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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E DO TRABALHO ARLEY ANDRIOLO A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social do fenômeno das imagens Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Livre-Docência em Psicologia. São Paulo 2014 ARLEY ANDRIOLO A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social do fenômeno das imagens (Versão original) Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Livre-Docência em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Social São Paulo 2014 ANDRIOLO, A. A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social do fenômeno das imagens. 2014. 212 p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. BANCA EXAMINADORA Prof. _____________________________________ Instituição: _______________________ Julgamento: _______________________________ Assinatura: _______________________ Prof. _____________________________________ Instituição: _______________________ Julgamento: _______________________________ Assinatura: _______________________ Prof. _____________________________________ Instituição: _______________________ Julgamento: _______________________________ Assinatura: _______________________ Prof. _____________________________________ Instituição: _______________________ Julgamento: _______________________________ Assinatura: _______________________ Prof. _____________________________________ Instituição: _______________________ Julgamento: _______________________________ Assinatura: _______________________ Tese defendida em: __/__/____ Para Adriana e Matheus Meus dois amores Resumo ANDRIOLO, A. A transformação do mundo em pintura: estudos em psicologia social do fenômeno das imagens. 2014. 212 p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. A tese trata de imagens na vida social. Principalmente, tenta circunscrever o trabalho de pintores cuja experiência estabelece relações com o mundo das viagens, a representação da natureza e a iconografia de ambientes urbanos. Está dividida em duas partes. A primeira explora as relações entre percepção e história, as quais são apresentadas por meio da discussão em torno do desenvolvimento do conceito de paisagem nas artes visuais e suas implicações na própria sociedade, de modo a identificar o significado das imagens enquanto mediações entre a sociedade e a natureza. O ponto de vista teórico surge do material visual e refere-se às possibilidades de uma fenomenologia empírica, particularmente do conceito de engajamento. A segunda parte apresenta o estudo de imagens em algumas comunidades de artistas, sobretudo, de cidades turísticas brasileiras onde a pintura é uma atividade relevante: Ouro Preto e Paraty. A área de investigação foi elaborada em torno de três linhas principais concernentes às relações da psicologia com as imagens: imagens como ilustração do conhecimento psicológico; imagens como documentos públicos; e imagens como método visual. Esta conjunção convida a refletir sobre a interpretação das imagens na vida social. Uma metodologia particular emerge do estudo do fenômeno da imagem em psicologia social. Primeiro, em um campo interdisciplinar construído na pesquisa entre a história da percepção e a experiência estética. Isto é, trazendo para o debate psicossocial historiadores e estetas. O método conduz à compreensão daquelas imagens baseada no conceito de mimesis e sua contribuição para a psicologia social atual. Ao final, as principais categorias da percepção da paisagem e da natureza revelam a experiência social do pitoresco na história recente do Brasil. Como um todo, a tese propõe uma abordagem interdisciplinar para contribuir com o diálogo entre a psicologia e as humanidades na compreensão da experiência social fundada nos fenômenos imagéticos. Palavras-chave: Psicologia social da imagem; Psicologia social da arte; Psicologia e estética; Imagem e história; Imaginário brasileiro; Arte e natureza. Abstract ANDRIOLO, A. The transformation of the world into painting: studies in social psychology of image phenomenon. 2014. 212 p. Thesis (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. The thesis talks about images in social life. Mostly, I try to circumscribe the work of painters whose experiences established relations with the world of traveling, nature representation and the iconography of urban environments. It’s organized in two parts. The first one explores the relations between perception and history. They are presented in a discussion around the development of the landscape concept in visual arts and its implications with the society itself. This is in order to point out the significance of images as mediation objects between society and nature. The theoretical point of view arises from this visual material and refers to the possibilities of an empirical phenomenology, particularly the concept of engagement. The second part follows the study of images in some artists communities, mostly the touristic cities in Brazil where painting activity is relevant: Ouro Preto and Paraty. The investigation area has been built around three main lines concerning the relations from psychology to images: images as illustrations of psychological knowledge; images as public documents; and images as a visual method. This conjunction invites for a reflection about the interpretation of images in social life. A particular methodology emerges from the study of image phenomenon in social psychology. First of all, it respects an interdisciplinary field which is built during the research between the history of perception and the aesthetic experience. That means it brings to social psychological debates historians and aestheticians. The method leads to the understanding of those images based on the concept of mimesis, and its contributions for social psychology nowadays. In the end the main categories of landscape and nature perception reveal the social experience of picturesque in Brazilian recent history. As a whole the thesis proposes an interdisciplinary approach to contribute for a dialogue between psychology and humanities to understanding of social experience based on images phenomena. Keywords: Social psychology of image; Social psychology of art; Psychology and aesthetics; Image and history; Brazilian imaginary; Art and nature. Agradecimentos Todo agradecimento poderia começar com as desculpas àqueles cuja contribuição ao desenvolvimento do trabalho não foi diretamente mencionada. Assim iniciando, embora não repare o esquecimento de nomes importantes, deixo-lhes meus sinceros agradecimentos. A gratidão primeira volta-se para João Frayze-Pereira a quem devo minha trajetória na pesquisa em psicologia e estética. Leny Sato forneceu o estímulo decisivo à finalização deste trabalho na forma de livre-docência. Aos colegas do Instituto de Psicologia da USP, particularmente, aos parceiros de cursos e projetos do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, aos quais agradeço coletivamente. O professor Jacques Ibanez-Bueno, da Université de Savoie (Annecy, França), possibilitou uma série de conversas através dos seminários do Pôle Image et Information e do Master Communication et Hypermédia, os quais foram para mim momentos muito profícuos de diálogo com professores e alunos daquela instituição, resultando em um amadurecimento dos temas desta pesquisa. Aos pesquisadores do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte que compartilharam comigo grande parte das questões agora impressas; especialmente Danilo Sergio Ide, Lígia Ungaretti Jesus e Maíra Clini contribuíram de maneira decisiva para na finalização deste trabalho. À Joaci Pereira Furtado pela leitura e comentário cuidadosos da primeira versão. Às secretárias do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Marinalva Almeida Santos Gil, Rosângela Serikaku Sigaki, Selma Aparecida Rezzetti Loyola. À Biblioteca do Instituto de Psicologia / USP. Diretamente à FAPESP pelo financiamento de parte destes estudos, assim como à CAPES e ao CNPQ pelos auxílios aos nossos projetos. Aos editores e publicações que divulgaram os primeiros escritos desta pesquisa. Todos os temas pesquisados foram tratados nos cursos da pós-graduação em Psicologia Social (IP/USP), sobretudo, na disciplina “Arte e percepção: o turista, o artista, o viajante”. Sou grato aos alunos pelos produtivos debates. Um agradecimento especial aos amigos Eliane e Fernando Follador, por toda ajuda. Sem a compreensão e colaboração de minha esposa Adriana e do filho Matheus, nada disso seria levado a cabo. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 1 Sumário APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................... 3 1. O FENÔMENO DAS IMAGENS NO CAMPO DA PSICOLOGIA SOCIAL..................................... 5 PARTE 1. PERCEPÇÃO E HISTÓRIA ..........................................................................................27 2. A PINTURA É UM TRAÇO DE NOSSA RELAÇÃO HISTÓRICA COM O MUNDO ....................27 MERLEAU-PONTY E PANOFSKY .............................................................................................................. 27 PERCEPÇÃO E HISTÓRIA .......................................................................................................................... 28 A PERSPECTIVA COMO FORMA SIMBÓLICA .............................................................................................. 30 O ESPAÇO É A EXPERIÊNCIA HUMANA..................................................................................................... 32 A EMERGÊNCIA DA VIDA SOCIAL EM UM PROCESSO TEMPORAL .............................................................. 34 3. IMAGEM DA NATUREZA, NATUREZA DA IMAGEM .................................................................39 UM PASSEIO DE DIDEROT ....................................................................................................................... 39 IMAGEM DA PAISAGEM E REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA ..................................................................... 40 A EXPERIÊNCIA DA NATUREZA ............................................................................................................... 43 NATUREZA DA IMAGEM .......................................................................................................................... 46 NATUREZA, IMAGEM E MIMESIS.............................................................................................................. 50 4. METAMORFOSES DO OLHAR ........................................................................................................54 O ESPAÇO, O OUTRO, O EU ...................................................................................................................... 54 O OLHO E AS VIAGENS NO SÉCULO XVIII ............................................................................................... 55 MÉTODO DE VIAJAR COM ARTE .............................................................................................................. 58 METAMORFOSES DO OLHAR ................................................................................................................... 62 OLHAR É VIAJAR NO TEMPO .................................................................................................................... 66 A VISÃO DA PAISAGEM SUSCITA O SENSO POÉTICO ................................................................................. 67 5. A IMAGINAÇÃO DA NATUREZA ....................................................................................................73 MORFOLOGIA DA NATUREZA ................................................................................................................. 73 PAISAGENS E NUVENS ............................................................................................................................. 77 MONTANHA E CONSCIÊNCIA ................................................................................................................... 83 A FENOMENOLOGIA E A IMAGINAÇÃO DA NATUREZA ............................................................................. 88 PARTE 2. IMAGEM E VIDA SOCIAL...........................................................................................95 6. COMUNIDADES DE ARTISTAS: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL ....................................95 CIRCUNDANDO UM FENÔMENO ............................................................................................................... 95 COMUNIDADES DE ARTISTAS: BREVE HISTÓRIA ...................................................................................... 97 SIGNIFICADOS DO EXÍLIO DOS MODERNISTAS ....................................................................................... 102 COMUNIDADES DE ARTISTAS NO BRASIL .............................................................................................. 103 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 2 SÍNTESE DE SIGNIFICADOS DAS COMUNIDADES DO BRASIL................................................................... 106 7. IMAGEM PICTÓRICA DA CIDADE HISTÓRICA ........................................................................110 OUTRO PRETO, “CIDADE DE ARTE” ....................................................................................................... 110 GUIGNARD NOS ENSINOU A VER OURO PRETO ...................................................................................... 112 ABERTURA PARA A PERCEPÇÃO ARTÍSTICA DE OURO PRETO ................................................................ 113 GUIGNARD E A CIDADE HISTÓRICA TURÍSTICA ...................................................................................... 115 IMAGENS ARTÍSTICAS E IMAGENS TURÍSTICAS ...................................................................................... 117 8. IMAGENS DE ARTE EM PARATY .................................................................................................124 VILA DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS DE PARATY ........................................................................ 124 FORMAS SOCIAIS E IMAGENS DE ARTE .................................................................................................. 126 PROCESSO HISTÓRICO E IMAGENS PICTÓRICAS ..................................................................................... 129 HISTORICIDADE DAS CATEGORIAS ESTÉTICAS NAS IMAGENS DE ARTE .................................................. 131 CATEGORIAS DAS IMAGENS DE PARATY ............................................................................................... 135 O JOGO DA MIMESIS .............................................................................................................................. 142 9. SOBREVIVÊNCIA DA PAISAGEM NA PINTURA ........................................................................146 IMAGEM E PAISAGEM ............................................................................................................................ 146 PAISAGEM, PINTURA E HISTÓRIA .......................................................................................................... 148 TURISMO, HISTÓRIA E ARTE NO BRASIL ................................................................................................ 153 IMAGEM PICTÓRICA DAS CIDADES HISTÓRICAS BRASILEIRAS ............................................................... 155 QUE DIZEM OS PINTORES SOBRE A PAISAGEM? ..................................................................................... 162 AS CATEGORIAS DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E OS SIGNIFICADOS DAS IMAGENS .................................... 165 EXPERIÊNCIA SOCIAL DO PITORESCO .................................................................................................... 170 10. A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO EM PINTURA .....................................................................175 IMAGEM E IMITAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL....................................................................................... 175 A MIMESIS ............................................................................................................................................ 177 O ENGAJAMENTO .................................................................................................................................. 184 A TRANSFORMAÇÃO ............................................................................................................................. 189 BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................200 NOTA SOBRE OS CAPÍTULOS .........................................................................................................................212 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Apresentação Nesta coletânea de escritos, encontra-se uma discussão sobre as imagens, particularmente a pintura e sua permanência na vida social contemporânea. Quando comecei a reunir o material para compor esta tese, estava trabalhando sobre quatro conjuntos de fontes visuais muito distintos. Primeiro, em decorrência de meus estudos de doutorado, destrinchava o vasto material das chamadas obras “brutas” ou “incomuns”, em desenhos, esculturas, pinturas, entre outros objetos, originário de pessoas humildes, sem vínculos com o campo artístico. Ao mesmo tempo, recolhia informações sobre as artes populares, seja as mais inventivas, seja as mais ingênuas. O segundo conjunto compunha-se de narrativas de viagens e imagens resultantes do deslocamento de artistas, sobretudo durante o século XIX europeu, quando “ir embora” tornou-se prática corrente entre os inconformados com as regras acadêmicas. O terceiro conjunto versava sobre a produção recente de artistas moradores de cidades turísticas, cujo trabalho corre à margem do campo artístico hegemônico, não mais pela postura crítica desses artistas, mas, sobretudo, pela desconsideração com a qual são tratados pela crítica em geral. Por fim, havia também o interesse pelos remanescentes arquitetônicos, pictóricos e escultóricos da América portuguesa, os quais eram referidos pela categoria de “barroco”, identificados nos textos de viajantes, dentre os quais muitos intelectuais que forjaram uma identidade e um imaginário sobre o Brasil. Procedi ao recorte e seleção dessa gama muito difusa de imagens. O recorte mais preciso foi feito sobre as imagens da arte bruta e incomum, tema sobre o qual me detivera em meu doutorado e que se constitui em corpus muito particular, no campo da psicologia, compreendido entre as “imagens do inconsciente”. No que diz respeito ao barroco, afora algumas indagações, não dispunha de reflexões que pudessem contribuir para essa área de estudos, carecendo de algum escrito especificamente dedicado à psicossociologia da percepção daquelas obras. A seleção circunscreveu os dois conjuntos restantes, as imagens relacionadas à experiência da viagem, o problema da representação da natureza e a iconografia das cidades turísticas brasileiras. Alguns tópicos foram publicados na forma de artigos, outros redigidos para aulas e seminários; em nota ao final desta coletânea, o leitor encontrará a súmula da origem dos capítulos. 3 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A tese foi organizada em duas partes. A primeira circunscreve as relações entre percepção e história e fornece subsídios teóricos ao desenvolvimento da pesquisa empírica e à concepção fenomenológica adotada – sobretudo em torno do conceito de engajamento. Na segunda reúne os estudos das imagens nas comunidades de artistas, particularmente nas cidades turísticas brasileiras, nas quais a atividade pictórica é relevante: Ouro Preto e Paraty. Ao longo do texto, discute-se o lugar das categorias pertinentes à percepção das paisagens, da natureza e da própria imagem, ressaltando a experiência social do pitoresco. Esta discussão tem sido construída na tematização das três linhas principais em torno das quais a psicologia se relaciona com as imagens: como ilustração do conhecimento psicológico; como documento público; e como método visual. Nessa conjunção, solicita-se uma discussão acerca da interpretação das imagens na vida social. Minha proposição frente ao fenômeno da imagem na psicologia social procurou circunscrever um campo interdisciplinar entre a história da percepção e a experiência estética. De um lado, a elaboração teórica reúne historiadores (Fabris, 2006; Meneses, 2003; Crary, 1988; Lowe, 1986), de outro, os estetas (Frayze-Pereira, 2005; Costa Lima, 1981; Berleant, 1970), de modo a tornar a imagem compreensível por meio dos conceitos de mimesis, engajamento e transformação. A partir daí, estabelecem-se os diálogos com estudos nas interfaces da psicologia com os estudos da vida social das imagens (Mitchell, 1986; Baitello, 2005). Esse assunto é mais que recorrente na pesquisa em artes, para não dizer antiquado. Não obstante, minha dedicação a esse material difere de outras investigações por tentar situar o debate no campo da psicologia social. Nos percursos trilhados, configurou-se um campo de explorações a indicar algumas possibilidades de leitura, quiçá uma contribuição à compreensão das imagens na vida social, por meio da qual o domínio da imagem torna-se o estudo dos processos sociais nos quais a imagem não é apenas uma coisa física, mas o movimento de mediação entre o objeto icônico, a experiência corporal e a imagem mental: a transformação do mundo em imagem nos processos políticos e culturais. 4 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 1. O fenômeno das imagens no campo da psicologia social Senhor, não mereço isso. Não creio em vós para vos amar. Trouxestes-me a São Francisco e me fazeis vosso escravo. Não entrarei, Senhor, no templo, seu frontispício me basta. Vossas flores e querubins são matéria de muito amar. Dai-me, Senhor, a só beleza destes ornatos. E não a alma. Pressente-se dor de homem, paralela à das cinco chagas. Mas entro e, Senhor, me perco na rósea nave triunfal. Por que tanto baixar o céu? por que esta nova cilada? Senhor, os púlpitos mudos entretanto me sorriem. Mais que vossa igreja, esta sabe a voz de me embalar. Perdão, Senhor, por não amar-vos. (Carlos Drummond de Andrade, “São Francisco de Assis”) [1] Natal de 2011, um cartão de votos circulou pela internet, desejando um bom ano novo aos amigos do Inke Ateliê. A imagem, divulgada por endereço eletrônico, apresentava a reprodução de uma pintura em aquarela sobre papel, realizada pelo artista 5 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Ricardo Inke, contendo uma vista da cidade de Ouro Preto, particularmente uma paisagem de horizonte montanhoso, com destaque para a Igreja de São Francisco de Assis. O adro ocupa a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre pequena elevação, ladeado por ruelas e poucas casas, em perspectiva levemente movida para a direita do observador, podendo-se visualizar a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais. Ao fundo, o Pico do Itacolomy. Trata-se de uma imagem digital que permite apenas entrever ou imaginar a textura do papel, sobre o qual as cores da aquarela ocultam parcialmente as linhas do lápis do esboço original. Ricardo Inke começou a trabalhar com aquarela em 1997, primeiramente consultando publicações, visitando aquarelistas, dentre os quais dois cujos ateliês em São Paulo foram sua escola. Mais recentemente, participou de workshops na Espanha. Conheceu Paraty em 2000, “o único lugar do Brasil que se poderia viver de arte”. Esta afirmação reproduzia a frase de uma amiga, antiga moradora do local, com uma ligeira mudança: ela dizia “onde se pode sobreviver”. Ricardo morava em São Bento do Sapucaí (SP), com a esposa Marília e os filhos. Desde 2004, a família habita Paraty, ela também pinta, ambos dividem o ateliê no centro histórico e a profissão de guia de turismo. São Bento não tinha ambiente para a produção e comercialização de arte. Tendo percorrido as antigas cidades da mineração do Estado de Minas Gerais – Tiradentes, Ouro Preto e Diamantina –, concluiu que a experiência da convivência com outros artistas somente seria promissora em Paraty. O aquarelista formara-se em engenharia civil, seguiu a profissão por cinco anos, morou em São Paulo, Piracicaba e Taubaté. Foi ser apicultor em São Bento do Sapucaí, onde ficou vinte anos. Com a esposa, abriu um restaurante, mas as finanças não acompanharam as necessidades da família. O artista trabalha unicamente com aquarela, ama a imprevisibilidade dessa técnica: “Você vai fazendo e você é um participante, não é exatamente o autor daquele trabalho, você é um coparticipante.” A água, a fluidez, a sobreposição de cores, os aguados são “mágicos”. A temática principal é a paisagem local, tanto pelo interesse pessoal quanto pelo aspecto comercial. Muitos artistas de Paraty não hesitam em afirmar que seus trabalhos destinam-se a públicos específicos, sobretudo o turista; não são arautos da autonomia. Por um lado, movido pelo trabalho de aquarelista, o tema torna-se quase irrelevante; seleciona as paisagens e marinas conforme o interesse do 6 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. público. Por outro, afirma-se como ilustrador, pois, não obstante a preferência pelos jogos da tinta, a escolha do tema participa de todo o processo. A realização pode ser tanto sobre o motivo quanto sobre uma fotografia, no ateliê, sob os olhos do cliente. Faz um esboço, desenha a imagem pretendida, de modo pouco detalhado, dispõe os volumes, a composição. Sobre os traços no papel, as tintas começam a ser colocadas, o pigmento cobre o desenho inicial, mas deixa indícios. Inke considera que o público brasileiro não valoriza grandemente os trabalhos em aquarela, como se fossem esboços, mas que os estrangeiros, sobretudo europeus, apreciam e consomem mais. Para fomentar o interesse e conhecimento dessa técnica, tem se dedicado anualmente à organização dos Encontros Internacionais de Aquarelistas, iniciados em 2009. [2] A aquarela sobre papel e a tela de meu computador contêm uma mesma imagem, sobre suportes diferentes. É estranho reencontrar esta imagem, anos depois de ter visto pela primeira vez essa igreja em minhas viagens a Minas, de um ponto de vista muito semelhante. Seria de fato a mesma imagem aquela vista por Inke e a que eu vira? A igreja de São Francisco de Assis é um monumento nacional, tanto para a história da arte quanto para a do Brasil. Uma vez construído, o templo tornou-se parte integrante do espaço urbano de Vila Rica e objeto da percepção de tantos quantos foram os habitantes locais. A afirmação não é diretamente válida para todos os relatos de viajantes. Retrocedendo em minhas anotações, o sábio Auguste de Saint-Hilaire (17791853) passou desinteressado pelo templo em sua viagem de 1816; deteve-se nas duas matrizes. Foi o aspecto urbano que lhe atraiu a atenção, as casas situadas nas encostas cercadas de vegetação possibilitavam-lhe pontos de vista “variados” e “pitorescos”, não obstante as cores dos telhados e residências em meio às nuvens conferissem à paisagem um “aspecto sombrio e melancólico”. As torres das igrejas no alto dos morros lhe chamam a atenção, assim como a quantidade de cerca de dezesseis capelas e duas igrejas paroquiais (Saint-Hilaire, 1830/1975, p. 70). Nas andanças do zoólogo Hermann Burmeister (1807-1892) o edifício foi bem notado: além de percebido pelo viajante, recebeu dele um registro em bico de pena, de um ponto de vista muito próximo ao de Ricardo Inke, com o observador a maior distância: uma paisagem de horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de Assis, o adro ocupando a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre 7 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. pequena elevação, em perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais – ao fundo, o Pico do Itacolomy. Na gravura, inserida no livro Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (Burmeister, 1853/1980), o templo ocupa porção menor da metade esquerda da imagem, deixando espaço à frente do adro (e abaixo da imagem) para a inserção de uma coluna, provável pelourinho, inexistente hoje. Na edição, ocorreu uma troca de nomes e o edifício foi chamado de Igreja de São Francisco de Paula: “a graciosa e elegante igreja”. O viajante a considerou melhor que as duas matrizes: “desenhei-a como sendo o modelo do mais elegante estilo brasileiro e deixo de descrever seus detalhes porque o desenho fala por si” (p. 225). Marc Ferrez (1843-1923) realizou uma fotografia daquele mesmo ponto de vista, por volta de 1880 (col. Instituto Moreira Salles). Não há identidade entre os ambientes desenhado e fotografado, pois modificações são notáveis, sobretudo no entorno da edificação. Poucas décadas depois de Burmeister, o fotógrafo registrou um ambiente reformulado, sem a mureta que circundava o adro, agora sem calçamento. Mais afastado do objeto, no amplo espaço à esquerda do observador e à frente do templo, alinha-se o longo telhado do mercado, o movimento de cavalos e mercadores retira da igreja a centralidade no espaço da fotografia. Além disso, para aquele século, operava-se uma transformação radical dos sentidos, como sintetizou Annateresa Fabris (2006, p. 164), “uma vez que o olho adquire primazia sobre a mão, determinando uma nova relação entre efeito estético e temporalidade”; a fotografia automatiza a representação e a reprodução, reconfigurando o estatuto social da imagem. [3] O primeiro descritivo bem apurado da documentação histórica de Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto foi publicado pelo cônego Raimundo Trindade (1951), fonte muito citada nas décadas seguintes ao mesmo tempo em que foi acrescida de novos achados documentais. O trabalho de transcrição de documentos pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi marcante na compreensão historiográfica da arquitetura setecentista. O Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, por exemplo, possibilitou os apontamentos documentais de Paulo Krüger Mourão (reunidos em livro em 1964), bem como a edição da revista Barroco, desde 1969, patrocinada pelo Centro de Estudos Mineiros e promovida pela 8 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Universidade Federal de Minas Gerais, fundada e dirigida por Affonso Ávila (19282012). O ajuste e início das obras da Capela de São Francisco de Assis datam de 1766, embora eventos anteriores houvessem definido o local e outros elementos da construção (Mourão, 1986, p. 117). A obra foi arrematada por Domingos Moreira de Oliveira e o projeto foi atribuído a Antônio Francisco Lisboa, dito Aleijadinho, mas como não há documento que mencione o autor do risco, todo um debate foi travado na metade do século passado sobre essa questão. Augusto de Lima Júnior (1996) considerava Cláudio Manuel da Costa o verdadeiro autor do projeto. Seja qual for o autor, o resultado arquitetônico foi o bombeamento da fachada, as torres redondas, as cúpulas encimadas por pináculos. O frontão foi arrematado em volutas, o centro é encimado pela cruz patriarcal. As colunas em pedra delimitam a entrada, centralizada pela portada e medalhão em rica escultura em pedra sabão. Em 1771, o templo foi consagrado e a imagem do orago, depositada no altar. No ano seguinte, Antônio Francisco acertou a realização dos púlpitos e obras arquitetônicas foram contratadas com Henrique Gomes de Brito e Luís Pinheiro Lobo. Em 1773, Gonçalves Neves fez os quadros da capela-mor, enquanto o douramento ficou a cargo de João Batista Figueiredo. Uma década depois do início da obra, o corpo da igreja recebeu a bênção. As obras prolongaram-se pelas décadas de 1780 e 1790, nas quais aparecem diversos nomes de oficiais. No âmbito da pintura, têm-se Manuel Pereira de Carvalho com o forro da sacristia e Francisco Xavier Gonçalves em quadros desse ambiente. Os trabalhos no edifício prolongam-se no novo século, por exemplo, com altares colaterais. Entremeios, Antônio Francisco Lisboa recebeu pelo risco da portada (1775), cujo remate coube a José Antônio de Brito, e pela realização do lavabo da sacristia (17771779), proventos estes que teriam vindo dos sacristãos. Em outubro de 1790, definiu-se com o mestre o preço do novo retábulo do altar-mor. Quanto ao medalhão do frontispício, de modo geral, é atribuído ao Aleijadinho, no entanto, sem dispor-se de documentos comprobatórios (Mourão, 1986, p. 117). As pinturas de Manuel da Costa Ataíde para o forro da nave da São Francisco foram iniciadas por volta de 1801 e 1802 (Menezes, 1965, p. 15), representando a Assunção da Virgem, em imagem de Nossa Senhora da Porciúncula, e púlpitos com os doutores da Igreja (Santo Agostinho, São Jerônimo, São Gregório e Santo Ambrósio). Também pintou quatro painéis, dedicados a São Pedro, Santa Margarida de Corona, São 9 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Francisco agonizante e Santa Clara, e os azulejos do presbitério com episódios da vida de Abraão. Além disso, Ataíde encarnou imagens e outros serviços do templo, entre 1805 e 1812. [4] De volta a minha viagem pessoal, tendo diante de mim três imagens representando aquele edifício, surpreendia o ponto de vista compartilhado entre o zoólogo, o fotógrafo e o aquarelista, o último separado dos primeiros em cerca de 150 anos. Surge a questão se todas pertencem a uma mesma experiência visual. De um lado, indicou-se que a mudança no suporte resulta em transformações na percepção, portanto, na experiência da imagem. Por outro lado, há uma correspondência estável em relação ao edifício, à sua implantação, à geografia, à remissão a um ambiente específico. Considerando as correspondências, a experiência da percepção demonstra algo em comum; neste momento, seguirei essa trilha. A Igreja de São Francisco passara um pouco despercebida em meio ao conjunto de edificações religiosas da antiga vila, fato ao qual devemos somar uma constatação: a própria cidade de Ouro Preto padecia em ruínas e não se caracterizava em local de grande visitação no início do século XX (Andriolo, 2008). Os visitantes da antiga capital de Minas Gerais eram, sobretudo, homens de negócio e alguns políticos. O relato de Moreira Pinto (1907) aparece como instigante exceção. O artigo desse autor fez detalhado comentário acerca de Ouro Preto, sua história e geografia, casario e personagens. Deteve-se em grande parte das construções religiosas, dedicando a cada uma alguns parágrafos. A Igreja de São Francisco de Assis “ergue-se no largo do Mercado Municipal”: “Tem a forma oitavada. Seu estilo é severo e de harmonia com a humildade do seu padroeiro” (Pinto, 1907, p. 706). Seguem-se duas páginas de minuciosa descrição, a começar pelo frontispício, composição, formas e iconografia, depois toda a decoração e mobiliário da nave e dos altares, o simbolismo dos painéis e esculturas, cada uma das imagens sacras é nomeada e descrita. Termina com a apresentação da sacristia, móveis e pinturas, fornecendo um arrazoado da obra escultórica atribuída ao mestre Antônio Francisco Lisboa, naquela época figura pouco conhecida dos intelectuais brasileiros. O longo descritivo de Moreira Pinto elabora algo que os registros desenhados ou fotografados não fazem por si: a articulação das figuras com narrativas e discursos, particularmente católicos, conferindo à imagem do antigo templo uma dimensão 10 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. iconográfica acessível, sobretudo aos leitores. Dentre os escritos publicados no livro de comemorações do Bicentenário de Ouro Preto, ganhou notoriedade o texto do historiador Diogo de Vasconcellos, autor de obras seminais como a História antiga de Minas Gerais (1914). No artigo intitulado “As artes em Ouro Preto”, Vasconcellos (1911/1934) guia o leitor a uma primeira viagem através da cidade: descendo a serra de Ouro Preto, contemplam-se as pequenas capelas serranas, depois, percorre a segunda fase da história da arquitetura mineira, dos “grandes monumentos” (em torno de 1720 e 1740), quando se constrói a matriz de Ouro Preto, na freguesia do Pilar. Em suas palavras, no último quartel do século XVIII, “já felizmente se achava modificado o estilo jesuítico; e obras se empreenderam mais artísticas” (p. 30), quando se construiu a Igreja de São Francisco de Assis. Localiza nesta igreja a obra “mais perfeita e acabada” (p. 39), evita omite qualquer classificação: não se trata do barroco europeu, tampouco da arte brasileira, louva suas qualidades devidas ao seu conjunto arquitetônico e a seu autor, mestre Antônio Francisco Lisboa. O acréscimo de informações iconográficas e estilísticas fornecido pelos escritos não deixa de reservar um lugar para o registro em desenho ou em fotografia impressos. Nas fotografias inseridas no livro de Diogo de Vasconcellos (no original, fig. 3, prancha em seguida à página 40) aquele ponto de vista que nos acompanhou até aqui está exatamente postado: a Igreja de São Francisco de Assis, o adro ocupa a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre pequena elevação, em perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais. Cabe lembrar, nos Monumentos históricos, artísticos e religiosos de Minas Gerais, que Anibal Mattos (1935) cita e transcreve em diversas passagens o grande historiador mineiro, fazendo longa remissão a Vasconcellos nas páginas dedicadas à Igreja de São Francisco. Na prancha reservada ao frontispício do templo, a frontalidade também é levemente quebrada com o deslocamento do observador, abrindo o horizonte à direta do edifício onde surgem as modestas torres da “Igreja das Mercês de Baixo” e, ao fundo, o Pico do Itacolomy. [5] Ao considerar pertinentes os escritos sobre a cidade de Ouro Preto, nos quais apontamentos sobre aquela igreja fazem parte da formação do olhar, a poesia talvez 11 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. tenha um lugar ainda mais significativo porque percorre um espaço social mais amplo que os estudos de história, ainda que não tão amplo quanto os guias de viagem. Os versos epigráficos de Carlos Drummond de Andrade talvez sejam os mais significativos. Antes, Mário de Andrade perambulou pelas cidades mineiras surgidas no período colonial. O intelectual paulista, além de poeta, foi destacado musicólogo, folclorista e estudioso das artes. Quando de sua viagem, buscava um sentido nacional para o nosso patrimônio, lia os escritos de Diogo de Vasconcellos, Furtado de Menezes e D. Silvério Gomes Pimenta. Sua viagem foi realizada em 1919 e publicada em 1920 na Revista do Brasil, em uma série de artigos através dos quais examina os caminhos da arte religiosa no Brasil e na América portuguesa. Em Minas, deparou-se com “a suprema glorificação da linha curva, o estilo mais característico, duma originalidade excelente.” (Andrade, 1920, p. 103) Ali, a Igreja liberta-se das influências de Portugal: “o estilo barroco estilizou-se”, surgiu algo de nacional. Mais precisamente, a fase dos formosos templos brasileiros a que o escritor se referia é o segundo quartel do século XVIII, por exemplo, momento de elevação das torres da Nossa Senhora do Carmo de São João del Rei, de Nossa Senhora do Rosário e São Francisco de Assis de Ouro Preto. A São Francisco de São João del Rei atraíra deveras a atenção do escritor, consumando o que acreditava ser a atuação do “gênio” do Aleijadinho. Na formação do olhar brasileiro, a vista da Igreja de São Francisco de Assis aparecia na articulação entre o patrimônio nacional e a maior realização de um estilo artístico, na origem dos laços entre a percepção contemporânea, os monumentos brasileiros e a imagens de arte; Mário de Andrade afirmou um projeto nacional tecido nos liames psicológicos da identidade do brasileiro. Nas comemorações da Semana Santa de 1924, os modernistas paulistas seguiram em excursão para Minas, em busca das referências nacionais. Eram eles, além do próprio Mário, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Blaise Cendrars e Godofredo da Silva Telles. Oswald de Andrade trouxe ao público letrado, sobretudo através do movimento pau-brasil, as imagens captadas na viagem. O “Manifesto da poesia pau Brasil” foi publicado primeiramente no Correio da Manhã, no dia 18 de março de 1924, logo depois do retorno. O verso de abertura trata da nossa imagem: Vamos visitar São Francisco de Assis Igreja feita pela gente de Minas 12 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. O sacristão que é vizinho da Maria Cana-Verde Abre e mostra o abandono Os púlpitos do Aleijadinho O teto do Ataíde Mas a dramatização finalizou .... (Andrade, 1924/1990, p. 135) Outro poeta a voltar-se para a antiga capital de Minas Gerais foi Manuel Bandeira, porém, movido pela redação de um gênero distinto, o guia de turismo. Trata-se do primeiro guia de Ouro Preto, publicação de 1938, de grande significado político, em meio às edições do Ministério da Educação e Saúde, como parte das iniciativas editoriais no Estado Novo, encomendado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Andriolo, 2008). Como Mário de Andrade, Manuel Bandeira também ensaiou escritos históricos, por exemplo, nos artigos “As artes plásticas no Brasil” (A Manhã, Rio, 09/08/1912) e “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes” (O Jornal, 1929), e no capítulo sobre a “Arquitetura brasileira” no livro Crônicas da província brasileira (1937). Na mesma medida que seu colega paulista, trabalhava sobre um sentimento de nacionalidade, mas em um momento em que a documentação histórica não havia sido vasculhada. O desejo de lastrear os monumentos de arte no contexto da memória nacional era mais rápido que o desenvolvimento da pesquisa histórica propriamente dita. Além disso, uma série de imagens vinha a público, a exemplo da iconografia do herói da pátria, o Tiradentes, como foi detalhadamente demonstrado por José Murilo de Carvalho (1990). O guia de Manuel Bandeira foi ilustrado por Luis Jardim, artista representante do regionalismo do Nordeste, cujos desenhos foram também divulgados nos guias de Gilberto Freire, dedicados a Recife e Olinda. A Igreja de São Francisco lá está: uma paisagem de horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de Assis à direita, o adro ocupando a base da pintura, enquanto o templo está implantado sobre pequena elevação, em perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais -ao fundo, o Pico do Itacolomy. [6] Se muitas poesias apresentar-nos-iam imagens de Minas Gerais, os guias de turismo cumprem essa tarefa de modo muito mais intenso, ainda que não tão 13 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. imaginativo. Há uma fotografia no guia Ouro Preto, Cidade Monumento Mundial (1996), registrada por Germano Neto para a promoção de uma pousada. Nessa imagem, o imponente sobrado convertido em hospedaria ocupa a metade da fotografia. À esquerda do observador abre-se a paisagem urbana, com destaque para a Igreja de São Francisco de Assis. A pousada, inaugurada nos anos 1980, está entre aquelas que se instalaram ao lado de monumentos notáveis, beneficiando-se dessa posição tanto em seu material de divulgação quanto nos roteiros turísticos da cidade. As relações simbólicas estabelecidas entre os meios de hospedagem e os atrativos de “cidades históricas” foram examinadas, por exemplo, em Ashworth e Tumbridge (1990) e Andriolo (2007). Esses estudos lançam uma questão sobre a importância fundamental que determinadas obras arquitetônicas cumprem na setorização das cidades turísticas, não apenas em seu valor histórico e artístico intrínseco, mas também como objeto percebido na relação com os espaços urbanos e recebido na duração da vida da cidade. A imagem da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto eleva-se como exemplo importante dessa questão. Ao dispor a questão sobre as formas de perceber e os processos cognitivos, a interpelação das imagens percorre um amplo caminho nos estudos de psicologia. Porém, não obstante o interesse de pesquisadores para as indagações pertinentes às cidades turísticas, as imagens, sobretudo as de arte, permanecem pouco estudadas (e.g. Mannel e Iso-Ahola, 1987; Potter e Coshall, 1988; Ross, 2001; Pearce e Striger, 2001; Pearce, 2005). As pesquisas nesse sentido têm sido realizadas por outras disciplinas (e.g. Cohen, 1993; Evans-Pritchard, 1993; Graburn, 1994; Lajarte, 1995), deixando em aberto a compreensão dos significados propriamente psicossociais do fenômeno imagético. Do ponto de vista histórico, um marco desse interesse foram os estudos de visitantes do museu de Londres, realizados por Francis Galton, no início do século passado, conferindo ao espaço museológico a condição de “laboratório” de observação do comportamento humano. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a migração de estudiosos para os EUA e das novas condições para a prática das viagens, surgiu um campo de estudos relacionado psicologia e turismo (Pearce e Stringer, 1991, p. 137). As várias subáreas evidenciam o turismo enquanto fenômeno psicossocial: “é a interação entre processos individuais e a situação social que tem importância primeira” (p. 143). Deriva daí as relações intergrupais, os comportamentos sociais, os papeis sociais, modelos com referência à autenticidade e identidade étnica etc. No entanto, Pearce e 14 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Stringer alertam para o uso corriqueiro de termos da psicossociologia no campo do turismo, tais como “atitude” e “estereótipo”, sem correspondência direta com a pesquisa em psicologia social. Trata-se de processos sociais concernentes à percepção, cognição e sensações. Altruísmo, competição e agressão são comportamentos manifestos nessas relações interpessoais, distinções simbólicas entre “nós” e “eles” em relação a domínios de classe e de cultura. A imagem na intersecção entre psicologia e turismo está circunscrita a pesquisas destinadas a promover a publicidade das localidades ou, em perspectiva crítica, nos estudos de antropologia e sociologia. Nestes dois casos, a imagem recebe um tratamento metodológico distinto daquele que a psicologia social tem por tarefa propor. [7] As imagens de pintura, desenho ou fotografia dispõem de uma terceira dimensão provocada tanto pela ilusão de ótica quanto pela imaginação do observador. A profundidade do mundo da imagem foi amplamente estudada nos domínios da história da arte, em referência a passados remotos ou a períodos específicos de produção de significados. Neste nosso itinerário, a conjunção de fontes escritas sobre a Igreja de São Francisco de Assis fornece ao espectador um interior, invisível na superfície da imagem, com a descrição iconográfica e poética de suas esculturas, pinturas e ornamentos. Toda essa configuração entre superfície, formas e significados organizam os dados da visão e produzem uma experiência visual. A iconologia, nascida do projeto de Warburg e desenvolvida como método iconológico por Panofsky, indagaria sobre a sobrevivência de significados clássicos no conteúdo da imagem atual. Uma importante contribuição desses estudos foi o tratamento dado a séries de imagens, em contraposição aos estudos de imagens isoladas por vezes descontextualizados. Indiretamente, os escritos de Panofsky forneceram grande contribuição ao debate das ciências humanas, particularmente à psicologia social, ao apresentar o nível iconológico nos termos de uma Weltanschauung (visão de mundo), envolvendo outros termos tais como “representações sociais”, “ideologia” e “imaginário”, no vasto domínio das imagens coletivas, valores e crenças na experiência mental. De modo esquemático, elaborou seu método em relação aos níveis de conhecimento estudados por Karl Manheim e as formas simbólicas preconizadas por Ernst Cassirer. O resultado foi uma abordagem das imagens em três níveis: a descrição pré-iconográfica; a interpretação iconográfica; e a interpretação iconológica. 15 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. As imagens de paisagens, dentre as quais se poderia situar o registro da Igreja de São Francisco entre as montanhas de Minas, foram muito pouco exploradas pela iconologia, talvez pela concepção de referencialidade do seu conteúdo. Quero dizer, pelo fato de se acreditar que a imagem da paisagem representa um mundo em comum, não haveria muito a se indagar quanto ao seu conteúdo simbólico. O caminho que foi trilhado até aqui indica o contrário. O historiador Peter Burke (2004) reviu a intepretação iconográfica, lembrando que árvores e campos, rochas e rios, “todos esses elementos comportam associações conscientes ou inconsciente para os espectadores. [...] Pinturas revelam que uma variedade de valores, incluindo inocência, liberdade e o transcendental, foi projetada na terra” (p. 53). Em suma: “A paisagem evoca associações políticas, ou até mesmo que ela expressa uma ideologia, como o nacionalismo” (p. 54). Desse comentário geral, pode-se citar o elogio particular de Giulio Carlo Argan (1980) quando assinalou a adequação do método panofskyano ao tratamento de paisagens e retratos. “A iconologia de um retrato está na pose, na vestimenta, o significado social ou psicológico que pode ser atribuído à figura; a iconologia de uma paisagem ou de uma natureza morta está no modelo da perspectiva, as configurações, a situação dos lugares e coisas significantes” (p. 19). A iconologia apresenta-se no nível das escolhas de componentes naturalísticos – árvores, rochas, águas, nuvens –, também na seleção da hora, dia e estação. Mesmo a morfologia está repleta de significados. As correlações estabelecidas na pesquisa podem não ter comprovações objetivas, mas indicam níveis inconscientes. A investigação de conteúdos arcaicos, no espaço sagrado formado pela posição do templo sobre a elevação, poderia conduzir à concepção de arquétipo em Jung ou na forma de uma schemata nos termos de Gombrich. Na fotografia de Luis Fontana, “Paisagem de Ouro Preto”, de maio de 1948 (col. Instituto de Filosofia Artes e Cultura da UFOP), a construção da paisagem é muito clara, a igreja à esquerda da imagem conforme a convenção, encaixada de alto a baixo, o adro serve de referência do solo, o horizonte montanhoso com o Pico do Itacolomy. Depois de vislumbrado o entrelaçamento entre os discursos nacionalistas e o processo de significação das imagens relacionadas a Ouro Preto, o significado daquele pico específico torna-se mais compreensível. Trata-se do marco natural de toda epopeia bandeirante na região, desde então presente no imaginário local, cuja função era sinalizar aos viajantes e exploradores que atravessavam a região a posição das freguesias de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Pilar, desde então 16 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. presente no imaginário mineiro. Quando iniciei minhas investigações sobre a formação da ideia de barroco no Brasil, em uma articulação entre os projetos de preservação e memória, o desenvolvimento dos empreendimentos turísticos e o campo da história e da crítica de arte, a imagem da Igreja de São Francisco de Assis ocupava um lugar central nos discursos (Andriolo, 2010a). As enunciações indicavam a permanência de formas conservadoras de representação, no plano da política e da religião. Cabe lembrar, a respeito, passagem na qual Roland Barthes (1957, p. 123) indagava as imagens veiculadas no Guide Bleu, sobremaneira dedicadas a monumentos religiosos católicos, do ponto de vista burguês da História da Arte: “O cristianismo é o primeiro fornecedor do turismo, não se viaja senão para visitar as igrejas”. No Brasil, as igrejas católicas classificadas como “barrocas” aparecem como referência na identificação de Ouro Preto como cidade histórica. Não se vê, por exemplo, a Igreja Metodista projetada por José de Souza Reis, com traços “modernos”, figurar nos guias de turismo, tampouco nos registros iconográficos da cidade. Consequentemente, o edifício está excluído do conjunto de atrativos sob o olhar do turista. Ausência e presença no mundo das imagens são dados significativos. A verificação de um pesquisador sobre os interesses dos visitantes de Ouro Preto apenas confirma essa observação: “Dentre as categorias, a que mais se destacou foi a representada por Igrejas” (Cançado, 1976, p. 120). Para os promotores do turismo, as cidades históricas mineiras mantinham viva “a fidelidade ao Brasil colonial, principalmente com suas igrejas barrocas. As mais procuradas são as 13 de Ouro Preto” (e. g. “A volta ao Brasil em 15 mil igrejas”, Touring, n. 371, jan./fev., 1972, p.78). Na pesquisa de marketing, em meados dos anos 1970, a Igreja de São Francisco apareceu como o maior atrativo turístico de Ouro Preto, com 69,51% da preferência dos turistas (Cançado, 1976, p. 120). Num primeiro nível de significação, um retrato de igreja de “arquitetura colonial” remete o observador a Minas Gerais, particularmente a Ouro Preto. Mais especificamente, o frontispício da igreja de São Francisco de Assis assumiu a posição de símbolo maior, representado todas as igrejas. Isso porque, além de tratar-se de um templo religioso católico, partícipe da memória nacional como símbolo do passado colonial, representava um marco das obras “barrocas”, “legítimas nacionais”, expressão máxima do Aleijadinho. No dizer de Lourival G. Machado (1978, p. 214.), o templo era a “obra prima”: “elementos barrocos puros e autênticos. [...] Numa palavra, em são 17 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Francisco esplende o barroco, mas o barroco brasileiro das Gerais”. Seduziu os modernistas e outros intelectuais, ao ponto de o pintor Alberto da Veiga Guignard ser sepultado em seu cemitério, em 19621. Na produção social do imaginário, as formas daquele edifício tornaram-se um símbolo metonímico de Ouro Preto, um sinal a indicar imediatamente uma mensagem ou um “signo turístico”: “O olhar turístico contemporâneo é cada vez mais sinalizado. Existem marcos que identificam as coisas e os lugares dignos de nosso olhar. Essas sinalizações identificam um número relativamente pequeno de pontos centrais turísticos” (Urry, 1996, p. 71). [8] A abordagem psicossocial da imagem conduziu ao desenvolvimento histórico do turismo no Brasil. A imagem está historicamente situada em uma série de cadernos e números especiais de jornais e revistas, também nas intervenções de organizações públicas. Desde dezembro de 1962, o estado de Minas Gerais, através de seu Departamento Estadual de Informações, havia publicado o seu primeiro “roteiro turístico” (Gomes, 1962). Tal documento traz na primeira página de texto a relação de “cidades históricas”, 27 localidades ao todo, encimada pela fotografia da Igreja de São Francisco de Assis. Nesse mesmo momento, Michel Parent desenvolveu longo estudo da situação do patrimônio brasileiro, acompanhado por outros técnicos vinculados à UNESCO, a exemplo de Viana Lima, o qual se dedicou especificamente a Ouro Preto, São Luís e Alcântara, durante a década de 1960. As ações locais em Ouro Preto remontam às primeiras décadas do século XX, na gestão de João Batista Ferreira Velloso. Teria sido a convite desse político que o presidente do estado Melo Vianna visitou a antiga capital e, tendo visto o estado de conservação da Igreja de São Francisco de Assis, autorizou Velloso a realizar obras de reparos às custas do governo estadual, quando recuperou-se o templo pelo trabalho do mestre Thomé do Nascimento. As seguidas reformas foram alvo de várias críticas feitas, por exemplo, por Gustavo Barroso em seu relatório ao presidente do estado, no qual apontou erros notados nos “azulejos brancos modernos” colocados nos rodapés, as 1 “1972 cinquentenário da Semana de Arte Moderna. / Grupo de intelectuais ligados à referida semana redescobre o barroco mineiro. / Guignard, artista moderno, recém chegado da Europa, naturalmente se engaja no movimento ‘modernista’ brasileiro e vem fazer sua arte no ambiente barroco. / Falece em Minas em 1962 e é enterrado no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; 1972, portanto, é sugestivo.”, in: “Ouro Preto já prepara o seu Festival de Inverno”, Diário de Minas, 27/11/1971, p.11. 18 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. portas e balaustradas pintadas “fingindo madeira”: “julgo que se devia sanar isso, restabelecendo-se a obra antiga como era de verdade” (Barroso, 1944, p. 28). Datam desse instante os desenhos de Alfredo Norfini, realizados em janeiro de 1921, como ilustração do “Documentário iconográfico de cidades e monumentos do Brasil” (Anais do Museu Histórico Nacional, v.7, Rio de Janeiro, 1953), cujo texto foi redigido por Gustavo Barroso. Dentre as ilustrações, a Igreja de São Francisco de Assis aparece em exata frontalidade, sem o horizonte convencional. A partir daí, na série de imagens, o deslocamento em perspectiva com a abertura do horizonte montanhoso e o Pico do Itacolomy torna-se recorrente: em 1934 e 1935 aparece nas fotografias inseridas nos livros de Diogo de Vasconcellos e Anibal Mattos. Depois, no desenho de Luis Jardim (1938) e na fotografia de Luis Fontana (1948). Ligam-se formalmente a Burmeister (1853) e Marc Ferrez (1880), e ocupa a frente do roteiro turístico de Gomes (1962). Não obstante importantes intelectuais louvarem a diversidade de registros, essa “fórmula imagética” perdura. As variações destacam-se, por exemplo, no documentário de viagem de Lourival Machado (1949), onde a fotografia foge da fórmula, seja num retrato frontal, seja no recorte da fachada em diagonal inclinada para a direita. Na mesma linha, Cerqueira Falcão (1946) realizara seu ensaio fotográfico sobre as cidades mineiras, Relíquias da terra do ouro. As palavras de Lourival Gomes Machado fornecem elementos sobre um tipo de fotografia documental: eram documentos “exatos e fiéis”, protegidos pela objetividade no seu padrão, com imagens “frontais e simétricas” (O Estado de São Paulo, 18 jan. 1958, Suplemento Literário, p. 6). Em Falcão, Ouro Preto foi contemplada com 172 fotografias, a Igreja de São Francisco de Assis, com 28, entre tomadas externas e internas. A fórmula imagética circulou em diversos meios, por exemplo, nas propagandas para o jornal O Estado de São Paulo publicadas nos anos 1950 pela Galeria Sete de Abril (rua Barão de Itapetininga, São Paulo) – dedicada à venda de “oleografias e pintura tardia de feitio acadêmico” (Durand, 1989, p. 190) –: fotografias de pinturas mostram a Igreja de São Francisco naquela posição. Na década de 1960, como diria Paulo Mourão (1986, p. 118), a igreja de São Francisco de Assis “tem constituído motivo predileto dos pintores que procuram fixar na tela, com harmoniosa combinação de tintas, aspectos paisagísticos da vetusta ex-capital mineira. Para tanto concorrem a beleza da sua portada, a graça do seu frontispício de superfícies curvas, o pitoresco do seu frontão terminando na linda cruz patriarcal de duas piras.” 19 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. No conjunto, a série de imagens recolhidas tem em comum a representação de uma paisagem, em horizonte montanhoso, com a Igreja de São Francisco de Assis à direita, o adro ocupando a base da pequena elevação onde o templo está implantado, com a ilusão da perspectiva, visualizando-se a imponente fachada e algumas paredes laterais, deixando espaço para a elevação das montanhas sob o céu de Minas Gerais – ao fundo, o Pico do Itacolomy. No processo de transformação da imagem, entre artistas e espectadores distribuídos no tempo, não se pode sustentar uma visão essencialista, seja no plano da forma, seja no do significado. Também não foi possível localizar algo como um reflexo da experiência social sobre a imagem, embora esteja sempre em correlação a processos de significação. Ulpiano Meneses (2002a) lembrou que os “sistemas escópicos” não são estáveis ao longo do tempo, nos espaços sociais de circulação das imagens. Para esse historiador, os documentos visuais precisam também ser considerados como objetos materiais e não apenas como “um abstrato emissor semiótico” (p. 144). A retomada do próprio espaço referido na imagem e a construção de significados nos permite percorrer a série de modo distinto, registros separados no tempo. Noutro texto, esse autor formulou com precisão: As imagens não têm sentido em si, imanentes. Elas contam apenas – já que não passam de artefatos, coisas materiais ou empíricas – com atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação social que produz sentidos, mobilizando diferentemente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar. (Meneses, 2003, p. 28) É preciso circunscrever o domínio da imagem, tal como está colocado neste texto. Uma definição correria sobre o fio da navalha, no duplo risco do historicismo e da teleologia, ao nomear a imagem como um campo cognitivo a despeito das referências propriamente históricas das pessoas do passado e estabelecer uma série de objetos que não estariam efetivamente ligados entre si. Poder-se-ia, então, considerar algo de permanente: um ponto de vista bem estabelecido, sugerindo uma situação corporal, um conteúdo específico, templo entre montanhas, também uma forma particular de compor a paisagem. Na imagem, organiza-se um conjunto de relações interiores e exteriores ao suporte. Vivemos em uma sociedade na qual predominam imagens tecnológicas em um ritmo de difusão altamente acelerado. Na origem latina, imagem estava relacionada ao retrato de uma pessoa morta. Tratava-se da imago, na forma de pinturas, esculturas, 20 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. sobretudo de máscaras mortuárias de cera. Era um objeto elaborado diante da morte, para afastar o medo dela e garantir a sobrevivência do morto. O filósofo da comunicação Norval Baitello Júnior (2005) descreve a imagem como a criação de uma segunda realidade em um jogo entre presença e ausência. Toda imagem tem uma dupla face, uma é visível aos olhos, outra é invisível, ambas movem-se e transformam-se através da experiência histórica humana. Nas palavras do autor: “Uma ciência que investiga as imagens e uma prática que as pretende utilizar fracassará se não se construir sobre os alicerces históricos e culturais, se permanecer apenas na superfície das tipologias e nas classificações morfológicas. E, principalmente, estará fadada ao insucesso se projetar e executar processos de comunicação socioculturais de maneira determinística, sem considerar as facetas sombrias e silenciosas das histórias, das pessoas e das coisas que servem de ponto de partida (e de chegada) na vida das imagens” (Baitello Júnior, 2005, p. 46). Nesta compreensão, a imagem aparece no objeto icônico, mas não se restringe a ele, dispõe-se em suportes diferentes ao mesmo tempo em que assume novos significados. Na dinâmica temporal das imagens, Baitello (2005) localiza duas formas de “iconofagia”, uma “pura” outra “impura”. A iconofagia pura é aquela que há séculos acompanha a confecção de imagens manuais, na pintura ou na escultura, na apropriação de temas, formas e convenções tradicionais, as quais foram grandemente estudadas por Warburg, Saxl e Panofsky. A iconofagia impura resulta de uma concepção crítica dos processos contemporâneos das imagens, sobretudo tecnológicas, os quais partem daquele procedimento conhecido na história das imagens, agora intensificado pela reprodução e distribuição aceleradas com alto grau de penetração no observador, em seu corpo, cujo resultado é uma crise da visibilidade, constituída por uma inflação de imagens e um padecimento dos olhos (p. 96). [9] Do modo como o problema se impôs, na série de imagens, tratá-la em uma unidade disposta em suportes diferentes foi uma escolha pela permanência de um conteúdo específico, em detrimento das diferenças, na trilha da fórmula imagética que alimenta e é alimentada por processos sociais diversos. Não se trata meramente de um modelo. Ao mudar a mídia, a despeito das permanências, ter-se-ia um novo conjunto de significados. A pintura sobre tela, o cartão postal, a página do guia de turismo. Veja-se que um momento importante no processo de inserção dessa imagem nos meios 21 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. turísticos ocorre quando os seus significados são utilizados por empresas ligadas ao turismo, mas pouco reconhecidas como tal. Pode-se localizar, em 1957, uma propaganda de óleo para motor de automóveis fazendo uso evidente da imagem da Igreja de São Francisco de Assis como um verdadeiro sinal, indicando o caminho para Ouro Preto, no mesmo tamanho que o produto oferecido. A posição do observador, neste caso, é a mesma definida em retratos anteriormente assinalados. Não se trata exatamente de um hotel, ou uma agência de viagens, mas de um fabricante de óleo lubrificante. Uma empresa multinacional que teve seu mercado ampliado com o uso de automóveis, a implantação das rodovias no interior do Brasil e a divulgação de pontos de interesse que deveriam ser atingidos pelos turistas. Há que se considerar aqueles números enunciados anteriormente que demonstram a preferência do viajante, na década de 1970, em ir de automóvel particular para Ouro Preto (Cançado, 1976). A propaganda trabalha com os desejos particulares dos consumidores do jornal, mas marcados por representações que os tornam comuns. A figura abarca metade da página no sentido vertical, trazendo ao alto o título “Ouro Preto” com um sentido duplo, pois em seguida, abaixo do desenho da Igreja de São Francisco, aparecem as palavras “Basta o nome!”. O ouro a que se refere a propaganda é o óleo de motor (o petróleo transformado), com o qual o viajante pode atingir distâncias longas como a localidade representada pela igreja (Ouro Preto). A inscrição é ínfima em relação ao desenho, destinada apenas aos mais curiosos, uma vez que a imagem por si transmitira a mensagem: E está claro do que falamos. Shell X -100 Motor Oil é sempre a maior proteção nos longos percursos ou mesmo quando o motor está parado, em virtude de conter aditivos alcalinos mais atuantes no combate aos ácidos corrosivos da combustão. Por isso, quando se fala em lubrificantes, basta o nome - SHELL X-100 MOTOR OIL (O Estado de São Paulo, 12 abr. 1957, p.9.) À frente do desenho do templo está um burrinho aguardando pacientemente seu dono. É uma metáfora figurativa do passado, sobre uma tradição genuína da antiga capital de Minas, quando se transportavam pessoas e cargas no lombo de animais, resíduo dos tempos coloniais, confrontado com a modernidade do óleo lubrificante e do veículo automotor. Ouro Preto, expresso na igreja, simboliza o passado, porém com a modernidade acessível apenas por novos meios. Diante da migração da imagem, solicita-se outro passo no exercício da descrição e interpretação; a iconologia crítica. Como assinalou W. T. J. Mitchell (1986), a imagem 22 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. não perdeu seu poder na sociedade contemporânea, embora isto não esteja claramente entendido. A crítica moderna pensa a imagem como um tipo de sinal que apresenta uma descrição de naturalidade e transparência opaca, distorcida, como em um “mecanismo arbitrário de representação” ou um “processo de mistificação ideológica”. Entretanto, a imagem não é apenas um tipo particular de sinal, mas algo como um ator do momento histórico, uma presença ou um caráter dotado de status legendário, uma história que ladeia e participa das estórias que contamos para nós mesmos sobre nossa própria evolução de criaturas ‘feitas à imagem’ do criador, para criaturas que fazem a si próprias e o seu mundo à sua imagem. (p. 8) Nessa compreensão, a imagem pode referir uma variedade de coisas – estátuas, figuras, sonhos, mapas, poemas, ideias etc. – em uma família na qual o significado muda e migra através do processo social, no tempo e no espaço, em relação aos discursos. A psicologia social pode dedicar-se aos processos sociais nos quais a imagem não é apenas uma coisa física, mas um movimento de mediações entre os objetos icônicos, as imagens corporais e as imagens mentais dos observadores. Os movimentos de transformação da imagem são compreendidos enquanto fenômeno imagético no processo social, na vida intersubjetiva, como um campo de significação estética, política, econômica e cultural. Nesse domínio, a psicologia social participa de diálogos com a sociologia, a história e a antropologia. Ulpiano Meneses (2003, p. 23) notou uma virada interdisciplinar nos anos 1980: A voga dos estudos de cultura visual assinala com clareza, no campo das ciências sociais – para o bem e para o mal –, aquilo que já foi chamado de pictorial turn, em sequência ao linguistic turn de décadas anteriores, que chamara a atenção para o texto antropológico ou sociológico na produção do conhecimento. Essa virada não foi unívoca, mas um conjunto de proposições teóricas em direção à experiência ou à cultura visual (Mitchell, 1994). A perspectiva teórico-metodológica formulada por W. J. T. Mitchell (1986), designada iconologia crítica, tem se mostrado muito profícua nos trabalhos no campo da psicologia social da imagem, sobretudo porque pensa a imagem inscrita nos processos sociais e históricos. A situação das imagens na vida social inscreve-se na realidade da vida cotidiana, em torno da qual as ações políticas e interações sociais promovem o mundo da vida (Jung, 1972, p. XX). Em seus fundamentos e em sua historicidade radical, o mundo da vida precede ao conhecimento conceitual porque é pré-reflexivo, tornando-se lugar de ações políticas antes das teorias políticas. A política das imagens pode ser compreendida como ação política em grande parte pré-reflexiva, no sentido de Merleau- 23 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Ponty, nos atos cotidianos de seus atores no mundo da vida, uma luta não articulada em conceitos ou palavras, mas em imagens. Diante das imagens, atributos formais “agem como vetores potenciais de conteúdos afetivos”, afirmou Meneses (2002a, p. 140). As imagens são ingredientes de nossa realidade social: Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias dimensões e funções. Os usos de imagens como documento é apenas um entre tantos outros, e não altera a natureza da coisa, mas integra uma situação cultural específica entre várias outras. (p. 146) Na proposição de Mitchell (1986), há uma retomada do logos (palavra, ideia, discurso, ciência) dos icons (imagem, semelhança, picture), no duplo sentido da “retórica das imagens”: (1) o que se diz acerca das imagens, interpretações; (2) o que as imagens dizem, histórias, descrições. Volta-se para o campo da imagem (imagery). Assim, insere-se esse estudo na longa tradição surgida na Renascença com os guias de imagens simbólicas e alegóricas, notadamente com Cesare Ripa, até as pesquisas de Erwin Panofsky, no início do século XX, as quais marcaram a cisão entre a iconografia – fundamentada na descrição particular dos símbolos – e a iconologia – projeto de interpretação geral dos símbolos em horizonte histórico. Desse modo, a noção de imaginário é conectada às teorias da arte, da linguagem, da comunicação e da estética, e às concepções sociais, culturais e políticas. A iconologia em Mitchell torna-se não a ciência dos icons, mas a psicologia política das imagens; o estudo da iconolatria e da iconofobia (p. 3). Em suma, a imagem é lugar de poder, tanto em relação à ideologia quanto em referência ao ídolo ou ao fetichismo (Mitchell, 1986, p. 151), de modo que o “iconologista” distingue-se do historiador, do esteta, do crítico de arte, para contemplar a imagem “impura” em todas as suas formas. Sugere um campo profícuo para a práxis da psicologia social, cujo objetivo seria restaurar “o poder dialógico de imagens mortas, insuflar nova vida em metáforas mortas, particularmente, metáforas que informam seu próprio discurso” (p. 159). Na sociedade do espetáculo e do imagético, o poder das imagens renova-se ao mesmo tempo em que aprofunda o medo das imagens. [10] A trajetória da imagem como representação do monumento, a reenviar Ouro Preto à arte nacional como símbolo de história e arte, evidenciou a permanência dos traços miméticos. 24 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Não obstante, há artistas que subvertem a posição do observador, variando as possibilidades do olhar. A pintura de Carlos Bracher Igreja de São Francisco de Assis (1968, 81 x 60 cm, col. Romulo Fialdini) desliga o observador daquela fórmula imagética, perturbando a circulação de imagens comerciais que se multiplicavam com as atividades turísticas. Conforme notou Hansen (1998, p. 41), em Bracher encontramos uma representação parcialmente não-mimética, “sua fantasia é moderna: ignora a verossimilhança, porque não pressupõe nenhuma unidade de verdade exterior”. Ao tratar de imagens, referindo um monumento, um lugar, a natureza ou a paisagem, a concepção de imitação (imitatio) percorre os significados do conceito da mimesis da tradição clássica aos usos subsequentes. Do grego mímesis, por vezes identificado com imitação do gesto, da voz ou da palavra de outrem, também da representação do real na imagem de arte, sobretudo literária. O conceito refere à pessoa que imita ou representa, em uma teatralização, com movimentos corporais, danças, músicas e recitações, afetando a alma em sentido terapêutico (Ribon, 1991). Denotando a imitação, representação ou retrato, articularia a imago, a imagem, no pensamento latino. A mímica e o mimetismo são ações concernentes ao imitar no contexto da natureza e da estética, girando em torno de dois significados básicos: a imitação referida à natureza enquanto fenômeno, objeto ou processo; e a representação no contexto da arte, envolvendo a relação entre estética e natureza. A doutrina acerca da arte como imitação ocupa lugar de destaque no jogo político e artístico da estética clássica, por exemplo, com Winckelmann. A mimesis na concepção de imitação perdeu espaço com o romantismo, quando o conceito de expressão e a palavra poética ocupam o centro do debate estético. Não obstante, Hans-George Gadamer (1992) indicara a possibilidade da retomada da mimesis fora dos quadros do classicismo. O filósofo elabora sua proposição tendo em vista a poesia, revendo o sentido grego dos termos poiesis e poietes, ampliando, porém, a discussão para as artes visuais, demonstrando a utilidade do antigo conceito na compreensão da arte moderna. A alegria do disfarce, a alegria de representar qualquer outra coisa que não seja a si mesmo e a alegria daquele que reconhece na representação aquilo que é representado, mostram bem qual o sentido verdadeiro da representação imitativa: não se trata em hipótese alguma de comparar ou de julgar a proximidade maior ou menor da representação em relação àquilo que é significado nesta representação. (Gadamer, 1992, p. 109) A experiência mimética é uma relação original na qual “aquilo que se realiza, não é tanto uma imitação, senão uma metamorfose” (Gadamer, 1992, p. 111). Esta concepção 25 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. permite a retomada da mimesis sem a dependência da teoria clássica da imitação. Não consiste em algo que reenvia a outra coisa que é seu modelo, mas sobretudo a algo que existe e possui um sentido em si. Na perspectiva de Luiz Costa Lima (1981), mimesis não é imitação no sentido contemporâneo, não há correspondência em nossas línguas ao sentido grego, mas ela assemelha-se à imitação e remete à ideia de verossimilhança. A virada provocada pelo pensamento de Costa Lima está em afirmar a sobrevivência da mimesis, a despeito de sua forma organizada pela imitatio, pelo jogo que instaura a diferença: a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável, porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença. (Costa Lima, 1989, p. 68) Dessas definições, historicamente três termos jogam socialmente o processo de significação da experiência estética: imitatio, imago e mimesis. Não obstante, não é o objetivo deste estudo avançar sobre esse terreno. O eixo da discussão foi a imagem da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, instância mediadora de processos sociais e processos estéticos. Portanto, pensar o social em relação ao estético e viceversa em torno do fenômeno imagético. Experiência que acolhe imediatamente o corpo do observador, na concepção de Frayze-Pereira (2005, p. 163), através da qual “os sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação”. A imagem, no jogo da mimesis, realiza as mediações entre as sensações de semelhança e diferença, no processo histórico da vida social, possibilitando a compreensão dos aspectos permanentes e das transformações das imagens no mundo contemporâneo e suas implicações no campo da psicologia social. 26 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. PARTE 1. PERCEPÇÃO E HISTÓRIA 2. A pintura é um traço de nossa relação histórica com o mundo Merleau-Ponty e Panofsky No antepenúltimo parágrafo de O olho e o espírito, último texto publicado em vida pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty (1961), aparece uma referência a Erwin Panofsky. Antes de figurar na conclusão desse escrito, este historiador da arte fora citado na metade do capítulo terceiro para reforçar a noção acerca da pretensão dos “homens do Renascimento” em fundar uma pintura exata e infalível. Estas duas aparições de um historiador têm um significado importante na compreensão da percepção em relação a obras de arte em Merleau-Ponty. Pintura e história são termos centrais nos escritos desse filósofo, referindo alguns de seus principais textos, nos quais a percepção é considerada em relação à experiência estética de obras de arte. Aqui pretende-se discutir a importância da imagem pictórica como significação das dimensões histórica e psicológica do processo perceptivo. O significado vital da percepção encontra reflexões profundas elaboradas sobre pinturas. Tais imagens não são reproduções de um mundo objetivo, outrossim, apresentam um traço da relação do sujeito com o mundo percebido, cuja gênese situa-se na mediação entre as dimensões psicológica, social e histórica. A partir daquela menção à historiografia da arte, nota-se Merleau-Ponty como leitor tanto de Erwin Panofsky quanto de Pierre Francastel. Nestes dois autores, a imagem pictórica foi pensada como elemento significante de processos históricos 27 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. precisos na formação do Ocidente, ambos orientados por uma compreensão do processo social e histórico expresso no espaço plástico. Percepção e história Cézanne considerava a pintura como parte de sua própria existência, bem como a representação de um importante ponto de vista acerca da paisagem. Cézanne superou o método impressionista, ao tentar representar o objeto atrás da atmosfera, situando a arte como parte da natureza (Merleau-Ponty, 1945/1980, p. 115). Localiza-se, então, o problema da perspectiva em sua pintura: a fidelidade frente ao fenômeno mostra que “a perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica: na percepção, os objetos próximos parecem menores, os distantes maiores, o que não sucede numa fotografia...” (p. 117). Considerando a totalidade do processo perceptivo, desde os instrumentos sensórios até a configuração simbólica do objeto percebido, são notáveis as distinções entre culturas diferentes. Estudos etnobiológicos mostram que mesmo a constituição física do ser humano modifica-se de acordo com o meio em que habita. Simões & Tiedemann (1985, p. 89) defendem que o processo de reconhecimento das formas, pela formação de contornos, é universal, mas que figuras e seus significados são processados de maneira diferente. As representações pictóricas em perspectiva exigem a supressão de alguns elementos, reduzindo a informação contida na figura para seu reconhecimento, mas acrescentando outras informações sobre a cena envolvida (movimento, distância, relacionamento etc.). Os trabalhos de Jonathan Crary (1990), em sua designação acerca das “técnicas do observador”, relacionam teorias cognitivas e artes visuais do século XIX para compreender a transformação histórica da percepção e das experiências corporais. A elaboração de um conhecimento da percepção que considere a dimensão cultural e histórica se desenvolve desde a década de 1960, tecendo um diálogo com a psicologia. Por exemplo, Baxandall (1972/1991) baseou seu estudo sobre o olhar no século XV tanto no livro de Segall, Campbell e Herkovitz (1966), onde a percepção constitui-se como uma experiência cultural, quanto na psicologia intercultural de Witkin (1967, p. 233), de onde extraiu a noção de “estilo cognitivo”: “o modo de funcionamento que caracteriza um indivíduo em suas atividades perceptivas e intelectuais”. 28 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Baxandall (1972/1991, p. 48) conclui sua proposição afirmando que alguns dos instrumentos mentais através dos quais o homem organiza a sua experiência visual é variável, e boa parte desses instrumentos depende da cultura, no sentido de que eles são determinados pela sociedade, que exerce influência sobre a experiência individual. Entre essas variáveis existem as categorias por meio das quais o homem classifica seus estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para integrar o resultado de sua percepção imediata, e a atitude que atingirá diante de um tipo de objeto artificial que a ele se apresenta. Neste sentido, está-se considerando as categorias da percepção da época como indicativos de experiências psicossociais e estéticas, na medida em a percepção é formada também por meios de comunicação, histórica e culturalmente situados, dos quais participam os modelos artísticos (Roger, 2000, p. 37). O campo perceptivo é uma formação histórica, pois a encarnação dispõe o indivíduo em uma situação espacial e temporal. A dimensão espacial delimita o aqui e o ali, enquanto a dimensão temporal remete ao agora, ao passado e ao futuro. Mais do que isso, as noções de arco intencional e de campo perceptivo, fundadas na intersubjetividade e na intercorporeidade, abrigam as dimensões sociais e históricas desde a sua constituição pela consciência. Em todo esse .processo, a experiência perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da arte, o mundo é constituído na vida social. Merleau-Ponty busca a gênese da obra de arte sob os processos históricos, não em sentido a-histórico, pois não deixa de pensar a arte, a política e a filosofia no fluxo de uma “história silenciosa”, situada aquém das estruturas visíveis e sustentada pela metafísica do corpo e da sociedade. Baseado nessas noções, Donald Lowe (1986, p. 31) reafirma que o sujeito enfoca o mundo perspectivamente, “desde o íntimo e familiar até o distante e tipificado, com a intenção de viver”. O campo perceptivo constitui-se pelo percebedor, o ato de perceber e o conteúdo do percebido. Assim, circunscreve as transformações temporais e espaciais do campo perceptivo a partir de três fatores: 1) os meios de comunicação; 2) a hierarquia dos sentidos que estruturam o sujeito como percebedor encarnando; 3) os pressupostos epistemológicos que ordenam o mundo do conhecimento (a epistême de Michel Foucault). Por exemplo, na Idade Média, a cultura oral sustentada pela memória garantia à audição e ao olfato a dominância sobre a visão, fomentando um conhecimento anagógico; em contrapartida, o campo perceptivo da modernidade formase através de meios tipográficos e imagens fotográficas, elevando o sentido da visão e 29 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. um conhecimento que considera o desenvolvimento no tempo. Nas palavras de Lowe (1986, p. 31): Em cada período a cultura dos meios de comunicação forja um ato de perceber; o sujeito fica delimitado por uma diferente organização hierárquica dos sentidos e o conteúdo do percebido oferece a ele um conjunto distinto de regras epistêmicas. Por conseguinte, o campo perceptivo constituído é uma formação histórica, que difere entre um período e o seguinte. O método resultante dessa abordagem coloca em diálogo a historiografia dos Annales com a fenomenologia de Merleau-Ponty visando à circunscrição de campos perceptivos do passado, em domínios hegemônicos que são organizados na tensão sobre outros domínios não hegemônicos, formas de perceber subalternas e sedimentos de campos perceptivos antigos (Lowe, 1986, p. 37). Desse modo, os problemas da percepção não podem ser representados numa história evolutiva, como uma linha sobre a qual se penduram os fatos, mas, como queria Merleau-Ponty, na projeção de uma rede de intencionalidades. Uma rede que se movimenta e se organiza internamente no conflito de suas partes constitutivas. A perspectiva como forma simbólica Voltemos à menção inicial feita por Merleau-Ponty a Panofsky. Antes de aparecer em O olho e o espírito, o filósofo lançara mão do livro A perspectiva como forma simbólica (1924) para compreender a historicidade da experiência do mundo nos cursos de psicossociologia ministrados na Sorbonne, entre 1949 e 1952 (Merleau-Ponty, 1990, p. 292-293). Panofsky considerava a perspectiva geométrica como uma invenção durante o Renascimento, cuja forma simbólica seria compreensível no domínio da pintura. O estudo examinou o processo histórico de passagens e alternâncias entre problemas matemáticos e problemas artísticos. Baseado no conceito de Cassirer, a perspectiva é uma forma simbólica mediante a qual um conteúdo espiritual particular se une a um signo sensível concreto e se identifica com ele (Panofsky, 1924/1975). Se, por um lado, essa forma perspectiva reduz os fenômenos artísticos a regras matemáticas exatas, por outro lado, o faz em estreita relação com o que é próprio da percepção humana, do ponto de vista fisiológico, psíquico e subjetivo: justifica-se conceber a história da perspectiva como um triunfo do sentido do real, constitutivo de distância e de objetividade, como um triunfo dessa vontade de poder que habita o homem e que nega toda 30 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. distância, como uma sistematização e uma estabilização do mundo exterior tanto quanto um alargamento da esfera do Eu. (p. 160) As formas de representação na arte expressam concepções de espacialidade que se alteram em relação à geografia e à história. Não obstante, nos dois polos da concepção, no sentido da racionalidade e do objetivismo, e apesar da contínua abstração psicológica e fisiológica dos dados, a perspectiva se funda na vontade de criar o espaço figurativo a partir dos elementos e segundo o esquema de espaço visual empírico. Desse modo, conclui Panofsky (1924/1975), abandona-se o “verdadeiro ser das coisas” em favor da aparência visual das coisas. Com a transposição da objetividade artística no campo fenomênico, a perspectiva impede o aceso da arte religiosa à região do mágico, mas abre à própria arte religiosa uma região nova, do “visionário”, onde o milagre torna-se experiência vivida imediatamente pelo espectador (p. 181). Conforme Merleau-Ponty (1990, p. 294), a conclusão de que a perspectiva não é um dado natural, embora assim nos apareça, alerta contra dois erros de interpretação: 1) não há superartistas ou um espírito do mundo atuando por trás deles: “não se trata de um inconsciente histórico que dirija os pintores a seu bel prazer, é preciso compreender que o pintor trabalha e não pensa na história universal”; 2) O desenvolvimento da pintura não se deve a acasos, porque os artistas, habitantes de um mundo pictórico, são guiados em seu trabalho por problemas sentidos surdamente: “num quadro lemos uma história silenciosa, visto que o problema não é explícito”. Dürer (1471-1528) amplia o problema da perspectiva no momento em que considera que o quadro deve significar o mundo, assim, “ele deixa de ser um elemento do mundo”. A pintura não se limita à superfície do quadro. Na medida em que os objetos são escalonados em profundidades, forma-se uma concepção do mundo: “o quadro é feito para converter o mundo em seu significado”. Em referência a Sartre, assevera: “O quadro pintado não reside no ponto do espaço onde está a tela; aparece nesse ponto mas não é esse ponto. O mundo é algo a construir.” A partir da citação de Panofsky, Merleau-Ponty (1990, p. 292) demarca a historicidade da experiência perceptiva e da experiência do mundo por intermédio da pintura: “Um quadro é o traço manifesto de uma certa relação cultural com o mundo”: “aquele que o percebe, percebe ao mesmo tempo um certo tipo de civilização. Nos casos em que a arte procurou fazer-se o menos subjetiva possível, essa arte é a expressão de uma certa maneira de ser do homem”. E acrescenta: “Os artistas já têm presente um certo sentimento do mundo: buscaram alguma coisa que viesse completar seu sistema 31 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. de expressão do espaço; é o conjunto das tensões interiores a seu sentimento que os orienta.” (Merleau-Ponty, 1990, p. 293) O espaço é a experiência humana Ao considerar uma história silenciosa, Merleau-Ponty propõe a arte como linguagem indireta, por meio da qual a perspectiva geométrica não é o único modo de projetar a percepção humana do mundo. A perspectiva do mundo aparece como perspectiva geométrica, mas não em termos de uma lei natural (Merleau-Ponty, 1952/1989, p. 97). A perspectiva geométrica é a circunscrição de uma percepção livre. Para realizá-la é necessário delimitar a visão e estabelecer padrões de grandeza, guiados por um ponto de vista formado por apenas um olho, não binocular como a experiência viva. Os olhos livres são substituídos por um olho imóvel e fixado em um ponto de fuga central. Depois disso é que se pode desenhar, porque a perspectiva geométrica é mais que um segredo técnico para imitar o mundo real, ela é a intenção de um “mundo dominado” (p. 97). Nesta reflexão, Merleau-Ponty refere-se às formulações de outro pensador dedicado à sociologia e à história da arte, Pierre Francastel, concernentes à produção social do espaço pictórico, a partir dos séculos XIV e XV (Pintura e sociedade, 1951). Francastel notara o trabalho de Panofsky (1924), que colocou a questão do relativismo da perspectiva, compreendida como uma constante elaboração espiritual e não uma lei. Porém, procede a uma modificação na formulação do problema. Primeiramente, trabalha com a ambiguidade dos termos “espaço” e “perspectiva” em momentos históricos diferentes. No chamado Renascimento, a perspectiva designa um sistema de organização da superfície plana da tela conforme um ponto de vista único. Escreveu Francastel (1951/1990, p. 288): “o mundo exterior não é regido por leis que o fazem girar em torno de cada um de nós; e não somente temos dois olhos, como cada um deles é móvel”. A perspectiva renascentista é um sistema de montagem, não a objetividade do mundo. Afasta-se, então, de Panofsky e outros autores por não aceitar a redução ao domínio intelectual do espaço, também pela pouca consideração que concedem à figuração através da cor e, sobretudo, por pensarem o espaço como “uma realidade sobre a qual as gerações especulam segundo diferentes modos, cujas 32 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. abordagens elas modificam, mas que é, na verdade, um objeto positivo e permanente, exterior ao homem”. De modo sintético: uma obra de arte qualquer não é uma representação, uma transposição, figurativa ou simbólica, de uma realidade. A obra e o artista não são exteriores ao mundo sensível e ao mundo social em que agem. (...) A perspectiva não é uma causa externa, uma receita ou um meio, mas sim um atributo da obra e da atividade criadora, uma estrutura. (Francastel, 1951/1990, p. 289). “Um quadro não é um duplo da realidade, é um signo”, entendendo por signo um sistema de linhas, cores e formas que permitem ao espectador circunscrever, a partir do trabalho do artista, “um ponto do espetáculo eternamente móvel do universo” (p. 38). Não se trata, portanto, de um registro da natureza ou do espaço. A unidade do olhar sobre a natureza ou sobre uma obra de arte está no espírito daquele que percebe, eis o fundamento estético e psicológico de Francastel: “Há o mundo, a imagem vivida; há a imagem percebida que é uma realidade espiritual para cada autor e cada espectador; há a imagem notada, que constitui o signo de reconhecimento; e a imagem virtual, que permite a transmissão do pensamento do autor para o espectador.” (p. 38) Francastel (1951/1990, p. 2) propunha uma análise individual e social da legibilidade e eficácia de um quadro; “uma obra de arte é um meio de expressão e de comunicação dos sentimentos ou do pensamento”. Entre os séculos XV e XVI, um grupo de pessoas construiu “um modo de representação pictórica do universo”, baseando-se em “certa soma de conhecimentos e de regras práticas para a ação” (p. 3). Embora não se apresente como ruptura brusca entre a Idade Média e o Renascimento, algo de importante aconteceu entre os artistas. A começar pela formulação do espaço por Brunelleschi, a luz diáfana por ele e por Donatello, ambos inseridos num quadro de pesquisas desde o século XII; e mesmo a partir de uma descoberta, apenas lentamente e por meio de diferentes experimentos, se transformou o mundo estabelecido em um mundo designado moderno (p. 13). O autor tem reservas quanto à condição de heróis desse processo, por exemplo: Que Masaccio tenha dado sua colaboração para a grande corrente de arte não é coisa que se ponha em dúvida, mas não poderíamos ver nele o homem que fez mudar o sentido da representação plástica do espaço 33 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. graças a um achado genial, análogo ao de Brunelleschi. (Francastel, 1951/1990, p. 16) No início do Quattrocento, “criava-se em virtude de uma necessidade interior, não em virtude de um plano preconcebido” (p. 19). Artistas menos conhecidos pesquisam sobre receitas antigas “mas não concebem que elas contêm em germe uma revolução que exclui qualquer recurso às antigas fórmulas” (p. 20). Os procedimentos chamados renascentistas eram inicialmente apenas mais uma invenção técnica no vasto campo de especulações espaciais. Daí concluir: O espaço não é uma realidade em si, da qual somente a representação é variável segundo as épocas. O espaço é a própria experiência do homem. É tão-só porque séculos de convenção habituaram-nos a aceitar determinados signos expressivos utilizados na educação, com o fito de desenvolver simultaneamente nossas faculdades matemáticas e nossas faculdades visuais, que nos parece evidente que determinada perspectiva euclidiana fornece-nos, de modo espontâneo, a ilusão perfeita da realidade. (Francastel, 1951/1990, p. 24). Esta tese crítica às concepções objetivistas do espaço é traçada em diálogo com a psicologia, tornando-se compreensível pela relação que estabelece com Piaget e Wallon. Por sua vez, Merleau-Ponty (1952/1989, p. 91) indica que Brunelleschi construiu a catedral de Florença numa relação proporcional com a paisagem local – a cidade, os prédios e as ruas. Embora seja difícil determinar o momento exato de mudança entre o espaço fechado medieval e o espaço universal renascentista, Brunelleschi mostrou que o espaço da representação é uma questão importante. Muito tempo antes de mudanças objetivas, artistas e arquitetos inconscientemente trabalharam baseados nessa questão. A emergência da vida social em um processo temporal Merleau-Ponty afirma uma compreensão corporal do espaço. Em sua tendência para o alto, considerava as formas de nossa ancoragem no mundo a orientar a significação do mundo: O mundo só tem significado porque tem uma direção; toda localização dos objetos no mundo pressupõe minha localização; num sentido, o objeto da percepção não cessa de nos falar do homem; é nossa expressão como sujeitos encarnados. (Merleau-Ponty, 1990, p. 292) 34 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Na fenomenologia da percepção, portanto, é a relação de ser encarnado no mundo que estrutura o processo de significação, a partir do qual o espaço, as coisas e os outros se localizam. Não se trata tão somente de um corpo sensorial, mas de um corpo portador de técnicas, de estilos, de condutas. A citação a Panofsky na conclusão de O olho e o espírito esclarece que os problemas da pintura são resolvidos indiretamente. Quando os artistas veem-se diante de um impasse, se esquecem de suas próprias questões e, de repente, encontram a solução para aquele problema. Como num labirinto, uma profundidade histórica movimenta-se e isso não quer dizer que o pintor não sabe o que quer, mas que deseja algo abaixo de seus planos (Merleau-Ponty, 1964, p. 90). A dupla referência a Panofsky e a Francastel em Merleau-Ponty evidencia o espaço pictórico como a expressão de um processo histórico, baseado em uma produção social e psicológica de significados. Desse modo, a pintura manifesta certo tipo de civilização porque o processo da percepção organiza-se socialmente de modo particular em cada momento histórico. Tal consideração é perpassada pela compreensão do simbólico em Merleau-Ponty (1989, p. 151): “fonte de toda razão e de toda irrazão”. Nos seus primeiros escritos, considerava o advento da “ordem humana” como advento da “ordem simbólica”. Para o filósofo francês, o que define a humanidade não é a “capacidade para criar uma segunda natureza – econômica, social, cultural – para além da natureza biológica, mas, sobretudo, a capacidade para ultrapassar as estruturas criadas para daí criar outras.” (Merleau-Ponty, 1942/2002, p. 189). Ele considera que a estrutura presente fora de nós, nos sistemas naturais e sociais, está em nós como função simbólica e “permite compreender como estamos numa espécie de circuito com o mundo sócio-histórico, o homem sendo excêntrico a si mesmo e o social só encontrando seu centro nele” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 153). A ambiguidade da relação deriva do fato de indivíduo e sociedade serem duas totalidades; há “uma totalidade dentro de uma totalidade e dupla perspectiva”. Do Manuel d’Ethnographie de Mauss (1947), Merleau-Ponty (1947/1989, p. 133) extrai a seguinte afirmação: “O espírito de uma civilização compõe um todo de funções; é uma integração diferente da soma da totalidade das partes”. O debate acerca das estruturas figurava nas ciências humanas, na sociologia, na antropologia, na história, na psicologia e na linguística, junto a trocas mais ou menos conflituosas de conceitos-chave. Retome-se a terminologia do habitus e a fundamental 35 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. tradução francesa de dois textos de Panofsky por Pierre Bourdieu, Abbot Suger on the Abbey Church of Saint-Denis e Gothic Architecture and Scholasticism (1967), na qual o sociólogo refere-se à iconologia como uma ciência estrutural oposta tanto ao intuicionismo quanto ao positivismo, desenvolvendo um método que extraía das realidades “as estruturas que nelas se exprimem e se ocultam” (Bourdieu, 1992, p. 339). Nesta concepção, concorda que não há lugar para a ideia de pessoas superiores, cuja criação tocaria o espírito do mundo (p. 342). Porém, tanto Bourdieu desenvolve uma leitura crítica à fenomenologia, quanto a noção de estrutura sofre variações na interpretação desses autores. Merleau-Ponty confere um sentido específico à estrutura social, particularmente no que diz respeito ao mundo da arte. Se, por um lado, um espaço de diálogo entre Merleau-Ponty e Francastel dava-se no âmbito da psicologia – note-se que este último publicava artigos no Journal de Psychologie durante a década de 1950 –, de outro lado, ambos remetem seus escritos ao historiador Lucien Febvre, cuja proposição estabelecia o diálogo entre psicologia e história. Basta citar dois de seus mais conhecidos artigos: “Une vue d’ensemble: histoire et psychologie” (1938) e “La sensibilité et l’histoire” (1953). Febvre (1953/1987, p. 104) expunha seu diálogo com a psicologia de Wallon frente ao exercício de religar “ao conjunto de condições de existência de uma época o sentido dado a suas ideias pelos homens dessa época”. Para tanto a iconografia artística apresenta-se como documento histórico. Merleau-Ponty (1947/1989, p. 134) remete ao mais famoso livro de Febvre, Le problème de l’incroyance au XVIéme siècle – la religion de Rabelais (1943), evidenciando a necessidade de se recompor o passado no presente tal como foi vivido por seus contemporâneos, sem lhes impor nossas categorias. Considera a tarefa de examinar as “componentes subjetivas do acontecimento”: a aparelhagem mental (outillage mental) do século XVI não pode ser descrita em nossa linguagem, nem pensada com nossas categorias. Por meio da noção de estrutura – o “ingrediente irredutível do ser” –, MerleauPonty (1947/1989, p. 129) questiona a alternativa clássica da “existência como coisa” e da “existência como consciência”: estabelece uma comunicação e uma espécie de mistura do objetivo e do subjetivo, concebe de maneira nova o conhecimento psicológico, que não consiste mais em decompor conjuntos típicos, mas, antes, em esposá-los e compreendê-los. 36 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A estrutura e sua compreensão permitem redescobrir um conhecimento que o sujeito esquece em sua atitude natural (p. 135). Se uma sociedade encontra um caminho que já foi seguido alhures, não se tratará de uma “consciência coletiva” ou de um “arquétipo” transcendente, mas é esta estrutura mítica que “oferece uma via para a resolução de alguma tensão local e atual, sendo recriada na dinâmica do presente” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 145). Sua crítica dirigia-se a Durkheim e Lévi-Bruhl: Durkheim tratou o social como uma realidade exterior ao indivíduo e encarregou-o de explicar tudo o que se apresenta ao indivíduo como dever-ser. Mas, o social só pode prestar esse serviço se não for uma coisa, se investir o indivíduo, solicitá-lo e ameaçá-lo ao mesmo tempo, se cada consciência, ao mesmo tempo, se perder e se encontrar na relação com as outras consciências, enfim, se o social não for ”consciência coletiva”, mas intersubjetividade, relação viva e tensão entre os indivíduos. (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 132). Deriva daí a afirmação: “Os fatos sociais não são coisas nem ideias: são estruturas” (Merleau-Ponty, 1960/1989, p. 143). A estrutura garante o funcionamento social, aparecendo como óbvia aos que a praticam. No fundo dos sistemas sociais reside uma infraestrutura servindo como um “pensamento inconsciente”, “uma antecipação do espírito humano”. E conclui: Que nome dar a este meio onde uma forma, prenhe de contingência, abre subitamente um ciclo de porvir e o comanda com a autoridade do instituído? Que nome, senão o de história? Sem dúvida, não a história que pretenderia compor todo o campo humano com acontecimentos situados e datados no tempo serial e com decisões instantâneas, mas a história que bem sabe que o mito, o tempo legendário obcecam sempre, sob outras formas, os empreendimentos humanos que esquadrinham além e aquém dos acontecimentos parcelados, história que se chama, justamente, história estrutural. (p. 153) Em Panofsky, o microcosmo do trabalho do pintor está no centro da compreensão da vida social no processo histórico, numa transformação observada no interior do mundo pictórico, cujos problemas são sentidos silenciosamente pelos artistas, porque situa a questão no âmbito psicossocial, na referência à “visão de mundo”. Em Francastel, o grupo de pessoas que construiu um modo de representação pictórica do mundo no século XV o fez em virtude de uma necessidade interior, não baseadas em um plano preconcebido, mas ligadas a uma rede de trabalho e pesquisa de artistas menos conhecidos e de séculos anteriores, portanto, em um nível de significação psicológica que não é individual, senão social. Em ambos os casos, a infraestrutura dos atos sociais 37 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. remete a um arquétipo cuja forma é dinâmica, plástica e inconclusa. A pintura como traço histórico e mediação para compreensão psicossocial eleva-se na formulação de Merleau-Ponty, na afirmação do sentido imaterial da vida social, estruturado nas relações entre os sujeitos de modo intersubjetivo, tal como os artistas que, diante de um impasse, esquecem de suas próprias questões, encontrando de modo indireto suas soluções. A emergência da vida social desenvolve-se em um processo temporal cuja expressão deixa traços no espaço da pintura, solicitando o exercício de interpretação duplamente articulado entre a história e a psicologia. 38 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 3. Imagem da natureza, natureza da imagem Um passeio de Diderot No comentário ao Salão de 1767, Denis Diderot (1713-1784) discorre sobre a própria redação do texto, aberto com a menção do pintor Claude-Joseph Vernet (17141789), na partida de Diderot a um campo vizinho ao mar, reconhecido por sua beleza. Durante o passeio, estava acompanhado de um abade e seus dois alunos. Caminhava cabisbaixo quando foi arrebatado pelo lugar. Uma massa de rochedos separa a cena em duas profundidades. À direita, dois pescadores, ao fundo, sobre uma espécie de calçamento feito de rochas, uma carroça e seu condutor movem-se em direção a um vilarejo abaixo: “Meus olhos, deslizando sobre o cume desta língua de rochedos, encontraram o topo das casas da vila e foram penetrar e se perder em um campo limitado pelo céu” (Diderot, 1767/1995, p. 633; minha tradução). O acompanhante, então, indagou-lhe: qual de seus artistas teria imaginado romper a continuidade deste calçamento de rochedos por um tufo de árvores? A resposta: “Vernet pode ser”. “Mas Vernet teria dali imaginado a elegância e o charme? – continua o arguidor – Teria ele podido restituir o efeito quente e picante desta luminosidade que joga entre troncos e galhos?” Diderot: “Por que não?”. Observam então detidamente o fenômeno natural, tal como representado, especialmente pelos recortes na massa de rocha e a torrente de água. O escritor convida o colega: “Vá ao Salão, e você verá que uma imaginação fecunda, ajudada de um estudo profundo da natureza, inspirou a um de nossos artistas precisamente estes rochedos, esta cascata e este canto de paisagem”. Depois de uma série de provocações ao abade quanto à realidade daquele sítio espetacular –, as nuvens, os rochedos etc. –, afirma a capacidade singular de Vernet de estabelecer ao espectador um novo plano: “Vernet quer que os seus [céus] tenham o movimento e a magia daquele que nós vemos”. O acompanhante ensaia um último golpe: “... eu não deixaria jamais a natureza para correr atrás de sua imagem; por mais sublime que seja o homem, ele não é Deus”. Mas, pondera Diderot, conhecendo melhor 39 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. o trabalho do artista, pode-se ver na natureza aquilo que você ali não vê: “se Vernet vos ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet.” Para Oskar Bätschmann (2002, p. 14), a manifestação de Diderot ao Salão de 1767 desenvolve uma nova explanação acerca do prazer derivado da paisagem pictórica e propõe uma teoria da compensação: jardins e paisagens pictóricas existem para compensar nossa perda da natureza. Suas ideias sofreram a influência da crítica social de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), na qual a herança do calvinismo de Genebra colocava em questão tanto a ciência quanto a arte. Não obstante, a alienação da humanidade da natureza adquire uma postura distinta. As pinturas com imagens de paisagens e de animais, assim como os parques artificiais, seriam substitutos a compensar a perda da natureza. A elaboração textual de Diderot teria sido intercalada por longos passeios pelo campo, os quais, ao final, revelam-se inteiramente imaginários; seu gosto pela natureza derivava somente da paisagem pintada por Claude-Joseph Vernet. A formulação de Diderot suscita algumas indagações. Primeiro, a constatação acerca da perda da natureza, da alienação da humanidade europeia face à natureza, era questão no século XVIII, notadamente, pela concepção mecânica da natureza da Ciência Moderna. A relação com a natureza através da imagem da paisagem poderia aparecer, para Diderot, como uma forma de compensação. No processo histórico de constituição da imagem pictórica da paisagem, o lugar da natureza seria central, mas contraditório, pois no exercício da compensação da perda a própria natureza poderia ser suprimida pela sua imagem. A compreensão social desse processo recoloca em questão o conceito de mimesis e suas implicações no conhecimento da imagem da natureza em relação à natureza da imagem. Imagem da paisagem e representação da natureza A referência ao lugar aparece em muitas línguas ocidentais, conforme Roger (2000, p. 33): landscape, landschaft, paisaje, paesaggio, paysage, paisagem. Na forma de land ou pays, circunscreve-se uma região conhecida daquele que percebe – na raiz latina, pagus refere o povoado. A designação aparece na forma de landschap, em holandês, na segunda metade do século XV. Conforme Schama (1996, p. 20), a palavra landscape 40 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. entrou na língua inglesa junto com herring (arenque) e bleached linen (linho alvejado), no final do século XVI, procedente da Holanda. E landschap, como sua raiz germânica, Landschaft, significava tanto uma unidade de ocupação humana – uma jurisdição, na verdade – quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de uma pintura. Segundo esse autor, os italianos trataram de modo equivalente como parerga, “o ambiente idílico e pastoril de riachos e colinas cobertas de dourados trigais”. A tradição da imagem pictórica concernente ao mundo da paisagem foi bastante discutida na literatura e está circunscrita a um processo histórico delimitado ao Ocidente durante a Idade Clássica. Não obstante, em antigas tradições do Oriente, fundamentavase uma apreensão da paisagem conforme significação peculiar que considerava os elementos da paisagem em relação a formas vivas, de animais e de seres humanos. Baltrusaïtis (1955, p. 18) notara que o sistema topográfico Feng Chui vinculava elementos da natureza, como a água e o vento, a uma visão astrológica. Nesse sentido, cumes de montanhas poderiam referir a planetas – o pico agudo a Marte e o alto e arredondado a Vênus – e as formas de rochedos e plantas aparecem como organismos vivos: Trata-se de um pensamento metafísico mas que implica um estilo, uma concepção de artista. Ele fornece a chave destas paisagens alucinantes onde os rochedos se armam em um combate de bestas e de gigantes ou adormecem com suas cristas fumegantes, como criaturas pré-históricas. São exemplares as paisagem de Li Chan, do início do século XIII, nas quais formas humanas e animais surgem das dobras dos rochedos, também em citações de época a Jao Tseu-jan e Tchang Yen-yuan. No Ocidente medieval, a ideia da paisagem relaciona-se à invenção do Paraíso. Essa cena bíblica não aparecia na iconografia da Idade Média, na qual as personagens não eram representadas sobre um hortus deliciarum. A ênfase estava no tema da queda, onde árvore e seres cumprem um papel simbólico no interior da narrativa. Conforme notou Tereza Aline de Queiroz (2000, p. 59), isso não se devia a uma ausência de vocabulário plástico, sobretudo porque os mosaicos bizantinos dos séculos V e VI demonstram conhecimento de plantas, animais e paisagens naturais, de acordo com outros registros provenientes do Oriente Médio, e também localizado na escultura românica. Grande parte da iconografia dos séculos VIII e XII, ao versarem sobre o Paraíso, o fazem sobre um não-espaço, atópico. Conforme esta historiadora, no 41 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Julgamento Final de Fra Angelico (c. 1432-1435) nota-se uma imagem designada “paraíso-paisagem-jardim”, no sentido pleno da paisagem natural, em que a narrativa não focaliza o tema do pecado. Por outro lado, Queiroz (p. 62) não deixa de registrar que elementos naturais eram frequentes nas iluminuras góticas, seja em cenas de caça em florestas, seja na representação da Virgem metaforicamente como hortus conclusus. Kenneth Clark, em Paisagem na arte, procurou traçar uma linha divisória entre toda a iconografia ocidental e oriental da natureza, definindo o significado moderno do termo. “As primeiras paisagens (no sentido moderno) conhecidas são as dos frescos do Bom e do Mau Governo, de Lorenzetti (c. 1340). Elas seriam de tal modo realistas “que dificilmente as podemos incluir na paisagem simbólica e mantêm-se únicas durante quase um século. Simone Martini, por outro lado, foi o interprete nato da beleza celestial em termos sensoriais” (Clark, 1961, p. 24). Alain Roger (2000, p. 34) acrescentaria ainda, do próprio Lorenzetti (ou atribuído a Sasseta), as imagens Castelo na borda do lago e Vila sobre o mar (Pinacoteca de Siena). Esta demarcação reconhece as paisagens de pinturas antiquíssimas, tais como as de Catalhöyük (Turquia, c. 6000-8000 a. C.), mas em outra chave de significação daquilo que se tornou a paisagem no Ocidente, depois do século XIV. Neste momento, nota-se a famosa caminhada de Petrarca, o homem do ar livre, o primeiro a subir numa montanha “pelo próprio prazer da subida e para gozar o panorama do alto” (Clark, 1961, p. 26). Petrarca e Simone Martini encontraram-se em Avignon e mantiveram importantes relações intelectuais. Nessa cidade, Clark situa a primeira expressão pictórica do sentimento moderno da paisagem, os afrescos da Tour de la Garde-Robe, no Palácio dos Papas (c. 1343), a partir dos quais fundamentou sua abordagem em uma mudança da mentalidade que corresponderia a uma transformação da percepção do espaço, por volta de 1420. Duas condições foram necessárias para a invenção de uma moderna compreensão da paisagem, nas palavras de Roger (2000, p. 35): (1) “Laicização”, a exemplo de livros como Tacuina sanitatis (Tratado de saúde), traduzido do árabe, no século XIV, na Itália do Norte, que apresenta registros de plantas medicinais e retira os elementos da natureza do âmbito do sagrado; (2) “Unificação”, na qual os elementos naturais são organizados em torno de si próprios, de modo autônomo. Esta dupla operação Roger situa no Rico livro das horas, do duque de Berry, ilustrado por Limbourg (c. 1414-1416), mas, sobretudo, indica a veduta que abre o interior dos quadros para o exterior, como o elemento que transforma pays em paysage, processo pelo qual o espaço converte-se em 42 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. imagem. Esta designação aparece na forma de landschap, em holandês, na segunda metade do século XV: trata-se da paisagem como espaço delimitado pela janela pictórica. Para Isabelle de Lajarte (1995, p. 28), esse processo imagético orienta-se tanto por questões econômicas quanto sociais, indicando o Norte europeu como ambiente onde surge a paisagem, na contemplação burguesa da natureza e na reação ao jugo católico. A perspectiva introduziu, no século XVI, noções de profundidade, distância e horizonte, unificando os elementos da natureza, o equilíbrio das massas de sombra e luz. A partir de imagens precisas de Dürer, Patinir (1485-1524) e Van Eyck (1414-1417), a composição da paisagem torna-se campo importante de estudo entre os pintores europeus, tais como Giorgione (1471-1510), Ticiano (1490-1576) e Altdorfer (c. 14801538). Trata-se de composição que fornece o suporte ou o cenário para os temas principais, históricos, religiosos ou mitológicos em, por exemplo, Poussin (1594-1665), Fragonard (1732-1806) e Watteau (1684-1721). A natureza ali é ideal, muitas vezes acrescida de ruínas. Apesar de a paisagem heroica ou mitológica perdurar no âmbito das academias como a forma mais digna, até o final do século XVIII a designação de “paisagem campestre” aparece no vocabulário francês (paysage champêtre) vinculando a ideia de representação à fidelidade ao objeto natural. Não obstante, como notou posteriormente Warburg, os pintores observavam a natureza sob camadas de crenças e formas clássicas, daí Gombrich (1977, p. 19) defender Malraux ao afirmar que a arte não nasce na natureza, mas da arte, subentendendo o debate sobre a natureza na arte em relação à história das imagens da arte. A experiência da natureza A imagem da paisagem, em sua passagem de um espaço simbólico – em referência a outro mundo – para um espaço real – em referência ao mundo em comum – desenvolve-se por intermédio da experiência da natureza, processo cuja correspondência histórica localiza-se na formação da ciência moderna. As perspectivas em relação à natureza nos séculos XVII e XVIII eram muito diversas, como demonstra Robert Lenoble (1990, p. 281). Não obstante, o próprio autor esboça uma síntese das passagens situadas no conhecimento daquele período: 43 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Assistimos a um imenso movimento de pêndulo: no Renascimento, o homem tem consciência de sua alma e projeta-a na Natureza, a quem concede também uma alma. No século XVIII, em pleno dualismo, reivindica a alma para si mesmo e mecaniza a Natureza. Agora, deixase de novo penetrar pelas coisas, mas pelas coisas mecanizadas, e é a Natureza que vai projetar no homem o seu mecanismo e esvaziá-lo da sua alma. (p. 286) O mundo natural admirado no Setecentos é aquele domesticado, os campos cultivados. Conforme examinou Carlos Diegues (1994, p. 19), o valor de áreas não transformadas pelo homem desenvolve-se apenas no século XIX. As classes urbanas, não ligadas ao trabalho começam a encontrar no campo um lugar adequado ao seu lazer, ao passo que a praia e o mar lentamente constituem-se em ambientes de isolamento e contemplação da natureza. Somente então a noção de wilderness consolida-se, sobretudo nos Estados Unidos, para designar áreas não habitadas pela civilização ocidental (excluindo-se áreas indígenas) cuja criação do Parque Nacional de Yellonstone, em 1872, é o exemplo maior. Diegues considerava esse processo de transformação em referência ao mito do paraíso perdido, ao qual são associadas experiências de percepção e cognição, bem como categorias propriamente estéticas, tais como o “sublime” e a “beleza”. Em autores estadunidenses, Thoreau (1859) e Marsh (1864), a relação estética com a natureza é notável. Neste último, por exemplo, as justificativas de preservação das áreas virgens eram tanto econômicas quanto poéticas (p. 23). Além da estética, a experiência da natureza era também mediada pela mitologia. O mito do paraíso perdido entrelaçava-se com a formação da ideia de natureza desde as viagens de exploradores, no projeto enciclopédico e nas expedições científicas. Conforme foi indicado por Ana Maria Belluzzo (1996, p. 16), nos processos simbólicos o naturalismo do Seiscentos foi acompanhado de seu oposto, os conteúdos de convenções clássicas idealizadas. Passadas duas centenas de anos, “as idealizações paradisíacas, visões da floresta frequentada pelo homem ‘natural’, são novamente revividas por artistas românticos, em reedições dos mitos de origem. No curso de quatro séculos, a visão territorial e a paisagem impõem-se como representações privilegiadas”. Naqueles testemunhos imagéticos, continua a historiadora: A natureza não é mais entendida como fruto da ação providencial, nem transmite mensagens divinas aos homens. Não resulta tampouco da fatalidade dos astros, como entendiam concepções da física finalista dos filósofos antigos. Não havendo uma intenção na natureza a ser lida pelos homens, eles podem passar a aprender o mundo 44 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. sensível, que se apresenta como a imagem da realidade. O caminho do conhecimento que conduz à natureza é reduzido aos sentidos. (Belluzzo, 1996, p. 17) De modo esquemático, as imagens da natureza no início do século XIX europeu organizam três conjuntos de significados: 1) as representações científicas de uma natureza mecanizada; 2) um naturalismo enciclopédico em referência à potência da natureza; 3) uma concepção mística da natureza, notadamente nos autores românticos. Lenoble (1990, p. 298) designou esse naturalismo da Enciclopédia de “ateu”, enfatizando sobretudo a formação de Diderot: “Devoto da Natureza, não é na qualidade de sábio que se vira para ela, mas na qualidade de artista ávido de encontrar nela uma razão de viver e motivos de otimismo”. Não obstante, anticlerical, Diderot não aceita o panteísmo dos predecessores, opõe Natureza e Deus, “amante da Mãe Natureza, em luta obstinada contra o Pai do Céu”. Por outro lado, Diderot não acomoda a natureza nas leis rigorosas da ciência. O quinto passeio dos Devaneios do caminhante solitário, de Jean-Jacques Rousseau (1782/1995), datado entre a primavera e o verão de 1777, é um marco das narrativas sobre a experiência da natureza em sentido moderno. O amor à natureza é declarado com remissão à lembrança de sua estada na Ilha de La Motte, nas margens do lago Bienne, em Neuchâtel (Suíça), consideradas como “selvagens” e “românticas”. Conforme tradução brasileira, Rousseau utilizou o termo inglês romantic com o sentido de “romanesco” e “pitoresco”. A leitura dos Devaneios do caminhante solitário situa a experiência da natureza e da vida social em dois polos do sentimento do “eu” de Rousseau. Revendo a história bastante conhecida, essa disjunção atinge um limite. Em 1762, a publicação de Émile e do Contrat social disparam sua mais profunda crise no convívio urbano e promovem a retomada radical da experiência da natureza, real e imaginária. Tratava-se de uma questão moral, religiosa e política; a natureza é refúgio ao drama da vida social. No prefácio à edição brasileira, Fúlvia Moretto (1995) destrinchou os sentidos para a palavra rêverie, recuperando um debate significativo dos especialistas no autor, para os quais o sentido primitivo remete a um vagar, vagabundear predominantemente físico, em contrapartida ao sentido de meditação, vagar em pensamentos. O autor de Rêveries-Devaneios somente devaneia ao caminhar, ao passear, a ponto de introduzir no título de sua obra o caminhantepromeneur. [...] Se até o século XVIII ainda há alternância no emprego da palavra rêverie, é com Rousseau que ela atinge toda a sua ressonância moderna, romântica. (Moretto, 1995, p. 12) 45 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Por um lado, temos a meditação, o sonho, a reflexão, por outro, o peregrino, o viajante, o caminhante; deslocamentos mentais e corporais conjugados. O lugar do passeio é tanto o meio social quanto as trilhas naturais. A dinâmica natural ajuda a pensar: Tudo vive num fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva uma forma constante e definitiva e nossas afeições, que se apegam às coisas exteriores, passam e se transformam necessariamente como elas. Sempre à nossa frente ou atrás de nós, lembram o passado, que não mais existe ou antecipam o futuro que, muitas vezes, não deverá existir: nada há de sólido a que o coração se possa apegar. (Rousseau, 1780/1995, p. 76) O momento presente é contraposto ao passado: “eis-me portanto reduzido a meu feno como único alimento e à botânica como única ocupação”. Lembra-se do tempo em que herborizava na Suíça, com o doutor d’Ivernois, em viagens pelas montanhas, depois, sedentário em Paris, abandona seus estudos botânicos, aos quais retorna sexagenário, a catalogar tantas quantas forem as plantas que encontrasse. O pensar é caracterizado como ato penoso, enquanto a imaginação e o devaneio poderiam levar ao êxtase. A imagem da natureza é vivenciada em duas esferas, seja no contato direto com a vegetação, a terra e o ar, seja na atividade imaginativa (distinta do pensar), capaz de sustentar o frescor natural, em uma “recreação para os olhos”, tomada de beleza e encanto. Natureza da imagem Nas palavras de Rousseau, a experiência da natureza fora descrita em um sentido impossível de ser superado pela imagem da paisagem porque continha a imensidade dos elementos sensíveis.2 A imagem, sobretudo mental, aparece como um recurso importante na experiência do espetáculo natural. Rousseau estava empenhado em desenvolver uma capacidade imaginativa com a experiência da natureza, enquanto Diderot supunha possível o processo da imaginação a partir da própria pintura. 2 Nas palavras de Rousseau: “Quanto maior for a sensibilidade de sua alma, mais o contemplador se entregará aos êxtases que excita nele essa harmonia. Um devaneio doce e profundo apodera-se então de seus sentidos e ele se perde, com uma deliciosa embriaguez, na imensidade desse belo sistema com o qual sente-se identificado. Então todos os objetos individuais lhe escapam; nada vê, nada sente senão no todo. É preciso que alguma circunstância particular comprima suas ideias e circunscreva sua imaginação para que possa observar por partes esse universo que se esforçava por abarcar”. (Rousseau, 1780/1995, p. 93) 46 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A citação dos Devaneios busca reforçar o entrelaçamento entre a percepção da natureza e o processo da imaginação, no qual a imagem da natureza ocupa um lugar central. Até aqui, foram sistematizadas brevemente duas séries de dados: uma a culminar com a natureza representada na imagem pictórica, nomeando o gênero paisagem; outra descreve a experiência da natureza. Embora essas duas séries se entrecruzem, não poderiam ser consideradas um único processo sem as distinções que lhes cabem: a imagem da natureza não é o reflexo da experiência social da natureza. A natureza adquiriu um estatuto no final do século XVIII, em correspondência à transformação da experiência social e econômica; paralelamente, a imagem pictórica assumiu um papel nuclear, tornando-se ela mesma o objeto da contemplação, acima da natureza. Por um lado, o início da era moderna enaltece a natureza na arte, entre os românticos a própria arte eleva-se do movimento orgânico da natureza. Por outro lado, na experiência social urbana, a imagem ameaça ocupar o lugar da natureza. A preferência pela imitação frente ao imitado revela-se, por exemplo, na crítica de René Bray, no início do século XVIII: Embora as belezas naturais sejam preferíveis às belezas da arte, tal não é, contudo, o gosto deste século. Só agrada o que custa. Uma fonte que brote em largo jorro do sopé de um rochedo, fazendo rolar, sobre uma areia dourada, a água mais clara e fresca do mundo, não agradará tanto às gentes da corte quanto um jato de água fétida e lamacenta, extraída com grandes despesas de algum charco. (citado em Costa Lima, 1989, p. 42) Considere-se duas compreensões conjugadas sobre a natureza da imagem, uma nossa contemporânea, outra da época. As concepções atuais de imagem divergem deveras daquelas de séculos anteriores, sobretudo porque vivemos em uma sociedade na qual predominam imagens tecnológicas em um ritmo de difusão altamente acelerado. O filósofo da comunicação Norval Baitello Júnior (2005) descreve a imagem como a criação de uma segunda realidade em um jogo entre presença e ausência. Toda imagem tem uma dupla face, uma é visível aos olhos, outra é invisível, ambas movemse e transformam-se através da experiência histórica humana. Como assinalou W. T. J. Mitchell (1986), a imagem não perdeu seu poder na sociedade contemporânea, embora isto não esteja claramente entendido. A imagem pode referir uma variedade de coisas: estátuas, figuras, sonhos, mapas, poemas, ideias etc. É uma família na qual o significado muda e migra através do processo social, no tempo e no espaço. Pensando sobre essa família, Mitchell propõe não uma definição universal do termo, mas a consideração 47 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. acerca das passagens entre os diversos significados das imagens, referindo “àqueles lugares onde as imagens foram diferenciadas a si mesmas, umas das outras, baseadas em fronteiras entre diferentes discursos institucionais” (p. 9; minha tradução). Para a psicologia social, a imagem não é apenas uma coisa física, mas um movimento de mediações entre os objetos icônicos, as imagens corporais e as imagens mentais dos observadores. Os movimentos de transformação da imagem são compreendidos enquanto fenômeno imagético no processo social, na vida intersubjetiva, como um campo de significação estética, política, econômica e cultural. Nesse domínio, a psicologia social participa de diálogos com a sociologia, a história e a antropologia. Noutra perspectiva, examinar a compreensão da época, os significados sociais atribuídos às imagens no século XVIII, seria uma tarefa fora dos propósitos e das possibilidades deste texto. Não obstante, convém registrar as marcantes distinções na forma de perceber, em um tempo no qual as imagens eram, sobretudo, manuais, pintadas, desenhadas, gravadas, esculpidas, impressas. O estatuto da pintura como arte, na forma clássica, acabara de ser instituído e estava longe de ser questionado (como verse-ia com o impressionismo e com as vanguardas do século XX). A participação do espectador e o lugar do corpo no processo estético não eram questão. Autores do campo da visualidade e da história da percepção trataram do olhar nos século XVIII e XIX com vistas à relação mantida com imagens e com dispositivos que criavam novas formas de perceber. O corpo não era questão para uma visão de mundo em que o modelo do conhecimento era a câmera obscura. Conforme escreveu Crary (1988, p. 3), durante duzentos anos a câmera obscura servia de metáfora para se pensar o status do observador, tanto entre racionalistas quanto entre empiristas. Com Johann Wolfgang von Goethe (1810) as pesquisas de ótica baseadas na câmera obscura ingressam em uma fase de indagações, em relações entre interior e exterior, observador e representação, a partir das quais anuncia-se a negação da câmera obscura, seja como sistema da ótica, seja como princípio epistemológico, em referência ao mundo clássico. Goethe falava então de “cores fisiológicas” pertencentes ao corpo do observador, em sua revisão acerca do lugar do olho no processo perceptivo e cognitivo. De modo geral, a imagem da qual se fala neste artigo é a imagem pictórica. Durante a era Clássica, o pintor foi apartado da concepção medieval de ofício, paralelamente ao desenvolvimento do estatuto da pintura como obra de arte autônoma, afirmando-se como domínio de conhecimento específico, em torno do debate acerca da centralidade do desenho, da cor e da luz, na constituição da matéria e da forma. Esta 48 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. imagem reservou um lugar privilegiado ao desenho, como instrumento de experiência da “verdade exterior” dos seres, em uma operação do raciocínio e da análise, na qual a imagem submetia-se à representação da “forma” (Belluzzo, 1996, p. 18). Na abordagem de Maria Lúcia Kern (2006, p. 24), no século XVIII estava em curso um processo de auto-referência na pintura: a imagem pictórica deixou definitivamente de ser concebida como poesia muda e revelação do mundo, tal qual se apresentava no Renascimento. Os seus próprios meios de representação tornaram-se progressivamente o seu objeto, e a verdade da imagem começou a ser identificada nesses meios, isto é, nas invenções dos artistas e nas suas próprias linguagens. Após longo período de discussão, a literatura perdeu a função obrigatória de conceber subsídios ao artista para criar a imagem pictórica. No universo dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1996, p. 17) distinguiu as imagens seiscentistas pelo fundamento em analogias, comparações entre o que encontravam em seus percursos e aquilo que relatavam os textos, “semelhanças entre aparências contemporâneas e lições da Antiguidade. São procedimentos por aproximação, em cuja linguagem simbólica predomina o exercício substitutivo das metáforas”. Para a autora, o legado dos holandeses na América portuguesa evidencia a construção histórica do “observador”, quando se busca “apreender a estrutura visível dos seres, conhecendo-os um a um, em sua singularidade a partir da dimensão visível.” A pintura holandesa participa de um novo período da visualidade: “A nova noção de imagem diz respeito aos simulacros visíveis dos corpos, às emanações luminosas das coisas no espaço, ao vazio que torna possível a construção do volume dos corpos.” (Belluzzo, 1996, p. 17) Tal visão da natureza e da imagem se desenvolve entre os séculos XVII e XIX, os viajantes eram também artistas e as concepções de desenho e pintura colaboravam com o pensamento científico. Noutro estudo, Belluzzo (2008) enfatizou que a paisagem do século XIX não poderia ser reduzida à chave naturalista, pois continuava dependente de modelos de interpretação. No caso dos viajantes europeus no Brasil, têm como modelos predominantes a viagem à Itália e o sonho humanista em torno dos sinais das civilizações antigas. A historiadora refere-se a um “mapeamento arcádico”, modelando a paisagem local conforme as convenções pictóricas europeias. A viagem pitoresca associava a tradição paisagística à “mística da identidade nacional”. 49 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Natureza, imagem e mimesis A paisagem constituiu-se na pintura em torno de temas provenientes da natureza, cenas rurais, montanhas, planícies, florestas, cursos d’água, lagos, praias e portos. São elementos naturais em relação à experiência cultural, sobretudo na referência às paisagens “nacionais” dos pintores, a exemplo das marinas em Vernet e Lorrain (Lajarte, 1995, p. 34). As montanhas foram “descobertas” por pintores ingleses em viagens à Savoia, notadamente a Chamonix com William Marlowe (1740-1813) e Ruskin (1819-1900). Muito antes, a série de referência inicia-se com Petrarca (1336) a subir ao Monte Ventoux, Haller (1728) explorando os Alpes, Horace de Saussure (1788) escalando o Mont-Blanc. Depois de 1850, as montanhas cederam lugar aos campos e arredores de Paris. Trata-se de uma passagem entre a categoria de pitoresco e a de nacional, quando relevam as terras cultivadas e vilarejos com torres de sinos. Em contraposição, falava-se em paisagens urbanas e industriais, nas quais o belo não é a categoria da experiência estética (p. 37). Todo o interesse para os aspectos sensíveis da natureza, porém, conduziu a um “olhar desinteressado” baseado em uma nova concepção estética. O filósofo Arnold Berleant (1995) indicou alguns problemas no domínio das belas artes quando se instituiu uma teoria da estética baseada no “desinteresse” e na “autonomia da pintura”, a qual se tornou um modelo para a apreciação da natureza. Shaftesbury procurou examinar o belo na natureza de modo contemplativo e não ativo. Formavam-se instrumentos perceptivos e cognitivos os quais convertem o ambiente em um objeto contemplativo: a atitude diante de uma paisagem panorâmica ou de um jardim francês (p. 231). Trata-se de um abandono da natureza em favor da sua representação na forma da paisagem pictórica, como um objeto para o “olhar desinteressado”. A saída para essa questão foi a proposição de duas estéticas, uma para a natureza, outra para a arte. Não obstante, indagou Berleant, o problema se desdobra pois a concepção de desinteresse impossibilita ambas as experiências, sendo pois necessária uma concepção baseada no engajamento (p. 233). Está em questão o estatuto da imagem na representação da natureza, em relação à experiência social, em uma triangulação: a natureza, o observador, a imagem. Embora correspondentes, essas partes correlatas não poderiam ser compreendidas pela teoria do reflexo, pois cada uma delas participa diferentemente da totalidade do processo, ao menos do ponto de vista psicossocial. Minha proposição para distinguir essas partes, a 50 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. experiência da natureza, a imagem da natureza e a participação do observador, de modo conjugado, baseia-se no conceito de mimesis, tal como formulado por Luiz Costa Lima. Tanto em Diderot quanto em Rousseau, a mediação entre a percepção e a natureza percorre categorias estéticas formuladas no século XVIII. Diegues (1994, p. 23) mencionara a associação da percepção e cognição de áreas naturais a categorias propriamente estéticas, tais como o “sublime” e o “belo”, enquanto Gombrich (1977, p. 19) defendia que a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, tal como constatou Ribon (1991, p. 84). A esse respeito, Edmund Burke afirmou, em 1751: Quando o objeto da representação na poesia ou na pintura é tal que não poderíamos ter o desejo de ver na realidade, então posso estar certo que seu poder na poesia ou na pintura deve-se ao poder da imitação e não a alguma causa operante na própria coisa. (citado em Costa Lima, 1981, p. 266) As categorias formuladas para a experiência estética naquele período articula a percepção das imagens e da própria natureza. Maria Lúcia Kern (2006, p. 21) colocou claramente a questão: o campo artístico passou a elaborar seus códigos de representação de modo distinto do que seria o exercício da observação direta da natureza. Não obstante, nesse processo, asseverou a professora que o espaço plástico clássico, em perspectiva, instaura o sistema da representação e abandona a noção de mimesis. No livro de Luiz Costa Lima (1989), a tese sobre o veto à ficção e o controle do imaginário foi marcada pelo conceito de mimesis com vistas à literatura, não obstante, iluminam-se ali correspondências importantes com as artes visuais, tema que o próprio autor retomou mais recentemente (Costa Lima, 2004). Ao intentar uma transposição do campo literário para as artes visuais, as mediações devem ser explicitadas. Se a imagem da natureza tornara-se uma espécie de compensação para a perda da natureza, como assinalou Bätschmann (2002), tal como na literatura, a noção de mimesis opera na produção da imagem de modo a manter uma relação com o referido, mas, ao fazê-lo, estabelece um código social na imagem que a distingue da natureza, promovendo uma nova forma de perceber. Nessa medida, o conceito de mimesis deverá articular a produção da imagem à experiência social, superando a concepção clássica de imitação. Em Costa Lima (1989, p. 74), o veto ao ficcional se voltava ao controle do subjetivo, cuja legislação afetava o imaginário ao apoiar-se em condições sóciopolíticas específicas, na formulação da imitatio, fundada no exercício da razão e no princípio da semelhança. As narrativas de viagem do século XVII, reais ou inventadas, estabeleceram pontos de vista críticos à universalidade dos padrões clássicos, ao mesmo 51 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. tempo em que filósofos, como Locke (Essay on human understanding, 1690), questionavam os fundamentos da razão. Diderot apresenta sua condenação do modelo da imitatio e revela dois critérios concorrentes, em 1765: “o que explica a qualidade de uma obra por irradiação de uma virtude individual e o que a justifica por uma fidelidade à natureza” (Costa Lima, 1989, p. 78). Por um lado, sua crítica dirigia-se à educação do artista, muito dedicada à maneira no modelo acadêmico em vez da observação da natureza, por outro lado, ao gênio e sentimento delicado do artista. Acrescenta ainda a figura do espectador, não apenas capaz de observar, mas dotado de “gosto”. Seguindo a trilha de Costa Lima, chega-se ao ponto de interesse deste artigo: [...] a obra de gênio só é compreendida remetendo-se-a de imediato à natureza – reitera-se a mediação da natureza. Mas esta mediação só é visível a outro gênio. [...] a natureza já então se apresenta como terra desamparada de uma rede simbólica, que lhe assegurasse seu sentido.” (p. 81) Mais adiante, considera o autor: Dessacralizada, desencantada, a natureza agora assume outro relevo: torna-se o outro polo na relação com a mente ou subjetividade humana. Mas, no campo da teoria da arte, este relacionamento dará oportunidade a uma tensão. Se o realce é da mente, a teoria e a arte correspondente ou enfatizam a expressão do sujeito empírico que cria (teoria e prática do romantismo usual) ou ressaltam o sujeito poético como um processo de aprimoramento sem fim (teoria da arte autônoma de Schlegel). (Lima, 1989, p. 111) O raciocínio de Costa Lima conduz a uma revisão da problemática aqui rapidamente esboçada. Ao tratar de Coleridge e Schlegel, lembra o leitor que a “exaltação da subjetividade” e a relação com a natureza não são apenas atos compensatórios resultantes da frustração política e do advento do mercado. Estava em gestação uma nova teoria da arte em uma forma moderna (p. 97). Ao revisar o ensaio de Coleridge, “On poesy or art” (c. 1818), Luiz Costa Lima encontra a recepção de filósofos alemães, dentre os quais Schlegel, e uma operação de pensamento na qual a mimesis é reelaborada. Da relação entre mente e natureza, a arte surge “como a mediadora por excelência entre a natureza e o homem”, citando as palavras do próprio poeta: “a união e a reconciliação daquilo que é natureza com o que é exclusivamente humano”. A condensação da natureza na arte continua a ser chamada imitação, embora o poeta-pensador tenha o cuidado de distingui-la da cópia. Uma e outra se distinguem mesmo porque a arte medeia mente e 52 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. natureza, dando primazia ao labor da primeira... (Costa Lima, 1989, p. 108, grifo no original) Nas palavras de Coleridge: E a mente do homem é o próprio foco de todos os raios do intelecto que são disseminados por todas as imagens da natureza. [...] Tornar o externo interno e o interno externo, converter a natureza em pensamento e o pensamento em natureza, eis o mistério do gênio nas belas artes. (citado em Costa Lima, 1989, p. 108) Costa Lima (1989) propõe a retomada da mimesis, a despeito do fim de sua forma organizada pela imitatio, no seguinte sentido: a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável, porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença. (p. 68) Não é necessário resumir ainda mais a intrincada proposição de Costa Lima, pois o objetivo foi atingido. Diderot ponderava que ao conhecer melhor o trabalho do artista, poder-se-ia ver na natureza aquilo que ali não se vê cotidianamente: “se Vernet vos ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet”. Nas palavras de Rousseau, a experiência da natureza fora descrita em um sentido impossível de ser superado pela imagem da paisagem porque continha a imensidade dos elementos sensíveis, apreensíveis pelo jogo entre os instrumentos sensórios e a capacidade imaginativa na experiência da natureza. A imagem tornara-se necessária na forma de perceber a natureza, mas não de modo a substituir a própria natureza; porque a imagem não é idêntica à natureza, ela é a forma da diferença, como nos ensinou Costa Lima, operando como mediação na vida social. A imagem passa a indicar lugares, reais ou fantásticos, e a fornecer categorias ordenadoras de formas de perceber. O belo, o sublime e o pitoresco são formulações destinadas à dupla função social, orientar a percepção da natureza ao mesmo tempo em que regula a natureza da imagem. 53 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 4. Metamorfoses do olhar O espaço, o outro, o eu Pesquisas em ciências humanas direcionadas à experiência da viagem, seja compreendida pelo mundo dos viajantes, seja de modo restrito ao turismo, têm indicado três principais relações constituintes: com o espaço, com o outro, com o eu (ou em relação a si).3 Este texto retoma essas relações na compreensão das dimensões geral e particular do deslocamento espacial, especificamente frente ao fenômeno da percepção, procurando inscrever nessas três relações um quarto elemento: o tempo. O historiador Marc Boyer, em referência à filosofia de Merleau-Ponty, afirma que “a história não possui um sentido como o rio, mas sentido”, cujo fio de Ariadne dos pequenos fatos turísticos lhe coube organizar no sentido do movimento dialético das viagens – invenção de distinção de lugares e práticas, seguida da consagração por grupos socioculturais dominantes, e depois a difusão (Boyer, 2002, p. 393). Na mesma medida, a compreensão merleau-pontyana do fenômeno apresenta aquilo que é particular da constituição do tempo histórico, reivindicando a situação corporal frente ao mundo, cuja unidade supera toda a fragmentação da vida pessoal e histórica. A síntese de horizontes é essencialmente temporal, quer dizer, ela não está sujeita ao tempo, não se submete a ele, não precisa ultrapassá-lo, mas confunde-se com o próprio movimento pelo qual o tempo passa. Por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou presente à minha circunvizinhança, coexisto com todas as outras paisagens que se estendem para além dela, e todas essas perspectivas formam em conjunto uma única vaga temporal, um instante do mundo; por meu campo perceptivo com seus horizontes temporais, 3 Refiro-me especificamente a: ADLER, Judith. Origins of sightseeing. Annals of Tourism Research, v. 16, 1989, pp. 7-29. AMIROU, Rachid. Imaginaire touristique et sociabilité du voyage. Paris: Presses Universitaires de France, 1995. RAUCH, André. Le tourisme ou la construction de l’étrangeté. Ethnologie Française, Paris, PUF, tomo XXXII, juil.-sept., 2002-3, pp. 389-392. BOYER, Marc. Comment étudier le tourisme. Ethnologie Française, Paris, PUF, tomo XXXII, juil.-sept., 2002-3, pp. 393-404. 54 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. estou presente ao meu presente, a todo o passado que o precedeu e a um futuro. (Merleau-Ponty, 1999, p. 443) Com base nos historiadores da percepção, pode-se notar a dinâmica entre o geral e o particular no processo histórico. Por exemplo, quando Jonathan Crary apresenta as “técnicas do observador” oriundas do século XIX, só se pode entendê-las como técnicas incorporadas, como dispositivos produzidos socialmente, os quais se tornam constitutivos da percepção porque organizam de modo particular as experiências corporais (Crary, 1988). Frente ao problema da experiência da viagem, o processo de significação do espaço, do outro e do eu, depende da compreensão do corpo em situação histórica. A partir de uma síntese das condições históricas da percepção no século XVIII, pretende-se considerar em que medida a elevação de um órgão – o olho – na hierarquia dos sentidos suscitou nova apreensão do mundo na experiência das viagens. Em seguida, objetiva-se examinar como a viagem de Johann Wolfgang von Goethe (17491832) à Itália, registrada em apontamentos, desenhos e cartas representa a emergência de uma compreensão do mundo fundamentada tanto pela elevação da visão quanto pela viagem em terras estrangeiras, num processo de significação do espaço, do outro e de si. Por fim, caberá notar como a arte converteu-se em mediação da experiência da viagem e do processo do conhecimento.4 O olho e as viagens no século XVIII Existem tantos estilos de viajar quantas forem as épocas da vida humana. Esta consideração pode resumir a apreensão da experiência da viagem por Judith Adler que apontou as distinções nos estilos de viajar, em relação a normas, rituais, durações, itinerários, instrumentos e discursos próprios de cada período. Assim, nas dimensões do espaço e do tempo, o corpo do viajante desenvolve sua performance; a partir do ato de deslocar-se sobre o território formula-se uma “arte de viajar”. O estilo de viajar produzido no século XVIII, em sentido geográfico e histórico europeu, propunha o 4 Goethe esteve na Itália entre 1786 e 1788: a primeira parte de sua Viagem foi publicada em 1816, reunindo o Diário de viagem escrito a Charlotte von Stein; a segunda parte, em 1817, constando de cartas enviadas de Roma, o Diário napolitano, cartas e diários diversos de Nápoles e Sicília; a terceira parte, publicada apenas em 1829, foi dedicada à segunda estada em Roma, entre junho de 1787 e abril de 1788. O presente artigo considerou suficiente para seus objetivos o estudo da edição brasileira, Viagem à Itália (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), composta das partes 1ª e 2ª, cuja tradução é de Sérgio Tellaroli. 55 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. exercício individual de cultivar a visão, no intuito de o viajante se apropriar do mundo e de si próprio por meio do deslocamento territorial (Adler, 1989, p. 8). Existem “estilos” de viajar, os quais se modificam em relação à sociedade e ao tempo em que se constituem. Sem perder essa dimensão sócio-histórica do deslocamento, a noção de estilo remete àquilo que há de particular no ser, trata-se de uma maneira de estar em situação (Merleau-Ponty, 1999, p. 439). Em referência a Merleau-Ponty, o estilo de outrem é percebido pelo observador num processo inconstante: não obstante sua transformação, o estilo mantém sua unidade mediante o observador. Historiadores têm qualificado aquele século como a superação de uma cultura outrora primordialmente oral e tátil para outra em que a visão começa a tornar-se o instrumento sensório dominante, como resultado da difusão da tipografia e do desenvolvimento do moderno espírito científico. Nas palavras de Donald Lowe, ao contrário do cosmos centrípeto da Renascença, este espírito científico concebeu um espaço empírico de extensão infinita, de identidades e diferenças, e um tempo representado como uma dimensão idêntica ao espaço (Lowe, 1986, p. 24 e 28). Porém, o tempo deixa de ser comparável ao espaço na virada para o século XIX. Este campo da percepção burguesa estabeleceu regras de desenvolvimento no tempo, fazendo com que a lógica de identidade e diferença fosse suplantada por outra de analogia e sucessão. Nesse processo identifica-se a supremacia da visão, notável na revolução fotográfica e em uma “visualidade estendida” (p. 33). Nos discursos do século XVIII, o olho torna-se soberano em relação aos outros sentidos em vários campos do saber. Notadamente, contrapunha-se o “conhecimento auricular” ao “conhecimento ocular”, a exemplo de seu uso como evidência jurídica na oposição entre “testemunha ocular” e “boato” (eyewitness e hearsay), respectivamente, com remissão à crença nas informações auferidas pelo olho e à descrença daquelas provenientes do ouvido (Adler, 1989, p. 11). Essa transformação na percepção tem suas correspondências no mundo das viagens: ao viajante não bastava mais conversar, seria mister olhar. Em um livro denominado A method for travel: shewed by taking the view of France as it stoode in the yeare of our Lord 1598, Robert Dallington (1605) anunciava que o viajante não deveria levar mais consigo textos editados, mas escrever o seu próprio a partir da observação. Esta regra foi seguida apenas parcialmente, porque muitos deles não abandonaram as referências literárias tão marcantes no imaginário 56 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. europeu. Outros autores recolhidos por Adler reforçam a tese sobre a proeminência dos olhos desde o século XVII. Porém, a estética cumpria um papel relativamente pequeno nas práticas de sightseeing, momento em que as descrições eram, sobretudo, topográficas e “poli-históricas”, senão arquitetônicas, com pouca referência a pinturas, esculturas e paisagens. Com o alvorecer do século XVIII, a descrição visual das localidades começou a utilizar categorias pertinentes à pintura, também acrescentando referências a monumentos e antiguidades à fauna e flora locais. Projetava-se uma “cultura dos virtuosos”, no interior da qual príncipes, cortesãos, tutores da aristocracia, acadêmicos e físicos dispunham-se a viajar rumo à observação direta. Ainda segundo Adler (1989, p. 15), a palavra “curiosidade” perde o significado medieval de vício para tornar-se uma paixão virtuosa do conhecimento secular, com especial atenção aos detalhes. Até então, os livros sobre viagens cumpriam importante papel na orientação dos membros da aristocracia, de tal modo que o discurso era mais importante que a vista in situ na experiência da percepção. Assim, a palavra, o ouvido e a língua, estavam no centro de muitos tratados, deixando em segundo plano a imagem e os olhos. No Italian voyage, de Richard Lassells (1697), Adler (1989, p. 9) encontrou a metáfora do mundo como um livro aberto à leitura do viajante, mas a partir de um método particular, a conversação com os habitantes do lugar visitado na língua nativa. Com as transformações referentes à hierarquia dos sentidos, acima mencionada, também a relação dos viajantes com os livros assumiu outra significação. Do ponto de vista das cidades, como lembrou Peter Burke, desenvolveu-se entre os séculos XVII e XVIII uma série de serviços de informação, dentre os quais estava a publicação de guias para os visitantes, além do próprio estabelecimento de cicerones profissionais (Burke, 2003, p. 69). Maravilhas da cidade de Roma circulava desde a Idade Média, mas, em suas seguidas reedições, incluiu informações úteis aos novos viajantes, a exemplo de dados sobre antiguidades, pintores etc. Entre outros impressos do gênero citados por Burke estava um guia de Veneza, por Francesco Sansovino (1558), e o Guia para estrangeiros, sobre a mesma cidade, escrito por Vincenzo Coronelli (1650-1718). Naqueles séculos, muitas edições contemplaram as cidades de Paris, Amsterdã e Nápoles, entre outras. A elevação da visão instigava os viajantes a não se deterem nas informações divulgadas pelos guias, mas a elaborarem suas próprias anotações e, sempre que possível, publicá-las no retorno ao lar. Esse campo aberto para à prática de viagens no 57 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Setecentos foi designado de Grand Tour, Grand Voyage ou Grosse Reise. Para Boyer (2002, p. 393), essa forma de viajar correspondia mais a um instrumento de distinção, localizado na origem de uma “revolução turística” que a uma atividade pedagógica. Na síntese de Valéria Salgueiro, não se tratava de atos de viajantes isolados, mas de um fenômeno social, um novo tipo de viajante – o grand tourist –, distinto do expedicionário, do missionário, do peregrino, do diplomata ou mesmo do cientista natural, a surgir a partir das transformações econômicas e culturais europeias: filhos da aristocracia, admiradores de ruínas, monumentos e paisagens (Salgueiro, 2002). Como destino privilegiado na Idade Clássica, a Itália foi contemplada em muitos registros e impressões de viajantes. Além do citado Lassells, Thobias Smollet, Richard Payne Knight e Joseph Addison publicaram escritos sobre suas viagens às terras italianas. As cidades mais visitadas eram Veneza, Florença, Roma e Nápoles. Método de viajar com arte Goethe partiu rumo à Itália poucos dias após as comemorações de seu aniversário, ocorrido no dia 29 agosto. Era madrugada de 3 de setembro de 1786 quando o escritor deixou Karlsbad, sem avisar qualquer um de seus amigos. Ele já obtivera fama, sobretudo pelo sucesso de Os sofrimentos do jovem Werther (1774), e ao longo da viagem comenta sua busca pelo anonimato, mas também demonstra seu orgulho de ser conhecido. O viajante atravessou as montanhas tirolesas, passando rapidamente por Munique, Mittenwald e Brenner, depois percorreu as vilas de Trento e Torbole até Verona, onde vislumbrou os primeiros monumentos de vulto da Antiguidade. Dali, partiu para Veneza, com paradas em Vicenza e Pádua. Avistou Veneza em 28 de setembro e lá permaneceu até meados de outubro; entregou-se às ruelas, à arquitetura e à pintura – obras de Palladio, Ticiano e Veronese. Seguiu em direção a Roma, com paradas em Ferrara, Bolonha, Perugia e Florença. Chamavam-lhe a atenção as paisagens da Toscana e o templo de Minerva em Assis. Em 1º de novembro estava em Roma: “a capital do mundo” (Goethe, 1999, p. 148). Permanece até 22 de fevereiro de 1787. A riqueza da experiência de Goethe nesta cidade foi sintetizada pelo próprio escritor ao considerar: “o dia em que cheguei a Roma como a data do meu segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento” (p. 148). 58 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Rumo ao sul, encontra Nápoles e o Vesúvio em 25 de fevereiro. Observa esse lugar como ideal para se viver, diferentemente de Roma, próprio para estudar. Um mês depois visita a Sicília, com suas vilas. “Se existe algo que tenha sido decisivo para mim, essa viagem o foi”, asseverou Goethe em Palermo, no dia 2 de abril de 1787. De Nápoles, reorganiza seus projetos e despede-se em 3 de julho, de volta a Roma, onde usufrui de sua segunda estada entre junho de 1787 e abril de 1788. Nesse itinerário, seria importante assinalar a relação intelectual mantida entre Goethe e Johann Gottfried Herder (1744-1803), com quem trocou cartas ao longo da viagem, em textos que atingem altos momentos de reflexão filosófica. Ambos haviam estado juntos em Estrasburgo, por volta de 1770. Goethe relembra da zombaria de Herder dizendo que ele aprendera latim lendo Spinoza (Goethe, 1999, p. 116). Como presença física, estava o amigo Carl Philipp Moritz (1756-1793), a quem se refere em diversas passagens da narrativa. Conforme Marco Aurélio Werle, entre teóricos e artistas com quem conviveu durante a viagem, foi com Moritz que teve a relação humana mais profunda, seja nos passeios, seja nos cuidados devotados de Goethe quando o colega quebrou o braço (Goethe, 1999, p. 183; Werle, 2005). Goethe utilizava o guia de Volkmann (Historisch-britische nachrichten von Italien, 3 v., 1770-1771), porém, na formação do jovem Goethe para o mundo das viagens encontra-se a leitura de autores importantes à época, entre os quais Joachin Winckelmann (1717-1768), com sua História da arte na Antiguidade, de 1764. Como aponta a historiografia, essa publicação representou a primeira ocorrência em um título de livro da expressão “história da arte”. A respeito desse autor, Goethe escreveu: “Foi Winckelmann o primeiro que urgiu em nós a necessidade de distinguir várias épocas e traçar a história dos estilos em seu gradual crescimento e decadência”.5 Durante a viagem, remete-se com emoção às cartas que Winckelmann escreveu da Itália (Goethe, 1999, p. 176). A iconografia de muitos pintores alimentava-lhe o olhar. A atenção de Goethe era atraída para Claude Lorrain (1600-1682), que esteve em Roma por volta de 1613, lembrado pelo viajante diante de uma vista dessa cidade levemente enevoada, ou Jakob Ruysdael (1628-1682), paisagista flamengo, reconhecido por Goethe como pensador e poeta, numa evocação a seu “sentido interior” (p. 197 e 206). Procurando 5 Goethe adquiriu uma nova edição dessa obra, publicada em 1786 e traduzida para o italiano por Carlo Fea. Ver The Oxford Dictionary of Art. 2 ed. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 605. 59 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. especificamente circunscrever aquela iconografia em relevância às terras italianas, notese Canaletto e Piranesi. Giovanni Canaletto (1697-1768), pintor que exercitou algumas vezes o método da pintura sobre o motivo, num período em que dominava a produção em ateliê sobre desenhos de observação, de modo geral esboçou grandes vistas ricas em detalhes urbanísticos e humanos. Giovanni Piranesi (1720-1778) era arquiteto e arqueólogo, responsável por famosas gravuras que representavam a cidade de Roma antiga e moderna, publicadas com o título Vedutte di Roma (c. 1745). Há alguns desenhos de Goethe esboçados a partir dos Alpes, na fronteira da Itália com a Suíça. A cadeia de montanhas, com picos nevados, avança rumo a um horizonte repleto de nuvens. Contam-se duas visitas à fronteira pelo escritor, antes de cruzá-la de uma vez por todas, mas sua aproximação da Itália é anterior e, poder-se-ia dizer, constitutiva de sua formação. Desde a infância, duas fontes fundamentais concorreram para formar sua sensibilidade: as narrativas das viagens de seu pai e os desenhos pendurados na parede de sua casa. Seu pai esteve na Itália em 1740, presenteando o pequeno Johann com uma gôndola de brinquedo, cuja lembrança voltaria com intensidade na visita a Veneza (p. 76). Logo no início da viagem, o escritor repensa o hábito de colecionar, sobretudo porque os pedaços de minério estavam se tornando por demais pesados e havia um longo caminho pela frente. Goethe lembra-se do amigo Karl Knebel, que viajara ao Tirol em 1785, e lhe presenteara com alguns fragmentos de rochas. Durante a travessia dessa região pôde comparar as pedras que via com aquelas guardadas em seu gabinete. Mesmo assim, coletou muitos objetos ao longo da viagem, a exemplo de plantas, pedras, conchas da praia de Lido, uma série de réplicas em gesso, adquiridas no profuso mercado romano, e reproduções a carvão, aquarela e sépia. Levava consigo uma edição de Lineu, para a classificação das plantas. No dia 14 de setembro, em Torbole, às margens do lago Garda, Goethe dirigiu-se para ao castelo de Malcesine, cujas portas estavam abertas para todos. Sentou-se num lugar confortável e começou a desenhar a velha torre. Interpelado por passantes acerca da estranheza de interessar-se por ruínas, soube que isso não era permitido e teve o seu esboço rasgado por um deles. Na verdade, tomaram-no por um espião a examinar a fronteira entre a República de Veneza e o Império Austríaco. Ao final, convenceu-os de sua idoneidade e da importância que as ruínas medievais abrigavam, tanto quanto as da Antiguidade, pondo-se novamente a desenhar sob o olhar atento dos moradores. 60 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A magnífica paisagem do lago Garda também o atraiu. Em seu quarto, empurrou a mesa para próximo da porta e desenhou “em poucas linhas” as águas, as colinas e as montanhas. Esse ato, aparentemente simples de abrir-se para o exterior, significava, em escala microcósmica, um longo processo de transformação nos procedimentos artísticos direcionados para a representação do mundo percebido. Diante do templo de Minerva, em Assis, considerava ser importante desenhar não somente o templo, “mas também sua feliz localização” (p. 138). Ao longo da jornada, descreve as pessoas dos lugares, nas cores dos cabelos e expressões faciais, mas também no sentido da vida de gente humilde, do trabalho e das crianças. Entrega-se às paisagens, observa a natureza em suas diversas manifestações. Dentre todos os objetos de sua percepção, as obras de arte representaram uma parte importante. Sobretudo as edificações clássicas, tais como o anfiteatro de Verona, primeiro monumento da Antiguidade que vê, no dia 16 de setembro de 1786. Decisiva foi a aquisição de uma edição fac-similar de Andrea Palladio (1508-80), no dia 27 de setembro, quando estava em Pádua: Quanto mais eu leio suas obras, mais claro vai se tornando para mim como ele pensava e trabalhava e, ao fazê-lo, observo de que maneira Palladio lidava com a Antiguidade; suas palavras são poucas, mas todas de grande importância. O quarto livro, o que apresenta os templos antigos, é uma verdadeira introdução a como contemplar com inteligência as ruínas da Antiguidade. (p. 97). Desse arquiteto italiano, Goethe pôde visitar a Rotonda e o Teatro Olímpico, em Vicenza, cuja visão seria necessário realizar pessoalmente, pois “elas nos encham os olhos”, e também visitou a igreja Il Redentore, em Veneza, entre outras. Nas palavras do escritor, Palladio “abriu-me também o caminho para toda arte e toda a vida”. “Digo, pois, de Palladio que, em sua interioridade, ele foi um grande homem, e que o foi do interior para o exterior” (p. 62 e 104). As imagens dentro de igrejas ou de palácios, as esculturas tumulares, réplicas de peças da Antiguidade, decorações de teatros, óperas, canto de barqueiros de Veneza, todo o universo sensível de diversas manifestações artísticas era objeto precioso para a percepção de Goethe; seus desenhos dão prova disso. Dentre as pinturas, deteve-se em Paolo Veronese e Ticiano – “possuíam a claridade em mais alto grau” –, Mantegna – “um dos mestres antigos que mais me espantaram” –, Rafael, Tintoreto, Carracci, Guido Reni e Domenichino, entre outros (p. 73 e 103). 61 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Metamorfoses do olhar Toda literatura e referências iconográficas tornaram-se o pano de fundo para uma atitude de Goethe na experiência da viagem. Essa atitude representava a emergência de uma nova sensibilidade entre artistas e escritores na relação com o mundo percebido, mas também a origem de uma contribuição peculiar desse pensador para o conhecimento. No escritor alemão, o método de observação consistiria de um modelo cognitivo crítico à dicotomia sujeito-objeto e à fragmentação do conhecimento científico emergentes na virada para o século XIX. As consequências do ato de viajar na vida intelectual e sensível de Goethe são inúmeras. Ele próprio escreveu em seu projeto de uma morfologia que “reuniu fósseis mais antigos e mais recentes e, durante minhas viagens, olhei atentamente aquelas criaturas cuja formação poderia ser-me instrutiva em sua totalidade e seus aspectos particulares” (Goethe, 2007, p. 17). Em apontamentos à Metamorfose das plantas: Se eu saboreei os mais belos momentos de minha vida na mesma época em que investigava a metamorfose das plantas, quando se tornou clara para mim a sucessão das suas fases; se esta representação enriqueceu espiritualmente a minha estada em Nápoles e na Sicília, se cada vez mais aderia a este modo de considerar o reino das plantas e me exercitava incansavelmente por montes e vales, a verdade é que estes esforços para mim tão deleitosos adquiriram um valor incalculável por me terem proporcionado a relação mais preciosa que a fortuna reservou já em idade avançada. Devo estes fenômenos atrativos o ter-me ligado intimamente com Schiller, foram eles que dissiparam os mal-entendidos que durante muito tempo me tinham mantido afastado dele. (p. 100) Diversos autores apontaram o processo de gestação de um método de conhecimento desenvolvido por Goethe ao longo da viagem à Itália, fomentado pelo ato de viajar e pela posição do olhar frente às paisagens, às obras de arte, aos elementos da natureza e às pessoas dos lugares.6 Originalmente esse processo fora indicado por Rudolf Steiner, quando da organização e edição dos escritos científicos de Goethe, entre 1884 e 1897, para a Bibliografia nacional alemã (de Joseph Kürschner). Esse autor considerou que durante a viagem Goethe concebeu a compreensão da “forma 6 Para citar alguns: MOLDER, Maria Filomena. Introdução. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. A metamorfose das plantas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda: Lisboa, 1993, pp. 9-31; STEINER, Rudolf. Nature’s open secret: introductions to Goethe’s scientific writings. trad. John Barnes e Mado Spiegler. Anthroposophic Press: Great Barriongton, 2000; KESTLER, Izabela Maria Furtado. Johann Wolfgang von Goethe: arte e natureza, poesia e ciência. Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, Out 2006, vol.13, p.39-54; MOURA, Magali dos Santos. A poiesis orgânica de Goethe: a construção de um diálogo entre arte e ciência. Tese de Doutorado, FFLCH-USP: São Paulo, 2006. 62 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. arquetípica”, com a qual a natureza joga, e a solicitação para a observação de uma mesma espécie de planta em diferentes condições e influências, por meio da qual fosse possível a visualização do elemento constante e do mutável no ser (Steiner, 2000, p. 13). O fenômeno arquetípico (Urphänomen) remete ao conhecimento de padrões ou processos essenciais de algo compreendido como primordial, básico, constituinte do próprio ser do objeto (Seamon, 1998, p. 4). Nos Alpes, Goethe notou plantas que não conhecia e outras que se apresentavam de modo diferente. No jardim botânico da Universidade de Pádua, em 27 de setembro, perambulando entre a vegetação “estranha”, pensava na “planta arquetípica”: Muitas plantas podem permanecer ali inclusive no inverno, contanto que dispostas junto dos muros ou não muito longe deles. No final de outubro, o todo é, então, coberto e aquecido ao longo de uns poucos meses. É alegre e instrutivo passear por entre uma vegetação que nos é estranha. Em meio às plantas habituais ou a objetos que conhecemos de longa data, não pensamos coisa alguma, e de que vale a contemplação sem reflexão? Aqui, diante dessa multiplicidade que me é nova, torna-se cada vez mais viva a ideia de que talvez seja possível fazer remontar todos os tipos de plantas a uma única. Somente assim seria possível determinar verdadeiramente os gêneros e as espécies, o que, no meu entender, até hoje se faz de maneira bastante arbitrária. Foi nesse ponto que emperrei em minha filosofia botânica, e ainda não vejo como desenredar-me. A questão me parece tão profunda quanto ampla. (Goethe, 1999, p. 71) Essa reflexão iniciara-se antes da viagem, nos jardins e florestas de Weimar, assim como o desenvolvimento de uma “cosmovisão”. Logo nos primeiros instantes do roteiro, adquiria “muitos conhecimentos para uma teoria da criação do mundo, mas nada muito novo ou inesperado. Tenho também sonhado bastante com o modelo de que venho falando há tanto tempo...” (p. 20). Esse pensamento desenrola-se no mesmo momento em que observa o clima, as nuvens, a atmosfera, as montanhas e seu pulsar. A ideia na qual a natureza essencial da planta não residia na aparência exterior, mas em um nível mais profundo, se tornou compreensível durante a viagem, quando formula uma morfologia cujos escritos definitivos apareceram em 1789-90 (Steiner, 2000, p. 14). No mesmo período, despontaram também registros da forma animal, em crânios de ovelhas, examinados no Norte da Itália, e da forma humana, notável tanto na observação de estátuas quanto de modelos para a medicina. Filomena Molder notou que nessa época os interesses estéticos, poéticos e científicos de Goethe unificam-se no estudo da sociedade humana, “forma que não é nem natureza nem arte, expressão da necessidade e do acaso”. Os escritos O carnaval 63 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. romano – descrição da festividade de 1787 – e Imitação simples da natureza, maneira e estilo (1789) são frutos dessas reflexões (Molder, p. 1993, p. 16). Em Goethe, Alfredo Bosi localizou uma proposta de epistemologia tanto das ciências biológicas quanto das ciências humanas: “estava exigindo um olhar que não se confundisse com a percepção físico-matemática de Descartes, Galileu e Newton” (Bosi, 1988, p. 77). O olhar era-lhe o instrumento para a investigação do mundo “novo conhecido”, como notou Eloá Heise (2008). Ao longo da viagem, o tema da metamorfose tomou corpo sob a imagem sensível de uma planta suprassensível. No início da jornada, Goethe buscava encontrar uma “planta arquetípica” (Urpflanze) na realidade sensível das espécies botânicas da Itália, todavia, durante o percurso considera que tal planta somente poderia se apresentar na forma suprassensível, um modelo dado à consciência. Em correspondência, do dia 25 de março de 1787, de Nápoles, pede que avisem Herder acerca de sua proximidade da solução daquele difícil problema botânico (Goethe, 1999, p. 264). Na estada em Palermo, escrevendo em 17 de abril, depois de percorrer o jardim público, formula aquilo que se tornaria uma de suas ideias fundamentais. Deparou-se com plantas viçosas vivendo ao ar livre, em formas novas, as quais observara antes somente por trás de vidraças; a questão da planta primordial lhe interpela: “Afinal, tem de haver uma tal planta! Do contrário, como poderia eu reconhecer que esta ou aquela forma constitui uma planta, se não obedecem todas a um mesmo modelo?” Esforcei-me, então, por examinar em que as muitas formações discordantes se distinguiriam uma das outras. E sempre as encontrei antes semelhantes do que diversas; querendo, pois, aplicar minha terminologia botânica, pude fazê-lo bem, mas sem colher com isso nenhum fruto: fazê-lo inquietava-me, sem, contudo, levar-me adiante. Meu bom propósito poético fora perturbado, o jardim de Alcínoo desaparecera e um jardim universal abrira-se em seu lugar. Por que somos nós, os modernos, tão dispersos? Por que somos tentados a desafios que não podemos enfrentar ou vencer? (p. 314) Um mês depois, em Nápoles, sentia-se próximo de solucionar o “mistério da geração e organização das plantas”: A planta primordial será a criatura mais estranha do mundo, pela qual a própria natureza me invejará. Munido desse modelo e da chave para ele, poder-se-á então inventar uma infinidade de plantas, as quais haverão de ser coerentes – isto é, plantas que, ainda que não existam de fato, poderiam existir, em vez de constituírem-se das luzes e sobras da pintura ou da poesia: plantas dotadas de uma verdade e necessidade intrínsecas. A mesma lei deixar-se-á aplicar, então, a tudo quanto vive. (p. 380) 64 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A esse propósito, sintetizou Jean Boyer, na metade do século XX: ...essa planta-tipo não é um vegetal que se possa encontrar em plena natureza. É um esquema, uma visão do espírito, o lugar de características comuns que se pode extrair do estudo de todas as plantas e que nenhuma mostra em estado puro e teórico. Ideia extremamente fecunda no que diz respeito a Goethe e em torno da qual centrou seu classicismo: em toda parte, no homem bem como em todas as manifestações da natureza, tratava-se para ele de reencontrar, sob um fenômeno particular ou individual, o fenômeno ‘primitivo’, o Urphänomen que manifesta a unidade profunda da vida universal (Boyer, 1949, p. 46) De volta a Weimar, Goethe dedica-se a escrever o ensaio sobre as plantas e conhece Schiller. Em 1790, retorna à Itália, acompanhando o duque de Weimar, momento em que carregava uma redação de Fausto praticamente acabada. Mas desde a primeira viagem, atentara-se para o fato de que “os pintores não estudavam as combinações de cores para compor os seus quadros”, nas palavras de Kestler (2006, p. 48). Instigava-lhe o método de conhecimento das cores, quando, durante a Campanha da França, ao lado do duque, Goethe realizava experimentos prismáticos (Bortoft, 1986, p. 11). Tomou emprestado um prisma de um amigo e decidiu refazer os experimentos de Newton; em uma rápida olhada, surpreendeu-se com o que viu. Entre 1804 e 1806, os estudos se aprofundam, resultando na publicação da Teoria das cores. Nesses experimentos, conforme Crary, Goethe dava sequência a uma série de pesquisas de ótica baseadas na câmera obscura, sobretudo em diálogo com a Ótica de Newton (1704), em relações entre interior e exterior, observador e representação, e também com os trabalhos de Descartes, Leibniz, Locke, entre outros que consideravam a câmera obscura nos domínios das ciências naturais. Durante duzentos anos, a câmera obscura servia de metáfora para se pensar o status do observador tanto entre racionalistas quanto entre empiristas (Crary, 1988, p. 3). Goethe procurou considerar a totalidade do fenômeno: fechando o orifício e olhando para a parte escura do quarto, notou um círculo em cuja metade aparecia um amarelo e, nas bordas, um vermelho. Depois, o vermelho moveu-se para o centro, mas quando o círculo tornava-se todo vermelho, um azul apareceu, moveu-se sobre o vermelho, enfim, bordas tornam-se escuras e coloridas. Para Crary, a instrução de Goethe para fechar o buraco anuncia uma negação da câmera obscura, seja como sistema da ótica, seja como princípio epistemológico, em referência ao mundo clássico. Goethe falava então de “cores fisiológicas” pertencentes ao corpo do observador, em sua revisão acerca do lugar do olho no processo perceptivo e cognitivo. 65 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Em suma, a proposição de Goethe é crucial por não separar os dois modelos: a fisiologia descrita em detalhes pelas ciências empíricas e um observador autônomo, em meio a românticos e na aurora da modernidade. Sua proposta indicava qualidades diferentes entre luz e cor. Tratava-se de um momento em que a visão se torna ela própria objeto de conhecimento, o visível deixa de ser algo incorpóreo e torna-se hóspede do corpo humano, responsável pela produção de fenômenos dissociados do mundo exterior (Crary, 1988, p. 5). Inversamente à transparência do conhecimento clássico, Goethe apresenta a opacidade do observador como condição à aparência do fenômeno. Na abordagem de Crary, a cultura visual que emergia na Europa no século XIX considerava tanto as ciências relacionadas à ótica, o observador e seu corpo, quanto novos aparatos, tais como estereoscópio, caleidoscópio e diorama, aos quais se poderá acrescentar as práticas de visitas guiadas e o sightseeing na origem do mundo do turismo. Olhar é viajar no tempo O conhecimento sobre o “olhar do viajante”, em grande parte, deriva de uma oposição em relação ao chamado “olhar do turista” (Urry, 1996). Essa discussão foi apresentada, entre outros, por Daniel Boorstin que enfatiza a viagem como um procedimento ativo, como experiência de estar noutro lugar, ao passo que o turismo seria um procedimento passivo reduzido aos atos de ver e escutar baseado na “artificialidade” (Araújo, 2002, p. 135). Desse modo, o viajante seria aquele associado ao conhecimento, seja dos exploradores do século XVI, seja do grand tourist setecentista. Para este artigo, não caberá desenvolver essa oposição, uma vez que se procura nas palavras de Goethe, antes do advento do turismo, o sentido do olhar na experiência da viagem. Os escritos de Goethe indicam o desenvolvimento de uma solicitação dos olhos. Por meio da visão, estabeleciam-se as relações do viajante com o espaço, com o outro e com o eu. Para caracterizar essa atitude, podemos qualificá-la como o “olhar viajante”, conforme a proposição de Sérgio Cardoso (1988). Neste autor, há um parentesco entre a experiência da viagem e as atividades do olhar, pois ambas não se constituem apenas por meio do deslocamento no espaço, mas, sobretudo, no tempo. Para tanto, recorre a Merleau-Ponty, na constituição de um tempo passado e futuro no campo do presente; 66 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. não se trata de sucessão, mas de simultaneidade – “escoamento inesgotável do tempo”. Na espessura desse campo aberto e lacunar, assevera Cardoso, o sujeito abre-se para o outro, o ausente, o invisível: “A temporalidade, pois, sempre a encontramos nas linhas do presente, no devir constitutivo de seu próprio sentido.” (p. 357) A partir dessa consideração, mostra a impossibilidade das definições de viagem pela distância vinculada ao deslocamento no espaço, pois “não permitem compreender que o viajante se distancia porque se diferencia e transforma seu mundo; que as viagens são sempre empreitadas no tempo”. (p. 358) As viagens têm parentesco com o olhar porque ambas são expressões distintas de uma mesma experiência do tempo. No movimento do olhar, qualquer sinuosidade destoante da paisagem familiar converte a percepção cotidiana em outro olhar. “Assim, o olhar se embrenha pelas frestas do mundo da investigação dos obstáculos ou lacunas que constantemente comprometem a unidade hesitante das significações...”. As viagens também “têm origem nas brechas do sentido”. Conclui Cardoso: Se o viajante fura o horizonte da proximidade e transpõe os limites de seu mundo para fixar a atenção mais além – no que não se deixa ver mas apenas adivinhar ou entrever –, é sempre pelos vãos do próprio mundo que ele penetra, na medida em que surgem brechas na sua evidência, abrindo passagens na paisagem ou contornando desníveis e vazios. (p. 358) A percepção de um mundo cultural é dada pelas coisas que carregam a existência anônima de outros humanos. Merleau-Ponty afirmou: “a civilização da qual eu participo existe para mim com evidência nos utensílios que ela se fornece” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 465). Na viagem, instaura-se um paradoxo na percepção porque o observador não reconhece os objetos inteiramente como seus, ou de sua civilização, o estranhamento provém de outro tempo e também de outras pessoas. Pode-se, como quer o filósofo, reconhecer uma civilização estranha nas ruínas ou nos restos de instrumentos vistos sobre a paisagem, porque por meio deles se percebe um ato humano, um outro homem ou mulher. “No objeto cultural, eu sinto, sob um véu de anonimato, a presença próxima de outrem”. (p. 466) A visão da paisagem suscita o senso poético O olhar viajante de Goethe configurou-se no deslocamento do espaço, ao percorrer terras estrangeiras, quando se eleva o olhar em direção ao outro, notável nos 67 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. habitantes e nos artistas, mas considerando também a própria natureza; despertam-lhe uma experiência de si que, ao final, o lançam no fluxo do tempo. Em Veneza, Goethe entregara-se aos labirintos de ruas durante a noite, um emaranhado cujo enfrentamento foi descrito: “esse meu modo de experimentá-lo somente com o auxílio dos sentidos é o melhor de todos” (Goethe, 1999, p. 82). O contato direto dos sentidos com o mundo percebido é afirmado: Interessam-me agora tão-somente as impressões captadas pelos sentidos, estas livro algum, pintura alguma oferece. O fato é que meu interesse pelo mundo se renova; testo meu poder de observação e examino até onde vão minha ciência e meus conhecimentos, se meus olhos estão limpos e veem com clareza, quanto posso aprender em meio à velocidade, e se as rugas sulcadas e impressas em meu espírito podem ser de novo removidas. (p. 30) A penetração no mundo dos fenômenos posiciona, dentre os sentidos, a primazia do olho. Nas palavras do dia 2 de janeiro de 1787, lê-se: “Pode-se dizer o que se quiser em benefício das tradições orais e escritas, mas somente em pouquíssimos casos elas serão suficientes, uma vez que são incapazes de transmitir o verdadeiro caráter de seu objeto, e até mesmo nas coisas do espírito. Uma vez, porém, visto o objeto, então se poderá com prazer ler e ouvir a seu respeito, pois a isso juntar-se-á a impressão viva; somente aí é que se poderá refletir e julgar. (p. 182) Queria olhar Roma: “Sim, pois pode-se dizer que uma nova vida tem início quando se vê com os próprios olhos aquilo que, em parte, se conhece tão bem, por dentro e por fora” (p. 149). Para Goethe, embora o olho fosse um órgão natural da percepção, era formado pela experiência e também poderia ser desenvolvido. No dia 8 de outubro, dizia: Meu velho dom de ver o mundo com os olhos do pintor cujos quadros acabei de contemplar [referia-se a Paolo Veronese] conduziu-me a um pensamento singular. É evidente que os olhos se formam em consonância com os objetos que divisaram desde a infância, e, sendo assim, o pintor veneziano há de ver tudo com maior clareza e limpidez do que outros homens. Nós, que vivemos numa terra ora imunda, ora poeirenta, incolor, a obscurecer qualquer reflexo, muitos até, talvez, em cômodos apertados, não podemos, por nós próprios, desenvolver uma visão assim jubilosa. (Goethe, 1999, p. 102) No movimento histórico de elevação da visão, Goethe introduz um olho em formação com os fenômenos e em referência à estética. A Odisseia tornou-se uma “palavra viva” porque, a partir de então, lia Homero “como se me houvessem retirado a coberta de cima dos olhos” (p. 379). Mesmo diante dos temas gerais da História, 68 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. afirmava o desejo de “observar com os próprios olhos” (p. 116), em busca de uma totalidade da experiência histórica, tal como registra em Terni, 27 de outubro: No que se refere, porém, àquilo que se chama o solo clássico, a história é outra. Se, nesse terreno, não procedemos de forma fantasiosa, mas, em vez disso, apreendemos a região em sua realidade, conforme ela se apresenta, vemos que ela segue sendo o mesmo palco decisivo no qual se desenrolaram os grandes feitos do passado, de modo que até agora, tenho sempre me valido da contemplação da geologia e da paisagem no sentido de reprimir a fantasia e os sentimentos, com o intuito de adquirir uma visão límpida e clara dos lugares. Contudo, a isso vem se juntar, de forma maravilhosa e vívida, a história, sem que compreendamos como isso ocorre, e eu sinto já um grande desejo de ler Tácito em Roma. (p. 142) Frente às particularidade da história da arte, o procedimento seria o mesmo: “O interesse histórico faz-se particularmente vívido quando se contemplam as obras dos mestres da Antiguidade” (p. 122). O templo Maria della Minerva, em Assis, atingido pela indicação de Palladio e Volkmann, é objeto do desenho e da reflexão de Goethe (p. 137). Palladio, em quem sempre me fiei, apresenta, é certo, um desenho desse templo, mas não há de tê-lo visto pessoalmente, pois assenta-o sobre pedestais de fato, o que confere às colunas uma altura desproporcional, dando origem a um monstro repelente, semelhante ao de Palmira, em vez de um aspecto tranquilo e adorável, oferecendo satisfação aos olhos e ao intelecto. O procedimento que conduzia à primazia do olhar era mediado pela presença constante de obras de arte e pelo convívio com outros artistas. Em diversas reuniões, eles conversaram sobre artes, literatura, leram o livro de Sulzer, As belas artes em sua origem, sobre o qual Goethe publicara uma resenha em 1772. O encontro com colegas pintores, escritores e escultores, notadamente em Roma, não implicava apenas em conversas sobre temas da estética e de seus pensadores, mas resultava em práticas artísticas minuciosas, refletidas no estudo de técnicas, de anatomia e de perspectiva. Na viagem, arte e ciência correspondem mutuamente para o conhecimento das leis da natureza e, inversamente, a partir desta, aprofunda-se os fundamentos da arte (Moura, 2006). Para não estender em longas citações, note-se, sumariamente, que em um balanço do dia 17 de fevereiro de 1787, Goethe dizia apreender tudo aquilo que os artistas lhe ensinavam. Além disso, se punha a caminhar munido de folhas de desenho entre vales e colinas... 69 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A busca agora é pelo ar livre; se, até agora, deuses e heróis foram o alvo exclusivo de atenção, eis que a paisagem reaparece, clamando por seus direitos, prendendo o olhar nas cercanias às quais o dia magnífico empresta vida. (Goethe, 1999, p. 204) Recordando os pintores do Norte, põe-se a desenhar “sem muita reflexão” as coisas verdadeiramente do Sul, “pequenos temas romanos”... Os artistas lhe ensinavam e ele procurava aprender com vivacidade a observação do mundo sensível: “ao contemplarmos os objetos com maior exatidão e nitidez, o que fazemos é, antes, elevarmo-nos rumo ao universal” (p. 205). A vida social daqueles intelectuais organizava-se na forma de uma “comunidade”, o que confere um sentido bastante significativo para a experiência do viajante: “Nesta comunidade de artistas vive-se como em um quarto repleto de espelhos, no qual as pessoas, mesmo contra a vontade, contemplam a si próprias e aos outros repetidas vezes” (p. 181). Em Roma, estava presente Jakob Philipp Hackert (1737-1807), paisagista alemão que, no ano da viagem de Goethe, tornou-se pintor da corte de Ferdinando IV de Nápoles. Apenas para indicar a importância de Hackert para Goethe, lembre-se que Goethe escreveu a biografia do amigo, em 1811.7 O convívio com o pintor Heinrich Wilhem Tischbein (1751-1829) demonstra intensa diálogo entre os dois. Em pouco tempo Goethe passou a considerar grandemente os talentos do colega, sobretudo no conhecimento que demonstrava em artes, notável numa série de quadros representando os primórdios da raça humana, e como retratista. Em diversas passagens, refere-se quão produtivas eram as relações entre ambos (e.g. Goethe, 1999, p. 156, 163 e 180). Tischbein trabalhou longamente em esboços tomados a partir da observação de Goethe, particularmente projetando um retrato do colega, materializado na tela Goethe na Campagna romana (Col. Städelsches Kunstinstitut Frankfurt). “Deverei ser representado em tamanho natural, na condição de um viajante envolto num casaco branco, sentado ao ar livre sobre um obelisco tombado e abarcando com os olhos as ruínas da campagna romana bem ao fundo” (p. 181). A imagem é uma síntese do viajante cujos olhos são atraídos pela arte do passado. Não se poderia deixar de citar, em Nápoles, o contato com o pintor de paisagens Christoph Heinrich Kniep (1748-1825), que o acompanharia até a Sicília. Kniep foi 7 Sobre a relação desses autores, ver MATTOS, Claudia Valladão de (org.). Goethe e Hackert: sobre a pintura de paisagem. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. 70 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. contratado por Goethe para fazer registros pictóricos e gráficos desse trecho da viagem. Ao final da estada, concordavam em mútua gratidão. A viagem para muitos escritores e artistas daquela virada de século representava em letras e tintas uma transformação histórica sensível, notável nos textos que instruíam os pintores paisagistas, tais como Roger de Piles e Valenciennes.8 Em Goethe, que naquele momento fundia os atos de pesquisar, escrever e desenhar numa só linguagem, o deslocamento do olhar promovido pela experiência da viagem fazia emergir uma peculiar visão de mundo. “Não estou fazendo esta viagem maravilhosa com o propósito de me iludir, mas sim de me conhecer melhor a partir dos objetos que vejo”, registrou em Verona, 17 de setembro de 1786. Em Roma, dizia: durante uma viagem, aprende-se o que se pode pelo caminho; cada dia nos traz algo de novo, e apressamo-nos em refletir e opinar a respeito. Aqui, porém, está-se numa escola muito grande, na qual cada dia tem tanto a ensinar que sequer nos é permitido ousar dizer algo acerca do que aprendemos no seu decorrer. Na verdade, faríamos bem em, mesmo passando anos aqui, observar um silêncio pitagórico. (p. 155) A experiência da viagem e as atividades do olhar comungam em um deslocamento no tempo, afirmou Cardoso (1988). Não apenas pelo outro tempo que emerge no enfrentamento das ruínas e da natureza, mas numa dimensão temporal dada à própria imaginação do viajante. Eis o sentido estético da viagem: “a visão da paisagem magnífica à minha volta não desaloja em mim o senso poético; bem ao contrário, acompanhada do movimento e do ar livre, ela o suscita com maior rapidez.” (GOETHE, 1999, P. 26) Nesse sentido, a arte deixa de ser unicamente um objeto exterior, mas a mediação dos processos de percepção e cognição que o colocam em relação sensível com o mundo. A partir daí, torna-se instrumento para uma manifestação interior do escritor, suprassensível, futuramente designada por ele de “fantasia sensória exata”, cuja projeção temporal é o fundamento (Bortoft, 1986). Compreende-se porque ver não é olhar, pois olhar é viajar. A visão da paisagem suscita o senso poético, asseverou Goethe. A experiência descrita na narrativa de sua viagem coloca em relação quatro elementos constituintes da experiência da viagem: o espaço, o outro, o eu, o tempo. Se, por um lado, o campo perceptivo é preenchido pelos usos sociais, econômicos e políticos dos objetos, por outro, está aberto à experiência que se poderia então designar estética. Se ver não é olhar e olhar é viajar, o olhar 8 Roger de Piles escreveu entre 1688 e 1708 seu Cours de peinture par principes e P. Valenciennes publicou em 1800 o tratado Eléments de perspective pratique à l’usage des artistes suivis de Réflexions et conseils à un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage. 71 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. viajante prolonga-se no campo perceptivo como experiência estética porque realiza o objeto estético em outro nível de significação. A apresentação do fenômeno arquetípico à consciência inscreve-se nesse processo com o recurso à prática artística. Goethe metamorfoseia o olhar; não subordina a paisagem, mas apreende o espaço, o tempo, o eu e o outro na paisagem. 72 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 5. A imaginação da Natureza Morfologia da Natureza Goethe conduziu as relações entre arte e ciência às últimas consequências. Antes da ruptura entre essas duas formas de conhecimento, recomendava aos cientistas a pesquisa da arte e aos artistas o estudo científico da natureza. A revista Propileus, criada em parceria com Schiller e Meyer, ilustra essas trocas intensas. Goethe estava consciente da influência que importantes filósofos imprimiam no trabalho dos artistas, a exemplo do entusiasmo de Shaftesbury e Rousseau pela natureza. A retomada crítica do ideário newtoniano e da câmara obscura como modelo de conhecimento, não deixam de considerar as mútuas contribuições entre arte e ciência. Quando Goethe apresentou, em 1810, uma nova teoria das cores, na qual o sujeito e o corpo participam da produção do conhecimento, de modo que as cores não são apenas reconhecidas como dados objetivos, tornam-se resultado da luta entre os polos claro e escuro, na experiência corporal da natureza. De um lado, estas ideias influenciaram uma série de pintores ao longo dos séculos XIX e XX, desde os nazarenos até as vanguardas. No dizer de Kern (2006, p. 26), Goethe, Hegel e Kant, cada qual a seu modo, lançaram os fundamentos para uma nova compreensão da imagem pictórica, na qual a “conquista da cor” participa da emergência da pintura impressionista, fauvista, expressionista, até as experiências abstracionistas, em suma, na formulação do imaginário moderno. No final de 1775, Goethe aceitou o convite de Carlos Augusto von SaxenWeimar, duque de Weimar, para trabalhar em sua corte. Ali, torna-se um homem de Estado, nomeado chanceler do Conselho Secreto de Weimar, cuida de finanças, construção de estradas, entre outras tarefas. Inicia estudos diversos, na filosofia de Spinoza, em botânica, anatomia e mineralogia. Nos jardins da corte de Weimar, entregou-se a longas observações botânicas, a começar por minúsculos liquens. Dedicava-se também à leitura de escritos da época sobre o tema, sobretudo Lineu e 73 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Rousseau. Assim como Goethe, Rousseau também procurava nos vegetais uma lei que reconduzisse a variedade das formas a uma unidade (Molder, 1993, p. 13). O ensaio resultante das observações de Goethe foi o livro a Metamorfose das plantas, escrito em 1789 e 1790. Logo nos primeiros parágrafos, o autor apresenta seu objetivo de compreender uma “afinidade secreta entre as diferentes partes exteriores da planta, tais como as folhas, o cálice, a corola, os estames, que se desenvolvem sucessivamente e como que a partir umas das outras”. Como o próprio Goethe escreve, a ideia de uma metamorfose era bem conhecida dos estudiosos, notadamente com Lineu, que se dedicou à Metamorfosies vegetabilis – processo pelo qual um mesmo órgão se nos manifesta diversamente alterado –, da mesma maneira que a noção de evolução ocupava diversos autores, no campo das ciências naturais e da filosofia. Não obstante, Maria Filomena Molder (1993, p. 9), estudiosa da morfologia goethiana, lembra que a perspectiva de Goethe era nova: “a partir de a priori morfológico, a admissão de um princípio enteléquico”. Observando a passagem de uma parte para outra no desenvolvimento do vegetal, Goethe considerou que a natureza não forma nenhum órgão novo, mas transforma os órgãos conhecidos (Goethe, 1790/1993, p. 42). O escritor formulava então um método de observação, voltado para os processos naturais, com vistas à anastomose, o processo pelo qual órgãos se comunicam: teremos acompanhado a forma exterior da planta em todas as suas metamorfoses, desde o seu desenvolvimento a partir da semente até à sua nova formação, e dirigimos a nossa atenção, sem a presunção de querer descobrir os primeiros móbiles das ações da Natureza, para a manifestação das forças pelas quais a planta transforma a pouco e pouco um e o mesmo órgão. (Goethe, 1790/1993, p. 51) A apreensão do fenômeno conduziu-o primeiramente aos processos de expansão, depois aos processos de contração. No parágrafo 50, afirma: A observação acima exposta será, por isso, novamente confirmada, e tornar-nos-emos cada vez mais atentos a esta ação alterada da contração e expansão, pela qual a Natureza chega finalmente ao seu alvo.[...] “Desde a semente até ao mais perfeito desenvolvimento das folhas caulinares, observamos em primeiro lugar uma expansão; em seguida, vimos, através de uma contração, surgir o cálice; as pétalas, através de uma expansão; as partes sexuais, através de uma contração; e em breve nos aperceberemos da maior expansão no fruto e da maior contração na semente. Nestes seis passos, conclui a Natureza irresistivelmente a eterna obra da reprodução bissexuada dos vegetais. (Goethe, 1790/1993, p. 44) Em síntese, o “tipo” é a dimensão básica (interior), permanência e identidade do ser, a “forma” trata da dimensão fenomênica (exterior), o “arquétipo” é sua 74 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. representação original, enquanto a metamorfose é o meio para o conhecimento dos processos formativos (Steiner, 2000, p. 13). A compreensão da metamorfose da planta é esquematizada em movimentos no tempo e no espaço. Primeiro, movimentos de contração e expansão ordenam no tempo da vida uma sucessão rítmica em dois polos. Segundo, o crescimento desdobra-se sobre um espaço vertical do caule e lateral das folhas caulinares, reunião e aproximação das folhas do cálice e da corola. Nesse sentido, a forma é dinâmica, movimento e processo. “O espaço-tempo do crescimento não é o de um móvel que muda de lugar, ocupando sucessivamente certos pontos no espaço, mas o acontecimento de uma exposição, de um desenvolvimento, que qualifica o espaço ritmicamente” (Molder, 1993, p. 19). Seguindo esse raciocínio, “o espaço e o tempo não são estruturas homogêneas, antes se revelam sistemas de relações marcadas por privilégios: a descontinuidade do crescimento das plantas está mais associada, mais visivelmente do que nos animais, à alteração do espaço de acordo com o desenho que a planta vai fazendo” (p. 19). Esse desenho é atravessado e dirigido pelo impulso de intensificação, em que cada forma anuncia a próxima, “e sendo a sucessão de formas, renovando-se ciclicamente, o caminho da sua história individual em direção à epifania mais perfeita”. O princípio goethiano sugere uma intencionalidade da natureza, de modo que a forma só é compreensível por meio da descrição dos processos da vida do ser estudado, da observação de sua formação e transformação (Molder, 1993, p. 18). Deriva o problema da nomeação, a exemplo de contração e expansão. São termos que não exprimem a ação em toda amplitude: [o segredo aberto da natureza] expõe-se revelador aos nossos olhos justamente nas passagens, nas variações em que se transita de uma ação para outra, de um momento para outro, em que os vestígios da sua decifração estão visíveis. [...] A nossa capacidade de impor nomes, o nosso esforço conceitual fixado em terminologias, nomenclaturas, classificações, corre o risco de se converter em hipóteses, em modos de determinação que tendem a substituir-se à visão (sempre primeira, ainda que possa permanecer obscura). (p. 21). Processo no tempo e expressão no espaço surgem para a imaginação do pesquisador, em um pensamento inteiramente plástico como são os fenômenos observados, identificação com o objeto que se converte em teoria; “empiria sutil”, no dizer de Goethe. Molder (1993, p. 9) lembra que a concepção dessa abordagem tem ligações com Teofrasto, Lucrécio e Ovídio, num saber em que a teoria se constitui no concreto, na relação entre o visível e o invisível, na intuição das imagens originárias. 75 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Além disso, asseverou essa autora, em Goethe reúnem-se os movimentos conceituais de Platão e Aristóteles. O projeto de uma morfologia de Goethe foi sistematizado em escrito de 1817. Antes disso, muitas indicações vieram a lume, seja quando da publicação do ensaio sobre a Metamorfose das plantas (1790), seja na Teoria das cores (1810), ou ainda, em notas esparsas que buscaram organizar um método geral de observação dos fenômenos naturais. Compreendendo o desenvolvimento conjunto entre o “desejo científico” e o “impulso artístico”, tal como aparecera no artigo “Imitação simples da natureza, maneira e estilo” (1789), face às tentativas no curso da arte, do saber e da ciência de se fundar uma doutrina, Goethe propõe uma “Morfologia”. A proposta da abordagem morfológica iniciava-se com uma crítica à dissociação das partes quando se almeja o conhecimento de um ser. Embora o procedimento da decomposição tenha contribuído para áreas específicas do saber, faltava-lhe uma visão de conjunto. A morfologia considera inicialmente os fenômenos em uma totalidade formada em relação às suas partes constituintes. Diria o autor: “O que primeiramente é um ser vivo pode ser decomposto em elementos, sem que seja possível depois reconstituí-lo nem devolver-lhe novamente a vida”. (Goethe, 1817/2007, p. 6) O conjunto perceptível da existência de um ser real era designado Gestalt, em alemão, cujos problemas de tradução são bem conhecidos na língua portuguesa, correntemente referido como “forma”. Goethe dialoga de modo crítico com esta designação, fazendo notar a subtração do movimento próprio do ser quando da fixação da forma. Todas as formas, sobretudo as vivas, estão em movimento incessante. Daí estar-se diante de algo designado Bildung, cuja tradução para o português tem sido feita pela palavra “formação”. A formação contém aquilo que o ser é, o processo do passado ao presente e o que poderá ser no futuro. Em suma, todo ser é apreendido como forma expressa no espaço em um processo temporal de duração; em um movimento de metamorfose em que uma realização é infinita. Os estudiosos do método de Goethe consideram três momentos fundamentais do processo do conhecimento: a observação do fenômeno no espaço, sua projeção no tempo e a intuição de seus significados. O termo intuição une arte e ciência nessa concepção. No artigo “Imitação simples da natureza, maneira e estilo” (1789/2005), Goethe esboça as três passagens na observação da natureza pelo pintor, através da crítica à imitação clássica, não em prol de uma expressão da subjetividade, mas em 76 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. favor do do que nomeou “estilo”, resultado do trabalho entre percepção e cognição que culmina na conjugação com o objeto na forma de conhecimento sensível. Olhar, para o escritor alemão, deveria ser uma ação sobre os fenômenos. No estudo sobre os fundamentos do método científico em Goethe, Henri Bortoft (1986, 14) escreveu: “Observar o fenômeno do modo proposto por Goethe exige de nós olhar, como se a direção da visão estivesse invertida, partindo de nós em direção ao fenômeno ao invés de vice-versa” (grifo no original). A atenção reverte-se sobre o próprio ato de olhar, “como se mergulhássemos dentro da visão (seeing)”, na experiência das qualidades dos fenômenos. Desse estágio, o observador avança para outro, no plano da própria imaginação, procedimento que Goethe chamou Exakte sinnlichte Phantasie – “fantasia sensória exata” ou exact sensorial imagination, em Bortoft (1986, p. 14). Deixando de lado agora a origem grega da noção de fantasia, concebe-se o processo da imaginação ao transformar o fenômeno em uma imagem, cujo objetivo seria sustentar em pensamento o fenômeno natural concretamente. Intuição, neste âmbito, não é representar uma imagem inédita, também não seria apenas pensar sobre o conteúdo do percebido, mas acolher o próprio ser do fenômeno observado na imaginação, por meio da participação do sujeito na relação com o objeto do conhecimento. Trata-se, portanto, de um exercício da percepção em unidade com o fenômeno; um encontro. As unidades apreendidas, por exemplo, na metamorfose das plantas ou na experiência das cores, pertencem ao fenômeno mas não são visíveis. Segundo Bortoft (1986, p. 15), Goethe acreditava que deveria haver uma instância na natureza, na qual o fenômeno acontece do modo mais simples possível, sem fatores secundários que disfarcem aquilo que é essencial. Esta instância seria o Urphänomen, primal phenomenon ou fenômeno primordial. Esta forma intuitiva emerge de uma reestruturação da consciência, designada por Bortoft (p. 33) de holistic perception em oposição ao modo analítico da consciência. Paisagens e nuvens A pintura de paisagens é a maior realização da arte britânica do século XIX, considera a historiografia geral da arte, numa reação à proletarização do camponês e da industrialização (Lynton, 1979). Até então, a pintura de paisagens era considerada um gênero menor pelas academias no sistema de formação e classificação do 77 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. neoclassicismo. Enquanto a pintura acadêmica trabalhava com conceitos, na proposição do tema e na estrutura do quadro, a paisagem solicitava uma apreensão sensível da natureza. Não obstante a paisagem heroica ou mitológica perdurar no âmbito das academias como a forma mais digna, ao longo do século XVIII, a designação de “paisagem campestre” aparece no vocabulário francês (paysage champêtre) vinculada a uma representação mais “fiel” da natureza. Autores como Roger de Piles e Valenciennes escreveram sobre o significado dessa prática pictórica e servem como balizas temporais para a elevação da paisagem dentre os gêneros da pintura. Porém, como se sabe, tal elevação sustenta uma subordinação da natureza ao processo técnico e conceitual da arte. Exemplos dessa questão são localizados em 1816, quando a Escola de Belas Artes na França criou e sancionou a moção de classe de paisagistas, o “Grand Prix de Roma da Paisagem”, ainda dentro do gênero histórico ou mitológico da paisagem. A distinção entre paisagem heroica e paisagem campestre aparecera no Cours de peinture par principes de Roger de Piles (1688 e 1708). A paisagem histórica ou heroica resta como cenário do tema principal, não sendo lugares observados a partir da natureza, mas composições ideais. Um século depois, Valenciennes publicou o tratado Eléments de perspective pratique à l’usage des artistes suivis de Réflexions et conseils à un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage (1800). Valenciennes recorre à distinção dos dois tipos de paisagem, sendo a heroica o “gênero mais nobre de todos” e paysage-portrait (referindo-se à campestre) “a fiel representação da natureza”, gênero que não se distingue da verossimilhança (Lajarte, 1995, p. 22). Nas palavras do tratadista, apenas a primeira exigiria muito gênio, enquanto na segunda “não há senão os olhos e a mão que trabalham” (citado em Lajarte, 1995, p. 23). A autora que serve de referência desta citação, Isabelle Lajarte (1995), considera que, ao longo do século XIX, essa prática pictórica aproxima-se da paisagem campestre, em “uma representação fiel e não idealizada da natureza”. Esse processo é tardio na França e na Itália, frente à força das academias, diferentemente da Inglaterra e da Holanda. Basicamente, o gênero paisagístico considerava três categorias: o “pitoresco”, de pittore, pintar, sobretudo recantos naturais; o “nacional”, rural e marinhas; e a “modernidade”, urbano e indústrias (p. 34). O amplo espectro das “atitudes românticas” diante da natureza resultou em abordagens muito diversas entre escritores, pintores e escultores (Nunes, 1985). A extensão desses debates pode ser sentida nas Nove cartas sobre a paisagem pictórica, 78 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. de Carl Gustav Carus (1831), nas quais a imagem da pintura é pensada a partir do aprendizado com Caspar Friedrich, ao mesmo tempo em que se move em direção a uma visão “terapêutica”, combinando arte e ciência na feitura de uma imagem completa da natureza (Bätschmann, 2002, p. 6). Da correspondência trocada com Goethe, Carus utiliza uma de 1822 para compor a introdução ao publicar suas reflexões. Apenas para indicar a complexidade daquele contexto, tal como procedeu Oskar Bätschmann (2002, p. 29), o pensador Philipp Otto Runge (1777-1810) propunha uma nova forma de arte, em sentido diferente de Goethe e Meyer, notável no livro Do significado das cores na natureza (1810), no qual procurou desenvolver os conceitos de Shelling e a teoria das polaridades de Steffens. No espaço de língua inglesa, a poesia da natureza de Wordsworth está relacionada com o aparecimento da pintura de paisagem. O engajamento revolucionário na poesia de Wordworth desvia-se para a natureza, as montanhas, as nuvens. Neste passo, a capacidade de observação liga-se à associação imaginante, como notou Costa Lima (1989, p. 90-93): a autorreflexão estimulada pela natureza antecedia o instante do desapontamento com o processo revolucionário; que esta autorreflexão ou intercâmbio da mente com o mundo se impusera desde que a subjetividade individual, como que entregue agora a si mesma, necessitara de um interlocutor que lhe ”ensinasse” a falar. Para tanto, era preciso que o poeta desenvolvesse sua capacidade de observação do outro, a natureza, para que então descobrisse em si a metamorfose do que vira, ou seja, a força do fancy and imagination. Ao revisar o ensaio de Coleridge, “On poesy or art” (c. 1818), Luiz Costa Lima (1989, p. 108) encontra a recepção de filósofos alemães, dentre os quais Schlegel, e uma operação de pensamento na qual a mimesis é reelaborada. Da relação entre mente e natureza, a arte surge “como a mediadora por excelência entre a natureza e o homem”, citando as palavras do próprio poeta: “a união e a reconciliação daquilo que é natureza com o que é exclusivamente humano”. Em suma: A condensação da natureza na arte continua a ser chamada imitação, embora o poeta-pensador tenha o cuidado de distingui-la da cópia. Uma e outra se distinguem mesmo porque a arte medeia mente e natureza, dando primazia ao labor da primeira... (Costa Lima, 1989, p. 108; grifo no original) Nas palavras de Coleridge: E a mente do homem é o próprio foco de todos os raios do intelecto que são disseminados por todas as imagens da natureza. [...] Tornar o externo interno e o interno externo, converter a natureza em 79 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. pensamento e o pensamento em natureza, eis o mistério do gênio nas belas artes. (citado em Costa Lima, 1989, p. 108) Conforme assinalou Maria Lúcia Kern (2006, p. 24), se por um lado partidários da filosofia empirista afirmavam o conhecimento sendo decorrência da experiência sensível, como em Locke, por outro, havia pensadores ingleses, tal como Hume, que defenderam “a importância da imaginação para o processo do conhecimento e criação”: “a imaginação seria livre e retomaria as lembranças do passado para estabelecer associações de múltiplas origens, possibilitando a criação da obra de arte.” Entre os pintores, Joseph William Turner (1775-1851) trabalhou com o elemento visível da natureza, na evidência das sensações. O pintor valorizou o uso da aquarela entre os britânicos em correspondência à Teoria das cores de Goethe (1810). Outro pintor inglês, John Constable (1776-1837) desenvolveu o trabalho pictórico em sentido religioso da natureza e seus céus são frequentemente referidos em relação ao Impressionismo. Era filho de um moleiro e conheceu cedo a vida nos moinhos de vento e os movimentos da atmosfera. A representação de nuvens nas paisagens seguiu um procedimento conceitual na pintura, mesmo durante os séculos nos quais a natureza tornou-se objeto de observação dos artistas. No dizer de Kurt Badt (1950), Poussin, Claude, Ticiano e Rubens, foram muito sensíveis para a beleza das nuvens, mas não se dedicaram a estudá-las em suas próprias formas. Talvez as primeiras contemplações estéticas das nuvens possam ser encontradas em Salomon van Ruysdael (1601-1670) e Albert Cuyp (1620-1691), ambos holandeses. Também Alexander Cozens (1717-1786) tomou o céu como objeto de estudos para suas paisagens, no século XVIII. Estas rápidas indicações fornecidas pelo estudioso têm como finalidade fundamentar a afirmação sobre o amplo interesse, no século XIX, dos pintores pelas nuvens, na dedicação prazenteira dos românticos para a natureza, sensual e filosófica, tanto em escritores como Coleridge, Shelley e Goethe, quanto em pintores como Turner, Constable, Johan Christian Dahl (1788-1857) e Carl Blechen (1798-1840). Pela primeira vez na história das imagens, as nuvens tornam-se o tema central, senão o único, de muitas pinturas, deixando a posição secundária de atmosfera “ideal” para as paisagens. Para situar historicamente estas passagens, Badt (1950) começa por enunciar a relevância dos estudos de meteorologia de Luke Howard, referido em um artigo intitulado “The shape of clouds according to Howard”, escrito por Goethe, em 1820. Além de publicar poemas descrevendo a forma e os movimentos das nuvens, o autor 80 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. alemão dedicou-se também à pesquisa de processos atmosféricos. Dois anos depois, em seus estudos de meteorologia, Goethe reproduziu uma autobiografia que o próprio Howard lhe enviara. Nos poemas dedicados a nuvens, a descrição científica é substituída por uma apresentação da experiência, ao mesmo tempo em que é ultrapassada pela intuição das relações entre os fenômenos, o eu e o “ser metafísico” (Badt, 1950, p. 19). Trata-se de um processo de observação e imaginação que cria formas, das quais surgem imagens de leões, elefantes, camelos e dragões, e depois adquirem significados simbólicos. Para esses exercícios, contratava artistas para registrar as formas das nuvens em desenhos, a exemplo de Friedrich Preller (1804-1878). Kurt Badt examinou o intrincado processo de relações entre artistas, cientistas e filósofos cujo resultado foi uma imagem pictórica das nuvens nunca vista antes. A proposição que reunia o método artístico com o conhecimento científico insere-se na tradição renascentista da representação perspectiva do espaço, sobre a qual, porém, Goethe instala a dimensão temporal, em um procedimento chamado “genético”. Não pretendia transformar a arte em ciência, como nos séculos anteriores, “mas ambas trazendo juntas os fenômenos” (Badt, 1950, p. 21). John Constable foi referido como um “pintor do clima”, sobretudo em seus mais de cem trabalhos dedicados ao céu, no período em torno de 1820 e 1822, em Hampstead Heath, sobretudo em pinturas a óleo, onde desenvolveu um diário ilustrado de observações meteorológicas. Nessa série, desapareceram os vestígios da paisagem, o pintor registrou no verso as horas do dia, a velocidade e direção do vento, o tipo de nuvem: Era a combinação de experimentação artística e maturidade, junto a um desejo de entender os processos de dinâmica meteorológica, o qual conduziu a notável veracidade e êxtase em seus céus tanto em seus estudos de nuvens quanto em obras concluídas tal como The Haywain. (Thornes, 2008, p. 395; minha tradução) Algumas pinturas mantêm a linha do horizonte, a linha de terra ou algumas árvores sobre as quais o céu é desvelado no movimento das nuvens: “para resolver o problema do espaço e expressar o contraste entre o peso das massas de folhagem e a luminosidade das formas pairando na atmosfera.” (Badt, 1950, p. 41) Os estudos concentrados nas nuvens preparam o terreno para suas grandes telas, cuja composição e execução representavam para ele um desafio à visão, à memória e à imaginação (p. 42). De modo geral, Kurt Badt organizou quatro grupos de imagens: (1) os trabalhos com 81 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. lápis em esboços exploratórios, detalhes exatos de casas, árvores; (2) os estudos em óleo, raramente em aquarela, a partir dos quais formula novo tipo de figura, em esboços feitos ao ar livre, ricos em detalhes, plenos de observação da natureza, onde Badt situa “um alto grau de inspiração, uma real imaginação criativa”, de onde resultam imagens livremente inventadas a partir da natureza, “figuras expressivas da natureza”; (3) as grandes pinturas destinadas à exposição pública feitas no ateliê em concordância com as regras acadêmicas, nas tradições das escolas italianas e holandesas de composição da paisagem, nas quais o sentimento é controlado pelo pensamento; (4) o grupo de estudos surgido entre 1821-22. Este último ocupa a posição intermediária entre os esboços de paisagens e as grandes pinturas, interessantes pela atitude diante da natureza: [as pinturas desse grupo] não são tão excitantes como os esboços de paisagens nem tão calmas como as grandes pinturas, fazem justiça com a realidade sem ser meramente acuradas e detalhadas. O sentimento sobre a natureza neste grupo não é, todavia, tépido, é mais complexo e mais aberto ao aspecto da realidade que fornece a impressão de completude através de formas compostas de modo musical e poético. (Badt, 1950, p. 44) O resultado vai além do esboço do céu, no estudo dos detalhes, para se tornar um meio de envolvimento com o contexto dos fenômenos naturais, da organização formal da natureza. Na síntese de Badt (1950, p. 45), “distinguem-se pelo alto grau de imaginação e força criativa dotada da forma artística constituída em si própria”. Em seguida, conclui: “o elemento descritivo é dissolvido em uma harmonia ‘poética’, e a realidade é transformada pela força da imaginação em algo que produz um impacto direto nos sentimentos.” (p. 46) Para o geógrafo e estudioso de arte, John Thornes (2008) a primeira metade do século XIX consistiu na “era de ouro” dos estudos do céu natural, da compreensão do fenômeno atmosférico, quando os artistas encontram o sentido da liberdade e da motivação. Thornes considera o trabalho de Constable e outros artistas de modo crítico à concepção tradicional da paisagem na pintura, em termos de uma “arte ambiental representacional”, pois Goethe, Carus e Ruskin afirmam que os paisagistas pretendiam entender o ambiente – as rochas, os solos, as nuvens –, não apenas encontrar formas de representá-los. Baseado nas conferências de Constable, de 1836, Thornes (2008, p. 397) conclui que o pintor solicitava uma mudança de direção na arte da paisagem, deixando a formação da imagem simbólica artificial, cuja interpretação depende de erudição, em prol de uma “imagem natural”, entendida por um moleiro ou um marinheiro sem 82 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. educação formal. Uma imagem como Winter Landscape envolve o processo temporal, referindo permanências e mudanças das estações e dos anos; não é estática e distante como o Jewish Cemetery de Ruysdael. Do mesmo modo que Valenciennes sugerira, Constable fazia esboços e estudos de um mesmo ponto de vista, mas em diferentes climas e luzes. Montanha e consciência Na proposição do grupo impressionista, os discursos referem diretamente à experiência dos olhos e às impressões óticas, trabalhando com pinceladas de cores sobre um fundo branco e a abolição do preto, observando os raios de luz e o delineamento das formas. Como resultado, a rejeição à linearidade e ao desenho propunham uma nova forma de perceber do espectador. Esta história é bastante conhecida, em alguns pontos controversa. Aqui ela é resumida apenas para situar a atitude de Cézanne no processo de conhecimento que articulava arte e ciência por meio da imaginação da natureza. As aquisições estéticas desse movimento deram-se também pelo deslocamento espacial, por viagens e observações de paisagens, na chamada “fuga de Paris” e na busca das “comunidades de artistas”. Os pintores dedicavam-se a um gênero paisagístico relativamente consolidado, ao qual impõem novos procedimentos e questões. Trabalham sobre o motivo, direto na natureza, ao ar livre. Abandonam o desenho-contorno, as regras da perspectiva geométrica, os usos convencionais das cores. Interessa-lhes o movimento das luzes, tonalidades, nuvens, fumaças, águas, no limite da acuidade ocular. Jules Laforgue definiu o impressionismo, em 1903: É o olho, portanto, que está em primeiro lugar, tal como o ouvido na música. O impressionista é um pintor modernista que, dotado de uma sensibilidade visual fora do comum, logrou restabelecer um olho natural, ver naturalmente e pintar simplesmente tal qual vê. [...] Em suma, o olho impressionista é, na evolução humana, o olho mais avançado, aquele que, até aqui, captou e traduziu as mais complicadas combinações de nuanças e tonalidade conhecidas. O impressionista vê e representa a natureza tal qual ela é, quer dizer, unicamente em vibrações coloridas. (citado em Serullaz, 1989, p. 11) Esta concentração no olho foi o ápice de um processo de transformação da percepção nos cem anos que antecederam ao impressionismo. Naquele momento, estava superada a dominância de uma cultura primordialmente oral e tátil pela cultura em que a visão tornara-se o instrumento sensório dominante, em uma “visualidade estendida”. O 83 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. tempo deixou de ser comparável ao espaço na virada para o século XIX, quando o campo da percepção burguesa estabeleceu regras de desenvolvimento temporal, fazendo com que a lógica de identidade e diferença fosse suplantada por outra de analogia e sucessão (Lowe, 1986, p. 33). As sínteses do movimento impressionista ressaltam a observação da luz e da atmosfera e as pinceladas coloridas para conferir ao quadro a dinâmica da vida. Em retrospectiva histórica, Maurice Serullaz (1989) relembra as “miragens coloridas” dos venezianos Giorgione, Ticiano, Veronese e Tintoreto, as produções luminosas da Espanha, nos quadros de El Greco, Velásquez e Goya, as paisagens holandesas de Ruysdael ou Hobbema, que colocaram questões sobre a representação de ambientes naturais, por fim, dentre os franceses, a luz da estética de Poussin e Claude Gellée (Le Lorrain), o senso de atmosfera das paisagens de Joseph Vernet. Muitos quadros foram objeto de estudo dos pintores franceses, sobretudo nas galerias do Louvre. De modo direto, as aquisições dos ingleses, notadamente Constable, Bonington e Turner, “imprimiram um impulso decisivo na estética impressionista” (Serullaz, 1989, p. 20). Esta dívida foi reconhecida por Pissarro quando se referiu a sua estada em Londres, em 1871, na companhia de Claude Monet: Quando Constable (1776-1837) declara: “Aquilo a que tendo na minha pintura é a luz, o orvalho, a brisa, a floração, o frescor”, não se julgaria estar ouvindo um Claude Monet? A analogia é ainda mais impressionante quando ele afirma, fornecendo já por antecipação uma explicação do que serão as “séries” do mestre do impressionismo sobre um mesmo local: “Não há dois dias que sejam semelhantes, nem mesmo duas horas...”. (Serullaz, 1989, p. 21) Delacroix declarou ter recebido tanto influência de Constable quanto de Bonington. A atmosfera de água e céu de Turner também marcou aqueles pintores, não obstante, sem a ruptura com os fundamentos da arte acadêmica. O passo decisivo para a nova estética foi dado em viagens à Normandia, em Honfleur (na fazenda Saint-Siméon), Trouville, Deauville e Le Havre, na conquista da pintura ao ar livre e da experiência da paisagem. Nas chamadas fugas de Paris, quando artistas escolheram suas residências no campo, nas pequenas vilas, levaram a cabo o projeto de ruptura com a hegemonia da pintura clássica esboçado pelos trabalhos de Jean-Baptiste Corot, Charles François Daubigny e Gustave Courbet, além dos artistas da chamada Escola da Provença. Extraindo do conjunto de cartas escritas por Cézanne (1978/1990) apenas três pequenos excertos, tem-se uma introdução à relação que seu trabalho manteve com a 84 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. natureza, mesmo que arriscando mera ilustração. Primeiro, ao colega pintor Émile Bernard (Aix, 25 de julho de 1904): Para fazer progressos, só a natureza, e o olho educado no contato com ela. Torna-se concêntrico à custa de observar e trabalhar. Quero dizer que, em uma laranja, uma maçã, uma bola, uma cabeça, há um ponto culminante; esse ponto – apesar do efeito terrível: luz e sombra, sensações colorantes – é o mais próximo do nosso olho. As bordas dos objetos fogem em direção a um centro localizado no nosso horizonte. Com um pouco de temperamento é possível ser muito pintor. É possível fazer coisas boas sem ser muito harmonista ou colorista. Basta ter senso de arte – e esse senso é, sem dúvida, o horror do burguês. Portanto, os institutos, as bolsas e as honras só podem ser feitos para os cretinos, os farsantes e os patifes. Não seja crítico de arte, faça pintura. Essa é a salvação. (p. 248) Novamente, para Émile Bernard (Aix, 23 de outubro de 1905): “Ora, a tese a ser desenvolvida é que – seja qual for a nossa sensibilidade ou força diante da natureza – temos de transmitir a imagem do que vemos, esquecendo tudo o que tenha existido antes de nós. Acredito que isso permite ao artista expressar toda a sua personalidade, grande ou pequena.” (p. 257) Por fim, para seu filho (Aix, 8 de setembro de 1906): A modéstia sempre ignora a si mesma. – Finalmente lhe direi que, como pintor, torno-me mais lúcido diante da natureza, mas que, em casa, a realização das minhas sensações é sempre muito penosa. Não consigo chegar à intensidade que se desdobra ante meus sentidos, não tenho a magnífica riqueza de colorações que anima a natureza. Aqui, à beira do rio, os motivos se multiplicam, o mesmo tema visto sob um ângulo diferente oferece um objeto de estudo do mais vivo interesse – e tão variado, que acho que poderia ocupar-me durante meses, sem mudar de lugar, inclinando-me ora um pouco à direita, ora um pouco à esquerda. (p. 265) Nestas palavras, os limites do corpo e a experiência estética trazem questões ao impressionismo. Não exatamente no sentido que lhe dirigiria Paul Gauguin, acerca daquilo que está ao redor do olho, mas na participação do artista, no processo do conhecimento suscitado pela pintura, na operação cognitiva e imaginativa do trabalho do pintor. O poeta Rainer Maria Rilke foi atraído pelas pinturas de Cézanne quando visitou a grande exposição retrospectiva, em Paris, em 1907. Chamara-lhe a atenção a experiência do “tornar-se-coisa”, “a realidade intensificada pela sua vivência do objeto”. Conheceu o trabalho de um velho, doente e solitário pintor, que no trabalho diuturno incansável compôs um conjunto de imagens que se tornaria central tanto na arte quanto no pensamento do século XX (Rilke, 2006). Trata-se da ação política através da qual se 85 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. vive uma outra vida, de dedicação ao trabalho artístico, em contraposição ao tempo da vida burguesa, em resistência à mediocridade, como se lê no ensaio de Maria Helena Patto (2000, p. 45): Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas ideais políticas. Interessava a Rilke alguém que, em vez de facilitar, dificultou o seu trabalho de modo obstinado. Em paisagens ou naturezas mortas, mantendo-se intencionalmente diante do objeto, capturava-o somente com rodeios complicados ao extremo. Começava pelo colorido mais escuro, cobria sua profundidade com uma capa de cor que conduzia até um pouco além daquele, e sempre mais longe, expandindo cor sobre cor, chegava a um outro elemento contrastante do quadro, com o qual, desde um novo centro, procedia de modo análogo. Parece-me que nele os dois procedimentos – o da captura observadora e firme, e o da apropriação, o uso pessoal do capturado – apoiam-se um contra o outro, talvez segundo uma tomada de consciência, de tal modo que os dois, por assim dizer, começam a falar ao mesmo tempo, em interrupções contínuas e discórdias constantes. (Rilke, 2006, p. 51) Esta longa citação é rica o suficiente para compreendermos a distinção do olhar impressionista, frente a um trabalho contumaz, sobre o qual se impõe uma “tomada de consciência” sobre a paisagem, por meio da qual, ao final, a paisagem pensaria através do pintor. Esse trabalho incluía a arrumação de maçãs e garrafas de vinho, “os obriga a ser belos, a significar o mundo todo, toda a felicidade, toda a glória...” (Rilke, 2006, p. 54) Cézanne considerava a pintura como parte de sua própria existência, bem como a representação de um importante ponto de vista acerca da paisagem pictórica, escreveu Merleau-Ponty (1945/1980, p. 115). Para o filósofo, Cézanne superou o método impressionista ao tentar representar o objeto atrás da atmosfera. Nesse sentido, compreende-se as palavras do pintor, através das quais suas pinturas desvelam-se como parte da natureza. O problema da perspectiva é central na arte de Cézanne, sua fidelidade para com o fenômeno mostra que “a perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica” (Merleau-Ponty, 1945/1980, p. 117). O pintor expõe essa situação pela deformação da perspectiva, na qual os objetos aparecem em uma nova 86 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. ordem. Cézanne chamava de “motivo” a paisagem em sua plenitude absoluta. A paisagem vivida é o motivo; tanto a razão quanto o tema da pintura. A motivação do gesto do pintor não é baseada nas regras da perspectiva, mas reside na totalidade da paisagem (p. 119). Para Merleau-Ponty, o olhar do artista deve-se mais à encarnação que ao espírito. Seu corpo manipula um meio específico que o possibilita compreender os significados apreendidos pela percepção. Destarte, cada pessoa é única e cada um terá seu próprio “estilo” de relacionar seu corpo com o campo perceptivo. O estilo remete àquilo que há de particular no ser, trata-se de uma maneira de estar em situação (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 439). A ideia de estilo não desdobra uma concepção individualista, mas um sentido particular no interior da vida social. Cézanne “germinava” com a paisagem, dizia-se. O mesmo termo sublinhado por Merleau-Ponty em seu ensaio “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” (1952/1989, p. 100), o qual indica o momento fecundo da criação: é necessário que haja ocorrido este momento fecundo em que germina à superfície de sua experiência, em que um sentido operante e latente assume os emblemas que vão liberá-lo e torná-lo maneável para o artista e ao mesmo tempo que acessível aos outros. Ao considerar o processo perceptivo como um encontro com significados, Paul Crowther (1982) afirmou que as coisas imprimem-se sobre o corpo como presenças sensoriais, designadas “emblemas”. Estes não são apenas imagens mentais ou construção mental sobre dados, mas significados inerentes à própria encarnação. Desta afirmação resultam duas noções: 1) a percepção é criativa porque o corpo, ao articular o mundo conforme significados, remete o sujeito a sua vida passada e futura; 2) o corpo opera entre as coisas e as pessoas de modo pré-reflexivo. Quando a percepção encontra um significado imediatamente incompreensível, mas que exige sua preservação e articulação, está-se diante de um “ponto de decolagem” da criação artística – take-off point for artistic creation (Crowther, 1982, p. 141). O pintor captura as premissas que a visão profana esquece, o corpo operante dá continuidade ao processo de significação, originado na percepção e unificado na forma concreta (p. 146). No caso de Cézanne, segundo Merleau-Ponty (1945/1980, p. 119): “Tratava-se, esquecida toda a ciência, de recuperar por meio destas ciências a constituição da paisagem como organismo nascente”. Para tanto, seria necessário ligar todas as vistas parciais, reconstituindo a totalidade original da experiência da paisagem. Cézanne explicava que a paisagem não deveria ter seus limites nem muito alto nem muito baixo, 87 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. mas “trazida viva numa rede que nada deixa passar”. “A paisagem – dizia Cézanne – se pensa em mim e sou sua consciência” (citado em Merleau-Ponty, 1980, p. 119). O artista pinta porque o mundo gravou nele as cifras do visível, concluiria Merleau-Ponty (1964, p. 28): “É a própria montanha que, lá de longe, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar”. A paisagem é para o artista um “acontecimento”, como definiu Lyotard (2000, p. 36), como se o monte Santa Vitória estivesse se jogando contra Cézanne, “dando-lhes golpes com matéria cromática”, aos quais o pintor responde com toques de tinta. O contato da carne do pintor e da carne do mundo indica “o caminho singular por onde se explora aqui uma nuvem de pensamento cujo nome é monte Sainte-Victoire”. Desta feita, na apreensão merleau-pontyana de Cézanne, a pintura não é evocação de valores táteis (como queria Berenson) mas, inversamente, ela “dá existência visível àquilo que a visão profana acredita invisível” (Merleau-Ponty, 1964, p. 27). Cézanne havia dito a Émile Bernard: “A natureza e a arte não são diferentes”. A fenomenologia e a imaginação da natureza O leitor destas páginas talvez tenha vislumbrado onde se pretende chegar com a composição desta narrativa. Na relação do artista com a natureza, mediada pela imagem pictórica, enfatizou-se os trâmites da imaginação desde a morfologia da natureza em Goethe, a observação das nuvens em Constable, a consciência da montanha em Cézanne, para atingir a concepção estética de Merleau-Ponty. Nas curvas desse caminho, encontram-se indícios de um procedimento fenomenológico antes da fenomenologia, evidentemente, evitando qualquer anacronismo nesta afirmação. Não é o objetivo aqui estudar exaustivamente cada um desses artistas, tampouco avançar na profundidade do pensamento filosófico, mas apenas retomar algumas conexões que me parecem fundamentais para uma abordagem empírica fenomenológica, sobretudo em correspondência à experiência da pintura. Tais procedimentos penetraram no pensamento fenomenológico e ressaltam correntes contemporâneas fundadas no engajamento. A fundação da filosofia fenomenológica situa-se no desenvolvimento das proposições de Edmund Husserl (1859-1938). Para grande parte dos autores, a origem desse movimento estaria no livro intitulado Investigações lógicas, de 1901 88 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. (Spiegelberg, 1971; Moreira, 2002; Bello, 2006). Spiegelberg fala em “movimento fenomenológico” devido ao fato de não se tratar de uma filosofia acabada em seu corpo teórico, mas de um mover-se (moving). A partir de um ponto comum, correntes desdobram-se em ritmos diferentes e direções diversas. Lyotard (1986, p. 9 e 12) diria que a fenomenologia “germinou durante a crise do subjetivismo e irracionalismo (fim do século XIX, princípios do XX)”. Seu significado é histórico e não determinável de uma vez por todas, porque é sempre inacabado e seu destino ramificado de Heidegger a Fink, de Merleau-Ponty a Ricoeur, de Pos ou Thévenaz e Lévinas, de Edith Stein a Ales Bello, de Scheler e Marcel, Vicente Ferreira da Silva e Washington Vita. Não obstante a diversidade, as correntes pertinentes ao movimento são aquelas que mantêm a tarefa da fenomenologia, qual seja: “a investigação descritiva dos fenômenos, objetiva e subjetivamente, em suas mais complexas extensão e profundidade” (Spiegelberg, 1971, p. 2). Obrigatoriamente, essa investigação deverá seguir um método intuitivo, no sentido de estruturas essenciais, a partir de uma suspensão dos julgamentos (a redução). Em um escrito de 1927, Husserl define a tarefa da “psicologia fenomenológica” da seguinte maneira: “o exame sistemático dos tipos e das formas da experiência intencional e a redução de suas estruturas às ‘intenções’ elementares, aquilo que nos deve ensinar a natureza do psíquico e nos fazer compreender o ser de nossa alma.” (Husserl, 1957, p. 345) A noção de intencionalidade remete diretamente a Franz Brentano, na origem imediata do movimento fenomenológico. Porém, trabalha com o conceito num sentido revisto, a partir da qual se esboça o método husserliano em três procedimentos básicos: (1) realizar a époché, cuja finalidade é colocar em suspensão todos os julgamentos; (2) descrever as múltiplas aparições do fenômeno em seus estados objetivos e subjetivos; (3) proceder à redução do fenômeno visando sua essência ou eidos (redução eidética). Na atitude natural, somos colocados no mundo como existente, ao passo que ao praticar a suspensão dos julgamentos assume-se a atitude fenomenológica, modificando-se a relação com o mundo. A redução fenomenológica, sintetizou Lyotard (1986, p. 55), “não significa de modo algum interrupção deste entrelaçamento, mas apenas pôr fora de circuito a alienação, por meio da qual me apreendo mundano e não transcendental”. Com a retomada da referência ao método de observação de Cosntable, indica-se uma forma de conhecimento sensível muito distante dos quadros do pensamento fenomenológico. Não obstante, sua retomada por estudiosos contemporâneos evidencia 89 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. a contribuição que aqueles procedimentos do artista diante da natureza propiciam uma operação mental capaz de trazer para a imaginação elementos fundamentais da dinâmica natural que o pensamento racional deixaria escapar. John Thornes (2008) estuda “estética ambiental” recorrendo aos artistas que procederam conforme o engajamento com o mundo natural, sejam as obras de arte representacionais, não-representacionais ou performáticas, desde John Constable e Paul Cézanne até Richard Long e Andy Goldsworthy. Nas palavras de Thornes (2008, p. 401), um projeto artístico “é um combinação potente do ambiente físico natural e a imaginação do artista, ao final das contas, do espectador”. No desenvolvimento recente das ciências sociais nos estudos ambientais, a perspectiva fenomenológica possibilita uma abordagem crítica porque engaja tanto o artista quanto o observador na natureza: Não obstante, a arte tradicional da paisagem busque capturar ou representar nosso olhar sobre objetos externos e distantes, os quais reconhecemos ter um valor estético, a arte ambiental e a estética ambiental envolvem todos os nossos sentidos e sentimentos. (Thornes, 2008, p. 393) Os conceitos fenomenológicos recorrem ao trabalho dos artistas para desenvolver a reflexão sobre o engajamento vital na sociedade e na natureza, intensificando os debates promovidos por autores como Tim Ingold e Arnold Berleant, a partir de bases fenomenológicas tais como Merleau-Ponty e Heidegger, sobre um conhecimento integral da experiência humana. Como afirmou Berleant (1992), a apreciação do ambiente não se limita ao olhar, mas ao movimento vivo de todo o corpo, à participação do observador em uma estética do engajamento. Mais direto é o caminho que nos conduziu a Goethe. A aproximação da fenomenologia de Husserl e a correspondência de autores do movimento fenomenológico com o método de conhecimento goethiano não é colocada em dúvida na história do movimento fenomenológico, não obstante, sem lhe reconhecer um lugar fundamental (Spiegelberg, 1971, p. 8). Goethe foi situado na origem da fenomenologia por autores como Hedgwig Conrad-Martius e Ludwig Binswanger. Dentre aqueles nos quais a presença do pensamento de Goethe é fundamental está Fritz Heinemann, notadamente em um artigo intitulado “Goethe’s phenomenological method” (1934). Mais recentemente, Eva-Maria Simms (2005) apontou as relações entre o pensamento de Husserl e de Goethe. 90 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Contudo, a abordagem morfológica mantém um movimento de aproximação e afastamento com o movimento fenomenológico, a despeito das correspondências diretas entre Goethe e Husserl. Desde a organização dos escritos científicos de Goethe realizada por Rudolf Steiner, até as últimas décadas do século passado, veio a lume uma diversidade de pesquisas em instituições da Europa e dos Estados Unidos (e.g. Seamon and Zajonc, 1998; Amrine et al., 1987), bem como em traduções dos escritos científicos para o inglês (Miller, 1988), para o português (Molder, 1993) e para o espanhol (Meca, 2007). Tais pesquisas têm demonstrado muito interesse nas áreas naturais e ambientais, como se pode observar nas duas coletâneas citadas, bem como em Bockemuehl (1992) e no volume especial de Janus Head (vol. 8, n. 1, 2005) dedicado ao “Delicado empirismo de Goethe”, sob edição de Bill Bywater & Craig Holdrege. No Brasil, foram lançadas proposições no âmbito da geografia e da agronomia, notável nos textos recolhidos por Andreas Attila Miklós (2001), nos quais a paisagem e a trama social são compreendidas em uma mesma unilateralidade processual constituída por um processo histórico dissociativo. No campo da investigação social, Allan Kaplan (2005) procura entrelaçar o método de Goethe com a psicologia no campo da percepção entre a observação empírica e a estética no estudo das organizações. A compreensão por meio da qual o mais importante é aceitar que o fenômeno contém sua própria teoria e que não se deveria buscar seu entendimento fora dele, como Goethe tenta fazer diante do azul do céu, dispõe o processo do conhecimento em íntima relação sujeito-objeto, em uma perspectiva crítica no início do século XIX. Nesse âmbito, está-se trabalhando no campo de “visões fenomenológicas”, para retomar as palavras de Moritz Geiger (1958), e não estritamente do movimento fenomenológico husserliano. Trata-se de uma forma de conhecimento que consista em um conjunto de práticas, sinteticamente distribuídas em três características básicas: (1) deter-se e investigar os fenômenos; (2) tais fenômenos não são apreendidos em sua condição individual ou acidental, mas em seus “momentos essenciais”; (3) a essência não deve ser apreendida por dedução, nem por indução, senão por intuição. A esses procedimentos, Geiger (1958, p. 95) acrescenta a relevância da imaginação do pesquisador em sua potencialidade de visualizar as diversas facetas do fenômeno e projetar suas formas no desenvolvimento histórico. Através destes pontos, Geiger formulou a primeira estética fenomenológica. 91 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A vinculação aos fenômenos pode ser encontrada em autores que reviram a fenomenologia pura de Husserl, tais como Heidegger e Merleau-Ponty, conforme considera o fenomenólogo David Seamon (1998, p. 9): “fenomenólogos existenciais podem encontrar muitos pontos metodológicos similares com a ciência goethiana”. Mais longe, poderemos encontrar referências fundamentais de Goethe na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Bortoft (1986, p. 28) conduziu a leitura de Goethe a um debate acerca de dois modos de pensar, analítico e holístico, a partir do qual a compreensão dos fenômenos e a concepção de unidade dialogam com a revisão husserliana da crítica ao dualismo cartesiano para, ao final, relacionar com o conceito “pertencimento” de Heidegger, uma unidade sem unificação. Com Merleau-Ponty (1945/1999, p. 12), as essências devem trazer consigo todas as relações vivas da experiência, “assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as algas palpitantes”. Não há separação entre essência e existência, pois se trata “do núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e de expressão”. Há um duplo movimento de retomada e fundamentação histórica do pensamento fenomenológico por meio das práticas artísticas. Os filósofos encontram na arte passada uma forma de conduzir o pensamento contemporâneo, ao mesmo tempo, localiza-se a própria arte como fundamento de correntes filosóficas. Por meio desse movimento, Cézanne constituiu-se na principal referência da fenomenologia francesa. Forrest Williams (1954) percorreu essa indicação ao explorar a conexão entre esse artista e o desenvolvimento filosófico, especialmente notável no plano histórico, na reação ao moderno subjetivismo. Desta feita, para além dos autores franceses, haveria correspondências indiretas nas práticas artísticas e nos debates epistemológicos, donde se depreende a comunicação entre a esfera da visualidade e a esfera do conhecimento. As correspondências sugeridas por Williams (1954, p. 481) se dão em três níveis conjugados: na origem comum, o subjetivismo da noção de barroco; no método comum, na observação da própria subjetividade nos dados exteriores; na comum realização, evitando o subjetivismo por meio da descoberta do real como a essência ou estrutura de uma aparência dada. A pintura de Cézanne avança das aparências para as coisas, distingue-se do impressionismo porque não aceita a arbitrariedade impressa na retina, ele procura olhar mais próximo e reflexivamente, distinguindo-se, por exemplo, de seu mentor Camille Pissarro; não descobre impressões, não se detém nas aparências do fenomenalismo, mas visa ao objeto aparecendo (p. 486). Concluindo, (1) na arte de 92 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Cézanne há uma redescoberta do real nas aparências, em resposta ao subjetivismo do século XIX e à noção de barroco; (2) esse avanço sobre a noção de barroco, o impressionismo e o expressionismo em arte corresponde à superação da fenomenologia husserliana sobre o subjetivismo da filosofia alemã daquele século. Conforme a Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 190), a vida consciente e perceptiva é “sustentada por um ‘arco intencional’ que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica...”. A compreensão de arco intencional afirma uma produção de significados na origem do ato de perceber. Como notou Fernande Saint-Martin (1992), considera-se o espaço não apenas no nível do mundo físico, mas como constitutivo da própria vida. A noção de intencionalidade fundamenta a própria encarnação como experiência originária, da qual deriva nossa constituição corporal, antes mesmo da gênese do corpo objetivo e nosso engajamento no mundo natural e social. As implicações desta filosofia da percepção em diálogo com a pintura de Cézanne são bem conhecidas e há muito debatidas entre de pesquisadores de diversas áreas. Dessa aproximação, resulta a afirmação de João Frayze-Pereira (2004, p. 24) sobre o pensamento de Merleau-Ponty ser “estético de ponta a ponta”: porque é elaborado “por uma reflexão sobre a experiência originária do sensível”, por meio da qual encontrou na arte moderna a deiscência do ser. Nas páginas de O olho e o espírito, lê-se: “Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê: aproxima-se dele somente pelo olhar, abre-se sobre o mundo” (Merleau-Ponty, 1964, p. 17). Esta concepção estética situa-se em um conjunto de reflexões históricas, as quais podem ser relidas em muitos escritos do filósofo, particularmente na série de conferências pronunciadas na Radio France, em 1948. Cézanne está no centro daquilo que historiadores franceses chamariam de uma “viragem mental” à qual Merleau-Ponty percebe como a passagem do pensamento clássico para o pensamento moderno, notável na distinção entre o espaço homogêneo, das coisas identificáveis em três dimensões, e o espaço heterogêneo, em uma estrutura não rígida na qual os objetos perdem a identidade absoluta com eles mesmos, “onde forma e conteúdo estão como que baralhados e mesclados” (Merleau-Ponty, 1948/2004, p. 11). Cézanne não seguiu os cânones clássicos, na concepção da perspectiva geométrica, desenhando primeiro o esquema espacial do objeto para depois preenchê-lo com cores. Ele desenhava ao pintar: 93 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. nem no mundo percebido, nem no quadro que o exprime, o contorno e a forma do objeto são estritamente distintos da cessação ou da alteração das cores, da modulação colorida que deve conter tudo... [...] Cézanne quer gerar o contorno e a forma dos objetos como a natureza os gera diante de nossos olhos: pelo arranjo de cores. (p. 12). Na pintura clássica, o espectador não participa, não está engajado na natureza. Para o filósofo, nessa paisagem pictórica o olhar desliza sem asperezas, ao passo que na pintura moderna, com a retomada da percepção na experiência vivida, observa-se “o nascimento da paisagem diante de nossos olhos”: o sentimento de um mundo em que jamais dois objetos são vistos simultaneamente, em que entre as partes do espaço, sempre se interpõe o tempo necessário para levar nosso olhar de uma a outra, e que o ser portanto não está determinado, mas aparece ou transparece através do tempo. (Merleau-Ponty, 1948/2004, p. 15) Para concluir, das trilhas que percorremos, uma vereda liga o filósofo francês Merleau-Ponty e o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe. Naquele programa de rádio, o filósofo afirmou que quando se está situado no pensamento clássico, considerando as diferentes qualidades dos objetos, a unidade da coisa percebida permanece misteriosa. Pois, ao fragmentar-se, o mundo entre os diferentes sentidos, a visão, a audição, o olfato, o tato, a gustação, entre outros, reduzidos a dados objetivos transmitidos ao cérebro em suas especialidades e de modo isolado, não se compreende a vital correspondência dos sentidos. Para Merleau-Ponty, Goethe propusera a compreensão de uma totalidade em um processo de significação afetiva, colocando em correspondência todos os sentidos. Nas palavras de Merleau-Ponty (2004, p. 20): Portanto, desde que se torne a situar a qualidade na experiência humana que lhe confere uma certa significação emocional, começa a tornar-se compreensível sua relação com outras qualidades que não têm nada em comum com ela. A cor de um tapete ou de uma parede configuram uma atmosfera moral, sons podem equivaler a temperaturas e assim por diante. Concluirei com as palavras do filósofo francês: “A unidade da coisa não se encontra por trás de cada uma de suas qualidades: ela é reafirmada por cada uma delas, cada uma delas é a coisa inteira. Cézanne dizia que devemos poder pintar o cheiro das árvores”. 94 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. PARTE 2. IMAGEM E VIDA SOCIAL 6. Comunidades de artistas: uma abordagem psicossocial Circundando um fenômeno Algumas cidades europeias recebem contemporaneamente a designação de “cidades de arte”, “cidades de artista”, pays d’artiste. Esses rótulos podem referir localidades formadas a partir de remanescentes arquitetônicos e artísticos de relevância notável para a história e para o turismo, bem como indicar lugares que se tornaram polos de atração de artistas, em muitos casos estabelecendo-se como residentes e formando “colônias” ou “comunidades” em que o fazer artístico representa o núcleo central da coletividade; daí poderem ser designadas também de “comunidades de artistas”. A terminologia requer alguns cuidados. Isabelle Lajarte (1999, p. 68) considera que um village de peintres (povoado de pintores) constitui-se por artistas que se instalam, vivem, trabalham, pintam sem ter necessariamente laços estreitos entre si, na forma de agrupamentos. Por outro lado, uma colônia de artistas supõe uma coesão maior entre eles, capaz de originar uma comunidade artística, muitas vezes em um ideal estético comum. De modo geral, estas antecedem àquele, o movimento comunitário cria condições para a atração de outros artistas fazendo, paradoxalmente, desaparecer a colônia inicial. Esta situação foi exemplificada pela socióloga através da colônia de Worpswede, na Alemanha. A circunscrição geográfica também não é precisa, podendo ocupar uma região, cidades vizinhas etc. O nome desses grupos de artistas muitas vezes ficou associado a uma cidade ou localidade, embora tenham se deslocado e ocupado lugares diferentes. Na França, por exemplo, a Bretanha conheceu diversos pontos de instalação de artistas, por exemplo, Pouldu e Concarneau. Na costa norte alemã, os artistas visitaram quase todas as vilas de pescadores próximas às ilhas de Sylt e Rugen (Lajarte, 1999, p. 68). 95 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Além de espaços sociais de trabalho e comercialização para artistas, as paisagens e caminhos percorridos em suas viagens, foram reconhecidos pela dimensão estética. Montanhas ou vales inscritos na categoria do “belo” ou do “pitoresco”. Vilas nessas condições, não muito distantes dos centros urbanos, eram por vezes escolhidas como destinos para professores e alunos de importantes escolas de arte praticarem ao ar livre. No início, podiam ser apenas localidades de veraneio de artistas ou mesmo residência daqueles que evitaram os centros produtores de arte. Observando a história da arte, sobretudo dos dois últimos séculos, nota-se o movimento de artistas franceses Jean-François Millet e Camille Corot fomentando uma forma de perceber muito particular sobre Barbizon, nas viagens de Paul Gauguin, Émile Bernard e Paul Sérusier, entre outros artistas da École de Pont-Aven, a formação de um olhar sobre a Bretanha. Os deslocamentos de Van Gogh para Auvers-sur-Oise e de Monet para Giverny também criaram muitas imagens desses lugares. Na Alemanha, tornou-se conhecida a cidade de Worpswede, com a comunidade de Fritz Mackensen e Paula Modersohn Becker. É curioso notar que muitos desses lugares foram “descobertos” por artistas pouco conhecidos, e mesmo vindos de outros países, como são os casos de Barbizon e Pont-Aven, inicialmente frequentados por norte-americanos e noruegueses (Lajarte, 1999, p. 73). Embora reconhecidas em grande parte pela atividade de pintores, desde o século XIX, essas localidades receberam também outros tipos de artistas, escritores, poetas, músicos.9 Em todos esses casos, as viagens dos artistas constituíram-se como o início de um processo de conversão simbólica dos lugares em polos turísticos e, sobretudo, o estímulo para a formação de um mundo artístico nessas localidades (Orton e Pollock, 1980; Jacobs, 1985; Herbert, 1994; Lajarte, 1995 e 1999; Perry, 1998). No Brasil, esse processo é conhecido em Ouro Preto (MG), com as pinturas de Tarsila e de Guignard, bem como os escritos de Manuel Bandeira, Cecilia Meireles e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Depois, com uma série de artistas que para lá migraram ou com aqueles originários da própria cidade estabeleceu-se profícuo campo de trabalho (Durand, 1989; Andriolo, 2008). No mesmo período, Paraty (RJ) recebeu também seus artistas, entre eles os pintores Djanira e Takaoka. 9 Lajarte (1999, p. 72) cita um grupo na Suíça chamado Monteverita, onde, nas primeiras décadas do século XX, além de artistas e escritores, músicos e arquitetos, encontraram-se também outros intelectuais, religiosos e filósofos de origem socialista, anarquista e teosófica, que desenvolveram práticas vegetarianas. Tem-se notícias de excursões em Moritzburg, nas quais o culto ao nudismo aparece associado a práticas artísticas, em alguns casos vinculadas ao vegetarianismo e estações de cura (Perry, 1998, p. 78). 96 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Não obstante o interesse dos pesquisadores da psicologia para as indagações pertinentes às cidades turísticas (e.g. Mannel e Iso-Ahola, 1987; Potter e Coshall, 1988; Ross, 2001; Pearce e Striger, 2001; Pearce, 2005), as chamadas “cidades de arte” permanecem pouco estudadas. As pesquisas têm sido realizadas por outras disciplinas (e.g. Cohen, 1993; Evans-Pritchard, 1993; Graburn, 1994; Lajarte, 1995). A metodologia empregada pelos estudiosos do turismo tem se aprimorado nas últimas décadas, mas ainda lança questões sobre as imagens. Ou as imagens são apenas referidas junto ao repertório de atrativos ou estão submetidas ao marketing turístico. Permanece em aberto a compreensão dos significados propriamente psicossociais do fenômeno, sobretudo na análise do processo histórico de constituição do imaginário conforme a psicologia política das imagens. Os artistas estão “ligados a uma só e mesma rede do Ser”, dizia Merleau-Ponty (1964, p. 89). Eles compartilham, de modo inconsciente, uma estrutura social que se desenvolve no tempo histórico: “o verdadeiro pintor transforma, sem o saber, os dados de todos os outros”. Essas localidades ligam-se à história da paisagem, bem como à vida social, em discursos e imagens. As narrativas e as imagens imbricam-se no processo psicossocial de constituição simbólica da cidade e da formação da percepção de moradores e turistas. Os pintores têm seu olhar no cruzamento de três fontes: primeiro, o ambiente, natural, topográfico e arquitetônico; segundo, a pintura de seus mestres e de outros pintores; por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado histórico. Comunidades de artistas: breve história Os românticos estabeleceram uma importante relação com os espaços, colocando a viagem e os passeios entre os procedimentos necessários para a formação do artista. Das paisagens de Caspar Friedrich ao chamado “primitivismo” dos artistas modernos, contra o cientificismo e a sociedade industrial, buscou-se outros lugares. O fenômeno dos artistas viajantes na modernidade, distinto dos sábios cientistas do século XVIII, conduziu a destinos variados, tal como Émile Bernard no Egito, Nolde na Nova Guiné, o norte da África propugnado pelo Die Brücke e Kandinsky, até os contemporâneos como Jean Dubuffet no Saara da Argélia. Os artistas se referiam à arte marginal como voie de salut (caminho da salvação), em categorias associadas ao arcaísmo, ao primitivo, ao exotismo, à infância ou à loucura (Peiry, 1997, p. 62). A alteridade da arte conduziu os artistas a lugares distantes, como 97 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Gauguin na Oceania, ou a lugares escondidos, como os manicômios visitados por Max Ernst; Lasar Segall, além de visitar o sanatório de Dresden, veio instalar-se no Brasil. Frayze-Pereira (2006, p. 193) sintetizou claramente esse processo: “A poética da ação transformar-se-á em prática da evasão. Isto é, ao abandonar a sua situação de classe e ao não encontrar outra para se enraizar, o artista de vanguarda torna-se um expatriado.” Para esse pensador, o núcleo da reflexão é a trajetória radical da experiência artística moderna. Da parte desta pesquisa, trata-se de investigar como experiências dessa natureza demarcaram lugares, roteiros e paisagens, que permaneceram na duração histórica, nas formas de perceber, nas viagens que continuam a orientar, na constituição de comunidades. Em 1855, os irmãos Goncourt visitaram Barbizon, na França, originando um grupo cujo trabalho pictórico sobre a paisagem perdura na localidade até os dias atuais. Naquele momento, o grupo de artistas foi depreciado pela crítica erudita, com insinuações acerca de suas barbas hirsutas por serem suspeitos de revolucionários. Desenvolviam seus trabalhos de maneira independente, sem adequar-se às regras da Academia. Dentre eles estavam Théodore Rousseau, Jean-François Millet, CharlesFrançois Daubigny e Jean-Baptiste Corot. A pintura de paisagem no século XIX, para alguns de seus praticantes, assume um significado político de crítica à recente industrialização das cidades. Diferentemente da paisagem romântica, dotada de uma espiritualidade própria, num mundo por vezes imaginário, a paisagem surgida do realismo levou adiante uma concepção social cuja repercussão foi projetada sobre os espaços rurais e naturais. Conforme havia registrado Hauser (1995, p. 794), a paisagem romântica tem algo de mítico, enquanto aquelas dos pintores de Barbizon serão familiares; enquanto os bosques românticos são poéticos, o campo realista traz a imagem do mundo rural.10 A viagem tornara-se prática corrente, por exemplo, com Pissarro na Inglaterra ou Monet na Holanda, assim como os deslocamentos ao redor de Paris, sem perderem, no entanto, o contato com a capital, onde compravam tintas, faziam exposições e alguns mantinham ateliês. Os motivos para os passeios campestres são diversos: do menor custo para sobrevivência em relação aos grandes centros urbanos à busca das tradições rurais. Havia também aqueles que residiam em Paris e deslocavam-se no verão. Os trilhos da estrada de ferros demarcaram importantes rotas. 10 Por exemplo, em Os Lenhadores, de Millet (1850-1852, óleo sobre tela, 57 x 81 cm, Museu Victoria e Albert de Londres), tem-se a imagem do ambiente rústico vivido após deixar Paris. 98 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Desnecessário entrar em detalhes acerca dos refúgios impressionistas em torno de Paris, fazendo-se necessárias apenas algumas indicações, pois se trata de uma história bem conhecida. Camille Pissarro frequentou e estabeleceu-se em Pontoise, entre 1872 e 1884. Esse “sábio” atraiu uma colônia de jovens pintores, interessados nas práticas artísticas e nos ideais anarquistas. Claude Monet primeiro morou em Argenteuil, entre 1872 e 1878, depois plantou seu jardim em Giverny. Perto dali, o vilarejo de Auverssur-Oise, residência de campo do Dr. Gachet, recebeu a visita de inúmeros artistas, dentre os quais Vincent van Gogh, em um período no qual levou a pintura da paisagem aos limites da representação e quando pôs fim a sua vida. Eles trabalhavam em grupos, percorriam os campos, trocavam correspondências, formando uma rede de relações em finas ramificações que cobriram as paisagens da Île-de-France (Les impressionistes autour de Paris, 1993, p. 51). O que os unifica é o interesse compartilhado pela paisagem campestre e a prática da pintura ao ar livre, estar sur le motif, d’après nature. Retomando o estudo de Isabelle Lajarte (1995), os termos associados à pintura paisagística eram: o “pitoresco” da floresta de Fontainebleau; o “primitivo” da Bretanha; o aspecto “selvagem” dos rochedos do Vale Creuse; a “luz” do Midi; entre outros. Muitos desses termos tornaramse categorias propriamente estéticas para a percepção desses lugares. A ação política permeia essas práticas, através da qual se vive uma outra vida, de dedicação ao trabalho artístico, em contraposição ao tempo da vida burguesa, em resistência à mediocridade, como se lê no texto de Maria Helena Patto (2000,p. 45): Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas ideais políticas. Outra região francesa que se tornou famosa no roteiro dos pintores do século XIX foi a Bretanha, notadamente Pont-Aven. Conforme afirmou Paul Gauguin em carta a Émile Schuffenecker (fev. 1888): “Amo a Bretanha. Aqui encontro algo selvagem, primitivo. Quando meus tamancos ecoam nesse chão de granito, ouço a nota surda, abafada, potente que estou buscando na pintura.” (citado em Perry, 1998, p. 8) Para Humbert (1988), “Gauguin pesquisava sobre o plano plástico a pureza da origem do homem.” Instala-se em Pont-Aven, descobre uma profunda espiritualidade e arte populare, o calvário de Nizon, a estátua do Cristo crucificado na igreja de Tremelo, 99 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. imagens que forneceram o ponto de partida para a busca do “simbolismo primitivo” de sua existência, de Arles ao Taiti. Embora Gauguin tenha discutido suas ideais com Bernard, Serusier, Maurice Denis e todo o grupo dos Nabis, Humbert (1988, p. 14) acredita que ele foi dentre aqueles artistas o mais sensível ao simbolismo da arte popular bretã, além de influenciar-se bastante pelas esculturas em madeira e cerâmica, tamancos e bengalas. As palavras do pintor estão inscritas em um imaginário burguês urbano, compreendido nos moldes da vida pitoresca, tradicional e religiosa (Perry, 1998, p. 10). Há uma identificação histórica entre natureza e o outro da cultura, sendo a natureza frequentemente representada pela mulher. No bretonisme de Gauguin, as imagens da vida rural e religiosa trazem a figura feminina: “a noção de ‘primitivo’ como ‘outro’ da cultura ocidental às vezes carregava um conjunto de oposições de gênero, de Natureza ‘feminina’ contra Cultura [civilização] ‘masculina’” (p. 24). Note-se que nas representações bretãs da mulher elas estão tradicionalmente vestidas, enquanto as taitianas estarão nuas e até deitadas em sua cama. Não obstante, quando Gauguin esteve pela primeira vez na região, em 1886, diversos artistas a percorriam, inclusive ingleses e norte-americanos. A Bretanha está entre os primeiros locais de interesse turístico na França, aparecendo como destino de verão de muitos turistas e artistas. O fenômeno alia-se ao desenvolvimento dos transportes, estradas de ferro e renovação de caminhos tradicionais. Este evento foi analisado por Fred Orton e Griselda Pollock (1980), evidenciando o imbricar das práticas turísticas com as representações artísticas do bretonnisme, as quais ocultavam as transformações econômicas ocorridas na região e os rituais religiosos tornavam-se demonstrações turísticas. O sistema econômico que sustentava o lugar não era, como o descrito na mitologia sobre o bretão, um sistema de pequenas propriedades camponesas, mas uma agricultura altamente desenvolvida para a época (Rhodes, 1997, p. 25). A cultura tradicional bretã registrada pelos pintores de Pont-Aven data do fim do século XVIII, após a Revolução Francesa. Não sendo pois uma sobrevivência de tempos remotos, mas uma evolução do vestuário do século XIX, utilizado nas reuniões festivas, demonstrativo de classe social. Quanto às festas bretãs, pouco a pouco elas se tornavam espetáculos turísticos. “Nós temos a tendência de conceber o desconhecido à medida de nossas próprias experiências e crenças, os artistas como os turistas estavam mais suscetíveis a ‘descobrir’ a Bretanha de suas expectativas que de ver a região tal qual ela 100 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. era” (p. 26). Essa tendência aparece tanto nos pintores acadêmicos quanto nos vanguardistas que visitaram a região, o que estava em processo de transformação eram o estilo, a técnica e a forma de conceber a pintura. Deixar os centros urbanos foi também a inspiração de artistas alemães do final do século XIX, para trabalharem em comunidades rurais. O mito do primitivo associou-se um culto ao Volk, termo que designa o camponês nativo. São mais de dezoito agrupamentos artísticos nas aldeias alemãs, dentre as quais Worpswede, perto de Bremen, e Neu-Dachau, perto de Munique (Perry, 1998, p. 34; Rhodes, 1997, p. 32; Lajarte, 1999) No começo de 1890, um grupo de ex-alunos das academias de Düsseldorf e Munique estabeleceu-se em Worpswede. Esta aldeia, a cerca de 36 km de Bremen, era formada basicamente de camponeses, agricultores e cortadores de trufas. Os principais artistas fundadores da comunidade eram Fritz Mackensen, Otto Modersohn, Hans am Ende, Fritz Overbeck e Heinrich Vogeler. Rainer Maria Rilke dedicou uma monografia a essa comunidade em 1903 (Perry, 1998, p. 36). Pintavam, sobretudo, paisagens e temas camponeses. Também influenciados por Courbet e os pintores de Barbizon, foram notados pela crítica por sua originalidade e qualidades “primitivas”. Não obstante, na análise de Perry (1998, p. 36), o sentido alemão desta categoria divergia daquele que envolvia Gauguin: “muitos resenhadores contemporâneos viam esses artistas de Worspwede como neorromânticos, em busca de uma realização semirreligiosa através de sua arte”.11 Uma vez mais, encontram-se confluências da percepção do ambiente natural com as questões sociais: nas paragens alemãs o Volk correspondia à terra. Ao se enunciar uma comunidade, porém, não se deverá supor uma homogeneidade de pensamento entre os diversos artistas. Seguindo a pesquisa de Gill Perry (1998), ter-se-iam as imagens de Mackensen como metáfora do “enraizamento”, Heinrich Vogeler defendia ideais de artes e ofícios de William Morris e John Ruskin idealizando as artes num imaginário medieval (conforme o pré-rafaelismo britânico), desdobrando ideias marxistas do socialismo utópico. Enquanto muitos contemporâneos de Mackensen julgavam que seu “realismo” mostrava os camponeses como eles eram realmente (ocultando, portanto os significados ideológicos), o naturalismo de 11 A primeira exposição do grupo ocorreu em 1895, na Bremen Kunsthall, com obras de Mackensen, Modersohn. Nota-se a influência de Courbet cujas pinturas foram expostas em 1869 na Glaspalast de Munique, numa controvertida mostra. As imagens opunham-se à narrativa do industrialismo da era guilhermina, feita p. ex. por Fritz von Uhde e Wilhelm Leibl (Perry, 1998, p.. 37). 101 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Vogeler recorria a outro nível visionário como um meio de perceber uma verdade mais “primitiva”’. Paula Modersohn-Becker morou em Paris, influenciou-se por Gauguin, elaborou um espaço plástico em busca de maior simplicidade formal, mas permaneceu ligada ao contexto intelectual alemão: Suas preferências iconográficas, em particular a repetição dos temas das mulheres camponesas, revelam a sólida influência daquelas ideias neo-românticas que eram moeda corrente na comunidade de Worspwede. (Perry, 1998, p. 43) Além de Worpswede, Kronberg, Dachau e Ahrenshoop tornaram-se lugares de estada permanente de artistas na Alemanha. Dachau foi, ao lado de Worpswede, a mais importante colônia. Nas últimas décadas do século XIX, a localidade situada nos Alpes bávaros recebeu muitos artistas de Munique, bem como franceses e de outras nacionalidades. Deixou de acolher artistas depois da Segunda Guerra Mundial. Kronberg era lugar de passeio, próximo a Frankfurt, quando foi ocupada por pintores em 1857. Abrigou artistas que haviam estado em Barbizon e Fontainebleau e mantiveram um contato intenso com Courbet. A cidade é ainda hoje residência de artistas, mas sem a notoriedade que atingiu no século XIX (Lajarte, 1999, p. 79). A socióloga Isabelle Lajarte (1999) considerou a França e a Alemanha como os países onde se formou o maior número de comunidades de artistas. Outros países também tiveram as suas, dentre os quais a Venezuela, onde o pintor venezuelano Armando Reverón (1889-1954), nascido em Caracas, procurou, depois de estadia na Espanha, um recanto do seu país para pintar, como Gauguin, de modo “primitivo”. O local chamava-se Macuco. Apenas para indicar algumas localidades, teríamos: Cockburnpath (na Escócia); Staithes e Walserswick (na costa leste da Grã-Bretanha); Newlyn e St. Yves formadas por artistas vindos de Pont-Aven e Concarneau (na Cornualha); Knocke, com a colônia de Tervueren (Bélgica); Nagybanya (Hungria); Skagen, a mais renomada do norte da Europa (Dinamarca); Abramtsevo e Mamontov (Rússia); e Magnolia (EUA).12 Significados do exílio dos modernistas 1212 Para uma relação mais completa de comunidades de arte no hemisfério norte, ver Lajarte (1999) e o estudo detalhado de Jacobs (1985). 102 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. O “ir embora” era mais um pressuposto do artista de vanguarda, buscando os lugares que reconhecia como as “margens da civilização”. Esse movimento foi observado também entre os vanguardistas russos, escandinavos, ingleses e alemães, notável mesmo nos EUA, Canadá e Austrália, conforme documentou Michael Jacob em seu The Good and Simple Life (1985). As comunidades de artistas estabelecidas no meio rural carregavam consigo o mito da pureza do camponês e a insatisfação dos novos artistas com a formação acadêmica e o advento da pintura en plein air, seguindo o exemplo da comunidade francesa de Barbizon (Perry, 1998, p. 8). Tratava-se de um movimento histórico em oposição ao individualismo romântico, quando intenta-se romper com o isolamento, como propõe Hauser (1995, p. 796), para assim praticar o que Gustave Courbet propugnava: faire de l’art vivant – fazer uma arte viva –, ou o lema de Daumier: Il faut être de son temps – há que ser de seu tempo. Para Rhodes (1997, p. 24), o pensamento do século XIX defendia que na Idade Média, na Europa do Norte, a arte não era orientada por categorias da “grande arte” e da “arte menor”. Muitos intelectuais da vanguarda, no início do século XX, concebiam a arte popular em uma importância tanto como arte quanto como símbolo do caráter racial do passado de uma região, o que será apropriado pelo fascismo dos anos 1930. Artistas como Denis, Mackensen e Nolde acentuavam a superioridade física, moral e religiosa das populações camponesas, às quais se opunha o estereótipo do cidadão fraco e decadente. Na poesia expressionista, como Der Gott der Stadt (O Deus da cidade, 1912), de Georg Heym, vê-se a demonização da cidade. Por outro lado, é necessário notar que outros grupos de artistas desse momento acreditavam nos valores do cosmopolitismo e no darwinismo social. A idade de ouro das colônias de artistas vai da metade do século XIX até o início do século XX, como registrou Lajarte (1999, p. 74), e corresponde ao período de desenvolvimento da pintura de paisagem ao ar livre. A partir da primeira década do século XX se desfez o laço que unia aqueles artistas, notável no plano da organização social do campo artístico e no declínio do gênero paisagístico pictórico. No entanto, em algumas localidades, a dispersão dos artistas “fundadores” deu lugar a novas levas, sobretudo nas localidades tornadas turísticas. Comunidades de artistas no Brasil 103 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Não se desenvolveram no Brasil colônias de artistas tal como as conhecidas na Europa do século XIX. As localidades aqui conhecidas caracterizam-se sobretudo como agrupamentos em algumas cidades turísticas, particularmente nas chamadas “cidades históricas”. Durante o século XX, pode-se notar a constituição de grupos artísticos nas grandes cidades instilando organizações que trabalham sobre sítios específicos e conforme técnicas compartilhadas. Muitos pintores percorreram o país em viagens, indicando paisagens belas e pitorescas, recantos importantes à frequentação dos artistas. Entre as décadas de 1960 e 1970, algumas localidades abrigaram comunidades nas quais a prática artística era comum, mas não se constituíram como núcleos formados em torno dessa atividade. O marco para a história das “cidades coloniais” como objeto estético e lugar de interesse para artistas foi situado por Aracy Amaral (1972, p.35) na tomada de posição de Oswald de Andrade, em 1915. De passado pobre e desprezível, as imagens da cidade colonial passam a ser construídas com brilho desde os esboços de Tarsila, na famosa viagem de 1924, até as imagens fluidas de Guignard. Os pintores que percorreram o país tinham o olhar no cruzamento de pelos menos três fontes: primeiro, o ambiente arquitetônico e topográfico; segundo, as imagens de seus mestres e de outros pintores; por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado nacional. A organização do turismo para Ouro Preto demonstra que as representações sobre a cidade e a arte colonial mineira vinham atingindo parcela considerável da população, principalmente nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. Na metade do século XX, o número de turistas era ainda incipiente, formado principalmente por curiosos e estudiosos dispostos a enfrentar estradas esburacadas e empecilhos de toda sorte. Como professor, Guignard conduziu diversas vezes seus alunos à antiga capital de Minas, usando-a como objeto perceptível e cognoscível para os alunos. Dentre os que retrataram Ouro Preto, por exemplo, encontram-se Neli Frade e Wilde Lacerda. A primeira participou dos trabalhos de Di Cavalcanti para o Fórum da Rua Goiás, em Belo Horizonte, e o segundo, dissidente da Escola Guignard, participou do corpo inicial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1957. Com o apoio da prefeitura municipal, diversas iniciativas e festivais demarcaram Ouro Preto, para além de “cidade histórica”, como “cidade de arte”. Breve menção à cidade de Tiradentes é importante pois, como Ouro Preto, a antiga vila beneficiou-se do interesse estético pelo passado colonial, resultando na conversão de muitas moradias originárias do século XVIII em casas de veraneio para 104 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. turistas de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Esse processo propiciou condições locais de comercialização de artes e antiguidades, bem como a instalação de cerca de meia dúzia de ateliês de “pintura erudita”, como caracterizou Américo Pellegrini Filho (2000), aos quais acrescentou os trabalhos de Zé Damas e de Isaías e irmão como representantes da “pintura popular”. O primeiro pinta telas, cabaças e pequenas pedras, em cores primárias, onde esboça cenas da paisagem local. O segundo, em oficina familiar, pinta – sobretudo motivos florais – em gamelas, galões de leite e potes de barro. Também de extração popular é o artesanato em barro de Tião Paineira. Na vila do Bichinho, entre Tiradentes e Prados, o artista plástico paulista Antônio Carlos Bech (o Toti) e sua irmã Sonia Bech Vitalino criaram a Oficina de Agosto, em 1991, na qual procuraram desenvolver trabalho de artesanato coordenado com moradores da comunidade. Em 1945 surgiram as primeiras iniciativas de preservação dos remanescentes históricos com a elevação de Paraty à condição de Monumento Histórico Estadual do Rio de Janeiro. Depois, em 1958, ela se torna Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. E, por fim, em 1966, Monumento Histórico Nacional. Na década de 1970, com a convergência da exploração mercantil do turismo e das questões ecológicas e preservacionistas dos ecossistemas no Brasil, “O território acabou, bem ou mal, controlado por uma série de instrumentos legais e por uma visão de desenvolvimento alternativo de uma elite cultural – notadamente artistas – que questionava o modo de vida urbano das metrópoles” (Silva, 2004, p. 108). Imbuída de um olhar para o exótico e para a atividade turística local, conforme Maria Silvia Lanci Silva (2004), essa elite promoveu a manutenção de tradições populares, a discussão sobre o patrimônio arquitetônico e a recepção de viajantes. O cenário da antiga vila colonial, do alvo casario instalado entre o sopé das montanhas e a baía, transforma-se em ponto de vista privilegiado para artistas, cineastas e atores como Paulo Autran e Maria della Costa, entre outros. Algumas galerias abertas em Paraty estimularam o campo artístico local, dentre as quais a do senhor Ribeiro, dono de teatro em São Paulo que viveu em Paraty. Notadamente, tem-se a galeria de Abel de Oliveira, que contava com a parceria do artista plástico Marino Gouveia, em um salão no pavimento térreo de um casarão histórico. Nesse local, apresentavam-se artistas de outras localidades, ao mesmo tempo em que se fomentava a exposição de produções locais. A cidade de Recife, capital de Pernambuco, reunia os mais famosos artistas daquele estado, como registrou Gilberto Freyre (1934/198, p. 56), considerando o 105 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. estímulo dado pela luz do sol à pintura, na contemplação das praias, marinas, águas dos rios. Há poucos quilômetros dali, Olinda recebeu o estímulo necessário para manter o seu casario, o calçamento das ladeiras, a imponente arquitetura religiosa, tornando-se ambiente propício para o trabalho de artistas. No ano de 1982, a cidade abrigava 56 artistas e 25 galerias, quando seu prefeito sugeriu que “Olinda estivesse para Recife assim como Montmartre para Paris.” (Durand, 1989, p. 97). Atualmente, as imagens de arte encontradas à venda nas lojas e ateliês de Olinda são muito variadas. Porém, autores de apuro técnico e naturalismo são recorrentes em cenas do casario, vida urbana, tipos sociais e também imagens naïves. Síntese de significados das comunidades do Brasil Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das “cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua vez, os poderes públicos locais apropriaram-se da função social das imagens de arte (Andriolo, 2008). Para além das telas famosas de Guignard e Djanira, outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades turísticas sediadas nas antigas vilas do século XVIII. Além da relação com o olhar do turista, os pintores instigam questões sobre a paisagem. Carlos Bracher, atualmente em atividade na antiga capital de Minas, esteve lá pela primeira vez em 1964 e em fevereiro de 1971 nela fixou residência. Diversas pinturas suas transformam as cidades em imagens de arte, as quais podem ser vistas em série no livro de João Adolfo Hansen (1998). Carlos Scliar morou em Ouro Preto e, como seu colega, não se limitou à temática local, mas encontrou nessa cidade um ambiente importante de trabalho e também elementos para suas composições. Scliar manteve também ateliê em Cabo Frio, localidade praiana de destaque no litoral fluminense. Os agrupamentos de artistas formaram-se, sobretudo, nas cidades depositárias do acervo de arquitetura colonial reconhecido como patrimônio histórico do Brasil, correlacionando de modo particular a categoria estética do barroco, a paisagem urbana e natureza tropical. Neste ponto, diferem das congêneres europeias. Diferem também, na origem, na forma da organização social baseada em colônias, aqui em agrupamentos, resultante do interesse compartilhado sobretudo pelo patrimônio, paisagens rurais, 106 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. roteiros de viagens orientados pelo olhar estético, quando se formou uma rede social não coesa em torno da arte. Não obstante, nas décadas recentes, com o crescimento do turismo nessas localidades, as práticas artísticas das antigas comunidades europeias e de nossas cidades históricas turísticas estão mais assemelhadas na forma da organização social, econômica, política e estética. Mantêm em comum o interesse pela pintura, notadamente paisagística, a despeito dos julgamentos da crítica do campo artístico. A técnica do óleo sobre tela, cujos tubos de metal inventados em 1830 facilitaram as andanças campestres dos artistas europeus (Lajarte, 1995, p. 32), tem sido substituída, por muitos, pela tinta acrílica. Mantêm-se os cavaletes portáteis e as caixas-estojo, entre outros objetos. Outras práticas artísticas têm ladeado a pintura: joalheiros, mosaicistas e escultores ocupam as ruas dessas cidades. Não se trata de uma regra, mas é recorrente às modalidades de arte estabelecer uma relação estreita com o ambiente local. A comercialização dos trabalhos a partir do ateliê-loja, no qual o comprador encontra o próprio artista, tornou-se uma prática comercial compartilhada entre muitos deles. A grande maioria dos artistas provém de outras localidades, apenas um pequeno número é originário da região, reforçando o caráter do deslocamento, ao qual se acrescenta o convívio com artistas viajantes a frequentá-las regular ou esporadicamente. Diversas localidades brasileiras têm encontrado nas práticas artísticas um elemento importante na economia e na política locais e instigam questões sobre os significados desse fenômeno. Campos do Jordão (SP), por exemplo, foi o foco de uma pesquisa em nível de mestrado, realizada por Andrea Siomara de Siqueira (2009), na qual a comunidade de artistas foi investigada através do recorte em torno de músicos com formação acadêmica. Todos os entrevistados atuavam na cidade, mas ressentiam não terem atingido o nível exigido para participarem do Festival de Inverno. Naquele momento, a pesquisa apontou os graves problemas sociais, em níveis de pobreza, educação e condições de habitação, ao lado de um festival de magnitude internacional cuja realização na cidade não conduzia a melhorias para a maioria da população e, de modo particular, não estimulava a prática musical na localidade. O conhecimento de processos sociais nas comunidades de artistas ainda resta pouco aprofundado. As ações trazem para o plano do discurso os termos “mudança”, “transformação” e toda uma terminologia nova acerca da “economia criativa”, mas que 107 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. solicitam estudos rigorosos acerca do modo como as imagens, os sons, as performances, as artes participam dos processos sociais e afetam a população. A cidade de Cunha (SP), por exemplo, com o grupo de ceramistas formado inicialmente pelo casal japonês Toshiyuki e Mieko Ukeseki, o português Alberto Cidraes e os irmãos Vicente e Antônio Cordeiro, construiu o primeiro forno noborigama da cidade, em 1975, desenvolvendo uma série de iniciativas no âmbito municipal, ocupando hoje uma grande quantidade de pessoas em ateliês. Outra dimensão poderia ser pensada em ações coletivas mobilizadas em determinadas comunidades, por exemplo, na construção da Capela de Nossa Senhora das Dores, no Vale do Matutu, em Aiuruoca (MG), com a participação do artista plástico Cândido de Alencar Machado: todo o bairro rural contribuiu para a edificação, concretizando no ambiente uma arquitetura colaborativa. ***** As retomar os limites difusos do fenômeno desta pesquisa, tem-se: (1) o artista, a viagem, o passeio, a jornada; (2) o ambiente, a paisagem, os caminhos, os lugares; (3) a imagem, a pintura, o monumento, a narrativa; (4) o espectador, a experiência estética, a recepção estética, a visualidade, a sonoridade, a sensorialidade, a imaginação. São os elementos em torno dos quais o fenômeno social tomou forma. Como dizia Johann Wolfgang von Goethe, em seus escritos científicos sobre a natureza, todo fenômeno é uma multiplicidade, não possuiu limites precisos, liga-se intimamente a outros fenômenos cujo limite está no infinito. O recorte dos fenômenos sociais como objetos de pesquisa reside num ato arbitrário, necessário ao mesmo tempo em que desconecta uma parte de seu todo significante. Os agrupamentos de artistas, movimentando as imagens em relação ao ambiente local, abrem duas perspectivas diferentes e conjugadas ao longo do século XX. De um lado, estão artistas populares solitários que converteram suas moradias em obras de arte e destino turístico, os “habitantes paisagistas” no dizer de Lassus (1975), tais como Ferninand Cheval e Gabriel dos Santos. De outro, um ramo importante da arte contemporânea na forma de Earth Art, Land Art ou Environmental Art, instilam novas questões sobre a relação com o ambiente. As ligações entre estas práticas não são diretas, às vezes são mesmo antagônicas, mas justamente nessas contradições encontram-se os polos do mesmo fenômeno social. O núcleo das comunidades de 108 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. artistas está na referência ao ambiente através de uma experiência estética por intermédio das imagens, em torno das quais a imaginação emerge na vida social ao estabelecer o jogo da transformação do mundo em pintura. 109 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 7. Imagem pictórica da cidade histórica Outro Preto, “cidade de arte” A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, foi o marco inicial das pesquisas reunidas nesta tese. A cidade possui as dimensões simbólicas e espaciais claramente observáveis no processo temporal, por meio do qual se torna compreensível a historicidade da percepção e da participação das imagens na vida social. O povoado que se desenvolveu com a exploração aurífera na capitania de Minas Gerais, no século XVIII, comemorou em 1998 seu trecentésimo aniversário de fundação. A data em questão, 1698, à qual Sylvio de Vasconcellos (1977, p. 16) se refere com ponderação como “por volta de”, é muito polêmica. Augusto de Lima Júnior (1978, p. 28), por exemplo, contestou tal afirmação e notou como data chave o ano de 1696, quando Manuel Garcia teria descoberto ouro na serra de Ouro Preto, na vertente do córrego do Tripuí e Passa-Dez. Segundo este historiador, apenas posteriormente lá chegou Antônio Dias, bandeirante de Taubaté, hoje reconhecido como o fundador. A despeito dessa polêmica, o exíguo acampamento como tantos outros surgidos à margem dos córregos ou grupiaras só foi institucionalizado como Vila Rica em 1711, deixando já a marca da dominação lusitana sobre o sertão dos Cataguases. Os grupos aborígenes locais são praticamente desconhecidos e não representados na história de Ouro Preto (Andriolo, 1998). Nas palavras de Salomão de Vasconcellos (1941, p. 241), é apenas na segunda década do XVIII que “começaram a aparecer as habitações definitivas, cobertas de telhas. [...] surgiam os lavrados e em torno deles mais tarde se reedificaram, plantadas, não raro, nos mesmos lugares, à beira dos trilhos e nos caminhos tortuosos...”. A vila unia duas freguesias, Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da Conceição, por meio da elevação topográfica da atual Praça Tiradentes, onde se instalou 110 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. a Casa de Câmara e Cadeia e o chamado Palácio dos Governadores. Da matéria prima e do isolamento do litoral, que promoveram mudanças sensíveis nos procedimentos de artífices, aliados aos conflitos próprios da sociedade mineira, decorrem arquitetura e imaginária profícuas. Concorriam, por exemplo, os templos das duas freguesias de Vila Rica, as ordens terceiras de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco, as irmandades de negros e as de brancos; cada templo edificado por uma irmandade, representativa de grupos socioeconômicos locais, e interiormente adornadas por outros tantos grupos. Embora marcante em termos políticos e administrativos, aquele período inicial do vilarejo não foi o escolhido para representar a história. Para os membros do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nos anos 1940, apenas com o desenvolvimento econômico que se construiu materialmente o mais importante da civilização na capitania de Minas Gerais – portanto, na segunda metade do século XVIII. Os resíduos desse momento privilegiado passaram a ser objeto de restauração e ganharam lugar de destaque junto à memória nacional, como afirmou Lia Motta (1987, p. 108): As primeiras ações do Patrimônio nos centros tombados tratavam a cidade como expressão estética, entendida segundo critérios estilísticos, de valores que não levavam em consideração sua característica documental, sua trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural e parte de um todo socialmente construído. Durante o século XIX, quando passa a denominar-se Ouro Preto, o processo urbano deixou marcas no espaço, as quais estiveram por muito tempo fora do objeto de preservação do SPHAN, porque tais remanescentes não se enquadravam nas representações da memória nacional. A imagem da “cidade histórica” seria delimitada e, em grande parte, revitalizada no início dos anos 1950. Desde 12 de julho de 1933 a cidade fora reconhecida como monumento nacional. Diversos estudiosos salientaram a qualidade das obras arquitetônicas, escultóricas e pictóricas remanescentes do século XVIII. Nos estudos de Lourival Gomes Machado (1978), Paulo Santos (1951) e Sylvio de Vasconcellos (1956/1979), a arte ouro-pretana teve um lugar reservado; a cidade é “um reino quase absoluto do barroco” (Machado, 1978, p. 197). No início dos anos 1970, podia-se ler na imprensa o termo composto cidade barroca para se referir a Ouro Preto. Quando as imagens registradas começaram a direcionar o olhar, o turismo de massa ainda não havia se estabelecido no país. Num sentido mais amplo, enquanto a imagem fotográfica ganhava um lugar junto aos documentos visuais da cidade histórica, 111 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. formava-se um modelo para a percepção do turista (Andriolo, 2009b). Foi somente a partir da década de 1970 que a organização empresarial de agentes de viagens, operadoras, proprietários de hotéis e projetos governamentais consolidaram o produto turístico “cidades históricas de Minas”. Com a relativa abertura política e o reconhecimento como Monumento da Humanidade, a década de 1980 foi aquela na qual o setor de turismo mais cresceu em Ouro Preto, sobretudo com a instalação de novos hotéis e pousadas. Guignard nos ensinou a ver Ouro Preto Uma pintura a óleo sobre madeira, da coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, intitulada Ouro Preto e realizada pelo artista Alberto da Veiga Guignard, em 1951, apresenta essa “cidade histórica” como num sonho. No campo da percepção, aqueles traços não são mais exatamente capelas instaladas sobre as montanhas, mas uma substância imprecisa inventada pelo artista e partilhada com o espectador. Numa reportagem, escrita poucos anos antes da morte do pintor, Guido de Almeida (1960, p. 52) afirmou: “Guignard soube ver Ouro Preto porque a viu, não com os olhos mortos de um turista apressado ou de um historiador enfadado, mas com os olhos simples de sua alma de menino”. E conclui: “É com razão que muitos dizem que Guignard nos ensinou a ver Ouro Preto”. Esta última afirmação constitui-se numa das principais sínteses da recepção da obra pictórica de Guignard e abriga uma questão importante. Ao considerar-se que o pintor ensinou a ver, sugere-se que havia algo oculto, velado aos olhos comuns e desvelado pela tinta na tela. Ao fazê-lo, esquece-se daquilo que é próprio do artista, ou seja, a invenção de um olhar. Dessa constatação, deriva a seguinte questão: qual a relação entre a atividade pictórica e a percepção do turista nas “cidades históricas”? O objetivo aqui é investigar a participação da prática artística na formação psicossocial da percepção do turista. Para tanto, foi escolhida Ouro Preto, a primeira cidade brasileira a ser reconhecida oficialmente por seus valores históricos e artísticos. Iniciou-se então uma pesquisa histórica que inventariou a produção pictórica e os escritos acerca dessa localidade, particularmente entre as décadas de 1950 e 1970, período de notável incremento das atividades turísticas, com a implantação das primeiras pousadas e o afluxo de artistas para visitar ou morar na cidade. Nesse 112 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. contexto, Guignard ocupou um lugar central. Ele e outros artistas contribuíram, com suas visões pessoais, para a constituição de um mundo social da percepção da “cidade histórica turística”. Esse mundo foi ordenado por discursos provenientes de jornais locais e nacionais, publicações de diversas ordens, materiais iconográficos de divulgação, cartões postais e propaganda hoteleira, bem como as imagens pictóricas. Do interior da farta documentação examinada, emergem dois índices fundamentais para a pesquisa, quais sejam: o nacionalismo e o pitoresco. Dentre a variedade de pinturas produzidas naquele tempo, pôde-se observar uma seleção e consequente maior divulgação daquelas que associavam os ideais nacionalistas à categoria de pitoresco na representação. A descrição da atividade pictórica na cidade de Ouro Preto, cruzada com os discursos e materiais de divulgação turística, dos atrativos e da hotelaria contribuem para avaliar a importância das práticas artísticas na formação da percepção do turista. Abertura para a percepção artística de Ouro Preto Tendo em vista que os artistas estão “ligados a uma só e mesma rede do Ser”, conforme escreveu o filósofo Merleau-Ponty (1964, p. 89), “o verdadeiro pintor transforma, sem o saber, os dados de todos os outros”. Portanto, ao propor pensar a pintura em Ouro Preto e suas relações com o campo turístico, é necessário estabelecer minimamente as conexões que ligam retrospectivamente os artistas com a história da paisagem mineira, bem como, de modo projetivo, os desdobramentos de discursos e imagens na prática pictórica da “cidade histórica turística”. Há diversas imagens e discursos imbricados nesse processo. Lembre-se de Diogo de Vasconcellos, Mário de Andrade, Afonso Arinos, entre outros, aos quais não se retornará aqui. Basta mencionar que formou, entre os intelectuais brasileiros, desde as primeiras décadas do século XX, uma série de ideias sobre os resíduos arquitetônicos e artísticos da América portuguesa, ao mesmo tempo em que se inauguravam as primeiras viagens turísticas do Brasil (Andriolo 1999). Desde então, os pintores que percorreram as antigas regiões de mineração têm seu olhar no cruzamento de pelos menos três fontes: primeiro, o ambiente arquitetônico e topográfico; segundo, a pintura de seus mestres e de outros pintores; por fim, a ilusão retrospectiva acerca de um passado nacional. 113 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Quando o lema “Descobrir o Brasil!” ecoou entre os modernistas brasileiros, artistas e escritores percorriam as ruinosas estradas do estado de Minas Gerais, durante a Semana Santa de 1924. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Blaise Cendrars e Godofredo da Silva Telles seguiram os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil. Primeiramente, foi visitada a cidade de São João del-Rei, depois Tiradentes e Belo Horizonte, para finalmente descerem as ladeiras ouro-pretanas. Os “novos bandeirantes”, como foram chamados, deram então uma contribuição fundamental para a produção social e psicológica, simbólica e estética da paisagem mineira (Andriolo 2002). Tarsila do Amaral, desde sua viagem à França em 1923, atentava para os remanescentes da arte brasileira. Na opinião de Aracy Amaral (1975, p. 95), a pintora foi influenciada por aquela viagem sobretudo nas formas e cores do casario. Em seus depoimentos, Tarsila do Amaral (1939) exprime “um deslumbramento diante das decorações populares das casas de moradia”, um “retorno à tradição, à simplicidade”. Dizia: “encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado… Mas depois vinguei-me da pressão, passando-as para as minhas telas”. Constituía-se um olhar sobre aquelas paragens. No dizer de Angela Brandão (2000, p. 418): “A cidade histórica é, para a artista, um espaço imaginado”. Além disso, ao analisar os desenhos realizados naquela viagem, Brandão encontra um trabalho artístico intimamente ligado às viagens e às percepções das cidades de Minas Gerais, do Recife e do Oriente Médio. Tarsila “poderia ser chamada de artista-viajante e os temas de seus desenhos, entendidos como variações de percursos pelo mundo, como souvenires que trazia na bagagem de volta, relatos ou lembranças das cidades que conheceu” (Brandão 2000, p. 415). Seus esboços de 1924 abrigariam tentativas de adaptar os temas brasileiros aos traços cubistas, na produção imagética das “cidades históricas”. Seus desenhos são “resumos, essências, substratos de vistas das cidades marcadas pelo tempo” (p. 419). A relação espaço-tempo, evidentemente exposta na iconografia das cidades mineiras originárias do século XVIII, apoia-se numa descrição pictórica da paisagem por meio do elemento pitoresco. Tal elemento constitui-se como uma categoria da percepção, por meio da qual se pode compreender como a pintura e o olhar do turista partilham da mesma experiência psicossocial. Quando Michael Baxandall (1991) 114 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. examinou o olhar sobre a arte como experiência social, baseou-se na noção de “estilo cognitivo”, proveniente da psicologia de Herman Witkin (1967), e na antropologia da percepção, em autores como Segall, Campbell e Herskovitz (1966). Tais contribuições permitem afirmar que alguns instrumentos mentais e a experiência visual humana são variáveis em relação à cultura e à sociedade. Daí, conclui Baxandall (1991, p. 48): “entre essas variáveis, existem as categorias por meio das quais o homem classifica seus estímulos visuais, o conhecimento que atingirá para integrar o resultado de sua percepção imediata, e a atitude que assumirá diante do tipo de objeto artificial que a ele se apresenta”. Nesse sentido, a categoria da percepção designada pitoresco é concebida neste artigo como uma classificação dos estímulos visuais que, na experiência social brasileira, fundamentou a percepção do turista diante das “cidades históricas”. Há uma intrínseca ligação entre o desenvolvimento do mercado turístico brasileiro e a opressão emergente nas grandes cidades com a produção imaginária da “paisagem colonial” com traços pitorescos e bucólicos (Andriolo 1999). A observação dos desenhos de Tarsila faz notar a ambiguidade dessa produção, uma vez que a nostalgia contida em imagens de fazendas, povoados rurais e cidades antigas apresentam sua contrapartida, ou seja, a destruição das lembranças em meio ao crescimento das cidades industriais. Em síntese: “A aparição da cidade histórica é também desaparição. [...] as duas operações que a artista realiza em seus desenhos são essas: o registro mínimo como memória, e o registro rápido como viagem” (Brandão 2000, p. 421). Guignard e a cidade histórica turística Os guias turísticos e os cadernos de turismo dos jornais estão entre os maiores responsáveis pela constituição simbólica dos atrativos turísticos entre as décadas de 1930 e 1970 no Brasil, quando se ampliava o consumo da literatura especializada devido à necessidade de operacionalizar as viagens. A organização do turismo para Ouro Preto demonstra que as representações sobre a cidade e a arte colonial mineira vinham atingindo uma parcela considerável da população, principalmente nas capitais São Paulo e Rio de Janeiro. Claro que o grupo de turistas era ainda incipiente. Não apenas assuntos gerais das cidades turísticas, podia-se ler nos jornais do período, por exemplo, toda uma história do “barroco mineiro”, nas palavras de Lourival Gomes Machado ou Sylvio de Vasconcellos. 115 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Embora todas essas fontes, literárias ou jornalísticas, participem de maneira primordial da percepção da “cidade histórica turística”, existem outras, além do texto escrito, que contribuem nesse processo, envolvendo também o público não leitor. Tendo em vista que o turismo se constitui como uma “rede de relações sociais culturalmente definidas” (Araújo 2002, p. 142), convém notar, com John Urry (1996), que as atividades ligadas ao consumo turístico são construídas em nossa imaginação pela propaganda e pela mídia, em meio às quais se poderá incluir as imagens pictóricas. Um estudo de Andriolo (2009b) discorreu mais amplamente sobre a circulação de imagens ouro-pretanas pelo território brasileiro, seja em exposições de réplicas das esculturas do Aleijadinho, seja em referências simbólicas materialmente visíveis em ritos nacionais. Por exemplo: o cruzeiro diante da Igreja Nossa Senhora do Brasil, na cidade de São Paulo, foi construído, em 1956, à imagem da setecentista cruz da capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria de Ouro Preto. Ou ainda, como mostrou Damasceno (1994), para a inauguração de Brasília, no dia 21 de abril de 1960, badalou na nova capital o sino dessa mesma capela. Aqui interessa pensar como a iconografia da “cidade histórica” relacionou-se à formação da percepção do turista. O fio unindo Ouro Preto e Brasília passa pelo projeto político de Juscelino Kubitscheck que, antes de tornar-se presidente, atraiu para Belo Horizonte Alberto da Veiga Guignard. Como prefeito de Belo Horizonte, Juscelino envolveu tanto a arte moderna quanto o planejamento do turismo em seu projeto político. No espaço da Pampulha estão presentes Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle-Marx. Para a criação de uma nova escola de arte, o prefeito teria pensado primeiramente no pintor Pancetti, depois, por sugestão de Portinari, convidou Guignard, cuja fixação na capital mineira ocorreu em 1944. Ali, este artista assumiu a direção do curso de Pintura e Desenho, recém criado no Parque Municipal (futura Escola de Belas Artes de Belo Horizonte). Além de partilhar do grupo modernista em Minas Gerais, foi sobretudo pela produção pictórica de paisagens mineiras que Guignard demarcou o seu lugar. Para Ivone Vieira (1988, p. 92), o traço distintivo desse pintor foi o elemento lírico: “As paisagens de Guignard passaram a ser vistas como signos de revolução, tendo em vista o modo original de interpretar a realidade. Ele provocou uma ruptura no continuum histórico, em relação à maneira antiga de pintar a paisagem mineira”. Em depoimento, Guignard lembra-se que, ao pisar pela primeira vez em Ouro Preto, no ano de 1942, ficou decepcionado com aquela “cidade negra”, “silenciosa”, 116 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. “abandonada”. Ainda era noite, resolveu sentar-se no alto de um morro enquanto aguardava a aurora: “por uma estranha ilusão de ótica, teve a impressão de que as igrejas iam subindo até as nuvens...” (Almeida 1960, p. 52). Suas telas entregam ao espectador paisagens fluídas, oníricas, com montanhas e brumas matinais. Ao pintar a paisagem ele expressa uma experiência do mundo que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva. Observando as telas de Cézanne, Merleau-Ponty (1945/1980) dizia que as tradições proporcionam o sentido literal da obra, enquanto as criações do artista impõem um sentido figurado que antes delas não existia. Tratava-se de uma “operação expressiva” que inventou um novo olhar sobre a “cidade histórica”. Não obstante a constatação de José Durand (1989), acerca do desenvolvimento do comércio de pinturas modernistas ganhar maior ênfase apenas a partir de 1960, no final da década anterior o valor das obras de Guignard ascendia, gerando um conflito entre os marchands e os “amigos-protetores” do mestre, nessa altura com a saúde muito precária (Vieira 1988). Nessa ocasião surge a ideia da criação da Fundação Guignard por Lúcia Machado de Almeida, projeto efetivado em novembro de 1961. Para o Conselho Consultivo da Fundação foram eleitos, entre outros, Almeida Whitaker Gondim de Oliveira, Gustavo Capanema, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Lourival Gomes Machado, Anibal Machado, Amaro Lanari Júnior e, como presidente, Milton Campos. A Fundação durou dois anos e o Museu Guignard seria inaugurado apenas em 1987, na cidade de Ouro Preto. Como professor do Curso Livre de Desenho e Pintura, Guignard conduziu diversas vezes seus alunos à antiga capital de Minas, utilizando o “cenário do passado” como objeto perceptível e cognoscível para os alunos na produção da “arte moderna”. Dentre os que retrataram Ouro Preto, por exemplo, encontram-se Neli Frade e Wilde Lacerda. A primeira participou dos trabalhos de Di Cavalcanti para o Fórum da Rua Goiás, em Belo Horizonte, e o segundo, dissidente da Escola Guignard, participou do corpo inicial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1957. Imagens artísticas e imagens turísticas O sociólogo José Durand (1989) assinalou que nas cidades beneficiárias da valorização da cultura material do período colonial houve uma repercussão importante 117 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. no campo das artes plásticas, sobretudo pela atração que tais localidades exerceram sobre os artistas. Diversos aspectos urbanos converteram-se em temas inesgotáveis nas artes plásticas. No catálogo da exposição “A paisagem mineira”, ocorrida na Grande Galeria do Palácio das Artes, em Belo Horizonte (29 de novembro a 20 de dezembro de 1977), pode-se ver cenas de Ouro Preto pintadas por artistas como Renato de Lima (1951), Herculano Campos (1974), Wilde Lacerda (1974), Nelly Frade (1975), Bax (1976), Sara Ávilla (1976) e Nello Nuno (1973), entre outros. Concernentes à constituição do campo turístico, as pinturas produzidas com a temática das “cidades históricas” permitiam a ampliação da área de recepção definida pelas publicações literárias nos grandes centros urbanos do país. Estes centros representam também o indicativo das análises em relação à criação do mercado turístico brasileiro, nos quais a produção iconográfica cumpriu um papel fundamental na fixação dos produtos que envolvem as “cidades históricas de Minas”. Em Ouro Preto, tal efervescência cultural aparece de imediato como possibilidade de criação para artistas ali estabelecidos. Primeiramente, cabe considerar a instalação de cursos de artes em geral na cidade, em comum acordo entre a Universidade e os empreendimentos turísticos. Em 1968, o governo do estado de Minas Gerais, com Israel Pinheiro, instituiu a Fundação de Artes de Ouro Preto (FAOP), destinada a “promover a expansão cultural e artística de Ouro Preto, oferecendo elementos para uma programação turística permanente e diversificada” (Barroco, n.1, 1969, p. 97). Esta iniciativa partiu “de uma grande amiga e entusiasta da veneranda cidade, a consagrada atriz de teatro Domitila do Amaral”. O jornal Estado de Minas, em sua edição de 11 de julho de 1968, anunciava: “O ambiente de Vila Rica ajuda muito: rapazes e moças, ao terminar as aulas, reúnem-se na Praça Tiradentes, onde encontram cenário para inspiração de seus trabalhos de arte...”. A fundação administraria os Festivais de Inverno, realizados anualmente, bem como uma Bienal de Artes, além da manutenção de um Centro de Documentação. No final dos anos de 1960, os poderes públicos locais parecem ter se apercebido da utilidade da produção artística em Ouro Preto. Embora presente desde a década de 1920, a ideia da receptividade aos artistas ganhou novo fôlego nas práticas políticas locais. Em 1967, a Câmara aprovou projeto de lei do prefeito Genival Ramalho na abertura de crédito para a construção de uma hospedaria para artistas, a qual seria construída no terreno da antiga chácara de Diogo de Vasconcellos, no bairro Água Limpa. A casa “dos Inconfidentes”, no morro do Gambá, também seria reformada para 118 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. abrigar as autoridades. “A casa dos artistas será aparelhada com ateliês e salas especiais para reuniões, sala de música etc., além dos apartamentos, destinados a hospedar os artistas de fora, desde que entrem em contato com o Departamento de Turismo da Prefeitura, explicando as razões de sua vinda à cidade” (Jornal de Ouro Preto, dez. 1967, p. 7). A Secretaria de Turismo buscava concentrar também, com os festivais e com a FAOP, o gerenciamento dos artistas que frequentavam a cidade. Outra medida nesse sentido foi a criação de uma feira permanente de arte e artesanato, organizada pela prefeitura a partir de 1973. Também no hotel projetado pela empresa Tropical, cada apartamento teria um terraço privativo, “o que torna o seu aproveitamento adequado às condições paisagísticas e artísticas do local, permitindo inclusive que pintores o utilizem como atelier” (O Ouro Preto, 15 maio 1974, p. 1). Assim, a representação artística de Ouro Preto, sobretudo difundindo imagens do espaço urbano ganha novo estímulo. Com a circulação de pinturas de aspectos e temas citadinos, Ouro Preto avança do plano do discurso para se tornar também referência imagética de “cidade histórica”, mantendo a sua hegemonia diante de suas congêneres. O famoso historiador Francisco Iglésias (1972) chegou a afirmar que Ouro Preto era “o cenário brasileiro mais fixado em telas”. Por sua vez, Sylvio de Vasconcellos (1967) pronunciou-se sobre a onipresença de Ouro Preto no turismo mineiro com certa indignação. Como diretor do Instituto do Patrimônio Histórico de Minas Gerais, Vasconcellos estava preocupado com o excesso de visitantes de Ouro Preto e os poucos turistas a dirigirem-se para outras localidades mineiras tais como Caeté, Diamantina ou Caraça. Em suas palavras: Quantas vezes virá a mesma gente ao mesmo lugar, para ver as mesmas coisas? [...] De uns tempos para cá retrata-se só e repetidamente Ouro Preto. Ouro Preto de cima, visto de baixo, de lado, de frente, de costas, igrejas ao lado. Igrejas por todos os lados. As Minas viraram apenas Ouro Preto. O cansaço nesse terreno já se manifesta. Muitas pessoas já nem mais suportam um quadro figurando Ouro Preto. Isso é sinal de saturação, de enjôo, de desvalorização. Entre os vários artistas que se fixaram ou simplesmente visitavam Ouro Preto nos anos 1970, pode-se lembrar o nome de Wilson Rolim Ferreira, pintor de traços “acadêmicos”. Na cidade, esse artista foi orientado por Estevão, pintor e morador local. Wilson montou seu ateliê no andar superior ao restaurante Caçamba, na Praça Tiradentes. Até 1974, o pintor executara cerca de duzentas telas representando aspectos da “cidade histórica”, muitas das quais eram encomendas provindas do Rio de Janeiro e São Paulo (O Ouro Preto, 15 fev. 1974, p. 4). O paulista Arnaldo Navajas Filho 119 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. frequentou as aulas de Ado Malagoli, no III Festival de Inverno. Esteve em Ouro Preto em 1974, pintando uma série de óleos e aquarelas, para depois realizar duas exposições em Minas Gerais dedicadas ao “barroco”, uma em Ouro Preto e outra em Belo Horizonte. No ano seguinte, uma nova exposição desse pintor foi realizada na Galeria Pilão (O Ouro Preto, 21 abr. 1975, p. 2). Participante da fundação da FAOP, Nello Nuno foi um importante artista a desenvolver suas atividades em Ouro Preto, antes de interromper sua carreira devido à morte prematura (Barbosa, 1975). Dos artistas que pintaram Ouro Preto, com maior projeção nacional, pode-se citar Carlos Bracher e Carlos Scliar. Em Bracher, Hansen (1998, p. 41) localizou uma representação parcialmente não-mimética, “sua fantasia é moderna: ignora a verossimilhança, porque não pressupõe nenhuma unidade de verdade exterior, embora, como disse, os comentários feitos pelo poeta Bracher sobre o pintor Bracher proponham o incondicionado romântico”. Ao que parece, esse artista esteve pela primeira vez nessa cidade entre agosto e dezembro de 1964, para, em fevereiro de 1971, lá fixar sua residência. Esses artistas não se limitaram à temática ouro-pretana, mas encontraram nessa cidade um local importante de trabalho. No depoimento de Scliar, lê-se: “Venho a Ouro Preto porque gosto desta cidade. Aqui posso concentrar-me para desenvolver minhas ideias e pintar, no Rio isso não é possível. […] Posso ser motivado por temas locais, mas não é por isso que trabalho nessas cidades [inclui Cabo Frio]. Talvez, no início, esses fatores tivessem tido alguma importância. Mas, hoje, busco apenas condições para encontrar um meio excelente de concentração, que me estimule. (Jornal de Ouro Preto, dez. 1967, p. 1). Há uma tensão notável entre a produção artística e a economia do turismo na “cidade histórica”. Apesar do fundamental papel desempenhado pelos artistas modernistas, no mercado composto para os turistas, as cenas acadêmicas parecem ter sobrepujado as representadas pelas vanguardas artísticas. Os modernistas, na sua busca pela hegemonia nacional no Brasil, não podem ser considerados como um grupo unívoco, tanto entre os próprios intelectuais, como entre estes e o governo, não obstante, foi através do modernismo que Ouro Preto ganhou projeção nacional e internacional. Aqui reside uma contradição: não foram as obras modernistas da cidade as hegemônicas dentre as imagens difundidas pelas atividades turísticas no período estudado. Averiguando, por exemplo, a documentação inventariada na propaganda dos hotéis, salvo a raríssima exceção na promoção da Pousada Ouro Preto, que traz os desenhos de Guignard, não se utilizou em grande quantidade reproduções de pinturas modernistas. 120 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Nas produções pictóricas destinadas ao consumo do turista são as formas acadêmicas, às vezes tratadas com certo impressionismo, ou estilizações a partir das obras de Guignard, as que ganharam maior projeção. Deixando de lado os problemas inerentes às definições estilísticas, a oposição esquemática entre pinturas “acadêmicas” e “modernistas”, deixa-se de lado a diversidade artística recentemente emergente nas cidades turísticas para enfatizar um problema surgido na formação da percepção da “cidade histórica” brasileira. As imagens modernistas, figurativas ou abstratas, não compunham parte significativa das obras à venda para os turistas, tampouco eram vistas nas revistas de divulgação turística, embora dominantes para o público seleto do mercado de artes. Os próprios trabalhos de Guignard, com suas linhas fluídas, não foram recebidos pelo público nem como revolucionárias, nem como vanguardistas, mas, como sintetizou uma reportagem da época, como “um clássico moderno, ou melhor ainda, um impressionista moderno” (Almeida 1960, p. 81). A aceitação no campo turístico das pinturas cujos temas remetiam à cidade baseiase numa estreita relação com os recortes esboçados nos discursos sobre Ouro Preto, na representação acadêmica e em detalhes repetitivos. O trabalho de Arnaldo Navajas Filho, por exemplo, foi assim anunciado pela imprensa: “Não perdendo o sentido acadêmico de sua vocação, busca, no entanto, no impressionismo, satisfazer sua tendência, através da perspectiva da cor e do desenho” (O Ouro Preto, 05 jun. 1974, p.4). Lembre-se que dentre os artistas enaltecidos pelo turismo estava Wasth Rodrigues, que se dedicou a retratar meticulosamente o patrimônio brasileiro, sendo chamado o “grande artista do turismo” (O Estado de São Paulo, 05 maio 1957, p. 21). Pesquisas recentes no campo da produção artística nas “cidades históricas” brasileiras, visando revelar as imagens privilegiadas nas pinturas destinadas ao mercado turístico, bem como a sua participação na produção psicossocial da percepção dos turistas, mostram o ingresso de outras técnicas pictóricas, tal como a “pintura ingênua”. Aqui, considerou-se as décadas de 1950 a 1970 o período de formação da percepção do turista e do campo artístico de Ouro Preto, durante o qual se pode verificar que a atividade pictórica corresponde ao que se observou em grande parte dos discursos, ou seja, uma permanência de formas conservadoras de pensamento. Diante do exposto, emerge a hipótese conforme a qual a representação artística de uma Ouro Preto turística foi traçada em moldes acadêmicos, ao mesmo tempo que afinada com um discurso nacionalista acerca das origens da arte brasileira e do episódio 121 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. da Inconfidência Mineira, entre outros temas. Ao contrário, a pintura de um artista como Carlos Bracher, que muitas vezes inverte a posição do observador, as cores e a maneira de representar as paisagens locais, cria uma variação das possibilidades do olhar. Perspectivas como esta não interessaram diretamente ao mercado turístico, uma vez que o turismo trabalhava com recortes estanques da história, da cidade e da arte. As propostas de artistas muito distintos dos acadêmicos não foram de todo admitidas, pois elas representavam um movimento dentro daquilo que se almejou fiel ao discurso histórico conservador e estático em relação à própria dimensão material do produto turístico. ***** A compreensão desse processo exige dos pesquisadores desvelarem não apenas o campo do turismo ou, também unicamente, o campo artístico, mas a relação entre esses dois campos sociais, considerando a atividade pictórica, mais que um bem restrito, como parte integrante da produção psicossocial e simbólica da percepção das “cidades históricas turísticas”. O campo do turismo é receptivo às práticas artísticas para constituir seus próprios produtos, no entanto, não os reproduz simplesmente, uma vez que constitui seus atrativos a partir de elementos provenientes de outros campos, da política ou da economia. Essa natureza relacional do problema considera as mediações constituídas no entre dois desses campos, entre as práticas artísticas e as práticas turísticas, entre o olhar do artista e o olhar do turista. Uma das categorias frequentemente aplicadas nas descrições das “cidades históricas turísticas” é a de pitoresco, por meio da qual se estabelece um significado bucólico para determinadas representações espaciais e temporais. Como se sabe, esse termo começou a ser utilizado com maior intensidade no final do século XVIII, quando os europeus idealizaram as viagens ao campo, visando atitudes diante de paisagens naturais ou artísticas, as quais propunham uma percepção estética. No Brasil, por meio dessa categoria, a paisagem da “cidade histórica turística” passa a ter importância conceitual para as análises do fenômeno turístico em relação à opressão dos grandes centros urbanos, a ser considerada em sua produção psicossocial e histórica. Os discursos nacionalistas que enraizaram a cidade de Ouro Preto no imaginário brasileiro encontraram importantes mediações nos desenhos de Tarsila do Amaral e nas pinturas de Alberto da Veiga Guignard. A partir delas, a paisagem da “cidade histórica” 122 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. foi concebida em oposição às dos centros urbanos em expansão no país. Paradoxalmente, os ambientes ocupados pela exploração aurífera e pelo trabalho escravo, depois de sua identificação como cenários das lutas de emancipação nacional, tornados símbolos da história pátria, passam a ser representados como fragmentos de um espaço-tempo em que as vielas e o casario transmitem o bucolismo ausente nas grandes cidades. Com a organização do campo do turismo no país, a partir da década de 1960, vários artistas são convidados a participar desse momento de representação artística da “cidade histórica”. Não obstante, pode-se notar que a atividade pictórica nas cidades turísticas do Brasil passou por um processo de seleção segundo temas e técnicas privilegiados para o consumo do turismo, os quais vincularam as pinturas acadêmicas às imagens pitorescas e aos discursos nacionalistas, restringindo tanto a difusão de artistas que trabalhavam fora desse modelo quanto a própria percepção dos turistas que receberam essas imagens e, a partir delas, constituíram o seu olhar. 123 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 8. Imagens de arte em Paraty Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty A ocupação da Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty e da Vila da Invocação da Santa Cruz de Ubatuba é datada do século XVII, em região habitada por índios do ramo guaianá, no roteiro de exploração de paulistas da Vila de São Vicente. Em 9 de maio de 1703 a Carta Régia ordenava a fundação de duas Casas de Registro do Ouro nas vilas de Santos e Paraty. Esta informação delimita a narrativa histórica de Eduardo Etzel (1974, p. 147), a qual prossegue com referência ao porto, onde, em 1717, as bagagens do Conde de Assumar, governador da Capitania de São Paulo, foram desembarcadas, antes de serem conduzidas a Guaratinguetá. Naquele momento, a vila de Paraty ocupava a posição limítrofe entre Rio de Janeiro e São Paulo, representando conflitos de jurisdição para ambas as capitanias. Por aquele porto circulavam produtos como arroz, café, milho, feijão e aguardente. Esta última, produção de destaque na localidade, ocupava cem engenhos no século XVIII, contra os cinquenta e cinco de Angra dos Reis (Maia, 1979, p. 15). Pizarro e Araújo determinam a data de fundação da matriz de Nossa Senhora dos Remédios em 1646, cuja reconstrução em pedra e cal estaria concluída em 1712 (Etzel, 1974, p. 148). Era patrocinada por membros de classe abastada, que decidiram pela ampliação do templo por volta de 1787, em obra que se prolongou pelo século seguinte. Uma edificação em alvenaria, dotada de sete altares de madeira, com poucos ornamentos no interior, mas depositária de objetos litúrgicos refinados, a exemplo de duas coroas de ouro (p. 150). Outra igreja, denominada Menino Jesus, Santa Rita e Santa Quitéria (hoje apenas Santa Rita) teve provisão datada de 30 de julho de 1722 concedida aos “homens pardos libertos do distrito”. São três altares, sendo que o da capela-mor foi elaborado com delicada talha, em forma de folhas e volutas. Segundo Etzel (1974, p. 150), os dois 124 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. grandes anjos ladeando as volutas são os únicos das igrejas coloniais de Paraty. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário (atual São Benedito), do mesmo período, foi reconstruída por volta de 1757. Possui também altar-mor e dois altares laterais em talha sóbria. Por fim, uma quarta ermida, dedicada a Nossa Senhora das Dores, foi erigida no início do século XIX, à beira-mar. Abriga apenas um altar-mor e pouca decoração. A Estrada de Ferro D. Pedro II, sobre o Vale do Paraíba, inaugurada em 1858, é um dos principais fatores apontados pela historiografia para a redução da atividade econômica do porto de Paraty e do litoral Norte de São Paulo. Não obstante, ainda no século XIX, além do Vale do Paraíba, o café que se plantava desde o Rio de Janeiro avançou também sobre a região litorânea, até São Sebastião (Maia, 1979, p. 21). Entre Paraty e Guaratinguetá, a Serra do Quebra Cangalha, freguesia do Falcão, era vencida por tropas de mulas, passando por Campos Novos de Cunha. Houve estudos para a implantação de uma ferrovia nesse percurso, mas não logrou sucesso (p. 26). De modo geral, esquematizando a história em seus eventos econômicos gerais, a historiografia versa sobre três períodos de desenvolvimento da cidade de Paraty, entremeados por períodos de “estagnação”. Seriam eles delimitados primeiro pela atividade portuária do transporte de produtos relacionados à exploração aurífera (reduzida na segunda metade do século XVIII), durante o século seguinte, a exportação de café reanimou o porto (até a implantação da estrada de ferro), para encontrar novo alento às finanças municipais com o incremento do turismo, a partir da segunda metade do século XX. Em 1945, surgiram as primeiras iniciativas de preservação dos remanescentes históricos com a elevação de Paraty à condição de Monumento Histórico Estadual do Rio de Janeiro, a Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1958 e, por fim, em 1966, a Monumento Histórico Nacional. O primeiro automóvel transitou pela cidade em 1954, devido às difíceis condições da estrada de Cunha. A ligação rodoviária ao Rio de Janeiro, via Angra dos Reis, ocorreu em 1967, e a Ubatuba, poucos anos depois, ampliando a frequência de historiadores, artistas e amadores de arte, os quais passeavam por suas ruelas desde 1959 (Durand, 1989, p. 96). Pesquisas recentes têm identificado a imagem e a motivação turística no município em relação ao patrimônio natural e cultural (Candioto, 2005). Esta problemática origina-se na década de 1970, na convergência da exploração mercantil do turismo e das questões ecológicas e preservacionistas dos ecossistemas no Brasil, como afirmou Maria Lanci da Silva (2004, p. 108): “O território acabou, bem ou mal, controlado por uma série de 125 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. instrumentos legais e por uma visão de desenvolvimento alternativo de uma elite cultural – notadamente artistas – que questionava o modo de vida urbano das metrópoles”. Imbuída de um olhar para o exótico e para a atividade turística local, conforme a autora, essa elite promoveu a manutenção de tradições populares, a discussão sobre o patrimônio arquitetônico e a recepção de viajantes. O cenário da antiga vila colonial, do alvo casario instalado entre o sopé de montanhas e a baía, transforma-se em ponto de vista privilegiado para artistas e cineastas, entre outros intelectuais. Aqui buscou-se examinar a gênese e a formação do mundo das imagens da cidade de Paraty (RJ), a partir do estudo de fontes documentais e da percepção de artistas que habitam a localidade. Uma abordagem metodológica que transitou entre a fenomenologia, a morfologia e a hermenêutica apresentou grande contribuição em compreensão do processo histórico, particularmente na observação do campo da percepção em sua historicidade e no desenvolvimento de categorias estéticas que organizam nossas representações tanto das imagens pictóricas quanto da percepção da cidades. Formas sociais e imagens de arte Quando se circunscreve o fenômeno das imagens de arte em Paraty, a primeira observação diz respeito ao espaço urbano, às pessoas e às instituições que vivem a cidade em práticas artísticas. Em segundo lugar, estão as narrativas colhidas através de entrevistas abertas, conjugadas ao conhecimento do objeto artístico na visita aos ateliês. Estes dois conjuntos de fontes são fundamentais, mas revelam lacunas. O método morfológico procede a uma observação e descrição densas do fenômeno, apreendido inicialmente como forma no espaço da percepção, neste caso, o mundo da arte em Paraty. Como herança da fenomenologia alemã que inspirou as teorias interacionistas da escola de Chicago, Howard Becker (1983) propôs a compreensão do “mundo da arte” a partir da configuração dos grupos e conflitos sociais, defendendo a existência de não apenas um único e definido tipo social chamado “artista”, mas “tipos” distintos em maior ou menor grau de conformidade diante dos comportamentos dominantes. O “mundo” constitui-se pelo “conjunto de indivíduos e de organizações cuja atividade é 126 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. necessária para produzir os eventos e os objetos que são característicos desse mundo” (p. 404). Nesse sentido, os objetos inscritos como “de arte” o são para esse mundo, conforme as seguintes proposições: A) definição de arte como um produto coletivo; B) coordenação desses atores: prática comum e produção específica desse mundo, em atividades referidas a convenções; C) os que compõem o mundo, cuja atividade é essencial ao processo de produção, podem apresentar-se na forma de coexistência de muitos mundos, em conflito ou em cooperação. A compreensão de mundos da arte não deve ser orientada por uma noção rígida da sua constituição, uma vez que o fluxo da vida dos artistas e os processos sociais estão em constante mudança. Na identificação dos artistas em Paraty, não se considerou inicialmente os grupos formadores de mundos porque eles não são dados a priori, eles aparecem como resultado do processo de observação e, em seguida, começou-se a organizar os tipos de artista em categorias originadas da observação. Percorrendo o centro histórico de Paraty, localiza-se um grupo de índios guaranis tentando comercializar seu artesanato de modo subalterno em relação aos espaços das lojas e galerias.13 Muitos desses artefatos têm sido inscritos em projetos sociais, particularmente ligados ao chamado “comércio justo”, tal como a Associação Nhandeva, que trabalha pela revitalização de técnicas indígenas. Não obstante, é notável o problema da desigualdade social na forma como se apresentam os índios frente ao comércio local. Resultante de artistas provenientes de classes populares, embora não organizados em associação, aparece um grupo que expõe e vende na Casa do Artesão, a qual possui uma sistemática própria para a inclusão de membros. A eles é também aberta a possibilidade de venda na Casa de Cultura e em outros estabelecimentos comerciais do centro histórico. Nas proximidades do núcleo urbano, existem associações comunitárias que empreendem iniciativas de comércio de artesanato como, por exemplo, o Quilombo Campinho da Independência.14 O Ateliê da Terra organiza-se em cooperativa de artesãs, somente mulheres, em trabalhos com cerâmica, peças decorativas e utilitárias, e preços mais altos em relação ao artesanato local. Elas definem seus temas e técnicas, 13 Duas aldeias indígenas protegidas pelo estado do Rio de Janeiro estão em Paraty pertencem a índios guaranis assentados em terras demarcadas pela FUNAI: aldeia de Araponga, bairro do Patrimônio, e Tekoa Atim, em Paraty-Mirim (Silva, 2004, p. 162). 14 Em subprojeto desta pesquisa, o trabalho de Iniciação Científica de Isabel Tatit (IP/USP, 2007/2008) mapeou os artesãos e as práticas artísticas dessa comunidade. 127 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. sustentando a individualidade de cada membro, mas dentro de um conjunto compartilhado de procedimentos. Outro grupo significativo é formado por artistas plásticos cuja linguagem distingue-se daquela das produções populares, demonstrando algum tipo de formação em artes, instalados em ateliês próprios, grupo fortemente marcado por artistas que chegaram à cidade nas últimas décadas – uma pequena parte é formada por pessoas nascidas em Paraty. Em geral, são trabalhadores independentes que produzem e vendem por conta própria: mosaicistas, joalheiros, pintores e escultores, entre outros. Dentre eles, alguns artistas cujo prestígio permitiu-lhes atingir consumidores fora da cidade, também aparecem em espaço expositivo da Casa de Cultura e em galerias que trabalham com objetos de decoração e artes de custo mais elevado. Esse conjunto apresenta de modo sutil suas configurações internas, as quais não aparecem de modo imediato nas narrativas. Porém, são notáveis os círculos de amizade. A expressão maior das diferenças internas desse grupo dá-se no plano das ações políticas, de projetos de eventos, da criação de associações, da direção de entidades dedicadas ao fomento da cultura e das artes. Nesse grupo, encontram-se também artistas que migraram para o Brasil e fixaramse em Paraty, tal como o francês Partick Allien, joalheiro e gravurista. Há também membros que não têm formação em artes e que não mantêm ateliês na cidade, comercializando apenas nas galerias ou nas ruas da cidade. Veja-se o caso de Ivaldo Queiroz, goiano de Itumbiara, que trabalhou em Embu das Artes (SP) e expôs na Praça da República de São Paulo, até ganhar as ruas de Paraty, onde pinta e comercializa. Dois outros elementos são importantes para este quadro genérico: as galerias e lojas que expõem e comercializam obras de artistas locais e de outras regiões do Brasil; e o grupo de “artistas viajantes”, os quais trabalham e comercializam nas ruas, de pintores e desenhistas a atores e poetas, de modo esporádico, sobretudo na alta temporada turística e nos eventos locais. Durante a primeira etapa da pesquisa, a observação direta do mundo da arte identificou nomes de artistas segundo duas vias principais: 1) a investigação in loco, na pesquisa de campo em Paraty, que contou com extenso levantamento de endereços nos quais artistas trabalhavam ou comercializavam suas obras; 2) em fontes diversas, contando com registros na Internet, revistas e catálogos de exposições, entre outras. Nesta última, enumerou-se mais de oitenta nomes, os quais foram contrapostos com a primeira via. Com a participação do pesquisador Bruno Aquilo (bolsista de trabalho 128 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. técnico da FAPESP), foi realizada uma confrontação das informações do quadro com a localização pessoal de cada artista. 15 A necessidade prática de encaminhamento do projeto naquele momento e o expressivo número de artistas dedicados à pintura levaram a um recorte do objeto, definindo os rumos na trilha dos pintores e da imagem pictórica, deixando em suspensão a pesquisa do vasto campo do artesanato e de outras práticas artísticas. Os pintores foram convidados para entrevistas, as quais aconteceram entre 15 e 19 de junho e 26 a 30 de outubro de 2009. Esses artistas tornaram-se verdadeiros colaboradores da pesquisa, fornecendo informações preciosas sobre o campo artístico de Paraty, e possibilitaram que o método avançasse para sua segunda etapa: a compreensão histórica da formação daquela comunidade. Deve-se salientar que diante do universo paratyense, muitos nomes não serão mencionados, o que não retira o mérito de todos no mundo das imagens de Paraty. Processo histórico e imagens pictóricas O conjunto de formas sociais apreendidas na observação do fenômeno é elevado pelo trabalho do pesquisador ao processo temporal, relação entre momentos diversos recolhidos de modo fragmentário nas narrativas e fontes documentais, ordenados em um todo coerente que permita atingir sua dinâmica própria, conferindo ao objeto esquematicamente apreendido o movimento vivo no processo histórico. Nesta etapa, ocorre o ingresso de novo conjunto de fontes, seja em documentos impressos como jornais e livros, seja em informações colhidas junto à comunidade e aos artistas entrevistados. Para cada um desses conjuntos de fontes foi necessário estabelecer procedimentos de registro e controle que garantissem seu lugar na metodologia.16 15 Foi elaborado um “Quadro social de artistas de Paraty” com os dados principais cadastrados: nome, local e data de nascimento; endereço e contato; categorias da obra de arte (técnicas, materiais, programas, temas e formas). Este quadro serviu de suporte para a pesquisa de campo de maio de 2009, quando os pesquisadores estavam munidos de uma ficha de cadastro, a qual era preenchida com o depoimento do próprio artista, quando localizado. Ao final, trabalhou-se com os seguintes números na pesquisa de campo: 32 artistas contatados e cadastrados, conforme ficha cadastral modelo, nos períodos de maio 2008, junho e outubro 2009. Cerca de 40 artistas viviam na cidade e, embora não contatados pessoalmente, seus colegas confirmaram sua presença como moradores e atuantes do campo artístico local; 25 trabalhavam com artes relacionadas à pintura. Sejam desenhistas ou aquarelistas, sejam autores de técnicas mistas, dentre as quais, trabalhos sobre painéis com massa de cimento, gesso ou papel machê, cujo resultado final é obra em relevo sobre superfícies pictóricas. 16 A pesquisa documental concentrou-se, principalmente, no acervo da Biblioteca Municipal de Paraty – Fábio Vilaboim. 129 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Ao construir o horizonte histórico, evidenciam-se os artistas que tiveram importância para a formação do mundo artístico local e a contribuição estética que deixaram aos novos artistas na curta e na média duração. Tais manifestações foram inscritas em um campo de maior duração que remonta aos pintores de estandartes religiosos e outras atividades provenientes das classes populares. A compreensão do processo histórico da pintura em Paraty é um tema instigante, porém difícil, uma vez que o trabalho com as fontes requer uma diversidade de abordagens, as quais devem incluir tanto a pesquisa em acervos documentais quanto o recurso a entrevistas. Os acervos são limitados quando o assunto é pintura. Ao que parece, isso se deve a dois problemas principais: 1) em períodos mais afastados, como os séculos XVIII e XIX, a pintura não era objeto de destaque na produção local, por razões derivadas do próprio ambiente artístico, não atraindo também a atenção de críticos e historiadores ao longo do século XX; 2) em períodos mais recentes, a partir dos anos 1960, não houve registro sistemático dos artistas em atividade no local. Com relação ao primeiro problema, torna-se difícil precisar os elementos pictóricos pertinentes a uma tradição paratyense. Por um lado, há uma concepção de pintura compartilhada pela nossa historiografia da arte, a exemplo de Rodrigo Franco Andrade (1978), primeiro diretor do SPHAN, que afirmava a condição da pintura colonial nos moldes decorativos, submissa à escultura e à arquitetura. Esta última atraiu os primeiros grandes investimentos do SPHAN, deixando a pintura em segundo plano. Tal concepção era reforçada, no âmbito da arte popular, por exemplo, com Renato Almeida (1970, p. 103): “A pintura do nosso povo é de suas artes a mais pobre e, a não ser na decoração de objetos, onde o sortilégio não raro é da cor, o pintor folclórico brasileiro tem fraca inventiva, tanto que só aparece em alguns ex-votos e certos quadros religiosos, estandartes e bandeiras...”. Por outro lado, os remanescentes artísticos de Paraty não foram suficientes para a formulação de uma “escola de pintura” paratyense, na acepção tradicional da historiografia da arte. Acerca de outras localidades, produziuse muitos estudos, como a respeito da “escola fluminense” e da “escola baiana”. O segundo problema nos indica um período em que a pintura deslocara-se de posição frente aos interesses do campo artístico, com os movimentos da arte contemporânea em performances e instalações. As novas práticas não eliminaram a pintura, mas notadamente lhe lançaram questões. Não obstante, trata-se de um período em que a atividade pictórica crescia em outros ambientes, na chamada “arte ingênua” e na pintura das cidades históricas turísticas, tais como Ouro Preto , Olinda e a própria 130 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Paraty (RJ). A “redescoberta” de Paraty, nas palavras de Etzel (1974, p. 148), “como uma povoação setecentista praticamente intacta e não contaminada pelo progresso de nossos dias”, era contagiada por um olhar romântico, descrito em termos de “encanto”. Nas considerações de Durand (1989, p. 97), houve nas cidades beneficiárias da valorização da cultura material “colonial” uma repercussão importante no campo das artes plásticas. Diversos aspectos dessas cidades converteram-se em temas inesgotáveis. Porém, a profusão de imagens pictóricas surgidas nessas cidades não foi considerada relevante pelos historiadores da arte. Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das “cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua vez, os poderes públicos locais, sobretudo nas cidades mineiras, apropriaram-se da função social das imagens de arte (Andriolo, 2008). Para além das telas famosas de Guignard, outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades turísticas baseadas nas antigas vilas do século XVIII, por exemplo, e como já vimos, em Ouro Preto, Carlos Bracher ou Carlos Scliar, que trabalham em pinturas que transformam as cidades em imagens de arte. Além da relação com o olhar do turista, os pintores instigam questões sobre a paisagem, intervêm na cidade, jogam através de uma política das imagens. Poder-se-á esboçar conexões entre os artistas das diversas cidades históricas e turísticas brasileiras. Em Paraty, Márcio Franco (nascido em Lagoa Santa, MG), visitou tanto os ateliês quanto os festivais de Ouro Preto, durante a década de 1970, nos quais pôde desenvolver sua técnica. Depois, participou de atividades na escola de artes do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e dos cursos da UFMG, para então fixar-se em Paraty, em 1982. Sua linguagem elabora temas tropicais, da fauna e da flora, aplicados a grandes formatos. Nas estadas em Ouro Preto, Franco conheceu a técnica de Carlos Scliar. Face aos vínculos com as cidades históricas de Minas, poder-se-ia citar também Helen Navajas, natural de São Paulo (SP), que viveu em Ouro Preto antes de mudar-se para Paraty. Historicidade das categorias estéticas nas imagens de arte 131 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A imagem de arte é uma forma de conhecimento, por meio da qual o processo histórico é expresso na vida social. A abordagem biográfica não se reduz à descrição de casos particulares, pois estabelece relações constantes com a totalidade do mundo da arte, entre a composição da imagem pictórica e a estrutura social. Pierre Francastel (1951/1990, p. 2) propunha uma análise individual e social da legibilidade e eficácia de um quadro: “uma obra de arte é um meio de expressão e de comunicação dos sentimentos ou do pensamento”. Neste ponto, a compreensão de Francastel conjuga-se com a proposição fenomenológica de Merleau-Ponty (1990, p. 292), para quem “Um quadro é o traço manifesto de uma certa relação cultural com o mundo”, “aquele que o percebe, percebe ao mesmo tempo um certo tipo de civilização”. A experiência perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da imagem, o mundo é constituído na vida social. Aqui, as imagens de arte devem manter operantes as relações entre a biografia dos artistas e o mundo social, em uma perspectiva histórica. A pertinência de categorias formuladas no curso da história da arte dispõe relações com as formas de perceber no campo da estética por meio das ideias de imitação, expressão e significação. Com os estudos de Donald Lowe (1986), o campo perceptivo apresenta sua constituição pelo espectador, o ato de perceber e o conteúdo do percebido, em uma dinâmica de transformações temporais e espaciais a partir de três fatores: 1) os meios de comunicação; 2) a hierarquia dos sentidos; 3) os pressupostos epistemológicos que ordenam o mundo do conhecimento: “o campo perceptivo constituído é uma formação histórica, que difere entre um período e o seguinte” (p. 31). A história da percepção circunscreve domínios hegemônicos organizados na tensão sobre outros domínios não hegemônicos, formas de perceber subalternas e sedimentos de campos perceptivos antigos. O filósofo Hans-Georg Gadamer (1985) indicara a importância da compreensão da historicidade da consciência para a interpretação da arte. Em suas palavras: [...] na consciência de nossa formação, vivemos amplamente dos frutos dessa decisão, isto é, da grande história da arte ocidental, que desenvolveu, através da arte cristã na idade média e da renovação humanista da arte grega e romana, uma linguagem formal coletiva para os conteúdos de nossa autoconsciência – até os dias dos fins do século XVIII, até a grande transformação social, política e religiosa com que teve início o século XIX. (Gadamer, 1985, p. 12) Com a unificação das práticas da pintura, da escultura, da gravura, sob os auspícios do campo artístico, na designação de arte do século XVIII aos nossos dias, um 132 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. conjunto de categorias estéticas destinadas às imagens foi inscrito na vida cotidiana e no senso comum, ainda que sob a forma de querelas e rupturas. A historicidade dos processos perceptivos mediados pelas imagens de arte dispõe tais categorias em eixos temporais, os quais não seguem uma continuidade de significação, pelo contrário, solicitam observar as metamorfoses que os processos sociais imprimem no campo de significados. Gadamer (1992) indicou a inter-relação de categorias estéticas no processo histórico das imagens a culminar com a arte moderna, no século XX. Esse autor o faz na perspectiva da grande tradição filosófica, ao passo que retomarei aqui sua proposição para compreender o círculo de artistas paratyenses. O filósofo estava interessado em compreender como os conceitos estéticos dominam nossa consciência histórica, sem que se tenha clareza de sua origem e sua legitimação, a esta pesquisa interessa situá-los na forma histórica de perceber e na experiência social das imagens. A primeira dessas categorias é a imitação, que remonta aos gregos e atingiu seu apogeu estético, político e artístico no classicismo francês dos séculos XVII e XVIII. Abarcava a doutrina da arte como imitação da natureza conforme normas ideais de representação, legitimada pela noção de verossimilhança. A segunda categoria, surgida no século XVIII, se opõe à ideia de imitação e conduz à afirmação da expressão da interioridade, originalmente pertinente ao campo musical. “A força de expressão de um quadro e a autenticidade dessa expressão são os meios que legitimam aquilo sobre o que se afirma artisticamente” (Gadamer, 1992, p. 115). Ambas, a imitação e a expressão, parecem insuficientes quando se projeta uma terceira categoria, o signo. Apresenta-se o quadro como linguagem escrita a ser lida pelo espectador do século XX, na tarefa de decifrar os signos. O espectador não deixa de proceder a um reconhecimento dos elementos da pintura, mas tal reconhecimento deve remeter à unidade do quadro e não a algo fora dele: a escrita pictural constitui “o elemento a partir do qual o quadro é composto, mas ela está ligada a uma recusa do sentido” (p. 117). Para interpretar o jogo destas três categorias em nossa experiência estética contemporânea, Gadamer volta-se para a profundidade histórica do presente, para examinar a consciência dos horizontes conceituais que dispomos atualmente. Interessando na forma como tais categorias organizam a nossa experiência perceptiva e a confecção de imagens na cidade turística, passo diretamente à conclusão do filósofo. Diante do tema do reconhecimento através da imagem, trata-se também de um reconhecimento de algo pertinente a si mesmo, em uma experiência de familiaridade 133 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. com o mundo, em uma forma de construir a familiaridade com o mundo, ao mesmo tempo em que se aprofunda o conhecimento de si (Gadamer, 1992, p. 121). Surpreendentemente, o antigo conceito de mimesis, debatido em Platão e Aristóteles, torna-se pertinente na apreensão da estrutura da pintura moderna, na fragmentação das formas e na recusa do sentido. Para Gadamer, resta ainda alguma familiaridade e podese operar um reconhecimento parcial. Em mais um passo retrospectivo, em direção à tradição filosófica, encontra em Pitágoras a mimesis em referência ao universo, à abobada celeste e às relações numéricas. A mimesis de Pitágoras compreende a realização no mundo visível das relações entre os números, na ordem dos sons e da música, na admirável ordem dos planetas (a música das esferas) e na ordem das almas. Esta mimesis da imitação dos números contém as relações entre os números, não no sentido exato, mas constata a existência da ordem em todas as coisas (Gadamer, 1992, p. 124). A extrapolação do pensamento gadameriano remete à indagação sobre a existência de ordem em todas as artes. A experiência de ordem na arte moderna não trabalha com o modelo de ordem da natureza e da construção do mundo, tampouco versa sobre um conteúdo mítico ou familiar das coisas no mundo. A sociedade industrial rejeitou as formas visíveis do ritual e do culto e destruiu “aquilo que faz que uma coisa seja uma coisa”, no processo de produção, publicidade e consumo – em suma, não existem mais coisas com as quais estejamos em relação (p. 125). A arte moderna não mimetiza uma familiaridade efêmera, a ordem que testemunha reside em sua integridade pelo fato dela existir. Não seria uma ordem de acordo com nossas representações habituais de ordem, à semelhança dos objetos familiares, mas um jogo criativo acerca da ordem intelectual do mundo. Mesmo em um mundo que se torna uniforme e serial, na imagem de arte se faz uma construção constante do mundo, no lugar onde se desagregam as coisas que nos são habituais e familiares, tais imagens guardam sua ordem. O percurso dos artistas da cidade de Paraty parece conter tanto o jogo daquelas três categorias estéticas quanto o conceito da mimesis aos quais não se pode deixar de interpor o fato de apresentarem-se no contexto específico da cidade turística e não do campo artístico hegemônico. Acrescente-se ainda o fato de essas imagens manuais serem produzidas atualmente em uma sociedade dominada por imagens midiáticas. Afirmar que os objetos produzidos são restritos à “arte turística” seria recusar, de um lado, a sua diversidade plástica e imagética e, de outro, o fato de que representam a escolha de artistas. 134 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Categorias das imagens de Paraty 1) Os remanescentes da tradição popular As referências mais antigas à pintura em Paraty remontam à paisagem de Debret (Quarenta paisagens inéditas do Rio de Janeiro, São Paulo... Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1970). Tereza Maia (1976, p. 32) confere destaque a Paraty vista de frente a uma légua e meia de distância, de 1827. Esta referência distante, que não toca a antiga vila, deve ter-se prolongado em outros trabalhos, os quais não deixaram rastros. No exame das imagens apresentadas no livro O Brasil dos viajantes, organizado por Ana Maria Belluzzo (1994), dentre as muitas paisagens pictóricas, não se encontrou nenhuma referência à cidade de Paraty. Esta consideração é tão-somente um indicativo, não conclusivo, sobre a posição da antiga vila frente aos lugares de interesse paisagístico antes do século XX. Naquele livro, a principal referência para as paisagens era o Rio de Janeiro, mas também são apresentados registros de São Paulo, Ouro Preto e da distante Vila Boa de Goiás (atual Goiás Velho). Não é fácil alinhavar os fios que ligam a prática pictórica nos dois últimos séculos de Paraty, não obstante a pintura instalada na cidade nas últimas décadas inscreva-se em ambiente modesto de pintores populares, ligados às festas religiosas. Estas obras, embora de valor pouco reconhecido entre os intelectuais brasileiros, têm um lugar importante dentro da trama imagética da cidade. Um grande exemplo poderia ser dado pela pintura do mastro vermelho e branco do Divino, sobre o qual está a “bandeira” com a representação da pomba branca, “pousada sobre um universo, pintado de azul” (Maia, 1976, p. 51). Além das tradições populares, o desenvolvimento das imagens de Paraty está ligado à recepção das obras setecentistas e à categoria de “barroco”. Nos primórdios desse processo, na primeira metade do século XX, enaltecia-se o patrimônio das cidades de Minas Gerais e provocava-se o esquecimento de outras regiões ocupadas no Setecentos (Andriolo, 2010). A história do turismo no Brasil apresenta essa mesma polaridade nos empreendimentos hoteleiros e projetos turísticos. Somente em décadas posteriores surgiram as primeiras preocupações com os acervos de estados como Mato Grosso e Goiás, e de outras localidades isoladas. Exemplo: nos dois volumes da 135 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Arquitetura religiosa barroca no Brasil, de Germain Bazin (1983), um inventário precioso da arquitetura brasileira realizado nos anos 1950, não há referências a esses dois estados, tampouco à cidade de Paraty. Na relação bibliográfica apresentada no catálogo da exposição “Universo mágico do barroco” (1998), também não há itens para Goiás e Mato Grosso, e na seleção dedicada ao Rio de Janeiro, nenhuma obra específica dava conta de Paraty. Eduardo Etzel (1974), médico psicanalista, procurou inventariar os remanescentes esquecidos durante a exaltação da arte de Minas Gerais. A importância de seu trabalho não se resume tão-somente ao seu conteúdo, dados e imagens de igrejas longínquas, mas de mostrar ao público leitor que havia mais a olhar, além de Minas Gerais. Etzel enfoca as margens dos sistemas artísticos, as manifestações modestas, remanescentes de um período histórico em que o modesto – e não a riqueza -- era a regra.17 2) Entre o sentido documental e a pintura da paisagem No final da década de 1970, foi publicado o livro Do Rio a Santos, ilustrado por Tom Maia e escrito por Tereza Maia (1979). A publicação apresenta suas imagens com as seguintes palavras: “No desenho fique a lembrança do que nos legou ‘a muito nobre gente’ que realizou, sem dúvida, mais do que prometia a força humana” (p. 26). A propósito dessas palavras, a autora atrai o leitor para elementos típicos da história do litoral – baleias, engenhos, corsários, conventos etc. –, construindo uma paisagem na imaginação do leitor. Ao afirmar-se o significado documental dessa iconografia, orienta-se o olhar do leitor para a categoria de pitoresco. Não se trata, pois, de um testemunho das ruínas, embora a elas esteja associado. As marcas do tempo são evidenciadas por hachuras e trincas sobre a dignidade dos edifícios. Nos traços pretos sobre o branco do papel, na ausência de cores, Tom Maia faz desaparecer o fundo da imagem, o céu, o horizonte. O objeto da representação ocupa o lugar central do desenho. Esse procedimento próprio do bico de pena reforça o laço simbólico documental do tema tratado. 17 Diante de Paraty, afirmou: “Encontramos em Paraty quatro igrejas, sendo três do século XVIII; um acervo de 40 imagens de médio e grande tamanho, todas, menos três, de madeira. Um riquíssimo conjunto de pratas litúrgicas e coroas de ouro que reputamos, pelas suas características locais, únicas no Brasil” (Etzel, 1974, p. 148). Em seu livro, onze fotografias em preto e branco são dedicadas aos quatro templos históricos de Paraty; a Igreja de Santa Rita foi a mais retratada (cinco imagens), enfatizando sua talha. 136 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A pintura de paisagens que articula a imagem pitoresca ao sentido documental da arquitetura pode ser vista nas telas de Omar Pellegatta. No dia 1º de maio de 1974, a Câmara Municipal de Paraty reuniu-se para homenagear e agradecer o presente que recebera desse pintor: o óleo sobre tela Igreja Nossa Senhora das Dores. Pouco depois, a Editora Renyi, dedicada a reproduções artísticas, publicava quatro pranchas de Pellegatta (36 x 44 cm), acompanhadas do texto de Joel Andrade Loes. Pellegatta nascera em Busto Arcisio, Itália, em 1925, mas dois anos depois estava radicado no Brasil, onde viveu e desenvolveu-se na carreira artística. Percorreu as cidades históricas de Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, São João del-Rei, Sabará e Paraty, entre outras, dedicando-se ao “colonial brasileiro”. Ao longo do texto, pequenos desenhos em bico de pena decoram as grandes páginas. As pranchas focalizavam aspectos urbanos, três dos quais com arquitetura religiosa em destaque: Igreja Matriz, vista ao fundo da perspectiva de uma rua com casario; Igreja de Santa Rita, mostra-a pela lateral da capela, com partes de casas no primeiro e último planos; Recanto de Paraty projeta os fundos da Igreja das Dores, com vista da baía; Sobrado da Rua da Praia apresenta residência amarela com decoração nos cunhais, diante da qual a rua é tomada pela água. As cores representam um elemento importante da composição, sobretudo em janelas e portas – amarelas, verdes, azuis –, mas também nos detalhes desgastados dos edifícios: em tons esverdeados ou amarronzados, reforça uma categoria temporal. Os céus apresentam grande quantidade de cinzas, mesclados em azuis e vermelhos. A serra, diluída na paisagem, varia entre verdes, azulados, marrons. Os objetos centrais da representação são as edificações, as quais ocupam o centro das composições, mesmo em planos amplos, como em Recanto de Paraty. Ao espectador, esses tons esverdeados e amarronzados permeando as pinturas de Pellegatta promovem uma concentração, um peso, por assim dizer, sobre os objetos da representação. O espaço plástico da paisagem desenvolveu-se grandemente nas cidades históricas e turísticas, nas décadas de 1960 e 1970. Hiroshi Murakami, nascido no Japão, morou desde 1979 em Paraty, e trabalhava em óleo sobre tela, em um paisagismo detalhista e em cores profundas. Paulo Gomes, ali instalado pela primeira vez no ano de 1981, tem um paisagismo mais iluminado, de linhas um pouco mais fluidas e igualmente detalhado. Esta técnica clássica acurada deixou de ser a predominante em Paraty nas últimas duas décadas, não obstante, encontra alguns praticantes, tais como o pintor André Meurer, radicado em 2009, com a esposa e artista Luciana Machado. 137 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Nos relatos dos artistas, surgem referências a algumas galerias abertas em Paraty, dentre as quais a do senhor Ribeiro, dono de teatro em São Paulo, morreu em Paraty. Notadamente, tem-se a galeria de Abel de Oliveira, que contava com a parceria do artista plástico Marino Gouveia, em um salão no pavimento térreo de um casarão histórico. Nesse local, apresentavam-se artistas de outras localidades, ao mesmo tempo em que se fomentava a exposição de produções locais. No atual “Restaurante do Abel”, quem adentra o recinto pode contemplar algumas obras pictóricas penduradas nas paredes do estabelecimento. Chamam atenção os traços pretos sobre a parede branca deixados por Takaoka, em 1964, seus cavalos em movimento, cuja representação se tornou símbolo do local. Num canto, estão preservados quatro desenhos sobre papel, dois de 1963 e dois de 1964. Uma ampliação de um escrito de Juscelino Kubitschek, assinado e datado de 1972, está exposta para recordar o visitante: o senhor Abel é parabenizado pela iniciativa de criar uma galeria de arte, frente a todas as dificuldades. As paredes abrigam telas de moldes variados, uma grande imagem de uma festa religiosa, em traços populares, e outra de aspecto surrealista, de Moussin, sobretudo: são as paisagens da cidade que se apresentam ao olhar, tais como S. Rodrigues Júnior, Zechetto e Steuer, Pellegatta, entre outros. Além destes, expôs pinturas de Di Cavalcanti, Graciano, Djanira e Mário Zanini, entre outros (Durand, 1989, p. 96). 3) Ingênuos e primitivos Dentre as pinturas expostas naquele restaurante, está uma “vista do morro do forte sobre a baía com a Igreja Matriz”, por Djanira, artista que ocupa lugar central nas narrativas de Paraty. Todos os artistas entrevistados mencionam o “tempo de Djanira”, com o sentido de primórdio da arte paratyense. Há um significado histórico nesta apreensão social da pintora. Ela destaca-se das configurações plásticas documental, pitoresca e paisagística, situando-se em um espaço visual designado “ingênuo”. As biografias de Djanira não conferem grande importância a sua passagem por Paraty, tendo em vista sua associação a artistas viajantes em seus diversos deslocamentos, muito fecundos do plano estético. Não obstante, há registros de que a pintora “encantouse com o bucolismo e os horizontes de Paraty” (Barata, 1985, p. 20), na década de 1950, 138 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. quando adquiriu um sítio dotado de casarão onde morou com o marido, o historiador José Shaw da Motta e Silva.18 Algumas pinturas e desenhos são remanescentes desse período, a exemplo das reproduções apresentadas no catálogo A arte sob o olhar de Djanira (2005), da coleção do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, instituição que recebeu a doação do espólio da artista em 1984. Dentre elas, Igreja de Santa Rita (s.d., óleo sobre tela) e Esquina de Paraty (1957, grafite sobre papel). Se, por um lado, nota-se a importância que a paisagem paratyense teria para o conjunto da obra da artista, por outro lado, é certo que sua estada na localidade introduziu um espaço visual novo, a ser desenvolvido por alguns artistas locais. Júlio Paraty costuma afirmar: “Hoje dizem que eu sou um discípulo de Djanira, e eu digo que sim. E agradeço muito ter conhecido a Djanira, eu acho que sou um sortudo, uma pessoa iluminada...” (entrevista ao autor, Paraty, 19 jun. 2009). Em que medida poder-se-ia considerar esse espaço plástico específico “ingênuo”? No fundamental ensaio de Mário Barata (1985), sustenta-se a incorporação dos valores da sensibilidade do povo brasileiro pelo modernismo, em meio ao qual Djanira, “à base de um ajustamento espontâneo com a criatividade popular em sua evolução e sua maneira de ser”, não faz surgir apenas o folclore como tema, mas “a própria irradiação de valores que ela infunde na imagem desse fundo de vida popular” (p. 23). Para esse historiador, Djanira não pertencia nem ao grupo de pintores de um plano “erudito”, nem ao de “primitivos”. Nas décadas de 1940 e 1950, ocupava uma posição “singular” na arte brasileira; estabeleceu tanto um elo com a pintura “primitiva” – “pelo que representa de autenticidade popular” – quanto com as manifestações “que exprimem uma mais evoluída preocupação intelectual” (p. 22). O “primitivismo” que “irritava os acadêmicos mas era bem aceito pela sensibilidade moderna”, naquele período, permeou o trabalho de Djanira: “seu pretenso primitivismo é o primitivismo de grande parte do espírito moderno” (p. 24). Como os primeiros primitivos ou ingênuos, a pintora está ligada às coisas do Brasil, mas nela nota-se nela o impacto da percepção da imaginária barroca. O mundo da representação, nas cenas campestres ou urbanas, acentua “as estruturas das coisas e dos seres, intensa e intencionalmente” (Barata, 1985, p. 26). Daí o autor afirmar o “nãoprimitivismo” da artista (p. 24): por negação, circunscreve o campo dos “ingênuos” e a 18 Exposição Djanira em Paraty, organizada pela Secretaria de Turismo de Paraty, Museu Nacional de Belas Artes e Instituto Nacional do Patrimônio Histórico, 1997. 139 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. retira de lá. Estes últimos, “preservam a sua imagem fixada sempre nos mesmos termos” (p. 22). Em suma, ao se reconhecer Djanira nos primórdios das imagens de Paraty, deve-se relevar sua contribuição ao espaço plástico ingênuo, o qual, porém, não se traduz diretamente da experiência popular, mas em gênero pictórico caracterizado pela pintura em cavalete, em cores primárias sobre tela, em cenas campestres ou referidas às tradições populares. Júlio Paraty autofilia-se ao grupo ingênuo ou naïf, o qual congrega outros paratyenses, tal como João José de Silva e Lúcio Cruzz, bem como Themilton Tavares, radicado naquela cidade desde 1975.19 A narrativa biográfica de Júlio remete aos 12 anos de idade, quando pintava tampas de caixas de sapato com os produtos de maquiagem da sua mãe. “Descoberto” pelo poeta José Kleber, teve estímulo para expor no Bar do Abel. Conta que foi à casa de Djanira com o pai, especialista em hidráulica, e que teve a oportunidade de receber da pintora suas primeiras instruções técnicas, por volta de 1965 (entrevista ao autor, Paraty, 19 jun. 2009). O tema do Divino aparece em muitos dos trabalhos realizados na “arte ingênua” do município, desenvolvendo elementos das festas e tradições populares. Themilton, escritor, professor e comunicador, chegou ao lugar com dez anos de pintura em experiências abstratas, realistas e surrealistas, e lá fixou sua temática nas tradições paratyenses. Não obstante, esse espaço visual varia muito entre os artistas, na técnica, na forma e no conteúdo dos trabalhos. Lúcio Cruzz pinta sobre placas de compensado recobertas de papel machê e cimento, conferindo volume aos personagens. Dalcir Ramiro, nativo de Paraty, escultor e ceramista de importante projeção no campo artístico, transpõe a tradição para o elemento étnico brasileiro ao mesmo tempo em que atualiza as formas em belas figuras alongadas e cilíndricas. O primitivo aqui é de outra ordem: sem deixar de operar com a tradição plástica ingênua, sintetiza as formas em seus elementos mais essenciais. 4) Diversidade no espaço visual contemporâneo As expressões plásticas mais recentes têm como característica a abertura de novas significações no espaço visual e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo imagético em continuidade com aqueles indicados nos itens anteriores. As mudanças 19 A exposição Expressões da tradição, Associação Paraty Cultural, 18 jan. a 28 fev. 2007 , reuniu Júlio Paraty, João José da Silva, Themilton Tavares e Benedito Martins. 140 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. podiam ser sentidas, por exemplo, com a mexicana Patrícia Sada, na cidade há mais de duas décadas, é uma artista sensível aos processos estéticos, trabalha tanto com a reunião de objetos naturais, como galhos, quanto com a pintura sobre suportes convencionais. Em ambos os casos, aplica traços e cores de modo muito delicado, capaz de configurar um espaço visual de características singulares. Veja-se também Ruth Rohrer, que, com exímia técnica, trabalha um espaço pictórico simbolista, retendo elementos da paisagem local, criando outra atmosfera. Durante a década de 1990, ocorreu um grande afluxo de artistas, numa época em que Paraty contava com mais de 23 mil habitantes, quando ocorreu a apresentação do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (1995) (Silva, 2004, p. 163). Artistas que já frequentavam o lugar começam a participar de um campo profícuo de divulgação, tal como Fernando Noronha, mergulhador da baía de Paraty desde 1964, pintando temas subaquáticos em acrílico. Em Paraty desde 1990, Humberto Souza Lima volta-se para a tradição histórica, não apenas folclórica como nos “ingênuos”, mas na herança da iconografia católica e portuguesa, designada “barroca”. Dalva Lacerda, pinta paisagens e temas nacionais, chegou a ocupar o cargo de Secretária de Turismo e Cultura de Paraty. Renata Rosa, na cidade desde 1993, transpôs suas pinceladas para imagens abstratas, nas quais densidade e movimento da cor são notáveis. Este espaço visual chama a atenção do espectador, sobretudo pelo contraste com as obras pictóricas figurativas que dominam as galerias locais. O croata Renato Koledic, que visitou a cidade em 1991, depois de uma estada na Argentina, trabalha sobre elementos da flora e recortes de paisagens do litoral. O alemão Hans Hornig mudou-se em 1994, depois de residir sete anos no Rio de Janeiro, onde já praticava desenhos paisagísticos. Célia Regina Canosa, na cidade desde 1996, focaliza a flora e a fauna da Mata Atlântica. No último ano da década de 1990, Sérgio Atilano e Fernando Fernandes chegaram com o intuito de produzir tanto literatura quanto pintura, cuja expressão é o Estúdio Bananal, um espaço de arte contemporânea e diálogos acerca da política da arte, transferido de São Paulo para Paraty. Na década de 2000, novos artistas instalaram-se na cidade. Aécio Sarti, nascido em Aracajú (SE), chegou em 2004. Pinta com tinta óleo sobre lona de caminhão reciclada, com destaque para as figuras humanas, sua indumentária e seus movimentos. Nesse mesmo ano mudou-se Juan Icaruso, pintor que focaliza a população em 141 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. pinceladas difusas. No ano seguinte, Rodrigo Lamonthe Cotta dedica-se a detalhes do espaço urbano em pastel seco sobre canson. Marília e Ricardo Inke passaram a se dedicar à arte quando moravam no alto da Mantiqueira, em São Bento do Sapucaí. Não obstante, a constatação dos limites para a comercialização e o potencial que se desenvolvia em Paraty suscitou o projeto de mudança, concretizado em 2004. Marília pinta em acrílico sobre tela ou fibra de bananeira e Ricardo trabalha com aquarela; ambos devotos da paisagem local, em vistas do casario e dos monumentos, ou em detalhes de elementos extraídos do ambiente paratyano. Convém notar que Ricardo Inke tem se dedicado ao fomento das artes, na organização de eventos como o Festival dos Artistas de Paraty (FAPP, 2006) e os Encontros Internacionais de Aquarelistas (iniciados em 2009). Ambos eventos organizados em colaboração com o artista Luis Angel Garcia, da galeria Navegare Art. O aquarelista e músico José Andreas também participou desses eventos e, pessoalmente, está empenhado em projetos que contam a história do Brasil através de imagens de aquarela em eventos musicais públicos. Lauro Monteiro formara-se engenheiro, mas, devido à predileção para as artes plásticas, abriu o estúdio Varanda em Araraquara (SP), cidade onde foi Secretário de Cultura. Pouco após o término de sua gestão, em 2006, transfere o estúdio para Paraty, instalando-o na rodovia Cunha-Paraty. Trabalha com coleções temáticas, em diálogo com a arquitetura e a decoração e apresenta figuras de cores vivas, em elementos extraídos da cultura brasileira. O jogo da mimesis Em entrevista ao pesquisador, Sérgio Atilano chamou a atenção para as formas de uma composição em gravetos de madeira corresponderem ao calçamento das vielas de Paraty. Na intuição de Luiz Costa Lima (1995, p. 31), refletindo sobre a inter-relação entre a poesia cabralina e a atividade de pintores contemporâneos, ao afastarem-se da ornamentação e da figuração, “a abstração era um modo de conquistar o concreto”. Mesmo no limite das formas em movimento de Renata Rosa, na recusa à referencialidade, retoma-se a questão desenvolvida por Gadamer sobre a atualidade da mimesis. 142 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Luiz Costa Lima foi, dentre os brasileiros, aquele que melhor apresentou a contribuição da mimesis para a compreensão das imagens contemporâneas. No contexto da arte, esse conceito versou sobre a imitação da natureza até o final do século XVIII, quando os românticos, em nome da expressão, anunciaram o seu fim. Porém, com sua retomada, Costa Lima (1989, p. 268) afirma: “ao invés de ser o correspondente (não importa quão distante ou aproximado) à voz latina da imitatio, haveria de ser pensada como um fenômeno produtor de diferença.” Outra contribuição importante sobre esse tema foi fornecida por Michel Ribon (1991), que em seu ensaio sobre arte e natureza diria: “Se a obra nos toca tão forte, é porque, no final das contas, ela é a mimesis da nossa condição humana: eis aí sua dimensão de universalidade” (p. 80). Para chegar a essa afirmação, Ribon procedeu à revisão da arte como imitação da natureza, da arte como imitação da subjetividade do artista e, ainda, da arte como imitação da própria arte. O exercício da imaginação, entre a percepção e a criação, sempre impôs às formas da natureza um processo de abstração na confecção da imagem. Toda arte, mesmo figurativa, opera um trabalho de abstração, uma constante do espírito humano, que movimenta o mundo das formas: “o real é renitente; na arte abstrata, o mundo exterior está presente não apenas como vazio e ausência mas também na textura do suporte material da obra e nas suas massas coloridas” (Ribon, 1991, p. 74). O termo imitação desapareceu do campo da crítica e da historiografia mais que dos domínios da estética, afirmou Alberto Tassinari (2001, p. 56), ao formular sua proposição acerca do “espaço em obra” para a arte do século XX. O naturalismo é apenas uma das formas de imitação. Fora desta concepção, a imitação pode ser percebida em uma imagem sacra medieval, ao tornar presente um ser ausente, também em uma escultura ioruba pode despertar a presença da divindade de modo intenso: “A relação entre o imitante e o imitado só mostra corretamente o grau de presentificação do imitado quando a obra está inscrita em práticas culturais de uma determinada sociedade” (p. 61) No espaço em obra da arte moderna, a proximidade entre imitado e imitante é menor, o espectador não encontra suporte na imitação nos processos naturais da visão, nem em processos mágicos e religiosos. Além disso, a distinção entre o espaço em obra e o espaço naturalista deve-se ao primeiro imitar o seu fazer por meio de sinais, ao passo que o espaço naturalista imita por meio de imagens. Acerca da sugestão de Costa Lima sobre ser a mimesis um fenômeno produtor de diferença, no contexto da produção de imagens em cidades turísticas, será necessário 143 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. um outro estudo. Aqui não se pretende aprofundar todas as relações possíveis no plano político, econômico e estético das imagens de arte em Paraty, tampouco apresentar uma história detalhada, com a totalidade dos artistas. Em uma coletividade tão extensa, muitos nomes e práticas não puderam ser contemplados. À guisa de conclusão, cabe sintetizar os procedimentos do método e a observação das imagens de arte, visando a contribuir em pesquisas futuras dedicadas ao mundo das imagens em localidades turísticas, bem como em comunidades de artistas que emergem em bairros de grandes cidades ou, ainda, em espaços compartilhados sem uma geografia precisa. A compreensão das imagens de arte em Paraty emerge dos dois procedimentos principais, a observação do espaço social e a descrição dos processos temporais, primeiramente, com a delimitação de espaços plásticos ou visuais, denominados a partir de índices originários do fenômeno. Considerou-se estes índices em termos de categorias, as quais são ao mesmo tempo perceptivas e cognitivas, a partir de então integradas em relações, visando às estruturas de significado dispostas em rede no processo histórico. Nesse âmbito, visualiza-se na longa duração os pintores de estandartes religiosos e outras manifestações populares, difundidas até a metade do século XX: seu trabalho remonta à tradição ibérica e recebeu novo alento com as atividades turísticas. A monumentalização do espaço urbano e edifícios históricos, entre 1940 e 1966, marca o início da produção de imagens operadas pela ampla categoria de imitação, dentro da qual estão inscritas em três subcategorias articuladas: “documental”, “pitoresco” e “paisagístico”. As décadas de 1990 e 2000 foram descritas aqui em termos de “diversidade”, com o grande afluxo de artistas para a cidade, a ampliação do mercado consumidor, o incremento das atividades turísticas e a ocupação de casas de veraneio no litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Começam a acontecer festivais de artes, em 2001 na Galeria Flamboyant, e, em 2005 e 2006, os Festivais de Artes Plásticas de Paraty. Em maio de 2006 foi realizada uma exposição na Pinacoteca da Câmara Municipal de Paraty, com leilão de obras cuja produção ficou a cargo de Hans Hornig. Para concluir, pode-se observar a abertura de novas significações no espaço visual e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo imagético em continuidade com as formas tradicionais. Notou-se imagens absolutamente novas, a exemplo de Renata Rosa, em pinceladas abstratas, nas quais densidade e movimento da cor são notáveis, ou com Sérgio Atilano, cuja expressão plástica vincula política e arte. Esse espaço visual da diversidade contém práticas de abstração, novas figurações, impressionistas, 144 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. expressionistas e iniciativas propriamente contemporâneas. No plano da técnica, foi interessante registrar a tendência ao uso da tinta acrílica sobre suportes variados, com ênfase na tela. Em movimento polar à diversidade, a tensão é estabelecida com a continuidade de categorias remanescentes, sobretudo, pela força figurativa dos elementos paisagísticos provenientes do ambiente paratyense: a serra, o mar e a cidade; a fauna e a flora; o casario e as igrejas; as marinas e os pescadores. No decorrer desta narrativa o conceito da mimesis, tal como proposta por Gadamer e Costa Lima, demonstra sua atualidade e solicita aprofundamentos na compreensão de sua pertinência na vida social contemporânea. Além disso, instiga a compreender o significado das imagens nas cidades turísticas, quando o sentido documental deixa de ser frequente, mas a categoria do pitoresco persiste e ganha novas formas e cores. 145 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 9. Sobrevivência da paisagem na pintura Imagem e paisagem Imagens de paisagens estão em todos os lugares. No visor de celulares, no desktop de computadores, em outdoors, nas novelas e documentários televisivos, nos filmes, em diversos sites da rede mundial de computadores –, sobretudo naqueles que comercializam viagens e turismo –, nas paredes de restaurantes, em lojas de cidades turísticas, nos consultórios de advogados, dentistas e médicos. A lista não tem fim e, desde o início, instala um paradoxo. O mundo dentro da imagem, a referência ao mundo dentro do próprio mundo. A pintura da paisagem na paisagem da cidade; o jogo da mimesis. Não obstante a anunciada decadência do gênero paisagístico na pintura, um grupo expressivo de pintores da atualidade dedica-se a ele. Quando se percorre uma cidade turística como Ouro Preto, Paraty ou Olinda tem-se diante do olhar diversas manifestações artísticas, de esculturas a bordados, de mosaicos a poemas e performances. Em algumas delas, o grande número de pinturas salta aos olhos e, quando nos detemos sobre essas imagens, é notável a grande quantidade de paisagens. A imagem de uma paisagem pictórica em uma viela da cidade de Paraty é muito corriqueira para intrigar o espectador sobre o jogo de ilusões. A mesma alienação vale para todas as outras formas da paisagem que cruzam o campo da percepção na vida cotidiana. Porém, no espaço plástico da tela está inscrita uma questão histórica de longa duração. Para além dos estudos da estética e da história da arte, no campo da psicologia social a duração das imagens coloca-se como questão fundamental, pois articula a percepção, os processos da cognição e da memória com a experiência da vida social. Ao estudar a atividade dos artistas nas cidades turísticas francesas, Lajarte (1995, p. 42) insiste no fato de a natureza não ser abandonada na arte do século XX, aparecendo em movimento nos futuristas, em formas estruturais nos cubistas, em uma dimensão oculta nos surrealistas. Recentemente, ocupou os espaços da arte ambiental, 146 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. da Land art ou da Earth art. O que desapareceu do centro do campo artístico foi a forma do gênero paisagístico do século XIX, baseada na concepção retiniana e na perspectiva clássica. Não obstante, na França, a paisagem acadêmica sobreviveu na costa da Normandia, em Barbizon e Auvers sur Oise, cidades turísticas que se desenvolveram em grande medida com a atividade de artistas viajantes ou residentes. Mas qual o significado dessa imagem paisagística? Estudos sobre paisagens têm recentemente circunscrito pesquisas elaboradas no cruzamento de três referências: o simbólico, o iconográfico e o ambiente geográfico. Nessa linha, por exemplo, foi organizado o volume de Cosgrove e Daniels (2000), intitulado The iconography of landscape, especialmente enfocando as relações entre a representação simbólica e os usos de “ambientes históricos”. Os organizadores afirmam que a paisagem é uma imagem cultural, o meio de representar ou estruturar simbolicamente os lugares. As montanhas, as praias, as cidades históricas, as igrejas, os casarios e as ruas estreitas são objetos culturais, não apenas coisas físicas: são inscritos em processos sociais que envolvem aqueles que se percebem na constituição do mundo. A paisagem constitui-se assim como uma experiência cultural, tal como afirmou Ulpiano Bezerra de Meneses (2002b). É algo material que se dá à percepção, mas não como um dado a priori, dispõe-se numa relação entre observador e objeto. Portanto, não se deve pensar a percepção de modo realista, supondo uma materialidade e objetividade morfológica da paisagem, tampouco de maneira idealista, como projeção do observador. Por essa razão, pode-se falar que a paisagem, a montanha, o casario, a cidade, têm história, constitui-se como experiência sensória, a qual poderá elevar-se ao plano da estética (Meneses, 2002b, p. 32). Nas cidades turísticas, a história da percepção considera as práticas turísticas, lembrando o conhecido livro de John Urry (1996) a mostrar a produção social do olhar do turista em relação à propaganda, à literatura e à cultura de massa. Além disso, a experiência perceptiva é modulada, histórica e culturalmente, entre outras fontes, por modelos artísticos (Roger, 2000, p. 37). A história da percepção fornece ao pesquisador uma série de “categorias” que nomeiam experiências sensíveis, da percepção e da cognição, por intermédio de imagens pictóricas. Baxandall (1991, p. 48) considerou tais categorias como classificações dos estímulos visuais numa dada experiência sóciohistórica, expressando em palavras a constituição de formas de perceber no interior de 147 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. campos sociais como indícios de experiências intersubjetivas entre processos perceptivos de artistas, de espectadores, de viajantes e de turistas.20 Paisagem, pintura e história Observando o espaço brasileiro, desde a exploração da América portuguesa, amplia-se como fundo da cena histórica, ao atingir um ponto alto no século XIX, o reconhecimento do gênero paisagístico, no qual é a própria paisagem o tema e o objeto próprio do pintor, emancipando-se do cenário e do fundo de outros temas privilegiados. As relações com o espaço plástico europeu não são sincrônicas, tampouco diretas na constituição dos significados. Toda a ebulição no campo artístico das “vanguardas históricas” teria importantes consequências para o tema paisagístico, uma história relativamente bem conhecida, sobre a qual farei apenas alguns apontamentos. Em olhar retrospectivo, para a América portuguesa, a paisagem pictórica ocupava o segundo plano na pintura religiosa. No retábulo da sacristia da igreja dos jesuítas de Embu (SP), atrás de um Cristo crucificado, uma paisagem urbana apresenta série de construções de três pavimentos, pontuadas de torres, sob um céu carregado de nuvens. Nas imitações de azulejos das igrejas mineiras, as paisagens pastoris também se fazem notar. Eram cenários sobre os quais as cenas principais se desenvolvem-se, e os elementos desses ambientes em geral versam sobre paisagens europeias extraídas de gravuras. No dicionário da pintura brasileira de Teixeira Leite (1999), o primeiro paisagista a figurar em nossa história foi o holandês Franz Post (1612-1680), chegado a Recife em 1637, durante o governo de Maurício de Nassau. Ao qual seguiram outros holandeses, como Albert Eckhout (1610-1666), que esteve também na Bahia e no Chile. Alguns traços significativos são notados, por exemplo, no ex-voto de Agostinho Pereira da Silva, onde as “prodigiosas mercês” estão ambientadas em uma natureza tropical, e no painel do Convento de Santo Antônio de Igaraçu (PE), no qual São Francisco de Assis prega aos pássaros envolvido pela natureza do país. O autor focaliza sobretudo a pintura na qual a paisagem contenha elementos referidos à terra brasileira, demonstrando uma 20 De modo geral, os termos enunciados estão associados à experiência estética, tais como sublime, pitoresco, encanto, trágico, entre outros (Tatarkiewicz, 1992). Neste sentido, está-se considerando não apenas os termos seu uso restrito, mas como indicativos de experiências psicossociais. 148 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. transformação no objeto da imitação, durante longos anos baseado em cópias de missais e gravuras do Velho Mundo. Os pintores holandeses do período de dominação holandesa no Nordeste são determinantes nos estudos históricos pela documentação que suas obras representam. No aspecto estilístico pouca ou quase nenhuma influência teriam no transcorrer da história da pintura na América portuguesa, então circunscrita às trocas com a metrópole. De modo geral, o paisagismo da pintura ingressa como gênero no Brasil nas primeiras décadas do século XIX, desde as atividades de pintores como NicolasAntoine Taunay em suas paisagens da cidade do Rio de Janeiro, e também Adrien-Aimé Taunay e Félix-Émile Taunay. Ao lado destes, Jean-Bapiste Debret elaborou seus estudos da natureza, da fauna e da gente, elementos inscritos em paisagens de rigorosa composição clássica, como se nota em Rugendas. Segue-se essa toada com outros viajantes estrangeiros a percorrer estas terras durante toda a primeira metade do século, em registros preciosos das vilas e regiões visitadas, a exemplo do extenso material visual do catálogo organizado por Ana Maria Belluzzo (1999). As imagens produzidas por viajantes estrangeiros no Brasil eram, por um lado, modeladas pela experiência de viagens europeias, notadamente à Itália, e, por outro lado, introduziam modelos de percepção para as paisagens brasileiras. Belluzzo (2008) exemplifica essa situação indicando o interesse pelas pequenas capelas nas colinas, entre elas a carioca Igreja da Glória do Outeiro. Para a historiadora, estas formas de perceber não apenas derivam de critérios convencionais, como promovem convenções, reproduzidas ao longo do tempo em outros suportes, a exemplo dos cartões postais. Estas e outras imagens que recheiam os manuais de história da arte brasileira fazem daquele século, em grande parte, o século da paisagem pictórica. Com o italiano Nicollò-Antonio Facchinetti (1824-1900), em sua série da Mantiqueira, tem-se a paisagem como tema central, em vastas áreas montanhosas sob céus iluminados. Na citada cronologia de Teixeira Leite (1999), têm-se os trabalhos de Sousa Lobo, Georg Grimm (chegado ao Brasil em 1874) e Arsênio Cintra da Silva, entre os primeiros pintores ao ar livre no país. Em 1861, Sousa Lobo, associado ao escultor Almeida Reis, fundara no Rio de Janeiro uma sociedade de artistas – o Acropólio – em cujo programa achava-se a interpretação direta da natureza, sem recurso às cópias preliminares d'après nature (recurso utilizado por Facchinetti, por exemplo). A própria Academia, desde 1865, passara a exigir de seus pensionistas na Europa que lhe remetessem, no primeiro ano de permanência, estudos do natural. 149 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Nesse sentido, foi significativa também a primeira bolsa de viagem à Europa concedida a um pintor paisagista, Agostinho José da Mota: “Retomando ao Brasil, levava seus alunos da Academia a fixarem os pontos pitorescos das cercanias do Rio de Janeiro. Infelizmente, pouco produziu, mesmo porque teve vida curta, falecendo em 1878 com apenas 54 anos”. São muitos os nomes cuja enumeração seria desnecessária e a leitura dos historiadores da arte informa as particularidades e projetos estéticos de cada um. Antônio Parreiras, Castagneto, Henrique Bernardelli, Pedro Alexandrino, Almeida Júnior, Benedito Calixto, cada qual a seu modo, manteve o gênero paisagístico em alta no Brasil no início da República. Campos, marinas, vilarejos, recantos bucólicos preenchem os quadros dedicados à paisagem. Das viagens românticas à figura do artista marginal, no espaço europeu, estabeleceu-se uma prática artística ligada à vivência íntima da natureza, em uma espécie de comunhão, para a qual a imagem da paisagem tornou-se uma mediação. Têm-se notícias de excursões, nas quais o culto à natureza aparece associado ao nudismo e a práticas artísticas, em alguns casos ao vegetarianismo e a estações de cura. O movimento em direção ao outro da cultura europeia, na África e na Oceania, trouxe a figura humana para o centro da composição, em suas diferentes formas e expressões. No espaço plástico, tais experiências conduziram ao surgimento da chamada “paisagem decorativa”. A paisagem decorativa abandonou a referencialidade: não se precisava reconhecer o lugar, formando-se uma imagem esquemática ou abstrata: pensava-se que os pintores fauves desenvolviam uma forma de paysage décoratif (paisagem decorativa) a qual, argumentou Roger Benjamin, parece “ter sido uma adição modernista à divisão acadêmica tradicional entre a paisagem histórica (paysage historique) com figuras em ação heroica e a paisagem rural (paysage champêtre) com seu cenário rural mais intimista” [...]. Para críticos da época, a paysage décoratif era aquela na qual o tema não precisava ser um lugar reconhecível; era vista crescentemente como um meio para um fim mais “decorativo”. Nesse contexto, o adjetivo “décoratif” significava uma imagem esquemática ou abstraída, e podia ser ligado a conceitos de barbare ou naïf, quer esses termos fossem usados pejorativamente, quer como medida do estatuto inovador da obra. (Perry, 1998, p. 50) Nas idas e vindas entre a Europa e o Brasil, formou-se entre nós todo um imaginário da paisagem pictórica no qual se encontram variações de técnica e estilo, sem, no entanto, grandes rupturas com o espaço plástico clássico até a segunda década 150 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. do século XX. Belmiro de Almeida, por exemplo, aventurou-se no pontilhismo, Eliseu Visconti dialoga com o impressionismo, Artur Timóteo oferece paisagens em cor e luz próximas ao pós-impressionismo, assim como Viegas de Toledo Piza sofreu influências de Cézanne. Mesmo no plano da temática encontrar-se-á um Interior bretão pintado por Presciano Silva. A cultura do bretonismo antecede, nos pintores brasileiros, a articulação entre paisagem e memória decisiva na produção de Tarsila. Os chamados modernistas da primeira geração perturbaram um pouco mais o espaço plástico da paisagem, quando lhe colocam questões, porém, sem destruí-lo. Em Tarsila do Amaral, é notável a oposição entre a temática urbana industrial e o vilarejo histórico e campestre. De volta ao Brasil, em 1919, Goeldi falou que “sentia-se mais ou menos como Gauguin na Ilha” (citado por Zílio, 1997, p. 45). A realização artística de Osvaldo Goeldi deveu-se, em grande parte, a sua atenção para as pessoas dos subúrbios, vagabundos e comunidades de pescadores. Diferentemente de Tarsila, seu processo pessoal não obedeceu a um movimento contra-aculturativo em busca da síntese antropofágica, uma vez que promove um questionamento renovador no interior do expressionismo, utilizando aquilo que Zílio (1997, p. 45) chamou de um “dispositivo de descentramento”, ou seja, “situar as questões trazidas do centro a partir de um ponto de vista da margem”. O Grupo Bernardelli propunha passeios pelos arredores do Rio de Janeiro e os membros do Grupo Santa Helena excursionaram pela periferia paulistana, então notável em seus arrabaldes campestres. No intuito de retomar o discurso acerca do “declínio do gênero paisagístico”, pode-se citar mais uma vez a obra de referência de Teixeira Leite (1999): Os paisagistas brasileiros que trabalharam após 1922 postaram-se com frequência à margem dos movimentos de vanguarda, e às vezes deliberadamente dando-lhe as costas. Alguns desses paisagistas foram individualistas ferrenhos, trabalhando em isolamento; outros pertenceram a grupamentos, como o Núcleo Bernardelli, do Rio de Janeiro, ou o Grupo do Santa Helena, em São Paulo. Finalmente, após 1951, com a gradativa internacionalização da arte brasileira coroada pela Bienal de São Paulo, a praxe foi o abandono ostensivo da paisagem por parte dos artistas mais jovens, continuando a praticá-la somente pintores de gerações mais velhas. No catálogo da mostra 50 anos de paisagem brasileira (MAM-SP, 1956), consta: Os clássicos, românticos e realistas dominaram a paisagística brasileira até por volta de 1922. Os mestres de então legaram-nos um magnífico documentário entremeado de obras de excelente qualidade, dignas de figurar entre as que, na mesma época, se apresentavam nos salões oficiais e oficiosos da Europa. 151 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. O marco paulista de 1922 é apenas esquemático, uma vez que a pintura de paisagem continuou prática corrente em alguns artistas até a década de realização da mostra. Não obstante, a demarcação de períodos, de ascensão e queda do gênero, é indicativa do processo de significação do campo artístico. Observando esse catálogo, tem-se um sinal sobre os rumos da paisagem: “Muito curiosa e mesmo rica de sugestão foi a produção dos chamados primitivistas ou ingênuos. Juntando amiúde à paisagem cenas de festas e cerimônias religiosas ofereceram à arte brasileira uma nota realmente original.” (50 anos de paisagem brasileira, 1956) Sustentando essa configuração, Theon Spanudis (1964) sintetizou a paisagem tipicamente na pintura moderna, tanto em Tarsila do Amaral quanto em José Antônio da Silva. Neles encontrou “a paisagem sintetizada e exaltada das terras férteis e tropicais” que, apesar das diferenças, têm em comum “algo de épico e exaltado”: “A exuberância da vegetação e dos coloridos, a exaltação dos sentimentos perante estas festividades da natureza, são típicas em ambos os artistas” (p. 82). O assinalado fim da pintura paisagística foi, na verdade, uma passagem do gênero entre grupos sociais distintos. Ali estavam penduradas telas de José Antônio da Silva, a reforçar o ingresso do pintor popular no campo artístico, sob uma designação: naïf, ingênuo ou primitivo. Noutros espaços expositivos, apareciam manifestações ligadas à experiência da loucura, na pesquisa do inconsciente dos surrealistas e na valorização da produção originária dos hospitais psiquiátricos e na posição anti-cultural da Art Brut, paisagens fabulosas de criadores de origem popular como Aloïse, Adolf Wölflin e o médium pintor Augustin Lesage. No Brasil, tal abertura expôs ao público as belas paisagens de Emydgio de Barros e Aurora Cursino, entre tantas outras “ingênuas” ou “surreais”. Por essa via, a pintura paisagística sobrevivia, mas em um movimento excêntrico ao campo artístico. Mais recentemente, uma recuperação do gênero pode ser sentida em alguns pontos do campo artístico. Frederico Morais (1995, p. 10) indicou: passado o período áureo da abstração, a figura retorna, mas a “nova paisagem” nada mais tem a ver com a observação da natureza: no máximo ela evoca sentimentos ou emoções. O pintor não se coloca mais devant la nature, mas devant la peinture, ela mesma. Suas paisagens são puras invenções. Conceitos. Dentre os artistas referidos, encontram-se Sérgio Fingermann, Cláudio Tozzi e Gregório Gruber. 152 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Ao pesquisador que não se restrinja às hierarquias do campo artístico, ao que é nomeado “verdadeira” ou “maior” arte, projetando o olhar para um campo mais expandido do que aquele circunscrito pelo discurso e pelas relações de poder, encontrará uma produção pictórica instigante nas cidades turísticas. Esta pintura é imediatamente descartada pela crítica especializada, por representar uma sobrevivência tardia de práticas superadas historicamente, ou meramente designadas de “arte turística”, objetos destinados ao consumo no mercado do turismo. Turismo, história e arte no Brasil Comparativamente à Europa, o turismo no Brasil ainda é uma atividade recente e seus pesquisadores não atentaram para as dimensões entre o desenvolvimento histórico desse campo e as diversas articulações com as imagens de arte. A organização empresarial das práticas turísticas data dos anos 1950, quando foram notadas as primeiras vendas de pacotes que incluíam passagem, hospedagem e passeios num mesmo produto. Antes disso, percebia-se a operação de viagens pelo Brasil, a partir das primeiras décadas do século XX, através de roteiros marítimos que margeavam a costa e visitavam cidades como Salvador, Recife e Porto Alegre, entre outras. A história do turismo solicita uma correspondência à história econômica da organização empresarial para a exploração econômica dos deslocamentos humanos, bem como a apreensão cultural do fenômeno do deslocamento na experiência das viagens, no sentido do movimento dialético das viagens – invenção de distinção de lugares e práticas, seguida da consagração por grupos socioculturais dominantes, e depois a difusão (Boyer, 2002, p. 393). Não é esse o objetivo deste estudo. Aqui tem-se como eixo tão-somente a articulação do fenômeno do turismo às imagens de arte, particularmente à pintura de paisagens. De modo esquemático, poder-se-ia dividir essa história em quatro momentos articulados. (1) Do século XIX até primeira década do século XX: circulação de viajantes estrangeiros pelo Brasil com fins científicos, início de viagens mais regulares de filhos das elites brasileiras para estudos no exterior. (2) Primeira metade do século XX: um “turismo eventual”, sem organização e regularidade nos pacotes, principalmente voltado para a venda de passagens de navios para o exterior, com a intensificação da prática das elites em enviar seus filhos para a Europa; viagens 153 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. nacionais principalmente via marítima. (3) Entre os anos de 1950 e 1970, “organização empresarial do turismo”, com os primeiros pacotes regulares e incremento dos produtos, com a inclusão, ainda tímida, do transporte aéreo – a criação da EMBRATUR data de 1966. (4) Dos anos 1980 aos nossos dias difundem-se as viagens rodoviárias e aéreas, notam-se forte ampliação da oferta hoteleira, seleção rígida de pontos de interesse e padronização do consumo turístico. A procura de pacotes turísticos que tenham a arte, ou mesmo o patrimônio histórico, como atrativo primário é restrita no Brasil, não obstante o seu crescimento na última década, sobretudo se incluirmos os espetáculos teatrais e musicais. A arte aparece, em grande parte, como atrativo secundário, completando a estadia do grupo mobilizado por outros motivos. Os roteiros mais comercializados no país em que a arte ocupa lugar de destaque, como as “cidades históricas de Minas” ou, em menor escala, as “Serras Gaúchas”, ou talvez os museus e galerias paulistanas, carecem ainda de uma investigação mais precisa por parte da psicologia social. No caso dos “centros históricos”, sabe-se sobre a busca de um ambiente distinto daquele em que vive o cotidiano, que seja identificado com certo bucolismo. Depois, em menor número, encontramos os leigos interessados em ampliar seus conhecimentos sobre a história e a arte do país, ao mesmo tempo em que desfrutam de uma viagem de descanso, aqui incluído grupos de escolares. Por fim, aparece o reduzido público especializado (artistas, historiadores, arquitetos etc.) que viaja em excursões de escolas e universidades, ou individualmente, com a finalidade primeira de conhecer aspectos culturais de seu interesse. A questão está no jogo entre a imagem do país no cenário internacional, como base para um desenvolvimento geral do turismo, e a imagem do país para os seus habitantes, no crescimento e valorização do turismo interno. Apenas para resumir o estudo minucioso de Luiz Gonzaga Trigo (1998), no caso do Brasil, a construção de imagens deu-se de várias formas, desde as pesquisas de antropólogos europeus sobre os índios amazônicos até a de alguns governos que implicitamente reforçam a representação da sedução da mulher brasileira, do futebol e do carnaval. A imprensa internacional também cumpre o seu papel, noticiando sobre os problemas da floresta tropical ou sobre a criminalidade no Rio de Janeiro.21 21 “Graças à criminalidade e à má imagem do Brasil (especialmente do Rio de Janeiro) no exterior, vários estados estão investindo em publicidade, mas desvinculando-a da imagem tradicional, ligada à antiga ‘cidade maravilhosa’. É o caso da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e outros seis estados do Nordeste, 154 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Deixando de lado esta problemática para focalizar o objeto deste estudo, a imagem de arte, cabe lembrar que a articulação entre o turismo e a arte no Brasil se estabeleceu entre o modernismo e a formação da categoria de “barroco”. Como demonstrou Andriolo (2009 e 2010), as viagens de intelectuais paulistas em busca de referências estéticas para a uma história da arte brasileira conduziu-os a Minas Gerais, onde as edificações, esculturas e pinturas do século XVIII foram inicialmente identificadas como origem de nossa arte, dos quais são exemplares os escritos de Mário de Andrade e Lourival Gomes Machado. Nesses dois autores, e entre tantos outros nas duas gerações do modernismo, o barroco mineiro emerge como objeto estético e atrativo turístico. Imagem pictórica das cidades históricas brasileiras Na constituição do campo turístico, as imagens produzidas com a temática das “cidades históricas” contribuíram para a ampliação da área de recepção definida pelas publicações literárias nos grandes centros urbanos da metade do século XX. Por sua vez, os poderes públicos locais, sobretudo nas antigas cidades de exploração aurífera em Minas Gerais, apropriaram-se da função social das imagens de arte. Para além das telas famosas de Guignard, outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades turísticas. Ao estudar a formação do campo artístico no Brasil, José Carlos Durand (1989) notara as inter-relações entre as práticas artísticas, o turismo e a defesa do patrimônio histórico. Em abordagem sociológica, examinou o quanto a valorização da cultura material das cidades remanescentes do século XVIII e a proposição de uma arte nacional na categoria de “barroco” fomentou o surgimento de um circuito de viagens e estimulou o comércio de obras de arte antigas e contemporâneas, notadamente a pintura. Diversos aspectos dessas cidades converteram-se em temas inesgotáveis em pinturas. Ouro Preto é o exemplo mais famoso do Brasil, assim como a primeira cidade a estabelecer-se nessa articulação entre a produção de um passado artístico nacional e a prática artística contemporânea (Andriolo, 2009b). que fortaleceram a Comissão de Turismo Integrado (CTI) do Nordeste para veicular a imagem da região no exterior. Durante o início da década de 1990, a CTI Nordeste investiu centenas de milhares de dólares no exterior para atrair visitantes para a região.” (Trigo, 1998, p. 33) 155 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Embora as ligações entre essas pinturas e o desenvolvimento do turismo sejam notáveis, tratá-las como objetos destinados ao mercado turístico seria um equívoco e resultaria em incompreensão acerca do lugar das imagens na sociedade brasileira. Além da relação com o olhar do turista, os pintores propõem olhares sobre a paisagem. Carlos Bracher, por exemplo, vive em Ouro Preto desde 1971 e diversas pinturas suas transformam a cidade em imagens, as quais podem ser vistas em séries no livro de João Adolfo Hansen (1998). Carlos Scliar morou na mesma cidade e, como seu colega, não se limitou à temática local e tampouco destinou suas obras ao consumo do turismo. Ambos encontraram na cidade um ambiente importante de trabalho e elementos para suas composições. No catálogo da exposição Scliar, a persistência da paisagem (1991), pode-se ver as fotografias de seu ateliê, bem como o Políptico: Ouro Preto 180º, de 1973 (vinil encerado, com 10 módulos, 65x100 cm cada). Poder-se-á esboçar conexões entre os artistas circulando pelas diversas cidades históricas e turísticas brasileiras, criando um imaginário artístico compartilhado. Uma artista viajante a percorrer as cidades históricas foi a pintora Djanira da Motta e Silva. Nascida em Avaré (SP), no ano de 1914, trabalhou sobre paisagens tanto em Paraty quanto em Ouro Preto. Na primeira, chegou a morar na década de 1950, quando adquiriu um sítio com o marido, o historiador José Shaw da Motta e Silva. Mário Barata (1985, p. 20) considerou que a pintora “encantou-se com o bucolismo e os horizontes de Paraty”. De Ouro Preto, tem-se a imagem da Igreja de Antônio Dias (1955, óleo s/ tela, 51x61,3 cm, MNBA, Rio de Janeiro, RJ), em registro frontal do monumento, com a paisagem ao redor sintetizada em formas geométricas e cores laranja, ocre e marrom. Em sua ampla produção, a experiência da arte e da arquitetura coloniais resultará em estudos de iconografia católica, seja na forma de azulejos, seja em pinturas e desenhos de figuras sacras. A pintura de paisagens pode ser vista nas telas de Omar Pellegatta a visitar cidades como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, São João del-Rei, Sabará e Paraty. Nesta última localidade, realizou trabalhos focalizando aspectos urbanos, sobretudo, destacando arquitetura religiosa e casario. As cores representam um componente importante da composição, sobretudo em janelas e portas, amarelas, verdes, azuis, mas também nos detalhes desgastados dos edifícios, que em tons esverdeados ou amarronzados reforça uma categoria temporal. Outro exemplo, Arnaldo Navajas Filho (nascido em São Paulo, 1943) iniciou sua carreira com trabalhos no Parque do Ibirapuera, depois pintou representações das 156 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. cidades de Embu e Santana de Parnaíba (SP). Navajas Filho frequentou as aulas de Ado Malagoli, no III Festival de Inverno em Ouro Preto, em 1974, produziu uma série de óleos e aquarelas e realizou exposições em Ouro Preto e Belo Horizonte dedicadas ao “barroco”. Márcio Franco (nascido em Lagoa Santa, MG), visitou tanto os ateliês quanto os festivais de Ouro Preto, durante a década de 1970, nos quais pôde desenvolver sua técnica. Depois, participou de atividades na escola de artes do Parque Lage, no Rio de Janeiro, e dos cursos da UFMG, para então fixar-se em Paraty, no ano de 1982. Sua linguagem elabora temas tropicais, da fauna e da flora, aplicados a grandes formatos. Nas estadas em Ouro Preto, Márcio Franco conheceu a técnica de Carlos Scliar. Face aos vínculos com as cidades históricas de Minas, poder-se-ia citar também Helen Navajas, natural de São Paulo (SP), viveu em Ouro Preto antes de mudar-se para Paraty. Nas primeiras décadas do século XX, em São Paulo, a cidade colonial ganhava forma em pinturas na proposta do Museu Paulista, então dirigido por Affonso Taunay. O diretor dessa instituição foi o responsável pela contratação de artistas como Benedito Calixto, José Wasth Rodrigues e Henrique Manzo para a realização de imagens de uma cidade estacionada no tempo. As paisagens dessas cidades foram construídas a partir das fotografias de Militão de Azevedo. Não se trabalhou em cópias idênticas, mas, sem grandes alterações, enaltecia-se os detalhes, fazendo da imagem de uma São Paulo republicana um retrato da cidade colonial: “uma cidade vazia, estável, sem quaisquer sinais de crescimento ou mudanças” (Lima & Carvalho, 1993, p. 156). Dentre os artistas estava José Wasth Rodrigues, que se dedicou a retratar meticulosamente o patrimônio brasileiro, a exemplo do livro Documentário arquitetônico (1944), e foi chamado de “grande artista do turismo” (O Estado de São Paulo, 05 maio 1957, p. 21). Além de promover a realização daquelas pinturas em nível local, Taunay participou do processo de valorização de Ouro Preto quando, em dezembro de 1925, passou três dias na antiga capital de Minas: “… contemplou do ‘adro de São Francisco de Paula’, na hora de uma da tarde merencória de Dezembro passado, o aspecto solene do cenário ouro-pretano e o gravou no excelente e lindo escrito que hoje a ‘Tribuna de Ouro Preto’, agradecida em nome da cidade, por cujos interesses vive, transcreve do ‘Correio Paulistano’.” Adiante, afirma o periódico: Ao que sabemos incumbiu o ilustre historiador a um célebre pintor nacional de confeccionar um grande painel para ser colocado no vestíbulo do Museu Paulista e nesta tela, aproveitando-se de fotografias que possui de Ouro Preto e do conhecimento pessoal da 157 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. topografia local, figurarão partes da nossa cidade, cujo pitoresco aspecto todos admiram. (Tribuna de Ouro Preto, 21 mar. 1926, p.3) Na origem, têm-se dois componentes importantes na formação da imagem pictórica das cidades históricas: 1) a representação da arquitetura e do espaço urbano colonial sem sinais de mudança; 2) a referência à paisagem colonial em termos de “pitoresco”. Oswald de Andrade, através do movimento pau-brasil, divulgou as imagens captadas na famosa viagem de 1924. O “Manifesto da poesia pau Brasil” foi publicado primeiramente no Correio da Manhã, dia 18 de março de 1924, logo depois do retorno. Tarsila do Amaral, desde sua viagem à França, demonstrava preocupação em usar os remanescentes da arte brasileira como elemento de suas obras. Na opinião de Aracy Amaral (1975, p. 95), na França, Tarsila aprendera a cultivar a arte tradicional como parte do projeto moderno, sobremaneira influenciada por aquela viagem a Minas, donde as pinturas e desenhos de Tarsila desse período são como documentos sobre a viagem, imagem visual que muito contribuiu nas representações futuras das “cidades históricas”.22 As cores ocuparam um lugar importante na formação da imagem pictórica do Brasil. Como notou Carlos Zílio (1993), as cores das habitações e decorações das casas populares e remanescentes do século XVIII seriam, para os modernistas, expressão do vínculo com a tradição cromática comprometida com a visualidade brasileira. “Para Tarsila, as cores industriais de Léger são o modelo do moderno a serem transformadas através de uma ótica contra-aculturativa” (Zílio, 1993, p. 43): “Seu objetivo não é o de representar o Brasil mas a apreensão de um novo ‘clima’ marcado pela convivência entre a industrialização recente e a sociedade rural, presente e passado são articulados por um olhar ingênuo e afetivo”. Mesmo em sua fase antropofágica, para Zílio, o esforço de superação no interior de uma cultura provinciana não permite que a pintora consiga constituir um sistema moderno coerente, ainda que aponte esta possibilidade. Não obstante, naquela iconografia, a imagem da “cidade antiga” forma-se em oposição à “cidade moderna”, o bucolismo do pitoresco em contrate à industrialização dos centros urbanos. Nesta 22 Nas palavras de Tarsila do Amaral (1939): “As decorações murais de um modesto corredor de hotel; o forro das salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas; as pinturas das igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas geniais da sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para nossas exclamações admirativas. Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras…” 158 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. oposição desenvolve-se um terceiro componente na formação da imagem pictórica da cidade histórica. Tais imagens encontraram um momento importante de circulação durante o governo Vargas, período em que se formou no Brasil a ideia de patrimônio, como mediação entre a população e o conhecimento da história nacional, de modo que a visibilidade das obras herdadas e reabilitadas pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) tornava-se importante instrumento de conhecimento. A necessidade de visualizar as obras, somada ao interesse dos intelectuais eruditos em textualizar suas práticas de viagens, levou à produção de um novo gênero literário nos anos 1930: os guias de viagem (Andriolo, 2003). A primeira obra relevante do gênero foi escrita por Gilberto Freyre e dedicada à cidade do Recife, em 1934.23 No trabalho de Freyre observado desde Casa grande e senzala (1933), como já mencionaram diversos autores, os objetos herdados do passado, a cultura material (mobiliário, construções, indumentária etc.), ganharam relevância fundamental nas análises sociológicas e nas descrições das cidades. Das publicações financiadas pelo Governo Federal naqueles anos, por intermédio do SPHAN, encontrase um guia dedicado à cidade de Ouro Preto escrito por Manuel Bandeira, editado em 1938. Nas últimas décadas, uma quantidade importante de guias ilustrados chegou às livrarias, mas, sobretudo, a imagem inscreve-se na ordem da fotografia. Dentre os guias, os primeiros títulos sobre as cidades históricas foram produzidos por Edgard de Cerqueira Falcão: Relíquias da Bahia (1941) e Relíquias da terra do ouro (1946).24 O guia turístico, naquele contexto, cumpria a função de vulgarizador do conhecimento erudito. Trata-se de um gênero literário fundado na necessidade prática de realização de viagens, auxiliar o viajante na escolha dos caminhos, da hospedagem e do que olhar. Mas funciona também junto ao imaginário do leitor, fornecendo-lhe imagens significativas, operando como mais um instrumento de percepção e cognição. Os guias e os cadernos de turismo dos jornais estão entre os principais meios para a constituição simbólica dos atrativos turísticos entre as décadas de 1930 a 1970 no 23 Mantenho a distinção entre os guias publicados no século XX e os congêneres de séculos anteriores, como, por exemplo, o Guia do estrangeiro no Rio de Janeiro, de Félix Ferreira, ou Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, de Joaquim Manuel de Macedo. Embora não sejam obras totalmente distintas, há uma transformação na narrativa e descrição das viagens. No Brasil do século XIX, não se previa a organização econômica do turismo como nos anos de 1930, fato que promove uma diferenciação tanto de forma quanto de conteúdo das edições. 24 Poder-se-á encontrar a sobrevivência de trabalhos ligados ainda à ilustração manual, tal como o livro As sete portas da Bahia (1976), escrito e desenhado por Carybé e com prefácio de Jorge Amado; embora não seja um guia, inscreve-se no conjunto de imagens de paisagens das cidades turísticas brasileiras. 159 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Brasil, quando se ampliava o consumo da literatura especializada devido à necessidade de operacionalizar as viagens. Nos guias escritos por Gilberto Freyre, dedicados às cidades do Recife e Olinda, nos anos de 1934 e 1939, respectivamente, encontra-se um tópico voltado a pintores e fotógrafos. “Recife é a cidade dos pintores”, afirma de início, e continua: “Talvez por causa de sua luz. Talvez a sua luz seja um estímulo à pintura mais do que a qualquer outra arte.” (Freyre, 1934/1968, p. 56) Com o sol que ilumina a cidade, o artista Emílio Cardoso Ayres teria aprendido “as combinações de cores vivas, tropicais, ardentes”. “Teles Júnior foi paisagista que se deliciou em pintar águas recifenses. Inclusive as águas do velho Lamarão, de um verde às vezes azulado, mais dramático do que lírico. Mas também as do Capibaribe não só nos seus dias tranquilos como nos de ‘cheias’ ou enchentes.” (p. 57) Os contemporâneos nascidos na cidade: Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Francisco Brennand, pintor e ceramista. Dentre os pintores, cita Fédora do Rego Monteiro Fernandes, Mario Nunes, propriamente um paisagista, Lula Cardoso Ayres, “pintor por excelência do Recife”, cujo ateliê em Boa Viagem desvela-lhe a paisagem marítima. Aloísio Magalhães interpreta o Recife em sua pintura: “Um mar liricamente recifense o que ele vê quase todos os dias”. Vindo de fora, o desenhista Manoel Bandeira (não se trata do poeta) ilustrou também algumas edições dos guias de Freyre, e é elogiado por sua capacidade no desenho exato, no traço fino e precisão das formas, assim como na “ternura lírica” quando o tema é recifense. Foram esses mesmos pintores os que se dedicaram a Olinda em meados do século XX. Gilberto Freyre designou tais imagens como “realismo poético”, as quais permeariam também o trabalho de fotógrafos, a exemplo de Benício Dias, cuja produção revela “em pessoas e coisas recifenses alguma coisa de ‘mais real do que real’” (p. 59). Teríamos aqui um quarto componente na constituição dessas imagens, embora o autor não circunscreva especificamente a temática das cidades históricas. Ao lado do registro que sinaliza a permanência, o pitoresco e o bucólico, tem-se a designação do “realismo poético”. Os pintores tipicamente recifenses parecem guardar de Franz Post e dos holandeses a tradição de artistas preocupados em ser exatos nos traços e nas cores, embora os mais expressionistamente poéticos dentre os pintores atuais desta parte do Brasil saibam [...] juntar a essa preocupação o empenho de revelação ou sugestão de uma verdade como que escondida dentro das pessoas e das próprias paisagens; e 160 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. que só transparece nas pinturas que vão além do realismo apenas descritivo. (Freyre, 1934/1968, p. 58) Cumpre ressaltar a importante participação de Luis Jardim na ilustração do guia. Edições posteriores enriqueceram o livro com desenhos de Rosa Maria e fotografias de Pepito, de Lula Cardoso Ayres e Clarival Valadares. Jardim foi também o desenhista escolhido para rechear o Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira (1938). Seu traço em bico de pena o distingue de outros desenhistas, como Watsh Rodrigues, embora ambos caminhem na direção da precisão da representação do patrimônio. A cidade de Olinda abrigava 56, no ano de 1982, quando seu prefeito sugeriu que “Olinda estivesse para Recife assim como Montmartre para Paris.” (citado em Durand, 1989, p. 97). Atualmente, as imagens de arte encontradas à venda nas lojas e ateliês de Olinda são muito variadas, porém, autores de apuro técnico e naturalismo são recorrentes, a exemplo de Wagner Santos, em cenas do casario, vida urbana, tipos sociais, etc. Chico Laranjeira trabalha, por assim dizer, na linha dos naïves. Manasses, por outro lado, explora domínios de geometria mais ou menos figurativos. Ao lado dos intelectuais modernistas, a imagem das cidades históricas resulta de articulações políticas em diversos níveis, desde o projeto do Museu Paulista até a obra arquitetônica da Pampulha, em Belo Horizonte, durante a prefeitura de Juscelino Kubitscheck, reunindo artistas como Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle-Marx. Ivone Vieira (1988, p. 92) considerou o traço distintivo de Guignard ser o componente lírico. Suas telas entregam ao espectador paisagens fluídas, oníricas, com montanhas e brumas matinais. As nuvens-montanhas oferecidas por Guignard informam mais um componente para a imagem da cidade histórica: o componente lírico. Em Ouro Preto, a ideia de “cidade histórica” é acompanhada por elementos indispensáveis à sua representação. Ali, a movimentação das nuvens é obscurecida pela recorrência da bruma. A edição dos festivais, desde sua inauguração em 1956, era realizada em abril, mas foi transferida para o inverno, num período do ano quando se realça a paisagem brumosa da cidade. A própria origem da localidade está situada em junho, quando a bandeira de Antônio Dias encontrou as montanhas cobertas pela névoa. A representação da bruma agregou-se ao produto turístico, mas também penetrou no imaginário nacional brasileiro, conferindo significação à “cidade histórica”. Como notou Damasceno (1994, p. 138): “A temática da luz e da bruma está presente desde as primeiras narrativas que noticiam o descobrimento do ouro. Calcadas em precária documentação, tendo como fonte 161 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. principal os relatos do jesuíta Antonil, [...] possuem elas um inegável componente lendário”. Nas telas e nas tintas, a fluidez das nuvens, da névoa, da bruma enlaça os olhares do pintor e do espectador; despertam-nos para a viagem. Ouro Preto tornou-se uma comunidade de artistas. Foram mencionados Carlos Scliar e Carlos Bracher como dois importantes exemplos de permanência da paisagem pictórica no espaço visual contemporâneo. Outros artistas mantêm a paisagem e o ambiente como questão, a exemplo de Fernando Lucchesi, com seu ateliê em Ouro Preto: resgatando o imaginário popular dos objetos rituais da tradição mineira encontrado nos oratórios, candelabros, vitrais, flores, armários, mesas e baús, Lucchesi constrói um outro fragmento da paisagem mineira, recriando, com refinamento artesanal e vibração cromática, as histórias cotidianas do barroco, da colônia... (Ribeiro, 2000, p. 303) Por fim, a cidade de Paraty ingressou nesse processo de modo significativo, geograficamente estabelecida entre Rio de Janeiro e São Paulo, atualmente situada no roteiro turístico da “Estrada Real”. Na década de 1970, a pintura de paisagens que articula a imagem pitoresca ao sentido documental da arquitetura pode ser vista nas telas de Omar Pellegatta, Hiroshi Murakami, Paulo Gomes. Djanira é considerada a precursora do espaço plástico “ingênuo”, hoje praticado por Júlio Paraty e outros paratyenses, tal como João José de Silva e Lúcio Cruzz, bem como Themilton Tavares, radicado desde 1975. O tema do Divino aparece em muitos desses trabalhos, desenvolvendo elementos das festas e tradições populares. Embora esse espaço visual varie muito entre os artistas, na técnica, na forma e no conteúdo dos trabalhos. As expressões plásticas mais recentes têm como característica a abertura de novas significações no espaço visual e, concomitantemente, a manutenção de um núcleo imagético tradicional. Durante a década de 1990, ocorreu grande afluxo de artistas, congregando desde paisagistas e abstracionistas até práticas propriamente contemporâneas em composições e experimentalismos, a exemplo de Sérgio Atilano e Fernando Fernandes. . O movimento migratório não diminuiu, apesar das idas e vindas de muitos artistas. As imagens continuam a movimentar-se entre dois polos: novas experiências visuais e representações de paisagem em formas diversas. Que dizem os pintores sobre a paisagem? 162 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Além da observação de imagens produzidas no espaço das cidades históricas e turísticas, esta pesquisa pôde contar com a realização de conversas, conjugadas ao conhecimento do processo artístico na visita aos ateliês da cidade de Paraty. Os pintores foram convidados para entrevistas, as quais aconteceram entre 15 e 19 de junho e 26 a 30 de outubro de 2009. Dentre os nove pintores que aceitaram o convite, apenas dois dedicam-se à pintura abstrata. Todos os outros trabalham sobre temas figurativos, notadamente sobre elementos provenientes do ambiente local de Paraty: o casario, o mar, a serra. Dos não-figurativos, um deles foi contundente em afirmar que sua experimentação não é pura composição de formas – ao contrário do outro abstracionista – mas uma revisão das formas sensíveis do espaço urbano e natural local. Desse modo, a grande maioria dos pintores entrevistados dispõe-se a uma relação com o mundo paratyense cujo resultado é a sobrevivência do espaço visual da paisagem, sobre o qual elaboraram os seguintes comentários. Durante uma estada de três meses em Paraty, Marcio Franco teve sua atenção atraída pela cor verde: “é uma região verde, você tem verde em volta, uma variedade absurda de verde”. No meio da folhagem, via brotar outra cor, o vermelho, o laranja, o amarelo, diversas florações e animais, sobretudo pássaros. O fundo verde de seus quadros deriva dessa visão, verde sobre o qual organiza as formas em cores bem demarcadas. Diferentemente do gênero paisagístico clássico, aumenta a lente, aproximase dos detalhes da floresta e os transforma em imagem na grande escala da pintura sobre tela. Trata do assunto apontando um de seus trabalhos onde figuram helicônias. Reforça também a observação das bananeiras, nas passagens do verde em amarelo e da inflorescência rósea. Conforme afirmou, o ponto colorido é o ponto de partida. Marília Inke é amante das caminhadas na natureza. Descobriu a natureza de Paraty aos poucos. Comenta: “Eu sempre tive essa vontade de conseguir retratar a natureza com meus olhos, da minha forma de ver, que não é real, a ideia é ter uma característica própria para retratar a natureza.” Mas os elementos históricos também chamam sua atenção, atraem muitos turistas e artistas para o lugar, os artistas conversam, trocam ideias, o espaço do ateliê aproxima o espectador do trabalho do pintor. Os diálogos giram em torno de categorias específicas da percepção da cidade: “vista bonita”; “cidade inspiradora”; “um olhar para a arte”... São categorias compartilhadas na experiência de artistas, no olhar do turista e no imaginário da cidade. Observe-se a situação da Igreja de Santa Rita, com as montanhas ao fundo, uma vista privilegiada e compartilhada. 163 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Enquanto Marília dedica-se à pintura em tinta acrílica sobre papel ou folha de bananeira, seu companheiro Ricardo Inke é aquarelista. Ele prefere falar dos efeitos de luz sobre as coisas que propriamente de paisagens. Como os impressionistas, explora as variações da luminosidade durante os dias, horários e épocas do ano. Nas palavras do artista, a relação entre luz e sombra é mais importante que a beleza plástica do lugar em si, desta rua ou daquela casa específica. Esta concepção resulta do aprendizado com outros aquarelistas, notadamente, segundo conta, do convívio com os europeus. Em suma, uma paisagem “sem graça”, “singela”, pode ser explorada nos efeitos de luz e sombra, destarte, não se pinta as “paisagens bonitas”, as coisas óbvias. O belo é extraído da imagem pelos efeitos de luz. No trabalho de Ricardo Inke, a mimesis opera com o recurso ao objeto natural ou artificial, em uma recusa parcial ao objeto, reconhecido no jogo de cores que nunca abandona a figuração. Pondera sobre as técnicas: “No desenho a bico-de-pena, talvez aí sim, a busca do belo como vista bonita seja mais importante.” De outro lado, o esforço pela técnica artística não o faz abandonar as palavras acerca da expressão: “Na pintura, a ideia não é reproduzir o que a gente está vendo ali no momento, mas é passar para a pintura a emoção ou o sentimento que aquela paisagem causa e que você queira passar isso adiante”. Diferentemente do desenho e da fotografia, a pintura toma a paisagem como referência sem a copiar, “a partir dai viajase”. Pintor esmerado na técnica clássica acadêmica, André Meurer desenvolve em toda sua narrativa uma concepção acerca da relação entre o artista e seus objetos, em termos como “dom” e “inspiração”, o gênero paisagístico está sempre em pauta. Afirma: A paisagem, ela é o meu eu. É o meu interior. Tudo o que você queira se referir em relação à paisagem... porque a paisagem eu posso definir ela como vários caminhos. Eu posso definir ela como um prédio, uma árvore, uma cachoeira, um mar, um bosque, uma vegetação, um deserto. Até um deserto tem a sua beleza. Uma paisagem, ela está dentro de mim. A paisagem sou eu. Não obstante, a concepção clássica, atualizada no pensamento contemporâneo do artista, infiltra na percepção toda a sensibilidade do observador. Pois se a paisagem é o artista, ela deve ser como ele: “A paisagem, na verdade, é o meu eu. Se eu não sou feliz comigo mesmo, eu jamais consigo ver aquela paisagem, por mais mórbida que seja, ou bonita. Isso é o que eu vejo, na paisagem. É o meu interior, é o meu eu”. O jogo da mimesis está subvertido, entre o jogo de projeções do eu sobre a paisagem, sem o 164 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. abandono das categorias clássicas, da ideia do belo, mescla a imagem do artista e a noção de expressão. Outro exemplo de grande habilidade técnica é José Andreas, aquarelista, originalmente formado em desenho industrial e também músico. Para o artista, o desenhista desenvolve uma forma de olhar diferente de outras pessoas porque percebe o mundo como desenho. Esta afirmação parece conter tanto o desdobramento de uma concepção clássica quanto uma visão política do trabalho do pintor. “Então, digamos assim, uma paisagem que tenha determinada árvore, um pedacinho de mar, um barco. Eu olho aquilo e já vejo traduzido em desenho; uma pessoa que está passando ali vê uma árvore, um mar, um barco.” Embora trabalhando sobre figurações do espaço paratyense, não está circunscrito à concepção clássica. Recorda-se do grande significado que a escola de desenho industrial cumpriu em sua vida, pela importância dessa formação nos anos 1970, instigando o debate cultural e visual. Houve para ele um aprendizado visual que o possibilita hoje compartilhar formas de perceber com outros artistas. Assim, não tratava da qualidade da pintura ou do resultado final do trabalho, mas de um “olhar aprofundado”. Este seria o seu “ingrediente” para fazer algo “diferenciado”, depois vem a competência. Andreas trabalhou com Gonçalo Cárcamo, cuja técnica de aquarela é também notável e referência desta capacidade de olhar. Único nativo de Paraty, dentre os aristas com os quais o autor conversou, Julio Paraty sempre trabalha sobre o tema da paisagem, no modelo ingênuo que o caracteriza. Exclama: “Paisagem porque é uma cidade linda!”. Explora o universo das festas populares, a arquitetura, dispõe o casario em volumes e sempre apresenta uma igreja. Refere-se a um de seus guaches, intitulado Nossa Senhora das Dores: “Não tem uma figura, só tem a igreja e o pátio na frente”. A ausência de personagens reforçaria o valor do monumento e seu aspecto paisagístico, depois, o pintor lembra-se que retratou ali também um menino empinando pipa. Durante a conversa, está sempre a comparar os lugares como eram há trinta anos atrás e sua situação atual. Casas, flores, a imagem da pintura o ajuda a relembrar e a converter os lugares em traços ingênuos. As categorias da experiência estética e os significados das imagens Há duas concepções de paisagem expressas nas narrativas dos pintores: uma vincula o interior do artista ao seu projeto de criação, os elementos do mundo exterior 165 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. são subterfúgios, mais ou menos necessários, para a realização de si e do trabalho manual da pintura; outra se ancora sobre as qualidades externas do meio ambiente natural e construído, a serem transformadas em imagem pictórica, para a apreciação do espectador. Estas duas posições alternam-se nos pintores entrevistados. As palavras de Deborah Col Costa são exemplares dessas concepções e suas ambiguidades: “A alma se torna paisagem na reconstrução pictórica do mundo” (Festival dos artistas de Paraty, 2006, p. 20). Não obstante, mesmo em artistas voltados à experimentação as trocas com o ambiente são sensíveis. Sergio Atilano é exemplar. Em seu trabalho, o jogo da mimesis é levado para fora da tela, em dois procedimentos conjugados: primeiro, na dimensão material; segundo, na forma. No primeiro procedimento, recolhe elementos da natureza, gravetos, sementes, entre outros, os quais são manipulados, reunidos, dispostos em superfícies, às vezes pintados. No segundo, o arranjo das formas entre a matéria natural e o trato artificial pode referir ruas, montanhas, logradouros etc. Atilano, como outros artistas estabelecidos na cidade, tem uma forte ligação com a história e os processos políticos, econômicos e ambientais da localidade. Em suas caminhadas por Paraty, recolheu caquinhos de cerâmica na beira do mar, às vezes os pintava, outras deixava na cor natural: “A aplicação disso é uma estória das pedras. A cidade, para mim, é dessa forma, ela está presente, às vezes no jeito de montar o trabalho”. Embora distante da fórmula imitativa, a referência ao lugar aparece na composição das formas e cores, articulada não à observação direta, mas à experiência do pensamento, da memória e da imaginação. Os estudos contemporâneos sobre a paisagem na arte em Minas Gerais têm indicado um processo de transformações históricas em continuidade ao paisagismo pictórico de Guignard, nas décadas de 1960 e 1970, em artistas como Lotus Lobo, Luciano Gusmão, Dilton Araújo, Manfredo de Souzanetto e Madu. Como notou Marília Andrés Riberio (2000), apropriando-se de rótulos industriais ou interferindo conceitualmente na paisagem urbana, mantêm o tema da paisagem como questão. Se Guignard registra com maestria a paisagem lírica de Minas Gerais, consolidando uma poética moderna ainda impregnada de romantismo, Amilcar de Castro é o artista que inaugura a nova paisagem contemporânea mineira. A atitude de Amilcar, ex-aluno de Guignard, afasta-se de qualquer vestígio romântico e propõe a construção de uma paisagem neoconcreta, presente, aqui e agora, usando o material e o espaço circundante como eixo de sua poética. (Ribeiro, 2000, p. 301) 166 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Neste breve itinerário da paisagem pictórica brasileira, nota-se um desdobramento ambíguo. No chamado declínio do gênero no campo artístico, ela emerge com força nas cidades turísticas. Em parte, essa passagem foi articulada pelas categorias de ingenuidade, documental, respectivamente com vistas à identidade brasileira e à memória nacional. Nas palavras dos artistas, retomam-se também pontos de vista clássicos, impressionistas, expressionistas, entre outros. A formação da imagem da cidade histórica articula-se entre cinco componentes principais: (1) a representação da arquitetura e do espaço urbano colonial sem sinais de mudança; (2) a referência à paisagem colonial em termos de “pitoresco”; (3) a imagem da “cidade antiga” em oposição à “cidade moderna”, por meio do “bucolismo”; (4) o “realismo poético”, no dizer de Gilberto Freyre, pinturas que vão além do realismo apenas descritivo, que revelam “verdade escondida”; (5) as nuvens-montanhas oferecidas por Guignard informam o componente “lírico”, brumoso e fluído. Ao final, notou-se o desenvolvimento de uma outra mimesis, afastada tanto da teoria clássica da imitação quanto da auto-referência da arte: o ambiente é referido na colagem e manuseio de sua própria matéria e no recurso a uma paisagem vivida no domínio da história, da economia e da política. A psicologia social das imagens aqui formulada procura acompanhar a sobrevivência e metamorfoses das imagens na duração da história. A problematização examina as formas de perceber, os estilos cognitivos, o imaginário, por meio daquilo que J. T. W. Mitchell (1986) chamou de psicologia política das imagens. Se ao final notou-se a aparição da mimesis, durante todo o trajeto salta aos olhos a sobrevivência da pintura e a composição de imagens pictóricas nos moldes da imitação, representação do casario, igrejas, montanhas. Que significados psicossociais estão articulados a essa experiência visual? Para concluir este estudo, é preciso deixar a dimensão particular da vida de cada artista para cotejar as imagens entre si, formando grupos imagéticos e interpretando seus processos históricos. De modo esquemático, indicaria três eixos de significados, não de modo conclusivo, mas cuja pertinência deriva da observação do fenômeno durante toda a pesquisa: (1) a perda do sublime; (2) a imitação articulada à memória nacional; (3) a ingenuidade em referência ao país cordial. 1) A perda do sublime 167 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Nos viajantes do Brasil, Ana Maria Belluzzo (2008) havia identificado referências ao sublime como categoria da experiência estética, por exemplo, em pinturas de John Christian Schetky (1778-1874), representando o mar de Cabo Frio (RJ). Nas pesquisas sobre a prática pictórica nas cidades turísticas, essa categoria não foi registrada. Edmund Burke, além de político atuante, interessou-se pela percepção da natureza, quando em 1757 apresentou sua pesquisa filosófica sobre a origem do belo e do sublime. Esta ideia aparecera em 1652, na tradução em língua inglesa do texto clássico Do Sublime, atribuído a Caio Cássio Longino (c. 213-273). A obra de Longino foi depois traduzida em francês, por Boileau, em 1674, tornando-se referência sobre essa experiência da percepção baseada na força e intensidade, no efeito extraordinário e maravilhoso. Categoria fundamental do discurso e da poesia, foi considerada por Burke de difícil aplicação às artes visuais. Em suma, para Burke (1803/1995, p. 233), sublime é “aquilo que é próprio a excitar as ideias de dor ou de perigo”, aquilo que age como “terrível”, “a mais forte emoção que a alma seja capaz de sentir”. O espanto é o mais alto efeito do sublime. Na composição das imagens, a categoria serviu para organizar os elementos de modo a ressaltar a força da natureza em cachoeiras caudalosas, raios iluminados em céus sombrios, e também em tentativas de fornecer ao espectador a dimensão maravilhosa de um céu estrelado ou do deserto, conjungando os sentimentos de terror e admiração. Não ocupando os pintores, particularmente os das cidades turísticas, poderse-á pensar no deslocamento do sublime para as imagens fotográficas, capazes de captar a amplidão do mar e das montanhas em grande-angulares, em tonalidades e formatos. Não obstante, o termo associado a essas intensas imagens da natureza, sobretudo nas revistas sobre viagens, é “espetacular”, cujo significado será estudado noutro momento. 2) Imitação articulada à memória nacional O modelo da imitação, negado enquanto prática central do campo artístico, teve seu reaparecimento nas cidades turísticas, muitas vezes acompanhado de formas “impuras”, manifestas com alguns elementos de impressionismo ou expressionismo, como se observa nas pinturas e nos relatos de muitos artistas e críticos. No estudo específico sobre a formação das imagens de arte em Ouro Preto pode-se verificar que a atividade pictórica corresponde ao que se observou em grande parte dos discursos sobre as cidades históricas brasileiras, ou seja, uma permanência de formas conservadoras do 168 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. pensamento político e religioso. A representação artística de uma Ouro Preto turística foi traçada em moldes acadêmicos, ao mesmo tempo em que afinada com um discurso nacionalista acerca das origens da arte brasileira e da Inconfidência Mineira, concentrado nos monumentos católicos. Paradoxalmente, quando a paisagem da cidade histórica foi concebida em oposição às dos centros urbanos em expansão no país, os ambientes de penúria ocupados pela exploração aurífera e pelo trabalho escravo passam a ser representados como fragmentos de um espaço-tempo em que as vielas e o casario transmitem o bucolismo ausente nas grandes cidades. No plano da história das categorias estéticas, lirismo e bucolismo tornaram-se componentes para a organização de imagens pitorescas. Com a organização do campo do turismo no país, a partir da década de 1960, vários artistas são convidados a participar desse momento de representação artística da “cidade histórica”. Não obstante, pôde-se notar que a atividade pictórica nas cidades turísticas do Brasil passou por um processo de seleção segundo temas e técnicas privilegiados para o consumo do turismo, os quais vincularam as pinturas acadêmicas às imagens pitorescas e aos discursos nacionalistas, restringindo tanto a difusão de artistas que trabalhavam fora desse modelo quanto a própria percepção dos turistas que receberam essas imagens e, a partir delas, constituíram o seu olhar (Andriolo, 2008). 3) Ingenuidade do país cordial Na observação do fenômeno pictórico tal como se manifestou nas cidades turísticas aparece a categoria de “ingênuo” ou naïf. A relação entre pintura e ingenuidade foi tratada por muitos autores, em um movimento contraditório, no ingresso do artista popular no campo artístico – por exemplo, nas imagens dramáticas de José Antônio da Silva. Clarival do Prado Valladares (1966) notara esse processo como resultado de um sentimento romântico, de classe burguesa. O espaço plástico dos ingênuos seria de “fácil e imediata comunicação da intenção poética, geralmente lírica e evocativa de ambientes e cenas de um passado recente”, “capaz de se acomodar aos demais elementos da residência burguesa”, ao mesmo tempo em que pratica boa vizinhança com outras obras de arte, sem jamais transcender da narração, do processo descritivo de cenas e ambientes. Os ingênuos utilizam a técnica e a temática dos 169 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. primitivos-genuínos, porém “destituídos do nível e da qualidade exigíveis para uma conceituação rigorosa” (p. 42). A noção de ingenuidade na história da pintura popular brasileira apresenta pelo menos dois pontos de tensão. Primeiro, ao abrir-se à participação de membros de origem social diversa, o campo da arte ingênua deixou de abrigar apenas o restrito círculo de artistas populares dedicados à pintura. Assim, perdia seu referencial junto às classes populares e tornava-se aquilo que Frederico Morais (1981, p. 105) chamou de “massa informe de primitivistas”. O segundo ponto concerne à própria expressão artística das classes populares. A arte ingênua tornou-se um gênero pictórico no qual não se traduziam as categorias da experiência estética popular, mas um esquema técnico e temático; a pintura de cavalete, realizada em cores primárias sobre tela, representando cenas de vida campestre, com festas populares, casarios, fazendas, entre outros temas provincianos, na representação de um país idílico. A delimitação temática e técnica da “arte ingênua” ocultou os conflitos de classe social manifestos na produção plástica popular. Em primeiro lugar, devido a sua recepção a partir do olhar romântico do conhecedor de arte, delimitavam-se as obras de um Brasil imaginário, sem tensões e lutas sociais. Em segundo lugar, nos anos 1970, o campo da “arte ingênua” abria-se à participação de outros interessados que não apenas o restrito círculo de artistas populares dedicados à pintura. Por fim, produzindo a ilusão de harmonia campestre do ser brasileiro, o recurso à “ingenuidade” possibilitava também ele a inscrição do espaço colonial, o negro e o índio, entre outros traços da distinção social brasileira de modo pitoresco. Experiência social do pitoresco Retomando a formação da imagem da paisagem, particularmente na cidade histórica turística, cinco componentes estavam articulados: a representação do espaço urbano colonial sem sinais de mudança; a paisagem colonial em termos de “pitoresco”; o “bucolismo”; o “realismo poético”; o “lírico”. O movimento desses componentes organizou três eixos de significados: a perda do sublime; a imitação articulada à memória nacional; a ingenuidade em referência ao país cordial. O jogo da mimesis possibilita uma inter-relação entre o artista e o espectador, no qual aqueles componentes 170 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. e eixos de significados estabelecem uma dinâmica junto ao ambiente. Na compreensão desse jogo, o pitoresco é o dispositivo interior à mimesis capaz de operar a imagem da natureza e da cultura como experiência social, seja nos moldes acadêmicos, impressionistas ou ingênuos. Como categoria na imagem da paisagem, o pitoresco aparece, desde o final do século XVIII, ao lado de mais duas categorias centrais da experiência estética da natureza: o belo e o sublime. No olhar do turista, essas três formas de experiência movem-se distintamente, às vezes de modo contraditório. No Brasil, por meio dessa categoria, a paisagem da “cidade histórica turística” passa a ter importância conceitual para as análises do fenômeno turístico em relação à opressão dos grandes centros urbanos. Aquilo que é próprio para ser pintado era designado pelo termo italiano pitoresco. Na passagem entre o mundo dos viajantes e as práticas turísticas, a palavra pitoresco assume significados distintos, mas conjugados, seja como uma “paisagem digna de ser representada em pintura”, na acepção original, seja algo “típico”, “autêntico”, “folclórico” ou “arcaico”. No sentido original, ou nas derivações, Lajarte (1995, p. 34) situa um significado importante pelo termo manter-se ligado a pittore, pintar. Como apontaram Pinheiro e D’Agostinho (2004), na comédia inglesa The Tender Husband, de Richard Steele (1705), a palavra assumira o sentido moderno, apreendido e desenvolvido nos escritos de Ruskin. Descrevendo os elementos constituintes do espaço plástico pitoresco, Pinheiro e D’Agostinho remetem ao debate da arquitetura brasileira no início do século XX. Nestes casos, a imagem pictórica opera a mediação, também localizável na literatura, na propaganda, inscrita no interior da experiência social. A duração histórica do termo pitoresco relacionado as imagens impõe questões sobre a designação da sensibilidade que expressa. Trata-se de uma categoria intermediária ao belo e ao sublime, conformando uma atitude em direção à paisagem, natural ou pintada. Na origem, uma natureza insólita e curiosa, apreendida em fragmentos: “é a paisagem digna de ser admirada pelo caminhante ou pelo turista, exaltada pelos guias de turismo” (Lajarte, 1995, p. 34). Esta citação da socióloga francesa indica uma questão a ser explorada, qual seja, o sentido político dessas imagens quando convertidas em sinal para o olhar do turista. Ao estudar o início do século XIX, Gomes Júnior (2012, p. 108) distinguiu a viagem pitoresca da viagem científica por meio da incorporação de novas atitudes, por exemplo, a referência direta à lembrança na relação entre imagem e natureza – o 171 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. testemunho pessoal do viajante e o desenho sobre o motivo, “signos de autenticidade” –, assim como à noção de “simplicidade”. No final do Setecentos, a formulação terminológica em torno de romantique referia “frequência a lugares”, “paisagens”, as quais, descritas na literatura e na poesia, incitavam a imaginação, particularmente em relação ao afastamento das cidades, a presença de áreas verdes, rústicas, de encantos naturais; eis o “sítio romântico”. No Dictionnarie des Beaux-Arts de Aubin Millin, de 1806, pitoresco é assim definido: “diz a respeito de uma atitude, de um contorno, de uma expressão, enfim, de todo objeto em geral que produza ou possa produzir, por uma singularidade interessante, um belo efeito em uma pintura” (citado em Gomes Júnior, 2012, p. 109). Nesta acepção, o “efeito pitoresco” não trata de sentimentos elevados, mas de deleite da visão: “Se o efeito pitoresco pode ser alcançado com o agenciamento agradável de objetos e de grupos de personagens, pelos contrastes e pela disposição dos tons, das sombras e das luzes, é no trato dos detalhes – cabelos, panos, acessórios – que ele se afirma” (Gomes Júnior, 20012, p. 109). Entre os viajantes que percorreram as terras brasileiras, Ana Maria Belluzzo (2008) localizou precisamente o elemento pitoresco na composição de pinturas: “O termo pitoresco denota aqueles objetos que são propriamente aptos para a pintura.” Para a autora, tem-se o gosto pelo pitoresco no seguinte sentido: o olhar buscava as relações que revelassem a natureza digna de ser apreciada ou desenhada, segundo padrões poéticos arcádicos. O observador escolhia ângulos privilegiados para registrá-la sob valores consagrados pela pintura e pela poesia. A tradição pictórica ditava normas à natureza e só algumas combinações notáveis da natureza chegavam a constituir material adequado à arte. (Belluzzo, 2008, p. 46) No exemplo das pinturas do viajante inglês William Gore Ouseley (1797-1866), aparecem os passeios em lugares elevados, colinas e montanhas, as ruínas de igrejas, a flora, a costa litorânea. A vegetação está subordinada à composição e à convenção. A natureza deveria ser mostrada com “decoro”, “elegância” e “civilidade”, em um jogo entre o aspecto natural e o artifício da pintura (Belluzzo, 2008). Ao lado das referências geográficas e botânicas, elementos próprios da cultura brasileira foram também inscritos nas imagens sob a forma do pitoresco, aplicada a “valores rústicos”, como diria Belluzzo, no registro de lavadeiras negras, na vida cotidiana dos arrabaldes das cidades. Nessa medida, a mimesis, ao operar por meio do modelo pitoresco ressalta, de um lado, uma sensibilidade diante da natureza ou de 172 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. aspectos da natureza, que propiciam o devaneio ao distanciar-se das cidades, e, de outro lado, a participação de aspectos culturais no jogo prazenteiro do olhar, como se tornaram no Brasil as vielas, o casario, a capela, entre outros. O termo pitoresco acompanha as descrições de Ouro Preto. Auguste de SaintHilaire, em sua viagem de 1816, foi atraído pelo aspecto urbano de Vila Rica, cujas casas situadas nas encostas cercadas de vegetação possibilitavam vistas variadas e “pitorescas”, não obstante, as cores dos telhados e residências em meio às nuvens conferiam à paisagem um “aspecto sombrio e melancólico”. As torres das igrejas no alto dos morros lhe chamam a atenção, assim como a quantidade de cerca de dezesseis capelas e duas igrejas paroquiais (Saint-Hilaire, 1830/1948). Moreira Pinto (1907, p. 693), lançava uma apreciação que, embora não a considerasse “bonita”, a “gloriosa Ouro Preto” era referida em seu “aspecto pitoresco”, esboçando um guia de visitação à cidade. Como se verificou, o projeto de pinturas históricas de Taunay prolongaram os usos dessa categoria para a antiga cidade. O problema se torna explícito quando a imagem circula pelo campo do turismo, tal com afirmou Roland Barthes (1957, p. 121): “O Guide Bleu não conhece muito a paisagem senão sob a forma do pitoresco”. O pitoresco representado nesse tradicional guia francês está na origem da história do turismo, no século XIX, em referência a acidentes geográficos, montanhas, grutas, desfiladeiros, na apreciação de Barthes em correspondência ao mito alpino burguês, por meio do qual Gide associava a moral helvética-protestante (regeneração pelo ar puro, ideias morais nos cumes, ascensão como civismo). A experiência estética suscitada pelo Guide Bleu é mais rara nas imagens de planícies e planaltos. Arriscava-se, dizia Barthes, destruir todos os outros horizontes possíveis, e mesmo a humanidade das paisagens, face à sedução das áreas montanhosas. O guia não responde às questões que um viajante moderno poderia colocar ao atravessar uma paisagem real: “A seleção de monumentos suprime por sua vez a realidade da terra e dos homens, ela não explicita nada do presente, ou seja, de histórico, e por isso o monumento se torna indecifrável...” (p. 123). Conclui: contrário mesmo à sua proposta, o Guide tornou-se “instrumento de cegueira”. Quando Luiz Costa Lima propôs um reexame da mimesis, a ser compreendida no espaço social de circulação da imagem entre o autor e o receptor, considerava a atividade do imaginário na criação de novos mundos: “a mimesis literária supõe a sensação de semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença” (Costa Lima, 1989, p. 68). Na compreensão desse jogo social, o pitoresco é o dispositivo interior à 173 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. mimesis capaz de operar a imagem da natureza e da cultura como experiência social. A imagem da paisagem na pintura brasileira apresenta uma experiência social do pitoresco, na qual a afirmação dessa categoria corresponde à negação do sublime e à representação de um país sem conflitos. 174 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. 10. A transformação do mundo em pintura Imagem e imitação em psicologia social A observação da produção de imagens nas comunidades de artistas, particularmente em cidades históricas e turísticas, revelou a pertinência de dois itens significativos: a atividade pictórica e a imagem mimética. A sobrevivência de imagens baseadas na imitação em pinturas produzidas e comercializadas nas cidades turísticas é um caso particular de um processo mais geral acerca do fenômeno da mimesis. Na década de 1960, Robert Francès e Huguette Voilluame apresentaram uma pesquisa na revista Psychologie Française (1964) intitulada “Um componente do julgamento pictural: a fidelidade da representação”. Os autores examinaram as preferências de 97 adultos, entre trabalhadores, estudantes e artistas, e 312 crianças, de 6 a 16 anos, durante a exibição de quatro séries de pinturas. O resultado apresentou a ordem de preferência baseada no grau de “fidelidade” ao objeto representado, principalmente a relacionada à maior idade e ao nível de formação entre os adultos. Pesquisas em psicologia experimental e em neurociências têm reforçado a “preferência” do espectador pela perspectiva central e pela reprodução naturalista.25 Nas pesquisas em psicologia social, Hungerland (1954) observara a contribuição específica para a percepção das obras de arte fornecida pelos julgamentos provenientes da crítica de arte, ou seja, os discursos e as condições sociais poderiam contribuir para a compreensão do julgamento estético, além de determinantes fisiológicas ou neurológicas. No estudo pioneiro com público em exposições de arte, Bourdieu e Darbel (1969) confirmaram o processo pelo qual a estrutura social organiza a percepção de imagens de arte, em perspectiva histórica, pela duração das formas de perceber conforme determinadas representações e categorias de julgamentos. Daí a afirmação de 25 Por exemplo, no artigo de divulgação de Berd Kersten (2006), intitulado “Do jeito que a gente gosta”. 175 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Bourdieu (1968, p. 649) de que “o olho é histórico” e a obra de arte é feita pelo menos duas vezes, uma pelo artista e outra pelo público. Os estudos de recepção estética produzidos no Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte (IP/USP), inaugurados pelo professor João Frayze-Pereira, têm contribuído para compreender essas questões. As pesquisas desenvolvidas na exposição de Arte Incomum evidenciaram dois movimentos conjugados: (1) Frayze-Pereira (1995) constatou a emergência de temas românticos nas palavras de muitos espectadores, num acolhimento positivo das obras expostas, ainda que declaradamente com estranheza e espanto; (2) além dos temas românticos, a pesquisa de fontes impressas contemporâneas à exposição evidenciou a recusa à proposta de uma Arte Incomum, por meio da afirmação de duas categorias antagônicas: “arte ingênua” e “arte psicopatológica” (Andriolo, 2010b). Entre o público e a obra de arte funda-se um campo intersubjetivo formado por discursos e imagens provenientes de tempos históricos distintos; as mediações na recepção das imagens possuem, na mesma medida, temporalidades diversas. Observando os discursos da psicopatologia na formação do senso comum, notou-se uma duração histórica de julgamentos estéticos fundamentados nos padrões clássicos de representação da imagem, perspectiva central, harmonia da composição, figuração, entre outros; tratava-se de uma permanência do modelo da imitatio tanto como “preferência” do espectador quanto como parâmetro de avaliação da saúde mental. Paralelamente à manutenção do modelo da imitação ao senso comum, estetas e artistas contestaram no último século a vinculação da pintura à imitação ou à representação, de modo crítico à referencialidade da imagem pictórica; noutras palavras, uma pintura não refere outra coisa senão a si mesma. Não obstante, embora a pintura não reproduza o mundo visível, é sempre um traço da relação entre os sujeitos e o mundo. Na síntese de Eliane Escoubas (2005, p. 164), o ponto de vista fenomenológico considera que “a pintura pinta as condições de visibilidade segundo sua modalidade historial e não as condições da reprodução do real”. Nesse sentido, o espaço do quadro não seria o espaço da representação, mas um pôr-em-obra do exercício do olhar. Na concepção de Merleau-Ponty (1990, p. 294), a pintura não se limita à superfície do quadro, pois na medida em que os objetos são escalonados em profundidades forma-se uma concepção de mundo: “o quadro é feito para converter o mundo em seu significado”. A pintura manifesta um certo tipo de civilização porque o processo da percepção organiza-se de modo particular em cada momento histórico: no 176 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. interior da estrutura social, a imagem articula-se ao imaginário. A experiência perceptiva conjuga-se com a experiência do mundo. Por intermédio da imagem, o mundo é constituído na vida social. Pierre Francastel (1951/1990, p. 289) diria que uma obra de arte não é uma “representação” ou uma “transposição”, figurativa ou simbólica, de dada realidade. “A obra e o artista não são exteriores ao mundo sensível e ao mundo social em que agem.” Por esse motivo, afirma: “um quadro não é um duplo da realidade, é um signo”. A imagem não é um registro da natureza. Nesta, a concepção, o entrelaçamento entre psicologia, sociologia e história deveria considerar a imagem no seguinte sentido: Há o mundo, a imagem vivida; há a imagem percebida que é uma realidade espiritual para cada autor e cada espectador; há a imagem notada, que constitui o signo de reconhecimento; e a imagem virtual, que permite a transmissão do pensamento do autor para o espectador. (p. 38) Na sequência de seus estudos, Francastel (1987) trabalhou por uma interpretação estrutural da imagem, de modo crítico às concepções que afirmavam que as formas na arte eram projeções de uma imagem estável que representa uma reprodução fiel da realidade. Ao contrário, as formas na arte são o resultado de montagens, as quais manipulam fragmentos do real. Nestas breves enunciações introdutórias, o problema da pesquisa está colocado: primeiro, a contínua confecção de imagens e dos julgamentos do senso comum baseados na concepção de imitação; segundo, uma concepção de pintura que nega a referencialidade, afastando-se da relação com a natureza, e rejeita o caráter da imagem como imitação. O encaminhamento para esse problema se dá, inicialmente, pela retomada do conceito de mimesis e seu lugar na crítica contemporânea, seguida de uma formulação acerca do engajamento, para concluir com a ideia de que a imagem pictórica não é imitação ou transposição, mas transformação do mundo em pintura. A mimesis Ao tratar de imagens, referindo um monumento, um lugar, a natureza ou a paisagem, a concepção de imitação (imitatio) percorre os significados do conceito da mimesis, desde a tradição clássica até os usos contemporâneos. Do grego mímesis, por vezes identificado com imitação do gesto, da voz ou da palavra de outrem, também da representação do real na arte, sobretudo literária. A mímica e o mimetismo são ações 177 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. concernentes ao imitar no contexto da natureza e da estética, girando em torno de dois significados básicos: a imitação referida à natureza enquanto fenômeno, objeto ou processo; e a representação no contexto da arte. Na tradição estética, envolve a relação entre arte e natureza. No pensamento grego, denotava imitação, representação ou retrato, incluindo a pessoa que imita ou representa em uma teatralização, com movimentos corporais, danças, músicas e recitações, afetando a alma em sentido terapêutico (Ribon, 1991). Em Platão, o mundo mimético é inferior ao original imitado, de modo que a imitação e a representação produzem aparências e ilusões para a percepção. Sobretudo a arte imitaria o mundo fenomênico, o qual é em si a imitação do mundo “real”, o mundo das Ideias. Para Aristóteles, a inclinação à imitação difere o ser humano de outros seres. A arte seria a expressão natural dessa faculdade humana, uma experiência humana fundamental dentro mundo (Puetz, 2002). A doutrina acerca da arte como imitação ocupa lugar de destaque no jogo político e artístico com a estética clássica, a mimesis na concepção de imitação perdeu espaço com o romantismo, quando o conceito de expressão e a palavra poética ocupam o centro do debate estético. Não obstante, Hans-George Gadamer (1992) indicou a possibilidade da retomada da mimesis fora dos quadros do classicismo na compreensão da arte moderna. A alegria do disfarce, a alegria de representar qualquer outra coisa que não seja a si mesmo e a alegria daquele que reconhece na representação aquilo que é representado, mostram bem qual o sentido verdadeiro da representação imitativa: não se trata em hipótese alguma de comparar ou de julgar a proximidade maior ou menor da representação em relação àquilo que é significado nesta representação. (Gadamer, 1992, p. 109) A análise crítica aparece como fenômeno secundário nesse jogo. O fenômeno primário consiste em reconhecer algo que já se conhece em outra forma. A experiência mimética é uma relação original na qual “aquilo que se realiza, não é tanto uma imitação, senão uma metamorfose” (Gadamer, 1992, p. 111). Esta concepção permite a retomada da mimesis sem a dependência da teoria clássica da imitação; não consiste em algo que reenvia a outra coisa que é seu modelo, mas sobretudo a algo que existe e possui um sentido em si. Como notou Luiz Costa Lima (1981), mimesis não é imitação no sentido contemporâneo, não há correspondência em nossas línguas ao sentido grego, mas ela assemelha-se à imitação e remete à ideia de verossimilhança. A seu modo, Costa Lima 178 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. (1989, p. 68) propõe a retomada da mimesis, a despeito do fim de sua forma organizada pela imitatio: a experiência da mimesis é histórica e culturalmente variável, porquanto a primeira sensação que ela provoca, a sensação de semelhança, deriva da correspondência com os quadros de referência e as expectativas daí resultantes, quadros e expectativas históricas e culturalmente variáveis. [...] a mimesis literária supõe a sensação de semelhança, a que logo se acrescenta a sensação de diferença. Historicamente, três termos jogam socialmente o processo de significação da experiência estética: imitatio, imago e mimesis. A categoria da imitatio nos séculos XVI e XVII, fundamentava-se em uma sociedade estamental, com uma homogeneidade de representações a aproximar autores e público e a permitir a decodificação da alusividade das figuras, mediante referências previamente conhecidas. Naquele contexto, a produção manual da imago era definida pelo modelo da imitatio, por meio da qual a mimesis servia para limitar a tarefa das imagens na transmissão da experiência e ao culto à razão. (Costa Lima, 1989, p. 39) Durante o período, considerando sua luta contra o classicismo, a noção de imitação foi substituída pela de expressão, na qual a participação do indivíduo é acentuada. Contra a imitatio, a obra de arte adquiria veracidade pela expressão da vida (p. 62). Na afirmação de uma subjetividade individual a ser expressa no espaço da imagem, o conceito de mimesis, então associado à imitação clássica, cai no ostracismo (p. 106). A virada provocada pelo pensamento de Luiz Costa Lima está em proceder à retomada da mimesis a despeito do fim de sua forma organizada pela imitatio. Esta visada acompanha a Escola de Kontanz, notadamente nos pronunciamentos de Hans Jauss. Próximo de Wolfgang Iser, o caminho proposto em Costa Lima (1989, p. 62) esclarece que é próprio do discurso ficcional “ser acolhido como uma articulação de imagens, ser tematizado pelo imaginário”. O recurso ao aprofundamento da tematização do imaginário não se dá por uma teoria do poético, mas por um reexame da mimesis, a ser compreendida no espaço social de circulação da imagem, entre o autor e o receptor, cuja atividade do imaginário cria novos mundos. A retomada da mimesis, portanto, deveria questionar sua correspondência à imitação clássica para ser pensada como um fenômeno social no qual se produz a diferença (p. 268). A substituição do modelo da imitatio concebia uma realidade não unívoca, desde os românticos, considerando-se a existência de múltiplas realidades, descritas posteriormente no plano fenomenológico e psicossocial por Alfred Schutz. 179 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. No limite, a atividade mimética está relacionada à vida social e intersubjetiva, não apenas restrita à produção racional de modelos. A passagem para o debate psicológico e sociológico fundamentou-se em Walter Benjamin e em Theodor Adorno, encontrando um profícuo debate contemporâneo com o antropólogo Michael Taussig e o historiador René Girard. De modo sintético, nesses autores, a mimesis aparece em formulações associadas à alteridade, desejo e política, quando emerge a concepção conforme a qual a mimesis, ao operar o jogo da imitação entre os humanos, paradoxalmente promove a noção de diferença entre o eu e o outro. Minha proposição para articular a sobrevivência da atividade pictórica e o discurso acerca da imitação baseia-se no conceito de mimesis, em uma transposição do campo literário para as artes visuais, no campo da psicologia social: o conceito de mimesis deverá articular a produção da imagem à experiência social. Nos livros de Luiz Costa Lima este conceito foi examinado com vistas à literatura, não obstante, iluminamse ali correspondências importantes com as artes visuais, tema que o próprio autor explorou posteriormente (Costa Lima, 2004).26 O problema da mimesis instaura uma dimensão psicossocial, em referência a autores centrais como Schutz e Goffmann – nos quais os discursos da “verdade” e da “ficção” são dimensionados por molduras históricas. Também por afirmar a compreensão de uma ficção cotidiana, uma ficção não confinada à literatura e às artes. Enfim: “A interpretação posta insiste, ao invés, na historicidade radical dos produtos do homem e na necessidade de levá-la em conta para não convertermos o mundo no vasto espelho em que se mira o nosso pobre eu” (Costa Lima, 1989, p. 45). Se há um conceito que perpassa toda a história da psicologia social, esse conceito é o de “representação”. Uma série de debates foi feita sobre esse termo desde Durkheim e Mauss, na concepção de “representações coletivas”, no artigo “De quelques formes primitives de clasification: contribution à l’étude des représentation collectives” (1903), até a contemporânea “teoria das representações sociais”, esboçada por Serge Moscovici e Denise Jodelet (1984). Trata-se de um conceito controverso, o qual não está no centro de minha discussão, mas que solicita mínima definição. 26 Diante da vasta obra intelectual de Costa Lima, a discussão circunscreve apenas a sua formulação original, em três momentos: no capítulo “O questionamento das sombras: mímesis e modernidade”, em Mímesis e modernidade (1980/2003), sobretudo nos tópicos iniciais dedicados à sociedade, os sistemas de representação e a representação poética; no artigo “Mímesis e representação social”, publicado em Dispersa demanda (1981); na fundamentação teórica do Controle do imaginário (1983/1989). 180 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. As representações mentais e as categorias da experiência estética, de cada período e de cada classe social, devem ser compreendidas em seus próprios fundamentos. O ato da representação mental dos objetos do mundo percebido é um processo de relação entre dois termos, cuja dinâmica deve ser concebida em constante transformação, seja no âmbito do próprio pensamento, seja no mundo ao qual se relaciona (Prado Júnior, 1959, p. 46). As representações mentais formadas por espectadores a partir de uma pintura qualquer serão diferentes e compartilhadas. Há um núcleo comum nas representações, o que as remete à sua origem social e possibilita a comunicação, por outro lado, como representações mentais, são produtos da percepção e cognição de um indivíduo, organizadas em seu estilo cognitivo. Roger Chartier (1991, p. 182) notou a contribuição das representações na compreensão das “múltiplas configurações intelectuais pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos grupos que compõem uma sociedade”, em “lutas de representação” na hierarquização da estrutura social. Do ponto de vista de Costa Lima (1980/2003, p. 88), a inserção social se dá através de um meio cultural restrito à classe social, por meio da qual se tem acesso a uma rede de símbolos, como na respiração em uma dada atmosfera, repleta de representações ou sistemas de representações: “a sociedade respira e transpira representações”. Os sistemas de representação organizam as categorias, as classificações e as formas de relação entre os objetos e seres. “As representações são, por conseguinte, os meios pelos quais alocamos significados ao mundo das coisas e dos seres. Por elas, o mundo se faz significativo. E o choque de significações de imediato resulta do choque de representações.” (Costa Lima, 1981, p. 219) Grupos sociais distintos possuem sistemas de representação diferentes, portanto processos de significação próprios. O sentido horizontal das representações é fornecido pelas relações espaciais de proximidade e distância e pelas relações temporais de passado e presente. As coisas significam, originalmente, porque o corpo próprio nos situa em um mundo cultural e social (Merleau-Ponty, 1945/1999). Objetos como carros, roupas, aparelhos tecnológicos ou comportamentos, gestos e rituais são elementos configurados conforme representações que estabelecem classificações em sentido vertical. Os movimentos das representações se relacionam com a vida material da sociedade, mas não de modo mecânico. Nos sistemas de representação encontram-se os rituais da vida cotidiana, sistemas de orientação e sinalização, formados em redes 181 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. simbólicas, destinados a situar os indivíduos em relação ao espaço, às coisas e os outros. No interior da estrutura social, oferecem o instrumento para identidade e a distinção social, têm caráter coercitivo. O eixo das representações diz como o agente tematiza o mundo: as diversas formas de se dirigir a uma paisagem, por exemplo, são tematizações que identificam as características sócio-políticas de viajantes e turistas (Costa Lima, 1980/2003, p. 92). As representações são como as molduras (frames) conceituadas por Goffmann (1974). Formas apreendidas pela pessoa no exercício da vida social, cuja origem é esquecida na vida cotidiana.27 A abordagem sociológica de Alfred Schutz considerou serem as relações humanas presididas por “tipos”, passando do mais anônimo ao mais personalizado, diminuindo a dominância da reação “típica”, a qual jamais é superada de todo no quadro das representações (Costa Lima, 1981, p. 222). Schutz (1979) trabalhou com a noção de estilo cognitivo, por meio do qual se organiza a experiência na vida cotidiana, na poesia e na ciência. O sujeito vive em múltiplas realidades, a realidade da vida cotidiana é predominante, mas existem outras, como o mundo sonho, o mundo jogo na criança, o mundo do insano. O que é experienciado é real para o sujeito. As citações a Goffmann e Schutz recordam que aqueles autores não utilizaram o termo “representações”, não obstante tanto as molduras quanto as orientações típicas sejam correspondentes àquilo que o conceito de representações procura compreender – “antídotos contra a invisibilidade do outro” (Costa Lima, 1981, p. 223). A originalidade de Costa Lima foi proceder pelo entrelaçamento entre representação social e mimesis. A prática do poético é a condensação da atividade da representação, sem a qual o indivíduo não se reconhece na comunidade. Desta feita, o poético não é reflexo da sociedade, é um dos núcleos necessários ao conhecimento da vida social. Na proposição de Costa Lima (1980/2003, p. 90), a atividade poética é produção simbólica de que se investe simbolicamente a ação social, ao mesmo tempo em que se constitui como uma das formas da representação social. A experiência da arte 27 Na comunicação, o “cerimonial” corpóreo e social possibilita a apreensão de significados particulares, além do significado da palavra. No dizer de Erwin Goffmann (1974), tal como citado por Costa Lima (1981), mais que informações transmitidas os falantes apresentam uma cena teatral. A invisibilidade dos processos cognitivos e sensíveis do outro causa vulnerabilidade nas relações humanas, deriva daí a criação de frames que “têm a finalidade de apresentar aos parceiros de cada ato de comunicação como que um espaço adequado [...] que permita aos interlocutores regular suas idas e vindas verbais” (p. 221; grifo no original). Ocultamos de nós mesmos o papel que representamos: “ignoramos que o um se forja pela imagem indeterminada do outro... [...] E, porque não o sabemos, não é apenas o outro que se nos escapa, escapamo-nos sem cessar de nós mesmos” (p. 222). 182 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. baseia-se em um acordo entre a proposta do autor e a aceitação do espectador ou leitor, pautado por uma norma estética em uma ordem social (p. 92). “A principal característica da função estética está em sua oposição à função pragmática.” (Costa Lima, 1980/2003, p. 93) Na função pragmática, o objeto está a serviço de algo e é instrumento da ação – por exemplo, na linguagem, a palavra destinase à comunicação direta com o real. Não obstante, na estética, a comunicação estabelece uma relação indireta com o real. Neste ponto, “a mimesis se distingue de outras formas de representação social” (p. 93). Resultam dois efeitos: a obra poética se realiza pelo leitor/espectador, sem o qual ela é um quadro de indicações; a participação do leitor/espectador transforma o esquema da obra em representação de realidades diversas. No seu uso corrente, o conceito de mimesis supõe uma homogeneidade entre o representado (referente) e o representante (objeto da mimesis ou mimema), este último “importa enquanto ilustra uma determinada visão de mundo” (Costa Lima, 1981, p. 227). No entanto, do ponto de vista do produtor, o próprio da mimesis consiste em, através de um uso especial da linguagem, fingir-se outro, experimentar-se como outro ou ainda usar a linguagem, não como meio de informação, mas como espaço de transformações, cumpridas não em função de um referente a que descreveria, mas possibilitadas pela própria ideação verbal formulada. (p. 229) Neste ponto, concentra-se a afirmação de Luiz Costa Lima: mimesis trata de um abrir-se para a experiência da alteridade. Essa proposição conduz ao seguinte: “A mimesis supõe em ação o distanciamento pragmático de si e a identificação com a alteridade captada nesta distância. Identificação e distância, identificação a partir da própria distância constituem pois termos básicos e contraditórios do fenômeno da mimesis” (Costa Lima, 1981, p. 230). Entre a representação e as representações, a distância possibilita a apreciação: “essa distância, pois, ao mesmo tempo que impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se sobre ele, experimentar-se a si próprio nele”. Ao exigir identificação e distância, o produto mimético aproxima-se da experiência estética, no interesse desinteressado, propicia prazer ao espectador na relação com o mundo sensível. Em suma: “a identificação necessária do receptor com o mimema se cumpre pelo reconhecimento pelo receptor das representações sociais alimentadoras da mimesis” (p. 231). 183 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. O termo passível de articular essa experiência sensível é “semelhança”. A semelhança entre a representação mimética e as representações do espectador organizam a identificação. A experiência da mimesis possibilita ao espectador dois vetores contrapostos e sincrônicos: 1) identificação, semelhança, prazer; 2) diferença, distância, questionamento (Costa Lima, 1981, p. 232). Determinados pelo tempo histórico e pelo processo social, os significados são transitórios e dinâmicos. Atuando apenas conforme o primeiro vetor, na identificação, o espectador converte o objeto em kitsh e elimina o paradoxo da experiência mimética e da experiência estética: a mimesis torna-se fenômeno compensatório. Quando prevalece o segundo vetor, na distância crítica, a experiência mimética se converte em experiência teórica, passa a viver no plano conceitual, abandonando também o campo da experiência estética. Na conclusão de Costa Lima, a experiência da mimesis impõe antítese fundamental entre os dois vetores, identificação catártica e distanciamento crítico. Nesta concepção, o privilégio da interpretação não pertence ao analista, detentor da normatividade estética ou do purismo da arte pela arte, mas solicita o estudo do período histórico e dos processos sociais nos quais “se atualiza a ideia de mimesis em relação com as formas vigentes de representação social” (Costa Lima, 1981, p. 232; grifo no original). O engajamento Mimesis pressupõe engajamento. Do modo como se encaminhou a discussão até aqui, a mimesis opera na vida social em um jogo de identificação e diferença organizado a partir da própria experiência corporal entre artistas e espectadores. Da percepção de espaço e tempo aos processos cognitivos e sensíveis, as representações mentais (entendidas sempre como sociais) possibilitam a realização desse jogo, na forma da experiência estética. A primeira consideração acerca do engajamento trata da situação corporal. Em nossa ancoragem no mundo – horizontal, vertical, próxima, distante etc. –, as coisas são estruturadas pela nossa relação de seres encarnados no mundo. O mundo só tem significado porque tem uma direção; toda localização dos objetos no mundo pressupõe minha localização; num sentido, o objeto da percepção não cessa de nos falar do homem; é nossa expressão como sujeitos encarnados. O objeto já está diante de nós como um outro; ajuda-nos, por isso, a 184 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. compreender como pode existir percepção do outro. (MerleauPonty, 1990, p. 291, grifos no original) O corpo próprio realiza a unidade dos sentidos na experiência sensível do mundo; o audível é, ao mesmo tempo, visível, e o tátil é gustativo. Na afirmação de FrayzePereira (2006, p. 161): “A fragilidade, a rigidez, a transparência e o som cristalinos traduzem uma única maneira de ser”. A partir da experiência de ser encarnado: “os aspectos sensoriais de uma coisa constituem conjuntamente uma mesma coisa, como o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação” (p. 163). Na vida social, as ações de um corpo organizam-se em relação aos outros corpos, formando a base vital da intersubjetividade. As obras de arte, os objetos estéticos, as imagens constituem-se enquanto processo social entre os corpos sensíveis de modo intersubjetivo. A segunda consideração acerca do engajamento, a partir dos movimentos do corpo, próprio e do outro, remetem à vida social. Em Merleau-Ponty (1947/1989, p. 143), “Os fatos sociais não são coisas nem ideias: são estruturas”. A estrutura garante o funcionamento social, aparecendo como óbvia aos que a praticam. Para o filósofo, Marcel Mauss intuíra a questão das totalidades na vida social ao conceber o social como simbolismo, onde operam as representações, e respeitou tanto a realidade do indivíduo quanto a do social, criando uma alternativa a uma falsa oposição. O indivíduo e o social são duas totalidades, entrecruzadas em dupla perspectiva. Por meio da concepção de engajamento, o social é compreensível não como “consciência coletiva”’, “mas intersubjetividade, relação viva e tensão entre os indivíduos” (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 132). Para tanto, cada consciência deverá, ao mesmo tempo, “se perder e se encontrar na relação com as outras consciências”. A concepção política na fenomenologia articula a estrutura social e na vida cotidiana. Nas palavras de Hwa Jung (1972, p. xx), trata-se de pensar a “política do mundo da vida” em sua configuração histórica, social e cultural. O mundo da vida precede ao conhecimento conceitual, é pré-reflexivo, lugar das ações políticas, mais que das teorias políticas. O homo viator, aquele que faz a si próprio e molda seu futuro em suas ações, não tem propriedades fixas ou futuro predeterminado; está sempre aberto a sua historicidade radical. O mundo da vida não é privado ao corpo do indivíduo, mas intersubjetivo e socializado, a realidade social é seu dado originário e, a partir desta, a ação política. (Jung, 1972, p. xxii) 185 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A terceira consideração releva a temporalidade dos processos psicossociais, inscrita no “campo de presença”: o engajamento exige uma perspectiva histórica (Berger e Luckmann, 1973, p. 218). Nesse campo, emergem as “categorias da percepção”, concebidas como classificações dos estímulos visuais numa dada experiência social, variáveis em relação à época e ao lugar (Baxandall, 1991, p. 48). Tais categorias expressam em palavras a relação entre indivíduos e grupos sociais, particularmente por intermédio de imagens e objetos estéticos. A historicidade da percepção é constituinte da vida social, o sujeito enfoca o mundo perspectivamente, “desde o íntimo e familiar até o distante e tipificado, com a intenção de viver” (Lowe, 1986, p. 31). O campo perceptivo constitui-se pelo percebedor, o ato de perceber e o conteúdo do percebido. Assim, circunscreve as transformações temporais e espaciais do campo perceptivo a partir de três fatores: 1) os meios de comunicação; 2) a hierarquia dos sentidos que estruturam o sujeito como percebedor encarnando; 3) os pressupostos epistemológicos que ordenam o mundo do conhecimento. Partindo dessas três considerações acerca do engajamento, retoma-se sua pertinência no campo artístico. Tal conceito remonta às práticas de artistas do século XIX, para os quais o afastamento da Academia – instituição dominante na formação e comercialização das artes plásticas daquele século – era pautado por uma ácida crítica política. A arte moderna constituiu-se em uma forma de reação, de resistência, a qual Luiz Martins (2008) considerou marcadamente anticapitalista, mas apenas em alguns momentos revolucionária. Assim, “Daumier (1808-1879) contra a monarquia de LuísFelipe (1773-1850); de Courbet (1819-1877) e Manet contra o II Império e a república conservadora, a seguir; de Cézanne e Van Gogh contra a industrialização”. Ao longo do século seguinte, muitas e variadas correspondências estabeleceram-se em torno de uma arte social ou engajada: “do fovismo e do cubismo contra a direita chauvinista que levaria a França à guerra de 14; de Picasso e Miró (1893-1983) contra o franquismo; do expressionismo abstrato contra o teor totalitário do macarthismo e da vida administrada, nos EUA do pós-guerra” (Martins, 2008, p. 86). A ação política permeia as práticas, entre os impressionistas e as vanguardas, mas em outra chave, não necessariamente vinculada ao ideal revolucionário ou aos partidos, mostrando-se, sobretudo, através de uma outra vida, de dedicação ao trabalho artístico, em contraposição ao tempo da vida burguesa, em resistência à mediocridade, tal como notou Maria Helena Patto (2000,p. 45): 186 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Além de se negarem a participar ativa e diretamente das relações de produção dominantes e do estilo de vida burguês, esses artistas romperam com os padrões estéticos hegemônicos, atitude por si só suficiente para incluí-los na condição de militantes, sem que seja preciso indagar sobre a natureza dos temas de suas telas ou de suas ideias políticas. Dessa tradição origina-se a noção de “intelectual engajado”, a qual fundamenta, por exemplo, as discussões de Marilena Chauí (2004 e 2005). Conforme a filósofa, no projeto histórico moderno surge a figura do artista e do pensador independentes das instituições eclesiásticas, estatais e universitárias, com autoridade teórica e prática para criticar a ordem vigente. O marco cronológico dessa aparição foi a manifestação de Zola frente ao Caso Dreyfus, quando o intelectual entra na cena pública e os responsáveis pela confecção de imagens, até então a serviço da aristocracia ou da burguesia, assumem posição independente e crítica. O que pauta esta noção de engajamento é a relação estabelecida entre o artista e a ordem vigente, historicamente identificado com a esquerda na batalha anticapitalista, ao reivindicar uma sociedade mais justa, ao contrário da figura do ideólogo, responsável pela formulação teórica em favor dos que detêm o poder econômico e social. Têm-se, então, duas concepções cruzadas acerca do engajamento: a primeira, marcadamente fenomenológica, remete à ação política na vida cotidiana, não apenas em um nível partidário ou institucional, pois são ações situadas corporalmente e implicam em reações aos outros; a segunda remete à tradição intelectual de esquerda, na ação crítica e anticapitalista. As vinculações institucionais dos artistas, se à direita ou à esquerda, no anarquismo ou no totalitarismo, indica um lado da moeda. A comercialização de seus trabalhos, a escolha das técnicas e processos, os contratos de exibição, a alienação, as posições nos centros de decisão ou nas margens, são decisões cuja implicação é sempre política. A psicologia política das imagens proposta por Mitchell (1986) pode ser compreendida como ação política em grande parte préreflexiva, no sentido assinalado por Merleau-Ponty (1999), nos atos cotidianos de seus autores no mundo da vida, uma luta não articulada em conceitos ou palavras, mas em imagens. A evasão dos artistas na modernidade não representou apenas um deslocamento geográfico, mas também uma ação política (Frayze-Pereira, 2006). Em seu caráter subversivo, o conjunto de práticas designadas de “primitivismo artístico”, fundava-se na autodidaxia e projetava os artistas numa relação de alteridade radical, seja ao buscarem 187 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. lugares distantes, como Gauguin na Oceania, seja em lugares escondidos, como os manicômios visitados por Max Ernst. O artista Lasar Segall, por sua vez, antes de instalar-se no distante Brasil, visitara o sanatório de Dresden, onde registrou em gravuras a feição de internos. Nesse processo, o mundo da arte recebeu artistas provenientes das classes populares, cuja manifestação estética bruta perturba o olhar convencional do espectador de arte, nas figuras de Wölflin, Lesage e Bispo do Rosário. Esses criadores não tematizam a instituição política na experiência da arte, estão fora da lista dos artistas engajados, mas realizam uma obra em tensão às condições sociais vigentes. O advento dos happenings e das performances rompeu com as formas tradicionais de arte em ações que aproximaram os artistas do público, realizando na prática aquilo que se propugnava teoricamente em nome de uma arte engajada, sustentando a articulação “arte e política” (Fabris, 1998). O engajamento é um fenômeno constituinte da vida sócio-política manifesto, de modo particular, no campo artístico. Nos estudos de estética ambiental, o engajamento tornou-se conceito central, por exemplo, em John Thornes (2008), quando recorre aos artistas que trabalharam com o mundo natural, sejam as obras de arte representacionais, não-representacionais, ou performáticas, desde John Constable e Paul Cézanne até Richard Long e Andy Goldsworthyn; a perspectiva fenomenológica possibilita uma abordagem crítica porque engaja tanto o artista quanto o espectador na natureza. A apreciação do ambiente não se limita ao olhar, mas ao movimento vivo de todo o corpo (Berleant, 1992). Os conceitos fenomenológicos recorrem ao trabalho dos artistas para desenvolver a reflexão sobre o engajamento vital na sociedade e na natureza, intensificando os debates promovidos por autores como Tim Ingold e Arnold Berleant, a partir de autores tais como Merleau-Ponty e Heidegger, visando a um conhecimento integral da experiência humana. O corpo age entre outros corpos, no processo intersubjetivo, articulando as ações políticas em um ambiente. O mundo da vida, ele próprio, se constitui nestas ações. Além das dimensões corporais e políticas, a dimensão ambiental é condição para a constituição do “campo estético”. Na abordagem de Arnold Berleant (1970/2000), a estrutura do campo estético forma-se em torno do objeto ou do processo artístico, do objeto intencional que é esteticamente significante quando ocorre uma transação engajada do espectador. Nesse sentido, uma estética do engajamento resulta de uma revisão crítica da teoria da “arte desinteressada”, particularmente a partir das 188 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. transformações artísticas da década de 1960, em happenings e performances, afirmando o caráter participativo do espectador. A formulação de Berleant prolonga-se em diversos estudos posteriores, tais como Art and engagement (1991) e The aesthetic of environment (1992), por meio dos quais a concepção de engajamento organiza-se entre corpo (Merleau-Ponty) e o social (Kurt Lewin) em situação ambiental. Notado de modo evidente na experiência da arquitetura, na qual o espectador é antes participante e a construção é inseparável do lugar, as imagens no jogo da mimesis situa-se por meio do conceito de engajamento, tornam-se tangíveis no mundo empírico e compreensíveis na experiência estética. “A confluência destas ideias germinais – a centralidade da percepção tanto para a vida humana quanto para a experiência estética – sugere que o ambiente como condição da vida abriga dentro de si a semente da estética” (Berleant, 1992, p. 156). No campo da experiência estética, não há ações desinteressadas, seja na arquitetura e na música, seja no teatro e na pintura. “Engajamento abre tais artes para um envolvimento que transcende os limites usuais de subjetivo e objetivo, encorajando a mutualidade da participação na situação estética, a qual reúne ambos, objeto e observador, dentro de um domínio unificado.” (p. 156) A transformação Quando se esboça passagens entre domínios distantes, entre as antigas colônias de pintores e os agrupamentos de artistas nas cidades turísticas, embora tentando circunscrever um mesmo fenômeno social, está-se certamente trabalhando sobre significações distintas, por vezes antagônicas. De modo geral, foi observado o desenvolvimento da categoria do pitoresco como experiência social e a rarefação da categoria do sublime, enquanto, de modo específico, a imagem opera por meio de categorias concernentes à imitação, documental e ingênua. O resultado no conjunto das pesquisas reunidas foi uma discussão acerca da natureza da imagem, apreendida no processo histórico e social, pela sobrevivência da noção de referencialidade, ou seja, da transformação do mundo em pintura. No centro dessa operação está a imagem, compreendida como mediação regulada pelo conceito de mimesis. Como jogo social, a mimesis descreve um processo simbólico de semelhança e diferença, entre os polos da identificação catártica e do distanciamento crítico (Costa Lima, 1981, p. 232). Para que 189 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. esta afirmação não se tornasse apenas uma abstração, recorremos ao conceito fenomenológico de engajamento corporal e social na estrutura do campo estético, por meio da participação do artista e do espectador. O filósofo Hans-Georg Gadamer (1985) tem indicado a importância da compreensão da historicidade da consciência para a interpretação da arte, surpreendendo o leitor com a proposição sobre a atualidade do belo, em um período histórico da arte em que esse conceito foi relativizado pelo campo artístico. Na mesma medida, Gadamer abordou o tema da mimesis, não o restringindo à arte clássica, mas o ampliando para o desenvolvimento da arte moderna. O fenômeno primário do jogo da mimesis consiste em reconhecer algo que já se conhece em outra forma. A experiência mimética é uma relação na qual se realiza uma metamorfose (Gadamer, 1992, p. 111). O termo grego metamórphosis indica a transformação de um ser em outro ou a mudança de forma ou de estrutura na vida de certos animais. A palavra transformação, do latim transformatione, é o ato ou o efeito de transformar, mudar. Em um momento no qual os termos “mudança” e “transformação” estão grandemente associados ao contexto social, a questão a ser enunciada indaga sobre o que transforma. Quando se correlaciona arte e mudança social (e.g. Bradley e Esche, 2007), está-se trabalhado com a concepção de artista engajado em ação no processo social e político, visando à estrutura de classes e injustiças sociais, em uma postura anticapitalista, por vezes na utopia socialista. Por outro lado, muitas intervenções por intermédio da arte não miram o capitalismo, ao contrário, o foco está na vida psíquica do indivíduo, em busca de “harmonia” e “equilíbrio”. Entre esses dois polos, as imagens operam em diversos níveis, como dito, da identificação catártica e do distanciamento crítico, ambas arriscam-se a perder o fenômeno da experiência estética. A transformação do mundo em pintura consiste inicialmente no trabalho de conversão de elementos do mundo em comum em traços pictóricos no espaço do quadro. Para além do conceito da imitatio clássica ou da representação moderna, o conceito da mimesis ocupa um lugar central no jogo social da imagem. No caminho proposto em Costa Lima (1989, p. 62), ao considerar a ficção como uma articulação de imagens, a ser tematizada pelo imaginário e não por uma teoria do poético, estabeleceuse a mimesis como conceito para compreender o espaço social de circulação da imagem, entre o autor e o receptor, cuja atividade do imaginário cria novos mundos e impõe a experiência da alteridade. O fundamento da diferença pela imagem dá-se em sua apresentação no campo estético, no qual a experiência estética no processo das imagens 190 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. opera entre o eu, os outros, o mundo em comum e o objeto icônico (formas, conteúdos, exibição etc.). Revista a concepção básica de mera conversão do mundo em elementos pictóricos por meio da atividade do pintor, enquanto “a pintura pinta as condições de visibilidade segundo sua modalidade historial e não as condições da reprodução do real” (Escoubas, 2005, p. 164), atingiu-se o ponto através do qual a transformação do mundo em pintura é uma experiência ambígua, pois também ela participa da reversibilidade do engajamento. Na concepção de João Frayze-Pereira (2004, p. 22), sistematizando a filosofia merleau-pontyana, trata-se de “um sensível que é capaz de sentir, isto é, como um sensível que sente, que é reflexivo”. Em suma, “o corpo é a expressão concreta de uma existência ambígua.” Deriva daí a concepção de experiência estética por meio da qual estão colocadas as questões da diferença e da alteridade. Conforme Frayze-Pereira (1994, p. 56), quando uma pintura é exposta, o que se verifica é “o trabalho de expressão de uma abertura impressa na tela”, a pintura se torna expressão no olhar do espectador, por conseguinte, “o trabalho do espectador o que leva a efeito a operação expressiva”. Nesse sentido, a experiência estética é “aquilo que nos abre para o que não é nós”: “é o que nos coloca em contato com tudo o que é outro, isto é, com tudo aquilo que ‘exige de nós criação para dele termos experiência’.” A transformação do mundo em pintura opera em um duplo sentido. De início, o pintor lança as formas, conteúdos e texturas do mundo sobre a tela, cria uma imagem. Depois, a apreensão da imagem pelo espectador converte o próprio mundo no conteúdo da pintura, por meio da experiência da diferença. Convém recuperar o debate conduzido por Alberto Tassinari (2001), para uma conceituação da arte moderna, acerca da comunicação e da distinção entre o espaço da arte e o espaço do mundo em comum. Na fase de desdobramento da arte moderna, quando objetos comuns ingressam no espaço da arte ou as obras de arte se misturam com os objetos do mundo cotidiano, torna-se muito complicado discernir os limites entre esses dois mundos. No dizer do filósofo, a pintura naturalista, mesmo ruim, é mais artística que as obras da fase de desdobramento da arte moderna porque participa do processo histórico de constituição de uma arte autônoma: “possuem um espaço próprio, emoldurado ou bem contornado, e não levantam a questão costumeira: isto é arte? Diante de uma paisagem canhestra diz-se que é ruim, mas algo de artístico permanece.” (p. 55) 191 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. A discussão de Tassinari encaminha-se para a compreensão do espaço da arte moderna e contemporânea, ao passo que minha pesquisa ateve-se na sobrevivência das pinturas naturalistas -- portanto, a permanência de um espaço próprio emoldurado e reconhecido pelo senso comum como artístico. O termo imitação desapareceu do campo da crítica e da historiografia mais que dos domínios da estética, afirma Tassinari, lembrando que Benjamin, Adorno e Gadamer o mantém ativo, bem como Pierre Somville ao investigar a mimesis na arte contemporânea na direção da ontologia de Heidegger e Merleau-Ponty. Procurando se afastar dessas interpretações, Tassirani (2001, p. 56) considera imitação e naturalismo duas noções distintas: “a perspectiva não imita as coisas, mas a visão das coisas”. A imitação em um quadro é apenas uma forma dentre as várias possíveis de tornar o imitado presente e não uma forma universal. O ilusionismo perspectivo imita o espaço e as coisas no espaço conforme o ponto de vista de um observador. Imita uma visão, algo de individual e intransferível. Pensar que o espaço e as coisas se resumem à visão que se tem deles é uma confusão que, não desfeita, confundirá também imitação e naturalismo. (p. 57) O naturalismo é uma das formas de imitação. Fora desta concepção, a imitação pode ser percebida em uma imagem sacra medieval, ao tornar presente um ser ausente, também em uma escultura ioruba pode despertar a presença da divindade de modo intenso. No raciocínio de Tassinari (2001, p. 61), atinge-se novamente o ponto de interesse deste texto: “A relação entre o imitante e o imitado só mostra corretamente o grau de presentificação do imitado quando a obra está inscrita em práticas culturais de uma determinada sociedade”.28 O duplo sentido se impõe quando a transformação do mundo em pintura sugere uma produção social do próprio mundo; o mundo se constitui à imagem da pintura. O artista, operando por dentro dos processos de percepção e cognição, “inventa” um mundo em comum. O conceito de mimeses prolonga a ambiguidade na relação da imagem com o mundo. Esta ambiguidade foi levada ao limite na abertura do capítulo segundo de O olho e o espírito, de Merleau-Ponty (1961): “emprestando seu corpo ao 28 O conceito formulado por Tassinari (2001) é o de “espaço em obra” – “um espaço em obra imita, por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra” –, a ser compreendido como uma imitação, pois isso “o faz diferente de um espaço qualquer do mundo em comum” (p. 56). No espaço em obra da arte moderna, a proximidade entre imitado e imitante é menor, o espectador não encontra suporte na imitação nos processos naturais da visão, nem em processos mágicos e religiosos. Além disso, a distinção entre o espaço em obra e o espaço naturalista deve-se ao primeiro imitar o seu fazer por meio de sinais, ao passo que o espaço naturalista imita por meio de imagens. 192 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. mundo o pintor transforma o mundo em pintura”. A relação estabelecida entre o corpo e o mundo circunscreve o problema da mimeses em duplo sentido: o primeiro deles diz respeito à imagem icônica, enquanto o segundo à imagem mental. De modo direto, trata-se do exercício de conversão do mundo percebido em imagem pictórica. De modo indireto, o mundo é transformado pela ação do pintor. Na fenomenologia da percepção, o social e o pessoal configuram-se em duas totalidades interligadas por meio do engajamento. A imagem realiza o processo de mediação entre essas totalidades, acrescendo ainda sua forma e seu conteúdo próprios. Para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 382), as imagens não estão ligadas ao seu sentido por uma relação de signo a significação, “como se existe entre um número de telefone e o nome do assinante”; elas encerram seu sentido: “não é um sentido nocional mas uma direção de nossa existência”. As imagens incorporadas participam de toda a experiência humana: uma imagem deve animar-se para os outros; a obra de arte juntará as vidas separadas (Merleau-Ponty, 1980, p. 121). Ao apresentar o problema da transformação do mundo em pintura, o filósofo francês elabora o conceito de imagem, mal reputada, porque “se acreditou que um desenho era um decalque, uma cópia, uma segunda coisa, e a imagem mental era um desenho desse gênero no nosso bricabraque privado” (Merleau-Ponty, 1964, p. 23). A imagem, o desenho, o quadro são “o interior do exterior e o exterior do interior”: “sem os quais nunca se compreenderão a quase-presença e a visibilidade iminente que fundam todo o problema do imaginário”. Nesse sentido, a mimesis não trata apenas da substituição das coisas do mundo por objetos icônicos, pois o imaginário está inscrito no corpo e na textura do mundo. A imagem da mimesis não desdobra tão-somente os processos da produção do objeto icônico em si, apreendidos pela história da arte, mas os processos sociais nos quais a imagem opera na forma de mimesis para transformar o mundo em pintura, em duplo sentido. A afirmação acerca da ambiguidade da transformação do mundo em pintura não contém nenhuma novidade. O que talvez se assinale como contribuição seja pensar suas implicações empíricas no campo da pesquisa psicossocial. Desde Denis Diderot o problema está colocado. No comentário ao Salão de 1767, discorreu sobre o pintor Joseph Vernet e sua apreensão da bela vista de um campo. Em forma de diálogo, seu interlocutor afirma: “eu não deixaria jamais a natureza para correr atrás de sua imagem; por mais sublime que seja o homem, ele não é Deus”. Diderot retruca: “se Vernet vos 193 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. ensinou a ver melhor a natureza, a natureza, de seu lado, ensinou-lhe a ver Vernet.” (Diderot, 1767/1995, p. 633) Nestas palavras, o sistema de trocas está anunciado, o duplo sentido da conversão do mundo em quadro e deste para a percepção do mundo. Na virada epistemológica do século XVIII, os escritos científicos e estéticos de Johann Wolfgang von Goethe inseriram a experiência corporal como parte integrante da produção do conhecimento, em uma compreensão da participação do observador na transformação do mundo. Para Goethe, embora o olho fosse um órgão natural da percepção, era formado pela experiência e também poderia ser desenvolvido, tanto em relação aos fenômenos naturais quanto às obras de arte. Na viagem à Itália, o encontro com colegas pintores, escritores e escultores versava sobre teorias da estética e de práticas artísticas minuciosas, refletidas no estudo de técnicas, de anatomia e de perspectiva. Dizia o escritor: “a visão da paisagem magnífica à minha volta não desaloja em mim o senso poético; bem ao contrário, acompanhada do movimento e do ar livre, ela o suscita com maior rapidez” (Goethe, 1999, p. 26). Nesse sentido, a imagem deixa de ser unicamente um objeto exterior para se tornar a mediação dos processos de percepção e cognição na relação sensível com o mundo. Trata-se de um instrumento para uma manifestação interior do escritor designada de “fantasia sensória exata”, compreendida no desenvolvimento conjunto entre o “desejo científico” e o “impulso artístico”, tal como apareceria no artigo “Imitação simples da natureza, maneira e estilo” (Goethe, 1789/2005). Neste último, as três passagens na observação da natureza, através da crítica à imitação clássica, dá-se não em prol de uma expressão da subjetividade, mas por um trabalho do pensamento que culmina na conjugação com o objeto na forma de conhecimento sensível. As trocas na percepção, entre os quadros e os objetos do mundo em comum, haviam sido exploradas por Ernst Gombrich (1977). Mais recentemente, Perter Burke (2004, p. 55) notou a presença de viajantes do final do século XVIII a contemplar a região do Lake District “como se estivessem tratando de uma série de pinturas realizadas por Claude Lorrain, descrevendo-a como ‘pitoresca’” Para o historiador: “A ideia de pitoresco ilustra um aspecto geral sobre a influência das imagens na nossa percepção do mundo.” Não obstante, Alain Roger colocou claramente a questão em termos de “esquemas”, operando entre os conceitos e as imagens, produto da imaginação criadora, núcleo gerador de novas formas. Para Roger, a história da percepção da natureza depende da genealogia dos modelos artísticos. O pesquisador francês distinguiu duas 194 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. formas de transformação de uma região (pay) em paisagem (paysage) por intermédio da arte: a primeira, chamada in situ, constitui-se de jardins, projetos paisagísticos e intervenções artísticas como Land Art; a segunda, chamada in visu, opera sobre o olhar coletivo, fornecendo modelos de visão, esquemas de percepção e deleite (Roger, 2000, p. 33). A percepção ingênua acredita que vê na pintura uma representação objetiva do mundo em comum, também ele objetivo. O papel do espectador seria o de apenas cotejar original e cópia para afirmação da capacidade imitativa do pintor. Na retórica Clássica, acerca de Rafael ou Michelangelo, o modelo da imitação era a referência para o exercício da comparação, enquanto nos domínios recentes da representação em pintura, é o mundo em comum o modelo a ser cotejado. O mundo se torna objetivo porque a participação do espectador configura representações mentais capazes de reconhecer coisas, lugares e pessoas, por intermédio das imagens. A visão de um quadro de paisagem não o compara com o ambiente referido, mas opera entre as representações do espectador, as quais são produzidas distintamente pelos grupos sociais, propondo aos seus membros uma experiência de semelhança e diferença; uma experiência de alteridade. Como produto social, as representações são modeladas pelas narrativas familiares, pelos meios de comunicação, pelas imagens de arte, entre outros meios. No belo ensaio de Michel Ribon (1991, p. 84), o tema da transformação é também invertido: “Nossa percepção estética da natureza faz-nos descobrir, ao contrário e em grande parte, o que a arte primeiro nos mostrou, e no mais das vezes a beleza natural só é apreendida pelo viés da nossa cultura artística”. O autor discorre sobre uma série de exemplos iconográficos do espaço europeu, os quais serão referidos resumidamente. Oscar Wilde viu o cinza azulado e irisado das brumas londrinas depois de contemplar as pinturas de Turner e Whistler. Balzac é sensível à beleza do Vale de Loing, em Nemours, ao reconhecer o gado retratado por Potter, o céu de Rafael e o arvoredo de Hobbema. Na literatura realista de Balzac, Ribon encontra a descrição pictórica de um quadro, composição que ele próprio fornece, como um guia ilustrado, aos visitantes de Paris. As paisagens da Île-de-France estão recheadas do olhar impressionista – Monet, Pissarro, Van Gogh, entre outros. Que dizer do Monte Santa Vitória, visto por meio da pintura de Cézanne? No Brasil, teríamos a telas de Guignard nos ensinando a ver Ouro Preto entre brumas e capelas. Outros artistas relevantes participaram da história da arte nas cidades 195 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. turísticas baseadas nas antigas vilas do século XVIII -- por exemplo, Bracher, Scliar e Djanira, que trabalham em pinturas que transformam as cidades em imagens de arte. Além da relação com o olhar do turista, os pintores instigam questões sobre a paisagem, intervêm na cidade, jogam através de uma política das imagens. Cícero Dias pintava no Rio de Janeiro as paisagens dos engenhos do Recife. Também as formas arquitetônicas, com Oscar Niemayer, ingressam nas formas de perceber a paisagem brasileira. Estudando os espaços do turismo e das viagens, as correspondências entre as imagens de arte e as representações sociais são notáveis, as quais podem ser recolhidas empiricamente dando prova da efetividade das afirmações de Roger e Ribon, entre outros autores. Na medida em que a arte não informa apenas a própria arte, como enfatizava Gombrich, ela informa toda a sociedade. Ribon procura reconhecer um lugar ainda mais fundamental da experiência das imagens na vida social, considerando que a falta da mediação artística resultaria em uma percepção do mundo sensório orientada apenas por nossas necessidades práticas, cuja organização poderia até ser coerente, mas não tão rica de sentidos. À força de ser contempladas através de inúmeros esquemas artísticos que não deixam de se mover em nós, as coisas mais rebeldes acabam impondo sua marca ao nosso olhar; assim o real humaniza-se para se tornar nossa morada: uma morada cujas chaves nos são dadas pela arte. (Ribon, 1991, p. 86) Propor hoje o estudo da pintura, em relação à representação e à mimesis, parece algo antiquado frente ao debate “pós-moderno”. Não obstante, a manutenção da prática pictórica em um desenvolvimento acelerado das imagens cibernéticas, a circunscrição de um problema central dos processos cognitivos em psicologia social frente ao avanço das explanações intrincadas das neurociências sobre o cérebro e, por fim, a permanência do modelo da imitação como chave para a compreensão das imagens, ao contrário de um antiquário, assinalam tensões fundamentais da historicidade de nossa vida social. A manutenção da prática pictórica em um mundo cujo desenvolvimento acelerado é cravado por imagens tecnológicas, especialmente as cibernéticas, baliza a interpretação. Ao rejeitar a redução da designação de “arte turística” para a produção realizada por pessoas dedicadas à pintura, as quais são evidentemente comercializadas no espaço o turismo, indica a manutenção da prática da confecção manual de imagens no mundo contemporâneo, entre outras atividades manuais, cuja significação repercute a polaridade oposta, qual seja, o excesso das imagens tecnológicas e o abandono das 196 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. atividades de ordem manual na sociedade tecnológica. Não trabalhando apenas com a noção de uma “arte turística” que delimite a ação dos artistas ao mercado do turismo, nem se atendo às hierarquias do campo artístico, no interior do qual tais manifestações não são reconhecidas como “de arte”, ressalta-se a escolha de pessoas que abandonaram os grandes centros urbanos para viver nessas pequenas localidades por meio do trabalho manual, notadamente a pintura. Esta escolha poderia ser considerada uma manifestação conservadora, mas não poderia aparecer também sob a forma de resistência? Na série histórica das imagens, a pintura manual, a fotografia automática e a computação gráfica trazem os problemas das novas funções e modalidades da difusão e recepção, aos quais Annateresa Fabris (2006, p. 174) acrescentou a questão da “distribuição de representações” formulada por Pierre Lévy: Nessa ótica, ocupam o centro do debate hodierno disciplinas como a psicologia e a sociologia, a esfera das representações e o domínio da técnica, uma vez que se estabelecem novas relações entre sujeito e objeto, entre a interioridade do indivíduo e os instrumentos da comunicação. Decorre do choque das representações uma “batalha pelas imagens”. A constatação acerca da duração das comunidades de artistas e do processo de transformação dos significados, na economia do turismo e na sociabilidade em geral, permite pensar sobre a participação das imagens de arte na formação do olhar coletivo, sobretudo porque fontes não-artísticas concorrem para modelar a percepção em uma batalha silenciosa: publicitários, jornalistas, operadores de viagens etc. Despojados do idealismo da ventura do ser do artista, teríamos diante de nós algumas questões cujo teor não é tão-somente filosófico e, portanto, solúvel no plano da estética. Porém, de implicações pragmáticas. John Urry (1996), em seu estudo sobre o olhar do turista, inicia a discussão pela afirmação do turismo como produtor de diferença, diferença que suscita o deslocamento. O olhar do turista varia de acordo com a sociedade, o grupo social e o período histórico, é construído por meio da “diferença”, historicamente em relação a seu oposto, com formas não-turísticas de experiência e de consciência social. Em um momento em que as imagens devoram os espectadores, na proposição da iconofagia de Norval Baitello Júnior (1995) ou da iconofobia de Mitchell (1986), afirmar filosoficamente ou esteticamente as transformações do mundo em pintura deixaria em aberto sua repercussão empírica, ou seja, sobre as relações sociais concretas 197 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. entre artistas, espectadores, instituições e comunidades na duração de processos imagéticos. Em contraposição, como conduzir teoricamente essa problemática sem perder o fenômeno empírico e, sobretudo, sem dar as costas ao duplo aspecto do enunciado, de um lado pertinente à psicologia social e, de outro, à estética? A retomada do antigo conceito de mimesis possibilitou pensar o jogo social das imagens sem perder suas facetas. Os fazedores de imagens são atores fundamentais no jogo social pela produção dos esquemas, modelos ou padrões destinados à percepção cotidiana, ao que se estudou em termos de representações sociais, no interior dos processos sensíveis e cognitivos. Não foram quaisquer imagens as recolhidas pela pesquisa. A grande maioria era formada de paisagens, as quais, longe de ser uma expressão natural da referência ao ambiente, é a afirmação de uma posição social sobre os lugares e sobre os outros. Na confecção de imagens icônicas, os artistas das cidades turísticas acabam por trabalhar dentro de um imaginário determinado. Recorrendo mais uma vez a Baitello Júnior (2005, p. 92), contraditoriamente ao trabalho do imaginário de abertura de novos mundos, a “órbita do imaginário” arrisca a contrapor-se à força da imaginação, limitando a ação das imagens criativas: “entra em profunda crise diante do adensamento da órbita do imaginário, diante de seu fechamento para qualquer olhar que queira transpô-lo”. As categorias da experiência estética foram significadas em relação à memória nacional e a identidade do país, no interior do desenvolvimento das práticas turísticas. Repercutem o gênero paisagístico oitocentista, em categorias da experiência estética referindo à imitação, à impressão e à ingenuidade, sobretudo permeadas pela experiência social do pitoresco. De outro lado, cabe assinalar que artistas como Djanira e Bracher conduziram a experiência da paisagem a espaços não-turísticos. As minas de ferro pintadas em série por Djanira, em cores vivas e geometria exata, com as máquinas trabalhando em Itabira. Com Bracher, as chaminés, os fornos e a estrutura da siderurgia. Os termos passíveis de articular essa experiência sensível são semelhança e diferença. A semelhança entre a representação mimética e as representações do espectador organiza um processo de identificação e diferenciação. Como se descreveu, a partir de Costa Lima (1981, p. 232), a experiência da mimesis possibilita ao espectador duas atitudes: (1) identificação, semelhança e prazer, o espectador converte o objeto em kitsh, a “arte turística” elimina o paradoxo da experiência mimética, bem como da experiência estética; (2) diferença, distância e questionamento podem converter a 198 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. experiência mimética em experiência teórica, que passa a viver no plano conceitual, abandonando também o campo da experiência estética. A circunscrição de um problema central dos processos cognitivos em psicologia social, frente ao avanço das explanações intrincadas sobre o cérebro das neurociências, retomou o debate sobre as representações mentais para não perder sua dimensão de classe e de grupo social, em constante conflito. Todas as imagens formam o olhar. Ao considerar as representações como processos sociais, emerge a pergunta sobre quem tem as imagens sob o olhar. Reconhecido como um dos maiores paisagistas brasileiros, Emygdio de Barros nos instiga a visão de um mundo de mesclas entre o real e a fantasia. Entretanto, quantos receberam essas imagens e tiveram suas representações moldadas por elas? Nas especificidades históricas da sociedade brasileira, na formação de seu imaginário, qual o lugar das imagens de arte nas representações sociais? Seja qual for a hierarquia concebida no mundo da arte hegemônica, quando as imagens de diversos artistas ganham o espaço social, elas entram em disputa com as imagens não-artísticas, imagens manuais ladeiam as imagens cibernéticas, configura-se um mundo de imagens em conflito, no qual a imagem não é apenas uma coisa física, mas o movimento de mediação entre o objeto icônico, a experiência corporal e a imagem mental: a transformação do mundo em imagem nos processos políticos e culturais. 199 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Bibliografia 50 Anos da paisagem brasileira. Catálogo da exposição. Palácio dos Estados, Parque do Ibirapuera, Museu de Arte Moderna de São Paulo, fev.-mar. 1956. A arte sob o olhar de Djanira. Rio de Janeiro: Coleção do Museu Nacional de Belas, 2005. A volta ao Brasil em 15 mil igrejas. Touring, n. 371, jan./fev., 1972, p. 78. ADLER, J. Origins of sightseeing. Annals of Tourism Research, v. 16, 1989, pp. 7-29. ALMEIDA, A. 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Texto revisto e ampliado de palestra apresentada no Séminaire de Recherche du Pôle Image et Information, organizado pelo Groupe de travail inter-laboratoires sur l’Image, la Communication et les Arts, em fevereiro de 2010, Département Communication et Hypermédia do IAE Savoie Mont-Blanc, da Université de Savoie, França. 2. A pintura é um traço de nossa relação histórica com o mundo. Publicado em Revista Poiésis, Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Niterói: PPGCA/PROPP, n. 17, Jul. 2011. Foi originalmente apresentado no I Congresso Latino-Americano da Psicologia - ULAPSI, 2005, São Paulo, indagando sobre as homologias entre imagem e vida social, em Merleau-Ponty, Panofsky e Francastel. 3. Imagem da Natureza, Natureza da Imagem. Texto inédito. Aula apresentada na disciplina de pós-graduação “Arte e percepção: o artista, o turista e o viajante” (PST 5826), do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (IP/USP), entre anos de 2006 a 2011. 4. Metamorfoses do olhar na viagem de Goethe à Itália. Publicado em ArtCultura, Uberlândia, UFU, v. 13, n. 23, Uberlândia, jul.-dez. 2011, pp. 114127. Originalmente apresentado como conferência no seminário “A morfologia da Goethe e as ciências da vida: perspectivas epistemológicas para a pesquisa e o ensino de biologia na atualidade”, Instituto de Biociências/USP, 2010. 5. A imaginação da Natureza. Texto inédito. Aula apresentada na disciplina de pós-graduação “Arte e percepção: o artista, o turista e o viajante” (PST 5826), do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (IP/USP), entre anos de 2006 a 2011. 6. Comunidades de artistas: fenômeno de pesquisa em Psicologia Social. Introdução aos projetos de pesquisa acerca das imagens nas comunidades de artistas. Apresentado como subprojeto no Grupo de Trabalho “Experiências de turismo de base comunitária no Vale do Ribeira”, coordenado pelo Prof. Alessandro de Oliveira dos Santos, do qual participam professores do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. USP (IP/USP) e da Escola Técnica Engenheiro Narciso de Medeiros (ETEc) localizada no município de Iguape, Vale do Ribeira/SP. 7. A imagen pictórica da cidade histórica. Publicado originalmente como “Actividad pictórica y imagen percibida: la ciudad histórico-turística de Ouro Preto. Estudios y Perspectivas en Turismo. Buenos Aires, vol. 17, n. 1-2, eneroabril 2008, pp. 170-184. 8. As imagens de arte em Paraty. Capítulo na coletânea organizada pela profa. Sandra P. Ribeiro, Paisagem, Imaginário e Narratividade: olhares transdisciplinares e novas interrogações da Psicologia Social (São Paulo, Ed. Zagodini, 2013). Versão sintética do Relatório de Pesquisa resultante do projeto “Pintura em Paraty: percepção e vida social” realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Projeto Regular, período 2008/2009). 9. Sobrevivências da paisagem na pintura. Versão revista do curso ministrado no Master 1 – Communication Hypermidia, do IAE Savoie Mont-Blanc, Université de Savoie, França, entre 9 e 24 de outubro de 2011, sob a coordenação do Prof. Jacques Ibanez-Bueno. 10. A transformação do mundo em pintura. Texto inédito. 213 A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - I Capítulo 1. O fenômeno das imagens no campo da psicologia social 1. Ricardo Inke, Paisagem de Ouro Preto, 2011. Cartão de votos para 2012, circulação via endereço eletrônico. 2. Hermann Burmeister, Igreja de São Francisco de Assis, 1853. Do livro Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Dr. Hermann Burmeister. Site: http://commons.wikimedia.org/wiki /File:Hermann_burmeister_igreja_s ao_francisco.jpg 3. Marc Ferrez, Igreja de São Francisco de Assis, c. 1880. Fotografia, Ouro Preto (MG), Marc Ferrez, fim do século XIX. col. Instituto Moreira Salles. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - II 4. Luis Jardim, Igreja de São Francisco de Assis, 1938. Desenho de para o Guia de Ouro Preto, Manuel Bandeira, 1938, p. 43. 5. Luís Fontana, Paisagem de Ouro Preto, 1948. Fotografia, Ouro Preto (MG), 02 de maio de 1948. Acervo do IFACUFOP, Ouro Preto (MG). 6. Germano Neto, Pousada Mondego, 1996. Fotografia do guia Ouro Preto,Cidade Monumento Mundial, 1996. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - III 7. Shell X-100, 1957. Propaganda do óleo para automóveis Shell X-100, O Estado de São Paulo, 12/04/1957, p. 9. 8. Carlos Bracher, Igreja de São Francisco de Assis, s. d. Coleção particular. Fonte da imagem: Hansen, 1998, p.15. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - IV Capítulo 6. Comunidade de artistas 9. Ateliê André Meurer, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2010. 10. Ateliê Renata Rosa, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2010. 11. Ateliê Márcio Franco, Paraty (RJ) Fotografia do autor, 2010. 12. Inke Ateliê, Paraty (RJ) Fotografia do autor, 2010. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - V 13. Ateliê José Andreas, Paraty (RJ) Fotografia do autor, 2010. 14. Ateliê Lauro Monteiro, Paraty (RJ) Fotografia do autor, 2010. 15. Estúdio Bananal, de Sérgio Atilano e Fernando Fernandes, Paraty (RJ) Fotografia do autor, 2010. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - VI Capítulo 7. Imagem pictórica da cidade histórica 16. Tarsila do Amaral, Paisagem de Ouro Preto, 1924. Lápis e aquarela sobre papel, 16,2x22,6. Col. Beatriz Pimenta Camargo, São Paulo. Fonte da imagem: Tarsila do Amaral. Buenos Aires: Banco Velox, 1998, p. 157. 17. Alberto da Veiga Guignard, Paisagem de Ouro Preto, 1951. Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP. 18. Pousada Chico Rei, Ouro Preto (MG) Antiguidades e artesanato na composição dos ambientes. No armário e nas portas a pintura de Guignard. Fotografia do autor, 1997. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - VII 19. Luiz Alfredo, Guignard pintando em Ouro Preto, s.d. Fotografia. Fonte da imagem: http://caxiuna.blogspot.com .br/2009/03/solo-luizalfredo.html 20. Alberto da Veiga Guignard, Noite de São João, 1961. Óleo sobre madeira, 0,19 x 0,29 m. Col. particular, Belo Horizonte. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - VIII Capítulo 8. As imagens de Arte em Paraty 21. Djanira. Igreja de Santa Rita, s.d. Óleo sobre tela. 53,5 x 72,5 cm. (Parati, RJ). Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ). Reprodução fotográfica autoria desconhecida. Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Extraído do site em 20 fev. 2014: http://enciclopedia.itaucultural.org. br/ 22. Júlio Paraty, Festa do Divino, 2009. Acrílico sobre tela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. 23. Márcio Franco, Papagaios, 2008. Acrílico sobre tela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - IX 24. Ricardo Inke, Vista da Igreja de Santa Rita, 2011. Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia Ricardo Inke, 2011. 25. José Andreas, Igreja de São Benedito, 2009. Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. 26. Marília Inke, Vista da Igreja de Santa Rita, 2009. Aquarela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - X 27. Renata Rosa, Sem título, 2009. Acrílico sobre tela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. 28. Sérgio Atilano, Sem título, 2009. Madeira e metal, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. 29. Márcio Franco, Helicônias, Paraty, 2009. Acrílico sobre tela, Paraty (RJ). Fotografia do autor, 2009. A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - XI Capítulo 9. Sobrevivência da paisagem na pintura 30. Paraty, fotografia do autor, 2009. 31. Carlos Scliar. Ouro Preto 360 Graus (Painel Políptico), 1976. Vinil sobre tela encerado 20 partes: 65 x 100 cm cada Reprodução Fotográfica Jefferson Silva. Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Extraído do site em 20 fev. 2014: http://enciclopedia.itaucultural.o rg.br/ 32. Djanira, Igreja de Antonio Dias, 1955. Óleo sobre tela, 51 x 61,3 cm. Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ). Reprodução fotográfica autoria desconhecida Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Extraído do site em 20 fev. 2014: http://enciclopedia.itaucultural.org. br/ A. Andriolo. A transformação do mundo em pintura. IP/USP, São Paulo, 2014. Prancha - XII Capítulo 10. A transformação do mundo em pintura 33. Djanira, Mina de Ferro, 1976. Acrílica sobre madeira. 160 x 221 cm. Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ). Reprodução fotográfica Ricardo Bhering Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Extraído do site em 20 fev. 2014: http://enciclopedia.itaucultural.o rg.b 34. Carlos Bracher, Montanhas de Minas, 1973. Óleo sobre tela, c.i.d. 60 x 81 cm. Reprodução fotográfica Romulo Fialdini. Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Extraído do site em 20 fev. 2014: http://enciclopedia.itaucultural.o rg.br 35. Emygdio de Barros, O Municipal, 1949. Óleo sobre tela. 100,0 x 96,0 cm Acervo Museu de Imagens do Inconsciente (Rio de Janeiro, RJ). Fonte da imagem: FUNARTE/IBAC. Coordenação de Artes Visuais. 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