UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E DO TRABALHO
ARLEY ANDRIOLO
A transformação do mundo em pintura:
estudos em psicologia social do fenômeno das imagens
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo como parte dos requisitos para
obtenção do título de Livre-Docência
em Psicologia.
São Paulo
2014
ARLEY ANDRIOLO
A transformação do mundo em pintura:
estudos em psicologia social do fenômeno das imagens
(Versão original)
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo como parte dos requisitos para
obtenção do título de Livre-Docência
em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia
Social
São Paulo
2014
ANDRIOLO, A. A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social
do fenômeno das imagens. 2014. 212 p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
BANCA EXAMINADORA
Prof. _____________________________________
Instituição: _______________________
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________
Prof. _____________________________________
Instituição: _______________________
Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________
Prof. _____________________________________
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Julgamento: _______________________________
Assinatura: _______________________
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Tese defendida em: __/__/____
Para
Adriana e Matheus
Meus dois amores
Resumo
ANDRIOLO, A. A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social
do fenômeno das imagens. 2014. 212 p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
A tese trata de imagens na vida social. Principalmente, tenta circunscrever o trabalho de
pintores cuja experiência estabelece relações com o mundo das viagens, a representação
da natureza e a iconografia de ambientes urbanos. Está dividida em duas partes. A
primeira explora as relações entre percepção e história, as quais são apresentadas por
meio da discussão em torno do desenvolvimento do conceito de paisagem nas artes
visuais e suas implicações na própria sociedade, de modo a identificar o significado das
imagens enquanto mediações entre a sociedade e a natureza. O ponto de vista teórico
surge do material visual e refere-se às possibilidades de uma fenomenologia empírica,
particularmente do conceito de engajamento. A segunda parte apresenta o estudo de
imagens em algumas comunidades de artistas, sobretudo, de cidades turísticas
brasileiras onde a pintura é uma atividade relevante: Ouro Preto e Paraty. A área de
investigação foi elaborada em torno de três linhas principais concernentes às relações da
psicologia com as imagens: imagens como ilustração do conhecimento psicológico;
imagens como documentos públicos; e imagens como método visual. Esta conjunção
convida a refletir sobre a interpretação das imagens na vida social. Uma metodologia
particular emerge do estudo do fenômeno da imagem em psicologia social. Primeiro,
em um campo interdisciplinar construído na pesquisa entre a história da percepção e a
experiência estética. Isto é, trazendo para o debate psicossocial historiadores e estetas. O
método conduz à compreensão daquelas imagens baseada no conceito de mimesis e sua
contribuição para a psicologia social atual. Ao final, as principais categorias da
percepção da paisagem e da natureza revelam a experiência social do pitoresco na
história recente do Brasil. Como um todo, a tese propõe uma abordagem interdisciplinar
para contribuir com o diálogo entre a psicologia e as humanidades na compreensão da
experiência social fundada nos fenômenos imagéticos.
Palavras-chave: Psicologia social da imagem; Psicologia social da arte; Psicologia e
estética; Imagem e história; Imaginário brasileiro; Arte e natureza.
Abstract
ANDRIOLO, A. The transformation of the world into painting: studies in social
psychology of image phenomenon. 2014. 212 p. Thesis (Livre-Docência) – Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
The thesis talks about images in social life. Mostly, I try to circumscribe the work of
painters whose experiences established relations with the world of traveling, nature
representation and the iconography of urban environments. It’s organized in two parts.
The first one explores the relations between perception and history. They are presented
in a discussion around the development of the landscape concept in visual arts and its
implications with the society itself. This is in order to point out the significance of
images as mediation objects between society and nature. The theoretical point of view
arises from this visual material and refers to the possibilities of an empirical
phenomenology, particularly the concept of engagement. The second part follows the
study of images in some artists communities, mostly the touristic cities in Brazil where
painting activity is relevant: Ouro Preto and Paraty. The investigation area has been
built around three main lines concerning the relations from psychology to images:
images as illustrations of psychological knowledge; images as public documents; and
images as a visual method. This conjunction invites for a reflection about the
interpretation of images in social life. A particular methodology emerges from the study
of image phenomenon in social psychology. First of all, it respects an interdisciplinary
field which is built during the research between the history of perception and the
aesthetic experience. That means it brings to social psychological debates historians and
aestheticians. The method leads to the understanding of those images based on the
concept of mimesis, and its contributions for social psychology nowadays. In the end the
main categories of landscape and nature perception reveal the social experience of
picturesque in Brazilian recent history. As a whole the thesis proposes an
interdisciplinary approach to contribute for a dialogue between psychology and
humanities to understanding of social experience based on images phenomena.
Keywords: Social psychology of image; Social psychology of art; Psychology and
aesthetics; Image and history; Brazilian imaginary; Art and nature.
Agradecimentos
Todo agradecimento poderia começar com as desculpas àqueles cuja contribuição ao
desenvolvimento do trabalho não foi diretamente mencionada. Assim iniciando, embora
não repare o esquecimento de nomes importantes, deixo-lhes meus sinceros
agradecimentos. A gratidão primeira volta-se para João Frayze-Pereira a quem devo
minha trajetória na pesquisa em psicologia e estética. Leny Sato forneceu o estímulo
decisivo à finalização deste trabalho na forma de livre-docência. Aos colegas do
Instituto de Psicologia da USP, particularmente, aos parceiros de cursos e projetos do
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, aos quais agradeço coletivamente. O
professor Jacques Ibanez-Bueno, da Université de Savoie (Annecy, França), possibilitou
uma série de conversas através dos seminários do Pôle Image et Information e do
Master Communication et Hypermédia, os quais foram para mim momentos muito
profícuos de diálogo com professores e alunos daquela instituição, resultando em um
amadurecimento dos temas desta pesquisa. Aos pesquisadores do Laboratório de
Estudos em Psicologia da Arte que compartilharam comigo grande parte das questões
agora impressas; especialmente Danilo Sergio Ide, Lígia Ungaretti Jesus e Maíra Clini
contribuíram de maneira decisiva para na finalização deste trabalho. À Joaci Pereira
Furtado pela leitura e comentário cuidadosos da primeira versão. Às secretárias do
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Marinalva Almeida Santos Gil,
Rosângela Serikaku Sigaki, Selma Aparecida Rezzetti Loyola. À Biblioteca do Instituto
de Psicologia / USP. Diretamente à FAPESP pelo financiamento de parte destes
estudos, assim como à CAPES e ao CNPQ pelos auxílios aos nossos projetos. Aos
editores e publicações que divulgaram os primeiros escritos desta pesquisa. Todos os
temas pesquisados foram tratados nos cursos da pós-graduação em Psicologia Social
(IP/USP), sobretudo, na disciplina “Arte e percepção: o turista, o artista, o viajante”.
Sou grato aos alunos pelos produtivos debates. Um agradecimento especial aos amigos
Eliane e Fernando Follador, por toda ajuda. Sem a compreensão e colaboração de minha
esposa Adriana e do filho Matheus, nada disso seria levado a cabo.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
1
Sumário
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................... 3
1.
O FENÔMENO DAS IMAGENS NO CAMPO DA PSICOLOGIA SOCIAL..................................... 5
PARTE 1. PERCEPÇÃO E HISTÓRIA ..........................................................................................27
2.
A PINTURA É UM TRAÇO DE NOSSA RELAÇÃO HISTÓRICA COM O MUNDO ....................27
MERLEAU-PONTY E PANOFSKY .............................................................................................................. 27
PERCEPÇÃO E HISTÓRIA .......................................................................................................................... 28
A PERSPECTIVA COMO FORMA SIMBÓLICA .............................................................................................. 30
O ESPAÇO É A EXPERIÊNCIA HUMANA..................................................................................................... 32
A EMERGÊNCIA DA VIDA SOCIAL EM UM PROCESSO TEMPORAL .............................................................. 34
3.
IMAGEM DA NATUREZA, NATUREZA DA IMAGEM .................................................................39
UM PASSEIO DE DIDEROT ....................................................................................................................... 39
IMAGEM DA PAISAGEM E REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA ..................................................................... 40
A EXPERIÊNCIA DA NATUREZA ............................................................................................................... 43
NATUREZA DA IMAGEM .......................................................................................................................... 46
NATUREZA, IMAGEM E MIMESIS.............................................................................................................. 50
4.
METAMORFOSES DO OLHAR ........................................................................................................54
O ESPAÇO, O OUTRO, O EU ...................................................................................................................... 54
O OLHO E AS VIAGENS NO SÉCULO XVIII ............................................................................................... 55
MÉTODO DE VIAJAR COM ARTE .............................................................................................................. 58
METAMORFOSES DO OLHAR ................................................................................................................... 62
OLHAR É VIAJAR NO TEMPO .................................................................................................................... 66
A VISÃO DA PAISAGEM SUSCITA O SENSO POÉTICO ................................................................................. 67
5.
A IMAGINAÇÃO DA NATUREZA ....................................................................................................73
MORFOLOGIA DA NATUREZA ................................................................................................................. 73
PAISAGENS E NUVENS ............................................................................................................................. 77
MONTANHA E CONSCIÊNCIA ................................................................................................................... 83
A FENOMENOLOGIA E A IMAGINAÇÃO DA NATUREZA ............................................................................. 88
PARTE 2. IMAGEM E VIDA SOCIAL...........................................................................................95
6.
COMUNIDADES DE ARTISTAS: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL ....................................95
CIRCUNDANDO UM FENÔMENO ............................................................................................................... 95
COMUNIDADES DE ARTISTAS: BREVE HISTÓRIA ...................................................................................... 97
SIGNIFICADOS DO EXÍLIO DOS MODERNISTAS ....................................................................................... 102
COMUNIDADES DE ARTISTAS NO BRASIL .............................................................................................. 103
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
2
SÍNTESE DE SIGNIFICADOS DAS COMUNIDADES DO BRASIL................................................................... 106
7.
IMAGEM PICTÓRICA DA CIDADE HISTÓRICA ........................................................................110
OUTRO PRETO, “CIDADE DE ARTE” ....................................................................................................... 110
GUIGNARD NOS ENSINOU A VER OURO PRETO ...................................................................................... 112
ABERTURA PARA A PERCEPÇÃO ARTÍSTICA DE OURO PRETO ................................................................ 113
GUIGNARD E A CIDADE HISTÓRICA TURÍSTICA ...................................................................................... 115
IMAGENS ARTÍSTICAS E IMAGENS TURÍSTICAS ...................................................................................... 117
8.
IMAGENS DE ARTE EM PARATY .................................................................................................124
VILA DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS DE PARATY ........................................................................ 124
FORMAS SOCIAIS E IMAGENS DE ARTE .................................................................................................. 126
PROCESSO HISTÓRICO E IMAGENS PICTÓRICAS ..................................................................................... 129
HISTORICIDADE DAS CATEGORIAS ESTÉTICAS NAS IMAGENS DE ARTE .................................................. 131
CATEGORIAS DAS IMAGENS DE PARATY ............................................................................................... 135
O JOGO DA MIMESIS .............................................................................................................................. 142
9.
SOBREVIVÊNCIA DA PAISAGEM NA PINTURA ........................................................................146
IMAGEM E PAISAGEM ............................................................................................................................ 146
PAISAGEM, PINTURA E HISTÓRIA .......................................................................................................... 148
TURISMO, HISTÓRIA E ARTE NO BRASIL ................................................................................................ 153
IMAGEM PICTÓRICA DAS CIDADES HISTÓRICAS BRASILEIRAS ............................................................... 155
QUE DIZEM OS PINTORES SOBRE A PAISAGEM? ..................................................................................... 162
AS CATEGORIAS DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E OS SIGNIFICADOS DAS IMAGENS .................................... 165
EXPERIÊNCIA SOCIAL DO PITORESCO .................................................................................................... 170
10.
A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO EM PINTURA .....................................................................175
IMAGEM E IMITAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL....................................................................................... 175
A MIMESIS ............................................................................................................................................ 177
O ENGAJAMENTO .................................................................................................................................. 184
A TRANSFORMAÇÃO ............................................................................................................................. 189
BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................200
NOTA SOBRE OS CAPÍTULOS .........................................................................................................................212
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Apresentação
Nesta coletânea de escritos, encontra-se uma discussão sobre as imagens,
particularmente a pintura e sua permanência na vida social contemporânea. Quando
comecei a reunir o material para compor esta tese, estava trabalhando sobre quatro
conjuntos de fontes visuais muito distintos.
Primeiro, em decorrência de meus estudos de doutorado, destrinchava o vasto
material das chamadas obras “brutas” ou “incomuns”, em desenhos, esculturas, pinturas,
entre outros objetos, originário de pessoas humildes, sem vínculos com o campo
artístico. Ao mesmo tempo, recolhia informações sobre as artes populares, seja as mais
inventivas, seja as mais ingênuas. O segundo conjunto compunha-se de narrativas de
viagens e imagens resultantes do deslocamento de artistas, sobretudo durante o século
XIX europeu, quando “ir embora” tornou-se prática corrente entre os inconformados
com as regras acadêmicas. O terceiro conjunto versava sobre a produção recente de
artistas moradores de cidades turísticas, cujo trabalho corre à margem do campo
artístico hegemônico, não mais pela postura crítica desses artistas, mas, sobretudo, pela
desconsideração com a qual são tratados pela crítica em geral. Por fim, havia também o
interesse pelos remanescentes arquitetônicos, pictóricos e escultóricos da América
portuguesa, os quais eram referidos pela categoria de “barroco”, identificados nos textos
de viajantes, dentre os quais muitos intelectuais que forjaram uma identidade e um
imaginário sobre o Brasil.
Procedi ao recorte e seleção dessa gama muito difusa de imagens. O recorte mais
preciso foi feito sobre as imagens da arte bruta e incomum, tema sobre o qual me
detivera em meu doutorado e que se constitui em corpus muito particular, no campo da
psicologia, compreendido entre as “imagens do inconsciente”. No que diz respeito ao
barroco, afora algumas indagações, não dispunha de reflexões que pudessem contribuir
para essa área de estudos, carecendo de algum escrito especificamente dedicado à
psicossociologia da percepção daquelas obras.
A seleção circunscreveu os dois conjuntos restantes, as imagens relacionadas à
experiência da viagem, o problema da representação da natureza e a iconografia das
cidades turísticas brasileiras. Alguns tópicos foram publicados na forma de artigos,
outros redigidos para aulas e seminários; em nota ao final desta coletânea, o leitor
encontrará a súmula da origem dos capítulos.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A tese foi organizada em duas partes. A primeira circunscreve as relações entre
percepção e história e fornece subsídios teóricos ao desenvolvimento da pesquisa
empírica e à concepção fenomenológica adotada – sobretudo em torno do conceito de
engajamento. Na segunda reúne os estudos das imagens nas comunidades de artistas,
particularmente nas cidades turísticas brasileiras, nas quais a atividade pictórica é
relevante: Ouro Preto e Paraty. Ao longo do texto, discute-se o lugar das categorias
pertinentes à percepção das paisagens, da natureza e da própria imagem, ressaltando a
experiência social do pitoresco.
Esta discussão tem sido construída na tematização das três linhas principais em
torno das quais a psicologia se relaciona com as imagens: como ilustração do
conhecimento psicológico; como documento público; e como método visual. Nessa
conjunção, solicita-se uma discussão acerca da interpretação das imagens na vida social.
Minha proposição frente ao fenômeno da imagem na psicologia social procurou
circunscrever um campo interdisciplinar entre a história da percepção e a experiência
estética. De um lado, a elaboração teórica reúne historiadores (Fabris, 2006; Meneses,
2003; Crary, 1988; Lowe, 1986), de outro, os estetas (Frayze-Pereira, 2005; Costa
Lima, 1981; Berleant, 1970), de modo a tornar a imagem compreensível por meio dos
conceitos de mimesis, engajamento e transformação. A partir daí, estabelecem-se os
diálogos com estudos nas interfaces da psicologia com os estudos da vida social das
imagens (Mitchell, 1986; Baitello, 2005).
Esse assunto é mais que recorrente na pesquisa em artes, para não dizer antiquado.
Não obstante, minha dedicação a esse material difere de outras investigações por tentar
situar o debate no campo da psicologia social. Nos percursos trilhados, configurou-se
um campo de explorações a indicar algumas possibilidades de leitura, quiçá uma
contribuição à compreensão das imagens na vida social, por meio da qual o domínio da
imagem torna-se o estudo dos processos sociais nos quais a imagem não é apenas uma
coisa física, mas o movimento de mediação entre o objeto icônico, a experiência
corporal e a imagem mental: a transformação do mundo em imagem nos processos
políticos e culturais.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
1. O fenômeno das imagens no campo da psicologia social
Senhor, não mereço isso.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxestes-me a São Francisco
e me fazeis vosso escravo.
Não entrarei, Senhor, no templo,
seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins
são matéria de muito amar.
Dai-me, Senhor, a só beleza
destes ornatos. E não a alma.
Pressente-se dor de homem,
paralela à das cinco chagas.
Mas entro e, Senhor, me perco
na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
por que esta nova cilada?
Senhor, os púlpitos mudos
entretanto me sorriem.
Mais que vossa igreja, esta
sabe a voz de me embalar.
Perdão, Senhor, por não amar-vos.
(Carlos Drummond de Andrade, “São Francisco de Assis”)
[1]
Natal de 2011, um cartão de votos circulou pela internet, desejando um bom ano
novo aos amigos do Inke Ateliê. A imagem, divulgada por endereço eletrônico,
apresentava a reprodução de uma pintura em aquarela sobre papel, realizada pelo artista
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Ricardo Inke, contendo uma vista da cidade de Ouro Preto, particularmente uma
paisagem de horizonte montanhoso, com destaque para a Igreja de São Francisco de
Assis. O adro ocupa a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre
pequena elevação, ladeado por ruelas e poucas casas, em perspectiva levemente movida
para a direita do observador, podendo-se visualizar a imponente fachada e algumas
paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas
Gerais. Ao fundo, o Pico do Itacolomy. Trata-se de uma imagem digital que permite
apenas entrever ou imaginar a textura do papel, sobre o qual as cores da aquarela
ocultam parcialmente as linhas do lápis do esboço original.
Ricardo Inke começou a trabalhar com aquarela em 1997, primeiramente
consultando publicações, visitando aquarelistas, dentre os quais dois cujos ateliês em
São Paulo foram sua escola. Mais recentemente, participou de workshops na Espanha.
Conheceu Paraty em 2000, “o único lugar do Brasil que se poderia viver de arte”. Esta
afirmação reproduzia a frase de uma amiga, antiga moradora do local, com uma ligeira
mudança: ela dizia “onde se pode sobreviver”.
Ricardo morava em São Bento do Sapucaí (SP), com a esposa Marília e os filhos.
Desde 2004, a família habita Paraty, ela também pinta, ambos dividem o ateliê no
centro histórico e a profissão de guia de turismo. São Bento não tinha ambiente para a
produção e comercialização de arte. Tendo percorrido as antigas cidades da mineração
do Estado de Minas Gerais – Tiradentes, Ouro Preto e Diamantina –, concluiu que a
experiência da convivência com outros artistas somente seria promissora em Paraty. O
aquarelista formara-se em engenharia civil, seguiu a profissão por cinco anos, morou em
São Paulo, Piracicaba e Taubaté. Foi ser apicultor em São Bento do Sapucaí, onde ficou
vinte anos. Com a esposa, abriu um restaurante, mas as finanças não acompanharam as
necessidades da família.
O artista trabalha unicamente com aquarela, ama a imprevisibilidade dessa
técnica: “Você vai fazendo e você é um participante, não é exatamente o autor daquele
trabalho, você é um coparticipante.” A água, a fluidez, a sobreposição de cores, os
aguados são “mágicos”. A temática principal é a paisagem local, tanto pelo interesse
pessoal quanto pelo aspecto comercial. Muitos artistas de Paraty não hesitam em
afirmar que seus trabalhos destinam-se a públicos específicos, sobretudo o turista; não
são arautos da autonomia. Por um lado, movido pelo trabalho de aquarelista, o tema
torna-se quase irrelevante; seleciona as paisagens e marinas conforme o interesse do
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
público. Por outro, afirma-se como ilustrador, pois, não obstante a preferência pelos
jogos da tinta, a escolha do tema participa de todo o processo.
A realização pode ser tanto sobre o motivo quanto sobre uma fotografia, no ateliê,
sob os olhos do cliente. Faz um esboço, desenha a imagem pretendida, de modo pouco
detalhado, dispõe os volumes, a composição. Sobre os traços no papel, as tintas
começam a ser colocadas, o pigmento cobre o desenho inicial, mas deixa indícios. Inke
considera que o público brasileiro não valoriza grandemente os trabalhos em aquarela,
como se fossem esboços, mas que os estrangeiros, sobretudo europeus, apreciam e
consomem mais. Para fomentar o interesse e conhecimento dessa técnica, tem se
dedicado anualmente à organização dos Encontros Internacionais de Aquarelistas,
iniciados em 2009.
[2]
A aquarela sobre papel e a tela de meu computador contêm uma mesma imagem,
sobre suportes diferentes. É estranho reencontrar esta imagem, anos depois de ter visto
pela primeira vez essa igreja em minhas viagens a Minas, de um ponto de vista muito
semelhante. Seria de fato a mesma imagem aquela vista por Inke e a que eu vira?
A igreja de São Francisco de Assis é um monumento nacional, tanto para a
história da arte quanto para a do Brasil. Uma vez construído, o templo tornou-se parte
integrante do espaço urbano de Vila Rica e objeto da percepção de tantos quantos foram
os habitantes locais. A afirmação não é diretamente válida para todos os relatos de
viajantes. Retrocedendo em minhas anotações, o sábio Auguste de Saint-Hilaire (17791853) passou desinteressado pelo templo em sua viagem de 1816; deteve-se nas duas
matrizes. Foi o aspecto urbano que lhe atraiu a atenção, as casas situadas nas encostas
cercadas de vegetação possibilitavam-lhe pontos de vista “variados” e “pitorescos”, não
obstante as cores dos telhados e residências em meio às nuvens conferissem à paisagem
um “aspecto sombrio e melancólico”. As torres das igrejas no alto dos morros lhe
chamam a atenção, assim como a quantidade de cerca de dezesseis capelas e duas
igrejas paroquiais (Saint-Hilaire, 1830/1975, p. 70).
Nas andanças do zoólogo Hermann Burmeister (1807-1892) o edifício foi bem
notado: além de percebido pelo viajante, recebeu dele um registro em bico de pena, de
um ponto de vista muito próximo ao de Ricardo Inke, com o observador a maior
distância: uma paisagem de horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de
Assis, o adro ocupando a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
pequena elevação, em perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas
paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas
Gerais – ao fundo, o Pico do Itacolomy. Na gravura, inserida no livro Viagem ao Brasil
através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (Burmeister, 1853/1980), o
templo ocupa porção menor da metade esquerda da imagem, deixando espaço à frente
do adro (e abaixo da imagem) para a inserção de uma coluna, provável pelourinho,
inexistente hoje. Na edição, ocorreu uma troca de nomes e o edifício foi chamado de
Igreja de São Francisco de Paula: “a graciosa e elegante igreja”. O viajante a considerou
melhor que as duas matrizes: “desenhei-a como sendo o modelo do mais elegante estilo
brasileiro e deixo de descrever seus detalhes porque o desenho fala por si” (p. 225).
Marc Ferrez (1843-1923) realizou uma fotografia daquele mesmo ponto de vista,
por volta de 1880 (col. Instituto Moreira Salles). Não há identidade entre os ambientes
desenhado e fotografado, pois modificações são notáveis, sobretudo no entorno da
edificação. Poucas décadas depois de Burmeister, o fotógrafo registrou um ambiente
reformulado, sem a mureta que circundava o adro, agora sem calçamento. Mais afastado
do objeto, no amplo espaço à esquerda do observador e à frente do templo, alinha-se o
longo telhado do mercado, o movimento de cavalos e mercadores retira da igreja a
centralidade no espaço da fotografia. Além disso, para aquele século, operava-se uma
transformação radical dos sentidos, como sintetizou Annateresa Fabris (2006, p. 164),
“uma vez que o olho adquire primazia sobre a mão, determinando uma nova relação
entre efeito estético e temporalidade”; a fotografia automatiza a representação e a
reprodução, reconfigurando o estatuto social da imagem.
[3]
O primeiro descritivo bem apurado da documentação histórica de Capela da
Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto foi publicado pelo cônego
Raimundo Trindade (1951), fonte muito citada nas décadas seguintes ao mesmo tempo
em que foi acrescida de novos achados documentais. O trabalho de transcrição de
documentos pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi marcante na
compreensão historiográfica da arquitetura setecentista. O Arquivo Público Mineiro, em
Belo Horizonte, por exemplo, possibilitou os apontamentos documentais de Paulo
Krüger Mourão (reunidos em livro em 1964), bem como a edição da revista Barroco,
desde 1969, patrocinada pelo Centro de Estudos Mineiros e promovida pela
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Universidade Federal de Minas Gerais, fundada e dirigida por Affonso Ávila (19282012).
O ajuste e início das obras da Capela de São Francisco de Assis datam de 1766,
embora eventos anteriores houvessem definido o local e outros elementos da construção
(Mourão, 1986, p. 117). A obra foi arrematada por Domingos Moreira de Oliveira e o
projeto foi atribuído a Antônio Francisco Lisboa, dito Aleijadinho, mas como não há
documento que mencione o autor do risco, todo um debate foi travado na metade do
século passado sobre essa questão. Augusto de Lima Júnior (1996) considerava Cláudio
Manuel da Costa o verdadeiro autor do projeto. Seja qual for o autor, o resultado
arquitetônico foi o bombeamento da fachada, as torres redondas, as cúpulas encimadas
por pináculos. O frontão foi arrematado em volutas, o centro é encimado pela cruz
patriarcal. As colunas em pedra delimitam a entrada, centralizada pela portada e
medalhão em rica escultura em pedra sabão.
Em 1771, o templo foi consagrado e a imagem do orago, depositada no altar. No
ano seguinte, Antônio Francisco acertou a realização dos púlpitos e obras arquitetônicas
foram contratadas com Henrique Gomes de Brito e Luís Pinheiro Lobo. Em 1773,
Gonçalves Neves fez os quadros da capela-mor, enquanto o douramento ficou a cargo
de João Batista Figueiredo. Uma década depois do início da obra, o corpo da igreja
recebeu a bênção. As obras prolongaram-se pelas décadas de 1780 e 1790, nas quais
aparecem diversos nomes de oficiais. No âmbito da pintura, têm-se Manuel Pereira de
Carvalho com o forro da sacristia e Francisco Xavier Gonçalves em quadros desse
ambiente. Os trabalhos no edifício prolongam-se no novo século, por exemplo, com
altares colaterais.
Entremeios, Antônio Francisco Lisboa recebeu pelo risco da portada (1775), cujo
remate coube a José Antônio de Brito, e pela realização do lavabo da sacristia (17771779), proventos estes que teriam vindo dos sacristãos. Em outubro de 1790, definiu-se
com o mestre o preço do novo retábulo do altar-mor. Quanto ao medalhão do
frontispício, de modo geral, é atribuído ao Aleijadinho, no entanto, sem dispor-se de
documentos comprobatórios (Mourão, 1986, p. 117).
As pinturas de Manuel da Costa Ataíde para o forro da nave da São Francisco
foram iniciadas por volta de 1801 e 1802 (Menezes, 1965, p. 15), representando a
Assunção da Virgem, em imagem de Nossa Senhora da Porciúncula, e púlpitos com os
doutores da Igreja (Santo Agostinho, São Jerônimo, São Gregório e Santo Ambrósio).
Também pintou quatro painéis, dedicados a São Pedro, Santa Margarida de Corona, São
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Francisco agonizante e Santa Clara, e os azulejos do presbitério com episódios da vida
de Abraão. Além disso, Ataíde encarnou imagens e outros serviços do templo, entre
1805 e 1812.
[4]
De volta a minha viagem pessoal, tendo diante de mim três imagens
representando aquele edifício, surpreendia o ponto de vista compartilhado entre o
zoólogo, o fotógrafo e o aquarelista, o último separado dos primeiros em cerca de 150
anos. Surge a questão se todas pertencem a uma mesma experiência visual. De um lado,
indicou-se que a mudança no suporte resulta em transformações na percepção, portanto,
na experiência da imagem. Por outro lado, há uma correspondência estável em relação
ao edifício, à sua implantação, à geografia, à remissão a um ambiente específico.
Considerando as correspondências, a experiência da percepção demonstra algo em
comum; neste momento, seguirei essa trilha.
A Igreja de São Francisco passara um pouco despercebida em meio ao conjunto
de edificações religiosas da antiga vila, fato ao qual devemos somar uma constatação: a
própria cidade de Ouro Preto padecia em ruínas e não se caracterizava em local de
grande visitação no início do século XX (Andriolo, 2008). Os visitantes da antiga
capital de Minas Gerais eram, sobretudo, homens de negócio e alguns políticos. O relato
de Moreira Pinto (1907) aparece como instigante exceção.
O artigo desse autor fez detalhado comentário acerca de Ouro Preto, sua história e
geografia, casario e personagens. Deteve-se em grande parte das construções religiosas,
dedicando a cada uma alguns parágrafos. A Igreja de São Francisco de Assis “ergue-se
no largo do Mercado Municipal”: “Tem a forma oitavada. Seu estilo é severo e de
harmonia com a humildade do seu padroeiro” (Pinto, 1907, p. 706). Seguem-se duas
páginas de minuciosa descrição, a começar pelo frontispício, composição, formas e
iconografia, depois toda a decoração e mobiliário da nave e dos altares, o simbolismo
dos painéis e esculturas, cada uma das imagens sacras é nomeada e descrita. Termina
com a apresentação da sacristia, móveis e pinturas, fornecendo um arrazoado da obra
escultórica atribuída ao mestre Antônio Francisco Lisboa, naquela época figura pouco
conhecida dos intelectuais brasileiros.
O longo descritivo de Moreira Pinto elabora algo que os registros desenhados ou
fotografados não fazem por si: a articulação das figuras com narrativas e discursos,
particularmente católicos, conferindo à imagem do antigo templo uma dimensão
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
iconográfica acessível, sobretudo aos leitores. Dentre os escritos publicados no livro de
comemorações do Bicentenário de Ouro Preto, ganhou notoriedade o texto do
historiador Diogo de Vasconcellos, autor de obras seminais como a História antiga de
Minas Gerais (1914).
No artigo intitulado “As artes em Ouro Preto”, Vasconcellos (1911/1934) guia o
leitor a uma primeira viagem através da cidade: descendo a serra de Ouro Preto,
contemplam-se as pequenas capelas serranas, depois, percorre a segunda fase da história
da arquitetura mineira, dos “grandes monumentos” (em torno de 1720 e 1740), quando
se constrói a matriz de Ouro Preto, na freguesia do Pilar. Em suas palavras, no último
quartel do século XVIII, “já felizmente se achava modificado o estilo jesuítico; e obras
se empreenderam mais artísticas” (p. 30), quando se construiu a Igreja de São Francisco
de Assis. Localiza nesta igreja a obra “mais perfeita e acabada” (p. 39), evita omite
qualquer classificação: não se trata do barroco europeu, tampouco da arte brasileira,
louva suas qualidades devidas ao seu conjunto arquitetônico e a seu autor, mestre
Antônio Francisco Lisboa.
O acréscimo de informações iconográficas e estilísticas fornecido pelos escritos
não deixa de reservar um lugar para o registro em desenho ou em fotografia impressos.
Nas fotografias inseridas no livro de Diogo de Vasconcellos (no original, fig. 3, prancha
em seguida à página 40) aquele ponto de vista que nos acompanhou até aqui está
exatamente postado: a Igreja de São Francisco de Assis, o adro ocupa a base da pintura,
enquanto o templo está implantado sobre pequena elevação, em perspectiva,
visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a
elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais.
Cabe lembrar, nos Monumentos históricos, artísticos e religiosos de Minas
Gerais, que Anibal Mattos (1935) cita e transcreve em diversas passagens o grande
historiador mineiro, fazendo longa remissão a Vasconcellos nas páginas dedicadas à
Igreja de São Francisco. Na prancha reservada ao frontispício do templo, a frontalidade
também é levemente quebrada com o deslocamento do observador, abrindo o horizonte
à direta do edifício onde surgem as modestas torres da “Igreja das Mercês de Baixo” e,
ao fundo, o Pico do Itacolomy.
[5]
Ao considerar pertinentes os escritos sobre a cidade de Ouro Preto, nos quais
apontamentos sobre aquela igreja fazem parte da formação do olhar, a poesia talvez
11
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
tenha um lugar ainda mais significativo porque percorre um espaço social mais amplo
que os estudos de história, ainda que não tão amplo quanto os guias de viagem. Os
versos epigráficos de Carlos Drummond de Andrade talvez sejam os mais
significativos.
Antes, Mário de Andrade perambulou pelas cidades mineiras surgidas no período
colonial. O intelectual paulista, além de poeta, foi destacado musicólogo, folclorista e
estudioso das artes. Quando de sua viagem, buscava um sentido nacional para o nosso
patrimônio, lia os escritos de Diogo de Vasconcellos, Furtado de Menezes e D. Silvério
Gomes Pimenta. Sua viagem foi realizada em 1919 e publicada em 1920 na Revista do
Brasil, em uma série de artigos através dos quais examina os caminhos da arte religiosa
no Brasil e na América portuguesa. Em Minas, deparou-se com “a suprema glorificação
da linha curva, o estilo mais característico, duma originalidade excelente.” (Andrade,
1920, p. 103)
Ali, a Igreja liberta-se das influências de Portugal: “o estilo barroco estilizou-se”,
surgiu algo de nacional. Mais precisamente, a fase dos formosos templos brasileiros a
que o escritor se referia é o segundo quartel do século XVIII, por exemplo, momento de
elevação das torres da Nossa Senhora do Carmo de São João del Rei, de Nossa Senhora
do Rosário e São Francisco de Assis de Ouro Preto. A São Francisco de São João del
Rei atraíra deveras a atenção do escritor, consumando o que acreditava ser a atuação do
“gênio” do Aleijadinho. Na formação do olhar brasileiro, a vista da Igreja de São
Francisco de Assis aparecia na articulação entre o patrimônio nacional e a maior
realização de um estilo artístico, na origem dos laços entre a percepção contemporânea,
os monumentos brasileiros e a imagens de arte; Mário de Andrade afirmou um projeto
nacional tecido nos liames psicológicos da identidade do brasileiro.
Nas comemorações da Semana Santa de 1924, os modernistas paulistas seguiram
em excursão para Minas, em busca das referências nacionais. Eram eles, além do
próprio Mário, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes
Penteado, René Thiollier, Blaise Cendrars e Godofredo da Silva Telles. Oswald de
Andrade trouxe ao público letrado, sobretudo através do movimento pau-brasil, as
imagens captadas na viagem. O “Manifesto da poesia pau Brasil” foi publicado
primeiramente no Correio da Manhã, no dia 18 de março de 1924, logo depois do
retorno. O verso de abertura trata da nossa imagem:
Vamos visitar São Francisco de Assis
Igreja feita pela gente de Minas
12
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
O sacristão que é vizinho da Maria Cana-Verde
Abre e mostra o abandono
Os púlpitos do Aleijadinho
O teto do Ataíde
Mas a dramatização finalizou
....
(Andrade, 1924/1990, p. 135)
Outro poeta a voltar-se para a antiga capital de Minas Gerais foi Manuel Bandeira,
porém, movido pela redação de um gênero distinto, o guia de turismo. Trata-se do
primeiro guia de Ouro Preto, publicação de 1938, de grande significado político, em
meio às edições do Ministério da Educação e Saúde, como parte das iniciativas
editoriais no Estado Novo, encomendado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Andriolo, 2008). Como Mário de Andrade, Manuel Bandeira
também ensaiou escritos históricos, por exemplo, nos artigos “As artes plásticas no
Brasil” (A Manhã, Rio, 09/08/1912) e “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos
estudantes” (O Jornal, 1929), e no capítulo sobre a “Arquitetura brasileira” no livro
Crônicas da província brasileira (1937). Na mesma medida que seu colega paulista,
trabalhava sobre um sentimento de nacionalidade, mas em um momento em que a
documentação histórica não havia sido vasculhada.
O desejo de lastrear os monumentos de arte no contexto da memória nacional era
mais rápido que o desenvolvimento da pesquisa histórica propriamente dita. Além disso,
uma série de imagens vinha a público, a exemplo da iconografia do herói da pátria, o
Tiradentes, como foi detalhadamente demonstrado por José Murilo de Carvalho (1990).
O guia de Manuel Bandeira foi ilustrado por Luis Jardim, artista representante do
regionalismo do Nordeste, cujos desenhos foram também divulgados nos guias de
Gilberto Freire, dedicados a Recife e Olinda. A Igreja de São Francisco lá está: uma
paisagem de horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de Assis à direita, o
adro ocupando a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre pequena
elevação, em perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes
laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais -ao fundo, o Pico do Itacolomy.
[6]
Se muitas poesias apresentar-nos-iam imagens de Minas Gerais, os guias de
turismo cumprem essa tarefa de modo muito mais intenso, ainda que não tão
13
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
imaginativo. Há uma fotografia no guia Ouro Preto, Cidade Monumento Mundial
(1996), registrada por Germano Neto para a promoção de uma pousada. Nessa imagem,
o imponente sobrado convertido em hospedaria ocupa a metade da fotografia. À
esquerda do observador abre-se a paisagem urbana, com destaque para a Igreja de São
Francisco de Assis. A pousada, inaugurada nos anos 1980, está entre aquelas que se
instalaram ao lado de monumentos notáveis, beneficiando-se dessa posição tanto em seu
material de divulgação quanto nos roteiros turísticos da cidade.
As relações simbólicas estabelecidas entre os meios de hospedagem e os atrativos
de “cidades históricas” foram examinadas, por exemplo, em Ashworth e Tumbridge
(1990) e Andriolo (2007). Esses estudos lançam uma questão sobre a importância
fundamental que determinadas obras arquitetônicas cumprem na setorização das cidades
turísticas, não apenas em seu valor histórico e artístico intrínseco, mas também como
objeto percebido na relação com os espaços urbanos e recebido na duração da vida da
cidade. A imagem da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto eleva-se como
exemplo importante dessa questão.
Ao dispor a questão sobre as formas de perceber e os processos cognitivos, a
interpelação das imagens percorre um amplo caminho nos estudos de psicologia. Porém,
não obstante o interesse de pesquisadores para as indagações pertinentes às cidades
turísticas, as imagens, sobretudo as de arte, permanecem pouco estudadas (e.g. Mannel
e Iso-Ahola, 1987; Potter e Coshall, 1988; Ross, 2001; Pearce e Striger, 2001; Pearce,
2005). As pesquisas nesse sentido têm sido realizadas por outras disciplinas (e.g.
Cohen, 1993; Evans-Pritchard, 1993; Graburn, 1994; Lajarte, 1995), deixando em
aberto a compreensão dos significados propriamente psicossociais do fenômeno
imagético.
Do ponto de vista histórico, um marco desse interesse foram os estudos de
visitantes do museu de Londres, realizados por Francis Galton, no início do século
passado, conferindo ao espaço museológico a condição de “laboratório” de observação
do comportamento humano. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a migração de
estudiosos para os EUA e das novas condições para a prática das viagens, surgiu um
campo de estudos relacionado psicologia e turismo (Pearce e Stringer, 1991, p. 137). As
várias subáreas evidenciam o turismo enquanto fenômeno psicossocial: “é a interação
entre processos individuais e a situação social que tem importância primeira” (p. 143).
Deriva daí as relações intergrupais, os comportamentos sociais, os papeis sociais,
modelos com referência à autenticidade e identidade étnica etc. No entanto, Pearce e
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Stringer alertam para o uso corriqueiro de termos da psicossociologia no campo do
turismo, tais como “atitude” e “estereótipo”, sem correspondência direta com a pesquisa
em psicologia social. Trata-se de processos sociais concernentes à percepção, cognição
e sensações. Altruísmo, competição e agressão são comportamentos manifestos nessas
relações interpessoais, distinções simbólicas entre “nós” e “eles” em relação a domínios
de classe e de cultura.
A imagem na intersecção entre psicologia e turismo está circunscrita a pesquisas
destinadas a promover a publicidade das localidades ou, em perspectiva crítica, nos
estudos de antropologia e sociologia. Nestes dois casos, a imagem recebe um tratamento
metodológico distinto daquele que a psicologia social tem por tarefa propor.
[7]
As imagens de pintura, desenho ou fotografia dispõem de uma terceira dimensão
provocada tanto pela ilusão de ótica quanto pela imaginação do observador. A
profundidade do mundo da imagem foi amplamente estudada nos domínios da história
da arte, em referência a passados remotos ou a períodos específicos de produção de
significados. Neste nosso itinerário, a conjunção de fontes escritas sobre a Igreja de São
Francisco de Assis fornece ao espectador um interior, invisível na superfície da imagem,
com a descrição iconográfica e poética de suas esculturas, pinturas e ornamentos. Toda
essa configuração entre superfície, formas e significados organizam os dados da visão e
produzem uma experiência visual.
A iconologia, nascida do projeto de Warburg e desenvolvida como método
iconológico por Panofsky, indagaria sobre a sobrevivência de significados clássicos no
conteúdo da imagem atual. Uma importante contribuição desses estudos foi o
tratamento dado a séries de imagens, em contraposição aos estudos de imagens isoladas
por vezes descontextualizados. Indiretamente, os escritos de Panofsky forneceram
grande contribuição ao debate das ciências humanas, particularmente à psicologia
social, ao apresentar o nível iconológico nos termos de uma Weltanschauung (visão de
mundo), envolvendo outros termos tais como “representações sociais”, “ideologia” e
“imaginário”, no vasto domínio das imagens coletivas, valores e crenças na experiência
mental. De modo esquemático, elaborou seu método em relação aos níveis de
conhecimento estudados por Karl Manheim e as formas simbólicas preconizadas por
Ernst Cassirer. O resultado foi uma abordagem das imagens em três níveis: a descrição
pré-iconográfica; a interpretação iconográfica; e a interpretação iconológica.
15
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
As imagens de paisagens, dentre as quais se poderia situar o registro da Igreja de
São Francisco entre as montanhas de Minas, foram muito pouco exploradas pela
iconologia, talvez pela concepção de referencialidade do seu conteúdo. Quero dizer,
pelo fato de se acreditar que a imagem da paisagem representa um mundo em comum,
não haveria muito a se indagar quanto ao seu conteúdo simbólico. O caminho que foi
trilhado até aqui indica o contrário.
O historiador Peter Burke (2004) reviu a intepretação iconográfica, lembrando que
árvores e campos, rochas e rios, “todos esses elementos comportam associações
conscientes ou inconsciente para os espectadores. [...] Pinturas revelam que uma
variedade de valores, incluindo inocência, liberdade e o transcendental, foi projetada na
terra” (p. 53). Em suma: “A paisagem evoca associações políticas, ou até mesmo que
ela expressa uma ideologia, como o nacionalismo” (p. 54).
Desse comentário geral, pode-se citar o elogio particular de Giulio Carlo Argan
(1980) quando assinalou a adequação do método panofskyano ao tratamento de
paisagens e retratos. “A iconologia de um retrato está na pose, na vestimenta, o
significado social ou psicológico que pode ser atribuído à figura; a iconologia de uma
paisagem ou de uma natureza morta está no modelo da perspectiva, as configurações, a
situação dos lugares e coisas significantes” (p. 19). A iconologia apresenta-se no nível
das escolhas de componentes naturalísticos – árvores, rochas, águas, nuvens –, também
na seleção da hora, dia e estação. Mesmo a morfologia está repleta de significados. As
correlações estabelecidas na pesquisa podem não ter comprovações objetivas, mas
indicam níveis inconscientes. A investigação de conteúdos arcaicos, no espaço sagrado
formado pela posição do templo sobre a elevação, poderia conduzir à concepção de
arquétipo em Jung ou na forma de uma schemata nos termos de Gombrich.
Na fotografia de Luis Fontana, “Paisagem de Ouro Preto”, de maio de 1948 (col.
Instituto de Filosofia Artes e Cultura da UFOP), a construção da paisagem é muito
clara, a igreja à esquerda da imagem conforme a convenção, encaixada de alto a baixo,
o adro serve de referência do solo, o horizonte montanhoso com o Pico do Itacolomy.
Depois de vislumbrado o entrelaçamento entre os discursos nacionalistas e o processo
de significação das imagens relacionadas a Ouro Preto, o significado daquele pico
específico torna-se mais compreensível. Trata-se do marco natural de toda epopeia
bandeirante na região, desde então presente no imaginário local, cuja função era
sinalizar aos viajantes e exploradores que atravessavam a região a posição das
freguesias de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Pilar, desde então
16
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
presente no imaginário mineiro.
Quando iniciei minhas investigações sobre a formação da ideia de barroco no
Brasil, em uma articulação entre os projetos de preservação e memória, o
desenvolvimento dos empreendimentos turísticos e o campo da história e da crítica de
arte, a imagem da Igreja de São Francisco de Assis ocupava um lugar central nos
discursos (Andriolo, 2010a). As enunciações indicavam a permanência de formas
conservadoras de representação, no plano da política e da religião. Cabe lembrar, a
respeito, passagem na qual Roland Barthes (1957, p. 123) indagava as imagens
veiculadas no Guide Bleu, sobremaneira dedicadas a monumentos religiosos católicos,
do ponto de vista burguês da História da Arte: “O cristianismo é o primeiro fornecedor
do turismo, não se viaja senão para visitar as igrejas”.
No Brasil, as igrejas católicas classificadas como “barrocas” aparecem como
referência na identificação de Ouro Preto como cidade histórica. Não se vê, por
exemplo, a Igreja Metodista projetada por José de Souza Reis, com traços “modernos”,
figurar nos guias de turismo, tampouco nos registros iconográficos da cidade.
Consequentemente, o edifício está excluído do conjunto de atrativos sob o olhar do
turista. Ausência e presença no mundo das imagens são dados significativos. A
verificação de um pesquisador sobre os interesses dos visitantes de Ouro Preto apenas
confirma essa observação: “Dentre as categorias, a que mais se destacou foi a
representada por Igrejas” (Cançado, 1976, p. 120). Para os promotores do turismo, as
cidades históricas mineiras mantinham viva “a fidelidade ao Brasil colonial,
principalmente com suas igrejas barrocas. As mais procuradas são as 13 de Ouro Preto”
(e. g. “A volta ao Brasil em 15 mil igrejas”, Touring, n. 371, jan./fev., 1972, p.78). Na
pesquisa de marketing, em meados dos anos 1970, a Igreja de São Francisco apareceu
como o maior atrativo turístico de Ouro Preto, com 69,51% da preferência dos turistas
(Cançado, 1976, p. 120).
Num primeiro nível de significação, um retrato de igreja de “arquitetura colonial”
remete o observador a Minas Gerais, particularmente a Ouro Preto. Mais
especificamente, o frontispício da igreja de São Francisco de Assis assumiu a posição
de símbolo maior, representado todas as igrejas. Isso porque, além de tratar-se de um
templo religioso católico, partícipe da memória nacional como símbolo do passado
colonial, representava um marco das obras “barrocas”, “legítimas nacionais”, expressão
máxima do Aleijadinho. No dizer de Lourival G. Machado (1978, p. 214.), o templo era
a “obra prima”: “elementos barrocos puros e autênticos. [...] Numa palavra, em são
17
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Francisco esplende o barroco, mas o barroco brasileiro das Gerais”. Seduziu os
modernistas e outros intelectuais, ao ponto de o pintor Alberto da Veiga Guignard ser
sepultado em seu cemitério, em 19621.
Na produção social do imaginário, as formas daquele edifício tornaram-se um
símbolo metonímico de Ouro Preto, um sinal a indicar imediatamente uma mensagem
ou um “signo turístico”: “O olhar turístico contemporâneo é cada vez mais sinalizado.
Existem marcos que identificam as coisas e os lugares dignos de nosso olhar. Essas
sinalizações identificam um número relativamente pequeno de pontos centrais
turísticos” (Urry, 1996, p. 71).
[8]
A abordagem psicossocial da imagem conduziu ao desenvolvimento histórico do
turismo no Brasil. A imagem está historicamente situada em uma série de cadernos e
números especiais de jornais e revistas, também nas intervenções de organizações
públicas. Desde dezembro de 1962, o estado de Minas Gerais, através de seu
Departamento Estadual de Informações, havia publicado o seu primeiro “roteiro
turístico” (Gomes, 1962). Tal documento traz na primeira página de texto a relação de
“cidades históricas”, 27 localidades ao todo, encimada pela fotografia da Igreja de São
Francisco de Assis. Nesse mesmo momento, Michel Parent desenvolveu longo estudo
da situação do patrimônio brasileiro, acompanhado por outros técnicos vinculados à
UNESCO, a exemplo de Viana Lima, o qual se dedicou especificamente a Ouro Preto,
São Luís e Alcântara, durante a década de 1960.
As ações locais em Ouro Preto remontam às primeiras décadas do século XX, na
gestão de João Batista Ferreira Velloso. Teria sido a convite desse político que o
presidente do estado Melo Vianna visitou a antiga capital e, tendo visto o estado de
conservação da Igreja de São Francisco de Assis, autorizou Velloso a realizar obras de
reparos às custas do governo estadual, quando recuperou-se o templo pelo trabalho do
mestre Thomé do Nascimento. As seguidas reformas foram alvo de várias críticas feitas,
por exemplo, por Gustavo Barroso em seu relatório ao presidente do estado, no qual
apontou erros notados nos “azulejos brancos modernos” colocados nos rodapés, as
1
“1972 cinquentenário da Semana de Arte Moderna. / Grupo de intelectuais ligados à referida semana
redescobre o barroco mineiro. / Guignard, artista moderno, recém chegado da Europa, naturalmente se
engaja no movimento ‘modernista’ brasileiro e vem fazer sua arte no ambiente barroco. / Falece em
Minas em 1962 e é enterrado no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; 1972,
portanto, é sugestivo.”, in: “Ouro Preto já prepara o seu Festival de Inverno”, Diário de Minas,
27/11/1971, p.11.
18
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
portas e balaustradas pintadas “fingindo madeira”: “julgo que se devia sanar isso,
restabelecendo-se a obra antiga como era de verdade” (Barroso, 1944, p. 28).
Datam desse instante os desenhos de Alfredo Norfini, realizados em janeiro de
1921, como ilustração do “Documentário iconográfico de cidades e monumentos do
Brasil” (Anais do Museu Histórico Nacional, v.7, Rio de Janeiro, 1953), cujo texto foi
redigido por Gustavo Barroso. Dentre as ilustrações, a Igreja de São Francisco de Assis
aparece em exata frontalidade, sem o horizonte convencional. A partir daí, na série de
imagens, o deslocamento em perspectiva com a abertura do horizonte montanhoso e o
Pico do Itacolomy torna-se recorrente: em 1934 e 1935 aparece nas fotografias inseridas
nos livros de Diogo de Vasconcellos e Anibal Mattos. Depois, no desenho de Luis
Jardim (1938) e na fotografia de Luis Fontana (1948). Ligam-se formalmente a
Burmeister (1853) e Marc Ferrez (1880), e ocupa a frente do roteiro turístico de Gomes
(1962).
Não obstante importantes intelectuais louvarem a diversidade de registros, essa
“fórmula imagética” perdura. As variações destacam-se, por exemplo, no documentário
de viagem de Lourival Machado (1949), onde a fotografia foge da fórmula, seja num
retrato frontal, seja no recorte da fachada em diagonal inclinada para a direita. Na
mesma linha, Cerqueira Falcão (1946) realizara seu ensaio fotográfico sobre as cidades
mineiras, Relíquias da terra do ouro. As palavras de Lourival Gomes Machado
fornecem elementos sobre um tipo de fotografia documental: eram documentos “exatos
e fiéis”, protegidos pela objetividade no seu padrão, com imagens “frontais e
simétricas” (O Estado de São Paulo, 18 jan. 1958, Suplemento Literário, p. 6). Em
Falcão, Ouro Preto foi contemplada com 172 fotografias, a Igreja de São Francisco de
Assis, com 28, entre tomadas externas e internas.
A fórmula imagética circulou em diversos meios, por exemplo, nas propagandas
para o jornal O Estado de São Paulo publicadas nos anos 1950 pela Galeria Sete de
Abril (rua Barão de Itapetininga, São Paulo) – dedicada à venda de “oleografias e
pintura tardia de feitio acadêmico” (Durand, 1989, p. 190) –: fotografias de pinturas
mostram a Igreja de São Francisco naquela posição. Na década de 1960, como diria
Paulo Mourão (1986, p. 118), a igreja de São Francisco de Assis “tem constituído
motivo predileto dos pintores que procuram fixar na tela, com harmoniosa combinação
de tintas, aspectos paisagísticos da vetusta ex-capital mineira. Para tanto concorrem a
beleza da sua portada, a graça do seu frontispício de superfícies curvas, o pitoresco do
seu frontão terminando na linda cruz patriarcal de duas piras.”
19
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
No conjunto, a série de imagens recolhidas tem em comum a representação de
uma paisagem, em horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de Assis à
direita, o adro ocupando a base da pequena elevação onde o templo está implantado,
com a ilusão da perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes
laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais – ao
fundo, o Pico do Itacolomy. No processo de transformação da imagem, entre artistas e
espectadores distribuídos no tempo, não se pode sustentar uma visão essencialista, seja
no plano da forma, seja no do significado. Também não foi possível localizar algo como
um reflexo da experiência social sobre a imagem, embora esteja sempre em correlação a
processos de significação.
Ulpiano Meneses (2002a) lembrou que os “sistemas escópicos” não são estáveis
ao longo do tempo, nos espaços sociais de circulação das imagens. Para esse
historiador, os documentos visuais precisam também ser considerados como objetos
materiais e não apenas como “um abstrato emissor semiótico” (p. 144). A retomada do
próprio espaço referido na imagem e a construção de significados nos permite percorrer
a série de modo distinto, registros separados no tempo. Noutro texto, esse autor
formulou com precisão:
As imagens não têm sentido em si, imanentes. Elas contam apenas – já
que não passam de artefatos, coisas materiais ou empíricas – com
atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação social que produz
sentidos, mobilizando diferentemente (no tempo, no espaço, nos
lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm)
determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos
e valores e fazê-los atuar. (Meneses, 2003, p. 28)
É preciso circunscrever o domínio da imagem, tal como está colocado neste texto.
Uma definição correria sobre o fio da navalha, no duplo risco do historicismo e da
teleologia, ao nomear a imagem como um campo cognitivo a despeito das referências
propriamente históricas das pessoas do passado e estabelecer uma série de objetos que
não estariam efetivamente ligados entre si. Poder-se-ia, então, considerar algo de
permanente: um ponto de vista bem estabelecido, sugerindo uma situação corporal, um
conteúdo específico, templo entre montanhas, também uma forma particular de compor
a paisagem. Na imagem, organiza-se um conjunto de relações interiores e exteriores ao
suporte.
Vivemos em uma sociedade na qual predominam imagens tecnológicas em um
ritmo de difusão altamente acelerado. Na origem latina, imagem estava relacionada ao
retrato de uma pessoa morta. Tratava-se da imago, na forma de pinturas, esculturas,
20
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
sobretudo de máscaras mortuárias de cera. Era um objeto elaborado diante da morte,
para afastar o medo dela e garantir a sobrevivência do morto. O filósofo da
comunicação Norval Baitello Júnior (2005) descreve a imagem como a criação de uma
segunda realidade em um jogo entre presença e ausência. Toda imagem tem uma dupla
face, uma é visível aos olhos, outra é invisível, ambas movem-se e transformam-se
através da experiência histórica humana. Nas palavras do autor: “Uma ciência que
investiga as imagens e uma prática que as pretende utilizar fracassará se não se construir
sobre os alicerces históricos e culturais, se permanecer apenas na superfície das
tipologias e nas classificações morfológicas. E, principalmente, estará fadada ao
insucesso se projetar e executar processos de comunicação socioculturais de maneira
determinística, sem considerar as facetas sombrias e silenciosas das histórias, das
pessoas e das coisas que servem de ponto de partida (e de chegada) na vida das
imagens” (Baitello Júnior, 2005, p. 46).
Nesta compreensão, a imagem aparece no objeto icônico, mas não se restringe a
ele, dispõe-se em suportes diferentes ao mesmo tempo em que assume novos
significados. Na dinâmica temporal das imagens, Baitello (2005) localiza duas formas
de “iconofagia”, uma “pura” outra “impura”. A iconofagia pura é aquela que há séculos
acompanha a confecção de imagens manuais, na pintura ou na escultura, na apropriação
de temas, formas e convenções tradicionais, as quais foram grandemente estudadas por
Warburg, Saxl e Panofsky. A iconofagia impura resulta de uma concepção crítica dos
processos contemporâneos das imagens, sobretudo tecnológicas, os quais partem
daquele procedimento conhecido na história das imagens, agora intensificado pela
reprodução e distribuição aceleradas com alto grau de penetração no observador, em seu
corpo, cujo resultado é uma crise da visibilidade, constituída por uma inflação de
imagens e um padecimento dos olhos (p. 96).
[9]
Do modo como o problema se impôs, na série de imagens, tratá-la em uma
unidade disposta em suportes diferentes foi uma escolha pela permanência de um
conteúdo específico, em detrimento das diferenças, na trilha da fórmula imagética que
alimenta e é alimentada por processos sociais diversos. Não se trata meramente de um
modelo. Ao mudar a mídia, a despeito das permanências, ter-se-ia um novo conjunto de
significados. A pintura sobre tela, o cartão postal, a página do guia de turismo. Veja-se
que um momento importante no processo de inserção dessa imagem nos meios
21
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
turísticos ocorre quando os seus significados são utilizados por empresas ligadas ao
turismo, mas pouco reconhecidas como tal. Pode-se localizar, em 1957, uma
propaganda de óleo para motor de automóveis fazendo uso evidente da imagem da
Igreja de São Francisco de Assis como um verdadeiro sinal, indicando o caminho para
Ouro Preto, no mesmo tamanho que o produto oferecido. A posição do observador,
neste caso, é a mesma definida em retratos anteriormente assinalados.
Não se trata exatamente de um hotel, ou uma agência de viagens, mas de um
fabricante de óleo lubrificante. Uma empresa multinacional que teve seu mercado
ampliado com o uso de automóveis, a implantação das rodovias no interior do Brasil e a
divulgação de pontos de interesse que deveriam ser atingidos pelos turistas. Há que se
considerar aqueles números enunciados anteriormente que demonstram a preferência do
viajante, na década de 1970, em ir de automóvel particular para Ouro Preto (Cançado,
1976). A propaganda trabalha com os desejos particulares dos consumidores do jornal,
mas marcados por representações que os tornam comuns.
A figura abarca metade da página no sentido vertical, trazendo ao alto o título
“Ouro Preto” com um sentido duplo, pois em seguida, abaixo do desenho da Igreja de
São Francisco, aparecem as palavras “Basta o nome!”. O ouro a que se refere a
propaganda é o óleo de motor (o petróleo transformado), com o qual o viajante pode
atingir distâncias longas como a localidade representada pela igreja (Ouro Preto). A
inscrição é ínfima em relação ao desenho, destinada apenas aos mais curiosos, uma vez
que a imagem por si transmitira a mensagem:
E está claro do que falamos. Shell X -100 Motor Oil é sempre a maior
proteção nos longos percursos ou mesmo quando o motor está parado, em
virtude de conter aditivos alcalinos mais atuantes no combate aos ácidos
corrosivos da combustão. Por isso, quando se fala em lubrificantes, basta o
nome - SHELL X-100 MOTOR OIL (O Estado de São Paulo, 12 abr. 1957,
p.9.)
À frente do desenho do templo está um burrinho aguardando pacientemente seu
dono. É uma metáfora figurativa do passado, sobre uma tradição genuína da antiga
capital de Minas, quando se transportavam pessoas e cargas no lombo de animais,
resíduo dos tempos coloniais, confrontado com a modernidade do óleo lubrificante e do
veículo automotor. Ouro Preto, expresso na igreja, simboliza o passado, porém com a
modernidade acessível apenas por novos meios.
Diante da migração da imagem, solicita-se outro passo no exercício da descrição e
interpretação; a iconologia crítica. Como assinalou W. T. J. Mitchell (1986), a imagem
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
não perdeu seu poder na sociedade contemporânea, embora isto não esteja claramente
entendido. A crítica moderna pensa a imagem como um tipo de sinal que apresenta uma
descrição de naturalidade e transparência opaca, distorcida, como em um “mecanismo
arbitrário de representação” ou um “processo de mistificação ideológica”. Entretanto,
a imagem não é apenas um tipo particular de sinal, mas algo como um
ator do momento histórico, uma presença ou um caráter dotado de
status legendário, uma história que ladeia e participa das estórias que
contamos para nós mesmos sobre nossa própria evolução de criaturas
‘feitas à imagem’ do criador, para criaturas que fazem a si próprias e o
seu mundo à sua imagem. (p. 8)
Nessa compreensão, a imagem pode referir uma variedade de coisas – estátuas,
figuras, sonhos, mapas, poemas, ideias etc. – em uma família na qual o significado
muda e migra através do processo social, no tempo e no espaço, em relação aos
discursos. A psicologia social pode dedicar-se aos processos sociais nos quais a imagem
não é apenas uma coisa física, mas um movimento de mediações entre os objetos
icônicos, as imagens corporais e as imagens mentais dos observadores. Os movimentos
de transformação da imagem são compreendidos enquanto fenômeno imagético no
processo social, na vida intersubjetiva, como um campo de significação estética,
política, econômica e cultural. Nesse domínio, a psicologia social participa de diálogos
com a sociologia, a história e a antropologia. Ulpiano Meneses (2003, p. 23) notou uma
virada interdisciplinar nos anos 1980:
A voga dos estudos de cultura visual assinala com clareza, no campo
das ciências sociais – para o bem e para o mal –, aquilo que já foi
chamado de pictorial turn, em sequência ao linguistic turn de décadas
anteriores, que chamara a atenção para o texto antropológico ou
sociológico na produção do conhecimento.
Essa virada não foi unívoca, mas um conjunto de proposições teóricas em direção
à experiência ou à cultura visual (Mitchell, 1994). A perspectiva teórico-metodológica
formulada por W. J. T. Mitchell (1986), designada iconologia crítica, tem se mostrado
muito profícua nos trabalhos no campo da psicologia social da imagem, sobretudo
porque pensa a imagem inscrita nos processos sociais e históricos.
A situação das imagens na vida social inscreve-se na realidade da vida cotidiana,
em torno da qual as ações políticas e interações sociais promovem o mundo da vida
(Jung, 1972, p. XX). Em seus fundamentos e em sua historicidade radical, o mundo da
vida precede ao conhecimento conceitual porque é pré-reflexivo, tornando-se lugar de
ações políticas antes das teorias políticas. A política das imagens pode ser
compreendida como ação política em grande parte pré-reflexiva, no sentido de Merleau-
23
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Ponty, nos atos cotidianos de seus atores no mundo da vida, uma luta não articulada em
conceitos ou palavras, mas em imagens. Diante das imagens, atributos formais “agem
como vetores potenciais de conteúdos afetivos”, afirmou Meneses (2002a, p. 140). As
imagens são ingredientes de nossa realidade social:
Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias dimensões e
funções. Os usos de imagens como documento é apenas um entre
tantos outros, e não altera a natureza da coisa, mas integra uma
situação cultural específica entre várias outras. (p. 146)
Na proposição de Mitchell (1986), há uma retomada do logos (palavra, ideia,
discurso, ciência) dos icons (imagem, semelhança, picture), no duplo sentido da
“retórica das imagens”: (1) o que se diz acerca das imagens, interpretações; (2) o que as
imagens dizem, histórias, descrições. Volta-se para o campo da imagem (imagery).
Assim, insere-se esse estudo na longa tradição surgida na Renascença com os guias de
imagens simbólicas e alegóricas, notadamente com Cesare Ripa, até as pesquisas de
Erwin Panofsky, no início do século XX, as quais marcaram a cisão entre a iconografia
– fundamentada na descrição particular dos símbolos – e a iconologia – projeto de
interpretação geral dos símbolos em horizonte histórico. Desse modo, a noção de
imaginário é conectada às teorias da arte, da linguagem, da comunicação e da estética, e
às concepções sociais, culturais e políticas. A iconologia em Mitchell torna-se não a
ciência dos icons, mas a psicologia política das imagens; o estudo da iconolatria e da
iconofobia (p. 3).
Em suma, a imagem é lugar de poder, tanto em relação à ideologia quanto em
referência ao ídolo ou ao fetichismo (Mitchell, 1986, p. 151), de modo que o
“iconologista” distingue-se do historiador, do esteta, do crítico de arte, para contemplar
a imagem “impura” em todas as suas formas. Sugere um campo profícuo para a práxis
da psicologia social, cujo objetivo seria restaurar “o poder dialógico de imagens mortas,
insuflar nova vida em metáforas mortas, particularmente, metáforas que informam seu
próprio discurso” (p. 159). Na sociedade do espetáculo e do imagético, o poder das
imagens renova-se ao mesmo tempo em que aprofunda o medo das imagens.
[10]
A trajetória da imagem como representação do monumento, a reenviar Ouro Preto
à arte nacional como símbolo de história e arte, evidenciou a permanência dos traços
miméticos.
24
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Não obstante, há artistas que subvertem a posição do observador, variando as
possibilidades do olhar. A pintura de Carlos Bracher Igreja de São Francisco de Assis
(1968, 81 x 60 cm, col. Romulo Fialdini) desliga o observador daquela fórmula
imagética, perturbando a circulação de imagens comerciais que se multiplicavam com
as atividades turísticas. Conforme notou Hansen (1998, p. 41), em Bracher encontramos
uma representação parcialmente não-mimética, “sua fantasia é moderna: ignora a
verossimilhança, porque não pressupõe nenhuma unidade de verdade exterior”.
Ao tratar de imagens, referindo um monumento, um lugar, a natureza ou a
paisagem, a concepção de imitação (imitatio) percorre os significados do conceito da
mimesis da tradição clássica aos usos subsequentes. Do grego mímesis, por vezes
identificado com imitação do gesto, da voz ou da palavra de outrem, também da
representação do real na imagem de arte, sobretudo literária. O conceito refere à pessoa
que imita ou representa, em uma teatralização, com movimentos corporais, danças,
músicas e recitações, afetando a alma em sentido terapêutico (Ribon, 1991). Denotando
a imitação, representação ou retrato, articularia a imago, a imagem, no pensamento
latino. A mímica e o mimetismo são ações concernentes ao imitar no contexto da
natureza e da estética, girando em torno de dois significados básicos: a imitação referida
à natureza enquanto fenômeno, objeto ou processo; e a representação no contexto da
arte, envolvendo a relação entre estética e natureza.
A doutrina acerca da arte como imitação ocupa lugar de destaque no jogo político e
artístico da estética clássica, por exemplo, com Winckelmann. A mimesis na concepção
de imitação perdeu espaço com o romantismo, quando o conceito de expressão e a
palavra poética ocupam o centro do debate estético. Não obstante, Hans-George
Gadamer (1992) indicara a possibilidade da retomada da mimesis fora dos quadros do
classicismo. O filósofo elabora sua proposição tendo em vista a poesia, revendo o
sentido grego dos termos poiesis e poietes, ampliando, porém, a discussão para as artes
visuais, demonstrando a utilidade do antigo conceito na compreensão da arte moderna.
A alegria do disfarce, a alegria de representar qualquer outra coisa que
não seja a si mesmo e a alegria daquele que reconhece na
representação aquilo que é representado, mostram bem qual o sentido
verdadeiro da representação imitativa: não se trata em hipótese
alguma de comparar ou de julgar a proximidade maior ou menor da
representação em relação àquilo que é significado nesta representação.
(Gadamer, 1992, p. 109)
A experiência mimética é uma relação original na qual “aquilo que se realiza, não é
tanto uma imitação, senão uma metamorfose” (Gadamer, 1992, p. 111). Esta concepção
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
permite a retomada da mimesis sem a dependência da teoria clássica da imitação. Não
consiste em algo que reenvia a outra coisa que é seu modelo, mas sobretudo a algo que
existe e possui um sentido em si.
Na perspectiva de Luiz Costa Lima (1981), mimesis não é imitação no sentido
contemporâneo, não há correspondência em nossas línguas ao sentido grego, mas ela
assemelha-se à imitação e remete à ideia de verossimilhança. A virada provocada pelo
pensamento de Costa Lima está em afirmar a sobrevivência da mimesis, a despeito de
sua forma organizada pela imitatio, pelo jogo que instaura a diferença:
a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável,
porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de
semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e
as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e
culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de
semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença. (Costa
Lima, 1989, p. 68)
Dessas definições, historicamente três termos jogam socialmente o processo de
significação da experiência estética: imitatio, imago e mimesis. Não obstante, não é o
objetivo deste estudo avançar sobre esse terreno. O eixo da discussão foi a imagem da
Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, instância mediadora de processos
sociais e processos estéticos. Portanto, pensar o social em relação ao estético e viceversa em torno do fenômeno imagético. Experiência que acolhe imediatamente o corpo
do observador, na concepção de Frayze-Pereira (2005, p. 163), através da qual “os
sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única
ação”. A imagem, no jogo da mimesis, realiza as mediações entre as sensações de
semelhança e diferença, no processo histórico da vida social, possibilitando a
compreensão dos aspectos permanentes e das transformações das imagens no mundo
contemporâneo e suas implicações no campo da psicologia social.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
PARTE 1. PERCEPÇÃO E HISTÓRIA
2. A pintura é um traço de nossa relação histórica com o
mundo
Merleau-Ponty e Panofsky
No antepenúltimo parágrafo de O olho e o espírito, último texto publicado em
vida pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty (1961), aparece uma referência a Erwin
Panofsky. Antes de figurar na conclusão desse escrito, este historiador da arte fora
citado na metade do capítulo terceiro para reforçar a noção acerca da pretensão dos
“homens do Renascimento” em fundar uma pintura exata e infalível. Estas duas
aparições de um historiador têm um significado importante na compreensão da
percepção em relação a obras de arte em Merleau-Ponty.
Pintura e história são termos centrais nos escritos desse filósofo, referindo alguns
de seus principais textos, nos quais a percepção é considerada em relação à experiência
estética de obras de arte. Aqui pretende-se discutir a importância da imagem pictórica
como significação das dimensões histórica e psicológica do processo perceptivo. O
significado vital da percepção encontra reflexões profundas elaboradas sobre pinturas.
Tais imagens não são reproduções de um mundo objetivo, outrossim, apresentam um
traço da relação do sujeito com o mundo percebido, cuja gênese situa-se na mediação
entre as dimensões psicológica, social e histórica.
A partir daquela menção à historiografia da arte, nota-se Merleau-Ponty como
leitor tanto de Erwin Panofsky quanto de Pierre Francastel. Nestes dois autores, a
imagem pictórica foi pensada como elemento significante de processos históricos
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
precisos na formação do Ocidente, ambos orientados por uma compreensão do processo
social e histórico expresso no espaço plástico.
Percepção e história
Cézanne considerava a pintura como parte de sua própria existência, bem como a
representação de um importante ponto de vista acerca da paisagem. Cézanne superou o
método impressionista, ao tentar representar o objeto atrás da atmosfera, situando a arte
como parte da natureza (Merleau-Ponty, 1945/1980, p. 115). Localiza-se, então, o
problema da perspectiva em sua pintura: a fidelidade frente ao fenômeno mostra que “a
perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica:
na percepção, os objetos próximos parecem menores, os distantes maiores, o que não
sucede numa fotografia...” (p. 117).
Considerando a totalidade do processo perceptivo, desde os instrumentos
sensórios até a configuração simbólica do objeto percebido, são notáveis as distinções
entre culturas diferentes. Estudos etnobiológicos mostram que mesmo a constituição
física do ser humano modifica-se de acordo com o meio em que habita. Simões &
Tiedemann (1985, p. 89) defendem que
o processo de reconhecimento das formas, pela formação de
contornos, é universal, mas que figuras e seus significados são
processados de maneira diferente. As representações pictóricas em
perspectiva exigem a supressão de alguns elementos, reduzindo a
informação contida na figura para seu reconhecimento, mas
acrescentando outras informações sobre a cena envolvida (movimento,
distância, relacionamento etc.).
Os trabalhos de Jonathan Crary (1990), em sua designação acerca das “técnicas do
observador”, relacionam teorias cognitivas e artes visuais do século XIX para
compreender a transformação histórica da percepção e das experiências corporais. A
elaboração de um conhecimento da percepção que considere a dimensão cultural e
histórica se desenvolve desde a década de 1960, tecendo um diálogo com a psicologia.
Por exemplo, Baxandall (1972/1991) baseou seu estudo sobre o olhar no século XV
tanto no livro de Segall, Campbell e Herkovitz (1966), onde a percepção constitui-se
como uma experiência cultural, quanto na psicologia intercultural de Witkin (1967, p.
233), de onde extraiu a noção de “estilo cognitivo”: “o modo de funcionamento que
caracteriza um indivíduo em suas atividades perceptivas e intelectuais”.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Baxandall (1972/1991, p. 48) conclui sua proposição afirmando que
alguns dos instrumentos mentais através dos quais o homem organiza
a sua experiência visual é variável, e boa parte desses instrumentos
depende da cultura, no sentido de que eles são determinados pela
sociedade, que exerce influência sobre a experiência individual. Entre
essas variáveis existem as categorias por meio das quais o homem
classifica seus estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para
integrar o resultado de sua percepção imediata, e a atitude que atingirá
diante de um tipo de objeto artificial que a ele se apresenta.
Neste sentido, está-se considerando as categorias da percepção da época como
indicativos de experiências psicossociais e estéticas, na medida em a percepção é
formada também por meios de comunicação, histórica e culturalmente situados, dos
quais participam os modelos artísticos (Roger, 2000, p. 37).
O campo perceptivo é uma formação histórica, pois a encarnação dispõe o
indivíduo em uma situação espacial e temporal. A dimensão espacial delimita o aqui e o
ali, enquanto a dimensão temporal remete ao agora, ao passado e ao futuro. Mais do que
isso, as noções de arco intencional e de campo perceptivo, fundadas na
intersubjetividade e na intercorporeidade, abrigam as dimensões sociais e históricas
desde a sua constituição pela consciência. Em todo esse .processo, a experiência
perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da arte, o mundo é
constituído na vida social. Merleau-Ponty busca a gênese da obra de arte sob os
processos históricos, não em sentido a-histórico, pois não deixa de pensar a arte, a
política e a filosofia no fluxo de uma “história silenciosa”, situada aquém das estruturas
visíveis e sustentada pela metafísica do corpo e da sociedade.
Baseado nessas noções, Donald Lowe (1986, p. 31) reafirma que o sujeito enfoca
o mundo perspectivamente, “desde o íntimo e familiar até o distante e tipificado, com a
intenção de viver”. O campo perceptivo constitui-se pelo percebedor, o ato de perceber
e o conteúdo do percebido. Assim, circunscreve as transformações temporais e espaciais
do campo perceptivo a partir de três fatores: 1) os meios de comunicação; 2) a
hierarquia dos sentidos que estruturam o sujeito como percebedor encarnando; 3) os
pressupostos epistemológicos que ordenam o mundo do conhecimento (a epistême de
Michel Foucault). Por exemplo, na Idade Média, a cultura oral sustentada pela memória
garantia à audição e ao olfato a dominância sobre a visão, fomentando um
conhecimento anagógico; em contrapartida, o campo perceptivo da modernidade formase através de meios tipográficos e imagens fotográficas, elevando o sentido da visão e
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
um conhecimento que considera o desenvolvimento no tempo. Nas palavras de Lowe
(1986, p. 31):
Em cada período a cultura dos meios de comunicação forja um ato de
perceber; o sujeito fica delimitado por uma diferente organização
hierárquica dos sentidos e o conteúdo do percebido oferece a ele um
conjunto distinto de regras epistêmicas. Por conseguinte, o campo
perceptivo constituído é uma formação histórica, que difere entre um
período e o seguinte.
O método resultante dessa abordagem coloca em diálogo a historiografia dos
Annales com a fenomenologia de Merleau-Ponty visando à circunscrição de campos
perceptivos do passado, em domínios hegemônicos que são organizados na tensão sobre
outros domínios não hegemônicos, formas de perceber subalternas e sedimentos de
campos perceptivos antigos (Lowe, 1986, p. 37). Desse modo, os problemas da
percepção não podem ser representados numa história evolutiva, como uma linha sobre
a qual se penduram os fatos, mas, como queria Merleau-Ponty, na projeção de uma rede
de intencionalidades. Uma rede que se movimenta e se organiza internamente no
conflito de suas partes constitutivas.
A perspectiva como forma simbólica
Voltemos à menção inicial feita por Merleau-Ponty a Panofsky. Antes de aparecer
em O olho e o espírito, o filósofo lançara mão do livro A perspectiva como forma
simbólica (1924) para compreender a historicidade da experiência do mundo nos cursos
de psicossociologia ministrados na Sorbonne, entre 1949 e 1952 (Merleau-Ponty, 1990,
p. 292-293). Panofsky considerava a perspectiva geométrica como uma invenção
durante o Renascimento, cuja forma simbólica seria compreensível no domínio da
pintura. O estudo examinou o processo histórico de passagens e alternâncias entre
problemas matemáticos e problemas artísticos. Baseado no conceito de Cassirer, a
perspectiva é uma forma simbólica mediante a qual um conteúdo espiritual particular se
une a um signo sensível concreto e se identifica com ele (Panofsky, 1924/1975). Se, por
um lado, essa forma perspectiva reduz os fenômenos artísticos a regras matemáticas
exatas, por outro lado, o faz em estreita relação com o que é próprio da percepção
humana, do ponto de vista fisiológico, psíquico e subjetivo:
justifica-se conceber a história da perspectiva como um triunfo do
sentido do real, constitutivo de distância e de objetividade, como um
triunfo dessa vontade de poder que habita o homem e que nega toda
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
distância, como uma sistematização e uma estabilização do mundo
exterior tanto quanto um alargamento da esfera do Eu. (p. 160)
As formas de representação na arte expressam concepções de espacialidade que se
alteram em relação à geografia e à história. Não obstante, nos dois polos da concepção,
no sentido da racionalidade e do objetivismo, e apesar da contínua abstração psicológica
e fisiológica dos dados, a perspectiva se funda na vontade de criar o espaço figurativo a
partir dos elementos e segundo o esquema de espaço visual empírico. Desse modo,
conclui Panofsky (1924/1975), abandona-se o “verdadeiro ser das coisas” em favor da
aparência visual das coisas. Com a transposição da objetividade artística no campo
fenomênico, a perspectiva impede o aceso da arte religiosa à região do mágico, mas
abre à própria arte religiosa uma região nova, do “visionário”, onde o milagre torna-se
experiência vivida imediatamente pelo espectador (p. 181).
Conforme Merleau-Ponty (1990, p. 294), a conclusão de que a perspectiva não é
um dado natural, embora assim nos apareça, alerta contra dois erros de interpretação: 1)
não há superartistas ou um espírito do mundo atuando por trás deles: “não se trata de
um inconsciente histórico que dirija os pintores a seu bel prazer, é preciso compreender
que o pintor trabalha e não pensa na história universal”; 2) O desenvolvimento da
pintura não se deve a acasos, porque os artistas, habitantes de um mundo pictórico, são
guiados em seu trabalho por problemas sentidos surdamente: “num quadro lemos uma
história silenciosa, visto que o problema não é explícito”. Dürer (1471-1528) amplia o
problema da perspectiva no momento em que considera que o quadro deve significar o
mundo, assim, “ele deixa de ser um elemento do mundo”. A pintura não se limita à
superfície do quadro. Na medida em que os objetos são escalonados em profundidades,
forma-se uma concepção do mundo: “o quadro é feito para converter o mundo em seu
significado”. Em referência a Sartre, assevera: “O quadro pintado não reside no ponto
do espaço onde está a tela; aparece nesse ponto mas não é esse ponto. O mundo é algo a
construir.”
A partir da citação de Panofsky, Merleau-Ponty (1990, p. 292) demarca a
historicidade da experiência perceptiva e da experiência do mundo por intermédio da
pintura: “Um quadro é o traço manifesto de uma certa relação cultural com o mundo”:
“aquele que o percebe, percebe ao mesmo tempo um certo tipo de civilização. Nos casos
em que a arte procurou fazer-se o menos subjetiva possível, essa arte é a expressão de
uma certa maneira de ser do homem”. E acrescenta: “Os artistas já têm presente um
certo sentimento do mundo: buscaram alguma coisa que viesse completar seu sistema
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
de expressão do espaço; é o conjunto das tensões interiores a seu sentimento que os
orienta.” (Merleau-Ponty, 1990, p. 293)
O espaço é a experiência humana
Ao considerar uma história silenciosa, Merleau-Ponty propõe a arte como
linguagem indireta, por meio da qual a perspectiva geométrica não é o único modo de
projetar a percepção humana do mundo. A perspectiva do mundo aparece como
perspectiva geométrica, mas não em termos de uma lei natural (Merleau-Ponty,
1952/1989, p. 97). A perspectiva geométrica é a circunscrição de uma percepção livre.
Para realizá-la é necessário delimitar a visão e estabelecer padrões de grandeza, guiados
por um ponto de vista formado por apenas um olho, não binocular como a experiência
viva. Os olhos livres são substituídos por um olho imóvel e fixado em um ponto de fuga
central. Depois disso é que se pode desenhar, porque a perspectiva geométrica é mais
que um segredo técnico para imitar o mundo real, ela é a intenção de um “mundo
dominado” (p. 97).
Nesta reflexão, Merleau-Ponty refere-se às formulações de outro pensador
dedicado à sociologia e à história da arte, Pierre Francastel, concernentes à produção
social do espaço pictórico, a partir dos séculos XIV e XV (Pintura e sociedade, 1951).
Francastel notara o trabalho de Panofsky (1924), que colocou a questão do relativismo
da perspectiva, compreendida como uma constante elaboração espiritual e não uma lei.
Porém, procede a uma modificação na formulação do problema. Primeiramente,
trabalha com a ambiguidade dos termos “espaço” e “perspectiva” em momentos
históricos diferentes. No chamado Renascimento, a perspectiva designa um sistema de
organização da superfície plana da tela conforme um ponto de vista único.
Escreveu Francastel (1951/1990, p. 288): “o mundo exterior não é regido por leis
que o fazem girar em torno de cada um de nós; e não somente temos dois olhos, como
cada um deles é móvel”. A perspectiva renascentista é um sistema de montagem, não a
objetividade do mundo. Afasta-se, então, de Panofsky e outros autores por não aceitar a
redução ao domínio intelectual do espaço, também pela pouca consideração que
concedem à figuração através da cor e, sobretudo, por pensarem o espaço como “uma
realidade sobre a qual as gerações especulam segundo diferentes modos, cujas
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
abordagens elas modificam, mas que é, na verdade, um objeto positivo e permanente,
exterior ao homem”.
De modo sintético:
uma obra de arte qualquer não é uma representação, uma transposição,
figurativa ou simbólica, de uma realidade. A obra e o artista não são
exteriores ao mundo sensível e ao mundo social em que agem. (...) A
perspectiva não é uma causa externa, uma receita ou um meio, mas
sim um atributo da obra e da atividade criadora, uma estrutura.
(Francastel, 1951/1990, p. 289).
“Um quadro não é um duplo da realidade, é um signo”, entendendo por signo um
sistema de linhas, cores e formas que permitem ao espectador circunscrever, a partir do
trabalho do artista, “um ponto do espetáculo eternamente móvel do universo” (p. 38).
Não se trata, portanto, de um registro da natureza ou do espaço. A unidade do olhar
sobre a natureza ou sobre uma obra de arte está no espírito daquele que percebe, eis o
fundamento estético e psicológico de Francastel:
“Há o mundo, a imagem vivida; há a imagem percebida que é uma
realidade espiritual para cada autor e cada espectador; há a imagem
notada, que constitui o signo de reconhecimento; e a imagem virtual,
que permite a transmissão do pensamento do autor para o espectador.”
(p. 38)
Francastel (1951/1990, p. 2) propunha uma análise individual e social da
legibilidade e eficácia de um quadro; “uma obra de arte é um meio de expressão e de
comunicação dos sentimentos ou do pensamento”. Entre os séculos XV e XVI, um
grupo de pessoas construiu “um modo de representação pictórica do universo”,
baseando-se em “certa soma de conhecimentos e de regras práticas para a ação” (p. 3).
Embora não se apresente como ruptura brusca entre a Idade Média e o Renascimento,
algo de importante aconteceu entre os artistas. A começar pela formulação do espaço
por Brunelleschi, a luz diáfana por ele e por Donatello, ambos inseridos num quadro de
pesquisas desde o século XII; e mesmo a partir de uma descoberta, apenas lentamente e
por meio de diferentes experimentos, se transformou o mundo estabelecido em um
mundo designado moderno (p. 13).
O autor tem reservas quanto à condição de heróis desse processo, por exemplo:
Que Masaccio tenha dado sua colaboração para a grande corrente de
arte não é coisa que se ponha em dúvida, mas não poderíamos ver nele
o homem que fez mudar o sentido da representação plástica do espaço
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
graças a um achado genial, análogo ao de Brunelleschi. (Francastel,
1951/1990, p. 16)
No início do Quattrocento, “criava-se em virtude de uma necessidade interior, não em
virtude de um plano preconcebido” (p. 19). Artistas menos conhecidos pesquisam sobre
receitas antigas “mas não concebem que elas contêm em germe uma revolução que
exclui qualquer recurso às antigas fórmulas” (p. 20). Os procedimentos chamados
renascentistas eram inicialmente apenas mais uma invenção técnica no vasto campo de
especulações espaciais.
Daí concluir:
O espaço não é uma realidade em si, da qual somente a representação
é variável segundo as épocas. O espaço é a própria experiência do
homem. É tão-só porque séculos de convenção habituaram-nos a
aceitar determinados signos expressivos utilizados na educação, com o
fito de desenvolver simultaneamente nossas faculdades matemáticas e
nossas faculdades visuais, que nos parece evidente que determinada
perspectiva euclidiana fornece-nos, de modo espontâneo, a ilusão
perfeita da realidade. (Francastel, 1951/1990, p. 24).
Esta tese crítica às concepções objetivistas do espaço é traçada em diálogo com a
psicologia, tornando-se compreensível pela relação que estabelece com Piaget e Wallon.
Por sua vez, Merleau-Ponty (1952/1989, p. 91) indica que Brunelleschi construiu
a catedral de Florença numa relação proporcional com a paisagem local – a cidade, os
prédios e as ruas. Embora seja difícil determinar o momento exato de mudança entre o
espaço fechado medieval e o espaço universal renascentista, Brunelleschi mostrou que o
espaço da representação é uma questão importante. Muito tempo antes de mudanças
objetivas, artistas e arquitetos inconscientemente trabalharam baseados nessa questão.
A emergência da vida social em um processo temporal
Merleau-Ponty afirma uma compreensão corporal do espaço. Em sua tendência
para o alto, considerava as formas de nossa ancoragem no mundo a orientar a
significação do mundo:
O mundo só tem significado porque tem uma direção; toda localização
dos objetos no mundo pressupõe minha localização; num sentido, o
objeto da percepção não cessa de nos falar do homem; é nossa
expressão como sujeitos encarnados. (Merleau-Ponty, 1990, p. 292)
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Na fenomenologia da percepção, portanto, é a relação de ser encarnado no mundo que
estrutura o processo de significação, a partir do qual o espaço, as coisas e os outros se
localizam. Não se trata tão somente de um corpo sensorial, mas de um corpo portador
de técnicas, de estilos, de condutas.
A citação a Panofsky na conclusão de O olho e o espírito esclarece que os
problemas da pintura são resolvidos indiretamente. Quando os artistas veem-se diante
de um impasse, se esquecem de suas próprias questões e, de repente, encontram a
solução para aquele problema. Como num labirinto, uma profundidade histórica
movimenta-se e isso não quer dizer que o pintor não sabe o que quer, mas que deseja
algo abaixo de seus planos (Merleau-Ponty, 1964, p. 90).
A dupla referência a Panofsky e a Francastel em Merleau-Ponty evidencia o
espaço pictórico como a expressão de um processo histórico, baseado em uma produção
social e psicológica de significados. Desse modo, a pintura manifesta certo tipo de
civilização porque o processo da percepção organiza-se socialmente de modo particular
em cada momento histórico. Tal consideração é perpassada pela compreensão do
simbólico em Merleau-Ponty (1989, p. 151): “fonte de toda razão e de toda irrazão”.
Nos seus primeiros escritos, considerava o advento da “ordem humana” como
advento da “ordem simbólica”. Para o filósofo francês, o que define a humanidade não é
a “capacidade para criar uma segunda natureza – econômica, social, cultural – para além
da natureza biológica, mas, sobretudo, a capacidade para ultrapassar as estruturas
criadas para daí criar outras.” (Merleau-Ponty, 1942/2002, p. 189). Ele considera que a
estrutura presente fora de nós, nos sistemas naturais e sociais, está em nós como função
simbólica e “permite compreender como estamos numa espécie de circuito com o
mundo sócio-histórico, o homem sendo excêntrico a si mesmo e o social só encontrando
seu centro nele” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 153). A ambiguidade da relação deriva
do fato de indivíduo e sociedade serem duas totalidades; há “uma totalidade dentro de
uma totalidade e dupla perspectiva”. Do Manuel d’Ethnographie de Mauss (1947),
Merleau-Ponty (1947/1989, p. 133) extrai a seguinte afirmação: “O espírito de uma
civilização compõe um todo de funções; é uma integração diferente da soma da
totalidade das partes”.
O debate acerca das estruturas figurava nas ciências humanas, na sociologia, na
antropologia, na história, na psicologia e na linguística, junto a trocas mais ou menos
conflituosas de conceitos-chave. Retome-se a terminologia do habitus e a fundamental
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
tradução francesa de dois textos de Panofsky por Pierre Bourdieu, Abbot Suger on the
Abbey Church of Saint-Denis e Gothic Architecture and Scholasticism (1967), na qual o
sociólogo refere-se à iconologia como uma ciência estrutural oposta tanto ao
intuicionismo quanto ao positivismo, desenvolvendo um método que extraía das
realidades “as estruturas que nelas se exprimem e se ocultam” (Bourdieu, 1992, p. 339).
Nesta concepção, concorda que não há lugar para a ideia de pessoas superiores, cuja
criação tocaria o espírito do mundo (p. 342). Porém, tanto Bourdieu desenvolve uma
leitura crítica à fenomenologia, quanto a noção de estrutura sofre variações na
interpretação desses autores. Merleau-Ponty confere um sentido específico à estrutura
social, particularmente no que diz respeito ao mundo da arte.
Se, por um lado, um espaço de diálogo entre Merleau-Ponty e Francastel dava-se
no âmbito da psicologia – note-se que este último publicava artigos no Journal de
Psychologie durante a década de 1950 –, de outro lado, ambos remetem seus escritos ao
historiador Lucien Febvre, cuja proposição estabelecia o diálogo entre psicologia e
história. Basta citar dois de seus mais conhecidos artigos: “Une vue d’ensemble: histoire
et psychologie” (1938) e “La sensibilité et l’histoire” (1953). Febvre (1953/1987, p.
104) expunha seu diálogo com a psicologia de Wallon frente ao exercício de religar “ao
conjunto de condições de existência de uma época o sentido dado a suas ideias pelos
homens dessa época”. Para tanto a iconografia artística apresenta-se como documento
histórico. Merleau-Ponty (1947/1989, p. 134) remete ao mais famoso livro de Febvre,
Le problème de l’incroyance au XVIéme siècle – la religion de Rabelais (1943),
evidenciando a necessidade de se recompor o passado no presente tal como foi vivido
por seus contemporâneos, sem lhes impor nossas categorias. Considera a tarefa de
examinar as “componentes subjetivas do acontecimento”: a aparelhagem mental
(outillage mental) do século XVI não pode ser descrita em nossa linguagem, nem
pensada com nossas categorias.
Por meio da noção de estrutura – o “ingrediente irredutível do ser” –, MerleauPonty (1947/1989, p. 129) questiona a alternativa clássica da “existência como coisa” e
da “existência como consciência”:
estabelece uma comunicação e uma espécie de mistura do objetivo e
do subjetivo, concebe de maneira nova o conhecimento psicológico,
que não consiste mais em decompor conjuntos típicos, mas, antes, em
esposá-los e compreendê-los.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A estrutura e sua compreensão permitem redescobrir um conhecimento que o sujeito
esquece em sua atitude natural (p. 135).
Se uma sociedade encontra um caminho que já foi seguido alhures, não se tratará
de uma “consciência coletiva” ou de um “arquétipo” transcendente, mas é esta estrutura
mítica que “oferece uma via para a resolução de alguma tensão local e atual, sendo
recriada na dinâmica do presente” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 145). Sua crítica
dirigia-se a Durkheim e Lévi-Bruhl:
Durkheim tratou o social como uma realidade exterior ao indivíduo e
encarregou-o de explicar tudo o que se apresenta ao indivíduo como
dever-ser. Mas, o social só pode prestar esse serviço se não for uma
coisa, se investir o indivíduo, solicitá-lo e ameaçá-lo ao mesmo
tempo, se cada consciência, ao mesmo tempo, se perder e se encontrar
na relação com as outras consciências, enfim, se o social não for
”consciência coletiva”, mas intersubjetividade, relação viva e tensão
entre os indivíduos. (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 132).
Deriva daí a afirmação: “Os fatos sociais não são coisas nem ideias: são
estruturas” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 143). A estrutura garante o funcionamento
social, aparecendo como óbvia aos que a praticam. No fundo dos sistemas sociais reside
uma infraestrutura servindo como um “pensamento inconsciente”, “uma antecipação do
espírito humano”. E conclui:
Que nome dar a este meio onde uma forma, prenhe de contingência,
abre subitamente um ciclo de porvir e o comanda com a autoridade do
instituído? Que nome, senão o de história? Sem dúvida, não a história
que pretenderia compor todo o campo humano com acontecimentos
situados e datados no tempo serial e com decisões instantâneas, mas a
história que bem sabe que o mito, o tempo legendário obcecam
sempre, sob outras formas, os empreendimentos humanos que
esquadrinham além e aquém dos acontecimentos parcelados, história
que se chama, justamente, história estrutural. (p. 153)
Em Panofsky, o microcosmo do trabalho do pintor está no centro da compreensão
da vida social no processo histórico, numa transformação observada no interior do
mundo pictórico, cujos problemas são sentidos silenciosamente pelos artistas, porque
situa a questão no âmbito psicossocial, na referência à “visão de mundo”. Em
Francastel, o grupo de pessoas que construiu um modo de representação pictórica do
mundo no século XV o fez em virtude de uma necessidade interior, não baseadas em um
plano preconcebido, mas ligadas a uma rede de trabalho e pesquisa de artistas menos
conhecidos e de séculos anteriores, portanto, em um nível de significação psicológica
que não é individual, senão social. Em ambos os casos, a infraestrutura dos atos sociais
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
remete a um arquétipo cuja forma é dinâmica, plástica e inconclusa. A pintura como
traço histórico e mediação para compreensão psicossocial eleva-se na formulação de
Merleau-Ponty, na afirmação do sentido imaterial da vida social, estruturado nas
relações entre os sujeitos de modo intersubjetivo, tal como os artistas que, diante de um
impasse, esquecem de suas próprias questões, encontrando de modo indireto suas
soluções. A emergência da vida social desenvolve-se em um processo temporal cuja
expressão deixa traços no espaço da pintura, solicitando o exercício de interpretação
duplamente articulado entre a história e a psicologia.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
3. Imagem da natureza, natureza da imagem
Um passeio de Diderot
No comentário ao Salão de 1767, Denis Diderot (1713-1784) discorre sobre a
própria redação do texto, aberto com a menção do pintor Claude-Joseph Vernet (17141789), na partida de Diderot a um campo vizinho ao mar, reconhecido por sua beleza.
Durante o passeio, estava acompanhado de um abade e seus dois alunos. Caminhava
cabisbaixo quando foi arrebatado pelo lugar. Uma massa de rochedos separa a cena em
duas profundidades. À direita, dois pescadores, ao fundo, sobre uma espécie de
calçamento feito de rochas, uma carroça e seu condutor movem-se em direção a um
vilarejo abaixo: “Meus olhos, deslizando sobre o cume desta língua de rochedos,
encontraram o topo das casas da vila e foram penetrar e se perder em um campo
limitado pelo céu” (Diderot, 1767/1995, p. 633; minha tradução).
O acompanhante, então, indagou-lhe: qual de seus artistas teria imaginado romper
a continuidade deste calçamento de rochedos por um tufo de árvores? A resposta:
“Vernet pode ser”. “Mas Vernet teria dali imaginado a elegância e o charme? – continua
o arguidor – Teria ele podido restituir o efeito quente e picante desta luminosidade que
joga entre troncos e galhos?” Diderot: “Por que não?”. Observam então detidamente o
fenômeno natural, tal como representado, especialmente pelos recortes na massa de
rocha e a torrente de água. O escritor convida o colega: “Vá ao Salão, e você verá que
uma imaginação fecunda, ajudada de um estudo profundo da natureza, inspirou a um de
nossos artistas precisamente estes rochedos, esta cascata e este canto de paisagem”.
Depois de uma série de provocações ao abade quanto à realidade daquele sítio
espetacular –, as nuvens, os rochedos etc. –, afirma a capacidade singular de Vernet de
estabelecer ao espectador um novo plano: “Vernet quer que os seus [céus] tenham o
movimento e a magia daquele que nós vemos”. O acompanhante ensaia um último
golpe: “... eu não deixaria jamais a natureza para correr atrás de sua imagem; por mais
sublime que seja o homem, ele não é Deus”. Mas, pondera Diderot, conhecendo melhor
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
o trabalho do artista, pode-se ver na natureza aquilo que você ali não vê: “se Vernet vos
ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet.”
Para Oskar Bätschmann (2002, p. 14), a manifestação de Diderot ao Salão de
1767 desenvolve uma nova explanação acerca do prazer derivado da paisagem pictórica
e propõe uma teoria da compensação: jardins e paisagens pictóricas existem para
compensar nossa perda da natureza. Suas ideias sofreram a influência da crítica social
de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), na qual a herança do calvinismo de Genebra
colocava em questão tanto a ciência quanto a arte. Não obstante, a alienação da
humanidade da natureza adquire uma postura distinta. As pinturas com imagens de
paisagens e de animais, assim como os parques artificiais, seriam substitutos a
compensar a perda da natureza. A elaboração textual de Diderot teria sido intercalada
por longos passeios pelo campo, os quais, ao final, revelam-se inteiramente imaginários;
seu gosto pela natureza derivava somente da paisagem pintada por Claude-Joseph
Vernet.
A formulação de Diderot suscita algumas indagações. Primeiro, a constatação
acerca da perda da natureza, da alienação da humanidade europeia face à natureza, era
questão no século XVIII, notadamente, pela concepção mecânica da natureza da Ciência
Moderna. A relação com a natureza através da imagem da paisagem poderia aparecer,
para Diderot, como uma forma de compensação. No processo histórico de constituição
da imagem pictórica da paisagem, o lugar da natureza seria central, mas contraditório,
pois no exercício da compensação da perda a própria natureza poderia ser suprimida
pela sua imagem. A compreensão social desse processo recoloca em questão o conceito
de mimesis e suas implicações no conhecimento da imagem da natureza em relação à
natureza da imagem.
Imagem da paisagem e representação da natureza
A referência ao lugar aparece em muitas línguas ocidentais, conforme Roger
(2000, p. 33): landscape, landschaft, paisaje, paesaggio, paysage, paisagem. Na forma
de land ou pays, circunscreve-se uma região conhecida daquele que percebe – na raiz
latina, pagus refere o povoado. A designação aparece na forma de landschap, em
holandês, na segunda metade do século XV. Conforme Schama (1996, p. 20), a palavra
landscape
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
entrou na língua inglesa junto com herring (arenque) e bleached linen
(linho alvejado), no final do século XVI, procedente da Holanda. E
landschap, como sua raiz germânica, Landschaft, significava tanto
uma unidade de ocupação humana – uma jurisdição, na verdade –
quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de uma
pintura.
Segundo esse autor, os italianos trataram de modo equivalente como parerga, “o
ambiente idílico e pastoril de riachos e colinas cobertas de dourados trigais”.
A tradição da imagem pictórica concernente ao mundo da paisagem foi bastante
discutida na literatura e está circunscrita a um processo histórico delimitado ao Ocidente
durante a Idade Clássica. Não obstante, em antigas tradições do Oriente, fundamentavase uma apreensão da paisagem conforme significação peculiar que considerava os
elementos da paisagem em relação a formas vivas, de animais e de seres humanos.
Baltrusaïtis (1955, p. 18) notara que o sistema topográfico Feng Chui vinculava
elementos da natureza, como a água e o vento, a uma visão astrológica. Nesse sentido,
cumes de montanhas poderiam referir a planetas – o pico agudo a Marte e o alto e
arredondado a Vênus – e as formas de rochedos e plantas aparecem como organismos
vivos:
Trata-se de um pensamento metafísico mas que implica um estilo,
uma concepção de artista. Ele fornece a chave destas paisagens
alucinantes onde os rochedos se armam em um combate de bestas e de
gigantes ou adormecem com suas cristas fumegantes, como criaturas
pré-históricas.
São exemplares as paisagem de Li Chan, do início do século XIII, nas quais formas
humanas e animais surgem das dobras dos rochedos, também em citações de época a
Jao Tseu-jan e Tchang Yen-yuan.
No Ocidente medieval, a ideia da paisagem relaciona-se à invenção do Paraíso.
Essa cena bíblica não aparecia na iconografia da Idade Média, na qual as personagens
não eram representadas sobre um hortus deliciarum. A ênfase estava no tema da queda,
onde árvore e seres cumprem um papel simbólico no interior da narrativa. Conforme
notou Tereza Aline de Queiroz (2000, p. 59), isso não se devia a uma ausência de
vocabulário plástico, sobretudo porque os mosaicos bizantinos dos séculos V e VI
demonstram conhecimento de plantas, animais e paisagens naturais, de acordo com
outros registros provenientes do Oriente Médio, e também localizado na escultura
românica. Grande parte da iconografia dos séculos VIII e XII, ao versarem sobre o
Paraíso, o fazem sobre um não-espaço, atópico. Conforme esta historiadora, no
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Julgamento Final de Fra Angelico (c. 1432-1435) nota-se uma imagem designada
“paraíso-paisagem-jardim”, no sentido pleno da paisagem natural, em que a narrativa
não focaliza o tema do pecado. Por outro lado, Queiroz (p. 62) não deixa de registrar
que elementos naturais eram frequentes nas iluminuras góticas, seja em cenas de caça
em florestas, seja na representação da Virgem metaforicamente como hortus conclusus.
Kenneth Clark, em Paisagem na arte, procurou traçar uma linha divisória entre
toda a iconografia ocidental e oriental da natureza, definindo o significado moderno do
termo. “As primeiras paisagens (no sentido moderno) conhecidas são as dos frescos do
Bom e do Mau Governo, de Lorenzetti (c. 1340). Elas seriam de tal modo realistas “que
dificilmente as podemos incluir na paisagem simbólica e mantêm-se únicas durante
quase um século. Simone Martini, por outro lado, foi o interprete nato da beleza
celestial em termos sensoriais” (Clark, 1961, p. 24). Alain Roger (2000, p. 34)
acrescentaria ainda, do próprio Lorenzetti (ou atribuído a Sasseta), as imagens Castelo
na borda do lago e Vila sobre o mar (Pinacoteca de Siena).
Esta demarcação reconhece as paisagens de pinturas antiquíssimas, tais como as
de Catalhöyük (Turquia, c. 6000-8000 a. C.), mas em outra chave de significação
daquilo que se tornou a paisagem no Ocidente, depois do século XIV. Neste momento,
nota-se a famosa caminhada de Petrarca, o homem do ar livre, o primeiro a subir numa
montanha “pelo próprio prazer da subida e para gozar o panorama do alto” (Clark, 1961,
p. 26). Petrarca e Simone Martini encontraram-se em Avignon e mantiveram
importantes relações intelectuais. Nessa cidade, Clark situa a primeira expressão
pictórica do sentimento moderno da paisagem, os afrescos da Tour de la Garde-Robe,
no Palácio dos Papas (c. 1343), a partir dos quais fundamentou sua abordagem em uma
mudança da mentalidade que corresponderia a uma transformação da percepção do
espaço, por volta de 1420.
Duas condições foram necessárias para a invenção de uma moderna compreensão
da paisagem, nas palavras de Roger (2000, p. 35): (1) “Laicização”, a exemplo de livros
como Tacuina sanitatis (Tratado de saúde), traduzido do árabe, no século XIV, na Itália
do Norte, que apresenta registros de plantas medicinais e retira os elementos da natureza
do âmbito do sagrado; (2) “Unificação”, na qual os elementos naturais são organizados
em torno de si próprios, de modo autônomo. Esta dupla operação Roger situa no Rico
livro das horas, do duque de Berry, ilustrado por Limbourg (c. 1414-1416), mas,
sobretudo, indica a veduta que abre o interior dos quadros para o exterior, como o
elemento que transforma pays em paysage, processo pelo qual o espaço converte-se em
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
imagem. Esta designação aparece na forma de landschap, em holandês, na segunda
metade do século XV: trata-se da paisagem como espaço delimitado pela janela
pictórica.
Para Isabelle de Lajarte (1995, p. 28), esse processo imagético orienta-se tanto por
questões econômicas quanto sociais, indicando o Norte europeu como ambiente onde
surge a paisagem, na contemplação burguesa da natureza e na reação ao jugo católico. A
perspectiva introduziu, no século XVI, noções de profundidade, distância e horizonte,
unificando os elementos da natureza, o equilíbrio das massas de sombra e luz. A partir
de imagens precisas de Dürer, Patinir (1485-1524) e Van Eyck (1414-1417), a
composição da paisagem torna-se campo importante de estudo entre os pintores
europeus, tais como Giorgione (1471-1510), Ticiano (1490-1576) e Altdorfer (c. 14801538). Trata-se de composição que fornece o suporte ou o cenário para os temas
principais, históricos, religiosos ou mitológicos em, por exemplo, Poussin (1594-1665),
Fragonard (1732-1806) e Watteau (1684-1721). A natureza ali é ideal, muitas vezes
acrescida de ruínas.
Apesar de a paisagem heroica ou mitológica perdurar no âmbito das academias
como a forma mais digna, até o final do século XVIII a designação de “paisagem
campestre” aparece no vocabulário francês (paysage champêtre) vinculando a ideia de
representação à fidelidade ao objeto natural. Não obstante, como notou posteriormente
Warburg, os pintores observavam a natureza sob camadas de crenças e formas clássicas,
daí Gombrich (1977, p. 19) defender Malraux ao afirmar que a arte não nasce na
natureza, mas da arte, subentendendo o debate sobre a natureza na arte em relação à
história das imagens da arte.
A experiência da natureza
A imagem da paisagem, em sua passagem de um espaço simbólico – em
referência a outro mundo – para um espaço real – em referência ao mundo em comum –
desenvolve-se por intermédio da experiência da natureza, processo cuja correspondência
histórica localiza-se na formação da ciência moderna.
As perspectivas em relação à natureza nos séculos XVII e XVIII eram muito
diversas, como demonstra Robert Lenoble (1990, p. 281). Não obstante, o próprio autor
esboça uma síntese das passagens situadas no conhecimento daquele período:
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Assistimos a um imenso movimento de pêndulo: no Renascimento, o
homem tem consciência de sua alma e projeta-a na Natureza, a quem
concede também uma alma. No século XVIII, em pleno dualismo,
reivindica a alma para si mesmo e mecaniza a Natureza. Agora, deixase de novo penetrar pelas coisas, mas pelas coisas mecanizadas, e é a
Natureza que vai projetar no homem o seu mecanismo e esvaziá-lo da
sua alma. (p. 286)
O mundo natural admirado no Setecentos é aquele domesticado, os campos
cultivados. Conforme examinou Carlos Diegues (1994, p. 19), o valor de áreas não
transformadas pelo homem desenvolve-se apenas no século XIX. As classes urbanas,
não ligadas ao trabalho começam a encontrar no campo um lugar adequado ao seu lazer,
ao passo que a praia e o mar lentamente constituem-se em ambientes de isolamento e
contemplação da natureza. Somente então a noção de wilderness consolida-se,
sobretudo nos Estados Unidos, para designar áreas não habitadas pela civilização
ocidental (excluindo-se áreas indígenas) cuja criação do Parque Nacional de
Yellonstone, em 1872, é o exemplo maior. Diegues considerava esse processo de
transformação em referência ao mito do paraíso perdido, ao qual são associadas
experiências de percepção e cognição, bem como categorias propriamente estéticas, tais
como o “sublime” e a “beleza”. Em autores estadunidenses, Thoreau (1859) e Marsh
(1864), a relação estética com a natureza é notável. Neste último, por exemplo, as
justificativas de preservação das áreas virgens eram tanto econômicas quanto poéticas
(p. 23).
Além da estética, a experiência da natureza era também mediada pela mitologia.
O mito do paraíso perdido entrelaçava-se com a formação da ideia de natureza desde as
viagens de exploradores, no projeto enciclopédico e nas expedições científicas.
Conforme foi indicado por Ana Maria Belluzzo (1996, p. 16), nos processos simbólicos
o naturalismo do Seiscentos foi acompanhado de seu oposto, os conteúdos de
convenções clássicas idealizadas. Passadas duas centenas de anos, “as idealizações
paradisíacas, visões da floresta frequentada pelo homem ‘natural’, são novamente
revividas por artistas românticos, em reedições dos mitos de origem. No curso de quatro
séculos, a visão territorial e a paisagem impõem-se como representações privilegiadas”.
Naqueles testemunhos imagéticos, continua a historiadora:
A natureza não é mais entendida como fruto da ação providencial,
nem transmite mensagens divinas aos homens. Não resulta tampouco
da fatalidade dos astros, como entendiam concepções da física
finalista dos filósofos antigos. Não havendo uma intenção na natureza
a ser lida pelos homens, eles podem passar a aprender o mundo
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
sensível, que se apresenta como a imagem da realidade. O caminho do
conhecimento que conduz à natureza é reduzido aos sentidos.
(Belluzzo, 1996, p. 17)
De modo esquemático, as imagens da natureza no início do século XIX europeu
organizam três conjuntos de significados: 1) as representações científicas de uma
natureza mecanizada; 2) um naturalismo enciclopédico em referência à potência da
natureza; 3) uma concepção mística da natureza, notadamente nos autores românticos.
Lenoble (1990, p. 298) designou esse naturalismo da Enciclopédia de “ateu”,
enfatizando sobretudo a formação de Diderot: “Devoto da Natureza, não é na qualidade
de sábio que se vira para ela, mas na qualidade de artista ávido de encontrar nela uma
razão de viver e motivos de otimismo”. Não obstante, anticlerical, Diderot não aceita o
panteísmo dos predecessores, opõe Natureza e Deus, “amante da Mãe Natureza, em luta
obstinada contra o Pai do Céu”. Por outro lado, Diderot não acomoda a natureza nas leis
rigorosas da ciência.
O quinto passeio dos Devaneios do caminhante solitário, de Jean-Jacques
Rousseau (1782/1995), datado entre a primavera e o verão de 1777, é um marco das
narrativas sobre a experiência da natureza em sentido moderno. O amor à natureza é
declarado com remissão à lembrança de sua estada na Ilha de La Motte, nas margens do
lago Bienne, em Neuchâtel (Suíça), consideradas como “selvagens” e “românticas”.
Conforme tradução brasileira, Rousseau utilizou o termo inglês romantic com o sentido
de “romanesco” e “pitoresco”.
A leitura dos Devaneios do caminhante solitário situa a experiência da natureza e
da vida social em dois polos do sentimento do “eu” de Rousseau. Revendo a história
bastante conhecida, essa disjunção atinge um limite. Em 1762, a publicação de Émile e
do Contrat social disparam sua mais profunda crise no convívio urbano e promovem a
retomada radical da experiência da natureza, real e imaginária. Tratava-se de uma
questão moral, religiosa e política; a natureza é refúgio ao drama da vida social. No
prefácio à edição brasileira, Fúlvia Moretto (1995) destrinchou os sentidos para a
palavra rêverie, recuperando um debate significativo dos especialistas no autor, para os
quais o sentido primitivo remete a um vagar, vagabundear predominantemente físico,
em contrapartida ao sentido de meditação, vagar em pensamentos.
O autor de Rêveries-Devaneios somente devaneia ao caminhar, ao
passear, a ponto de introduzir no título de sua obra o caminhantepromeneur. [...] Se até o século XVIII ainda há alternância no
emprego da palavra rêverie, é com Rousseau que ela atinge toda a sua
ressonância moderna, romântica. (Moretto, 1995, p. 12)
45
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Por um lado, temos a meditação, o sonho, a reflexão, por outro, o peregrino, o
viajante, o caminhante; deslocamentos mentais e corporais conjugados. O lugar do
passeio é tanto o meio social quanto as trilhas naturais. A dinâmica natural ajuda a
pensar:
Tudo vive num fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva uma
forma constante e definitiva e nossas afeições, que se apegam às
coisas exteriores, passam e se transformam necessariamente como
elas. Sempre à nossa frente ou atrás de nós, lembram o passado, que
não mais existe ou antecipam o futuro que, muitas vezes, não deverá
existir: nada há de sólido a que o coração se possa apegar. (Rousseau,
1780/1995, p. 76)
O momento presente é contraposto ao passado: “eis-me portanto reduzido a meu
feno como único alimento e à botânica como única ocupação”. Lembra-se do tempo em
que herborizava na Suíça, com o doutor d’Ivernois, em viagens pelas montanhas,
depois, sedentário em Paris, abandona seus estudos botânicos, aos quais retorna
sexagenário, a catalogar tantas quantas forem as plantas que encontrasse. O pensar é
caracterizado como ato penoso, enquanto a imaginação e o devaneio poderiam levar ao
êxtase. A imagem da natureza é vivenciada em duas esferas, seja no contato direto com
a vegetação, a terra e o ar, seja na atividade imaginativa (distinta do pensar), capaz de
sustentar o frescor natural, em uma “recreação para os olhos”, tomada de beleza e
encanto.
Natureza da imagem
Nas palavras de Rousseau, a experiência da natureza fora descrita em um sentido
impossível de ser superado pela imagem da paisagem porque continha a imensidade dos
elementos sensíveis.2 A imagem, sobretudo mental, aparece como um recurso
importante na experiência do espetáculo natural. Rousseau estava empenhado em
desenvolver uma capacidade imaginativa com a experiência da natureza, enquanto
Diderot supunha possível o processo da imaginação a partir da própria pintura.
2
Nas palavras de Rousseau: “Quanto maior for a sensibilidade de sua alma, mais o contemplador se
entregará aos êxtases que excita nele essa harmonia. Um devaneio doce e profundo apodera-se então de
seus sentidos e ele se perde, com uma deliciosa embriaguez, na imensidade desse belo sistema com o qual
sente-se identificado. Então todos os objetos individuais lhe escapam; nada vê, nada sente senão no todo.
É preciso que alguma circunstância particular comprima suas ideias e circunscreva sua imaginação para
que possa observar por partes esse universo que se esforçava por abarcar”. (Rousseau, 1780/1995, p. 93)
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A citação dos Devaneios busca reforçar o entrelaçamento entre a percepção da
natureza e o processo da imaginação, no qual a imagem da natureza ocupa um lugar
central. Até aqui, foram sistematizadas brevemente duas séries de dados: uma a
culminar com a natureza representada na imagem pictórica, nomeando o gênero
paisagem; outra descreve a experiência da natureza. Embora essas duas séries se
entrecruzem, não poderiam ser consideradas um único processo sem as distinções que
lhes cabem: a imagem da natureza não é o reflexo da experiência social da natureza. A
natureza adquiriu um estatuto no final do século XVIII, em correspondência à
transformação da experiência social e econômica; paralelamente, a imagem pictórica
assumiu um papel nuclear, tornando-se ela mesma o objeto da contemplação, acima da
natureza. Por um lado, o início da era moderna enaltece a natureza na arte, entre os
românticos a própria arte eleva-se do movimento orgânico da natureza. Por outro lado,
na experiência social urbana, a imagem ameaça ocupar o lugar da natureza.
A preferência pela imitação frente ao imitado revela-se, por exemplo, na crítica de
René Bray, no início do século XVIII:
Embora as belezas naturais sejam preferíveis às belezas da arte, tal
não é, contudo, o gosto deste século. Só agrada o que custa. Uma
fonte que brote em largo jorro do sopé de um rochedo, fazendo rolar,
sobre uma areia dourada, a água mais clara e fresca do mundo, não
agradará tanto às gentes da corte quanto um jato de água fétida e
lamacenta, extraída com grandes despesas de algum charco. (citado
em Costa Lima, 1989, p. 42)
Considere-se duas compreensões conjugadas sobre a natureza da imagem, uma
nossa contemporânea, outra da época. As concepções atuais de imagem divergem
deveras daquelas de séculos anteriores, sobretudo porque vivemos em uma sociedade na
qual predominam imagens tecnológicas em um ritmo de difusão altamente acelerado.
O filósofo da comunicação Norval Baitello Júnior (2005) descreve a imagem
como a criação de uma segunda realidade em um jogo entre presença e ausência. Toda
imagem tem uma dupla face, uma é visível aos olhos, outra é invisível, ambas movemse e transformam-se através da experiência histórica humana. Como assinalou W. T. J.
Mitchell (1986), a imagem não perdeu seu poder na sociedade contemporânea, embora
isto não esteja claramente entendido. A imagem pode referir uma variedade de coisas:
estátuas, figuras, sonhos, mapas, poemas, ideias etc. É uma família na qual o significado
muda e migra através do processo social, no tempo e no espaço. Pensando sobre essa
família, Mitchell propõe não uma definição universal do termo, mas a consideração
47
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
acerca das passagens entre os diversos significados das imagens, referindo “àqueles
lugares onde as imagens foram diferenciadas a si mesmas, umas das outras, baseadas
em fronteiras entre diferentes discursos institucionais” (p. 9; minha tradução).
Para a psicologia social, a imagem não é apenas uma coisa física, mas um
movimento de mediações entre os objetos icônicos, as imagens corporais e as imagens
mentais dos observadores. Os movimentos de transformação da imagem são
compreendidos enquanto fenômeno imagético no processo social, na vida intersubjetiva,
como um campo de significação estética, política, econômica e cultural. Nesse domínio,
a psicologia social participa de diálogos com a sociologia, a história e a antropologia.
Noutra perspectiva, examinar a compreensão da época, os significados sociais
atribuídos às imagens no século XVIII, seria uma tarefa fora dos propósitos e das
possibilidades deste texto. Não obstante, convém registrar as marcantes distinções na
forma de perceber, em um tempo no qual as imagens eram, sobretudo, manuais,
pintadas, desenhadas, gravadas, esculpidas, impressas. O estatuto da pintura como arte,
na forma clássica, acabara de ser instituído e estava longe de ser questionado (como verse-ia com o impressionismo e com as vanguardas do século XX). A participação do
espectador e o lugar do corpo no processo estético não eram questão.
Autores do campo da visualidade e da história da percepção trataram do olhar nos
século XVIII e XIX com vistas à relação mantida com imagens e com dispositivos que
criavam novas formas de perceber. O corpo não era questão para uma visão de mundo
em que o modelo do conhecimento era a câmera obscura. Conforme escreveu Crary
(1988, p. 3), durante duzentos anos a câmera obscura servia de metáfora para se pensar
o status do observador, tanto entre racionalistas quanto entre empiristas. Com Johann
Wolfgang von Goethe (1810) as pesquisas de ótica baseadas na câmera obscura
ingressam em uma fase de indagações, em relações entre interior e exterior, observador
e representação, a partir das quais anuncia-se a negação da câmera obscura, seja como
sistema da ótica, seja como princípio epistemológico, em referência ao mundo clássico.
Goethe falava então de “cores fisiológicas” pertencentes ao corpo do observador, em
sua revisão acerca do lugar do olho no processo perceptivo e cognitivo.
De modo geral, a imagem da qual se fala neste artigo é a imagem pictórica.
Durante a era Clássica, o pintor foi apartado da concepção medieval de ofício,
paralelamente ao desenvolvimento do estatuto da pintura como obra de arte autônoma,
afirmando-se como domínio de conhecimento específico, em torno do debate acerca da
centralidade do desenho, da cor e da luz, na constituição da matéria e da forma. Esta
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
imagem reservou um lugar privilegiado ao desenho, como instrumento de experiência
da “verdade exterior” dos seres, em uma operação do raciocínio e da análise, na qual a
imagem submetia-se à representação da “forma” (Belluzzo, 1996, p. 18). Na abordagem
de Maria Lúcia Kern (2006, p. 24), no século XVIII estava em curso um processo de
auto-referência na pintura:
a imagem pictórica deixou definitivamente de ser concebida como
poesia muda e revelação do mundo, tal qual se apresentava no
Renascimento. Os seus próprios meios de representação tornaram-se
progressivamente o seu objeto, e a verdade da imagem começou a ser
identificada nesses meios, isto é, nas invenções dos artistas e nas suas
próprias linguagens. Após longo período de discussão, a literatura
perdeu a função obrigatória de conceber subsídios ao artista para criar
a imagem pictórica.
No universo dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1996, p. 17) distinguiu as
imagens seiscentistas pelo fundamento em analogias, comparações entre o que
encontravam em seus percursos e aquilo que relatavam os textos, “semelhanças entre
aparências contemporâneas e lições da Antiguidade. São procedimentos por
aproximação, em cuja linguagem simbólica predomina o exercício substitutivo das
metáforas”. Para a autora, o legado dos holandeses na América portuguesa evidencia a
construção histórica do “observador”, quando se busca “apreender a estrutura visível
dos seres, conhecendo-os um a um, em sua singularidade a partir da dimensão visível.”
A pintura holandesa participa de um novo período da visualidade: “A nova noção
de imagem diz respeito aos simulacros visíveis dos corpos, às emanações luminosas das
coisas no espaço, ao vazio que torna possível a construção do volume dos corpos.”
(Belluzzo, 1996, p. 17) Tal visão da natureza e da imagem se desenvolve entre os
séculos XVII e XIX, os viajantes eram também artistas e as concepções de desenho e
pintura colaboravam com o pensamento científico. Noutro estudo, Belluzzo (2008)
enfatizou que a paisagem do século XIX não poderia ser reduzida à chave naturalista,
pois continuava dependente de modelos de interpretação. No caso dos viajantes
europeus no Brasil, têm como modelos predominantes a viagem à Itália e o sonho
humanista em torno dos sinais das civilizações antigas. A historiadora refere-se a um
“mapeamento arcádico”, modelando a paisagem local conforme as convenções
pictóricas europeias. A viagem pitoresca associava a tradição paisagística à “mística da
identidade nacional”.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Natureza, imagem e mimesis
A paisagem constituiu-se na pintura em torno de temas provenientes da natureza,
cenas rurais, montanhas, planícies, florestas, cursos d’água, lagos, praias e portos. São
elementos naturais em relação à experiência cultural, sobretudo na referência às
paisagens “nacionais” dos pintores, a exemplo das marinas em Vernet e Lorrain
(Lajarte, 1995, p. 34). As montanhas foram “descobertas” por pintores ingleses em
viagens à Savoia, notadamente a Chamonix com William Marlowe (1740-1813) e
Ruskin (1819-1900). Muito antes, a série de referência inicia-se com Petrarca (1336) a
subir ao Monte Ventoux, Haller (1728) explorando os Alpes, Horace de Saussure
(1788) escalando o Mont-Blanc. Depois de 1850, as montanhas cederam lugar aos
campos e arredores de Paris. Trata-se de uma passagem entre a categoria de pitoresco e
a de nacional, quando relevam as terras cultivadas e vilarejos com torres de sinos. Em
contraposição, falava-se em paisagens urbanas e industriais, nas quais o belo não é a
categoria da experiência estética (p. 37).
Todo o interesse para os aspectos sensíveis da natureza, porém, conduziu a um
“olhar desinteressado” baseado em uma nova concepção estética. O filósofo Arnold
Berleant (1995) indicou alguns problemas no domínio das belas artes quando se
instituiu uma teoria da estética baseada no “desinteresse” e na “autonomia da pintura”, a
qual se tornou um modelo para a apreciação da natureza. Shaftesbury procurou
examinar o belo na natureza de modo contemplativo e não ativo. Formavam-se
instrumentos perceptivos e cognitivos os quais convertem o ambiente em um objeto
contemplativo: a atitude diante de uma paisagem panorâmica ou de um jardim francês
(p. 231). Trata-se de um abandono da natureza em favor da sua representação na forma
da paisagem pictórica, como um objeto para o “olhar desinteressado”. A saída para essa
questão foi a proposição de duas estéticas, uma para a natureza, outra para a arte. Não
obstante, indagou Berleant, o problema se desdobra pois a concepção de desinteresse
impossibilita ambas as experiências, sendo pois necessária uma concepção baseada no
engajamento (p. 233).
Está em questão o estatuto da imagem na representação da natureza, em relação à
experiência social, em uma triangulação: a natureza, o observador, a imagem. Embora
correspondentes, essas partes correlatas não poderiam ser compreendidas pela teoria do
reflexo, pois cada uma delas participa diferentemente da totalidade do processo, ao
menos do ponto de vista psicossocial. Minha proposição para distinguir essas partes, a
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
experiência da natureza, a imagem da natureza e a participação do observador, de modo
conjugado, baseia-se no conceito de mimesis, tal como formulado por Luiz Costa Lima.
Tanto em Diderot quanto em Rousseau, a mediação entre a percepção e a natureza
percorre categorias estéticas formuladas no século XVIII. Diegues (1994, p. 23)
mencionara a associação da percepção e cognição de áreas naturais a categorias
propriamente estéticas, tais como o “sublime” e o “belo”, enquanto Gombrich (1977, p.
19) defendia que a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, tal como constatou
Ribon (1991, p. 84). A esse respeito, Edmund Burke afirmou, em 1751:
Quando o objeto da representação na poesia ou na pintura é tal que
não poderíamos ter o desejo de ver na realidade, então posso estar
certo que seu poder na poesia ou na pintura deve-se ao poder da
imitação e não a alguma causa operante na própria coisa. (citado em
Costa Lima, 1981, p. 266)
As categorias formuladas para a experiência estética naquele período articula a
percepção das imagens e da própria natureza. Maria Lúcia Kern (2006, p. 21) colocou
claramente a questão: o campo artístico passou a elaborar seus códigos de representação
de modo distinto do que seria o exercício da observação direta da natureza. Não
obstante, nesse processo, asseverou a professora que o espaço plástico clássico, em
perspectiva, instaura o sistema da representação e abandona a noção de mimesis.
No livro de Luiz Costa Lima (1989), a tese sobre o veto à ficção e o controle do
imaginário foi marcada pelo conceito de mimesis com vistas à literatura, não obstante,
iluminam-se ali correspondências importantes com as artes visuais, tema que o próprio
autor retomou mais recentemente (Costa Lima, 2004). Ao intentar uma transposição do
campo literário para as artes visuais, as mediações devem ser explicitadas. Se a imagem
da natureza tornara-se uma espécie de compensação para a perda da natureza, como
assinalou Bätschmann (2002), tal como na literatura, a noção de mimesis opera na
produção da imagem de modo a manter uma relação com o referido, mas, ao fazê-lo,
estabelece um código social na imagem que a distingue da natureza, promovendo uma
nova forma de perceber. Nessa medida, o conceito de mimesis deverá articular a
produção da imagem à experiência social, superando a concepção clássica de imitação.
Em Costa Lima (1989, p. 74), o veto ao ficcional se voltava ao controle do
subjetivo, cuja legislação afetava o imaginário ao apoiar-se em condições sóciopolíticas específicas, na formulação da imitatio, fundada no exercício da razão e no
princípio da semelhança. As narrativas de viagem do século XVII, reais ou inventadas,
estabeleceram pontos de vista críticos à universalidade dos padrões clássicos, ao mesmo
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
tempo em que filósofos, como Locke (Essay on human understanding, 1690),
questionavam os fundamentos da razão.
Diderot apresenta sua condenação do modelo da imitatio e revela dois critérios
concorrentes, em 1765: “o que explica a qualidade de uma obra por irradiação de uma
virtude individual e o que a justifica por uma fidelidade à natureza” (Costa Lima, 1989,
p. 78). Por um lado, sua crítica dirigia-se à educação do artista, muito dedicada à
maneira no modelo acadêmico em vez da observação da natureza, por outro lado, ao
gênio e sentimento delicado do artista. Acrescenta ainda a figura do espectador, não
apenas capaz de observar, mas dotado de “gosto”. Seguindo a trilha de Costa Lima,
chega-se ao ponto de interesse deste artigo:
[...] a obra de gênio só é compreendida remetendo-se-a de imediato à
natureza – reitera-se a mediação da natureza. Mas esta mediação só é
visível a outro gênio. [...] a natureza já então se apresenta como terra
desamparada de uma rede simbólica, que lhe assegurasse seu sentido.”
(p. 81)
Mais adiante, considera o autor:
Dessacralizada, desencantada, a natureza agora assume outro relevo:
torna-se o outro polo na relação com a mente ou subjetividade
humana. Mas, no campo da teoria da arte, este relacionamento dará
oportunidade a uma tensão. Se o realce é da mente, a teoria e a arte
correspondente ou enfatizam a expressão do sujeito empírico que cria
(teoria e prática do romantismo usual) ou ressaltam o sujeito poético
como um processo de aprimoramento sem fim (teoria da arte
autônoma de Schlegel). (Lima, 1989, p. 111)
O raciocínio de Costa Lima conduz a uma revisão da problemática aqui
rapidamente esboçada. Ao tratar de Coleridge e Schlegel, lembra o leitor que a
“exaltação da subjetividade” e a relação com a natureza não são apenas atos
compensatórios resultantes da frustração política e do advento do mercado. Estava em
gestação uma nova teoria da arte em uma forma moderna (p. 97). Ao revisar o ensaio de
Coleridge, “On poesy or art” (c. 1818), Luiz Costa Lima encontra a recepção de
filósofos alemães, dentre os quais Schlegel, e uma operação de pensamento na qual a
mimesis é reelaborada. Da relação entre mente e natureza, a arte surge “como a
mediadora por excelência entre a natureza e o homem”, citando as palavras do próprio
poeta: “a união e a reconciliação daquilo que é natureza com o que é exclusivamente
humano”.
A condensação da natureza na arte continua a ser chamada imitação,
embora o poeta-pensador tenha o cuidado de distingui-la da cópia.
Uma e outra se distinguem mesmo porque a arte medeia mente e
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
natureza, dando primazia ao labor da primeira... (Costa Lima, 1989, p.
108, grifo no original)
Nas palavras de Coleridge:
E a mente do homem é o próprio foco de todos os raios do intelecto
que são disseminados por todas as imagens da natureza. [...] Tornar o
externo interno e o interno externo, converter a natureza em
pensamento e o pensamento em natureza, eis o mistério do gênio nas
belas artes. (citado em Costa Lima, 1989, p. 108)
Costa Lima (1989) propõe a retomada da mimesis, a despeito do fim de sua forma
organizada pela imitatio, no seguinte sentido:
a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável,
porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de
semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e
as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e
culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de
semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença. (p. 68)
Não é necessário resumir ainda mais a intrincada proposição de Costa Lima, pois
o objetivo foi atingido. Diderot ponderava que ao conhecer melhor o trabalho do artista,
poder-se-ia ver na natureza aquilo que ali não se vê cotidianamente: “se Vernet vos
ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet”. Nas
palavras de Rousseau, a experiência da natureza fora descrita em um sentido impossível
de ser superado pela imagem da paisagem porque continha a imensidade dos elementos
sensíveis, apreensíveis pelo jogo entre os instrumentos sensórios e a capacidade
imaginativa na experiência da natureza. A imagem tornara-se necessária na forma de
perceber a natureza, mas não de modo a substituir a própria natureza; porque a imagem
não é idêntica à natureza, ela é a forma da diferença, como nos ensinou Costa Lima,
operando como mediação na vida social. A imagem passa a indicar lugares, reais ou
fantásticos, e a fornecer categorias ordenadoras de formas de perceber. O belo, o
sublime e o pitoresco são formulações destinadas à dupla função social, orientar a
percepção da natureza ao mesmo tempo em que regula a natureza da imagem.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
4. Metamorfoses do olhar
O espaço, o outro, o eu
Pesquisas em ciências humanas direcionadas à experiência da viagem, seja
compreendida pelo mundo dos viajantes, seja de modo restrito ao turismo, têm indicado
três principais relações constituintes: com o espaço, com o outro, com o eu (ou em
relação a si).3 Este texto retoma essas relações na compreensão das dimensões geral e
particular do deslocamento espacial, especificamente frente ao fenômeno da percepção,
procurando inscrever nessas três relações um quarto elemento: o tempo.
O historiador Marc Boyer, em referência à filosofia de Merleau-Ponty, afirma que
“a história não possui um sentido como o rio, mas sentido”, cujo fio de Ariadne dos
pequenos fatos turísticos lhe coube organizar no sentido do movimento dialético das
viagens – invenção de distinção de lugares e práticas, seguida da consagração por
grupos socioculturais dominantes, e depois a difusão (Boyer, 2002, p. 393). Na mesma
medida, a compreensão merleau-pontyana do fenômeno apresenta aquilo que é
particular da constituição do tempo histórico, reivindicando a situação corporal frente ao
mundo, cuja unidade supera toda a fragmentação da vida pessoal e histórica.
A síntese de horizontes é essencialmente temporal, quer dizer, ela não
está sujeita ao tempo, não se submete a ele, não precisa ultrapassá-lo,
mas confunde-se com o próprio movimento pelo qual o tempo passa.
Por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou
presente à minha circunvizinhança, coexisto com todas as outras
paisagens que se estendem para além dela, e todas essas perspectivas
formam em conjunto uma única vaga temporal, um instante do
mundo; por meu campo perceptivo com seus horizontes temporais,
3
Refiro-me especificamente a: ADLER, Judith. Origins of sightseeing. Annals of Tourism Research, v.
16, 1989, pp. 7-29. AMIROU, Rachid. Imaginaire touristique et sociabilité du voyage. Paris: Presses
Universitaires de France, 1995. RAUCH, André. Le tourisme ou la construction de l’étrangeté.
Ethnologie Française, Paris, PUF, tomo XXXII, juil.-sept., 2002-3, pp. 389-392. BOYER, Marc.
Comment étudier le tourisme. Ethnologie Française, Paris, PUF, tomo XXXII, juil.-sept., 2002-3, pp.
393-404.
54
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
estou presente ao meu presente, a todo o passado que o precedeu e a
um futuro. (Merleau-Ponty, 1999, p. 443)
Com base nos historiadores da percepção, pode-se notar a dinâmica entre o geral e
o particular no processo histórico. Por exemplo, quando Jonathan Crary apresenta as
“técnicas do observador” oriundas do século XIX, só se pode entendê-las como técnicas
incorporadas, como dispositivos produzidos socialmente, os quais se tornam
constitutivos da percepção porque organizam de modo particular as experiências
corporais (Crary, 1988). Frente ao problema da experiência da viagem, o processo de
significação do espaço, do outro e do eu, depende da compreensão do corpo em situação
histórica.
A partir de uma síntese das condições históricas da percepção no século XVIII,
pretende-se considerar em que medida a elevação de um órgão – o olho – na hierarquia
dos sentidos suscitou nova apreensão do mundo na experiência das viagens. Em
seguida, objetiva-se examinar como a viagem de Johann Wolfgang von Goethe (17491832) à Itália, registrada em apontamentos, desenhos e cartas representa a emergência
de uma compreensão do mundo fundamentada tanto pela elevação da visão quanto pela
viagem em terras estrangeiras, num processo de significação do espaço, do outro e de si.
Por fim, caberá notar como a arte converteu-se em mediação da experiência da viagem e
do processo do conhecimento.4
O olho e as viagens no século XVIII
Existem tantos estilos de viajar quantas forem as épocas da vida humana. Esta
consideração pode resumir a apreensão da experiência da viagem por Judith Adler que
apontou as distinções nos estilos de viajar, em relação a normas, rituais, durações,
itinerários, instrumentos e discursos próprios de cada período. Assim, nas dimensões do
espaço e do tempo, o corpo do viajante desenvolve sua performance; a partir do ato de
deslocar-se sobre o território formula-se uma “arte de viajar”. O estilo de viajar
produzido no século XVIII, em sentido geográfico e histórico europeu, propunha o
4
Goethe esteve na Itália entre 1786 e 1788: a primeira parte de sua Viagem foi publicada em 1816,
reunindo o Diário de viagem escrito a Charlotte von Stein; a segunda parte, em 1817, constando de cartas
enviadas de Roma, o Diário napolitano, cartas e diários diversos de Nápoles e Sicília; a terceira parte,
publicada apenas em 1829, foi dedicada à segunda estada em Roma, entre junho de 1787 e abril de 1788.
O presente artigo considerou suficiente para seus objetivos o estudo da edição brasileira, Viagem à Itália
(São Paulo: Companhia das Letras, 1999), composta das partes 1ª e 2ª, cuja tradução é de Sérgio Tellaroli.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
exercício individual de cultivar a visão, no intuito de o viajante se apropriar do mundo e
de si próprio por meio do deslocamento territorial (Adler, 1989, p. 8).
Existem “estilos” de viajar, os quais se modificam em relação à sociedade e ao
tempo em que se constituem. Sem perder essa dimensão sócio-histórica do
deslocamento, a noção de estilo remete àquilo que há de particular no ser, trata-se de
uma maneira de estar em situação (Merleau-Ponty, 1999, p. 439). Em referência a
Merleau-Ponty, o estilo de outrem é percebido pelo observador num processo
inconstante: não obstante sua transformação, o estilo mantém sua unidade mediante o
observador.
Historiadores têm qualificado aquele século como a superação de uma cultura
outrora primordialmente oral e tátil para outra em que a visão começa a tornar-se o
instrumento sensório dominante, como resultado da difusão da tipografia e do
desenvolvimento do moderno espírito científico. Nas palavras de Donald Lowe, ao
contrário do cosmos centrípeto da Renascença, este espírito científico concebeu um
espaço empírico de extensão infinita, de identidades e diferenças, e um tempo
representado como uma dimensão idêntica ao espaço (Lowe, 1986, p. 24 e 28). Porém,
o tempo deixa de ser comparável ao espaço na virada para o século XIX. Este campo da
percepção burguesa estabeleceu regras de desenvolvimento no tempo, fazendo com que
a lógica de identidade e diferença fosse suplantada por outra de analogia e sucessão.
Nesse processo identifica-se a supremacia da visão, notável na revolução fotográfica e
em uma “visualidade estendida” (p. 33).
Nos discursos do século XVIII, o olho torna-se soberano em relação aos outros
sentidos em vários campos do saber. Notadamente, contrapunha-se o “conhecimento
auricular” ao “conhecimento ocular”, a exemplo de seu uso como evidência jurídica na
oposição entre “testemunha ocular” e “boato” (eyewitness e hearsay), respectivamente,
com remissão à crença nas informações auferidas pelo olho e à descrença daquelas
provenientes do ouvido (Adler, 1989, p. 11). Essa transformação na percepção tem suas
correspondências no mundo das viagens: ao viajante não bastava mais conversar, seria
mister olhar.
Em um livro denominado A method for travel: shewed by taking the view of
France as it stoode in the yeare of our Lord 1598, Robert Dallington (1605) anunciava
que o viajante não deveria levar mais consigo textos editados, mas escrever o seu
próprio a partir da observação. Esta regra foi seguida apenas parcialmente, porque
muitos deles não abandonaram as referências literárias tão marcantes no imaginário
56
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
europeu. Outros autores recolhidos por Adler reforçam a tese sobre a proeminência dos
olhos desde o século XVII. Porém, a estética cumpria um papel relativamente pequeno
nas práticas de sightseeing, momento em que as descrições eram, sobretudo,
topográficas e “poli-históricas”, senão arquitetônicas, com pouca referência a pinturas,
esculturas e paisagens. Com o alvorecer do século XVIII, a descrição visual das
localidades começou a utilizar categorias pertinentes à pintura, também acrescentando
referências a monumentos e antiguidades à fauna e flora locais.
Projetava-se uma “cultura dos virtuosos”, no interior da qual príncipes, cortesãos,
tutores da aristocracia, acadêmicos e físicos dispunham-se a viajar rumo à observação
direta. Ainda segundo Adler (1989, p. 15), a palavra “curiosidade” perde o significado
medieval de vício para tornar-se uma paixão virtuosa do conhecimento secular, com
especial atenção aos detalhes.
Até então, os livros sobre viagens cumpriam importante papel na orientação dos
membros da aristocracia, de tal modo que o discurso era mais importante que a vista in
situ na experiência da percepção. Assim, a palavra, o ouvido e a língua, estavam no
centro de muitos tratados, deixando em segundo plano a imagem e os olhos. No Italian
voyage, de Richard Lassells (1697), Adler (1989, p. 9) encontrou a metáfora do mundo
como um livro aberto à leitura do viajante, mas a partir de um método particular, a
conversação com os habitantes do lugar visitado na língua nativa.
Com as transformações referentes à hierarquia dos sentidos, acima mencionada,
também a relação dos viajantes com os livros assumiu outra significação. Do ponto de
vista das cidades, como lembrou Peter Burke, desenvolveu-se entre os séculos XVII e
XVIII uma série de serviços de informação, dentre os quais estava a publicação de guias
para os visitantes, além do próprio estabelecimento de cicerones profissionais (Burke,
2003, p. 69). Maravilhas da cidade de Roma circulava desde a Idade Média, mas, em
suas seguidas reedições, incluiu informações úteis aos novos viajantes, a exemplo de
dados sobre antiguidades, pintores etc. Entre outros impressos do gênero citados por
Burke estava um guia de Veneza, por Francesco Sansovino (1558), e o Guia para
estrangeiros, sobre a mesma cidade, escrito por Vincenzo Coronelli (1650-1718).
Naqueles séculos, muitas edições contemplaram as cidades de Paris, Amsterdã e
Nápoles, entre outras.
A elevação da visão instigava os viajantes a não se deterem nas informações
divulgadas pelos guias, mas a elaborarem suas próprias anotações e, sempre que
possível, publicá-las no retorno ao lar. Esse campo aberto para à prática de viagens no
57
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Setecentos foi designado de Grand Tour, Grand Voyage ou Grosse Reise. Para Boyer
(2002, p. 393), essa forma de viajar correspondia mais a um instrumento de distinção,
localizado na origem de uma “revolução turística” que a uma atividade pedagógica. Na
síntese de Valéria Salgueiro, não se tratava de atos de viajantes isolados, mas de um
fenômeno social, um novo tipo de viajante – o grand tourist –, distinto do
expedicionário, do missionário, do peregrino, do diplomata ou mesmo do cientista
natural, a surgir a partir das transformações econômicas e culturais europeias: filhos da
aristocracia, admiradores de ruínas, monumentos e paisagens (Salgueiro, 2002).
Como destino privilegiado na Idade Clássica, a Itália foi contemplada em muitos
registros e impressões de viajantes. Além do citado Lassells, Thobias Smollet, Richard
Payne Knight e Joseph Addison publicaram escritos sobre suas viagens às terras
italianas. As cidades mais visitadas eram Veneza, Florença, Roma e Nápoles.
Método de viajar com arte
Goethe partiu rumo à Itália poucos dias após as comemorações de seu aniversário,
ocorrido no dia 29 agosto. Era madrugada de 3 de setembro de 1786 quando o escritor
deixou Karlsbad, sem avisar qualquer um de seus amigos. Ele já obtivera fama,
sobretudo pelo sucesso de Os sofrimentos do jovem Werther (1774), e ao longo da
viagem comenta sua busca pelo anonimato, mas também demonstra seu orgulho de ser
conhecido.
O viajante atravessou as montanhas tirolesas, passando rapidamente por Munique,
Mittenwald e Brenner, depois percorreu as vilas de Trento e Torbole até Verona, onde
vislumbrou os primeiros monumentos de vulto da Antiguidade. Dali, partiu para
Veneza, com paradas em Vicenza e Pádua. Avistou Veneza em 28 de setembro e lá
permaneceu até meados de outubro; entregou-se às ruelas, à arquitetura e à pintura –
obras de Palladio, Ticiano e Veronese. Seguiu em direção a Roma, com paradas em
Ferrara, Bolonha, Perugia e Florença. Chamavam-lhe a atenção as paisagens da Toscana
e o templo de Minerva em Assis.
Em 1º de novembro estava em Roma: “a capital do mundo” (Goethe, 1999, p.
148). Permanece até 22 de fevereiro de 1787. A riqueza da experiência de Goethe nesta
cidade foi sintetizada pelo próprio escritor ao considerar: “o dia em que cheguei a Roma
como a data do meu segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento” (p. 148).
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Rumo ao sul, encontra Nápoles e o Vesúvio em 25 de fevereiro. Observa esse lugar
como ideal para se viver, diferentemente de Roma, próprio para estudar. Um mês depois
visita a Sicília, com suas vilas. “Se existe algo que tenha sido decisivo para mim, essa
viagem o foi”, asseverou Goethe em Palermo, no dia 2 de abril de 1787. De Nápoles,
reorganiza seus projetos e despede-se em 3 de julho, de volta a Roma, onde usufrui de
sua segunda estada entre junho de 1787 e abril de 1788.
Nesse itinerário, seria importante assinalar a relação intelectual mantida entre
Goethe e Johann Gottfried Herder (1744-1803), com quem trocou cartas ao longo da
viagem, em textos que atingem altos momentos de reflexão filosófica. Ambos haviam
estado juntos em Estrasburgo, por volta de 1770. Goethe relembra da zombaria de
Herder dizendo que ele aprendera latim lendo Spinoza (Goethe, 1999, p. 116). Como
presença física, estava o amigo Carl Philipp Moritz (1756-1793), a quem se refere em
diversas passagens da narrativa. Conforme Marco Aurélio Werle, entre teóricos e
artistas com quem conviveu durante a viagem, foi com Moritz que teve a relação
humana mais profunda, seja nos passeios, seja nos cuidados devotados de Goethe
quando o colega quebrou o braço (Goethe, 1999, p. 183; Werle, 2005).
Goethe utilizava o guia de Volkmann (Historisch-britische nachrichten von
Italien, 3 v., 1770-1771), porém, na formação do jovem Goethe para o mundo das
viagens encontra-se a leitura de autores importantes à época, entre os quais Joachin
Winckelmann (1717-1768), com sua História da arte na Antiguidade, de 1764. Como
aponta a historiografia, essa publicação representou a primeira ocorrência em um título
de livro da expressão “história da arte”. A respeito desse autor, Goethe escreveu: “Foi
Winckelmann o primeiro que urgiu em nós a necessidade de distinguir várias épocas e
traçar a história dos estilos em seu gradual crescimento e decadência”.5 Durante a
viagem, remete-se com emoção às cartas que Winckelmann escreveu da Itália (Goethe,
1999, p. 176).
A iconografia de muitos pintores alimentava-lhe o olhar. A atenção de Goethe era
atraída para Claude Lorrain (1600-1682), que esteve em Roma por volta de 1613,
lembrado pelo viajante diante de uma vista dessa cidade levemente enevoada, ou Jakob
Ruysdael (1628-1682), paisagista flamengo, reconhecido por Goethe como pensador e
poeta, numa evocação a seu “sentido interior” (p. 197 e 206). Procurando
5
Goethe adquiriu uma nova edição dessa obra, publicada em 1786 e traduzida para o italiano por Carlo
Fea. Ver The Oxford Dictionary of Art. 2 ed. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 605.
59
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
especificamente circunscrever aquela iconografia em relevância às terras italianas, notese Canaletto e Piranesi.
Giovanni Canaletto (1697-1768), pintor que exercitou algumas vezes o método da
pintura sobre o motivo, num período em que dominava a produção em ateliê sobre
desenhos de observação, de modo geral esboçou grandes vistas ricas em detalhes
urbanísticos e humanos. Giovanni Piranesi (1720-1778) era arquiteto e arqueólogo,
responsável por famosas gravuras que representavam a cidade de Roma antiga e
moderna, publicadas com o título Vedutte di Roma (c. 1745).
Há alguns desenhos de Goethe esboçados a partir dos Alpes, na fronteira da Itália
com a Suíça. A cadeia de montanhas, com picos nevados, avança rumo a um horizonte
repleto de nuvens. Contam-se duas visitas à fronteira pelo escritor, antes de cruzá-la de
uma vez por todas, mas sua aproximação da Itália é anterior e, poder-se-ia dizer,
constitutiva de sua formação. Desde a infância, duas fontes fundamentais concorreram
para formar sua sensibilidade: as narrativas das viagens de seu pai e os desenhos
pendurados na parede de sua casa. Seu pai esteve na Itália em 1740, presenteando o
pequeno Johann com uma gôndola de brinquedo, cuja lembrança voltaria com
intensidade na visita a Veneza (p. 76).
Logo no início da viagem, o escritor repensa o hábito de colecionar, sobretudo
porque os pedaços de minério estavam se tornando por demais pesados e havia um
longo caminho pela frente. Goethe lembra-se do amigo Karl Knebel, que viajara ao
Tirol em 1785, e lhe presenteara com alguns fragmentos de rochas. Durante a travessia
dessa região pôde comparar as pedras que via com aquelas guardadas em seu gabinete.
Mesmo assim, coletou muitos objetos ao longo da viagem, a exemplo de plantas,
pedras, conchas da praia de Lido, uma série de réplicas em gesso, adquiridas no profuso
mercado romano, e reproduções a carvão, aquarela e sépia. Levava consigo uma edição
de Lineu, para a classificação das plantas.
No dia 14 de setembro, em Torbole, às margens do lago Garda, Goethe dirigiu-se
para ao castelo de Malcesine, cujas portas estavam abertas para todos. Sentou-se num
lugar confortável e começou a desenhar a velha torre. Interpelado por passantes acerca
da estranheza de interessar-se por ruínas, soube que isso não era permitido e teve o seu
esboço rasgado por um deles. Na verdade, tomaram-no por um espião a examinar a
fronteira entre a República de Veneza e o Império Austríaco. Ao final, convenceu-os de
sua idoneidade e da importância que as ruínas medievais abrigavam, tanto quanto as da
Antiguidade, pondo-se novamente a desenhar sob o olhar atento dos moradores.
60
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A magnífica paisagem do lago Garda também o atraiu. Em seu quarto, empurrou a
mesa para próximo da porta e desenhou “em poucas linhas” as águas, as colinas e as
montanhas. Esse ato, aparentemente simples de abrir-se para o exterior, significava, em
escala microcósmica, um longo processo de transformação nos procedimentos artísticos
direcionados para a representação do mundo percebido. Diante do templo de Minerva,
em Assis, considerava ser importante desenhar não somente o templo, “mas também sua
feliz localização” (p. 138).
Ao longo da jornada, descreve as pessoas dos lugares, nas cores dos cabelos e
expressões faciais, mas também no sentido da vida de gente humilde, do trabalho e das
crianças. Entrega-se às paisagens, observa a natureza em suas diversas manifestações.
Dentre todos os objetos de sua percepção, as obras de arte representaram uma parte
importante. Sobretudo as edificações clássicas, tais como o anfiteatro de Verona,
primeiro monumento da Antiguidade que vê, no dia 16 de setembro de 1786.
Decisiva foi a aquisição de uma edição fac-similar de Andrea Palladio (1508-80),
no dia 27 de setembro, quando estava em Pádua:
Quanto mais eu leio suas obras, mais claro vai se tornando para mim
como ele pensava e trabalhava e, ao fazê-lo, observo de que maneira
Palladio lidava com a Antiguidade; suas palavras são poucas, mas
todas de grande importância. O quarto livro, o que apresenta os
templos antigos, é uma verdadeira introdução a como contemplar com
inteligência as ruínas da Antiguidade. (p. 97).
Desse arquiteto italiano, Goethe pôde visitar a Rotonda e o Teatro Olímpico, em
Vicenza, cuja visão seria necessário realizar pessoalmente, pois “elas nos encham os
olhos”, e também visitou a igreja Il Redentore, em Veneza, entre outras. Nas palavras
do escritor, Palladio “abriu-me também o caminho para toda arte e toda a vida”. “Digo,
pois, de Palladio que, em sua interioridade, ele foi um grande homem, e que o foi do
interior para o exterior” (p. 62 e 104).
As imagens dentro de igrejas ou de palácios, as esculturas tumulares, réplicas de
peças da Antiguidade, decorações de teatros, óperas, canto de barqueiros de Veneza,
todo o universo sensível de diversas manifestações artísticas era objeto precioso para a
percepção de Goethe; seus desenhos dão prova disso. Dentre as pinturas, deteve-se em
Paolo Veronese e Ticiano – “possuíam a claridade em mais alto grau” –, Mantegna –
“um dos mestres antigos que mais me espantaram” –, Rafael, Tintoreto, Carracci, Guido
Reni e Domenichino, entre outros (p. 73 e 103).
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Metamorfoses do olhar
Toda literatura e referências iconográficas tornaram-se o pano de fundo para uma
atitude de Goethe na experiência da viagem. Essa atitude representava a emergência de
uma nova sensibilidade entre artistas e escritores na relação com o mundo percebido,
mas também a origem de uma contribuição peculiar desse pensador para o
conhecimento. No escritor alemão, o método de observação consistiria de um modelo
cognitivo crítico à dicotomia sujeito-objeto e à fragmentação do conhecimento
científico emergentes na virada para o século XIX.
As consequências do ato de viajar na vida intelectual e sensível de Goethe são
inúmeras. Ele próprio escreveu em seu projeto de uma morfologia que “reuniu fósseis
mais antigos e mais recentes e, durante minhas viagens, olhei atentamente aquelas
criaturas cuja formação poderia ser-me instrutiva em sua totalidade e seus aspectos
particulares” (Goethe, 2007, p. 17). Em apontamentos à Metamorfose das plantas:
Se eu saboreei os mais belos momentos de minha vida na mesma
época em que investigava a metamorfose das plantas, quando se
tornou clara para mim a sucessão das suas fases; se esta representação
enriqueceu espiritualmente a minha estada em Nápoles e na Sicília, se
cada vez mais aderia a este modo de considerar o reino das plantas e
me exercitava incansavelmente por montes e vales, a verdade é que
estes esforços para mim tão deleitosos adquiriram um valor
incalculável por me terem proporcionado a relação mais preciosa que
a fortuna reservou já em idade avançada. Devo estes fenômenos
atrativos o ter-me ligado intimamente com Schiller, foram eles que
dissiparam os mal-entendidos que durante muito tempo me tinham
mantido afastado dele. (p. 100)
Diversos autores apontaram o processo de gestação de um método de
conhecimento desenvolvido por Goethe ao longo da viagem à Itália, fomentado pelo ato
de viajar e pela posição do olhar frente às paisagens, às obras de arte, aos elementos da
natureza e às pessoas dos lugares.6 Originalmente esse processo fora indicado por
Rudolf Steiner, quando da organização e edição dos escritos científicos de Goethe, entre
1884 e 1897, para a Bibliografia nacional alemã (de Joseph Kürschner). Esse autor
considerou que durante a viagem Goethe concebeu a compreensão da “forma
6
Para citar alguns: MOLDER, Maria Filomena. Introdução. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. A
metamorfose das plantas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda: Lisboa, 1993, pp. 9-31; STEINER, Rudolf.
Nature’s open secret: introductions to Goethe’s scientific writings. trad. John Barnes e Mado Spiegler.
Anthroposophic Press: Great Barriongton, 2000; KESTLER, Izabela Maria Furtado. Johann Wolfgang
von Goethe: arte e natureza, poesia e ciência. Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, Out 2006, vol.13, p.39-54;
MOURA, Magali dos Santos. A poiesis orgânica de Goethe: a construção de um diálogo entre arte e
ciência. Tese de Doutorado, FFLCH-USP: São Paulo, 2006.
62
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
arquetípica”, com a qual a natureza joga, e a solicitação para a observação de uma
mesma espécie de planta em diferentes condições e influências, por meio da qual fosse
possível a visualização do elemento constante e do mutável no ser (Steiner, 2000, p.
13). O fenômeno arquetípico (Urphänomen) remete ao conhecimento de padrões ou
processos essenciais de algo compreendido como primordial, básico, constituinte do
próprio ser do objeto (Seamon, 1998, p. 4).
Nos Alpes, Goethe notou plantas que não conhecia e outras que se apresentavam
de modo diferente. No jardim botânico da Universidade de Pádua, em 27 de setembro,
perambulando entre a vegetação “estranha”, pensava na “planta arquetípica”:
Muitas plantas podem permanecer ali inclusive no inverno, contanto
que dispostas junto dos muros ou não muito longe deles. No final de
outubro, o todo é, então, coberto e aquecido ao longo de uns poucos
meses. É alegre e instrutivo passear por entre uma vegetação que nos é
estranha. Em meio às plantas habituais ou a objetos que conhecemos
de longa data, não pensamos coisa alguma, e de que vale a
contemplação sem reflexão? Aqui, diante dessa multiplicidade que me
é nova, torna-se cada vez mais viva a ideia de que talvez seja possível
fazer remontar todos os tipos de plantas a uma única. Somente assim
seria possível determinar verdadeiramente os gêneros e as espécies, o
que, no meu entender, até hoje se faz de maneira bastante arbitrária.
Foi nesse ponto que emperrei em minha filosofia botânica, e ainda não
vejo como desenredar-me. A questão me parece tão profunda quanto
ampla. (Goethe, 1999, p. 71)
Essa reflexão iniciara-se antes da viagem, nos jardins e florestas de Weimar,
assim como o desenvolvimento de uma “cosmovisão”. Logo nos primeiros instantes do
roteiro, adquiria “muitos conhecimentos para uma teoria da criação do mundo, mas nada
muito novo ou inesperado. Tenho também sonhado bastante com o modelo de que
venho falando há tanto tempo...” (p. 20). Esse pensamento desenrola-se no mesmo
momento em que observa o clima, as nuvens, a atmosfera, as montanhas e seu pulsar. A
ideia na qual a natureza essencial da planta não residia na aparência exterior, mas em
um nível mais profundo, se tornou compreensível durante a viagem, quando formula
uma morfologia cujos escritos definitivos apareceram em 1789-90 (Steiner, 2000, p.
14). No mesmo período, despontaram também registros da forma animal, em crânios de
ovelhas, examinados no Norte da Itália, e da forma humana, notável tanto na observação
de estátuas quanto de modelos para a medicina.
Filomena Molder notou que nessa época os interesses estéticos, poéticos e
científicos de Goethe unificam-se no estudo da sociedade humana, “forma que não é
nem natureza nem arte, expressão da necessidade e do acaso”. Os escritos O carnaval
63
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
romano – descrição da festividade de 1787 – e Imitação simples da natureza, maneira e
estilo (1789) são frutos dessas reflexões (Molder, p. 1993, p. 16). Em Goethe, Alfredo
Bosi localizou uma proposta de epistemologia tanto das ciências biológicas quanto das
ciências humanas: “estava exigindo um olhar que não se confundisse com a percepção
físico-matemática de Descartes, Galileu e Newton” (Bosi, 1988, p. 77). O olhar era-lhe
o instrumento para a investigação do mundo “novo conhecido”, como notou Eloá Heise
(2008).
Ao longo da viagem, o tema da metamorfose tomou corpo sob a imagem sensível
de uma planta suprassensível. No início da jornada, Goethe buscava encontrar uma
“planta arquetípica” (Urpflanze) na realidade sensível das espécies botânicas da Itália,
todavia, durante o percurso considera que tal planta somente poderia se apresentar na
forma suprassensível, um modelo dado à consciência. Em correspondência, do dia 25 de
março de 1787, de Nápoles, pede que avisem Herder acerca de sua proximidade da
solução daquele difícil problema botânico (Goethe, 1999, p. 264). Na estada em
Palermo, escrevendo em 17 de abril, depois de percorrer o jardim público, formula
aquilo que se tornaria uma de suas ideias fundamentais. Deparou-se com plantas viçosas
vivendo ao ar livre, em formas novas, as quais observara antes somente por trás de
vidraças; a questão da planta primordial lhe interpela: “Afinal, tem de haver uma tal
planta! Do contrário, como poderia eu reconhecer que esta ou aquela forma constitui
uma planta, se não obedecem todas a um mesmo modelo?”
Esforcei-me, então, por examinar em que as muitas formações
discordantes se distinguiriam uma das outras. E sempre as encontrei
antes semelhantes do que diversas; querendo, pois, aplicar minha
terminologia botânica, pude fazê-lo bem, mas sem colher com isso
nenhum fruto: fazê-lo inquietava-me, sem, contudo, levar-me adiante.
Meu bom propósito poético fora perturbado, o jardim de Alcínoo
desaparecera e um jardim universal abrira-se em seu lugar. Por que
somos nós, os modernos, tão dispersos? Por que somos tentados a
desafios que não podemos enfrentar ou vencer? (p. 314)
Um mês depois, em Nápoles, sentia-se próximo de solucionar o “mistério da geração e
organização das plantas”:
A planta primordial será a criatura mais estranha do mundo, pela qual
a própria natureza me invejará. Munido desse modelo e da chave para
ele, poder-se-á então inventar uma infinidade de plantas, as quais
haverão de ser coerentes – isto é, plantas que, ainda que não existam
de fato, poderiam existir, em vez de constituírem-se das luzes e sobras
da pintura ou da poesia: plantas dotadas de uma verdade e necessidade
intrínsecas. A mesma lei deixar-se-á aplicar, então, a tudo quanto
vive. (p. 380)
64
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A esse propósito, sintetizou Jean Boyer, na metade do século XX:
...essa planta-tipo não é um vegetal que se possa encontrar em plena
natureza. É um esquema, uma visão do espírito, o lugar de
características comuns que se pode extrair do estudo de todas as
plantas e que nenhuma mostra em estado puro e teórico. Ideia
extremamente fecunda no que diz respeito a Goethe e em torno da
qual centrou seu classicismo: em toda parte, no homem bem como em
todas as manifestações da natureza, tratava-se para ele de reencontrar,
sob um fenômeno particular ou individual, o fenômeno ‘primitivo’, o
Urphänomen que manifesta a unidade profunda da vida universal
(Boyer, 1949, p. 46)
De volta a Weimar, Goethe dedica-se a escrever o ensaio sobre as plantas e
conhece Schiller. Em 1790, retorna à Itália, acompanhando o duque de Weimar,
momento em que carregava uma redação de Fausto praticamente acabada. Mas desde a
primeira viagem, atentara-se para o fato de que “os pintores não estudavam as
combinações de cores para compor os seus quadros”, nas palavras de Kestler (2006, p.
48). Instigava-lhe o método de conhecimento das cores, quando, durante a Campanha da
França, ao lado do duque, Goethe realizava experimentos prismáticos (Bortoft, 1986, p.
11). Tomou emprestado um prisma de um amigo e decidiu refazer os experimentos de
Newton; em uma rápida olhada, surpreendeu-se com o que viu. Entre 1804 e 1806, os
estudos se aprofundam, resultando na publicação da Teoria das cores.
Nesses experimentos, conforme Crary, Goethe dava sequência a uma série de
pesquisas de ótica baseadas na câmera obscura, sobretudo em diálogo com a Ótica de
Newton (1704), em relações entre interior e exterior, observador e representação, e
também com os trabalhos de Descartes, Leibniz, Locke, entre outros que consideravam
a câmera obscura nos domínios das ciências naturais. Durante duzentos anos, a câmera
obscura servia de metáfora para se pensar o status do observador tanto entre
racionalistas quanto entre empiristas (Crary, 1988, p. 3). Goethe procurou considerar a
totalidade do fenômeno: fechando o orifício e olhando para a parte escura do quarto,
notou um círculo em cuja metade aparecia um amarelo e, nas bordas, um vermelho.
Depois, o vermelho moveu-se para o centro, mas quando o círculo tornava-se todo
vermelho, um azul apareceu, moveu-se sobre o vermelho, enfim, bordas tornam-se
escuras e coloridas. Para Crary, a instrução de Goethe para fechar o buraco anuncia uma
negação da câmera obscura, seja como sistema da ótica, seja como princípio
epistemológico, em referência ao mundo clássico. Goethe falava então de “cores
fisiológicas” pertencentes ao corpo do observador, em sua revisão acerca do lugar do
olho no processo perceptivo e cognitivo.
65
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Em suma, a proposição de Goethe é crucial por não separar os dois modelos: a
fisiologia descrita em detalhes pelas ciências empíricas e um observador autônomo, em
meio a românticos e na aurora da modernidade. Sua proposta indicava qualidades
diferentes entre luz e cor. Tratava-se de um momento em que a visão se torna ela
própria objeto de conhecimento, o visível deixa de ser algo incorpóreo e torna-se
hóspede do corpo humano, responsável pela produção de fenômenos dissociados do
mundo exterior (Crary, 1988, p. 5). Inversamente à transparência do conhecimento
clássico, Goethe apresenta a opacidade do observador como condição à aparência do
fenômeno. Na abordagem de Crary, a cultura visual que emergia na Europa no século
XIX considerava tanto as ciências relacionadas à ótica, o observador e seu corpo,
quanto novos aparatos, tais como estereoscópio, caleidoscópio e diorama, aos quais se
poderá acrescentar as práticas de visitas guiadas e o sightseeing na origem do mundo do
turismo.
Olhar é viajar no tempo
O conhecimento sobre o “olhar do viajante”, em grande parte, deriva de uma
oposição em relação ao chamado “olhar do turista” (Urry, 1996). Essa discussão foi
apresentada, entre outros, por Daniel Boorstin que enfatiza a viagem como um
procedimento ativo, como experiência de estar noutro lugar, ao passo que o turismo
seria um procedimento passivo reduzido aos atos de ver e escutar baseado na
“artificialidade” (Araújo, 2002, p. 135). Desse modo, o viajante seria aquele associado
ao conhecimento, seja dos exploradores do século XVI, seja do grand tourist
setecentista. Para este artigo, não caberá desenvolver essa oposição, uma vez que se
procura nas palavras de Goethe, antes do advento do turismo, o sentido do olhar na
experiência da viagem.
Os escritos de Goethe indicam o desenvolvimento de uma solicitação dos olhos.
Por meio da visão, estabeleciam-se as relações do viajante com o espaço, com o outro e
com o eu. Para caracterizar essa atitude, podemos qualificá-la como o “olhar viajante”,
conforme a proposição de Sérgio Cardoso (1988). Neste autor, há um parentesco entre a
experiência da viagem e as atividades do olhar, pois ambas não se constituem apenas
por meio do deslocamento no espaço, mas, sobretudo, no tempo. Para tanto, recorre a
Merleau-Ponty, na constituição de um tempo passado e futuro no campo do presente;
66
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
não se trata de sucessão, mas de simultaneidade – “escoamento inesgotável do tempo”.
Na espessura desse campo aberto e lacunar, assevera Cardoso, o sujeito abre-se para o
outro, o ausente, o invisível: “A temporalidade, pois, sempre a encontramos nas linhas
do presente, no devir constitutivo de seu próprio sentido.” (p. 357)
A partir dessa consideração, mostra a impossibilidade das definições de viagem
pela distância vinculada ao deslocamento no espaço, pois “não permitem compreender
que o viajante se distancia porque se diferencia e transforma seu mundo; que as viagens
são sempre empreitadas no tempo”. (p. 358) As viagens têm parentesco com o olhar
porque ambas são expressões distintas de uma mesma experiência do tempo. No
movimento do olhar, qualquer sinuosidade destoante da paisagem familiar converte a
percepção cotidiana em outro olhar. “Assim, o olhar se embrenha pelas frestas do
mundo da investigação dos obstáculos ou lacunas que constantemente comprometem a
unidade hesitante das significações...”. As viagens também “têm origem nas brechas do
sentido”. Conclui Cardoso:
Se o viajante fura o horizonte da proximidade e transpõe os limites de
seu mundo para fixar a atenção mais além – no que não se deixa ver
mas apenas adivinhar ou entrever –, é sempre pelos vãos do próprio
mundo que ele penetra, na medida em que surgem brechas na sua
evidência, abrindo passagens na paisagem ou contornando desníveis e
vazios. (p. 358)
A percepção de um mundo cultural é dada pelas coisas que carregam a existência
anônima de outros humanos. Merleau-Ponty afirmou: “a civilização da qual eu participo
existe para mim com evidência nos utensílios que ela se fornece” (Merleau-Ponty,
1945/1999, p. 465). Na viagem, instaura-se um paradoxo na percepção porque o
observador não reconhece os objetos inteiramente como seus, ou de sua civilização, o
estranhamento provém de outro tempo e também de outras pessoas. Pode-se, como quer
o filósofo, reconhecer uma civilização estranha nas ruínas ou nos restos de instrumentos
vistos sobre a paisagem, porque por meio deles se percebe um ato humano, um outro
homem ou mulher. “No objeto cultural, eu sinto, sob um véu de anonimato, a presença
próxima de outrem”. (p. 466)
A visão da paisagem suscita o senso poético
O olhar viajante de Goethe configurou-se no deslocamento do espaço, ao
percorrer terras estrangeiras, quando se eleva o olhar em direção ao outro, notável nos
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
habitantes e nos artistas, mas considerando também a própria natureza; despertam-lhe
uma experiência de si que, ao final, o lançam no fluxo do tempo.
Em Veneza, Goethe entregara-se aos labirintos de ruas durante a noite, um
emaranhado cujo enfrentamento foi descrito: “esse meu modo de experimentá-lo
somente com o auxílio dos sentidos é o melhor de todos” (Goethe, 1999, p. 82). O
contato direto dos sentidos com o mundo percebido é afirmado:
Interessam-me agora tão-somente as impressões captadas pelos
sentidos, estas livro algum, pintura alguma oferece. O fato é que meu
interesse pelo mundo se renova; testo meu poder de observação e
examino até onde vão minha ciência e meus conhecimentos, se meus
olhos estão limpos e veem com clareza, quanto posso aprender em
meio à velocidade, e se as rugas sulcadas e impressas em meu espírito
podem ser de novo removidas. (p. 30)
A penetração no mundo dos fenômenos posiciona, dentre os sentidos, a primazia
do olho. Nas palavras do dia 2 de janeiro de 1787, lê-se:
“Pode-se dizer o que se quiser em benefício das tradições orais e
escritas, mas somente em pouquíssimos casos elas serão suficientes,
uma vez que são incapazes de transmitir o verdadeiro caráter de seu
objeto, e até mesmo nas coisas do espírito. Uma vez, porém, visto o
objeto, então se poderá com prazer ler e ouvir a seu respeito, pois a
isso juntar-se-á a impressão viva; somente aí é que se poderá refletir e
julgar. (p. 182)
Queria olhar Roma: “Sim, pois pode-se dizer que uma nova vida tem início quando se
vê com os próprios olhos aquilo que, em parte, se conhece tão bem, por dentro e por
fora” (p. 149).
Para Goethe, embora o olho fosse um órgão natural da percepção, era formado
pela experiência e também poderia ser desenvolvido. No dia 8 de outubro, dizia:
Meu velho dom de ver o mundo com os olhos do pintor cujos quadros
acabei de contemplar [referia-se a Paolo Veronese] conduziu-me a
um pensamento singular. É evidente que os olhos se formam em
consonância com os objetos que divisaram desde a infância, e, sendo
assim, o pintor veneziano há de ver tudo com maior clareza e limpidez
do que outros homens. Nós, que vivemos numa terra ora imunda, ora
poeirenta, incolor, a obscurecer qualquer reflexo, muitos até, talvez,
em cômodos apertados, não podemos, por nós próprios, desenvolver
uma visão assim jubilosa. (Goethe, 1999, p. 102)
No movimento histórico de elevação da visão, Goethe introduz um olho em
formação com os fenômenos e em referência à estética. A Odisseia tornou-se uma
“palavra viva” porque, a partir de então, lia Homero “como se me houvessem retirado a
coberta de cima dos olhos” (p. 379). Mesmo diante dos temas gerais da História,
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
afirmava o desejo de “observar com os próprios olhos” (p. 116), em busca de uma
totalidade da experiência histórica, tal como registra em Terni, 27 de outubro:
No que se refere, porém, àquilo que se chama o solo clássico, a
história é outra. Se, nesse terreno, não procedemos de forma
fantasiosa, mas, em vez disso, apreendemos a região em sua realidade,
conforme ela se apresenta, vemos que ela segue sendo o mesmo palco
decisivo no qual se desenrolaram os grandes feitos do passado, de
modo que até agora, tenho sempre me valido da contemplação da
geologia e da paisagem no sentido de reprimir a fantasia e os
sentimentos, com o intuito de adquirir uma visão límpida e clara dos
lugares. Contudo, a isso vem se juntar, de forma maravilhosa e vívida,
a história, sem que compreendamos como isso ocorre, e eu sinto já um
grande desejo de ler Tácito em Roma. (p. 142)
Frente às particularidade da história da arte, o procedimento seria o mesmo: “O
interesse histórico faz-se particularmente vívido quando se contemplam as obras dos
mestres da Antiguidade” (p. 122). O templo Maria della Minerva, em Assis, atingido
pela indicação de Palladio e Volkmann, é objeto do desenho e da reflexão de Goethe (p.
137).
Palladio, em quem sempre me fiei, apresenta, é certo, um desenho
desse templo, mas não há de tê-lo visto pessoalmente, pois assenta-o
sobre pedestais de fato, o que confere às colunas uma altura
desproporcional, dando origem a um monstro repelente, semelhante ao
de Palmira, em vez de um aspecto tranquilo e adorável, oferecendo
satisfação aos olhos e ao intelecto.
O procedimento que conduzia à primazia do olhar era mediado pela presença
constante de obras de arte e pelo convívio com outros artistas. Em diversas reuniões,
eles conversaram sobre artes, literatura, leram o livro de Sulzer, As belas artes em sua
origem, sobre o qual Goethe publicara uma resenha em 1772. O encontro com colegas
pintores, escritores e escultores, notadamente em Roma, não implicava apenas em
conversas sobre temas da estética e de seus pensadores, mas resultava em práticas
artísticas minuciosas, refletidas no estudo de técnicas, de anatomia e de perspectiva. Na
viagem, arte e ciência correspondem mutuamente para o conhecimento das leis da
natureza e, inversamente, a partir desta, aprofunda-se os fundamentos da arte (Moura,
2006).
Para não estender em longas citações, note-se, sumariamente, que em um balanço
do dia 17 de fevereiro de 1787, Goethe dizia apreender tudo aquilo que os artistas lhe
ensinavam. Além disso, se punha a caminhar munido de folhas de desenho entre vales e
colinas...
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A busca agora é pelo ar livre; se, até agora, deuses e heróis foram o
alvo exclusivo de atenção, eis que a paisagem reaparece, clamando
por seus direitos, prendendo o olhar nas cercanias às quais o dia
magnífico empresta vida. (Goethe, 1999, p. 204)
Recordando os pintores do Norte, põe-se a desenhar “sem muita reflexão” as coisas
verdadeiramente do Sul, “pequenos temas romanos”... Os artistas lhe ensinavam e ele
procurava aprender com vivacidade a observação do mundo sensível: “ao
contemplarmos os objetos com maior exatidão e nitidez, o que fazemos é, antes,
elevarmo-nos rumo ao universal” (p. 205).
A vida social daqueles intelectuais organizava-se na forma de uma “comunidade”,
o que confere um sentido bastante significativo para a experiência do viajante: “Nesta
comunidade de artistas vive-se como em um quarto repleto de espelhos, no qual as
pessoas, mesmo contra a vontade, contemplam a si próprias e aos outros repetidas
vezes” (p. 181).
Em Roma, estava presente Jakob Philipp Hackert (1737-1807), paisagista alemão
que, no ano da viagem de Goethe, tornou-se pintor da corte de Ferdinando IV de
Nápoles. Apenas para indicar a importância de Hackert para Goethe, lembre-se que
Goethe escreveu a biografia do amigo, em 1811.7 O convívio com o pintor Heinrich
Wilhem Tischbein (1751-1829) demonstra intensa diálogo entre os dois. Em pouco
tempo Goethe passou a considerar grandemente os talentos do colega, sobretudo no
conhecimento que demonstrava em artes, notável numa série de quadros representando
os primórdios da raça humana, e como retratista. Em diversas passagens, refere-se quão
produtivas eram as relações entre ambos (e.g. Goethe, 1999, p. 156, 163 e 180).
Tischbein trabalhou longamente em esboços tomados a partir da observação de
Goethe, particularmente projetando um retrato do colega, materializado na tela Goethe
na Campagna romana (Col. Städelsches Kunstinstitut Frankfurt). “Deverei ser
representado em tamanho natural, na condição de um viajante envolto num casaco
branco, sentado ao ar livre sobre um obelisco tombado e abarcando com os olhos as
ruínas da campagna romana bem ao fundo” (p. 181). A imagem é uma síntese do
viajante cujos olhos são atraídos pela arte do passado.
Não se poderia deixar de citar, em Nápoles, o contato com o pintor de paisagens
Christoph Heinrich Kniep (1748-1825), que o acompanharia até a Sicília. Kniep foi
7
Sobre a relação desses autores, ver MATTOS, Claudia Valladão de (org.). Goethe e Hackert: sobre a
pintura de paisagem. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
contratado por Goethe para fazer registros pictóricos e gráficos desse trecho da viagem.
Ao final da estada, concordavam em mútua gratidão.
A viagem para muitos escritores e artistas daquela virada de século representava
em letras e tintas uma transformação histórica sensível, notável nos textos que instruíam
os pintores paisagistas, tais como Roger de Piles e Valenciennes.8 Em Goethe, que
naquele momento fundia os atos de pesquisar, escrever e desenhar numa só linguagem,
o deslocamento do olhar promovido pela experiência da viagem fazia emergir uma
peculiar visão de mundo. “Não estou fazendo esta viagem maravilhosa com o propósito
de me iludir, mas sim de me conhecer melhor a partir dos objetos que vejo”, registrou
em Verona, 17 de setembro de 1786. Em Roma, dizia:
durante uma viagem, aprende-se o que se pode pelo caminho; cada dia
nos traz algo de novo, e apressamo-nos em refletir e opinar a respeito.
Aqui, porém, está-se numa escola muito grande, na qual cada dia tem
tanto a ensinar que sequer nos é permitido ousar dizer algo acerca do
que aprendemos no seu decorrer. Na verdade, faríamos bem em,
mesmo passando anos aqui, observar um silêncio pitagórico. (p. 155)
A experiência da viagem e as atividades do olhar comungam em um deslocamento
no tempo, afirmou Cardoso (1988). Não apenas pelo outro tempo que emerge no
enfrentamento das ruínas e da natureza, mas numa dimensão temporal dada à própria
imaginação do viajante. Eis o sentido estético da viagem: “a visão da paisagem
magnífica à minha volta não desaloja em mim o senso poético; bem ao contrário,
acompanhada do movimento e do ar livre, ela o suscita com maior rapidez.” (GOETHE,
1999, P. 26) Nesse sentido, a arte deixa de ser unicamente um objeto exterior, mas a
mediação dos processos de percepção e cognição que o colocam em relação sensível
com o mundo. A partir daí, torna-se instrumento para uma manifestação interior do
escritor, suprassensível, futuramente designada por ele de “fantasia sensória exata”, cuja
projeção temporal é o fundamento (Bortoft, 1986).
Compreende-se porque ver não é olhar, pois olhar é viajar. A visão da paisagem
suscita o senso poético, asseverou Goethe. A experiência descrita na narrativa de sua
viagem coloca em relação quatro elementos constituintes da experiência da viagem: o
espaço, o outro, o eu, o tempo. Se, por um lado, o campo perceptivo é preenchido pelos
usos sociais, econômicos e políticos dos objetos, por outro, está aberto à experiência
que se poderia então designar estética. Se ver não é olhar e olhar é viajar, o olhar
8
Roger de Piles escreveu entre 1688 e 1708 seu Cours de peinture par principes e P. Valenciennes
publicou em 1800 o tratado Eléments de perspective pratique à l’usage des artistes suivis de Réflexions et
conseils à un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
viajante prolonga-se no campo perceptivo como experiência estética porque realiza o
objeto estético em outro nível de significação. A apresentação do fenômeno arquetípico
à consciência inscreve-se nesse processo com o recurso à prática artística. Goethe
metamorfoseia o olhar; não subordina a paisagem, mas apreende o espaço, o tempo, o
eu e o outro na paisagem.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
5. A imaginação da Natureza
Morfologia da Natureza
Goethe conduziu as relações entre arte e ciência às últimas consequências. Antes
da ruptura entre essas duas formas de conhecimento, recomendava aos cientistas a
pesquisa da arte e aos artistas o estudo científico da natureza. A revista Propileus, criada
em parceria com Schiller e Meyer, ilustra essas trocas intensas. Goethe estava
consciente da influência que importantes filósofos imprimiam no trabalho dos artistas, a
exemplo do entusiasmo de Shaftesbury e Rousseau pela natureza.
A retomada crítica do ideário newtoniano e da câmara obscura como modelo de
conhecimento, não deixam de considerar as mútuas contribuições entre arte e ciência.
Quando Goethe apresentou, em 1810, uma nova teoria das cores, na qual o sujeito e o
corpo participam da produção do conhecimento, de modo que as cores não são apenas
reconhecidas como dados objetivos, tornam-se resultado da luta entre os polos claro e
escuro, na experiência corporal da natureza. De um lado, estas ideias influenciaram uma
série de pintores ao longo dos séculos XIX e XX, desde os nazarenos até as vanguardas.
No dizer de Kern (2006, p. 26), Goethe, Hegel e Kant, cada qual a seu modo, lançaram
os fundamentos para uma nova compreensão da imagem pictórica, na qual a “conquista
da cor” participa da emergência da pintura impressionista, fauvista, expressionista, até
as experiências abstracionistas, em suma, na formulação do imaginário moderno.
No final de 1775, Goethe aceitou o convite de Carlos Augusto von SaxenWeimar, duque de Weimar, para trabalhar em sua corte. Ali, torna-se um homem de
Estado, nomeado chanceler do Conselho Secreto de Weimar, cuida de finanças,
construção de estradas, entre outras tarefas. Inicia estudos diversos, na filosofia de
Spinoza, em botânica, anatomia e mineralogia. Nos jardins da corte de Weimar,
entregou-se a longas observações botânicas, a começar por minúsculos liquens.
Dedicava-se também à leitura de escritos da época sobre o tema, sobretudo Lineu e
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Rousseau. Assim como Goethe, Rousseau também procurava nos vegetais uma lei que
reconduzisse a variedade das formas a uma unidade (Molder, 1993, p. 13).
O ensaio resultante das observações de Goethe foi o livro a Metamorfose das
plantas, escrito em 1789 e 1790. Logo nos primeiros parágrafos, o autor apresenta seu
objetivo de compreender uma “afinidade secreta entre as diferentes partes exteriores da
planta, tais como as folhas, o cálice, a corola, os estames, que se desenvolvem
sucessivamente e como que a partir umas das outras”. Como o próprio Goethe escreve,
a ideia de uma metamorfose era bem conhecida dos estudiosos, notadamente com
Lineu, que se dedicou à Metamorfosies vegetabilis – processo pelo qual um mesmo
órgão se nos manifesta diversamente alterado –, da mesma maneira que a noção de
evolução ocupava diversos autores, no campo das ciências naturais e da filosofia. Não
obstante, Maria Filomena Molder (1993, p. 9), estudiosa da morfologia goethiana,
lembra que a perspectiva de Goethe era nova: “a partir de a priori morfológico, a
admissão de um princípio enteléquico”. Observando a passagem de uma parte para
outra no desenvolvimento do vegetal, Goethe considerou que a natureza não forma
nenhum órgão novo, mas transforma os órgãos conhecidos (Goethe, 1790/1993, p. 42).
O escritor formulava então um método de observação, voltado para os processos
naturais, com vistas à anastomose, o processo pelo qual órgãos se comunicam:
teremos acompanhado a forma exterior da planta em todas as suas
metamorfoses, desde o seu desenvolvimento a partir da semente até à
sua nova formação, e dirigimos a nossa atenção, sem a presunção de
querer descobrir os primeiros móbiles das ações da Natureza, para a
manifestação das forças pelas quais a planta transforma a pouco e
pouco um e o mesmo órgão. (Goethe, 1790/1993, p. 51)
A apreensão do fenômeno conduziu-o primeiramente aos processos de expansão,
depois aos processos de contração. No parágrafo 50, afirma:
A observação acima exposta será, por isso, novamente confirmada, e
tornar-nos-emos cada vez mais atentos a esta ação alterada da
contração e expansão, pela qual a Natureza chega finalmente ao seu
alvo.[...] “Desde a semente até ao mais perfeito desenvolvimento das
folhas caulinares, observamos em primeiro lugar uma expansão; em
seguida, vimos, através de uma contração, surgir o cálice; as pétalas,
através de uma expansão; as partes sexuais, através de uma contração;
e em breve nos aperceberemos da maior expansão no fruto e da maior
contração na semente. Nestes seis passos, conclui a Natureza
irresistivelmente a eterna obra da reprodução bissexuada dos vegetais.
(Goethe, 1790/1993, p. 44)
Em síntese, o “tipo” é a dimensão básica (interior), permanência e identidade do
ser, a “forma” trata da dimensão fenomênica (exterior), o “arquétipo” é sua
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
representação original, enquanto a metamorfose é o meio para o conhecimento dos
processos formativos (Steiner, 2000, p. 13). A compreensão da metamorfose da planta é
esquematizada em movimentos no tempo e no espaço. Primeiro, movimentos de
contração e expansão ordenam no tempo da vida uma sucessão rítmica em dois polos.
Segundo, o crescimento desdobra-se sobre um espaço vertical do caule e lateral das
folhas caulinares, reunião e aproximação das folhas do cálice e da corola.
Nesse sentido, a forma é dinâmica, movimento e processo. “O espaço-tempo do
crescimento não é o de um móvel que muda de lugar, ocupando sucessivamente certos
pontos no espaço, mas o acontecimento de uma exposição, de um desenvolvimento, que
qualifica o espaço ritmicamente” (Molder, 1993, p. 19). Seguindo esse raciocínio, “o
espaço e o tempo não são estruturas homogêneas, antes se revelam sistemas de relações
marcadas por privilégios: a descontinuidade do crescimento das plantas está mais
associada, mais visivelmente do que nos animais, à alteração do espaço de acordo com o
desenho que a planta vai fazendo” (p. 19). Esse desenho é atravessado e dirigido pelo
impulso de intensificação, em que cada forma anuncia a próxima, “e sendo a sucessão
de formas, renovando-se ciclicamente, o caminho da sua história individual em direção
à epifania mais perfeita”.
O princípio goethiano sugere uma intencionalidade da natureza, de modo que a
forma só é compreensível por meio da descrição dos processos da vida do ser estudado,
da observação de sua formação e transformação (Molder, 1993, p. 18). Deriva o
problema da nomeação, a exemplo de contração e expansão. São termos que não
exprimem a ação em toda amplitude:
[o segredo aberto da natureza] expõe-se revelador aos nossos olhos
justamente nas passagens, nas variações em que se transita de uma
ação para outra, de um momento para outro, em que os vestígios da
sua decifração estão visíveis. [...] A nossa capacidade de impor
nomes, o nosso esforço conceitual fixado em terminologias,
nomenclaturas, classificações, corre o risco de se converter em
hipóteses, em modos de determinação que tendem a substituir-se à
visão (sempre primeira, ainda que possa permanecer obscura). (p. 21).
Processo no tempo e expressão no espaço surgem para a imaginação do
pesquisador, em um pensamento inteiramente plástico como são os fenômenos
observados, identificação com o objeto que se converte em teoria; “empiria sutil”, no
dizer de Goethe. Molder (1993, p. 9) lembra que a concepção dessa abordagem tem
ligações com Teofrasto, Lucrécio e Ovídio, num saber em que a teoria se constitui no
concreto, na relação entre o visível e o invisível, na intuição das imagens originárias.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Além disso, asseverou essa autora, em Goethe reúnem-se os movimentos conceituais de
Platão e Aristóteles.
O projeto de uma morfologia de Goethe foi sistematizado em escrito de 1817.
Antes disso, muitas indicações vieram a lume, seja quando da publicação do ensaio
sobre a Metamorfose das plantas (1790), seja na Teoria das cores (1810), ou ainda, em
notas esparsas que buscaram organizar um método geral de observação dos fenômenos
naturais. Compreendendo o desenvolvimento conjunto entre o “desejo científico” e o
“impulso artístico”, tal como aparecera no artigo “Imitação simples da natureza,
maneira e estilo” (1789), face às tentativas no curso da arte, do saber e da ciência de se
fundar uma doutrina, Goethe propõe uma “Morfologia”.
A proposta da abordagem morfológica iniciava-se com uma crítica à dissociação
das partes quando se almeja o conhecimento de um ser. Embora o procedimento da
decomposição tenha contribuído para áreas específicas do saber, faltava-lhe uma visão
de conjunto. A morfologia considera inicialmente os fenômenos em uma totalidade
formada em relação às suas partes constituintes. Diria o autor: “O que primeiramente é
um ser vivo pode ser decomposto em elementos, sem que seja possível depois
reconstituí-lo nem devolver-lhe novamente a vida”. (Goethe, 1817/2007, p. 6)
O conjunto perceptível da existência de um ser real era designado Gestalt, em
alemão, cujos problemas de tradução são bem conhecidos na língua portuguesa,
correntemente referido como “forma”. Goethe dialoga de modo crítico com esta
designação, fazendo notar a subtração do movimento próprio do ser quando da fixação
da forma. Todas as formas, sobretudo as vivas, estão em movimento incessante. Daí
estar-se diante de algo designado Bildung, cuja tradução para o português tem sido feita
pela palavra “formação”. A formação contém aquilo que o ser é, o processo do passado
ao presente e o que poderá ser no futuro. Em suma, todo ser é apreendido como forma
expressa no espaço em um processo temporal de duração; em um movimento de
metamorfose em que uma realização é infinita.
Os estudiosos do método de Goethe consideram três momentos fundamentais do
processo do conhecimento: a observação do fenômeno no espaço, sua projeção no
tempo e a intuição de seus significados. O termo intuição une arte e ciência nessa
concepção. No artigo “Imitação simples da natureza, maneira e estilo” (1789/2005),
Goethe esboça as três passagens na observação da natureza pelo pintor, através da
crítica à imitação clássica, não em prol de uma expressão da subjetividade, mas em
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
favor do do que nomeou “estilo”, resultado do trabalho entre percepção e cognição que
culmina na conjugação com o objeto na forma de conhecimento sensível.
Olhar, para o escritor alemão, deveria ser uma ação sobre os fenômenos. No
estudo sobre os fundamentos do método científico em Goethe, Henri Bortoft (1986, 14)
escreveu: “Observar o fenômeno do modo proposto por Goethe exige de nós olhar,
como se a direção da visão estivesse invertida, partindo de nós em direção ao fenômeno
ao invés de vice-versa” (grifo no original). A atenção reverte-se sobre o próprio ato de
olhar, “como se mergulhássemos dentro da visão (seeing)”, na experiência das
qualidades dos fenômenos.
Desse estágio, o observador avança para outro, no plano da própria imaginação,
procedimento que Goethe chamou Exakte sinnlichte Phantasie – “fantasia sensória
exata” ou exact sensorial imagination, em Bortoft (1986, p. 14). Deixando de lado
agora a origem grega da noção de fantasia, concebe-se o processo da imaginação ao
transformar o fenômeno em uma imagem, cujo objetivo seria sustentar em pensamento
o fenômeno natural concretamente. Intuição, neste âmbito, não é representar uma
imagem inédita, também não seria apenas pensar sobre o conteúdo do percebido, mas
acolher o próprio ser do fenômeno observado na imaginação, por meio da participação
do sujeito na relação com o objeto do conhecimento. Trata-se, portanto, de um exercício
da percepção em unidade com o fenômeno; um encontro.
As unidades apreendidas, por exemplo, na metamorfose das plantas ou na
experiência das cores, pertencem ao fenômeno mas não são visíveis. Segundo Bortoft
(1986, p. 15), Goethe acreditava que deveria haver uma instância na natureza, na qual o
fenômeno acontece do modo mais simples possível, sem fatores secundários que
disfarcem aquilo que é essencial. Esta instância seria o Urphänomen, primal
phenomenon ou fenômeno primordial. Esta forma intuitiva emerge de uma
reestruturação da consciência, designada por Bortoft (p. 33) de holistic perception em
oposição ao modo analítico da consciência.
Paisagens e nuvens
A pintura de paisagens é a maior realização da arte britânica do século XIX,
considera a historiografia geral da arte, numa reação à proletarização do camponês e da
industrialização (Lynton, 1979). Até então, a pintura de paisagens era considerada um
gênero menor pelas academias no sistema de formação e classificação do
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
neoclassicismo. Enquanto a pintura acadêmica trabalhava com conceitos, na proposição
do tema e na estrutura do quadro, a paisagem solicitava uma apreensão sensível da
natureza.
Não obstante a paisagem heroica ou mitológica perdurar no âmbito das academias
como a forma mais digna, ao longo do século XVIII, a designação de “paisagem
campestre” aparece no vocabulário francês (paysage champêtre) vinculada a uma
representação mais “fiel” da natureza. Autores como Roger de Piles e Valenciennes
escreveram sobre o significado dessa prática pictórica e servem como balizas temporais
para a elevação da paisagem dentre os gêneros da pintura. Porém, como se sabe, tal
elevação sustenta uma subordinação da natureza ao processo técnico e conceitual da
arte. Exemplos dessa questão são localizados em 1816, quando a Escola de Belas Artes
na França criou e sancionou a moção de classe de paisagistas, o “Grand Prix de Roma
da Paisagem”, ainda dentro do gênero histórico ou mitológico da paisagem.
A distinção entre paisagem heroica e paisagem campestre aparecera no Cours de
peinture par principes de Roger de Piles (1688 e 1708). A paisagem histórica ou
heroica resta como cenário do tema principal, não sendo lugares observados a partir da
natureza, mas composições ideais. Um século depois, Valenciennes publicou o tratado
Eléments de perspective pratique à l’usage des artistes suivis de Réflexions et conseils à
un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage (1800).
Valenciennes recorre à distinção dos dois tipos de paisagem, sendo a heroica o “gênero
mais nobre de todos” e paysage-portrait (referindo-se à campestre) “a fiel representação
da natureza”, gênero que não se distingue da verossimilhança (Lajarte, 1995, p. 22). Nas
palavras do tratadista, apenas a primeira exigiria muito gênio, enquanto na segunda “não
há senão os olhos e a mão que trabalham” (citado em Lajarte, 1995, p. 23).
A autora que serve de referência desta citação, Isabelle Lajarte (1995), considera
que, ao longo do século XIX, essa prática pictórica aproxima-se da paisagem campestre,
em “uma representação fiel e não idealizada da natureza”. Esse processo é tardio na
França e na Itália, frente à força das academias, diferentemente da Inglaterra e da
Holanda. Basicamente, o gênero paisagístico considerava três categorias: o “pitoresco”,
de pittore, pintar, sobretudo recantos naturais; o “nacional”, rural e marinhas; e a
“modernidade”, urbano e indústrias (p. 34).
O amplo espectro das “atitudes românticas” diante da natureza resultou em
abordagens muito diversas entre escritores, pintores e escultores (Nunes, 1985). A
extensão desses debates pode ser sentida nas Nove cartas sobre a paisagem pictórica,
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
de Carl Gustav Carus (1831), nas quais a imagem da pintura é pensada a partir do
aprendizado com Caspar Friedrich, ao mesmo tempo em que se move em direção a uma
visão “terapêutica”, combinando arte e ciência na feitura de uma imagem completa da
natureza (Bätschmann, 2002, p. 6). Da correspondência trocada com Goethe, Carus
utiliza uma de 1822 para compor a introdução ao publicar suas reflexões. Apenas para
indicar a complexidade daquele contexto, tal como procedeu Oskar Bätschmann (2002,
p. 29), o pensador Philipp Otto Runge (1777-1810) propunha uma nova forma de arte,
em sentido diferente de Goethe e Meyer, notável no livro Do significado das cores na
natureza (1810), no qual procurou desenvolver os conceitos de Shelling e a teoria das
polaridades de Steffens.
No espaço de língua inglesa, a poesia da natureza de Wordsworth está relacionada
com o aparecimento da pintura de paisagem. O engajamento revolucionário na poesia
de Wordworth desvia-se para a natureza, as montanhas, as nuvens. Neste passo, a
capacidade de observação liga-se à associação imaginante, como notou Costa Lima
(1989, p. 90-93):
a autorreflexão estimulada pela natureza antecedia o instante do
desapontamento com o processo revolucionário; que esta
autorreflexão ou intercâmbio da mente com o mundo se impusera
desde que a subjetividade individual, como que entregue agora a si
mesma, necessitara de um interlocutor que lhe ”ensinasse” a falar.
Para tanto, era preciso que o poeta desenvolvesse sua capacidade de
observação do outro, a natureza, para que então descobrisse em si a
metamorfose do que vira, ou seja, a força do fancy and imagination.
Ao revisar o ensaio de Coleridge, “On poesy or art” (c. 1818), Luiz Costa Lima
(1989, p. 108) encontra a recepção de filósofos alemães, dentre os quais Schlegel, e uma
operação de pensamento na qual a mimesis é reelaborada. Da relação entre mente e
natureza, a arte surge “como a mediadora por excelência entre a natureza e o homem”,
citando as palavras do próprio poeta: “a união e a reconciliação daquilo que é natureza
com o que é exclusivamente humano”. Em suma:
A condensação da natureza na arte continua a ser chamada imitação,
embora o poeta-pensador tenha o cuidado de distingui-la da cópia.
Uma e outra se distinguem mesmo porque a arte medeia mente e
natureza, dando primazia ao labor da primeira... (Costa Lima, 1989, p.
108; grifo no original)
Nas palavras de Coleridge:
E a mente do homem é o próprio foco de todos os raios do intelecto
que são disseminados por todas as imagens da natureza. [...] Tornar o
externo interno e o interno externo, converter a natureza em
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
pensamento e o pensamento em natureza, eis o mistério do gênio nas
belas artes. (citado em Costa Lima, 1989, p. 108)
Conforme assinalou Maria Lúcia Kern (2006, p. 24), se por um lado partidários da
filosofia empirista afirmavam o conhecimento sendo decorrência da experiência
sensível, como em Locke, por outro, havia pensadores ingleses, tal como Hume, que
defenderam “a importância da imaginação para o processo do conhecimento e criação”:
“a imaginação seria livre e retomaria as lembranças do passado para estabelecer
associações de múltiplas origens, possibilitando a criação da obra de arte.”
Entre os pintores, Joseph William Turner (1775-1851) trabalhou com o elemento
visível da natureza, na evidência das sensações. O pintor valorizou o uso da aquarela
entre os britânicos em correspondência à Teoria das cores de Goethe (1810). Outro
pintor inglês, John Constable (1776-1837) desenvolveu o trabalho pictórico em sentido
religioso da natureza e seus céus são frequentemente referidos em relação ao
Impressionismo. Era filho de um moleiro e conheceu cedo a vida nos moinhos de vento
e os movimentos da atmosfera.
A representação de nuvens nas paisagens seguiu um procedimento conceitual na
pintura, mesmo durante os séculos nos quais a natureza tornou-se objeto de observação
dos artistas. No dizer de Kurt Badt (1950), Poussin, Claude, Ticiano e Rubens, foram
muito sensíveis para a beleza das nuvens, mas não se dedicaram a estudá-las em suas
próprias formas. Talvez as primeiras contemplações estéticas das nuvens possam ser
encontradas em Salomon van Ruysdael (1601-1670) e Albert Cuyp (1620-1691), ambos
holandeses. Também Alexander Cozens (1717-1786) tomou o céu como objeto de
estudos para suas paisagens, no século XVIII. Estas rápidas indicações fornecidas pelo
estudioso têm como finalidade fundamentar a afirmação sobre o amplo interesse, no
século XIX, dos pintores pelas nuvens, na dedicação prazenteira dos românticos para a
natureza, sensual e filosófica, tanto em escritores como Coleridge, Shelley e Goethe,
quanto em pintores como Turner, Constable, Johan Christian Dahl (1788-1857) e Carl
Blechen (1798-1840). Pela primeira vez na história das imagens, as nuvens tornam-se o
tema central, senão o único, de muitas pinturas, deixando a posição secundária de
atmosfera “ideal” para as paisagens.
Para situar historicamente estas passagens, Badt (1950) começa por enunciar a
relevância dos estudos de meteorologia de Luke Howard, referido em um artigo
intitulado “The shape of clouds according to Howard”, escrito por Goethe, em 1820.
Além de publicar poemas descrevendo a forma e os movimentos das nuvens, o autor
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
alemão dedicou-se também à pesquisa de processos atmosféricos. Dois anos depois, em
seus estudos de meteorologia, Goethe reproduziu uma autobiografia que o próprio
Howard lhe enviara.
Nos poemas dedicados a nuvens, a descrição científica é substituída por uma
apresentação da experiência, ao mesmo tempo em que é ultrapassada pela intuição das
relações entre os fenômenos, o eu e o “ser metafísico” (Badt, 1950, p. 19). Trata-se de
um processo de observação e imaginação que cria formas, das quais surgem imagens de
leões, elefantes, camelos e dragões, e depois adquirem significados simbólicos. Para
esses exercícios, contratava artistas para registrar as formas das nuvens em desenhos, a
exemplo de Friedrich Preller (1804-1878).
Kurt Badt examinou o intrincado processo de relações entre artistas, cientistas e
filósofos cujo resultado foi uma imagem pictórica das nuvens nunca vista antes. A
proposição que reunia o método artístico com o conhecimento científico insere-se na
tradição renascentista da representação perspectiva do espaço, sobre a qual, porém,
Goethe instala a dimensão temporal, em um procedimento chamado “genético”. Não
pretendia transformar a arte em ciência, como nos séculos anteriores, “mas ambas
trazendo juntas os fenômenos” (Badt, 1950, p. 21).
John Constable foi referido como um “pintor do clima”, sobretudo em seus mais
de cem trabalhos dedicados ao céu, no período em torno de 1820 e 1822, em Hampstead
Heath, sobretudo em pinturas a óleo, onde desenvolveu um diário ilustrado de
observações meteorológicas. Nessa série, desapareceram os vestígios da paisagem, o
pintor registrou no verso as horas do dia, a velocidade e direção do vento, o tipo de
nuvem:
Era a combinação de experimentação artística e maturidade, junto a
um desejo de entender os processos de dinâmica meteorológica, o qual
conduziu a notável veracidade e êxtase em seus céus tanto em seus
estudos de nuvens quanto em obras concluídas tal como The Haywain.
(Thornes, 2008, p. 395; minha tradução)
Algumas pinturas mantêm a linha do horizonte, a linha de terra ou algumas
árvores sobre as quais o céu é desvelado no movimento das nuvens: “para resolver o
problema do espaço e expressar o contraste entre o peso das massas de folhagem e a
luminosidade das formas pairando na atmosfera.” (Badt, 1950, p. 41) Os estudos
concentrados nas nuvens preparam o terreno para suas grandes telas, cuja composição e
execução representavam para ele um desafio à visão, à memória e à imaginação (p. 42).
De modo geral, Kurt Badt organizou quatro grupos de imagens: (1) os trabalhos com
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
lápis em esboços exploratórios, detalhes exatos de casas, árvores; (2) os estudos em
óleo, raramente em aquarela, a partir dos quais formula novo tipo de figura, em esboços
feitos ao ar livre, ricos em detalhes, plenos de observação da natureza, onde Badt situa
“um alto grau de inspiração, uma real imaginação criativa”, de onde resultam imagens
livremente inventadas a partir da natureza, “figuras expressivas da natureza”; (3) as
grandes pinturas destinadas à exposição pública feitas no ateliê em concordância com as
regras acadêmicas, nas tradições das escolas italianas e holandesas de composição da
paisagem, nas quais o sentimento é controlado pelo pensamento; (4) o grupo de estudos
surgido entre 1821-22. Este último ocupa a posição intermediária entre os esboços de
paisagens e as grandes pinturas, interessantes pela atitude diante da natureza:
[as pinturas desse grupo] não são tão excitantes como os esboços de
paisagens nem tão calmas como as grandes pinturas, fazem justiça
com a realidade sem ser meramente acuradas e detalhadas. O
sentimento sobre a natureza neste grupo não é, todavia, tépido, é mais
complexo e mais aberto ao aspecto da realidade que fornece a
impressão de completude através de formas compostas de modo
musical e poético. (Badt, 1950, p. 44)
O resultado vai além do esboço do céu, no estudo dos detalhes, para se tornar um
meio de envolvimento com o contexto dos fenômenos naturais, da organização formal
da natureza. Na síntese de Badt (1950, p. 45), “distinguem-se pelo alto grau de
imaginação e força criativa dotada da forma artística constituída em si própria”. Em
seguida, conclui: “o elemento descritivo é dissolvido em uma harmonia ‘poética’, e a
realidade é transformada pela força da imaginação em algo que produz um impacto
direto nos sentimentos.” (p. 46)
Para o geógrafo e estudioso de arte, John Thornes (2008) a primeira metade do
século XIX consistiu na “era de ouro” dos estudos do céu natural, da compreensão do
fenômeno atmosférico, quando os artistas encontram o sentido da liberdade e da
motivação. Thornes considera o trabalho de Constable e outros artistas de modo crítico
à concepção tradicional da paisagem na pintura, em termos de uma “arte ambiental
representacional”, pois Goethe, Carus e Ruskin afirmam que os paisagistas pretendiam
entender o ambiente – as rochas, os solos, as nuvens –, não apenas encontrar formas de
representá-los.
Baseado nas conferências de Constable, de 1836, Thornes (2008, p. 397) conclui
que o pintor solicitava uma mudança de direção na arte da paisagem, deixando a
formação da imagem simbólica artificial, cuja interpretação depende de erudição, em
prol de uma “imagem natural”, entendida por um moleiro ou um marinheiro sem
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
educação formal. Uma imagem como Winter Landscape envolve o processo temporal,
referindo permanências e mudanças das estações e dos anos; não é estática e distante
como o Jewish Cemetery de Ruysdael. Do mesmo modo que Valenciennes sugerira,
Constable fazia esboços e estudos de um mesmo ponto de vista, mas em diferentes
climas e luzes.
Montanha e consciência
Na proposição do grupo impressionista, os discursos referem diretamente à
experiência dos olhos e às impressões óticas, trabalhando com pinceladas de cores sobre
um fundo branco e a abolição do preto, observando os raios de luz e o delineamento das
formas. Como resultado, a rejeição à linearidade e ao desenho propunham uma nova
forma de perceber do espectador. Esta história é bastante conhecida, em alguns pontos
controversa. Aqui ela é resumida apenas para situar a atitude de Cézanne no processo de
conhecimento que articulava arte e ciência por meio da imaginação da natureza.
As aquisições estéticas desse movimento deram-se também pelo deslocamento
espacial, por viagens e observações de paisagens, na chamada “fuga de Paris” e na
busca das “comunidades de artistas”. Os pintores dedicavam-se a um gênero
paisagístico relativamente consolidado, ao qual impõem novos procedimentos e
questões. Trabalham sobre o motivo, direto na natureza, ao ar livre. Abandonam o
desenho-contorno, as regras da perspectiva geométrica, os usos convencionais das
cores. Interessa-lhes o movimento das luzes, tonalidades, nuvens, fumaças, águas, no
limite da acuidade ocular.
Jules Laforgue definiu o impressionismo, em 1903:
É o olho, portanto, que está em primeiro lugar, tal como o ouvido na
música. O impressionista é um pintor modernista que, dotado de uma
sensibilidade visual fora do comum, logrou restabelecer um olho
natural, ver naturalmente e pintar simplesmente tal qual vê. [...] Em
suma, o olho impressionista é, na evolução humana, o olho mais
avançado, aquele que, até aqui, captou e traduziu as mais complicadas
combinações de nuanças e tonalidade conhecidas. O impressionista vê
e representa a natureza tal qual ela é, quer dizer, unicamente em
vibrações coloridas. (citado em Serullaz, 1989, p. 11)
Esta concentração no olho foi o ápice de um processo de transformação da
percepção nos cem anos que antecederam ao impressionismo. Naquele momento, estava
superada a dominância de uma cultura primordialmente oral e tátil pela cultura em que a
visão tornara-se o instrumento sensório dominante, em uma “visualidade estendida”. O
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
tempo deixou de ser comparável ao espaço na virada para o século XIX, quando o
campo da percepção burguesa estabeleceu regras de desenvolvimento temporal, fazendo
com que a lógica de identidade e diferença fosse suplantada por outra de analogia e
sucessão (Lowe, 1986, p. 33).
As sínteses do movimento impressionista ressaltam a observação da luz e da
atmosfera e as pinceladas coloridas para conferir ao quadro a dinâmica da vida. Em
retrospectiva histórica, Maurice Serullaz (1989) relembra as “miragens coloridas” dos
venezianos Giorgione, Ticiano, Veronese e Tintoreto, as produções luminosas da
Espanha, nos quadros de El Greco, Velásquez e Goya, as paisagens holandesas de
Ruysdael ou Hobbema, que colocaram questões sobre a representação de ambientes
naturais, por fim, dentre os franceses, a luz da estética de Poussin e Claude Gellée (Le
Lorrain), o senso de atmosfera das paisagens de Joseph Vernet. Muitos quadros foram
objeto de estudo dos pintores franceses, sobretudo nas galerias do Louvre.
De modo direto, as aquisições dos ingleses, notadamente Constable, Bonington e
Turner, “imprimiram um impulso decisivo na estética impressionista” (Serullaz, 1989,
p. 20). Esta dívida foi reconhecida por Pissarro quando se referiu a sua estada em
Londres, em 1871, na companhia de Claude Monet:
Quando Constable (1776-1837) declara: “Aquilo a que tendo na
minha pintura é a luz, o orvalho, a brisa, a floração, o frescor”, não se
julgaria estar ouvindo um Claude Monet? A analogia é ainda mais
impressionante quando ele afirma, fornecendo já por antecipação uma
explicação do que serão as “séries” do mestre do impressionismo
sobre um mesmo local: “Não há dois dias que sejam semelhantes, nem
mesmo duas horas...”. (Serullaz, 1989, p. 21)
Delacroix declarou ter recebido tanto influência de Constable quanto de Bonington. A
atmosfera de água e céu de Turner também marcou aqueles pintores, não obstante, sem
a ruptura com os fundamentos da arte acadêmica.
O passo decisivo para a nova estética foi dado em viagens à Normandia, em
Honfleur (na fazenda Saint-Siméon), Trouville, Deauville e Le Havre, na conquista da
pintura ao ar livre e da experiência da paisagem. Nas chamadas fugas de Paris, quando
artistas escolheram suas residências no campo, nas pequenas vilas, levaram a cabo o
projeto de ruptura com a hegemonia da pintura clássica esboçado pelos trabalhos de
Jean-Baptiste Corot, Charles François Daubigny e Gustave Courbet, além dos artistas da
chamada Escola da Provença.
Extraindo do conjunto de cartas escritas por Cézanne (1978/1990) apenas três
pequenos excertos, tem-se uma introdução à relação que seu trabalho manteve com a
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
natureza, mesmo que arriscando mera ilustração. Primeiro, ao colega pintor Émile
Bernard (Aix, 25 de julho de 1904):
Para fazer progressos, só a natureza, e o olho educado no contato com
ela. Torna-se concêntrico à custa de observar e trabalhar. Quero dizer
que, em uma laranja, uma maçã, uma bola, uma cabeça, há um ponto
culminante; esse ponto – apesar do efeito terrível: luz e sombra,
sensações colorantes – é o mais próximo do nosso olho. As bordas dos
objetos fogem em direção a um centro localizado no nosso horizonte.
Com um pouco de temperamento é possível ser muito pintor. É
possível fazer coisas boas sem ser muito harmonista ou colorista.
Basta ter senso de arte – e esse senso é, sem dúvida, o horror do
burguês. Portanto, os institutos, as bolsas e as honras só podem ser
feitos para os cretinos, os farsantes e os patifes. Não seja crítico de
arte, faça pintura. Essa é a salvação. (p. 248)
Novamente, para Émile Bernard (Aix, 23 de outubro de 1905):
“Ora, a tese a ser desenvolvida é que – seja qual for a nossa
sensibilidade ou força diante da natureza – temos de transmitir a
imagem do que vemos, esquecendo tudo o que tenha existido antes de
nós. Acredito que isso permite ao artista expressar toda a sua
personalidade, grande ou pequena.” (p. 257)
Por fim, para seu filho (Aix, 8 de setembro de 1906):
A modéstia sempre ignora a si mesma. – Finalmente lhe direi que,
como pintor, torno-me mais lúcido diante da natureza, mas que, em
casa, a realização das minhas sensações é sempre muito penosa. Não
consigo chegar à intensidade que se desdobra ante meus sentidos, não
tenho a magnífica riqueza de colorações que anima a natureza. Aqui, à
beira do rio, os motivos se multiplicam, o mesmo tema visto sob um
ângulo diferente oferece um objeto de estudo do mais vivo interesse –
e tão variado, que acho que poderia ocupar-me durante meses, sem
mudar de lugar, inclinando-me ora um pouco à direita, ora um pouco à
esquerda. (p. 265)
Nestas palavras, os limites do corpo e a experiência estética trazem questões ao
impressionismo. Não exatamente no sentido que lhe dirigiria Paul Gauguin, acerca
daquilo que está ao redor do olho, mas na participação do artista, no processo do
conhecimento suscitado pela pintura, na operação cognitiva e imaginativa do trabalho
do pintor.
O poeta Rainer Maria Rilke foi atraído pelas pinturas de Cézanne quando visitou a
grande exposição retrospectiva, em Paris, em 1907. Chamara-lhe a atenção a
experiência do “tornar-se-coisa”, “a realidade intensificada pela sua vivência do objeto”.
Conheceu o trabalho de um velho, doente e solitário pintor, que no trabalho diuturno
incansável compôs um conjunto de imagens que se tornaria central tanto na arte quanto
no pensamento do século XX (Rilke, 2006). Trata-se da ação política através da qual se
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
vive uma outra vida, de dedicação ao trabalho artístico, em contraposição ao tempo da
vida burguesa, em resistência à mediocridade, como se lê no ensaio de Maria Helena
Patto (2000, p. 45):
Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de
produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas
romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só
suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja
preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas
ideais políticas.
Interessava a Rilke alguém que, em vez de facilitar, dificultou o seu trabalho de
modo obstinado.
Em paisagens ou naturezas mortas, mantendo-se intencionalmente
diante do objeto, capturava-o somente com rodeios complicados ao
extremo. Começava pelo colorido mais escuro, cobria sua
profundidade com uma capa de cor que conduzia até um pouco além
daquele, e sempre mais longe, expandindo cor sobre cor, chegava a
um outro elemento contrastante do quadro, com o qual, desde um
novo centro, procedia de modo análogo. Parece-me que nele os dois
procedimentos – o da captura observadora e firme, e o da apropriação,
o uso pessoal do capturado – apoiam-se um contra o outro, talvez
segundo uma tomada de consciência, de tal modo que os dois, por
assim dizer, começam a falar ao mesmo tempo, em interrupções
contínuas e discórdias constantes. (Rilke, 2006, p. 51)
Esta longa citação é rica o suficiente para compreendermos a distinção do olhar
impressionista, frente a um trabalho contumaz, sobre o qual se impõe uma “tomada de
consciência” sobre a paisagem, por meio da qual, ao final, a paisagem pensaria através
do pintor. Esse trabalho incluía a arrumação de maçãs e garrafas de vinho, “os obriga a
ser belos, a significar o mundo todo, toda a felicidade, toda a glória...” (Rilke, 2006, p.
54)
Cézanne considerava a pintura como parte de sua própria existência, bem como a
representação de um importante ponto de vista acerca da paisagem pictórica, escreveu
Merleau-Ponty (1945/1980, p. 115). Para o filósofo, Cézanne superou o método
impressionista ao tentar representar o objeto atrás da atmosfera. Nesse sentido,
compreende-se as palavras do pintor, através das quais suas pinturas desvelam-se como
parte da natureza.
O problema da perspectiva é central na arte de Cézanne, sua fidelidade para com o
fenômeno mostra que “a perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva
geométrica ou fotográfica” (Merleau-Ponty, 1945/1980, p. 117). O pintor expõe essa
situação pela deformação da perspectiva, na qual os objetos aparecem em uma nova
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
ordem. Cézanne chamava de “motivo” a paisagem em sua plenitude absoluta. A
paisagem vivida é o motivo; tanto a razão quanto o tema da pintura. A motivação do
gesto do pintor não é baseada nas regras da perspectiva, mas reside na totalidade da
paisagem (p. 119).
Para Merleau-Ponty, o olhar do artista deve-se mais à encarnação que ao espírito.
Seu corpo manipula um meio específico que o possibilita compreender os significados
apreendidos pela percepção. Destarte, cada pessoa é única e cada um terá seu próprio
“estilo” de relacionar seu corpo com o campo perceptivo. O estilo remete àquilo que há
de particular no ser, trata-se de uma maneira de estar em situação (Merleau-Ponty,
1945/1999, p. 439). A ideia de estilo não desdobra uma concepção individualista, mas
um sentido particular no interior da vida social. Cézanne “germinava” com a paisagem,
dizia-se. O mesmo termo sublinhado por Merleau-Ponty em seu ensaio “A linguagem
indireta e as vozes do silêncio” (1952/1989, p. 100), o qual indica o momento fecundo
da criação:
é necessário que haja ocorrido este momento fecundo em que germina
à superfície de sua experiência, em que um sentido operante e latente
assume os emblemas que vão liberá-lo e torná-lo maneável para o
artista e ao mesmo tempo que acessível aos outros.
Ao considerar o processo perceptivo como um encontro com significados, Paul
Crowther (1982) afirmou que as coisas imprimem-se sobre o corpo como presenças
sensoriais, designadas “emblemas”. Estes não são apenas imagens mentais ou
construção mental sobre dados, mas significados inerentes à própria encarnação. Desta
afirmação resultam duas noções: 1) a percepção é criativa porque o corpo, ao articular o
mundo conforme significados, remete o sujeito a sua vida passada e futura; 2) o corpo
opera entre as coisas e as pessoas de modo pré-reflexivo. Quando a percepção encontra
um significado imediatamente incompreensível, mas que exige sua preservação e
articulação, está-se diante de um “ponto de decolagem” da criação artística – take-off
point for artistic creation (Crowther, 1982, p. 141). O pintor captura as premissas que a
visão profana esquece, o corpo operante dá continuidade ao processo de significação,
originado na percepção e unificado na forma concreta (p. 146).
No caso de Cézanne, segundo Merleau-Ponty (1945/1980, p. 119): “Tratava-se,
esquecida toda a ciência, de recuperar por meio destas ciências a constituição da
paisagem como organismo nascente”. Para tanto, seria necessário ligar todas as vistas
parciais, reconstituindo a totalidade original da experiência da paisagem. Cézanne
explicava que a paisagem não deveria ter seus limites nem muito alto nem muito baixo,
87
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
mas “trazida viva numa rede que nada deixa passar”. “A paisagem – dizia Cézanne – se
pensa em mim e sou sua consciência” (citado em Merleau-Ponty, 1980, p. 119).
O artista pinta porque o mundo gravou nele as cifras do visível, concluiria
Merleau-Ponty (1964, p. 28): “É a própria montanha que, lá de longe, se mostra ao
pintor, é a ela que ele interroga com o olhar”. A paisagem é para o artista um
“acontecimento”, como definiu Lyotard (2000, p. 36), como se o monte Santa Vitória
estivesse se jogando contra Cézanne, “dando-lhes golpes com matéria cromática”, aos
quais o pintor responde com toques de tinta. O contato da carne do pintor e da carne do
mundo indica “o caminho singular por onde se explora aqui uma nuvem de pensamento
cujo nome é monte Sainte-Victoire”. Desta feita, na apreensão merleau-pontyana de
Cézanne, a pintura não é evocação de valores táteis (como queria Berenson) mas,
inversamente, ela “dá existência visível àquilo que a visão profana acredita invisível”
(Merleau-Ponty, 1964, p. 27). Cézanne havia dito a Émile Bernard: “A natureza e a arte
não são diferentes”.
A fenomenologia e a imaginação da natureza
O leitor destas páginas talvez tenha vislumbrado onde se pretende chegar com a
composição desta narrativa. Na relação do artista com a natureza, mediada pela imagem
pictórica, enfatizou-se os trâmites da imaginação desde a morfologia da natureza em
Goethe, a observação das nuvens em Constable, a consciência da montanha em
Cézanne, para atingir a concepção estética de Merleau-Ponty. Nas curvas desse
caminho, encontram-se indícios de um procedimento fenomenológico antes da
fenomenologia, evidentemente, evitando qualquer anacronismo nesta afirmação. Não é
o objetivo aqui estudar exaustivamente cada um desses artistas, tampouco avançar na
profundidade do pensamento filosófico, mas apenas retomar algumas conexões que me
parecem fundamentais para uma abordagem empírica fenomenológica, sobretudo em
correspondência à experiência da pintura. Tais procedimentos penetraram no
pensamento fenomenológico e ressaltam correntes contemporâneas fundadas no
engajamento.
A fundação da filosofia fenomenológica situa-se no desenvolvimento das
proposições de Edmund Husserl (1859-1938). Para grande parte dos autores, a origem
desse movimento estaria no livro intitulado Investigações lógicas, de 1901
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
(Spiegelberg, 1971; Moreira, 2002; Bello, 2006). Spiegelberg fala em “movimento
fenomenológico” devido ao fato de não se tratar de uma filosofia acabada em seu corpo
teórico, mas de um mover-se (moving). A partir de um ponto comum, correntes
desdobram-se em ritmos diferentes e direções diversas. Lyotard (1986, p. 9 e 12) diria
que a fenomenologia “germinou durante a crise do subjetivismo e irracionalismo (fim
do século XIX, princípios do XX)”. Seu significado é histórico e não determinável de
uma vez por todas, porque é sempre inacabado e seu destino ramificado de Heidegger a
Fink, de Merleau-Ponty a Ricoeur, de Pos ou Thévenaz e Lévinas, de Edith Stein a Ales
Bello, de Scheler e Marcel, Vicente Ferreira da Silva e Washington Vita.
Não obstante a diversidade, as correntes pertinentes ao movimento são aquelas
que mantêm a tarefa da fenomenologia, qual seja: “a investigação descritiva dos
fenômenos, objetiva e subjetivamente, em suas mais complexas extensão e
profundidade” (Spiegelberg, 1971, p. 2). Obrigatoriamente, essa investigação deverá
seguir um método intuitivo, no sentido de estruturas essenciais, a partir de uma
suspensão dos julgamentos (a redução).
Em um escrito de 1927, Husserl define a tarefa da “psicologia fenomenológica”
da seguinte maneira: “o exame sistemático dos tipos e das formas da experiência
intencional e a redução de suas estruturas às ‘intenções’ elementares, aquilo que nos
deve ensinar a natureza do psíquico e nos fazer compreender o ser de nossa alma.”
(Husserl, 1957, p. 345) A noção de intencionalidade remete diretamente a Franz
Brentano, na origem imediata do movimento fenomenológico. Porém, trabalha com o
conceito num sentido revisto, a partir da qual se esboça o método husserliano em três
procedimentos básicos: (1) realizar a époché, cuja finalidade é colocar em suspensão
todos os julgamentos; (2) descrever as múltiplas aparições do fenômeno em seus
estados objetivos e subjetivos; (3) proceder à redução do fenômeno visando sua
essência ou eidos (redução eidética). Na atitude natural, somos colocados no mundo
como existente, ao passo que ao praticar a suspensão dos julgamentos assume-se a
atitude fenomenológica, modificando-se a relação com o mundo. A redução
fenomenológica, sintetizou Lyotard (1986, p. 55), “não significa de modo algum
interrupção deste entrelaçamento, mas apenas pôr fora de circuito a alienação, por meio
da qual me apreendo mundano e não transcendental”.
Com a retomada da referência ao método de observação de Cosntable, indica-se
uma forma de conhecimento sensível muito distante dos quadros do pensamento
fenomenológico. Não obstante, sua retomada por estudiosos contemporâneos evidencia
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
a contribuição que aqueles procedimentos do artista diante da natureza propiciam uma
operação mental capaz de trazer para a imaginação elementos fundamentais da dinâmica
natural que o pensamento racional deixaria escapar. John Thornes (2008) estuda
“estética ambiental” recorrendo aos artistas que procederam conforme o engajamento
com o mundo natural, sejam as obras de arte representacionais, não-representacionais
ou performáticas, desde John Constable e Paul Cézanne até Richard Long e Andy
Goldsworthy. Nas palavras de Thornes (2008, p. 401), um projeto artístico “é um
combinação potente do ambiente físico natural e a imaginação do artista, ao final das
contas, do espectador”.
No desenvolvimento recente das ciências sociais nos estudos ambientais, a
perspectiva fenomenológica possibilita uma abordagem crítica porque engaja tanto o
artista quanto o observador na natureza:
Não obstante, a arte tradicional da paisagem busque capturar ou
representar nosso olhar sobre objetos externos e distantes, os quais
reconhecemos ter um valor estético, a arte ambiental e a estética
ambiental envolvem todos os nossos sentidos e sentimentos. (Thornes,
2008, p. 393)
Os conceitos fenomenológicos recorrem ao trabalho dos artistas para desenvolver
a reflexão sobre o engajamento vital na sociedade e na natureza, intensificando os
debates promovidos por autores como Tim Ingold e Arnold Berleant, a partir de bases
fenomenológicas tais como Merleau-Ponty e Heidegger, sobre um conhecimento
integral da experiência humana. Como afirmou Berleant (1992), a apreciação do
ambiente não se limita ao olhar, mas ao movimento vivo de todo o corpo, à participação
do observador em uma estética do engajamento.
Mais direto é o caminho que nos conduziu a Goethe. A aproximação da
fenomenologia de Husserl e a correspondência de autores do movimento
fenomenológico com o método de conhecimento goethiano não é colocada em dúvida
na história do movimento fenomenológico, não obstante, sem lhe reconhecer um lugar
fundamental (Spiegelberg, 1971, p. 8). Goethe foi situado na origem da fenomenologia
por autores como Hedgwig Conrad-Martius e Ludwig Binswanger. Dentre aqueles nos
quais a presença do pensamento de Goethe é fundamental está Fritz Heinemann,
notadamente em um artigo intitulado “Goethe’s phenomenological method” (1934).
Mais recentemente, Eva-Maria Simms (2005) apontou as relações entre o pensamento
de Husserl e de Goethe.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Contudo, a abordagem morfológica mantém um movimento de aproximação e
afastamento com o movimento fenomenológico, a despeito das correspondências diretas
entre Goethe e Husserl. Desde a organização dos escritos científicos de Goethe
realizada por Rudolf Steiner, até as últimas décadas do século passado, veio a lume uma
diversidade de pesquisas em instituições da Europa e dos Estados Unidos (e.g. Seamon
and Zajonc, 1998; Amrine et al., 1987), bem como em traduções dos escritos científicos
para o inglês (Miller, 1988), para o português (Molder, 1993) e para o espanhol (Meca,
2007).
Tais pesquisas têm demonstrado muito interesse nas áreas naturais e ambientais,
como se pode observar nas duas coletâneas citadas, bem como em Bockemuehl (1992) e
no volume especial de Janus Head (vol. 8, n. 1, 2005) dedicado ao “Delicado
empirismo de Goethe”, sob edição de Bill Bywater & Craig Holdrege. No Brasil, foram
lançadas proposições no âmbito da geografia e da agronomia, notável nos textos
recolhidos por Andreas Attila Miklós (2001), nos quais a paisagem e a trama social são
compreendidas em uma mesma unilateralidade processual constituída por um processo
histórico dissociativo. No campo da investigação social, Allan Kaplan (2005) procura
entrelaçar o método de Goethe com a psicologia no campo da percepção entre a
observação empírica e a estética no estudo das organizações.
A compreensão por meio da qual o mais importante é aceitar que o fenômeno
contém sua própria teoria e que não se deveria buscar seu entendimento fora dele, como
Goethe tenta fazer diante do azul do céu, dispõe o processo do conhecimento em íntima
relação sujeito-objeto, em uma perspectiva crítica no início do século XIX. Nesse
âmbito, está-se trabalhando no campo de “visões fenomenológicas”, para retomar as
palavras de Moritz Geiger (1958), e não estritamente do movimento fenomenológico
husserliano. Trata-se de uma forma de conhecimento que consista em um conjunto de
práticas, sinteticamente distribuídas em três características básicas: (1) deter-se e
investigar os fenômenos; (2) tais fenômenos não são apreendidos em sua condição
individual ou acidental, mas em seus “momentos essenciais”; (3) a essência não deve
ser apreendida por dedução, nem por indução, senão por intuição. A esses
procedimentos, Geiger (1958, p. 95) acrescenta a relevância da imaginação do
pesquisador em sua potencialidade de visualizar as diversas facetas do fenômeno e
projetar suas formas no desenvolvimento histórico. Através destes pontos, Geiger
formulou a primeira estética fenomenológica.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A vinculação aos fenômenos pode ser encontrada em autores que reviram a
fenomenologia pura de Husserl, tais como Heidegger e Merleau-Ponty, conforme
considera o fenomenólogo David Seamon (1998, p. 9): “fenomenólogos existenciais
podem encontrar muitos pontos metodológicos similares com a ciência goethiana”.
Mais longe, poderemos encontrar referências fundamentais de Goethe na hermenêutica
de Hans-Georg Gadamer. Bortoft (1986, p. 28) conduziu a leitura de Goethe a um
debate acerca de dois modos de pensar, analítico e holístico, a partir do qual a
compreensão dos fenômenos e a concepção de unidade dialogam com a revisão
husserliana da crítica ao dualismo cartesiano para, ao final, relacionar com o conceito
“pertencimento” de Heidegger, uma unidade sem unificação.
Com Merleau-Ponty (1945/1999, p. 12), as essências devem trazer consigo todas
as relações vivas da experiência, “assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e
as algas palpitantes”. Não há separação entre essência e existência, pois se trata “do
núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação
e de expressão”.
Há um duplo movimento de retomada e fundamentação histórica do pensamento
fenomenológico por meio das práticas artísticas. Os filósofos encontram na arte passada
uma forma de conduzir o pensamento contemporâneo, ao mesmo tempo, localiza-se a
própria arte como fundamento de correntes filosóficas. Por meio desse movimento,
Cézanne constituiu-se na principal referência da fenomenologia francesa. Forrest
Williams (1954) percorreu essa indicação ao explorar a conexão entre esse artista e o
desenvolvimento filosófico, especialmente notável no plano histórico, na reação ao
moderno subjetivismo. Desta feita, para além dos autores franceses, haveria
correspondências indiretas nas práticas artísticas e nos debates epistemológicos, donde
se depreende a comunicação entre a esfera da visualidade e a esfera do conhecimento.
As correspondências sugeridas por Williams (1954, p. 481) se dão em três níveis
conjugados: na origem comum, o subjetivismo da noção de barroco; no método comum,
na observação da própria subjetividade nos dados exteriores; na comum realização,
evitando o subjetivismo por meio da descoberta do real como a essência ou estrutura de
uma aparência dada. A pintura de Cézanne avança das aparências para as coisas,
distingue-se do impressionismo porque não aceita a arbitrariedade impressa na retina,
ele procura olhar mais próximo e reflexivamente, distinguindo-se, por exemplo, de seu
mentor Camille Pissarro; não descobre impressões, não se detém nas aparências do
fenomenalismo, mas visa ao objeto aparecendo (p. 486). Concluindo, (1) na arte de
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Cézanne há uma redescoberta do real nas aparências, em resposta ao subjetivismo do
século XIX e à noção de barroco; (2) esse avanço sobre a noção de barroco, o
impressionismo e o expressionismo em arte corresponde à superação da fenomenologia
husserliana sobre o subjetivismo da filosofia alemã daquele século.
Conforme a Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 190), a
vida consciente e perceptiva é “sustentada por um ‘arco intencional’ que projeta em
torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física,
nossa situação ideológica...”. A compreensão de arco intencional afirma uma produção
de significados na origem do ato de perceber. Como notou Fernande Saint-Martin
(1992), considera-se o espaço não apenas no nível do mundo físico, mas como
constitutivo da própria vida. A noção de intencionalidade fundamenta a própria
encarnação como experiência originária, da qual deriva nossa constituição corporal,
antes mesmo da gênese do corpo objetivo e nosso engajamento no mundo natural e
social.
As implicações desta filosofia da percepção em diálogo com a pintura de Cézanne
são bem conhecidas e há muito debatidas entre de pesquisadores de diversas áreas.
Dessa aproximação, resulta a afirmação de João Frayze-Pereira (2004, p. 24) sobre o
pensamento de Merleau-Ponty ser “estético de ponta a ponta”: porque é elaborado “por
uma reflexão sobre a experiência originária do sensível”, por meio da qual encontrou na
arte moderna a deiscência do ser. Nas páginas de O olho e o espírito, lê-se: “Imerso no
visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê:
aproxima-se dele somente pelo olhar, abre-se sobre o mundo” (Merleau-Ponty, 1964, p.
17).
Esta concepção estética situa-se em um conjunto de reflexões históricas, as quais
podem ser relidas em muitos escritos do filósofo, particularmente na série de
conferências pronunciadas na Radio France, em 1948. Cézanne está no centro daquilo
que historiadores franceses chamariam de uma “viragem mental” à qual Merleau-Ponty
percebe como a passagem do pensamento clássico para o pensamento moderno, notável
na distinção entre o espaço homogêneo, das coisas identificáveis em três dimensões, e o
espaço heterogêneo, em uma estrutura não rígida na qual os objetos perdem a identidade
absoluta com eles mesmos, “onde forma e conteúdo estão como que baralhados e
mesclados” (Merleau-Ponty, 1948/2004, p. 11). Cézanne não seguiu os cânones
clássicos, na concepção da perspectiva geométrica, desenhando primeiro o esquema
espacial do objeto para depois preenchê-lo com cores. Ele desenhava ao pintar:
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
nem no mundo percebido, nem no quadro que o exprime, o contorno e
a forma do objeto são estritamente distintos da cessação ou da
alteração das cores, da modulação colorida que deve conter tudo... [...]
Cézanne quer gerar o contorno e a forma dos objetos como a natureza
os gera diante de nossos olhos: pelo arranjo de cores. (p. 12).
Na pintura clássica, o espectador não participa, não está engajado na natureza.
Para o filósofo, nessa paisagem pictórica o olhar desliza sem asperezas, ao passo que na
pintura moderna, com a retomada da percepção na experiência vivida, observa-se “o
nascimento da paisagem diante de nossos olhos”:
o sentimento de um mundo em que jamais dois objetos são vistos
simultaneamente, em que entre as partes do espaço, sempre se
interpõe o tempo necessário para levar nosso olhar de uma a outra, e
que o ser portanto não está determinado, mas aparece ou transparece
através do tempo. (Merleau-Ponty, 1948/2004, p. 15)
Para concluir, das trilhas que percorremos, uma vereda liga o filósofo francês
Merleau-Ponty e o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe. Naquele programa de
rádio, o filósofo afirmou que quando se está situado no pensamento clássico,
considerando as diferentes qualidades dos objetos, a unidade da coisa percebida
permanece misteriosa. Pois, ao fragmentar-se, o mundo entre os diferentes sentidos, a
visão, a audição, o olfato, o tato, a gustação, entre outros, reduzidos a dados objetivos
transmitidos ao cérebro em suas especialidades e de modo isolado, não se compreende a
vital correspondência dos sentidos. Para Merleau-Ponty, Goethe propusera a
compreensão de uma totalidade em um processo de significação afetiva, colocando em
correspondência todos os sentidos.
Nas palavras de Merleau-Ponty (2004, p. 20):
Portanto, desde que se torne a situar a qualidade na experiência
humana que lhe confere uma certa significação emocional, começa a
tornar-se compreensível sua relação com outras qualidades que não
têm nada em comum com ela.
A cor de um tapete ou de uma parede configuram uma atmosfera moral, sons podem
equivaler a temperaturas e assim por diante. Concluirei com as palavras do filósofo
francês: “A unidade da coisa não se encontra por trás de cada uma de suas qualidades:
ela é reafirmada por cada uma delas, cada uma delas é a coisa inteira. Cézanne dizia que
devemos poder pintar o cheiro das árvores”.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
PARTE 2. IMAGEM E VIDA SOCIAL
6. Comunidades de artistas: uma abordagem psicossocial
Circundando um fenômeno
Algumas cidades europeias recebem contemporaneamente a designação de
“cidades de arte”, “cidades de artista”, pays d’artiste. Esses rótulos podem referir
localidades formadas a partir de remanescentes arquitetônicos e artísticos de relevância
notável para a história e para o turismo, bem como indicar lugares que se tornaram
polos de atração de artistas, em muitos casos estabelecendo-se como residentes e
formando “colônias” ou “comunidades” em que o fazer artístico representa o núcleo
central da coletividade; daí poderem ser designadas também de “comunidades de
artistas”.
A terminologia requer alguns cuidados. Isabelle Lajarte (1999, p. 68) considera
que um village de peintres (povoado de pintores) constitui-se por artistas que se
instalam, vivem, trabalham, pintam sem ter necessariamente laços estreitos entre si, na
forma de agrupamentos. Por outro lado, uma colônia de artistas supõe uma coesão
maior entre eles, capaz de originar uma comunidade artística, muitas vezes em um ideal
estético comum. De modo geral, estas antecedem àquele, o movimento comunitário cria
condições para a atração de outros artistas fazendo, paradoxalmente, desaparecer a
colônia inicial. Esta situação foi exemplificada pela socióloga através da colônia de
Worpswede, na Alemanha.
A circunscrição geográfica também não é precisa, podendo ocupar uma região,
cidades vizinhas etc. O nome desses grupos de artistas muitas vezes ficou associado a
uma cidade ou localidade, embora tenham se deslocado e ocupado lugares diferentes.
Na França, por exemplo, a Bretanha conheceu diversos pontos de instalação de artistas,
por exemplo, Pouldu e Concarneau. Na costa norte alemã, os artistas visitaram quase
todas as vilas de pescadores próximas às ilhas de Sylt e Rugen (Lajarte, 1999, p. 68).
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Além de espaços sociais de trabalho e comercialização para artistas, as paisagens
e caminhos percorridos em suas viagens, foram reconhecidos pela dimensão estética.
Montanhas ou vales inscritos na categoria do “belo” ou do “pitoresco”. Vilas nessas
condições, não muito distantes dos centros urbanos, eram por vezes escolhidas como
destinos para professores e alunos de importantes escolas de arte praticarem ao ar livre.
No início, podiam ser apenas localidades de veraneio de artistas ou mesmo residência
daqueles que evitaram os centros produtores de arte.
Observando a história da arte, sobretudo dos dois últimos séculos, nota-se o
movimento de artistas franceses Jean-François Millet e Camille Corot fomentando uma
forma de perceber muito particular sobre Barbizon, nas viagens de Paul Gauguin, Émile
Bernard e Paul Sérusier, entre outros artistas da École de Pont-Aven, a formação de um
olhar sobre a Bretanha. Os deslocamentos de Van Gogh para Auvers-sur-Oise e de
Monet para Giverny também criaram muitas imagens desses lugares. Na Alemanha,
tornou-se conhecida a cidade de Worpswede, com a comunidade de Fritz Mackensen e
Paula Modersohn Becker. É curioso notar que muitos desses lugares foram
“descobertos” por artistas pouco conhecidos, e mesmo vindos de outros países, como
são os casos de Barbizon e Pont-Aven, inicialmente frequentados por norte-americanos
e noruegueses (Lajarte, 1999, p. 73).
Embora reconhecidas em grande parte pela atividade de pintores, desde o século
XIX, essas localidades receberam também outros tipos de artistas, escritores, poetas,
músicos.9 Em todos esses casos, as viagens dos artistas constituíram-se como o início de
um processo de conversão simbólica dos lugares em polos turísticos e, sobretudo, o
estímulo para a formação de um mundo artístico nessas localidades (Orton e Pollock,
1980; Jacobs, 1985; Herbert, 1994; Lajarte, 1995 e 1999; Perry, 1998).
No Brasil, esse processo é conhecido em Ouro Preto (MG), com as pinturas de
Tarsila e de Guignard, bem como os escritos de Manuel Bandeira, Cecilia Meireles e
Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Depois, com uma série de artistas que para
lá migraram ou com aqueles originários da própria cidade estabeleceu-se profícuo
campo de trabalho (Durand, 1989; Andriolo, 2008). No mesmo período, Paraty (RJ)
recebeu também seus artistas, entre eles os pintores Djanira e Takaoka.
9
Lajarte (1999, p. 72) cita um grupo na Suíça chamado Monteverita, onde, nas primeiras décadas do
século XX, além de artistas e escritores, músicos e arquitetos, encontraram-se também outros intelectuais,
religiosos e filósofos de origem socialista, anarquista e teosófica, que desenvolveram práticas
vegetarianas. Tem-se notícias de excursões em Moritzburg, nas quais o culto ao nudismo aparece
associado a práticas artísticas, em alguns casos vinculadas ao vegetarianismo e estações de cura (Perry,
1998, p. 78).
96
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Não obstante o interesse dos pesquisadores da psicologia para as indagações
pertinentes às cidades turísticas (e.g. Mannel e Iso-Ahola, 1987; Potter e Coshall, 1988;
Ross, 2001; Pearce e Striger, 2001; Pearce, 2005), as chamadas “cidades de arte”
permanecem pouco estudadas. As pesquisas têm sido realizadas por outras disciplinas
(e.g. Cohen, 1993; Evans-Pritchard, 1993; Graburn, 1994; Lajarte, 1995). A
metodologia empregada pelos estudiosos do turismo tem se aprimorado nas últimas
décadas, mas ainda lança questões sobre as imagens. Ou as imagens são apenas
referidas junto ao repertório de atrativos ou estão submetidas ao marketing turístico.
Permanece em aberto a compreensão dos significados propriamente psicossociais do
fenômeno, sobretudo na análise do processo histórico de constituição do imaginário
conforme a psicologia política das imagens.
Os artistas estão “ligados a uma só e mesma rede do Ser”, dizia Merleau-Ponty
(1964, p. 89). Eles compartilham, de modo inconsciente, uma estrutura social que se
desenvolve no tempo histórico: “o verdadeiro pintor transforma, sem o saber, os dados
de todos os outros”. Essas localidades ligam-se à história da paisagem, bem como à vida
social, em discursos e imagens. As narrativas e as imagens imbricam-se no processo
psicossocial de constituição simbólica da cidade e da formação da percepção de
moradores e turistas. Os pintores têm seu olhar no cruzamento de três fontes: primeiro,
o ambiente, natural, topográfico e arquitetônico; segundo, a pintura de seus mestres e de
outros pintores; por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado histórico.
Comunidades de artistas: breve história
Os românticos estabeleceram uma importante relação com os espaços, colocando
a viagem e os passeios entre os procedimentos necessários para a formação do artista.
Das paisagens de Caspar Friedrich ao chamado “primitivismo” dos artistas modernos,
contra o cientificismo e a sociedade industrial, buscou-se outros lugares. O fenômeno
dos artistas viajantes na modernidade, distinto dos sábios cientistas do século XVIII,
conduziu a destinos variados, tal como Émile Bernard no Egito, Nolde na Nova Guiné,
o norte da África propugnado pelo Die Brücke e Kandinsky, até os contemporâneos
como Jean Dubuffet no Saara da Argélia.
Os artistas se referiam à arte marginal como voie de salut (caminho da salvação),
em categorias associadas ao arcaísmo, ao primitivo, ao exotismo, à infância ou à loucura
(Peiry, 1997, p. 62). A alteridade da arte conduziu os artistas a lugares distantes, como
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Gauguin na Oceania, ou a lugares escondidos, como os manicômios visitados por Max
Ernst; Lasar Segall, além de visitar o sanatório de Dresden, veio instalar-se no Brasil.
Frayze-Pereira (2006, p. 193) sintetizou claramente esse processo: “A poética da ação
transformar-se-á em prática da evasão. Isto é, ao abandonar a sua situação de classe e ao
não encontrar outra para se enraizar, o artista de vanguarda torna-se um expatriado.”
Para esse pensador, o núcleo da reflexão é a trajetória radical da experiência artística
moderna. Da parte desta pesquisa, trata-se de investigar como experiências dessa
natureza demarcaram lugares, roteiros e paisagens, que permaneceram na duração
histórica, nas formas de perceber, nas viagens que continuam a orientar, na constituição
de comunidades.
Em 1855, os irmãos Goncourt visitaram Barbizon, na França, originando um
grupo cujo trabalho pictórico sobre a paisagem perdura na localidade até os dias atuais.
Naquele momento, o grupo de artistas foi depreciado pela crítica erudita, com
insinuações acerca de suas barbas hirsutas por serem suspeitos de revolucionários.
Desenvolviam seus trabalhos de maneira independente, sem adequar-se às regras da
Academia. Dentre eles estavam Théodore Rousseau, Jean-François Millet, CharlesFrançois Daubigny e Jean-Baptiste Corot.
A pintura de paisagem no século XIX, para alguns de seus praticantes, assume um
significado político de crítica à recente industrialização das cidades. Diferentemente da
paisagem romântica, dotada de uma espiritualidade própria, num mundo por vezes
imaginário, a paisagem surgida do realismo levou adiante uma concepção social cuja
repercussão foi projetada sobre os espaços rurais e naturais. Conforme havia registrado
Hauser (1995, p. 794), a paisagem romântica tem algo de mítico, enquanto aquelas dos
pintores de Barbizon serão familiares; enquanto os bosques românticos são poéticos, o
campo realista traz a imagem do mundo rural.10
A viagem tornara-se prática corrente, por exemplo, com Pissarro na Inglaterra ou
Monet na Holanda, assim como os deslocamentos ao redor de Paris, sem perderem, no
entanto, o contato com a capital, onde compravam tintas, faziam exposições e alguns
mantinham ateliês. Os motivos para os passeios campestres são diversos: do menor
custo para sobrevivência em relação aos grandes centros urbanos à busca das tradições
rurais. Havia também aqueles que residiam em Paris e deslocavam-se no verão. Os
trilhos da estrada de ferros demarcaram importantes rotas.
10
Por exemplo, em Os Lenhadores, de Millet (1850-1852, óleo sobre tela, 57 x 81 cm, Museu Victoria e
Albert de Londres), tem-se a imagem do ambiente rústico vivido após deixar Paris.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Desnecessário entrar em detalhes acerca dos refúgios impressionistas em torno de
Paris, fazendo-se necessárias apenas algumas indicações, pois se trata de uma história
bem conhecida. Camille Pissarro frequentou e estabeleceu-se em Pontoise, entre 1872 e
1884. Esse “sábio” atraiu uma colônia de jovens pintores, interessados nas práticas
artísticas e nos ideais anarquistas. Claude Monet primeiro morou em Argenteuil, entre
1872 e 1878, depois plantou seu jardim em Giverny. Perto dali, o vilarejo de Auverssur-Oise, residência de campo do Dr. Gachet, recebeu a visita de inúmeros artistas,
dentre os quais Vincent van Gogh, em um período no qual levou a pintura da paisagem
aos limites da representação e quando pôs fim a sua vida. Eles trabalhavam em grupos,
percorriam os campos, trocavam correspondências, formando uma rede de relações em
finas ramificações que cobriram as paisagens da Île-de-France (Les impressionistes
autour de Paris, 1993, p. 51).
O que os unifica é o interesse compartilhado pela paisagem campestre e a prática
da pintura ao ar livre, estar sur le motif, d’après nature. Retomando o estudo de Isabelle
Lajarte (1995), os termos associados à pintura paisagística eram: o “pitoresco” da
floresta de Fontainebleau; o “primitivo” da Bretanha; o aspecto “selvagem” dos
rochedos do Vale Creuse; a “luz” do Midi; entre outros. Muitos desses termos tornaramse categorias propriamente estéticas para a percepção desses lugares. A ação política
permeia essas práticas, através da qual se vive uma outra vida, de dedicação ao trabalho
artístico, em contraposição ao tempo da vida burguesa, em resistência à mediocridade,
como se lê no texto de Maria Helena Patto (2000,p. 45):
Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de
produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas
romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só
suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja
preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas
ideais políticas.
Outra região francesa que se tornou famosa no roteiro dos pintores do século XIX
foi a Bretanha, notadamente Pont-Aven. Conforme afirmou Paul Gauguin em carta a
Émile Schuffenecker (fev. 1888): “Amo a Bretanha. Aqui encontro algo selvagem,
primitivo. Quando meus tamancos ecoam nesse chão de granito, ouço a nota surda,
abafada, potente que estou buscando na pintura.” (citado em Perry, 1998, p. 8)
Para Humbert (1988), “Gauguin pesquisava sobre o plano plástico a pureza da
origem do homem.” Instala-se em Pont-Aven, descobre uma profunda espiritualidade e
arte populare, o calvário de Nizon, a estátua do Cristo crucificado na igreja de Tremelo,
99
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
imagens que forneceram o ponto de partida para a busca do “simbolismo primitivo” de
sua existência, de Arles ao Taiti. Embora Gauguin tenha discutido suas ideais com
Bernard, Serusier, Maurice Denis e todo o grupo dos Nabis, Humbert (1988, p. 14)
acredita que ele foi dentre aqueles artistas o mais sensível ao simbolismo da arte popular
bretã, além de influenciar-se bastante pelas esculturas em madeira e cerâmica, tamancos
e bengalas.
As palavras do pintor estão inscritas em um imaginário burguês urbano,
compreendido nos moldes da vida pitoresca, tradicional e religiosa (Perry, 1998, p. 10).
Há uma identificação histórica entre natureza e o outro da cultura, sendo a natureza
frequentemente representada pela mulher. No bretonisme de Gauguin, as imagens da
vida rural e religiosa trazem a figura feminina: “a noção de ‘primitivo’ como ‘outro’ da
cultura ocidental às vezes carregava um conjunto de oposições de gênero, de Natureza
‘feminina’ contra Cultura [civilização] ‘masculina’” (p. 24). Note-se que nas
representações bretãs da mulher elas estão tradicionalmente vestidas, enquanto as
taitianas estarão nuas e até deitadas em sua cama.
Não obstante, quando Gauguin esteve pela primeira vez na região, em 1886,
diversos artistas a percorriam, inclusive ingleses e norte-americanos. A Bretanha está
entre os primeiros locais de interesse turístico na França, aparecendo como destino de
verão de muitos turistas e artistas. O fenômeno alia-se ao desenvolvimento dos
transportes, estradas de ferro e renovação de caminhos tradicionais. Este evento foi
analisado por Fred Orton e Griselda Pollock (1980), evidenciando o imbricar das
práticas turísticas com as representações artísticas do bretonnisme, as quais ocultavam
as transformações econômicas ocorridas na região e os rituais religiosos tornavam-se
demonstrações turísticas.
O sistema econômico que sustentava o lugar não era, como o descrito na
mitologia sobre o bretão, um sistema de pequenas propriedades camponesas, mas uma
agricultura altamente desenvolvida para a época (Rhodes, 1997, p. 25). A cultura
tradicional bretã registrada pelos pintores de Pont-Aven data do fim do século XVIII,
após a Revolução Francesa. Não sendo pois uma sobrevivência de tempos remotos, mas
uma evolução do vestuário do século XIX, utilizado nas reuniões festivas,
demonstrativo de classe social. Quanto às festas bretãs, pouco a pouco elas se tornavam
espetáculos turísticos. “Nós temos a tendência de conceber o desconhecido à medida de
nossas próprias experiências e crenças, os artistas como os turistas estavam mais
suscetíveis a ‘descobrir’ a Bretanha de suas expectativas que de ver a região tal qual ela
100
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
era” (p. 26). Essa tendência aparece tanto nos pintores acadêmicos quanto nos
vanguardistas que visitaram a região, o que estava em processo de transformação eram o
estilo, a técnica e a forma de conceber a pintura.
Deixar os centros urbanos foi também a inspiração de artistas alemães do final do
século XIX, para trabalharem em comunidades rurais. O mito do primitivo associou-se
um culto ao Volk, termo que designa o camponês nativo. São mais de dezoito
agrupamentos artísticos nas aldeias alemãs, dentre as quais Worpswede, perto de
Bremen, e Neu-Dachau, perto de Munique (Perry, 1998, p. 34; Rhodes, 1997, p. 32;
Lajarte, 1999)
No começo de 1890, um grupo de ex-alunos das academias de Düsseldorf e
Munique estabeleceu-se em Worpswede. Esta aldeia, a cerca de 36 km de Bremen, era
formada basicamente de camponeses, agricultores e cortadores de trufas. Os principais
artistas fundadores da comunidade eram Fritz Mackensen, Otto Modersohn, Hans am
Ende, Fritz Overbeck e Heinrich Vogeler. Rainer Maria Rilke dedicou uma monografia
a essa comunidade em 1903 (Perry, 1998, p. 36).
Pintavam, sobretudo, paisagens e temas camponeses. Também influenciados por
Courbet e os pintores de Barbizon, foram notados pela crítica por sua originalidade e
qualidades “primitivas”. Não obstante, na análise de Perry (1998, p. 36), o sentido
alemão desta categoria divergia daquele que envolvia Gauguin: “muitos resenhadores
contemporâneos viam esses artistas de Worspwede como neorromânticos, em busca de
uma realização semirreligiosa através de sua arte”.11
Uma vez mais, encontram-se confluências da percepção do ambiente natural com
as questões sociais: nas paragens alemãs o Volk correspondia à terra. Ao se enunciar
uma comunidade, porém, não se deverá supor uma homogeneidade de pensamento entre
os diversos artistas. Seguindo a pesquisa de Gill Perry (1998), ter-se-iam as imagens de
Mackensen como metáfora do “enraizamento”, Heinrich Vogeler defendia ideais de
artes e ofícios de William Morris e John Ruskin idealizando as artes num imaginário
medieval (conforme o pré-rafaelismo britânico), desdobrando ideias marxistas do
socialismo utópico.
Enquanto muitos contemporâneos de Mackensen julgavam que seu
“realismo” mostrava os camponeses como eles eram realmente
(ocultando, portanto os significados ideológicos), o naturalismo de
11
A primeira exposição do grupo ocorreu em 1895, na Bremen Kunsthall, com obras de Mackensen,
Modersohn. Nota-se a influência de Courbet cujas pinturas foram expostas em 1869 na Glaspalast de
Munique, numa controvertida mostra. As imagens opunham-se à narrativa do industrialismo da era
guilhermina, feita p. ex. por Fritz von Uhde e Wilhelm Leibl (Perry, 1998, p.. 37).
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Vogeler recorria a outro nível visionário como um meio de perceber
uma verdade mais “primitiva”’.
Paula Modersohn-Becker morou em Paris, influenciou-se por Gauguin, elaborou
um espaço plástico em busca de maior simplicidade formal, mas permaneceu ligada ao
contexto intelectual alemão:
Suas preferências iconográficas, em particular a repetição dos temas
das mulheres camponesas, revelam a sólida influência daquelas ideias
neo-românticas que eram moeda corrente na comunidade de
Worspwede. (Perry, 1998, p. 43)
Além de Worpswede, Kronberg, Dachau e Ahrenshoop tornaram-se lugares de
estada permanente de artistas na Alemanha. Dachau foi, ao lado de Worpswede, a mais
importante colônia. Nas últimas décadas do século XIX, a localidade situada nos Alpes
bávaros recebeu muitos artistas de Munique, bem como franceses e de outras
nacionalidades. Deixou de acolher artistas depois da Segunda Guerra Mundial.
Kronberg era lugar de passeio, próximo a Frankfurt, quando foi ocupada por pintores
em 1857. Abrigou artistas que haviam estado em Barbizon e Fontainebleau e
mantiveram um contato intenso com Courbet. A cidade é ainda hoje residência de
artistas, mas sem a notoriedade que atingiu no século XIX (Lajarte, 1999, p. 79).
A socióloga Isabelle Lajarte (1999) considerou a França e a Alemanha como os
países onde se formou o maior número de comunidades de artistas. Outros países
também tiveram as suas, dentre os quais a Venezuela, onde o pintor venezuelano
Armando Reverón (1889-1954), nascido em Caracas, procurou, depois de estadia na
Espanha, um recanto do seu país para pintar, como Gauguin, de modo “primitivo”. O
local chamava-se Macuco. Apenas para indicar algumas localidades, teríamos:
Cockburnpath (na Escócia); Staithes e Walserswick (na costa leste da Grã-Bretanha);
Newlyn e St. Yves formadas por artistas vindos de Pont-Aven e Concarneau (na
Cornualha); Knocke, com a colônia de Tervueren (Bélgica); Nagybanya (Hungria);
Skagen, a mais renomada do norte da Europa (Dinamarca); Abramtsevo e Mamontov
(Rússia); e Magnolia (EUA).12
Significados do exílio dos modernistas
1212
Para uma relação mais completa de comunidades de arte no hemisfério norte, ver Lajarte (1999) e o
estudo detalhado de Jacobs (1985).
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
O “ir embora” era mais um pressuposto do artista de vanguarda, buscando os
lugares que reconhecia como as “margens da civilização”. Esse movimento foi
observado também entre os vanguardistas russos, escandinavos, ingleses e alemães,
notável mesmo nos EUA, Canadá e Austrália, conforme documentou Michael Jacob em
seu The Good and Simple Life (1985). As comunidades de artistas estabelecidas no
meio rural carregavam consigo o mito da pureza do camponês e a insatisfação dos
novos artistas com a formação acadêmica e o advento da pintura en plein air, seguindo
o exemplo da comunidade francesa de Barbizon (Perry, 1998, p. 8). Tratava-se de um
movimento histórico em oposição ao individualismo romântico, quando intenta-se
romper com o isolamento, como propõe Hauser (1995, p. 796), para assim praticar o
que Gustave Courbet propugnava: faire de l’art vivant – fazer uma arte viva –, ou o
lema de Daumier: Il faut être de son temps – há que ser de seu tempo.
Para Rhodes (1997, p. 24), o pensamento do século XIX defendia que na Idade
Média, na Europa do Norte, a arte não era orientada por categorias da “grande arte” e da
“arte menor”. Muitos intelectuais da vanguarda, no início do século XX, concebiam a
arte popular em uma importância tanto como arte quanto como símbolo do caráter racial
do passado de uma região, o que será apropriado pelo fascismo dos anos 1930. Artistas
como Denis, Mackensen e Nolde acentuavam a superioridade física, moral e religiosa
das populações camponesas, às quais se opunha o estereótipo do cidadão fraco e
decadente. Na poesia expressionista, como Der Gott der Stadt (O Deus da cidade,
1912), de Georg Heym, vê-se a demonização da cidade. Por outro lado, é necessário
notar que outros grupos de artistas desse momento acreditavam nos valores do
cosmopolitismo e no darwinismo social.
A idade de ouro das colônias de artistas vai da metade do século XIX até o início
do século XX, como registrou Lajarte (1999, p. 74), e corresponde ao período de
desenvolvimento da pintura de paisagem ao ar livre. A partir da primeira década do
século XX se desfez o laço que unia aqueles artistas, notável no plano da organização
social do campo artístico e no declínio do gênero paisagístico pictórico. No entanto, em
algumas localidades, a dispersão dos artistas “fundadores” deu lugar a novas levas,
sobretudo nas localidades tornadas turísticas.
Comunidades de artistas no Brasil
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Não se desenvolveram no Brasil colônias de artistas tal como as conhecidas na
Europa do século XIX. As localidades aqui conhecidas caracterizam-se sobretudo como
agrupamentos em algumas cidades turísticas, particularmente nas chamadas “cidades
históricas”. Durante o século XX, pode-se notar a constituição de grupos artísticos nas
grandes cidades instilando organizações que trabalham sobre sítios específicos e
conforme técnicas compartilhadas. Muitos pintores percorreram o país em viagens,
indicando paisagens belas e pitorescas, recantos importantes à frequentação dos artistas.
Entre as décadas de 1960 e 1970, algumas localidades abrigaram comunidades nas quais
a prática artística era comum, mas não se constituíram como núcleos formados em torno
dessa atividade.
O marco para a história das “cidades coloniais” como objeto estético e lugar de
interesse para artistas foi situado por Aracy Amaral (1972, p.35) na tomada de posição
de Oswald de Andrade, em 1915. De passado pobre e desprezível, as imagens da cidade
colonial passam a ser construídas com brilho desde os esboços de Tarsila, na famosa
viagem de 1924, até as imagens fluidas de Guignard. Os pintores que percorreram o
país tinham o olhar no cruzamento de pelos menos três fontes: primeiro, o ambiente
arquitetônico e topográfico; segundo, as imagens de seus mestres e de outros pintores;
por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado nacional.
A organização do turismo para Ouro Preto demonstra que as representações sobre
a cidade e a arte colonial mineira vinham atingindo parcela considerável da população,
principalmente nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. Na metade do século XX, o
número de turistas era ainda incipiente, formado principalmente por curiosos e
estudiosos dispostos a enfrentar estradas esburacadas e empecilhos de toda sorte. Como
professor, Guignard conduziu diversas vezes seus alunos à antiga capital de Minas,
usando-a como objeto perceptível e cognoscível para os alunos. Dentre os que
retrataram Ouro Preto, por exemplo, encontram-se Neli Frade e Wilde Lacerda. A
primeira participou dos trabalhos de Di Cavalcanti para o Fórum da Rua Goiás, em Belo
Horizonte, e o segundo, dissidente da Escola Guignard, participou do corpo inicial da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1957. Com o apoio
da prefeitura municipal, diversas iniciativas e festivais demarcaram Ouro Preto, para
além de “cidade histórica”, como “cidade de arte”.
Breve menção à cidade de Tiradentes é importante pois, como Ouro Preto, a
antiga vila beneficiou-se do interesse estético pelo passado colonial, resultando na
conversão de muitas moradias originárias do século XVIII em casas de veraneio para
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
turistas de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Esse processo propiciou condições locais de
comercialização de artes e antiguidades, bem como a instalação de cerca de meia dúzia
de ateliês de “pintura erudita”, como caracterizou Américo Pellegrini Filho (2000), aos
quais acrescentou os trabalhos de Zé Damas e de Isaías e irmão como representantes da
“pintura popular”. O primeiro pinta telas, cabaças e pequenas pedras, em cores
primárias, onde esboça cenas da paisagem local. O segundo, em oficina familiar, pinta –
sobretudo motivos florais – em gamelas, galões de leite e potes de barro. Também de
extração popular é o artesanato em barro de Tião Paineira. Na vila do Bichinho, entre
Tiradentes e Prados, o artista plástico paulista Antônio Carlos Bech (o Toti) e sua irmã
Sonia Bech Vitalino criaram a Oficina de Agosto, em 1991, na qual procuraram
desenvolver trabalho de artesanato coordenado com moradores da comunidade.
Em 1945 surgiram as primeiras iniciativas de preservação dos remanescentes
históricos com a elevação de Paraty à condição de Monumento Histórico Estadual do
Rio de Janeiro. Depois, em 1958, ela se torna Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
E, por fim, em 1966, Monumento Histórico Nacional. Na década de 1970, com a
convergência da exploração mercantil do turismo e das questões ecológicas e
preservacionistas dos ecossistemas no Brasil, “O território acabou, bem ou mal,
controlado por uma série de instrumentos legais e por uma visão de desenvolvimento
alternativo de uma elite cultural – notadamente artistas – que questionava o modo de
vida urbano das metrópoles” (Silva, 2004, p. 108). Imbuída de um olhar para o exótico e
para a atividade turística local, conforme Maria Silvia Lanci Silva (2004), essa elite
promoveu a manutenção de tradições populares, a discussão sobre o patrimônio
arquitetônico e a recepção de viajantes. O cenário da antiga vila colonial, do alvo
casario instalado entre o sopé das montanhas e a baía, transforma-se em ponto de vista
privilegiado para artistas, cineastas e atores como Paulo Autran e Maria della Costa,
entre outros.
Algumas galerias abertas em Paraty estimularam o campo artístico local, dentre as
quais a do senhor Ribeiro, dono de teatro em São Paulo que viveu em Paraty.
Notadamente, tem-se a galeria de Abel de Oliveira, que contava com a parceria do
artista plástico Marino Gouveia, em um salão no pavimento térreo de um casarão
histórico. Nesse local, apresentavam-se artistas de outras localidades, ao mesmo tempo
em que se fomentava a exposição de produções locais.
A cidade de Recife, capital de Pernambuco, reunia os mais famosos artistas
daquele estado, como registrou Gilberto Freyre (1934/198, p. 56), considerando o
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
estímulo dado pela luz do sol à pintura, na contemplação das praias, marinas, águas dos
rios. Há poucos quilômetros dali, Olinda recebeu o estímulo necessário para manter o
seu casario, o calçamento das ladeiras, a imponente arquitetura religiosa, tornando-se
ambiente propício para o trabalho de artistas. No ano de 1982, a cidade abrigava 56
artistas e 25 galerias, quando seu prefeito sugeriu que “Olinda estivesse para Recife
assim como Montmartre para Paris.” (Durand, 1989, p. 97). Atualmente, as imagens de
arte encontradas à venda nas lojas e ateliês de Olinda são muito variadas. Porém,
autores de apuro técnico e naturalismo são recorrentes em cenas do casario, vida urbana,
tipos sociais e também imagens naïves.
Síntese de significados das comunidades do Brasil
Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das
“cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas
publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua
vez, os poderes públicos locais apropriaram-se da função social das imagens de arte
(Andriolo, 2008). Para além das telas famosas de Guignard e Djanira, outros artistas
relevantes participaram da história da arte nas cidades turísticas sediadas nas antigas
vilas do século XVIII.
Além da relação com o olhar do turista, os pintores instigam questões sobre a
paisagem. Carlos Bracher, atualmente em atividade na antiga capital de Minas, esteve lá
pela primeira vez em 1964 e em fevereiro de 1971 nela fixou residência. Diversas
pinturas suas transformam as cidades em imagens de arte, as quais podem ser vistas em
série no livro de João Adolfo Hansen (1998). Carlos Scliar morou em Ouro Preto e,
como seu colega, não se limitou à temática local, mas encontrou nessa cidade um
ambiente importante de trabalho e também elementos para suas composições. Scliar
manteve também ateliê em Cabo Frio, localidade praiana de destaque no litoral
fluminense.
Os agrupamentos de artistas formaram-se, sobretudo, nas cidades depositárias do
acervo de arquitetura colonial reconhecido como patrimônio histórico do Brasil,
correlacionando de modo particular a categoria estética do barroco, a paisagem urbana e
natureza tropical. Neste ponto, diferem das congêneres europeias. Diferem também, na
origem, na forma da organização social baseada em colônias, aqui em agrupamentos,
resultante do interesse compartilhado sobretudo pelo patrimônio, paisagens rurais,
106
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
roteiros de viagens orientados pelo olhar estético, quando se formou uma rede social
não coesa em torno da arte.
Não obstante, nas décadas recentes, com o crescimento do turismo nessas
localidades, as práticas artísticas das antigas comunidades europeias e de nossas cidades
históricas turísticas estão mais assemelhadas na forma da organização social,
econômica, política e estética. Mantêm em comum o interesse pela pintura, notadamente
paisagística, a despeito dos julgamentos da crítica do campo artístico. A técnica do óleo
sobre tela, cujos tubos de metal inventados em 1830 facilitaram as andanças campestres
dos artistas europeus (Lajarte, 1995, p. 32), tem sido substituída, por muitos, pela tinta
acrílica. Mantêm-se os cavaletes portáteis e as caixas-estojo, entre outros objetos.
Outras práticas artísticas têm ladeado a pintura: joalheiros, mosaicistas e escultores
ocupam as ruas dessas cidades.
Não se trata de uma regra, mas é recorrente às modalidades de arte estabelecer
uma relação estreita com o ambiente local. A comercialização dos trabalhos a partir do
ateliê-loja, no qual o comprador encontra o próprio artista, tornou-se uma prática
comercial compartilhada entre muitos deles. A grande maioria dos artistas provém de
outras localidades, apenas um pequeno número é originário da região, reforçando o
caráter do deslocamento, ao qual se acrescenta o convívio com artistas viajantes a
frequentá-las regular ou esporadicamente.
Diversas localidades brasileiras têm encontrado nas práticas artísticas um
elemento importante na economia e na política locais e instigam questões sobre os
significados desse fenômeno. Campos do Jordão (SP), por exemplo, foi o foco de uma
pesquisa em nível de mestrado, realizada por Andrea Siomara de Siqueira (2009), na
qual a comunidade de artistas foi investigada através do recorte em torno de músicos
com formação acadêmica. Todos os entrevistados atuavam na cidade, mas ressentiam
não terem atingido o nível exigido para participarem do Festival de Inverno. Naquele
momento, a pesquisa apontou os graves problemas sociais, em níveis de pobreza,
educação e condições de habitação, ao lado de um festival de magnitude internacional
cuja realização na cidade não conduzia a melhorias para a maioria da população e, de
modo particular, não estimulava a prática musical na localidade.
O conhecimento de processos sociais nas comunidades de artistas ainda resta
pouco aprofundado. As ações trazem para o plano do discurso os termos “mudança”,
“transformação” e toda uma terminologia nova acerca da “economia criativa”, mas que
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
solicitam estudos rigorosos acerca do modo como as imagens, os sons, as performances,
as artes participam dos processos sociais e afetam a população.
A cidade de Cunha (SP), por exemplo, com o grupo de ceramistas formado
inicialmente pelo casal japonês Toshiyuki e Mieko Ukeseki, o português Alberto
Cidraes e os irmãos Vicente e Antônio Cordeiro, construiu o primeiro forno
noborigama da cidade, em 1975, desenvolvendo uma série de iniciativas no âmbito
municipal, ocupando hoje uma grande quantidade de pessoas em ateliês. Outra
dimensão poderia ser pensada em ações coletivas mobilizadas em determinadas
comunidades, por exemplo, na construção da Capela de Nossa Senhora das Dores, no
Vale do Matutu, em Aiuruoca (MG), com a participação do artista plástico Cândido de
Alencar Machado: todo o bairro rural contribuiu para a edificação, concretizando no
ambiente uma arquitetura colaborativa.
*****
As retomar os limites difusos do fenômeno desta pesquisa, tem-se: (1) o artista, a
viagem, o passeio, a jornada; (2) o ambiente, a paisagem, os caminhos, os lugares; (3) a
imagem, a pintura, o monumento, a narrativa; (4) o espectador, a experiência estética, a
recepção estética, a visualidade, a sonoridade, a sensorialidade, a imaginação. São os
elementos em torno dos quais o fenômeno social tomou forma. Como dizia Johann
Wolfgang von Goethe, em seus escritos científicos sobre a natureza, todo fenômeno é
uma multiplicidade, não possuiu limites precisos, liga-se intimamente a outros
fenômenos cujo limite está no infinito. O recorte dos fenômenos sociais como objetos
de pesquisa reside num ato arbitrário, necessário ao mesmo tempo em que desconecta
uma parte de seu todo significante.
Os agrupamentos de artistas, movimentando as imagens em relação ao ambiente
local, abrem duas perspectivas diferentes e conjugadas ao longo do século XX. De um
lado, estão artistas populares solitários que converteram suas moradias em obras de arte
e destino turístico, os “habitantes paisagistas” no dizer de Lassus (1975), tais como
Ferninand Cheval e Gabriel dos Santos. De outro, um ramo importante da arte
contemporânea na forma de Earth Art, Land Art ou Environmental Art, instilam novas
questões sobre a relação com o ambiente. As ligações entre estas práticas não são
diretas, às vezes são mesmo antagônicas, mas justamente nessas contradições
encontram-se os polos do mesmo fenômeno social. O núcleo das comunidades de
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
artistas está na referência ao ambiente através de uma experiência estética por
intermédio das imagens, em torno das quais a imaginação emerge na vida social ao
estabelecer o jogo da transformação do mundo em pintura.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
7. Imagem pictórica da cidade histórica
Outro Preto, “cidade de arte”
A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, foi o marco inicial das pesquisas
reunidas nesta tese. A cidade possui as dimensões simbólicas e espaciais claramente
observáveis no processo temporal, por meio do qual se torna compreensível a
historicidade da percepção e da participação das imagens na vida social.
O povoado que se desenvolveu com a exploração aurífera na capitania de Minas
Gerais, no século XVIII, comemorou em 1998 seu trecentésimo aniversário de
fundação. A data em questão, 1698, à qual Sylvio de Vasconcellos (1977, p. 16) se
refere com ponderação como “por volta de”, é muito polêmica. Augusto de Lima Júnior
(1978, p. 28), por exemplo, contestou tal afirmação e notou como data chave o ano de
1696, quando Manuel Garcia teria descoberto ouro na serra de Ouro Preto, na vertente
do córrego do Tripuí e Passa-Dez. Segundo este historiador, apenas posteriormente lá
chegou Antônio Dias, bandeirante de Taubaté, hoje reconhecido como o fundador.
A despeito dessa polêmica, o exíguo acampamento como tantos outros surgidos à
margem dos córregos ou grupiaras só foi institucionalizado como Vila Rica em 1711,
deixando já a marca da dominação lusitana sobre o sertão dos Cataguases. Os grupos
aborígenes locais são praticamente desconhecidos e não representados na história de
Ouro Preto (Andriolo, 1998). Nas palavras de Salomão de Vasconcellos (1941, p. 241),
é apenas na segunda década do XVIII que “começaram a aparecer as habitações
definitivas, cobertas de telhas. [...] surgiam os lavrados e em torno deles mais tarde se
reedificaram, plantadas, não raro, nos mesmos lugares, à beira dos trilhos e nos
caminhos tortuosos...”.
A vila unia duas freguesias, Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da
Conceição, por meio da elevação topográfica da atual Praça Tiradentes, onde se instalou
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
a Casa de Câmara e Cadeia e o chamado Palácio dos Governadores. Da matéria prima e
do isolamento do litoral, que promoveram mudanças sensíveis nos procedimentos de
artífices, aliados aos conflitos próprios da sociedade mineira, decorrem arquitetura e
imaginária profícuas. Concorriam, por exemplo, os templos das duas freguesias de Vila
Rica, as ordens terceiras de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco, as irmandades de
negros e as de brancos; cada templo edificado por uma irmandade, representativa de
grupos socioeconômicos locais, e interiormente adornadas por outros tantos grupos.
Embora marcante em termos políticos e administrativos, aquele período inicial do
vilarejo não foi o escolhido para representar a história. Para os membros do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nos anos 1940, apenas com o
desenvolvimento econômico que se construiu materialmente o mais importante da
civilização na capitania de Minas Gerais – portanto, na segunda metade do século
XVIII. Os resíduos desse momento privilegiado passaram a ser objeto de restauração e
ganharam lugar de destaque junto à memória nacional, como afirmou Lia Motta (1987,
p. 108):
As primeiras ações do Patrimônio nos centros tombados tratavam a
cidade como expressão estética, entendida segundo critérios
estilísticos, de valores que não levavam em consideração sua
característica documental, sua trajetória e seus diversos componentes
como expressão cultural e parte de um todo socialmente construído.
Durante o século XIX, quando passa a denominar-se Ouro Preto, o processo
urbano deixou marcas no espaço, as quais estiveram por muito tempo fora do objeto de
preservação do SPHAN, porque tais remanescentes não se enquadravam nas
representações da memória nacional. A imagem da “cidade histórica” seria delimitada e,
em grande parte, revitalizada no início dos anos 1950. Desde 12 de julho de 1933 a
cidade fora reconhecida como monumento nacional. Diversos estudiosos salientaram a
qualidade das obras arquitetônicas, escultóricas e pictóricas remanescentes do século
XVIII. Nos estudos de Lourival Gomes Machado (1978), Paulo Santos (1951) e Sylvio
de Vasconcellos (1956/1979), a arte ouro-pretana teve um lugar reservado; a cidade é
“um reino quase absoluto do barroco” (Machado, 1978, p. 197). No início dos anos
1970, podia-se ler na imprensa o termo composto cidade barroca para se referir a Ouro
Preto.
Quando as imagens registradas começaram a direcionar o olhar, o turismo de
massa ainda não havia se estabelecido no país. Num sentido mais amplo, enquanto a
imagem fotográfica ganhava um lugar junto aos documentos visuais da cidade histórica,
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
formava-se um modelo para a percepção do turista (Andriolo, 2009b). Foi somente a
partir da década de 1970 que a organização empresarial de agentes de viagens,
operadoras, proprietários de hotéis e projetos governamentais consolidaram o produto
turístico “cidades históricas de Minas”. Com a relativa abertura política e o
reconhecimento como Monumento da Humanidade, a década de 1980 foi aquela na qual
o setor de turismo mais cresceu em Ouro Preto, sobretudo com a instalação de novos
hotéis e pousadas.
Guignard nos ensinou a ver Ouro Preto
Uma pintura a óleo sobre madeira, da coleção do Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo, intitulada Ouro Preto e realizada pelo artista Alberto da
Veiga Guignard, em 1951, apresenta essa “cidade histórica” como num sonho. No
campo da percepção, aqueles traços não são mais exatamente capelas instaladas sobre as
montanhas, mas uma substância imprecisa inventada pelo artista e partilhada com o
espectador. Numa reportagem, escrita poucos anos antes da morte do pintor, Guido de
Almeida (1960, p. 52) afirmou: “Guignard soube ver Ouro Preto porque a viu, não com
os olhos mortos de um turista apressado ou de um historiador enfadado, mas com os
olhos simples de sua alma de menino”. E conclui: “É com razão que muitos dizem que
Guignard nos ensinou a ver Ouro Preto”.
Esta última afirmação constitui-se numa das principais sínteses da recepção da
obra pictórica de Guignard e abriga uma questão importante. Ao considerar-se que o
pintor ensinou a ver, sugere-se que havia algo oculto, velado aos olhos comuns e
desvelado pela tinta na tela. Ao fazê-lo, esquece-se daquilo que é próprio do artista, ou
seja, a invenção de um olhar. Dessa constatação, deriva a seguinte questão: qual a
relação entre a atividade pictórica e a percepção do turista nas “cidades históricas”?
O objetivo aqui é investigar a participação da prática artística na formação
psicossocial da percepção do turista. Para tanto, foi escolhida Ouro Preto, a primeira
cidade brasileira a ser reconhecida oficialmente por seus valores históricos e artísticos.
Iniciou-se então uma pesquisa histórica que inventariou a produção pictórica e os
escritos acerca dessa localidade, particularmente entre as décadas de 1950 e 1970,
período de notável incremento das atividades turísticas, com a implantação das
primeiras pousadas e o afluxo de artistas para visitar ou morar na cidade. Nesse
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
contexto, Guignard ocupou um lugar central. Ele e outros artistas contribuíram, com
suas visões pessoais, para a constituição de um mundo social da percepção da “cidade
histórica turística”. Esse mundo foi ordenado por discursos provenientes de jornais
locais e nacionais, publicações de diversas ordens, materiais iconográficos de
divulgação, cartões postais e propaganda hoteleira, bem como as imagens pictóricas.
Do interior da farta documentação examinada, emergem dois índices
fundamentais para a pesquisa, quais sejam: o nacionalismo e o pitoresco. Dentre a
variedade de pinturas produzidas naquele tempo, pôde-se observar uma seleção e
consequente maior divulgação daquelas que associavam os ideais nacionalistas à
categoria de pitoresco na representação. A descrição da atividade pictórica na cidade de
Ouro Preto, cruzada com os discursos e materiais de divulgação turística, dos atrativos e
da hotelaria contribuem para avaliar a importância das práticas artísticas na formação da
percepção do turista.
Abertura para a percepção artística de Ouro Preto
Tendo em vista que os artistas estão “ligados a uma só e mesma rede do Ser”,
conforme escreveu o filósofo Merleau-Ponty (1964, p. 89), “o verdadeiro pintor
transforma, sem o saber, os dados de todos os outros”. Portanto, ao propor pensar a
pintura em Ouro Preto e suas relações com o campo turístico, é necessário estabelecer
minimamente as conexões que ligam retrospectivamente os artistas com a história da
paisagem mineira, bem como, de modo projetivo, os desdobramentos de discursos e
imagens na prática pictórica da “cidade histórica turística”.
Há diversas imagens e discursos imbricados nesse processo. Lembre-se de Diogo
de Vasconcellos, Mário de Andrade, Afonso Arinos, entre outros, aos quais não se
retornará aqui. Basta mencionar que formou, entre os intelectuais brasileiros, desde as
primeiras décadas do século XX, uma série de ideias sobre os resíduos arquitetônicos e
artísticos da América portuguesa, ao mesmo tempo em que se inauguravam as primeiras
viagens turísticas do Brasil (Andriolo 1999). Desde então, os pintores que percorreram
as antigas regiões de mineração têm seu olhar no cruzamento de pelos menos três
fontes: primeiro, o ambiente arquitetônico e topográfico; segundo, a pintura de seus
mestres e de outros pintores; por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado
nacional.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Quando o lema “Descobrir o Brasil!” ecoou entre os modernistas brasileiros,
artistas e escritores percorriam as ruinosas estradas do estado de Minas Gerais, durante a
Semana Santa de 1924. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê,
Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Blaise Cendrars e
Godofredo da Silva Telles seguiram os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Primeiramente, foi visitada a cidade de São João del-Rei, depois Tiradentes e Belo
Horizonte, para finalmente descerem as ladeiras ouro-pretanas. Os “novos
bandeirantes”, como foram chamados, deram então uma contribuição fundamental para
a produção social e psicológica, simbólica e estética da paisagem mineira (Andriolo
2002).
Tarsila do Amaral, desde sua viagem à França em 1923, atentava para os
remanescentes da arte brasileira. Na opinião de Aracy Amaral (1975, p. 95), a pintora
foi influenciada por aquela viagem sobretudo nas formas e cores do casario. Em seus
depoimentos, Tarsila do Amaral (1939) exprime “um deslumbramento diante das
decorações populares das casas de moradia”, um “retorno à tradição, à simplicidade”.
Dizia: “encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que
eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado… Mas depois vinguei-me da
pressão, passando-as para as minhas telas”.
Constituía-se um olhar sobre aquelas paragens. No dizer de Angela Brandão
(2000, p. 418): “A cidade histórica é, para a artista, um espaço imaginado”. Além disso,
ao analisar os desenhos realizados naquela viagem, Brandão encontra um trabalho
artístico intimamente ligado às viagens e às percepções das cidades de Minas Gerais, do
Recife e do Oriente Médio. Tarsila “poderia ser chamada de artista-viajante e os temas
de seus desenhos, entendidos como variações de percursos pelo mundo, como
souvenires que trazia na bagagem de volta, relatos ou lembranças das cidades que
conheceu” (Brandão 2000, p. 415). Seus esboços de 1924 abrigariam tentativas de
adaptar os temas brasileiros aos traços cubistas, na produção imagética das “cidades
históricas”. Seus desenhos são “resumos, essências, substratos de vistas das cidades
marcadas pelo tempo” (p. 419).
A relação espaço-tempo, evidentemente exposta na iconografia das cidades
mineiras originárias do século XVIII, apoia-se numa descrição pictórica da paisagem
por meio do elemento pitoresco. Tal elemento constitui-se como uma categoria da
percepção, por meio da qual se pode compreender como a pintura e o olhar do turista
partilham da mesma experiência psicossocial. Quando Michael Baxandall (1991)
114
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
examinou o olhar sobre a arte como experiência social, baseou-se na noção de “estilo
cognitivo”, proveniente da psicologia de Herman Witkin (1967), e na antropologia da
percepção, em autores como Segall, Campbell e Herskovitz (1966). Tais contribuições
permitem afirmar que alguns instrumentos mentais e a experiência visual humana são
variáveis em relação à cultura e à sociedade. Daí, conclui Baxandall (1991, p. 48):
“entre essas variáveis, existem as categorias por meio das quais o homem classifica seus
estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para integrar o resultado de sua
percepção imediata, e a atitude que assumirá diante do tipo de objeto artificial que a ele
se apresenta”. Nesse sentido, a categoria da percepção designada pitoresco é concebida
neste artigo como uma classificação dos estímulos visuais que, na experiência social
brasileira, fundamentou a percepção do turista diante das “cidades históricas”.
Há uma intrínseca ligação entre o desenvolvimento do mercado turístico brasileiro
e a opressão emergente nas grandes cidades com a produção imaginária da “paisagem
colonial” com traços pitorescos e bucólicos (Andriolo 1999). A observação dos
desenhos de Tarsila faz notar a ambiguidade dessa produção, uma vez que a nostalgia
contida em imagens de fazendas, povoados rurais e cidades antigas apresentam sua
contrapartida, ou seja, a destruição das lembranças em meio ao crescimento das cidades
industriais. Em síntese: “A aparição da cidade histórica é também desaparição. [...] as
duas operações que a artista realiza em seus desenhos são essas: o registro mínimo
como memória, e o registro rápido como viagem” (Brandão 2000, p. 421).
Guignard e a cidade histórica turística
Os guias turísticos e os cadernos de turismo dos jornais estão entre os maiores
responsáveis pela constituição simbólica dos atrativos turísticos entre as décadas de
1930 e 1970 no Brasil, quando se ampliava o consumo da literatura especializada
devido à necessidade de operacionalizar as viagens. A organização do turismo para
Ouro Preto demonstra que as representações sobre a cidade e a arte colonial mineira
vinham atingindo uma parcela considerável da população, principalmente nas capitais
São Paulo e Rio de Janeiro. Claro que o grupo de turistas era ainda incipiente. Não
apenas assuntos gerais das cidades turísticas, podia-se ler nos jornais do período, por
exemplo, toda uma história do “barroco mineiro”, nas palavras de Lourival Gomes
Machado ou Sylvio de Vasconcellos.
115
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Embora todas essas fontes, literárias ou jornalísticas, participem de maneira
primordial da percepção da “cidade histórica turística”, existem outras, além do texto
escrito, que contribuem nesse processo, envolvendo também o público não leitor. Tendo
em vista que o turismo se constitui como uma “rede de relações sociais culturalmente
definidas” (Araújo 2002, p. 142), convém notar, com John Urry (1996), que as
atividades ligadas ao consumo turístico são construídas em nossa imaginação pela
propaganda e pela mídia, em meio às quais se poderá incluir as imagens pictóricas. Um
estudo de Andriolo (2009b) discorreu mais amplamente sobre a circulação de imagens
ouro-pretanas pelo território brasileiro, seja em exposições de réplicas das esculturas do
Aleijadinho, seja em referências simbólicas materialmente visíveis em ritos nacionais.
Por exemplo: o cruzeiro diante da Igreja Nossa Senhora do Brasil, na cidade de São
Paulo, foi construído, em 1956, à imagem da setecentista cruz da capela de Nossa
Senhora do Rosário do Padre Faria de Ouro Preto. Ou ainda, como mostrou Damasceno
(1994), para a inauguração de Brasília, no dia 21 de abril de 1960, badalou na nova
capital o sino dessa mesma capela. Aqui interessa pensar como a iconografia da “cidade
histórica” relacionou-se à formação da percepção do turista.
O fio unindo Ouro Preto e Brasília passa pelo projeto político de Juscelino
Kubitscheck que, antes de tornar-se presidente, atraiu para Belo Horizonte Alberto da
Veiga Guignard. Como prefeito de Belo Horizonte, Juscelino envolveu tanto a arte
moderna quanto o planejamento do turismo em seu projeto político. No espaço da
Pampulha estão presentes Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle-Marx. Para a
criação de uma nova escola de arte, o prefeito teria pensado primeiramente no pintor
Pancetti, depois, por sugestão de Portinari, convidou Guignard, cuja fixação na capital
mineira ocorreu em 1944. Ali, este artista assumiu a direção do curso de Pintura e
Desenho, recém criado no Parque Municipal (futura Escola de Belas Artes de Belo
Horizonte).
Além de partilhar do grupo modernista em Minas Gerais, foi sobretudo pela
produção pictórica de paisagens mineiras que Guignard demarcou o seu lugar. Para
Ivone Vieira (1988, p. 92), o traço distintivo desse pintor foi o elemento lírico: “As
paisagens de Guignard passaram a ser vistas como signos de revolução, tendo em vista
o modo original de interpretar a realidade. Ele provocou uma ruptura no continuum
histórico, em relação à maneira antiga de pintar a paisagem mineira”.
Em depoimento, Guignard lembra-se que, ao pisar pela primeira vez em Ouro
Preto, no ano de 1942, ficou decepcionado com aquela “cidade negra”, “silenciosa”,
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
“abandonada”. Ainda era noite, resolveu sentar-se no alto de um morro enquanto
aguardava a aurora: “por uma estranha ilusão de ótica, teve a impressão de que as
igrejas iam subindo até as nuvens...” (Almeida 1960, p. 52). Suas telas entregam ao
espectador paisagens fluídas, oníricas, com montanhas e brumas matinais. Ao pintar a
paisagem ele expressa uma experiência do mundo que é, ao mesmo tempo, pessoal e
coletiva. Observando as telas de Cézanne, Merleau-Ponty (1945/1980) dizia que as
tradições proporcionam o sentido literal da obra, enquanto as criações do artista impõem
um sentido figurado que antes delas não existia. Tratava-se de uma “operação
expressiva” que inventou um novo olhar sobre a “cidade histórica”.
Não obstante a constatação de José Durand (1989), acerca do desenvolvimento do
comércio de pinturas modernistas ganhar maior ênfase apenas a partir de 1960, no final
da década anterior o valor das obras de Guignard ascendia, gerando um conflito entre os
marchands e os “amigos-protetores” do mestre, nessa altura com a saúde muito precária
(Vieira 1988). Nessa ocasião surge a ideia da criação da Fundação Guignard por Lúcia
Machado de Almeida, projeto efetivado em novembro de 1961. Para o Conselho
Consultivo da Fundação foram eleitos, entre outros, Almeida Whitaker Gondim de
Oliveira, Gustavo Capanema, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Lourival Gomes
Machado, Anibal Machado, Amaro Lanari Júnior e, como presidente, Milton Campos.
A Fundação durou dois anos e o Museu Guignard seria inaugurado apenas em 1987, na
cidade de Ouro Preto.
Como professor do Curso Livre de Desenho e Pintura, Guignard conduziu
diversas vezes seus alunos à antiga capital de Minas, utilizando o “cenário do passado”
como objeto perceptível e cognoscível para os alunos na produção da “arte moderna”.
Dentre os que retrataram Ouro Preto, por exemplo, encontram-se Neli Frade e Wilde
Lacerda. A primeira participou dos trabalhos de Di Cavalcanti para o Fórum da Rua
Goiás, em Belo Horizonte, e o segundo, dissidente da Escola Guignard, participou do
corpo inicial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em
1957.
Imagens artísticas e imagens turísticas
O sociólogo José Durand (1989) assinalou que nas cidades beneficiárias da
valorização da cultura material do período colonial houve uma repercussão importante
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
no campo das artes plásticas, sobretudo pela atração que tais localidades exerceram
sobre os artistas. Diversos aspectos urbanos converteram-se em temas inesgotáveis nas
artes plásticas. No catálogo da exposição “A paisagem mineira”, ocorrida na Grande
Galeria do Palácio das Artes, em Belo Horizonte (29 de novembro a 20 de dezembro de
1977), pode-se ver cenas de Ouro Preto pintadas por artistas como Renato de Lima
(1951), Herculano Campos (1974), Wilde Lacerda (1974), Nelly Frade (1975), Bax
(1976), Sara Ávilla (1976) e Nello Nuno (1973), entre outros.
Concernentes à constituição do campo turístico, as pinturas produzidas com a
temática das “cidades históricas” permitiam a ampliação da área de recepção definida
pelas publicações literárias nos grandes centros urbanos do país. Estes centros
representam também o indicativo das análises em relação à criação do mercado turístico
brasileiro, nos quais a produção iconográfica cumpriu um papel fundamental na fixação
dos produtos que envolvem as “cidades históricas de Minas”.
Em Ouro Preto, tal efervescência cultural aparece de imediato como possibilidade
de criação para artistas ali estabelecidos. Primeiramente, cabe considerar a instalação de
cursos de artes em geral na cidade, em comum acordo entre a Universidade e os
empreendimentos turísticos. Em 1968, o governo do estado de Minas Gerais, com Israel
Pinheiro, instituiu a Fundação de Artes de Ouro Preto (FAOP), destinada a “promover a
expansão cultural e artística de Ouro Preto, oferecendo elementos para uma
programação turística permanente e diversificada” (Barroco, n.1, 1969, p. 97). Esta
iniciativa partiu “de uma grande amiga e entusiasta da veneranda cidade, a consagrada
atriz de teatro Domitila do Amaral”. O jornal Estado de Minas, em sua edição de 11 de
julho de 1968, anunciava: “O ambiente de Vila Rica ajuda muito: rapazes e moças, ao
terminar as aulas, reúnem-se na Praça Tiradentes, onde encontram cenário para
inspiração de seus trabalhos de arte...”. A fundação administraria os Festivais de
Inverno, realizados anualmente, bem como uma Bienal de Artes, além da manutenção
de um Centro de Documentação.
No final dos anos de 1960, os poderes públicos locais parecem ter se apercebido
da utilidade da produção artística em Ouro Preto. Embora presente desde a década de
1920, a ideia da receptividade aos artistas ganhou novo fôlego nas práticas políticas
locais. Em 1967, a Câmara aprovou projeto de lei do prefeito Genival Ramalho na
abertura de crédito para a construção de uma hospedaria para artistas, a qual seria
construída no terreno da antiga chácara de Diogo de Vasconcellos, no bairro Água
Limpa. A casa “dos Inconfidentes”, no morro do Gambá, também seria reformada para
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
abrigar as autoridades. “A casa dos artistas será aparelhada com ateliês e salas especiais
para reuniões, sala de música etc., além dos apartamentos, destinados a hospedar os
artistas de fora, desde que entrem em contato com o Departamento de Turismo da
Prefeitura, explicando as razões de sua vinda à cidade” (Jornal de Ouro Preto, dez.
1967, p. 7). A Secretaria de Turismo buscava concentrar também, com os festivais e
com a FAOP, o gerenciamento dos artistas que frequentavam a cidade. Outra medida
nesse sentido foi a criação de uma feira permanente de arte e artesanato, organizada pela
prefeitura a partir de 1973.
Também no hotel projetado pela empresa Tropical, cada apartamento teria um
terraço privativo, “o que torna o seu aproveitamento adequado às condições
paisagísticas e artísticas do local, permitindo inclusive que pintores o utilizem como
atelier” (O Ouro Preto, 15 maio 1974, p. 1). Assim, a representação artística de Ouro
Preto, sobretudo difundindo imagens do espaço urbano ganha novo estímulo.
Com a circulação de pinturas de aspectos e temas citadinos, Ouro Preto avança do
plano do discurso para se tornar também referência imagética de “cidade histórica”,
mantendo a sua hegemonia diante de suas congêneres. O famoso historiador Francisco
Iglésias (1972) chegou a afirmar que Ouro Preto era “o cenário brasileiro mais fixado
em telas”. Por sua vez, Sylvio de Vasconcellos (1967) pronunciou-se sobre a
onipresença de Ouro Preto no turismo mineiro com certa indignação. Como diretor do
Instituto do Patrimônio Histórico de Minas Gerais, Vasconcellos estava preocupado
com o excesso de visitantes de Ouro Preto e os poucos turistas a dirigirem-se para
outras localidades mineiras tais como Caeté, Diamantina ou Caraça. Em suas palavras:
Quantas vezes virá a mesma gente ao mesmo lugar, para ver as
mesmas coisas? [...] De uns tempos para cá retrata-se só e
repetidamente Ouro Preto. Ouro Preto de cima, visto de baixo, de
lado, de frente, de costas, igrejas ao lado. Igrejas por todos os lados.
As Minas viraram apenas Ouro Preto. O cansaço nesse terreno já se
manifesta. Muitas pessoas já nem mais suportam um quadro figurando
Ouro Preto. Isso é sinal de saturação, de enjôo, de desvalorização.
Entre os vários artistas que se fixaram ou simplesmente visitavam Ouro Preto nos
anos 1970, pode-se lembrar o nome de Wilson Rolim Ferreira, pintor de traços
“acadêmicos”. Na cidade, esse artista foi orientado por Estevão, pintor e morador local.
Wilson montou seu ateliê no andar superior ao restaurante Caçamba, na Praça
Tiradentes. Até 1974, o pintor executara cerca de duzentas telas representando aspectos
da “cidade histórica”, muitas das quais eram encomendas provindas do Rio de Janeiro e
São Paulo (O Ouro Preto, 15 fev. 1974, p. 4). O paulista Arnaldo Navajas Filho
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
frequentou as aulas de Ado Malagoli, no III Festival de Inverno. Esteve em Ouro Preto
em 1974, pintando uma série de óleos e aquarelas, para depois realizar duas exposições
em Minas Gerais dedicadas ao “barroco”, uma em Ouro Preto e outra em Belo
Horizonte. No ano seguinte, uma nova exposição desse pintor foi realizada na Galeria
Pilão (O Ouro Preto, 21 abr. 1975, p. 2). Participante da fundação da FAOP, Nello
Nuno foi um importante artista a desenvolver suas atividades em Ouro Preto, antes de
interromper sua carreira devido à morte prematura (Barbosa, 1975).
Dos artistas que pintaram Ouro Preto, com maior projeção nacional, pode-se citar
Carlos Bracher e Carlos Scliar. Em Bracher, Hansen (1998, p. 41) localizou uma
representação parcialmente não-mimética, “sua fantasia é moderna: ignora a
verossimilhança, porque não pressupõe nenhuma unidade de verdade exterior, embora,
como disse, os comentários feitos pelo poeta Bracher sobre o pintor Bracher proponham
o incondicionado romântico”. Ao que parece, esse artista esteve pela primeira vez nessa
cidade entre agosto e dezembro de 1964, para, em fevereiro de 1971, lá fixar sua
residência.
Esses artistas não se limitaram à temática ouro-pretana, mas
encontraram nessa cidade um local importante de trabalho. No
depoimento de Scliar, lê-se: “Venho a Ouro Preto porque gosto desta
cidade. Aqui posso concentrar-me para desenvolver minhas ideias e
pintar, no Rio isso não é possível. […] Posso ser motivado por temas
locais, mas não é por isso que trabalho nessas cidades [inclui Cabo
Frio]. Talvez, no início, esses fatores tivessem tido alguma
importância. Mas, hoje, busco apenas condições para encontrar um
meio excelente de concentração, que me estimule. (Jornal de Ouro
Preto, dez. 1967, p. 1).
Há uma tensão notável entre a produção artística e a economia do turismo na
“cidade histórica”. Apesar do fundamental papel desempenhado pelos artistas
modernistas, no mercado composto para os turistas, as cenas acadêmicas parecem ter
sobrepujado as representadas pelas vanguardas artísticas. Os modernistas, na sua busca
pela hegemonia nacional no Brasil, não podem ser considerados como um grupo
unívoco, tanto entre os próprios intelectuais, como entre estes e o governo, não obstante,
foi através do modernismo que Ouro Preto ganhou projeção nacional e internacional.
Aqui reside uma contradição: não foram as obras modernistas da cidade as hegemônicas
dentre as imagens difundidas pelas atividades turísticas no período estudado.
Averiguando, por exemplo, a documentação inventariada na propaganda dos hotéis,
salvo a raríssima exceção na promoção da Pousada Ouro Preto, que traz os desenhos de
Guignard, não se utilizou em grande quantidade reproduções de pinturas modernistas.
120
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Nas produções pictóricas destinadas ao consumo do turista são as formas acadêmicas, às
vezes tratadas com certo impressionismo, ou estilizações a partir das obras de Guignard,
as que ganharam maior projeção.
Deixando de lado os problemas inerentes às definições estilísticas, a oposição
esquemática entre pinturas “acadêmicas” e “modernistas”, deixa-se de lado a
diversidade artística recentemente emergente nas cidades turísticas para enfatizar um
problema surgido na formação da percepção da “cidade histórica” brasileira. As
imagens modernistas, figurativas ou abstratas, não compunham parte significativa das
obras à venda para os turistas, tampouco eram vistas nas revistas de divulgação turística,
embora dominantes para o público seleto do mercado de artes. Os próprios trabalhos de
Guignard, com suas linhas fluídas, não foram recebidos pelo público nem como
revolucionárias, nem como vanguardistas, mas, como sintetizou uma reportagem da
época, como “um clássico moderno, ou melhor ainda, um impressionista moderno”
(Almeida 1960, p. 81).
A aceitação no campo turístico das pinturas cujos temas remetiam à cidade baseiase numa estreita relação com os recortes esboçados nos discursos sobre Ouro Preto, na
representação acadêmica e em detalhes repetitivos. O trabalho de Arnaldo Navajas
Filho, por exemplo, foi assim anunciado pela imprensa: “Não perdendo o sentido
acadêmico de sua vocação, busca, no entanto, no impressionismo, satisfazer sua
tendência, através da perspectiva da cor e do desenho” (O Ouro Preto, 05 jun. 1974,
p.4). Lembre-se que dentre os artistas enaltecidos pelo turismo estava Wasth Rodrigues,
que se dedicou a retratar meticulosamente o patrimônio brasileiro, sendo chamado o
“grande artista do turismo” (O Estado de São Paulo, 05 maio 1957, p. 21).
Pesquisas recentes no campo da produção artística nas “cidades históricas”
brasileiras, visando revelar as imagens privilegiadas nas pinturas destinadas ao mercado
turístico, bem como a sua participação na produção psicossocial da percepção dos
turistas, mostram o ingresso de outras técnicas pictóricas, tal como a “pintura ingênua”.
Aqui, considerou-se as décadas de 1950 a 1970 o período de formação da percepção do
turista e do campo artístico de Ouro Preto, durante o qual se pode verificar que a
atividade pictórica corresponde ao que se observou em grande parte dos discursos, ou
seja, uma permanência de formas conservadoras de pensamento.
Diante do exposto, emerge a hipótese conforme a qual a representação artística de
uma Ouro Preto turística foi traçada em moldes acadêmicos, ao mesmo tempo que
afinada com um discurso nacionalista acerca das origens da arte brasileira e do episódio
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
da Inconfidência Mineira, entre outros temas. Ao contrário, a pintura de um artista como
Carlos Bracher, que muitas vezes inverte a posição do observador, as cores e a maneira
de representar as paisagens locais, cria uma variação das possibilidades do olhar.
Perspectivas como esta não interessaram diretamente ao mercado turístico, uma vez que
o turismo trabalhava com recortes estanques da história, da cidade e da arte. As
propostas de artistas muito distintos dos acadêmicos não foram de todo admitidas, pois
elas representavam um movimento dentro daquilo que se almejou fiel ao discurso
histórico conservador e estático em relação à própria dimensão material do produto
turístico.
*****
A compreensão desse processo exige dos pesquisadores desvelarem não apenas o
campo do turismo ou, também unicamente, o campo artístico, mas a relação entre esses
dois campos sociais, considerando a atividade pictórica, mais que um bem restrito,
como parte integrante da produção psicossocial e simbólica da percepção das “cidades
históricas turísticas”. O campo do turismo é receptivo às práticas artísticas para
constituir seus próprios produtos, no entanto, não os reproduz simplesmente, uma vez
que constitui seus atrativos a partir de elementos provenientes de outros campos, da
política ou da economia. Essa natureza relacional do problema considera as mediações
constituídas no entre dois desses campos, entre as práticas artísticas e as práticas
turísticas, entre o olhar do artista e o olhar do turista.
Uma das categorias frequentemente aplicadas nas descrições das “cidades
históricas turísticas” é a de pitoresco, por meio da qual se estabelece um significado
bucólico para determinadas representações espaciais e temporais. Como se sabe, esse
termo começou a ser utilizado com maior intensidade no final do século XVIII, quando
os europeus idealizaram as viagens ao campo, visando atitudes diante de paisagens
naturais ou artísticas, as quais propunham uma percepção estética. No Brasil, por meio
dessa categoria, a paisagem da “cidade histórica turística” passa a ter importância
conceitual para as análises do fenômeno turístico em relação à opressão dos grandes
centros urbanos, a ser considerada em sua produção psicossocial e histórica.
Os discursos nacionalistas que enraizaram a cidade de Ouro Preto no imaginário
brasileiro encontraram importantes mediações nos desenhos de Tarsila do Amaral e nas
pinturas de Alberto da Veiga Guignard. A partir delas, a paisagem da “cidade histórica”
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
foi concebida em oposição às dos centros urbanos em expansão no país.
Paradoxalmente, os ambientes ocupados pela exploração aurífera e pelo trabalho
escravo, depois de sua identificação como cenários das lutas de emancipação nacional,
tornados símbolos da história pátria, passam a ser representados como fragmentos de
um espaço-tempo em que as vielas e o casario transmitem o bucolismo ausente nas
grandes cidades.
Com a organização do campo do turismo no país, a partir da década de 1960,
vários artistas são convidados a participar desse momento de representação artística da
“cidade histórica”. Não obstante, pode-se notar que a atividade pictórica nas cidades
turísticas do Brasil passou por um processo de seleção segundo temas e técnicas
privilegiados para o consumo do turismo, os quais vincularam as pinturas acadêmicas às
imagens pitorescas e aos discursos nacionalistas, restringindo tanto a difusão de artistas
que trabalhavam fora desse modelo quanto a própria percepção dos turistas que
receberam essas imagens e, a partir delas, constituíram o seu olhar.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
8. Imagens de arte em Paraty
Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty
A ocupação da Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty e da Vila da
Invocação da Santa Cruz de Ubatuba é datada do século XVII, em região habitada por
índios do ramo guaianá, no roteiro de exploração de paulistas da Vila de São Vicente.
Em 9 de maio de 1703 a Carta Régia ordenava a fundação de duas Casas de Registro do
Ouro nas vilas de Santos e Paraty. Esta informação delimita a narrativa histórica de
Eduardo Etzel (1974, p. 147), a qual prossegue com referência ao porto, onde, em 1717,
as bagagens do Conde de Assumar, governador da Capitania de São Paulo, foram
desembarcadas, antes de serem conduzidas a Guaratinguetá. Naquele momento, a vila
de Paraty ocupava a posição limítrofe entre Rio de Janeiro e São Paulo, representando
conflitos de jurisdição para ambas as capitanias. Por aquele porto circulavam produtos
como arroz, café, milho, feijão e aguardente. Esta última, produção de destaque na
localidade, ocupava cem engenhos no século XVIII, contra os cinquenta e cinco de
Angra dos Reis (Maia, 1979, p. 15).
Pizarro e Araújo determinam a data de fundação da matriz de Nossa Senhora dos
Remédios em 1646, cuja reconstrução em pedra e cal estaria concluída em 1712 (Etzel,
1974, p. 148). Era patrocinada por membros de classe abastada, que decidiram pela
ampliação do templo por volta de 1787, em obra que se prolongou pelo século seguinte.
Uma edificação em alvenaria, dotada de sete altares de madeira, com poucos
ornamentos no interior, mas depositária de objetos litúrgicos refinados, a exemplo de
duas coroas de ouro (p. 150).
Outra igreja, denominada Menino Jesus, Santa Rita e Santa Quitéria (hoje apenas
Santa Rita) teve provisão datada de 30 de julho de 1722 concedida aos “homens pardos
libertos do distrito”. São três altares, sendo que o da capela-mor foi elaborado com
delicada talha, em forma de folhas e volutas. Segundo Etzel (1974, p. 150), os dois
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
grandes anjos ladeando as volutas são os únicos das igrejas coloniais de Paraty. A
Igreja de Nossa Senhora do Rosário (atual São Benedito), do mesmo período, foi
reconstruída por volta de 1757. Possui também altar-mor e dois altares laterais em talha
sóbria. Por fim, uma quarta ermida, dedicada a Nossa Senhora das Dores, foi erigida no
início do século XIX, à beira-mar. Abriga apenas um altar-mor e pouca decoração.
A Estrada de Ferro D. Pedro II, sobre o Vale do Paraíba, inaugurada em 1858, é
um dos principais fatores apontados pela historiografia para a redução da atividade
econômica do porto de Paraty e do litoral Norte de São Paulo. Não obstante, ainda no
século XIX, além do Vale do Paraíba, o café que se plantava desde o Rio de Janeiro
avançou também sobre a região litorânea, até São Sebastião (Maia, 1979, p. 21). Entre
Paraty e Guaratinguetá, a Serra do Quebra Cangalha, freguesia do Falcão, era vencida
por tropas de mulas, passando por Campos Novos de Cunha. Houve estudos para a
implantação de uma ferrovia nesse percurso, mas não logrou sucesso (p. 26).
De modo geral, esquematizando a história em seus eventos econômicos gerais, a
historiografia versa sobre três períodos de desenvolvimento da cidade de Paraty,
entremeados por períodos de “estagnação”. Seriam eles delimitados primeiro pela
atividade portuária do transporte de produtos relacionados à exploração aurífera
(reduzida na segunda metade do século XVIII), durante o século seguinte, a exportação
de café reanimou o porto (até a implantação da estrada de ferro), para encontrar novo
alento às finanças municipais com o incremento do turismo, a partir da segunda metade
do século XX.
Em 1945, surgiram as primeiras iniciativas de preservação dos remanescentes
históricos com a elevação de Paraty à condição de Monumento Histórico Estadual do
Rio de Janeiro, a Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1958 e, por fim, em
1966, a Monumento Histórico Nacional. O primeiro automóvel transitou pela cidade em
1954, devido às difíceis condições da estrada de Cunha. A ligação rodoviária ao Rio de
Janeiro, via Angra dos Reis, ocorreu em 1967, e a Ubatuba, poucos anos depois,
ampliando a frequência de historiadores, artistas e amadores de arte, os quais passeavam
por suas ruelas desde 1959 (Durand, 1989, p. 96). Pesquisas recentes têm identificado a
imagem e a motivação turística no município em relação ao patrimônio natural e
cultural (Candioto, 2005). Esta problemática origina-se na década de 1970, na
convergência da exploração mercantil do turismo e das questões ecológicas e
preservacionistas dos ecossistemas no Brasil, como afirmou Maria Lanci da Silva
(2004, p. 108): “O território acabou, bem ou mal, controlado por uma série de
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
instrumentos legais e por uma visão de desenvolvimento alternativo de uma elite
cultural – notadamente artistas – que questionava o modo de vida urbano das
metrópoles”. Imbuída de um olhar para o exótico e para a atividade turística local,
conforme a autora, essa elite promoveu a manutenção de tradições populares, a
discussão sobre o patrimônio arquitetônico e a recepção de viajantes. O cenário da
antiga vila colonial, do alvo casario instalado entre o sopé de montanhas e a baía,
transforma-se em ponto de vista privilegiado para artistas e cineastas, entre outros
intelectuais.
Aqui buscou-se examinar a gênese e a formação do mundo das imagens da cidade
de Paraty (RJ), a partir do estudo de fontes documentais e da percepção de artistas que
habitam a localidade. Uma abordagem metodológica que transitou entre a
fenomenologia, a morfologia e a hermenêutica apresentou grande contribuição em
compreensão do processo histórico, particularmente na observação do campo da
percepção em sua historicidade e no desenvolvimento de categorias estéticas que
organizam nossas representações tanto das imagens pictóricas quanto da percepção da
cidades.
Formas sociais e imagens de arte
Quando se circunscreve o fenômeno das imagens de arte em Paraty, a primeira
observação diz respeito ao espaço urbano, às pessoas e às instituições que vivem a
cidade em práticas artísticas. Em segundo lugar, estão as narrativas colhidas através de
entrevistas abertas, conjugadas ao conhecimento do objeto artístico na visita aos ateliês.
Estes dois conjuntos de fontes são fundamentais, mas revelam lacunas. O método
morfológico procede a uma observação e descrição densas do fenômeno, apreendido
inicialmente como forma no espaço da percepção, neste caso, o mundo da arte em
Paraty.
Como herança da fenomenologia alemã que inspirou as teorias interacionistas da
escola de Chicago, Howard Becker (1983) propôs a compreensão do “mundo da arte” a
partir da configuração dos grupos e conflitos sociais, defendendo a existência de não
apenas um único e definido tipo social chamado “artista”, mas “tipos” distintos em
maior ou menor grau de conformidade diante dos comportamentos dominantes. O
“mundo” constitui-se pelo “conjunto de indivíduos e de organizações cuja atividade é
126
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
necessária para produzir os eventos e os objetos que são característicos desse mundo”
(p. 404). Nesse sentido, os objetos inscritos como “de arte” o são para esse mundo,
conforme as seguintes proposições: A) definição de arte como um produto coletivo; B)
coordenação desses atores: prática comum e produção específica desse mundo, em
atividades referidas a convenções; C) os que compõem o mundo, cuja atividade é
essencial ao processo de produção, podem apresentar-se na forma de coexistência de
muitos mundos, em conflito ou em cooperação.
A compreensão de mundos da arte não deve ser orientada por uma noção rígida da
sua constituição, uma vez que o fluxo da vida dos artistas e os processos sociais estão
em constante mudança. Na identificação dos artistas em Paraty, não se considerou
inicialmente os grupos formadores de mundos porque eles não são dados a priori, eles
aparecem como resultado do processo de observação e, em seguida, começou-se a
organizar os tipos de artista em categorias originadas da observação.
Percorrendo o centro histórico de Paraty, localiza-se um grupo de índios guaranis
tentando comercializar seu artesanato de modo subalterno em relação aos espaços das
lojas e galerias.13 Muitos desses artefatos têm sido inscritos em projetos sociais,
particularmente ligados ao chamado “comércio justo”, tal como a Associação
Nhandeva, que trabalha pela revitalização de técnicas indígenas. Não obstante, é notável
o problema da desigualdade social na forma como se apresentam os índios frente ao
comércio local.
Resultante de artistas provenientes de classes populares, embora não organizados
em associação, aparece um grupo que expõe e vende na Casa do Artesão, a qual possui
uma sistemática própria para a inclusão de membros. A eles é também aberta a
possibilidade de venda na Casa de Cultura e em outros estabelecimentos comerciais do
centro histórico. Nas proximidades do núcleo urbano, existem associações comunitárias
que empreendem iniciativas de comércio de artesanato como, por exemplo, o Quilombo
Campinho da Independência.14 O Ateliê da Terra organiza-se em cooperativa de artesãs,
somente mulheres, em trabalhos com cerâmica, peças decorativas e utilitárias, e preços
mais altos em relação ao artesanato local. Elas definem seus temas e técnicas,
13
Duas aldeias indígenas protegidas pelo estado do Rio de Janeiro estão em Paraty pertencem a índios
guaranis assentados em terras demarcadas pela FUNAI: aldeia de Araponga, bairro do Patrimônio, e
Tekoa Atim, em Paraty-Mirim (Silva, 2004, p. 162).
14
Em subprojeto desta pesquisa, o trabalho de Iniciação Científica de Isabel Tatit (IP/USP, 2007/2008)
mapeou os artesãos e as práticas artísticas dessa comunidade.
127
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
sustentando a individualidade de cada membro, mas dentro de um conjunto
compartilhado de procedimentos.
Outro grupo significativo é formado por artistas plásticos cuja linguagem
distingue-se daquela das produções populares, demonstrando algum tipo de formação
em artes, instalados em ateliês próprios, grupo fortemente marcado por artistas que
chegaram à cidade nas últimas décadas – uma pequena parte é formada por pessoas
nascidas em Paraty. Em geral, são trabalhadores independentes que produzem e vendem
por conta própria: mosaicistas, joalheiros, pintores e escultores, entre outros. Dentre
eles, alguns artistas cujo prestígio permitiu-lhes atingir consumidores fora da cidade,
também aparecem em espaço expositivo da Casa de Cultura e em galerias que
trabalham com objetos de decoração e artes de custo mais elevado. Esse conjunto
apresenta de modo sutil suas configurações internas, as quais não aparecem de modo
imediato nas narrativas. Porém, são notáveis os círculos de amizade. A expressão maior
das diferenças internas desse grupo dá-se no plano das ações políticas, de projetos de
eventos, da criação de associações, da direção de entidades dedicadas ao fomento da
cultura e das artes.
Nesse grupo, encontram-se também artistas que migraram para o Brasil e fixaramse em Paraty, tal como o francês Partick Allien, joalheiro e gravurista. Há também
membros que não têm formação em artes e que não mantêm ateliês na cidade,
comercializando apenas nas galerias ou nas ruas da cidade. Veja-se o caso de Ivaldo
Queiroz, goiano de Itumbiara, que trabalhou em Embu das Artes (SP) e expôs na Praça
da República de São Paulo, até ganhar as ruas de Paraty, onde pinta e comercializa.
Dois outros elementos são importantes para este quadro genérico: as galerias e
lojas que expõem e comercializam obras de artistas locais e de outras regiões do Brasil;
e o grupo de “artistas viajantes”, os quais trabalham e comercializam nas ruas, de
pintores e desenhistas a atores e poetas, de modo esporádico, sobretudo na alta
temporada turística e nos eventos locais.
Durante a primeira etapa da pesquisa, a observação direta do mundo da arte
identificou nomes de artistas segundo duas vias principais: 1) a investigação in loco, na
pesquisa de campo em Paraty, que contou com extenso levantamento de endereços nos
quais artistas trabalhavam ou comercializavam suas obras; 2) em fontes diversas,
contando com registros na Internet, revistas e catálogos de exposições, entre outras.
Nesta última, enumerou-se mais de oitenta nomes, os quais foram contrapostos com a
primeira via. Com a participação do pesquisador Bruno Aquilo (bolsista de trabalho
128
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
técnico da FAPESP), foi realizada uma confrontação das informações do quadro com a
localização pessoal de cada artista. 15
A necessidade prática de encaminhamento do projeto naquele momento e o
expressivo número de artistas dedicados à pintura levaram a um recorte do objeto,
definindo os rumos na trilha dos pintores e da imagem pictórica, deixando em
suspensão a pesquisa do vasto campo do artesanato e de outras práticas artísticas. Os
pintores foram convidados para entrevistas, as quais aconteceram entre 15 e 19 de junho
e 26 a 30 de outubro de 2009. Esses artistas tornaram-se verdadeiros colaboradores da
pesquisa, fornecendo informações preciosas sobre o campo artístico de Paraty, e
possibilitaram que o método avançasse para sua segunda etapa: a compreensão histórica
da formação daquela comunidade. Deve-se salientar que diante do universo paratyense,
muitos nomes não serão mencionados, o que não retira o mérito de todos no mundo das
imagens de Paraty.
Processo histórico e imagens pictóricas
O conjunto de formas sociais apreendidas na observação do fenômeno é elevado
pelo trabalho do pesquisador ao processo temporal, relação entre momentos diversos
recolhidos de modo fragmentário nas narrativas e fontes documentais, ordenados em um
todo coerente que permita atingir sua dinâmica própria, conferindo ao objeto
esquematicamente apreendido o movimento vivo no processo histórico. Nesta etapa,
ocorre o ingresso de novo conjunto de fontes, seja em documentos impressos como
jornais e livros, seja em informações colhidas junto à comunidade e aos artistas
entrevistados. Para cada um desses conjuntos de fontes foi necessário estabelecer
procedimentos de registro e controle que garantissem seu lugar na metodologia.16
15
Foi elaborado um “Quadro social de artistas de Paraty” com os dados principais cadastrados: nome,
local e data de nascimento; endereço e contato; categorias da obra de arte (técnicas, materiais, programas,
temas e formas). Este quadro serviu de suporte para a pesquisa de campo de maio de 2009, quando os
pesquisadores estavam munidos de uma ficha de cadastro, a qual era preenchida com o depoimento do
próprio artista, quando localizado. Ao final, trabalhou-se com os seguintes números na pesquisa de
campo: 32 artistas contatados e cadastrados, conforme ficha cadastral modelo, nos períodos de maio
2008, junho e outubro 2009. Cerca de 40 artistas viviam na cidade e, embora não contatados
pessoalmente, seus colegas confirmaram sua presença como moradores e atuantes do campo artístico
local; 25 trabalhavam com artes relacionadas à pintura. Sejam desenhistas ou aquarelistas, sejam autores
de técnicas mistas, dentre as quais, trabalhos sobre painéis com massa de cimento, gesso ou papel machê,
cujo resultado final é obra em relevo sobre superfícies pictóricas.
16
A pesquisa documental concentrou-se, principalmente, no acervo da Biblioteca Municipal de Paraty –
Fábio Vilaboim.
129
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Ao construir o horizonte histórico, evidenciam-se os artistas que tiveram
importância para a formação do mundo artístico local e a contribuição estética que
deixaram aos novos artistas na curta e na média duração. Tais manifestações foram
inscritas em um campo de maior duração que remonta aos pintores de estandartes
religiosos e outras atividades provenientes das classes populares.
A compreensão do processo histórico da pintura em Paraty é um tema instigante,
porém difícil, uma vez que o trabalho com as fontes requer uma diversidade de
abordagens, as quais devem incluir tanto a pesquisa em acervos documentais quanto o
recurso a entrevistas. Os acervos são limitados quando o assunto é pintura. Ao que
parece, isso se deve a dois problemas principais: 1) em períodos mais afastados, como
os séculos XVIII e XIX, a pintura não era objeto de destaque na produção local, por
razões derivadas do próprio ambiente artístico, não atraindo também a atenção de
críticos e historiadores ao longo do século XX; 2) em períodos mais recentes, a partir
dos anos 1960, não houve registro sistemático dos artistas em atividade no local.
Com relação ao primeiro problema, torna-se difícil precisar os elementos
pictóricos pertinentes a uma tradição paratyense. Por um lado, há uma concepção de
pintura compartilhada pela nossa historiografia da arte, a exemplo de Rodrigo Franco
Andrade (1978), primeiro diretor do SPHAN, que afirmava a condição da pintura
colonial nos moldes decorativos, submissa à escultura e à arquitetura. Esta última atraiu
os primeiros grandes investimentos do SPHAN, deixando a pintura em segundo plano.
Tal concepção era reforçada, no âmbito da arte popular, por exemplo, com Renato
Almeida (1970, p. 103): “A pintura do nosso povo é de suas artes a mais pobre e, a não
ser na decoração de objetos, onde o sortilégio não raro é da cor, o pintor folclórico
brasileiro tem fraca inventiva, tanto que só aparece em alguns ex-votos e certos quadros
religiosos, estandartes e bandeiras...”. Por outro lado, os remanescentes artísticos de
Paraty não foram suficientes para a formulação de uma “escola de pintura” paratyense,
na acepção tradicional da historiografia da arte. Acerca de outras localidades, produziuse muitos estudos, como a respeito da “escola fluminense” e da “escola baiana”.
O segundo problema nos indica um período em que a pintura deslocara-se de
posição frente aos interesses do campo artístico, com os movimentos da arte
contemporânea em performances e instalações. As novas práticas não eliminaram a
pintura, mas notadamente lhe lançaram questões. Não obstante, trata-se de um período
em que a atividade pictórica crescia em outros ambientes, na chamada “arte ingênua” e
na pintura das cidades históricas turísticas, tais como Ouro Preto , Olinda e a própria
130
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Paraty (RJ). A “redescoberta” de Paraty, nas palavras de Etzel (1974, p. 148), “como
uma povoação setecentista praticamente intacta e não contaminada pelo progresso de
nossos dias”, era contagiada por um olhar romântico, descrito em termos de “encanto”.
Nas considerações de Durand (1989, p. 97), houve nas cidades beneficiárias da
valorização da cultura material “colonial” uma repercussão importante no campo das
artes plásticas. Diversos aspectos dessas cidades converteram-se em temas inesgotáveis.
Porém, a profusão de imagens pictóricas surgidas nessas cidades não foi considerada
relevante pelos historiadores da arte.
Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das
“cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas
publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua
vez, os poderes públicos locais, sobretudo nas cidades mineiras, apropriaram-se da
função social das imagens de arte (Andriolo, 2008). Para além das telas famosas de
Guignard, outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades
turísticas baseadas nas antigas vilas do século XVIII, por exemplo, e como já vimos, em
Ouro Preto, Carlos Bracher ou Carlos Scliar, que trabalham em pinturas que
transformam as cidades em imagens de arte. Além da relação com o olhar do turista, os
pintores instigam questões sobre a paisagem, intervêm na cidade, jogam através de uma
política das imagens.
Poder-se-á esboçar conexões entre os artistas das diversas cidades históricas e
turísticas brasileiras. Em Paraty, Márcio Franco (nascido em Lagoa Santa, MG), visitou
tanto os ateliês quanto os festivais de Ouro Preto, durante a década de 1970, nos quais
pôde desenvolver sua técnica. Depois, participou de atividades na escola de artes do
Parque Lage, no Rio de Janeiro, e dos cursos da UFMG, para então fixar-se em Paraty,
em 1982. Sua linguagem elabora temas tropicais, da fauna e da flora, aplicados a
grandes formatos. Nas estadas em Ouro Preto, Franco conheceu a técnica de Carlos
Scliar. Face aos vínculos com as cidades históricas de Minas, poder-se-ia citar também
Helen Navajas, natural de São Paulo (SP), que viveu em Ouro Preto antes de mudar-se
para Paraty.
Historicidade das categorias estéticas nas imagens de arte
131
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A imagem de arte é uma forma de conhecimento, por meio da qual o processo
histórico é expresso na vida social. A abordagem biográfica não se reduz à descrição de
casos particulares, pois estabelece relações constantes com a totalidade do mundo da
arte, entre a composição da imagem pictórica e a estrutura social. Pierre Francastel
(1951/1990, p. 2) propunha uma análise individual e social da legibilidade e eficácia de
um quadro: “uma obra de arte é um meio de expressão e de comunicação dos
sentimentos ou do pensamento”. Neste ponto, a compreensão de Francastel conjuga-se
com a proposição fenomenológica de Merleau-Ponty (1990, p. 292), para quem “Um
quadro é o traço manifesto de uma certa relação cultural com o mundo”, “aquele que o
percebe, percebe ao mesmo tempo um certo tipo de civilização”. A experiência
perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da imagem, o
mundo é constituído na vida social.
Aqui, as imagens de arte devem manter operantes as relações entre a biografia dos
artistas e o mundo social, em uma perspectiva histórica. A pertinência de categorias
formuladas no curso da história da arte dispõe relações com as formas de perceber no
campo da estética por meio das ideias de imitação, expressão e significação.
Com os estudos de Donald Lowe (1986), o campo perceptivo apresenta sua
constituição pelo espectador, o ato de perceber e o conteúdo do percebido, em uma
dinâmica de transformações temporais e espaciais a partir de três fatores: 1) os meios de
comunicação; 2) a hierarquia dos sentidos; 3) os pressupostos epistemológicos que
ordenam o mundo do conhecimento: “o campo perceptivo constituído é uma formação
histórica, que difere entre um período e o seguinte” (p. 31). A história da percepção
circunscreve domínios hegemônicos organizados na tensão sobre outros domínios não
hegemônicos, formas de perceber subalternas e sedimentos de campos perceptivos
antigos.
O filósofo Hans-Georg Gadamer (1985) indicara a importância da compreensão
da historicidade da consciência para a interpretação da arte. Em suas palavras:
[...] na consciência de nossa formação, vivemos amplamente dos
frutos dessa decisão, isto é, da grande história da arte ocidental, que
desenvolveu, através da arte cristã na idade média e da renovação
humanista da arte grega e romana, uma linguagem formal coletiva
para os conteúdos de nossa autoconsciência – até os dias dos fins do
século XVIII, até a grande transformação social, política e religiosa
com que teve início o século XIX. (Gadamer, 1985, p. 12)
Com a unificação das práticas da pintura, da escultura, da gravura, sob os
auspícios do campo artístico, na designação de arte do século XVIII aos nossos dias, um
132
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
conjunto de categorias estéticas destinadas às imagens foi inscrito na vida cotidiana e no
senso comum, ainda que sob a forma de querelas e rupturas. A historicidade dos
processos perceptivos mediados pelas imagens de arte dispõe tais categorias em eixos
temporais, os quais não seguem uma continuidade de significação, pelo contrário,
solicitam observar as metamorfoses que os processos sociais imprimem no campo de
significados.
Gadamer (1992) indicou a inter-relação de categorias estéticas no processo
histórico das imagens a culminar com a arte moderna, no século XX. Esse autor o faz na
perspectiva da grande tradição filosófica, ao passo que retomarei aqui sua proposição
para compreender o círculo de artistas paratyenses. O filósofo estava interessado em
compreender como os conceitos estéticos dominam nossa consciência histórica, sem
que se tenha clareza de sua origem e sua legitimação, a esta pesquisa interessa situá-los
na forma histórica de perceber e na experiência social das imagens.
A primeira dessas categorias é a imitação, que remonta aos gregos e atingiu seu
apogeu estético, político e artístico no classicismo francês dos séculos XVII e XVIII.
Abarcava a doutrina da arte como imitação da natureza conforme normas ideais de
representação, legitimada pela noção de verossimilhança. A segunda categoria, surgida
no século XVIII, se opõe à ideia de imitação e conduz à afirmação da expressão da
interioridade, originalmente pertinente ao campo musical. “A força de expressão de um
quadro e a autenticidade dessa expressão são os meios que legitimam aquilo sobre o que
se afirma artisticamente” (Gadamer, 1992, p. 115). Ambas, a imitação e a expressão,
parecem insuficientes quando se projeta uma terceira categoria, o signo. Apresenta-se o
quadro como linguagem escrita a ser lida pelo espectador do século XX, na tarefa de
decifrar os signos. O espectador não deixa de proceder a um reconhecimento dos
elementos da pintura, mas tal reconhecimento deve remeter à unidade do quadro e não a
algo fora dele: a escrita pictural constitui “o elemento a partir do qual o quadro é
composto, mas ela está ligada a uma recusa do sentido” (p. 117).
Para interpretar o jogo destas três categorias em nossa experiência estética
contemporânea, Gadamer volta-se para a profundidade histórica do presente, para
examinar a consciência dos horizontes conceituais que dispomos atualmente.
Interessando na forma como tais categorias organizam a nossa experiência perceptiva e
a confecção de imagens na cidade turística, passo diretamente à conclusão do filósofo.
Diante do tema do reconhecimento através da imagem, trata-se também de um
reconhecimento de algo pertinente a si mesmo, em uma experiência de familiaridade
133
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
com o mundo, em uma forma de construir a familiaridade com o mundo, ao mesmo
tempo em que se aprofunda o conhecimento de si (Gadamer, 1992, p. 121).
Surpreendentemente, o antigo conceito de mimesis, debatido em Platão e Aristóteles,
torna-se pertinente na apreensão da estrutura da pintura moderna, na fragmentação das
formas e na recusa do sentido. Para Gadamer, resta ainda alguma familiaridade e podese operar um reconhecimento parcial.
Em mais um passo retrospectivo, em direção à tradição filosófica, encontra em
Pitágoras a mimesis em referência ao universo, à abobada celeste e às relações
numéricas. A mimesis de Pitágoras compreende a realização no mundo visível das
relações entre os números, na ordem dos sons e da música, na admirável ordem dos
planetas (a música das esferas) e na ordem das almas. Esta mimesis da imitação dos
números contém as relações entre os números, não no sentido exato, mas constata a
existência da ordem em todas as coisas (Gadamer, 1992, p. 124). A extrapolação do
pensamento gadameriano remete à indagação sobre a existência de ordem em todas as
artes. A experiência de ordem na arte moderna não trabalha com o modelo de ordem da
natureza e da construção do mundo, tampouco versa sobre um conteúdo mítico ou
familiar das coisas no mundo. A sociedade industrial rejeitou as formas visíveis do
ritual e do culto e destruiu “aquilo que faz que uma coisa seja uma coisa”, no processo
de produção, publicidade e consumo – em suma, não existem mais coisas com as quais
estejamos em relação (p. 125). A arte moderna não mimetiza uma familiaridade
efêmera, a ordem que testemunha reside em sua integridade pelo fato dela existir. Não
seria uma ordem de acordo com nossas representações habituais de ordem, à
semelhança dos objetos familiares, mas um jogo criativo acerca da ordem intelectual do
mundo. Mesmo em um mundo que se torna uniforme e serial, na imagem de arte se faz
uma construção constante do mundo, no lugar onde se desagregam as coisas que nos são
habituais e familiares, tais imagens guardam sua ordem.
O percurso dos artistas da cidade de Paraty parece conter tanto o jogo daquelas
três categorias estéticas quanto o conceito da mimesis aos quais não se pode deixar de
interpor o fato de apresentarem-se no contexto específico da cidade turística e não do
campo artístico hegemônico. Acrescente-se ainda o fato de essas imagens manuais
serem produzidas atualmente em uma sociedade dominada por imagens midiáticas.
Afirmar que os objetos produzidos são restritos à “arte turística” seria recusar, de um
lado, a sua diversidade plástica e imagética e, de outro, o fato de que representam a
escolha de artistas.
134
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Categorias das imagens de Paraty
1) Os remanescentes da tradição popular
As referências mais antigas à pintura em Paraty remontam à paisagem de Debret
(Quarenta paisagens inéditas do Rio de Janeiro, São Paulo... Companhia Editora
Nacional, São Paulo, 1970). Tereza Maia (1976, p. 32) confere destaque a Paraty vista
de frente a uma légua e meia de distância, de 1827. Esta referência distante, que não
toca a antiga vila, deve ter-se prolongado em outros trabalhos, os quais não deixaram
rastros. No exame das imagens apresentadas no livro O Brasil dos viajantes, organizado
por Ana Maria Belluzzo (1994), dentre as muitas paisagens pictóricas, não se encontrou
nenhuma referência à cidade de Paraty. Esta consideração é tão-somente um indicativo,
não conclusivo, sobre a posição da antiga vila frente aos lugares de interesse
paisagístico antes do século XX. Naquele livro, a principal referência para as paisagens
era o Rio de Janeiro, mas também são apresentados registros de São Paulo, Ouro Preto e
da distante Vila Boa de Goiás (atual Goiás Velho).
Não é fácil alinhavar os fios que ligam a prática pictórica nos dois últimos séculos
de Paraty, não obstante a pintura instalada na cidade nas últimas décadas inscreva-se em
ambiente modesto de pintores populares, ligados às festas religiosas. Estas obras,
embora de valor pouco reconhecido entre os intelectuais brasileiros, têm um lugar
importante dentro da trama imagética da cidade. Um grande exemplo poderia ser dado
pela pintura do mastro vermelho e branco do Divino, sobre o qual está a “bandeira” com
a representação da pomba branca, “pousada sobre um universo, pintado de azul” (Maia,
1976, p. 51).
Além das tradições populares, o desenvolvimento das imagens de Paraty está
ligado à recepção das obras setecentistas e à categoria de “barroco”. Nos primórdios
desse processo, na primeira metade do século XX, enaltecia-se o patrimônio das cidades
de Minas Gerais e provocava-se o esquecimento de outras regiões ocupadas no
Setecentos (Andriolo, 2010). A história do turismo no Brasil apresenta essa mesma
polaridade nos empreendimentos hoteleiros e projetos turísticos. Somente em décadas
posteriores surgiram as primeiras preocupações com os acervos de estados como Mato
Grosso e Goiás, e de outras localidades isoladas. Exemplo: nos dois volumes da
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Arquitetura religiosa barroca no Brasil, de Germain Bazin (1983), um inventário
precioso da arquitetura brasileira realizado nos anos 1950, não há referências a esses
dois estados, tampouco à cidade de Paraty. Na relação bibliográfica apresentada no
catálogo da exposição “Universo mágico do barroco” (1998), também não há itens para
Goiás e Mato Grosso, e na seleção dedicada ao Rio de Janeiro, nenhuma obra específica
dava conta de Paraty.
Eduardo Etzel (1974), médico psicanalista, procurou inventariar os remanescentes
esquecidos durante a exaltação da arte de Minas Gerais. A importância de seu trabalho
não se resume tão-somente ao seu conteúdo, dados e imagens de igrejas longínquas,
mas de mostrar ao público leitor que havia mais a olhar, além de Minas Gerais. Etzel
enfoca as margens dos sistemas artísticos, as manifestações modestas, remanescentes de
um período histórico em que o modesto – e não a riqueza -- era a regra.17
2) Entre o sentido documental e a pintura da paisagem
No final da década de 1970, foi publicado o livro Do Rio a Santos, ilustrado por
Tom Maia e escrito por Tereza Maia (1979). A publicação apresenta suas imagens com
as seguintes palavras: “No desenho fique a lembrança do que nos legou ‘a muito nobre
gente’ que realizou, sem dúvida, mais do que prometia a força humana” (p. 26). A
propósito dessas palavras, a autora atrai o leitor para elementos típicos da história do
litoral – baleias, engenhos, corsários, conventos etc. –, construindo uma paisagem na
imaginação do leitor.
Ao afirmar-se o significado documental dessa iconografia, orienta-se o olhar do
leitor para a categoria de pitoresco. Não se trata, pois, de um testemunho das ruínas,
embora a elas esteja associado. As marcas do tempo são evidenciadas por hachuras e
trincas sobre a dignidade dos edifícios. Nos traços pretos sobre o branco do papel, na
ausência de cores, Tom Maia faz desaparecer o fundo da imagem, o céu, o horizonte. O
objeto da representação ocupa o lugar central do desenho. Esse procedimento próprio do
bico de pena reforça o laço simbólico documental do tema tratado.
17
Diante de Paraty, afirmou: “Encontramos em Paraty quatro igrejas, sendo três do século XVIII; um
acervo de 40 imagens de médio e grande tamanho, todas, menos três, de madeira. Um riquíssimo
conjunto de pratas litúrgicas e coroas de ouro que reputamos, pelas suas características locais, únicas no
Brasil” (Etzel, 1974, p. 148). Em seu livro, onze fotografias em preto e branco são dedicadas aos quatro
templos históricos de Paraty; a Igreja de Santa Rita foi a mais retratada (cinco imagens), enfatizando sua
talha.
136
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A pintura de paisagens que articula a imagem pitoresca ao sentido documental da
arquitetura pode ser vista nas telas de Omar Pellegatta. No dia 1º de maio de 1974, a
Câmara Municipal de Paraty reuniu-se para homenagear e agradecer o presente que
recebera desse pintor: o óleo sobre tela Igreja Nossa Senhora das Dores. Pouco depois,
a Editora Renyi, dedicada a reproduções artísticas, publicava quatro pranchas de
Pellegatta (36 x 44 cm), acompanhadas do texto de Joel Andrade Loes.
Pellegatta nascera em Busto Arcisio, Itália, em 1925, mas dois anos depois estava
radicado no Brasil, onde viveu e desenvolveu-se na carreira artística. Percorreu as
cidades históricas de Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, São João del-Rei, Sabará e
Paraty, entre outras, dedicando-se ao “colonial brasileiro”. Ao longo do texto, pequenos
desenhos em bico de pena decoram as grandes páginas. As pranchas focalizavam
aspectos urbanos, três dos quais com arquitetura religiosa em destaque: Igreja Matriz,
vista ao fundo da perspectiva de uma rua com casario; Igreja de Santa Rita, mostra-a
pela lateral da capela, com partes de casas no primeiro e último planos; Recanto de
Paraty projeta os fundos da Igreja das Dores, com vista da baía; Sobrado da Rua da
Praia apresenta residência amarela com decoração nos cunhais, diante da qual a rua é
tomada pela água.
As cores representam um elemento importante da composição, sobretudo em
janelas e portas – amarelas, verdes, azuis –, mas também nos detalhes desgastados dos
edifícios: em tons esverdeados ou amarronzados, reforça uma categoria temporal. Os
céus apresentam grande quantidade de cinzas, mesclados em azuis e vermelhos. A serra,
diluída na paisagem, varia entre verdes, azulados, marrons. Os objetos centrais da
representação são as edificações, as quais ocupam o centro das composições, mesmo em
planos amplos, como em Recanto de Paraty. Ao espectador, esses tons esverdeados e
amarronzados permeando as pinturas de Pellegatta promovem uma concentração, um
peso, por assim dizer, sobre os objetos da representação.
O espaço plástico da paisagem desenvolveu-se grandemente nas cidades históricas
e turísticas, nas décadas de 1960 e 1970. Hiroshi Murakami, nascido no Japão, morou
desde 1979 em Paraty, e trabalhava em óleo sobre tela, em um paisagismo detalhista e
em cores profundas. Paulo Gomes, ali instalado pela primeira vez no ano de 1981, tem
um paisagismo mais iluminado, de linhas um pouco mais fluidas e igualmente
detalhado. Esta técnica clássica acurada deixou de ser a predominante em Paraty nas
últimas duas décadas, não obstante, encontra alguns praticantes, tais como o pintor
André Meurer, radicado em 2009, com a esposa e artista Luciana Machado.
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Nos relatos dos artistas, surgem referências a algumas galerias abertas em Paraty,
dentre as quais a do senhor Ribeiro, dono de teatro em São Paulo, morreu em Paraty.
Notadamente, tem-se a galeria de Abel de Oliveira, que contava com a parceria do
artista plástico Marino Gouveia, em um salão no pavimento térreo de um casarão
histórico. Nesse local, apresentavam-se artistas de outras localidades, ao mesmo tempo
em que se fomentava a exposição de produções locais.
No atual “Restaurante do Abel”, quem adentra o recinto pode contemplar algumas
obras pictóricas penduradas nas paredes do estabelecimento. Chamam atenção os traços
pretos sobre a parede branca deixados por Takaoka, em 1964, seus cavalos em
movimento, cuja representação se tornou símbolo do local. Num canto, estão
preservados quatro desenhos sobre papel, dois de 1963 e dois de 1964. Uma ampliação
de um escrito de Juscelino Kubitschek, assinado e datado de 1972, está exposta para
recordar o visitante: o senhor Abel é parabenizado pela iniciativa de criar uma galeria de
arte, frente a todas as dificuldades. As paredes abrigam telas de moldes variados, uma
grande imagem de uma festa religiosa, em traços populares, e outra de aspecto
surrealista, de Moussin, sobretudo: são as paisagens da cidade que se apresentam ao
olhar, tais como S. Rodrigues Júnior, Zechetto e Steuer, Pellegatta, entre outros. Além
destes, expôs pinturas de Di Cavalcanti, Graciano, Djanira e Mário Zanini, entre outros
(Durand, 1989, p. 96).
3) Ingênuos e primitivos
Dentre as pinturas expostas naquele restaurante, está uma “vista do morro do forte
sobre a baía com a Igreja Matriz”, por Djanira, artista que ocupa lugar central nas
narrativas de Paraty. Todos os artistas entrevistados mencionam o “tempo de Djanira”,
com o sentido de primórdio da arte paratyense. Há um significado histórico nesta
apreensão social da pintora. Ela destaca-se das configurações plásticas documental,
pitoresca e paisagística, situando-se em um espaço visual designado “ingênuo”. As
biografias de Djanira não conferem grande importância a sua passagem por Paraty,
tendo em vista sua associação a artistas viajantes em seus diversos deslocamentos,
muito fecundos do plano estético. Não obstante, há registros de que a pintora “encantouse com o bucolismo e os horizontes de Paraty” (Barata, 1985, p. 20), na década de 1950,
138
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
quando adquiriu um sítio dotado de casarão onde morou com o marido, o historiador
José Shaw da Motta e Silva.18
Algumas pinturas e desenhos são remanescentes desse período, a exemplo das
reproduções apresentadas no catálogo A arte sob o olhar de Djanira (2005), da coleção
do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, instituição que recebeu a doação
do espólio da artista em 1984. Dentre elas, Igreja de Santa Rita (s.d., óleo sobre tela) e
Esquina de Paraty (1957, grafite sobre papel). Se, por um lado, nota-se a importância
que a paisagem paratyense teria para o conjunto da obra da artista, por outro lado, é
certo que sua estada na localidade introduziu um espaço visual novo, a ser desenvolvido
por alguns artistas locais. Júlio Paraty costuma afirmar: “Hoje dizem que eu sou um
discípulo de Djanira, e eu digo que sim. E agradeço muito ter conhecido a Djanira, eu
acho que sou um sortudo, uma pessoa iluminada...” (entrevista ao autor, Paraty, 19 jun.
2009).
Em que medida poder-se-ia considerar esse espaço plástico específico “ingênuo”?
No fundamental ensaio de Mário Barata (1985), sustenta-se a incorporação dos valores
da sensibilidade do povo brasileiro pelo modernismo, em meio ao qual Djanira, “à base
de um ajustamento espontâneo com a criatividade popular em sua evolução e sua
maneira de ser”, não faz surgir apenas o folclore como tema, mas “a própria irradiação
de valores que ela infunde na imagem desse fundo de vida popular” (p. 23). Para esse
historiador, Djanira não pertencia nem ao grupo de pintores de um plano “erudito”, nem
ao de “primitivos”. Nas décadas de 1940 e 1950, ocupava uma posição “singular” na
arte brasileira; estabeleceu tanto um elo com a pintura “primitiva” – “pelo que
representa de autenticidade popular” – quanto com as manifestações “que exprimem
uma mais evoluída preocupação intelectual” (p. 22). O “primitivismo” que “irritava os
acadêmicos mas era bem aceito pela sensibilidade moderna”, naquele período, permeou
o trabalho de Djanira: “seu pretenso primitivismo é o primitivismo de grande parte do
espírito moderno” (p. 24).
Como os primeiros primitivos ou ingênuos, a pintora está ligada às coisas do
Brasil, mas nela nota-se nela o impacto da percepção da imaginária barroca. O mundo
da representação, nas cenas campestres ou urbanas, acentua “as estruturas das coisas e
dos seres, intensa e intencionalmente” (Barata, 1985, p. 26). Daí o autor afirmar o “nãoprimitivismo” da artista (p. 24): por negação, circunscreve o campo dos “ingênuos” e a
18
Exposição Djanira em Paraty, organizada pela Secretaria de Turismo de Paraty, Museu Nacional de
Belas Artes e Instituto Nacional do Patrimônio Histórico, 1997.
139
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
retira de lá. Estes últimos, “preservam a sua imagem fixada sempre nos mesmos
termos” (p. 22). Em suma, ao se reconhecer Djanira nos primórdios das imagens de
Paraty, deve-se relevar sua contribuição ao espaço plástico ingênuo, o qual, porém, não
se traduz diretamente da experiência popular, mas em gênero pictórico caracterizado
pela pintura em cavalete, em cores primárias sobre tela, em cenas campestres ou
referidas às tradições populares.
Júlio Paraty autofilia-se ao grupo ingênuo ou naïf, o qual congrega outros
paratyenses, tal como João José de Silva e Lúcio Cruzz, bem como Themilton Tavares,
radicado naquela cidade desde 1975.19 A narrativa biográfica de Júlio remete aos 12
anos de idade, quando pintava tampas de caixas de sapato com os produtos de
maquiagem da sua mãe. “Descoberto” pelo poeta José Kleber, teve estímulo para expor
no Bar do Abel. Conta que foi à casa de Djanira com o pai, especialista em hidráulica, e
que teve a oportunidade de receber da pintora suas primeiras instruções técnicas, por
volta de 1965 (entrevista ao autor, Paraty, 19 jun. 2009).
O tema do Divino aparece em muitos dos trabalhos realizados na “arte ingênua”
do município, desenvolvendo elementos das festas e tradições populares. Themilton,
escritor, professor e comunicador, chegou ao lugar com dez anos de pintura em
experiências abstratas, realistas e surrealistas, e lá fixou sua temática nas tradições
paratyenses. Não obstante, esse espaço visual varia muito entre os artistas, na técnica,
na forma e no conteúdo dos trabalhos. Lúcio Cruzz pinta sobre placas de compensado
recobertas de papel machê e cimento, conferindo volume aos personagens. Dalcir
Ramiro, nativo de Paraty, escultor e ceramista de importante projeção no campo
artístico, transpõe a tradição para o elemento étnico brasileiro ao mesmo tempo em que
atualiza as formas em belas figuras alongadas e cilíndricas. O primitivo aqui é de outra
ordem: sem deixar de operar com a tradição plástica ingênua, sintetiza as formas em
seus elementos mais essenciais.
4) Diversidade no espaço visual contemporâneo
As expressões plásticas mais recentes têm como característica a abertura de novas
significações no espaço visual e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo
imagético em continuidade com aqueles indicados nos itens anteriores. As mudanças
19
A exposição Expressões da tradição, Associação Paraty Cultural, 18 jan. a 28 fev. 2007 , reuniu Júlio
Paraty, João José da Silva, Themilton Tavares e Benedito Martins.
140
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
podiam ser sentidas, por exemplo, com a mexicana Patrícia Sada, na cidade há mais de
duas décadas, é uma artista sensível aos processos estéticos, trabalha tanto com a
reunião de objetos naturais, como galhos, quanto com a pintura sobre suportes
convencionais. Em ambos os casos, aplica traços e cores de modo muito delicado, capaz
de configurar um espaço visual de características singulares. Veja-se também Ruth
Rohrer, que, com exímia técnica, trabalha um espaço pictórico simbolista, retendo
elementos da paisagem local, criando outra atmosfera.
Durante a década de 1990, ocorreu um grande afluxo de artistas, numa época em
que Paraty contava com mais de 23 mil habitantes, quando ocorreu a apresentação do
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (1995) (Silva, 2004, p. 163). Artistas que
já frequentavam o lugar começam a participar de um campo profícuo de divulgação, tal
como Fernando Noronha, mergulhador da baía de Paraty desde 1964, pintando temas
subaquáticos em acrílico. Em Paraty desde 1990, Humberto Souza Lima volta-se para a
tradição histórica, não apenas folclórica como nos “ingênuos”, mas na herança da
iconografia católica e portuguesa, designada “barroca”. Dalva Lacerda, pinta paisagens
e temas nacionais, chegou a ocupar o cargo de Secretária de Turismo e Cultura de
Paraty.
Renata Rosa, na cidade desde 1993, transpôs suas pinceladas para imagens
abstratas, nas quais densidade e movimento da cor são notáveis. Este espaço visual
chama a atenção do espectador, sobretudo pelo contraste com as obras pictóricas
figurativas que dominam as galerias locais. O croata Renato Koledic, que visitou a
cidade em 1991, depois de uma estada na Argentina, trabalha sobre elementos da flora e
recortes de paisagens do litoral. O alemão Hans Hornig mudou-se em 1994, depois de
residir sete anos no Rio de Janeiro, onde já praticava desenhos paisagísticos. Célia
Regina Canosa, na cidade desde 1996, focaliza a flora e a fauna da Mata Atlântica. No
último ano da década de 1990, Sérgio Atilano e Fernando Fernandes chegaram com o
intuito de produzir tanto literatura quanto pintura, cuja expressão é o Estúdio Bananal,
um espaço de arte contemporânea e diálogos acerca da política da arte, transferido de
São Paulo para Paraty.
Na década de 2000, novos artistas instalaram-se na cidade. Aécio Sarti, nascido
em Aracajú (SE), chegou em 2004. Pinta com tinta óleo sobre lona de caminhão
reciclada, com destaque para as figuras humanas, sua indumentária e seus movimentos.
Nesse mesmo ano mudou-se Juan Icaruso, pintor que focaliza a população em
141
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
pinceladas difusas. No ano seguinte, Rodrigo Lamonthe Cotta dedica-se a detalhes do
espaço urbano em pastel seco sobre canson.
Marília e Ricardo Inke passaram a se dedicar à arte quando moravam no alto da
Mantiqueira, em São Bento do Sapucaí. Não obstante, a constatação dos limites para a
comercialização e o potencial que se desenvolvia em Paraty suscitou o projeto de
mudança, concretizado em 2004. Marília pinta em acrílico sobre tela ou fibra de
bananeira e Ricardo trabalha com aquarela; ambos devotos da paisagem local, em vistas
do casario e dos monumentos, ou em detalhes de elementos extraídos do ambiente
paratyano. Convém notar que Ricardo Inke tem se dedicado ao fomento das artes, na
organização de eventos como o Festival dos Artistas de Paraty (FAPP, 2006) e os
Encontros Internacionais de Aquarelistas (iniciados em 2009). Ambos eventos
organizados em colaboração com o artista Luis Angel Garcia, da galeria Navegare Art.
O aquarelista e músico José Andreas também participou desses eventos e, pessoalmente,
está empenhado em projetos que contam a história do Brasil através de imagens de
aquarela em eventos musicais públicos.
Lauro Monteiro formara-se engenheiro, mas, devido à predileção para as artes
plásticas, abriu o estúdio Varanda em Araraquara (SP), cidade onde foi Secretário de
Cultura. Pouco após o término de sua gestão, em 2006, transfere o estúdio para Paraty,
instalando-o na rodovia Cunha-Paraty. Trabalha com coleções temáticas, em diálogo
com a arquitetura e a decoração e apresenta figuras de cores vivas, em elementos
extraídos da cultura brasileira.
O jogo da mimesis
Em entrevista ao pesquisador, Sérgio Atilano chamou a atenção para as formas de
uma composição em gravetos de madeira corresponderem ao calçamento das vielas de
Paraty. Na intuição de Luiz Costa Lima (1995, p. 31), refletindo sobre a inter-relação
entre a poesia cabralina e a atividade de pintores contemporâneos, ao afastarem-se da
ornamentação e da figuração, “a abstração era um modo de conquistar o concreto”.
Mesmo no limite das formas em movimento de Renata Rosa, na recusa à
referencialidade, retoma-se a questão desenvolvida por Gadamer sobre a atualidade da
mimesis.
142
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Luiz Costa Lima foi, dentre os brasileiros, aquele que melhor apresentou a
contribuição da mimesis para a compreensão das imagens contemporâneas. No contexto
da arte, esse conceito versou sobre a imitação da natureza até o final do século XVIII,
quando os românticos, em nome da expressão, anunciaram o seu fim. Porém, com sua
retomada, Costa Lima (1989, p. 268) afirma: “ao invés de ser o correspondente (não
importa quão distante ou aproximado) à voz latina da imitatio, haveria de ser pensada
como um fenômeno produtor de diferença.”
Outra contribuição importante sobre esse tema foi fornecida por Michel Ribon
(1991), que em seu ensaio sobre arte e natureza diria: “Se a obra nos toca tão forte, é
porque, no final das contas, ela é a mimesis da nossa condição humana: eis aí sua
dimensão de universalidade” (p. 80). Para chegar a essa afirmação, Ribon procedeu à
revisão da arte como imitação da natureza, da arte como imitação da subjetividade do
artista e, ainda, da arte como imitação da própria arte.
O exercício da imaginação, entre a percepção e a criação, sempre impôs às formas
da natureza um processo de abstração na confecção da imagem. Toda arte, mesmo
figurativa, opera um trabalho de abstração, uma constante do espírito humano, que
movimenta o mundo das formas: “o real é renitente; na arte abstrata, o mundo exterior
está presente não apenas como vazio e ausência mas também na textura do suporte
material da obra e nas suas massas coloridas” (Ribon, 1991, p. 74).
O termo imitação desapareceu do campo da crítica e da historiografia mais que
dos domínios da estética, afirmou Alberto Tassinari (2001, p. 56), ao formular sua
proposição acerca do “espaço em obra” para a arte do século XX. O naturalismo é
apenas uma das formas de imitação. Fora desta concepção, a imitação pode ser
percebida em uma imagem sacra medieval, ao tornar presente um ser ausente, também
em uma escultura ioruba pode despertar a presença da divindade de modo intenso: “A
relação entre o imitante e o imitado só mostra corretamente o grau de presentificação do
imitado quando a obra está inscrita em práticas culturais de uma determinada
sociedade” (p. 61) No espaço em obra da arte moderna, a proximidade entre imitado e
imitante é menor, o espectador não encontra suporte na imitação nos processos naturais
da visão, nem em processos mágicos e religiosos. Além disso, a distinção entre o espaço
em obra e o espaço naturalista deve-se ao primeiro imitar o seu fazer por meio de sinais,
ao passo que o espaço naturalista imita por meio de imagens.
Acerca da sugestão de Costa Lima sobre ser a mimesis um fenômeno produtor de
diferença, no contexto da produção de imagens em cidades turísticas, será necessário
143
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
um outro estudo. Aqui não se pretende aprofundar todas as relações possíveis no plano
político, econômico e estético das imagens de arte em Paraty, tampouco apresentar uma
história detalhada, com a totalidade dos artistas. Em uma coletividade tão extensa,
muitos nomes e práticas não puderam ser contemplados. À guisa de conclusão, cabe
sintetizar os procedimentos do método e a observação das imagens de arte, visando a
contribuir em pesquisas futuras dedicadas ao mundo das imagens em localidades
turísticas, bem como em comunidades de artistas que emergem em bairros de grandes
cidades ou, ainda, em espaços compartilhados sem uma geografia precisa.
A compreensão das imagens de arte em Paraty emerge dos dois procedimentos
principais, a observação do espaço social e a descrição dos processos temporais,
primeiramente, com a delimitação de espaços plásticos ou visuais, denominados a partir
de índices originários do fenômeno. Considerou-se estes índices em termos de
categorias, as quais são ao mesmo tempo perceptivas e cognitivas, a partir de então
integradas em relações, visando às estruturas de significado dispostas em rede no
processo histórico.
Nesse âmbito, visualiza-se na longa duração os pintores de estandartes religiosos e
outras manifestações populares, difundidas até a metade do século XX: seu trabalho
remonta à tradição ibérica e recebeu novo alento com as atividades turísticas. A
monumentalização do espaço urbano e edifícios históricos, entre 1940 e 1966, marca o
início da produção de imagens operadas pela ampla categoria de imitação, dentro da
qual estão inscritas em três subcategorias articuladas: “documental”, “pitoresco” e
“paisagístico”. As décadas de 1990 e 2000 foram descritas aqui em termos de
“diversidade”, com o grande afluxo de artistas para a cidade, a ampliação do mercado
consumidor, o incremento das atividades turísticas e a ocupação de casas de veraneio no
litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Começam a acontecer festivais de artes, em 2001
na Galeria Flamboyant, e, em 2005 e 2006, os Festivais de Artes Plásticas de Paraty.
Em maio de 2006 foi realizada uma exposição na Pinacoteca da Câmara Municipal de
Paraty, com leilão de obras cuja produção ficou a cargo de Hans Hornig.
Para concluir, pode-se observar a abertura de novas significações no espaço visual
e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo imagético em continuidade com as
formas tradicionais. Notou-se imagens absolutamente novas, a exemplo de Renata Rosa,
em pinceladas abstratas, nas quais densidade e movimento da cor são notáveis, ou com
Sérgio Atilano, cuja expressão plástica vincula política e arte. Esse espaço visual da
diversidade contém práticas de abstração, novas figurações, impressionistas,
144
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
expressionistas e iniciativas propriamente contemporâneas. No plano da técnica, foi
interessante registrar a tendência ao uso da tinta acrílica sobre suportes variados, com
ênfase na tela.
Em movimento polar à diversidade, a tensão é estabelecida com a continuidade de
categorias remanescentes, sobretudo, pela força figurativa dos elementos paisagísticos
provenientes do ambiente paratyense: a serra, o mar e a cidade; a fauna e a flora; o
casario e as igrejas; as marinas e os pescadores. No decorrer desta narrativa o conceito
da mimesis, tal como proposta por Gadamer e Costa Lima, demonstra sua atualidade e
solicita aprofundamentos na compreensão de sua pertinência na vida social
contemporânea. Além disso, instiga a compreender o significado das imagens nas
cidades turísticas, quando o sentido documental deixa de ser frequente, mas a categoria
do pitoresco persiste e ganha novas formas e cores.
145
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
9. Sobrevivência da paisagem na pintura
Imagem e paisagem
Imagens de paisagens estão em todos os lugares. No visor de celulares, no desktop
de computadores, em outdoors, nas novelas e documentários televisivos, nos filmes, em
diversos sites da rede mundial de computadores –, sobretudo naqueles que
comercializam viagens e turismo –, nas paredes de restaurantes, em lojas de cidades
turísticas, nos consultórios de advogados, dentistas e médicos. A lista não tem fim e,
desde o início, instala um paradoxo. O mundo dentro da imagem, a referência ao mundo
dentro do próprio mundo. A pintura da paisagem na paisagem da cidade; o jogo da
mimesis.
Não obstante a anunciada decadência do gênero paisagístico na pintura, um grupo
expressivo de pintores da atualidade dedica-se a ele. Quando se percorre uma cidade
turística como Ouro Preto, Paraty ou Olinda tem-se diante do olhar diversas
manifestações artísticas, de esculturas a bordados, de mosaicos a poemas e
performances. Em algumas delas, o grande número de pinturas salta aos olhos e, quando
nos detemos sobre essas imagens, é notável a grande quantidade de paisagens.
A imagem de uma paisagem pictórica em uma viela da cidade de Paraty é muito
corriqueira para intrigar o espectador sobre o jogo de ilusões. A mesma alienação vale
para todas as outras formas da paisagem que cruzam o campo da percepção na vida
cotidiana. Porém, no espaço plástico da tela está inscrita uma questão histórica de longa
duração. Para além dos estudos da estética e da história da arte, no campo da psicologia
social a duração das imagens coloca-se como questão fundamental, pois articula a
percepção, os processos da cognição e da memória com a experiência da vida social.
Ao estudar a atividade dos artistas nas cidades turísticas francesas, Lajarte (1995,
p. 42) insiste no fato de a natureza não ser abandonada na arte do século XX,
aparecendo em movimento nos futuristas, em formas estruturais nos cubistas, em uma
dimensão oculta nos surrealistas. Recentemente, ocupou os espaços da arte ambiental,
146
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
da Land art ou da Earth art. O que desapareceu do centro do campo artístico foi a
forma do gênero paisagístico do século XIX, baseada na concepção retiniana e na
perspectiva clássica. Não obstante, na França, a paisagem acadêmica sobreviveu na
costa da Normandia, em Barbizon e Auvers sur Oise, cidades turísticas que se
desenvolveram em grande medida com a atividade de artistas viajantes ou residentes.
Mas qual o significado dessa imagem paisagística?
Estudos sobre paisagens têm recentemente circunscrito pesquisas elaboradas no
cruzamento de três referências: o simbólico, o iconográfico e o ambiente geográfico.
Nessa linha, por exemplo, foi organizado o volume de Cosgrove e Daniels (2000),
intitulado The iconography of landscape, especialmente enfocando as relações entre a
representação simbólica e os usos de “ambientes históricos”. Os organizadores afirmam
que a paisagem é uma imagem cultural, o meio de representar ou estruturar
simbolicamente os lugares.
As montanhas, as praias, as cidades históricas, as igrejas, os casarios e as ruas
estreitas são objetos culturais, não apenas coisas físicas: são inscritos em processos
sociais que envolvem aqueles que se percebem na constituição do mundo. A paisagem
constitui-se assim como uma experiência cultural, tal como afirmou Ulpiano Bezerra de
Meneses (2002b). É algo material que se dá à percepção, mas não como um dado a
priori, dispõe-se numa relação entre observador e objeto. Portanto, não se deve pensar a
percepção de modo realista, supondo uma materialidade e objetividade morfológica da
paisagem, tampouco de maneira idealista, como projeção do observador. Por essa razão,
pode-se falar que a paisagem, a montanha, o casario, a cidade, têm história, constitui-se
como experiência sensória, a qual poderá elevar-se ao plano da estética (Meneses,
2002b, p. 32).
Nas cidades turísticas, a história da percepção considera as práticas turísticas,
lembrando o conhecido livro de John Urry (1996) a mostrar a produção social do olhar
do turista em relação à propaganda, à literatura e à cultura de massa. Além disso, a
experiência perceptiva é modulada, histórica e culturalmente, entre outras fontes, por
modelos artísticos (Roger, 2000, p. 37). A história da percepção fornece ao pesquisador
uma série de “categorias” que nomeiam experiências sensíveis, da percepção e da
cognição, por intermédio de imagens pictóricas. Baxandall (1991, p. 48) considerou tais
categorias como classificações dos estímulos visuais numa dada experiência sóciohistórica, expressando em palavras a constituição de formas de perceber no interior de
147
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
campos sociais como indícios de experiências intersubjetivas entre processos
perceptivos de artistas, de espectadores, de viajantes e de turistas.20
Paisagem, pintura e história
Observando o espaço brasileiro, desde a exploração da América portuguesa,
amplia-se como fundo da cena histórica, ao atingir um ponto alto no século XIX, o
reconhecimento do gênero paisagístico, no qual é a própria paisagem o tema e o objeto
próprio do pintor, emancipando-se do cenário e do fundo de outros temas privilegiados.
As relações com o espaço plástico europeu não são sincrônicas, tampouco diretas na
constituição dos significados. Toda a ebulição no campo artístico das “vanguardas
históricas” teria importantes consequências para o tema paisagístico, uma história
relativamente bem conhecida, sobre a qual farei apenas alguns apontamentos.
Em olhar retrospectivo, para a América portuguesa, a paisagem pictórica ocupava
o segundo plano na pintura religiosa. No retábulo da sacristia da igreja dos jesuítas de
Embu (SP), atrás de um Cristo crucificado, uma paisagem urbana apresenta série de
construções de três pavimentos, pontuadas de torres, sob um céu carregado de nuvens.
Nas imitações de azulejos das igrejas mineiras, as paisagens pastoris também se fazem
notar. Eram cenários sobre os quais as cenas principais se desenvolvem-se, e os
elementos desses ambientes em geral versam sobre paisagens europeias extraídas de
gravuras.
No dicionário da pintura brasileira de Teixeira Leite (1999), o primeiro paisagista
a figurar em nossa história foi o holandês Franz Post (1612-1680), chegado a Recife em
1637, durante o governo de Maurício de Nassau. Ao qual seguiram outros holandeses,
como Albert Eckhout (1610-1666), que esteve também na Bahia e no Chile. Alguns
traços significativos são notados, por exemplo, no ex-voto de Agostinho Pereira da
Silva, onde as “prodigiosas mercês” estão ambientadas em uma natureza tropical, e no
painel do Convento de Santo Antônio de Igaraçu (PE), no qual São Francisco de Assis
prega aos pássaros envolvido pela natureza do país. O autor focaliza sobretudo a pintura
na qual a paisagem contenha elementos referidos à terra brasileira, demonstrando uma
20
De modo geral, os termos enunciados estão associados à experiência estética, tais como sublime,
pitoresco, encanto, trágico, entre outros (Tatarkiewicz, 1992). Neste sentido, está-se considerando não
apenas os termos seu uso restrito, mas como indicativos de experiências psicossociais.
148
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
transformação no objeto da imitação, durante longos anos baseado em cópias de missais
e gravuras do Velho Mundo.
Os pintores holandeses do período de dominação holandesa no Nordeste são
determinantes nos estudos históricos pela documentação que suas obras representam.
No aspecto estilístico pouca ou quase nenhuma influência teriam no transcorrer da
história da pintura na América portuguesa, então circunscrita às trocas com a metrópole.
De modo geral, o paisagismo da pintura ingressa como gênero no Brasil nas
primeiras décadas do século XIX, desde as atividades de pintores como NicolasAntoine Taunay em suas paisagens da cidade do Rio de Janeiro, e também Adrien-Aimé
Taunay e Félix-Émile Taunay. Ao lado destes, Jean-Bapiste Debret elaborou seus
estudos da natureza, da fauna e da gente, elementos inscritos em paisagens de rigorosa
composição clássica, como se nota em Rugendas. Segue-se essa toada com outros
viajantes estrangeiros a percorrer estas terras durante toda a primeira metade do século,
em registros preciosos das vilas e regiões visitadas, a exemplo do extenso material
visual do catálogo organizado por Ana Maria Belluzzo (1999).
As imagens produzidas por viajantes estrangeiros no Brasil eram, por um lado,
modeladas pela experiência de viagens europeias, notadamente à Itália, e, por outro
lado, introduziam modelos de percepção para as paisagens brasileiras. Belluzzo (2008)
exemplifica essa situação indicando o interesse pelas pequenas capelas nas colinas,
entre elas a carioca Igreja da Glória do Outeiro. Para a historiadora, estas formas de
perceber não apenas derivam de critérios convencionais, como promovem convenções,
reproduzidas ao longo do tempo em outros suportes, a exemplo dos cartões postais.
Estas e outras imagens que recheiam os manuais de história da arte brasileira
fazem daquele século, em grande parte, o século da paisagem pictórica. Com o italiano
Nicollò-Antonio Facchinetti (1824-1900), em sua série da Mantiqueira, tem-se a
paisagem como tema central, em vastas áreas montanhosas sob céus iluminados.
Na citada cronologia de Teixeira Leite (1999), têm-se os trabalhos de Sousa
Lobo, Georg Grimm (chegado ao Brasil em 1874) e Arsênio Cintra da Silva, entre os
primeiros pintores ao ar livre no país. Em 1861, Sousa Lobo,
associado ao escultor Almeida Reis, fundara no Rio de Janeiro uma
sociedade de artistas – o Acropólio – em cujo programa achava-se a
interpretação direta da natureza, sem recurso às cópias preliminares
d'après nature (recurso utilizado por Facchinetti, por exemplo). A
própria Academia, desde 1865, passara a exigir de seus pensionistas
na Europa que lhe remetessem, no primeiro ano de permanência,
estudos do natural.
149
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Nesse sentido, foi significativa também a primeira bolsa de viagem à Europa concedida
a um pintor paisagista, Agostinho José da Mota: “Retomando ao Brasil, levava seus
alunos da Academia a fixarem os pontos pitorescos das cercanias do Rio de Janeiro.
Infelizmente, pouco produziu, mesmo porque teve vida curta, falecendo em 1878 com
apenas 54 anos”.
São muitos os nomes cuja enumeração seria desnecessária e a leitura dos
historiadores da arte informa as particularidades e projetos estéticos de cada um.
Antônio Parreiras, Castagneto, Henrique Bernardelli, Pedro Alexandrino, Almeida
Júnior, Benedito Calixto, cada qual a seu modo, manteve o gênero paisagístico em alta
no Brasil no início da República. Campos, marinas, vilarejos, recantos bucólicos
preenchem os quadros dedicados à paisagem.
Das viagens românticas à figura do artista marginal, no espaço europeu,
estabeleceu-se uma prática artística ligada à vivência íntima da natureza, em uma
espécie de comunhão, para a qual a imagem da paisagem tornou-se uma mediação.
Têm-se notícias de excursões, nas quais o culto à natureza aparece associado ao
nudismo e a práticas artísticas, em alguns casos ao vegetarianismo e a estações de cura.
O movimento em direção ao outro da cultura europeia, na África e na Oceania, trouxe a
figura humana para o centro da composição, em suas diferentes formas e expressões. No
espaço plástico, tais experiências conduziram ao surgimento da chamada “paisagem
decorativa”. A paisagem decorativa abandonou a referencialidade: não se precisava
reconhecer o lugar, formando-se uma imagem esquemática ou abstrata:
pensava-se que os pintores fauves desenvolviam uma forma de
paysage décoratif (paisagem decorativa) a qual, argumentou Roger
Benjamin, parece “ter sido uma adição modernista à divisão
acadêmica tradicional entre a paisagem histórica (paysage historique)
com figuras em ação heroica e a paisagem rural (paysage champêtre)
com seu cenário rural mais intimista” [...]. Para críticos da época, a
paysage décoratif era aquela na qual o tema não precisava ser um
lugar reconhecível; era vista crescentemente como um meio para um
fim mais “decorativo”. Nesse contexto, o adjetivo “décoratif”
significava uma imagem esquemática ou abstraída, e podia ser ligado
a conceitos de barbare ou naïf, quer esses termos fossem usados
pejorativamente, quer como medida do estatuto inovador da obra.
(Perry, 1998, p. 50)
Nas idas e vindas entre a Europa e o Brasil, formou-se entre nós todo um
imaginário da paisagem pictórica no qual se encontram variações de técnica e estilo,
sem, no entanto, grandes rupturas com o espaço plástico clássico até a segunda década
150
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
do século XX. Belmiro de Almeida, por exemplo, aventurou-se no pontilhismo, Eliseu
Visconti dialoga com o impressionismo, Artur Timóteo oferece paisagens em cor e luz
próximas ao pós-impressionismo, assim como Viegas de Toledo Piza sofreu influências
de Cézanne. Mesmo no plano da temática encontrar-se-á um Interior bretão pintado por
Presciano Silva. A cultura do bretonismo antecede, nos pintores brasileiros, a
articulação entre paisagem e memória decisiva na produção de Tarsila.
Os chamados modernistas da primeira geração perturbaram um pouco mais o
espaço plástico da paisagem, quando lhe colocam questões, porém, sem destruí-lo. Em
Tarsila do Amaral, é notável a oposição entre a temática urbana industrial e o vilarejo
histórico e campestre. De volta ao Brasil, em 1919, Goeldi falou que “sentia-se mais ou
menos como Gauguin na Ilha” (citado por Zílio, 1997, p. 45). A realização artística de
Osvaldo Goeldi deveu-se, em grande parte, a sua atenção para as pessoas dos subúrbios,
vagabundos e comunidades de pescadores. Diferentemente de Tarsila, seu processo
pessoal não obedeceu a um movimento contra-aculturativo em busca da síntese
antropofágica, uma vez que promove um questionamento renovador no interior do
expressionismo, utilizando aquilo que Zílio (1997, p. 45) chamou de um “dispositivo de
descentramento”, ou seja, “situar as questões trazidas do centro a partir de um ponto de
vista da margem”. O Grupo Bernardelli propunha passeios pelos arredores do Rio de
Janeiro e os membros do Grupo Santa Helena excursionaram pela periferia paulistana,
então notável em seus arrabaldes campestres.
No intuito de retomar o discurso acerca do “declínio do gênero paisagístico”,
pode-se citar mais uma vez a obra de referência de Teixeira Leite (1999):
Os paisagistas brasileiros que trabalharam após 1922 postaram-se com
frequência à margem dos movimentos de vanguarda, e às vezes
deliberadamente dando-lhe as costas. Alguns desses paisagistas foram
individualistas ferrenhos, trabalhando em isolamento; outros
pertenceram a grupamentos, como o Núcleo Bernardelli, do Rio de
Janeiro, ou o Grupo do Santa Helena, em São Paulo. Finalmente, após
1951, com a gradativa internacionalização da arte brasileira coroada
pela Bienal de São Paulo, a praxe foi o abandono ostensivo da
paisagem por parte dos artistas mais jovens, continuando a praticá-la
somente pintores de gerações mais velhas.
No catálogo da mostra 50 anos de paisagem brasileira (MAM-SP, 1956), consta:
Os clássicos, românticos e realistas dominaram a paisagística
brasileira até por volta de 1922. Os mestres de então legaram-nos um
magnífico documentário entremeado de obras de excelente qualidade,
dignas de figurar entre as que, na mesma época, se apresentavam nos
salões oficiais e oficiosos da Europa.
151
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
O marco paulista de 1922 é apenas esquemático, uma vez que a pintura de paisagem
continuou prática corrente em alguns artistas até a década de realização da mostra. Não
obstante, a demarcação de períodos, de ascensão e queda do gênero, é indicativa do
processo de significação do campo artístico. Observando esse catálogo, tem-se um sinal
sobre os rumos da paisagem: “Muito curiosa e mesmo rica de sugestão foi a produção
dos chamados primitivistas ou ingênuos. Juntando amiúde à paisagem cenas de festas e
cerimônias religiosas ofereceram à arte brasileira uma nota realmente original.” (50
anos de paisagem brasileira, 1956)
Sustentando essa configuração, Theon Spanudis (1964) sintetizou a paisagem
tipicamente na pintura moderna, tanto em Tarsila do Amaral quanto em José Antônio da
Silva. Neles encontrou “a paisagem sintetizada e exaltada das terras férteis e tropicais”
que, apesar das diferenças, têm em comum “algo de épico e exaltado”: “A exuberância
da vegetação e dos coloridos, a exaltação dos sentimentos perante estas festividades da
natureza, são típicas em ambos os artistas” (p. 82).
O assinalado fim da pintura paisagística foi, na verdade, uma passagem do gênero
entre grupos sociais distintos. Ali estavam penduradas telas de José Antônio da Silva, a
reforçar o ingresso do pintor popular no campo artístico, sob uma designação: naïf,
ingênuo ou primitivo. Noutros espaços expositivos, apareciam manifestações ligadas à
experiência da loucura, na pesquisa do inconsciente dos surrealistas e na valorização da
produção originária dos hospitais psiquiátricos e na posição anti-cultural da Art Brut,
paisagens fabulosas de criadores de origem popular como Aloïse, Adolf Wölflin e o
médium pintor Augustin Lesage. No Brasil, tal abertura expôs ao público as belas
paisagens de Emydgio de Barros e Aurora Cursino, entre tantas outras “ingênuas” ou
“surreais”. Por essa via, a pintura paisagística sobrevivia, mas em um movimento
excêntrico ao campo artístico.
Mais recentemente, uma recuperação do gênero pode ser sentida em alguns pontos
do campo artístico. Frederico Morais (1995, p. 10) indicou:
passado o período áureo da abstração, a figura retorna, mas a “nova
paisagem” nada mais tem a ver com a observação da natureza: no
máximo ela evoca sentimentos ou emoções. O pintor não se coloca
mais devant la nature, mas devant la peinture, ela mesma. Suas
paisagens são puras invenções. Conceitos.
Dentre os artistas referidos, encontram-se Sérgio Fingermann, Cláudio Tozzi e Gregório
Gruber.
152
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Ao pesquisador que não se restrinja às hierarquias do campo artístico, ao que é
nomeado “verdadeira” ou “maior” arte, projetando o olhar para um campo mais
expandido do que aquele circunscrito pelo discurso e pelas relações de poder,
encontrará uma produção pictórica instigante nas cidades turísticas. Esta pintura é
imediatamente descartada pela crítica especializada, por representar uma sobrevivência
tardia de práticas superadas historicamente, ou meramente designadas de “arte
turística”, objetos destinados ao consumo no mercado do turismo.
Turismo, história e arte no Brasil
Comparativamente à Europa, o turismo no Brasil ainda é uma atividade recente e
seus pesquisadores não atentaram para as dimensões entre o desenvolvimento histórico
desse campo e as diversas articulações com as imagens de arte. A organização
empresarial das práticas turísticas data dos anos 1950, quando foram notadas as
primeiras vendas de pacotes que incluíam passagem, hospedagem e passeios num
mesmo produto. Antes disso, percebia-se a operação de viagens pelo Brasil, a partir das
primeiras décadas do século XX, através de roteiros marítimos que margeavam a costa e
visitavam cidades como Salvador, Recife e Porto Alegre, entre outras.
A história do turismo solicita uma correspondência à história econômica da
organização empresarial para a exploração econômica dos deslocamentos humanos,
bem como a apreensão cultural do fenômeno do deslocamento na experiência das
viagens, no sentido do movimento dialético das viagens – invenção de distinção de
lugares e práticas, seguida da consagração por grupos socioculturais dominantes, e
depois a difusão (Boyer, 2002, p. 393). Não é esse o objetivo deste estudo. Aqui tem-se
como eixo tão-somente a articulação do fenômeno do turismo às imagens de arte,
particularmente à pintura de paisagens.
De modo esquemático, poder-se-ia dividir essa história em quatro momentos
articulados. (1) Do século XIX até primeira década do século XX: circulação de
viajantes estrangeiros pelo Brasil com fins científicos, início de viagens mais regulares
de filhos das elites brasileiras para estudos no exterior. (2) Primeira metade do século
XX: um “turismo eventual”, sem organização e regularidade nos pacotes,
principalmente voltado para a venda de passagens de navios para o exterior, com a
intensificação da prática das elites em enviar seus filhos para a Europa; viagens
153
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
nacionais principalmente via marítima. (3) Entre os anos de 1950 e 1970, “organização
empresarial do turismo”, com os primeiros pacotes regulares e incremento dos produtos,
com a inclusão, ainda tímida, do transporte aéreo – a criação da EMBRATUR data de
1966. (4) Dos anos 1980 aos nossos dias difundem-se as viagens rodoviárias e aéreas,
notam-se forte ampliação da oferta hoteleira, seleção rígida de pontos de interesse e
padronização do consumo turístico.
A procura de pacotes turísticos que tenham a arte, ou mesmo o patrimônio
histórico, como atrativo primário é restrita no Brasil, não obstante o seu crescimento na
última década, sobretudo se incluirmos os espetáculos teatrais e musicais. A arte
aparece, em grande parte, como atrativo secundário, completando a estadia do grupo
mobilizado por outros motivos.
Os roteiros mais comercializados no país em que a arte ocupa lugar de destaque,
como as “cidades históricas de Minas” ou, em menor escala, as “Serras Gaúchas”, ou
talvez os museus e galerias paulistanas, carecem ainda de uma investigação mais precisa
por parte da psicologia social. No caso dos “centros históricos”, sabe-se sobre a busca
de um ambiente distinto daquele em que vive o cotidiano, que seja identificado com
certo bucolismo. Depois, em menor número, encontramos os leigos interessados em
ampliar seus conhecimentos sobre a história e a arte do país, ao mesmo tempo em que
desfrutam de uma viagem de descanso, aqui incluído grupos de escolares. Por fim,
aparece o reduzido público especializado (artistas, historiadores, arquitetos etc.) que
viaja em excursões de escolas e universidades, ou individualmente, com a finalidade
primeira de conhecer aspectos culturais de seu interesse.
A questão está no jogo entre a imagem do país no cenário internacional, como
base para um desenvolvimento geral do turismo, e a imagem do país para os seus
habitantes, no crescimento e valorização do turismo interno. Apenas para resumir o
estudo minucioso de Luiz Gonzaga Trigo (1998), no caso do Brasil, a construção de
imagens deu-se de várias formas, desde as pesquisas de antropólogos europeus sobre os
índios amazônicos até a de alguns governos que implicitamente reforçam a
representação da sedução da mulher brasileira, do futebol e do carnaval. A imprensa
internacional também cumpre o seu papel, noticiando sobre os problemas da floresta
tropical ou sobre a criminalidade no Rio de Janeiro.21
21
“Graças à criminalidade e à má imagem do Brasil (especialmente do Rio de Janeiro) no exterior, vários
estados estão investindo em publicidade, mas desvinculando-a da imagem tradicional, ligada à antiga
‘cidade maravilhosa’. É o caso da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e outros seis estados do Nordeste,
154
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Deixando de lado esta problemática para focalizar o objeto deste estudo, a
imagem de arte, cabe lembrar que a articulação entre o turismo e a arte no Brasil se
estabeleceu entre o modernismo e a formação da categoria de “barroco”. Como
demonstrou Andriolo (2009 e 2010), as viagens de intelectuais paulistas em busca de
referências estéticas para a uma história da arte brasileira conduziu-os a Minas Gerais,
onde as edificações, esculturas e pinturas do século XVIII foram inicialmente
identificadas como origem de nossa arte, dos quais são exemplares os escritos de Mário
de Andrade e Lourival Gomes Machado. Nesses dois autores, e entre tantos outros nas
duas gerações do modernismo, o barroco mineiro emerge como objeto estético e
atrativo turístico.
Imagem pictórica das cidades históricas brasileiras
Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das
“cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas
publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua
vez, os poderes públicos locais, sobretudo nas antigas cidades de exploração aurífera em
Minas Gerais, apropriaram-se da função social das imagens de arte. Para além das telas
famosas de Guignard, outros artistas relevantes participaram da história da arte nas
cidades turísticas.
Ao estudar a formação do campo artístico no Brasil, José Carlos Durand (1989)
notara as inter-relações entre as práticas artísticas, o turismo e a defesa do patrimônio
histórico. Em abordagem sociológica, examinou o quanto a valorização da cultura
material das cidades remanescentes do século XVIII e a proposição de uma arte
nacional na categoria de “barroco” fomentou o surgimento de um circuito de viagens e
estimulou o comércio de obras de arte antigas e contemporâneas, notadamente a pintura.
Diversos aspectos dessas cidades converteram-se em temas inesgotáveis em pinturas.
Ouro Preto é o exemplo mais famoso do Brasil, assim como a primeira cidade a
estabelecer-se nessa articulação entre a produção de um passado artístico nacional e a
prática artística contemporânea (Andriolo, 2009b).
que fortaleceram a Comissão de Turismo Integrado (CTI) do Nordeste para veicular a imagem da região
no exterior. Durante o início da década de 1990, a CTI Nordeste investiu centenas de milhares de dólares
no exterior para atrair visitantes para a região.” (Trigo, 1998, p. 33)
155
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Embora as ligações entre essas pinturas e o desenvolvimento do turismo sejam
notáveis, tratá-las como objetos destinados ao mercado turístico seria um equívoco e
resultaria em incompreensão acerca do lugar das imagens na sociedade brasileira. Além
da relação com o olhar do turista, os pintores propõem olhares sobre a paisagem. Carlos
Bracher, por exemplo, vive em Ouro Preto desde 1971 e diversas pinturas suas
transformam a cidade em imagens, as quais podem ser vistas em séries no livro de João
Adolfo Hansen (1998). Carlos Scliar morou na mesma cidade e, como seu colega, não
se limitou à temática local e tampouco destinou suas obras ao consumo do turismo.
Ambos encontraram na cidade um ambiente importante de trabalho e elementos para
suas composições. No catálogo da exposição Scliar, a persistência da paisagem (1991),
pode-se ver as fotografias de seu ateliê, bem como o Políptico: Ouro Preto 180º, de
1973 (vinil encerado, com 10 módulos, 65x100 cm cada).
Poder-se-á esboçar conexões entre os artistas circulando pelas diversas cidades
históricas e turísticas brasileiras, criando um imaginário artístico compartilhado. Uma
artista viajante a percorrer as cidades históricas foi a pintora Djanira da Motta e Silva.
Nascida em Avaré (SP), no ano de 1914, trabalhou sobre paisagens tanto em Paraty
quanto em Ouro Preto. Na primeira, chegou a morar na década de 1950, quando
adquiriu um sítio com o marido, o historiador José Shaw da Motta e Silva. Mário Barata
(1985, p. 20) considerou que a pintora “encantou-se com o bucolismo e os horizontes de
Paraty”. De Ouro Preto, tem-se a imagem da Igreja de Antônio Dias (1955, óleo s/ tela,
51x61,3 cm, MNBA, Rio de Janeiro, RJ), em registro frontal do monumento, com a
paisagem ao redor sintetizada em formas geométricas e cores laranja, ocre e marrom.
Em sua ampla produção, a experiência da arte e da arquitetura coloniais resultará em
estudos de iconografia católica, seja na forma de azulejos, seja em pinturas e desenhos
de figuras sacras.
A pintura de paisagens pode ser vista nas telas de Omar Pellegatta a visitar
cidades como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, São João del-Rei, Sabará e Paraty.
Nesta última localidade, realizou trabalhos focalizando aspectos urbanos, sobretudo,
destacando arquitetura religiosa e casario. As cores representam um componente
importante da composição, sobretudo em janelas e portas, amarelas, verdes, azuis, mas
também nos detalhes desgastados dos edifícios, que em tons esverdeados ou
amarronzados reforça uma categoria temporal.
Outro exemplo, Arnaldo Navajas Filho (nascido em São Paulo, 1943) iniciou sua
carreira com trabalhos no Parque do Ibirapuera, depois pintou representações das
156
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
cidades de Embu e Santana de Parnaíba (SP). Navajas Filho frequentou as aulas de Ado
Malagoli, no III Festival de Inverno em Ouro Preto, em 1974, produziu uma série de
óleos e aquarelas e realizou exposições em Ouro Preto e Belo Horizonte dedicadas ao
“barroco”. Márcio Franco (nascido em Lagoa Santa, MG), visitou tanto os ateliês
quanto os festivais de Ouro Preto, durante a década de 1970, nos quais pôde
desenvolver sua técnica. Depois, participou de atividades na escola de artes do Parque
Lage, no Rio de Janeiro, e dos cursos da UFMG, para então fixar-se em Paraty, no ano
de 1982. Sua linguagem elabora temas tropicais, da fauna e da flora, aplicados a grandes
formatos. Nas estadas em Ouro Preto, Márcio Franco conheceu a técnica de Carlos
Scliar. Face aos vínculos com as cidades históricas de Minas, poder-se-ia citar também
Helen Navajas, natural de São Paulo (SP), viveu em Ouro Preto antes de mudar-se para
Paraty.
Nas primeiras décadas do século XX, em São Paulo, a cidade colonial ganhava
forma em pinturas na proposta do Museu Paulista, então dirigido por Affonso Taunay.
O diretor dessa instituição foi o responsável pela contratação de artistas como Benedito
Calixto, José Wasth Rodrigues e Henrique Manzo para a realização de imagens de uma
cidade estacionada no tempo. As paisagens dessas cidades foram construídas a partir
das fotografias de Militão de Azevedo. Não se trabalhou em cópias idênticas, mas, sem
grandes alterações, enaltecia-se os detalhes, fazendo da imagem de uma São Paulo republicana um retrato da cidade colonial: “uma cidade vazia, estável, sem quaisquer
sinais de crescimento ou mudanças” (Lima & Carvalho, 1993, p. 156). Dentre os artistas
estava José Wasth Rodrigues, que se dedicou a retratar meticulosamente o patrimônio
brasileiro, a exemplo do livro Documentário arquitetônico (1944), e foi chamado de
“grande artista do turismo” (O Estado de São Paulo, 05 maio 1957, p. 21).
Além de promover a realização daquelas pinturas em nível local, Taunay
participou do processo de valorização de Ouro Preto quando, em dezembro de 1925,
passou três dias na antiga capital de Minas: “… contemplou do ‘adro de São Francisco
de Paula’, na hora de uma da tarde merencória de Dezembro passado, o aspecto solene
do cenário ouro-pretano e o gravou no excelente e lindo escrito que hoje a ‘Tribuna de
Ouro Preto’, agradecida em nome da cidade, por cujos interesses vive, transcreve do
‘Correio Paulistano’.” Adiante, afirma o periódico:
Ao que sabemos incumbiu o ilustre historiador a um célebre pintor
nacional de confeccionar um grande painel para ser colocado no
vestíbulo do Museu Paulista e nesta tela, aproveitando-se de
fotografias que possui de Ouro Preto e do conhecimento pessoal da
157
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
topografia local, figurarão partes da nossa cidade, cujo pitoresco
aspecto todos admiram. (Tribuna de Ouro Preto, 21 mar. 1926, p.3)
Na origem, têm-se dois componentes importantes na formação da imagem
pictórica das cidades históricas: 1) a representação da arquitetura e do espaço urbano
colonial sem sinais de mudança; 2) a referência à paisagem colonial em termos de
“pitoresco”.
Oswald de Andrade, através do movimento pau-brasil, divulgou as imagens
captadas na famosa viagem de 1924. O “Manifesto da poesia pau Brasil” foi publicado
primeiramente no Correio da Manhã, dia 18 de março de 1924, logo depois do retorno.
Tarsila do Amaral, desde sua viagem à França, demonstrava preocupação em usar os
remanescentes da arte brasileira como elemento de suas obras. Na opinião de Aracy
Amaral (1975, p. 95), na França, Tarsila aprendera a cultivar a arte tradicional como
parte do projeto moderno, sobremaneira influenciada por aquela viagem a Minas, donde
as pinturas e desenhos de Tarsila desse período são como documentos sobre a viagem,
imagem visual que muito contribuiu nas representações futuras das “cidades
históricas”.22
As cores ocuparam um lugar importante na formação da imagem pictórica do
Brasil. Como notou Carlos Zílio (1993), as cores das habitações e decorações das casas
populares e remanescentes do século XVIII seriam, para os modernistas, expressão do
vínculo com a tradição cromática comprometida com a visualidade brasileira. “Para
Tarsila, as cores industriais de Léger são o modelo do moderno a serem transformadas
através de uma ótica contra-aculturativa” (Zílio, 1993, p. 43): “Seu objetivo não é o de
representar o Brasil mas a apreensão de um novo ‘clima’ marcado pela convivência
entre a industrialização recente e a sociedade rural, presente e passado são articulados
por um olhar ingênuo e afetivo”.
Mesmo em sua fase antropofágica, para Zílio, o esforço de superação no interior
de uma cultura provinciana não permite que a pintora consiga constituir um sistema
moderno coerente, ainda que aponte esta possibilidade. Não obstante, naquela
iconografia, a imagem da “cidade antiga” forma-se em oposição à “cidade moderna”, o
bucolismo do pitoresco em contrate à industrialização dos centros urbanos. Nesta
22
Nas palavras de Tarsila do Amaral (1939): “As decorações murais de um modesto corredor de hotel; o
forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas; as pinturas das igrejas, simples e comoventes,
executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas
geniais da sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para nossas exclamações admirativas. Encontrei em
Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras…”
158
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
oposição desenvolve-se um terceiro componente na formação da imagem pictórica da
cidade histórica.
Tais imagens encontraram um momento importante de circulação durante o
governo Vargas, período em que se formou no Brasil a ideia de patrimônio, como
mediação entre a população e o conhecimento da história nacional, de modo que a
visibilidade das obras herdadas e reabilitadas pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN) tornava-se importante instrumento de conhecimento. A
necessidade de visualizar as obras, somada ao interesse dos intelectuais eruditos em
textualizar suas práticas de viagens, levou à produção de um novo gênero literário nos
anos 1930: os guias de viagem (Andriolo, 2003).
A primeira obra relevante do gênero foi escrita por Gilberto Freyre e dedicada à
cidade do Recife, em 1934.23 No trabalho de Freyre observado desde Casa grande e
senzala (1933), como já mencionaram diversos autores, os objetos herdados do passado,
a cultura material (mobiliário, construções, indumentária etc.), ganharam relevância
fundamental nas análises sociológicas e nas descrições das cidades. Das publicações
financiadas pelo Governo Federal naqueles anos, por intermédio do SPHAN, encontrase um guia dedicado à cidade de Ouro Preto escrito por Manuel Bandeira, editado em
1938. Nas últimas décadas, uma quantidade importante de guias ilustrados chegou às
livrarias, mas, sobretudo, a imagem inscreve-se na ordem da fotografia. Dentre os guias,
os primeiros títulos sobre as cidades históricas foram produzidos por Edgard de
Cerqueira Falcão: Relíquias da Bahia (1941) e Relíquias da terra do ouro (1946).24
O guia turístico, naquele contexto, cumpria a função de vulgarizador do
conhecimento erudito. Trata-se de um gênero literário fundado na necessidade prática
de realização de viagens, auxiliar o viajante na escolha dos caminhos, da hospedagem e
do que olhar. Mas funciona também junto ao imaginário do leitor, fornecendo-lhe
imagens significativas, operando como mais um instrumento de percepção e cognição.
Os guias e os cadernos de turismo dos jornais estão entre os principais meios para a
constituição simbólica dos atrativos turísticos entre as décadas de 1930 a 1970 no
23
Mantenho a distinção entre os guias publicados no século XX e os congêneres de séculos anteriores,
como, por exemplo, o Guia do estrangeiro no Rio de Janeiro, de Félix Ferreira, ou Um passeio pela
cidade do Rio de Janeiro, de Joaquim Manuel de Macedo. Embora não sejam obras totalmente distintas,
há uma transformação na narrativa e descrição das viagens. No Brasil do século XIX, não se previa a
organização econômica do turismo como nos anos de 1930, fato que promove uma diferenciação tanto de
forma quanto de conteúdo das edições.
24
Poder-se-á encontrar a sobrevivência de trabalhos ligados ainda à ilustração manual, tal como o livro As
sete portas da Bahia (1976), escrito e desenhado por Carybé e com prefácio de Jorge Amado; embora não
seja um guia, inscreve-se no conjunto de imagens de paisagens das cidades turísticas brasileiras.
159
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Brasil, quando se ampliava o consumo da literatura especializada devido à necessidade
de operacionalizar as viagens.
Nos guias escritos por Gilberto Freyre, dedicados às cidades do Recife e Olinda,
nos anos de 1934 e 1939, respectivamente, encontra-se um tópico voltado a pintores e
fotógrafos. “Recife é a cidade dos pintores”, afirma de início, e continua: “Talvez por
causa de sua luz. Talvez a sua luz seja um estímulo à pintura mais do que a qualquer
outra arte.” (Freyre, 1934/1968, p. 56) Com o sol que ilumina a cidade, o artista Emílio
Cardoso Ayres teria aprendido “as combinações de cores vivas, tropicais, ardentes”.
“Teles Júnior foi paisagista que se deliciou em pintar águas recifenses. Inclusive as
águas do velho Lamarão, de um verde às vezes azulado, mais dramático do que lírico.
Mas também as do Capibaribe não só nos seus dias tranquilos como nos de ‘cheias’ ou
enchentes.” (p. 57) Os contemporâneos nascidos na cidade: Vicente do Rego Monteiro,
Cícero Dias e Francisco Brennand, pintor e ceramista.
Dentre os pintores, cita Fédora do Rego Monteiro Fernandes, Mario Nunes,
propriamente um paisagista, Lula Cardoso Ayres, “pintor por excelência do Recife”,
cujo ateliê em Boa Viagem desvela-lhe a paisagem marítima. Aloísio Magalhães
interpreta o Recife em sua pintura: “Um mar liricamente recifense o que ele vê quase
todos os dias”. Vindo de fora, o desenhista Manoel Bandeira (não se trata do poeta)
ilustrou também algumas edições dos guias de Freyre, e é elogiado por sua capacidade
no desenho exato, no traço fino e precisão das formas, assim como na “ternura lírica”
quando o tema é recifense. Foram esses mesmos pintores os que se dedicaram a Olinda
em meados do século XX.
Gilberto Freyre designou tais imagens como “realismo poético”, as quais
permeariam também o trabalho de fotógrafos, a exemplo de Benício Dias, cuja
produção revela “em pessoas e coisas recifenses alguma coisa de ‘mais real do que
real’” (p. 59). Teríamos aqui um quarto componente na constituição dessas imagens,
embora o autor não circunscreva especificamente a temática das cidades históricas. Ao
lado do registro que sinaliza a permanência, o pitoresco e o bucólico, tem-se a
designação do “realismo poético”.
Os pintores tipicamente recifenses parecem guardar de Franz Post e
dos holandeses a tradição de artistas preocupados em ser exatos nos
traços e nas cores, embora os mais expressionistamente poéticos
dentre os pintores atuais desta parte do Brasil saibam [...] juntar a essa
preocupação o empenho de revelação ou sugestão de uma verdade
como que escondida dentro das pessoas e das próprias paisagens; e
160
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
que só transparece nas pinturas que vão além do realismo apenas
descritivo. (Freyre, 1934/1968, p. 58)
Cumpre ressaltar a importante participação de Luis Jardim na ilustração do guia.
Edições posteriores enriqueceram o livro com desenhos de Rosa Maria e fotografias de
Pepito, de Lula Cardoso Ayres e Clarival Valadares. Jardim foi também o desenhista
escolhido para rechear o Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira (1938). Seu traço em
bico de pena o distingue de outros desenhistas, como Watsh Rodrigues, embora ambos
caminhem na direção da precisão da representação do patrimônio.
A cidade de Olinda abrigava 56, no ano de 1982, quando seu prefeito sugeriu que
“Olinda estivesse para Recife assim como Montmartre para Paris.” (citado em Durand,
1989, p. 97). Atualmente, as imagens de arte encontradas à venda nas lojas e ateliês de
Olinda são muito variadas, porém, autores de apuro técnico e naturalismo são
recorrentes, a exemplo de Wagner Santos, em cenas do casario, vida urbana, tipos
sociais, etc. Chico Laranjeira trabalha, por assim dizer, na linha dos naïves. Manasses,
por outro lado, explora domínios de geometria mais ou menos figurativos.
Ao lado dos intelectuais modernistas, a imagem das cidades históricas resulta de
articulações políticas em diversos níveis, desde o projeto do Museu Paulista até a obra
arquitetônica da Pampulha, em Belo Horizonte, durante a prefeitura de Juscelino
Kubitscheck, reunindo artistas como Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle-Marx.
Ivone Vieira (1988, p. 92) considerou o traço distintivo de Guignard ser o componente
lírico. Suas telas entregam ao espectador paisagens fluídas, oníricas, com montanhas e
brumas matinais.
As nuvens-montanhas oferecidas por Guignard informam mais um componente
para a imagem da cidade histórica: o componente lírico. Em Ouro Preto, a ideia de
“cidade histórica” é acompanhada por elementos indispensáveis à sua representação.
Ali, a movimentação das nuvens é obscurecida pela recorrência da bruma. A edição dos
festivais, desde sua inauguração em 1956, era realizada em abril, mas foi transferida
para o inverno, num período do ano quando se realça a paisagem brumosa da cidade. A
própria origem da localidade está situada em junho, quando a bandeira de Antônio Dias
encontrou as montanhas cobertas pela névoa. A representação da bruma agregou-se ao
produto turístico, mas também penetrou no imaginário nacional brasileiro, conferindo
significação à “cidade histórica”. Como notou Damasceno (1994, p. 138): “A temática
da luz e da bruma está presente desde as primeiras narrativas que noticiam o
descobrimento do ouro. Calcadas em precária documentação, tendo como fonte
161
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
principal os relatos do jesuíta Antonil, [...] possuem elas um inegável componente
lendário”. Nas telas e nas tintas, a fluidez das nuvens, da névoa, da bruma enlaça os
olhares do pintor e do espectador; despertam-nos para a viagem.
Ouro Preto tornou-se uma comunidade de artistas. Foram mencionados Carlos
Scliar e Carlos Bracher como dois importantes exemplos de permanência da paisagem
pictórica no espaço visual contemporâneo. Outros artistas mantêm a paisagem e o
ambiente como questão, a exemplo de Fernando Lucchesi, com seu ateliê em Ouro
Preto:
resgatando o imaginário popular dos objetos rituais da tradição
mineira encontrado nos oratórios, candelabros, vitrais, flores,
armários, mesas e baús, Lucchesi constrói um outro fragmento da
paisagem mineira, recriando, com refinamento artesanal e vibração
cromática, as histórias cotidianas do barroco, da colônia... (Ribeiro,
2000, p. 303)
Por fim, a cidade de Paraty ingressou nesse processo de modo significativo,
geograficamente estabelecida entre Rio de Janeiro e São Paulo, atualmente situada no
roteiro turístico da “Estrada Real”. Na década de 1970, a pintura de paisagens que
articula a imagem pitoresca ao sentido documental da arquitetura pode ser vista nas
telas de Omar Pellegatta, Hiroshi Murakami, Paulo Gomes. Djanira é considerada a
precursora do espaço plástico “ingênuo”, hoje praticado por Júlio Paraty e outros
paratyenses, tal como João José de Silva e Lúcio Cruzz, bem como Themilton Tavares,
radicado desde 1975. O tema do Divino aparece em muitos desses trabalhos,
desenvolvendo elementos das festas e tradições populares. Embora esse espaço visual
varie muito entre os artistas, na técnica, na forma e no conteúdo dos trabalhos.
As expressões plásticas mais recentes têm como característica a abertura de novas
significações no espaço visual e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo
imagético tradicional. Durante a década de 1990, ocorreu grande afluxo de artistas,
congregando
desde
paisagistas
e
abstracionistas
até
práticas
propriamente
contemporâneas em composições e experimentalismos, a exemplo de Sérgio Atilano e
Fernando Fernandes. . O movimento migratório não diminuiu, apesar das idas e vindas
de muitos artistas. As imagens continuam a movimentar-se entre dois polos: novas
experiências visuais e representações de paisagem em formas diversas.
Que dizem os pintores sobre a paisagem?
162
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Além da observação de imagens produzidas no espaço das cidades históricas e
turísticas, esta pesquisa pôde contar com a realização de conversas, conjugadas ao
conhecimento do processo artístico na visita aos ateliês da cidade de Paraty. Os pintores
foram convidados para entrevistas, as quais aconteceram entre 15 e 19 de junho e 26 a
30 de outubro de 2009. Dentre os nove pintores que aceitaram o convite, apenas dois
dedicam-se à pintura abstrata. Todos os outros trabalham sobre temas figurativos,
notadamente sobre elementos provenientes do ambiente local de Paraty: o casario, o
mar, a serra. Dos não-figurativos, um deles foi contundente em afirmar que sua
experimentação não é pura composição de formas – ao contrário do outro abstracionista
– mas uma revisão das formas sensíveis do espaço urbano e natural local. Desse modo,
a grande maioria dos pintores entrevistados dispõe-se a uma relação com o mundo
paratyense cujo resultado é a sobrevivência do espaço visual da paisagem, sobre o qual
elaboraram os seguintes comentários.
Durante uma estada de três meses em Paraty, Marcio Franco teve sua atenção
atraída pela cor verde: “é uma região verde, você tem verde em volta, uma variedade
absurda de verde”. No meio da folhagem, via brotar outra cor, o vermelho, o laranja, o
amarelo, diversas florações e animais, sobretudo pássaros. O fundo verde de seus
quadros deriva dessa visão, verde sobre o qual organiza as formas em cores bem
demarcadas. Diferentemente do gênero paisagístico clássico, aumenta a lente, aproximase dos detalhes da floresta e os transforma em imagem na grande escala da pintura sobre
tela. Trata do assunto apontando um de seus trabalhos onde figuram helicônias. Reforça
também a observação das bananeiras, nas passagens do verde em amarelo e da
inflorescência rósea. Conforme afirmou, o ponto colorido é o ponto de partida.
Marília Inke é amante das caminhadas na natureza. Descobriu a natureza de
Paraty aos poucos. Comenta: “Eu sempre tive essa vontade de conseguir retratar a
natureza com meus olhos, da minha forma de ver, que não é real, a ideia é ter uma
característica própria para retratar a natureza.” Mas os elementos históricos também
chamam sua atenção, atraem muitos turistas e artistas para o lugar, os artistas
conversam, trocam ideias, o espaço do ateliê aproxima o espectador do trabalho do
pintor. Os diálogos giram em torno de categorias específicas da percepção da cidade:
“vista bonita”; “cidade inspiradora”; “um olhar para a arte”... São categorias
compartilhadas na experiência de artistas, no olhar do turista e no imaginário da cidade.
Observe-se a situação da Igreja de Santa Rita, com as montanhas ao fundo, uma vista
privilegiada e compartilhada.
163
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Enquanto Marília dedica-se à pintura em tinta acrílica sobre papel ou folha de
bananeira, seu companheiro Ricardo Inke é aquarelista. Ele prefere falar dos efeitos de
luz sobre as coisas que propriamente de paisagens. Como os impressionistas, explora as
variações da luminosidade durante os dias, horários e épocas do ano. Nas palavras do
artista, a relação entre luz e sombra é mais importante que a beleza plástica do lugar em
si, desta rua ou daquela casa específica. Esta concepção resulta do aprendizado com
outros aquarelistas, notadamente, segundo conta, do convívio com os europeus. Em
suma, uma paisagem “sem graça”, “singela”, pode ser explorada nos efeitos de luz e
sombra, destarte, não se pinta as “paisagens bonitas”, as coisas óbvias. O belo é extraído
da imagem pelos efeitos de luz. No trabalho de Ricardo Inke, a mimesis opera com o
recurso ao objeto natural ou artificial, em uma recusa parcial ao objeto, reconhecido no
jogo de cores que nunca abandona a figuração. Pondera sobre as técnicas: “No desenho
a bico-de-pena, talvez aí sim, a busca do belo como vista bonita seja mais importante.”
De outro lado, o esforço pela técnica artística não o faz abandonar as palavras acerca da
expressão: “Na pintura, a ideia não é reproduzir o que a gente está vendo ali no
momento, mas é passar para a pintura a emoção ou o sentimento que aquela paisagem
causa e que você queira passar isso adiante”. Diferentemente do desenho e da
fotografia, a pintura toma a paisagem como referência sem a copiar, “a partir dai viajase”.
Pintor esmerado na técnica clássica acadêmica, André Meurer desenvolve em toda
sua narrativa uma concepção acerca da relação entre o artista e seus objetos, em termos
como “dom” e “inspiração”, o gênero paisagístico está sempre em pauta. Afirma:
A paisagem, ela é o meu eu. É o meu interior. Tudo o que você queira
se referir em relação à paisagem... porque a paisagem eu posso definir
ela como vários caminhos. Eu posso definir ela como um prédio, uma
árvore, uma cachoeira, um mar, um bosque, uma vegetação, um
deserto. Até um deserto tem a sua beleza. Uma paisagem, ela está
dentro de mim. A paisagem sou eu.
Não obstante, a concepção clássica, atualizada no pensamento contemporâneo do
artista, infiltra na percepção toda a sensibilidade do observador. Pois se a paisagem é o
artista, ela deve ser como ele: “A paisagem, na verdade, é o meu eu. Se eu não sou feliz
comigo mesmo, eu jamais consigo ver aquela paisagem, por mais mórbida que seja, ou
bonita. Isso é o que eu vejo, na paisagem. É o meu interior, é o meu eu”. O jogo da
mimesis está subvertido, entre o jogo de projeções do eu sobre a paisagem, sem o
164
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
abandono das categorias clássicas, da ideia do belo, mescla a imagem do artista e a
noção de expressão.
Outro exemplo de grande habilidade técnica é José Andreas, aquarelista,
originalmente formado em desenho industrial e também músico. Para o artista, o
desenhista desenvolve uma forma de olhar diferente de outras pessoas porque percebe o
mundo como desenho. Esta afirmação parece conter tanto o desdobramento de uma
concepção clássica quanto uma visão política do trabalho do pintor. “Então, digamos
assim, uma paisagem que tenha determinada árvore, um pedacinho de mar, um barco.
Eu olho aquilo e já vejo traduzido em desenho; uma pessoa que está passando ali vê
uma árvore, um mar, um barco.” Embora trabalhando sobre figurações do espaço
paratyense, não está circunscrito à concepção clássica. Recorda-se do grande significado
que a escola de desenho industrial cumpriu em sua vida, pela importância dessa
formação nos anos 1970, instigando o debate cultural e visual. Houve para ele um
aprendizado visual que o possibilita hoje compartilhar formas de perceber com outros
artistas. Assim, não tratava da qualidade da pintura ou do resultado final do trabalho,
mas de um “olhar aprofundado”. Este seria o seu “ingrediente” para fazer algo
“diferenciado”, depois vem a competência. Andreas trabalhou com Gonçalo Cárcamo,
cuja técnica de aquarela é também notável e referência desta capacidade de olhar.
Único nativo de Paraty, dentre os aristas com os quais o autor conversou, Julio
Paraty sempre trabalha sobre o tema da paisagem, no modelo ingênuo que o caracteriza.
Exclama: “Paisagem porque é uma cidade linda!”. Explora o universo das festas
populares, a arquitetura, dispõe o casario em volumes e sempre apresenta uma igreja.
Refere-se a um de seus guaches, intitulado Nossa Senhora das Dores: “Não tem uma
figura, só tem a igreja e o pátio na frente”. A ausência de personagens reforçaria o valor
do monumento e seu aspecto paisagístico, depois, o pintor lembra-se que retratou ali
também um menino empinando pipa. Durante a conversa, está sempre a comparar os
lugares como eram há trinta anos atrás e sua situação atual. Casas, flores, a imagem da
pintura o ajuda a relembrar e a converter os lugares em traços ingênuos.
As categorias da experiência estética e os significados das imagens
Há duas concepções de paisagem expressas nas narrativas dos pintores: uma
vincula o interior do artista ao seu projeto de criação, os elementos do mundo exterior
165
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
são subterfúgios, mais ou menos necessários, para a realização de si e do trabalho
manual da pintura; outra se ancora sobre as qualidades externas do meio ambiente
natural e construído, a serem transformadas em imagem pictórica, para a apreciação do
espectador. Estas duas posições alternam-se nos pintores entrevistados. As palavras de
Deborah Col Costa são exemplares dessas concepções e suas ambiguidades: “A alma se
torna paisagem na reconstrução pictórica do mundo” (Festival dos artistas de Paraty,
2006, p. 20).
Não obstante, mesmo em artistas voltados à experimentação as trocas com o
ambiente são sensíveis. Sergio Atilano é exemplar. Em seu trabalho, o jogo da mimesis
é levado para fora da tela, em dois procedimentos conjugados: primeiro, na dimensão
material; segundo, na forma. No primeiro procedimento, recolhe elementos da natureza,
gravetos, sementes, entre outros, os quais são manipulados, reunidos, dispostos em
superfícies, às vezes pintados. No segundo, o arranjo das formas entre a matéria natural
e o trato artificial pode referir ruas, montanhas, logradouros etc. Atilano, como outros
artistas estabelecidos na cidade, tem uma forte ligação com a história e os processos
políticos, econômicos e ambientais da localidade. Em suas caminhadas por Paraty,
recolheu caquinhos de cerâmica na beira do mar, às vezes os pintava, outras deixava na
cor natural: “A aplicação disso é uma estória das pedras. A cidade, para mim, é dessa
forma, ela está presente, às vezes no jeito de montar o trabalho”. Embora distante da
fórmula imitativa, a referência ao lugar aparece na composição das formas e cores,
articulada não à observação direta, mas à experiência do pensamento, da memória e da
imaginação.
Os estudos contemporâneos sobre a paisagem na arte em Minas Gerais têm
indicado um processo de transformações históricas em continuidade ao paisagismo
pictórico de Guignard, nas décadas de 1960 e 1970, em artistas como Lotus Lobo,
Luciano Gusmão, Dilton Araújo, Manfredo de Souzanetto e Madu. Como notou Marília
Andrés Riberio (2000), apropriando-se de rótulos industriais ou interferindo
conceitualmente na paisagem urbana, mantêm o tema da paisagem como questão.
Se Guignard registra com maestria a paisagem lírica de Minas Gerais,
consolidando uma poética moderna ainda impregnada de romantismo,
Amilcar de Castro é o artista que inaugura a nova paisagem
contemporânea mineira. A atitude de Amilcar, ex-aluno de Guignard,
afasta-se de qualquer vestígio romântico e propõe a construção de uma
paisagem neoconcreta, presente, aqui e agora, usando o material e o
espaço circundante como eixo de sua poética. (Ribeiro, 2000, p. 301)
166
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Neste breve itinerário da paisagem pictórica brasileira, nota-se um desdobramento
ambíguo. No chamado declínio do gênero no campo artístico, ela emerge com força nas
cidades turísticas. Em parte, essa passagem foi articulada pelas categorias de
ingenuidade, documental, respectivamente com vistas à identidade brasileira e à
memória nacional. Nas palavras dos artistas, retomam-se também pontos de vista
clássicos, impressionistas, expressionistas, entre outros. A formação da imagem da
cidade histórica articula-se entre cinco componentes principais: (1) a representação da
arquitetura e do espaço urbano colonial sem sinais de mudança; (2) a referência à
paisagem colonial em termos de “pitoresco”; (3) a imagem da “cidade antiga” em
oposição à “cidade moderna”, por meio do “bucolismo”; (4) o “realismo poético”, no
dizer de Gilberto Freyre, pinturas que vão além do realismo apenas descritivo, que
revelam “verdade escondida”; (5) as nuvens-montanhas oferecidas por Guignard
informam o componente “lírico”, brumoso e fluído. Ao final, notou-se o
desenvolvimento de uma outra mimesis, afastada tanto da teoria clássica da imitação
quanto da auto-referência da arte: o ambiente é referido na colagem e manuseio de sua
própria matéria e no recurso a uma paisagem vivida no domínio da história, da
economia e da política.
A psicologia social das imagens aqui formulada procura acompanhar a
sobrevivência e metamorfoses das imagens na duração da história. A problematização
examina as formas de perceber, os estilos cognitivos, o imaginário, por meio daquilo
que J. T. W. Mitchell (1986) chamou de psicologia política das imagens. Se ao final
notou-se a aparição da mimesis, durante todo o trajeto salta aos olhos a sobrevivência da
pintura e a composição de imagens pictóricas nos moldes da imitação, representação do
casario, igrejas, montanhas.
Que significados psicossociais estão articulados a essa experiência visual? Para
concluir este estudo, é preciso deixar a dimensão particular da vida de cada artista para
cotejar as imagens entre si, formando grupos imagéticos e interpretando seus processos
históricos. De modo esquemático, indicaria três eixos de significados, não de modo
conclusivo, mas cuja pertinência deriva da observação do fenômeno durante toda a
pesquisa: (1) a perda do sublime; (2) a imitação articulada à memória nacional; (3) a
ingenuidade em referência ao país cordial.
1) A perda do sublime
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Nos viajantes do Brasil, Ana Maria Belluzzo (2008) havia identificado referências
ao sublime como categoria da experiência estética, por exemplo, em pinturas de John
Christian Schetky (1778-1874), representando o mar de Cabo Frio (RJ). Nas pesquisas
sobre a prática pictórica nas cidades turísticas, essa categoria não foi registrada.
Edmund Burke, além de político atuante, interessou-se pela percepção da
natureza, quando em 1757 apresentou sua pesquisa filosófica sobre a origem do belo e
do sublime. Esta ideia aparecera em 1652, na tradução em língua inglesa do texto
clássico Do Sublime, atribuído a Caio Cássio Longino (c. 213-273). A obra de Longino
foi depois traduzida em francês, por Boileau, em 1674, tornando-se referência sobre
essa experiência da percepção baseada na força e intensidade, no efeito extraordinário e
maravilhoso. Categoria fundamental do discurso e da poesia, foi considerada por Burke
de difícil aplicação às artes visuais. Em suma, para Burke (1803/1995, p. 233), sublime
é “aquilo que é próprio a excitar as ideias de dor ou de perigo”, aquilo que age como
“terrível”, “a mais forte emoção que a alma seja capaz de sentir”. O espanto é o mais
alto efeito do sublime.
Na composição das imagens, a categoria serviu para organizar os elementos de
modo a ressaltar a força da natureza em cachoeiras caudalosas, raios iluminados em
céus sombrios, e também em tentativas de fornecer ao espectador a dimensão
maravilhosa de um céu estrelado ou do deserto, conjungando os sentimentos de terror e
admiração. Não ocupando os pintores, particularmente os das cidades turísticas, poderse-á pensar no deslocamento do sublime para as imagens fotográficas, capazes de captar
a amplidão do mar e das montanhas em grande-angulares, em tonalidades e formatos.
Não obstante, o termo associado a essas intensas imagens da natureza, sobretudo nas
revistas sobre viagens, é “espetacular”, cujo significado será estudado noutro momento.
2) Imitação articulada à memória nacional
O modelo da imitação, negado enquanto prática central do campo artístico, teve
seu reaparecimento nas cidades turísticas, muitas vezes acompanhado de formas
“impuras”, manifestas com alguns elementos de impressionismo ou expressionismo,
como se observa nas pinturas e nos relatos de muitos artistas e críticos. No estudo
específico sobre a formação das imagens de arte em Ouro Preto pode-se verificar que a
atividade pictórica corresponde ao que se observou em grande parte dos discursos sobre
as cidades históricas brasileiras, ou seja, uma permanência de formas conservadoras do
168
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
pensamento político e religioso. A representação artística de uma Ouro Preto turística
foi traçada em moldes acadêmicos, ao mesmo tempo em que afinada com um discurso
nacionalista acerca das origens da arte brasileira e da Inconfidência Mineira,
concentrado nos monumentos católicos.
Paradoxalmente, quando a paisagem da cidade histórica foi concebida em
oposição às dos centros urbanos em expansão no país, os ambientes de penúria
ocupados pela exploração aurífera e pelo trabalho escravo passam a ser representados
como fragmentos de um espaço-tempo em que as vielas e o casario transmitem o
bucolismo ausente nas grandes cidades.
No plano da história das categorias estéticas, lirismo e bucolismo tornaram-se
componentes para a organização de imagens pitorescas. Com a organização do campo
do turismo no país, a partir da década de 1960, vários artistas são convidados a
participar desse momento de representação artística da “cidade histórica”. Não obstante,
pôde-se notar que a atividade pictórica nas cidades turísticas do Brasil passou por um
processo de seleção segundo temas e técnicas privilegiados para o consumo do turismo,
os quais vincularam as pinturas acadêmicas às imagens pitorescas e aos discursos
nacionalistas, restringindo tanto a difusão de artistas que trabalhavam fora desse modelo
quanto a própria percepção dos turistas que receberam essas imagens e, a partir delas,
constituíram o seu olhar (Andriolo, 2008).
3) Ingenuidade do país cordial
Na observação do fenômeno pictórico tal como se manifestou nas cidades
turísticas aparece a categoria de “ingênuo” ou naïf. A relação entre pintura e
ingenuidade foi tratada por muitos autores, em um movimento contraditório, no
ingresso do artista popular no campo artístico – por exemplo, nas imagens dramáticas
de José Antônio da Silva. Clarival do Prado Valladares (1966) notara esse processo
como resultado de um sentimento romântico, de classe burguesa. O espaço plástico dos
ingênuos seria de “fácil e imediata comunicação da intenção poética, geralmente lírica e
evocativa de ambientes e cenas de um passado recente”, “capaz de se acomodar aos
demais elementos da residência burguesa”, ao mesmo tempo em que pratica boa
vizinhança com outras obras de arte, sem jamais transcender da narração, do processo
descritivo de cenas e ambientes. Os ingênuos utilizam a técnica e a temática dos
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
primitivos-genuínos, porém “destituídos do nível e da qualidade exigíveis para uma
conceituação rigorosa” (p. 42).
A noção de ingenuidade na história da pintura popular brasileira apresenta pelo
menos dois pontos de tensão. Primeiro, ao abrir-se à participação de membros de
origem social diversa, o campo da arte ingênua deixou de abrigar apenas o restrito
círculo de artistas populares dedicados à pintura. Assim, perdia seu referencial junto às
classes populares e tornava-se aquilo que Frederico Morais (1981, p. 105) chamou de
“massa informe de primitivistas”. O segundo ponto concerne à própria expressão
artística das classes populares. A arte ingênua tornou-se um gênero pictórico no qual
não se traduziam as categorias da experiência estética popular, mas um esquema técnico
e temático; a pintura de cavalete, realizada em cores primárias sobre tela, representando
cenas de vida campestre, com festas populares, casarios, fazendas, entre outros temas
provincianos, na representação de um país idílico.
A delimitação temática e técnica da “arte ingênua” ocultou os conflitos de classe
social manifestos na produção plástica popular. Em primeiro lugar, devido a sua
recepção a partir do olhar romântico do conhecedor de arte, delimitavam-se as obras de
um Brasil imaginário, sem tensões e lutas sociais. Em segundo lugar, nos anos 1970, o
campo da “arte ingênua” abria-se à participação de outros interessados que não apenas o
restrito círculo de artistas populares dedicados à pintura. Por fim, produzindo a ilusão de
harmonia campestre do ser brasileiro, o recurso à “ingenuidade” possibilitava também
ele a inscrição do espaço colonial, o negro e o índio, entre outros traços da distinção
social brasileira de modo pitoresco.
Experiência social do pitoresco
Retomando a formação da imagem da paisagem, particularmente na cidade
histórica turística, cinco componentes estavam articulados: a representação do espaço
urbano colonial sem sinais de mudança; a paisagem colonial em termos de “pitoresco”;
o “bucolismo”; o “realismo poético”; o “lírico”. O movimento desses componentes
organizou três eixos de significados: a perda do sublime; a imitação articulada à
memória nacional; a ingenuidade em referência ao país cordial. O jogo da mimesis
possibilita uma inter-relação entre o artista e o espectador, no qual aqueles componentes
170
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
e eixos de significados estabelecem uma dinâmica junto ao ambiente. Na compreensão
desse jogo, o pitoresco é o dispositivo interior à mimesis capaz de operar a imagem da
natureza e da cultura como experiência social, seja nos moldes acadêmicos,
impressionistas ou ingênuos.
Como categoria na imagem da paisagem, o pitoresco aparece, desde o final do
século XVIII, ao lado de mais duas categorias centrais da experiência estética da
natureza: o belo e o sublime. No olhar do turista, essas três formas de experiência
movem-se distintamente, às vezes de modo contraditório. No Brasil, por meio dessa
categoria, a paisagem da “cidade histórica turística” passa a ter importância conceitual
para as análises do fenômeno turístico em relação à opressão dos grandes centros
urbanos.
Aquilo que é próprio para ser pintado era designado pelo termo italiano pitoresco.
Na passagem entre o mundo dos viajantes e as práticas turísticas, a palavra pitoresco
assume significados distintos, mas conjugados, seja como uma “paisagem digna de ser
representada em pintura”, na acepção original, seja algo “típico”, “autêntico”,
“folclórico” ou “arcaico”. No sentido original, ou nas derivações, Lajarte (1995, p. 34)
situa um significado importante pelo termo manter-se ligado a pittore, pintar. Como
apontaram Pinheiro e D’Agostinho (2004), na comédia inglesa The Tender Husband, de
Richard Steele (1705), a palavra assumira o sentido moderno, apreendido e
desenvolvido nos escritos de Ruskin. Descrevendo os elementos constituintes do espaço
plástico pitoresco, Pinheiro e D’Agostinho remetem ao debate da arquitetura brasileira
no início do século XX. Nestes casos, a imagem pictórica opera a mediação, também
localizável na literatura, na propaganda, inscrita no interior da experiência social.
A duração histórica do termo pitoresco relacionado as imagens impõe questões
sobre a designação da sensibilidade que expressa. Trata-se de uma categoria
intermediária ao belo e ao sublime, conformando uma atitude em direção à paisagem,
natural ou pintada. Na origem, uma natureza insólita e curiosa, apreendida em
fragmentos: “é a paisagem digna de ser admirada pelo caminhante ou pelo turista,
exaltada pelos guias de turismo” (Lajarte, 1995, p. 34). Esta citação da socióloga
francesa indica uma questão a ser explorada, qual seja, o sentido político dessas
imagens quando convertidas em sinal para o olhar do turista.
Ao estudar o início do século XIX, Gomes Júnior (2012, p. 108) distinguiu a
viagem pitoresca da viagem científica por meio da incorporação de novas atitudes, por
exemplo, a referência direta à lembrança na relação entre imagem e natureza – o
171
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
testemunho pessoal do viajante e o desenho sobre o motivo, “signos de autenticidade” –,
assim como à noção de “simplicidade”. No final do Setecentos, a formulação
terminológica em torno de romantique referia “frequência a lugares”, “paisagens”, as
quais, descritas na literatura e na poesia, incitavam a imaginação, particularmente em
relação ao afastamento das cidades, a presença de áreas verdes, rústicas, de encantos
naturais; eis o “sítio romântico”.
No Dictionnarie des Beaux-Arts de Aubin Millin, de 1806, pitoresco é assim
definido: “diz a respeito de uma atitude, de um contorno, de uma expressão, enfim, de
todo objeto em geral que produza ou possa produzir, por uma singularidade
interessante, um belo efeito em uma pintura” (citado em Gomes Júnior, 2012, p. 109).
Nesta acepção, o “efeito pitoresco” não trata de sentimentos elevados, mas de deleite da
visão: “Se o efeito pitoresco pode ser alcançado com o agenciamento agradável de
objetos e de grupos de personagens, pelos contrastes e pela disposição dos tons, das
sombras e das luzes, é no trato dos detalhes – cabelos, panos, acessórios – que ele se
afirma” (Gomes Júnior, 20012, p. 109).
Entre os viajantes que percorreram as terras brasileiras, Ana Maria Belluzzo
(2008) localizou precisamente o elemento pitoresco na composição de pinturas: “O
termo pitoresco denota aqueles objetos que são propriamente aptos para a pintura.” Para
a autora, tem-se o gosto pelo pitoresco no seguinte sentido:
o olhar buscava as relações que revelassem a natureza digna de ser
apreciada ou desenhada, segundo padrões poéticos arcádicos. O
observador escolhia ângulos privilegiados para registrá-la sob valores
consagrados pela pintura e pela poesia. A tradição pictórica ditava
normas à natureza e só algumas combinações notáveis da natureza
chegavam a constituir material adequado à arte. (Belluzzo, 2008, p.
46)
No exemplo das pinturas do viajante inglês William Gore Ouseley (1797-1866),
aparecem os passeios em lugares elevados, colinas e montanhas, as ruínas de igrejas, a
flora, a costa litorânea. A vegetação está subordinada à composição e à convenção. A
natureza deveria ser mostrada com “decoro”, “elegância” e “civilidade”, em um jogo
entre o aspecto natural e o artifício da pintura (Belluzzo, 2008).
Ao lado das referências geográficas e botânicas, elementos próprios da cultura
brasileira foram também inscritos nas imagens sob a forma do pitoresco, aplicada a
“valores rústicos”, como diria Belluzzo, no registro de lavadeiras negras, na vida
cotidiana dos arrabaldes das cidades. Nessa medida, a mimesis, ao operar por meio do
modelo pitoresco ressalta, de um lado, uma sensibilidade diante da natureza ou de
172
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
aspectos da natureza, que propiciam o devaneio ao distanciar-se das cidades, e, de outro
lado, a participação de aspectos culturais no jogo prazenteiro do olhar, como se
tornaram no Brasil as vielas, o casario, a capela, entre outros.
O termo pitoresco acompanha as descrições de Ouro Preto. Auguste de SaintHilaire, em sua viagem de 1816, foi atraído pelo aspecto urbano de Vila Rica, cujas
casas situadas nas encostas cercadas de vegetação possibilitavam vistas variadas e
“pitorescas”, não obstante, as cores dos telhados e residências em meio às nuvens
conferiam à paisagem um “aspecto sombrio e melancólico”. As torres das igrejas no alto
dos morros lhe chamam a atenção, assim como a quantidade de cerca de dezesseis
capelas e duas igrejas paroquiais (Saint-Hilaire, 1830/1948). Moreira Pinto (1907, p.
693), lançava uma apreciação que, embora não a considerasse “bonita”, a “gloriosa
Ouro Preto” era referida em seu “aspecto pitoresco”, esboçando um guia de visitação à
cidade. Como se verificou, o projeto de pinturas históricas de Taunay prolongaram os
usos dessa categoria para a antiga cidade.
O problema se torna explícito quando a imagem circula pelo campo do turismo,
tal com afirmou Roland Barthes (1957, p. 121): “O Guide Bleu não conhece muito a
paisagem senão sob a forma do pitoresco”. O pitoresco representado nesse tradicional
guia francês está na origem da história do turismo, no século XIX, em referência a
acidentes geográficos, montanhas, grutas, desfiladeiros, na apreciação de Barthes em
correspondência ao mito alpino burguês, por meio do qual Gide associava a moral
helvética-protestante (regeneração pelo ar puro, ideias morais nos cumes, ascensão
como civismo). A experiência estética suscitada pelo Guide Bleu é mais rara nas
imagens de planícies e planaltos. Arriscava-se, dizia Barthes, destruir todos os outros
horizontes possíveis, e mesmo a humanidade das paisagens, face à sedução das áreas
montanhosas. O guia não responde às questões que um viajante moderno poderia
colocar ao atravessar uma paisagem real: “A seleção de monumentos suprime por sua
vez a realidade da terra e dos homens, ela não explicita nada do presente, ou seja, de
histórico, e por isso o monumento se torna indecifrável...” (p. 123). Conclui: contrário
mesmo à sua proposta, o Guide tornou-se “instrumento de cegueira”.
Quando Luiz Costa Lima propôs um reexame da mimesis, a ser compreendida no
espaço social de circulação da imagem entre o autor e o receptor, considerava a
atividade do imaginário na criação de novos mundos: “a mimesis literária supõe a
sensação de semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença” (Costa Lima,
1989, p. 68). Na compreensão desse jogo social, o pitoresco é o dispositivo interior à
173
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
mimesis capaz de operar a imagem da natureza e da cultura como experiência social. A
imagem da paisagem na pintura brasileira apresenta uma experiência social do
pitoresco, na qual a afirmação dessa categoria corresponde à negação do sublime e à
representação de um país sem conflitos.
174
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
10.
A transformação do mundo em pintura
Imagem e imitação em psicologia social
A observação da produção de imagens nas comunidades de artistas,
particularmente em cidades históricas e turísticas, revelou a pertinência de dois itens
significativos: a atividade pictórica e a imagem mimética. A sobrevivência de imagens
baseadas na imitação em pinturas produzidas e comercializadas nas cidades turísticas é
um caso particular de um processo mais geral acerca do fenômeno da mimesis.
Na década de 1960, Robert Francès e Huguette Voilluame apresentaram uma
pesquisa na revista Psychologie Française (1964) intitulada “Um componente do
julgamento pictural: a fidelidade da representação”. Os autores examinaram as
preferências de 97 adultos, entre trabalhadores, estudantes e artistas, e 312 crianças, de
6 a 16 anos, durante a exibição de quatro séries de pinturas. O resultado apresentou a
ordem de preferência baseada no grau de “fidelidade” ao objeto representado,
principalmente a relacionada à maior idade e ao nível de formação entre os adultos.
Pesquisas em psicologia experimental e em neurociências têm reforçado a “preferência”
do espectador pela perspectiva central e pela reprodução naturalista.25
Nas pesquisas em psicologia social, Hungerland (1954) observara a contribuição
específica para a percepção das obras de arte fornecida pelos julgamentos provenientes
da crítica de arte, ou seja, os discursos e as condições sociais poderiam contribuir para a
compreensão do julgamento estético, além de determinantes fisiológicas ou
neurológicas. No estudo pioneiro com público em exposições de arte, Bourdieu e
Darbel (1969) confirmaram o processo pelo qual a estrutura social organiza a percepção
de imagens de arte, em perspectiva histórica, pela duração das formas de perceber
conforme determinadas representações e categorias de julgamentos. Daí a afirmação de
25
Por exemplo, no artigo de divulgação de Berd Kersten (2006), intitulado “Do jeito que a gente gosta”.
175
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Bourdieu (1968, p. 649) de que “o olho é histórico” e a obra de arte é feita pelo menos
duas vezes, uma pelo artista e outra pelo público.
Os estudos de recepção estética produzidos no Laboratório de Estudos em
Psicologia da Arte (IP/USP), inaugurados pelo professor João Frayze-Pereira, têm
contribuído para compreender essas questões. As pesquisas desenvolvidas na exposição
de Arte Incomum evidenciaram dois movimentos conjugados: (1) Frayze-Pereira (1995)
constatou a emergência de temas românticos nas palavras de muitos espectadores, num
acolhimento positivo das obras expostas, ainda que declaradamente com estranheza e
espanto; (2) além dos temas românticos, a pesquisa de fontes impressas contemporâneas
à exposição evidenciou a recusa à proposta de uma Arte Incomum, por meio da
afirmação de duas categorias antagônicas: “arte ingênua” e “arte psicopatológica”
(Andriolo, 2010b).
Entre o público e a obra de arte funda-se um campo intersubjetivo formado por
discursos e imagens provenientes de tempos históricos distintos; as mediações na
recepção das imagens possuem, na mesma medida, temporalidades diversas.
Observando os discursos da psicopatologia na formação do senso comum, notou-se uma
duração histórica de julgamentos estéticos fundamentados nos padrões clássicos de
representação da imagem, perspectiva central, harmonia da composição, figuração,
entre outros; tratava-se de uma permanência do modelo da imitatio tanto como
“preferência” do espectador quanto como parâmetro de avaliação da saúde mental.
Paralelamente à manutenção do modelo da imitação ao senso comum, estetas e
artistas contestaram no último século a vinculação da pintura à imitação ou à
representação, de modo crítico à referencialidade da imagem pictórica; noutras palavras,
uma pintura não refere outra coisa senão a si mesma. Não obstante, embora a pintura
não reproduza o mundo visível, é sempre um traço da relação entre os sujeitos e o
mundo. Na síntese de Eliane Escoubas (2005, p. 164), o ponto de vista fenomenológico
considera que “a pintura pinta as condições de visibilidade segundo sua modalidade
historial e não as condições da reprodução do real”. Nesse sentido, o espaço do quadro
não seria o espaço da representação, mas um pôr-em-obra do exercício do olhar.
Na concepção de Merleau-Ponty (1990, p. 294), a pintura não se limita à
superfície do quadro, pois na medida em que os objetos são escalonados em
profundidades forma-se uma concepção de mundo: “o quadro é feito para converter o
mundo em seu significado”. A pintura manifesta um certo tipo de civilização porque o
processo da percepção organiza-se de modo particular em cada momento histórico: no
176
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
interior da estrutura social, a imagem articula-se ao imaginário. A experiência
perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da imagem, o
mundo é constituído na vida social.
Pierre Francastel (1951/1990, p. 289) diria que uma obra de arte não é uma
“representação” ou uma “transposição”, figurativa ou simbólica, de dada realidade. “A
obra e o artista não são exteriores ao mundo sensível e ao mundo social em que agem.”
Por esse motivo, afirma: “um quadro não é um duplo da realidade, é um signo”. A
imagem não é um registro da natureza. Nesta, a concepção, o entrelaçamento entre
psicologia, sociologia e história deveria considerar a imagem no seguinte sentido:
Há o mundo, a imagem vivida; há a imagem percebida que é uma
realidade espiritual para cada autor e cada espectador; há a imagem
notada, que constitui o signo de reconhecimento; e a imagem virtual,
que permite a transmissão do pensamento do autor para o espectador.
(p. 38)
Na sequência de seus estudos, Francastel (1987) trabalhou por uma interpretação
estrutural da imagem, de modo crítico às concepções que afirmavam que as formas na
arte eram projeções de uma imagem estável que representa uma reprodução fiel da
realidade. Ao contrário, as formas na arte são o resultado de montagens, as quais
manipulam fragmentos do real.
Nestas breves enunciações introdutórias, o problema da pesquisa está colocado:
primeiro, a contínua confecção de imagens e dos julgamentos do senso comum
baseados na concepção de imitação; segundo, uma concepção de pintura que nega a
referencialidade, afastando-se da relação com a natureza, e rejeita o caráter da imagem
como imitação. O encaminhamento para esse problema se dá, inicialmente, pela
retomada do conceito de mimesis e seu lugar na crítica contemporânea, seguida de uma
formulação acerca do engajamento, para concluir com a ideia de que a imagem pictórica
não é imitação ou transposição, mas transformação do mundo em pintura.
A mimesis
Ao tratar de imagens, referindo um monumento, um lugar, a natureza ou a
paisagem, a concepção de imitação (imitatio) percorre os significados do conceito da
mimesis, desde a tradição clássica até os usos contemporâneos. Do grego mímesis, por
vezes identificado com imitação do gesto, da voz ou da palavra de outrem, também da
representação do real na arte, sobretudo literária. A mímica e o mimetismo são ações
177
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
concernentes ao imitar no contexto da natureza e da estética, girando em torno de dois
significados básicos: a imitação referida à natureza enquanto fenômeno, objeto ou
processo; e a representação no contexto da arte. Na tradição estética, envolve a relação
entre arte e natureza.
No pensamento grego, denotava imitação, representação ou retrato, incluindo a
pessoa que imita ou representa em uma teatralização, com movimentos corporais,
danças, músicas e recitações, afetando a alma em sentido terapêutico (Ribon, 1991). Em
Platão, o mundo mimético é inferior ao original imitado, de modo que a imitação e a
representação produzem aparências e ilusões para a percepção. Sobretudo a arte imitaria
o mundo fenomênico, o qual é em si a imitação do mundo “real”, o mundo das Ideias.
Para Aristóteles, a inclinação à imitação difere o ser humano de outros seres. A arte
seria a expressão natural dessa faculdade humana, uma experiência humana
fundamental dentro mundo (Puetz, 2002).
A doutrina acerca da arte como imitação ocupa lugar de destaque no jogo político e
artístico com a estética clássica, a mimesis na concepção de imitação perdeu espaço com
o romantismo, quando o conceito de expressão e a palavra poética ocupam o centro do
debate estético. Não obstante, Hans-George Gadamer (1992) indicou a possibilidade da
retomada da mimesis fora dos quadros do classicismo na compreensão da arte moderna.
A alegria do disfarce, a alegria de representar qualquer outra
coisa que não seja a si mesmo e a alegria daquele que reconhece
na representação aquilo que é representado, mostram bem qual o
sentido verdadeiro da representação imitativa: não se trata em
hipótese alguma de comparar ou de julgar a proximidade maior
ou menor da representação em relação àquilo que é significado
nesta representação. (Gadamer, 1992, p. 109)
A análise crítica aparece como fenômeno secundário nesse jogo. O fenômeno
primário consiste em reconhecer algo que já se conhece em outra forma. A experiência
mimética é uma relação original na qual “aquilo que se realiza, não é tanto uma
imitação, senão uma metamorfose” (Gadamer, 1992, p. 111). Esta concepção permite a
retomada da mimesis sem a dependência da teoria clássica da imitação; não consiste em
algo que reenvia a outra coisa que é seu modelo, mas sobretudo a algo que existe e
possui um sentido em si.
Como notou Luiz Costa Lima (1981), mimesis não é imitação no sentido
contemporâneo, não há correspondência em nossas línguas ao sentido grego, mas ela
assemelha-se à imitação e remete à ideia de verossimilhança. A seu modo, Costa Lima
178
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
(1989, p. 68) propõe a retomada da mimesis, a despeito do fim de sua forma organizada
pela imitatio:
a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável,
porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de
semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e
as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e
culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de
semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença.
Historicamente, três termos jogam socialmente o processo de significação da
experiência estética: imitatio, imago e mimesis. A categoria da imitatio nos séculos XVI
e XVII, fundamentava-se em uma sociedade estamental,
com uma homogeneidade de representações a aproximar autores e
público e a permitir a decodificação da alusividade das figuras,
mediante referências previamente conhecidas. Naquele contexto, a
produção manual da imago era definida pelo modelo da imitatio, por
meio da qual a mimesis servia para limitar a tarefa das imagens na
transmissão da experiência e ao culto à razão. (Costa Lima, 1989, p.
39)
Durante o período, considerando sua luta contra o classicismo, a noção de imitação foi
substituída pela de expressão, na qual a participação do indivíduo é acentuada. Contra a
imitatio, a obra de arte adquiria veracidade pela expressão da vida (p. 62). Na afirmação
de uma subjetividade individual a ser expressa no espaço da imagem, o conceito de
mimesis, então associado à imitação clássica, cai no ostracismo (p. 106).
A virada provocada pelo pensamento de Luiz Costa Lima está em proceder à
retomada da mimesis a despeito do fim de sua forma organizada pela imitatio. Esta
visada acompanha a Escola de Kontanz, notadamente nos pronunciamentos de Hans
Jauss. Próximo de Wolfgang Iser, o caminho proposto em Costa Lima (1989, p. 62)
esclarece que é próprio do discurso ficcional “ser acolhido como uma articulação de
imagens, ser tematizado pelo imaginário”. O recurso ao aprofundamento da tematização
do imaginário não se dá por uma teoria do poético, mas por um reexame da mimesis, a
ser compreendida no espaço social de circulação da imagem, entre o autor e o receptor,
cuja atividade do imaginário cria novos mundos. A retomada da mimesis, portanto,
deveria questionar sua correspondência à imitação clássica para ser pensada como um
fenômeno social no qual se produz a diferença (p. 268). A substituição do modelo da
imitatio concebia uma realidade não unívoca, desde os românticos, considerando-se a
existência de múltiplas realidades, descritas posteriormente no plano fenomenológico e
psicossocial por Alfred Schutz.
179
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
No limite, a atividade mimética está relacionada à vida social e intersubjetiva, não
apenas restrita à produção racional de modelos. A passagem para o debate psicológico e
sociológico fundamentou-se em Walter Benjamin e em Theodor Adorno, encontrando
um profícuo debate contemporâneo com o antropólogo Michael Taussig e o historiador
René Girard. De modo sintético, nesses autores, a mimesis aparece em formulações
associadas à alteridade, desejo e política, quando emerge a concepção conforme a qual a
mimesis, ao operar o jogo da imitação entre os humanos, paradoxalmente promove a
noção de diferença entre o eu e o outro.
Minha proposição para articular a sobrevivência da atividade pictórica e o
discurso acerca da imitação baseia-se no conceito de mimesis, em uma transposição do
campo literário para as artes visuais, no campo da psicologia social: o conceito de
mimesis deverá articular a produção da imagem à experiência social. Nos livros de Luiz
Costa Lima este conceito foi examinado com vistas à literatura, não obstante, iluminamse ali correspondências importantes com as artes visuais, tema que o próprio autor
explorou posteriormente (Costa Lima, 2004).26
O problema da mimesis instaura uma dimensão psicossocial, em referência a
autores centrais como Schutz e Goffmann – nos quais os discursos da “verdade” e da
“ficção” são dimensionados por molduras históricas. Também por afirmar a
compreensão de uma ficção cotidiana, uma ficção não confinada à literatura e às artes.
Enfim: “A interpretação posta insiste, ao invés, na historicidade radical dos produtos do
homem e na necessidade de levá-la em conta para não convertermos o mundo no vasto
espelho em que se mira o nosso pobre eu” (Costa Lima, 1989, p. 45).
Se há um conceito que perpassa toda a história da psicologia social, esse conceito
é o de “representação”. Uma série de debates foi feita sobre esse termo desde Durkheim
e Mauss, na concepção de “representações coletivas”, no artigo “De quelques formes
primitives de clasification: contribution à l’étude des représentation collectives” (1903),
até a contemporânea “teoria das representações sociais”, esboçada por Serge Moscovici
e Denise Jodelet (1984). Trata-se de um conceito controverso, o qual não está no centro
de minha discussão, mas que solicita mínima definição.
26
Diante da vasta obra intelectual de Costa Lima, a discussão circunscreve apenas a sua formulação
original, em três momentos: no capítulo “O questionamento das sombras: mímesis e modernidade”, em
Mímesis e modernidade (1980/2003), sobretudo nos tópicos iniciais dedicados à sociedade, os sistemas de
representação e a representação poética; no artigo “Mímesis e representação social”, publicado em
Dispersa demanda (1981); na fundamentação teórica do Controle do imaginário (1983/1989).
180
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
As representações mentais e as categorias da experiência estética, de cada período
e de cada classe social, devem ser compreendidas em seus próprios fundamentos. O ato
da representação mental dos objetos do mundo percebido é um processo de relação
entre dois termos, cuja dinâmica deve ser concebida em constante transformação, seja
no âmbito do próprio pensamento, seja no mundo ao qual se relaciona (Prado Júnior,
1959, p. 46). As representações mentais formadas por espectadores a partir de uma
pintura qualquer serão diferentes e compartilhadas. Há um núcleo comum nas
representações, o que as remete à sua origem social e possibilita a comunicação, por
outro lado, como representações mentais, são produtos da percepção e cognição de um
indivíduo, organizadas em seu estilo cognitivo. Roger Chartier (1991, p. 182) notou a
contribuição das representações na compreensão das “múltiplas configurações
intelectuais pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos grupos que
compõem uma sociedade”, em “lutas de representação” na hierarquização da estrutura
social.
Do ponto de vista de Costa Lima (1980/2003, p. 88), a inserção social se dá
através de um meio cultural restrito à classe social, por meio da qual se tem acesso a
uma rede de símbolos, como na respiração em uma dada atmosfera, repleta de
representações ou sistemas de representações: “a sociedade respira e transpira
representações”. Os sistemas de representação organizam as categorias, as
classificações e as formas de relação entre os objetos e seres. “As representações são,
por conseguinte, os meios pelos quais alocamos significados ao mundo das coisas e dos
seres. Por elas, o mundo se faz significativo. E o choque de significações de imediato
resulta do choque de representações.” (Costa Lima, 1981, p. 219)
Grupos sociais distintos possuem sistemas de representação diferentes, portanto
processos de significação próprios. O sentido horizontal das representações é fornecido
pelas relações espaciais de proximidade e distância e pelas relações temporais de
passado e presente. As coisas significam, originalmente, porque o corpo próprio nos
situa em um mundo cultural e social (Merleau-Ponty, 1945/1999). Objetos como carros,
roupas, aparelhos tecnológicos ou comportamentos, gestos e rituais são elementos
configurados conforme representações que estabelecem classificações em sentido
vertical.
Os movimentos das representações se relacionam com a vida material da
sociedade, mas não de modo mecânico. Nos sistemas de representação encontram-se os
rituais da vida cotidiana, sistemas de orientação e sinalização, formados em redes
181
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
simbólicas, destinados a situar os indivíduos em relação ao espaço, às coisas e os outros.
No interior da estrutura social, oferecem o instrumento para identidade e a distinção
social, têm caráter coercitivo. O eixo das representações diz como o agente tematiza o
mundo: as diversas formas de se dirigir a uma paisagem, por exemplo, são tematizações
que identificam as características sócio-políticas de viajantes e turistas (Costa Lima,
1980/2003, p. 92).
As representações são como as molduras (frames) conceituadas por Goffmann
(1974). Formas apreendidas pela pessoa no exercício da vida social, cuja origem é
esquecida na vida cotidiana.27 A abordagem sociológica de Alfred Schutz considerou
serem as relações humanas presididas por “tipos”, passando do mais anônimo ao mais
personalizado, diminuindo a dominância da reação “típica”, a qual jamais é superada de
todo no quadro das representações (Costa Lima, 1981, p. 222). Schutz (1979) trabalhou
com a noção de estilo cognitivo, por meio do qual se organiza a experiência na vida
cotidiana, na poesia e na ciência. O sujeito vive em múltiplas realidades, a realidade da
vida cotidiana é predominante, mas existem outras, como o mundo sonho, o mundo
jogo na criança, o mundo do insano. O que é experienciado é real para o sujeito. As
citações a Goffmann e Schutz recordam que aqueles autores não utilizaram o termo
“representações”, não obstante tanto as molduras quanto as orientações típicas sejam
correspondentes àquilo que o conceito de representações procura compreender –
“antídotos contra a invisibilidade do outro” (Costa Lima, 1981, p. 223).
A originalidade de Costa Lima foi proceder pelo entrelaçamento entre
representação social e mimesis. A prática do poético é a condensação da atividade da
representação, sem a qual o indivíduo não se reconhece na comunidade. Desta feita, o
poético não é reflexo da sociedade, é um dos núcleos necessários ao conhecimento da
vida social. Na proposição de Costa Lima (1980/2003, p. 90), a atividade poética é
produção simbólica de que se investe simbolicamente a ação social, ao mesmo tempo
em que se constitui como uma das formas da representação social. A experiência da arte
27
Na comunicação, o “cerimonial” corpóreo e social possibilita a apreensão de significados particulares,
além do significado da palavra. No dizer de Erwin Goffmann (1974), tal como citado por Costa Lima
(1981), mais que informações transmitidas os falantes apresentam uma cena teatral. A invisibilidade dos
processos cognitivos e sensíveis do outro causa vulnerabilidade nas relações humanas, deriva daí a
criação de frames que “têm a finalidade de apresentar aos parceiros de cada ato de comunicação como
que um espaço adequado [...] que permita aos interlocutores regular suas idas e vindas verbais” (p. 221;
grifo no original). Ocultamos de nós mesmos o papel que representamos: “ignoramos que o um se forja
pela imagem indeterminada do outro... [...] E, porque não o sabemos, não é apenas o outro que se nos
escapa, escapamo-nos sem cessar de nós mesmos” (p. 222).
182
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
baseia-se em um acordo entre a proposta do autor e a aceitação do espectador ou leitor,
pautado por uma norma estética em uma ordem social (p. 92).
“A principal característica da função estética está em sua oposição à função
pragmática.” (Costa Lima, 1980/2003, p. 93) Na função pragmática, o objeto está a
serviço de algo e é instrumento da ação – por exemplo, na linguagem, a palavra destinase à comunicação direta com o real. Não obstante, na estética, a comunicação estabelece
uma relação indireta com o real. Neste ponto, “a mimesis se distingue de outras formas
de representação social” (p. 93). Resultam dois efeitos: a obra poética se realiza pelo
leitor/espectador, sem o qual ela é um quadro de indicações; a participação do
leitor/espectador transforma o esquema da obra em representação de realidades
diversas.
No seu uso corrente, o conceito de mimesis supõe uma homogeneidade entre o
representado (referente) e o representante (objeto da mimesis ou mimema), este último
“importa enquanto ilustra uma determinada visão de mundo” (Costa Lima, 1981, p.
227). No entanto, do ponto de vista do produtor,
o próprio da mimesis consiste em, através de um uso especial da
linguagem, fingir-se outro, experimentar-se como outro ou ainda usar
a linguagem, não como meio de informação, mas como espaço de
transformações, cumpridas não em função de um referente a que
descreveria, mas possibilitadas pela própria ideação verbal formulada.
(p. 229)
Neste ponto, concentra-se a afirmação de Luiz Costa Lima: mimesis trata de um abrir-se
para a experiência da alteridade.
Essa proposição conduz ao seguinte: “A mimesis supõe em ação o distanciamento
pragmático de si e a identificação com a alteridade captada nesta distância. Identificação
e distância, identificação a partir da própria distância constituem pois termos básicos e
contraditórios do fenômeno da mimesis” (Costa Lima, 1981, p. 230). Entre a
representação e as representações, a distância possibilita a apreciação: “essa distância,
pois, ao mesmo tempo que impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite
pensar-se sobre ele, experimentar-se a si próprio nele”. Ao exigir identificação e
distância, o produto mimético aproxima-se da experiência estética, no interesse
desinteressado, propicia prazer ao espectador na relação com o mundo sensível. Em
suma: “a identificação necessária do receptor com o mimema se cumpre pelo
reconhecimento pelo receptor das representações sociais alimentadoras da mimesis” (p.
231).
183
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
O termo passível de articular essa experiência sensível é “semelhança”. A
semelhança entre a representação mimética e as representações do espectador
organizam a identificação. A experiência da mimesis possibilita ao espectador dois
vetores contrapostos e sincrônicos: 1) identificação, semelhança, prazer; 2) diferença,
distância, questionamento (Costa Lima, 1981, p. 232). Determinados pelo tempo
histórico e pelo processo social, os significados são transitórios e dinâmicos. Atuando
apenas conforme o primeiro vetor, na identificação, o espectador converte o objeto em
kitsh e elimina o paradoxo da experiência mimética e da experiência estética: a mimesis
torna-se fenômeno compensatório. Quando prevalece o segundo vetor, na distância
crítica, a experiência mimética se converte em experiência teórica, passa a viver no
plano conceitual, abandonando também o campo da experiência estética.
Na conclusão de Costa Lima, a experiência da mimesis impõe antítese
fundamental entre os dois vetores, identificação catártica e distanciamento crítico. Nesta
concepção, o privilégio da interpretação não pertence ao analista, detentor da
normatividade estética ou do purismo da arte pela arte, mas solicita o estudo do período
histórico e dos processos sociais nos quais “se atualiza a ideia de mimesis em relação
com as formas vigentes de representação social” (Costa Lima, 1981, p. 232; grifo no
original).
O engajamento
Mimesis pressupõe engajamento. Do modo como se encaminhou a discussão até
aqui, a mimesis opera na vida social em um jogo de identificação e diferença organizado
a partir da própria experiência corporal entre artistas e espectadores. Da percepção de
espaço e tempo aos processos cognitivos e sensíveis, as representações mentais
(entendidas sempre como sociais) possibilitam a realização desse jogo, na forma da
experiência estética.
A primeira consideração acerca do engajamento trata da situação corporal. Em
nossa ancoragem no mundo – horizontal, vertical, próxima, distante etc. –, as coisas são
estruturadas pela nossa relação de seres encarnados no mundo.
O mundo só tem significado porque tem uma direção; toda
localização dos objetos no mundo pressupõe minha localização;
num sentido, o objeto da percepção não cessa de nos falar do
homem; é nossa expressão como sujeitos encarnados. O objeto
já está diante de nós como um outro; ajuda-nos, por isso, a
184
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
compreender como pode existir percepção do outro. (MerleauPonty, 1990, p. 291, grifos no original)
O corpo próprio realiza a unidade dos sentidos na experiência sensível do mundo;
o audível é, ao mesmo tempo, visível, e o tátil é gustativo. Na afirmação de FrayzePereira (2006, p. 161): “A fragilidade, a rigidez, a transparência e o som cristalinos
traduzem uma única maneira de ser”. A partir da experiência de ser encarnado: “os
aspectos sensoriais de uma coisa constituem conjuntamente uma mesma coisa, como o
olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo
corpo integrados em uma única ação” (p. 163). Na vida social, as ações de um corpo
organizam-se em relação aos outros corpos, formando a base vital da intersubjetividade.
As obras de arte, os objetos estéticos, as imagens constituem-se enquanto processo
social entre os corpos sensíveis de modo intersubjetivo.
A segunda consideração acerca do engajamento, a partir dos movimentos do
corpo, próprio e do outro, remetem à vida social. Em Merleau-Ponty (1947/1989, p.
143), “Os fatos sociais não são coisas nem ideias: são estruturas”. A estrutura garante o
funcionamento social, aparecendo como óbvia aos que a praticam. Para o filósofo,
Marcel Mauss intuíra a questão das totalidades na vida social ao conceber o social como
simbolismo, onde operam as representações, e respeitou tanto a realidade do indivíduo
quanto a do social, criando uma alternativa a uma falsa oposição. O indivíduo e o social
são duas totalidades, entrecruzadas em dupla perspectiva.
Por meio da concepção de engajamento, o social é compreensível não como
“consciência coletiva”’, “mas intersubjetividade, relação viva e tensão entre os
indivíduos” (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 132). Para tanto, cada consciência deverá,
ao mesmo tempo, “se perder e se encontrar na relação com as outras consciências”.
A concepção política na fenomenologia articula a estrutura social e na vida
cotidiana. Nas palavras de Hwa Jung (1972, p. xx), trata-se de pensar a “política do
mundo da vida” em sua configuração histórica, social e cultural. O mundo da vida
precede ao conhecimento conceitual, é pré-reflexivo, lugar das ações políticas, mais que
das teorias políticas. O homo viator, aquele que faz a si próprio e molda seu futuro em
suas ações, não tem propriedades fixas ou futuro predeterminado; está sempre aberto a
sua historicidade radical. O mundo da vida não é privado ao corpo do indivíduo, mas
intersubjetivo e socializado, a realidade social é seu dado originário e, a partir desta, a
ação política. (Jung, 1972, p. xxii)
185
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A terceira consideração releva a temporalidade dos processos psicossociais,
inscrita no “campo de presença”: o engajamento exige uma perspectiva histórica
(Berger e Luckmann, 1973, p. 218). Nesse campo, emergem as “categorias da
percepção”, concebidas como classificações dos estímulos visuais numa dada
experiência social, variáveis em relação à época e ao lugar (Baxandall, 1991, p. 48).
Tais categorias expressam em palavras a relação entre indivíduos e grupos sociais,
particularmente por intermédio de imagens e objetos estéticos. A historicidade da
percepção é constituinte da vida social, o sujeito enfoca o mundo perspectivamente,
“desde o íntimo e familiar até o distante e tipificado, com a intenção de viver” (Lowe,
1986, p. 31). O campo perceptivo constitui-se pelo percebedor, o ato de perceber e o
conteúdo do percebido. Assim, circunscreve as transformações temporais e espaciais do
campo perceptivo a partir de três fatores: 1) os meios de comunicação; 2) a hierarquia
dos sentidos que estruturam o sujeito como percebedor encarnando; 3) os pressupostos
epistemológicos que ordenam o mundo do conhecimento.
Partindo dessas três considerações acerca do engajamento, retoma-se sua
pertinência no campo artístico. Tal conceito remonta às práticas de artistas do século
XIX, para os quais o afastamento da Academia – instituição dominante na formação e
comercialização das artes plásticas daquele século – era pautado por uma ácida crítica
política. A arte moderna constituiu-se em uma forma de reação, de resistência, a qual
Luiz Martins (2008) considerou marcadamente anticapitalista, mas apenas em alguns
momentos revolucionária. Assim, “Daumier (1808-1879) contra a monarquia de LuísFelipe (1773-1850); de Courbet (1819-1877) e Manet contra o II Império e a república
conservadora, a seguir; de Cézanne e Van Gogh contra a industrialização”. Ao longo do
século seguinte, muitas e variadas correspondências estabeleceram-se em torno de uma
arte social ou engajada: “do fovismo e do cubismo contra a direita chauvinista que
levaria a França à guerra de 14; de Picasso e Miró (1893-1983) contra o franquismo; do
expressionismo abstrato contra o teor totalitário do macarthismo e da vida administrada,
nos EUA do pós-guerra” (Martins, 2008, p. 86).
A ação política permeia as práticas, entre os impressionistas e as vanguardas, mas
em outra chave, não necessariamente vinculada ao ideal revolucionário ou aos partidos,
mostrando-se, sobretudo, através de uma outra vida, de dedicação ao trabalho artístico,
em contraposição ao tempo da vida burguesa, em resistência à mediocridade, tal como
notou Maria Helena Patto (2000,p. 45):
186
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de
produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas
romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só
suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja
preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas
ideias políticas.
Dessa tradição origina-se a noção de “intelectual engajado”, a qual fundamenta,
por exemplo, as discussões de Marilena Chauí (2004 e 2005). Conforme a filósofa, no
projeto histórico moderno surge a figura do artista e do pensador independentes das
instituições eclesiásticas, estatais e universitárias, com autoridade teórica e prática para
criticar a ordem vigente. O marco cronológico dessa aparição foi a manifestação de Zola
frente ao Caso Dreyfus, quando o intelectual entra na cena pública e os responsáveis
pela confecção de imagens, até então a serviço da aristocracia ou da burguesia,
assumem posição independente e crítica. O que pauta esta noção de engajamento é a
relação estabelecida entre o artista e a ordem vigente, historicamente identificado com a
esquerda na batalha anticapitalista, ao reivindicar uma sociedade mais justa, ao
contrário da figura do ideólogo, responsável pela formulação teórica em favor dos que
detêm o poder econômico e social.
Têm-se, então, duas concepções cruzadas acerca do engajamento: a primeira,
marcadamente fenomenológica, remete à ação política na vida cotidiana, não apenas em
um nível partidário ou institucional, pois são ações situadas corporalmente e implicam
em reações aos outros; a segunda remete à tradição intelectual de esquerda, na ação
crítica e anticapitalista. As vinculações institucionais dos artistas, se à direita ou à
esquerda, no anarquismo ou no totalitarismo, indica um lado da moeda. A
comercialização de seus trabalhos, a escolha das técnicas e processos, os contratos de
exibição, a alienação, as posições nos centros de decisão ou nas margens, são decisões
cuja implicação é sempre política. A psicologia política das imagens proposta por
Mitchell (1986) pode ser compreendida como ação política em grande parte préreflexiva, no sentido assinalado por Merleau-Ponty (1999), nos atos cotidianos de seus
autores no mundo da vida, uma luta não articulada em conceitos ou palavras, mas em
imagens.
A evasão dos artistas na modernidade não representou apenas um deslocamento
geográfico, mas também uma ação política (Frayze-Pereira, 2006). Em seu caráter
subversivo, o conjunto de práticas designadas de “primitivismo artístico”, fundava-se na
autodidaxia e projetava os artistas numa relação de alteridade radical, seja ao buscarem
187
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
lugares distantes, como Gauguin na Oceania, seja em lugares escondidos, como os
manicômios visitados por Max Ernst. O artista Lasar Segall, por sua vez, antes de
instalar-se no distante Brasil, visitara o sanatório de Dresden, onde registrou em
gravuras a feição de internos. Nesse processo, o mundo da arte recebeu artistas
provenientes das classes populares, cuja manifestação estética bruta perturba o olhar
convencional do espectador de arte, nas figuras de Wölflin, Lesage e Bispo do Rosário.
Esses criadores não tematizam a instituição política na experiência da arte, estão fora da
lista dos artistas engajados, mas realizam uma obra em tensão às condições sociais
vigentes. O advento dos happenings e das performances rompeu com as formas
tradicionais de arte em ações que aproximaram os artistas do público, realizando na
prática aquilo que se propugnava teoricamente em nome de uma arte engajada,
sustentando a articulação “arte e política” (Fabris, 1998).
O engajamento é um fenômeno constituinte da vida sócio-política manifesto, de
modo particular, no campo artístico. Nos estudos de estética ambiental, o engajamento
tornou-se conceito central, por exemplo, em John Thornes (2008), quando recorre aos
artistas que trabalharam com o mundo natural, sejam as obras de arte representacionais,
não-representacionais, ou performáticas, desde John Constable e Paul Cézanne até
Richard Long e Andy Goldsworthyn; a perspectiva fenomenológica possibilita uma
abordagem crítica porque engaja tanto o artista quanto o espectador na natureza. A
apreciação do ambiente não se limita ao olhar, mas ao movimento vivo de todo o corpo
(Berleant, 1992). Os conceitos fenomenológicos recorrem ao trabalho dos artistas para
desenvolver a reflexão sobre o engajamento vital na sociedade e na natureza,
intensificando os debates promovidos por autores como Tim Ingold e Arnold Berleant, a
partir de autores tais como Merleau-Ponty e Heidegger, visando a um conhecimento
integral da experiência humana.
O corpo age entre outros corpos, no processo intersubjetivo, articulando as ações
políticas em um ambiente. O mundo da vida, ele próprio, se constitui nestas ações.
Além das dimensões corporais e políticas, a dimensão ambiental é condição para a
constituição do “campo estético”. Na abordagem de Arnold Berleant (1970/2000), a
estrutura do campo estético forma-se em torno do objeto ou do processo artístico, do
objeto intencional que é esteticamente significante quando ocorre uma transação
engajada do espectador. Nesse sentido, uma estética do engajamento resulta de uma
revisão crítica da teoria da “arte desinteressada”, particularmente a partir das
188
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
transformações artísticas da década de 1960, em happenings e performances, afirmando
o caráter participativo do espectador.
A formulação de Berleant prolonga-se em diversos estudos posteriores, tais como
Art and engagement (1991) e The aesthetic of environment (1992), por meio dos quais a
concepção de engajamento organiza-se entre corpo (Merleau-Ponty) e o social (Kurt
Lewin) em situação ambiental. Notado de modo evidente na experiência da arquitetura,
na qual o espectador é antes participante e a construção é inseparável do lugar, as
imagens no jogo da mimesis situa-se por meio do conceito de engajamento, tornam-se
tangíveis no mundo empírico e compreensíveis na experiência estética. “A confluência
destas ideias germinais – a centralidade da percepção tanto para a vida humana quanto
para a experiência estética – sugere que o ambiente como condição da vida abriga
dentro de si a semente da estética” (Berleant, 1992, p. 156). No campo da experiência
estética, não há ações desinteressadas, seja na arquitetura e na música, seja no teatro e
na pintura. “Engajamento abre tais artes para um envolvimento que transcende os
limites usuais de subjetivo e objetivo, encorajando a mutualidade da participação na
situação estética, a qual reúne ambos, objeto e observador, dentro de um domínio
unificado.” (p. 156)
A transformação
Quando se esboça passagens entre domínios distantes, entre as antigas colônias de
pintores e os agrupamentos de artistas nas cidades turísticas, embora tentando
circunscrever um mesmo fenômeno social, está-se certamente trabalhando sobre
significações distintas, por vezes antagônicas. De modo geral, foi observado o
desenvolvimento da categoria do pitoresco como experiência social e a rarefação da
categoria do sublime, enquanto, de modo específico, a imagem opera por meio de
categorias concernentes à imitação, documental e ingênua. O resultado no conjunto das
pesquisas reunidas foi uma discussão acerca da natureza da imagem, apreendida no
processo histórico e social, pela sobrevivência da noção de referencialidade, ou seja, da
transformação do mundo em pintura. No centro dessa operação está a imagem,
compreendida como mediação regulada pelo conceito de mimesis. Como jogo social, a
mimesis descreve um processo simbólico de semelhança e diferença, entre os polos da
identificação catártica e do distanciamento crítico (Costa Lima, 1981, p. 232). Para que
189
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
esta afirmação não se tornasse apenas uma abstração, recorremos ao conceito
fenomenológico de engajamento corporal e social na estrutura do campo estético, por
meio da participação do artista e do espectador.
O filósofo Hans-Georg Gadamer (1985) tem indicado a importância da
compreensão da historicidade da consciência para a interpretação da arte,
surpreendendo o leitor com a proposição sobre a atualidade do belo, em um período
histórico da arte em que esse conceito foi relativizado pelo campo artístico. Na mesma
medida, Gadamer abordou o tema da mimesis, não o restringindo à arte clássica, mas o
ampliando para o desenvolvimento da arte moderna. O fenômeno primário do jogo da
mimesis consiste em reconhecer algo que já se conhece em outra forma. A experiência
mimética é uma relação na qual se realiza uma metamorfose (Gadamer, 1992, p. 111).
O termo grego metamórphosis indica a transformação de um ser em outro ou a
mudança de forma ou de estrutura na vida de certos animais. A palavra transformação,
do latim transformatione, é o ato ou o efeito de transformar, mudar. Em um momento
no qual os termos “mudança” e “transformação” estão grandemente associados ao
contexto social, a questão a ser enunciada indaga sobre o que transforma. Quando se
correlaciona arte e mudança social (e.g. Bradley e Esche, 2007), está-se trabalhado com
a concepção de artista engajado em ação no processo social e político, visando à
estrutura de classes e injustiças sociais, em uma postura anticapitalista, por vezes na
utopia socialista. Por outro lado, muitas intervenções por intermédio da arte não miram
o capitalismo, ao contrário, o foco está na vida psíquica do indivíduo, em busca de
“harmonia” e “equilíbrio”. Entre esses dois polos, as imagens operam em diversos
níveis, como dito, da identificação catártica e do distanciamento crítico, ambas
arriscam-se a perder o fenômeno da experiência estética.
A transformação do mundo em pintura consiste inicialmente no trabalho de
conversão de elementos do mundo em comum em traços pictóricos no espaço do
quadro. Para além do conceito da imitatio clássica ou da representação moderna, o
conceito da mimesis ocupa um lugar central no jogo social da imagem. No caminho
proposto em Costa Lima (1989, p. 62), ao considerar a ficção como uma articulação de
imagens, a ser tematizada pelo imaginário e não por uma teoria do poético, estabeleceuse a mimesis como conceito para compreender o espaço social de circulação da imagem,
entre o autor e o receptor, cuja atividade do imaginário cria novos mundos e impõe a
experiência da alteridade. O fundamento da diferença pela imagem dá-se em sua
apresentação no campo estético, no qual a experiência estética no processo das imagens
190
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
opera entre o eu, os outros, o mundo em comum e o objeto icônico (formas, conteúdos,
exibição etc.).
Revista a concepção básica de mera conversão do mundo em elementos pictóricos
por meio da atividade do pintor, enquanto “a pintura pinta as condições de visibilidade
segundo sua modalidade historial e não as condições da reprodução do real” (Escoubas,
2005, p. 164), atingiu-se o ponto através do qual a transformação do mundo em pintura
é uma experiência ambígua, pois também ela participa da reversibilidade do
engajamento. Na concepção de João Frayze-Pereira (2004, p. 22), sistematizando a
filosofia merleau-pontyana, trata-se de “um sensível que é capaz de sentir, isto é, como
um sensível que sente, que é reflexivo”. Em suma, “o corpo é a expressão concreta de
uma existência ambígua.” Deriva daí a concepção de experiência estética por meio da
qual estão colocadas as questões da diferença e da alteridade. Conforme Frayze-Pereira
(1994, p. 56), quando uma pintura é exposta, o que se verifica é “o trabalho de
expressão de uma abertura impressa na tela”, a pintura se torna expressão no olhar do
espectador, por conseguinte, “o trabalho do espectador o que leva a efeito a operação
expressiva”. Nesse sentido, a experiência estética é “aquilo que nos abre para o que não
é nós”: “é o que nos coloca em contato com tudo o que é outro, isto é, com tudo aquilo
que ‘exige de nós criação para dele termos experiência’.”
A transformação do mundo em pintura opera em um duplo sentido. De início, o
pintor lança as formas, conteúdos e texturas do mundo sobre a tela, cria uma imagem.
Depois, a apreensão da imagem pelo espectador converte o próprio mundo no conteúdo
da pintura, por meio da experiência da diferença.
Convém recuperar o debate conduzido por Alberto Tassinari (2001), para uma
conceituação da arte moderna, acerca da comunicação e da distinção entre o espaço da
arte e o espaço do mundo em comum. Na fase de desdobramento da arte moderna,
quando objetos comuns ingressam no espaço da arte ou as obras de arte se misturam
com os objetos do mundo cotidiano, torna-se muito complicado discernir os limites
entre esses dois mundos. No dizer do filósofo, a pintura naturalista, mesmo ruim, é mais
artística que as obras da fase de desdobramento da arte moderna porque participa do
processo histórico de constituição de uma arte autônoma: “possuem um espaço próprio,
emoldurado ou bem contornado, e não levantam a questão costumeira: isto é arte?
Diante de uma paisagem canhestra diz-se que é ruim, mas algo de artístico permanece.”
(p. 55)
191
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
A discussão de Tassinari encaminha-se para a compreensão do espaço da arte
moderna e contemporânea, ao passo que minha pesquisa ateve-se na sobrevivência das
pinturas naturalistas -- portanto, a permanência de um espaço próprio emoldurado e
reconhecido pelo senso comum como artístico. O termo imitação desapareceu do campo
da crítica e da historiografia mais que dos domínios da estética, afirma Tassinari,
lembrando que Benjamin, Adorno e Gadamer o mantém ativo, bem como Pierre
Somville ao investigar a mimesis na arte contemporânea na direção da ontologia de
Heidegger e Merleau-Ponty.
Procurando se afastar dessas interpretações, Tassirani (2001, p. 56) considera
imitação e naturalismo duas noções distintas: “a perspectiva não imita as coisas, mas a
visão das coisas”. A imitação em um quadro é apenas uma forma dentre as várias
possíveis de tornar o imitado presente e não uma forma universal.
O ilusionismo perspectivo imita o espaço e as coisas no espaço
conforme o ponto de vista de um observador. Imita uma visão, algo de
individual e intransferível. Pensar que o espaço e as coisas se
resumem à visão que se tem deles é uma confusão que, não desfeita,
confundirá também imitação e naturalismo. (p. 57)
O naturalismo é uma das formas de imitação. Fora desta concepção, a imitação
pode ser percebida em uma imagem sacra medieval, ao tornar presente um ser ausente,
também em uma escultura ioruba pode despertar a presença da divindade de modo
intenso. No raciocínio de Tassinari (2001, p. 61), atinge-se novamente o ponto de
interesse deste texto: “A relação entre o imitante e o imitado só mostra corretamente o
grau de presentificação do imitado quando a obra está inscrita em práticas culturais de
uma determinada sociedade”.28
O duplo sentido se impõe quando a transformação do mundo em pintura sugere
uma produção social do próprio mundo; o mundo se constitui à imagem da pintura. O
artista, operando por dentro dos processos de percepção e cognição, “inventa” um
mundo em comum. O conceito de mimeses prolonga a ambiguidade na relação da
imagem com o mundo. Esta ambiguidade foi levada ao limite na abertura do capítulo
segundo de O olho e o espírito, de Merleau-Ponty (1961): “emprestando seu corpo ao
28
O conceito formulado por Tassinari (2001) é o de “espaço em obra” – “um espaço em obra imita, por
meio dos sinais do fazer, o fazer da obra” –, a ser compreendido como uma imitação, pois isso “o faz
diferente de um espaço qualquer do mundo em comum” (p. 56). No espaço em obra da arte moderna, a
proximidade entre imitado e imitante é menor, o espectador não encontra suporte na imitação nos
processos naturais da visão, nem em processos mágicos e religiosos. Além disso, a distinção entre o
espaço em obra e o espaço naturalista deve-se ao primeiro imitar o seu fazer por meio de sinais, ao passo
que o espaço naturalista imita por meio de imagens.
192
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
mundo o pintor transforma o mundo em pintura”. A relação estabelecida entre o corpo e
o mundo circunscreve o problema da mimeses em duplo sentido: o primeiro deles diz
respeito à imagem icônica, enquanto o segundo à imagem mental. De modo direto,
trata-se do exercício de conversão do mundo percebido em imagem pictórica. De modo
indireto, o mundo é transformado pela ação do pintor.
Na fenomenologia da percepção, o social e o pessoal configuram-se em duas
totalidades interligadas por meio do engajamento. A imagem realiza o processo de
mediação entre essas totalidades, acrescendo ainda sua forma e seu conteúdo próprios.
Para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 382), as imagens não estão ligadas ao seu sentido
por uma relação de signo a significação, “como se existe entre um número de telefone e
o nome do assinante”; elas encerram seu sentido: “não é um sentido nocional mas uma
direção de nossa existência”. As imagens incorporadas participam de toda a experiência
humana: uma imagem deve animar-se para os outros; a obra de arte juntará as vidas
separadas (Merleau-Ponty, 1980, p. 121).
Ao apresentar o problema da transformação do mundo em pintura, o filósofo
francês elabora o conceito de imagem, mal reputada, porque “se acreditou que um
desenho era um decalque, uma cópia, uma segunda coisa, e a imagem mental era um
desenho desse gênero no nosso bricabraque privado” (Merleau-Ponty, 1964, p. 23). A
imagem, o desenho, o quadro são “o interior do exterior e o exterior do interior”: “sem
os quais nunca se compreenderão a quase-presença e a visibilidade iminente que
fundam todo o problema do imaginário”. Nesse sentido, a mimesis não trata apenas da
substituição das coisas do mundo por objetos icônicos, pois o imaginário está inscrito
no corpo e na textura do mundo.
A imagem da mimesis não desdobra tão-somente os processos da produção do
objeto icônico em si, apreendidos pela história da arte, mas os processos sociais nos
quais a imagem opera na forma de mimesis para transformar o mundo em pintura, em
duplo sentido.
A afirmação acerca da ambiguidade da transformação do mundo em pintura não
contém nenhuma novidade. O que talvez se assinale como contribuição seja pensar suas
implicações empíricas no campo da pesquisa psicossocial. Desde Denis Diderot o
problema está colocado. No comentário ao Salão de 1767, discorreu sobre o pintor
Joseph Vernet e sua apreensão da bela vista de um campo. Em forma de diálogo, seu
interlocutor afirma: “eu não deixaria jamais a natureza para correr atrás de sua imagem;
por mais sublime que seja o homem, ele não é Deus”. Diderot retruca: “se Vernet vos
193
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet.”
(Diderot, 1767/1995, p. 633) Nestas palavras, o sistema de trocas está anunciado, o
duplo sentido da conversão do mundo em quadro e deste para a percepção do mundo.
Na virada epistemológica do século XVIII, os escritos científicos e estéticos de
Johann Wolfgang von Goethe inseriram a experiência corporal como parte integrante da
produção do conhecimento, em uma compreensão da participação do observador na
transformação do mundo. Para Goethe, embora o olho fosse um órgão natural da
percepção, era formado pela experiência e também poderia ser desenvolvido, tanto em
relação aos fenômenos naturais quanto às obras de arte. Na viagem à Itália, o encontro
com colegas pintores, escritores e escultores versava sobre teorias da estética e de
práticas artísticas minuciosas, refletidas no estudo de técnicas, de anatomia e de
perspectiva. Dizia o escritor: “a visão da paisagem magnífica à minha volta não desaloja
em mim o senso poético; bem ao contrário, acompanhada do movimento e do ar livre,
ela o suscita com maior rapidez” (Goethe, 1999, p. 26).
Nesse sentido, a imagem deixa de ser unicamente um objeto exterior para se
tornar a mediação dos processos de percepção e cognição na relação sensível com o
mundo. Trata-se de um instrumento para uma manifestação interior do escritor
designada de “fantasia sensória exata”, compreendida no desenvolvimento conjunto
entre o “desejo científico” e o “impulso artístico”, tal como apareceria no artigo
“Imitação simples da natureza, maneira e estilo” (Goethe, 1789/2005). Neste último, as
três passagens na observação da natureza, através da crítica à imitação clássica, dá-se
não em prol de uma expressão da subjetividade, mas por um trabalho do pensamento
que culmina na conjugação com o objeto na forma de conhecimento sensível.
As trocas na percepção, entre os quadros e os objetos do mundo em comum,
haviam sido exploradas por Ernst Gombrich (1977). Mais recentemente, Perter Burke
(2004, p. 55) notou a presença de viajantes do final do século XVIII a contemplar a
região do Lake District “como se estivessem tratando de uma série de pinturas
realizadas por Claude Lorrain, descrevendo-a como ‘pitoresca’” Para o historiador: “A
ideia de pitoresco ilustra um aspecto geral sobre a influência das imagens na nossa
percepção do mundo.”
Não obstante, Alain Roger colocou claramente a questão em termos de
“esquemas”, operando entre os conceitos e as imagens, produto da imaginação criadora,
núcleo gerador de novas formas. Para Roger, a história da percepção da natureza
depende da genealogia dos modelos artísticos. O pesquisador francês distinguiu duas
194
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
formas de transformação de uma região (pay) em paisagem (paysage) por intermédio da
arte: a primeira, chamada in situ, constitui-se de jardins, projetos paisagísticos e
intervenções artísticas como Land Art; a segunda, chamada in visu, opera sobre o olhar
coletivo, fornecendo modelos de visão, esquemas de percepção e deleite (Roger, 2000,
p. 33).
A percepção ingênua acredita que vê na pintura uma representação objetiva do
mundo em comum, também ele objetivo. O papel do espectador seria o de apenas
cotejar original e cópia para afirmação da capacidade imitativa do pintor. Na retórica
Clássica, acerca de Rafael ou Michelangelo, o modelo da imitação era a referência para
o exercício da comparação, enquanto nos domínios recentes da representação em
pintura, é o mundo em comum o modelo a ser cotejado. O mundo se torna objetivo
porque a participação do espectador configura representações mentais capazes de
reconhecer coisas, lugares e pessoas, por intermédio das imagens. A visão de um quadro
de paisagem não o compara com o ambiente referido, mas opera entre as representações
do espectador, as quais são produzidas distintamente pelos grupos sociais, propondo aos
seus membros uma experiência de semelhança e diferença; uma experiência de
alteridade.
Como produto social, as representações são modeladas pelas narrativas familiares,
pelos meios de comunicação, pelas imagens de arte, entre outros meios. No belo ensaio
de Michel Ribon (1991, p. 84), o tema da transformação é também invertido: “Nossa
percepção estética da natureza faz-nos descobrir, ao contrário e em grande parte, o que a
arte primeiro nos mostrou, e no mais das vezes a beleza natural só é apreendida pelo
viés da nossa cultura artística”. O autor discorre sobre uma série de exemplos
iconográficos do espaço europeu, os quais serão referidos resumidamente. Oscar Wilde
viu o cinza azulado e irisado das brumas londrinas depois de contemplar as pinturas de
Turner e Whistler. Balzac é sensível à beleza do Vale de Loing, em Nemours, ao
reconhecer o gado retratado por Potter, o céu de Rafael e o arvoredo de Hobbema. Na
literatura realista de Balzac, Ribon encontra a descrição pictórica de um quadro,
composição que ele próprio fornece, como um guia ilustrado, aos visitantes de Paris. As
paisagens da Île-de-France estão recheadas do olhar impressionista – Monet, Pissarro,
Van Gogh, entre outros. Que dizer do Monte Santa Vitória, visto por meio da pintura de
Cézanne?
No Brasil, teríamos a telas de Guignard nos ensinando a ver Ouro Preto entre
brumas e capelas. Outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades
195
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
turísticas baseadas nas antigas vilas do século XVIII -- por exemplo, Bracher, Scliar e
Djanira, que trabalham em pinturas que transformam as cidades em imagens de arte.
Além da relação com o olhar do turista, os pintores instigam questões sobre a paisagem,
intervêm na cidade, jogam através de uma política das imagens. Cícero Dias pintava no
Rio de Janeiro as paisagens dos engenhos do Recife. Também as formas arquitetônicas,
com Oscar Niemayer, ingressam nas formas de perceber a paisagem brasileira.
Estudando os espaços do turismo e das viagens, as correspondências entre as imagens
de arte e as representações sociais são notáveis, as quais podem ser recolhidas
empiricamente dando prova da efetividade das afirmações de Roger e Ribon, entre
outros autores.
Na medida em que a arte não informa apenas a própria arte, como enfatizava
Gombrich, ela informa toda a sociedade. Ribon procura reconhecer um lugar ainda mais
fundamental da experiência das imagens na vida social, considerando que a falta da
mediação artística resultaria em uma percepção do mundo sensório orientada apenas por
nossas necessidades práticas, cuja organização poderia até ser coerente, mas não tão rica
de sentidos.
À força de ser contempladas através de inúmeros esquemas artísticos
que não deixam de se mover em nós, as coisas mais rebeldes acabam
impondo sua marca ao nosso olhar; assim o real humaniza-se para se
tornar nossa morada: uma morada cujas chaves nos são dadas pela
arte. (Ribon, 1991, p. 86)
Propor hoje o estudo da pintura, em relação à representação e à mimesis, parece
algo antiquado frente ao debate “pós-moderno”. Não obstante, a manutenção da prática
pictórica em um desenvolvimento acelerado das imagens cibernéticas, a circunscrição
de um problema central dos processos cognitivos em psicologia social frente ao avanço
das explanações intrincadas das neurociências sobre o cérebro e, por fim, a permanência
do modelo da imitação como chave para a compreensão das imagens, ao contrário de
um antiquário, assinalam tensões fundamentais da historicidade de nossa vida social.
A manutenção da prática pictórica em um mundo cujo desenvolvimento acelerado
é cravado por imagens tecnológicas, especialmente as cibernéticas, baliza a
interpretação. Ao rejeitar a redução da designação de “arte turística” para a produção
realizada por pessoas dedicadas à pintura, as quais são evidentemente comercializadas
no espaço o turismo, indica a manutenção da prática da confecção manual de imagens
no mundo contemporâneo, entre outras atividades manuais, cuja significação repercute a
polaridade oposta, qual seja, o excesso das imagens tecnológicas e o abandono das
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
atividades de ordem manual na sociedade tecnológica.
Não trabalhando apenas com a noção de uma “arte turística” que delimite a ação
dos artistas ao mercado do turismo, nem se atendo às hierarquias do campo artístico, no
interior do qual tais manifestações não são reconhecidas como “de arte”, ressalta-se a
escolha de pessoas que abandonaram os grandes centros urbanos para viver nessas
pequenas localidades por meio do trabalho manual, notadamente a pintura. Esta escolha
poderia ser considerada uma manifestação conservadora, mas não poderia aparecer
também sob a forma de resistência?
Na série histórica das imagens, a pintura manual, a fotografia automática e a
computação gráfica trazem os problemas das novas funções e modalidades da difusão e
recepção, aos quais Annateresa Fabris (2006, p. 174) acrescentou a questão da
“distribuição de representações” formulada por Pierre Lévy:
Nessa ótica, ocupam o centro do debate hodierno disciplinas como a
psicologia e a sociologia, a esfera das representações e o domínio da
técnica, uma vez que se estabelecem novas relações entre sujeito e
objeto, entre a interioridade do indivíduo e os instrumentos da
comunicação.
Decorre do choque das representações uma “batalha pelas imagens”. A constatação
acerca da duração das comunidades de artistas e do processo de transformação dos
significados, na economia do turismo e na sociabilidade em geral, permite pensar sobre
a participação das imagens de arte na formação do olhar coletivo, sobretudo porque
fontes não-artísticas concorrem para modelar a percepção em uma batalha silenciosa:
publicitários, jornalistas, operadores de viagens etc.
Despojados do idealismo da ventura do ser do artista, teríamos diante de nós
algumas questões cujo teor não é tão-somente filosófico e, portanto, solúvel no plano da
estética. Porém, de implicações pragmáticas. John Urry (1996), em seu estudo sobre o
olhar do turista, inicia a discussão pela afirmação do turismo como produtor de
diferença, diferença que suscita o deslocamento. O olhar do turista varia de acordo com
a sociedade, o grupo social e o período histórico, é construído por meio da “diferença”,
historicamente em relação a seu oposto, com formas não-turísticas de experiência e de
consciência social.
Em um momento em que as imagens devoram os espectadores, na proposição da
iconofagia de Norval Baitello Júnior (1995) ou da iconofobia de Mitchell (1986),
afirmar filosoficamente ou esteticamente as transformações do mundo em pintura
deixaria em aberto sua repercussão empírica, ou seja, sobre as relações sociais concretas
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
entre artistas, espectadores, instituições e comunidades na duração de processos
imagéticos. Em contraposição, como conduzir teoricamente essa problemática sem
perder o fenômeno empírico e, sobretudo, sem dar as costas ao duplo aspecto do
enunciado, de um lado pertinente à psicologia social e, de outro, à estética? A retomada
do antigo conceito de mimesis possibilitou pensar o jogo social das imagens sem perder
suas facetas. Os fazedores de imagens são atores fundamentais no jogo social pela
produção dos esquemas, modelos ou padrões destinados à percepção cotidiana, ao que
se estudou em termos de representações sociais, no interior dos processos sensíveis e
cognitivos.
Não foram quaisquer imagens as recolhidas pela pesquisa. A grande maioria era
formada de paisagens, as quais, longe de ser uma expressão natural da referência ao
ambiente, é a afirmação de uma posição social sobre os lugares e sobre os outros. Na
confecção de imagens icônicas, os artistas das cidades turísticas acabam por trabalhar
dentro de um imaginário determinado. Recorrendo mais uma vez a Baitello Júnior
(2005, p. 92), contraditoriamente ao trabalho do imaginário de abertura de novos
mundos, a “órbita do imaginário” arrisca a contrapor-se à força da imaginação,
limitando a ação das imagens criativas: “entra em profunda crise diante do adensamento
da órbita do imaginário, diante de seu fechamento para qualquer olhar que queira
transpô-lo”.
As categorias da experiência estética foram significadas em relação à memória
nacional e a identidade do país, no interior do desenvolvimento das práticas turísticas.
Repercutem o gênero paisagístico oitocentista, em categorias da experiência estética
referindo à imitação, à impressão e à ingenuidade, sobretudo permeadas pela
experiência social do pitoresco. De outro lado, cabe assinalar que artistas como Djanira
e Bracher conduziram a experiência da paisagem a espaços não-turísticos. As minas de
ferro pintadas em série por Djanira, em cores vivas e geometria exata, com as máquinas
trabalhando em Itabira. Com Bracher, as chaminés, os fornos e a estrutura da siderurgia.
Os termos passíveis de articular essa experiência sensível são semelhança e
diferença. A semelhança entre a representação mimética e as representações do
espectador organiza um processo de identificação e diferenciação. Como se descreveu, a
partir de Costa Lima (1981, p. 232), a experiência da mimesis possibilita ao espectador
duas atitudes: (1) identificação, semelhança e prazer, o espectador converte o objeto em
kitsh, a “arte turística” elimina o paradoxo da experiência mimética, bem como da
experiência estética; (2) diferença, distância e questionamento podem converter a
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A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
experiência mimética em experiência teórica, que passa a viver no plano conceitual,
abandonando também o campo da experiência estética.
A circunscrição de um problema central dos processos cognitivos em psicologia
social, frente ao avanço das explanações intrincadas sobre o cérebro das neurociências,
retomou o debate sobre as representações mentais para não perder sua dimensão de
classe e de grupo social, em constante conflito. Todas as imagens formam o olhar. Ao
considerar as representações como processos sociais, emerge a pergunta sobre quem
tem as imagens sob o olhar. Reconhecido como um dos maiores paisagistas brasileiros,
Emygdio de Barros nos instiga a visão de um mundo de mesclas entre o real e a
fantasia. Entretanto, quantos receberam essas imagens e tiveram suas representações
moldadas por elas?
Nas especificidades históricas da sociedade brasileira, na formação de seu
imaginário, qual o lugar das imagens de arte nas representações sociais? Seja qual for a
hierarquia concebida no mundo da arte hegemônica, quando as imagens de diversos
artistas ganham o espaço social, elas entram em disputa com as imagens não-artísticas,
imagens manuais ladeiam as imagens cibernéticas, configura-se um mundo de imagens
em conflito, no qual a imagem não é apenas uma coisa física, mas o movimento de
mediação entre o objeto icônico, a experiência corporal e a imagem mental: a
transformação do mundo em imagem nos processos políticos e culturais.
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211
212
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Nota sobre os Capítulos
1.
O fenômeno das imagens e a psicologia social. Texto revisto e ampliado de
palestra apresentada no Séminaire de Recherche du Pôle Image et Information,
organizado
pelo
Groupe
de
travail
inter-laboratoires
sur
l’Image,
la
Communication et les Arts, em fevereiro de 2010, Département Communication
et Hypermédia do IAE Savoie Mont-Blanc, da Université de Savoie, França.
2.
A pintura é um traço de nossa relação histórica com o mundo. Publicado em
Revista Poiésis, Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das
Artes da Universidade Federal Fluminense. Niterói: PPGCA/PROPP, n. 17, Jul.
2011. Foi originalmente apresentado no I Congresso Latino-Americano da
Psicologia - ULAPSI, 2005, São Paulo, indagando sobre as homologias entre
imagem e vida social, em Merleau-Ponty, Panofsky e Francastel.
3.
Imagem da Natureza, Natureza da Imagem. Texto inédito. Aula apresentada na
disciplina de pós-graduação “Arte e percepção: o artista, o turista e o viajante”
(PST 5826), do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (IP/USP), entre
anos de 2006 a 2011.
4.
Metamorfoses do olhar na viagem de Goethe à Itália. Publicado em
ArtCultura, Uberlândia, UFU, v. 13, n. 23, Uberlândia, jul.-dez. 2011, pp. 114127. Originalmente apresentado como conferência no seminário “A morfologia da
Goethe e as ciências da vida: perspectivas epistemológicas para a pesquisa e o
ensino de biologia na atualidade”, Instituto de Biociências/USP, 2010.
5.
A imaginação da Natureza. Texto inédito. Aula apresentada na disciplina de
pós-graduação “Arte e percepção: o artista, o turista e o viajante” (PST 5826), do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (IP/USP), entre anos de 2006 a
2011.
6.
Comunidades de artistas: fenômeno de pesquisa em Psicologia Social.
Introdução aos projetos de pesquisa acerca das imagens nas comunidades de
artistas. Apresentado como subprojeto no Grupo de Trabalho “Experiências de
turismo de base comunitária no Vale do Ribeira”, coordenado pelo Prof.
Alessandro de Oliveira dos Santos, do qual participam professores do
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
USP (IP/USP) e da Escola Técnica Engenheiro Narciso de Medeiros (ETEc)
localizada no município de Iguape, Vale do Ribeira/SP.
7.
A imagen pictórica da cidade histórica. Publicado originalmente como
“Actividad pictórica y imagen percibida: la ciudad histórico-turística de Ouro
Preto. Estudios y Perspectivas en Turismo. Buenos Aires, vol. 17, n. 1-2, eneroabril 2008, pp. 170-184.
8.
As imagens de arte em Paraty. Capítulo na coletânea organizada pela profa.
Sandra
P.
Ribeiro,
Paisagem,
Imaginário
e
Narratividade:
olhares
transdisciplinares e novas interrogações da Psicologia Social (São Paulo, Ed.
Zagodini, 2013). Versão sintética do Relatório de Pesquisa resultante do projeto
“Pintura em Paraty: percepção e vida social” realizado com apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Projeto Regular, período
2008/2009).
9.
Sobrevivências da paisagem na pintura. Versão revista do curso ministrado no
Master 1 – Communication Hypermidia, do IAE Savoie Mont-Blanc, Université
de Savoie, França, entre 9 e 24 de outubro de 2011, sob a coordenação do Prof.
Jacques Ibanez-Bueno.
10. A transformação do mundo em pintura. Texto inédito.
213
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - I
Capítulo 1. O fenômeno das imagens no campo da psicologia social
1. Ricardo Inke, Paisagem de Ouro
Preto, 2011.
Cartão de votos para 2012,
circulação via endereço eletrônico.
2. Hermann Burmeister, Igreja de
São Francisco de Assis, 1853.
Do livro Viagem ao Brasil através
das províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Dr. Hermann
Burmeister. Site:
http://commons.wikimedia.org/wiki
/File:Hermann_burmeister_igreja_s
ao_francisco.jpg
3. Marc Ferrez, Igreja de São
Francisco de Assis, c. 1880.
Fotografia, Ouro Preto (MG), Marc
Ferrez, fim do século XIX. col.
Instituto Moreira Salles.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - II
4. Luis Jardim, Igreja de São
Francisco de Assis, 1938.
Desenho de para o Guia de Ouro
Preto, Manuel Bandeira, 1938, p.
43.
5. Luís Fontana, Paisagem de Ouro
Preto, 1948.
Fotografia, Ouro Preto (MG), 02 de
maio de 1948. Acervo do IFACUFOP, Ouro Preto (MG).
6. Germano Neto, Pousada Mondego, 1996.
Fotografia do guia Ouro Preto,Cidade Monumento Mundial, 1996.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - III
7. Shell X-100, 1957.
Propaganda do óleo para
automóveis Shell X-100, O Estado
de São Paulo, 12/04/1957, p. 9.
8. Carlos Bracher, Igreja de São
Francisco de Assis, s. d.
Coleção particular. Fonte da
imagem: Hansen, 1998, p.15.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - IV
Capítulo 6. Comunidade de artistas
9. Ateliê André Meurer, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2010.
10. Ateliê Renata Rosa, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2010.
11. Ateliê Márcio Franco, Paraty
(RJ)
Fotografia do autor, 2010.
12. Inke Ateliê, Paraty (RJ)
Fotografia do autor, 2010.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - V
13. Ateliê José Andreas, Paraty
(RJ)
Fotografia do autor, 2010.
14. Ateliê Lauro Monteiro, Paraty
(RJ)
Fotografia do autor, 2010.
15. Estúdio Bananal, de Sérgio
Atilano e Fernando Fernandes,
Paraty (RJ)
Fotografia do autor, 2010.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - VI
Capítulo 7. Imagem pictórica da cidade histórica
16. Tarsila do Amaral, Paisagem de
Ouro Preto, 1924.
Lápis e aquarela sobre papel,
16,2x22,6. Col. Beatriz Pimenta
Camargo, São Paulo. Fonte da
imagem: Tarsila do Amaral. Buenos
Aires: Banco Velox, 1998, p. 157.
17. Alberto da Veiga Guignard,
Paisagem de Ouro Preto, 1951.
Acervo Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de
São Paulo, MAC-USP.
18. Pousada Chico Rei, Ouro Preto
(MG)
Antiguidades e artesanato na
composição dos ambientes. No
armário e nas portas a pintura de
Guignard. Fotografia do autor,
1997.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - VII
19. Luiz Alfredo, Guignard
pintando em Ouro Preto,
s.d.
Fotografia. Fonte da
imagem:
http://caxiuna.blogspot.com
.br/2009/03/solo-luizalfredo.html
20. Alberto da Veiga
Guignard, Noite de São João,
1961.
Óleo sobre madeira,
0,19 x 0,29 m. Col.
particular, Belo Horizonte.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - VIII
Capítulo 8. As imagens de Arte em Paraty
21. Djanira. Igreja de Santa Rita,
s.d.
Óleo sobre tela. 53,5 x 72,5 cm.
(Parati, RJ). Museu Nacional de
Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ).
Reprodução fotográfica autoria
desconhecida.
Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú
Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. Extraído do site em 20
fev. 2014:
http://enciclopedia.itaucultural.org.
br/
22. Júlio Paraty, Festa do Divino,
2009.
Acrílico sobre tela, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2009.
23. Márcio Franco, Papagaios,
2008.
Acrílico sobre tela, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2009.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - IX
24. Ricardo Inke, Vista da Igreja de
Santa Rita, 2011.
Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia
Ricardo Inke, 2011.
25. José Andreas, Igreja de São
Benedito, 2009.
Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia
do autor, 2009.
26. Marília Inke, Vista da Igreja de
Santa Rita, 2009.
Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia
do autor, 2009.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - X
27. Renata Rosa, Sem título, 2009.
Acrílico sobre tela, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2009.
28. Sérgio Atilano, Sem título,
2009.
Madeira e metal, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2009.
29. Márcio Franco, Helicônias,
Paraty, 2009.
Acrílico sobre tela, Paraty (RJ).
Fotografia do autor, 2009.
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - XI
Capítulo 9. Sobrevivência da paisagem na pintura
30. Paraty, fotografia do autor,
2009.
31. Carlos Scliar. Ouro Preto
360 Graus (Painel Políptico),
1976.
Vinil sobre tela encerado
20 partes: 65 x 100 cm cada
Reprodução Fotográfica
Jefferson Silva.
Fonte da imagem: Enciclopédia
Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. Extraído do site em
20 fev. 2014:
http://enciclopedia.itaucultural.o
rg.br/
32. Djanira, Igreja de Antonio Dias,
1955.
Óleo sobre tela, 51 x 61,3 cm.
Museu Nacional de Belas Artes
(Rio de Janeiro, RJ). Reprodução
fotográfica autoria desconhecida
Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú
Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. Extraído do site em 20
fev. 2014:
http://enciclopedia.itaucultural.org.
br/
A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014.
Prancha - XII
Capítulo 10. A transformação do mundo em pintura
33. Djanira, Mina de Ferro,
1976.
Acrílica sobre madeira. 160 x
221 cm. Museu Nacional de
Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ).
Reprodução fotográfica Ricardo
Bhering
Fonte da imagem: Enciclopédia
Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. Extraído do site em
20 fev. 2014:
http://enciclopedia.itaucultural.o
rg.b
34. Carlos Bracher, Montanhas
de Minas, 1973.
Óleo sobre tela, c.i.d.
60 x 81 cm. Reprodução
fotográfica Romulo Fialdini.
Fonte da imagem: Enciclopédia
Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. Extraído do site em
20 fev. 2014:
http://enciclopedia.itaucultural.o
rg.br
35. Emygdio de Barros, O
Municipal, 1949.
Óleo sobre tela. 100,0 x 96,0 cm
Acervo Museu de Imagens do
Inconsciente (Rio de Janeiro,
RJ).
Fonte da imagem:
FUNARTE/IBAC. Coordenação
de Artes Visuais. Museu de Imagens
do Inconsciente. 2 ed. Rio de Janeiro:
FUNARTE/Ed. UFRJ, 1994.