventura da Silva, apresenta o título: A relação Estado/Igreja no
Império Romano (séculos III e IV). Tal texto elabora ótimas argumentações amparadas
em documentos e bibliografias a respeito do tema, entretanto, sob nosso ponto de vista,
contradiz o debate central da obra. Uma vez que o livro nos convida a investigar um
Império tão heterogêneo em sua cultura e formação social, como abordar “a relação
Estado/Igreja”2? Preciosismo de nossa parte? Para alguns, talvez. Para nós, parte do
metiê do historiador: compreender as diferenças para destacá-las e explicá-las.
Sobre o termo Império, salientamos também os trabalhos de Renan Frighetto que
atentam para um conceito de Império tipicamente romano, forjado já na tradição
helenística, porém, transformado na – e para – a sociedade romana. Um imperium
relativo ao poder de caráter militar, em época Republicana exercido temporariamente
pelo Cônsul – magistrado mais importante do Senado – e, a partir de Otávio Augusto,
um poder relacionado ao príncipe (FRIGHETTO, 2008; Idem, 2012).
Tendo por base estes posicionamentos, elucidamos que utilizaremos a fórmula
“Império” (com inicial maiúscula) para designar o território sobre o qual os romanos
exerciam sua hegemonia. Em conformidade com Norma Musco Mendes, “o território
do Imperium” (SILVA, 2006:40). Tal qual aparece nos documentos da época, também
lançaremos mão da expressão orbis romanorum (território/mundo dos romanos) como
sinônimo do termo Império. A expressão “império” (iniciada com letra minúscula) será
aplicada quando nos referimos ao termo latino imperium (poder de caráter militar).
2
Sobre o termo “Igreja”, trataremos posteriormente.
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Outro conceito que necessita de esclarecimentos para nosso trabalho é o de
eclésia (ecclesia). Novamente discordamos da noção de Gilvan Ventura da Silva que
percebe, já nos tempos do imperador Constantino, uma Igreja fortificada, com cânones
de fé estabelecidos, um Deus onipotente, santos e bispos prontos para guiar as ações
imperiais (SILVA, 2003:86). Conforme indicam documentos da época, observamos,
sim, debates múltimplos em torno da fidem (fé) em um deus único, por este motivo, é
inconsistente afirmarmos que já existia uma noção sólida de Igreja.
Nos primeiros séculos de nossa era, acreditamos ser impossível estabelecermos
uma clara distinção entre uma doutrina tida como a oficial pelos governantes do
imperium e as variantes de interpretação dos ensinamentos de Jesus Cristo ou da crença
em um deus único. Tais interpretações diferenciadas proliferavam no seio de distintas
comunidades cristãs, as quais tinham em comum, somente, a intenção de seguir os
mandamentos de Jesus Cristo. Prova disto, são os inúmeros concílios “ecumênicos”3,
promovidos ao longo do século IV. Aberto aos bispos de todas as comunidades cristãs,
estas reuniões impulsionaram e afirmaram os preceitos da cristandade (ARNALDI,
2006:567–588), embora, tenham distanciado comunidades ao estabelecerem dogmas
aceitos por algumas e rejeitados por outras. Desta forma, identidades de pertença a
grupos eram estabelecidas, gerando, no caso da cristandade nicena, o conceito da
heresia para designar aqueles que não seguiam o credo estabelecido no Concílio de
Nicéia de 325.
Neste cenário de debates relacionados à fé cristã, é mister alertamos que a
palavra eclésia refere-se a “comunidade reunida”, uma assembléia: do grego ε
ησ α
(assembléia); do latim clássico ecclaesia; do latim tardio ecclesia. Esta última é a
expressão que aparece nos documentos que analisamos quando os autores mencionam
seu grupo de fiéis, aqueles com os quais compartilham a catholicam fidem (fé católica),
apoiada sobre o credo niceno. Por este motivo, optamos pela utilização do termo eclésia.
Elucidados estes pontos, voltemos nossa atenção à especificidade deste artigo, a
prática da retórica por parte de Aurélio Ambrósio.
Aurélio Ambrósio: um homem público
3
Do grego οἰ ου έ η (mundial).
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Debruçamos nossos estudos sobre este homem público que foi nomeado bispo
de Milão (Mediolanum) em 374, cargo no qual permaneceu até sua morte no ano de
397. Demasiadamente conhecido na historiografia por seu papel como “Pai da Igreja”,
buscamos conhecer o papel público deste homem perante sua comunidade de fiéis. Um
grupo que, conforme Paulino (secretário de Ambrósio), o aclamou ao episcopado de
Milão após a morte do bispo Auxentio Ariano (PAULINO, Vita Sancti Ambrosii
Mediolanensis Episcopi, 6).
Aurélio Ambrósio era um homem bem formado nas disciplinas essenciais
propagadoras de conhecimentos e valores da romanidade; um sujeito que, assim como
Cícero e seu contemporâneo neoplatônico e crédulo do panteão greco-romano Quinto
Aurélio Símaco Eusébio, asseverava a força da voz como um instrumento de sabedoria
e de poder: “A voz é como que conduzida pelo remo do ar e levada através do vazioν
açoita o ar com a mesma força que ele, ora comove, ora acalenta o sentimento do
ouvinte, abranda o que está irado, levanta o caído, consola o que sofre” (AMBROSIUS,
Examerão, 9, 67). Através de uma rápida leitura desta afirmação ambrosiana já nos é
possível identificar a importância que a arte da oratória teve na formação de Aurélio
Ambrósio bem como a apropriação e utilização desta disciplina por parte do bispo ao
divulgar suas mensagens4.
Chamado por Jerônimo de Strídon de “Pilar da Igreja”, Aurélio Ambrósio foi
leitor de diversos escritores gregos, especialmente de Orígenes e Didimo, o cego, mas
também lia frequentemente as obras de Basílio, o grande, e de Anastácio Sinaíta (ou
Anastácio do Sinai). Digno de nota era sua aceitação a alguns pontos da interpretação
das alegorias de Philo (SCHAFF, 2004: 9), tema a ser tratado em trabalhos futuros.
Advindo de família nobre e rica em patrimônios, seu pai – que também se
chamava Ambrósio – exercia o cargo de Prefeito na Gália quando Aurélio Ambrósio
nasceu, em 340. Sua residência oficial era em Tréveris (atual Trier, na Alemanha). Após
a morte de seu pai, Ambrósio foi com a família para Roma, onde se dedicou aos estudos
das leis (JONES; MARTINDALE; MORRIS, PLRE I:52).
É importante observarmos que, antes de ser nomeado bispo de Milão em 374,
neste mesmo ano, Aurélio Ambrósio havia sido governador de Aemilia et Liguriae –
províncias da Diocese de Itália. Anos antes, exercera a advocacia no tribunal da
4
A saber, nos referimos à retórica como uma arte por influência de Cícero que assim a denominou ao
longo de em seu livro I, mas também como “doutrina do dizer” (doctrina dicendi). In: CÍCERO, De
inventione, I.
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prefeitura, até que no ano de 370, o Prefeito do Pretório, Sexto Petrônio Probo, o
nomeara membro do conselho (assessor) ao perceber suas habilidades com as palavras
das leis. Então, em 374, Probo o indicou para desempenhar a função de consularis
Aemilia et Liguriae, ou seja, governador da província de Emilia e Ligúria, com sede em
Milão (JONES; MARTINDALE; MORRIS, PLRE I:52). Portanto, antes de ascender
como líder de uma eclésia, Ambrósio desenvolvera responsabilidades junto ao círculo
de poder imperial e ocupara cargos políticos, logo, já prestava serviços ao Império dos
romanos; já estava ligado a preservação da ordem na sociedade romana e fora
reconhecido por isso ao ser designado bispo.
Como governador de Emilia e Liguria, Ambrósio ocupava uma posição
estratégica junto aos imperadores, afinal, Valentiniano I sediava sua corte em Milão,
capital de Italia Annonaria (RUGGINI, 1995) e da parte ocidental do Império. Uma
cidade que vinha ganhando notoriedade desde as reorganizações militares
implementadas por Galieno entre 260 e 268 d.C. até que foi declarada capital do
Império dos romanos em 293 por Diocleciano. Tratamos, portanto, de uma cidade que
no século IV encontrava-se equipada militar e politicamente; um reduto onde a vida
social e cultural pulsava forte. Enfim, um centro que congregava vários poderes,
perfeito para uma distinta eclésia. Eclésia esta que no ano de 374 passou a ter como
bispo (episcopus) Ambrósio.
A diocese de Milão teve sua criação no século I. Devido à notoriedade da cidade
e das ações de Ambrósio na posição de bispo, ela foi elevada a categoria de
arquidiocese no século IV. Até hoje o rito ali praticado é o ambrosiano e seu padroeiro,
obviamente, é Santo Ambrósio.
Novamente, focamos nossos estudos sobre um sujeito da história com atitudes
destacáveis já em sua época. Porém, lembremos que para alcançar o bispado, um cargo
bastante significativo da hierarquia eclesiástica, Ambrósio precisou demonstrar que
servia ao imperium, até mesmo antes de ser encarregado da administração de Emilia e
Liguria, pois, não alcançaria este governo se fosse um desconhecido ou inapto para a
função. E para permanecer em posições prestigiosas tais serviços tinham que ser
constantes, sempre em prol da manutenção da ordem romana.
Ramón Teja examina cuidadosamente a multiplicidade e a vastidão das funções
episcopais no contexto imperial da romanidade. Sobre o bispo, afirma: “Es una especie
de poliedro: según el punto de vista del observador, puede aparecer como un sacerdote,
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un político, un rétor, un jurista, un juez, pero el resultado final es una conjunción de
todas ellas” (TEJA, 1999:75). Como bispo de Milão, a função de Ambrósio como
mantenedor da ordem romana era primária. Ele deveria ser o líder de sua eclésia e, em
uma sociedade onde o domínio das letras fazia parte da vida de poucos, a mensagem
oral guiava os passos da comunidade. Os princípios divulgados pelos discursos orais
eram retidos na memória dos ouvintes e propagados de “boca em boca”. Desta maneira,
passavam a integrar a memória coletiva e divulgar os preceitos de ordenação romana,
em especial, no caso de Aurélio Ambrósio, também os princípios do cristianismo
niceno, afinal, neste momento, religião, cultura e política estavam totalmente
entrelaçadas, sendo-nos impossível tratá-los de forma compartimentada. Conforme
lembra Pinheiro, “os bispos divulgavam a transição clássica conjuntamente com o
próprio movimento de expansão do cristianismo” (PINHEIRO, 2005:17). Logo, por
meio de suas palavras, Ambrósio deveria professar a política imperial, valores de
romanidade e princípios da fé católica perante grupos que o apoiavam e/ou dependiam
de sua liderança.
Por isso, neste artigo, nossa proposta é verificar a importância da retórica para as
ações de Aurélio Ambrósio. Como especificidade de nossa pesquisa, apresentamos a
visão de um de seus mais significativos discípulos, Aurélio Agostinho, a respeito das
habilidades retóricas de Ambrósio.
Relações entre Ambrósio e Agostinho
Diante da imensidão de obras escritas por Aurélio Agostinho (bispo de Hipona
de 396/7 – 430), selecionamos suas Confissões como documento de exame para
lançarmos as primeiras luzes sobre a relação de Agostinho com seu mestre.
Este livro, composto em 397, obteve êxito já na época do próprio autor que
chegou a afirmar: “Sei que a muitos irmãos muito agradou e agrada o livro das
Confissões” (AUGUSTINUS, Retractationum II, VI, 1). Nossa escolha por este
documento reside no fato de que nele encontramos esclarecedoras passagens sobre a
declamação de discursos por parte de Ambrósio para seus ouvintes.
Para começar, fazemos questão de “colocar” Ambrósio na vida de Agostinho.
Este personagem nasceu em Tagaste (atual Souk-Ahrás, na África do Norte), em
novembro de 354. De acordo com o próprio autor, quando criança, estudou a língua
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grega (pela qual tinha aversão) e a latina, além dos grandes clássicos (AUGUSTINUS,
Confissões, I, 13). Apesar de ser filho da cristã nicena Mônica, Agostinho professou por
muito tempo os ensinamentos maniqueístas. Lecionou retórica em Tagaste durante 13
anos. Para dedicar-se ao ensino desta arte, esteve ainda em Cartago – onde se
decepcionou com a inadimplência de seus alunos – e Roma, em 383. Entretanto, sua
permanência em Roma foi bastante curta. Em 384, selecionado pelo Prefeito de Roma, o
neoplatônico Quinto Aurélio Símaco, Agostinho partiu para Milão para ocupar o cargo
de retor da cidade (AUGUSTINUS, Confissões, V, 13).
Estando em Milão, foi ao encontro de Ambrósio e, já em suas primeiras linhas a
respeito do bispo, Agostinho mencionou a zelosa eloquência empregada por Ambrósio
para servir aqueles dedicados à fé católica (AUGUSTINUS, Confissões, V, 13).
Entendemos a eloquência como a arte de “bem falar” e de convencer os ouvintes
pela devida entonação da voz e gestos do orador. Atrelada à oratória, a eloquência
reforçava o prestígio e poder das palavras sobre os ouvintes. De acordo com Cícero,
enquanto aquela designava a arte de falar bem, com conhecimento profundo da causa e
desenvoltura própria do orador, esta se referia ao talento de persuasão, de
convencimento por meio da palavra. A correta disposição das palavras, o ritmo e o
equilíbrio do discurso facilitavam o entendimento, a associação e a recordação do
assunto pelo público (CÍCERO, Sobre el orador, III, 171). Lembremos que a sociedade
romana do século IV era extremamente oral e visual. Examinamos, portanto, uma
sociedade na qual os gestos e as vestimentas destacavam pessoas, identificavam grupos
e hierarquias e realçavam discursos repletos de valores a serem seguidos e vícios que
deveriam ser apartados daquela ordem, em prol do bem de toda a comunidade. Desta
forma, tal como já apregoava Aristóteles, ao obedecer tais preceitos, o bem comum seria
mantido e esta era a finalidade última dos governantes (ARISTÓTELES, Política I, I;
III, XII). No papel de bispo de Milão, a manutenção da ordem citadina pela difusão de
um discurso moral e em conformidade com o poder imperial era a missão de Ambrósio.
A oratória e, por sua vez, a eloquência, elementos componentes da retórica
asseguravam a compreensão e a memorização da mensagem recebida pelo público
(CÍCERO. De Partitione Oratio, I, 3). Além disso, os textos deveriam ser simples e
concisos para serem corretamente retido pela memória e propagado entre os ouvintes. A
atenção a este discurso, escrito e proclamado de maneira simples foi destacada por
Ambrósio: “... nas Sagradas Escrituras se observa com frequência este modo de falarν é
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uma maneira de expressar-se com simplicidade” (AMBROSIUS, Sobre a Penitência, II,
31). Esta simplicidade, por sua vez, estava atrelada a brevidade com que a mensagem
deveria ser exposta. Elemento também mencionado por Ambrósio: “Os santos apóstolos
reunidos juntos fizeram um resumo da fé, a fim de que pudéssemos compreender
brevemente o elenco de toda a nossa fé. A brevidade é necessária, para que ela seja
sempre mantida na memória e na lembrança” (AMBROSIUS, Explicação do símbolo,
2). Observamos a consagração da memória como um elemento de aprendizagem. Uma
memória que deveria ser despertada de forma marcante pelo anunciante da mensagem a
fim de que tais ensinamentos fossem acessados de forma rápida e descomplicada pelo
público. Afinal, estes ouvintes eram os disseminadores dos conhecimentos elaborados
pelos dirigentes da sociedade.
Este convite à simplicidade e a brevidade, no entanto, longe de ser uma invenção
cristã para facilitar a disseminação de sua fé, esteve bastante difundida no mundo
romano a partir da IV centúria, tanto na pars occidentalis como na pars orientalis. Esta
maneira de se expressar atendia a demanda de um público cada vez mais diversificado;
uma sociedade romana que recebia em sua administração pessoas de origens e
formações diferenciadas, os chamados “homens novos” (homines novi). Especialmente
a partir das políticas desenvolvidas por Diocleciano e, posteriormente, por Constantino,
estes homens novos passaram a integrar o universo político romano e necessitavam ter
conhecimentos essenciais a respeito da história romana. Como resposta a esta situação,
houve uma multiplicação do gênero historiográfico do epitome (termo procedente do
grego) ou breviarium (termo latino) (FALQUE, 1999:19-20). Tal como o gênero
propõe, estas obras apresentavam os “fatos essenciais” da história romana de maneira
sucinta e simplificada. Estas características faziam com que estes manuais pudessem ser
lidos por um público diversificado. Este, cumpria a função de propagar rapidamente os
valores de romanidade e a importância da ordem e da hegemonia romanas5.
Neste ínterim, percebemos que a simplicidade e a brevidade na maneira de falar
e escrever eram elementos-chave para a ordenação da sociedade romana. Não à toa,
Ambrósio os exaltou e lançou mão destes recursos para divulgar preceitos de
cristandade, valores morais e princípios políticos.
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Como exemplos deste gênero destacamos, no Oriente, o Breviarium de Eutrópio e o De Caesaribus de
Aurélio Victor, no Ocidente.
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Devido a estas particularidades, até aqui explanadas, percebemos que a oratória,
a eloquência, a simplicidade e a brevidade dos textos garantiam a retransmissão das
palavras. Em um cenário no qual o domínio da escrita e da leitura era circunscrito a
poucos, o orador era o mediador entre o que estava escrito e aquele que ouvia. O texto
era ouvido, guardado na memória individual e, com sua disseminação, integrava-se à
memória coletiva. As palavras que emanavam dos lábios de Ambrósio atraíam,
lideravam, ensinavam e identificavam seus ouvintes.
Agostinho, mesmo ainda não sendo convertido à fé católica, afirmou que se
encantava ao ouvir os sermões anunciados por Ambrósio (AUGUSTINUS, Confissões,
VI, 4, 5). Declarou-se extasiado pelo modo como Ambrósio fazia uso das palavras,
mesmo sem se importar com o que o bispo dizia, uma vez que ainda pregava os valores
maniqueístas. Interessava-se pela eloquência (eius fa cundia m – fa cundia , a e:
eloquencia) e pela fama (famae suae) da oratória (verbis) de Ambrósio (Idem, V, 1314). A beleza da argumentação que emanava dos ensinamentos ambrosianos levou
Agostinho a prestar atenção em tais palavras e, pouco a pouco, ele se converteu a crença
nicena (Idem, VI, 4, 5). Agostinho assumiu que não se entregou a fé católica apenas
pelas verdades que ela professava, mas sim, pelos “doutos defensores que refutavam as
objeções dos seus adversários com eloquência e lógica” (Idem, V, 14).
Estes elogios à retórica de Ambrósio são encontrados em várias passagens da
obra de Agostinho. Notamos que o futuro bispo de Hipona, Agostinho, foi convertido à
fé nicena, em primeiro lugar, pela maneira como Ambrósio entoava seus discursos. Foi
esta estranheza positiva gerada pela eloquência ambrosiana que levou Agostinho aos
caminhos que sua mãe desejava que ele trilhasse desde seu nascimento.
Percebemos, pois, que Ambrósio cumpria sua função episcopal de liderança
perante sua eclésia. Era a voz que a ordenava e que, pari passu, dela emanava para
afiançar o valor da cidade milanesa. Observamos que o crescimento da importância
política de Milão e as relações entre Ambrósio e os imperadores deram fôlego a
comunidade cristã da cidade, mesmo em um cenário de constantes contendas travadas
entre o bispo de Milão contra os defensores do arianismo.
Considerações finais
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Repensar cada passo do trabalho diário do historiador é uma prática riquíssima,
mas pouco praticada devido à tendência que desenvolvemos de copiar as metodologias
dos “grandes pesquisadores”. Esta disposição à cópia nos coloca em uma posição de
conforto, é fato, entretanto, muitas vezes emudecemos nossos documentos por tratá-los
de maneira uniforme, o que é um crime para a História. A documentação e a realidade
histórica não podem se adaptar a modelos teóricos preestabelecidos. De nossa parte,
longe de nos determos nas generalizações de teorias já prontas, preferimos “ouvir”
nossos documentos para dar voz (e letra) às pluralidades vividas pelos sujeitos
históricos. Uma vez que nós, historiadores, defendemos demasiadamente que a
verificação histórica procura alcançar as peculiaridades destes homens, devemos
também tratar estes sujeitos de forma particular, atentos a seu tempo, espaço e ação.
A imensidão de materiais e intervenções disponíveis para nosso trabalho,
felizmente, nos permite – e mais do que isso – nos exige uma postura investigativa
característica e voltada para cada um dos objetos por nos estudados. É a maneira como
enxergamos, examinamos e, por fim, demonstramos nossas análises pela via da escrita
que traz para a ciência histórica a variedade e a riqueza tão intrínseca à vida humana.
No que se refere a este artigo, lançamos questões sobre um homem
demasiadamente conhecido por seu papel como bispo e notamos a multiplicidade de
funções de Aurélio Ambrósio frente ao episcopado de Milão. Sediado na capital do
Império ocidental, Ambrósio deveria manter uma determinada comunidade, que estava
sob seus cuidados, organizada e atrelada aos princípios valorados pelos romanos.
Concomitantemente, ele professava a fé católica (cristã nicena) e convertia seguidores a
esta crença. Tarefa que exigia conhecimentos diversos e domínio de várias disciplinas,
entre elas, a retórica.
Através dos elogios desenvolvidos por Agostinho à arte retórica de Ambrósio,
conseguimos alcançar alguns vestígios práticos da aplicação desta disciplina estudada
por ambos os autores. Neste caso, longe de examinarmos a organização dos discursos de
Ambrósio, assunto principal de nossa pesquisa de doutoramento junto à Universidade
Federal do Paraná, procuramos averiguar sinais da prática da oratória e da eloquência de
Ambrósio. Encanta-nos constatar que a maneira utilizada por este orador para difundir
suas mensagens seduzia até mesmo aqueles que não professavam a fé em um Deus
católico, por isso, sua fama oratória era notada por Agostinho mesmo antes deste o
ouvir declamar. Fama esta reconhecida não só por Agostinho, lembremos que foi
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devido a sua habilidade com as palavras que Sexto Petrônio Probo nomeou Aurélio
Ambrósio a conselheiro (assessor) e, posteriormente, a governador da província de
Emilia e Ligúria, em 374. Até, finalmente, Ambrósio ascender ao episcopado de Milão,
por aclamação de uma determinada comunidade que o respeitava e admitia como líder,
evidentemente.
Desenvolto orador, percebemos em Aurélio Ambrósio o significativo papel do
bispo, especialmente, a partir da IV centúria, como condutor de uma eclésia. Não um
professor de retórica (um retor), mas aquele que aplicava os saberes desta arte para
atrair seus ouvintes pelo som de sua voz e por seus gestos majestosos. Assim,
assegurava que seu público apreendesse seus ensinamentos e os disseminasse, desta
forma, estes preceitos passavam a integrar a memória social e oficial.
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A FIGURA POLÍTICO - RELIGIOSA DE IDÁCIO DE
CHAVES NA GALLAECIA ROMANA TARDIA (427 D.C. - 469 D.C.)
Mestrando Danilo Medeiros Gazzotti
Bolsista CNPq, UFPR
dmghistoria@gmail.com
Resumo: No presente artigo discorrermos sobre Idácio de Chaves e sua crônica, que é
uma preciosa fonte para estudarmos a Gallaecia durante o Século V d.C. Idácio assumiu
em 427 d.C um grande cargo político-religioso nesta região exercido provavelmente até
sua morte. O mesmo utilizou-se deste cargo público como uma extensão de seu poder
privado atuando principalmente em defesa de seus interesses e de sua comunidade,
exercendo por exemplo atividades como embaixador da Gallaecia perante aos romanos
e os povos bárbaros1. Um legado de suas funções foi a produção de uma crônica na
qual narra os feitos e fatos ocorridos no período e os relaciona com a vida cotidiana e
social do mundo romano-tardio, descrevendo seus problemas e enfrentamentos. Sobre a
ecclesia 2 cristã encontramos muitas informações, que vão desde a nomeação dos bispos
de Roma no decorrer do período em que sua crônica abrange, até informações, por
exemplo, acerca de acontecimentos com bispos do ocidente e do oriente.
Palavras-Chave: Idácio de Chaves; Antiguidade Tardia; Gallaecia; Crônica; Bispo
Abstract: In this paper we talk about Hydatius and his chronicle, that is a precious
source for we study the Gallaecia on fifith century a.D. Hydatius assumed in 427 a.D. a
great post political religious in this region exercised probaly to his death. Oneself was
used his office like a extension of his private power acting mainly in defense of thier
interests and of his community, exerting for exemple activities like ambassador of
Gallaecia before the romans and the barbarians people.A legacy of their functions was
the production of a chronicle that he narretes the dones and facts occured in his period
and ralates with everyday and social life of roman-late world, describing their problems
and confrontations. About christian ecclesia we found a lot of informations, that from
the nomination of Roman bishops in roll of period tha his chronicle comprehend, until
informations, for exemple, about of ocidental and oriental bishops events.
Key-Words: Hydatius of Chaves; Late Antiquity; Gallaecia; Chronicle; Bishop
1
2
Utilizamos o termo bárbaro isento de preconceitos, apenas para delimitar que são estrangeiros.
Ao usarmos esse termo em letra minúscula indicamos que em nossa opinião a ecclesia ainda não
constituía-se sólida o bastante para ser considerada uma instituição.
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Introdução
Antes de discorrer acerca da importância da obra de Idácio vamos realizar uma
discussão sobre alguns conceitos de datação que são utilizados para tratar o período em
que a produção intelectual de Idácio abrange, ou seja, os séculos IV e V d.C.
Diferentes autores tratam de modos distintos este mesmo arco cronológico, as
nomenclaturas mais utilizadas são: Primeira Idade Média, Baixo Império Romano e
Antiguidade Tardia.
O conceito de Primeira Idade Média foi proposto pelo historiador Hilário Franco
Júnior. Sua tese proposta em 1986, em sua obra intitulada A Idade Média, nascimento
do Ocidente, pretende investigar o período que denomina de Primeira Idade Média a
partir de esferas temáticas, nas quais estão agrupados assuntos pertinentes as diversas
ordens existentes, para construir o que o autor entende e pensa sobre a Idade Média.
A denominação Baixo Império foi uma expressão lançada em 1759 por Labeau
e, desde então foi amplamente utilizado. Diversos antiquistas ainda utilizam essa
nomenclatura sem apresentar uma discussão acerca dessa denominação. Gilvan Ventura
da Silva justifica a utilização desse conceito dizendo que na passagem do século III para
o IV, Roma é marcada por todo um processo de redefinição dos princípios políticoadministrativos e ideológicos que organizavam o estado imperial (SILVA, 2000, p.173).
Essa nomenclatura é defendida também por estudiosos como Bryan Ward
Perkins (2006) e J. H. Liebeschuetz (2000) os quais utilizaram-se de evidencias
arqueológicas para argumentarem que houve realmente um declínio da civilização
romana entre os séculos IV d.C e V d.C.
Porém, concordamos com Renan Frighetto e Jean-Michel Carrié, quando
afirmam que este termo relaciona o período em questão as idéias contidas na
historiografia cuja temática é “declínio e queda”.
O último conceito que abordaremos é o da Antiguidade Tardia. Esse conceito foi
criado pela historiografia alemã no início do século XX, pelo arqueólogo Alois Riegel
em 1901 e ganhou força com os estudos filológicos realizados por Johanes Straub.
Jean Michel Carrié defende que a alcunha Antiguidade Tardia acabou de vez
com a visão “decadentista” do Império Romano, apesar da mesma existir como objeto
científico a pouco mais de 50 anos (CARRIÉ, 1999, P. 17-20). Esta visão não
decadentista começou a aparecer em estudos a partir da década de 1970, especialmente
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de autores como Henri-Irinée Marrou (1977) e Peter Brown(1971), os quais partilhavam
da idéia de que as sociedades e civilizações não caem ou declinam, mas sim
transformam-se.
Para nós esse período é fundamental para compreendermos a transição ocorrida
entre os mundos clássico e medieval. Acreditamos que esse período possui
características próprias, pois houve permanências e descontinuidades culturais,
políticas, econômicas, sociais e religiosas entre esses dois mundos de transição
(FRIGUETTO, 2000. P.19).
Concordamos também com Friguetto quando o mesmo diz que na Antigüidade
Tardia havia a construção de um preceito político-ideológico que servia como membro
conector entre os elementos da tradição política clássica imperial romana com a
necessidade e a legitimação daquela forma de poder monárquico com as construções
teóricas que indicavam a relação entre a centralização do poder e as práticas religiosas
de cunho monoteísta, sejam elas de procedência pagã ou cristã (FRIGUETTO, 2006, P.
163). Ainda segundo Friguetto, essa denominação tem três arcos cronológicos distintos:
Alguns especialistas estendem-na como complementada nos primórdios do
século VII, como A.H.M. Jones (1964), quando os romanos-orientais passam
a denominação de bizantinos, por suas preocupações políticas, militares e
culturais mais voltada ao oriente greco-mediterrâneo, diante das ameaças
persa e, mais decisiva árabe. Já outros pesquisadores avançam estes limites
cronológicos da Antiguidade Tardia para a primeira metade do século VIII,
lançando algumas hipóteses que se relacionam tanto ao processo de expansão
do islamismo pelo norte da África que culminará com a presença e anexação
de boa parte da Península Ibérica por árabes e tribos berberes... (GARCIA
MORENO, 1992, P.17; FRIGUETTO, 2000, PP.19-21). Existe ainda um
terceiro grupo de pesquisadores que sustenta, com razão, a possibilidade de
ampliarmos ainda mais o espectro cronológico da Antiguidade Tardia,
sempre seguindo a perspectiva duma História mais regionalizada e que nos
revela uma “velocidade” de mudanças e de permanências que acabam
apontando o período tardo-antigo ainda no século IX ou mesmo no século XI
(NOVO GUISÁN, 1992; BOIS, 1993, PP. 543-53) (2006, p.224).
Ao acreditarmos estar analisando um período que contém particularidades e
rupturas, cremos que nosso trabalho aproxima-se mais da alcunha da Antigüidade
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Tardia situada no arco-cronológico entre o século III d.C. até o início do século VIII
d.C. Após situarmos cronologicamente nosso trabalho vamos discorrer acerca da Idácio
de Chaves e sua produção intelectual.
Idácio de Chaves e seu Papel Político-Religioso
Primeiramente precisamos distinguir o cronista Idácio de Chaves de outros dois
homônimos do século IV d.C., os quais quase foram contemporâneos seus, são eles
Hidácio, o bispo de Mérida e Itácio, o bispo de Osónoba. Os dois bispos foram os
acusadores do bispo Prisciliano3 perante o usurpador Máximo, em Treveris. Os dois
ainda organizaram o I Concílio de Zaragoza, em 380 d.C., o qual condenou a
interpretação priscilianista como heresia. Diferenciados os personagens vamos agora
discorrer sobre a trajetória biográfica do bispo de Chaves.
O percurso da vida de Idácio de Chaves é pouco conhecido, sendo que a maior
parte de informações sobre sua trajetória particular provém de sua crônica. Ele declara
no prefácio de sua obra a cidade onde nasceu sendo a cidade de Lemica na província da
Gallaecia. Sobre seu nascimento podemos apenas deduzi-lo quando, o mesmo, relata
que esteve muito jovem no oriente, em 407 d.C. Nessa passagem ele usa o termo
infantulus et pupillus , o qual era utilizado para jovens entre os doze e quatorze anos de
idade, o que nos faz supor que nascem entre 393 a 395 d.C.
Em sua viagem ao Oriente conheceu personagens com João, o bispo de
Jerusalém, Eulogio de Cesaréia, Teófilo de Antioquía e Jerônimo de Stridon. Volta do
Oriente para a Gallecia por volta de 412 d.C.
Marcelo Macias (1906, p.7) afirma que por volta dos vinte dois anos de idade
Idácio entrou para a vida religiosa, tornando-se monge. César Candelas Colodrón (2002,
p.289-290) contesta essa informação dizendo que Idácio entrou na vida religiosa por
volta dos vinte e cinco anos, mas não como monge. Para este último Idácio nunca se
afastou da vida política e pelo que sabemos de sua vida e entendemos se seus estudos
ele nunca concordou com essa idéia de ascetismo.
3
Prisciliano foi um leigo elevado a condição de bispo que fundou uma vertente do cristianismo
denominada priscilianismo. Esta vertente foi considerada herética pelo cristianismo ortodoxo sendo o seu
líder condenado a morte e seus seguidores perseguidos pelos membros da ortodoxia.
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Júlio Campos (1984, p.7) afirma que Idácio segue carreira religiosa e atinge o
episcopado no ano de 427 d.C. Mas como indaga não se sabe qual cidade o bispo
assumiu nessa data, apenas aparecendo o nome da cidade de Aquae Flaviae muito
tempo depois, ao relatar ter sido vítima de um sequestro, diz ter voltado à sede de seu
episcopado nesta cidade após ser solto.
A omissão do nome da sede episcopal assumida por Idácio nos leva a um grande
debate historiográfico que discute a possibilidade dele ter assumido primeiramente
como bispo de uma cidade menor e depois ter mudado para Aquae Flaviae (Mole, 1974,
p.286) até a contestação de sua nomeação como bispo.
Rodríguez Colmenero (1977, p.231) crê que Aqua Flaviae não era um lugar
adequado para uma sede episcopal e que sua comunidade cristã poderia ser comandada
perfeitamente por um presbítero, como ocorria no Norte da África. P. David (1947,
p.19-44) diz que também acha difícil ter havido uma sede episcopal em Aquae Flaviae,
principalmente porque a cidade não aparece no Parrochiale4 suevo como sendo uma.
Colodrón (2002, p.292) rebate estes argumentos dizendo que a escrita do
Parrochiale suevo aconteceu mais de cem anos após o episcopado de Idácio e diz que a
situação da região poderia ter mudado o suficiente para que algumas sedes episcopais
aparecessem e outras desaparecessem. Segundo o autor, Aquae Flaviae, era centro de
uma importante região que contou com a presença de Roma, além de ser um grande
pilar do cristianismo ortodoxo na Gallaecia. A cidade teria tanto importância que a
própria captura de Idácio e posterior saque da cidade mostraria um interesse dos suevos
para acabar com um núcleo de poder da igreja, que dificultava a expansão de sua
população pelas terras galaicas.
Utilizando-se do sua posição, a qual na época era tanto política quanto religiosa,
Idácio fez o possível para proteger os interesses da Ortodoxia nicena na Península
Ibérica, divulgando sua doutrina oficial, o cristianismo ortodoxo, e tentando extirpar
outras interpretações do evangelho consideradas heréticas e que tinham muita
representação na região, como o arianismo e o priscilianismo. Como nos mostra
4
O Parochiale Sueuorum é um importante documento da segunda metade do século VI, onde se reflete a
organização administrativa e mormente eclesiástica do Reino suevo da Gallaecia, contendo uma relação
de 134 paróquias, agrupadas em treze dioceses.
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Campos “Idácio, que vigia com zelo a fé ortodoxa de seu povo está atento aos resíduos
e brotes do Priscilianismo...” (CAMPOS, 1984, p. 11)
Outra função que exerceu foi a de embaixador de sua região perante o Império
Romano, fato que relata em sua crônica quando diz que em 431 d.C. foi até uma
embaixada se encontrar com o general Aécio para negociar reforços militares para a
Gallaecia, a qual estava sofrendo constantes ataques do povo Suevos. Como Aécio não
pode ajudar, coube a Idácio e outros bispos negociarem as pazes com o povo invasor.
Quando Agostinho expira, começa o bispo Idácio sua vida pública.
Angustiosamente esperanzado no Império, vai a Gália (431) para solicitar o
auxilio do general romano Aécio contra os Suevos opressores da Galícia.
Mas Aécio, último amparo do poder imperial, no tendo outro recurso senão
servir-se de uns bárbaros contra os outros, ou contra as intrigas militares da
corte, não pode socorrer a Espanha, e foi Idácio, por sua conta, com outros
bispos, quem teve que negociar as pazes entre suevos e galegos (433)...
(PIDAL (org.), 1963, p. IX)
Bruno Miranda Zétola (2012, .p..34) nos afirma que existe um grande registro de
relações diplomáticas na obra de Idácio e que isso ocorre principalmente devido ao
próprio autor ter sido encarregado da função de emissário, o que pode lhe ter dado a
relevância desse mecanismo de comunicação política para o desenvolvimento e
processos históricos.
Frighetto (1997, p.38) nos confirma essa informação ao afirmar que Idácio
alcançou tamanha importância sócio-política que tornou-se um dos mais destacados
interlocutores do diálogo político existente entre os suevos.
Em 26 de julho de 460 d.C. Idácio foi preso pelo chefe dos Suevos Frumário,
por delação de Dictinio, Espinión e Ascâmio, os quais eram hereges5 priscilianos e
arianos. Depois de três meses de cativeiro foi liberado, contra a vontade dos delatores, e
voltou para sua igreja em Aquae Flaviae. O Próprio Idácio relato esse fato em sua
Crônica:
5
Juízo de valor do cristianismo ortodoxo
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Parte do exército de godos, dirigido pelos condes Sunierico e Nepociano a
Galícia, depreda aos Suevos que habitam Lugo, a qual descoberta pelos
delatores Dictinio, Spinión e Ascanio, que vão espalhando-se para difundir o
terror e o veneno de sua própria deslealdade, se fazem sujos. E pouco depois,
induzido pelos mesmos delatores já referidos, Frumário com uma tropa de
Suevos que tinha, depois de aprisionar o bispo Idácio em 26 de julho na
igreja de Aquae Flaviae assola com imensas ruínas o mesmo distrito (Idácio;
cron. a.460-IIII. [1018])
O já referido Idácio, depois de três meses de cativeiro, no mês de novembro
pelo favor e misericórdia de Deus, contra o desejo e disposição dos
mencionados delatores volta à cidade de Flaviae (Idácio; cron. a.460-IIII.
[1041]).
A sua morte também não tem uma data precisa. Sua crônica termina no ano de
469 d.C. o que nos prova que foi após esta data e segundo Isidoro de Sevilha, antes de
474 d.C., pois menciona o fato de que Idácio tenha morrido durante o reinado do
imperador Leão do oriente, que reinou entre 457 e 474 d.C. Sigeberto de Gelembloux
acredita que foi no ano de 490, mas é mais provável que Isidoro esteja certo, pois o
mesmo viveu em uma época mais próxima de Idácio, no século VII, do que Sigeberto, o
qual viveu durante o século XI.
Apesar das dúvidas com certeza Idácio morreu em idade bem avançada, com
mais de oitenta anos, ocupando um grande cargo político-religioso por mais de quarenta
anos e nos deixando de legado sua crônica, que além de nos fornecer preciosas
informações acerca da relação entre hispano-romanos e bárbaros no século V d.C, é
também uma preciosa documentação sobre o discurso político-religioso dos bispos do
período.
Acreditamos que no período que estudamos, a Antiguidade Tardia, os aspectos
politicos e religiosos não podem ser estudados separadamente. Temos em mente cremos
que Idácio de Chaves estava inserido em um contexto político-religioso que em nossa
visão o teria influenciado na escrita de sua crônica.
Renan Frighetto (2010) nos diz que religião e política caminhavam a par e passo
na Antiguidade Tardia, sendo que eram aspectos que deviam ser complementares um ao
outro e jamais como subalternos a eles mesmos. Ainda segundo Frighetto:
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Com a lenta e paulatina desestruturação da autoridade imperial romana
ocidental e a redução da importância do edifício burocrático a ela vinculado,
a figura episcopal surgia como verdadeira alternativa de interlocução entre os
diversos grupos sociais e políticos sociais existentes no interior da civitas
tardo-antiga e, também, dela para outros ambientes políticos.(2010, p. 177)
Averil Cameron ao analisar a produção dos discursos cristãos na Antiguidade,
afirma que a história do desenvolvimento deles constituiria parte da história política do
período. A construção do novo mundo pretendida pela Igreja buscava edificar a nova
realidade através dos textos. (CAMERON, 1991, p. 146).
O discurso cristão dentro da conjuntura do Império romano do século IV d.C.
obteve uma forma complexa e poderosa. Esse discurso revestia-se de maneira
notavelmente secularizada, em concordância com o aumento expressivo que a ortodoxia
alcançava na sociedade. A luta que caracterizou o cristianismo ao longo da história é
uma comprovação suficiente da importância crucial do texto no seu crescimento
histórico rumo a aquisição de poder (CAMERON, 1991, p. 23).
Segundo J. H. G. W. Liebeschuetz (1990, p.3) o cargo de bispo transformava o
religioso em um político de grande influência, graças principalmente a relação direta
que este tinha com a população, privilégio antes apenas desfrutado pelo imperador.
Portanto através de seus discursos os bispos podiam expor suas visões e defender suas
concepções a um número grande de indivíduos.
Segundo Ramón Teja (1999, p. 75) o mundo grego-romano criou numerosas
figuras que formam uma enorme riqueza na Antiguidade Tardia. Podemos que destacar
o político, o jurista, o filósofo, o rétor, etc., são um produto da antiguidade clássica. O
bispo não é indentificável ou assimilável com nenhuma destas, mas tem um pouco de
cada uma. Ele é uma espécie de poliedro, pois pode aparecer como um sacerdote, um
político, um rétor, um jurista, um juiz, mas no final de tudo ele é uma conjunção de
todas essas funções. Devido as todas estas características pensamos que o bispo é a
figura mais original na etapa final do mundo antigo e sua função é a que melhor
caracteriza o mundo antigo.
Helena Amália Papa (2009, p. 26) nos informa que por meio dos discursos desse
grupo, denominado episcopado, podemos perceber como as representações de suas
ações se manifestaram na sociedade em que viveram. Essas ações não podem ser vistas
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somente através do prisma político, religioso, administrativo, econômico e/ ou social,
separadamente. Elas representam verdadeiras miscelâneas de interesses e pretensões.
Colodrón (2002, p.290) nos informa que por ter nascido e ter sido e educado em
uma família de aristocratas, Idácio tratou seus cargos públicos como uma extensão de
seu poder privado atuando principalmente em defesa de seus interesses e de sua
comunidade.
Concordamos com as afirmações de Frighetto, Cameron, Liebeschuetz, Watts,
Teja, Papa e Colodrón e em nossa visão Idácio escreveu sua crônica motivado também
por interesses políticos e não apenas para relatar os acontecimentos de sua época.
Independentemente de ter sido um bispo ou apenas um presbítero, como
discutem alguns autores, sabemos que Idácio possuía um grande cargo político-religioso
em Aquae Flaviae e segundo nossa visão o mesmo teria utilizado-se amplamente dessa
posição para defender os interesses hispano-romanos e nicenos. Segundo Diego Piay
Augusto o papel do bispo era maior na Galaecia do século V d.C, pois a região teve
muitas dificuldades devidas aos constantes conflitos com os povos bárbaros. Nessa
região os bispos encabeçavam a organização eclesiástica local, a qual substituía a
administração romana. “No século V d.C. os bispos galegos, sejam priscilianistas ou
fiéis as doutrinas oficias, parecem ser a única instituição firme” (AUGUSTO, 2006,
p.619).
Produções escritas atribuídas a Idácio de Chaves
Segundo Júlio Campos nos chegam até hoje apenas três documentos escritos
atribuídos á Idácio de Chaves que são a Crônica de Idácio, os Fastos Consulares
Idacianos e Idácio Menor (CAMPOS, 1984, p.12). Nos parágrafos seguintes
discorreremos um pouco mais sobre como a historiografia trata essas fontes.
Crônica
Esta é a maior e mais importante obra atribuída ao autor, não há nenhuma dúvida
sobre sua paternidade e por unânime consenso dos manuscritos, historiadores e eruditos
de todos os séculos (Campos, 1984, p.12).
Apesar de ser uma obra do gênero histórico – cronístico a Crônica de Idácio não
teve uma grande difusão na história. Isidoro de Sevilha foi quem conservou e difundiu
as crônicas idacianas pela Europa medieval, através de sua História Gothorum,
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Vandalorum
et Suevorum. Os manuscritos foram sendo compilados por diversos
escritores ao longo da história.
Segundo Júlio Campos a versão manuscrita mais completa é a conhecida como
Códice B (Berolinense Philipps, nº 1829) que contém, além da Crônica de Idácio, as
crônicas de Eusébio e Jerônimo. Esse Códice é originário do século IX. Existem outros
manuscritos relativos a Idácio, que não são tão completos e são como que resumos ou
epítomes daquele. São conhecidos como Epítomes H e F. Esses manuscritos foram
impressos diversas vezes, a mais completa que foi compilada e criticada por Theodorus
Mommsen em sua M.G.H (Monumenta Germanae Historia).
A versão utilizada nessa pesquisa foi feita por Júlio Campos, o qual fez uma
revisão da obra de Mommsen, e considera todos os manuscritos mencionados acima. As
discrepâncias entre versões da crônica existentes são anotadas no decorrer da obra.
Campos também fez sua edição em formato bilíngue, como texto original em latim e ao
lado dele a tradução em espanhol moderno.
O estilo cronístico adotado por Idácio são relatados em forma cronológica e os
feitos e fatos são relacionados com a vida cotidiana e social do mundo cristão
descrevendo seus problemas e enfrentamentos. A sua crônica abrange um longo período
que vai de 379 d.C até 469 d.C. No prefácio de sua obra, Idácio, declara que pretende
fazer uma continuação em linha temporal da crônica de outros dois homens
eclesiásticos, Eusébio de Cesaréia e Jerônimo de Stridon. Seus escritos começam onde
os de Jerônimo terminam, em 378 d.C.
Para situar os feitos históricos no tempo, Idácio, usa quatro tipos de datações
diferentes. O emprego dos anos de Abraão era comum no meio cristão da época, esse
calendário tinha como ponto de partida a data considerada por Eusébio de Cesaréia,
como a de criação do mundo. Outra datação utilizada era a dos anos olímpicos, apesar
da proibição das mesmas por Teodósio, o que reforça sua herança greco-romana. O
autor também utilizava uma contagem muito tradicional entre os romanos, que era a dos
anos em que cada imperador do ocidente ficava em seu posto, o que reforça sua ligação
com a tradição de um cidadão romano. E por fim como uma entidade ligada ao
cristianismo ortodoxo, ele se utilizava também do computo dos anos de cristo.
José Maria Blazquez (1981) e Júlio Campos(1984) nos informam que Idácio
escreveu sua crônica em uma idade muito avançada. Segundo Blazquez entre os anos de
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468 d.C. e 469 d.C e segundo Campos a data da escrita pode ter passado de 465 d.C.
Saber o período em que Idácio escreveu sua crônica é importante, pois o contexto no
qual estava inserido certamente o influenciou na escrita de sua crônica.
Idácio escreveu a crônica através de informações que recebeu de três modos
distintos. As informações que recebeu antes de assumir seu cargo político-religioso (427
d.C) foram recebidas através das leituras de outros historiadores, como Sulpicio Severo,
Paulo Osório e Próspero de Aquitânia, para os acontecimentos do ocidente, e o
historiador Sócrates e Olimpiodoro para os feitos do oriente. Campos nos relata algumas
dessas informações que Idácio conseguiu através desses outros autores:
De Osório tomou muito sobre as invasões dos anos de 409 a 414, na Hispânia
e Roma com Alarico, a descreve com relatos trágicos e minuciosos que
Osório, conhecidos provavelmente por relatos de testemunhas. De Sulpicio
Severo tomou que no ano de 386 a informação da pena capital aplicada pelo
imperador Máximo a Prisciliano e a Latroniano...Também é Sulpicio Severo
fonte da notícia de São Martin de Tours no ano de 405. Também se inspiraria
no De Script. Eccles. De São Jerônimo para a fama de São Ambrósio (a.382),
para a de São João Crisóstemo (a. 404), para a de Teófilo de Alexandria (a.
380, para a de Epifanio de Chipre... (Campos, 1984, p.35).
A partir de 427 d.C., ao assumir seu posto, Idácio, tem contato com documentos
e testemunhos que sua posição lhe permitia e aumenta ainda mais suas informações. Por
fim o autor relata também na crônica seus testemunhos obtidos de forma direta, sofridos
e vividos por ele (CAMPOS, 1984, p. 34-35).
A Crônica de Idácio é uma
referência quando se fala sobre História da
Península Ibérica nos séculos IV e V, sendo também uma preciosa fonte de informações
sobre a ecclesia e sobre os grupos bárbaros que disputam entre si a hegemonia políticomilitar na Diocesis Hispaniarum.
Esta confrontação com as fontes precedentes e contemporâneas de Idacio
põem em relevo a originalidade de muitas noticias de da obra Idaciana, de
modo que podemos dizer que todas as notas e informações que vão desde o
ano 400 até o final, referentes aos Suevos, Vândalos, Godos, Bagaudas, cujo
teatro ou solos históricos foram a Galícia, a Asturica, a Lusitânia, a Bética e
ainda a Terraconense para os Bagaudas, e as referentes a Igreja, dentro
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destas províncias mencionadas, são dados exclusivos e privados de nosso
cronista, que não se constata, em outras fontes. (CAMPOS, 1984, p. 37)
Idácio ainda relata na obra acontecimentos relativos a fenômenos naturais. Em
sua crônica há relatos de Eclipses, de aparição de cometas e meteoros, que sempre julga
como anúncios de calamidades ou de graves acontecimentos históricos (PIDAL (org.),
1963, p. 32).
Segundo Serafín Bodelón Garcia estes fenômenos eram para Idácio avisos dos
deuses que algo importante iria acontecer. Na maioria vezes eram castigos pela
crueldade humana ou pela deturpação da palavra divina feitas pelas interpretações
cristãs hereges, como o pricilianismo.
Sobre a ecclesia cristã encontramos um muitas informações, que vão desde a
nomeação dos bispos de Roma no decorrer do período em que sua crônica abrange, até
informações, por exemplo, acerca de acontecimentos com bispos do ocidente e do
oriente.
Fastos Consulares Idacianos
Este documento é uma compilação de cônsules romanos, ano por ano desde sua
origem, de 509 a.C até 408 d.C. Eles se chamam Idacianos porque são íntegros do
Códice Claromontano, hoje Berlinense Cheltenhamens, o qual contém a continuação da
Crônica de Idácio e por isso se crê que ambos são do mesmo autor. O problema mesmo
dos Fastos é a discussão sobre sua paternidade idaciana ou não idaciana (CAMPOS,
1984, p.12).
Santiago Simordo que foi o primeiro que os editou, apesar que de forma não
completa, em 1619 defende sua autencidade como obra de Idácio. Simordo declara três
motivos para defender isso. O primeiro é que os Fastos vem imediatamente após a
crônica, sem existir um autor para eles, ele deixa isso bem claro na edição de sua obra.
O segundo motivo é que ambas as obras concordam nos anos em que se registram. E o
terceiro é que as obras se parecem muito no prefácio, nas épocas, contexto e estilo.
Muitos escritores concordaram com essa alegação de Simordo (SIMORDO apud
CAMPOS, 1984, p 12-13).
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P. Enrique Flórez, que também editou os fastos só que desta vez de forma mais
completa do que Simordo, critica e nega a paternidade idaciana para os Fastos, por
também três motivos. O primeiro é que apesar de haver uma afinidade entre as palavras
da Crônica e as dos Fastos, há uma distancia muito grande nos estilos das frases das
duas obras. O segundo motivo é que nem San Isidoro, nem Tritemio e nem Sigeberto,
autores que se referem aos escritos de Idácio, mencionam os Fastos entre seus próprios
escritos, com isso Flórez deduz que os antigos não reconheceram o epíscopo como autor
dessa obra. E o terceiro motivo é que para ele Idácio se preocupou com o relato de
eclipses nos dias em que ocorreram, além de outras particularidades e o autor dos
Fastos não se preocupou muito com isso o que revela uma diferença historiográfica
entre os dois autores (FLÓREZ apud CAMPOS, 1984, p.13-14).
Já P. Juan Garzón, que é professor da Universid de Gandía, cronólogo e
historiógrafo crítico, se inclina para a opinião de Simordo por diversos motivos. O
primeiro deles é que por concomitância de várias expressões o autor dos fastos seria
Idácio, que teria juntado na mesma obra, sua crônica e mais a de Eusébio e de Jerônimo.
Outro argumento, o qual é mais forte, é que os últimos cinco anos, tanto da Crônica
quando dos Fastos, carecem de notícias de fora da hispânia, o que é mais uma prova de
que os autores dos dois trabalhos são os mesmos. Por fim Garzón diz que as diferenças
de estilo, gênero e contexto são porque as obras são destinadas a público diferentes.
Segundo ele a Crônica tem um estilo mais literário e foi utilizada para divulgação, já os
Fastos tem um estilo mais vulgar e familiar pois Idácio o dedicava para uso privado e
por isso São Isidoro não os teria reconhecido como de Idácio. (GARZÓN, 1845, p.3543 apud CAMPOS, 1984, p. 14-15).
Já Teodoro Mommsen, que compilou e criticou a Crônica de Idácio, tem uma
opinião diferente para os Fastos. Ele a divide em três partes e defende que cada uma
delas tem uma origem diferente. A primeira parte, que abrange desde a origem do
Consulado em Roma até a fundação de Constantinopla, é de um autor romano. A
segunda parte, que remonta a fundação de Constantinopla até a morte de Teodósio I é de
origem constantinopolitana. E a terceira parte, que vai desde a morte de Teodósio I até o
fim da obra, é de origem hispana. O autor hispano que escreveu essa terceira parte tem
diversas semelhanças de escrita com Idácio, o que leva Mommsen crer que o autor da
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terceira parte dos Fastos é o mesmo da Crônica. (MGH, 1961, p.194-204 apud
CAMPOS, 1984, p. 15-16).
Júlio Campos, que é o autor da edição da crônica que utilizamos em nossa
pesquisa, defende que os Fastos foram escritos pelo mesmo autor, o qual era hispânico,
mas não era Idácio. Segundo ele apesar dessa obra ter concomitâncias de conteúdo e de
expressão com a Crônica de Idácio e de nos dar informações idacianas durante o
período do bispo, elas se referem apenas aos imperadores do período e ao império em
geral, deixando de lado as notícias mais específicas da Hispânia, como o problema dos
priscilianistas e os acontecimentos na Galícia. Além disso, Campos alerta para a
diferença entre estilo e os giros lingüísticos entre a Crônica e os Fastos. (CAMPOS,
1984, p.16-18).
Carmen Cardelle Hartmann (1992) acredita que os fastos não foram feitos por
Idácio, mas sim por alguém que teve acesso aos documentos do último logo após a sua
morte.
Concordamos com a argumentação de Campos e Hartmann e consideramos que
os Fastos não são de Idácio, pois ao não discorreram mais especificamente sobre os
acontecimentos da Gallaecia e principalmente por deixarem de lado as informações
relativas aos priscilianos, os Fastos não mostram uma das principais características da
Crônica de Idácio, que era o discurso contra as principais heresias cristãs que eram
presentes na região de seu episcopado.
Idácio Menor
Segundo Júlio Campos essa documentação foi publicada no tomo IV da obra
España Sagrada de P. Flórez e contém notícias de um período posterior a Crônica de
Idácio, tentando fazer uma continuação até Justiniano. Campos defende que essa não é
uma obra de Idácio, mas sim um epítome de sua Crônica, que contém notas que
pertencem ao bispo e informações tiradas de outras crônicas.
Por fim, após discorrermos sobre todas as obras atribuídas a Idácio,
concordamos que apenas a Crônica tem sua paternidade idaciana confirmada e por isso
a consideramos como uma fonte mais confiável do que as demais para estudarmos a
Gallaecia tardoantiga através da ótica de Idácio de Chaves
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Conclusão
A Antiguidade Tardia é um período onde várias esferas da sociedade estão
interligadas, por isso frisamos mais uma vez que elementos como política e religião
jamais separam-se, portanto temos que estudar este período sobre o aspecto políticoreligioso.
Uma das maiores figuras deste período é a do bispo, o qual como dissemos
anteriormente pode ser caracterizado como um poliedro. Através desta ilustração
multifacetada podemos entender a extensão dos poderes privados de Idácio de Chaves,
na Gallaecia romana tardia, por meio de seu cargo político-religioso. Como testemunho
disso temos a crônica legada por este autor, a qual fornece-nos diversas informações de
como o mesmo realizou estas ações, além de ser uma referência quando se fala sobre
História da Península Ibérica nos séculos IV e V, sendo também uma preciosa fonte de
informações sobre a ecclesia e sobre os grupos bárbaros que disputam entre si a
hegemonia político-militar na Diocesis Hispaniarum.
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A ATUAÇÃO ESTRANGEIRA NA GUERRA VANDÁLICA
DE PROCÓPIO DE CESARÉIA
Doutoranda Lyvia Vasconcelos Baptista
Bolsista CAPES, UFRGS
lyviavasconcelos@gmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é destacar algumas questões sobre o uso e atuação das
tropas estrangeiras na obra Guerra vandálica, escrita no século VI d.C., por Procópio de
Cesaréia. Consideramos que a análise do fator estrangeiro no exército romano/bizantino
pode servir como um elemento adicional para se pensar a vinculação entre guerra e
política no reino de Justiniano.
Abstract: The purpose of the article is to highlight some issues about the use and
performance of foreign troops and individuals in the work titled Vandalic war, written
in the VI century AD by Procopius of Caesarea. We believe that the analysis of the
foreign factor in the Roman/Byzantine army could serve as an additional element to
think about the link between war and politics in the reign of Justinian.
Introdução
De forma geral, analisando o desenvolvimento dos estudos sobre o Império
Bizantino, pode-se afirmar que a historiografia concedeu um espaço significativo para
as discussões envolvendo o corpus procopiano, o que se explica, em parte, pelo variado
material que ele apresenta. No século XVIII, Edward Gibbon elogiou Procópio pela sua
excelente e bem-sucedida imitação dos textos antigos, não deixando de atribuir às
informações disponibilizadas pelo historiador bizantino um papel importante na
reconstrução da sua própria narrativa sobre o Império Romano1. Hermannus Braun, um
século depois, afirmou que Procópio foi um dos maiores exemplos da imitação dos
autores gregos, principalmente Heródoto e Tucídides, já que “consta ter sido aquelas
maravilhosas obras gregas, não somente para a admiração, mas também para a imitação
e estimulação entre todos” (BRAUN, 1885: 1). Autores como John Bagnell Bury (1889)
e Ernest Stein (1928), que elaboraram importantes obras para o desenvolvimento dos
estudos tardo-romanos e bizantinos, utilizaram, em larga medida, os estudos de
Procópio para fundamentarem as suas perspectivas históricas.
1
Segundo o autor da História da decadência e queda do Império Romano o historiador bizantino
apresenta, nos oito livros sobre as guerras pérsicas, vandálicas e góticas “[...] uma laboriosa e bem
sucedida imitação dos Áticos, ou pelo menos dos Asiáticos, escritores da Grécia antiga” (GIBBON, 1985:
46).
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Procópio nasceu em Cesaréia, na Palestina2. Atuou como “conselheiro” do
general Belisário nas suas expedições à Pérsia, África e Itália de 527 a 5403 e esteve em
Constantinopla em 542, quando a peste se alastrou pela primeira vez. O autor,
possivelmente, pertencia a uma camada conservadora de grandes proprietários de terra4
e morreu depois do imperador Justiniano5. É atribuída a ele a composição de três
escritos com características muito diferentes, oferecendo um quadro heterogêneo de
informações sobre o século VI. As tentativas de definição da datação das obras
fornecem um extenso material de imprecisões, sugestões e possibilidades. A proposta de
James Allan Stewart Evans é bastante citada nas discussões sobre a datação das obras,
porque promove uma redefinição nos períodos anteriormente estabelecidos, sendo hoje
a cronologia mais comumente aceita. Segundo Evans (1968: 132) os sete primeiros
livros da História das Guerras, foram publicados em 550, o oitavo livro só foi
publicado em 554 e em 558 teríamos a elaboração da História Secreta e o início da
escrita da obra Sobre os Edifícios6. Assim, consagrado como historiador do governo de
Justiniano (527-565) e famoso pela descrição que elabora acerca dos feitos do general
Belisário, Procópio deixou à posteridade uma importante obra literária cujos ecos
proporcionam diferenciadas interpretações e sustentam vivo interesse pela sua narrativa.
Particularmente sobre os aspectos militares presentes na narrativa procopiana, a
análise de Walter Emil Kaegi, publicada em 1990, pode ser considerada o primeiro
esforço mais completo de sistematizar o assunto. Nesse ensaio, o autor expõem os
motivos que fazem de Procópio, segundo ele, o melhor historiador militar de todo o
2
Ver referências na obra de Procópio: Guerra Persa. I, 1,1 e História Secreta. 11,25.
As informações podem ser retiradas de passagens do próprio texto de Procópio: Guerra Persa. I. 1, 3; I.
12,24.
4
Para Averil Cameron (1996: 6) é possível sustentar a afirmação de que Procópio veio de uma classe
abastada devido às reações manifestadas na sua História Secreta, pois um dos principais temas abordados
é a exaustão das classes altas pelas atividades de fiscalização e outras demandas imperiais. Nas críticas
que apresenta, Procópio parece falar a uma elite, chamada simplesmente ‘senadores’, mas significando
acima de tudo as classes proprietárias de grandes extensões de terra, incluindo também “profissionais
como ele mesmo, doutores, professores e advogados” (CAMERON, 1996: 227).
5
Segundo Michele Cataudella (2003: 393) os últimos 20 anos da vida de Procópio foram talvez marcados
por desilusão e desapontamento, pelos indícios deixados em seus escritos.
6
Numa perspectiva bastante diferente, por exemplo, Warren Treadgold (2010: 187-190) afirma que a
escrita da História Secreta pode ter sido iniciada em 548 (dez anos antes da datação de Evans) e
estimulada pelo grande desgosto do historiador em relação a Justiniano, Teodora, Belisário e Antonina. Já
o relato sobre os Edifícios, teria sido elaborado em 554, aproximadamente, representando um
agradecimento da parte de Procópio ao imperador por ter lhe atribuído a classificação de “ilustre”
(illustris). Tal título, não era puramente honorário, pois significava o pertencimento à camada senatorial,
juntamente com a aquisição de seus privilégios.
3
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período bizantino7. A afirmação é radical, mas encontra seu fundamento na complexa e
intrigante teia de relatos e sentidos que encontramos na sua obra Histórias das Guerras
(Hypèr tôn polémōn lógoi). O material informa sobre as guerras de reconquista das
províncias imperiais e reconstituição das antigas fronteiras do Império Romano. O
conteúdo abrange, em oito livros, as campanhas militares entre os romanos/bizantinos e
os povos “bárbaros”: persas, vândalos e godos, pelos territórios limítrofes do Império,
durante o governo de Justiniano.
Os livros III e IV, denominados Guerra vandálica, narram, em particular, as
campanhas empreendidas contra os povos vândalos e mouros. Procópio inicia o livro
informando sobre o seu conteúdo geral e traçando as causas que levaram Justiniano a
organizar uma expedição de reconquista dos territórios do norte da África. A digressão
sobre as “origens” da história dos vândalos antecede o relato dos confrontos que
levaram Belisário a uma de suas maiores vitórias como general do império. Procópio
enfatiza a volta triunfante de Belisário à Constantinopla e seu consulado. Mas a luta
com os vândalos gerou consequências muito maiores. O livro IV, portanto, relata a
constante e árdua luta contra os mouros, a insubordinação do exército romano/bizantino
e a série de traições entre os romanos em aliança com os bárbaros pelo poder da Líbia.
O livro termina com a decisiva vitória das tropas imperiais em 548, mas o tom não é
otimista. Procópio conclui desta forma: “aos que sobreviveram dentre os líbios, que
eram poucos e extremamente pobres, ocorreu que, por fim e com grande dificuldade,
puderam encontrar alguma paz” (Guerra vandálica. IV. 28, 52). Assim, a narrativa que
apresenta o sucesso das tropas de Justiniano no norte da África é, acima de tudo, um
relato sobre as dificuldades dessa reconquista.
Diferente dos outros livros, a Guerra vandálica demonstra a preocupação em
ressaltar os elementos do exército romano/bizantino: a composição de suas tropas e as
características dos seus oficiais. Desta forma, apresenta-se como um espaço interessante
para refletir sobre as especificidades das tropas de Justiniano e sobre a política imperial
Para Kaegi (1990: 55) “Procopio foi o último historiador a viajar extensivamente para fora das áreas que
falavam grego. [...] Em sua narrativa não havia apenas a descrição de lutas, mas também de diplomacia,
geografia, costumes e características das nacionalidades contemporâneas: hérulos, hunos, eslavos,
berberes e lombardos, para citar alguns”. São pontos importantes para pensarmos a história militar de
Procópio: autópsia (ele viajou extensivamente), experiência militar entre outros. Nesse artigo
encontramos sistematizadas as idéias que depois circularão em muitas análises: a utilidade da obra, a
imagem de Belisário e Justiniano (como a guerra de torna desilusão, a imagens dos personagens bárbaros,
a preocupação com a psicologia dos personagens, a influência da idéia de Deus e Fortuna, a descrição e
feridas e mortes estranhas, a fronteira entre a mímeses e a experiência pessoal do historiador.
7
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adotada durante os confrontos. O objetivo deste artigo é centrar-se na presença
estrangeira, precisamente dos povos “bárbaros”, descrita na Guerra vandálica, como
possibilidade de refletir sobre a relação entre guerra e política no século VI.
O exército romano/bizantino no século VI
Comparativamente aos outros períodos da história bizantina, as atividades
militares do século VI nos são conhecidas através de uma significativa documentação.
Historiadores como Agatias, Menandro Protetor, Teofilacto Simocata e Procópio
disponibilizaram informações sobre o exército de Justiniano nos mais variados ângulos,
o que possibilitou um constante fluxo de estudos sobre o tema.
Michael Whitby (2003: 63) afirma que o exército romano, no século VI,
permaneceu uma poderosa máquina de guerra, importante para a manutenção do
controle imperial e, na medida do possível, bastante leal aos seus generais e imperador.
Nos séculos IV e V haviam duas categorias básicas de tropas romanas, que se
classificavam em: forças móveis (comitatenses) e tropas de guarnição (limitanei). As
primeiras atuavam como uma espécie de tropas de elite e os soldados recrutados ou
voluntários não tinham obrigações hereditárias. Já a segunda modalidade era composta
por soldados que recebiam a carga de responsabilidade através de seus pais, ocupando
uma espécie de “posição familiar” e representando um grupo inferior de defesa e ataque
militar. Os estrangeiros que compunham o exército romano vinham das tribos
estabelecidas dentro das fronteiras do império, por meio de acordos ou como
prisioneiros; e das tribos localizadas em outras regiões, externas ao império. Eles
podiam ser incorporados entre os limitanei, mas, usualmente, faziam parte das unidades
de elite (comitatenses); ou ainda, se estavam um grande número, “eram envolvidos
como unidades federadas8 sob o comando de seus próprios líderes” (WHITBY, 2003:
68-70). Whitby (2003: 70) esclarece que essa diferenciação não se manteve
incorruptível com o passar do tempo, mas que no século VI teríamos uma estrutura
muito similar à anterior. Assim, as “fronteiras eram guardadas em primeira instância
pelos limitanei, embora nos principais pontos estivessem unidades de comitatenses,
8
O foederati teria sido uma inovação no exército, representado no século IV por um tipo novo de
regimento, principalmente cavalaria, que auxiliavam o exército em campanhas específicas, servindo seu
próprio chefe nativo.
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conhecidas, nesse período, sortidamente como numeri, arithmoi, katalogoi ou tagmata”
(WHITBY, 2003: 70).
Na obra de Procópio, os termos limitanei e comitatenses, aparecem juntos, sob o
denominativo vago de stratiotai. Segundo Whitby (2003: 72), tal evidência tem levado
à interpretação de que há um gradativo declínio na qualidade de infantaria romana no
século VI. Além disso, a grande presença de bárbaros no exército também é encarada,
no relato procopiano, como um elemento perturbador da superioridade militar romana.
Apesar da evidência documental disponibilizada, principalmente, na Guerra vandálida
e gótica, ambas compostas por Procópio, a ideia de declínio do exército
romano/bizantino no século VI tem sido questionada. Mesmo as afirmações de
Procópio, que numa primeira leitura não deixam dúvidas de sua crítica ao
enfraquecimento do exército, podem ser interpretadas por diferentes perspectivas,
revelando, acima de tudo, uma crítica política com relação às ações de Justiniano, como
veremos adiante.
No artigo de John L. Teall vemos uma simpatia a essa ideia de declínio do
exército romano no século VI. Segundo o autor a praga de 543 pode ter reduzido as
guarnições romanas, o que teria facilitado o aumento da relevância do papel dos
bárbaros entre as posições de comando subordinado, como poderíamos perceber na
menção a Artabazes (comandante dos persas que participaram do cerco em Verona, em
542), Arufus (de origem hérula) e Gilacius (armênio) que Procópio faz, por ocasião de
suas promoções como strategos (PROCÓPIO. Guerra Gótica. III. 26, 23-24). Teall
também enfatiza a influência da peste nos caminhos da guerra e afirma que a epidemia
pode ter sido responsável pelo número reduzido de soldados que Belisário conseguiu
reunir; além de ter servido para apavorar Khusro, no momento da invasão em solo
romano. De fato, segundo autor, existem poucas razões para duvidar que a peste
bubônica interferiu diretamente nos planos de Justiniano, de 542 a 543, criando uma
ausência de força humana de dimensões consideráveis durante os próximos dois ou três
anos, deixando o processo de restauração dos territórios mais lento e favorecendo a
gradativa barbarização das forças imperiais (TEALL, 1965: 319).
Das afirmações de John Teall, devemos considerar dois elementos importantes:
o impacto da peste na força militar do império e o processo de barbarização. Michael
Whitby é contrário às afirmações que enfatizam em demasia a influência das mortes e
desastres ocasionados pelo ataque epidêmico. Segundo o autor, se o impacto da peste é
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perceptível nos maiores centros populacionais, o mesmo não pode ser dito com relação
às mais remotas áreas, onde o recrutamento militar era mais intenso (WHITBY, 2003:
96). Além disso, a consideração dos escritos posteriores tais como o Strategikon do
imperador Mauricio, que informam sobre o tamanho das tropas do exército
romano/bizantino, não nos permite afirmar que ouve um grande declínio em termos de
força humana no exército do século de Justiniano, embora possamos detectar problemas
em termos de suporte financeiro (WHITBY, 2003: 100).
Os problemas com o financiamento das campanhas é associado, com frequência,
à manutenção de bárbaros no interior do império e, principalmente, no exército. De
forma geral, o fenômeno de barbarização do exército romano é apontado com maior
intensidade a partir da chamada “revolução militar constantiniana”, que resultou na
instalação de bárbaros no interior da hierarquia combatente, possibilitando um
movimento de transformação em etapas sucessivas e variadas formas (CARRIÉ, 2003:
50-51).
A obra referência de A. H. M. Jones (1986: 619) afirma que além dos
germânicos, outros povos poderiam ser encontrados no exército romano, tais como os
sármatas, provenientes das terras ao norte do baixo Danúbio, os lazi e tzani, os
armênios, entre outros. Os povos estrangeiros poderiam ser atraídos pela aparência do
padrão de vida do soldado romano, oferecendo-se, voluntariamente, para fazer parte do
exército; outros, recrutados dentre o grupo derrotado numa guerra – como prisioneiros ou o imperador poderia impor como condição de paz o suprimento de um número de
jovens adequados aos serviços militares, em caráter extraordinário ou anualmente
(JONES, 1986: 620).
Segundo John L. Teall (1965: 299-300) dos generais eminentes de Justiniano:
Sitas (armênio), Mundus (gépido), Chilbudius (eslavo) e Belisário (búlgaro), somente
um foi romano (pertencente às regiões governadas pelo imperador do oriente) e o
imperador não foi menos hospitaleiro com os grupos do que foi com os indivíduos,
sendo preciso notar o quão eficiente foi, por exemplo, o batismo como etapa inicial no
processo de incorporação dos bárbaros.
A presença de bárbaros no seio do exército romano/bizantino envolve
possibilidades interpretativas que a historiografia ainda tenta lidar. A maior dificuldade
decorre da imprecisão da influência bárbara entre o corpo militar e as diferentes
maneiras que os governos encontraram para recrutar e controlar os soldados
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provenientes das mais diversificadas regiões do império. Para além da discussão, restanos apresentar, em linhas gerais, como os estrangeiros aparecem no caso específico da
Guerra vandálica.
A presença dos bárbaros na Guerra vandálica
Procópio informa que as forças militares imperiais preparadas para a investida
contra os vândalos, em Cartago, no ano de 533, contavam com dez mil soldados de
infantaria e cinco mil de cavalaria, recrutados entre as tropas regulares (stratiótai) e os
federados (foideráti). Em seguida, o historiador insere uma explicação sobre a formação
das tropas romanas, informando que, anteriormente, “somente os bárbaros eram
alistados como federados, integrando-se no império, não sob a condição de escravo, já
que não haviam sido vencidos em batalhas, mas na base da completa igualdade”
(Guerra vandálica. III. 11, 2-3)9. Procópio não informa quais foram as reais mudanças
operadas na condição dos federados, se restringindo a refletir sobre a impossibilidade de
manter, com o passar do tempo, as denominações desvinculadas dos seus contextos de
produção10.
Na Guerra vandálica, os federados contribuem com o sucesso do exército
romano em algumas importantes batalhas. Na batalha de Ad Decimo, o primeiro grande
confronto entre os vândalos e o exército de Justiniano, Procópio informa que as forças
imperiais seguiram em direção a Cartago após Belisário ter selecionado 300 soldados de
sua guarda pessoal, que estavam sob o comando de João (um armênio), para ir à frente
do exército numa distancia não inferior a 20 estádios (3,6 km, aproximados) e aos
aliados (xymmákhous) hunos (maságetas) ordenou que marchassem, constantemente, do
lado esquerdo a igual ou superior distancia. O general, que acompanhava na retaguarda
com as melhores tropas, deixou a direita livre, pois não estavam longe da costa (e os
marinheiros envolvidos deveriam seguir o mesmo curso do exército, sem se distanciar).
Procópio pontua que se Belisário não tivesse organizado as tropas exatamente desta
maneira, não haveria forma de escapar dos vândalos (Guerra vandálica. III. 17, 1-3).
Era o prelúdio da vitória final dos romanos.
9
Procópio não informa quais foram as reais mudanças na condição dos federados, se restringido a refletir
sobre a impossibilidade de manter, com o passar do tempo, as denominações vinculadas ao seu contexto
de produção.
10
No caso da identidade étnica dessas unidades, teria se tornado mais fraca com o passar do tempo, na
medida em que foram inseridos homens de várias origens de dentro e fora do império.
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Se nesta batalha as tropas auxiliares dos hunos seguiram completamente as
ordens de Belisário, na batalha de Tricamaro (situado a 25 km de Cartago), a atuação foi
diferente. O livro IV começa com a narração do esforço de Gelimer, rei dos vândalos,
para lançar-se contra Cartago, ocupada agora pelo exército romano. Frente às promessas
de Gelimer, os chefes dos hunos, que já anteriormente não tinham sido favoráveis aos
romanos e que não haviam entrado em aliança com eles de bom grado, como assevera
Procópio, intentaram se unir aos vândalos. Belisário, suspeitando da traição, tratou os
hunos com muitas regalias e prometeu que se vencessem eles seriam dispensados com
todo o botim (Guerra vandálica. IV. 1, 10-11). Depois de fazer um discurso sobre as
conquistas do exército imperial até aquele momento e a importância de dar o melhor de
si na frente de batalha, Belisário, com suas tropas, foi ao encontro de Gelimer. Procópio
afirma que, no entanto, os hunos que compunham as forças romanas, decidindo nesse
momento por eles mesmo, resolveram que não seriam os primeiros a combater em favor
dos romanos, nem se uniriam aos vândalos antes da batalha, mas ajudariam na
perseguição do lado derrotado, acompanhando os vencedores, quaisquer que fossem
(Guerra vandálica. IV. 2, 3).
O historiador nos informa que após esse confronto o rei vândalo fugiu para o
Monte Papoúan. Belisário indicou então, sob o comando de Faras, alguns soldados para
assediar a montanha. Segundo o relato procopiano, aproveitando-se da diferença dos
estilos de vida entre vândalos (os mais luxuosos bárbaros) e mouros (os mais
miseráveis), Faras escreveu uma carta a Gelimer, incitando-o a deixar a vida
compartilhada com a miséria dos mouros e se entregar ao imperador romano. O caráter
excepcional deste oficial é ressaltado por Procópio, pois, servindo fielmente ao exército
romano, Faras, que era um hérulo, soube com inteligência utilizar naquela carta sua
condição de bárbaro para tentar uma aproximação com Gelimer. O historiador,
entretanto faz uma ressalva: “Faras era um homem dotado de virtudes, apesar de ser de
origem hérula. E o fato de um hérulo não se entregar à traição e à bebida, ao invés, ter méritos,
era muito difícil de acontecer e digno de elogios” (Guerra vandálica. IV. 4,31-32).
Em outros momentos da obra também, Procópio associa virtudes a indivíduos de
origem bárbara. Por exemplo, Aigan, o huno, um dos 19 generais que partiram de
Constantinopla, em 533, chegou a compor a guarda pessoal de Belisário, tendo
conquistado bastante estima no seio do exército. Para Procópio, sua morte foi
fundamental para despertar em Salomão (general que assumiu a Líbia após a partida de
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Belisário) o desejo de combater os mouros na batalha de Mames (Guerra vandálica. IV,
8,11), na qual teve importante êxito.
Por outro lado, o caso mais emblemático de punição envolveu os soldados das
tropas foederati. Procópio relata que dois maságetas mataram um de seus companheiros
por beber e ridicularizá-los.11 Alguns homens depois se indignaram com a ordem de
execução dos autores do assassinato, emitida por Belisário, principalmente os parentes
dos acusados, dizendo que não haviam se aliado aos romanos para sofrerem castigos,
nem para se submeterem às leis romanas, visto que tinham as suas próprias. Os soldados
estrangeiros, portanto, nesse momento, provocaram uma situação de desordem
(resolvida, posteriormente, por Belisário) e, aparentemente, influenciaram também os
romanos a contrariarem as ordens dos seus superiores12.
Procópio também nos informa detalhes sobre uma revolta que envolveu grande
número de soldados no corpo do exército romano/bizantino. No relato do historiador,
podemos verificar enorme influência que as tropas estrangeiras tiveram no agravamento
da situação, incitando seus companheiros e fornecendo motivos religiosos para o
levante. Segundo Procópio, na primavera de 536, quando os cristãos se reuniam para
celebrar a páscoa, começou um motim entre os soldados que estavam na Líbia (Guerra
vandálica. IV. 14, 7). Parte das reivindicações envolvia alguns soldados romanos que
haviam se casado com mulheres vândalas e por isso, acreditavam, encorajados por elas,
que tinham direito à posse das terras que pertenceram às suas famílias antes da vitória
das forças de Justiniano.
Além do desconforto gerado por aqueles que reclamavam a posse da terra,
encontravam-se mais de 1000 soldados no exército romano/bizantino, majoritariamente
bárbaros, que professavam o arianismo e ficaram extremamente insatisfeitos com a
proibição de realizarem seus ritos, durante a festa religiosa em questão. Segundo o
relato procopiano,
Segundo Procópio, “entre todos os homens, os maságetas são de longe, os mais beberrões” (Guerra
vandálica.III. 12, 8).
12
O relato informa que até mesmo os soldados romanos começaram a criticar a sentença, com medo de
sofrerem o mesmo fim (Guerra vandálica. III. 12, 10). Belisário respondeu com um discurso, enfatizando
a importância da disciplina, ordem e justiça para o bom andamento das atividades militares, aproveitando
a ocasião para repudiar o assassinato e a bebedeira no seio de seu exército. A falta de organização dos
bárbaros é mencionada em outros trechos da obra como na ocasião do confronto entre um grupo que se
revoltou e as forças imperiais. Segundo Procópio, “os amotinados ocuparam seus postos [frente às tropas
de Germano] não colocados ordenadamente, sem dúvida, mas disseminados à maneira dos bárbaros”
(Guerra vandálica. IV. 17, 7).
11
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ao começo da primavera, quando os cristãos estão celebrando a festividade
que eles denominam ‘páscoa’, se produziu um motim entre os soldados da
Líbia. [...]. Uma vez que os vândalos foram derrotados na batalha, como
narrei anteriormente, os soldados romanos tomaram por esposas legais as
filhas e mulheres deles. E cada uma dela incitava seu marido a reclamar a
posse das terras que eram donas por direito, afirmando que não era justo que,
se haviam desfrutado das terras quando estavam vivendo com os vândalos,
depois de contrair matrimônio com os vencedores, fossem privadas depois do
que legalmente as pertencia. E tendo essas coisas em mente, os soldados
pensavam que não tinham obrigação de ceder as terras dos vândalos a
Salomão, que tinha a intenção de registrar elas como pertencentes ao tesouro
público e à casa do imperador, afirmando que não era inconveniente que os
escravos e todas as posses de valor servissem de botim aos soldados, porém,
em troca, a terra propriamente dita pertencia ao imperador e ao império dos
romanos, que havia criado a eles e havia conseguido que pudessem usar o
nome de soldados e que, de fato, o foram, não para ganhar em seu próprio
benefício aquelas terras dos bárbaros, mas com o fim de que estas fossem
engordar o tesouro público, de onde recebiam a manutenção tanto deles
quanto dos demais soldados. Esta foi uma das causas que provocaram o
motim, porém de outro lado houve uma segunda que coincidiu em tempo
com a anterior, e que não contribuiu em inferior medida, ao contrário, serviu
para convulsionar ainda mais a situação na Líbia: No acampamento dos
romanos acontecia que havia um número não inferior a mil soldados que
professavam a fé de Arrio, dos quais a maioria eram bárbaros e alguns deles
pertenciam à nação dos hérulos. A estes, então, os sacerdotes dos vândalos os
incitavam à rebelião, pois não estavam permitindo que eles fizessem culto a
Deus da forma como estavam acostumados, ao contrário eram excluídos de
todos os sacramentos e de todas as cerimônias religiosas. O imperador
Justiniano não permitia que nenhum cristão que não tivesse abraçado à fé
ortodoxa recebesse o batismo ou qualquer outro sacramento. Porém foi,
sobretudo a festividade da Pascoa que os convulsionou, pois durante esta
festividade não puderam batizar seu próprios filhos com a água sagrada nem
fazer nenhum outro ritual pertencente a esta festividade. (Guerra vandálica.
IV, 14).
Aos motivos que levaram a deflagração da revolta, Procópio adiciona o fato de
que alguns vândalos que estavam agora nos novos regimentos do império, atuando nas
fronteiras com a Persa, conseguiram voltar à Líbia, encontrando do ambiente do motim,
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um lugar para desenvolverem nova conspiração. A revolta agregou uma significativa
parcela dos soldados romanos, levando Salomão a buscar a ajuda de Belisário13.
Conclusão
A consideração rápida desses elementos poderia indicar um único caminho
interpretativo da presença das tropas estrangeiras na obra de Procópio: a influência
negativa do processo de “barbarização” do exército romano que, disseminando um
comportamento indisciplinado, acabava por influenciar todos os soldados. De fato,
mesmo quando os bárbaros e estrangeiros eram amplamente absorvidos dentro da
instituição
militar,
eles,
potencialmente,
poderiam
se
tornar
um
elemento
particularmente problemático numa situação difícil. Entretanto, independentemente de
sua composição étnica, as tropas eram muito difíceis de controlar, já que, algumas
vezes, eram privados dos espólios e mantinham-se lutando em terras distantes.
Procópio menciona a pobreza dos soldados em determinadas passagens. Na
batalha de Tricamaro, por exemplo, o historiador relata que após a vitória de Belisário e
fuga de Gelimer, os romanos se apropriaram do acampamento e encontraram lá muitas
riquezas. A desordem foi de tal intensidade que, reflete Procópio, se o inimigo tivesse
voltado nenhum romano poderia viver para desfrutar do botim. Pois os soldados eram
extremamente pobres e não puderam se conter ante aos materiais que encontraram, não
atingindo eles nem o medo do inimigo, nem o respeito a Belisário, ou qualquer outro
sentimento que não fosse o desejo do botim (Guerra vandálica. IV. 4, 5).
Nessa passagem, a maior motivação dos soldados foi material. Também foi o
desejo pela posse de terras que reuniu a maior parte dos oficiais na revolta do exército
em 536. Até mesmo a importância que os bárbaros arianos tiveram nesse motim,
elemento até agora mais evidente usado para a crítica ao processo de barbarização, pode
ser problematizada. Se a leitura isolada desta passagem sugere que os bárbaros: os
arianos no seio do exército e a mulheres vândalos, foram os grandes culpados pela
sublevação, uma segunda consideração pode avaliar melhor o peso das decisões
Belisário, antes de confrontar os amotinados disse o seguinte: “A situação, companheiros, para o
imperador e para os romanos, está por baixo de nossas expectativas e desejos, pois nesse momento vamos
afrontar um combate do qual não obteremos, inclusive no caso de vitória, mais do que lágrimas, posto que
vamos combater contra parentes nossos e homens que se criara em nossa companhia. [...] Nossos rivais
são inimigos públicos e bárbaros e qualquer outro apelativo mais terrível que se pudesse aplicar[...] “
(Guerra vandálica. IV. 15, 20). A revolta terminou derrotada em 537.
13
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imperiais nessa situação. Quando a frota de Belisário partiu de Constantinopla em
direção ao norte da África a cerimônia de despedida foi dirigida em tom religioso14 e, ao
menos oficialmente, a batalha pela heresia foi um motivo fundamental para a
reconquista da África. Entretanto, como informa Procópio, essa frota contava com a
presença de não menos de 1000 soldados arianos, maioria foederati. Um número
pequeno frente aos números gerais do exército, mas como mostrou os eventos
subsequentes, esses heréticos poderiam exercer uma grande influência sobre o exército
numa situação crítica. No seio do exército havia então povos não assimilados em
relação àquilo que parecia ser, durante a expedição, o maior fundamento da lealdade
imperial: o cristianismo católico. O decreto imperial que proibiu a participação dos
arianos nos rituais durante a festividade religiosa irritou uma massa de soldados podres,
mal pagos e insatisfeitos com a distribuição dos espólios. O elemento externo e
primordial da revolta foi, em todo o caso, a falha das autoridades em antecipar uma
situação eminente. Walter Kaegi (1965: 44) é sagaz ao considerar que a revolta dos
soldados arianos marcou o fim de duas políticas incompatíveis: a promoção oficial da
unidade católica de um lado, e de outro a tolerância limitada ao arianismo. A política da
tolerância tinha deixado duas raízes heréticas na África: população vandálica após a
derrota e os 1000 arianos no seio do próprio exército.
Assim, a presença das tropas estrangeiras na Guerra vandálica, pode servir
como um elemento adicional para se pensar a vinculação entre guerra e política,
conexão esta, que Procópio fez questão de ressaltar desde o início de sua obra15. Para
além da crítica ao processo de barbarização do exército, podemos sugerir uma
avaliação de Procópio com relação às ações de Justiniano e as consequências da guerra
para o império.
Referências bibliográficas
Documentos textuais
14
Como informa Procópio, o navio do general Belisário, ancorado na frente do palácio imperial, foi
abençoado pelo arcebispo Epifânio.
15
Segundo o historiador, “Orígenes, um membro do senado, se adiantou e disse isso: ‘em nossas atuais
circunstancias, romanos, a solução final não passa senão pela guerra. E que a guerra e o império são as
mais importantes de todas as coisas humanas, é reconhecido [...] as ações mais impetuosas estão quase
sempre à mercê da tirania da fortuna” (Guerra pérsica. I. 24,26).
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HISTÓRIA E CINEMA EM SALA DE AULA:
REFLEXÕES A PARTIR DO FILME “ALEXANDRIA”,
DE ALEJANDRO AMENÁBAR
Doutoranda Semíramis Corsi Silva
Bolsista CAPES, UNESP-Franca
semiramiscorsi@yahoo.com.br
Mestrando Daniel de Figueiredo
UNESP-Franca
d.fig@uol.com.br
Resumo
Este artigo visa trazer algumas considerações acerca da utilização dos filmes históricos em
sala de aula a partir da análise do filme “Alexandria”, de Alejandro Amenábar (2009). A
nossa análise perpassará tanto pela pertinência de sua utilização como subsídio para o
estudo do período conhecido como Antiguidade Tardia bem como refletirá sobre essa
produção cinematográfica enquanto documento histórico em si, estabelecendo, assim, um
vínculo entre passado/presente e presente/passado. Propomos, desta maneira, pensar
também no contexto de produção na obra em questão. Além disso, mostraremos no texto o
resultado de uma experiência docente com o filme “Alexandria”, envolvendo alunos de um
curso de Graduação em História. Com isso, analisaremos a importância e a problemática
que abarcou esta experiência docente, discutindo com trabalhos historiográficos sobre a
Antiguidade Tardia e com estudos metodológicos sobre a relação entre cinema e ensino de
História.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia. História e Cinema. Filme Alexandria de Alejandro
Amenábar.
Abstract
This article aims to bring some considerations about the use of historical films in the
classroom from the analysis of the film "Alexandria" by Alejandro Amenábar (2009). Our
analysis undertook both the relevance of their use as allowance for the study of the period
known as Late Antiquity and reflect on this historical document as filmmaking itself, thus
providing a link between past / present and present / past. We propose, in this way, think
also in the context of production in the work in question. Furthermore, we show the result
in the text of a teaching experience with the film "Alexandria", involving students of a
Bachelor's Degree in History. With this, we will analyse the importance and problems that
included this teaching experience, arguing with historiographical works on the Late
Antiquity and methodological studies on the relationship between cinema and history
teaching.
Keywords: Late Antiquity. History and Cinema.
Amenábar.
Film "Alexandria" by Alejandro
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1. Considerações preliminares.
A utilização dos filmes históricos em sala de aula constitui-se um dos recursos
disponíveis ao professor de História como forma de apresentar os conteúdos de sua
disciplina. Assim, com o intuito de problematizar o tema do filme histórico, constrói-se a
possibilidade dos alunos exercerem uma autonomia crítica e intelectual.
No entanto, conforme nos indicou Michel de Certeau (2007: 65-66), a produção
historiográfica é dependente das condições sociais, políticas, econômicas e culturais nas
quais o historiador está inserido. De modo semelhante, entendemos que o cineasta está
sujeito às mesmas circunstâncias. Portanto, os filmes oferecem a possibilidade de
discussões temáticas como, por exemplo, assuntos relacionados a questões culturais de
determinadas épocas, as relações de poder manifestadas em forma de política, conteúdos
sobre a memória e aproximações com os processos históricos. Nesse sentido, é possível
estabelecer um vínculo do presente/passado e do passado/presente. De acordo com Marcos
Napolitano (2008: 275):
Nos filmes históricos [...] o importante não é, apenas, o que se encena do
passado, mas como se encena e o que não se encena do processo ou evento
histórico que inspirou o filme. Não se trata de cobrar do diretor a fidelidade ao
evento encenado em todas as suas amplitudes e implicâncias, mas de perceber
as escolhas e criticá-las dentro de uma estratégia de análise historiográfica.
Na segunda metade do século passado as tentativas de reproduzir acontecimentos da
Antiguidade Clássica e Tardia trouxeram às telas a temática das perseguições empreendidas
pelo Império Romano aos cristãos. Dentre as películas de destaque do período podemos citar
QUO VADIS? (1951), O MANTO SAGRADO (1953), ÁTILA O REI DOS HUNOS
(1954), OS DEZ MANDAMENTOS (1956), BEN HUR (1959), CONSTANTINO E A
CRUZ (1962). Sem dúvidas, toda essa produção cinematográfica se inspirou nos momentos
de sua contemporaneidade, como por exemplo, na época da ascensão da Guerra Fria na qual
a Igreja católica se inseriu no debate ao lado das forças liberais contra o avanço do
socialismo. Portanto, era interessante que os cristãos fossem protegidos das influências de
um novo império à semelhança do Império Romano; posição essa que parece ter sido a ideia
defendida pelos cineastas e produtores que elaboraram tais filmes.
Invertendo essa perspectiva e agora buscando retratar os cristãos como
perseguidores, no ano de 2009 foi lançado o filme Alexandria, do cineasta hispano111
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chileno Alejandro Amenábar. Tal filme retrata as circunstâncias que envolveram a vida e a
morte da filósofa neoplatônica Hipátia, que viveu na cidade de Alexandria, no Egito, na
passagem dos séculos IV e V d.C. A relação entre a temática do filme e o momento da sua
produção nos é explicitada pelo próprio Amenábar nos seguintes termos:
Investigando sobre Hipátia e o período no qual ela viveu, descobrimos que
havia muitas conexões com o nosso mundo atual que parecem duplamente
interessantes. Alexandria era o símbolo de uma civilização que estava se
extinguindo nas mãos de distintas facções, fundamentalmente religiosas, e
Hipátia foi uma personagem que, para muitos, marcou de maneira simbólica o
fim do mundo antigo e o começo do medievo.1
Um dos objetivos desse artigo é, portanto, buscar contrapor-se a essa visão de fim,
marcado essencialmente por uma decadência, do período que hoje conhecemos como
Antiguidade Tardia, no qual os acontecimentos encenados no filme estão inseridos.
Buscaremos, ainda, demonstrar que as relações sociais entre os diversos segmentos da
sociedade alexandrina daquele momento eram muito mais complexas, abarcando,
sobretudo, aspectos político-culturais que não se resumiam a antagonismos religiosos,
como os próprios documentos do período, numa leitura acrítica, reproduzem. Ademais,
torna-se importante considerar que a exibição de filmes históricos como recurso
pedagógico a ser adotado em sala de aula, como preconizado pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCNs, em virtude das múltiplas possibilidades de abordagens que
eles encerram, deve vir acompanhada de um criterioso cotejo com a produção
historiográfica, como forma de se evitar a reprodução de determinadas leituras que estão
atreladas aos interesses, conscientes ou inconscientes, daqueles que as veiculam.
Abordar o período da Antiguidade Tardia é fundamental em um curso de graduação
em História. Acreditamos ser importante que os alunos compreendam as estruturas em
transformação no longo período de transição do Império Romano para o Medievo, através
das suas continuidades e rupturas. Neste sentido, o filme Alexandria parece-nos um ótimo
material de apoio pedagógico para as aulas sobre Império Romano e também para as aulas
de História da Educação Básica, possibilitando o esclarecimento e debate de questões
importantes do período, além de outros elementos que podem ser refletidos na junção da
história com o cinema.
1
Vide página oficial do cineasta na Internet:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/amenabar/index/htm, acessada em 22/11/2011.
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A partir dessas considerações, objetivamos, também, apresentar uma experiência
docente envolvendo a exibição e discussão do referido filme em uma turma do oitavo e
último período do curso de graduação em História da Universidade Estadual Paulista –
UNESP/Campus de Franca, ministrada pela Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho2.
Trabalhar este filme em uma turma de graduação em História foi, para nós, não apenas
importante para o aprofundamento destes alunos no que diz respeito ao período da
Antiguidade Tardia e todas as questões envolvendo cinema e história, mas também porque
tal curso trata-se de uma licenciatura e, neste sentido, também pudemos fornecer elementos
para estes alunos enquanto futuros professores do ensino fundamental e médio no trabalho
com o cinema e a história em sala de aula.
Tratamos o filme Alexandria, além do conteúdo histórico que ele apresenta,
também como um documento em si e, desta maneira, fruto do seu contexto de produção e
visão de seus produtores. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, a
abordagem documental em sala de aula e o uso de novas tecnologias é algo recomendável
aos professores de História, o que justifica, em parte, nossa experiência docente. Além
disso, percebemos o apelo que os filmes têm representado para as novas gerações, seja
aquela dos alunos de graduação envolvidos nesta experiência, seja a dos alunos a quem
eles lecionarão enquanto futuros professores, cada vez mais familiarizados com este tipo
de linguagem áudio-visual.
Visando expor nossa experiência, dividimos este artigo em três partes. Na primeira
parte iremos apontar nossos estudos e visões sobre a História, o cinema e a utilização
pedagógica dos filmes. Tal pesquisa bibliográfica foi fundamental para nossa experiência,
dando apoio na maneira como analisamos diversos aspectos da produção do filme
Alexandria. Na segunda parte do texto discorreremos sobre a sociedade alexandrina tardoantiga, seus grupos sociais e os múltiplos interesses que circundaram as suas atuações
dentro do espaço urbano. A terceira e última parte do texto é o relato e análise da
experiência trabalhando com o filme Alexandria com a turma de graduação em História.
2
Tal experiência fez parte das atividades de estágio de docência dos autores deste texto, estágio
supervisionado pela professora responsável pela disciplina. Aproveitamos este espaço para agradecer à Profa.
Dra. Margarida Maria de Carvalho por nos ter proporcionado a oportunidade desta experiência, além de
orientar nossas pesquisas e incentivar a elaboração deste artigo. A responsabilidade sobre o texto, no entanto,
é inteiramente dos autores.
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2. História, Cinema e sala de aula.
O cinema passou a ser objeto de atenção e análise do historiador a partir de uma
grande e contínua renovação dos estudos históricos e da perspectiva documental do
historiador, iniciadas com a Primeira Geração dos Annales e despontada com os
historiadores da chamada História Nova ou Terceira Geração dos Annales. Nas palavras
de Jacques Le Goff (2005: 36-37), um dos historiadores mais conhecidos desse grupo:
A História Nova ampliou o campo do documento histórico; ela substituiu a
História de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no
documento escrito, por uma história baseada numa multiplicidade de
documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de
escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de
preços, fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen
fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de
primeira ordem.
O cinema em si, enquanto objeto de atenção do historiador dentro dessa
renovação historiográfica, tem seu despertar maior a partir da década de 1960 e 1970,
sendo um dos principais nomes desse debate o do historiador Marc Ferro, que publicou
textos na Revista dos Annales sobre o tema a partir da década de 1960 e foi o autor do
texto sobre filmes da importante coleção organizada por Jacques Le Goff e Pierre
Nora.3
Dentro da perspectiva iniciada por Ferro, o filme não deve ser visto apenas
enquanto imagem da sociedade que retrata, mas da sociedade que o produz. Para Ferro
(1988: 203), ao analisar um filme “pode-se esperar compreender não somente a obra,
mas também a realidade que a representa”. Neste sentido, como podemos ver, o filme é
tido como documento histórico e tomado como tal não deve proporcionar ao historiado r
uma mera análise da ficcionalidade do fato histórico que retrata e os níveis de
3
Trata-se da coleção em três volumes de livros intitulada História: novos problemas (1988); História:
novas abordagens (1988) e História: novos objetos (1988).
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“verdade” do que é mostrado. Deve, ainda, ser tomado como resultado da época que o
produziu, de seus problemas, anseios e estratégias de ação conscientes ou não.
Também estamos de acordo com Robert Rosenstone (2010: 53) para quem
devemos deixar com que os filmes históricos 4 sejam filmes, esperando dele o que se
espera de um filme e não de uma obra historiográfica.5 Ou seja, ao trabalhar com filmes
históricos não devemos buscar a todo o momento que eles façam trabalhos de uma obra
historiográfica. Assim, se um filme histórico apresenta uma “falha” em relação ao que
transmite sobre o passado, enquanto historiadores e professores de história devemos
analisá-la dentro da produção do filme em si, olhando-o como representação.
Voltando à questão documental que os filmes representam para o historiador,
Nóvoa (1995) nos remete ao filme enquanto meio de propaganda, veículo de ideologias
dominantes formadoras de grandes massas da população e instrumento formador de
consciências, fenômeno bem sério, se tomarmos o atual alcance dos suportes dos filmes, a
televisão e suas outras formas de transmissão. Nóvoa também problematiza a ideia de que
os filmes produzem uma mentalidade, muitas vezes, sem uma verdadeira consciência
histórico-objetiva. Sendo assim, acreditamos que cabe também ao historiador e professor
de história a possibilidade de analisar as intenções conscientes ou não do filme/documento
como uma forma de propaganda de valores e, desta maneira, como os filmes se configuram
como “agentes da história”.
É Nóvoa, também, que nos indica que para tratar um filme como documento
histórico é preciso criar uma nova mentalidade em relação à produção cinematográfica.
Estamos compreendendo filmes históricos como mostra Jairo Carvalho Nascimento (2008: 12), “aqueles
cuja natureza tem como fio condutor da narrativa, fundamentalmente, uma determinada interpretação da
história, seja um acontecimento específico ou reconstrução de uma realidade social de um dado momento
histórico”. Portanto, consideramos também que há filmes que mesmo não tratando de um acontecimento
histórico propriamente, podem ser trabalhados como históricos por possuírem enredos relacionados com
momentos históricos, como a adaptação para o cinema dos romances O Nome da Rosa (1986), Os
miseráveis (1988) etc.
5
Como mostrado por Rosenstone (2010) há diferentes tipos de filmes que trabalham com a questão histórica
ou, nas palavras deste historiador, com “premissas históricas”: dramas com fundos históricos (e, segundo
Rosenstone, dramas comerciais criticáveis e dramas inovadores), documentários e cinebiografias.
Acreditamos que ao trabalhar questões de representações, mesmo filmes que não tratam de questões
históricas propriamente, podem ser trabalhados de alguma forma em sala de aula. Dentro da classificação
proposta por este historiador, consideramos que o filme Alexandria (2009), que estamos trabalhando neste
artigo, é um drama histórico inovador, ou seja, uma obra dramática que tem como fundo um contexto
histórico e que pode ser discutida pelo historiador e pelo professor de história de forma crítica, possibilitando
que pensemos como o filme “ao mesmo tempo estabelece uma relação e acrescenta algo ao discurso histórico
do qual ele nasce e ao qual necessariamente se refere” (ROSENSTONE, 2010: 82).
4
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Nesse sentido, entendemos que é preciso tratá-lo, dentro de suas especificidades de
linguagem, mas também procurando pelos “conteúdos latentes ou mesmo aqueles que
escaparam inconscientemente ao seu realizador” e, assim, “da mesma forma que nos
documentos escritos, nas películas o investigador não consegue apreender imediatamente
todos os significados intrínsecos do filme” (NÓVOA, 1995). Acrescentamos a essas
observações outro aspecto da crítica documental historiográfica que deve ser considerado
na análise fílmica como documento histórico, que seria a análise do historiador rastreando
indícios, ligando texto/contexto por meio de análise bibliográfica e de outros documentos,
analisando aspectos sobre o produtor do filme e seu meio, analisando outros trabalhos do
mesmo produtor, verificando o possível público ao qual o filme se destina, seu gênero,
regime político do momento da produção, comparação com outros filmes de temática ou
contexto semelhantes, etc. É importante, ainda, que o historiador e professor de história
busquem investigar se há alguma linguagem metafórica no filme analisado e se pode haver
no filme alguma representação de um drama antigo reflexo de uma preocupação da
sociedade de produção deste filme.6
Além disso, há aspectos próprios da análise imagética e fílmica que podem
contribuir para o historiador perceber estas representações e sua carga de referencias, como
a iluminação usada, o ângulo em que a câmera está voltada, efeitos de cor e tonalidade,
efeitos sonoros, efeitos de cor nas próprias representações das personagens, etc. Desta
maneira, Cristiane Nova (apud LANGER, 2004: 04) bem definiu que um filme diz o tanto
quanto for questionado, sendo amplas as possibilidades de leitura.
Em relação aos filmes como ferramenta pedagógica de trabalho em salas de aula,
Jairo Carvalho do Nascimento (2008) nos mostra que desde a década de 1930 no Brasil, há
uma preocupação tanto dos educadores como do Estado Nacional em pensar o cinema na
perspectiva pedagógica. Em relação aos educadores, Nascimento (2008: 03) alude à
publicação da edição de número 3 da Revista Escola Nova, de 1931, que traz textos de
renomados educadores “enaltecendo as possibilidades didáticas e pedagógicas do cinema”.
Além disso, tivemos publicações de livros sobre a temática. Já em relação à experiência do
Estado, Nascimento (2008: 03) nos informa sobre a criação do Instituto Nacional do
6
O historiador Johnni Langer (2004: 06) nos dá bons exemplos destas metáforas fílmicas, como em As
bruxas de Salém (1996), quando a “intolerância religiosa do século XVII torna-se uma metáfora política
para o presente”. No caso deste filme, há uma alusão ao macarthismo e à perseguição comunista nos EUA
nas décadas que antecederam à produção da película.
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Cinema Educativo, em 1937, por Getúlio Vargas. Tal tentativa buscava “utilizar o cinema
para servir de instrumento ideológico de massa para atender aos interesses patrióticos do
Estado brasileiro” (NASCIMENTO, 2008: 04), distribuindo filmes educativos a fim de
controlar as massas usando o poder e fascínio que o cinema despertava na época.
Contudo, com as propostas de trabalho da história com o cinema, especialmente
levantadas pela História Nova, cresceram, também no campo educacional, as reflexões sobre
os usos educativos do cinema em aulas de história. Embora não tenham cessado as políticas
públicas ligando o trabalho pedagógico com filmes, não as discutiremos aqui7, nos
centraremos, então, em pensar o filme em si dentro da sala de aula de história.
Uma dos atrativos no trabalho com filmes pelo professor de história é alcançar
justamente um dos objetivos centrais de nossa disciplina que, a nosso ver, trata-se do
desenvolvimento da capacidade reflexiva dos alunos. Neste sentido, o historiador Mariano
Bícego (2004: 35) nos leva a pensar como o grande público atualmente está propenso a
consumir os filmes de maneira pasteurizada e padronizada. Abordá-los na escola, portanto,
ajudaria o aluno a compreender sua linguagem e refletir sobre ele. Refletir também sobre
os filmes comerciais8 que tanto influenciam a inteligibilidade do mundo atual (BÍCEGO,
2004: 36), sem que as pessoas, muitas vezes, analisem o que lhes está sendo transmitido.
Portanto, mais uma possibilidade nos é colocada em questão aqui, a de pensar o cinema
enquanto arte e enquanto indústria cultural no sentido de posicionar o aluno dentro da
própria realidade em que ele vive.
Sobre o filme histórico e seu processo de aprendizagem da história, é preciso que o
professor de história esteja bem orientado sobre a forma como irá desenvolver noções de
tempo, espaço, processo histórico, além da noção de documento histórico e como irá
trabalhar conceitos que são tratados no filme sobre o período que ele apresenta e que,
muitas vezes, já é senso-comum criticá-los pela historiografia9 ou que, embora não seja
7
Sobre tais iniciativas públicas sugerimos a leitura do texto: NASCIMENTO, J. C. Cinema e Ensino de
História: realidade, propostas e práticas na sala de aula, Fênix, vol. 05, ano V, n. 02, 2008: 01-23. Disponível
em: www.revistafenix.pro.br. Acesso em: 27/09/2011.
8
E dentro desta classificação estariam muitos filmes de fundo e com temática históricas.
9
Como, por exemplo, a apresentação da Idade Média como Idade das Trevas, feita implicitamente no filme
Excalibur (1981), logo em seu início, e explicitamente no filme O Nome da Rosa (1986), que mostra o
contexto medieval apresentado em um cenário escuro e degradante e, no final do filme, a representação de
“fim” da Idade Média é apresentada com o clareamento do cenário do filme.
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senso-comum fazer tal crítica, a mesma pode ser estabelecida, aliando ensino e pesquisa de
história, dois focos que não devem ser separados.
Pensando desta forma, estamos destacando a ideia de que o filme não fala sozinho,
ou seja, o papel do professor pesquisador da história continua sendo fundamental como
condutor do ensino e da aprendizagem, sendo o filme um dos seus instrumentos.
Partilhamos também das ideias de Nascimento (2008: 12) de que “a força e abrangência da
linguagem imagética, seja de qualquer natureza, é uma das principais características do
mundo moderno”, mas que o filme não é atualmente o principal condutor do conhecimento
histórico, especialmente se considerarmos as diferentes realidades de nossos alunos,
características regionais, econômicas, sociais, etc. Assim sendo, trabalhar um filme
histórico em sala de aula parte também de pensar a realidade dos alunos, o que eles sabem,
o que eles precisam saber e como o filme escolhido pode lhes fazer refletir. O professor de
História deve ainda refletir sobre as condições do filme, pois, muitas vezes, um filme de
arte que é compreendido e admirado pelo professor, pode não ser bem compreendido e,
menos ainda, fácil de ser apreciado pelos alunos de determinada faixa-etária.
Voltando à crítica dos filmes históricos propriamente, não devemos deixar de
observar que tais filmes, em geral, estão repletos de personagens estereotipados. Por
estereótipos nos filmes podemos compreender como:
[...] representações de uma realidade social ou histórica, tomadas como
verdadeiras, mas que constituem quase sempre fantasias ou produtos da
imaginação. Alguns estereótipos são produtos eruditos (como o famoso
capacete dos Vikings, criado no século XIX), que foram popularizados pelas
artes plásticas (pinturas românticas) perpetuando-se com outros meios artísticos
(as óperas oitocentistas) e que tiveram formato definitivo como literatura,
história em quadrinhos e finalmente, tomando forma definitiva com o cinema
(LANGER, 2004: 03).
Tais estereótipos, como nos informa Langer (2004: 07), “podem decorrer tanto por
questões ideológicas como por motivos técnicos”. Cabendo ao historiador decodificar tais
representações e, caso for trabalhar filmes com estereótipos em uma sala de aula, tratar
estas criações junto aos seus alunos de forma reflexiva, a fim de não perpetuar imagens
carregadas, muitas vezes, de criação de uma alteridade e de negatividade nas
representações do outro.
Desta forma, trabalhar um filme histórico em sala de aula necessita de cuidados,
análise prévia e estudo por parte do professor. Contudo, permite múltiplas
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problematizações que vão desde o filme enquanto forma discursiva, aspectos sobre o
período histórico que o filme trata, as experiências e problemas do contexto de produção
do filme, até uma discussão sobre o filme enquanto obra de arte, aguçando a sensibilidade
crítico-reflexiva e estética dos alunos, afinal, o cinema é ou não é a sétima arte? Se a
resposta a esta indagação for positiva, o que para nós é, por si só já vale trabalhar um filme
em sala de aula, aguçando a sensibilidade dos alunos com os objetos de arte e refletindo
sobre o cinema enquanto Indústria Cultural quando tratarmos de filmes comerciais.
Trabalhar um filme em uma aula de história pode também proporcionar ao
professor um trabalho de apresentação e discussão sobre o que é um documento histórico,
problematizando o filme enquanto tal, e como o historiador produz seu conhecimento,
saber muitas vezes esquecido dos conteúdos das aulas de história da Educação Básica10.
Além disso, usar filmes em sala de aula não significa substituir os livros, mas ampliar as
formas de acesso à reflexão por meios diferentes, ligados a outros tipos de experiências.
Sobre o filme como problematização de uma época que não a sua, Rosenstone
(2010: 13) nos diz que também se faz importante ao historiador “entender como o cinema
apresenta o passado” e, segundo ele, embora encontre semelhanças importantes, o cinema
enquanto meio de transmissão da história é muito diferente dos livros. As semelhanças
estariam em ambas, a historiografia dos livros e o cinema, serem modalidades discursivas
e, de certa forma, produtos do historiador e do cineasta. Sobre as diferenças, Rosenstone
percebe-as na própria forma de transmissão, que é diferente em termos de linguagem.
Assim, enquanto historiadores, para compreender esse passado do qual o filme
Alexandria (2009) trata, como ele é ressignificado nas telas do cinema, sendo produto da
própria época de produção, e como isso pode ser trabalhado em sala de aula visando
apontar toda problemática que um filme pode suscitar, faremos uma análise do que os
documentos contemporâneos aos fatos e aqueles que buscaram preservar ou construir uma
memória deles dizem sobre a filósofa Hipátia e o contexto das disputas político-religiosas
entre não-cristãos e cristãos no final do IV século e início do V na cidade de Alexandria,
entremeando com a maneira como isso é mostrado no filme e as possíveis impressões da
produção do mesmo em seu contexto.
10
Acreditamos também que trabalhar um filme em uma turma de graduação em História, para historiadores e
professores de história em formação, permite repensar problemas epistemológicos de nossa área, como o
próprio discurso histórico e as formas de conhecer o passado, produzir conhecimento sobre ele e ensiná-lo
em sala de aula.
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3. Sobre Hipátia, Alexandria e as fontes.
A causa fundamental da decadência e, posteriormente, da decomposição do
Império Romano parece-nos, pois, residir no seguinte: o Império tornara-se
numa maquinaria demasiado vasta, demasiado aperfeiçoada, demasiado
complexa; o mundo mediterrânico, em estado de regressão econômica desde o
século III, já não tinha forças para aguentar com um tal fardo. [...] Nos fins do
século IV, já não passava de um invólucro oco, desprovido de conteúdo. [...] E
muito em breve irá sofrer um novo e terrível abalo da barbárie. [...] As velhas e
ingênuas divindades naturalistas, helênicas e latinas cedem lugar às
“superstições” orientais, como o judaísmo, o cristianismo, o mitriacismo, o
maniqueísmo, etc. [...] O triunfo do cristianismo, e pouco tempo depois o do Islã,
levarão os espíritos a se afastar das antigas formas de beleza. (LOT, 1980: 197198, destaque do autor).
A percepção acima, de declínio generalizado da sociedade romana no período
compreendido entre a Antiguidade clássica e os mundos medievais, foi muito difundida
pela historiografia até meados do século passado. Entretanto, uma nova forma de
leitura dos vestígios da cultura material e dos documentos escritos do período, que
chegaram até nós, tem fornecido outras indicações que não mais corroboram tais
afirmações, como a do historiador francês Ferdinand Lot, que produziu a afirmação
acima no período entre-guerras do século XX. Desse modo, a Antiguidade Tardia,
como hoje é reconhecido, pelos historiadores antiquistas, o recorte cronológico entre os
séculos III e VII d.C., tem, cada vez mais, perdido o seu antigo estatuto “decadentista”
e assumindo a feição de um período dinâmico e inovador, que legou muito das suas
formulações político-culturais para as épocas posteriores. Nesse sentido, nos propomos
efetuar uma análise do filme Alexandria, de Alejandro Amenábar (2009) que ofereça
subsídios para a sua utilização em sala de aula e, ao mesmo tempo, contrapor algumas
visões nele presentes que não mais se coadunam com as discussões historiográficas
mais recentes. Portanto, a ideia de “declínio” do Império Romano apresentada pelo
filme de Amenábar encontra amparo em uma historiografia já superada pela
historiografia das últimas décadas.
Baseando-se em pesquisas arqueológicas e fontes papirológicas, Christopher
Haas (1997) traça-nos um quadro da sociedade alexandrina tardo-antiga que nos
fornece indicações da efervescência cultural das suas diversas comunidades políticoreligiosas e a sua importante posição econômica. Como uma metrópole portuária,
Alexandria desempenhava um destacado papel no escoamento da produção de grãos do
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vale do rio Nilo, que abasteciam grandes cidades do Império Romano, como
Constantinopla, e o exército romano. As evidências também indicam que essa
metrópole do Império oriental, capital da Diocese do Egito, tratava-se de um
importante centro manufatureiro. Indicações sobre a diversidade dos bens produzidos
nessa localidade nos são fornecidos por uma carta do bispo Cirilo (Carta n° 96), datada
do final do ano de 431 e endereçada a um correligionário em Constantinopla, durante a
Controvérsia Nestoriana 11, que relaciona uma extensa lista de presentes que deveriam ser
entregues a membros da Corte Imperial, em Constantinopla. Dentre esses bens, além de
uma quantia considerável em ouro, fazia parte da lista móveis de marfim, tapetes e tecidos
de luxo além de outros utensílios diversos.
Além dessa riqueza de recursos materiais, desde a sua fundação no século III a.C. e
atravessando a ocupação romana do Egito a partir do século I a.C., Alexandria
caracterizou-se como um pólo de atração cultural, para onde afluíam filósofos, sofistas e
pesquisadores. Esse afluxo de intelectuais levou a cidade a se destacar como um
importante centro do pensamento antigo em toda a bacia mediterrânica. Essa característica
se mostrava ainda mais marcante na Antiguidade Tardia, em virtude da interação entre o
legado da cultura helênica, representada naquele momento principalmente pela filosofia
neoplatônica, e os valores doutrinários e modos de vida relacionados ao cristianismo,
conforme nos demonstra Edward Watts na sua obra City and School in late antique:
Athens and Alexandria (2006a). Dentre os grupos urbanos que predominavam naquele
contexto, destacamos as importantes comunidades cristãs, neoplatônicas e judaicas.
Como observa Pierre Hadot (2004: 352-354), o essencial das doutrinas
neoplatônicas e o essencial das doutrinas cristãs se sobrepunham naquele contexto, ao
preconizarem um modo de vida fortemente marcado pelas escolas filosóficas antigas, que o
medievo e os tempos modernos herdariam. A presença de alunos cristãos e não-cristãos
frequentando a academia de Hipátia, como retratado no filme, é ilustrativa dessa interação.
Portanto, as evidências de que dispomos nos indicam que as disputas entre a filósofa Hipátia
e o bispo Cirilo não se circunscreviam a uma mera polarização em torno de ideias religiosas,
11
Conflito que dividiu a hierarquia eclesiástica ortodoxa, na primeira metade do século V d.C., que se
polarizou em torno das ideias do bispo Cirilo de Alexandria, que defendia a união das naturezas, divina e
humana, do Cristo encarnado, e das ideias do bispo Nestório de Constantinopla, que parece advogar uma
distinção entre elas. (RUSSELL, 2000).
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mas abrangia a complexa inter-relação das diferentes comunidades que compartilhavam o
espaço urbano e competiam entre si por estabelecer um canal de comunicação e influência
junto ao poder imperial, representado no filme pelo prefeito Orestes.
Desse modo, a grande quantidade de conflitos verificados em Alexandria, durante a
Antiguidade Tardia, antes de nos indicar uma situação de declínio daquela comunidade,
intenção que o filme parecer querer demonstrar, nos mostra a dinâmica político-cultural
pelo gerenciamento do seu espaço urbano. A percepção de que tais conflitos se
restringiram apenas a questões religiosas nos é passada quando procedemos a uma leitura
acrítica da documentação textual que nos é disponível. Jean-Michel Carrié (1999: 14-20)
adverte-nos que poucas épocas nos legaram textos tão codificados e permeados por visões
partidárias ou efeitos retóricos. Nesse sentido, Margarida Maria de Carvalho e Érica C. M.
Silva, (2010: 82-96) ao analisarem os conflitos que envolveram a atuação dos curiales12
em outra grande metrópole do Oriente tardo-antigo, a cidade de Antioquia, no século IV
d.C., demonstram-nos que:
A multiplicidade de interpretações possíveis sobre a realidade da administração
local nas cidades do Império Romano e aquilo que alguns consideram
“contradição” das fontes estão relacionadas às lutas de representações políticoculturais entre os autores que se aventuraram a escrever e refletir sobre o mundo
em que vivem. Sejam esses autores considerados antigos, medievais, modernos
ou contemporâneos, a interpretação que produzem da realidade é indissociável
de uma subjetividade implícita, inseparável do contexto e do lugar social de onde
falam (destaques dos autores).
No que se refere à cidade de Alexandria, Watts (2006b: 333-342) também destaca a
natureza contraditória de tais relatos acerca da atuação de Hipátia e Cirilo. Segundo ele, o
filósofo neoplatônico Damáscio, na sua obra Vida de Isidoro, escrita em torno da década
de 480, descreve Hipátia como uma vítima inocente, que nada havia feito para merecer a
violência perpetrada contra ela pelos cristãos. Ao que tudo indica, a obra de Damáscio
esteve relacionada à sua reação a outros conflitos verificados entre cristãos e não-cristãos
em Alexandria, no final do século V d.C. Dessa forma, parece que ele buscou transpor para
o passado, conscientemente ou não, a situação do seu tempo, no sentido de contrapor “a
heróica natureza da resistência filosófica” contra a “arbitrária natureza do poder cristão”.
Em outra vertente, Watts destaca os relatos altamente favoráveis a Cirilo produzidos pelo
12
Os curiales eram autoridades importantes na administração das cidades do Império Romano durante o
período da Antiguidade Tardia (CARVALHO; SILVA, 2010: 82).
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bispo monofisista13 João de Nikiu, no final do século VII d.C. Nos seus escritos, o bispo
João parece que procurou realçar as qualidades de Cirilo e isentá-lo da participação no
assassinato de Hipátia pelo fato de que este bispo alexandrino era considerado o pai
espiritual do movimento monofisista egípcio, que advogava a existência de uma unidade
entre as naturezas, divina e humana, para o Cristo encarnado, num ambiente permeado de
conflitos dentro da própria comunidade cristã contra a corrente cristã calcedoniana14, que
realçava a distinção entre aquelas naturezas e que, naquele momento, lutavam entre si pela
hegemonia na Sé Episcopal de Alexandria.
Ao que nos parece, entretanto, a emergência de tais conflitos poderia também estar
relacionada à estrutura político-administrativa do Estado Romano tardio. Essa disposição
caracterizou-se por uma crescente centralização na Corte Imperial de decisões que
afetavam o dia-a-dia dos cidadãos do Império, tais como tributação, distribuição de grãos
aos necessitados, apelações de contenciosos judiciais e outros (GREGORY, 1979: 23-26).
Uma antiga instituição romana, muitas vezes confundida por autores modernos como
perversão dos costumes e fonte de corrupção, a patronagem, agora, ainda mais,
desempenhava papel relevante na intermediação entre as demandas locais e o distante
centro de poder decisório, no caso do Império Romano do Oriente, a cidade de
Constantinopla. Destacados indivíduos oriundos da elite citadina, portadores de uma
refinada Paidéia 15, desempenhavam esse elo na cadeia administrativa imperial, cuja
atuação nesse sentido vinculavam os seus interesses aos demais estratos sociais. Desse
modo, ao se destacarem como defensores e provedores dos anseios de suas comunidades,
fossem eles cristãos ou não cristãos, tais indivíduos se legitimavam como líderes revestidos
de prestígio e poder perante elas.
O historiador contemporâneo àqueles eventos, Sócrates Escolástico, também narrou
na sua História Eclesiástica os conflitos que envolveram as diferentes comunidades
alexandrinas na virada do IV para o V séculos. Ele nos dá indicações de que os bispos
13
Os monofisistas propunham que a natureza da Palavra encarnada era única e divina. Eles recusavam aceitar
a definição do Concílio de Calcedônia, em 451, com o argumento de que ela era nestoriana (DAVIS, 1983:
329).
14
Seguidores da fórmula de fé definida pelo Concílio de Calcedônia (451), também chamados de diofisistas,
que confessavam “um único e idêntico Cristo em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão e
sem separação (MONDONI, 2001: 146).
15
Pode-se conceituar Paideia como um conjunto de ações pedagógicas, políticas, filosóficas e religiosas que
aprimorava o discurso persuasivo (retórico) daqueles que necessitavam demonstrar e impor o seu poder
(CARVALHO, 2010: 24).
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Teófilo e o seu sucessor e sobrinho Cirilo, bem como a filósofa Hipátia parecem atuar
como verdadeiros patronos em Alexandria, competindo entre si por espaço político de
influência na administração da cidade:
Houve uma mulher em Alexandria chamada Hipátia [...] Tendo sido bem
sucedida na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia aos
seus ouvintes, muitos dos quais vinham de longe para receber suas instruções. Por
conta do autocontrole e facilidade de maneira que ela havia adquirido em
conseqüência do cultivo de sua mente, ela não poucas vezes aparecia em público
na presença dos magistrados. Nem se sentia envergonhada em ir para uma
assembléia de homens. [...] por conta da sua extraordinária dignidade e virtude era
cada vez mais admirada. No entanto, ela caiu vítima do ciúme político que na
época prevalecia. Porque, como ela tinha entrevistas frequentes com Orestes [o
prefeito], foi relatado caluniosamente entre a população cristã que teria sido ela
quem impediu Orestes de se reconciliar com o bispo [Cirilo] (Sócrates
Escolástico, Hist. Ecl. VII, 15).
Maria Dzielska (2009: 55) também nos dá uma importante indicação sobre o papel
exercido por Hipátia e pelo bispo de Alexandria naquele contexto. Analisando cartas
remetidas pelo bispo Sinésio de Cirene ao bispo Teófilo e a Hipátia, aquela historiadora
identifica os termos de igualdade e os adornos retóricos com que Sinésio se dirigia a
ambos, indicando-nos que eles operavam na mesma esfera de prestígio social dentro da
comunidade alexandrina. Acreditamos que esse status desfrutado por Hipátia, mesmo a
despeito das séries de leis repressivas emitidas pelo poder imperial a partir da oficialização
do credo niceno como ortodoxo, em 380, pelo imperador Teodósio I, contra as correntes
cristãs consideradas heréticas e os não-cristãos, se deva ao fato, conforme constata
Timothy E. Gregory (1979: 83), da frouxa implementação dessa legislação. Acreditamos
que, no caso de Alexandria, as autoridades imperiais locais se valiam desse artifício como
forma de contrabalançar o peso político dos diferentes grupos que tentavam influir nos
assuntos do conselho da cidade.
Logo, percebemos que além daqueles registros conflitantes produzidos na
Antiguidade Tardia acerca das ações de Hipátia e Cirilo, verifica-se também que os
mesmos foram retomados em diferentes momentos da história no sentido de ora heroificar
as ações de Hipátia e demonizar as de Cirilo, ou vice-versa, a fim de legitimar e dar
autoridade aos discursos que melhor convinha aos interesses daqueles que os escreviam. O
historiador iluminista Edward Gibbon (1737-1794), por exemplo, que atribuía à
irracionalidade da religião uma das causas do “declínio e queda” do Império Romano,
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escrevendo num contexto de laicização do Estado, extraiu as seguintes impressões de
Hipátia e Cirilo a partir da leitura daquelas fontes antigas:
Hipátia, filha da matemático Theon [...] modesta donzela que na flor da sua
beleza e na maturidade da sua sabedoria recusou os seus amantes e instruiu os
seus discípulos na filosofia de Platão e Aristóteles. As pessoas mais ilustres no
seu mérito e posição eram impacientes para visitar a mulher filósofa. Cirilo
contemplava, com um olhar ciumento, o lindo cortejo de cavalos e escravos que
aglomeravam à porta da sua academia. Um boato foi espalhado entre os cristãos
de que a filha de Theon era o único obstáculo para a reconciliação entre o
prefeito e o bispo. Esse obstáculo foi rapidamente removido. Em um dia fatal,
na estação sagrada da Quaresma, Hipátia foi arrancada da sua carruagem,
despida, arrastada para a Igreja e desumanamente massacrada pelas mãos de
Pedro, o leitor, acompanhado de uma tropa de fanáticos selvagens e impiedosos.
Sua carne foi raspada de seus ossos com conchas de ostras afiadas e seus
membros trêmulos foram entregues às chamas. O progresso da investigação e
punição foi parado por donativos (presentes) adequados, mas o assassino de
Hipátia imprimiu uma mancha indelével no caráter da religião de Cirilo de
Alexandria (GIBBON, History of the Decline and Fall of the Roman Empire,
cap. XLVII, part 2).
Como já trabalhamos neste texto, os filmes históricos devem ser analisados também
a partir de seu contexto de produção, a fim de que possamos detectar as interferências do
presente na realidade vivida no passado. Assim, no que se refere ao filme Alexandria, de
Alejandro Amenábar, percebe-se que essa mesma reprodução de acontecimentos distantes
na história, consciente ou inconscientemente, traz no seu bojo, muitas vezes, as
expectativas e anseios do momento presente a partir da idealização de figuras do passado.
Desse modo, o filme de Amenábar parece querer denunciar, na atualidade, o que considera
uma interferência da hierarquia eclesiástica católica ao tentar impor seus valores a toda
uma sociedade, que não são universalmente compartilhados. Basta verificarmos as
pressões que a cúpula eclesiástica exerce no sentido de tentar barrar a implementação de
uma série de medidas que possibilitem aos cidadãos exercerem a sua plena cidadania. É o
caso de citarmos, dentre outras, a ingerência em temas como a união homoafetiva,
incluindo a adoção de filhos, e o reconhecimento da autonomia das mulheres de decidirem
sobre o aborto. Agrega-se a isso, os recorrentes noticiários que, no passado recente e
concomitantes à produção do filme, denunciavam a prática de pedofilia envolvendo
religiosos da Igreja Católica, inclusive da alta hierarquia, cuja cúpula, de início, envidou
esforços no sentido de abafar as denúncias (FISCHMANN, 2010: A14). Outra
possibilidade de leitura está relacionada ao vago argumento que preconiza, nos dias atuais,
os extremismos religiosos como causa do chamado “choque de civilizações” (SAID, 2003:
42-47).
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A historiografia antiquista contemporânea, dentre ela uma crescente e destacada
produção de autores nacionais, tem se debruçado sobre as complexidades e contradições
das fontes antigas no sentido de demonstrar que as religiosidades naquele período, sejam
elas cristãs ou não cristãs, antes de serem analisadas como fator de um pretenso “declínio”
de toda uma sociedade, constituía-se, ao contrário, de um componente intrínseco ao jogo
político, permeando, desse modo, todas as demais esferas da vida social. Portanto, se uma
das intenções do diretor do filme, ao encenar a história de Hipátia e Cirilo, era propor uma
similaridade entre a “decadência” do Império Romano, a partir da afirmação do
cristianismo, e a “decadência atual” da Igreja Católica, tentamos demonstrar que a
historiografia moderna caminha no sentido contrário.
4. O filme “Alexandria” em sala de aula: considerações sobre uma experiência
docente.
Uma das questões levantadas nas discussões acerca da leitura apresentada pelo
diretor e roteirista do filme Alexandria, Alejandro Amenábar, sobre os acontecimentos
que circundaram a atuação de Cirilo e Hipátia, estiveram relacionadas ao diálogo entre
passado e presente. Seja de forma consciente ou inconsciente, é perceptível que as
impressões extraídas dos documentos ou da historiografia utilizada pelo diretor/roteirista
estão permeadas pela realidade vivida pela sociedade espanhola contemporânea.
Conforme
somos
informados
em
sua
página
oficial
na
Internet
(www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/amenabar/index/htm), Amenábar nasceu no
ano de 1972 em Santiago do Chile e sua família emigrou para a Espanha no ano de 1973,
poucos dias antes do golpe militar que derrubou o governo do presidente socialista
Salvador Allende. Se naquele momento a terra natal de Amenábar experimentava o início
de um sangrento regime discricionário, a sua terra de acolhida começava a vivenciar,
concomitantemente, um período de transição para a democracia, após a longa ditadura do
general Francisco Franco, morto em 1975. Conforme nos indica José M. Magone (2009:
46-49 e 290-294), a ultra-conservadora Igreja Católica espanhola foi considerada como
parte integrante do establishment político que deu sustentação ao regime franquista.
Durante o período de transição, a Igreja também se constituiu numa importante interlocutora
no processo, pois ela tratou-se de uma instituição que desempenhou um papel de destaque na
formação da consciência nacional espanhola, desde o tempo da Reconquista. A sua
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participação durante esse processo esteve relacionado ao seu interesse em preservar alguma
forma de hegemonia espiritual no novo sistema democrático que emergia.
Segundo também nos indica Magone, a Espanha, desde então, encontra-se dividida
entre duas forças políticas antagônicas e representativas da sociedade que se agrupam em
torno dos partidos PP (Partido Popular) e PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol). O
primeiro representando as forças políticas de orientação direitista e fortemente vinculadas
aos valores conservadores propagados pela Igreja. O segundo, por sua vez, é considerado
um partido esquerdista que prega a instituição de uma sociedade não-confessional, de
modo a diminuir a interferência da Igreja nos assuntos do Estado. A partir do mandato do
presidente do governo espanhol José Luiz Zapatero, iniciado em 2004, foram
implementadas diversas medidas relacionadas à expansão aos direitos de cidadania que
acirraram a polarização entre Igreja e Estado, tais como a legalização do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, a tramitação acelerada para o divórcio e a diminuição da grade
religiosa nos currículos escolares16. Essas medidas políticas suscitaram fortes reações da
Igreja através de campanhas pela valorização da família e, num fato inédito, a
beatificação17 pelo Vaticano, de uma só vez, em 28/10/2007, de 498 pessoas consideradas
perseguidas durante a 2ª República (1931-1939)18. Por essa medida, a Igreja seria
fortemente acusada de tentar reabrir as feridas entre as duas Espanhas.
Parece-nos, então, que Amenábar não está dialogando apenas como o passado ao
promover uma polarização entre “pagãos”19 e cristãos na Antiguidade Tardia e, nem
tampouco, quando associa a emergência do cristianismo à decadência dos valores
clássicos. Percebemos que profundas disputas ideológicas dentro da sociedade espanhola
atual norteiam o direcionamento que ele buscou imprimir nos conflitos entre os diferentes
grupos que disputavam espaço político na passagem dos séculos IV e V d.C. em
Alexandria.
16
As discussões sobre essas temáticas durante esse momento na sociedade espanhola são recorrentes na obra
do cineasta Pedro Almodóvar em filmes como A lei do desejo (1987), Má educação (2003), Maus hábitos
(2007) e outros.
17
Verifica-se aqui a similaridade de métodos de enfrentamento político que o diretor quis estabelecer no
filme com a beatificação do monge Amônio, por Cirilo, durante os conflitos com o prefeito Orestes.
18
Vide Homilia do cardeal José Saraiva Martins durante o rito de beatificação de 498 mártires da
perseguição
religiosa
na
Espanha
em
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/csaints/documents/rc_con_csaints_doc_20071028_martirispagnoli_po.html, página acessada em 23/11/2011.
19
O termo “pagãos” trata-se de um epíteto que parece ter sido usado por escritores cristãos do período com
uma conotação depreciativa para se referirem aos neoplatônicos (BROWN, 1999: 625).
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Procuramos debater com os alunos alguns aspectos desse uso do passado como
forma de dar legitimidade a determinadas reivindicações no presente. Um dos primeiros
aspectos que são apresentados no filme Alexandria, e que não devem deixar de ser
problematizados ao trabalhar com o mesmo em sala de aula, o que fizemos em nossa
experiência
com
a
turma
de
História
em
questão,
diz
respeito
à construção de personagens estereotipados e maniqueístas, especialmente no que tange aos
aspectos religiosos das mesmas. Hipátia, a filósofa “pagã”, é apresentada como a encarnação
do bem, representada pela bela atriz Rachel Weisz, que nos trás um semblante calmo, sempre
em atitudes racionais, embora sensível e religiosamente fiel e forte. Ao mesmo tempo, Cirilo,
o bispo cristão, é representado pelo ator Sami Samir e apresentado com roupas em tom
escuro e com semblante e expressões fechadas. Suas atitudes são autoritárias e impositivas.
Pela construção destas personagens podemos ter uma ideia da mensagem crítica em relação
ao cristianismo que o diretor busca estabelecer.
A imagem negativa do cristianismo é apresentada logo no início do filme, a legenda
do texto de abertura ressalta que “o cristianismo outrora banido, se proliferava
rapidamente”. O termo “proliferava” não é escolhido fortuitamente. Proliferar aqui, para
nós, dá um sentido epidêmico para a religião, como uma espécie de contágio generalizado.
Uma cena significativa dessa espécie de “expansão contagiosa” aparece na hora que os
cristãos “invadem” a biblioteca de Alexandria. Com a câmera mostrando uma visão de
cima da biblioteca, os cristãos entram rapidamente na mesma como espécie de insetos
negros. A cena, inclusive, tem uma aceleração neste momento. Os cristãos também são
mostrados queimando pessoas de maneira intolerante, enquanto a tolerante Hipátia pede ao
seu pai que não puna o escravo cristão, sendo que ela própria cuida dos ferimentos do
escravo após as punições que ele recebe por ser cristão. O cristianismo ainda é apresentado
como uma religião de pobres miseráveis e manipulados pelo “maléfico” Cirilo. Por
questões políticas, o filme procura retratar que o cristianismo chegou à elite de Alexandria
não pela fé. O estereótipo maniqueísta está montado.
O cristianismo, então, representante do mal na terra, da falta de reflexão e de crítica,
da intolerância e da alienação, destrói o saber antigo (simbolizado pela filósofa Hipátia e pela
Biblioteca de Alexandria, que após invasão cristã torna-se, na película, pasto para animais) e
abre uma nova época, a Idade Média. Novamente temos aqui uma sugestão para a
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apresentação desse período como “nebuloso” e “das trevas”. Tal ideia, surgida no
Renascimento, no século XVI, tem sido amplamente discutida e refutada pela historiografia.
Ainda no começo da película surge outra ideia imprescindível de ser trabalhada em
sala de aula, especialmente em um curso de História. Trata-se da ideia de “Colapso do
Império Romano20”, termo utilizado no filme. Como já apresentamos neste artigo, tal ideia
ligada ao declínio e decadência, foi muito difundida pela historiografia, especialmente no
século XIX e revisada por historiadores como Jacques Le Goff, que propõe o uso do termo
desagregação (GONÇALVES, 2001: 05), dando a idéia de transformação que é mais
própria na história do que a ruptura total. Portanto, tal representação do filme nos
proporcionou tratar com os alunos sobre como os filmes, e mesmo uma historiografia
passível de ser criticada, podem nos trazer idéias preconcebidas da História, com períodos
de Alto e Baixo, com quedas que não nos trazem a concepção da História como uma
transformação constante, aspectos que, como historiadores e professores de História que
estes alunos serão, precisam ser claramente abordadas.
Um aspecto positivo no filme e que não deixou de ser mencionado em nosso
trabalho em sala de aula foi o estatuto do filósofo na Antiguidade Clássica. Ser filósofo no
mundo Antigo não significa duvidar dos deuses e deixar de participar dos rituais ou mesmo
ocupar cargos sacerdotais, não era ser essencialmente racional como possa parecer na ideia
de filósofo atualmente. Um exemplo deste filósofo religioso e místico da Antiguidade
Clássica está em Apuleio, filósofo, escritor e sofista do século II d.C., aspectos estes que o
próprio Apuleio ressalta em sua obra Apologia.21 Com a mesma estratégia usada na defesa
de Apuleio diante da acusação de praticante de magia, tratada em sua Apologia, Hipátia
aparece se defendendo da mesma acusação feita pelos partidários de Cirilo no filme: em
defesa da filosofia. Portanto, a racionalidade volta à cena em Alexandria (2009) na defesa
da filósofa contra os cristãos.
Não podemos deixar de observar, no entanto, que o que despertava grande interesse
dos alunos diante da exposição do filme eram as questões romanceadas do mesmo, os
alunos riam das cenas cômicas, como a “desastrosa” apresentação musical de Orestes para
Hipátia. Isto, a nosso ver, mostra que trabalhar com filmes em sala de aula, além de ser
No texto de abertura do filme temos a frase: “A finales del siglo IV d.C., el Império Romano empezaba a
derrubarse”. Nas legendas aparece a tradução da ideia de “derrubada” com o termo “colapso”.
21
Autodefesa de Apuleio diante da acusação de praticante de magia.
20
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uma experiência positiva no que toque à crítica histórica do filme e suas representações,
pode ser uma experiência de fato divertida.
Em relação à recepção do filme por parte dos alunos22, eles concordaram que
Alexandria (2009) trazia um “olhar distinto sobre o cristianismo, a complexidade que era
a questão na Antiguidade”, nas palavras de um aluno. Esta observação proporcionou que
trabalhássemos com a discussão sobre existirem vários tipos de cristianismo e de cristãos
na Antiguidade Tardia e que, portanto, os conflitos entre diferentes agremiações cristãs
apresentavam um caráter mais amplo, político-cultural, que, inclusive poderia envolver a
afirmação de um discurso de sustentação ao poder imperial (CARVALHO, 2010: 23;
SILVA, 2003: 33). Essa questão suscitou outra observação interessante por parte da turma
acerca da disputa entre o grupo de cristãos comandado por Cirilo e o grupo de Hipátia ser
tratado como uma questão muito restrita ao contexto da cidade de Alexandria, pois o poder
do Império Romano e do Imperador pouco aparece na película. Nas palavras do aluno
“parece uma mera questão doméstica”. Desta maneira, o filme foi apresentado como uma
ressignificação da Antiguidade Tardia na atualidade.
Um aluno também mostrou ter observado que a astrologia e a astronomia são
mostradas de maneira muito rica no filme, embora mostradas como produtos apenas das
reflexões da Antiguidade Clássica. Não deixamos, então, de tecer observações sobre como
esse saber não foi algo perdido no Medievo. Embora o filme não mencione essa
concepção, ela fica implícita na ideia de decadência que o cristianismo trouxe ao
conhecimento para os períodos posteriores ao retratado.
Uma aluna observou também que em sala de aula, na disciplina de História do
Império Romano, na qual este filme foi trabalhado, foi estudado que havia o poder do
prefeito nas cidades do Império Romano desta época, mas o filme mostra o bispo Cirilo
acima de qualquer outro poder. Nesse sentido, observamos que o bispo não se tratava de
um “funcionário” dentro da estrutura administrativa imperial, mas, conforme nos indica
Peter Brown (1980: 20-22), a grande novidade da sua posição se deu pela rede de
influências que ele buscou estabelecer para ter acesso ao poder e, também, na natureza dos
grupos com os quais ele tinha uma relação especial.
22
Após exibição do filme, abrimos o debate. Pedimos que os alunos apresentassem suas impressões sobre o
mesmo e trabalhamos as temáticas a partir do que os próprios alunos disseram. Nada foi apresentado por nós
antes da apresentação do filme.
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Finalmente, perguntamos aos alunos se enquanto professores de História, que serão
em breve, trabalhariam esse filme em sala de aula com seus alunos. A maioria dos alunos
respondeu positivamente, mas um deles respondeu que não usaria a película Alexandria
(2009) em suas aulas, alegando que tal filme passa uma mensagem muito negativa e uma
visão unívoca sobre o cristianismo. Diante dessa argumentação, nossa posição foi pedir
que eles pensassem, inicialmente e sempre, na idade dos alunos quando fossem trabalhar
um filme histórico. Depois, sugerimos que não deixassem de trabalhar um filme apenas por
ele mostrar uma visão unilateral sobre um tema. Em geral, os filmes, e diversos outros
tipos de linguagens, têm a tendência de trazer visões carregadas de cargas ideológicas, o
que requer do professor sua problematização, despertando nos alunos atitudes críticoreflexivas próprias. A nosso ver, esta é uma das grandes tarefas do professor de história.
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POLÍTICA E PODER NA ANTIGUIDADE TARDIA:
A QUESTÃO DA CULTURA MATERIAL
Prof. Dr. Cláudio Umpierre Carlan1
UNIFAL-MG
claudiocarlan@yahoo.com.br
Graduanda Lalaine Rabêlo2
Bolsista FAPEMIG, UNIFAL-MG
la.rabelohistoria@hotmail.com
Resumo: o artigo começa com apresentação da moeda como documento histórico e a
organização da numismática como disciplina científica, no século XIX. Utilizamos
como modelo, as cunhagens realizadas em Roma, durante período conhecido como
Antiguidade Tardia, nos governos de Constantino I, o grande, e Valentiniano I.
Palavras-chave: Moeda - Política - Antiguidade Tardia
Abstract: this paper begins by presenting coins as historical document and numismatics
as a scientific discipline in the nineteenth century. We use coins minted in Rome as
models, particularly during the period known as Late Antiquity (under Constantine I the
Great and Valentinian I).
Key-words: Coin – Politics - Late Antiquity
1
Pós Doutorando em Arqueologia (Nepam - Unicamp), professor adjunto 2 de História Antiga da
Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), membro do grupo de pesquisa Arqueologia Histórica da
Unicamp.
2
Aluna do 7º período de História da Universidade Federal de Alfenas, Monitora de História Antiga
(Roma), Bolsista de Iniciação científica da Fapemig. Grupo de Pesquisa Península Ibérica: da
Antiguidade Tardia a Reconquista (Unifal-MG).
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Introdução
A numismática, ou ciência que estuda as moedas e medalhas, durante muitos
anos, foi analisada pelos historiadores sob o prisma de mercadoria, objeto de troca.
Procurou-se ligá-la com a História Social, ou seja, com os reflexos que a mutação
monetária produzia na sociedade ao nível de salários, custo de vida e os consequentes
comportamentos coletivos perante estes.
O estudioso da moeda se tem preocupado mais com o corpo econômico e social
que ela servia do que com o metal que a produzia e a informava. Estruturalmente este
ultrapassava os limites geográficos do poder que a emitia e definia ideologicamente não
só um povo, mas também a civilização a que este pertencia.
Nesse sentido, a numismática não está restrita aos museus, apesar de durante
décadas ficar “presa” a catálogos, e acervos guardados a sete chaves. Ela parte de um
interesse mais amplo, colaborando com diversas disciplinas, auxiliando nas mais
variadas pesquisas, tanto arqueológicas, quanto relacionadas com a Antigüidade
Clássica ou demais períodos históricos. Trata-se de um veículo propagandístico, com
mensagens, arte, religião (magias e superstições), ideologia e política, ideia defendida
por Eckhel, no século XVIII, considerado por muitos como fundador da numismática
como ciência.
Joseph Hilarius Eckhel, nasceu em Enzesfeld, nordeste da Áustria, em 1737.
Era filho do administrador do príncipe de Montecuccoli, nobre austríaco de origem
italiana. Teve uma forte formação jesuíta, entrando para ordem no ano de 1764. Enviado
para Florença, estudou e analisou, o tesouro numismático do cardeal Leopoldo de
Médici (1617 – 1675). Em 1775, retorna a Viena e assume a direção do Gabinete
Numismático Imperial, sendo nomeado professor de Antigüidade e de ciências
auxiliares da História (Universidade de Viena).
Eckhel utilizou um novo critério para organização dos acervos numismáticos
antigos. Não mais em ordem alfabética, como era o costume na época, mas sim em dois
departamentos distintos: moedas gregas, cunhadas em cidades gregas ou sobre sua
influência, a que são adicionadas regiões da Península Ibérica, Ásia e África, com base
no contato dessas civilizações com o Mar Mediterrâneo. E moedas romanas, cunhadas
sob a autoridade de Roma, em todo o império, seguindo ordem cronológica de
cunhagem.
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Ainda nesse período, escreveu Catalogus Musei Caesariensis, analisando a
coleção do Gabinete Numismático da Áustria Imperial, tendo como base científica seu
novo método. Sua obra mais importante, foi escrita entre 1792 – 1798, é a Doctrina
Numorum Veterum, Doutrina das Moedas Antigas, dividida em oito volumes e que
serviu de modelo para a organização dos gabinetes numismáticos europeus e
americanos.
Algo mais que um meio de comunicação, ou de exposição dos grandes mistérios
da mitologia, religião, poder, ideologia e política, a revolução da imagem inicia outros
caminhos. A exposição pública passa ser contemplada em salões e museus. Sendo a
moeda um objeto fabricado pela mão do homem, o metal utilizado para fabricação das
peças, como também as gravuras e legendas, trazem à luz a História Política e das Artes.
Já a circulação monetária, auxiliada por um trabalho metodológico de conhecimento das
técnicas de análise, são de ajuda fundamental para o estudo da História Econômica.
Nas amoedações mais antigas seu trabalho chega a ser artesanal. Certas emissões
possuem características próprias, como podemos notar nos modelos abaixo.
Coleção do Museu Histórico Nacional (MHN), Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre
Carlan, junho de 2004.
Descrição da Moeda
Legendas
Anverso: IMP C FL VAL CONSTANTINVS PF AVG
Reverso: IOVI CONSERVATORI AVGG
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Descrição da Iconografia
Anverso: busto radiado de Constantino I, o grande, á direita, apresentado como
Imperador, César e Augusto (IMP C ....AVG).
Reverso: representação de Júpiter nú, voltado para esquerda, lábaro na mão esuqerda,
sen do coroado pela Victoria (mão direita). Ao seus pés, esquerda do observador, uma
águia com uma coroa de louros no bico. Á direita, um prisioneiro amarrado, olha para
divindade. No exergo ou linha de terra, SNK, referente a segunda casa monetária de
Nicomédia. Cunhada entre os anos de 313 e 317. Alto reveros 12 horas, diâmetro de
1,92 mm.
Águia, um dos símbolos mais antigos representados pelo homem, em Roma
(Aquila Romana), identificava o poder e a coragem, sendo um dos símbolos mais fortes
do imperialismo, antigo ou moderno. Sua popularidade alcançou o apogeu com Carlos
Magno, que se auto denominou sucessor dos Imperadores Romanos.
Enquanto que a coroa, simboliza a realeza, o poder real e sua autoridade
máxima. A coroa de louros, vitória, triunfo sobre seus oponentes.
Nessas cunhagens, há sinais de pátina. Pátina era um composto químico,
geralmente de prata, que os artesãos monetários romanos adicionavam as peças de
bronze. No caso do bronze, a pátina serve como camada protetora, aumentando o valor
da moeda, porque se mantém fixa ao metal, não se soltando. Os químicos também
chamam de pátina as camadas esverdeadas (azinhavre), formada pela oxidação do
bronze em ação com a umidade.
Existem 12 variantes dessas moedas no MHN.
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Coleção do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan,
junho de 2004.
Descrição da Moeda
Mesma série da imagem anterior, apenas com algumas variações. No anverso,
cabeça de Constantino, não busto completo com manto imperial. No reverso, prisioneiro
não está representado, cunhagem foi realizada em Tessalônica, no mesmo período.
Azinhavre começa a cobrir a pátina da moeda. O furo localizado acima da cabeça de
Constantino, provavelmente, seu antigo dono usou como enfeite ou colar.
Essas cunhagens de uma mesma série, chamadas de variantes, pode aparentar
diferenças voluntárias ou involuntárias (CORVISIER: 1997, 162) graças a incidentes
das batidas. Esses incidentes são conhecidos por que na época da cunhagem, a peça
escapava do controle dos artesãos. Pode-se dizer que a pancada do martelo foi fraca na
tentativa de reduplicar a moeda, ou até mesmo que houve desinteresse dos responsáveis,
que poderiam estar precisando que aquela peça entrasse logo em circulação
Em Roma, a moeda unificava todo um território que estava submetido a um
mesmo poder político. Mais que a língua e a religião, era um dos poucos instrumentos
que permanecia imutável de uma parte a outra do Império. As variações correspondiam
às oficinas monetárias e ao chefe do governo. È possível considerá-la como uma
transmissora de uma ideologia e do poder político.
Nesse sentido, as amoedações emitiam mensagens do poder de um soberano.
Pelo metal precioso, ou não, em que estava lavrada, ela veiculava também a ideologia
comum a uma civilização, nesse caso a cristã ocidental ou a orientação política de um
governante. As suas legendas e tipos, refletiam a estrutura político - ideológica de um
povo ou de vários povos, como também retratavam o fato vivido, seu dia a dia, sua
conquistas.
Antiguidade Tardia: Modelo de Valentiniano I
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O período que denominamos Antiguidade Tardia foi estudado e descrito por
muito tempo por autores como Edward Gibbon, como uma época de ruína do Império
Romano do Ocidente. Porém, trata-se, a nosso ver, de um período de transição política e
cultural.
No que se refere à cultura, entendemos que esta possui conceitos múltiplos.
Assim, acreditamos que a cultura abrange todas as realizações materiais e os aspectos
espirituais de um povo. Ou seja, cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, seja
no plano concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos até idéias e crenças
(SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique: 2005, 85). Neste sentido,
entendemos que a religiosidade está inserida neste conceito, e que ela é inerente à
cultura.
Quando falamos sobre a religiosidade no Império Romano, percebemos que
esta está também intimamente ligada à política, algo que percebemos em amoedações
do período, como algumas do Imperador Valentiniano I que iremos discutir em
determinado momento deste artigo.
Neste sentido, nosso trabalho tem por objetivo analisar o período
valentiniano (364 – 375 d.C.) através da associação de fontes escritas e materiais, pois
entendemos que ambas se complementam, e no caso das fontes materiais – moedas – há
o ganho de se observar aspectos que podem passar despercebidos na análise das fontes
escritas, tais como a cultura, a religiosidade e a política do período.
Após a morte de Juliano, o apóstata, e com as batalhas contra o Império
Persa Sassânida, era preciso escolher um novo imperador com certa rapidez. Os
generais convocaram os líderes das diferentes legiões e as tropas da cavalaria e
debateram sobre a escolha de um novo governante. Segundo Amiano Marcelino, historiador e militar da época – optaram por Salútio, no entanto este recusou e deu como
justificativa suas enfermidades e velhice.
Depois de toda a agitação, escolheram Joviano, líder da guarda pessoal,
como o novo imperador. Este por sua vez, segundo Amiano Marcelino, era defensor da
religião cristã, e em ocasiões inclusive a honrava. Porém, ficou pouco tempo à frente da
administração do Império, menos de um ano quando veio a falecer.
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Após este fato, enquanto Valentiniano, tribuno da segunda escola de
escudeiros estava ausente, foi eleito imperador em Nicéia, contando com a unanimidade
das autoridades civis e militares.
Segundo Amiano Marcelino, quando Valentiniano chegou a Nicéia,
conhecendo a missão que deveria cumprir, por alguns presságios e sonhos repetitivos,
não quis aparecer no dia seguinte ou ser visto em público, pois tentava evitar o bissexto3
de fevereiro que, como se sabia, em ocasiões havia sido infausto, desafortunado para a
causa romana.
Após isso, Valentiniano é nomeado Augusto e recebe a púrpura e o
diadema. Porém, os soldados e as cortes insistiam que se elegesse um segundo
imperador. Segundo Amiano Marcelino, essa insistência se dava pela sorte dos últimos
imperadores – Constâncio, Juliano e Joviano - que em um período que compreende do
ano 361 ao 364 d.C., haviam morrido.
Assim, atendendo ao pedido por um segundo imperador, Valentiniano I
divide a administração do Império com seu irmão Valente, tendo ficado à frente do
Império Romano do Ocidente e seu irmão na parte oriental. Algo que nos chama
atenção é a preocupação de Temístio por Valente e Valentiniano serem irmãos.
Sendo irmãos haveria grande êxito ou grande guerra. Outro ponto que
chama a atenção é que nem Joviano nem Valentiniano procedem do corpo bélico e
ambos não pertenciam a uma família dinástica (GONÇALVES: 2012, 63). Joviano
permaneceu pouco tempo no poder, menos de um ano, já Valentiniano firmou uma nova
dinastia, ou seja, uma dinastia valentiniana que se prolongou por volta de 28 anos, ou
seja, de 364 d.C. com a ascensão de Valentiniano até o ano de 392 com a morte de seu
filho, Valentiniano II (392).
Dentre as realizações de Valentiniano I, podemos citar o desenvolvimento
de uma eficaz atividade bélica contra os alamanos, aos quais expulsou da Gália.
Valentiniano I é considerado por alguns estudiosos como um dos últimos imperadores
de importância do Império Romano do Ocidente. Sua prioridade era a defesa das
fronteiras já que o Império passava por constantes invasões bárbaras. No entanto,
devemos destacar que o exército romano possuía contingentes não romanos, ou seja,
3
Ainda era utilizado o calendário Juliano, e não gregoriano como atualmente.
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bárbaros4, desfazendo assim a concepção negativa que alguns escritores e historiadores
nos trouxeram ao longo da história, ou seja, uma generalização de que estes povos eram
violentos, invasores e os responsáveis pela decadência do Império em sua totalidade.
Valentiniano era católico, porém tolerava os pagãos e a maioria dos
heréticos e só intervinha na política da Igreja quando necessário para que se mantivesse
a ordem pública. Autores como Gibbon e Amiano Marcelino assinalam o caráter
enérgico do Imperador, no entanto destacam a boa administração do mesmo e seu
esforço em manter o Império em relativa estabilidade.
Em 375 d.C., o Imperador deixou a Gália para comandar represálias contra
invasores na Panônia, sua terra natal. Em 17 de novembro sofreu um ataque apoplético e
veio a falecer.
A Reestruturação Política do Império no século IV
O período que antecede a administração de Valentiniano foi também de
grandes transformações. No século III e IV, após a Anarquia Militar, houveram grandes
reformas empreendidas por imperadores como Diocleciano e Constantino.
Em sua administração, Diocleciano (244 – 311 d.C.), iniciou um dos
programas de reformas mais importantes da História Romana. O Estado foi
transformado em uma monarquia absoluta, em que o imperador possuía a autoridade
máxima. Diocleciano teve como modelo, as monarquias orientais, nas quais tudo o que
cercava o rei era considerado sagrado. Diocleciano instala a diarquia (governo de dois)
ao lado de Maximiano (285/286-305), amigo pessoal e colega de armas.
O sistema de diarquia é ampliado para tetrarquia. Os tetrarcas tentavam
demonstrar à população que os tempos do Principado5, ou seja, do apogeu do Império,
estavam de volta.
4
Usamos o termo bárbaro não com sentido pejorativo. Muitas vezes eles são nomeados como povos
germânicos, porém, para os romanos todos os povos não romanos eram bárbaros, então decidimos utilizar
este termo para englobar todos os povos não romanos, ou seja, que não pertenciam ao Império.
5
O Principado tem início com o governo de Otávio Augusto em 27 a. C., considerado como o apogeu do
Império Romano.
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Nesse período, foram organizadas três dinastias no império romano: a
constantiniana, a valentiniana e a teodosiana. Ambas ligadas entre si, através do grau de
parentesco.
O século IV e a Numismática
Por meio das fontes numismáticas, podemos observar alguns aspectos do
período, além da política. Representada pela figura do Imperador há também a
religiosidade, dentre outros.
Através da imagem abaixo, observamos uma mescla de elementos cristãos e
pagãos, como a deusa Niké (Vitória) da tradição pagã grega, coroando Valentiniano I. O
Imperador segura com a mão direita o estandarte, o vexillum que representa a força e a
autoridade suprema, que possui ainda o sinal de Constantino PX, iniciais da palavra
Cristo em grego (Crismon ou Quirô). Observamos ainda ao seu lado, a cruz cristã.
Fonte: Museu de Berlim, sólidus constantinianus, cunhado em Antioquia.
Ao seu lado direito a cruz cristã, e no esquerdo a deusa Vitória. Através
destas observações, percebemos que mesmo o cristianismo conquistando vários adeptos
no Império, inclusive vários imperadores ao longo dos anos, não há extinção dos
elementos pagãos, havendo assim um sincretismo religioso.
Estes elementos sobrevivem em conjunto à antiga cultura pagã, e esta ainda
sobrevive por meio de símbolos e costumes adquiridos ao longo dos séculos. Ou seja,
não há uma total negação da ao antigo culto, o que há é uma assimilação.
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Através do estudo das fontes escritas e materiais, percebemos vários
aspectos da sociedade romana que estava em transformação, neste caso a religiosidade.
Outro ponto importante que devemos abordar é a inclusão de povos
bárbaros no exército romano. Alguns indivíduos atingiam altos cargos no exército,
chegando a participar da proclamação de Imperadores como é o caso de Victor, Arinteo,
Nevitta e Dagalaifo.
Amiano Marcelino diz em um de seus livros que, após a morte de Juliano,
se reuniram os generais e convocaram os líderes das diferentes legiões e das tropas da
cavalaria que debateram a cerca da eleição do novo imperador. Porém, estavam
divididos, suas opiniões eram opostas, pois Arinteo (germano), Victor e os demais que
pertenciam à corte de Constâncio tentavam eleger alguém de seu bando. Contrariamente
Nevita, Dagalaifo (ambos germanos) e os nobres galos buscavam algum candidato
similar em seu próprio grupo. No entanto, é preciso ressaltar que os indivíduos
pertencentes a povos bárbaros não chegaram a alcançar cargos na administração
imperial.
Devemos observar que os elementos bárbaros e romanos conviviam, e
consequentemente, há uma troca. Peter Burke ressalta que cultura é uma palavra
imprecisa, com muitas definições concorrentes, porém diz que sua definição é a de um
“sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas
(apresentações, objetos artesanais) em que eles são impressos ou encarnados”.
(BURKE: 2010, 11).
Deste modo, entendemos que se há interação entre romanos e bárbaros,
consequentemente há uma contribuição para a cultura romana, pois há atitudes e valores
compartilhados entre os diferentes povos.
Assim, percebemos um conjunto de elementos que contribuíram para uma
nova forma do Império, uma transição da antiguidade para o período medieval muitas
vezes nomeado pejorativamente como a idade das trevas. Entendemos que em todos os
períodos há uma contribuição em vários sentidos.
Devemos lembrar também que, mesmo com a queda do Império Romano do
Ocidente, há uma continuidade do Império Romano do Oriente, preservando assim a
cultura romana, portanto não há uma extinção, a ruína total da mesma.
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Considerações Finais
A antiguidade tardia foi um período de transformações. Na política, com
estruturação após a Anarquia Militar, promovida por Diocleciano e Constantino, este
último, instituindo a sucessão familiar para garantir estabilidade política.
Culturalmente, no campo da religiosidade, há o aumento de adeptos do
cristianismo, porém não deixando de lado os elementos pagãos, denotando assim, um
sincretismo religioso. Ainda neste sentido, a agregação de povos bárbaros na sociedade
romana participando do exército, da política e contribuindo também nos aspectos
culturais que a nosso ver, é conseqüência da convivência entre estes povos.
Em nossos estudos, percebemos a importância das moedas como fonte para
análise deste período. A iconografia pode nos trazer várias informações relevantes, e só
têm a contribuir para o estudo dos vários períodos da história. As imagens podem nos
trazer aspectos interessantes da cultura, não somente a romana, mas também a nossa que
absorveu vários costumes romanos. Elas também expressam sentimentos, uma ideologia
e legitima o poder de um determinado governante.
Deste modo, entendemos que a importância de estudá-las e tomá-las como
fontes é algo enriquecedor e nos traz informações que contribuem para o entendimento
das sociedades antigas, e consequentemente o entendimento da nossa cultura e nossa
sociedade.
Agradecimentos
Aos amigos e colegas do Departamento de História da UNB, em especial a Henrique
Mondanez de Sant´Anna, pela oportunidades de trocarmos ideias: a Pedro Paulo Funari,
Gabriele Cornelli, Margarida Maria de Carvalho, Maria Beatriz Florenzano, Ciro
Flamarion Santana Cardoso, Vera Lúcia Tostes, Eliane Ney, Rejane Vieira.
A responsabilidade pelas ideias restringem-se aos autores.
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Revista Chrônidas
Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas
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Fontes Impressas
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CARLAN, Cláudio Umpierre. FUNARI, Pedro Paulo. Moedas: a numismática e o
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