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UNIVERSIDADE DE CABO VERDE Scientia via est www.unicv.edu.cv FICHA TÉCNICA Título Dissertações em Segurança Pública Autores Alberto Barbosa, Antonio Varela, Augusto Teixeira e Emanuel Vaz Colecção Vol.1 Concepção Gráfica GCI - Gabinete de Comunicação e Imagem da Uni-CV Coordenação Editorial DSDE – Elizabeth Coutinho Edições Uni-CV Praça Dr. António Lereno, Caixa Postal 379-C Praia, Santiago, Cabo Verde Tel (+238) 334 0441 - Fax (+238) 261 2660 Email: edicoes@adm.unicv.edu.cv Copyright Marcelo Galvão-Baptista / Arlindo Mendes / Elizabeth Coutinho / Universidade de Cabo Verde ISBN Praia, março de 2016 978-989-8707-24-6 ÍNDICE INTRODUÇÃO: O Mestrado em Segurança Pública da Universidade de Cabo Verde: Um Caso de Cooperação Internacional Sul-Sul ................ 6 Marcelo Galvão-Baptista; Arlindo Mendes; Elizabeth Coutinho ...................................6 Estado e Polícia: A Institucionalização da Segurança Pública em Cabo Verde (1870 – 2000) ............................................................................ 23 Alberto Lopes Barbosa Júnior .....................................................................................23 Capítulo I As Raízes da Polícia em Cabo Verde ...................................................... 30 Capítulo II A Independência e a Construção do Estado ........................................ 77 Capítulo III A Transição Democrática ......................................................................... 89 Narcotráfico Transnacional: O Impacto nos Dados Criminais em Cabo Verde como País de Trânsito de Drogas ................................................. 124 António Varela ..........................................................................................................124 Capítulo I As Rotas do Narcotráfico Internacional............................................... 142 Capítulo II A Rota da Costa Ocidental Africana ..................................................... 151 Capítulo III Cabo Verde como País de Transito de Cocaína................................... 162 3.1 – Contextualização ............................................................................. 162 Capítulo IV Os Impactos da Criminalidade em Cabo Verde ................................... 189 O Movimento Migratório da CEDEAO para Cabo Verde nos Anos 2006 a 2010: Perfil de Imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal e Relação Imigração-Criminalidade nesse Período ................................223 Augusto Andrade Mendes Teixeira ...........................................................................223 Capítulo I Introdução..................................................................................................227 Enquadramento Teórico, Problema, Justificativa e Objectivos ......227 Capítulo II Metodologia de Recolha e Tratamento de Dados...............................258 1 - Ambiente ..............................................................................................258 Capítulo III Resultados e Discussão ..........................................................................266 1 - Investigação Documental Preliminar ..............................................266 Custos, Evolução e Percepção da Sociedade Praiense sobre a Problemática da Violência e Criminalidade ..........................................325 Emanuel de Nascimento Furtado Vaz .......................................................................325 Capítulo I Introdução..................................................................................................327 Capítulo II Aspéctos Teóricos dos Custos da Violência e Criminalidade ..........344 Capítulo III Visão Geral Sobre a Metodologia Aplicada à Pesquisa ..................354 Capítulo IV A Pesquisa: Resultados e Discussão ...................................................359 Capítulo V Aspectos Conclusivos ............................................................................394 APRESENTAÇÃO A presente publicação, para além de constituir um produto académico do Mestrado em Segurança Pública, realizado com a parceria da Universidade Federal do Pará, também representa uma oportunidade de reforço das relações que se têm desenvolvido entre as duas universidades envolvidas, os investigadores e professores das duas instituições. A internacionalização da Universidade de Cabo Verde tem sido construída através de programas de formação e capacitação, envolvendo a mobilidade entre docentes e estudantes de universidades brasileiras, com estadias académicas na Uni-CV e da nossa Universidade para diversas universidades do Brasil. Trata-se de experiências importantes que contribuem para a consolidação das parceiras mas também para o reforço da credibilidade internacional da própria Universidade de Cabo Verde e das instituições parceiras. A questão da segurança pública é muito atual e domina os discursos políticos, assumindo igualmente um lugar preponderante nos anseios, pensamentos e inquietações da população residente nos principais centros urbanos caboverdianos, mas também constitui uma variável muito importante no desenho das políticas e investimentos no setor do turismo em Cabo Verde. A perceção da insegurança reforça-se com o aumento das estatísticas da criminalidade e com a ênfase que a comunicação social dá aos fenómenos criminais que ocorrem na cidade. Nem sempre há uma correlação direta entre a perceção espacial de insegurança e a intensidade real da criminalidade. Para além da comunicação social, o efeito multiplicador que o sentimento de insegurança transmitido por vítimas do crime provoca nos familiares, vizinhos e amigos. Leva à intensificação do que Tuan (1980) designou de topofobia, ou seja, a criação de imagens negativas associadas a determinados locais da cidade onde ocorrem crimes. A topofobia é uma variável determinante na escolha dos locais de frequência e residência na cidade, condicionando a estrutura sócio-funcional da cidade e influenciando os valores fundiários. Aos olhos da sociedade, o Estado e a polícia são os únicos responsáveis e responsabilizáveis pela segurança pública, o que constitui uma visão deturpada que merece ser descontruída para que realmente haja um envolvimento de todos os atores da cidade, tando atores formais (com responsabilidades institucionais no setor), como atores não formais (sem responsabilidade institucional mas com responsabilidade moral e cívica sobre a segurança pública). Estes últimos desempenham um papel muito importante no reforço do controlo social, fundamental para a redução das oportunidades de crime. Trata-se da sociedade civil, concretamente das famílias, dos vizinhos, das instituições religiosas, associações de moradores, etc. A presente publicação contém artigos diversos, que resultam da investigação desenvolvida por professores e mestrandos do Mestrado em Segurança Pública da Uni-CV, com a parceria da Universidade do Pará. A diversidade de temas abordados contribuirá certamente para esclarecer muitas das dúvidas e mal entendidos sobre a segurança pública e o papel dos diferentes atores. Aos leitores ficam aqui registados os votos de uma excelente leitura e de que os conhecimentos e experiências aqui disponibilizados pelos autores sejam úteis. Professora Doutora Judite Nascimento Reitora INTRODUÇÃO O MESTRADO EM SEGURANÇA PÚBLICA DA UNIVERSIDADE DE CABO VERDE: UM CASO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL SUL-SUL Marcelo Galvão-Baptista1; Arlindo Mendes2; Elizabeth Coutinho3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL Segundo Panizzi, apud Gazzola e Almeida (2006), um dos importantes aspectos da cooperação internacional tem a ver com o fato de “proporcionar condições de diálogo e trabalho visando a exploração de fronteiras do conhecimento” (p. 61), algo que é compatível com a ideia de universalidade, subjacente à concepção de universidade e que abarca os três pilares, tradicionalmente tidos como sendo o ensino, a pesquisa e a extensão. Esses pilares envolvem um conjunto de ações cuja realização plena pode ancorar-se na cooperação internacional, especialmente no mundo global, como é 1. Doutor em Educação (Metodologia de Ensino) pela Universidade Federal de São Carlos (UF Car)/S. Paulo. Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, no Curso de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Defesa Social e Mediação de Conflitos da Universidade Federal do Pará (UFPA), instituição onde cursou Bacharelado, Licenciatura e Formação de Psicólogo. Membro da Casa Brasil-África e Assessor de Relações Internacionais na PROINTER da referida universidade. Membro da Cátedra Amílcar Cabral da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) onde prestou colaboração no âmbito da cooperação com a UFPA. 2. Doutor em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Pau (França). Professor da Universidade de Cabo Verde onde, além de pesquisador na área de sua formação, foi Presidente do Conselho Diretivo do Departamento de Ciências Sociais e Humanas e Diretor do Mestrado em Segurança Pública – Gestão de Defesa Social e Mediação de Conflitos. 3. Mestre em Ciências Sociais, pela Universidade de Cabo Verde e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Autora de estudos técnicos sobre administração e planeamento da educação. Foi, entre outros, Diretora do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, Oficial de Programas das Nações Unidas em Cabo Verde, Administradora-Geral da Universidade de Cabo Verde e, atualmente, exerce funções de Direção dos Serviços de Documentação e Edições da Uni-CV. 6 o de hoje, em que só faz sentido o compartilhamento de recursos humanos e materiais em torno da produção e do consumo do conhecimento. Na concepção de Moura, apud Gazzola e Almeida (2006), “a cooperação está na base de todo o trabalho universitário” (p.77), “não está mais confinada aos muros de um laboratório ou de uma instituição, mas se abre e se alarga a uma escala planetária” (p. 78). É parte integrante da missão das instituições de ensino superior e repleta de desafios, nomeadamente no que respeita à mobilidade docente e discente, à pesquisa (investigação) colaborativa e ao desenvolvimento curricular (ensino e aprendizagem) relativamente à montagem de projetos de pesquisa e pós-graduação conjuntos, levando ao desejado e necessário conhecimento mútuo; à relação com o outro (alteridade); à busca e identificação de interesses comuns; ao desenvolvimento e transformação da realidade; à geração de sistemas de conhecimento e ao seu compartilhamento ou transferência nos espaços em cooperação (PEDROSA, 2013)4. Ainda, conforme Pedrosa, a cooperação internacional é uma exigência que as universidades se impõem como um fator de qualidade da formação que empreendem, demanda enfrentar dificuldades, tais como as descontinuidades decorrentes de mudanças de governação das instituições, os entraves burocráticos com reflexos na mobilidade de gestores, pesquisadores e estudantes, etc., e desafios, sendo um deles alusivo ao fomento da mobilidade internacional que tem no domínio da língua inglesa, como língua de ciência, a sua implicação. O êxito da cooperação internacional depende, dentre outros aspectos, da garantia de condições necessárias e suficientes, a exemplo do respeito ao apoio institucional em termos do seu efetivo envolvimento como retaguarda, mas sem prejuízo das iniciativas individuais (que muitas vezes são bem sucedidas, espontâneas e depois levam à oficialização posterior das ações) e do acolhimento e envio, ou seja, reciprocidade – o fato de as instituições receberem os atores cooperantes das suas parceiras e de enviarem os seus atores às instituições parceiras. 4. Essa análise da cooperação internacional no contexto universitário foi tecida pelo ex-Ministro da Educação de Portugal e ex-Reitor da Universidade de Aveiro, Professor Júlio Pedrosa, em sua intervenção no XXIII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), ocorrido de 9 a 12 de junho de 2013, em Belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais, sob o lema: Cooperação e desenvolvimento nos países de língua portuguesa – o papel das universidades. 7 A COOPERAÇÃO BRASIL - ÁFRICA DE LÍNGUA PORTUGUESA: BREVE HISTÓRICO A aproximação Brasil-África não é uma realidade apenas dos dias atuais, embora seja recente o seu reforço, como assegura Saraiva (2012): “As 37 embaixadas e missões permanentes brasileiras na África no ano de 2011, quando tínhamos apenas 17 no início do século XXI, evidenciam, para o mundo, que o Brasil voltou à África” (p. 13). Também, os vínculos do Brasil com a África “não são tão novos”. “(...) do século XVI ao XVIII, os dois lados do ‘mar tenebroso’, na linguagem das caravelas, foram envolvidos na lógica do comércio atlântico de escravos, mas também de bens e serviços, política e ideias” (p. 13). As relações do Brasil com a África, da segunda metade do século XX aos dias de hoje, entendidas como sendo o atlantismo, sofreram transformações dignas de nota, na análise do autor: O atlantismo foi transmutado pelo discurso culturalista. Moveu-se da economia do tráfico de pessoas para a cultura afro-brasileira. Ao longo da segunda metade do século XX migrou para a geopolítica. Era o atlantismo de Golbery do Couto e Silva e sua concepção dos círculos concêntricos e do Atlântico Sul como uma ameaça comunista. Depois vieram os atlantismos da diplomacia e do comércio. Preside hoje o atlantismo da estratégia Sul-Sul das relações internacionais do Brasil, porém social e cooperativa (SARAIVA, 2012, p. 14-15). Essas transformações, segundo Saraiva, refletem “novos conceitos”, no início do século XXI. Por meio dos movimentos dinâmicos da política externa do Brasil e de uma pauta comercial de produtos variados, o país “tem aproveitado possibilidades na brecha africana” (SARAIVA, 2012, p. 24). O ponto de partida da parceria Brasil-África, quanto ao estabelecimento da aproximação atlântica, remonta à década de 1960. É o que afirma este autor: O início da década de 1960 é chave para o reencontro do Brasil com a África. O presidente Quadros restaurou ideias do segundo governo de Vargas acerca da dimensão estratégica do relacionamento com a África. Quadros iniciou, de fato, a dimensão africana da política externa brasileira. A ruptura foi fundamental para a compreensão de um novo paradigma na relação entre brasileiros e africanos. A aproximação atlântica foi estabelecida (SARAIVA, 2012, p. 18). Nas duas décadas seguintes, a parceria teve uma motivação fortemente comercial. “Os cruzamentos transatlânticos desenhados nas décadas de 1970 e 1980 voltaram-se para as possibilidades comerciais entre africanos e brasileiros” 8 (SARAIVA, 2012, p. 21). A inserção internacional do Brasil nas relações com a África surgiu, gradualmente, como uma “noção de responsabilidade no Atlântico Sul e não apenas afirmação do país no contexto do pós-guerra” (p. 1 7). Essa motivação, de acordo com Saraiva (2012), “levaria aos conceitos de paz e cooperação, embora apenas consolidados em forma de iniciativa política nos anos de 1980, quando da aprovação, na ONU, da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPACAS)” (p. 17-18). Mas um dos sentidos da cooperação Brasil-África tem a ver com a construção de “identidades múltiplas”, segundo o autor (SARAIVA, 2012, p. 17), dando ânimo aos movimentos da diplomacia e das transações comerciais, envolvendo também as sociedades civis organizadas. A COOPERAÇÃO BRASIL-PALOP NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO: O MESTRADO EM SEGURANÇA PÚBLICA COMO UM CASO DE PARCERIA ENTRE UNI-CV E UFPA A aproximação do Brasil aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) é documentada como um empreendimento marcante nos anos de 1970, especificamente 1975, em que as ex-colônias de Portugal, Cabo Verde em particular, ascenderam à Independência. Referindo-se à relação com Angola, logo após a sua emancipação, relação essa como ato político que se entendeu como tendo motivação econômica, Saraiva (2012) afirma: “O reconhecimento do novo governo angolano em 1975 foi garantia de porta aberta em Angola para investimentos brasileiros” (p. 22). A relação com outros países africanos já se dava bem antes de 1970 e os seus efeitos sobre a cooperação acadêmica, assim como aquela envolvendo as excolónias portuguesas, na década referida, tiveram nos protocolos assinados com o Brasil as suas bases para apoio à formação de estudantes, tanto de graduação quanto de pós-graduação. É isso que pode explicar, em parte, o fato de poucas universidades brasileiras, em termos relativos, terem parcerias com suas congêneres africanas e vice-versa. Dois casos merecem ser citados: a Universidade Federal do Pará – que, atualmente, tem apenas relações de cooperação forte com a Universidade de Cabo Verde e um protocolo com a Universidade Técnica de 9 Moçambique, no conjunto das instituições de ensino superior dos PALOP – e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul cuja cooperação é intensa com aquela universidade pública cabo-verdiana. Posteriormente, sucessivos governos, de José Sarney, Lula e Dilma Rousseff, incentivaram ações cooperativas com a África de expressão oficial portuguesa, catalisadas pela CPLP. É nesse quadro que se compreende a existência de bases jurídicas sólidas, como os acordos de cooperação assinados pelo Brasil e por esses países, que permitiram o arranque dos intercâmbios e a sua materialização. A parceria entre a Universidade de Cabo Verde e a Universidade Federal do Pará, materializada no Mestrado em Segurança Pública, entre outras ações, é um caso específico de cooperação, no âmbito universitário entre o Brasil e os PALOP. Essa parceria, que abrange outras importantes realizações, traduz-se também como especial no conjunto das instituições académicas brasileiras de caráter público e as dos países da África de língua oficial portuguesa. É uma parceria que se pode considerar como especial por ser estratégica, na ótica da UFPA, como se verá adiante. Nos anos de 1970, os esforços para a cooperação com o sistema de ensino superior público de Cabo Verde, deram-se no sentido de manifestação de interesse, de intenções, ancoradas na administração superior da UFPA através de trocas de missivas e mensagens com autoridades do Ministério da Educação daquele país. As intenções foram reforçadas em visitas de cortesia a Cabo Verde, geraram aceitação plena, expressa na forma de assinatura de um protocolo da universidade com a Direção-Geral do Ensino Superior de Cabo Verde, naquela década, embora sem resultados palpáveis, até finais de décadas posteriores, mais precisamente, no ano de 2009. Esse foi o ano-marco da aproximação entre a UFPA e a recémcriada Uni-CV, quando se iniciou a concretização da cooperação prevista no protocolo, abrindo caminho para um conjunto de ações, continuadas, nos anos seguintes, de 2010 a 2013. Isso, em virtude da disponibilização pela Reitoria de um docente (o professor Marcelo Galvão) para prestar colaboração à universidade pública cabo-verdiana por quatro anos. Tal decisão possibilitou um conjunto de atividades na Uni-CV. Descreve-se, a seguir, a trajetória do Mestrado em Segurança Pública, desde a concepção do plano de estudos até às defesas do primeiro conjunto de dissertações que fundamentam a organização e a publicação deste livro. 10 A Origem do Projeto do Curso O projeto do referido mestrado foi da autoria do Prof. Daniel Chaves de Brito (UFPA), adaptado para a realidade de Cabo Verde pelo Prof. Marcelo Galvão (também da UFPA – Galvão, 2009), tendo como uma das referências um plano estratégico do Ministério da Administração Interna do citado país (Cabo Verde, 2009), instituição que acabou por co-financiar o curso. A proposta do mestrado esteve em sintonia com a demanda daquele ministério com o propósito de prover a formação de dirigentes do sistema de segurança pública como um todo, na expectativa de que a gestão de defesa social e a medição de conflitos tivessem em conta a observância dos direitos humanos e os pressupostos governativos de um Estado democrático, como Cabo Verde. A Grade Curricular: Aspectos de Base e Efeitos Esperados Para atender ao objetivo do curso, elaborou-se a grade curricular com conteúdos disciplinares que habilitassem os discentes não apenas para interpretarem os dilemas e os avanços do policiamento e da segurança pública numa sociedade democrática e respeitando o estado de direito, como também para realizarem a integração da análise institucional e utilizarem a tecnologia da informação na sua atuação profissional de modo mais eficiente, primando pela inteligência. A habilitação para a elaboração de diagnósticos e formulação de políticas de gestão voltadas para a defesa social e indução do desenvolvimento de uma nova mentalidade de mediação de conflitos foi outro aspecto do currículo. Houve, ainda, a preocupação com estudos dos novos direitos, estudos na área da antropologia das diferenças, a análise das implicações sociais, políticas e económicas resultantes do acelerado processo de globalização e seus efeitos sobre a segurança pública. Programou-se o curso para que gerasse conhecimentos novos, principalmente sobre conflitos sociais e violência em Cabo Verde, em consonância com explicações históricas desses fenómenos e o levantamento dos fatores de sua etiologia, manutenção e seus efeitos sobre a segurança interna, na perspectiva de contribuir para a proposição de programas e políticas sociais que os levassem em conta pelos órgãos governamentais vocacionados para a área. 11 O Corpo Docente Atuaram no curso os seguintes professores doutores, os quais, na maioria, também foram orientadores dos mestrandos: pela UFPA, Daniel Chaves de Brito, Jaime Luiz Cunha de Souza, Luís Fernando Cardoso e Cardoso, Edson Marcos Leal Soares Ramos. Pela Uni-CV, José Carlos dos Anjos (docente da UFRGS, cooperante com a Universidade de Cabo Verde), Miriam Steffen Vieira, Arlindo Mendes e Roselma Évora. Os professores doutores Wlson Barp e Sílvia Almeida, da UFPA, colaboraram na realização de um workshop internacional, descrito adiante, como atividade do mestrado, na Uni-CV, e na orientação de discentes. O professor doutor Marcelo Galvão Baptista (da UFPA) foi quem propôs a realização desse mestrado na Uni-CV e que, com a participação de José Carlos dos Anjos, fez a divulgação do projeto no Ministério da Administração Interna de Cabo Verde e também coordenou o curso, de 2010 a 2013, além de orientar um aluno, nesse período, quando esteve prestando colaboração a essa universidade pública cabo-verdiana, amparado por um protocolo de cooperação com a universidade de origem. Temáticas das Disciplinas Ministradas e das Pesquisas Realizadas Estas foram as temáticas das disciplinas ministradas:  Esfera Pública, Ética, Direitos Humanos e Mediação Social;  Estado e Gestão Participativa de Defesa Social;  Metodologia da Pesquisa e Formulação de Projetos;  Teorias Sociais do Direito e da Cidadania;  Teorias Sociais do Crime e da Violência;  Estatística e Metodologias Informacionais Aplicadas ao Estudo da Segurança Pública;  Movimentos Sociais e Conflitos Ambientais em Cabo Verde. 12 Outras temáticas fizeram parte da formação, ou seja, foram contempladas nas pesquisas dos mestrandos, constituindo duas disciplinas relacionadas ao projecto de dissertação e ao seu desenvolvimento, a saber:  A Segurança Pública na Transição Democrática em Cabo Verde;  O Impacto do Narcotráfico Transnacional nos Dados Criminais dos Países de Trânsito de Drogas: O Caso de Cabo Verde;  O Movimento Migratório da CEDEAO para Cabo Verde nos Anos 2006 a 2010: Perfil de Imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal e Relação Imigração-Criminalidade nesse Período;  Análise Estatístico-Espacial da Violência Urbana: Uma Visão da Diferenciação Social do Espaço na Zona Norte da Cidade da Praia;  Análise do Abandono Escolar para a Prevenção da Delinquência Juvenil na Cidade da Praia;  Criminalidade Violenta e Sentimento de Insegurança: O Caso da Ci dade da Praia;  Custos, Evolução e Percepção da Sociedade Praiense sobre a Problemática da Violência e Criminalidade;  Violência Urbana na Ilha de Santiago: Os Impactos da Delinquência Urbana na Cidade da Praia - Estudo de Caso;  Cárcere e Punição: As Políticas de Ressocialização da Cadeia de São Martinho-Praia Cabo Verde;  Polícia e Sociedade: Representações Sociais da Segurança em Cabo Verde; Delinquência Juvenil e Criminalidade na Cidade da Praia. Uma Pesquisa em Torno do Fenómeno “Thug” e Violência Urbana;  Dissensos Conceptuais do Plano Estratégico de Segurança Interna (PESI 2009/ 2011) e suas Implicações;  A Violência Doméstica na Cidade da Praia – Zonas da Achada de Santo António e Tira Chapéu. 13 Workshop Internacional para Apoio ao Exame de Qualificação Foi realizado o workshop internacional Segurança Pública e Violência na Sociedade Contemporânea, entre 25 e 27 de Abril de 2011. Houve sessões envolvendo os seguintes temas:  Os Desafios da Segurança Pública no Brasil;  Os Usos das Metodologias Informacionais nas Práticas Policiais;  Os Modelos de Segurança Pública do Brasil e de Cabo Verde;  Violência e Conflitos Sociais em Múltiplas Perspectivas. Discutiu-se a respeito da influência da sociedade global nas questões da segurança pública, diferenciando as formas de controle social no passado e na modernidade, bem como a visão que se tinha do criminoso no período pós-Segunda Guerra, com a noção de reabilitação. Discorreu-se sobre a nova maneira de encarar o controlo, a partir da década de 1970, em que se preconizava que o criminoso fosse neutralizado e se dava mais atenção à vítima. Mencionou-se o fato de se constatar que o crime não acontece em função de fatores momentâneos, mas que a violência “veio para ficar”, que é mundial e corriqueira, e que isso não mudará com mudanças económicas, ao mesmo tempo em que o Estado reconhece que ele, isoladamente, não tem como resolver o problema. Falou-se de mitos associados à morte: o bíblico, quando Adão perdeu o paraíso e, portanto, a segurança, passando a sentir medo; e o de povos indígenas da Amazónia que concebem a morte não como punição ou vingança, assim vista pela cultura judaico-cristã, mas como equívoco. Considerou-se que, ao longo da história, o sacrifício para aplacar os espíritos tem sido substituído pelo sistema criminal e que o contrato social é um limite da liberdade em favor da segurança. Mencionou-se que num mundo em constante transformação, rápida e, por vezes, radical, com reivindicações contraditórias entre os diferentes grupos sociais, as instituições estão desprovidas de meios para resolver os problemas, em particular os afetos à segurança. Referiu-se à crença de que o direito de todos será respeitado nesse contexto, não obstante ser impossível a antecipação aos riscos e perigos do quotidiano. 14 Tratou-se da pertinência de haver coleta e tratamento de dados relacioanados a pesquisas em segurança pública, com o recurso às técnicas da Estatística, de forma a se poder, após determinado tempo e com um conjunto de informações, apresentar previsões. Salientou-se que, para a polícia, o conhecimento em Estatística é de extrema utilidade, no sentido de servir de base para a elaboração e execução de políticas públicas para o setor, contemplando decisões práticas e adequadas, a exemplo do efetivo policial a ser considerado e da determinação dos locais e horários de ocorrência de crimes, a partir do seu mapeamento propiciado por bancos de dados devidamente estabelecidos. No workshop também houve discussões sobre modelos, ou paradigmas de segurança pública, com a ressalva à possibilidade de coexistência de vários deles. Contextualizou-se a realidade brasileira que contempla 52 tipos de polícia, enquadrados em paradigmas diversos (de segurança nacional, de segurança pública e de segurança cidadã, dentre outros), e mencionou-se o Programa Nacional de Direitos Humanos que remete a novas leis que têm a segurança pública como referência. A segurança pública e a violência na sociedade contemporânea foram ainda aspectos discutidos no evento, com menção ao Estado penal e ao aumento do número de presos em todo o mundo. Ponderou-se sobre o fato de a redução da criminalidade não ser considerada necessariamente como consequência do aumento da riqueza, por ocorrer tanto entre os que possuem bens quanto entre os destituídos deles. E apresentou-se o conceito de marginalidade avançada, com as dinâmicas macroeconómica, política, económica e espacial. Mereceu também análise a violência sexual, com base numa investigação realizada no Brasil, a partir de denúncias feitas numa Delegacia de Mulheres, e que teve como foco as negociações de categorias jurídicas em torno da temática, ou seja, o processo de enquadramento legal deste tipo de violência a partir do acompanhamento de atendimentos policiais e análise dos registos. Frisou-se ainda a mudança da maneira como são encarados os crimes contra a mulher. E, sobre Cabo Verde, abordou-se a questão dos valores da família em oposição ao direito individual e à naturalização da violência contra a mulher. O workshop constitui uma excelente oportunidade de apoio aos mestrandos, no sentido de que pudessem desenvolver as pesquisas de suas dissertações, além de estabelecer contatos com os respectivos orientadores in loco para esse fim. 15 Também, os professores que realizaram o evento aproveitaram a sua estada na Uni-CV para participarem das sessões de defesa dos projetos dos discentes que estavam aptos aos exames de Qualificação ao Mestrado. As Dissertações Defendidas: Objetivos e Resultados5 Alberto Barbosa Junior investigou em sua dissertação o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde no período de 1870 a 2000. Buscou as raízes desse processo e o acompanhamento do seu desenvolvimento. A dissertação enquadra-se na pesquisa conceitual que, sendo dessa natureza, guiou a coleta e a análise de dados com base em fontes documentais. O autor considerou na pesquisa as transformações que avaliou como mais importantes, na organização policial no período do estudo, tendo sido o ano-limite inferior desse período marcado pela nomeação de uma comissão para estudar e propor ao governo da província a criação do primeiro Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia (evento antes e depois do que diversos atores sociais, a exemplo das forças armadas, hoje, partilhavam a manutenção da ordem pública) e o ano-limite superior, o marco do fim da II Legislatura da II República. Barbosa analisou o processo de criação, organização e funcionamento das instituições responsáveis pela segurança pública, tendo como enquadramento o contexto político, económico e social da época e levando em conta os fatores que influenciaram esse processo, sendo um deles a série de revoltas populares e de levantamentos sociais, além da teorização a respeito da polícia e segurança pública, o uso legítimo da força, o surgimento e o controlo dos sistemas policiais e a transição democrática. Por fim, o autor questiona o papel e a amplitude da transição democrática para a geração de um modelo novo de segurança pública em Cabo Verde. A investigação de António Varela envolveu como temática o Narcotráfico transacional: o impacto nos dados criminais em Cabo Verde como país de trân5. Houve a previsão inicial de publicação, neste Volume 1, de outras dissertações defendias (dos mestres Bernardo Ulisses Monteiro, Manuel Cabral e João Cícero Gertrudes); porém, pelo fato de não ter sido possível obter feedback, a tempo, dos orientadores para as correções finais, esses trabalhos poderão constar do próximo volume. Optou-se por considerar a versão do texto aprovada pelo orientador. Assim, nem sempre os textos apresentam o mesmo padrão, a exemplo do título de tabelas e gráficos. 16 sito de droga, aludindo às ações criminais6 em Cabo Verde, país que tem sido utilizado como um dos corredores de passagem, quase que obrigatória, de drogas, o caso da cocaína, da América Latina para a Europa. Sem dúvida, segundo o autor, este tipo de tráfico “tem influenciado o comportamento dos dados criminais do país (…) como o roubo, a posse de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de capitais”. O trabalho implicou um exaustivo e detalhado levantamento de dados sobre drogas, as rotas internacionais do tráfico de cocaína não só em direção à Europa, mas também ao mercado dos Estados Unidos da América e a outros destinos. Neste sentido, dir-se-ia que a investigação sobre esta temática é sempre um desafio complexo, arriscado e melindroso, o que não deixa de impor uma ação sistémica, cuidadosa e concertada. Não é por acaso que, para Varela, “as autoridades policiais nacionais, muitas vezes em articulação com autoridades de outros países, permitem traçar a rota desde a origem da droga na América Latina (Brasil, Argentina, Venezuela), quer por via aérea, utilizando voos comerciais que ligam semanalmente Fortaleza, no Brasil, à cidade da Praia, em Cabo Verde, quer por via marítima, através de diversos tipos de embarcações”. A dissertação de Varela revela que as “rabidantes7, consideradas como “correios” ou “mulas,” que se deslocam ao Brasil, em viagem de negócios, têm sido utilizadas pelos chamados barões para o transporte, por via área, de drogas para Cabo Verde, em troca de certa compensação financeira8. Ainda, mostra-se pioneira e permite circunscrever as circunstâncias em que o país passou a figurar-se na rota do narcotráfico transnacional e a sua conexão com as principais tipologias dos crimes organizados transnacionais. Ademais, há que considerar que a abordagem deste assunto expressa forte bravura e alta tenacidade pelo autor. Pois, para além do fato de as fontes se mostrarem difíceis em termos de acessibilidade, elas se afiguram de uma abordagem 6. Aliás, embora não se tenham dados suficientemente seguros que permitam conhecer os reais contornos e motivações dos horríveis crimes que vêm sendo praticados, nos últimos tempos, em Cabo Verde, a verdade é que a percepção geral que deles se tem é que há uma forte ligação entre o mundo de drogas e crimes organizados. 7. Pessoas que se dedicam às pequenas atividades comerciais, ou seja, vão comprar os seus produtos nos países estrangeiros e vendam-nos em Cabo Verde, mediante certa margem de lucro. 8. Essas pessoas chamadas de “mulas”, quando apanhadas pela Polícia Federal brasileira cumprem as suas penas em cadeias do Brasil, mas muito dificilmente denunciam os seus patrões. Aliás, na maioria das vezes, nem sequer os conhecem. 17 arriscada e de uma perspectiva fragmentada. O autor, por munir-se de conhecimentos na área do Direito e utilizar-se de sua experiência investigativa e prerrogativas de oficial da Polícia Nacional, conseguiu fazer deslocarem-se, ao centro de gravidade, discussões de caráter científico/ académico relacionadas à problemática do crime organizado que tem vergastado, principalmente na última década, os cidadãos cabo-verdianos, apoquentando a sociedade cabo-verdiana e condicionando, sobremaneira, a vida quotidiana das pessoas. A investigação de Varela deve ser continuada, para aprofundamento. Fornece importantes subsídios e pistas para facilitar a atuação de diversos organismos comprometidos com o processo de combate a este flagelo que é o narcotráfico transnacional organizado. A investigação de Emanuel de Nascimento Furtado Vaz teve como título Custos, evolução e percepção da sociedade Praiense sobre a problemática da violência e criminalidade. O objetivo do trabalho foi conhecer e analisar os custos da violência e da criminalidade em Cabo Verde no período de 2006 a 2010, seu peso orçamental, principais tendências e os reais desafios para o Estado e para a sociedade da capital. O autor constatou que, durante o período em análise, foi constante a tendência de aumento dos custos com a violência e a criminalidade, mas que não se configurou proporcional ao aumento dos custos de investimento e de funcionamento das instituições estudadas, apesar de que de ambos os lados a tendência tenha sido de crescimento anual. Vaz assegura que o Estado tem consciência de que gasta e deve gastar sempre para combater os males sociais existentes no país, nomeadamente aqueles relacionados com a violência e o crime. Porém, afirma que nem o Estado, muito menos as famílias e particularmente pessoas individuais sabem quanto gastam ou qual lhes é o custo implicado pela violência e o crime. A população não quer disponibilizar seu tempo nem dinheiro em soluções de combate ao crime e à violência, por avaliar, equivocadamente, não correr os riscos decorrentes desses males ou que os riscos estão sob seu controlo. Segundo o autor, não obstante os esforços do Estado em direcionar investimentos para as áreas de segurança pública, para fazer face às muitas dificuldades sociais existentes, e principalmente para conter a violência e a criminalidade que 18 se intensificam em Cabo Verde, especialmente na cidade da Praia, não se constata nos resultados do estudo a diminuição do sentimento de insegurança da população. Vaz considera pertinente que o Estado pugne para vencer os desafios impostos pela modernização e pela globalização que demandam a especialização de suas instituições em questões da segurança pública. Estas, segundo o autor, devem agir de forma coordenada quanto às estratégias, recolha e tratamento de informações para a melhor tomada de decisões, em particular no que concerne ao direcionamento de investimentos para áreas estratégicas e de maior interesse. Augusto Teixeira estudou o movimento migratório da CEDEAO para Cabo Verde, especificamente de cidadãos da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, nos anos de 2006 a 2010, com o objetivo geral de caracterizar o perfil desses imigrantes e correlacionar imigração e criminalidade no período. O autor traçou em sua pesquisa o seguinte perfil dos imigrantes: predominantemente masculinos e jovens; renda familiar inferior à de cabo-verdianos quando considerados em circunstância similar; solteiros, em sua maioria; escolaridade ao nível do secundário; inserção na economia informal e sem segurança social. Também, Teixeira verificou serem eles maioritariamente cristãos, o que, para o autor, desmistifica a avaliação de que os muçulmanos constituem ameaça para Cabo Verde. Dificuldades de natureza económica nos países de origem constituíram a principal razão para a imigração e este fator, aliado à impossibilidade de esses cidadãos irem a outro país, tornou-se decisivo para permanecerem em Cabo Verde. Teixeira apontou na pesquisa que a solidariedade de parentes ou amigos no país de acolhimento, ou uma eventual rede social de apoio foi o que mais pesou na organização da emigração. Augusto Teixeira verificou no estudo que a maioria dos imigrantes expressou sofrer discriminação por parte dos cabo-verdianos, não obstante ter respondido que ocupa o tempo livre com eles, os tem como amigos e sente-se satisfeita em Cabo Verde onde decidiu permanecer. O autor não obteve uma correlação significativa entre imigração e criminalidade em Cabo Verde envolvendo os imigrantes do estudo, de 2006 a 2010. Este resultado indicou não haver contribuição da presença desses africanos do con19 tinente para o incremento da criminalidade e, por conseguinte, da insegurança interna nesse período. Teixeira destaca em seu trabalho a necessidade de os serviços governamentais cabo-verdianos reverterem a inconsistência de dados estatísticos sobre o fluxo migratório, em particular, de cidadãos da CEDEAO para Cabo Verde, a pertinência de estes serem sensibilizados sobre os limites da livre circulação prevista na legislação, bem como da regulamentação dos aspectos fundamentais concernentes ao referido fluxo migratório. Os trabalhos descritos espelham a importância dos temas abordados e dos resultados obtidos, refletindo os esforços dos autores e o empenho dos seus orientadores em honrar seu compromisso com o curso do mestrado. Aposta-se no sentido de servirem de estímulo aos demais mestrandos para levarem a bom termo as dissertações ainda em curso. O SIGNIFICADO DO MESTRADO PARA AS RELAÇÕES DE COOPERAÇÃO ENTRE A UNI-CV E A UFPA O Mestrado em Segurança Pública contemplou a mobilidade de professores da UFPA para a Uni-CV, o que se verificou de forma frequente, com o seu engajamento na docência e orientação de discentes, viabilizando a formação de sete mestres de um total de 15, devendo haver 100% das defesas até o fim deste ano9. Espera-se que sejam ultrapassados todos os constrangimentos à oferta de uma segunda turma para que se dê continuidade a essa pós-graduação que já se mostrou relevante para a Uni-CV, por ser uma formação em que foram produzidos conhecimentos passíveis de gerar novos conhecimentos para alimentarem o ensino e a extensão numa área vital que é a segurança pública. A formação que o mestrado propiciou pode ser tomada como uma das realizações enquadradas na cooperação Sul-Sul com o suporte de duas universidades fortemente comprometidas com o apoio aos governos dos respectivos países no delineamento de políticas sociais no domínio da segurança pública. Espera-se também que o prosseguimento do mestrado e a realização de outras ações agen- 9. O ano em questão referia-se ao de 2014, quando se esperava realizar a publicação deste obra. 20 dadas para o futuro, que se crê breve, fortaleçam cada vez mais a cooperação com a UFPA, auxiliando o Governo de Cabo Verde na concretização da política de melhoria não somente da qualificação dos profissionais de segurança interna como também na luta contra os males que se traduzem em violência e crime, pela investigação científica de suas causas e variáveis mantenedoras, conduzindo, assim, à tomada de medidas efetivas para o seu controle, evitando os seus nefastos efeitos. 21 REFERÊNCIAS CABO VERDE, 2009. Plano Estratégico de Segurança Interna 2009-2011. Praia: Ministério da Administração Interna, 2009. GALVÃO, M. Projecto de Mestrado em Segurança Pública – Gestão de Defesa Social e Mediação de Conflitos. Reitoria da Universidade de Cabo Verde. Cidade da Praia: Uni-CV, 2009 (Projeto adaptado do original de Daniel Chaves de Brito). MOURA, J. B. “A cooperação como fundamento do trabalho universitário”. Em GAZOLA, A. L. A. e ALMEIDA, S. G. (Orgs.). Universidade, cooperação internacional e diversidade. Belo Horizonte: Editora UFGM, 2006, p. 61-68. PANIZZI, W. M. “Cooperação internacional: solidariedade e diálogo entre iguais”. Em GAZZOLA, A. L. A. e ALMEIDA, S. G. (Orgs.). Universidade, cooperação internacional e diversidade. Belo Horizonte: Editora da UFGM, 2006, p. 61-68. PEDROSA, J. Comunicação apresentada no XXIII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. SARAIVA, J. F. S. África parceira do Brasil atlântico: relações internacionais do Brasil e da África no início do século XXI. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012. 22 ESTADO E POLÍCIA: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA EM CABO VERDE (1870 – 2000)1 Alberto Lopes Barbosa Júnior RESUMO Esta dissertação propõe-se estudar o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, tentando encontrar as suas raízes e acompanhar o seu desenvolvimento, tendo como referência as mais importantes transformações ocorridas na organização policial no período que vai de 1870, ano em que foi nomeada uma comissão para estudar e propor ao governo da província a criação do primeiro Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, até 2000, ano que marca o fim da II Legislatura da II República. Ela investiga e procura conhecer o processo de criação, a organização e o funcionamento das instituições encarregues da garantia da segurança pública, enquadrando-o no contexto político, económico e social que marcou a época. Ela busca identificar fatores que influenciaram esse processo e teoriza temas como a polícia e a segurança pública, o uso legítimo da força, o surgimento e o controlo dos sistemas policiais e a transição democrática. Finalmente, ela questiona se e em que medida a transição democrática contribuiu para a emergência de um novo modelo de segurança pública. Palavras-chave: Polícia. Segurança Pública. Uso Legítimo da Força. Transição Democrática. Sistemas Policiais e Accountability. 1. Dissertação defendida no dia 10/12/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores João Lopes Filho (Uni-CV), como Presidente, José Moniz (Uni-CV) e Daniel Chaves de Brito (Orientador – UFPA). 23 STATE AND POLICE: THE INSTITUTIONALIZATION OF PUBLIC SECURITY IN CAPE VERDE (1870 2000) ALBERTO LOPES BARBOSA JÚNIOR ABSTRACT This dissertation proposes to examine the process of institutionalization of public safety in Cape Verde, trying to find their roots and monitor its development, taking as reference the most important changes in police organization from 1870, when a commission was nominated to study and to propose to the government of the province the creation of a Civil Police Body, to 2000, the year that marks the end of the Second Legislature of the II Republic. It investigates and demands to know the process of creation, organization and the functioning of institutions responsible for the public security and put it in political, economic and social context that marked the season. It seeks to identify factors that influenced this process and theorizes themes such as the police and public safety, the legitimate use of force, the emergence and control of police systems and the democratic transition. Finally, it questions whether and to what extent the democratic transition contributed to the emergence of a new model of public safety. Keywords: Police. Public Safety. Legitimate Use of Force. Democratic Transition. Police Systems and Accountability. 24 INTRODUÇÃO “Um país sem polícia é um grande navio sem bússola e sem timão” Alexandre Dumas Aquando do seu achamento em 1460, as ilhas de Cabo Verde eram desabitadas. O processo de povoamento começou em 1462 e a ilha de Santiago foi a primeira a ser habitada. Dado à posição estratégica que Cabo Verde ocupa no atlântico, na rota da navegação marítima, floresceu nessa ilha um importante centro urbano – Ribeira Grande de Santiago, que viria a desempenhar um importantíssimo papel no comércio, na navegação marítima e na rota de escravos para o continente americano. A história de Cabo Verde é marcada por crises cíclicas (seca, pragas, fome) que assolaram as ilhas com alguma regularidade, sendo de interesse para este trabalho as conhecidas fomes das décadas de 1920 e de 1940 e a estiagem da década de 1960. O governo colonial nunca conseguiu implementar medidas que impedissem a morte de milhares de pessoas e a emigração forçada de outros tantos2. Constituindo a agricultura o principal modo de vida dos cabo-verdianos, a situação de seca que afeta diretamente grande parte da população, os abusos dos proprietários das terras e, em alguns casos, o agravamento da carga fiscal em momentos de aperto ou de insuficiente produção agrícola são, entre outros, fatores frequentemente associados a conhecidas revoltas e levantamentos populares nas ilhas de Santiago, S. Vicente e Santo Antão, com realce para as primeiras quatro décadas do século passado. Estas revoltas3 puseram amiúde, a nu, a fragilidade das instituições encarregues da manutenção da ordem pública, do mesmo passo que a sua inexistência ou o seu reduzido efetivo disperso pelas ilhas, não permitiam responder às exigências cada vez maiores. Esta situação de precariedade não passava despercebida aos poderes coloniais que, a braços com dificuldades orça- 2. História Geral de Cabo Verde, Vol. 1, pag. 15 a 17. 3. As revoltas mais importantes encontram-se referenciadas nas pág. 37 e 38. 25 mentais, a muito custo iam conseguindo remediar a situação, com a agravante de não disporem de força permanente em todas as ilhas. De cada vez que a tensão social aumentava ou acontecia uma rebelião, o governo da província procedia a uma reorganização da força de ordem para, no final, tudo permanecer como antes, havendo casos em que os salários ou as ajudas de custo atribuídas aos membros do corpo policial e da tropa,4 sofreram aumentos de 200%, para serem de novo reduzidos em momentos de acalmia. É neste mar de dificuldades, com avanços e recuos que a polícia cabo-verdiana navegou até a década de 1960, período em que rebentou a guerra colonial e a polícia conheceu um nível mais elevado de organização, com representação ainda que frágil, em todas as sedes de concelho da província. Mas as mudanças de fundo na estrutura organizativa e na cobertura do território nacional ocorreram verdadeiramente no período pós-independência nacional, com destaque para os anos de 1975 e 1984, durante a primeira república e para os de 1992 e 1998, depois da transição democrática. O objetivo desta pesquisa é estudar o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, tendo como referência as mais importantes transformações ocorridas na organização policial no período que vai de 1870, ano em que foi nomeada uma comissão para estudar e propor ao governo da província a criação do primeiro Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, até 2000, ano que marca o fim da II Legislatura da II República. Ela investiga e procura conhecer o processo de criação, a organização e o funcionamento das instituições encarregues da garantia da segurança pública, bem como compreender o seu enquadramento no contexto político, económico e social que marcou a época. Ela questiona, finalmente, se e em que medida a transição democrática contribuiu para a emergência de um novo modelo de segurança pública. Para a concretização desse objeto de estudo foi utilizado o método de pesquisa qualitativa do tipo desenvolvimentista, bibliográfico e histórico, tendo-se procedido a aturada pesquisa documental e bibliográfica com o intuito de reunir elementos factuais sobre o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde. Procurou-se, igualmente, com recurso à bibliografia assinada pelos mais destacados autores desta área, mas também a estudos e trabalhos académicos correlacionados, fazer o enquadramento teórico de importantes temas 4. Também aos funcionários públicos, de um modo geral. 26 como o Estado e a sua função no domínio da segurança, o uso legítimo da força, a segurança pública, a transição democrática e os sistemas policiais. Em Cabo Verde, as razões da criação de um corpo policial não diferem daquelas que universalmente se apresenta como fator comum – a criminalidade. Ao longo do período em estudo, Cabo Verde passou por três momentos históricos durante os quais, foram tomadas importantes decisões que marcaram, cada um a seu modo, o processo de criação e consolidação por que passou a instituição policial. Durante o primeiro período (1872 a 1910), em que vigorou o regime monárquico, o Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia era uma instituição débil, com jurisdição apenas sobre o território municipal da Praia e com um reduzido número de efetivos. O melhor que se pode fazer foi criar um corpo de polícia também para a cidade do Mindelo5 , com as mesmas carências e limitações já conhecidas. No segundo período (1910 a 1964), que decorre da implantação da república até o eclodir da guerra colonial, a polícia conheceu várias medidas de reorganização motivadas por revoltas e levantamentos populares e por razões orçamentais, sendo certo que as mais importantes tiveram lugar nas décadas de 1930 e 1960. E o terceiro período (1975 a 2000), que decorre da proclamação da independência ao ano em que terminou a II Legislatura do II Governo Constitucional da II República, foi um período de construção de uma polícia para responder às exigências de um país independente. Foi neste período que aconteceram as mais importantes transformações no enquadramento legal, na organização e no funcionamento da polícia. É sobre este período de pouco mais de um século que incide este trabalho. Ele está estruturado em três capítulos, que permitem compreender o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde e analisá-lo à luz do pensamento científico. O primeiro capítulo intitulado “As raízes da polícia cabo-verdiana”, investiga e procura identificar as raízes da polícia cabo-verdiana para compreender o processo do seu nascimento e evolução, sem perder de vista o contexto político, 5. Decreto nº 2, de 24 de dezembro de 1896, publicado no Boletim Oficial nº 7, de 13 de Fevereiro de 1897. 27 económico e social da época em que esse processo ocorreu. Este capítulo, que se subdivide em três partes, dedica a primeira, sob o título “O exército miliciano e os oficiais camarários”, ao período que antecedeu a criação do primeiro Corpo de Polícia em Cabo Verde, procurando conhecer as organizações, entidades e instituições que intervinham na manutenção da ordem, quais as suas atribuições específicas, como se articulavam e de um modo geral conhecer os mecanismos de garantia da ordem pública nesse período. A segunda parte sob o título “Criação e evolução do corpo da polícia civil da cidade da Praia”, é dedicada ao estudo do processo de criação, organização e funcionamento da polícia durante o período coberto pelo estudo. Ela visa conhecer em detalhe os fundamentos da criação do Corpo de Polícia Civil da Praia e as mutações por que passou durante o período em análise e compreender as motivações, o sentido e o alcance dessas mutações. Na terceira parte sob o título “Referências na criação da polícia em Cabo Verde“, o foco do estudo é concentrado na análise do conteúdo dos regulamentos, procurando identificar aproximações ou influências de outras organizações policiais na criação e consolidação do modelo de polícia cabo-verdiana. Faz-se um paralelo com a polícia do Reino, e vai-se buscar, como referência, a caracterização de outras polícias continentais europeias, da “nova polícia” londrina, da americana e brasileira feita por conhecidos autores estudiosos desta matéria. O segundo capítulo intitulado “A independência e a construção do Estado”, é dedicado ao período da independência nacional e está dividido em duas partes. Na primeira com o título “Construção do Estado e seus reflexos na polícia“, analisa-se o contexto político em que nasceu a República de Cabo Verde, identificam-se os traços marcantes do regime político instituído à luz do posicionamento ideológico do partido que conduziu a luta armada para a independência e todo o processo que desembocou na proclamação da independência e procura-se identificar reflexos ou influências do modelo de Estado construído na organização policial. Na segunda parte, intitulada “A segurança pública nos programas de governo”, analisa-se o conjunto dos programas de governo aprovados durante as cinco legislaturas que cobrem o período pós-independência e busca-se compreender como os governos olhavam para a segurança pública e quais as medidas que se propunham materializar para cumprir a função segurança do Estado. 28 O terceiro capítulo, intitulado “A transição democrática”, está também dividido em três partes. A primeira sob o título “Enquadramento teórico”, discute o tema da transição democrática, tendo como referência conceituados autores sobre a matéria. Procura-se analisar os tipos de transição democrática, identificar aquele que se aplica ao nosso caso e identificar os elementos que devem fazer presença no processo de construção da democracia. A segunda parte, sob o título “Surgimento e controlo dos sistemas policiais”, é dedicada ao surgimento e controlo dos sistemas policiais. Nela são discutidos aspetos relativos ao surgimento e controlo dos sistemas policiais, trazendo a abordagem dos principais estudiosos da matéria, especificamente no que respeita aos fundamentos da criação das instituições policiais e à disputa desse controlo entre órgãos administrativos locais e centrais. Na terceira e última parte, sob o título “Policia e segurança pública”, procura-se definir o conceito de polícia e debate-se o papel do Estado enquanto entidade que detém o monopólio do uso legítimo da força, procurando-se compreender o verdadeiro sentido desta prerrogativa do Estado. Debate-se ainda o binómio segurança e liberdade evidenciando-se a fragilidade da fronteira que separa uma da outra, o que implica a constante procura do equilíbrio entre uma e outra. A concluir o presente trabalho são apresentadas as considerações finais. 29 CAPÍTULO I AS RAÍZES DA POLÍCIA EM CABO VERDE 1.1 - O EXÉRCITO MILICIANO E OS OFICIAIS CAMARÁRIOS Do seu achamento em 1640 até o ano de 1872, não se conhece qualquer sinal da existência de uma organização que se dedicasse, em exclusivo, à manutenção da ordem pública na vila da Ribeira Grande de Santiago, o principal centro urbano das ilhas de Cabo Verde e um dos primeiros erguidos pelo império português em África, na época em análise, nem em qualquer outro ponto do arquipélago. A garantia da ordem era tarefa repartida entre um exército miliciano que ao mesmo tempo se dedicava à defesa da vila contra a invasão dos corsários, e oficiais camarários com destaque em primeiro lugar para os “juízes ordinários” encarregues de “… administrar a justiça (em primeira instância) entre vizinhos, e julgar as causas dos navegantes e do mar…”6 e com competência para manterem a ordem pública e fiscalizar a execução das posturas camarárias e as leis do Reino7 , depois para os “juízes vintenários” que julgavam as pequenas causas entre grupos de vinte fogos, para além de velarem pela ordem pública e segurança dos povos e dos bens, promoverem a vigilância, medidas sanitárias e policiamento,8 e os meirinhos da serra9 , estes com a função específica de fazer a “caça e captura dos escravos fujões”. Tão longe quanto esta pesquisa permitiu alcançar, foi a Portaria nº 81, de 12 de abril de 1864, assinada pelo Governador-geral, Carlos Augusto Franco, que aprovou o primeiro regulamento de patrulha da cidade da Praia, que cometia esta missão ao batalhão de artilharia de primeira linha que a cumpria diariamente en- 6. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 241. 7. Idem. 8. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 241 a 242. 9. Para contextualizar o surgimento e o papel do “meirinho da serra”, vide História Geral de Cabo Verde, Vol. II, p. 275 a 290. Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura – Editorial Verbo – 13º Vol., “… na perspetiva histórica, Meirinho era um juiz régio, encarregado de dar execução às sentenças do soberano. De origem visigótica e leonesa, o nome maiorinus de onde derivou o meirinho, designava aquele que detinha a “maioria” dos poderes. Atribui-se a sua instituição a Bermudo II. Em território português surgem os meirinhos no Sec. XI, como magistrados de grande prestígio, com jurisdição sobre territórios determinados …”. 30 tre as nove horas da noite e o raiar do dia, para atender “… á necessidade urgente de provêr á segurança pública e de obstar à continuação de alguns roubos, que ultimamente aqui tem tido logar a despeito dos poucos recursos de que dispõe o governo … “10 . Tenha-se presente a importância e o papel que a câmara e a milícia tiveram no processo de afirmação da elite11 cabo-verdiana. Com efeito, estas duas instituições funcionaram como, […] um instrumento de solidariedade que permitiu à elite cabo-verdiana, apesar de existirem no seu seio divergências de interesses pontuais, unir-se, mobilizar-se, resistir e lutar contra o esvaziamento dos seus privilégios, prerrogativas e honrarias; contra as vexações dos governadores e ouvidores; contra a prepotência dos feitores das companhias de comércio; contra os ataques dos piratas como elemento fundamental para a protecção dos portos das ilhas […]12 Como poder político e militar legitimaram a “nobreza concelhia” enquanto único representante dos interesses de todos os vizinhos e interlocutor privilegiado da coroa, exercendo controlo sobre os moradores através dos poderes judiciais que detinham e “disciplinando o povo miúdo por meio da milícia”13 . Na procura do seu espaço na sociedade da época, não restava à elite caboverdiana outro caminho senão exercer funções concelhias, o que não era possível sem antes integrar a milícia. A chefia da milícia era algo cobiçado, pois, para além de assegurar um cargo vitalício, conferia poder e influência na sociedade, comparáveis com os do clero. Tendo, embora, como objeto de estudo a análise da relação entre as elites intelectuais e o nacionalismo em Cabo Verde, José Carlos dos Anjos escreve que, 10. Para contextualizar o surgimento e o papel do “meirinho da serra”, vide História Geral de Cabo Verde, Vol. II, p. 275 a 290. Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura – Editorial Verbo – 13º Vol., “… na perspetiva histórica, Meirinho era um juiz régio, encarregado de dar execução às sentenças do soberano. De origem visigótica e leonesa, o nome maiorinus de onde derivou o meirinho, designava aquele que detinha a “maioria” dos poderes. Atribui-se a sua instituição a Bermudo II. Em território português surgem os meirinhos no Sec. XI, como magistrados de grande prestígio, com jurisdição sobre territórios determinados …”. 11. Segundo Iva Cabral, in História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 235 “ … Utilizamos aqui o conceito de elite no sentido de “/…/ uma fracção da população onde se concentram poderes, autoridade e influência /…/” apresentado por Guy Chaussinand Nogaret (direcção de), Histoire des Elites en France du XVIe au XXe Siècle – L’honneur – Le Mérite – L’Argent, Editions Tallandier, Paris, 1991, pp. 11 a 13 …”. 12. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 236. 13. Idem. 31 […] até fins do século XIX, a sociedade colonizada cabo-verdiana se estruturava sob a dominação racial de uma minoria branca sobre a maioria negra da população; em fins do século XX Cabo Verde é uma sociedade estruturada sob a dominação de elites que, pela manipulação dos códigos político-culturais ocidentais, fazem a mediação entre o sistema internacional e a população local. Desaparecem internamente as contraposições assentadas em critérios raciais e/ou étnicos, ao mesmo tempo em que se reforçam as distâncias culturais, não mais diferenciando grupos étnicos, mas criando elites destacadas pelo desempenho e manipulação dos códigos dominantes ocidentais […] (Anjos, 2003, p. 582). Embora num contexto de dominação racial de uma minoria branca, as elites “cabo-verdianas” do século XVI procuraram, pelo desempenho de cargos, designadamente nas milícias e nos órgãos camarários, o domínio dos “códigos dominantes” para elevarem o seu estatuto social e dele tirar benefícios, designadamente transformando-se em interlocutores privilegiados, da coroa e do Reino, exatamente pelo domínio dos “códigos” a que se refere José Carlos dos Anjos (2003). Para que se alcance e se compreenda a natureza e os traços marcantes do exército miliciano de então, bem como do surgimento dos meirinhos, figura que, aliás, já existia no Reino, e se conclua da inexistência de uma força policial nas ilhas, a História Geral de Cabo Verde (SANTOS, 2002, pp. 42, Voll. III), ao se referir à fuga de escravos enquanto traço estrutural da sociedade escravocrata, realça que a fuga torna-se um problema central na agenda de preocupações dos proprietários fundiários (grandes e pequenos), mas não só a deles. E explica que, […] o fugitivo gera em grande parte da sociedade preocupações económicas (subtração da força de trabalho), de segurança (assaltos e ataques), sociais (estímulo à fuga dos companheiros em cativeiro) e, por fim, políticos (o perigo de uma tomada de poder). Por isso a sociedade cedo põe de pé mecanismos e expedientes de repressão do fenómeno […] (SANTOS, 2002, p. 42). A preocupação com a fuga faz todo o sentido se se considerar que o controlo sobre a força de trabalho dos fujões, assente maioritariamente na coerção e na ameaça, revestiu-se, no seculo XVIII de uma importância transcendente dado a uma aguda crise de mão-de-obra que atingiu o setor da agricultura comercial de Santiago. Assim se compreende que os forros, os fujões e os “viventes sobre si próprios” passassem a ser vistos como um imenso e alternativo reservatório de 32 força de trabalho a controlar. E a razão de ser desse controlo parece encontrar explicação no facto da fuga, em si mesma, representar não apenas a privação de mão-de-obra para os senhores de escravos mas, sobretudo, a “violação da ordem natural das coisas”14 , assumindo características geográficas (refúgio nos espaços serranos), sociais (condutas insubordinadas) e culturais (novos padrões de cultura). Para caracterizar a regularidade e o alcance dos “mecanismos e expedientes” antes referidos, enfatiza-se que, […] Estes começam a ter um caracter excepcional e extraordinário. De início não eram mais do que organizações espontâneas dos proprietários de terras, incentivadas e com o beneplácito do aparelho administrativo régio. Recordemos, por exemplo, que, em 1528, o almoxarife Rodrigo Óbidos recompensava a 300 reais cada escravo que alguém capturasse […] (SANTOS, 2002, p. 42). No que se refere à eficácia de tais “mecanismos e expedientes”, escrevem os autores da História Geral de Cabo Verde (SANTOS, 2002, p. 43), que. […] dada uma provável ineficácia deste expediente e face à intensidade crescente do fenómeno (fuga), cria-se, em 1534, o ofício de meirinho da serra. Apesar do carater oficial do cargo, este permanece, tanto pelo financiamento como pelo recrutamento, largamente na dependência dos grandes agricultores … O meirinho era pago a meias pela Feitoria Real e pelo Conselho da Câmara, ou, então, na ausência de receitas deste, directamente pela contribuição do povo […]. O meirinho da serra era auxiliado por dois homens que ficaram conhecidos como “homens do meirinho” e tinham como missão primordial, a “caça e a captura de fujões”. Face à grande resistência dos fujões, assentados em zonas de difícil acesso e organizados em grupos dispersos, as tentativas de recaptura e punição levadas a cabo pela milícia da terra (dirigida sempre por grandes terratenentes, quase todos eles coronéis e capitães) não surtiram o efeito desejado e em 1733, dois séculos depois da criação dos meirinhos da serra, o Governador-Geral das ilhas expõe de forma clara a baixa eficácia do seu aparelho militar que, enfrentando graves problemas orçamentais, com elevado absentismo e eivada de contradições 14. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 240 a 242. 33 sociais entre o nível cimeiro e o de base e composto basicamente por “… pretos forros, na maioria pequenos camponeses, cuja condição social se aproximava da dos negros fujões das montanhas, as milícias formavam uma organização heterogénea…” onde a multiplicidade de interesses dos atores que a integravam “… frena e bloqueia o processamento de ordens repressivas…”, ou seja, “ … como os que hão-de fazer as execuções são parentes, compadres e amigos, uns dos outros é mais dificultoso prender…” (Santos, 2002, p. 43). A mesma situação era descrita em 1731 pelo ouvidor José da Costa Ribeiro que dizia numa carta enviada ao Rei, […] Além dos furtos de que não fazem escrúpulo, as mortes são, e os delitos inumeráveis; tiram-se devasas mas não se prende criminoso algum, porque como os que hão-de fazer estas diligências são outros da sua cor, preto não prende preto e nesta forma serão mais de 300 criminosos […] Refere a Historia Geral de Cabo Verde15 , citando Foucault, na sua reflexão sobre o poder que nos ensina que o poder é um dado eminentemente relacional. Na verdade, segundo Foucault, “… o poder não se funda em si mesmo e não se dá a partir de si mesmo…” (FOUCAULT, 2008), o que coloca os terratenentes numa encruzilhada. Por um lado “… os terratenentes escravocratas só podem empreender o projecto de reescravização dos fujões, o que inclusive passava por ações de recaptura, se dispuserem de recursos repressivos organizados e operacionais…” e, por outro, precisam da participação ativa de indivíduos que, maioritariamente, pertencem à mesma condição social dos que devem ser recapturados e reescravizados e, por isso não se mostram disponíveis para tal empreendimento. As secas cíclicas e as mortes a elas associadas contribuíram para o declínio dos terratenentes que encontraram no contrabando, uma forma de atenuar a situação. A grande quantidade de enseadas e de portos naturais que a ilha de Santiago oferece, proporcionava condições ótimas para o desenvolvimento do contrabando e a fiscalização estava condenada ao fracasso já que os latifundiários, que eram coronéis, capitães e sargentos-mores, sabiam que não havia meios suficientes para contrapor àquela prática. Em 1740, o ouvidor-geral das ilhas informava a Coroa que tinha conhecimento que capitães de navios ingleses andavam a negociar (urzela e panos) no 15. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 46. 34 Tarrafal e na Praia Formosa, na costa leste da ilha de Santiago e que enviou para o local alguns oficiais que, recebidos a tiro “de artilharia com balas e mais armas de fogo”, puseram-se em fuga. Era percetível uma cumplicidade entre as populações, membros das milícias e comerciantes estrangeiros. Dava-se conta que os próprios oficiais estavam envolvidos nesse negócio com navios ingleses, designadamente na vila da Praia de Santa Maria, o mais frequentado dos portos cabo-verdianos de então.16 A realidade que nesta matéria se vivia na vila da Ribeira Grande foi transportada para a vila da Praia de Santa Maria surgida em 1615, “… quando se deu início ao povoamento de um planalto situado perto de uma praia (praia de Santa Maria) que oferecia boas condições para navios…”. De porto clandestino, bom refúgio para os que se furtavam ao pagamento das taxas aduaneiras na então capital, Ribeira Grande, a localidade foi progressivamente adquirindo características de uma vila com a gradual fuga das populações da Ribeira Grande, aquando do declínio desta última, processo que culminou, em 1770, com a passagem oficial da capital da vila da Ribeira Grande para a da Praia de Santa Maria.17 A transferência da capital para a Praia acontece num momento em que o exército miliciano se encontra enfraquecido e desacreditado perante as autoridades pelo envolvimento dos seus oficiais em práticas de contrabando. Para além das milícias, tinham também responsabilidade em matéria de segurança pública, um conjunto de oficiais camarários cujo enquadramento resulta de certa transposição do modelo existente no Reino para as ilhas de Cabo Verde, com elementos colhidos e adaptados, segundo se acredita, da ilha da Madeira. Segundo Ângela Domingues18 , o primeiro documento encontrado e que se refere ao município em Cabo Verde, já como instituição conhecida, data de 1497. A implantação, evolução e competências da câmara refletida na orgânica municipal, davam conta de um conjunto de oficiais que integravam o senado camarário, com atribuições diversas, incluindo a matéria de garantia da ordem pública, e que 16. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 40 a 66. 17. Dados do site oficial da Câmara Municipal da Praia: http://www.cmp.cv/Autarquia/tabid/58/language/ pt-PT/Default.aspx, acessado em 15.05.2012. 18. História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 41 a 68. 35 podem ser elencados do seguinte modo: os juízes ordinários, juntamente com os vereadores, o procurador, o tesoureiro e o escrivão. Eram, no entanto, os juízes que se destacavam nesse elenco. Os juízes ordinários (dois na Ribeira Grande, dois na vila da Praia e um na ilha do Fogo) eram encarregues da administração da justiça (em primeira instância) entre os vizinhos19 e de julgar as causas dos navegantes e do mar. Encarregavam-se ainda de manter a ordem pública e de fiscalizar a execução das posturas camarárias e das leis do Reino. A par dos juízes ordinários existiam os juízes vintenários que julgavam pequenas causas entre grupos de vinte fogos. Cabia-lhes velar pela ordem pública, segurança dos povos e dos bens, promovendo vigilância, medidas sanitárias e policiamento.20 Os vereadores eram magistrados que se dedicavam, essencialmente, à “ordem administrativa local”. Tinham como função “o carrego de todos regimento da terra e das obras do concelho e aos quais competia tudo poderem saber, e entender, porque a terra e os moradores della bem possão viver”. Os vereadores eram, por sua vez, auxiliados por outros oficiais camarários dos quais se destaca; os “almotacés”, estes encarregues da “… inspecção dos pesos e medidas,… do saneamento urbano e da vigilância das construções privadas e obras públicas…”, os alcaides que “…estabeleciam com os meirinhos, o policiamento do núcleo habitacional e que tinham capacidade para prender os infractores, guardar os presos e constranger ao pagamento de dívidas…” e os “quadrilheiros”21 que tinham a missão de “… fazer o policiamento das ruas, evitar desordens 19. “Vizinhos” era a designação que recebiam “ … os naturais de uma povoação que detinham alguma dignidade ou ofício régio ou senhorial e que vivesse no lugar ou no termo, que casasse com mulher da terra e ai residisse e tivesse a maior parte do seu património messe local durante, pelo menos, quatro anos…”. Em contrapartida, os “moradores” eram aqueles indivíduos que possuíam um elevado estatuto que lhes permitia comerciar com a costa oeste africana. (História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 63). 20. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 238 a 243. 21. “… Os “quadrilheiros”, o primeiro corpo de agentes policiais, foi criado por D. Fernando I, com um efetivo de 20 elementos, tendo recebido um Regimento, datado de 12 de Setembro 1383, que refere no seu preâmbulo a grande criminalidade que grassava na cidade de Lisboa. Recrutados à força, entre os homens mais fortes fisicamente ficavam subordinados à edilidade, por três anos consecutivos, e obrigados por juramento a terem as suas armas (uma Vara, que devia estar sempre à porta de cada um deles, a qual representava o sinal de Autoridade para prenderem e conduzirem o criminoso perante a Justiça dos Corregedores…). In site oficial da PSP: http://www.psp.pt/Pages/apsp/historia.aspx?menu=1&submenu=4 36 e furtos e prender os homiziados…”22 . No Reino, e assim também em Cabo Verde, os corpos de polícia eram auxiliados por outras autoridades locais. É importante aqui recordar que a estrutura de base do poder local português foi delineada no Código Administrativo aprovado em 1836, no contexto de um Estado emergente da revolução liberal e ainda com traços do antigo regime. Mas, antes do Código Administrativo, pelo Decreto Nº 25 de 26 de novembro de 1830, foram instituídas as Juntas de Paróquia com o argumento de que era […] necessário para o bom regimento e polícia dos povos que haja em todas as Paróquias alguma autoridade local…uma Junta nomeada pelos vizinhos, encarregada de promover e administrar todos os negócios que forem de interesse puramente local […]. Tais Juntas funcionavam na dependência do “Regedor” que detinha competências de natureza administrativa e “um longo rol de competências policiais”, onde despontavam desde a manutenção da ordem pública na Paróquia à prisão de pessoas culpadas, passando pela vigilância sobre os ladrões e salteadores e sobre estalagens, tabernas e mais casas públicas, fazendo com que nelas fossem observados os Regulamentos de Polícia e as Posturas Municipais23 . O “Regedor”, que também chegou a ser designado “Comissário”24 , detinha competência própria ou delegada e exercia primordialmente funções de natureza policial com o objetivo de manter a ordem pública, procurando prevenir e reprimir a criminalidade e a vadiagem, atuando também na investigação de crimes, tarefas em que era coadjuvado pelos seus Cabos. Cada “Comissário” era apoiado por “Cabos de Polícia”, um por rua, obrigados a relatar ao respetivo Comissário “…todos os acontecimentos do dia e noite antecedentes...”25 . 22. História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 67. 23. Vide, Bonfim - Séc. XIX: A regedoria na segurança urbana – Maria José Moutinho Santos - Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 24. Foram várias as revisões do Código Administrativo, sofrendo a figura do Regedor alterações diversas, tanto na designação como no seu estatuto, mas mantendo-se a substancia das suas competências. 25. Vide, Bonfim - Séc. XIX: A regedoria na segurança urbana – Maria José Moutinho Santos - Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 37 Aos “Cabos” estavam reservadas competências no domínio da polícia preventiva, razão pela qual deveriam ser escolhidos entre os cidadãos “mais autorizados” de modo a assegurar, por sua influência e superioridade junto dos vizinhos, “… o respeito e obediência em suas admoestações, conselhos e ordens em tudo o que respeitasse à manutenção do socego, ordem e segurança pública e individual...”26 . Se teoricamente o perfil dos “Cabos” era traçado com as preocupações atrás referidas, a realidade era, porém, bem outra. Eram homens de trabalho, de diversas profissões, “… muitas vezes gente rude, que, sem remuneração alguma, se prestava a rondar de noite, a patrulhar feiras e arraiais, a prender criminosos e desertores, a escoltar presos...”27 . Estas duas figuras, “Regedor” e “Cabo da Polícia”, este mais conhecido em Cabo Verde por “Cabo Chefe”, desempenharam um importante papel enquanto autoridades locais e auxiliares das forças públicas na manutenção da ordem. Enquanto o Regedor desempenhava as suas funções nas sedes dos concelhos, o Cabo Chefe era o representante da autoridade administrativa e policial nos povoados e era munido de uma espada que simbolizava o poder real a que serviam.28 No seu trabalho sobre “O poder local e a divisão administrativa em Cabo Verde no pós-independente”, Eurico Pinto Monteiro29 escreve: […] Em ordem a incrementar a participação popular na gestão dos assuntos públicos, que era mais directa, concreta e eficaz quanto menor fosse a sua área de jurisdição, e a integrar o grave vazio administrativo que emergiu com a supressão, em 1975, dos cargos de regedor e de cabo-chefes, foram instituídas, em 1979, como órgãos de base de poder local, as Comissões de Moradores, com actuação nos povoados e bairros [...]. 26. Idem. 27. Idem. 28. A título meramente ilustrativo, nos concelhos do interior da ilha de Santiago, quando alguém cometia uma infração num povoado qualquer e, por uma razão ou outra, via-se o cabo chefe impedido de o escoltar até o posto policial da sede do concelho, ele entregava a espada ao próprio prevaricador que fazia às vezes grandes percursos a pé, para fazer a entrega da espada à autoridade policial. Era também usual o cabo chefe designar um acompanhante que, empunhando a espada, conduzia o prevaricador ao posto policial. Constituía um verdadeiro sacrilégio não fazer a entrega da espada. 29. Poder Local e Divisão Administrativa em Cabo Verde no Pós-Independente (1975-1990). Comunicação apresentada no Colóquio Internacional: “Descentralização e Divisão Administrativa: Que Modelo para um Pequeno Estado Arquipelágico como Cabo Verde”. Eurico Pinto Monteiro exerceu, entre outros, o cargo de Diretor-Geral da Administração Interna (1977 a 1984). 38 Não obstante as pesquisas levadas a cabo, não foi possível precisar a data exata da introdução destas autoridades locais (regedor e cabo da polícia) no sistema administrativo cabo-verdiano. Pode-se, no entanto, confirmar, que já em 1853 correram autos em processo de querela em que é querelante o Ministério Público e o querelado o Regedor da Paróquia da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da ilha do Fogo, Sebastião da Maia30 . Em 1910, a Imprensa Nacional de Cabo Verde dava à estampa a brochura intitulada “Instruções para os Regedores e Cabos de Polícia da Província de Cabo Verde”,31 que vem confirmar a presença das referidas autoridades locais na administração cabo-verdiana e clarificar o seu papel e definir o quadro das suas atribuições. Da consulta destas instruções fica-se a saber, de entre outras matérias, que em cada paróquia havia um regedor nomeado pelo Governo da Província sob proposta do Administrador do Concelho,32 que a nomeação era feita pelo período de um ano, recaindo sobre residentes na paróquia há mais de um ano que sabiam ler, escrever e contar, que o regedor não vencia ordenado, mas tinha direito a emolumentos conforme uma tabela aprovada, que não era magistrado administrativo, mas exercia as funções de administração pública que lhe fossem delegadas pelo administrador do concelho, com prévia autorização do governo da província – as competências delegadas no domínio da segurança pública são permanentes – e que detinha um leque variado de atribuições enumeradas em trinta e sete itens, que respeitam às áreas da ordem publica, da policia económica e sanitária, dos costumes, dos registos, da estatística, do senso populacional e administrativas. Alguns anos mais tarde, a publicação do Decreto nº 25.204, de 1 de abril de 1935 que aprova o quadro do serviço administrativo da colónia de Cabo Verde estabelece, na parte relativa aos serviços locais e, no que tange à remuneração dos regedores (e cabos chefes), que devem existir, […] 31 regedores de freguesia e os cabos chefes julgados indispensáveis, devendo em regra haver um em cada povoação, com os auxiliares necessários, que se denominarão guardas administrativos … mas é gratuito e obrigatório o exercício dos cargos de regedor de freguesia, cabo chefe e guarda administrativo […]. 30. Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, Caixa 1775, data inicial 1853, data final 1854, ARM2, 1 cm, Originais manuscritos. 31. Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, Imprensa Nacional, 1910. 32. Mais tarde o regedor e o cabo da polícia passaram a ser nomeados pelo Administrador do Concelho. 39 Em relação aos cabos da polícia as referidas instruções definem-nos como ajudantes dos regedores, propostos por estes e nomeados pelo Administrador do concelho, de entre indivíduos de até 50 anos, que exerciam tais funções de forma obrigatória até um ano, não podiam ser obrigados a prestar serviço fora da sua freguesia, a sua nomeação só podia ser feita em janeiro de cada ano e ninguém podia ser nomeado dentro de 15 dias antes das eleições para deputados. Outra autoridade local, situada a um nível muito superior ao do regedor e do cabo da polícia, aliás, com competência para a nomeação destes, com amplos poderes e atribuições no domínio da segurança pública e que merece ser referido, é o Administrador do Concelho que surgiu em Portugal com a reforma administrativa protagonizada por Rodrigo da Fonseca em 1835, em substituição do Provedor. De natureza liberal e descentralizadora visava, a um tempo, reforçar o poder deliberativo camarário e frenar a reforma centralista de 1832, levada a cabo por Mouzinho da Silveira. Nomeado pelo governador da província, o Administrador do Concelho encabeçava a câmara municipal e acumulava os cargos de chefe das obras públicas, comissário de polícia, conservador dos Registos civil e predial, diretor dos serviços de economia, para além de juiz de instrução criminal com competência para proferir sentenças que implicassem prisão até seis meses. Nos concelhos do Sal, Boavista e Maio, conforme o Decreto nº 25.204 de 1 de abril de 1935, os administradores do concelho agregaram ainda à sua longa lista, atribuições nos domínios da fazenda, das alfândegas e da marinha. Como se pode verificar, um grupo diferenciado de oficiais camarários tinham atribuições no domínio da ordem pública, cabendo, no entanto, à milícia, a intervenção repressiva por excelência. A milícia, instituição criada em 1570 com o Regulamento dos capitães-mores, manteve-se em atividade no Reino e nos territórios ultramarinos durante quase três seculos, sendo extinta pela revolução liberal de 1830.33 33. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 246. 40 1.2 - CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DA CIDADE DA PRAIA Sendo insuficiente o efetivo do batalhão de artilharia de primeira linha que se ocupava do policiamento noturno da cidade da Praia que se via a braços com outras tarefas diárias, que como atesta a Portaria nº 81, de 12 de abril de 1864, “ … Não sendo possível, em presença do diminutíssimo número de soldados promptos … e do muito sobrecarregados que se acham os soldados com o serviço diário, de que apenas folgam meio dia … estabelecer um serviço efetivo de polícia nesta cidade …”, decidiu o governador geral Caetano Alexandre de Almeida e Albuquerque, através da Portaria nº 194 de 26 de julho de 187034 , nomear uma comissão presidida por Wenceslau Frederico do Quental e Silva, presidente da câmara municipal da Praia e integrada pelo bacharel Alfredo Troni e pelo cidadão António Júlio Pardal, encarregada “… de estudar e propor … um regulamento para o referido corpo de polícia, tendo em vista o quanto convém que aquelle serviço se faça com a maior economia para o município…”, para satisfazer as exigências do serviço público na capital da província. Passados dois anos e meio sobre a data da nomeação da referida comissão, foi publicada, em 24 de dezembro de 1872, a Portaria nº 43335 , dando conta da criação de “… um corpo de polícia civil no concelho da cidade da Praia de S. Thiago …”. O Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia nasce marcado por dois imperativos que se confrontam. De um lado, o aperto financeiro que então se vivia e que se evidencia na orientação emitida pelo governador-geral “… com a maior economia para o município…” e, de outro, as “… exigências do serviço público…” melhor desenvolvidas e clarificadas no preâmbulo da Portaria nº 433 que nomeia a comissão, explicitando que, […] Exigindo o grau de desenvolvimento e de progresso que há atingido esta cidade da Praia de S. Thiago que n’ella se organize um serviço policial em harmonia com esse estado de adiantamento, e destinado a velar pela ordem e segurança públicas, e pelo cumprimento das prescrições policiaes em vigor o Governador 34. In Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde, de 1870. Não se fazia, na época, a numeração dos Boletins Oficiais. As matérias são localizadas pela data ou pela ordem numérica das Portarias. 35. In Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde, de 1872. 41 Geral da Província, ouvido o Conselho do Governo, há por conveniente determinar … a criação de um corpo de polícia civil […]. A mesma Portaria aprovou o “Regulamento para o serviço do Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia” que estabeleceu que o administrador do concelho seria o “chefe geral” do Corpo de Polícia Civil, este constituído por dois Chefes de Esquadra e por vinte e quatro guardas, recrutados entre “praças do batalhão de primeira linha aquartelado n’esta cidade”, escolhidos pelo governador geral. Aos chefes de esquadra exigia-se que soubessem ler, escrever e contar e competia-lhes, […] Cumprir na parte que lhes respeitar, e transmittir aos guardas as ordens e instrucções que para tal fim houverem recebido do seu chefe, a quem darão parte das faltas de serviço cometidas pelos guardas […] Visitar frequentes vezes, tanto de dia como de noute, os differentes distritos policiaes para verificar se os guardas que estão sob as suas ordens cumprem cabalmente as obrigações de serviço […] Explicar aos guardas as suas attribuições e deveres afim de que eles nem deixem de cumprir estes e nem exorbitem d’aquellas por motivo de ignorância; e dar parte ao chefe geral dos que por falta de intelligencia não poderem desempenhar bem o serviço, para que sejam substituídos […] Dar ao chefe geral uma parte diária dos acontecimentos que tiverem ocorrido na cidade e que tiverem relação com o serviço policial, apontando as providencias que houverem adoptado, e relatando circumstanciadamente os factos criminosos com indicação dos nomes e moradas das pessoas que acerca d’elles poderem depôr […] Responder pelo asseio e boa ordem da estação policial […] Abster-se de usar da força e da authoridade inherente às suas funções, devendo evitar as maneiras asperas e as palavras ultrajantes, que poderiam fazer diminuir a consideração e a confiança que a policia deve inspirar, e fazendo compreender ao povo que a sua presença no meio d’elle tem unicamente por fim a conservação da ordem, e a segurança individual e da propriedade […] A abstenção do uso da força era também aplicável aos guardas a que o Regulamento já não exigia o “saber ler, escrever e contar”. As obrigações dos guardas estendiam-se por oito artigos, subdivididos em mais vinte e três alíneas. A sua obrigação principal era, […] rondar de dia e de noute, durante as horas de serviço que lhes competirem, as ruas, praças, largos e travessas dos seus districtos cumprindo as instru42 ções e ordens que houverem recebido dos seus superiores, evitando pendencias e escândalos, e protegendo eficazmente a segurança das pessoas e da propriedade, e os demais direitos dos cidadãos […]. O referido regulamento, constituído por sete capítulos, para além de estabelecer as atribuições dos chefes de esquadra e dos guardas, define a organização e o funcionamento dos serviços policiais, bem como o uniforme e o armamento. O corpo da polícia estava dividido em duas esquadras de doze guardas cada, comandadas, cada uma delas, por um chefe de esquadra e o serviço era dividido em “ordinário” e “extraordinário”. O uniforme era fornecido pelo “conselho administrativo do Batalhão de caçadores nº 1 e pago pelo desconto de 50 réis diários feito a cada praça até total pagamento do seu respectivo débito”. Tanto os chefes de esquadra como os guardas eram obrigados a comparecer ao serviço, mesmo se para tal não estivessem escalados, salvo se estivessem “doentes ou no goso de licença”. As licenças eram gozadas com ou sem perda de vencimento e eram concedidas pelo chefe geral até oito dias, e pelo Governador-geral, por período superior. O corpo da polícia civil deveria ter uma estação assinalada com uma inscrição colocada acima da porta: “Estação de polícia da cidade da Praia”. Como armamento quotidiano, os chefes de esquadra e os guardas usavam o “traçado”36 . As armas de fogo eram usadas apenas “quando as circunstâncias o exigirem”. O último capítulo do regulamento tratava das penas aplicáveis aos chefes de esquadra e guardas pelas infrações cometidas, penas que consistiam em “reprehensão em particular, ou em frente da esquadra, segundo a gravidade do caso, serviço de castigo, suspensão de exercício e vencimento e demissão”. A criação e a organização do Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia, pela Portaria nº 433, de 24 de dezembro de 1872, do Governador-geral da Província, só foram aprovadas pelo Decreto sem número, de 13 de agosto de 1873, assinada pelo então “ministro e secretário d’estado dos negócios estrangeiros, e interino dos da marinha e do ultramar”, João de Andrade Corvo em cujo artigo 3º estabelecia de forma clara que os chefes de esquadra e os guardas não podiam ser perturbados no seu trabalho e que “os insultos, actos de desobediência ou de resistência aos seus mandatos serão punidos na conformidade da lei penal como 36. Traçado ou terçado é, segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira, uma espada de folha larga e curta. Um facão. 43 praticados contra magistrados administrativos ou judiciais”. Criado que foi um corpo para o policiamento na cidade da Praia, surgiu, em 1878, como atesta a Portaria nº 61, de 18 de fevereiro, a primeira manifestação de preocupação com o das restantes ilhas do arquipélago que, no dizer do então Governador-geral Vasco Guedes de Carvalho e Menezes, onde […] o policiamento não é desempenhado com a indispensável vigilância e a precisão necessária, sendo insuficientíssimos para o fazerem os pequenos destacamentos do batalhão de caçadores 1, que por ellas se acham espalhados; os quaes, sobre não satisfazerem ao fim para que se destinam, vão por outro lado influir perniciosamente na economia e disciplina do corpo, assim extraordinariamente desfalcado; Attendendo a que é d’urgencia providenciar a tal respeito; pois que da perfeita segurança da vida e da propriedade dos cidadãos, depende essencialmente a prosperidade da comunidade: […], Cria uma comissão para estudar e propor ao governo, […] O modo mais conveniente e económico de se levar á execução de pequenos corpos de polícia ou de guardas municipais nas ilhas do archipelago, para sustentação dos quais, como é de razão, deverão concorrer as câmaras respectivas […]. Não se conhece qualquer proposta apresentada pela comissão criada em 1878, sabendo, contudo, que no ano seguinte, pela Portaria nº 102, de 7 de abril de 1879, foram criadas, a título provisório, duas companhias de polícia militar para guarnição da ilhas do arquipélago, sendo uma para Sotavento e outra para Barlavento. Morria, assim, a primeira tentativa de criação de corpos de polícia ou mesmo de guardas municipais nas demais ilhas do arquipélago. Mal tinha saído esta portaria, uma reorganização já vinha a caminho. A 7 de outubro de 1880, o Visconde de S. Januário, ministro e secretário de estado dos negócios da marinha e ultramar, num relatório endereçado ao Rei D. Luis I, publicado no Boletim Oficial nº 48, de 27 de novembro do mesmo ano, propõe a extinção do Corpo da Polícia Civil da Praia e a criação, em seu lugar, de duas Companhias de Polícia, militar e civil, sendo uma sediada na Praia e outra no Mindelo, argumentando nos seguintes termos: […] Senhor. – A carta de lei de 11 de Março do anno próximo passado que organizou a nova província da Guiné portugueza, determinou que o batalhão de 44 caçadores Nº 1 da companhia da áfrica ocidental passasse a ter o seu quartel em Bolama com o fim de guarnecer aquella província e que forças do regimento de infantaria do ultramar fossem fazer o serviço na de Cabo Verde em substituição do aludido batalhão … Effectivamente este corpo está já em Bolama, mas nunca se chegou a mandar para Cabo Verde força nenhuma … ou porque só muito mais tarde voltou um dos seus batalhões do destacamento em que se achava, ou porque se obtemperou á representação do governador geral de Cabo Verde, que entende que a sustentação d’aquella força fazia elevar a despesa respectiva sem necessidade absoluta […]. Reconhecendo, embora, a necessidade da existência de uma força pública capaz de assegurar a execução das ordens das autoridades e manter a segurança dos cidadãos, não deixa o Visconde de se referir que ela não precisava ser numerosa “… atendendo não só ao essencial preceito de uma bem entendida economia, mas ainda a que a índole pacífica dos habitantes do archipelago não exige pomposos aparatos militares …”. Os brandos costumes dos habitantes constituíam razão bastante para que a força pública não fosse numerosa e pesasse menos no orçamento da província que se via a braços com dificuldades orçamentais. A transferência do batalhão para a província da Guiné disponibilizava recursos financeiros suficientes para cobrir as despesas decorrentes da criação das duas companhias já referidas, cujo orçamento anual era de “28:595$810 réis”, dando lugar a uma poupança de “13:127$792 réis”37. Compreendido o seu alcance e pertinência, a proposta mereceu acolhimento pelo que o Visconde de S. Januário determinou que “ … o serviço de polícia militar e civil da província de Cabo Verde será desempenhado por duas companhias denominadas “Companhias de Polícia de Cabo Verde … terão a numeração 1ª e 2ª …”. A 1ª Companhia, com quartel na cidade da Praia contava com 143 efetivos e a 2ª, com quartel na cidade do Mindelo, contava com 111 efetivos. A escala hierárquica que compreendia, no sentido ascendente, espingardeiro ou coronheiro, corneteiro, soldado, cabo, 2º sargento, 1º sargento, alferes, tenente e capitão, era bem melhor estruturada que aquela prevista no Corpo de Polícia Civil da Praia 37. O que corresponderia, na moeda atual, a 13.128$00 (treze mil, cento e vinte e oito escudos), aproximadamente. 45 que apenas contemplava os guardas e os chefes de esquadra e deixava perceber o carater essencialmente militar das duas companhias. A definição do recrutamento, do uniforme e do regulamento de funcionamento das companhias foram deixados ao critério do Governador-geral, que nomeou, pelo Diploma Legislativo nº 338, de 15 de novembro de 1880, uma comissão para elaborar “… com urgência o regulamento … para o recrutamento das duas companhias …” e pelo Diploma Legislativo nº 339, da mesma data, uma comissão para “… levar a efeito um regulamento sobre a organização dos diversos serviços de polícia…”. Entre 1880 e 1900 a reorganização mais importante ocorreu por via da Portaria nº 19, de 21 de fevereiro de 1897, que aprovou o Regulamento para o Corpo de Polícia Civil da Província de Cabo Verde, criado pelo Decreto nº 2, de 24 de dezembro de 1896. Este regulamento esboça uma tentativa de integração do território da província, não criando unidades territoriais, mas prevendo a possibilidade do serviço policial ser prestado “… dentro da província e em qualquer ponto dentro d’ella …”. Os administradores dos concelhos da Praia e de S. Vicente eram considerados comissários de polícia, coadjuvados por chefes de secção e estes por chefes de esquadra que ajudavam na instrução dos guardas. Ainda na linha do regulamento de 1872, os chefes de esquadra, assim como todos os empregados da polícia deviam “ … abster-se de abusos de força e de autoridade inherente ás suas funções, evitando as maneiras asperas e ultrajantes …”. O regulamento tratava ainda do serviço de polícia, do armamento e do uniforme, da administração e contabilidade e da disciplina. Trazia como anexo uma minuta de um contrato de prestação de serviço por três anos que era assinado pelo interessado e pelo administrador na presença de duas testemunhas. Chama a atenção o artigo 48º desse regulamento, cujo conteúdo estabelecia que “ … os actos dos agentes da polícia civil que perturbarem os cidadãos no exercício da liberdade individual, que a lei garante, são considerados como abusos de autoridade …” Outra reorganização, no mesmo sentido da anterior, teve lugar em 1908, com a aprovação da Portaria nº 97, de 11 de abril de 1908, que determinou a entrada em vigor do Regulamento do Corpo de Polícia Civil da Cidade do Mindelo. Nesta data, os corpos de polícia civil da Praia e do Mindelo, haviam sido fundidos num único corpo, desta feita, com sede na cidade do Mindelo. A esta 46 reorganização seguiu-se um período de alguma acalmia. A queda da monarquia (1910) não produziu efeitos imediatos na organização da polícia em Cabo Verde. Esse efeito veio a ser sentido, com vigor, a partir de 1918 e início da década de 1920, na linha, aliás, do que vinha acontecendo no Reino, para adaptar a organização aos novos tempos e desafios. A primeira reorganização da polícia na era pós-monárquica ocorreu no ano de 1918, quando pela Portaria nº 484, de 27 de dezembro, foi publicada a “Reorganização dos serviços militares e de policiamento na Província de Cabo Verde” aprovada em sessão do Conselho do Governo de 1 de maio de 1918. Esta reorganização consistia na extinção “dos Corpos de Polícia civil da Praia e do Mindelo, do Corpo de Guardas da Alfandega do Circulo Aduaneiro de Cabo Verde e o Corpo de Guardas de Saúde da Província de Cabo Verde”, e na criação, em seus lugares, do denominado “Corpo de Policia e Guarnição”, cujos regulamentos ficaram a cargo do governo da província, mas baseados nos dos corpos ora extintos. Do leque do efetivo do “Corpo de Polícia e Guarnição”, composto por 271 homens, contavam-se o comandante, com o posto de capitão, o tenente, o alferes, o 1º sargento, o 2º sargento, o 1º cabo europeu, o 1º cabo indígena, soldados para o serviço de infantaria e de policiamento, o corneteiro, o 2º sargento serralheiro/espingardeiro, o 2º sargento correeiro/seleiro, o 1º sargento ferrador, o 1º cabo ferrador e “solípedes, em número de oitenta”. Esta medida reorganizativa tinha como propósito fundir numa só força os diferentes corpos então existentes, dando à organização nascente, funções de carater militar, policial, aduaneiro e sanitário, cobrindo o território do arquipélago. Três anos volvidos, a Portaria Provincial nº 25838 , de 4 de outubro de 1921, reconhecia que “… os serviços de policiamento urbano a cargo do Corpo de Polícia e Guarnição não eram desempenhados como é necessário que sejam …”, gerando queixas e reclamações, que o processo de recrutamento das praças para o serviço militar não se harmonizava com as normas aplicáveis a polícias, e mais importante ainda, que a polícia devia estar sob a imediata dependência de autoridade administrativa, e desanexava o serviço de policiamento urbano do referido Corpo de Polícia e Guarnição, criava em cada uma das cidades da Praia e do Mindelo um Corpo de Policia Civil, que passava a funcionar “sob as ordens e instruções dos respectivos administradores do concelho”. 38. Na mesma data e por razões idênticas, a Portaria nº 259 mandava desanexar o serviço de fiscalização. 47 Os corpos ora criados reger-se-iam pelo Regulamento do Corpo Policial do Mindelo que acompanhou a reforma de 1908 e passariam a contar com as categorias de comissário, comandante, escrivão, guardas de 1ª e de 2ª classe, num total de 45 efetivos na Praia e 48 no Mindelo. Seguiram-se as reorganizações ditadas pelos Diplomas Legislativos nº 19, de 16 de janeiro de 1923, nºs 71 e 72, de 25 de julho de 1923, nº 43, de 14 de maio de 1924 e nº 31, de 1 de setembro de 1926. As reorganizações levadas a cabo em 1923 aconteceram em ambiente de crise orçamental aguda que atingiu o arquipélago, em consequência da seca e da fome que assolaram a província39 . Esta situação de crise transparece no teor de alguns Diplomas Legislativos aprovados entre janeiro e julho desse ano. Assim, a reorganização ditada pelo Diploma Legislativo nº 19, já referido, visava suprimir os lugares de comandantes da polícia e de escrivães existentes desde a reorganização de 1921, passando esses cargos a ser desempenhados por “chefes” agora criados. O cargo de comissário passou a ser desempenhado pelo administrador do concelho. Esta reorganização nada de melhor trazia para a polícia, já que apenas se traduzia na supressão de cargos melhor remunerados e na criação de outros cuja remuneração permitia alguma poupança. A escala hierárquica passou a ser constituída, na escala ascendente, por guardas de 2ª e de 1ª classes, cabos e chefe. O Decreto Legislativo primeiro nº 39, de 26 de janeiro de 1923 é mais elucidativo e realça no seu preâmbulo que, […] Tendo-se tornado insustentável a situação económica do funcionalismo desta província, em consequência da sempre crescente carestia de vida; Sendo, portanto, de urgente necessidade e justiça melhorar os vencimentos desses funcionários, tanto mais que se vai estabelecendo o seu exodo à procura de melhores situações […]. A gravidade da situação pode ser compreendida pela leitura do artigo 1º desse Diploma Legislativo que dispõe que “…É aumentado em 200% o actual subsídio eventual dos militares do exército e funcionários civis em serviço nesta colónia…”, o mesmo acontecendo aos militares reformados. Estes aumentos, 39. António Carreira, no livro – Cabo Verde – Aspectos sociais. Secas e fomes do século XX, Ulmeiro, Lisboa, 1984, p. 124, refere que a fome de 1921 dizimou 17.571 almas. 48 embora em menor escala, foram tornados extensivos aos polícias civis dos corpos de polícia civil da Praia e do Mindelo, pelo diploma Legislativo nº 71, de 25 de julho, de 1923. As melhorias salariais levadas a cabo foram, todas elas, concretizadas, por via da abertura de créditos orçados em 400.000$, tendo parte das receitas, sido, obtida por via do aumento das taxas aduaneiras em 60%40 . Boa fonte de receitas eram as companhias inglesas que se instalaram em S. Vicente. A primeira companhia com depósito de carvão de pedra “East India” estabeleceu-se em Mindelo em 1838, seguindo-se-lhe a “Royal Mail” em 1850, a “Patent Fuel” em 1851, a “Visger & Millers”, ligada depois à “Millers &Nephews” em 1863/70, Cory Brothers & Co. em 1875, seguindo-se a “Companhia de S. Vicente de Cabo Verde”. Em 1885 surgiu a “Wilson & Sons” e em 1886 foi inaugurado o Cabo Submarino entre Cabo Verde e as restantes colónias portuguesas em África (RAMOS, 2003) e a influência dos ingleses em S. Vicente são bem retratados no dizer do professor e antropólogo Brito Semedo que transcreveu, uma passagem do romance Capitão-de-Mar-e-Terra, do escritor cabo-verdiano Teixeira de Sousa, publicado em 1984, […] cujo pano de fundo da estória se situa nos anos 30 e 40 do século passado, criou uma personagem, Walter – necessariamente um nome inglês, no original “uolta” – que, a páginas tantas e apesar da origem do seu nome, ironiza essa mania de se copiar tudo dos ingleses, dizendo o seguinte: “Os Ingleses puseram aqui o seu padrão de vida, que toda a gente adoptou para se guindar socialmente. Desde o gim ao tabaco amarelo, ao críquete, ao smoking, ao golfe, ao footing, há todo um conjunto de hábitos e preferências que o Mindelense superestima por provir do Reino Unido. Até se caga à inglesa, em latas com areia no fundo e areia ao lado” (1984:166) […].41 O desenvolvimento do Mindelo colapsou por conta da mudança dos ingleses para as Canárias e Dakar que, entretanto, se tornaram portos francos, e a situação reinante em matéria de segurança pública nos principais centros urbanos da província requeria cuidados particulares. O declínio das atividades do Porto Grande de S. Vicente em consequência, também, da substituição de embarcações 40. Decreto Legislativo nº 40, de 26 de fevereiro de 1923, in Boletim Oficial nº 30, de 28 de julho de 1923. 41. http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/search?q=S.+VICENTE&Submit=OK 49 movidas a carvão pelas movidas a óleo, gerou uma drástica redução na demanda de navios ao porto e com ela um aumento dramático do desemprego42 e da criminalidade, a ponto do governo, pela mão do seu Encarregado H. Owen Pinto, assinar o Decreto Legislativo nº 32, de 28 de setembro de 1926 que preambulava: […] Tendo-se notado um certo progresso na prática de furtos, tanto na cidade do Mindelo como na da Praia desde que no cinematógrafo começou a exibição das fitas chamadas “policiais”, em que se ensina a prática dos mais audaciosos roubos e dos mais engenhosos processos para adquirir o alheio, por meios ilícitos; Considerando que o cinematógrafo é um meio muito melhor de propaganda do que os jornais, que só servem a quem sabe ler, ao passo que para aprender no outro, basta ter olhos; mas, Considerando que o mal que aquele espetáculo faz pode ser compensado pelos ensinamentos que se tiram de fitas instrutivas, de viagens, industriais e outras do mesmo género, quando as fitas sejam escolhidas; Considerando que a proibição de se exibirem tais films não só é de grande conveniência para a grande população escolar de qualquer das duas cidades, mas ainda de interesse geral; […] É proibida na província a exibição de fitas cinematográficas chamadas “policiais”, quando os films se tornem escola de banditismo, competindo à autoridade administrativa local a devida fiscalização, ficando os infractores desta disposição incursos na pena de desobediência […]. É neste contexto de aumento da criminalidade urbana que os Corpos de Polícia Civil das cidades da Praia e do Mindelo são reorganizados por força do Diploma Legislativo nº 31, de 1 de setembro de 1926 que, no essencial melhora o quadro salarial, extingue o lugar de chefe criado pela reforma de 1923. É, porém, no capítulo do recrutamento que o diploma é inovador. Introduz a exigência da certidão de instrução primária para a nomeação para guardas de 1ª classe e categorias superiores, a prova de idoneidade para o exercício de funções policiais e o saber falar regularmente o inglês. Para incentivar a filiação, foi “… fixada a quantia anual de 2.400$ para ser distribuída em 6 prémios de 400$ respectivamente a 1 cabo e 2 guardas de cada um dos Corpos de Policia Civil… que mais 42. Há registo de 2.000 desempregados no período inicial dos anos 20. 50 se distinguirem no serviço e que tenham exemplar comportamento…”. Mas o que terá movido o governo da província a endividar-se para proceder a aumentos salariais em contexto de crise? Uma explicação poderá ser encontrada na linha de argumentação utilizada para explicar a razão de ser do Decreto Legislativo nº 72, de 25 de julho do mesmo ano de 1923, que estabelece que o governo, “… considerando necessária a manutenção de um pequeno número de polícias civis nas sedes dos diferentes concelhos da província, a bem da regularidade do serviço …” determina a criação, a título provisório, de “… um número indispensável de polícias civis nas sedes de concelho …”. Tal medida, de carater provisório, sublinhe-se, é acompanhada da dotação de uma verba de 13.000$, também pela abertura de crédito, para o pagamento dos salários dos polícias destacados. A criação de “um número indispensável de polícias civis“ faz-se por via de novos recrutamentos e não por destacamento de forças localizadas na Praia ou em Mindelo o que induz o raciocínio de que a situação era de tal modo preocupante que o governo decidiu manter os efetivos com que já contava e proceder a um recrutamento adicional para marcar presença efetiva nas sedes dos demais concelhos da província. Esta medida preventiva, uma iniciativa inédita, encontra justificação na necessidade de prevenir eventuais alterações da ordem pública que, não obstante poderem ser localizadas, continham o potencial de provocar efeito de contágio que a crise muito bem favorecia. Estas medidas extraordinárias de incremento de despesas com as forças policiais, com recurso à abertura de crédito, foram implementadas ainda em 1927. O Decreto Legislativo nº 52 de 26 de julho de 1927, acrescenta um dado novo à situação anterior, ao referir, no seu preâmbulo, duas medidas: por um lado, a necessidade de “… dotar os Corpos de Policia Civil com as verbas precisas para fardamento, a fim de os cabos e guardas poderem prestar em regulares condições de asseio e decência, como é indispensável, o serviço especial de que estão incumbidos …” e, por outro, à necessidade de “… aumentar com mais vinte o número de guardas de 2ª classe destinados aos serviços rurais e florestais …”. Os vinte guardas seriam admitidos em regime de assalariamento e teriam o mesmo vencimento e o mesmo fardamento que os do Corpo de Polícia Civil da Praia. Este recrutamento enquadrava-se, alegadamente, no âmbito da implementação do Diploma Legislativo nº 39 de 15 de julho, de 1927 que aprovou o “Regu51 lamento dos Serviços Agrícolas e Florestais” com o intuito de garantir a plantação de árvores em todo o arquipélago. Não passa, no entanto, despercebido que no seu Capítulo VIII, sob a epígrafe “Auxílio das autoridades” impunha às autoridades civis e militares, o dever de prestar “… o necessário auxílio aos mestres e guardas, para a regularidade do serviço de polícia e manutenção da ordem …”. A década de 1920 é conhecida na história de Cabo Verde por episódios de fome e de nula ou reduzida pluviosidade, razão pela qual se torna difícil aceitar que a plantação de árvores tenha sido o móbil do recrutamento de mais vinte guardas e o fardamento de todo o efetivo do Corpo de Polícia, orçado em “ 43.000$”, verba disponibilizada através da abertura de crédito. Conhecido que é o papel dos chamados “guardas rurais” na manutenção da ordem, considerados amiúde “mais ferozes” que os da polícia, é claro que por detrás da sua criação está a necessidade de manter elementos da força de ordem o mais próximo possível de potenciais zonas de conflito – zonas agrárias com potencial florestal. O Governo tinha amargas recordações das revoltas populares que, até 1923, tinham abalado a província. Cada uma delas com a sua motivação e complexidade, as revoltas identificadas tinham no seu epicentro, conflitos em torno da terra e sua exploração económica – posse, impostos, rendas, colheita. São historicamente conhecidas em Cabo Verde as seguintes revoltas populares: • De 27 de dezembro de 1811, que tinha como fundamento a recusa do pagamento do imposto criado para suportar a milícia em Santiago; • Da Ribeira de Engenhos, Santiago (janeiro de 1822), em que os camponeses se opuseram ao pagamento de impostos e tendo como ideia subjacente a construção da ”confederação brasílica ”43 ; • Da Praia, (março de 1835), em que 225 deportados da Ilha de S. Miguel – Açores, ensaiam um protesto contra as autoridades portuguesas e partem para a ilha Brava fugindo da perseguição que lhes é movida; • Do Monteagarro – Praia (dezembro de 1835) em que os escravos marcharam sobre a Praia para matar “todos os brancos donos de terras” e fugir para a Guiné; • Da Achada Falcão, Santiago (1841), com o levantamento de camponeses contra os morgados, exortando a população ao não pagamento das rendas aos proprietários e reivindicando para si a posse das terras; 43. Ver pag. 50. 52 • Do Paúl, Santo Antão (1894), em que mais de mil pessoas protestaram contra injustiças e vexames e contra a excessiva contribuição predial e ocuparam a Praça do Concelho, a Câmara Municipal e várias repartições públicas na Ribeira Grande, durante cinco dias; • De Ribeirão Manuel, Santiago (fevereiro de 1910), em que as populações se levantaram contra as autoridades na sequência da prisão de um grupo acusado da apanha de sementes de purgueira, levantamento que estendeu o seu âmbito contra o pagamento das rendas aos morgados. • Da Achada Portal, Tarrafal de Santiago (1920?), como reação à opressão tributária44 ; Estes dados demonstram, de forma inequívoca, a preocupação do governo provincial de implementar medidas que acautelassem, a retoma da onda de revoltas, embora sem o efeito desejado já que são conhecidas três revoltas em S. Vicente, posteriores a 1923. Trata-se da revolta que ficou conhecida como “revolução d’Rufino” ocorrida em janeiro de 1929, em que populares resolveram emboscar o comandante da polícia local Rufino, conhecido pelos seus excessos e agressões à população, a revolta ainda de 1929, que juntou trabalhadores, professores e estudantes contra o desemprego e a célebre revolta do Capitão Ambrósio, de 1934, contra a fome, imortalizada nos versos de Gabriel Mariano45 . Estas reorganizações, cada uma com a sua motivação específica, aconteceram, com alguma frequência, durante os anos cinquenta, mas não pararam nas décadas seguintes, intensificando-se nos meados dos anos setenta, no quadro das medidas de preparação do processo de independência. A adequação da organização policial aos novos desafios sempre esbarrou num obstáculo omnipresente – os limitados recursos. É nessa linha que para fazer face a “ … um quadro económico complicado e dependente de factores externos e climáticos, independentes dos homens e da acção administrativa local, essa previase insuficiente para assegurar a posição financeira da colónia…”, o governador da 44. O Louvor do Encarregado do Governo da Província, H. Owen Pinto, com data de 3 de Janeiro de 1927, “ … aos Comandos Mixto de Artilharia e de Infantaria Indígena, do Corpo de Policia Civil, e bem assim a todas as praças subordinadas a êsses comandos e pelos tripulantes do vapor Três Marias, quando da diligencia ao Portal, para onde seguiram a fim de manter a ordem, que tinha sido alterada em virtude da população daquela localidade ter impedido o cumprimento de um mandado do Poder Judicial …”, encontra-se publicado no Boletim Oficial nº 2, de 8 de Janeiro de 1927, o que leva a crer que a revolta se deu em 1926, por não fazer sentido publicar um despacho de louvor sete anos depois do acontecimento que lhe deu origem. 45. Poeta e escritor cabo-verdiano (1928-2002). Poema “Capitão Ambrósio” de 1975. 53 província Amadeu Gomes de Figueiredo, consciente de que o “… agravamento da situação económica das actividades do arquipélago vinha incidindo asperamente na sua posição orçamental …” fez aprovar, em 10 de agosto de 1936, o Diploma Legislativo nº 533-A, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 1937, com o objetivo de reduzir os gastos da administração com o pessoal, por via da reestruturação dos serviços e da adoção de medidas de austeridade. Era momento de se proceder de forma inversa daquela que ocorreu na década anterior. Explicando algumas das medidas propostas no referido diploma e que abrangem um leque diversificado de serviços públicos, os “Serviços de Segurança Pública” mereceram as observações seguintes: […] O policiamento dos territórios da colonia, à-parte os concelhos da Praia e de S. Vicente – onde existem Corpos de Policia Civil –, estava confiado a guardas administrativos. Pelo § 1º do Decreto nº 25.204, de 1 de Abril de 1935, o exercício deste cargo foi considerado gratuito e obrigatório – o que equivale dizer que não é possível manter tais funções. Esta circunstância evidenciou a necessidade de se estabelecer em toda a colonia um Corpo de Policia, sob um comando único, o qual fará a sua distribuição consoante as necessidades averiguadas de jurisdição. Possivelmente, melhor estudadas as condições do meio, à organização ora remodelada serão estabelecidas funções de policia rural e de guarda fiscal, cuja falta, dia a dia, se vem evidenciando. Os encargos da remodelação, considerando a compensação de 63.000$ que tanto era a despesa com os antigos guardas administrativos, reduzem-se a 10.680$ […]. É neste contexto que surge uma medida de reorganização dos “Serviços de Segurança Pública” de extraordinário alcance, com reflexos positivos no futuro desses serviços e no processo de integração do território da colónia – o alargamento da jurisdição da polícia a todo o território cabo-verdiano. Já não se trata da medida de carater provisório contida no Decreto Legislativo nº 72, de 25 de julho do mesmo ano de 1923, visando a “… manutenção de um pequeno número de policias civis nas sedes dos diferentes concelhos da província, a bem da regularidade do serviço …” mas sim de algo de outro fôlego, de natureza institucional e permanente que se contrapunha aos paliativos encontrados para fazer face à crise das revoltas dos anos anteriores. Um verdadeiro “upgrade” na organização e implantação territorial da polícia que, ainda nos anos trinta se via a braços com revoltas populares, desta feita na ilha de S. Vicente. 54 Esta medida reorganizativa encontra-se plasmada no Diploma Legislativo nº 533-A, de 1 de abril de 1936, em cujo artigo 8º se pode ler: […] São remodelados os serviços de Segurança Pública integrando-se os dois Corpos de Policia Civil da Praia e de S. Vicente, num Corpo de Policia de Cabo Verde com jurisdição em toda a colónia […]. Recorde-se que o Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia criado em 1872 tinha a sua jurisdição sobre o território municipal da Praia e que os dois Corpos de Polícia ora remodelados tinham jurisdição sobre os concelhos da Praia e de S. Vicente, respetivamente. O comando do novo Corpo de Polícia é atribuído ao Chefe da Repartição Militar46 , serviço que funcionava na dependência direta do Governador, a quem foi concedido um prazo até 1 de dezembro do mesmo ano, para apresentar ao Governo da Colónia, para aprovação, o regulamento privativo dos seus serviços. O mesmo diploma fixa um quadro de efetivos composto por 2 chefes de polícia com o posto de comissários, 5 cabos de polícia, 8 guardas de 1ª classe e 93 guardas de 2ª classe, num total de 108 efetivos47 , e as respetivas remunerações e subsídios. Com base no mandato recebido, o Chefe da Repartição Militar e Comandante do Corpo de Polícia de Cabo Verde, capitão de infantaria Vasco Ramos de Figueiredo, faz publicar o Regulamento Geral do Corpo de Polícia de Cabo Verde, aprovado e posto em execução pela Portaria nº 1.226, de 12 de dezembro de 193648 . Mais minucioso e muito mais evoluído que o anterior, este regulamento é composto por onze capítulos repartidos por noventa e oito artigos. É, na verdade, uma espécie de Estatuto Orgânico-Disciplinar do Corpo da Polícia de Cabo Verde, pois, os seus diferentes capítulos tratam de matéria relativa à organização e funcionamento dos serviços, às atribuições de todas as categorias funcionais, 46. Uma espécie de Casa Militar da Presidência da República da atualidade. 47. Conforme o Relatório do Comando-Geral da POP para o ano de1979, quatro anos depois da Independência Nacional, o número total de efetivos da polícia em Cabo Verde era de 264, sendo 3 Comissários,12 Chefes de Esquadra, 10 Subchefes, 23 Agentes de 1ª Classe e 216 de 2ª Classe. 48. Não deixa de ser curioso que o Diploma legislativo nº 542, de 28 de novembro de 1936, reduz as ajudas de custo dos polícias e o nº 543, dos militares, num período de alguma acalmia associado ao alargamento da jurisdição do Corpo de Polícia de Cabo Verde a todo o território provincial. Caso para se dizer que depois da tempestade, vem a bonança. 55 incluindo do comandante e dos comissários, dos chefes de polícia, dos cabos e arvorados e dos guardas, do alistamento e promoções, da disciplina, do seu processo e da competência disciplinar, dos serviços policiais, sua classificação e execução, da administração e contabilidade e dos uniformes, distintivos e armamentos. O uniforme continua a ser distribuído gratuitamente, tendo sido aprovada uma tabela que estabelecia as peças a receber por cada elemento da corporação, bem como o prazo da respetiva duração. A par do uso obrigatório do apito, os comissários e chefes de polícia podiam usar espada e pistola, enquanto os cabos e guardas podiam usar, pistola, espingarda com sabre-baioneta e metralhadora ligeira. A filosofia e a organização do Corpo de Polícia de Cabo Verde nascem do modelo encontrado para a metrópole que também passou por reorganizações intensas a partir da queda da monarquia. Na verdade, a extinção do Corpo de Polícia Civil da metrópole ocorreu em 1923, dando lugar ao nascimento do Corpo da Polícia de Segurança Publica (PSP), transformada em Comando-Geral da PSP em 1935. É esta organização que empresta os seus fundamentos à organização da polícia cabo-verdiana datada de 1936. Em 30 de setembro de 1931, devido a um “facto anormal” sucedido na corporação, o administrador do concelho de S. Vicente, tenente de cavalaria Luís Ferreira Pinto, dissolveu o Corpo de Polícia Civil do Mindelo. Num artigo publicado no “Notícias de Cabo Verde” de 3 de outubro de 1931, o referido administrador explica os motivos de tal medida, […] A causa imediata é uma insubordinação. Notei que, não obstante haver um polícia exclusivamente encarregada de acompanhar um indivíduo que a câmara gratifica pela apanha de cães vadios, estes continuam pululando, como se caça não lhes fosse dada. Resolvi, pois, rapidamente dizimar esta praga. Para isso apresentei aos polícias uma sugestão: o guarda que desse caça a três cães, teria direito a um dia de licença, à gratificação de um escudo e à participação na multa aplicada ao dono do cão reclamado […]49 . A “sugestão” não foi bem recebida e os guardas não a acataram porque tal 49. Artigo intitulado “Dissolução da Polícia Civil do Mindelo”, publicado no número do “Notícias de Cabo Verde”, de 30 de outubro de 1931. 56 facto os vexaria e continuaram a desobediência mesmo depois do administrador ter instruído o sargento Ribeiro que, […] ministrasse uma teoria aos polícias recomendando-lhes ponderação e dizendo-lhes que podiam proceder à apanha dos canídeos mesmo de noite, a horas que não seriam incomodados pela vista de transeuntes … Em face dessa insubordinação determinei a dissolução … demitindo todos aqueles que se manifestaram contra a ordem dada. A vigilância da cidade está sendo feita por soldados do corpo de artilharia indígena […]50 . Prosseguindo na justificação, o administrador adiantou as causas remotas: […] 1ª não terem sido militares a maior parte dos polícias … contrariando o regulamento … 2ª o saber ler e escrever, circunstância que não se verifica em muitos deles. Disto resulta o imperfeito conhecimento das suas obrigações […]51 . Conclui o administrador dando conta que já tomou medidas no sentido da “… abertura de nova inscrição a fim de se fazerem nomeações que obedeçam o mais possível ao regulamento …”. Este trecho deixa perceber o grau de indisciplina que reinava no seio da corporação, indisciplina essa motivada, na ótica do administrador, pelas causas antes transcritas. Assim se compreende que a reorganização introduzida pelo Decreto Legislativo nº 1.226, de 12 de dezembro de 1936, tenha prestado atenção particular à disciplina e ao processo de alistamento e promoções. No tocante à disciplina, as penas vão da admoestação à expulsão, passando pela repreensão, pela prestação de serviço obrigatório, pela detenção e pela despromoção, consoante os casos. Já no que se refere ao alistamento e promoções o Regulamento Geral em análise diferencia o alistamento das promoções e cria uma consistente organização da carreira. Assim, o alistamento de guardas de 2ª classe passou a ser feito de entre praças licenciadas do exército e a seu pedido, desde que preenchessem os seguintes requisitos: 50. Idem. 51. Idem. 57 […] a) Terem menos de 21 anos de idade; b) Terem bom comportamento militar e civil; c) Saberem ler, escrever e contar; d) Possuírem robustez necessária em relação à altura; e) Possuírem a altura mínima de 1,65 m […]. O pedido de alistamento dos candidatos a guardas de 2ª classe era manuscrito pelo próprio candidato, o que na prática funcionava como um autêntico exame de redação. O provimento dos guardas de 1ª classe e dos cabos era precedido de concurso entre candidatos do escalão precedente, por ordem de classificação e os chefes e os comissários eram recrutados de entre os sargentos e os oficiais subalternos do exército, respetivamente. Os guardas, os cabos e os chefes eram todos assalariados. Até aqui todas as normas disciplinares aplicáveis à polícia encontravam-se inseridas no corpo dos regulamentos de organização e funcionamento. Foi pela Portaria nº 4.213, de 16 de fevereiro de 1952 que surgiu o primeiro Regulamento Disciplinar para o Corpo de Polícia de Cabo Verde, publicado em diploma autónomo. Inspirado no regulamento disciplinar da PSP da metrópole, estendia-se por 88 artigos, divididos em números e alíneas e consagrava como penas disciplinares, para além das previstas no regulamento anterior, as seguintes: Censura; Multa correspondente aos vencimentos de 1 a 20 dias; Prisão disciplinar até 60 dias; suspensão até 60 dias; inatividade de 1 a 365 dias; reforma compulsiva; e demissão. O mesmo diploma inova e introduz as classes de comportamento, bem como os prémios, louvores e recompensas que evoluem de mera referência ao louvor e promoção, passando pelo elogio, pela dispensa de serviço e pela licença com vencimento e com prejuízo para o serviço. Com o mesmo sentido de organização e inspirado igualmente na fonte já referida, é publicado em 4 de dezembro de 1951, pela Portaria nº 4.159, o Plano de Uniformes, revisto mais tarde, em 1956, pela Portaria nº 4.962, de 3 de março. Tem vida efémera o regulamento disciplinar de 1952, que cede lugar, assim como o regulamento geral de 1936, a um novo Regulamento Geral do Corpo da Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde52 , aprovado pela Portaria nº 4.993, 52. É a primeira vez que o Corpo de Polícia de Cabo Verde é designado Corpo de Poliícia de Segurança 58 de 12 de maio de 1956. Esta portaria traz para o corpo do regulamento geral toda a matéria antes contida no regulamento disciplinar de 1952, sem quaisquer alterações, particularmente no que respeita às penas e recompensas. A novidade deste diploma situa-se, sobretudo, no nível da organização. Para além de dimensionar a corporação a uma companhia, cria a estrutura do Comando, os comissariados comandados pelos administradores dos concelhos e que se subdividem em esquadras, postos policiais e destacamentos e as secções de viação e trânsito. No rol das atribuições, surge pela primeira vez referência específica à polícia de investigação criminal. Ainda no que tange à disciplina, as alterações mais significativas ocorreram só em 1964, pelo Decreto nº 45.524, de 3 de janeiro, que aprovou o “Regulamento Disciplinar dos Corpos de Polícia de Segurança Pública do Ultramar”, diploma que teve uma vigência de apenas três anos, tendo sido revogado pelo Decreto nº 48.190, de 30 de dezembro de 1967, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1968, em todo o território ultramarino e vigorou em Cabo Verde até a sua revogação pelo Decreto-Lei nº 48/89, de 26 de junho que aprovou o Regulamento Disciplinar das Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP). A aprovação do Estatuto do Corpo de Polícia de Segurança Pública, pelo Diploma Legislativo Ministerial, de 5 de setembro de 1962, tem o condão de voltar a unificar os comandos do corpo da polícia e da guarda fiscal “… por motivos de economia e melhor rendimento dos respetivos serviços …”. Este corpo de polícia unificado é concebido como “ um organismo militarizado, directamente dependente do Governo da Província”, com a missão de assegurar de um modo geral “a tranquilidade e a ordem pública e a prevenção e repressão da criminalidade”. A sua organização compreende o comando e as polícias divisionárias, sendo uma para a região de barlavento e outra para a de sotavento, na dependência das quais funcionavam os comissariados, comandados pelos administradores dos concelhos. Pela primeira vez surgem na estrutura orgânica os serviços técnicos, que se ocupavam da instrução, das operações, das transmissões e do material. O quadro do pessoal era composto por 213 efetivos, distribuídos por diferentes categorias cuja novidade eram os 1º e 2º subchefes de esquadra e os subchefes ajudantes. O provimento dos guardas era feito por concurso e eram nomeados Pública de Cabo Verde. 59 provisoriamente por cinco anos, sendo dois por tirocínio e três por recondução mediante a exigência de bom comportamento. Findos os cinco anos os guardas eram nomeados definitivamente desde que possuíssem boa informação de serviço e bom comportamento. Em termos de organização geral do corpo policial este regulamento representa, em muitos aspetos, certo retrocesso em relação ao de 1956. Com a aprovação da Portaria nº 6.822, de 17 de janeiro de 1964, a Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde viria a adotar um novo Regulamento Geral que passou a representar a mais evidente absorção/transposição das normas vigentes para a sua congénere da metrópole, cujos regulamentos serviram de modelo e de fonte, conforme a informação nº 46/63 do Comando do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde que capeou a proposta de regulamento submetida à apreciação do Governo da Província. Esta é, sem dúvida, a mais profunda reorganização da polícia ocorrida até então e aquela que melhor retrata uma aproximação ao modelo policial vigente na metrópole. É este regulamento, um verdadeiro estatuto orgânico da polícia de Cabo Verde que vigorou até 1984, ano da aprovação do primeiro Estatuto do Pessoal das Forças de Segurança e Ordem Pública, pelo Decreto-Lei nº 43/84, de 5 de maio, organização que sucedeu, no Cabo Verde independente, o Corpo de Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde. Vigorou com um pequeno ajuste em 1973 e outras medidas de adequação ao processo de ascensão à independência em 1975 e 1976, processo de ajustes que se prolongou ainda nos primeiros anos pós-independência. Os anos de 1960 são marcados pelo arrebentamento da guerra colonial portuguesa em África – Angola em fevereiro de 1961; Guiné em janeiro de 1963; Moçambique em setembro de 1964. Nesta sequência, em 1966, por razões cuja compreensão não é difícil, o governo da metrópole decide reforçar o controlo sobre as forças policias, pela integração, em comissão de serviço, de elementos da PSP portuguesa na de Cabo Verde. Alias, havia uma experiência anterior de destacamento de elementos da PSP da metrópole para Cabo Verde, como evidencia o Decreto nº 19.872, de 6 de junho de 1931, do governo português, que destacava 1 chefe, 2 subchefes e 38 guardas para que “ … sobre os deportados políticos a quem foi fixada residência no arquipélago de Cabo Verde, se exerça especial vigilância, confiando-se êsse encargo a funcionários policiais especializa60 dos e absolutamente idóneos …”. Se o regulamento já previa, na linha de todos os que antecederam o de 1964, a nomeação para as categorias de oficiais e comandantes, apenas oficiais militares, surge agora a ocupação de boa parte dos cargos das chefias intermedias por subchefes da PSP da metrópole, chegando mesmo a haver a colocação de agentes. Este facto explica a inexistência de oficiais cabo-verdianos na polícia, por ocasião da conquista da independência, já que os indígenas, por mais mérito que possuíssem, com muito custo chegavam à categoria de chefe, posto situado entre o subchefe ajudante e o comissário, no limiar do grupo de oficiais e último grau a que podiam almejar. Dois meses depois da independência, o Decreto nº 15/75, de 13 de setembro, estabelece a divisão do território nacional para efeito de segurança e ordem pública, tendo sido criados três Agrupamentos, sendo o primeiro sediado na Praia, abrangendo as ilhas de Santiago, Maio, Fogo e Brava, o segundo, com sede na cidade do Mindelo, abrangendo as ilhas de S. Vicente, Santo Antão e S. Nicolau, e o terceiro com sede nos Espargos, na ilha do Sal, cobrindo, para além desta, a ilha da Boavista. No nível da Direção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP) foram criados os Departamentos de Polícia Económica e Fiscal, Regulamentação, Arquivo Geral, Segurança Nacional; Investigação Criminal, Polícia de Fronteiras e Polícia de Ordem Pública. Cada Departamento era dirigido por um Chefe de Departamento e o Diretor Nacional era assistido por dois adjuntos. Face à necessidade da criação de condições institucionais para a concretização do processo de ascensão à independência conduzido por um Governo de Transição, em resultado do acordo assinado em 19 de dezembro de 1974, em Argel, entre o governo português e o PAIGC, (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), o Decreto nº 9/75, de 17 de fevereiro introduz várias alterações ao Estatuto do Corpo da PSP de Cabo Verde aprovado pelo Diploma Legislativo nº 10, de 5 de setembro de 1962. Novas alterações tiveram lugar, em 1976, desta vez ao Regulamento Geral do Corpo da PSP da Província de Cabo Verde de 1964, na perspetiva de adequar o processo de recrutamento à nova realidade de país independente, o que aconteceu pela Portaria nº 11/76, de 24 de abril. É, no entanto, a Portaria nº 12/76, da mesma data, que cria, na dependência direta do Diretor Nacional de Segurança 61 e Ordem Pública, a Escola de Polícia, batizada com o nome de “Daniel Monteiro”53 , “ … que funcionará onde e quando as circunstâncias aconselharem…”. A primeira formação de agentes da Polícia de Ordem Pública ocorreu no centro de formação político-militar situado no ex-campo de concentração do Tarrafal54 , na ilha de Santiago. A 15 de novembro de 1974, o pessoal da Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde, reunido em assembleia geral, aprova uma moção de afastamento dos quadros da polícia colonial portuguesa e o comando é assumido, pela primeira vez na sua história, por um oficial cabo-verdiano55 . Para marcar este histórico acontecimento, pelo Decreto nº 185/90, de 29 de dezembro, foi instituído o dia 15 de novembro, como o Dia da Policia de Ordem Pública. Com a Independência Nacional começou um intenso processo de formação de quadros no âmbito da cooperação bilateral com Portugal, Argélia, Cuba, ex-RDA, ex-URSS, mais tarde alargado à França, Espanha, RFA e USA. As alterações mais significativas ocorridas na polícia nos anos que se seguiram à Independência tiveram lugar depois do golpe militar de novembro de 1980, na Guiné Bissau. Com efeito, o golpe de estado pôs termo ao projeto de unidade da Guiné e Cabo Verde e o tom do discurso político emergente desse acontecimento ditou a necessidade de uma melhor organização para o setor da segurança interna nacional, tendo sido criado o Ministério do Interior em 1981. A designação 53. Jovem combatente da liberdade da pátria, falecido nas vésperas da Independência Nacional, na ilha de S. Nicolau. 54. “ O Campo de Concentração do Tarrafal foi formalmente instituído pelo regime fascista português, no Tarrafal da Ilha de Santiago, em 23 de Abril de 1936, sob o nome de Colónia Penal de Cabo Verde. Criado à imagem dos campos de concentração nazis, a “Colónia Penal” do Tarrafal ou “campo da morte lenta”, nome por que ficou conhecido …, visava então aniquilar física e psicologicamente os opositores portugueses à ditadura fascista de Salazar … . Durante os cerca de 18 anos que durou o seu funcionamento, estiveram detidos no campo, arbitrariamente e sem qualquer direito de defesa, um total de mais de 360 prisioneiros antifascistas portugueses. Em Janeiro de 1954, o campo foi encerrado graças à luta das forças antifascistas em Portugal e à pressão internacional, na esteira da vitória aliada na II Guerra Mundial. ... A luta contra as forças nacionalistas impele o poder colonial fascista a reutilizar o Campo de Concentração do Tarrafal a partir de 1961, com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado desta vez a encerrar no seu isolamento os militantes da luta anticolonial de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Durante 13 anos, até à data do seu encerramento definitivo, no dia 1 de Maio de 1974, … manteve presos, … mais de 220 combatentes da luta pela independência das colónias portuguesas.” Documento do Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, realizado de 29 de Abril a 1 de maio de 2009. http://www.fmsoares.pt/aeb/ dossiers/dossier15/09 55. A 15 de novembro de 1974, o Comando da Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde foi assumido pelo Comandante das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) Timóteo Tavares. 62 Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP) foi adotada no âmbito do Estatuto do Pessoal aprovado em 1984 que, nos seus elementos essenciais, estatuía no seu artigo 1º que, […] O pessoal do quadro das FSOP constituí um corpo militarizado destinado a garantir a ordem e a tranquilidade pública, a assegurar, em coordenação com outras autoridades competentes, a prevenção e a repressão da criminalidade, a prevenir e a combater a prática de crimes contra a segurança do Estado […]. Dispunha ainda o mesmo Estatuto que a disciplina no seio das FSOP seria regida por regulamento próprio a aprovar, o que veio a concretizar-se em 1989, através do Decreto-Lei nº 48/89, de 26 de junho. No que se refere à ação social no seio da polícia cabo-verdiana, a primeira instituição a cumprir esse papel foi o Cofre de Auxílio, criado em 1952 pela Portaria nº 4234, de 26 de abril, assinada pelo então Governador Carlos Alves Roçadas. Em 1972, através do Diploma Legislativo nº 15/72, de 14 de julho, o Cofre de Auxílio cedeu lugar à Obra Social da Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde, tendo o seu Regulamento sido aprovado pela Portaria nº 52/75, de 21 de junho de 1975. Em 1989, pelo Decreto nº 38/89, de 3 de junho, a Obra Social passa a designar-se Serviço de Apoio Social das FSOP para, em 1998, passar a designar-se Serviço Social da Polícia de Ordem Pública, pelo Decreto-Regulamentar nº 5-C/98, de 16 de novembro. 1.3 - REFERÊNCIAS NA CRIAÇÃO DA POLÍCIA EM CABO VERDE Cabo Verde viveu (e vive) um pouco na encruzilhada do mundo, sofrendo ao longo de séculos influências externas dos mais diferentes quadrantes. Muito se tem falado no processo do povoamento, na língua, na cultura musical e na dança e no regime alimentar. A recente elevação da Cidade de Ribeira Grande de Santiago, também conhecida como Cidade Velha, a Património Mundial faz jus a esta realidade. Mas, existem outros aspetos dessa influência externa que vêm sendo trazidos a lume em trabalhos académicos que merecem ser realçados. Um deles prende-se com relatos que associam o ideário de revoltas populares, designadamente a da Ribeira dos Engenhos da ilha de Santiago, ocorrida no ano de 1822 e a da Acha63 da Falcão, também em Santiago, em 1941, a correntes liberais independentistas vinculadas ao Brasil56 . Segundo Eduardo Adilson Camilo Pereira57 , […] Christianno José Senna Barcellos, em seu Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, procura destacar a importância das ideias liberais, principalmente a de garantir o livre acesso às terras e o próprio contexto da independência do Brasil como condicionantes da “desordem” nos Engenhos (1822) e Achada Falcão (1841). Barcellos inclusive chama a atenção para o projeto de constituição de um partido pró-Brasil que tinha como objetivo unir as ilhas de Cabo Verde ao Brasil … Seriam sobretudo os degredados, com os seus “maus exemplos” os propagadores de ideias liberais que tiveram um papel fundamental na eclosão desses movimentos […]. Continuando com Eduardo Adilson Camilo Pereira, também […] os administradores coloniais Henrique Galvão e Carlos Selvagem … ao analisarem as revoltas dos Engenhos (1822) e de Achada Falcão (1841), dão ênfase ao projeto separatista do arquipélago em relação a Portugal, bem como ao plano da constituição de uma “Confederação Brasílica”58 , abrangendo o Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique […]. Face a esta permeabilidade à influência externa a que Cabo Verde de forma tão evidente esteve e está exposto, e sendo uma parcela do Reino onde existia uma força policial mais antiga e melhor estruturada, faz todo o sentido questionar como e em que medida essa influência se manifestou na criação e organização da polícia do arquipélago e quais são as referências no processo de criação da 56. Vários autores cabo-verdianos têm feito referência a esta matéria (Christianno José Senna Barcellos, António Carreira, Elisa Andrade, Manuel Brito Semedo, entre outros). 57. Tese de doutoramento em História Social apresentada ao Departamento de História da USP, em 2010. 58. Também Leonel Cosme, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em “Relações históricas do Brasil com Angola”, […] destaca o impacto positivo de determinadas idéias e expressões políticas e culturais brasileiras como motivadoras do processo revolucionário angolano […] e […] recorda o movimento separatista conhecido como Confederação Brasílica, apoiado num pretenso partido brasileiro, deflagrado entre 1822 e 1823, com a presença de pessoas influentes das cidades de Benguela e Luanda, que tinha por objetivo o rompimento das ligações com Portugal e uma associação com o Brasil […]. Por fim, mostra como o Brasil, depois de Getúlio Vargas, começou a agir de maneira a contrariar os interesses do governo Salazar, principalmente a partir de 1959, com a acolhida dada a Humberto Delgado, a Henrique Galvão, em 1961, e aos africanos que buscavam exílio. Até o ponto de o governo militar brasileiro reconhecer apressadamente o novo Estado de Angola, em 1975, antecipando-se, inclusive, a Portugal […]. In “Brasil: Perspectivas internacionais, de Amós Nascimento, Editora Unimep, 2002”. 64 polícia cabo-verdiana. Para responder a esta pertinente questão, impõe-se conhecer o percurso das instituições policiais do Reino e das principais instituições policiais europeias que influenciaram a sua criação, organização e desenvolvimento, sem pôr de lado importantes pistas que podem ser encontradas no diploma de criação e no Regulamento do Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, de 1872, primeiro instrumento legal que dá corpo à polícia em Cabo Verde. Política e administrativamente subordinada ao Reino e governada por uma elite destacada do Reino para o efeito, seria natural encontrar-se na criação do Corpo de Polícia Civil da Praia a reprodução do “modelo de polícia”59 vigente no Reino. Pesquisas realizadas nesse sentido indicam que se é certo que se descortina uma forte influência do modelo de polícia do Reino, não é menos verdade que, também são identificadas aproximações ao modelo de polícia londrino, quanto mais não seja no enunciado das suas atribuições. E essa aproximação parece mais evidente e exposta no caso cabo-verdiano do que no do Reino. Tomando a mesma referência temporal, confirma-se que no ano de 1867, por decreto do Rei D. Luis I, de 2 de julho, foram criados o Corpo de Polícia Civil de Lisboa e o Corpo de Polícia Civil do Porto. Cada corpo era chefiado por um comissário-geral subordinado diretamente ao respetivo governador civil do distrito e, por intermédio dele, ao ministro do Reino. Cada corpo era composto por divisões, subdivididas em esquadras e estas em postos. As divisões eram chefiadas por comissários, as esquadras por chefes de esquadra e os postos de polícia por cabos de secção. Ao longo da década de 1870 foram criados, com a mesma designação e organização, os corpos de polícia civil das demais capitais de distrito. Ressalta à vista que entre os Corpos de Policia Civil de Cabo Verde e do Reino existem semelhanças evidentes, a saber: • Desde logo, na designação – são ambos Corpos de Polícia Civil; • Na jurisdição sobre cidades – Praia, Lisboa, Porto e outras capitais de distrito; 59. Como “modelo de polícia” queremos significar a missão, os princípios e valores, a organização e os padrões de atuação do corpo policial. 65 • Na cadeia de chefia: • Na Praia a chefia era exercida pelo administrador do concelho que era o chefe geral do corpo e que respondia perante o governador-geral; • No Reino a chefia competia ao comissário-geral que respondia perante o governador civil e este perante o Ministro do Reino. • Na estrutura hierárquica aparece, nos dois casos, a designação de chefe de esquadra e guardas, com sentido idêntico; • Nos dois casos, os guardas detêm um leque diversificado de atribuições. Outros princípios comuns podem ser observados na burocratização da polícia. A esse respeito, importa recordar que Max Weber (1946) considera a burocracia como um sistema organizacional que estabelece relações (hierárquicas) entre uma autoridade, constituída legítima e legalmente, e seus subordinados. Um dos aspetos da burocratização da polícia prende-se exatamente com a profissionalização dos seus membros. Nessa linha, Francis Cotta (2006) refere que, […] a polícia moderna poderia ser caracterizada por possuir um corpo profissional separado do exército e das instituições judiciárias, uniformizado, armado, equipado e com a responsabilidade de patrulhar as cidades, prevenindo e reprimindo os atos considerados ilegais […] (COTTA, 2006, p. 29). Se é certo que as características comuns atrás indicadas evidenciam a reprodução do modelo de polícia do Reino, existe, no entanto, um aspeto diferenciador que merece ser realçado e aprofundado e que se prende com o tom autoritário retratado pelas atribuições da polícia no Reino e que no caso cabo-verdiano, pelo menos na formulação, deixa perceber uma abordagem diferente. A compreensão deste pormenor torna-se mais clara se se tiver em conta as características diferenciadoras da polícia continental europeia, da londrina, aquela influenciadora direta da organização policial existente no Reino. Francis Cotta (2006) escreve que a ideia de polícia como força pública seria uma concepção resultante das mudanças ocorridas em França, com a revolução de 1789. Na sequência dessa revolução, a Assembleia Constituinte aprovou em 26 de agosto de 1789 e votou definitivamente a 2 de outubro, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O seu artigo 12º estabelecia que “A garantia dos Direitos Humanos e os dos Cidadãos requer uma força pública; esta força 66 é, portanto, instituída em benefício de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem ela é confiada.” (COTTA, 2006, p. 29). Com base nesta importante regra, foi constituída a Gendarmerie Nationale francesa para garantir, contra qualquer outra força, os direitos do homem e do cidadão, não podendo ser instrumento de informação do poder e nem ser usada contra adversários do poder constituído. Todavia, conforme Monjardet, “ … a polícia é totalmente para servir e recebe sua definição – no sentido de seu papel nas relações sociais – daquele que a instrumentaliza, podendo servir a objetivos diversos…”. (MONJARDET, apud COTTA, 2006, p. 29,30). Realça ainda o mesmo autor que ao se desviar do seu objetivo inicial, a força pública francesa torna-se os “olhos, ouvidos e braços do soberano”, e que a polícia francesa constituiria, supostamente, “uma polícia autoritária, preocupada com a segurança das instituições do Estado, e sujeita a um rígido controle central”. Procurando uma explicação para o abandono do princípio consagrado no Artigo 12º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já citado, o francês Jean-Claude Monet, estudioso desta matéria, refere-se ao relacionamento entre a polícia e os cidadãos nos termos seguintes: “… São os choques provocados pela industrialização e pelo desenvolvimento dos conflitos sociopolíticos que vão deteriorar as relações entre a polícia e as camadas operárias urbanas e dar às policias da Europa hábitos ásperos, dos quais terão dificuldade em se desfazer...” (MONET, 2006, p. 69). A imagem desta polícia autoritária e desviada dos seus objetivos é descrita de forma irónica como uma ameaça à liberdade aos olhos dos ingleses e fica definitivamente caracterizada e resumida na afirmação de Monet, citando o Jornal londrino Daily Universal Register, de 1785 que noticiava que, […] Nossa Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia francesa; muitos estrangeiros nos declaram que preferiam deixar o seu dinheiro nas mãos de um ladrão inglês a suas liberdades nas mãos de um tenente de polícia … a polícia à moda francesa constituiria, segundo os ingleses, uma ameaça à democracia […]. (MONET, 2006, p. 48). A omnipresença da polícia francesa, transformada nos “… olhos, ouvidos e braços do soberano …” com toda a sua carga autoritária, pode ainda ser identificada na escrita do jornalista Paul-Luis Courrier, que em 1822 se queixava numa 67 “… petição em favor dos aldeões impedidos de dançar …”, afirmando que “… não mais havia festas campestres sem que se vissem os violinistas arrastar guardas no seu encalço …” e enfatizando, […] os guardas se multiplicaram em França muito mais que os violinos … Nós os dispensaríamos das festas nas aldeias e, para dizer a verdade, não fomos nós que os pedimos; mas o governo está em toda a parte hoje, e essa onipresença se estende até nossas danças, onde não se dá um passo do qual o prefeito não queira ser informado, para prestar contas ao ministro […] (Monet, 2006, p. 17). Tenha-se ainda presente que em Portugal, a anteceder os Corpos de Polícia Civil, existiu a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino (1760 a 1833). Criada em 1760, nasceu das necessidades estruturais da centralização do Estado pombalino, associado a um processo de reformas subsequentes ao terramoto de 1755. Era um órgão central de polícia com funções de coordenação e poderes alargados nas áreas judicial, policial e de assistência social e chefiado por um Intendente-Geral que era um verdadeiro Ministro da Polícia, como o existente em França. O Alvará, com força de lei, de 25 de junho de 1760 para além de criar a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino, regulamentou as suas atribuições destacando-se, a fiscalização dos corregedores e ministros criminais, a prevenção e repressão da delinquência criminal, a superintendência do controle da população móvel e de estrangeiros. Mais tarde, essas atribuições foram estendidas à proteção da pessoa do soberano e da sua família, à vigilância de espiões e ao combate às ideias liberais consideradas subversivas, oriundas da Revolução Francesa. Mais concretamente, a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino detinha, entre outras, as seguintes atribuições: […] Evitar delitos; conservar a boa ordem, a abundância, a limpeza, o culto exterior da religião, o bom regímen dos banhos públicos, dos teatros, e das casas de jogos permitidos, evitar a prostituição dos costumes; manter a salubridade o ar, as obrigações dos artistas; […] dar método aos taberneiros, às casas de pasto, marchantes, e mercadores de vinho, etc; a polícia dos mercados públicos, dos incêndios, dos perigos eminentes dos edifícios, da reedificação, e entretenimento das calçadas, da limpeza das ruas, dos aductos, dos chafarizes […]; a polícia das carruagens públicas e particulares, dos caleceiros, e carreiros, dos barqueiros, das 68 estradas; prevenir os crimes, e descobrir os agressores deles, os vagabundos; os mendicantes; […] os comerciantes, que compram jóias e efeitos preciosos; a polícia das casas de educação da Casa Pia; a polícia relativa á medicina, à cirurgia, às farmácias; das regras para conter os corpos dos fabricantes, comerciantes, e artífices; a polícia dos pesos e das medidas, das feiras e mercados; […] de socorrer os velhos […]; de recolher as mulheres infelizes que se acharem com enfermidades venéreas para se curarem; e do mais que deriva destes artigos […].60 Deve aqui ser referido que no início do seculo XVIII, o conceito português de polícia não designava um corpo específico responsável pela manutenção da ordem, como no caso francês. A polícia seria entendida como a “… ordem estabelecida para a segurança e comodidade pública dos habitantes …” ou como a “… a boa ordem que se observa e as leis que a prudência estabeleceu para a sociedade nas cidades …”. Este conceito, que sofreu variações ao longo do tempo, tinha as suas raízes mergulhadas na teoria corporativa da sociedade, que via o conflito como enfermidade a ser tratada para a conservação da saúde do corpo social (COTTA, 2006, p. 31). Esta matriz marcadamente autoritária foi transitando de uma organização policial para outra e os Corpos de Polícia Civil não fugiram à regra. Cabe aqui lembrar que a criação dos Corpos de Polícia Civil de Lisboa e do Porto em 1867 estava inserida num amplo conjunto de reformas, abrangendo o ensino público, a mendicidade e beneficência e a adoção de um novo Código Administrativo. O modelo adotado procurava seguir as principais características da Metropolitan Police de Londres, criada em 1829 e alargado a todo o território em 1856, mas no fundo, tão simplesmente pretendia-se copiar para Portugal a já respeitada figura do Bobby. Tratava-se de um corpo de homens, dependente da autoridade civil, pago e fardado para percorrer durante as vinte e quatro horas do dia as ruas da cidade executando um conjunto de tarefas que oscilava entre a prevenção da criminalidade e a supressão de “… escândalos a que o baixo povo está habituado …”61 . Note-se que uma das tarefas especificamente recomendadas consistia em “… impedir que as mulheres públicas façam má vizinhança ou 60. Extrato do Alvará de 1760, conforme publicado no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa: http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3848.pdf 61. Dissertação de mestrado em sociologia apresentado por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema “A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”. 69 causem escândalo …”.62 Por se tratar de mera imitação, mais da forma do que do conteúdo, os Corpos de Polícia Civil não conseguiram cumprir os objetivos para que foram criados e como resultado do poder discricionário detido pelo polícia, a imagem pública oscilou entre extremos, o que valeu, alguns anos depois, em 1872, nas Farpas de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, uma caracterização que ia do polícia “… aquele de quépi e espada, que quando não namora medita, e quando não medita namora …”, ao hábil Antunes, […] Um solitário bípede representando uma instituição, [que] corre, busca, vigia, oculta-se, espiona, captura, repreende, admoesta, ameaça, condena; ele é a ordem, é a força, é a lei, a justiça, o direito. Interroga, inquire, investiga: pergunta a este por que motivo está parado, àquele qual a razão secreta que o determina a passear, corre atrás de um que se lhe torna suspeito por tomar um cabriolé à hora, regressa perseguindo outro que subiu à imperial de um ónibus; manda Pulquéria para o Aljube [estabelecimento prisional em Lisboa]; aprisiona Pedro no Governo Civil [local onde se situava o Comissariado Geral da Polícia e onde ficavam os presos]; sepulta Paulo na esquadra policial, e vai continuando sempre a correr e a suar atrás do resto da sociedade que Antunes odeia porque ela anda à solta. Uma vez por mês Antunes descansa dois minutos – um minuto para ler a portaria de louvor que lhe é dirigida, outro minuto para cortar os calos – e recomeça com novo brio […].63 Os termos em que esta caracterização é feita oferecem ocasião para uma breve reflexão sobre o que efetivamente distingue, de um modo geral, a polícia da europa continental da londrina. Portugal, inserido como está na Europa continental, construiu instituições policiais que sempre transportaram consigo características marcantes das restantes polícias continentais, todas elas, por sua vez, fortemente influenciadas pelos modelos alemão e francês que lhes serviram de referência. 62. Extrato do Regulamento do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, citado na Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, Ano 2, Versão 2.0, de Fevereiro de 2008. 63. QUEIROZ, Eça de, ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes, Estoril: Principia, 2004 [1872], pág. 365. Citado na Revista do Núcleo da Antropologia Urbana da USP, Ano 2, Versão 2.0, de Fevereiro de 2008. 70 Recordemos uma vez mais o francês Jean-Claude Monet, (2006) que ao se referir ao relacionamento entre a polícia e os cidadãos, afirma que as relações entre a polícia e as camadas operárias urbanas se deterioram em consequência dos choques resultantes da industrialização e dos conflitos sociais e políticos, adquirindo as polícias europeias, por via disso, “hábitos ásperos”, dos quais terão dificuldade em se desfazer. Também no caso brasileiro, um exemplo da exportação dos “hábitos ásperos” antes referidos e que situa a polícia como instituição que representa o resultado da correlação de forças políticas existentes na própria sociedade, pode ser descortinado na seguinte afirmação que postula, que, […] No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante, da grande classe de excluídos, sendo que foi nessa perspetiva seu desenvolvimento histórico. Uma polícia para servir de barreira física entre os ditos “bons” e “maus” da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor físico e da coragem inconseqüente; uma polícia que atuava com grande influência de estigmas e de preconceitos […] (SANTOS, 2004, p. 121). Segundo Cândido Gonçalves,64 em 1913 o americano Raymond B. Fosdick, que investigava para um centro de higiene social com o objetivo de observar as práticas de administração e os estilos de atuação das forças policiais europeias, estudou in loco as polícias de vinte e uma cidades europeias de seis países: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Áustria – Hungria, Bélgica e Holanda. A conclusão de que diferentes comunidades implementavam diferentes modelos de polícia e de policiamento pode à primeira vista parecer uma evidência, mas os dados e indicações fornecidos pelo autor tornaram este estudo um marco na investigação das organizações policiais urbanas. Ainda conforme este trabalho académico, […] Em 1915, como resultado desta investigação, era publicado o livro European Police Systems, que até aos anos 1970 permaneceu como um dos mais completos trabalhos comparativos das polícias europeias. Um dos aspectos mais 64. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o titulo “A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890- 1940)”. 71 relevantes deste estudo é a bifurcação que estabelece entre dois modelos de polícia. O modelo inglês, civil e respeitador das liberdades individuais, e o modelo da Europa continental, militar (especialmente na Alemanha) e caracterizado por uma acção paternalista. Enquanto “the Englishman wants to mind his own business, to look is own safety, to guard his own rights, to use his own judgement, (…) the German seems to require constant direction […].65 É este modelo autoritário continental de organização da polícia que foi transposto para o Reino e, depois, para Cabo Verde. O interessante deste processo de criação do Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia é o facto de, fugindo completamente à linha autoritária identificada na organização da polícia do Reino, o regulamento conter formulações que se aproximam mais da conceção londrina de polícia do que da continental. Assim, no Capítulo II, sob a epígrafe Dos Chefes de Esquadra, o referido regulamento estabelece no seu Artigo 3º que eles têm como atribuição, […] Explicar aos guardas as suas atribuições e deveres, afim de que elles nem deixem de cumprir estes nem exorbitem d’aquellas por motivo de ignorância; e dar parte ao chefe geral dos que por falta intelligencia não poderem desempenhar bem o serviço, para que sejam substituídos […]. Este artigo revela uma clara preocupação com o conhecimento das normas aplicáveis e necessários ao bom cumprimento das atribuições dos guardas e, a um tempo, com a sua postura e correção. Tratava-se, afinal, de assegurar os requisitos pessoais e institucionais dos guardas enquanto condição indispensável para granjear o respeito, a estima e a confiança da população, como, aliás, se refere o artigo seguinte. Do mesmo passo, reza o Artigo 6º do mesmo Capítulo, que os chefes de esquadra devem, […] Abster-se de abusar da força e da autoridade inherente ás suas funções, devendo evitar as maneiras asperas e as palavras ultrajantes, que poderiam fazer diminuir a consideração e a confiança que a policia deve inspirar, e fazendo compreender ao povo que a sua presença no meio d’elle tem unicamente por fim a conservação da ordem, e a segurança individual e da propriedade […]. 65. Idem. 72 Os artigos citados revelam aspetos que, contrariamente ao que seria de esperar, considerando a relação de subordinação política em que Cabo Verde se encontrava face ao Reino, não se vislumbram nos textos legais que estruturam a polícia do Reino na época. A análise destes dois artigos estruturantes das atribuições dos chefes de esquadra deixa-nos compreender que na criação do Corpo de Polícia Civil da Praia, pelo menos na formulação de princípios, importantes aspetos ligados à organização e à profissionalização são tidos em conta. Um conjunto de exigências é colocado aos membros desse Corpo, podendo ser destacado o profissionalismo e o bom desempenho, a salvaguarda da imagem e da credibilidade, a disciplina e a responsabilização (accountability), a manutenção duma relação “amistosa” com o povo de quem deve merecer consideração e confiança. Mas abster-se do abuso da força, evitar as maneiras ásperas, inspirar confiança e merecer a consideração, bem como assumir o papel de mediador social, como prescreve o artigo 6º já citado, eram exigências que apenas são compreensíveis no campo da utopia, já que a realidade social vivida se inseria num contexto colonial, de dominação, onde os extratos sociais mais baixos não tinham quaisquer direitos e os guardas, oriundos dos mesmos extratos desprivilegiados, eram iletrados, recrutados por alistamento e integrados num Corpo com sérios problemas disciplinares. À semelhança do que aconteceu no Reino, tratava-se efetivamente de uma mera imitação do bobbie inglês, mais da forma do que do conteúdo. Construir uma polícia preventiva, reconhecida pela população, mas na ausência de um governo representativo, era empreendimento claramente votado ao fracasso. Tanto assim é que, depois de 1872 até os nossos dias, as formulações contidas nos artigos citados nunca mais foram retomadas. De todo o modo, fica o registo de que o Regulamento do Corpo de Polícia Civil da Praia de 1872 procurou absorver as três características principais presentes na organização da “nova polícia” londrina que lhe serviu de inspiração e referência – uma força pública, profissional e preventiva. No dizer de Batitucci (2010), considerada a primeira polícia moderna num país com governo representativo, a característica de modernidade da polícia londrina estava associada à definição do seu papel como uma polícia preventiva e, portanto, não prioritariamente voltada para a implementação da Lei, por meio da repressão dos comportamentos desviantes. Estas duas ideias – um governo 73 representativo e uma polícia preventiva – implicariam a necessidade de que a polícia deveria em primeiro lugar obter e, então, utilizar a aceitação e concordância voluntária das pessoas para a sua autoridade, e que o policiamento efetivo, nestes termos, requereria um consenso genérico de que o poder que a polícia representa e o poder que ela exerce são minimamente legítimos (MILLER, 1999, apud BATITUCCI, 2010, p. 31). Argumenta ainda o autor que isso foi possível para a “nova polícia” em virtude de um projeto institucional cuidadoso, voltado especificamente para a ideia de que a polícia foi concebida, pelo menos em parte, como uma força direcionada para a construção de uma mediação política entre o povo e as elites. Neste sentido, a polícia deveria, […] prevenir o crime, sem recorrer de forma repressiva à sanção legal e procurando evitar a intervenção militar em distúrbios domésticos (tais como em motins e revoltas populares); gerenciar a ordem pública de forma não violenta, com a aplicação de recursos violentos apenas como última possibilidade para conseguir obediência e concordância; minimizar e mesmo reduzir, se possível, a divisão ou separação entre a polícia e o público, e demonstrar eficiência através da ausência de crime ou desordem, e não através da ação policial voltada para este fim. […] (MANNING, 1997, p. 86-93, apud BATITUCCI, 2010). A Polícia Metropolitana de Londres introduziu vários elementos que fizeram parte, daí por diante, da ideia moderna de policiamento, como sejam “um sentido de missão”, que está relacionado com a noção de prevenção, consubstanciada na “estratégia de patrulha preventiva”; “uma estrutura organizacional definida”, em regra baseada na estrutura das forças armadas – sistema de comando e disciplina; e a “presença contínua na comunidade” através da patrulha preventiva em tempo integral. (WALKER, 1992, p. 5, apud BATITUCCI, 2010) Para que se alcance verdadeiramente a essência do “projeto institucional cuidadoso” de que nos dá conta Manning, é importante reter que o processo de “amadurecimento institucional da polícia londrina”, na primeira metade do século XIX, resultou, por um lado da “pacificação das relações sociais” na sociedade inglesa, isto é, da incorporação das classes trabalhadoras no processo político – pela conquista do direito ao voto e à representação parlamentar, principal fonte de resistência à organização policial – e, por outro, de “políticas e estratégias organizacionais deliberadas”, desenvolvidas no sentido de dotar a polícia de con74 dições institucionais para a conquista de legitimidade social por meio, especialmente, dos seguintes elementos: […] organização burocrática: a nova polícia seria organizada por princípios de uma hierarquia burocrática, com uma cadeia de comando em linhas quasemilitares; regras e regulamentos governavam vários aspetos da vida do policial (uso do uniforme, hábitos de higiene, formas de tratamento de populares e superiores hierárquicos, horários de trabalho, etc.) e não só aqueles relacionados à sua atividade de patrulha; a adesão a estes regulamentos era inculcada por meio de formação e treinamento; mandato da lei: a forma como a polícia atuava na manutenção da ordem e no reforço do sistema legal era, ela mesma, submetida a um conjunto de regras e procedimentos que visavam restringir a liberdade de ação do policial; estratégia do uso limitado da força: o grosso dos policiais não portava armas, estando limitados a um bastão de madeira, sendo que mesmo o seu uso era restrito, determinado apenas como último recurso; neutralidade política: considerado um dos elementos mais importantes, indicava que a polícia deveria apresentar uma imagem de neutralidade política diante das agudas divisões de classe da sociedade inglesa, procurando a imparcialidade na ação, que deve ser orientada por princípios genéricos (para tanto, se proibia o voto aos policiais – política que perdurou até 1887); accountability: a despeito de não haver controle formal por nenhum corpo eleito, entendia-se que a polícia era accountable à lei, em virtude de que suas ações eram revistas pelas cortes, mas, especialmente, à população, através de um processo de identificação entre a polícia e as classes populares, incentivado por estratégias deliberadas de recrutamento e seleção, que buscavam os policiais entre a massa das classes populares; espírito público: incentivado por meio do cultivo deliberado da noção de que o policial é um servo da população; primazia da prevenção: determina a concentração da força nas atividades de patrulha ostensiva uniformizada, visível (e controlável) pela população, em detrimento das atividades de investigação, usualmente desenvolvidas em segredo; efetividade: observada pelo desenvolvimento progressivo de indicadores e critérios que procuravam validar a busca do oferecimento de um serviço de qua75 lidade. […] (Walker, 1992, p. 5, apud Batitucci, 2010). No mesmo sentido, considera Bayley (2001), que a “nova polícia” representou um passo importante na construção das três características essenciais da polícia moderna: […] ela é pública, pois representa a total transferência da segurança de uma comunidade de sistemas privados ou quase privados para o Estado; é especializada no sentido de que desenvolveu uma missão específica voltada exclusivamente para a prevenção e repressão de crimes; e, finalmente, caminha na direção da profissionalização, dado que inaugura instrumentos organizacionais especificamente direcionados para a qualidade e o desempenho no exercício de suas funções. […] (BAYLEY, 2001, P. 64-65). Em resumo, o desenho institucional da Polícia Metropolitana de Londres constituiria doravante referência incontornável no desenvolvimento da polícia como instituição, no mundo ocidental, privilegiando a neutralidade política, o desenvolvimento de um sentido profissional baseado nos critérios de admissão e treinamento, a regularidade procedimental e a adesão ao mandato da lei e o desenvolvimento de um espírito público por parte do policial, através da sua identificação simbólica com a população e com a sua missão. Também, os Estados Unidos compartilham desta tradição com os ingleses, especialmente no que se refere à ideia de que a autoridade governamental e, por consequência, a autoridade policial devem ser limitadas em virtude das necessidades de proteção dos direitos individuais. A construção do consenso social sobre a legitimidade da polícia na sociedade inglesa resultou, parcialmente, de políticas organizacionais específicas, desenvolvidas para retirar a polícia do debate político, procurando a criação de critérios universais de ação. 76 CAPÍTULO II A INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO ESTADO 2.1 - A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E SEUS REFLEXOS NA POLÍCIA Os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas em África surgiram nos anos 50 do século passado66 . Influenciados por outros movimentos similares, localizados no continente africano ou fora dele, encontraram apoios significativos em países recém-libertados e nos países do então chamado “bloco de leste”. Em plena guerra fria, líderes africanos progressistas posicionaram-se claramente contra o regime de exploração a que os seus povos estavam submetidos pelas potências colonizadoras e lideraram um processo que culminou, nos anos 60, com o surgimento de vários Estados africanos independentes67 . O caso das ex-colónias portuguesas em África revestiu-se de características particulares. No que se refere à Guiné-Bissau e Cabo Verde, sob a liderança de um movimento de libertação comum, recusada que foi a sua proposta à potência colonizadora para a abertura de um processo negocial visando a ascensão à independência, outra solução não restou senão conquistá-la pela força das armas, desencadeando uma luta armada que se prolongou por mais de uma década e de que saíram vitoriosos. O recurso à luta armada como única via para a conquista da independência é realçada por Amilcar Cabral (CABRAL, 1974, p. 15), quando escreve: […] Como as nossas propostas não tiveram aceitação favorável, nem da parte do Governo português, nem da parte da O.N.U., as forças patrióticas do nosso país passaram a uma acção generalizada contra as forças colonialistas em Janeiro de 1963 […]. 66. No caso que aqui nos interessa, importa realçar que o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), foi criado em setembro de 1956. 67. A década de 1960 ficou conhecida como a “década da independência da Africa”, já que 33 países africanos alcançaram a independência. As principais potências colonizadoras eram: França, Reino Unido, Portugal, Bélgica, Itália e Espanha. 77 A vitória militar iminente viria, por um lado, precipitar o processo de mudança de regime na metrópole68 , por conta da “revolta dos capitães” liderada por elementos progressistas que derrubaram o regime fascista de Salazar/Caetano, processo que ficou conhecido como a “revolução dos cravos” e, por outro, reforçar a legitimidade política dos movimentos nacionalistas representativos dos povos das ex-colónias, que souberam tirar proveito das condições políticas objetivas para imporem um/seu sentido ao processo de descolonização, face a uma potência colonizadora fragilizada e, também ela, a braços com um processo de mudança de regime. É, pois, no contexto de tensão entre os dois grandes blocos de então, o chamado período da “guerra fria” que, em 5 de julho de 1975, Cabo Verde conquistou a sua independência. Assim se compreende que o processo de construção do Estado independente e das suas instituições fundamentais tenha sido marcado por uma certa carga ideológica transportada pelos ventos que então sopravam a favor da emancipação dos povos coloniais. O Estado de Cabo Verde foi edificado sobre um sistema de partido único que vigorou de 5 de julho de 1975 até 13 de janeiro de 1991, data da realização das primeiras eleições multipartidárias. O período que vai da independência até janeiro de 1991, data da realização das primeiras eleições livres, é chamado de primeira república, caracterizada pela existência de um regime de partido único que, não obstante a realização de eleições periódicas, não permitia a existência de listas concorrentes, enquanto o período posterior a janeiro de 1991, é chamado de segunda república que é caracterizada pela existência de um regime democrático, com eleições concorrenciais, seja para os órgãos municipais, como para o parlamento e para a presidência da república. O Estado de Cabo Verde, foi construído de modo a retratar a linha ideológica do PAIGC, partido que conduziu o processo de libertação através de uma luta armada, reconhecido por todas as instâncias internacionais como o único e legitimo representante do povo cabo-verdiano e que negociou com a potência colonial o reconhecimento do Estado da Guiné-Bissau e a afirmação do direito do povo 68. As consequências de uma vitória militar por parte dos movimentos nacionalistas das ex-colónias portuguesas em África foram previstas por Amilcar Cabral (CABRAL, 1974), quando disse que […] Estamos certos de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal. […] 78 cabo-verdiano à autodeterminação e independência e acabou por integrar, sem a concorrência de quaisquer outros partidos, o governo de transição, que conduziu o processo de eleição da Assembleia Constituinte que por sua vez proclamou a independência nacional em 1975. Outro aspeto a considerar, é que o PAIGC já tinha proclamado a independência da Guiné em setembro de 197369 , antes da queda do fascismo em Portugal, e detinha uma experiência de cerca de uma década de um modelo de gestão das “zonas libertadas” baseado numa ampla participação popular em todos os domínios da vida social, incluindo a defesa e a segurança. A representação do Estado era redutora, significando mais a criação pelo partido de mais um instrumento para melhorar a condução da luta do que propriamente uma entidade com as funções que se lhe reconhece. Daí que o partido se confundia com o Estado na sua ação quotidiana. Os mesmos dirigentes que estavam à frente da organização e direção da luta junto das populações enquanto partido, também tinham funções a nível das instituições do Estado recém-criado, havendo, por isso, espaço suficientemente largo para interpretações, compreensões e ações menos adequadas. É este modelo de organização, assente numa “intimidade” extrema entre o partido e o Estado, que reflete e é reflexo da já referida linha ideológica que enformava o PAIGC e que o seu discurso político nunca disfarçou, que é trazido e instalado em Cabo Verde. Um modelo típico dos regimes de partido único. A primeira lei aprovada pela Assembleia Nacional Popular, Assembleia Constituinte eleita a 30 de junho de 1975, por sufrágio direto, universal e secreto foi a Lei sobre a Organização Politica do Estado (LOPE)70. O preâmbulo da LOPE considerava a necessidade de “… instituir órgãos do poder do Estado e uma orgânica jurídico-política, indispensáveis à governação e administração do país até que seja adoptada a Constituição da República …”, 69. Esta opção política fundava-se no pressuposto de que nas “zonas libertadas”, controladas pelo PAIGC, tinham sido criados os serviços e instituições essenciais à existência e funcionamento de um Estado independente. Daí a tese de que, na realidade, a Guiné-Bissau era um Estado em que parte do seu território era ocupada por uma força estrangeira. Esta decisão teve um alcance político e diplomático muito importante dado ao número de estados que reconheceram a independência da Guiné-Bissau e ao maior isolamento a que conduziu Portugal no plano internacional. 70. Aprovada a 5 de julho de 1975, na Primeira Sessão da Assembleia Nacional Popular, para vigorar até a aprovação da Constituição, que deveria ocorrer nos 90 dias subsequentes. 79 para de seguida dar lugar a um corpo de vinte e três artigos dos quais se destacam apenas dois. O artigo 1º estabelecia que, […] A Soberania do Povo de Cabo Verde é exercida no interesse das massas populares, as quais estão estreitamente ligadas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo verde (PAIGC), que é a força política dirigente da nossa sociedade […], e o artigo 22º consagrava que […] A legislação portuguesa em vigor nesta data mantém transitoriamente a sua vigência em tudo o que não for contrário à soberania nacional, à presente Lei, às restantes leis da República e aos princípios e objectivos do P.A.I.G.C. […]. A LOPE consagrava, assim, o regime de partido único. A Constituição da República, aprovada em setembro de 198071 limitou-se a absorver o princípio já consagrado no artigo 1º da LOPE. A Constituição de 1980 refletia o regime autoritário no seu célebre artigo 4º que consagrava o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – mais tarde Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) – como “… força política dirigente da sociedade e do Estado …”, a quem competia “… estabelecer as bases gerais do programa politico, económico, social, cultural, de defesa e segurança a realizar pelo Estado…”. Como consequência desta norma constitucional e no que se refere concretamente à Polícia de Ordem Pública (POP), instituição que corporizava os objetivos nacionais em matéria de segurança pública, traços do regime autoritário foram reproduzidos no Estatuto do Pessoal das Forças de Segurança e Ordem Pública72 (FSOP), que no artigo 11º, alínea a) estabelecia que os oficiais, subchefes e agentes das FSOP tinham como um dos deveres, “… respeitar e defender os princípios do Partido Africano da Independência de Cabo Verde, força dirigente da sociedade e do Estado.” Do mesmo modo a alínea f) do artigo 12º estabelecia que constituía dever dos oficiais “zelar pela educação e preparação político-ideo- 71. Constituição da Republica de Cabo Verde, aprovada a 5 de setembro de 1980. 72. Aprovado pelo Decreto-Lei nº 43/84, de 5 de maio de 1984, publicado no Boletim Oficial nº18, da mesma data. 80 lógica e técnico-profissional do efetivo sob as suas ordens”. Centrando a análise na POP, enquanto principal agente encarregue da garantia da segurança pública, o modelo organizativo herdado do governo colonial manteve-se praticamente o mesmo durante os primeiros nove anos da independência. A POP era um corpo autónomo, com carreira própria e unidades espalhadas por todo o território nacional e completamente separado do Departamento de Segurança que respondia pela segurança interior do Estado. Tanto a POP como o Departamento de Segurança funcionavam na dependência de um órgão superior único, a Direção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP). Foi o golpe de estado ocorrido na Guiné-Bissau em novembro de 1980 que, como já foi dito, motivou a primeira grande reorganização do setor da segurança interna, dando lugar, com a criação do Ministério do Interior em 1981, ao surgimento das FSOP. Com esta medida deu-se a unificação do quadro do pessoal da POP com o do Departamento de Segurança, a unificação das patentes e carreiras, mantendo-se as forças em estruturas de comando independentes mas complementares. E é neste contexto que em 1984 é aprovado o Estatuto do Pessoal das FSOP, que vigorou até 1992. Mas, no período que vai da independência à criação do Ministério do Interior, não era a POP a única força encarregue da segurança pública. Assumindo a POP o seu papel enquanto instituição responsável, em primeira linha, pela garantia da segurança pública, ela contava com a colaboração das “milícias populares” enquanto força complementar, seja para a POP em tempo de paz, seja para as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), em tempo de guerra. A organização e o funcionamento das milícias populares conheceram algum esmorecimento nos dois últimos anos da década de 1970 e, é no ponto 5. da Resolução Geral do Congresso Constitutivo do PAICV encerrado a 20 de janeiro de 1981 que se inscreve “… O reforço dos órgãos de defesa e segurança nacional e a reactivação das Milícias Populares …” como uma das medidas a implementar nos anos seguintes. As milícias populares eram constituídas por homens e mulheres, em regime de voluntariado, que recebiam um treinamento militar básico e uniforme e funcionavam sob o comando das forças armadas apoiadas por coordenadores de bairro. Recebiam armamento em função das missões que tinham a cumprir. Do seu seio saiam elementos que recebiam uma formação policial também básica e assumiam o patrulhamento dos seus bairros residenciais. Sob a coordenação 81 da POP, participavam também na segurança de eventos desportivos, culturais e políticos e apoiavam os órgãos de justiça e a própria POP nas notificações e garantiam a segurança nos julgamentos levados a cabo pelos Tribunais de Zona, vulgarmente conhecidos por tribunais populares. Contrariamente ao que é comumente veiculado, as milícias populares não surgiram com o objetivo específico de reforçar a POP na garantia da segurança pública e por via disso como máquina repressiva. Na verdade elas nasceram antes da independência, mais concretamente no período de transição para a independência, não só como instrumento do PAIGC para assegurar o equilíbrio de forças com o governo português, já que não era possível a constituição de forças armadas regulares numa situação em que esse partido não detinha o poder politico em Cabo Verde, fora do quadro da independência, portanto, mas também como mecanismo de resposta a correntes que defendiam que o governo português não deveria reconhecer ao povo de Cabo Verde o direito à autodeterminação e independência, com o argumento de que o palco da luta armada tinha sido a GuinéBissau ou que cabo Verde não tinha futuro como país independente e, por isso, deveria manter-se na dependência de Portugal. A esse propósito declarou Mario Soares73 : […] o arquipélago teria muito a ganhar em ter evitado a separação em relação a Portugal. Eu sempre achei que Cabo Verde não deveria ter sido independente, não assisti à independência de Cabo Verde por isso mesmo […] Cabo Verde não é propriamente África porque Cabo Verde é um arquipélago do norte do Atlântico e que há uma relação que deveria ter sido mais explorada entre os três arquipélagos existentes que são Europa, ou seja, Açores, Madeira, depois Canárias e podia ser Cabo Verde. […]74 Depois da independência nacional as milícias populares ficaram organicamente integradas no Comando Geral das FARP e Milícias e funcionaram na lógica da participação popular nos assuntos da defesa e segurança interna. Foram 73. Então Ministro dos Negócios Estrangeiros e membro da delegação de Portugal às negociações com o PAIGC para a independência. Mais tarde Primeiro Ministro e Presidente de República de Portugal. 74. Declarações produzidas por Mário Soares no colóquio “Vozes da Revolução: Guerra Colonial e Descolonização”, realizado no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), 30 anos depois da independência de Cabo Verde. Sendo o seu autor membro da equipa negocial portuguesa, não restam dúvidas de que havia correntes, designadamente em Portugal, contra o processo de independência. http:// www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1546049&seccao=CPLP, de 16 de Abril de 2010. 82 extintas logo após o início da I Legislatura da II República. 2.2 - A SEGURANÇA PÚBLICA NOS PROGRAMAS DE GOVERNO De 1975 a 2000, período abrangido por este capítulo, decorreram cinco legislaturas75 , em Cabo Verde. Todos os governos foram empossados e levaram o seu mandato até o fim e, à exceção do I Governo da I Legislatura, todos os restantes apresentaram um programa de governo, discutido e aprovado pelo parlamento. Na I Legislatura, o discurso do Primeiro-ministro na tomada de posse do governo foi considerado o programa de governo para essa legislatura. As referências à segurança pública foram muito genéricas, sem deixarem, no entanto, de referir a necessidade de se organizar o setor e de lhe disponibilizar os meios necessários ao seu bom funcionamento. Como já se disse em outro ponto deste trabalho, já no processo de transição para a independência, o Regulamento Geral da PSP de Cabo Verde começou a sofreu alterações de modo a criar as condições institucionais para o efeito, processo que prosseguiu depois da independência, apenas para adequar uma ou outra situação à nova realidade política. No geral, toda a legislação herdada do regime colonial em matéria de organização e funcionamento da polícia, manteve-se em vigor desde que, segundo a Lei sobre a Organização Política do Estado (LOPE), não contrariasse os princípios e objetivos do PAIGC. Legislação nacional relativa à organização e funcionamento da POP só começou a ser publicada, a partir de maio de 1984. Foi, efetivamente, o Programa do Governo para a II Legislatura (1981-1985)76 que se referiu de forma expressa à matéria em análise, no capítulo dedicado à Defesa e Segurança Nacional, começando por condicionar a realização dos objetivos económicos, sociais e culturais estabelecidos à existência de “sossego e paz e se garanta a defesa e a segurança do regime”. Reconhecia o programa, decorridos cinco anos sobre a proclamação da independência, a necessidade de “… uma acção vigorosa no sentido do aperfeiçoamento, da organização e funcionamento 75. Em Cabo Verde uma legislatura tem a duração de cinco anos. 76. Grafedito – Praia Cabo Verde – 1981. 83 dos serviços que se encarregam da defesa e segurança nacionais …” bem como do reforço dos “… organismos estatais encarregados da ordem pública e da segurança interna …”, preconizando as seguintes medidas: […] melhoria da sua capacidade de intervenção, proporcionando-lhes os meios indispensáveis; melhoria das instalações e condições de trabalho; elevação do nível politico-cultural e técnico dos seus membros, a fim de facilitar e melhorar as suas relações com a população; aprofundar no seu seio o sentido de responsabilidade e de respeito pelos direitos dos cidadãos, conjugados com a necessidade da defesa intransigente das instituições nacionais […]. Ressalvando que a ação desses setores deverá ser exercida no “… quadro estrito da legalidade constitucional, com o objetivo exclusivo de defender o país …” concluía o referido programa a abordagem da questão da segurança pública alertando para a necessidade de “… um trabalho sério no sentido de uma maior aproximação entre FARP/POP e também para o reforço da ligação POPULAÇÃO/FARP/POP …”.77 Merecem destaque as referências à necessidade de melhorar a relação entre a polícia e os cidadãos e do respeito dos direitos dos cidadãos no quadro do que estabelecia a constituição. O Programa de Governo para a III Legislatura, mais desenvolvido e objetivo, traz inovações em relação ao precedente, apresentando-se como um verdadeiro programa de atividades para o setor da segurança e ordem pública (1986/1990)78 , refere-se, pela primeira vez, à prevenção de crimes e estabelece como principais orientações, à opção por ações de caráter eminentemente preventivo, ao respeito pela lei e pelos direitos dos cidadãos, à progressiva especialização dos serviços que integram as FSOP, ao prosseguimento do esforço de modernização e de preparação técnica, à promoção de maior aproximação entre o agente e a população e à melhoria das condições de vida e de prestação de serviço do pessoal das FSOP. A partir destas orientações, elenca um conjunto de ações a desenvolver, onde se destacam a criação de novas unidades policiais, a aprovação de diplomas legais que regulamentam a atividade das FSOP, a participação das milícias populares na manutenção da ordem pública e a organização da proteção civil. 77. Grafedito – Praia Cabo Verde – 1981. 78. Edição do Gabinete do Primeiro Ministro – Grafedito – Praia – 1986. 84 Um pouco mais ousado, mas ainda assim de forma tímida, o Programa de Governo para a III Legislatura, de 1986/1990, realça a opção por ações de carácter eminentemente preventivo, o respeito pela lei e pelos direitos dos cidadãos, a especialização dos serviços e a criação de um quadro legal, dentro do qual deverão mover-se os órgãos que intervêm na garantia da segurança pública. Particularmente, nas duas primeiras legislaturas da I República, o enfoque principal era a instituição policial, a sua organização e os meios indispensáveis ao seu bom funcionamento. Já na última legislatura da I República é notória a preocupação com o cidadão e o seu envolvimento no processo de garantia da segurança pública, posicionando-se o programa pela autonomização da segurança pública face à defesa nacional, merecendo os dois temas tratamento em subcapítulos diferentes. De um modo geral, os três programas de governo da I República focalizam mais a melhoria da organização e a dotação de meios para o funcionamento das forças de segurança, em detrimento do delinear de um modelo de segurança pública a construir. Limitam-se a elencar um conjunto de ações a desenvolver pelo Estado no sentido de reforçar os organismos encarregados da ordem pública e da segurança interna. É caso para se dizer que os programas de governo apresentam uma excessiva concentração sobre matérias a incorporar em políticas de segurança pública do que em políticas públicas de segurança. Praticamente, no final da legislatura e, no âmbito da criação das condições para a realização de eleições livres, foram suprimidos da constituição os artigos que impediam o alcance desse objetivo e, em consequência, foi aprovado um conjunto de leis – sobre o direito à greve, de reunião, associação e manifestação, dos partidos políticos, direito de oposição, etc. É, de facto, nas legislaturas pós-transição democrática que se regista uma maior extroversão da segurança pública, consubstanciada na diversificação do leque de matérias consideradas mais pertinentes, na publicação de diplomas importantes para a organização e funcionamento do setor, numa maior interação com a sociedade e, em suma, num conjunto de reformas, anunciadas umas e concretizadas outras. Com a I Legislatura da II República deixaram de existir as FSOP e a POP voltou a ser uma instituição autónoma, com carreira e regulamentos próprios, com novo uniforme e novas patentes e insígnias. Foi nesse período que se apro85 vou o novo Estatuto do Pessoal e o novo Regulamento Disciplinar e introduzido o lema “Ao serviço da comunidade”. Consolidou-se a organização e o funcionamento do Corpo de Intervenção, foram criadas novas unidades policiais e construídos alguns edifícios para albergar os serviços da POP em alguns concelhos. A nova Constituição da República aprovada em 1992, para além de introduzir um leque variado de novos direitos dos cidadãos, dedicou o seu artigo 266ª à polícia, estabelecendo que ela tem por função “… defender a legalidade democrática garantir a segurança interna, a tranquilidade pública e os direitos dos cidadãos …” e condicionando a aplicação das medidas de polícia aos princípios da “legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade”. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE CABO VERDE, 1992). O Programa do Governo em análise anunciava a necessidade da inversão do quadro atual da atividade policial ultrapassando-se “... o divórcio acrimonioso entre a comunidade e a Polícia, pois só assim esta poderá ganhar a confiança e consideração dos cidadãos e dignificar-se...”, ao mesmo tempo em que preconizava que a polícia de segurança pública devia ser, […] o mais rapidamente possível integrada nas comunidades onde presta serviço, como forma de cumprir cabalmente a sua importante missão de garantir a segurança dos cidadãos e dos seus bens e, mais facilmente, passar a ser vista e encarada pela sociedade como dela fazendo parte. […]79 De entre as medidas mais importantes anunciadas neste programa de governo destacam-se as seguintes: […] Desmilitarização da policia de segurança publica, transformando-a num serviço civil com estatuto especial; Municipalização gradual da polícia; Dignificação da instituição policial; Prioridade à segurança pública de pessoas e bens, privilegiando uma filosofia de prevenção; Despolitização da polícia de segurança pública; Incentivo à criação de empresas de segurança privada […] Já o Programa do Governo da II Legislatura da II República, também melhor estruturado que o da legislatura anterior, manteve a linha das reformas anteriormente iniciadas e introduziu elementos novos de grande alcance para o futuro do setor. Pela primeira vez surge um discurso em que a segurança nacional é vista 79. Votado pela Resolução nº6/II/91, de 8 de Agosto. In B.O. Nº31, Suplemento. 86 como um sistema. Dizia o programa que o Governo propugnava, […] uma profunda reforma na área da segurança e ordem pública, com o propósito de criar um efectivo e eficiente sistema nacional de segurança que garanta uma intervenção eficaz dos diferentes órgãos encarregados de velar pelo correcto exercício das liberdades democráticas, pela ordem e a tranquilidade públicas e pela segurança física e psíquica dos cidadãos, do Estado e dos titulares de cargos públicos e do património privado e público […] A concretizar o sentido da reforma anunciada propunha-se o governo fazer aprovar, […] uma lei de Segurança Nacional, prevendo, designadamente, um órgão consultivo e de coordenação em matéria de segurança nacional, de carácter intergovernamental, pluridepartamental e multisectorial, na dependência do Primeiro-Ministro. […]. É, neste contexto, que o Decreto-Lei nº 15/96, de 20 de maio, cria, pela primeira vez, o Conselho Nacional de Segurança (CONSEG), definindo-o como órgão consultivo do Governo e de “coordenação e articulação na organização do sistema nacional de segurança e na concepção, planeamento, execução, seguimento, controlo e avaliação de programas, projectos e acções em matéria de segurança nacional”. Os sucessivos governos acolheram sempre, na sua orgânica, o Conselho Nacional de Segurança, sem que na prática este importante órgão assumisse, verdadeiramente, o papel que lhe estava reservado. A II Legislatura da II República foi um período sem precedentes no processo de institucionalização da segurança pública em cabo Verde, período durante o qual se aprovou uma enorme quantidade de diplomas legais referentes à segurança pública. Foram aprovados e publicados, praticamente, todos os regulamentos decorrentes do Estatuto do Pessoal e do Regulamento disciplinar revistos em 1998. Algo, igualmente, inovador foi a publicação dos Códigos de Honra e Ético, regulamentos que vêm pautar a prestação do pessoal da POP segundo padrões internacionais. No entanto, o que sobrou em quantidade, faltou em qualidade, dado às condições em que os diplomas foram preparados, desgarrados da realidade nacional, sem qualquer envolvimento direto da instituição policial e num lapso de lapso de tempo recorde. 87 Considerando as duas primeiras legislaturas da II República, ficaram por concretizar importantes medidas anunciadas, algumas das quais nunca foram verdadeiramente explicadas. A título de mero exemplo, nunca se explicou o sentido e o alcance da medida de “municipalização da polícia” do mesmo modo que não se conhece as linhas orientadoras da reforma da área da segurança e ordem pública. Ainda hoje não existe em Cabo Verde um verdadeiro sistema de segurança interna. Um dado a considerar, finalmente, é a distância que separa o discurso político vertido nos sucessivos programas de governo, da elaboração e implementação de políticas públicas de segurança e o resultado que elas, de facto, produziram. Com efeito, muito pouco daquilo que tem sido anunciado é, efetivamente, concretizado. Cada legislatura apresenta-se quase que como um recomeço. Vários fatores poderão ser considerados como condicionantes da concretização das medidas anunciadas. Um deles que salta à vista prende-se com a instabilidade orgânica que a área da segurança interna tem vivido ao longo dos sucessivos governos da independência a esta parte. Não é por acaso que os momentos em que os governos dedicaram maior atenção à segurança pública coincidem com a existência de um departamento governamental autónomo que responde unicamente por este setor – Ministério do Interior na I República, e Secretaria de Estado da Administração Interna na II. Os períodos em que o setor da segurança pública esteve associado a outras áreas da governação, representam decadência – Defesa ou Forças Armadas na I República, Presidência do Conselho de Ministros e Justiça na II República. A instabilidade orgânica já referida abriu portas para uma drástica redução dos recursos humanos especializados no domínio da segurança pública, a nível ministerial, com assinaláveis reflexos na conceção e concretização de políticas públicas para o setor. Os quadros civis foram-se tornando cada vez mais escassos, chegando mesmo a desaparecer, obrigando os responsáveis por este setor a fazer recurso a quadros policiais, estes treinados para tarefas completamente diferentes. Não constitui novidade de que um dos fatores críticos de sucesso de qualquer empreendimento está associado, sobretudo, à qualidade dos recursos humanos disponíveis. 88 CAPÍTULO III A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA 3.1 - ENQUADRAMENTO TEÓRICO Os anos 80 do século passado foram marcados por profundas transformações na correlação de forças entre os blocos já referidos, tendo-se chegado mesmo ao desmoronamento do chamado bloco de leste, com o desmembramento da exURSS, a queda do muro de Berlim e a mudança de regime nos Estados do Pacto de Varsóvia. Os processos de transição política concentraram-se, sobretudo, nos países do Leste Europeu, da América Latina e da África. Esse fenómeno global que começou em meados dos anos 70 e a que Huntington (1994, p. 30) designou de “Terceira onda de Democratização”, também influenciou Cabo Verde dando lugar, em janeiro de 1991, à realização das primeiras eleições livres e à mudança do regime político. O Dicionário Político (BOBBIO, 1998) define Regime Político80 como o “ conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições.” A mudança do regime político precipitou uma série de outras mudanças nas instituições que “regulam a luta pelo poder e o seu exercício”. Sendo certo que não compete à polícia legislar ou estabelecer os mecanismos procedimentais e de regulação da luta pelo poder, não deixa, igualmente, de ser verdade que ela desempenha um papel vital enquanto mediador social e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, criando ou preservando as condições necessárias para que os partidos políticos e os cidadãos em 80. “Regime Político. I. DEFINIÇÃO. — Por Regime político se entende o conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições. As instituições constituem, por um lado, a estrutura orgânica do poder político, que escolhe a classe dirigente e atribui a cada um dos indivíduos empenhados na luta política um papel peculiar. Por outro, são normas e procedimentos que garantem a repetição constante de determinados comportamentos e tornam assim possível o desenvolvimento regular e ordenado da luta pelo poder, do exercício deste e das atividades sociais a ele vinculadas”. 89 geral possam exercer o seu direito de participar na vida política da nação e na construção da vontade política nacional, num clima de paz e de tranquilidade. A transição para a democracia, a mudança de um Estado totalitário para um Estado de direito democrático também implicou transformações no domínio da segurança, matérias que serão retomadas mais adiante. Sem prejuízo da influência do movimento global em prol da democratização, ÉVORA (2004) considera que Cabo Verde é um caso típico de transição iniciada pela elite autoritária mas que adquire uma dinâmica diferente com o surgimento da oposição. Ao abordar os processos de transição, Huntington (1994, p.124-163) identifica três tipos de transição política: o primeiro é a transição por transformação ou reforma e nele são os próprios detentores do poder no regime autoritário que tomam a frente para transformá-lo num regime democrático, o que exige que o governo seja mais forte do que a oposição. O segundo tipo é a transição por substituição ou rutura que se caracteriza por um processo diferente da transformação. Neste caso os elementos dominantes no governo são conservadores e, por isso, opositores à mudança de regime. É a oposição quem lidera o processo de mudança política, já que não há reformadores no interior do regime autoritário ou se existem têm muito pouca força. A democratização resulta de um ganho de força da oposição e de uma perda de força do governo. O terceiro tipo é a transição por transtituição. Neste caso a democratização é resultado de ações combinadas dos detentores do poder e da oposição. Regista-se um equilíbrio de forças entre os reformistas e os conservadores no seio do governo que faz com que ele se disponha para negociar uma mudança de regime. Segundo ÉVORA (2004), no caso cabo-verdiano, a transição foi uma mistura de transformação com transtituição. […] Foi em parte um processo de transformação ou de desligamento voluntário, pois foram os líderes do regime do partido único que iniciaram o processo de mudança. Mas também a transição seria um pouco de transição por transtituição, porque a oposição teve um papel importante na definição das regras do processo de mudança que acabaram por dar um novo rumo às reformas empreendidas pelos líderes autoritários […] (ÉVORA, 2004, p. 24). O discurso político que hoje se faz em Cabo Verde e mesmo referências oriundas de diversas fontes (União Europeia, União Africana, ONGs, organis90 mos internacionais de cooperação), vão no sentido de considerar que o nosso processo de construção de um regime político democrático é irreversível. Esta constatação não exclui, no entanto, a necessidade da consolidação desse regime. A esse propósito escreve Évora (2004): […] Pelo menos formalmente, o primeiro governo eleito democraticamente em Cabo Verde fez grandes mudanças, estabelecendo na Constituição direitos antes desconhecidos pelos cabo-verdianos. Também aboliu algumas instituições do regime anterior, como é o caso da polícia política. Em termos de políticas públicas, as maiores mudanças se deram no plano económico com o início do processo de privatização. Contudo, mesmo tendo o MpD vencido duas eleições consecutivas, o governo daquele partido fez muito pouco para iniciar o processo de consolidação democrática. O processo cabo-verdiano estagnou-se pelo facto de os novos actores políticos não terem conciliado os aspectos formais com a prática democrática. Faltou-lhes interiorizar os princípios democráticos e, por causa disso, deram prova de uma certa continuidade com o regime anterior. […]. (ÉVORA, 2004, p. 121-122): E arremata Évora (2004), considerando que para que se iniciasse o processo de consolidação do regime democrático em Cabo Verde seria necessária uma experiência de transferência de voto, o que veio a acontecer dez anos após as primeiras eleições, em 2001, acarretando a alternância no poder, com a oposição (PAICV) a ser governo e o partido que antes governou a ser oposição. A constatação de Évora (2004) encontra respaldo também em Pinheiro (1997) que, analisando o caso brasileiro no tocante à consagração de direitos na Carta Magna, considera que, […] A nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, conseguiu incorporar muitos dos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período da ditadura militar. Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são considerados crimes. […] (PINHEIRO, 1997, p. 43). Ao se referir à construção do regime democrático, Pinheiro (1997), afirma que, […] Não basta haver eleições e falar em democracia – é preciso que o cidadão seja envolvido e que se sinta parte do processo […] O problema é que instalar um governo civil eleito democraticamente não necessariamente significa que as 91 instituições do Estado irão operar democraticamente. Guilhermo O’Donnel refere-se a essa passagem como a “primeira transição” – sair de um regime autoritário para um governo eleito – e a “segunda transição” como a institucionalização das práticas democráticas em todos os níveis do Estado. Em muitos países pósditaduras que não têm uma longa tradição democrática, a “segunda transição” ficou imobilizada por inúmeros legados do passado autoritário. Essa continuidade sugere que os regimes autoritários do passado e os novos governos civis democraticamente eleitos são expressões diferenciadas de um mesmo sistema de dominação da mesma elite. […] A democratização política não ataca as raízes das formas sociais de autoritarismo, ou “o autoritarismo socialmente implantado”. As práticas autoritárias profundamente enraizadas nas novas democracias permeiam tanto a política como a sociedade. As práticas autoritárias persistem ao nível da macropolítica, por exemplo em instituições do Estado como a polícia. […] As instituições do estado encarregadas de garantir a lei e a ordem são em larga escala disfuncionais. No entanto, apesar desse avanço, os pobres continuam a ser as principais vítimas da violência, do crime e das violações dos direitos humanos. […] (PINHEIRO, 1997, p. 47). Ainda sobre estas duas questões vitais – a construção da democracia e o real envolvimento dos cidadãos nesse processo – numa análise mais ampla que se estende à América Latina, Costa (2004) realça que, […] Contrariando as expectativas, as transições políticas na América Latina na década de 1980 não promoveram o estabelecimento de regimes efetivamente democráticos, isto é, de acordo com o Estado de Direito. De um modo geral, as relações entre algumas instituições estatais e a sociedade, em especial os segmentos mais pobres, continuam sendo marcadas pelo exercício arbitrário e muitas vezes ilegal do poder. Embora vários países tenham estabelecido em suas constituições uma série de direitos individuais, políticos e sociais, tem-se assistido na região a eloqüentes violações desses direitos. Tal situação levou alguns estudiosos a usar a expressão “democracia sem cidadania” para descrever alguns dos regimes vigentes na região. […] (COSTA, 2004, p. 65). Os textos citados deixam compreender a complexidade do processo de construção da democracia que, longe de ser obra acabada, requer um empenhamento 92 e um envolvimento permanente dos cidadãos que deverão ser, afinal, os destinatários de todas as políticas públicas desenvolvidas. Essa complexidade reflete-se de forma amplificada quando se trata de instituições como a polícia, órgão especializado do Estado para o uso legítimo da violência. Na linha do pensamento de Pinheiro (1997), a Constituição cabo-verdiana de 1992 consagra um conjunto de novos direitos, contidos sobretudo no Capítulo I do Título II, de entre os quais se pode destacar o direito à vida e à integridade física e moral, à liberdade e à segurança pessoal, à inviolabilidade do domicílio, à expressão e informação, à liberdade de associação, de reunião e de manifestação, etc. Sabendo que não basta consagrar direitos para que eles sejam respeitados, em Cabo Verde, assim como no Brasil e em outras novas democracias latino-americanas, assegurar a liberdade e a justiça para todos, continua a ser um desafio a vencer. Assim se compreende o conjunto de reformas que os governos tentam implementar para fazer face a problemas complexos como o combate à criminalidade, à impunidade e a outros males a eles associados. No dizer de Costa (2004) e referindo-se à América Latina, “… a legitimidade desses regimes está seriamente comprometida por não terem êxito em fazer cumprir suas próprias leis e os acordos internacionais …”. Outra consequência não menos gravosa associada à incapacidade de cumprir e fazer cumprir a lei é a crescente dificuldade em mobilizar apoio popular para as reformas pretendidas. Será que da transição democrática surgiu em Cabo Verde uma nova polícia? Ou terá havido o que poderíamos chamar de solução de continuidade, com mudanças que incidiram mais sobre o quadro legal e que reduzido impacto tiveram sobre a ação quotidiana, mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, o que se reflete num dado modelo de policiamento e num dado relacionamento com a sociedade? Merece aqui lembrar Costa (2004) quando diz que, […] A (re)introdução de eleições livres e a conseqüente ampliação do processo político não preenchem por si mesmas os requisitos da democracia: é imperativo que esses fatores sejam complementados por mecanismos de controle e responsabilização da ação do Estado. Aqui reside a especificidade da atividade policial num regime democrático: a necessidade de controlar o uso da força. Essa peculiaridade tem suscitado o debate sobre a necessidade de desmilitarizar as polícias. Embora concordemos com a tese de que a separação clara entre polícia 93 e exército é requisito fundamental para o emprego democrático das forças policiais, cremos que é necessário aprofundar o debate, pois desmilitarizar as polícias significa muito mais que mudanças nos uniformes, insígnias e hierarquias. […] (COSTA, 2004, p. 68-69). Nesta linha, Weber (1946) considera a burocracia como um sistema organizacional que estabelece relações (hierárquicas) entre uma autoridade, constituída legítima e legalmente, e seus subordinados e reconhece essa mesma burocracia como grande elemento estruturador da sociedade (sob o princípio da racionalidade moderna). Não obstante, alerta que a democracia deve opor-se à burocracia como tendência para uma casta de mandarins, distanciada das pessoas comuns pelo treinamento especializado, certificados de exames e ocupação de cargos. Numa referência à legitimidade do uso da força e ao estabelecimento de limites legais ao seu uso Weber (1946) destaca que, […] todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na extensão com que a empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações politicas. Essas diferenças têm um papel específico na determinação da forma e destino das comunidades políticas. […] (WEBER, 1946, p. 187). para mais adiante considerar que, […] A lei existe quando há uma probabilidade de que a ordem seja mantida por um quadro específico de homens que usarão a força física ou psíquica com a intenção de obter conformidade com a ordem, ou de impor sanções pela sua violação. A estrutura de toda ordem jurídica influi diretamente na distribuição do poder, econômico ou qualquer outro, dentro de sua respetiva comunidade. Isso é válido para todas as ordens jurídicas e não apenas para a do estado. […] (WEBER, 1946, p. 211). Discutindo a questão do estabelecimento de limites ou restrições no exercício do poder, o que inclui o uso legítimo da força, Costa (2004), ao caracterizar um regime político, defende que, […] Um regime político pressupõe um conjunto de práticas e instituições que moldam a disputa pelo poder e limitam seu exercício. O regime democrático é aquele que proporciona as seguintes condições: expressiva competição entre indivíduos e grupos pela ocupação dos postos de direção política; participação na escolha dos representantes e programas políticos, o que significa que nenhum 94 grupo pode ser excluído das eleições e do debate político; e restrições impostas pela sociedade ao exercício do poder pelas autoridades. […]. (COSTA, 2004, p. 68). Em Cabo Verde, a Constituição da República consagra, no Capítulo II do Título II, sob a epígrafe, “… Direitos, liberdades e garantias de participação política e de exercício de cidadania …” vários artigos (55º, 56º e 57º) que asseguram as duas primeiras condições referidas por Arthur Costa (2004). Assim, o artigo 55º estabelece no seu nº 1 que todos os cidadãos “… têm o direito de participar na vida política directamente e através de representantes livremente eleitos …”, o 56º assegura a todos os cidadãos “… o direito de aceder, em condições de igualdade e liberdade, às funções públicas e aos cargos electivos, nos termos estabelecidos por lei …” e o artigo 57º garante a todos os cidadãos “… o direito de constituir partidos políticos e de neles participar, concorrendo democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político, nos termos da Constituição e da lei...” No que tange à nossa discussão sobre o estabelecimento de limites ao uso legítimo da força, estabelece o artigo 244º, nº 2 da nossa Lei Magna que, as medidas de polícia obedecem aos princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, espelhando bem a imposição de limites ao exercício do poder como refere Arthur Costa (2004). É, exatamente, nesta matéria que encontramos fragilidades no sistema democrático construído em Cabo Verde. O controlo externo das atividades da polícia, é ainda incipiente. Não obstante prever a nossa Constituição, desde 1992, a figura do Provedor de Justiça, as forças políticas nacionais, designadamente os com assento parlamentar, não conseguiram ainda o consenso necessário à nomeação do seu titular. No plano infraconstitucional merecem destaque, entre outras, as medidas legislativas relativas à despartidarização e à desmilitarização da polícia, à submissão dos seus agentes ao foro comum, pondo termo ao regime do foro militar vigente, à definição de uma nova nomenclatura, esta mais civilista, à introdução de novas patentes, novo uniforme e novas insígnias. Porém, mudanças na forma de conceber e materializar o trabalho policial, na formação dos seus agentes, na montagem da sua estratégia de intervenção, no seu dispositivo de forças e em outros aspetos operacionais ficaram muito aquém das expectativas. 95 3.2 - SURGIMENTO E CONTROLO DOS SISTEMAS POLICIAIS O surgimento dos sistemas policiais, tal como os conhecemos hoje, tem sido objeto de uma longa e antiga discussão. Na impossibilidade de se apresentar uma resposta categórica sobre o que terá impulsionado os poderes públicos a criar instituições policiais, tem-se avançado um conjunto de explicações. Estas explicações convergem no que diz respeito à não identificação de um fator isolado como origem das instituições policiais e no que se refere ao entendimento de que o surgimento e o aperfeiçoamento de instituições policiais foram propiciados por mudanças sociais ocorridas. David Bayley, assumindo uma posição mais radical e rejeitando explicações como a criminalidade, a industrialização, a urbanização ou o crescimento da população como fatores diretos, considerou que o aparecimento das instituições policiais contemporâneas estaria relacionado com transformações ocorridas na organização dos poderes políticos e nas resistências populares a uma maior capacidade governativa81 . O recurso ao crime enquanto explicação natural para o surgimento das instituições policiais parece fazer convergir tanto os sociólogos como historiadores, sobretudo se se tiver em conta que, a partir do século XIX, a criminalidade é encarada como problema social central. O aparecimento de instituições policiais resulta da resposta do Estado no sentido de prevenir e punir as ações criminosas. Este é “… o principal fio condutor nos estudos para justificar a existência de polícias (EMSLEY, 1996; BAYLEY, 2006 [1985]; CAIN, 1973) …”82 , a ponto de os discursos e representações sobre a polícia e o policiamento tenderam ao longo do tempo a classificar a investigação criminal como o verdadeiro trabalho policial, ofuscando um conjunto de outras atribuições não menos importantes desenvolvidas pelas polícias. Realça Bendix que a institucionalização de modernas organizações policiais aconteceu no âmbito de um movimento mais amplo de emergência de um Esta- 81. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema “A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”. 82. Idem. 96 do centralizado e que a organização da administração reflete o grau de entendimento resultante das negociações empreendidas entre os poderes central e local, enquanto Albert Reiss afirma que “… No Séc. XX a organização policial evoluiu em resposta às mudanças verificadas na tecnologia, na organização social e no controlo político em todos os níveis da sociedade...” (REISS, 2003) . Por sua vez, Paulo Sérgio Pinheiro (2008), escreve que, […] Não há um modelo único de estrutura policial. Analisando os processos de criação das atuais instituições policiais francesas, inglesas, alemãs e italianas, David Bayley constata que elas surgiram junto com o processo de estabelecimento dos Estados modernos. Constata também que as mudanças sociais e econômicas constituíram um importante vetor para a criação dos novos sistemas policiais […]83 , E conclui, citando Bayley, afirmando que, […] as profundas diferenças entre as estruturas policiais analisadas foram conseqüências da forma como se deu a distribuição de poder nesses Estados. Ou seja, a variedade nessas estruturas policiais é muito mais função da estrutura política existente do que da necessidade de controle da criminalidade […]84 . No que respeita ao controlo sobre a Polícia, ele foi sofrendo modificações, assumindo em diversas ocasiões uma partilha de poder entre os dois níveis de administração. Ao longo dos últimos dois séculos, no entanto, o governo central tomou progressivamente o comando total dos serviços policiais. Esta situação verificou-se em primeiro lugar nas cidades maiores, sobretudo as capitais políticas. A ideia do poder político central controlar a direção da polícia consolidou-se ao longo do século XIX. A disponibilização por parte deste de maiores recursos financeiros e, a partir do início do século XX, de um saber técnico que emergia com a profissionalização, ajudou o poder central a sobrepor-se ao municipal. Para além disso, a centralização era vista como um meio eficaz de eliminação das influências políticas e de corrupção em geral no trabalho policial.85 Mas, convém notar que para lá da dependência ou independência da polícia 83. Melo, vol. 8, nº 48, fev./março 2008. 84. Idem. 85. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema “A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”. 97 em relação a estes dois níveis de poder, informalmente, apesar da centralização generalizada, as instituições e os políticos locais continuaram a exercer influência sobre as políticas relativas à polícia e, consequentemente, sobre o estilo de policiamento praticado. No caso inglês, continuando com Gonçalves,86 que traz a propósito autores como Emsley, Snyder, Miller e outros, a polícia, controlada pelo Estado central através do Home Office, era totalmente independente das instituições municipais, que apesar de contribuírem com uma parte do financiamento não tinham poder para influir nos destinos da organização. Ainda, segundo o mesmo trabalho académico, […] o caso alemão é paradigmático da dicotomia central/local e de como a estruturação do modelo policial se fez através de processos de conflito e negociação, (Reinke, 1991; Spencer, 1992; Ludtke, 1989). Um pouco à imagem da confusa história nacional alemã, a relação entre instituições policiais civis estatais, militares estatais e civis municipais processou-se em constantes avanços e recuos até uma certa estabilização no tipo civil estatal, no início do século XX. Outro facto característico da polícia alemã é a forte militarização mesmo quando se trata de instituições formalmente civis, “the policeman’s background was military, his overall appearance and habit was military, hierarchical structures within the police were military, and finally, the policeman’s attitudes and behavior toward the public were military” (REINKE, 1991, p. 55- 56) [...]87 Segundo a mesma fonte, também a França apresenta particularidades no que tange o controlo da polícia. O modelo conhecido em Paris e outras capitais era diferente do encontrado no resto do país. A Prefecture de Police funcionava na dependência do Lieutenant Generale, e em 1829 foram criados na Prefrecture os Sergents de Ville, que, à semelhança de Londres, constituíam uma patrulha policial civil. Realça que nas cidades com mais de 5.000 habitantes existiam os Commissaire de Police que ora eram nomeados pelo governo, ora eleitos localmente. Este posto funcionava como etapa de transição dos seus titulares para polícias profissionais. 86. Idem. 87. Idem. 98 […] A força comandada por estes homens dependia do município. Apesar de, à semelhança da restante Europa, a evolução ter ido no sentido da centralização, os municípios mantiveram até bem dentro do século XX uma influência considerável sobre os serviços policiais. O resto do País era policiado pela Gendarmerie. Esta força militar, que descendia da Maréchaussée criada no século XVII, tinha como objectivo manter as estradas seguras, protegendo os viajantes e o correio. Os guardas, continuando responsáveis pelas estradas, alargaram competências no sentido de um policiamento mais geral para todo o espaço rural […]88 Por sua vez, o modelo policial americano, edificado no poder dos municípios, é caracterizado por Albert Reiss no seu trabalho sobre a organização da polícia nos Estados Unidos da América. Algo diferente das suas congéneres europeias, as primeiras polícias urbanas americanas inspiravam-se, de início, nas suas congéneres britânicas. Caracterizadas por um alto nível de politização, a polícia era consensualmente aceite como instrumento da força política que dominava a administração municipal. A questão de controlo central ou local coloca-se de forma distinta e é reflexo do modelo político americano onde a “… história da polícia urbana no começo do século XX … tão intimamente ligada à história política das cidades … dificulta a determinação das mudanças peculiares à organização policial …” e se traduz num “… grande número de organizações policiais politicamente autónomas, com jurisdições sobrepostas …”, no dizer de Reiss (2003). A corrupção era endémica na organização política e na “máquina política” e escândalos de corrupção municipal e policial abalaram frequentemente os departamentos policiais onde vigorava o sistema de “apadrinhamento” em que os chefes das polícias eram designados pelos responsáveis políticos locais, estando, por isso, sujeitos aos seus pedidos de lealdade e desempenho. A grande fragmentação das organizações policiais é outro elemento destacado por Reiss que esclarece que, […] nos Estados Unidos, a responsabilidade do policiamento é dividida entre os governos federal, estadual e local, mas a maior parte da proteção policial cabe aos governos locais. Em 1988, 77% dos 784.371 empregados na protecção policial eram dos governos locais, 15% eram dos estaduais e 8% do federal. As 88. Idem. 99 municipalidades respondiam por mais de ¾ desse policiamento e os condados por cerca de 24% […] (REISS, 2003, p. 76). Se os governos locais dispõem de tão forte representação a nível do policiamento público, fácil é compreender a inevitabilidade da fragmentação do policiamento daí resultante. Reiss (2003) explica, ainda, que os motivos da fragmentação podem ser encontrados no “… sistema de aplicação da lei que é fragmentado …”, já que o sistema federativo deixou o policiamento a cargo dos Estados que tinham larga tradição de ligação às autoridades locais e aos seus desejos de um policiamento local, com características locais. Na medida em que se criava mais um condado (county), distrito (township) ou municipalidade (municipality), estes indicavam/ empregavam alguém para se encarregar do policiamento. Os governos locais espalharam-se à volta das cidades principais e a expansão destas e de suas jurisdições policiais estava sufocada por um anel de comunidades políticas suburbanas, tendo, cada uma delas, criado o seu próprio departamento de polícia enquanto crescia. Exemplo paradigmático é o de New Jersey que, não obstante ser um Estado altamente urbanizado, tinha em 1988, 486 departamentos de polícia. Dado à preponderância dos pequenos departamentos de polícia, surgem, episodicamente, pressões para juntá-los com outros maiores, em busca de maior coordenação entre eles e em prol do desenvolvimento de um sistema mais integrado de policiamento, no interesse da eficiência, da economia administrativa e da tomada de decisões profissionais. Ainda, conforme Reiss (2003), ao contrário do que ocorreu na Inglaterra, nos Estados Unidos, “… reunir a polícia local num só sistema regional ou estadual de policiamento constitui uma maldição para os eleitores…” na medida em que “… a descentralização do poder, da autoridade e da tomada de decisões nas organizações, está de acordo com os ideais de governo democrático e continua sendo a conceção dominante do policiamento…”, por arreigadas tradições locais de governo e a crença de que o controlo da polícia é ingrediente essencial do governo local. Tenha-se, finalmente, presente, que o policiamento estadual nos Estados Unidos não surgiu antes do começo do século XX. Estudos mais recentes comprovam que a questão do controlo das polícias pelo Estado central ou por autoridades constituídas de nível local passou por processos mais negociais que conflituosos, com avanços e recuos, desembocando 100 em soluções de compromisso e divisão de poderes. A construção do Estado moderno remeteu a polícia para um modelo institucional funcionalmente mais circunscrito. O conceito de Estado que aqui se emprega alinha com o pensamento de Paulo Sérgio Pinheiro que afirma, […] Nós entendemos por Estado um “empreendimento político de caráter institucional” desde que e conquanto sua direção administrativa reivindique com sucesso a aplicação do monopólio da coerção física legítima. O Estado portanto será uma comunidade humana que detém, com sucesso, o monopólio do uso legítimo da força física sobre um território dado. A violência da qual fala Weber não é cega nem ilegítima mas torna-se legítima precisamente porque ela é organizada (podendo ser chamada de coerção, como o faz Kelsen). […]89 O amplo mandato policial detido pelo Estado contemporâneo foi progressivamente sendo distribuído por um número variável de agências policiais especializadas em certas funções. Na linha do conceito de “burocratização” ensinada por Weber, entramos num processo de “profissionalização” com reflexos marcantes no campo organizacional assente na apropriação de tecnologias que, como escreve Reiss, produziram o seu maior impacto na “solidificação da centralização burocrática do comando e do controle”, mas produzindo, em contrapartida, como consequência, o afastamento da polícia das comunidades. Dúvidas não restam, no entanto, que a intervenção do Estado central a nível local utilizou a polícia como os dos seus instrumentos privilegiados. 3.3 - POLÍCIA E SEGURANÇA PÚBLICA A polícia é, no mudo contemporâneo, um instrumento privilegiado criado pelo Estado para operacionalizar o mandato do uso legítimo da força, tarefa assumida no quadro do processo de transferência do poder de agir em nome da coletividade, para uma entidade representativa e que se assume como promotora do bem comum. Não obstante o muito que se tem escrito sobre o sentido epistemológico da palavra polícia, designadamente, nas sociedades medievais e, sem que se perca 89. Paulo Sérgio Pinheiro in “ O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf 101 de vista o papel e a evolução organizativa e conceitual que a instituição “polícia” conheceu até os nossos dias e, sem que se esqueça que as instituições policiais modernas nascem do roteiro das precedentes, interessa focalizar o presente estudo sobre modelos mais recentes, e lembrar, uma vez mais, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Proclamada no fulgor da Revolução Francesa, realça a necessidade de uma força pública instituída em benefício de todos para a garantia dos direitos do homem e do cidadão e cuja utilização em proveito daqueles a quem é confiada é interdita. É sobre esta força pública, fruto de um conceito mais recente e moderno do que aquele que se conhece das sociedades medievais que se quer incidir. Uma força, inicialmente, vocacionada para assegurar a harmonia entre os pactuantes, garantir a proteção integral da vida e o bem-estar geral de todos, instituída em benefício de todos, cuja apropriação individual ou grupal estava interdita e desenhada para ser mediadora social e que, gradualmente, deixa a roupagem original para se erigir, nos Estados autoritários, numa máquina repressiva brutal, principal violadora dos direitos e garantias que devia salvaguardar, distante e temida pelas populações e instrumentalizada por uma elite dominante. Tal como definido por Weber, o Estado é aqui referido enquanto comunidade humana que detém, com sucesso, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território e cuja natureza se desdobra nos elementos essenciais que o constituem - autoridade e legitimidade. Autoridade que deve ser aceite pelo conjunto das pessoas, por toda a população e ao mesmo tempo reconhecida como legítima para que os dominados obedeçam. São estas, no entendimento de Weber, as condições básicas para a existência de um Estado. Sem qualquer referência aos elementos essenciais que dão corpo ao Estado, referidos por Weber, Rousseau na sua teoria do “Pacto Social”, considera a necessidade da congregação da força e da liberdade de cada homem, enquanto instrumentos primeiros de sua conservação. Reconhecendo a dificuldade que tal congregação encerra, realça que essa mesma dificuldade consiste em, […] Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como 102 anteriormente. […].90 Ciente da necessidade de transformação dessa “força em direito e a obediência em dever”, já que o mais forte nunca o é suficientemente para sempre, Rousseau resume o “Pacto Social” do seguinte modo: […] Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo […].91 Prosseguindo com este raciocínio, vale bem trazer a esta discussão Sílvia Ramos92 que escreve que, […] os diálogos sobre violência, segurança pública e polícia são nada menos do que nosso reencontro tardio com a opção pelo pacto civilizatório, que troca o mundo de todos contra todos, pelo mundo onde delegamos ao Estado, e mais especificamente às forças policiais, o direito ao uso legítimo da força em nome de todos. Ou seja, em nome da Lei que regula as relações no mundo dos humanos e o difere do mundo dos animais, onde vigora a lei do mais forte, do mais violento, do mais ameaçador. […] (RAMOS, 2009, p. 56). Segundo Costa (2004), (mas também Weber) o traço definidor das instituições policiais é a possibilidade do uso legítimo da força. Entretanto, essa possibilidade não confere às polícias total liberdade para decidir quando cabe ou não o recurso à violência — o que adquire particular importância num regime democrático, por se tratar exatamente dos limites ao exercício do poder. Apesar de amplamente debatida, uma destrinça clara entre o uso legítimo da força e violência policial não é consensual, já que a noção de violência varia de uma sociedade para outra. Aquilo que para uma dada sociedade constitui violência, não tem que ser visto da mesma forma por uma outra. Segundo Michaud (1989), Nieburg define violência como “uma ação direta ou indireta, destinada a limitar, ferir ou destruir as pessoas ou os bens”. Por sua vez, Graham e Gurr escrevem que, 90. file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (9 of 72) [4/1/2002 14:09:38] 91. Idem 92. Cientista social e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, RJ. 103 […] a violência se define, no sentido estrito, como um comportamento que visa causar ferimentos às pessoas ou prejuízos aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos considerar tais atos de violência como bons, maus, ou nem um nem outro, segundo quem começa contra quem. […] (MICHAUD, 1989, p. 10). O próprio Michaud (1989), procurando encontrar uma definição que dê conta tanto dos estados quanto dos atos de violência, escreve que, […] há violência quando numa situação de interação um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos em uma ou varias pessoas em grau variável, seja na sua integridade física seja na sua integridade moral, em suas posses ou em suas representações simbólicas ou culturais. […]. (MICHAUD, 1989, p.p. 10 e 11). No concernente à violência policial, para Costa (2004), pelo menos três interpretações dominantes são identificadas, associadas às perspetivas jurídica, sociológica e profissional. Assim como cada uma dessas interpretações define de forma diferente a violência policial, também são distintos os mecanismos de controlo da atividade policial. Enquanto a interpretação jurídica destaca os papéis dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, enfatizando a atuação dos tribunais e do ministério público na punição dos atos ilegais dos agentes policiais, a interpretação sociológica realça que tal controle deve ser feito por órgãos externos através dos quais a sociedade possa estabelecer os limites legítimos do uso da força policial e, por último, a interpretação profissional coloca o ponto no treinamento e na organização das forças policiais. Apesar das diversidades dessas três interpretações, nem as suas definições de violência policial nem os mecanismos de controlo por elas prescritos são mutuamente excludentes. Paulo Sérgio Pinheiro para além de alertar que a violência de que fala Weber não é cega nem ilegítima, mas que ela se torna legítima precisamente porque ela é organizada (podendo ser chamada de coerção, como o faz Kelsen), esclarece ainda que da análise da coerção exercida pelo Estado, pode-se constatar que ela tem a seguinte particularidade: […] como o Estado não é um ser real, não pode executar nenhum ato de coerção, seja física ou de outra espécie porque ele não pode ele mesmo agir de 104 alguma maneira. A afirmação de que o Estado age pela coerção é somente uma forma de falar que corresponde na realidade a muitas situações diferentes. Primeiramente ela completa e prolonga a ficção pela qual alguns atos de coerção física cometidos por homens/mulheres são considerados como desempenhados pelo Estado. É essa ficção que o direito chama de “imputação” […] O Estado exerce assim a coerção por intermédio de homens, que são considerados como órgãos do Estado. […]93 Ele não deixa, no entanto, de referir os atos de coerção cometidos por indivíduos que não têm a qualidade de órgãos do Estado. Esses atos, que não serão imputados ao Estado, mas aos próprios indivíduos, são entretanto autorizados ou mesmo prescritos pelo Estado. É o caso da legítima defesa em que “… os indivíduos estão autorizados a desempenhar atos de violência física, em certas situações, em certas condições e numa certa medida determinados pelo direito …”.94 Na mesma linha, escreve Monjardet que, “… Para entender-se a polícia, a importância a ser conferida à força física foi contestada por dois motivos: a polícia não tinha o monopólio da força, nem esta era, além disso, seu meio de ação mais significativo …” e traz para a discussão as objeções de Bourdieu a tal afirmação, fazendo notar que, […] em lugar algum, a polícia detém o monopólio, no sentido estrito do termo, do uso regrado da coação física. São detentores dela igualmente os guardas de prisão […] os funcionários de certos serviços hospitalares, a autoridade militar em relação aos seus membros […] a autoridade parental é acompanhada de um direito de coação sobre os menores […] enfim, tanto no direito inglês como no francês e muitos outros, todo o cidadão dispõe não apenas do direito da legítima defesa, mas ainda deve deter o autor de um crime flagrante (artº 73º do CPP)95 […] Não existe, portanto, monopólio policial da violência legítima […] (MONJARDET, 2003, p.p. 25-26). O mesmo autor explica ainda que o que distingue os exemplos anteriores da força pública é o “alvo”. Enquanto nos exemplos o “… alvo do recurso legal à força é exclusivo e precisamente delimitado – o pai apenas sobre os seus filhos, o 93. Paulo Sérgio Pinheiro in “ O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf 94. Idem. 95. Também o Artigo 265º, nº1 do Código de Processo Penal de Cabo Verde. 105 guarda de prisão apenas sobre os detentos, etc. …”, o “… alvo policial, ao contrário é indeterminado, ou seja, potencialmente infinito. …” Daí que, […] O monopólio não é necessário se a polícia detém força suficiente para regular o emprego que dela fazem os outros detentores. […] a força pública é calibrada de tal maneira que possa vencer qualquer outra força “privada”. E se caso falhar nisso, todas as legislações, sem exceção, preveem o recurso às forças armadas para – nesse caso – “ajudar” a polícia e, na prática, elas mesmas se tornarem, momentaneamente, polícia. De tal modo que toda manifestação de força policial é sempre suscetível de escalada, até o ponto em que seja atingido o quantum de força requerido, seja qual for. […]. (MONJARDET, 2003, p. 26). E conclui, desmistificando o conceito muito badalado, mas irrefletido, de que o bobby inglês anda desarmado, afirmando que ele, […] se faz obedecer certamente pelas virtudes de sua autoridade pessoal, mas igualmente porque o público sabe, da maneira mais segura, que ele é parte integrante de uma organização que, por sua vez, é fortemente armada. O que significa que a ameaça da força desempenha o mesmo papel que a força em si. […]. (MONJARDET, 2003, p. 27). e assente na asserção de que “… a violência, como poder, funciona melhor como ameaça …”, já que ela expõe “… os limites da polícia, a dependência do individual em relação aos outros…”, definindo a polícia, como “… a instituição encarregada de possuir e mobilizar os recursos de força decisivos, com o objetivo de garantir ao poder o domínio (ou a regulação) do emprego da força nas relações sociais …”. (MONJARDET, 2003, p. 27) Do mesmo modo, ressalta Pinheiro que existem numerosos atos do Estado que não são atos de coerção física, mas que prescrevem ou autorizam o emprego da força, como, por exemplo, uma ordem dada à polícia, para explicar que, […] Monopólio significa não o exercício exclusivo da violência mas o direito exclusivo de prescrever e em conseqüência proibir ou permitir a violência (a função ideal do monopólio é a ausência de toda violência efetiva). Monopólio é portanto o direito exclusivo de definir e de distinguir por meio de prescrições e de autorizações a coerção legítima e a coerção ilegítima. A afirmativa de que o Estado exerce a coerção física é portanto uma simples metáfora segundo a qual 106 os órgãos do Estado têm o poder de prescrever ou de autorizar atos de coerção. É esse poder de prescrever que se chama em definitivo de “poder de coerção”, ainda que ele não seja em si mesmo um ato de coerção física. […]96 Prosseguindo com Pinheiro, ele considera o equilíbrio entre as duas funções do Estado o ponto crucial desse monopólio, a saber: a função para os que controlam o Estado e para os membros da sociedade regulada pelo Estado, ou seja, o grau de pacificação interna. Evidencia-se, deste modo, a dupla face da função do Estado que, por um lado, enquanto detentor do monopólio da violência, deve impor limitações aos seus poderes e ações e, por outro lado, como guardião da ordem pública, deve ser o protetor e o garante de todas as liberdades.97 O grande dilema que fica por resolver é que a simples fixação de limites aos poderes e ações do Estado e o estabelecimento de um quadro legal que garanta todas as liberdades aos cidadãos, não bastam por si sós. O sistema social subjacente não muda pela mera consagração, ainda que constitucional, de direitos e a américa latina apresenta casos paradigmáticos nesse sentido. A esse propósito, tenha-se em conta, ainda com Pinheiro que, […] as práticas autoritárias dos governos não foram mudadas pela mudança política ou por eleições. Por essa razão há um dramático gap entre as cartas de direitos e o mundo real dos procedimentos jurídicos e o funcionamento da lei, expresso pelas práticas incrustadas nas instituições judiciais (como a polícia, os tribunais, o ministério público) refletindo claramente as cruéis realidades das sociedades latino-americanas e brasileira. Os sistemas jurídicos são ao mesmo tempo um instrumento e um reflexo da sociedade, e portanto da desigualdade social. A análise dos processos de consolidação democrática, constatada a discrepância entre a letra da lei e as práticas no sistema jurídico, à luz dessas terríveis realidades, deve abandonar a velha mistificação que pretende que o direito se situa fora e acima da sociedade e das realidades sociais, que ele teria sua essência própria, sua lógica autônoma, sua existência independente […]98 Assim, o Estado não pode pretender-se democrático se as práticas do governo e de seus agentes não respeitarem os requisitos da democracia. O Estado não 96. Paulo Sérgio Pinheiro in “O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf 97. Idem. 98. Idem. 107 pode pretender ser democrático se não consegue implementar o acesso efetivo da população aos direitos fundamentais. Retomando a organização policial propriamente dita e a sua ação quotidiana em prol da segurança pública, é sabido que a moderna organização policial burocrática nasceu na Inglaterra, no séc. XIX, sob o fundamento e propósito primeiros de defender a elite das cidades, das ameaças do crescimento da criminalidade e de distúrbios e desordem urbana, que as “classes perigosas” representavam para a sociedade. Retomando Reiss (2003), a evolução do processo de burocratização da polícia em resposta às mudanças verificadas, designadamente, na tecnologia e a nível da própria sociedade, produziu impacto na solidificação e na centralização burocrática do comando e do controle e completou a separação da polícia das comunidades em termos organizacionais. Compreende-se, assim, que Bayley tenha referenciado uma manchete da revista Newsweek de janeiro de 1985, que dizia, […] “Existe algo de novo nas ruas de Brooklin. A polícia voltou a fazer patrulha a pé” – a nova popularidade da patrulha a pé significa um movimento maior de afastamento do controlo reativo do crime para aproximar-se das estratégias positivas de prevenção do crime. […] (BAYLEY, 2001, p.p. 223). Considerando a necessidade da conjugação de forças internas e externas no processo de mudança das estruturas policiais nos Estados Unidos, Goldstein (2003) enfatiza o papel das lideranças, sem deixar de se referir ao papel igualmente importante desempenhado pelos sindicatos de polícia, pela mídia, pelos municípios e pelo próprio governo – estadual e federal. Realça que as mudanças mais profundas e as melhor sucedidas contaram com uma forte participação e envolvimento das chefias e conclui que o processo de mudança não constitui simplesmente uma estratégia a seguir por um administrador no seio da sua organização, mas, antes, requer a ação de várias forças importantes da sociedade com interesse vital na ação da polícia. Analisando o caso brasileiro, Santos (2004), considera que o processo de redemocratização no Brasil, iniciado na década de 80 vem provocando, em especial nas corporações policiais, transformações que decorrem do questionamento da sociedade sobre a real função da polícia num Estado de Direito Democrático. No início dos anos 90, as corporações policiais cujas práticas foram enrijecidas 108 durante o período ditatorial iniciaram um processo de substituição do modelo histórico do sistema policial, dado às transformações ocorridas na sociedade brasileira, com destaque para o crescimento de práticas democráticas e o fortalecimento da cidadania. O descompasso entre as mudanças sociais e politicas e a pratica policial produz uma crise nas policias brasileiras – não uma crise de dentro para fora das corporações, mas, sim o inverso, da relação sociedade-Estado. Em consequência da falta de sintonia entre o avanço social e a prática policial, a crise é ampliada pela ausência de um processo dinâmico e otimizado, capaz de fazer funcionar um sistema de segurança pública para a realidade brasileira. Assim, considera Santos (2004) que é preciso (re)construir os valores democráticos na sociedade para a convivência em um Estado Democrático de Direito. E as políticas públicas de segurança devem estar fundamentadas nesses valores, para a efetiva consolidação da democracia no país. Evidentemente, a polícia apresenta-se, nesse contexto, como instituição importante e fundamental para a consolidação da democracia. A persistência de violações de direitos humanos no âmbito das instituições responsáveis pelo controle da violência e distribuição da justiça tem por denominador comum a impunidade. Neste contexto, Silva Melo (2008) considera que a instituição policial assume um importante papel, […] não só pelo seu papel constitucional de manutenção da ordem pública, mas também por ser um agente produtor de violência. Os policiais, enquanto atores que desempenham a função profissional de zelar pela segurança pública, são fundamentais tanto na produção da letalidade - quando confrontam a criminalidade, assim como na reversão desses índices negativos e na constituição de uma institucionalidade fundada nos direitos humanos. […] (SILVA MELO, 2008, p. 132). Retomando a ideia da conjugação de forças internas e externas no processo de mudança nas estruturas da polícia defendida por Goldstein (2003) e a necessidade de sintonia entre o avanço social e a prática social referenciada por Santos (2004), a democratização ocorrida em Cabo Verde, enquanto manifestação de avanço social, influenciou, no sentido positivo, senão a essência, pelo menos a roupagem exterior do que poderia ser um novo conceito de polícia. O que acaba de ser dito pode ser verificado, por exemplo, na introdução, com a democratização do país, do lema da Polícia de Ordem Pública “Ao Serviço da Comunidade”. 109 Sem se pretender aqui analisar, se esse lema se traduziu em prática consolidada, a verdade é que ele contém uma mensagem forte que marca um ponto de viragem na conceção do papel que à polícia está (deve estar) reservada numa sociedade democrática, ou seja, o papel de uma instituição que tem por objetivo assegurar o livre exercício dos direitos dos cidadãos, direitos esses constitucionalmente protegidos99 . Mas, o livre exercício dos direitos pressupõe, por um lado, a liberdade para o efeito e, por outro, a necessária segurança para que a liberdade seja efetiva. Para Bauman (2003), a segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar. Há boas razões para conceber o curso da história como pendular, mesmo que em relação a certos aspetos pudesse ser retratado como linear: a liberdade e a segurança, ambas igualmente urgentes e indispensáveis, são difíceis de conciliar sem atrito — e atrito considerável na maior parte do tempo. Estas duas qualidades são, ao mesmo tempo, complementares e incompatíveis; a chance de que entrem em conflito sempre foi e sempre será tão grande quanto a necessidade de sua conciliação. Embora muitas formas de união humana tenham sido tentadas no curso da história, nenhuma logrou encontrar solução perfeita para uma tarefa do tipo da “quadratura do círculo”. A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem liberdade equivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança, acaba por ser uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância torna a vida em comum um conflito sem fim, pois a segurança sacrificada em nome da liber- 99. O artigo 30º da CR, sob a epígrafe Direito à liberdade e segurança pessoal estabelece que todos os cidadãos têm direito à liberdade e segurança pessoal e que ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de atos puníveis por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança prevista na lei. 110 dade tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros. (BAUMAN, 2003, p. 24). Para Soraya LUNARDI100 , o objetivo do Estado não é só garantir a segurança ou a liberdade, mas manter o complexo e delicado equilíbrio de ambas, justificando sempre sua atuação e as restrições impostas às liberdades. Esta autora considera que independentemente desse problema de equilíbrio entre a segurança e os demais direitos, […] devemos destacar a unilateralidade do conceito de segurança, que, no senso comum e na mídia, relaciona-se quase exclusivamente com a violência urbana e as ameaças terroristas. Esse conceito é discriminatório, selecionando como destinatários-beneficiários da segurança grupos sociais privilegiados, tendo seu patrimônio e incolumidade física protegidas pelo Estado contra riscos de agressão externa ou em razão da criminalidade violenta. Tal conceito de segurança não abrange os grupos socialmente inferiorizados, que não se preocupam de maneira prioritária com a segurança patrimonial e sim com aspectos materiais de satisfação de suas necessidades humanas […] (LUNARDI, 2009, p. 263). Prossegue a mesma autora que para evitar essa “unilateralidade”, é necessário que o conceito seja redimensionado, […] pensando na segurança não somente em termos de confronto entre defensores da ordem e agressores, mas também em termos de políticas públicas de garantia dos direitos sociais. O desempregado se sente tanto inseguro quanto o rico empresário que teme os “bandidos”. Mas quando os políticos e jornalistas lamentam a insegurança e clamam por políticas “tolerância zero” contra os que ameaçam, não se referem à insegurança dos desempregados nem pedem “tolerância zero” para os empresários que os demitiram. Nessa perspectiva, a segurança relaciona-se com o bem estar, dando base a uma série de exigências relativas às principais causas de insegurança: desemprego, acidentes, deterioração do meio ambiente, falta de alimentação adequada e, em geral, não satisfação de necessidades humanas, materiais e imateriais. […][…] (LUNARDI, 2009, p. 264). Referindo-se à “dependência conceitual da segurança”, realça ainda a autora 100. LUNARDI, Soraya Gasparetto – Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Doutora pela Universidade de Athenas – Grécia. Coordenadora e professora do Mestrado em Direito da UNIMAR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Docente da Instituição Toledo de Ensino de Bauru. 111 que a segurança é um direito à proteção por meio de normas e ações do poder público contra atos não apenas dos particulares, como também do próprio poder público nos casos de violação ou ameaça de violação dos direitos pessoais, o que revela que, […] a segurança não possui conteúdo próprio. É um direito de segundo grau, “acessório” ou “secundário”. Quando pensamos no conceito de segurança, temos sempre em mente outro direito ameaçado ou violado, integridade física, saúde, patrimônio, privacidade, alimentação ou qualquer outro. Mas, em todos os casos, a segurança se refere à satisfação de outro direito. Por isso, foi sugerido não se referir ao “direito à segurança” e sim às condições fáticas e jurídicas (políticas públicas e existência de normas jurídicas) que permitem garantir a “segurança dos direitos”. […][…] (LUNARDI, 2009, p. 266). Finaliza a autora evidenciando a clara necessidade da adoção de um conceito holístico de segurança que evite a discriminação de grupos sociais ou que privilegie certos direitos e introduz uma referência a autores que consideram a segurança humana como conceito que abrange reivindicações e políticas públicas voltadas a evitar todas as situações de insegurança de indivíduos ou grupos, independentemente de sua causa e arremata que, […] Nessa ótica, a segurança se define como situação na qual um direito é garantido de maneira permanente e em um nível satisfatório. Sente- se inseguro quem, em razão de uma crise econômica, não tem certeza se receberá o salário no final do mês (insegurança causada pela falta de regularidade, impedindo a satisfação permanente), assim como quem recebe salário que não atende às suas necessidades básicas (insegurança causada pelo nível insuficiente de satisfação do direito). […][…] (LUNARDI, 2009), p. 265). Para Anderson Alcântara Silva Melo (SILVA MELO, fev./março 2008), a Segurança Pública é um tema complexo que possui caráter interdisciplinar, pluridimensional, multicausal e multifatorial, pelo que, é necessário buscar novas possibilidades de respostas à criminalidade, em outras áreas, negando o tradicional modelo centrado basicamente no controle formal da criminalidade difusa ou organizada. No mundo de hoje estamos constantemente a ser confrontados com mudanças que ocorrem em todos os planos da nossa vida. No que se refere à criminalidade, ela assume dimensões transnacionais, pelo que a sua manifestação 112 acontece em todo o lado e sob as mais diversas formas. A este propósito, vale a pena considerar o que diz Anthony Giddens, […] vivemos num mundo de transformações, que afetam quase tudo o que fazemos. Para o melhor ou para o pior, estamos a ser empurrados para uma ordem global que ainda não compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já se fazem sentir em nós. […] (GIDDENS, 2010, p. 19). Cabo Verde, país aberto ao mundo e com uma diáspora espalhada por diferentes latitudes, não está imune às influências, positivas e negativas, que a nova ordem global referida por Giddens (2010) traz consigo. É incontornável a necessidade da elaboração e implementação de políticas públicas ativas que respondam aos desafios atuais e futuros que o desenvolvimento do país coloca, designadamente no domínio da segurança pública. 113 CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluído o presente trabalho, os dados recolhidos e a argumentação produzida permitem, tecer as considerações finais que se seguem: Na linha do que aconteceu na europa e nos Estados Unidos, a criação de um Corpo de Polícia Civil para a Cidade da Praia, em 1872, perseguia o objetivo primordial de conter o aumento da criminalidade, considerando que o reduzido efetivo militar disponível não satisfazia as exigências do serviço público na capital da província. O nascimento do referido corpo de polícia ocorreu, por um lado, num contexto de dificuldades orçamentais, tema central no processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, e por outro, num clima de certo idealismo refletido, aliás, no Regulamento do Corpo de Polícia Civil, procurando trazer para uma arena de relações sociais profundamente desiguais e marcadas pelo traço da colonização, formulações e representações que nem no Reino tinham sido acolhidas no plano jurídico-formal. Antes e depois da criação do Corpo de Policia Civil da Cidade da Praia, a manutenção da ordem pública é uma atividade partilhada por vários atores sociais: a milícia e o batalhão de artilharia (leia-se hoje forças armadas) que depois passou a ser uma força complementar, como atesta a sua presença em todas as revoltas populares; os oficiais camarários – juízes ordinários e vintenários, meirinhos da serra; os administradores do concelho, regedores e cabos de polícia; e o chefe da Repartição Militar do governo da província, enquanto comandante da força pública. Um dado completamente novo que o trabalho introduz é o de que as revoltas populares e os levantamentos sociais ocorridos em Cabo Verde, impulsionaram a reorganização dos corpos de polícia, acelerando o processo de institucionalização da segurança pública, com destaque para a temática da integração do território nacional101 . No período pós-independência o processo de institucionalização da segurança pública foi profundamente marcado pelo golpe de estado de novembro de 1980, na Guiné-Bissau, pela abertura política declarada em 1990 a que se seguiu 101. Ver Anexo 1. 114 a revisão da constituição e a aprovação de um vasto pacote legislativo para assegurar as condições para a realização de eleições livres e democráticas e a transição democrática efetivada em 1991. A natureza do Estado que surgiu da independência influenciou profundamente a organização e o funcionamento da polícia em Cabo Verde. A Lei sobre a Organização Política do Estado (LOPE) e, mais tarde, a Constituição da República continham normas que sustentavam o regime de partido único e essas normas foram integradas nos instrumentos legais organizativos e de funcionamento da polícia. A par das dificuldades orçamentais antes referidas, outro elemento comum presente nas reorganizações da polícia estudadas é o seu caracter conjuntural, comandado pelo ritmo de transformações sociais ocorridas na sociedade caboverdiana. Uma discussão em torno da democracia, da transição democrática e do surgimento de modelos de polícia e o seu controlo, com referência sobretudo às experiências estudadas por autores brasileiros, americanos e europeus, permitiu interpretar os programas de governo aprovados para as cinco legislaturas que ocorreram entre 1975 e 2000, sendo três na primeira república e duas na segunda e o sentido das medidas reorganizativas adotadas, e concluir que, não obstante as insuficiências que persistiram, a democratização do país influenciou, positivamente, o modelo de organização e de funcionamento da segurança pública em Cabo Verde. O quadro constitucional e legal conheceu um importante desenvolvimento, foi incorporado um leque variado de direitos dos cidadãos, foram consagrados constitucionalmente os princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, balizadores da aplicação das medidas de polícia, a polícia é declarada “ao serviço da comunidade” e manteve-se independente das forças armadas, regendo-se por instrumentos próprios, os seus membros foram sujeitos ao foro comum e intensificou-se e densificou-se o discurso político em torno da segurança pública que passou a ser considerada vantagem comparativa no processo de desenvolvimento do país. Como já se referiu antes, a realização de eleições democráticas periódicas, a consagração de um leque variado de direitos no texto constitucional e a definição e regulamentação do quadro legal aplicável à polícia não significam, por si 115 sós, que a sua prática quotidiana seja democrática e respeitadora dos princípios e direitos anunciados. É importante e imprescindível que sejam desenvolvidas e aplicadas políticas públicas que coloquem o cidadão como ator e principal e destinatário de tais políticas, tarefa que é da inteira responsabilidade dos poderes públicos. 116 ANEXO 1 REVOLTAS/MOVIMENTOS SOCIAS/ANO MEDIDAS ADOTADAS Revolta do Paúl, ilha de Santo AnAprovação do Decreto nº 2, de tão – 1894 24 de dezembro de 1896 que criou o Corpo de Polícia Civil da Província de Cabo Verde, cujo Regulamento foi aprovado pela Portaria nº 19, de 21 de fevereiro de 1897. Este regulamento esboça uma tentativa de integração do território da província não criando unidades territoriais, mas prevendo a possibilidade do serviço policial ser prestado “… dentro da província e em qualquer ponto dentro d’ella …”. Revolta de Ribeirão Manuel, ilha Aprovação da Portaria nº 484, de de Santiago – 1910 27 de dezembro de 1918, que dita a “Reorganização dos serviços militares e de policiamento na Província de Cabo Verde ”, consistindo esta na extinção “dos Corpos de Polícia Civil da Praia e do Mindelo, do Corpo de Guardas da Alfândega do Círculo Aduaneiro de Cabo Verde e o Corpo de Guardas de Saúde da Província de Cabo Verde”, e na criação, em seus lugares, do denominado “Corpo de Polícia e Guarnição” que passou a contar com um efetivo de 271 homens. O efetivo dos Corpos de Polícia Civil da Praia e do Mindelo eram, em 1908, de 45 e 48 homens, respetivamente. 117 Revolta da Achada Portal, TarraAprovação da Portaria Provincial fal de Santiago – 1920 nº 258, de 4 de outubro de 1921, que reconhecia que “… os serviços de policiamento urbano a cargo do Corpo de Polícia e Guarnição não eram desempenhados como é necessário que sejam …”. “Revolução d’Rufino” e revolta Com o declínio das atividades do de trabalhadores, professores e estu- Porto Grande de S. Vicente o desemdantes contra o desemprego, ilha de S. prego e a criminalidade conheceram Vicente – 1929 um aumento dramático, dando lugar a mais uma reorganização dos Corpos de Polícia Civil das cidades da Praia e do Mindelo, por força do Diploma Legislativo nº 31, de 1 de setembro de 1926. O Decreto Legislativo nº 52 de 26 de julho de 1927, mandou aumentar em mais vinte o número de guardas de 2ª classe destinados aos serviços rurais e florestais com o mesmo vencimento e o mesmo fardamento que os do Corpo de Polícia Civil da Praia. Com o agravamento da situação foi aprovado o Decreto Legislativo nº 32, de 28 de setembro de 1928 que proibia a exibição de filmes chamados “policiais”, por se tornarem escola de banditismo. 118 Revolta do Capitão Ambrósio O endividamento orçamental contra a fome, ilha de S. Vicente – ocorrido nesta década de grande crise 1934. originou mais uma medida reorganizativa da polícia, com a aprovação Diploma Legislativo nº 533-A, de 10 de agosto de 1936, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 1937, desta feita com o intuito de reduzir os custos de funcionamento. Desencadeamento da luta armada Aprovação da Portaria nº 6.822, de libertação nacional na Guiné-Bis- de 17 de janeiro de 1964, adotando sau – 1963 um novo Regulamento Geral da Policia, a mais evidente absorção/transposição das normas vigentes para a sua congénere da metrópole, criando as condições para a absorção, em comissão de serviço, de elementos da PSP portuguesa, na linha da experiência tida, em 1931, com o destacamento de elementos da PSP da metrópole para garantirem a guarda dos deportados políticos. Independência Nacional Estruturação do Ministério da Defesa e Segurança Nacional, surgimento da Polícia de Ordem Pública, divisão do território nacional para efeitos de segurança e ordem pública. Golpe de estado na Guiné-Bissau, Criação do Ministério do Interior em novembro de 1980 em 1981 e reorganização dos serviços de segurança e ordem pública, surgindo as Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP) 119 Abertura política - 1990 Transição democrática 120 Revisão da constituição e aprovação de um vasto pacote legislativo para assegurar as condições para a realização de eleições livres e democráticas e a transição democrática. Separação da Ordem Pública da Segurança do Estado e adoção de um substancial pacote legislativo REFERÊNCIAS ANJOS, J. C. (2003). Elites Intelectuais e a Conformação da Identidade Nacional em Cabo Verde. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, nº 3, p. 579-596. BATITUCCI, E. C. (Ago/Set de 2010). A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada. Revista Brasileira de Segurança Pública - Ano 4 Edição 7. BAUMAN, Z. (2003). Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 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O mundo na era da globalização. 7ª Edição. Lisboa: Editorial Presença. 121 GOLDSTEIN, H. (2003). Efectivando mudanças: um panorama. In , Policiando uma sociedade livre. S. Paulo: Edusp. HUNTINGTON, S. (1994). A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Editora Ática S.A. LUNARDI, S. R. (jul. de 2009). O papel do judiciário na segurança nacional. Revista Seqüência, no 58, , p. p. 259-279,. MELO, A. A. (vol. 8, nº 48, fev./março 2008). A construção de uma polícia democrática no Brasil: Reflexões e desafios. Revista IOB de Direito Penal e Processo, p. 131-145. MICHAUD, Y. (1989). A violência. S. Paulo: Atica S.A. MONET, J.-C. (2006). Polícias e sociedades na Europa. S. Paulo: EDUSP NEV. MONJARDET, D. (2003). O que faz a polícia. S. Paulo - Brasil: Edusp. O’DONNEL, G. (s.d.). A terceira onda. S. Paulo. PINHEIRO, M., & VAZ, M. J. (Vol 9 Nº 1 de 2009). Lisboa entre a regeneração e a república. Politea: História e Sociedade, p. 83 - 106. PINHEIRO, P. S. 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Rio de Janeiro - 5ª Edição: LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. 123 NARCOTRÁFICO TRANSNACIONAL: O IMPACTO NOS DADOS CRIMINAIS EM CABO VERDE COMO PAÍS DE TRÂNSITO DE DROGAS1 António Varela RESUMO Este trabalho teve como objectivo analisar se a condição de Cabo Verde, enquanto país de trânsito inserido numa das rotas internacionais do tráfico de cocaína da América Latina em direcção à Europa, tem influenciado o comportamento dos dados criminais do referido país, concretamente no que se refere aos crimes conexos ao tráfico de estupefacientes, como o roubo, a posse de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de capitais. Após uma breve descrição das rotas internacionais do tráfico de cocaína em direcção aos seus principais mercados os Estados Unidos da América e a Europa - sempre a partir da América do Sul, e com passagem pela África Ocidental, o estudo centra-se nos impactos na criminalidade interna em Cabo Verde, tendo em conta esse tráfico, abordando ainda os meios e estratégias de se fazer chegar e escoar a droga do país e a sua tendência evolutiva actual. As respostas dos agentes policiais e judiciais ao questionário utilizado na pesquisa permitiram demarcar o período a partir do qual o país passou a estar na rota do narcotráfico transnacional, bem como, quando e que mudanças terão ocorrido, em termos criminais, em decorrência desse facto. Foi igualmente possível identificar a origem e o destino final da cocaína que transita por Cabo Verde, a tendência que se verifica actualmente e as estratégias utilizadas pelos traficantes para ludibriar as autoridades. O estudo aborda ainda, os indícios da existência do crime organizado transnacional no país, apresentando as suas principais caracteristicas, os campos de actuação e o modus operandi. Palavras chave: Crime Organizado Transnacional. Tráfico de Drogas. Cocaína. 1. Dissertação defendida no dia 10/12/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores António Tavares de Jesus (Uni-CV), como Presidente, Crisanto Barros (Uni-CV) e Daniel Chaves de Brito (Orientador – UFPA). O trabalho teve apoio do Ministério da Administração Interna de Cabo Verde (MAI). 124 TRANSNATIONAL DRUG TRAFFICKING: THE IMPACT ON CRIME DATA IN CAPE VERDE AS DRUG TRANSIT COUNTRY ABSTRACT This study aimed to examine whether the condition of Cape Verde, as a transit country inserted in one of the international routes of cocaine trafficking from Latin America towards Europe, has influenced the behavior of criminal data of that country, in particular as regards related crimes to drug trafficking, such as robbery, firearm possession, murder and money laundering. After a brief description of international cocaine trafficking routes towards its major markets - the United States and Europe - always from South America, and passing through West Africa, the study focuses on the impact on domestic crime in Cape Verde, given that trafficking also addressing the means and strategies to do arrive and transport the drug in the country and its current evolutionary trend. The responses of police and judicial questionnaire used in the survey allowed demarcate the period from which the country has to be on the route of transnational drug trafficking, as well as when and what changes have occurred in criminal terms, as a result thereof. It was also possible to identify the origin and the final destination of the cocaine transiting Cape Verde, a trend that is currently happening and the strategies used by traffickers to deceive the authorities. The study also addresses, evidence of the existence of transnational organized crime in the country, with its main characteristics, the fields of action and the modus operandi. Keywords: Transnational Organized Crime. Drug Trafficking. Cocaine. 125 INTRODUÇÃO “O crime organizado cresce no mesmo ritmo que a economia globalizada e é mais estreitamente associado à economia legal do que se imagina”. Juan Carlos Garzón “El crimen organizado ha abandonado la marginalidad y se ha instalado en el corazón de nuestros sistemas políticos y economicos”. Jean- François Gayraud A presente Dissertação tem por finalidade analisar a correlação existente entre o narcotráfico internacional que passa por Cabo Verde e as implicações desse fenómeno nos dados criminais do país. Cabo Verde é tradicionalmente conhecido por ser um país seguro, de paz, tranquilidade e “morabeza”2, características sócio-antropológicas e políticas que, adicionadas às condições naturais de sol e praia ao longo do ano, o fazem um país com potenciais para atrair visitantes de todas as latitudes do globo. Entretanto, esse panorama vem mudando, em decorrência do clima de insegurança que vem tomando conta do país nos últimos tempos, ameaçando um dos principais activos de que o país dispõe para competir no cenário internacional do turismo. Com uma situação geográfica privilegiada, à entrada do continente africano e a meio percurso da América do Sul para a Europa, Cabo Verde teve o seu papel definido desde a época dos descobrimentos, a partir do século XV, servindo sempre como entreposto avançado nas rotas marítimas a caminho do novo mundo. Citado em diversas obras3 da história mundial, pelo importante papel desempenhado enquanto porto de reabastecimento no cruzamento dos continentes, Cabo Verde passou agora a ser referenciado também em relatórios produzidos 2. Morabeza, expressão tipicamente cabo-verdiana, usada para traduzir a afabilidade e amabilidade, características peculiares do povo das ilhas. 3. História Geral de Cabo Verde, Volume 1, sob a coordenação de Luis de Albuquerque e Maria Emília Madeira - Lisboa e Praia, 1991, Instituto de Investigação Científica Tropical e Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 1991; Cabo Verde – Formação e extinção de uma sociedade escravocrata de António Carreira - Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972. 126 pelas agências internacionais4 que se ocupam do fenómeno do tráfico transnacional de estupefacientes5, entendido aqui como o tráfico de substâncias ilícitas, entorpecentes, realizada entre nações, ou seja, através das fronteiras dos Estados-Nações, como sendo um país que tem sido utilizado pelas organizações criminosas6, para fazer chegar à Europa, mercado consumidor por excelência, grandes quantidades de drogas ilícitas, principalmente a cocaína. Das origens aos destinos, as drogas ilícitas não seguem necessariamente as rotas mais directas, entrando neste cálculo outros factores, para além da geografia, para que percorram, com sucesso, todo o seu trajecto, furtando-se ao controlo das autoridades. Estados fracos, nesses casos, são os mais visados. Conforme revela o Relatório da ONUDC (2008), embora a cocaína não seja produzida em África, o rápido aumento de apreensões dessa droga mostra a importância crescente do continente, especialmente a África Ocidental (ver Mapa 1), como placa giratória do tráfico da cocaína da América Latina para a Europa. Mapa 1 -Países da Áfríca Ocidental Fonte: imagem da internet No caso de Cabo Verde, as apreensões efectuadas pelas autoridades policiais 4. UNODC, World Drug Report, 2010; United States Department of State, International Narcotics Control Strategy Report, March 2011. 5. O debate sobre o conceito de narcotráfico será apresentado a seguir ainda nesta introdução no referencial teórico. 6. O debate sobre o conceito de organizações criminosas será apresentado a seguir. 127 nacionais, muitas vezes em articulação com autoridades de outros países, permitem traçar a rota desde a origem da droga na América Latina (Brasil, Argentina, Venezuela), quer por via aérea, utilizando voos comerciais que ligam semanalmente Fortaleza, no Brasil, à cidade da Praia, em Cabo Verde, quer por via marítima, através de diversos tipos de embarcações. Pela via aérea,destaca-se o serviço dos “correios” ou “mulas” que, sob a capa de comerciantes, conhecidos como “rabidantes”, deslocam-se ao Brasil para aquisição de mercadorias a serem revendidas em Cabo Verde, trazendo também quantidades significativas de cocaína, acomodadas entre as bagagens, colados no próprio corpo sob a roupa, ou ainda, de forma mais perigosa, ingeridos sob a forma de cápsulas, o que, em situações limite, poderá levar alguns transportadores à morte. Com alguma frequência, esses comerciantes são presos nos controles aleatórios efectuados pelas autoridades policiais. Quando conseguem entrar com a droga no país, geralmenteela é entregue a alguém que terá a missão posterior de o reencaminhar à Europa, também por via aérea, nos voos comerciais diários com destino a Portugal, sobretudo, mas também a Holanda, França, Espanha e Itália. O Relatório Mundial sobre Drogas da ONUDC (2010)revela que o consumo de cocaína tem diminuído significativamente nos Estados Unidos, nos últimos anos, e que um dos motivos para a violência associada às drogas no México é o facto de os cartéis estarem a lutar por um mercado que está diminuindo. Entretanto, observa-se uma mudança nomercado consumidor, tendo o problema atravessado o Atlântico, com destino à Europa. Na última década, o número de usuários de cocaína, na Europa, duplicou, passando de 2 milhões, em 1998, para 4.1 milhões, em 2008. Nesse ano, o mercado europeu (estimado em US$ 34 bilhões) chegou a ser quase tão valioso quanto o mercado norte-americano (US$ 37 bilhões), segundo o Relatório Mundial sobre Drogas (2010)7. A mudança na demanda acarretou uma mudança nas rotas do tráfico, com uma quantidade crescente de cocaína sendo traficada dos países andinos para a Europa, via África Ocidental. 7. Este relatório pode ser encontrado em www.onudc.org, A sua referência completa consta na bibliografia. 128 Essa rota, conhecida das autoridades nacionais e internacionais, integra os países da África Ocidental (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau), que recebem a droga directamente da América Latina, por via aérea, para, posteriormente, ser encaminhada para Cabo Verde em voos comerciais e, finalmente, seguir para o mercado europeu, uma vez mais servindo-se de “correios”, cidadãos nacionais ou estrangeiros (ver Mapa 2). Particularmente a partir dos anos 90, a região da África Ocidental, da qual Cabo Verde faz parte, passou a estar na mira das autoridades mundiais, que têm seguido de perto as rotas e o “modus operandi” das organizações criminosas, que passaram a utilizar essa região como rota para o escoamento das suas “mercadorias”, principalmente com destino ao mercado europeu. Tanto assim é, que o Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki Moon, na sua mensagem para o dia internacional contra o tráfico e o abuso de drogas, a 26 de Junho de 2010, afirmou o seguinte: “tendências recentes preocupantes, em partes da África Ocidental e da América Central, mostram como o tráfico de drogas pode ameaçar a segurança e até mesmo a soberania dos Estados”8. Países da região, como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Guiné Conakry, Serra Leoa, Libéria, Benin, Gâmbia, Mali e outros, que têm em comum a vulnerabilidade das suas instituições, tendo alguns, até bem pouco tempo, enfrentado guerras civis devastadoras, são referenciados como pontos de passagem da droga para o mercado europeu. Segundo o Relatório da ONUDC (2008), Le Trafic de Drogue Comme Menace À La Sécurité en Afrique de L’Ouest, pelo menos 46 toneladas de cocaína foram apreendidas em rota para a Europa, via África Ocidental, desde 2005. Cabo Verde, como um país de dimensões reduzidas (4.033 km2), distribuídos por 10 ilhas, e com uma população de 480.000 habitantes, segundo dados do Censo do ano 2010, está longe de constituir um mercado consumidor atractivo. Apesar da sua exiguidade territorial habitável, o país possui uma Zona Económica Exclusiva (ZEE)9 bastante grande, sendo que parcelas importantes da 8. http://www.unodc.org/southerncone/pt/frontpage/2010/06/26-mensagem-do-dia-internacional-contrao-trafico-e-o-abuso-de-drogas-pensar-a-saude-e-nao-as-drogas.html. Acessado em 02-07-12 9. A zona económica exclusiva de Cabo Verde é muito superior às reduzidas dimensões da sua plataforma territorial, 734.265 km2, para apenas 4.033 km2, respectivamente. Ou seja, a dimensão marítima do arquipélago é 182 vezes, superior à área terrestre. 129 costa das suas ilhas não são objecto de controlo e fiscalização por parte do Estado, tendo em conta os limitados recursos humanos e materiais de que dispõe. As ligações aéreas comerciais semanais com a América Latina, aliadas às ligações diárias com vários destinos na Europa, tornam Cabo Verde elegível aser um dos países de trânsito e transbordo de produtos estupefacientes. Embora reconhecidamente um país de trânsito, tendo em vista que não possui condições mínimas para produzir internamente drogas ilícitas, nomeadamente a cocaína, principal produto destinado a abastecer o mercado europeu, há sinais de que parte dessa droga fica no país, destinado a abastecer o pequeno mercado local que foi criado a partir do estabelecimento dessa rota, da qual o país faz parte. Paralelamente, como suporte a essa rota de transporte de substâncias ilícitas com destino à Europa, estabeleceram-se no país segmentos de organizações criminosas, que servem de apoio logístico para essas operações, encarregues de receber a “mercadoria” vinda da América Latina, de tratar do seu armazenamento local e de providenciar, posteriormente, o seu escoamento para o destino final. São utilizados os mais diversos meios para o transporte da droga,como o recrutamento de “mulas” ou “correios”10,geralmente, estes, através da via aérea, aproveitando-se do facto do cidadão cabo-verdiano ser, na sua essência, um migrante, ou, pela via marítima, socorrendo-se das embarcações de transporte de mercadorias ou ainda das de recreio e lazer que sulcam os nossos mares. Esses dois factores novos na realidade cabo-verdiana - a existência de um mercado local de consumo e o estabelecimento de tentáculos de organizações criminosas - levaram-nos a perceber que, combinados,alteraram radicalmente os dados da criminalidade no país, em decorrência directa ou indirecta das suas acções. O Relatório da UNODC, World Drug Report 2010, foca a influência desestabilizadora do tráfico de drogas nos países de trânsito. Ele mostra como o 10. “Mulas” ou “Correios” – designação dada às pessoas recrutadas pelas organizações criminosas, com o único propósito de transportarem a cocaína de um país para outro, fazendo-se passar por simples passageiro em viagem de negócios ou férias, tentando, desse modo, fugir do controlo das autoridades alfandegárias e policiais. Essas pessoas normalmente desconhecem os verdadeiros donos da droga que transportam, tendo em conta que o contacto estabelecido com elas é feito exclusivamente através de intermediários. São autênticos prestadores de serviço para a organização que os contrata. Assumem o transporte da droga por sua conta e risco. Em caso de detenção em flagrante, no transporte da droga, assumem as consequências, sem conhecer efectivamente o destinatário final do produto. 130 subdesenvolvimento e a fragilidade dos governos atrai o crime, ao mesmo tempo que o crime aprofunda a instabilidade. Embora a problemática do tráfico internacional de estupefacientes não seja novidade no cenário académico mundial, desconhece-se a existência de um estudo semelhante ao que se propõe aqui efectuar, no que diz respeito, concretamente, ao caso de Cabo Verde, analisando desde os motivos da sua “eleição” como país de trânsito, passando pelas rotas de que faz parte, com particular enfoque na análise da evolução dos dados da criminalidade e procurando estabelecer uma correlação com o narcotráfico, a partir do período em que o país passou a constar das rotas do narcotráfico transnacional, visando demonstrar as alterações ocorridas em relação ao período anterior. No nosso estudo, após uma abordagem preliminar do referencial teóricoassociado ao tema, que busca a apresentação de um conceito de crime organizado transnacional, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, faremos uma breve incursão pelas rotas internacionais do narcotráfico, particularmente as rotas da cocaína (alvo da pesquisa), desde a sua origem, nas superfícies de cultivo na região andina, passando pelos países de trânsito, até os principais mercados mundiais. Analisaremos de forma mais pormenorizada os dados estatísticos de Cabo Verde, referentes a apreensões de cocaína, fornecidos pela Policia Judiciária, da criminalidade interna conexa ao tráfico de drogas, cedidos pela Polícia Nacionale os dos presos por tráfico de estupefacientes, disponibilizados pela Direcção Geral dos Serviços Penitenciários. A partir de um questionário,apresentado em entrevistas semi-estruturadas, aos agentes envolvidos no combate ao tráfico de estupefacientes da Polícia Judiciária, da Polícia Nacional, do Ministério Público e da Magistratura Judicial, analisaremos a opinião das autoridades no que respeita ao início da passagem da cocaína por Cabo Verde, as rotas e os meios utilizados, bem como os impactos do narcotráfico nos dados da criminalidade do país11. Para se ter uma ideia da dimensão do fenómeno a nível mundial, no final do milénio, a Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a estimar que a indústria das drogas gerava um movimento de capital em torno de 400 bilhões de dólares anuais, cifra equivalente a cerca do dobro da renda da indústria farma11. Conforme o questionário apresentado no anexo III. 131 cêutica mundial ou a dez vezes o total de toda a assistência oficial dessa organização para o desenvolvimento.12 Em geral, pouco se conceptualiza sobre o termo narcotráfico, tendo em conta a sua complexidade. De acordo com Santana (1999) os critérios são diversos, polémicos e pouco esclarecedores, sobretudo quando se encontram impregnados deuma série de cargas ideológicas. Dentro das correntes que se dedicam ao estudo das drogas, existem dois enfoques:um encarregue de pesquisar os consumidores, qualificados de fármacodependentes e outro que aponta para a análise do narcotráfico, considerando-o uma simples delinquência. A crítica a esses enfoques parte do facto de ambos apresentarem preconceitos, ao identificar o normal com o permitido pelas autoridades e reduzir o tráfico aaspectos legais. Gómezjara e Mora (1992) assinalam que, nessa percepção das drogas, os enfoques mais significativos ficam excluídos, como o da cultura da droga – médica e não médica. De outra perspectiva, Villar (1989) aponta que o narcotráfico se trata de “um mercado que integra a demanda à oferta de narcóticos”. Por sua vez, Salazar (1989) assinala que o narcotráfico não era, nemé, apenas uma actividade de “máfias”. É antes uma actividade “agroindustrial-comercial e financeira que, por sua integração vertical e seu alcance planetário, se assemelha cada vez mais a uma empresa transnacional do que a uma família do crime organizado.” Na perspectiva de Procópio Filho e Costa Vaz (1997, p.86): As estruturas do narcotráfico e sua operação respondem tanto a estímulos de mercado, em sua dimensão transnacional e global, como a factores e circunstâncias de ordem doméstica e mesmo local que definem o modo de inserção de um país no contexto do narcotráfico internacional e as condições específicas de seu funcionamento. 12. Programa das Nações Unidas para a Fiscalização Internacional das Drogas UNDCP, 1998, p.3. 132 Na sua noção mais divulgada, o narcotráfico é identificado como a maior empresa transnacional dedicada ao tráfico de drogas ilegais, que não paga impostos e gera os maiores lucros, ou em outras palavras, é uma expressão da face oculta do capitalismo neoliberal donosso tempo. De acordo com Castells (2000), a indústria do narcotráfico possui cinco importantes características: Está direccionada à demanda e à exportação, tendo como grande mercado os Estados Unidos, apesar do grande crescimento de abastecimento para a Europa Ocidental e partes mais ricas da Ásia; Aindústria é totalmente internacionalizada, com uma divisão bastante rigorosa da mão-de-obra entre os diferentes locais do processo produtivo; “O componente essencial de toda a indústria da droga é o sistema de lavagem de dinheiro”; “O cumprimento de todo o conjunto de transacções é assegurado por meio do uso de violência em um nível extraordinário.” Toda a importante organização criminosa possui uma rede de assassinos, em muitos casos, profissionais; “A indústria da droga precisa da corrupção e da penetração no meio institucional para poder funcionar em todas as etapas do sistema”. É necessário corromper e/ou intimidar pessoas essenciais para o esquema funcionar (policias, juízes, políticos, banqueiros, etc.). Convém referir que o comércio ilícito de drogas pode ou não ser exercido por grupos organizados (ZALUAR, 2004; MINGARDI, 2007; OLIVEIRA, 2007). Entretanto, seria interessanteperceber as razões que justificam a existência de tantos consumidores de estupefacientes, principalmente da cocaína, dando origem a um mercado tão importante e que movimenta milhões de dólares anualmente, o que torna essa actividade ilícita bastante atraente para os traficantes. A cocaína é um alcalóide extraído da coca, planta originária dos Andes, cujo uso é extremamente antigo, conhecida nas sociedades pré-colombianas, nas quais a coca desempenhava as funções de planta medicinal, de droga estimulante, de objecto de ritual e de imposto obrigatório, dependendo, cada um destes diversos usos, da qualidade do produto. 133 Quais as razões que justificam a existência de tantos consumidores de estupefacientes a ponto de tornar esse negócio ilícito tão lucrativo e em função disso, tão atraente ao crime organizado transnacional? Os estupefacientes em geral, com maior ou menor rapidez, criam uma certa dependência física e psicológica, tornando os seus usuários reféns do mesmo. Não é por acaso que Freud situava os estupefacientes num lugar tão bom entre “os demolidores de preocupações” dos quais o homem tem necessidade. Com base na sua experiência pessoal, Freud usou a cocaína durante algum tempo, de forma experimental, antes de passar a aplicá-la nos seus pacientes como medida terapêutica para diversos males que eles padeciam. Conforme escreveu Freud em “Malaise dans la civilization” (1929, p.18): O sofrimento ameaça-nos por três lados: no nosso corpo que, destinado à decadência e à dissolução, não pode realmente passar sem sinais de alarme que são a dor e a angústia; do lado do mundo exterior, que dispõe de forças invencíveis e inexoráveis de se levantar contra nós e de nos aniquilar; finalmente a terceira ameaça provém das nossas relações com os outros seres humanos. O sofrimento resultante desta fonte é-nos talvez mais penoso do que qualquer outro. Na actualidade, estas três motivações podem ser aplicadas às razões que explicam a permanente procura de estupefacientes por parte dos consumidores, formando assim um mercado que os traficantes procuram abastecer a todo o custo, com garantia de um alto grau de rentabilidade, tendo em conta que esses consumidores estarão sempre dispostos a qualquer tipo de sacrifícios para adquirir o produto em função da dependência criada. Nesse sentido, a droga serve para aliviar a dor – física e psíquica - e a angústia que, no caso das toxicodependências, constitui o motivo essencial de uma diversidade de prescrições de psicotrópicos (ansiolíticos, antidepressivos, antiasténicos, etc.). Proteger-se do mundo exterior que “se levanta contra nós”, não sem evocar as tentativas, por vezes desesperadas, de escapar às condições de vida que os nossos guetos modernos oferecem, onde as perspectivas de futuro são tanto mais sombrias quando à pobreza se juntam o insucesso escolar, o desemprego e a precariedade dos vínculos sociais para indivíduos muitas vezes arrancados das suas raízes. Para afastar a ameaça que vem das nossas relações com os outros, as quais se sabe que dependem essencialmente das experiências precoces, da qualidade dos 134 primeiros vínculos e, depois, dos afastamentos que permitirão investir noutros objectos e tecer, com eles, relações satisfatórias. As perturbações destes primeiros vínculos e a sua tradução na evolução de um indivíduo formam o terreno onde se vai enraizar toda a psicopatologia. Estas três ordens de origens dos nossos sofrimentos (que mantêm ligações estreitas entre si) são os três tipos de co-factores que encontramos na origem das toxicodependências modernas porque as drogas têm a propriedade, real ou ideal, de dar resposta a todas as espécies de angústias e de necessidades, conforme a acepção de Morel, Herve e Fontaine (1998). Uma noção bastante polêmica, mas que é salutar apresentar uma reflexão,é a noção de crime organizado.É importante, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo das divergências que são visualizadas entre os autores que tratam desse tema. Apesar de existir pouca divergência em se estabelecer o que faz uma determinada prática ilícita ser transnacional ou não, ainda paira muita polémica no tocante àexacta definição do conceito de crime organizado, tratando-se de um debate de várias décadas que se encontra inacabado e distante de atingir um consenso (Giraldo e Trinkunas, 2007, p. 351). Quanto à definição de transnacional, ela é traduzida literalmente, ou seja, o acto que é realizado entre nações, ultrapassa as fronteiras de um único EstadoNação soberano, denotando, desta forma, o movimento físico de objectos, incluindo populações humanas, de informações e ideias e, finalmente, de dinheiro e créditos (Evans e Newnham 1998, p. 541-542). A maioria dos estudiosos concorda que o crime organizado pode diferir em sua estrutura, tamanho, forma de organização e ramo de actividade. Entretanto, existe um núcleo comum em suas características que fornece um indicador seguro e abrangente deste fenómeno, que pode ser extraído através da análise dos diversos conceitos propostos (ALBANESE, 2007, p. 03-04). Das diversas definições propostas, destaca-se a formulada por Cressey (1969, p. 72), onde o crime organizado é apresentado como sendo uma organização voltada para a maximização dos lucros, com a venda de bens e serviços ilícitos. Portanto, o crime organizado é a actividade praticada por um grupo de pessoas engajadas em determinados empreendimentos ilícitos, onde posições especí135 ficas são previamente definidas na organização para cada participante, contando com os executores, corruptores e corrompidos (CRESSEY 1969, p. 319). O aspecto tradicional do crime organizado é a sua estrutura rígida, com a disciplina dos seus integrantes, aliada a uma hierarquia em graus, com o isolamento dos líderes, mas com a possibilidade de ascensão dos seus integrantes (CRESSEY, 1969, p. 313). As posições na hierarquia e a divisão do trabalho podem ser estipuladas por relações de parentesco, amizade ou habilidade, mas sua permanência é assegurada pelo empenho em manter a integridade da organização (ABADINSKY, 2007, p.04-06; GAMBETTA, 1993, p. 75-76; JOHANSEN e LAMPE, 2002, p. 0709). Mais tarde, o crime organizado passa a ser identificado como uma organização empresarial (ABADINSKY, Wtura mais enxuta, mais especializada, isto é, desprovida dos princípios das organizações mafiosas vinculadas por um rígido código de honra (ALARCHI, 1988, p. 57-58, BUSCHETTA, 1999, p. 37-40 e GAMBETTA, 1996, p. 75-76). Tais características são afastadas, sendo o crime organizado reconhecidocomo pequenas empresas lícitas que desenvolvem suas actividades, seguindo uma dinâmica comercial, com a utilização dos avanços tecnológicos e desenvolvimento de relações através de redes sociais (GIRALDO e TRINKUNAS, 2007, p. 350-352). A construção do conceito de crime organizado deve ser realizada de forma a identificar todos os possíveis arranjos, evitando-se a imprecisão, conforme aponta Petrus van Duyne (1996), através de um criterioso trabalho de revisão da literatura. Na busca de elementos para a compreensão do fenómeno, Mingardi (1996, p. 69) conseguiu elencar quinze características comuns do crime organizado. São elas: i) práticas de actividades ilícitas; ii) actividade clandestina; iii) hierarquia organizacional; iv) previsão de lucros; v) divisão do trabalho; vi) uso da violência; vii) simbiose com o Estado; viii) mercadorias ilícitas; ix) planeamento empresarial; x) uso da intimidação; xi) venda de serviços ilícitos; xii) relações clientelistas; xiii) presença da lei do silêncio; xiv) monopólio da violência e xv) controle territorial. 136 Não havendo um consenso sobre o conceito de crime organizado,existeuma corrente doutrinária que procura se valer da definição dada pela Convenção de Palermo sobre criminalidade transnacional: “…grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e actuando concertadamente, com o propósito de cometer uma ou mais infracções graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material”13. As Nações Unidas (2002), por meio de um estudo empírico, apresentaram as diversas características do crime organizado: tem estrutura/hierarquia; é composta por, no mínimo, dois membros, chegando certas organizações a ter mais de cem componentes; actua de modo local ou internacionalmente; seus integrantes fazem uso da corrupção perante o poder estatal e suas acções ilícitas penetram na economia legal. Segundo Adriano Oliveira(2004)14, a construção do conceito do que é o crime organizado não é fácil. Do ponto de vista desse autor, devem ser analisados os aspectos económicos e institucionais. Nesta perspectiva, é extremamente importantetentar descobrir quais são as características – que estão no âmbito económico e institucional – que permitem que um grupo de indivíduos que pratica actos ilícitos possa ser classificado como organização criminosa. De entre essascaracterísticas, devem ser observados o modus operandiutilizados pelos seus agentes na prática dos actos criminosos, as estruturas de sustentação e ramificações do grupo, as divisões de funções no interior do grupo e o seu tempo de existência.15 Seguindo o raciocínio, o autor propõe que as organizações criminosas devem ser analisadas também por meio de suas dimensões de actuação. Ou seja, existem organizações que actuam apenas a nível local, sem conexão com outros grupos no âmbito nacional ou internacional. Por outro lado, existem organizações que 13. GOMES, Luiz Flávio. Definição de crime organizado e a Convenção de Palermo. Disponível em: http:// www.lfg.com.br. Acessado em 18-07-12. 14. Adriano Oliveira, doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é vice-coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas (NIC) na mesma instituição. Autor da Tese de doutorado, “As peças e os mecanismos do fenómeno tráfico de drogas e o crime organizado”, apresentado ao programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco em 2006. Autor de diversos artigos sobre o crime organizado, publicados em revistas académicas e jornais. 15. OLIVEIRA, Adriano. Crime Organizado é possível definir? Disponível em:http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm. Acesso em 18/04/2012. 137 são nacionais ou transnacionais, as quais criam uma cadeia de iteração nas esferas local, nacional e internacional. Os poderes económicos e político devem ser analisados também por meio dessas dimensões, conclui. Ainda nesta perspectiva,uma organização criminosa é aquela formada por mais de um indivíduo e é criada para maximizar e distribuir benefícios entre os envolvidos, e seu grau de poder e organização deve ser avaliado e aferido no âmbito do grau de cooperação/apoio que conquista do Estado. Nesse sentido, quanto mais um grupo criminoso conquista actores do Estado – que facilitam suas actividades criminosas e, por consequência, lhe dão apoio -, mais poder ele conquista, sendo que é o esse mesmo Estado que tem a função coercitiva de enfrentar os grupos criminais organizados (OLIVEIRA, 2007, p.108). Após a revisão da literatura especializada, o autor apresenta a sua tese do que seria crime organizado,defendendo queo crime organizado caracteriza-se por ser um grupo de indivíduos que tem as suas actividades ilícitas sustentadas por actores estatais (por meio do oferecimento de benesses ou actos de cooperação), onde os sujeitos criminais desenvolvem acções que exigem a presença do mercado financeiro, para que isso possibilite, às vezes, a lavagem de dinheiro, e consequentemente, a lucratividade do crime. Por fim, são grupos que relativamente actuam por um considerável período de tempo, tendo as suas funções estabelecidas, com hierarquia, para cada membro. Elemento fundamental a se ter em conta no estudo das organizações criminosas é o facto de que nem todas possuem os mesmos poderes. Determinadas organizações possuem um maior poder de influência e, consequentemente, um sustentáculo mais rígido, ou seja, mais difícil de ser combatido do que outras, nos âmbitos económico e institucional. Além disso, a lavagem de dinheiro não é praticada por todasas organizações criminosas,isto é,os lucros obtidos por determinadas organizações podem ser baixos, o que não originaria margens para esquemas de lavagem de dinheiro16. Em Cabo Verde, a par da ausência de qualquer discussão científica sobre o conceito de crime organizado17, assiste-se, igualmente, a uma dificuldade prática 16. OLIVEIRA, Adriano. Crime Organizado é possível definir? Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm.Acesso em 18/04/2012. 17. Em Cabo verde, não poucas vezes faz-se referência ao crime organizado, principalmente pelos órgãos de comunicação social, quando se está perante delitos praticados por grupos de jovens delinquentes, enraí138 da aplicação das penas previstas no artigo 291º do Código Penal, quepune os fundadores, os dirigentes e os membros de uma organização criminosa. Esse constrangimento decorre do facto de que, em nenhum momento,o legislador apresenta o conceito de “organização criminosa” que pretende punir, o que, em regra, dificulta a decisão judicial condenatória, por não serem expressos os elementos caracterizadores de uma organização criminosa, limitando o artigo do citado código a estipular: “quem fundar organização ou grupo, cuja finalidade seja dirigida à prática de crimes, será punido com pena de…”. A interpretação resultante do artigo do código penal citado demonstra, precisamente, a inexactidão dos conceitos utilizados, atribuindo-se o mesmo significado para organização criminosa ou grupo criminoso, todos punidos com a mesma moldura penal, quando, pelos objectivos, características, modus operandi e efeitos nocivos à sociedade são distintos e deveriam ter um tratamento diferenciado pelo legislador, mormente no que toca à resposta sancionatória por parte do Estado. As recentes discussões que começam a aflorar na sociedade cabo-verdiana sobre a criminalidade, uma das nossas principais preocupações contemporâneas, revelam o fraco rigor científico na abordagem do tema “crime organizado”, na maioria das vezes confundindo-o com grupos ou gangs que se dedicam à delinquência juvenil ou a furtos e roubos na via pública, sendo que, nesses casos, tratase de mera reunião de indivíduos para a execução de actos criminosos, enquanto o crime organizado tem como algumas das suas características a continuidade e a liderança, por exemplo. Tampouco existe doutrina interna fundamentada ou jurisprudência firmada a respeito, dando razão à afirmação de Sartori (1997), de que não é possível analisar um objecto ou fenómeno social sem definir seu significado mínimo. Feitos esses esclarecimentos metodológicos e conceptuais pensamos que seja possível apresentar o quadro desta questão dentro dos objetivos deste trabalho. Para descrever as rotas e as formas de actuação das organizações criminosas transnacionaisactuantes no país, na actividade tráfico de drogas, bem como os impactos dessa actuação nos dados da criminalidade em Cabo Verde, este trabalho está dividido em seis capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se o zando no espírito das pessoas a ideia de que crime organizado e delinquência juvenil são sinónimos. 139 embasamento teórico do tema, com as principais discussões sobre o conceito de crime organizado transnacional, os enfoques de diversos autores e das instituições internacionais. No mesmo capítulo, fazem-se ainda breves referências aos motivos da permanente procura dos consumidores pela cocaína, finalizando com uma apreciação de como o tema tem sido tratado pelo ordenamento jurídico cabo-verdiano. No segundo capítulo, descrevem-se as principais rotas do narcotráfico internacional, a partir das regiões produtoras da cocaína na América do Sul, em direcção aos Estados Unidos da América e à Europa. Analisam-se as variações ocorridas nos últimos anos, em termos de quantidades estimadas da produção de cada um dos países produtores (Bolívia, Colômbia e Peru) e faz-se uma breve descrição da violência que assola os países de trânsito, como o México. No terceiro capítulo, aborda-se a rota da África Ocidental, apontando os motivos que determinaram a sua entrada nas rotas do narcotráfico internacional, as estimativas do volume de cocaína que circula anualmente pela região, as estratégias e meios utilizados pelas organizações criminosas e as ameaças que representa para a região, tanto do ponto de vista da segurança como dos riscos aos Estados de Direito, tendo em conta o seu enorme poderio financeiro, em contraposição às fragilidades estruturais desses países. No quarto capítulo, fala-se de Cabo Verde, enquanto país de trânsito de droga, começando com um enquadramento geográfico, político e sócio-económico, as fragilidades do país que são exploradas pelas organizações criminosas e as suas formas de actuação, pelas vias aérea e marítima. Analisam-se as novas tipologias criminais surgidas no país, em decorrência directa do narcotráfico, como os casos de homicídio por encomenda e lavagem de capitais, descrevendo as suas principais características e os seus impactos na sociedade cabo-verdiana. Apresentam-se alguns exemplos de operações policiais que tiveram êxito no combate ao narcotráfico transnacional operando em Cabo Verde. Faz-se o enquadramento das principais organizações criminosas desmanteladas no país, tendo em conta os critérios de território de actuação, o seu poder económico, as suas relações com o poder institucional e o poder de acção que dispõem, conforme o modelo que será apresentado no capítulo próprio. No quinto capítulo, apresentam-se os dados criminais do país, com destaque aos crimes conexos ao tráfico de drogas, como são os casos de roubo, posse de 140 arma de fogo, homicídio e lavagem de capitais, tanto em termos quantitativos, de acordo com os registos anuais, bem como a apreciação qualitativa das autoridades quanto à evolução desses crimes, tendo por base comparativa dois períodos distintos, o antes e o depois da observação da passagem da cocaína pelo país. Ainda neste capítulo, analisa-se a evolução dos presos por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, delineando a sua tendência e estabelecendo uma comparação com os presos por outros tipos de crimes. E, finalmente, apresenta-se a conclusão, parte que contém a síntese do caminho percorrido, a metodologia, os resultados do estudo feito e as consequências do narcotráfico transnacional para a sociedade caboverdiana. 141 CAPÍTULO I AS ROTAS DO NARCOTRÁFICO INTERNACIONAL Neste capítulo, propõe-se apresentar as principais rotas do tráfico internacional de estupefacientes(ver mapa 2), com particular ênfase da cocaína, tendo em conta que esta é a principal droga que passa pela rota cabo-verdiana do narcotráfico transnacional.Sendo assim, constitui o foco principal da preocupação da sociedade e autoridades nacionais. Existem várias rotas transnacionais de estupefacientes, dependendo do produto comercializado, seja ela, a cocaína, a cannabis,as anfetaminas,o ópio ou a heroína, citando-se apenas as mais referenciadas a nível mundial, ou ainda,consoante a região ou país de produção e o mercado consumidor final. 1.1 – A Rota America do Sul- EUA No que diz respeito à cocaína, ela étradicionalmente produzida na região andina, mais concretamente nas vastas extensões agrícolas da Colômbia, do Peru e da Bolívia. A partir desses países da América do Sul, a cocaína é distribuída aos mais diversos destinos, mas sobretudo para os dois grandes mercados mundiais, os Estados Unidos e a Europa, conforme se pode observar no mapa abaixo, espelhando os principais fluxos de transporte de cocaína, desde a sua produção até ao mercado final: Mapa 2- Principais fluxos globais da cocaína Fonte: ONUDC: World Drug Report 2010. Apesar da concentração da produção nessa região, ela vem sofrendo algumas alterações em termos da extensão da área cultivada da planta da coca e da quantidade do produto final, o que tem afectado, consequentemente, as rotas utilizadas e o abastecimento dos mercados consumidores. Estima-se que a superfície total dedicada ao cultivo da coca diminuiu 5%,tendo como comparação os anos de 2008 e 2009, passando de 167.600 hectares para 158.800 hectares, explicada, fundamentalmente, pela redução da produção na Colômbia que não foi totalmente compensada pelo aumento da produção no Peru e na Bolívia. Entre 2000 e 2009, a superfície cultivada na Colômbia diminuiu 58%, ao mesmo tempo em que o cultivo no Peru aumentou 38% e na Bolívia cresceu 112%. Em 2009, a Colômbia possuía uma superfície total cultivada de 43%, o Peru de 38% e a Bolívia de 19%. A Figura 1, abaixo, representa as estimativas da produção de cocaína em cada um dos países produtores, na América do Sul, no ano de 2007, elaborado pelo ONUDC, onde se pode constatar a liderança da Colômbia na produção, sendo responsável por mais da metade da produção mundial, com 61%, seguido de longe pelo Peru, com 29%, e pela Bolívia, com apenas 10% do total: Bolívia 10% Colômbia 61% Peru 29% Fonte: Relatório Mundial sobre a Droga 2008 143 Figura 1 - Partes potenciais de produções globais nacionais de cocaína em 2007 Os Estados Unidoscontinuamainda a ser o maior mercado consumidor, apesar da contínua diminuição da demanda, conforme as estimativas comparativas feitas em 1982, onde 10,5 milhões de pessoas haviam consumido no ano anterior, enquanto, em 2008, os números apontavam para apenas 5,3 milhões, conforme apresentado pelo ONUDC, no Informe Mundial sobre as Drogas (2010). Essa redução poderá ser explicada por diversos factores, tais como o aumento da prevenção, as novas terapiase o estabelecimento de tribunais especializados em drogas. Além desses factores, a partir da segunda metade de 1980, a cocaína/ crack se transformou numa droga altamente estigmatizada. A diminuição registada mais recentemente, a partir de 2006,acredita-se estar relacionada com a oferta, devido à escassez da cocaína no mercado, agravadapor uma redução dos níveis de pureza. São múltiplas as razões dessa escassez verificada no mercado dos Estados Unidos, desde as rotas que foram afectadas pela violência dos cartéis no México à diminuição da produção na Colômbia, principal abastecedor desse mercado. Análises forenses da cocaína nos Estados Unidos comprovam que cerca de 90% da droga é proveniente da Colômbia, o que leva a inferir que a produção do Peru e da Bolívia destina-se à Europa e à América Latina. Geralmente, a cocaína é transportada da Colômbia para o México ou para a América Central pela via marítima, por traficantes colombianos, e dali, pela via terrestre, para os Estados Unidos e para o Canadá, nesses casos, por traficantes mexicanos. O México é um importante produtor e fornecedor de heroína, metanfetaminas e cannabis para o mercado norte-americano, e o mais importante país de trânsito da cocaína vendida nos Estados Unidos. Desde que o governo norte-americano teve êxito, no final dos anos 80, em diminuir o volume de drogas que chegava ao seu território pela rota do Caribe, da Colômbia a Miami, o México se converteu no território mais importante de trânsito de drogas para o mercado norte-americano, o que intensificou o problema do narcotráfico no país, a ponto de transformá-lo na fonte de violência de maior impacto político no México. 144 De acordo com o Departamento de Estado, 90% de toda a cocaína que entra nos Estados Unidos chega através do México,pela fronteira terrestre com o Texas, preferencialmente, e, em menor escala, pela Califórnia e pelo Arizona ou ainda pelas suas águas territoriais. Um pequeno número de organizações de tráfico de drogas mexicanas controlam as mais significativas operações de distribuição de droga na fronteira, tendo expandido o seu domínio sobre o mercado norte-americano, em detrimento de outras organizações criminosas, em especial das colombianas (US STATE DEPARTMENT, 2010). A partir da Colômbia, segundo as estimativas dos Estados Unidos, 70% da droga segue pelo Pacífico, 20% pelo Atlântico e 10% pela Venezuela e pelo Caribe, conforme citado pelo ONUDC no World Drug Report (2010). Nessa rota marítima da Colômbia até ao México, tem-se utilizado diversos tipos de embarcações, inclusive pequenos submarinos, com capacidade para transportar de 2 a 9 toneladas de cocaína. As autoridades colombianas comunicaram a apreensão de 198 toneladas de cocaína em 2008, sendo 58% no Pacifico e 31% no Atlântico. À medida que o Governo da Colômbia aumenta o controlo sobre o seu território, os traficantes começam a utilizar, cada vez mais, outros países da região, para o trânsito da droga, nomeadamente a Venezuela e o Equador. Recentemente, a Venezuela passou a ser um importante ponto de transbordo da cocaína, com destino à Europa e aos Estados Unidos. Da Venezuela, a cocaína segue viagem, por via aérea, com trânsito pela República Dominicana, Honduras, México e outros países do Caribe e América Central. Grande parte da cocaína transportada desde a Colômbia destina-se aos Estados Unidos e ao México, ficando, no entanto, alguma parte para o mercado local desses países de trânsito. Os cartéis mexicanos emergem nos últimos anos como os principais organizadores do envio da droga para os Estados Unidos, substituindo, em grande medida, os antigos cartéis colombianos, aproveitando-se da enorme comunidade mexicana residente e marginalizada nos Estados Unidos, dispostos a assegurar a distribuição interna da cocaína. Os principais cartéis mexicanos que disputam esse apetecível e concorrido mercadosão: o Cartel de Tijuana, o Cartel do Golfo, 145 o Cartel de Juárez e o Cartel de Sinaloa. Nos últimos anos, esses cartéis têm formado alianças entre si, delimitando as suas áreas de actuação, diminuindo, assim, os confrontos entre eles e aumentando a sua capacidade de reacção às investidas das autoridades, embora continuem actuandocomo organizações independentes. O mapaseguinteapresenta as delimitações das áreas de domínio e influência dos diferentes cartéis mexicanos, elaborado pelo U.S Drug Enforcement Administration. Mapa 3 - Mapa das áreas de actuação dos cartéis do México Fonte: U.S. Drug Enforcement Administration (DEA) 1.2 – A Rota Mexicana e a Violência Nos últimos anos, tem-se assistido aos esforços do Governo do México, na tentativa de fechar esse corredor da droga para os Estados Unidos, recorrendo às Forças Armadas, em detrimento das forças policiais, tidas como corruptas e 146 infiltradas pelo narcotráfico. Entretanto, esse enfrentamento militar com os diversos cartéis tem intensificado a onda de violência que assola o México, fazendo aumentar, extraordinariamente o número de homicídios ligados ao narcotráfico. Entre 1990 e2007, no período anterior, portanto, ao início da guerra contra o narcotráfico, o México experimentou um declínio de 39% no número absoluto de mortes causadas por homicídios, que caíram de 14.520, em 1990, para 8.868, em 2007. Em oposição a essa tendência, em apenas um ano, 2008, última data para a qual há estatísticas oficiais, houve um aumentode 58% de casos de homicídios no país, totalizando 14.007 mortes violentas, das quais, mais de um terço éresultado da violência decorrente do narcotráfico, proporção cuja tendência é de aumento,se se manter o ritmo actual da campanha contra os cartéis (POLANSKA, 2010). Esse exemplo recente do México, que frequentemente é noticiado nos meios de comunicação social, espelha claramente os impactos negativos que o narcotráfico internacional pode ter nas estatísticas criminais nos países de trânsito da droga. Em contrapartida a essa diminuição nos Estados Unidos, no segundo maior mercado mundial da cocaína, a Europa, regista-se o inverso, com a duplicação do número de consumidores, que passou de 2 milhões, em 1998, para 4,1 milhões, em 2008, aproximando assim, nesse ano, esses dois mercados em termos dos valores(34 milhões de dólares para a Europa e 37 milhõespara os Estados Unidos). Essa apreciação deriva dos dados resultantes das apreensões de cocaína, tanto nos Estados Unidos como na Europa, demonstrando claramente essa tendência inversa nos dois mercados finais, conforme representado na Figura 2, abaixo: 147 Fonte: ONUDC – Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008 Figura 2 - Apreensões globais de cocaína feitas na América do Norte e Europa Centroeste Essas mudanças ocorridas, tanto nas regiões de produção como nos mercados de consumo, aliadas aos esforços das autoridades na interceptação de estupefacientes, durante o seu transporte, contribuíram também para a alteração das rotas do tráfico internacional da cocaína. De igual forma, devido à crescente importância do mercado europeu, com o enorme aumento do consumo, associado ao apertado controlo das autoridades dos Estados Unidos e da América Central, começa-se a verificar uma deslocalização da rota do narcotráfico, agora com maior fluxo em direcção à Europa, com passagem pela África Ocidental. 1.3 - A Rota América do Sul-Europa A segunda grande rota internacional da cocaína é a da região andina, em direcção à Europa. A União Europeia concentra cerca de 90% dos 4,5 milhões de consumidores de cocaína da Europa. Dentro da Europa, o maior consumidor é o Reino Unido, seguido da Espanha, Itália, Alemanha e França, conforme estimado pela ONUDC no seu Informe Mundial sobre las Drogas (2010). 148 A cocaína segue para a Europa, principalmente pelo mar, em contentores de mercadorias e, por via aérea, através dos “correios” ou “mulas”. Segundo a Organização Mundial das Alfândegas, 69% do total da cocaína apreendida pelas autoridades alfandegárias, com destino à Europa, estavam a bordo de embarcações, escondidas entre as mercadorias ou na estrutura das embarcações18. Existem dois pontos principais de entrada da cocaína na Europa: no sul, a Península Ibérica, formada por Espanha e Portugal, e, no norte,a Holanda e a Bélgica. Factores geográficos e os laços históricos e culturais que ligam a Península Ibérica à América Latina e,no caso dos Países Baixos,onde se situamos maiores portos da Europa, configuram as razões que explicam a preferência dos traficantes por essas portas de entrada no continente. Esses países, juntos, representam 70% das apreensões da cocaína na Europa (dados de 2008), apesar deo seu consumo ser apenas ¼ de toda a Europa19. A cocaína comercializada na Europa vem maioritariamente da Colômbia, apesar do aumento da produção no Peru e na Bolívia. Das apreensões feitas pela Espanha, em 2008, 81% era originária da Colômbia e dos países vizinhos (Venezuela, Equador e Panamá). Em 2002, o Reino Unido comunicou que 90% da cocaína apreendida tinha como país de origem a Colômbia.Entretanto, a maior parte da cocaína destinada a esse país transita por outro país europeu, em vez de ser enviada directamente, eventualmente devido à maior capacidade das autoridades do Reino Unido para detectar a droga à entrada dos portos e aeroportos do país. Segundo o Centro de Análise Marítimo e Operacional do Tráfico de Drogas(MAOC, 2009), 51% dos navios interceptados no Atlântico, no período de 2006 a 2008, eram originários da Venezuela. As remessas directas da Colômbia representavam apenas 5% do total. Ainda segundo dados do MAOC, nos últimos anos, a maioria das interceptações se deu em embarcações de recreio na travessia do Caribe para a Eu- 18. Organização Mundial das Alfândegas, Customs and Drugs Report 2008, Bruxelas, Junho de 2009. 19. OEDT/Europol, Cocaine: A European Union perspective in the global context, Abril de 2010. 149 ropa(43%), seguidas das remessas em navios de mercadorias (39%) e em outros navios a motor (12%). Registou-se apenas um caso de uso de submarinos em direcção à Europa,detectado na Galícia, norte da Espanha, em 2006. A via aérea também é bastante utilizada para o envio da cocaína da América do Sul para a Europa, a partir de diferentes países como o Brasil, a Argentina, o Uruguai ou ainda do Caribe, Antilhas Holandesas, República Dominicana e Jamaica. O tráfico da cocaína para a Europa é dominado por grupos colombianos do crime organizado, em articulação com grupos criminosos que actuam em países como Espanha, Itália e Holanda. Devido ao reforço da fiscalização das costas dos Açores, Madeira e Canárias, portas de entrada da navegação vinda da América do Sul na Europa, e às várias apreensões de droga efectuadas naquela zona, os traficantes tiveram que procurar novas rotas, que, embora não sejam directas, oferecem maiores garantias de sucesso na operação. 1.4 – A Rota Africana A partir de 2004, ganham importância as remessas feitas via África, principalmente via África Ocidental,como se verá no próximo capítulo. 150 CAPÍTULO II A ROTA DA COSTA OCIDENTAL AFRICANA A África Ocidental20 só muito recentemente entrou, em grande escala, na rota do tráfico da cocaína da América do Sul para a Europa.Os motivos do surgimento dessa rota e a sua crescente importância para o crime organizado transnacional é o que iremos analisar neste capítulo. De acordo com os dados divulgados pela ONUDC, desde meados da década de 90, os países da região da África Ocidental têm servido de trânsito para a cocaína, com destino à Europa, e as apreensões nos últimos anos demonstram que a actividade tem vindo a crescer, conforme evidenciam os dados que apresentamos e analisaremos mais adiante neste capítulo. Na África Ocidental, encontram-se identificados dois centros–chave de transbordo da cocaína: um na Guiné-Bissau e Guiné-Conacry, que se estende a Cabo Verde, Gâmbia e Senegal, e outro na Baía do Benim, que se estende ao Ghana e à Nigéria. Um conjunto de factores externos, tais como a diminuição drástica do consumo da cocaína nos Estados Unidos, o aumento do cerco aos traficantes na rota da América do Sul para os Estados Unidos, tanto nos países produtores, como nos de trânsito, e, no destino final, a localização estratégicaem relaçãoaos países produtores e a proximidade em relação à Europa (é a região mais próxima, a seguir ao Magrebe), bem como a crescente importância do mercado europeu determinada pelo aumento do consumo, motivaram a adopção dessa nova rota. Além desses, factores endógenos, comuns aos países da região oeste-africana, como:a) a existência de Estados fracos, instáveis21 e com guerras civis prolonga20. África Ocidental é aqui entendida como o conjunto formado pelos 15 países que compõem a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental – CEDEAO – Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo. 21. Nos últimos 20 anos, apenas Cabo Verde, Gana e Senegal não sofreram golpes de Estado. Ver “L’Environnement de Securité et le Processus de Construction de la Paix en Afrique de l’Ouest”, documento de trabalho do Escritório das Nações Unidas para a África Ocidental (UNOWA), Dakar, Março de 2007, 151 das, onde proliferam armas ligeiras ea corrupção é generalizada; b) funcionários públicos mal remunerados;c) meios de investigação inexistentes, ultrapassados ou deficientes;d) fraca capacidade punitiva;e) enormes parcelas do seu território sem ou com controlo bastante precário por parte das autoridades, deixando-as entregues, por vezes, a grupos armados ou milícias locais, associado a um enorme crescimento demográfico na região, superior à média mundial22, não acompanhado de um crescimento económico adequado;f) uma economia baseada sobretudo na informalidade, com elevadas taxas de desemprego, principalmente na camada jovem, ecom populações vivendo em situação de extrema pobreza 23;g) fortes ligações aos países europeus, seus antigos colonizadores, onde existe uma grande comunidade de conterrâneos, disponível para realizar a actividade de venda no varejo, determinaram que essa região fosse escolhida para o trânsito da cocaína da América do Sul com destino à Europa, principalmente aos países do Sul da Europa, Espanha e Portugal. Vindas da América do Sul, em grandes embarcações mercantis, a cargo de traficantes oriundos da América Latina, principalmente da Colômbia, do Brasil e da Venezuela, as toneladas de cocaína são transferidas já próximas da costa africana para pequenas embarcações de pesca, que se encarregam do desembarque nas pouco vigiadas praias das ilhas e do continente. Pela via aérea, partindo de países como a Venezuela, Colômbia e Brasil, aviões privados de pequeno porte são utilizados pelos cartéis para transportar cerca de 500 kg de cocaína pura, fazendo-se valer das redes de pistas clandestinas de aterragem disseminadas no coração das florestas ou localizadas no meio do deserto, sendo que, no sentido inverso, essas avionetas regressam com os fundos resultantes da venda da droga. disponível na Internet em www.un.org/unowa/. Acessado em 6/07/2011. 22. Conselho de Segurança das Nações Unidas: Rapport do Secrétaire Général sur le Bureau des Nations Unies pour l’Afrique de l’Ouest, pp. 2-5, NY, 30 Junho 2008. 23. O índice de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) coloca 12 dos 15 países da CEDEAO no grupo dos 31 Estados mais pobres do mundo. Num universo de 177 países analisados, que não inclui a Libéria por falta de dados actualizados, o Togo aparece no lugar 147 da tabela, a Gâmbia em 155, o Senegal em 156, a Nigéria em 159, a Guiné em 160, o Benim em 163, a Costa do Marfim em 164, a Guiné-Bissau em 173, o Burkina Faso em 174, o Mali em 175, a Serra Leoa em 176 e o Níger em 177. As excepções à realidade dos países de baixo desenvolvimento humano na África Ocidental são Cabo Verde (106) e o Gana (136). Há registo, igualmente, da utilização de aviões de grande porte, como foi o caso doBoeing 727, encontrado abandonado no deserto no norte do Mali, em Outubro de 2009. Outro método utilizado,também conhecido das autoridades da região, é o air-drop, em que a cocaína transportada em aeronaves e devidamente acondicionada, é lançada ao mar, acompanhada de bóias sinalizadoras, para depois ser recolhida por barcos de pesca industrial, que munidos de GPS e das coordenadas do local aonde a carga foi lançada, têm o trabalho facilitado. As apreensões feitas pelas autoridades da região da África Ocidental e pelos países europeus indicam haver dois fluxos diferentes de traficantes de cocaína em direcção à Europa. A primeira é dominada pelas redes sul-americanas, que transportam grandes quantidades de droga e precisam do apoio logístico por parte dos africanos para receberem, armazenarem, distribuírem e a reenviarem para a Europa. Normalmente, o pagamento ao serviço prestado é feito com parte da droga transportada, o que gera o segundo fluxo de remessas para o continente europeu, agora feita por nacionais da região e normalmente em voos comerciais, utilizando os chamados “correios” ou “mulas”, com distribuição assegurada na Europa pela rede de emigrantes africanos aí estabelecidos. Neste caso, a rede parece ser menos rígida e a estrutura menos hierarquizada, composta por poucos elementos, apenas os essenciais para o serviço de “correio” e da distribuição no varejo junto aos consumidores. Além de garantir esse segundo fluxo de remessa para a Europa, parte da droga recebida em pagamento pelo suporte logístico local, é destinada ao abastecimentodo pequeno mas crescente mercado local de consumo. Conforme se pode constatar na Figura 3, a seguir, o mercado de consumidores de cocaína nos países da sub-região da África Ocidental é ainda bastante insignificante, em comparação com outras drogas, como é o caso, por exemplo, da cannabis, muito mais barata,influenciado, sobretudo, pelo fraco poder aquisitivo da sua população, que não possui recursos para a compra da cocaína, tendo em conta o seu alto valor no mercado mundial e local. 153 Fonte: Relatório Mundial de Droga 2008 Figura 3 - Prevalência anual do uso da droga por adulto (15-64), vários anos Muitas vezes, os traficantes regionais enviam vários “correios” num mesmo voo para a Europa, sabendo à partida, que as autoridades não dispõem de meios para fiscalizar todos os passageiros, assumindo assim um risco calculado de que alguns poderão, eventualmente, ser interceptados e a droga apreendida. Prova disso é que, a partir de 2004 e até 2008, a Interpol registou a interceptação de 1357 “correios”nos voos da África Ocidental com destino à Europa, conforme relatadono relatório produzido pela ONUDC (2008). Em 2006, as autoridades holandesas, detiveram 32 pessoas num único voo. Essas pessoas tinham saído da Guiné-Bissau, com trânsito em Casablanca, no Marrocos, numa tentativa de dissimular o ponto de embarque, já referenciado pelas autoridades europeias, a partir do qual a atenção no controlo deverá ser sempre reforçada. Em 2007, outros 22 “correios” foram detidos na Holanda, num voo proveniente do Mali e com escala em Tripoli, na Líbia. Dados da Polícia Federal do Brasil24, importante país de trânsito na Amé24. Indiciamento de Estrangeiros nos Crimes Relacionados com o Tráfico Ilícito de Entorpecentes pela Polícia Federal – Brasília, Janeiro de 2012 154 rica do Sul, referentes aos anos 2000 a 2009, demonstram que foram detidas pessoas transportando cocaína de praticamente todos os países da CEDEAO, distribuídas da seguinte forma: Nigéria-205; Gana-30; Guiné-Bissau-29; Cabo Verde-25; Guiné-Conakry-14; Costa do Marfim-10; Benin-3; Gâmbia-3; Serra Leoa-3; Burkina Faso-2; Mali-2; Senegal-1; Togo-1. Em termos de quantidade de cocaína apreendida pelas autoridades nos aeroportos europeus, proveniente da África Ocidental, o destaque vai claramente para Senegal e Nigéria, como principais países de origem.Entretanto, há registos significativos, repartidos por todos os demais países da região, conforme se pode observar na Figura 4. Fonte: ONUDC, Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008 Figura 4 - Volume de cocaína apreendida nos voos para a Europa com proveniência do país de embarque (Janeiro 2006-Maio 2008) Pressupõe-se que as maiores apreensões nesses países estejam ligadas ao facto dos seus aeroportos serem os de maior volume de tráfego aéreo da região para a Europa, com movimento superior a um milhão de passageiros por ano. Da mesma forma, a maior proporção de “correios” nigerianos, detidos na posse de cocaína,pode ser explicada pela percentagem que a população representa na região. Os “correios” nigerianos representam 57% do total de “correios”da 155 região detidos, enquanto, em termos da população efectiva da África Ocidental, representam 53% do total de acordo com o estudo apresentado pelaONUDC (2008). A maior parte dos “correios” detidos, provenientes de voos do Senegal, era originária da Nigéria (29%), de Cabo Verde (22%) e da Guiné-Bissau (15%). Em relação ao destino principal da droga que transita pela África Ocidental, os dados das apreensões indicam que o Reino Unido e a Espanha são os principais destinatários, o que vem coincidir com os dois maiores mercados consumidores da Europa, com a particularidade de que a Espanha é,ao mesmo tempo, o principal ponto de entrada da cocaína no Continente e uma importante redistribuidora da cocaína no resto da Europa. Em Espanha, cerca de 80% da cocaína apreendida estava na posse de nacionais da Nigéria, da Guiné-Bissau, do Mali e de Cabo Verde. Em Portugal, os nacionais da África Ocidentalpresos por tráfico de drogas, representam dois terços de todos os presos por esse crime, sendo maioria os naturais de Cabo Verde (52%) e os da Guiné-Bissau (12%), conforme se pode observar na Figura 5. Fonte: ONUDC, Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008 Figura 5 - Nacionalidade de pessoas detidas em Portugal por tráfico de cocaína em 2007 (oito grupos nacionais no topo da lista de traficantes estrangeiros de drogas) 156 Essa proporção elevada de cabo-verdianos presos por tráfico de drogas em Portugal poderá ser explicada, essencialmente, pelos vínculos históricos e culturais existentes entre esses países de língua oficial portuguesa, que possuem ligações diárias por via aérea, o que tem estimulado o envio de cocaína através dos “correios” a partir de Cabo Verde, resultando em detenções nos aeroportos portugueses, e a existência de uma grande comunidade instalada naquele país europeu vivendo em condições degradantes e de extrema pobreza, sendo que muitos se dedicamà distribuição de drogas no mercado varejista, por vezes em articulação com os outros membros da rede actuantes em Cabo Verde. Da análise dos dados das apreensões de cocaína feitas no território europeu, tendo em conta a sua proveniência, estima-se que 27% do total, que é de 146 toneladas, tenha transitado pela África Ocidental, o que, traduzido em valores monetários, ascende ao montante de 1,8 mil milhões de dólares, segundo a ONUDC (2008). No caso particular da Guiné-Bissau, os traficantes locais fazem-se valer ainda da chamada “Licença Conexa de Pesca”, que é a autorização oficial que permite aos barcos de pesca industrial laborar em cooperação com as embarcações de pesca artesanal, onde aqueles fazem a recolha da cocaína em alto mar, fazem o transbordo para estes, que se encarregam do desembarque nas várias praias das ilhas, sem qualquer controlo das autoridades. A saída da droga para a Europa, a partir da África Ocidental, faz-se, de entre outras formas, através da rota do Sal e da rota da Seda. A Rota da Seda é uma rota ancestral que atravessa a África de Oestea Este. Em África, a rota tem o seu término na Eritreia e na Somália. A partir daí, a droga entra no Golfo de Áden, passando depois para o Afeganistão e para a Rússia, seguindo para o mercado europeu. Essa rota é usada no sentido inverso para o tráfico da heroína, que vem do Afeganistão e atravessa a África de Este a Oeste, em trânsito para os Estados Unidos, depois de passar pela Guiné-Conacry, onde existem fábricas de precursores químicos para seu processamento. A Rota do Sal éo nome por que era designada antigamente a rota terrestre utilizada para a circulação de bens, sobretudo o sal, entre o norte da África e o sul da Europa. Os países que fazem parte deste circuito são o Níger, o Mali, a Mauritânia e o Marrocos. A chamada rota do Sal foi reactivada recentemente, 157 com o objectivo de fazer a droga entrar na Europa, a partir do sul da Espanha. O transporte da droga, de Marrocos para o sul da Espanha, é assegurado por barcos de pesca industrial. A droga que circula na rota do Sal é proveniente da América do Sul e é transportada por cargueiros russos com grande autonomia de voo. Esses aparelhos aterram, na maior parte das vezes, em zonas desérticas do Mali, da Mauritânia e do Níger, onde fazem o desembarque da droga. A partir daí,ela é redistribuída com destino ao Senegal, Guiné-Conacry, Gâmbia e Guiné-Bissau. A parte destinada à Europa é, na maioria das vezes, encaminhada em colunas de camiões para o Marrocos, sob forte dispositivo de segurança dos traficantes da região. Com base em dadosdo documento acima citado, da ONUDC (2008), das apreensões feitas na Europa e onde foi possível determinar a origem da droga, calcula-se que 27%, ou seja, cerca de 40 toneladas da cocaína consumida anualmente nesse continente transita pela África Ocidental. Segundo a Europol25, a maioria da droga que tem como destino a Europa vem da África Ocidental pela via marítima, sendo que a partir da América do Sul existem três rotas principais: a do norte, que sai das Caraíbas via Açores em direcção a Portugal e Espanha; a rota central, da América do Sul via Cabo Verde ou Madeira e ilhas Canárias até a Espanha; e, mais recente, a rota da África, partindo da América do Sul para a África Ocidental e daí para a Espanha e Portugal. Ultimamente as autoridades na região começaram a observar o estabelecimento de uma nova rota da droga a partir da Guiné-Bissau em direcção à África Austral, tanto pela via aérea, com escala em São Tomé e Príncipe e tendo por destino Angola, como pela via marítima, rumo aos portos do mesmo país. Em resumo, pode-se verificar que todos os países da região da África Ocidental encontram-se afectados pelo tráfico da cocaína proveniente da América do Sul e com destino à Europa. Os traficantes internacionais da cocaína encontraram, nas fraquezas e debilidades dos Estados da região, a sua própria força para actuarem livremente numa actividade capaz de gerar rendimentos que, nalguns casos, chega a ser superior ao PIB desses países. 25. https://www.europol.europa.eu/content/publication/octa-2008-eu-organised-crime-threat-assessment-1461. 158 Os Estados da região não têm conseguido enfrentar o problema, na maioria dos casos, por absoluta falta de recursos. Como se pode observar na Figura 6, a seguir exposta, o valor estimado da cocaína que circula na região da África Ocidental chega a ser superior ao produto interno bruto (PIB) de alguns países pertencentes à CEDEAO, como é o caso da Guiné-Bissau, da Gâmbia, de Cabo Verde e da Serra Leoa, dados preocupantes que revelam a dimensão do problema para toda a região de uma forma geral e com particular relevância para esses países, que terão maiores dificuldades em fazer face às consequências nefastas do trânsito e do consumo da cocaína. A desproporção entre os grandes fluxos financeiros gerados pelo tráfico transnacional e as débeis economias formais desses países é reveladora da verdadeira dimensão do problema para a África Ocidental. Fonte: ONUDC,Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008 Figura 6 - PIB dos países da África Ocidental em 2005 (excepto Nigéria) estimado em relação ao valor da quantidade total de cocaína que transita pela região para a Europa Em alguns países, onde, pela debilidade do próprio aparelho do Estado, o narcotráfico já conseguiu penetrar nas suas estruturas civis e militares, por meio da corrupção, não sendo poucos os casos de altas autoridades dos Governos desses paísesserem referenciados como pertencentes ou facilitadores de organizações criminosas do narcotráfico na região e, nos casos mais manifestos, a comunidade internacional chega a apelidá-los de “Narco-Estados”. O trânsito da cocaína criou uma rede de traficantes locais, que prestam apoio logístico às redes sul-americanas,sendo que estas dispensam parte da droga para 159 o pagamento do serviço prestado, dando origem a uma nova rede de traficantes de cocaína, composta exclusivamente por africanos da região, com uma estrutura mais leve e simples e com um modus operandi diferente da rede que a impulsionou. Os traficantes africanos, além de suprir as necessidades do consumo local, que não pode ser considerada ainda um grande mercado, tendo em conta o fraco poder aquisitivo da região (embora esteja em crescimento) encarregam-se de recrutar “correios” para o transporte da cocaína nos voos comerciais para a Europa, onde conta com a sua rede de distribuidores, composta pelos emigrantes africanos aí residentes. A Figura 7 representa a quantidade de cocaína apreendida pelas autoridades europeias e que transitaram pelo continente africano, a partir do ano 2005 até o ano de 2007, tendo -se registado três mil e setecentos quilos (3700), em 2005, seguido de um aumento considerável em 2006, atingindo-se o volume de nove mil oitocentos e cinquenta e dois quilos (9852), para no ano seguinte, 2005, os valores conhecerem uma redução drástica para quatro mil novecentos e cinquenta quilos (4950). Não nos é possível determinar com objectividade os motivos de tão grande oscilação das quantidades de cocaína apreendida pelas autoridades europeias num intervalo tão curto de tempo, devendo-se considerar as hipóteses de mudança do modus operandi das redes internacionais do tráfico de estupefacientes, as apreensões terem ocorrido noutras paragens, designadamente nos países de trânsito, ou eventual diminuição momentânea do fluxo para a Europa. Fonte: ONUDC, Tráfico de Droga como uma Ameaça à Segurança na África Ocidental, Outubro 2008 160 Figura 7 - Volume total de cocaína ligada à África (acima de 100 kg apreendida por autoridades na Europa Os dados apresentados e analisados neste capítulo comprovam a realidade actual do conjunto dos países que compõem a África Ocidental, no que respeita a situação de vulnerabilidade a que se encontram face às grandes redes do tráfico transnacional de cocaína. A utilização da região como rota marítima e aérea para a Europa é relativamente recente, mas os números das apreensões de cocaína,as detenções dos traficantes e os avultados montantes envolvidos,indicam a crescente importância desse corredor africano, tendo em conta que as organizações criminosas encontraram um conjunto de condições propícias para a implantação e florescimento das suas actividades. A comunidade internacional, principalmente as Nações Unidas, através do seu Escritório sobre Drogas e Crime, ONUDC, tem insistentemente alertado para a ameaça que o tráfico de drogas representa para a África Ocidental, constituindo-se em verdadeiro atentado aos Estados de Direito e à segurança na região, tendo em vista o seu enorme poderio económico face aos Estados institucionalmente frágeis e permissíveis à corrupção, pelo que urge juntar esforços para o seu combate eficaz, sendo indispensável o recurso a cooperação com outros países e organizações internacionais para o efeito. 161 CAPÍTULO III CABO VERDE COMO PAÍS DE TRANSITO DE COCAÍNA 3.1 – CONTEXTUALIZAÇÃO Cabo Verde é um arquipélago de origem vulcânica, formado por dez ilhas, sendo que uma é inabitada, e cinco ilhéus. Situado a 455 quilómetros da costa ocidental africanae, aproximadamente, a 1400 km a Sudoeste do arquipélago das Canárias, no Atlântico Norte, entre o Trópico do Câncer e o Equador, mais precisamente entre as latitudes norte 17º 12´.5 e 14º 23´, e a longitude 22º 44´e 25º 22´, oeste de Greenwich, ver mapa 4 abaixo. É constituída por dez ilhas agrupadas em duas regiões: regiãode Barlavento (Santo Antão, São Vicente, S. Nicolau, Sal, Boavista e Santa Luzia que não é habitada) e região de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava). Tem uma superfície de 4.033 Km2 e uma população de aproximadamente 491.875 habitantes26. A língua oficial é o português, sendo que a língua materna é o crioulo, a mais usada pela população na comunicação informal. Ex-colónia portuguesa, tornou-se independente em 1975 e, até 1990, viveu sob o regime político uni-partidário. A partir dessa data, a Constituição da República consagrou Cabo Verde como um Estado de Direito Democrático, com um sistema de governo de separação e equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania e um poder judicial forte e independente. Os órgãos de soberania de Cabo Verde são o Presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais, de acordo com o disposto no artigo 119º da Constituição, que espelham os três poderes do Estado: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial. O Presidente da República é o garante da unidade da Nação e do Estado, da 26. Instituto Nacional de Estatística, Censo 2010. 162 integridade do território, da independência nacional e vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais. A Assembleia Nacional é a assembleia que representa todos os cidadãos cabo-verdianos, eleitos por sufrágio directo e universal, por um mandato de cinco anos. Assumidamente assente nos princípios da soberania popular, o Governo é sustentadopor uma maioria parlamentar, sendo o órgão que define, dirige e executa a política geral interna e externa do país e é, também, o órgão superior da Administração Pública. Por seu turno,os Tribunais têm por objecto dirimir conflitos de interesses públicos e privados, reprimir a violação da legalidade democrática e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Cabo Verde, em 2011, apresentava umPIB per capita de US$ 3.79727 e uma média de crescimento económico de 4,15%, entre 2000 e 2009, sendo este considerado superior à média africana 28. A moeda em circulação é o escudo caboverdiano (CVE), que tem paridade fixa com o Euro, graças ao Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde, assinado em 1998, sendo que cada euro equivale a 110,265 CVE29. A taxa de inflação situou-se em 4,5%em 2011, contra 2,1% em 2010.Entretanto, as estimativas apontam para o intervalo de 3,5% a 4,5%, em 2012, conforme as previsões do Banco de Cabo Verde30. 27. Dados do Banco Mundial http://data.worldbank.org/country/cape-verde Acessado em 12-07-12 28. Dados da UNICEF http://www.unicef.org/infobycountry/capeverde_statistics.html#73. Acessado em 12-07-12 29. O Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde foi aprovado pela Resolução n.81/V/98, de 11 de Maio, publicado no B.O. n.º 18, I Série. 30. Disponível em www.bcv.cv. Acesso em 12-07-12. 163 Mapa 4 -Localização geográfica da República de Cabo Verde Fonte: imagem da internet31 http://www.africa-turismo.com/mapas/cabo-verde.htm A situação de Cabo Verde, em relação ao narcotráfico internacional, merece uma análise particular, em virtude do cenário globalmente diferente, em comparação aos demais países da CEDEAO. A maior parte das condições referidas no capítulo anterior, propiciadoras ou facilitadoras do crime organizado internacional, não se aplica, pelo menos de forma tão clara, ao caso de Cabo Verde. As condições políticas, culturais, sociais e económicas são substancialmente diferentes. A autoridade do Estado não é questionada, embora persistem as suas carências, em termos de recursos necessários para fazer face ao desafio de assegurar uma cobertura em todo o território nacional, no que respeita ao controlo efectivo da sua ampla zona económica exclusiva (ZEE), bem como de todas as costas das suas ilhas e ilhéus. 31. http://www.africa-continent.com/cape-verde.htm Acesso em 04-07-12. As instituições da República funcionam normalmente, as eleições sucedem-se sem sobressaltos32, com alternância do poder entre as principais forças políticas. A população do arquipélago é de apenas 480.000 habitantes, repartidos por 9 ilhas, não se observando a explosão demográfica registada na região.Pelo contrário, dados dos censos da população demonstram a tendência inversa, ou seja, a taxa de natalidade tem sofrido uma redução gradual ao longo dos últimos anos, partindo-se de 29,2% em 2000, para 25,7% em 200933, isso em consequência de programas adoptados pelos sucessivos governos, visando o planeamento familiar e o controlo da gravidez, principamente a de adolescentes, com a massificação dos métodos anti-concepcionais e a distribuição gratuita de pílulas e preservativos. A economia do país é menos informal do que a dos demais países da CEDEAO, centrada mais no turismo e na prestação de serviços, com uma taxa de desemprego de dez por cento (10%)34. Apesar de algumas denúncias e poucos casos provados de corrupção, esta está longe de ser um problema alarmante na sociedade cabo-verdiana, sendo um comportamento reprovável, de forma geral, por toda a sociedade, segundo o estudo realizado pela Afrosondagem (2007). Em CaboVerde, não se registou, até hoje, qualquer conflito armado que pudesse criar um clima de instabilidade e propiciasse a proliferação de armas ligeiras, condições ideais para as organizações criminosas se instalarem e desenvolverem as suas actividades ilícitas. Apesar desse cenário diferente, Cabo Verde também faz parte da rota da cocaína, da África Ocidental para a Europa, funcionando, para o crime organizado, como uma plataforma de entrada, armazenagem e posterior reenvio para Europa de estupefacientes provenientes da América Latina. A escolha de Cabo Verde prende-se, essencialmente, com a sua localização estratégica, no oceano Atlântico, a meio percurso para a Europa, com ligações 32. O Índice da Democracia 2011, da “Economist Intelligence Unit”, coloca Cabo Verde entre os 26 países mais democráticos do mundo.http://www.sida.se/Global/About%20Sida/S%C3%A5%20arbetar%20vi/ EIU_Democracy_Index_Dec2011.pdfhttp://www.sida.se/Global/About%20Sida/S%C3%A5%20arbetar%20vi/EIU_Democracy_Index_Dec2011.pdf 33. Fonte: Instituto Nacional de Estatística – Projecções Demográficas de 2001 a 2020. 34. Fonte: Instituto Nacional de Estatística – Censo 2010. 165 directas, marítima e aérea, com a Península Ibérica, que é o principal ponto de entrada da cocaína no continente europeu, o que lhe confere a missão de plataforma de apoio avançado na rota atlântica. A sua vocação secular para aprestação de serviços à navegação aérea e marítima nas rotas comerciais entre os continentes; oprestígio internacional que gozava até um passado recente, tendo em conta que só nos últimos anos o país começou a constar do rol dos países de trânsito do narcotráfico internacional,e asflexibilidadesconsulares namobilidade/circulação de pessoas e bens para a Europa, são factores que, conjugados, contribuíram para que o país se tornasse um ponto de referência na rota da cocaína. Os dados das apreensões da PolíciaJudiciária35 cabo-verdiana,que serão apresentados no decorrer da nossa análise,permitem estabelecer o circuito da droga, desde a sua origem, na América do Sul, até o seu destino final na Europa. As apreensões de droga feitas à entrada do país são, na sua larga maioria, oriundas da América do Sul, sendo mais frequentesdo Brasil. Da mesma forma que nos outros países da CEDEAO, distinguem-se, também aqui, as duas modalidades características do narcotráfico na região, ou seja, o efectuado em grandes remessas, controladopelos traficantes sul-americanos associados aos nacionais, e o pequeno tráfico, chefiado pelos traficantes locais. O modus operandipraticado em relação ao arquipélago também é semelhante ao dos demais países da sub-região africana, tanto pela via marítima como pela aérea. 3.2 – VIA MARITIMA Pela via marítima, as apreensões têm sido efectuadas, sobretudo, em embarcações de recreio que aportam nas ilhas, originários da América Latina, visando 35. A Polícia Judiciária é o organismo nacional de prevenção e investigação criminal, auxiliar da admnistração da justiça e organizado na dependência hierárquica do membro do Governo responsável pela área da justiça. Ela possui a competência exclusiva para a realização de actos ou diligências de investigação de, entre outros crimes, os de organização e associação criminosas, relativos a estupefacientes e substâncias psicotrópicas, lavagem de dinheiro e de outros produtos ou bens, conforme disposto no Decreto Legislativo 4/93 de 12 de Maio, Lei Orgânica da Polícia Judiciária, e na Lei nº 30/VII/2008 que aprova a Lei de Investigação Criminal. 166 o reabastecimento de combustível e de alimentos, na sua trajectória no Atlântico, rumo aos mares da Europa, ou ainda através do transbordo feito em alto mar para pequenas embarcações pesqueiras que se encarregam do seu transporte para as ilhas, onde serão armazenados, reembalados e direccionados para a Europa. Em Cabo Verde, causou estupefacção na população nacional, quando, em 1989, deu-se a primeira grande apreensão de cocaína, num iate (o Good Luck) proveniente do Brasil, e que tinha como destino final a Espanha, transportando 500 kg de cocaína acondicionados no casco da embarcação e cuja tripulação era, na sua totalidade, colombiana. Actualmente, os grandes carregamentos de cocaína deixam a América do Sul, a bordo de navios mercantes ou de recreio, e já próximos da costa das ilhas é feito o transbordo para pequenas embarcações, que fazem o transporte até as praias não vigiadas, como é exemplo a recenteapreensão,pela polícia judiciária nacional, no dia 08 de Outubro de 2011, de mais de uma tonelada e meia (precisamente 1501,3 kg) de cocaína, com alto grau de pureza, após o seu desembarque numa das praias da ilha de Santiago, tendo os traficantes utilizado uma embarcação semi-rígida, moderna e veloz, com potência três vezes superior às das autoridades marítimas, adquirida, pelo que consta, especificamente para essa operação. Da praia de desembarque da cocaína até o local de armazenamento, num bairro residencial da cidade da Praia, foram utilizadas várias viaturas, inclusive com recurso a mecanismos de contra-vigilância, evitando serem seguidos pelas autoridades policiais. Segundo estimativas das autoridades nacionais, o valor da droga apreendida, no mercado europeu seria de, aproximadamente, sessenta milhões e quarenta mil euros (€60.040.000), equivalente a seis bilhões, seiscentos e vinte milhões, trezentos e dez mil e seiscentos escudos cabo-verdianos (6.620.310.600$00). Esse montante étrinta e duas vezes superior ao orçamento da própria polícia judiciária, para o ano de 2011, que era de apenas duzentos e seis milhões, cinquenta e quatro mil e oitenta e sete escudos (206.054.087$00)36, o que equivale, aproximadamente, a um milhão, oitocentos e sessenta e oito euros (€1.868.000). Em termos proporcionais, o orçamento da Polícia Judiciária, entidade de in- 36. Orçamento Geral do Estado de Cabo Verde para o ano 2011. 167 vestigação,encarreguedo combate ao crime de tráfico de estupefacientes e responsável por essa mega apreensão, era de apenas 3% do valor de mercado da droga apreendida, o que revela a disparidade de meios existente entre as autoridades e as organizações criminosas actuantes no país. Para além da droga,foram também apreendidas,várias armas, como pistolas e metralhadoras,uma grande quantidade de munições, dinheiro, em moeda nacional e estrangeira, modernos meios de comunicação via satélite e equipamentos de visão noturna. Nessa operação, denominada “Lancha Voadora”, foram detidas três pessoasem flagrante delito, apontadas como sendo os proprietários da cocaína apreendida e membros da associação criminosa que efectuava o tráfico internacional de estupefacientes, actuando no triângulo América do Sul - África Ocidental - Europa, com a intenção directa de obter avultados proventos monetários, os quais eram depois integrados no sistema financeiro Cabo-Verdiano pelos próprios membros e através das empresas por eles criadas, com recurso a sofisticados métodos de lavagem de capitais. Na sequência da apreensão da droga, além dos detidos em flagrante,foram deduzidas acusações contra quinze pessoas singulares e cinco pessoas colectivas, pelos crimes de tráfico de estupefacientes agravado, associação criminosa, lavagem de capitais agravado, detenção e depósito de armas de guerra e ainda falsidade de interveniente processual. As investigações das autoridades nacionais, em concertação com outras agências de investigação internacionais, conseguiram estabelecer as relações e os contactos entre os elementos dessa organização no país epessoas referenciadas noutros países como sendo suspeitos de tráfico internacional de cocaína, tanto na América do Sul como na Europa. O rol de activos inscritos em nome do líder e demais membros da organização ou de suas empresas é enorme, incluindo bens imóveis, como apartamentos, condomínios, terrenos em diversas ilhas do país, bens móveis, como viaturasdiversas e embarcações, valores avultados em contas bancárias e vários títulos obrigacionistas de empresas nacionais. Essa organização criminosa, entretanto desmantelada pelas autoridades nacionais, apresenta as principais características apontadas pelas diferentes correntes teóricas que procuram definir e caracterizar o crime organizado, quais sejam, 168 a hierarquização da organização, a divisão especializada de tarefas, o planeamento empresarial, a intenção duradoura das suas actividades, a transnacionalidade da prática criminosa,a penetração nos serviços do Estado, a previsão de lucros e a existência de um esquema sofisticado de lavagem de capitais, com recurso ao sector imobiliário, à comercialização de veículos de luxo, a empresas offshore, ao mercado financeiro convencional (banca comercial e bolsa de valores) e a instituições financeiras internacionais (bancos offshore)37. A organização em análise,a melhor estruturada até então conhecida pelas autoridades nacionais, poderia ser enquadrada, conforme o modelo desenvolvido por Adriano Moreira(ver Quadro 1),em termos das dimensões das organizações criminosas actuantes na actividade de tráfico de drogas, como sendo, do ponto de vista territorial, de dimensão “Macro”, por envolver diversos países da América Latina, África, Médio Oriente e Europa; igualmente de dimensão “Macro”, no que respeita ao poder económico, tendo em conta as grandes somas de dinheiro que movimentava e com recurso a paraísos fiscais; do ponto de vista do poder institucional, tem uma dimensão “Macro”, por ter angariado actores institucionais relevantes; e, finalmente, quanto ao poder de acção, de dimensão “Macro”, tendo em conta que desenvolvia as suas actividades nos mais diferentes países. 37. Bancos offshore são instituições financeiras que operam fora dos limites territoriais onde estão instalados, ou seja, são interditadas de realizar operações com residentes. Geralmente beneficiam de regimes fiscais favoráveis instituidos na região onde se encontram, de baixa incidência tributária ou até inexistente, as regras de sigilo bancário são muito rigorosas, o que justifica que seja muito utilizado para a lavagem de capitais. A maior parte das operações desenvolvidas nesses centros são aplicações financeiras. 169 Quadro 1 - Características das dimensões das organizações criminosas Atividade: tráfico de drogas Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm 170 É de se salientar que as organizações criminosas não têm, todas elas, o mesmo poder e campos de actuação, sendo que as que possuem um poder de influência maior são as mais difíceis de combater, no âmbito económico e institucional38. Ainda pela via marítima, as autoridades nacionais têm efectuado apreensões de cocaína em contentores com fundo e/ou tecto falsos, no costado de embarcações de recreio, escondida em motores de camiões a bordo de embarcações, estes últimos, supostamente, a serem enviados para a Europa como sucata para reciclagem. Servem para ilustrar esses casos, 508 quilos de cocaína apreendidos pela Polícia Judiciária, no Porto da Praia, no dia 16 de Março de 2007, no tecto falso de um contentor-frigorífico, que serviu para trazer frutas de Portugal e seria utilizado no sentido inverso para transportar a droga. Foram detidas quatro pessoas tidas como os proprietários da droga, conforme apurado e exposto no relatório da Polícia Judiciária remetido ao Ministério Público para acusação. Da mesma forma, a operação “Ferro-Velho”, da Polícia Judiciária, apreendeu no Porto da Praia, no dia 06 de Outubro de 2008, 171 kg de cocaína, escondidos dentro de motores de camiões, no momento do seu embarque para Portugal. Nessa operação, foram detidas três pessoas. Atribuiu-se à traição ocorrida dentro dessa organização, a ocorrência de três homicídios na cidade da Praia, nos dias seguintes à apreensão da droga, tendo por vítimas dois eventuais donos da droga e uma testemunha, factos constantes do relatório da Policia Judiciária remetido ao Ministério Público para acusação. Em Setembro de 2010 um iate, o “Tortuga”, foi capturado próximo das águas de Cabo Verde, por um barco da armada espanhola, e foi conduzido até à ilha de São Vicente, onde, da busca efectuada pela polícia judiciária local, resultou a apreensão de vinte e cinco quilos (25kg) de cocaína, escondidos na caixa submersado porta-leme do veleiro. O iate saíra do Brasil (América do Sul) e tinha como destino as ilhas Canárias (Europa), sendo que a sua tripulação era composta por dois cidadãos da Lituânia, que viriam a ser condenados pelo tribunal de São Vicente, no mês de Fevereiro de 2012, a dez (10) anos de prisão, conforme noticiado pelo jornal 38. http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm.Acessado em 03-07-12. 171 on-line, “asemana”, citando a sentença do tribunal da comarca de São Vicente39. Posteriormente, em sede de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça viria a atenuar a pena aplicada, fixando-a em sete anos e seis meses de reclusão, para cada um dos traficantes40. 3.3 - VIA AÉREA Pela via aérea, o crime organizado utiliza voos privados, que fazem, sobretudo, escalas técnicas de reabastecimento de combustível nos aeroportos cabo-verdianos, antes de seguirem viagem para a Europa, como foi o caso do avião “Challenge 04”, interceptado no dia 02 de Janeiro de 2011, no aeroporto El Prat, em Barcelona, Espanha, com 900 kg de cocaína, após escala técnica feita em Cabo Verde e cuja tripulação era composta por três argentinos. Ainda por via aérea, são frequentes as apreensões de cocaína feitas,principalmente,na possedos “correios”, vindos do Brasil nos voos semanais que ligam o nordeste brasileiro à cidade da Praia. Por vezes, deixam a droga nas ilhas, para depois ser enviada ao mercado final. Depois de armazenada pelos grupos locais de apoio logístico, a droga é dissimulada das mais diversas formas e encaminhada ao seu destino final. Parte de uma rede de tráfico internacional de cocaína baseada em Cabo Verde, desmantelada pelaPolícia Judiciáriaem Julho de 2004, numa outra grande operação denominada “Voo da Águia”,que se dedicava à recepção da cocaína vinda da América do Sul e aoseu envio para a Europa, revelou que a droga vinha por via marítima, era desembarcada na ilha de São Vicente e depois seguia por via aérea para a cidade da Praia e, pela mesma via, para a ilha do Sal, de onde, à época dos factos, partiam os voos comerciais para a Europa, principalmente, para Portugal, Holanda, Itália e Espanha. No total foram presas dez pessoas, incluindo os “correios” e os donos dos 202 quilos de cocaína apreendidos, quando pretendiam fazer a ligação entre a 39. http://asemana.publ.cv/spip.php?article73016&ak=1. Acessado em 09-07-12. 40. http://noticiasdonorte.publ.cv/6295/stj-reduz-pena-dos-lituanos-para-sete-anos-e-seis-meses/ Acessado em 19-10-12. 172 ilha de São Vicente, local do desembarque da droga vinda da América Latina, e a cidade da Praia, ponto a partir do qual a cocaína deveria seguir em direcção ao continente europeu. Outra importante organização criminosa que se dedicava ao tráfico de estupefacientes para a Europa foi desmantelada pela polícia judiciária, em Julho de 2005, na sequência da detenção de três “correios” transportando três malas com sessenta quilos de cocaína. Contavam com a colaboração passiva de alguns agentes da polícia nos postos de scanner no aeroporto da ilha do Sal, recrutados pela organização e mediante a recompensa de quatrocentos mil escudos (400.000$00) por cada mala de cocaína que se deixasse passarpelo serviço e controlo de bagagens na fronteira. Os “correios” eram instruídos pela rede a não despacharem as malas com a droga no serviço de “check in” do aeroporto, tendo em conta que já estaria garantida a sua passagem, sem problemas, como bagagem de mão, no serviço de scanner, tornando patente a perspectiva evidenciada por Oliveira (2004) de que o crime organizado se caracterizapor envolver um grupo de indivíduos que tem as suas actividades ilícitas sustentadas por atores estatais (por meio do oferecimento de benesses ou actos de cooperação)41. O serviço de “correio” para a Europa era assegurado, inicialmente, por tripulantes de cabine de umacompanhia aérea nacional42, mediante o pagamento de trezentos mil escudos (300.000$00), por cada quilo transportado para a Europa. Esses funcionários serviam ainda de informantes da rede, fornecendo detalhes dos aeroportos na Europa nos quais o sistema de controlo e segurança era menos eficaz, o que permitiria a introdução da droga nesse continente com menos riscos, conforme os factos relatados e dados como provados no Acordão n.º 98/ 2010 do Supremo Tribunal de Justiça. Com base em informações desses funcionários, o aeroporto de Bergamo43 na Itália começou a ser explorado pela rede, por ser um destino com um sistema de controlo mais facilitado, sendo difícil ser detectada a droga transportada. 41. http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm. Acesso em 03-07-12 42. Preferiu-se omitir o nome da companhia aérea. 43. O Aeroporto de Bergamo (oficialmente Aeroporto Internacional Orio al Serio) está 45 quilómetros a nordeste de Milão, perto da cidade de Bergamo. Em 2005, Bergamo recebeu quase 4,5 milhões de passageiros. 173 Para tal, a partir do ano 2005, a rede passou a recrutar “correios” estrangeiros, de nacionalidade portuguesa, espanhola, francesa e alemã, os quais, a pretexto de visitarem o país como turistas, regressavam à Europa transportando,cada um deles, entre quinze (15) e vinte (20) quilos de cocaína, contando sempre coma conivência dos agentes policiais no serviço de fronteira do aeroporto internacional da ilha do Sal que faziam parte da organização criminosa, conforme o Acordão n.º 98/2010 do Supremo Tribunal de Justiça. Numa única viagem, um “correio” conseguia, através desse esquema, introduzir na Holanda, por exemplo, vinte (20) quilos de cocaína, transportados em malas do tipo “carry on”. Chegado à Europa, a missão estaria concluída, mediante a entrega do produto a outro elemento da rede, de quem apenas levavam um número de telefone para contacto. O dinheiro arrecadado com a venda da droga na Europa era enviado para Cabo Verde, por vezes através dos próprios “correios”, sendo empregue na aquisição de lotes de terreno, apartamentos, automóveis, bem como na construção de edifícios, recorrendo a empresas de fachada pertencentes aos membros da organização criminosa, conforme os factos relatados e dados como provados, no Acordão n.º 98/ 2010 do Supremo Tribunal de Justiça. O esquema utilizado pela organização começou a ruir quando três “correios” estrangeiros foram interceptados pela polícia judiciária, ao tentarem embarcar com sessenta quilos de cocaína com destino a Bergamo – Itália. As investigações prosseguiram, valendo-se inclusive da cooperação judiciária internacional, até à prisão efectiva do líder e demais membros da organização criminosa. Com a condenação definitiva dos membros da rede, pelo Supremo Tribunal de Justiça, com penas de prisão efectiva entre dez e vinte anos de reclusão, foram declarados perdidos a favor do Estado todos os bens móveis e imóveis, bem como os saldos das contas bancárias a eles pertencentes, que terão sido adquiridos com os proventos da prática criminosa, conforme proferido no Acordão n.º 98/2010. Essa organização criminosa apresentava, igualmente, as principais características apontadas pelas diferentes correntes teóricas que procuram definir e caracterizar o crime organizado, vale dizer, a hierarquização da organização, a divisão especializada de tarefas, o planeamento empresarial, a transnacionalidade da prática criminosa, a penetração nos serviços do Estado, a previsão de lucros e 174 a existência de um processo de lavagem de capitais, com recurso ao sector imobiliário e ao mercado financeiro. Nos voos comerciais, à entrada no país, principalmente na ligação Fortaleza (Brasil) -Cidade da Praia, mas também à saída para a Europa, tem-se apreendido cocaína, dissimulada na bagagem dos “correios”, em fundo falso de malas, entre objectos de vestuário e calçados, em capas de livros, em latas de conserva de atum, dissolvida em produtos de higiene bucal, colada ao corpo, no ânus, na vagina, de entre outras formas, factos suficientemente provados nos vários processos instruídos e julgados na comarca da Praia. 3.4 -“CORREIOS” Os “correios” são, em regra, jovens desempregados,cuja faixa etária se situa entre os 23 e os 30 anos, ou pessoas que alegam passar por dificuldades financeiras ou com familiares doentes (normalmente, pais ou filhos),que são aliciados com a promessa de ganhar uma soma considerável de dinheiro, fazendo apenas uma viagem,transportando a droga.Não conhecem o verdadeiro “dono” da cocaína, apenas os intermediários e, mesmo estes, normalmente usam nomes falsos, o que torna difícil identificá-los, sendo, na sua maioria, nigerianos e senegaleses residentes em Cabo Verde, de acordo com o perfil traçado numa investigação do jornal ASemana, com recurso a entrevistas aalguns presos por transporte de cocaína e auma Magistrada do Ministério Público44. Esse intermediário paga-lhes a passagem aérea, os custos dealojamento e alimentação no Brasil, dando-lhes ainda algum dinheiro para comprarem roupas, objectos de decoração, produtos de beleza e outros objectos nos quais possam dissimular a droga. No Brasil, ficam hospedados em hotéis, na cidade de São Paulo, e aguardam o contacto de outro intermediário, o qual também desconhecem, e que lhes entregará a droga para transportarem. Não há um preço fixo estipulado pelo serviço do “correio” da droga, havendo relatos de presos45, aos quais foram prometidos desde duzentos mil escudos 44. http://asemana.publ.cv/spip.php?article71587&ak=1. Acesso em 09-07-12. 45. http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article71587&ak=1. Acesso em 04-01-2012. 175 (200.000$00) até quinhentos mil escudos (500.000$00), o equivalente a um montante aproximado entre os 1800 e 4500 euros, entrando na determinação do preço a pagar, a experiência do “correio” no transporte de drogas e o grau de vulnerabilidade psicológico e financeiro em que a pessoa se encontra no momento da abordagem para realizar o serviço. Conhecem-se casos pontuais, envolvendo “correios” recrutados entre assistentes de bordo de umacompanhia aérea nacional para o transporte da cocaína, de Cabo Verde para a Europa, designadamente Portugal e Holanda, contando com as facilidades, inerentes à profissão, no serviço de controlo dos aeroportos, e ainda com a complacência de alguns agentes policiais do serviço de emigração e fronteiras, corrompidos pelas redes do narcotráfico. Serve para ilustrar, a detenção de um assistente de bordo de uma companhia aérea nacional, na posse de dois quilos (2kg) de cocaína, ocorrida a 3 de Agosto de 2006, no aeroporto da Praia, antes de descolar viagem em direcção à Amsterdão, Holanda. Esse mesmo indivíduo viria a ser assassinado a 6 de Dezembro de 2007, dentro da sua cela, na cadeia de S. Martinho, enquanto aguardava o julgamento preventivamente, suspeitando-se que a sua morte tenha sido “queima de arquivo”, tendo em conta que se predispôs a colaborar com a justiça no sentido de identificar os outros elementos da organização. Na sua maioria, os “correios” detidos nas fronteiras nacionais são cidadãos cabo-verdianos, mas encontram-se também pessoas de outras nacionalidades, como portugueses, brasileiros, angolanos, nigerianos e bissau-guineenses. Nos últimos anos, tem-se registado uma mutaçãono modus operandi do transporte executado pelos “correios”, que passaram a trazer quantidades menores de cocaína, optando-se por aumentar o número de pessoas que efectuam o transporte, em função das medidas de controlo mais apertadas das autoridades aeroportuárias, diminuindo o risco de sofrerem grandes perdas com a detenção de um único “correio”. 176 De 2005 a 2011, foram detidos 713 “correios” de droga em Cabo Verde, tanto à entrada como á saída do país46. Conforme se pode observar no Quadro2, abaixo, os números das detenções têm sofrido grandes oscilações ao longo do período (2005 a 2011), explicadas pela disponibilidade de recursos materiais e humanos, postos à disposição da Polícia Judiciária, vistas as grandes carências de meios que essa polícia científica ainda enfrenta, enquanto entidade competente para realizar revistas dos passageiros e respectivas bagagens nos aeroportos do país; pela eficácia na troca de informações com os serviços de inteligência policiais de outros países envolvidos;e ainda, na sequência de mudanças do modus operandi realizadas pelos transportadores da droga, sendo certo que é necessário algum tempo para as autoridades conhecerem as novas tendências de dissimulação utilizadas pelos transportadores de droga a cada momento. Quadro 2- Número de detenções efectuadas, por tráfico de droga, no período 2005-2011 Fonte: Polícia Judiciária de Cabo Verde 46. Dados dos Relatórios anuais da Polícia Judiciária de Cabo Verde. 177 A Figura 8 representa, graficamente, as oscilações ocorridas nas detenções de passageiros transportando cocaína proveniente da América do Sul, principalmente do Brasil, e na saída do país com destino à Europa, durante o período de 2005 a2011, nos aeroportos da cidade da Praia e da ilha do Sal. Fonte: Polícia Judiciária de Cabo Verde Figura 8 - Evolução do número de “correios” detidos, 2005-2011 O elevado valor da cocaína, no mercado europeu, compensa eventuais perdas decorrentes da prisão de alguns “correios”. O quilo da droga, vendido a mil e quinhentos euros (€1.500) num país produtor, como a Bolívia, por exemplo, chega a valer quarenta mil euros (€40.000) do outro lado do Atlântico, sofrendo, assim, um agravamento de 2567% no seu preço inicial, comprovando que são os traficantes, e não os produtores, os principais beneficiados com esse negócio ilícito. 3.5 - HOMICÍDIOS Tem-se atribuído a disputas entre organizações rivais e, principalmente, a traições ocorridas dentro de uma mesma organização, como dívidas contraídas e não pagas entre os membros, ou ainda, casos de furto de drogas para benefício particular em detrimento do colectivo, algumas dezenas de homicídios que têm acontecido nos últimos anos no país, principalmente na cidade da Praia, e em menor escala, nas ilhas de S. Vicente e do Fogo. 178 Os homicídios relacionados com o crime de tráfico de drogas fogem do padrão “comum” dos demais homicídios que vêmocorrendo, geralmente,emconsequência de brigas entre conhecidos, por motivos passionais, em situações que configuram o latrocínio ou na sequência da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. Os homicídios ligados ao tráfico de estupefacientes,geralmente, são cometidos “por encomenda”, ou seja, o mandante contrata ou manda contratar uma terceira pessoa para executar o crime, que, em regra, é perpetradoem plena via pública, sendo a vítima atingida por vários disparos de armas de fogo de grandecalibre,manifestamente interditos a civis, e dificilmente são conhecidos os seus autores, tanto pelo “profissionalismo” empregado na execução, como pelo medo que se apodera das eventuais testemunhas oculares do crime, que recusam a prestar o seu depoimento relativo ao ocorrido. “Homicídios por encomenda” ou na terminologia de Barreira (1998), crimes de pistolagem. Embora com motivações diferentes, os crimes de pistolagem abordado pelo autor de “Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário brasileiro” têm, historicamente, duas grandes causas, o voto e a terra, enquanto os homicídios por encomenda, objectos de análise neste estudo, cobrem apenas os marcadamente associados ao tráfico de drogas. Apesar disso, algumas características são comuns a essas realidades tão diferentes, para que esses homicídios possam ser considerados “por encomenda” ou de “pistolagem”, como o facto de serem cometidos por um terceiro, que ofaz em troca de pagamento em dinheiro ou por uma dívida moral ou económica, havendo, portanto, um mandante da acção que é quem paga pelo serviço (BARREIRA, 1998). Normalmente, nessa relação entre o mandante e o executante, há um actor, elo fundamental, que concorre directamente para o sucesso desse tipo de delito, o “agenciador” ou “corretor” da morte, ou seja, o intermediário. É este actor que arquitecta o crime, prepara psicologicamente o pistoleiro e dá cobertura judicial, no caso de ele ser levado a julgamento conforme relata Lima (2009)47. Existe uma relação de lealdade entre o “pistoleiro” e o mandante, que faz com que aquele não denuncie este, em caso da sua prisão, levando a que a justiça não 47 http://www2.forumseguranca.org.br/node/22736/. Acesso em 09-07-12 179 consigaprender, julgar e condenar os mandantes desse tipo de crime, centrandose apenas no “pistoleiro”, ficando o mandante e o intermediário sem qualquer punição, na perspectiva de Lima (2009), analisando a obra de Barreira (1998). Em Cabo Verde, apesar de ser um fenómemo bastante recente e, essencialmente, ligado ao tráfico de drogas, não há relatos de homicídios por encomenda associados a actividades políticas ou pela disputa da terra, como referido por Barreira (1998).Os casos de conhecimento público, em fase de investigação criminal ou já julgados e condenados pelos tribunais, apontam que o perfil do “pistoleiro” em Cabo Verde é,geralmente, um jovem cidadão cabo-verdiano, deportado dos Estados Unidos da América pela prática de crimes violentos, ou, ainda, cidadãos estrangeiros recrutados e enviados ao país pororganizações criminosas, com a única finalidade de cometer o homicídio, conforme as informações prestadas,em conversa com o Director Nacional Adjunto da Polícia Judiciária. A opção por esses criminososéjustificada pela perícia técnica que possuem, fruto de vivências noutras realidades, habituados a esse tipo de fenómeno, garantindo-se, deste modo, por um lado, a eficácia da execução e, igualmente importante, por outro lado, dificultando a descoberta da identidade dos envolvidos (executante, intermediário e mandante). É interessante observar ainda que, de acordo com o descrito por Barreira (1998), a figura do “pistoleiro”, que antes agia apenas no campo, passou a ocupar os espaços urbanos, pelo aumento da demanda por seus serviços e pelas várias possibilidades proporcionadas por esses ambientes, como a facilidade para fugas, utilização de motos e capacetes que, além da agilidade na fuga, servem de disfarce, dificultando a identificação dos autores dos crimes, sendo que há relatos do mesmo modus operandi em crimes de homicídio ligados ao tráfico de drogas, praticados em Cabo Verde. Do ponto de vista da ciência jurídica, convem realçar que, tanto o “crime de pistolagem” no Brasil como o “homicídio por encomenda” em Cabo Verde, não são assim designados pelos códigos penais dos dois países, sendo apenas figuras linguísticas constituídas culturalmente48. O código penal pátrio reconhece o crime de homicídio mediante paga ou recompensa ou sua promessa como agravante do crime de homicídio, em razão dos 48 http://www.apavv.org.br/artigos/art31.htm. Acesso em 09-07-12 180 meios ou motivos para o seu cometimento, previsto no seu artigo 123º, evidenciando, assim, a existência de, pelo menos, dois agentes da acção: o mandante, que paga ou promete pagar, e o executante, que cumpre e recebe a sua recompensa pelo crime praticado. Normalmente, a vítima é seguida durante algum tempo pelo seu algoz,de maneira a este conhecer as suas rotinas e vulnerabilidades, certificando-se do momento mais propício para consumar a execução, sem risco de falha. Quando esse tipo de homicídio acontece, gera comoção na sociedade, tendo em conta o modus operandi que os seus autores usam, não importando que seja praticado à luz do dia e em plena via pública, sempre com extraordinária violência. 3.6 - LAVAGEM DE CAPITAIS Simultaneamente ao tráfico de estupefacientes, há sinais do desenvolvimento de uma economia paralela em Cabo Verde, através de esquemas de lavagem de capitais, envolvendo a criação de empresas de fachada, cujo principal objectivo é, a dissimulação dos proventos do crime, sabendo-se que o êxito de qualquer actividade do crime organizado depende, em grande medida, do seu sucesso em ocultar as origens dos fundos e em “lavar” os rendimentos, utilizando, para tal, os sistemas financeiros nacional e internacional. Tradicionalmente, define-se a lavagem de dinheiro como um conjunto de operações, por meio das quais os bens, direitos e valores obtidos com a prática de crimes são integrados no sistema económico-financeiro, com a aparência de terem sido auferidos de maneira lícita. O Grupo de Acção Financeira (GAFI)49, reconhecido como a organização internacional que estabelece os padrões normativos, em forma de recomendações aos Estados, para a constituição e reforço dos seus sistemas preventivos e repressivos à lavagem de capitais, apresenta, de forma sintética, o conceito de lavagem de capitais como sendo “a utilização e transformação de produtos do crime para dissimular a sua origem ilícita, com o objectivo de legitimar os proventos resul49. O Grupo de Acção Financeira (GAFI) é um organismo intergovernamental criado em 1989, com o objectivo de elaborar normas e de promover a aplicação eficaz de medidas legislativas, regulamentares e operacionais em matéria da luta contra a lavagem de capitais e financiamento do terrorismo e outras ameaças à integridade do sistema financeiro. 181 tantes da actividade criminosa50. A “lavagem”, ou a ocultação de bens, direitos e valores, constitui uma ameaça grave aos Estados, pelos efeitos macroeconómicos nocivos que pode causar, com a súbita migração de capitais, pelas distorções que provoca no mercado, eliminando a livre e sã concorrência, e também por nutrir o submundo que, através docrime, corrói e desmoraliza as instituições democráticas. Actuando em diversos sectores da economia nacional, como a construção civil, o turismo, o imobiliário, a restauração, a diversão nocturna, de entre outros, essas empresas desvirtuam o mercado, com a prática de uma concorrência desleal em relação aos demais operadores, pois a elas não interessa muito mais do que dar uma aparência lícita ao elevado lucro obtido com o tráfico de estupefacientes, afastando, o mais possível, a ligação entre esses valores e o crime praticado. Tem-se verificado a prática da lavagem de capitais em Cabo Verde em todas as suas três fases clássicas: a Colocação ou Placement, quando o dinheiro proveniente da actividade ilícita é depositado junto das instituições de crédito, preferencialmente nos bancos, muitas vezes recorrendo-se ao Smurfing, técnica segundo a qual uma grande soma em dinheiro é dividida em parcelas pequenas para ser depositada sem levantar suspeitas;seguida da fase da Ocultação,Transformação ou Layering,evidenciado por um emaranhado de complexas transacções financeiras,em que esses montantes são transferidos para outras contas do depositante ou para outros clientes no mesmo banco ou em bancos diferentes ou, ainda, transferidos para o exterior,dificultando,ao máximo,o seu rastreamento por parte das autoridades;e, finalmente, na fase da Integração ou Integration, quando o dinheiro é reintroduzido no sistema económico-financeiro, através da aquisição de bens móveis e imóveis, eliminando o rasto originariamente ilícito, consoante os dados do Relatório de Actividades da Unidade de Informação Financeira de 2011. Completando-se essas três etapas, o crime organizado terá realizado, com sucesso, a sua actividade e atingido a sua finalidade máxima de obter enormes proveitos, por meio de práticas delituosas e com elevados prejuízos para toda a sociedade. 50. GAFI, Perguntas Frequentes, O que é lavagem de capitais? http://www.fatf-gafi.org/fr/pages/foireauxquestionsfaq/blanchimentdecapitaux/. Acesso em 15-05-12. 182 Estima-se que essa economia paralela movimentou em Cabo Verde, durante o ano de 2010, um valor aproximado de 1,88 mil milhões de escudos, equivalente a 1,52% do PIB51, e, em 2011, um montante aproximado de 5,36 mil milhões de escudos, o correspondente a 4% do PIB nacional52, conforme se pode observar na Figura 9, evidenciando uma tendência para o crescimento do peso dessa actividade, no todo da economia cabo-verdiana, trazendo, atrelado a si, todas as consequências nefastas que a lavagem de capitais acarreta para uma sociedade53. Fonte: Unidade de Informação Financeira Figura 9 - Montantes envolvidos nas COS Assiste-se actualmente, na sequência das grandes apreensões de droga, ao empenho das autoridades nacionais no desmantelamento dessas organizações criminosas, com enfoque na recuperação dos bens adquiridos pelos seus membros nos esquemas de lavagem decapitais, conforme espelhado no Quadro 3, abaixo, sendo que a soma total desses activos ilícitos, no período em referência (2004 a 2011), ultrapassa os dez milhões de euros, (€10.000.000), valor bastante considerável numa pequena economia como a de Cabo Verde. 51. Fonte: Relatório da Unidade de Informação Financeira de 2010. 52. Fonte: Relatório da Unidade de Informação Financeira de 2011. 53. O Produto Interno Bruto, estimado, de Cabo Verde em 2011 foi de 133,115 mil milhões de CVE. 183 Quadro 3- Apreensão de activos ilícitos no âmbito do combate ao tráfico de drogas e lavagem de capitais Fonte: Direcção Nacional da Polícia Judiciária O valor das apreensões feitas pelas autoridades representa quase seis por cento (6%) do Orçamento do Estado cabo-verdiano para 2012. As investigações em curso já permitiram a apreensão, em dinheiro, de meio milhão de contos (4,5 milhões de euros) e o congelamento de bens no valor de um milhão de contos (9,06 milhões de euros).54 Foram declarados revertidos, em definitivo, a favor do Estado, bens avaliados no montante de dois milhões de contos (18,1 milhões de euros). O Quadro 4 reflecte as apreensões de cocaína feitas pela Polícia Nacional e pela Polícia Judiciária, a partir do ano de 1990 até o de 2011, com a ressalva de que, em alguns anos nesse intervalo, não há registos das apreensões feitas. A oscilação é bastante grande no período em referência,explicada pelas mesmas razões das oscilações referentes às detenções dos traficantes, tais como a maior ou menor disponibilidade de recursos materiais e humanos postos à disposição da Polícia Judiciária,a eficácia na troca de informações com os serviços de inteligência policiais de outros países envolvidos,conforme os acordos de cooperação existentes, ou ainda as mudanças do modus operandidas organizações criminosas nos meios de transporte ou de dissimulação da droga, sendo certo que é necessário algum tempo para as autoridades conhecerem as novas tendências e a partir daí traçar novas estratégias de prevenção e combate. 54. Declarações da Ministra da Administração Interna de Cabo Verde, disponível em: http://www.asemana. publ.cv/spip.php?article75440&ak=1#ancre_comm. Acesso em 24/04/12. 184 O destaque vai claramente para o último ano, 2011, onde o volume apreendido ultrapassa uma tonelada e meia (1.532 kg), sendo 1501 kg numa única apreensão. Quadro 4 - Cocaína apreendida em Cabo Verde Anos 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 TOTAL Cocaína apreendida KG 540 40 ? 0 ? 89.459 2.779,69 80.915,24 2.108,57 6.963,48 6.970 ? 41.820 16.350 333.670 156.821 43.257,01 534.763,63 195.541,34 34.572,29 65.295 1.532.791,54 3.144.658,08 Fonte: Polícia Judiciária Além dessas apreensões de cocaína efectuadas em Cabo Verde pelas autoridades policiais nacionais, o país tem sido, igualmente, referenciado em apreensões feitas em diversas regiões do globo, como rota de passagem da droga, confirmando a sua condição como país privilegiado de trânsito de estupefacientes oriundos da América do Sul. Dados compilados pela ONUDC e reflectidos no Quadro 5, abaixo, servem para ilustrar essas referências, tendo sido apreendidas grandes quantidades de drogas em países tão distantes como por exemplo a Austrália, em 2001, tendo a embarcação passado por Cabo Verde antes de rumar para o porto de destino em Dulverton Bay, tendo a bordo 938 kg de cocaína. 185 Quadro 5 - Apreensões de droga em embarcações com ligação a Cabo Verde,2000-2007 Fonte: ONUDC 2012. 186 Como foi demonstrado neste capítulo, com base em consultas a processos judiciais, a notícias dos jornais e em entrevistas aos responsáveis pelas operações policiais e judiciais, foi possível precisar a rota transnacional de tráfico de cocaína de que Cabo Verde faz parte, com origem na América do Sul, com destaque para o Brasil, transitando pela África Ocidental e com destino final a Europa. Com base nas mesmas fontes, apresentamos os principais meios e estratégias utilizados pelos narcotraficantes para introduzir a droga no país, bem como no seu reenvio para o destino final. Socorrendo-se de alguns casos exemplares de operações policiais de desmantelamento de organizações criminosas actuantes no país, descrevemos as suas formas de actuação, tanto pela via aérea como pela marítima, o papel desempenhado pelos chamados “correios” de droga, o surgimento dos homicídios por encomenda, destacando-se as principais diferenças que apresentam em relação aos homicídios ocasionais que ocorrem no país e a implementação de uma indústria de lavagem de capitais, que se encontra actualmente em pleno florescimento e que periga a sustentabilidade da economia legal. Finalmente, apontamos os sinais que o Estado de Cabo Verde tem dado no combate ao crime organizado, evitando que o país se torne em porto seguro para as organizações criminosas transnacionais. 187 CAPÍTULO IV OS IMPACTOS DA CRIMINALIDADE EM CABO VERDE Neste capítulo, procederemos à análise dos dados criminais do país, a partir do ano 2000, marco da Paralelamente, analisaremos os resultados do inquérito efectuado junto das autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade no país, quais sejam, a Polícia Nacional, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e os Juízes criminais. Na sequência da aplicaçãodo questionário submetido a essas autoridades,estes começaram por determinar o período a partir do qual o país começou a observar o trânsito transnacional da cocaína e, com base nesse momento, fizeram uma apreciação da tipologia e frequência dos crimes praticados antes desse período e as alterações ocorridas posteriormente, sob o impacto dessa exposição do arquipélago ao narcotráfico transnacional. A nossa análise incidirá sobre a evolução dos crimes apontados como conexos ao tráfico de estupefacientes, tais como o roubo, a posse ilegal de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de capitais. Dos vinte e um (21) inquiridos, a maioria, que representa 57% do total, considera que o crime de tráfico de estupefacientes/cocaína começou a ser observado em Cabo Verde no período anterior a 1990 e que os seus efeitos práticos só se vieram a verificar, com maior predominância, no período entre 1990 e 1995. Em entrevista concedida no dia 04 de Agosto de 2005 ao Voice of América55, o então Director Nacional da Polícia Judiciária, Virgílio Varela, apontava o início do consumo e do tráfico de drogas em Cabo Verde para essa mesma época, corroborando as respostas agora obtidas, afirmando que: O consumo da cannabis terá começado nos anos 70 e o consumo da heroína e da cocaína nos finais dos anos 80, princípio da década de 90. É evidente que há gente a vender, por isso é que a policia judiciária, para além do combate ao grande tráfico, 55. www.voanews.com/portuguese/archive/2005-08/2005. Acesso em 15-03-2010. 188 tem apostado também na repressão do tráfico interno, desse pequeno tráfico que é também o principal responsável pelo aumento dos crimes contra a propriedade, nomeadamente furtos e roubos, e acaba também por induzir a um aumento da situação de insegurança. Respondendo detalhadamente aos impactos do tráfico de estupefacientes nos dados da criminalidade interna, os inquiridos consideram que, apesar de já existirem alguns sinais dos efeitos do crime de tráfico de drogas em 1990, os seus efeitos, nomeadamente nos crimes de homicídio simples e qualificado, tinham pouca predominância, ou seja, eram menos frequentes e, após esse período, passou a ser moderada ou frequente, conforme demonstram os gráficosda Figura 10, sendo a imagem V3a percepção das autoridades,referente ao período antes da passagem da cocaína pelo país e a imagem V6 já sob a influência do crime do tráfico transnacional. Esses gráficos foram elaborados com recursoao conhecido softwareSPSS e com base no cruzamento das respostas dadas pelas autoridades inquiridas. 189 Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário Figura 10 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de homicídio, antes e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde Relativamente ao crime de posse ilegal de arma de fogo, o mesmo já se notava com alguma frequência antes de 1990, tornando-se muito frequente após esse período. Em relação ao crime de furto qualificado, que já no período antes de 1990 demandavaalguma atenção, apesar de moderada, no período após 1990 tornou-se muito preocupante, passando a ser muito frequente a prática desse tipo de crime contra a propriedade. Quanto aos crimes de roubo e roubo qualificado, verifica-se o mesmo fenómeno, em que no período anterior a 1990 já apresentavam alguma preocupação, com incidência moderada e alguma frequência, respectivamente,passandoa acontecer com frequência ou muita frequência após essa data. 190 O aumento registado nos chamados de crimes violentos, conexos ao tráfico de estupefacientes, estará ligado, principalmente, ao mercado consumidor, embora de dimensões reduzidas, entretanto formado pela passagem da cocaína por Cabo Verde, tendo em conta que parte da droga é utilizada para pagamento do serviço prestado pelos locais. Os consumidores ávidos para saciarem o vício e sem meios financeiros que os permitem fazê-lo socorrem-se de outros meios, como o roubo, para obterem o valor necessário para adquirirem a droga. O estudo sobre a criminalidade em Cabo Verde - II Fase, realizado pela CCCD, em parceria com a ONUDC (2009), indicou que a população cabo-verdiana elege o consumo de drogas como a segunda maior causa da criminalidade no país. Os inquiridos nesse estudo entendem que as principais causas da criminalidade no país são as seguintes: desemprego (42%); consumo de drogas (39%); pobreza (23%); problemas familiares (15%) e deficitde educação (19%). Esse mesmo estudo revela que, dos crimes que causam maior ameaça no bairro dos inquiridos, o tráfico de drogas vem em segundo lugar, com 26%, logo a seguir ao homicídio, com 45%. Os crimes de homicídio estarão ligados a conflitos que ocorrem dentro das organizações criminosas, principalmente por traição entre os seus elementos que, com alguma frequência, se apropriam de parte da droga armazenada ou não conseguemsaldar as suas dívidas para com a organização. Outro crime conexo ao tráfico de estupefacientes é a lavagem de capitais que, com base nas respostas das autoridades ao inquérito, era inexistente ou desconhecido em Cabo Verde, antes de 1990. Após a observação do crime de tráfico de drogas, este fenómeno passou a ser frequente ou muito frequente, de acordo com as respostas obtidas e que se constatam da análise dos gráficos da Figura 11, sendo a imagem V3 correspondente ao período antes do trânsito da cocaína por Cabo Verde e a imagem V6 relativa ao período actual. 191 Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário Figura 11 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de lavagem de capitais, antes e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde 192 Aos mesmos inquiridos, foi perguntado sobre a tendência que se tem verificado em relação ao crime de tráfico de drogas no país. A maioria, ou seja 52,4%, entende que tem aumentado e 42,9% acha que tem estabilizado, restando apenas 4,8% que acredita ter diminuído. Respondendo sobre a tendência que se tem verificado em relação aos crimes conexos ao tráfico de drogas, a larga maioria dos inquiridos, 76,2%, entende que têm aumentado nos últimos anos. A Figura 12 reflecte essa constatação, exemplificado com o crime de roubo que, de acordo com as autoridades entrevistadas, antes da entrada do país na rota do narcotráfico transnacional tinha uma tendência moderada, representada na imagem V3 e, actualmente, influenciada por esse crime, para além de outros factores, apresenta-se de forma frequente ou muito frequente, conforme a imagem V6. 193 Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário Figura 12 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de roubo, antes e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde 194 Essa percepção das autoridades policiais e judiciais é corroborada pelos dados quantitativos das estatísticas criminais do país, que demonstram tendência para um aumento dos crimes correlacionados com o tráfico de estupefacientes, como são os casos de roubo, homicídio e posse de arma de fogo. Esses crimes têm crescido, ao longo dos últimos dez anos, a um ritmo muito superior à média dos demais crimes não directamente correlacionados com o tráfico de estupefacientes, conforme representado nafigura abaixo. Enquanto os crimes correlacionados com o tráfico de estupefacientes cresceram a partir do ano 2000 de forma acentuada, sofrendo oscliações frequentes e com picos em determinados períodos, os outros crimes não directamente correlacionados com o tráfico seguiram uma tendência mais constante, com poucas oscilações ao longo do período em análise (ver Figura 13). Fonte: Elaborado a partir dos dados dos Relatórios da criminalidade no país, cedidos pela Polícia Nacional Figura 13 - Evolução dos crimes conexos ao tráfico e de outros crimes Ligados ao consumo de estupefacientes, ou seja, ao mercado local, aumentaram os crimes de furto e roubo, claramente para a obtenção de meios para o sustento do vício, enquanto, em decorrência da actividade logística das organizações criminosas, proliferaram os homicídios por encomenda, motivados por disputas internas ou entreestruturas concorrentes, crimes esses com enorme impacto no sentimento de insegurança da sociedade, tendo em conta o “modus operandi” que é utilizado. 195 Estudos já realizados noutros países apontam neste mesmo sentido, como assinala Zaluar (2004, p. 61): Se a justiça não pode ser accionada por causa da ilegalidade do empreendimento, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafectos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade. Nesta mesma perspectiva, escreve Beato (2001, p.2): Existem várias maneiras pelas quais os crimes podem estar associados à questão das drogas. A primeira delas está relacionada com os efeitos das substâncias tóxicas no comportamento das pessoas. Outra forma de associação decorre do fato de tais substâncias serem comercializadas ilegalmente, gerando então violência entre traficantes, corrupção de representantes do sistema da justiça criminal e acções criminosas de individuos em busca de recursos para a manutenção do vício. Quanto à proveniência da cocaína que passa por Cabo Verde há uma unanimidade dos inquiridos, vale dizer, 100% responderamque a origem é a América Latina. Entretanto, 19% apontaram ainda a África como procedência de alguma droga/cocaína que circula pelo país. Em relação ao destino final da cocaína que é apreendida no território nacional, 100% dos inquiridos responderamque se destinava a outros destinos, mais precisamente àEuropa. As respostas de forma unânime a essas duas questões, aliadas aos dados das apreensões decocaína pelas autoridades nacionais, confirmam a rota da América Latina para Europa, com passagem por Cabo Verde, bem como outra que chega ao país após passar pela costa ocidental africana, também em direcção ao continente europeu. Os inquiridos, da mesma forma, responderam unanimemente, pela negativa, ou seja, 100% disseram que não, quando questionados se Cabo Verde dispõe de um mercado interno que justifique as grandes apreensões de cocaína. Assim sendo, facilmente se pode concluir que as grandes quantidades de drogas ilícitas que têm sido apreendidas nos portos e aeroportos nacionais à entrada, não se destinavam ao consumo interno, conclusão que, aliás, é corroborada pelas grandes apreensões igualmente feitas pelas autoridades cabo-verdianas à saída do país, tanto pela via aérea como pela marítima, conforme comprovam os dados estatísticos da Polícia Judiciária cabo-verdiana. 196 Questionados sobre os meios de transporte utilizados para fazer chegar a cocaína aopaís, a maioria, 76,2%, entende que é a conjugação de meios aéreo e marítimo, 28,6% dos inquiridos acham que é por via aérea, e 23,8% pensam que é por via marítima. Em relação à saída da droga do país, 66,7% entendem que é pela combinação de meios aéreo e marítimo, 33,3% pensam que é por via aérea e 23,8% acham que é por via marítima. As respostas obtidas dos inquiridos, no que se refere aos meios de transporte utilizados pelos traficantes para fazer chegar e escoar a droga do país, vãoao encontro aos registos das apreensões de cocaína que têm sido feitas, tanto quando transportados pela via aérea como pela via marítima. Quanto às estratégias utilizadas pelos traficantes para ludibriar as autoridades na introdução da droga no país, numa pergunta com respostas múltiplas, 95,2% optaram por assinalar “dissimulado no meio da bagagem”, 85,7% indicaram o“organismo”, 85,7% apontaram “ocultado no corpo”, 76,2% indicaram “em contentores” e 33,3% anotaram “outras” estratégias. Na saída da droga do país, os inquiridos indicaram “dissimulado no meio da bagagem” 95,2%, no “organismo” 66,7%, “ocultado no corpo” 81%, “emcontentores” 81% e 23,8% apontaram “outras” estratégias. Respondendo à pergunta se o tráfico de drogas em Cabo Verde poderá ser atribuída ao crime organizado, todos os inquiridos (100%) responderam afirmativamente, tendo-se apurado,igualmente,a mesma percentagem em relação àquestão se acreditam que existam, no país, grupos ou elementos que façam parte de organizações criminosas internacionais. Perguntados se ocorreu no país,nos últimos anos, algum crime de homicídio ligado a disputas entre organizações criminosas rivais, 100% dos inquiridos responderam afirmativamente e, destes, 90,5% apontarama “traição” ocorrida dentro de uma organização criminosa, como motivo para o crime de homicídio. Esse posicionamento dos inquiridos encontra respaldo na literatura especializada, conforme assinalada anteriormente por alguns autores, no sentido de que a variedade sistémica da violência associada à droga interessa-nos mais de perto, em razão de implicar guerras por territórios entre traficantes rivais, agressões e homicídios no interior da hierarquia de vendedores, como forma de reforço dos códigos normativos, roubos de drogas por parte dos traficantes, com retaliações violentas de outros traficantes e de seus patrões, eliminação de informantes e 197 punições por vender drogas adulteradas ou por não conseguir quitar débitos com vendedores (GOLDSTEIN, 1987, apud HUNT, 1990). As organizações criminosas são cada vez mais violentas, lutam entre si, em domínios de pontos de venda e do medo como prática para a sua manutenção. O mundo da droga é muito rentável, traficantes ganham muito, mas, normalmente,vivem pouco (ROSA, 2003). Este tipo de violência decorre por não haver formas legais de resolução de conflitos entre traficantes e usuários. Daí muitos estudos ressaltarem que, mais do que o uso, é a venda de drogas que está associada aos homicídios (CHAIKEN e CHAIKEN, 1990; ZALUAR, 1984). Quanto à questão se o tráfico de drogas tem contribuído para o aumento da prática de outros crimes, os inquiridos foram unânimes, todos responderam que sim, ou seja, 100% e, destes, 95,2% concordam que tem havido muitas condenações pela prática do crime de tráfico de drogas em Cabo Verde. Aliás, essa correlação entre o tráfico de drogas e o aumento da prática de outros crimes tem sido alvo de estudos noutras paragens, como no Brasil, por exemplo, país cujas grandes metrópoles urbanas têm assistido a um incremento do consumo e da distribuição da cocaína desde o início dos anos 80eonde a questão do mercado informal de drogas ganhou relevância, pelo facto de lhe ser imputada a principal responsabilidade pelo notável aumento da violência nas grandes cidades, especialmente no Rio de Janeiro, desde o final dos anos 70 (MISSE, 1995). Diversas formas de associação entre crimes predatórios e drogas têm sido estudadas na literatura. Normalmente, relacionam a afinidade entre o uso de drogas e a propensão para cometer crimes, formas de financiamento da dependência, crises de abstinência, formas de resolução de conflitos extra-legais e necessidade de armas caras para tais fins (JOHNSON et al., 1990). A corrupção policial, o mercado da droga, a presença de quadrilhas e a desigualdade social são apontados como os principais influenciadores das práticas criminosas,assevera Zaluar (2002). Ainda, segundo Beato e Reis (1999), o temor apresentado pela população, no que diz respeito à violência associada ao tráfico de drogas não é de todo infundado. Dados dos municípios de Minas Gerais, Brasil, demonstram que a incidência de ocorrências relacionadas a drogas (uso e venda) mantém importante correla198 ção com o número de crimes violentos56. Muitos usuários esgotam rapidamente seus recursos legais para consumo de drogas, recorrendo depois a diversas modalidades de delitos para levantar recursos, tais como assalto a transeuntes, a ônibus, a postos de combustíveis ou a casas lotéricas (BEATO, 2001). Nessa mesma perspectiva escreve Adorno (2002, p. 7-8). Cada vez mais, o crime organizado segundo moldes empresariais e com bases transnacionais vai-se impondo, colonizando e conectando diferentes formas de criminalidade (crimes contra a pessoa, contra o património, contra o sistema financeiro, contra a economia popular). Seus sintomas mais visíveis compreendem emprego de violência excessiva mediante uso de potentes armas de fogo. Estes dados quantitativos e qualitativos vão de encontro ao estudo realizado pela Afrosondagem (2007), tendo-se apurado que, em 1996, foram registados 28 crimes por cada 1.000 habitantes, a nível nacional. Passados 11 anos, esse número aumentou para 38 ocorrências por 1.000 habitantes. Conclui o mesmo documento que, se tivermos em conta as taxas de crescimento médias anuais entre 1996 e 2007, facilmente se constata que a taxa de crescimento média anual da criminalidade está a crescer e é mais do dobro da taxa de crescimento média anual da população. Esta tem estado a crescer à taxa de 2,17%, contra 5,10% do crescimento das ocorrências criminais, razão pela qual as ocorrências criminais quase 36% nesse período. 4.1 – OS PRESOS POR TRÁFICO DE DROGAS EM CABO VERDE Neste ponto,faremos um estudo dos dados referentes aos presos nas duas cadeias centrais do país, a cadeia da Ribeirinha, em São Vicente, e a cadeia de São Martinho, na cidade da Praia, incidindo sobre a análise da evolução dos presos por tráfico de estupefacientes, em comparação com o total da população carcerária dopaís, nesse mesmo período, incluindo a variante por sexo do preso. A opção por analisar apenas os presos nessas duas cadeias centrais, apesar 56. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2001000500017&script=sci_arttext. Acesso em 10-0712 199 da existência de cadeias regionais nas outras ilhas, prende-se ao facto de que os condenados por tráfico de estupefacientes, da cocaína no caso concreto, são todos sentenciados com penas de prisão efectiva superior a dois anos, o que pressupõe o encarceramento numa das cadeias centrais existentes no país57. A análise é feita a partir de dados oficiais recolhidos junto da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários, entidade estatal responsável pela centralização das estatísticas prisionais a nível nacional, tendo por ano base o ano 2000, data a partir da qual existem dados oficiais eque abarcamo período até o ano de 2011. No ano 2000, numa população carcerária nacional de quinhentos e setenta e seis indivíduos (576), somente cinquenta e seis (56) estavam presos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, conforme representado na Figura 14, sendo cinquenta e quatro (54) homens e duas (2) mulheres.Os presos por tráfico de estupefacientes representavam, nessa data, apenas 9.72% do total de presos em Cabo Verde. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 14 - Total de Presos por tráfico a nível nacional 57. Decreto-Lei n.º 25/88, de 26 de Março - Artigo 116º 1. As Cadeias Centrais são os estabelecimentos prisionais destinados à execução de quaisquer medidas de liberdade de duração superior a dois anos e de prisão preventiva. 2. As Cadeias Centrais são as cadeias civis situadas nas sedes das Regiões Judiciais da Praia e S. Vicente. 200 A Figura 15 mostra que os números relativos aos presos por tráfico de estupefacientes foram aumentando,gradativamente, ao longo dos anos seguintes, tendo atingido 141indivíduos no ano de 2004, para um total de 858 presos, o que representa 16,43% do total. Nesse ano, a análise por sexo indicava 119 homens e 22 mulheres encarcerados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, de acordo com a figura abaixo. O crescimento registado entre o ano base (2000) e o ano de 2004 foi de 151,79%. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 15 - Total de presos por tráfico a nível nacional, de acordo com o sexo A tendência crescente manteve-se nos anos seguintes, até se registar uma aceleração mais acentuada a partir do ano 2006, quando o número de presos por tráficoera de 157 indivíduos num total de 882 presos, ou seja, 17, 8%. Verifica-se, assim, que já em 2007 o total de pessoas presas por tráfico de estupefacientes era de 214, numa população carcerária composta por 962 indivíduos, o que corresponde a 22,25% do total. No ano imediatamente a seguir, em 2008, atingiu-se o pico do período em análise, com 249 indivíduos presos por tráfico de estupefacientes, do total de 995 pessoas presas a nível nacional, alcançando a maior percentagem do período em estudo, 25,03%, ou seja, os presos por tráfico de estupefacientes correspondiam a ¼ da população carcerária do país.Nos anos seguintes, registou-se uma ligeira redução da proporção, fixando-se em 19,19% no último ano de observação, 2011, 201 conforme se pode observar na Figura 16 infra. Esse percentual elevado de presos por tráfico de estupefacientes nas cadeias centrais do país é comparável, por exemplo, com os dados do Brasil, importante país de trânsito, além de mercado consumidor, onde, de acordo com os dados doSistema Integrado de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), enquanto a população carcerária como um todo aumentou 1,7 vezes (de 294 mil para 514 mil), entre os anos de 2005 e 2011, a quantidade de presos por tráfico cresceu quase quatro vezes (de 32 mil para 125 mil)58. No Brasil, 24% dos presos cumprem pena por tráfico de drogas, segundo os dados de 2011 do Depen, órgão do Ministério da Justiça. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 16 - Evolução percentual dos presos por tráfico de estupefacientes emCabo Verde Esse pico de prisões por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, no ano de 2008, conforme mostra a figura acima, poderá ser parcialmente explicado pelo extraordinário reforço das autoridades de combate ao tráfico de estupefacientes, ocorrido em 2007, tendo como exemplo a polícia judiciária, que teve o seu efectivo de pessoal de investigação aumentado em 100%. 58. http://w w w1.folha.uol.com.br/cotidiano/1089429-trafico-de-drogas-e-motivo-de-24-das-prisoes-do-pais.shtml 202 Aliado ao factor acima exposto, o aumento de prisões por tráfico de estupefacientes poderá também ser explicado pelo reforço da cooperação internacional do país com as agências internacionais de prevenção e combate ao tráfico de estupefacientes, como é o caso do programa integrado de combate à droga e crime (Programa Cave Intercrin), assinado, em 2005, entre oGoverno de Cabo Verde eo Escritório Regional do ONUDC, que incluía, entre outros projectos, o Projecto ANTRAF (Antitráfico). O projecto ANTRAF tem como objectivo de longo prazo reforçar as capacidades das agências de aplicação da lei na luta contra o narcotráfico e o crime organizado. De modo global, o projecto visa reforçar as capacidades das agências de aplicação da lei na luta contra todas as formas de crime organizado. Para atingir este objectivo de longo prazo, foram fixados os seguintes objectivos imediatos:a) Reforçar o controlo das fronteiras através do aumento das capacidades de mobilidade, comunicação e inteligência; b) Reforçar as capacidades de prevenção e reacção, em matéria de manutenção da ordem, através do aumento das capacidades de patrulha e comunicação; c) Reforçar as capacidades de detecção e interdição das agências de aplicação da lei, através de currículos actualizados, ministrados por treino assistido por computador. Ainda no aspecto da cooperação internacional e institucional, através do Projecto de Combate ao Tráfico de Drogas por Via Aérea (AIRCOP)59, foram criadas equipas conjuntasde fiscalização nos aeroportos nacionais, composta pela Polícia Judiciária, Polícia Nacional e pela Direcção-Geral das Alfandegas,permitindo uma actuação planeada e concertada entre essas instituições,aumentando significativamente a capacidade de detecção do tráfico da droga nos aeroportos nacionais. Nos anos subsequentes, registaram-se ligeiras descidas no número deindivíduos presos por tráfico de estupefacientes,em relação aos restantes presos, fixan- 59. AIRCOP- Projecto de combate ao tráfico de drogas por via aérea, desenvolvido e financiado pelo Canadá, União Europeia, Organização Mundial das Alfândegas e a INTERPOL e gerido pela ONUDC.O objectivo geral é a construção de capacidades de interdição de drogas em 10 aeroportos internacionais, seleccionados na África Ocidental, Marrocos e Brasil. O projecto visa estabelecer Forças Tarefa de Interdição nos Aeroportos (JAITF) e conectá-los às bases de dados das agências internacionais de aplicação da Lei e redes de comunicação, para permitir a transmissão em tempo real, para outros aeroportos internacionais, de informação operacional destinado a interceptar carregamentos ilícitos. 203 do-se em 207 indivíduos, em 2009, o que equivale a 19,27%numtotal de 1109, 236 indivíduos,em 2010, equivalente a20,77% numtotal de 1136 e 217 indivíduos, ou seja, 19,19% do total de 1131 em 2011, conforme se pode observar na Figura 17 a seguir. De acordo com os dados da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários (ver Figura 17), enquanto a população carcerária, como um todo, aumentou 1,9 vezes (de576 para 1131) entre os anos de 2000 e 2011, a quantidade de presos por tráfico cresceu quase quatro vezes,de 56 para 217 encarcerados. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 17 - Total de presos por tráfico de estupefacientes e por outros crimes Da análise dos dados específicos de presos, por sexo, merece comentário particular o facto de que o peso de mulheres presas por tráfico de estupefacientes representava, nos últimos quatro anos em análise, mais de 70% da população carcerária feminina, conforme reflectido na Figura 18,a seguir apresentada. Esse facto poderá ser explicado pelo aumento considerável de mulheres detidas na posse de cocaína,à entrada do país, nos voos comerciais vindos de Fortaleza, Brasil, como “correios” de droga, pois, elas têm sido mais aliciadas do que os homens para o transporte a partir deste país aonde se deslocam para adquirir mercadorias para revenda em Cabo Verde. Retomando-se a comparação com os dados das penitenciárias brasileiras, no que respeita ao sexo dos presos, a proporção de mulheres presas por tráfico de estupefacientes nas cadeias cabo-verdianas é muito superior ao rácio observado no 204 Brasil, referentes ao ano de 2009, onde as mulheres presas por tráfico de drogas representam a metade (50%) do total das mulheres presas60. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 18 - Percentagem de mulheres presas por tráfico de estupefacientes Ainda assim, da análise dos dados acumulados ao longo do período, dos presos por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, os homens constituem a grande maioria, numa proporção de 83% do total, sendo as mulheres de apenas 17% do total (ver Figura 19). Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 19 - Percentagem dos presos por tráfico de estupefacientes por sexo Os dados referentes aos presos nas duas cadeias centrais de Cabo Verde, durante o período em estudo, entre os anos 2000 e 2011, revelam, de forma inequí- 60. http://idpc.net/pt/alerts/2012/05/trafico-e-motivo-de-24-das-prisoes-no-brasil. 205 voca, um dos efeitos imediatos do tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, que é o extraordinário aumento da população carcerária do país. A variação registada nos presos por tráfico de estupefacientes,entre o ano base (2000) e o ano de maior incidência (2008), ou seja, em apenas oito anos, foi de 344,64%, enquanto a evolução dos presos por outros delitos é muito menos acentuada, não se registando grandes oscilações ao longo do período, atingindo o valor mais elevado no ano de 2010, com apenas 97,22%, conforme reflectido na Figura 20, onde se pode observar que houveas duas evoluções e tendências díspares. Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP Figura 20 - Evolução comparativa de presos por tráfico de estupefacientese por outros crimes O aumento considerável e crescente, a partir do ano base, dos presos por tráfico de estupefacientes, em comparação com o total de presos pela prática de todos os demais crimes previstos no código penal e outras legislações penais avulsas, é, ao mesmo tempo, revelador do crescimento do fluxo de passagem da cocaína por Cabo Verde, vinda da América do Sul, principalmente em direcção à Europa, bem como das medidas adoptas pelas autoridades nacionais,em articulação com outros países e organismos internacionais interessados na prevenção e no combate ao tráfico de estupefacientes. A análise feita neste capítulo, a partir dos dados dos serviços penitenciários, revela uma das consequências directas do impacto do narcotráfico transnacional nos dados criminais do país, que é o aumento excepcional da população carce206 rária, com particular incidência na população carcerária feminina, com significativos prejuízos para o Estado de Cabo Verde, que é obrigado a disponibilizar uma fatia maior dos seus parcos recursos financeiros para o orçamento do sistema penitenciário nacional, o que no limite, irá repercutir nos impostos a serem pagos pela totalidade dos contribuintes, em virtude da necessidade de construção e ou ampliação de prisões, recrutamento de mais agentes prisionais e os equipamentos respectivos, bem como do aumento das despesas de funcionamento desse sector. CONCLUSÃO Este estudo partiu da hipótese inicial de que Cabo Verde estaria inserido numa das rotas do narcotráfico,dominada pelas organizações criminosas transnacionais, e que essa condição de país de trânsito da cocaína, tendo em conta que não é produtor nem mercado consumidor final, estaria a influenciar os dados criminais do país, mais precisamente dos crimesdirectamente conexos ao tráfico de estupefacientes. Iniciamos o estudo com recurso ao referencial teórico, procurando apresentar as principais correntes doutrinárias na busca de um conceito abrangente para “organização criminosa”,visando abarcar todas as suas perspectivas de estudo.A partir dessas propostas de conceito, procuramos, com base em algumas operações da Polícia Judiciária, enquadrar a actuação de determinadas organizações criminosas a operar no país, na modalidade de tráfico de estupefacientes, tendo em conta os critérios de território de actuação, o seu poder económico, as suas relações com o poder institucional e o poder de acção de que dispõe. Nessa perspectiva, ficou demonstrado que as organizações criminosas actuantes em Cabo Verde, na actividade tráfico de estupefacientes, não têm todas a mesmadimensão, poder económico e poder de influenciação junto ao Estado. Foi possível identificar organizações criminosas que se enquadram no nível mais elevado da escala que determina o grau de influência e acção dessas organizações, tida como referência neste estudo. Da recolha e análise dos dados da criminalidade interna, junto da Polícia Nacional, das apreensões de cocaína, junto da Polícia Judiciária, e dos dados das 207 penitenciárias centrais do país, junto da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários, foi possível acompanhar a evolução da passagem da droga por Cabo Verde e examinar o comportamento dos crimes conexos ao tráfico de estupefacientes, quais sejam, o roubo, a posse de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de capitais. De acordo com o resultado apurado através dos dados disponíveis sobre a criminalidade interna, os processos judiciais consultados, transitados em julgado e os ainda em curso, pelas respostas das autoridades ao questionário durante as entrevistas, é possível afirmar que o estudo, ora concluído, confirmou a hipótese inicialmente formulada, ou seja, verificamos que os crimes conexos ao tráfico de drogas têm evoluído de forma diferente em relação aos demais crimes. Os crimes conexos ao tráfico têm tido um crescimento muito superior e com maiores oscilações dentro do leque dos crimes previstos no ordenamento jurídico nacional, estes, que de uma forma geral, têm tido uma evolução coerente com o crescimento da população e os outros indicadores sociais e económicos do país. O crime de roubo poderá estar a reflectir, para além de outros factores, o comportamento ligado ao mercado local de consumo, visto ser necessário obter recursos financeiros para a aquisição da droga e satisfaçãodo vício dos dependentes químicos da cocaína, sendo que, normalmente, os usuários não dispõem de meios financeiros de forma permanente, acabando por ser impelidos para a prática do crime, como meio de alcançar seus objectivos. Contribuiu, de forma significativa, para o aumento dos números dos homicídios em Cabo Verde, as mortes ligadas às organizações criminosas, ou seja, os homicídios por encomenda, cujas características diferem substancialmente dos homicídios ocasionais que acontecem no país, no que tocaao tipo e calibre da arma de fogo utilizado na execução, na extrema violência empregada, no local da prática do crime, no perfil “profissional” do executor, na existência de um mandante e de um intermediário, que completam o modus operandi. Em relação à lavagem de capitais, processo que completa as actividades de uma organização criminosa, com a obtenção de avultados rendimentos, os dados apontam para um crescimento extraordinário desse crime em Cabo Verde, envolvendo somas consideráveis em dinheiro, bens móveis e imóveis, que tem vindo a estender a sua influência junto de alguns agentes do Estado, por meio da corrupção ou atraindo-os para o seio da organização, minando desta forma, 208 os princípios e regras do Estado de Direito consagrado na Constituição e demais Leis da República. O estudo demonstrou, pela análise dos dados dos serviços penitenciários, que a população prisional tem crescido grandemente, influenciada,especialmente, pelo número de presos por tráfico de estupefacientes. Merece destaque, neste particular, a manifesta desproporcão existente entre ospresos por tráfico, na população prisional feminina, e os presos pelos demais crimes, onde aquelas representam mais de 70% do total nos últimos quatro anos. Os dados quantitativos desses crimes conexos ao tráfico de drogas foram corroborados pelas respostas dadas pelas autoridades nacionais de combate ao crime, testemunhando esse crescimento excepcional em relação aoquadro dos demais crimes. Além disso, foi possível precisar a rota cabo-verdiana do narcotráfico transnacional, desde a sua origem, na América Latina, com maior preponderância do Brasil, tanto pela via marítima como pela aérea, os mecanismos utilizados pelos traficantes para o transporte da droga até Cabo Verde, o seu desembarque e armazenamento no país e as diversas formas de o fazerem escoar do país em direcção ao seu mercado final, a Europa. Mereceu destaque a figura do “correio” da droga, passageiro que aceita deslocar-se até ao Brasil para receber a cocaína e transportá-la até Cabo Verde ou, no seu escoamento para a Europa, principalmente para Portugal, Itália, Espanha e Holanda. Ficou traçado o perfil das pessoas que aceitam transportar a droga, as condições em que o fazem, bem como as estratégias que utilizam para tentar driblar o controlo das autoridades alfandegárias e policiais. Por outro lado, o estudo demonstrou o forte empenho das autoridades nacionais na definição de políticas e acções, visando o enfrentamento do crime organizado transnacional em articulação com outros Estados e instituições ou agências internacionais, o que se tem traduzido em apreensões de grandes quantidades de cocaína em trânsito por Cabo Verde, na detenção de vários “correios” transportando drogas, na prisão de traficantes pertencentes às organizações criminosas e no confisco de grandes somas de activos ilícitos pertencentes aos mesmos. 209 REFERÊNCIAS ABADINSKY, Howard. Organized Crime. 6ª ed. Chicago: Wdsworth, 2002. ALBANESE, Jay S. Organized Crime in America. 2ª ed. Cincinati, Ohio, 1989. ADORNO, Sergio. Crime e violência na sociedade brasileira contemporanea. 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As respostas às questões, pela sua extensão e acuidade, serão tratadas com confidencialidade e anonimato. 1) Em que altura começou a ser observado, em Cabo Verde, o crime de tráfico de drogas? Após Ο 2005 2000 Ο 2005 1995 Ο 2000 A nte rior a Ο 1990 1990 Ο 1995 2) Quais eram os principais crimes praticados antes dessa época (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente)? Tipos de crimes 1 2 3 4 5 Crimes Contra Pessoas Ο Ο Ο Ο Ο Crimes Contra Propriedades Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο 3) Indique a relevância detalhada, para cada um dos delitos em Cabo Verde, antes da data dos registos do crime de tráfico de drogas (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente). Crimes Contra Pessoas 1 2 3 4 5 Homicídio simples Ο Ο Ο Ο Ο Homicídio qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Homicídio negligente Ο Ο Ο Ο Ο 214 Abuso sexual de menores Ο Ο Ο Ο Ο Agressão sexual Ο Ο Ο Ο Ο Sequestro Ο Ο Ο Ο Ο Maus tratos a menores Ο Ο Ο Ο Ο Maus tratos ao cônjuge Ο Ο Ο Ο Ο Ameaça Ο Ο Ο Ο Ο Exibicionismo Ο Ο Ο Ο Ο Rixa Ο Ο Ο Ο Ο Ofensa corporal Ο Ο Ο Ο Ο Posse ilegal de arma de fogo Ο Ο Ο Ο Ο Posse de arma branca Ο Ο Ο Ο Ο Desobediência Ο Ο Ο Ο Ο Injúria Ο Ο Ο Ο Ο Briga Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο Crimes Contra Propriedades 1 2 3 4 5 Incêndio Ο Ο Ο Ο Ο Abuso de confiança Ο Ο Ο Ο Ο Furto simples Ο Ο Ο Ο Ο Furto qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Roubo Ο Ο Ο Ο Ο Roubo qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Burla Ο Ο Ο Ο Ο 215 Dano Ο Ο Ο Ο Ο Introdução em casa alheia Ο Ο Ο Ο Ο Uso de veículo Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο Lavagem de Capitais Ο Ο Ο Ο Ο 4) Em que altura se verifica a ocorrência de crimes que poderão estar relacionados com a prática do tráfico de drogas? Após Ο 2005 2000 Ο 2005 19 9 5 Ο 2000 19 9 0 Ο 1995 Anterior a Ο 1990 5) Quais os crimes que poderão estar relacionados com o tráfico de drogas (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente)? Tipos de crimes 1 2 3 4 5 Crimes Contra Pessoas Ο Ο Ο Ο Ο Crimes Contra Propriedades Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο 6) Indique o co-relacionamento de cada um dos delitos com o tráfico de drogas em Cabo Verde (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente). Crimes Contra Pessoas 1 2 3 4 5 Homicídio simples Ο Ο Ο Ο Ο Homicídio qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Homicídio negligente Ο Ο Ο Ο Ο 216 Abuso sexual de menores Ο Ο Ο Ο Ο Agressão sexual Ο Ο Ο Ο Ο Sequestro Ο Ο Ο Ο Ο Maus tratos a menores Ο Ο Ο Ο Ο Maus tratos ao cônjuge Ο Ο Ο Ο Ο Ameaça Ο Ο Ο Ο Ο Exibicionismo Ο Ο Ο Ο Ο Rixa Ο Ο Ο Ο Ο Ofensa corporal Ο Ο Ο Ο Ο Posse ilegal de arma de fogo Ο Ο Ο Ο Ο Posse de arma branca Ο Ο Ο Ο Ο Desobediência Ο Ο Ο Ο Ο Injúria Ο Ο Ο Ο Ο Briga Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο Crimes Contra Propriedades 1 2 3 4 5 Incêndio Ο Ο Ο Ο Ο Abuso de confiança Ο Ο Ο Ο Ο Furto simples Ο Ο Ο Ο Ο Furto qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Roubo Ο Ο Ο Ο Ο Roubo qualificado Ο Ο Ο Ο Ο Burla Ο Ο Ο Ο Ο 217 Dano Ο Ο Ο Ο Ο Introdução casa alheia Ο Ο Ο Ο Ο Uso de veículo Ο Ο Ο Ο Ο Outros crimes Ο Ο Ο Ο Ο Lavagem de Capitais Ο Ο Ο Ο Ο 7) Qual a tendência que se tem verificado em relação ao crime de tráfico de drogas no país? Tem aumentado Ο Tem diminuído Ο Tem estabilizado Ο 8) Qual a tendência que se tem verificado em relação aos crimes conexos ao tráfico de drogas? Têm aumentado Ο Têm diminuído Ο Têm estabilizado Ο 9) Na sua opinião, de onde provêm a droga/cocaína que é apreendida em Cabo Verde? América do Norte Ο América Central Ο América do Sul Ο Europa Ο África Ο Ásia Ο 218 10) Pela sua percepção, indique se a droga apreendida: Destina-se ao mercado local Ο Outros destinos Ο 11) Acha que existe um “mercado interno” que justifique as grandes apreensões de droga/cocaína em Cabo Verde? Sim Ο Não Ο Não sabe Ο 12) Qual seria o destino da droga caso não fosse apreendida em Cabo Verde? América do Norte Ο América Central Ο América do Sul Ο Europa Ο África Ο Ásia Ο 13) Quais são os meios de transporte utilizados para fazer chegar a droga/ cocaína ao país? Aéreo Ο Marítimo Ο Combinação de aéreo e marítimo Ο 14) Quais são os meios de transporte utilizados para fazer escoar a droga/ cocaína do país? Aéreo Ο Marítimo Ο Combinação de aéreo e marítimo Ο 15) Que estratégias são utilizadas para tentar ludibriar as autoridades na introdução da droga no país? Dissimulado no meio da bagagem Ο No organismo Ο 219 Ocultado no corpo Ο Contentores Ο Outros * Ο * Caso tenha respondido “outros”, por favor cite uma ou outra estratégia que no seu entender possa suscitar relevância para o estudo. 16) Que estratégias são utilizadas para tentar ludibriar as autoridades para fazer escoar a droga do país? Dissimulado no meio da bagagem Ο No organismo Ο Ocultado no corpo Ο Contentores Ο Outros * Ο * Caso tenha respondido “outros”, por favor cite uma ou outra estratégia que no seu entender possa suscitar relevância para o estudo. 17) A actividade “ tráfico de drogas” em Cabo Verde poderá ser atribuída ao “crime organizado”? Sim Ο Não Ο Não sabe Ο 18) Acredita que exista em Cabo Verde grupos ou elementos que façam parte de “organizações criminosas internacionais”? Sim Ο Não Ο Não sabe Ο 19) Pensa ter ocorrido no país, algum crime de homicídio, ligado à disputa entre “organizações criminosas” rivais? Sim 220 Ο Não Ο Não sabe Ο 20) Se respondeu “Sim” na pergunta anterior, qual seria a sua percepção em relação aos motivos? Disputa de território Ο Traição Ο Outros motivos Ο 21) Pensa que o tráfico de drogas tem contribuído para o aumento da prática de outros crimes? Ο Sim Ο Não Ο Não sabe 22) Tem havido muitas condenações pela prática do crime de tráfico de drogas em Cabo Verde? Ο Sim Ο Não Ο Não sabe Caracterização: Nome (opcional) ____________________________________________ __________________ M Ο F Ο Sexo 20-30 Ο Ο 30-40 40-50 Ο 50-60 20-30 Ο Ο Mais de 60 Ο Idade 0-10 Ο 10-20 Ο Mais de 30 Ο Tempo de serviço Profissão/Cargo_____________________________________________ Muito obrigado pela sua colaboração! 221 CUSTOS, EVOLUÇÃO E PERCEPÇÃO DA SOCIEDADE PRAIENSE SOBRE A PROBLEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE9 Emanuel de Nascimento Furtado Vaz RESUMO Este trabalho tem por objectivo conhecer e analisar os custos da violência e da criminalidade em Cabo Verde no período de 2006 a 2010, o seu peso orçamental, as principais tendências e os reais desafios gerados para o Estado e para a sociedade Praiense. Com base na metodologia de Contagem utilizada em vários estudos sobre os custos da violência e do crime se fez a medição dos custos neste caso. Ao analisar os dados constata-se que a violência e o crime têm um custo significativo para o Estado e para a sociedade. Ou seja, ela tem em média um peso orçamental de 5.29 % durante o período em estudo. No entanto, apesar de haver a tendência anual para o aumento dos gastos com a segurança, constata-se paralelamente um aumento do sentimento de insegurança, a perda de bem-estar e uma fragilidade emocional por parte da população. Na pesquisa os praienses mostraram-se insatisfeitos com o nível de segurança do bairro onde residem, tendo apontado como causas a fraca cobertura policial e o deficiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos, e evidenciado a violência e a criminalidade como constituindo o mais sério problema das suas comunidades, seguidas da iluminação pública e do abastecimento de água. Entretanto, estes factores constituem um verdadeiro desafio a ser enfrentado e combatido, pela busca de apoio nos modernos modelos de gestão da segurança pública como: a cooperação institucional e o cruzamento informacional, orientando os fracos recursos disponíveis para programas específicos e prioritários, debelando, assim, os males sociais existentes. 9. Dissertação defendida no dia 15/01/2013 perante o Júri formado pelos Professores Doutores José Carlos dos Anjos (Uni-CV), como Presidente, César Monteiro (Uni-CV) e Sílvia dos Santos Almeida (Orientadora – UFPA). O trabalho foi co-orientado pelo Prof. Doutor Marcos L. S. Ramos (UFPA) e teve apoio do Ministério da Administração Interna de Cabo Verde (MAI). Palavras-Chave: Violência e Criminalidade. Custos. Segurança Pública. ABSTRACT This work aims to understand and analyse the costs of violence and crime in Cape Verde for the period from 2006 to 2010, its budgetary weight, main trends and the real challenges for the State and Praia society. Based on the methodology of Counting used in various studies of the costs of violence and crime it was made the measurement of costs in this case. By analysing the data we can notice that violence and crime are a significant cost to the State and society. That is, it has on average a budgetary weight of 5.29% during the period under study. However, despite the annual trend for increased security expenses, we can notice alongside an increased feeling of insecurity, loss of wellbeing and an emotional fragility by part of the population. In the research the citizens of Praia were dissatisfied with the level of security of the neighbourhood where they live, pointing as causes: poor police cover; deficient judicial system’s involvement in conflict resolution; and highlighting the violence and criminality as being the more serious problem of their communities followed by public lighting and water supply. However, these factors constitute a real challenge to be faced and fought, seeking support in modern public safety management models as: the institutional cooperation and informational cross, orienting the weak resources we have for specific programmes and priorities, therefore overcoming existing social ills. Keywords: Violence and Crime. Costs. Public Safety. 223 CAPÍTULO I INTRODUÇÃO “Eduquem as crianças de hoje e não será preciso castigar os homens de amanhã” Pitágoras (500 A.C.) 1.1 - Aspectos Gerais Neste mundo moderno, ou pós-moderno2, se quiser, o papel do Estado no controle social vem sendo confrontado com inúmeras questões relacionadas com a forma como a democracia estabelece para resolução de problemas de segurança pública, que muitas vezes no acto da sua prática, fere as regras dos direitos humanos que por seu turno desempenham um papel fundamental na luta pela forma de estar numa sociedade e pela liberdade individual e colectiva. Alguns males do regime autoritário estão atrelados ao regime democrático, proporcionando o desencadear de vários esforços no sentido de poder se encontrar soluções plausíveis para resolver o problema. Assim, as transições políticas por si só não constituem a verdadeira democracia. Os diversos problemas que se enfrentam hoje em democracia, são diluídos e transformados em consequências com as quais é cada vez mais difícil se conviver. Adorno (2002) aponta várias causas da existência desse mundo violento e criminoso e explica como o sistema de justiça criminal está em crise. Vários estudos reconhecem a incapacidade do sitema de justiça criminal, apontando primeiramente para as agências policiais, depois para o ministério público, em seguida para os tribunais e enfim para o sistema pinitenciário em conter a onda de violência e crime no Estado democrático. Acredita-se que esta incapacidade resulta do não acompanhamento da evolução da qualidade da violência e do crime pelo sistema de justiça. Há um aumento do fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor a lei e ordem. 224 Então, o Estado, como guardião da defesa social, perde muitas vezes o controlo da democracia, surgindo livremente na sociedade novas formas de resolução de conflitos que, muitas vezes, não se coadunam com o ideal defendido por alguns estudiosos. Eis então que aparece o dilema entre a “Lei e Ordem”10 para o Estado. Pois, de entre vários problemas sociais existentes como a pobreza e o desemprego, aparecem a violência e a criminalidade como um assunto preocupante e cheio de controvérsias que vem afectando directamente a forma de estar dos indivíduos na sociedade. Pesquisas realizadas em várias paragens do mundo, concretamente no continente Americano, em particular no Brasil, apontam que a violência e a criminalidade afectam o bem-estar da sociedade, seja na perda precoce de vidas humanas, como na redução de qualidade de vida, seja ainda na perturbação à eficácia e eficiência económicas. Pois, o fenómeno da criminalidade consiste em um problema social, pelo facto de afectar “directamente a qualidade e a expectativa de vida das populações” (ARAÚJO e FAJNZYLBR, 2001, apud SPINDOLA, 2009, p. 14) e um problema económico porque, de um lado, a sua intensidade está associada às condições económicas e, de outro, limita o potencial de desenvolvimento das economias. Consequentemente, a criminalidade é um problema político já que as acções necessárias para combater o crime envolvem a participação activa dos governos e a alocação de recursos públicos escassos em detrimento de outros objectivos de políticas públicas importantes. Estudos mundiais apontam que as acções planejadas de enfrentamento ao crime concentram suas estratégias na perspectiva de entender e neutralizar as investidas criminosas, do agente activo do facto delituoso. Por outro lado, a prática de policiamento ostensivo10 é admitida como necessária para prevenir e reprimir o crime, ficando as medidas educativas e reparadoras de condutas, que exigem um tempo mais longo para a obtenção de resultados, sob a responsabilidade de órgãos governamentais ou não, constituídos para esse fim. Soares (2007, p. 78) defende que o desespero provocado pela crise económica 10. O dilema da Lei e Ordem é várias vezes estudado por Adorno (2003) de entre outros autores. Ele evidencia a autoridade do Estado quando num determinado momento é solicitado o uso da força ligítima para impor a ordem social e ao mesmo tempo é-lhe imposto o seguimento dos direitos individuais e colectivos. Por exemplo, o estado muitas vezes é chamado atravez das instituições policiais a impor a ordem, por exemplo, no caso de ribeliões. A lei não permite rebeliões, mas também não permite o uso desmedido da força, massacre ou tortura para conter o problema. Então, daí o dilema. 225 que tem como consequências o desemprego em massa, desigualdades sociais e também os desesperos provacados pelos desastres naturais, funciona como vector facilitador de práticas criminosas, constituindo o alvo da avaliação da problemática da política da segurança pública. Pois, quanto maiores as desigualdades sociais, maior a diferença de renda, menor a punição e, consequentemente, maior o número de crime por causa da recompensa. Por outro lado, a punição não é considerada em si elemento inibidor do crime, apesar de ter também um custo para o criminoso. O exemplo internacional de reconhecida validade é o caso da Colômbia-Bogotá. Ficou claro que a conjugação do rigor nas penas aos programas de melhorias sociais, como a inclusão social, a melhoria de transporte público, escolas, bibliotecas públicas etc., pode fazer a fiferença. É certo que não se deve estabelecer a ligação da pobreza à violência, mas sim, da exclusão social à violência. Entretanto, a ausência de políticas sociais de segurança, a falta de acesso à justiça, entre outros, tem reflexos na exclusão social e, consequentemente, na violência e no crime, resultando este fenómeno como forma e meio de resolução de conflito e daí o aparecimento das instituições de mediação de conflitos, por exemplo. 1.2 - Breve Retracto da Trajectória Recente da Violência e Criminalidade em Cabo Verde e na Praia em Particular Em Cabo Verde não há muitos registros de estudos relacionados com a violência e a criminalidade. Todavia, nos últimos tempos, o assunto tem vindo a ser muito falado, muito mediatizado, devido ao aumento significativo dos casos no país de violência e criminalidade, com maior intensidade na capital, adicionandos a vários tipos de custos que nem sempre são levados em consideração. Porém, tanto em Cabo Verde como em outras partes do mundo, as instituições responsáveis pela segurança pública direcionam tendenciosamente seus esforços em combater a criminalidade, tendo em atenção o delinquente e um determinado tipo de crime, na tentativa de entender quais as suas motivações. Hoje, na capital caboverdeana, defronta-se, por exemplo, com vários movimentos de grupos denominados “tugs”, perpectuando ondas de violência e crime, pondo em causa a própria segurança publica. Estes movimentos não constituem um problema recente e não são uma novidade na cidade da Praia. Tem-se como 226 referência das acções de violência o ano de 1980, envolvendo os grupos chamados “piratinhas” que atacavam as pessoas e subtraíam pequenos bens, causando medo e mal estar à sociedade. Já nos anos 1990 apareceram os chamados “netinhos de vóvó” que, de forma semelhante, gerando nas autoridades a busca de novas formas de combater a delinquência juvinil que se viveu na época. 1.2.1 - A delinquência Juvinil no Centro das Atenções Segundo os dados do senso 2010, a cidade da Praia alberga 130.271 mil pessoas, das quais os jovens formam a maioria, totalizando 58.664 mil. O desemprego é um dos problemas sociais existentes, o que acaba por afetar, sobretudo, os jovens com idade entre os 15 aos 24 anos como sendo os mais afectados, sendo quase 25,1% deles do meio urbano e 25% na capital. Entrentanto, o desemprego do sexo masculino é de 10,1% e do sexo feminino é de 12,7%. Lima (2010) destaca algumas instituições que em Cabo Verde tiveram um papel importante para conter os jovens dos males sociais existentes e também como uma forma de controle social. Sobressai, nesse sentido, o papel da Igreja Católica, da OPAD-CV (Organização dos Pioneiros do Abel Djassi-Cabo Verde) e da JAAC-CV (Juventude Africana Amilcar Cabral-Cabo Verde). Contudo, depois da fragilização da igreja e do fim das organizações referidas, houve uma ruptura entre os discursos dos jovens e as políticas sobre as várias necessidades e oportunidades, destacando-se a educação, a formação e o emprego. Os anos de 1990 a 2000 foram marcados pelo facto de a juventude ter contribuído para o surgimento de inúmeros problemas, levando os governos a darem mais atenção à elaboração de projectos de políticas de controlo das acções juvenis que começaram nos protestos, nas reinvindicações até à delinquência. Como exemplos, mencionam-se os protestos no ano de 1992 contra as políticas educativas do então governo e contra as provas de acesso ao ensino superior em 2000. Hoje, verifica-se a união cada vez maior dos jovens em pequenos grupos, perpetuando ondas de violência muitas vezes justificadas pelas disigualdades sociais existentes, a dificuldade de acesso aos recursos, em função também das chamadas redes de compadrios derivadas em algum momento de militância política. Lima (2010) salienta o perigo da estigmatização e criminalização dos bairros periféricos da cidade da Praia e dos jovens que ali vivem. Pois, a discriminação desses bairros e desses jovens leva-os a formarem grupos, com objectivos, de entre 227 outros, de reivindicar, muitas vezes em forma de violência, a sua inclusão como contribuintes do desenvolvimento urbano. Sobre este assunto, é evidenciado como a classe dominante discriminou a classe dominada em vários momentos da história das ilhas, levando a açoites no pelourinho, a prisões e desterros. Assim, surgiram vários movimentos de revoltas contra a escravatura, contra os morgados, desencadeando a distribuição de terrenos etc. Porém, é notável que o novo Estado construído após a independência de Cabo Verde, levou o poder a concentrar-se nas mãos de certa elite burocrática, proporcionando uma distribuição de recursos de forma deficitária e contribuindo, assim, para o aumento da distância entre os possuidores de riqueza e os destituídos dela. Com efeito, o movimento atual da delinquência juvinil fez com que problema da violência se tornasse uma incógnita, levando as pessoas a se perguntarem se não se está perante uma nova forma de reinvendicar a distibuição equitativa de recursos e oportunidades (LIMA, 2010). 1.2.2 - As Bases de Dados Existentes As principais fontes de dados existentes sobre a violência e criminalidade em Cabo Verde são a PN (Polícia Nacional), através da DOIP (Divisão de Operações e Informação Policial); a PJ (Polícia Judiciária); o MJ (Ministério da Justiça), sobre julgamentos, condenações e prisões; a Afrossondagem, a UNODC (Escritório das Nações Unidas para a Droga e Crime) e a CCCD (Comissão de Cordenação e Combate à Droga), dentre outras. Contudo, verifica-se que não há um tratamento dos dados de forma adequada, o que impossibilita informação precisa sobre a violência e o crime no país. Por exemplo, não há conhecimento de cruzamento dos dados entre todas estas instituições. Ao que parece, existe um registo de forma isolada dos dados das ocorrências, muitas vezes com atraso, por exemplo, pela PN, o que deficulta o seu tratamento em tempo real. Por outro lado, muitas queixas registadas na Polícia Judiciária, por exemplo, não são da mesma forma registadas na Polícia Nacional e vice-versa. Muitos casos de violência e crime não dão entrada ou não são do conhecimento da Polícia. Não se tem um gabinete permanente de pesquisa de vitimação, assunto abordado eventualmente por instituições como a Afrossandagem, ou a Comissão de Coordenação e Combate a Droga e a UNODC. Será de todo importante ter um 228 gabinete permanente de registo, tratamento e estudo dos casos da violência e crime, constituindo, assim, um importante meio para traçar objectivos e difinir planos para combeter esse fenómeno. Entretanto, noticiários da grande mídia revelam a racionalidade na escolha pela carreira no mundo da violência e crime. Quando se pensa em custo/benefício, pode-se entender o porquê da investida na prática do crime. Em contrapartida, as instituições que lidam com a segurança em Cabo Verde, como, por exemplo, o Ministério da Justiça, o Ministério da Administração Interna entre outros, têm buscado avanços com recurso à ciência e tecnologia como elementos que agregam valor e que poderão ajudar na superação das investidas do mundo violento e criminoso. Em suma, a Polícia caboverdeana e as demais instituições envolvidas no processo da segurança pública, deverão estar sintonizadas com as mudanças conjunturais pelas quais passam as sociedades modernas, o caso da sociedade Praense, aceitando, assim, os desafios nos diversos campos de sua atuação, incorporando os avançados meios tecnológicos disponíveis para tornar as suas estruturas e os seus serviços actualizados e compatíveis com as demandas da complexa área da segurança pública, que o aumento populacional e a sua complexa distribuição exigem. É o que se pode ver nos dados do Censo 2010, na Tabela 1.1, que aponta para uma população residente de 491.875 mil habitantes neste ano. Precebe-se uma variação de 242% e 13% em comparação com os anos de 1900 e 2000 em que havia a população era de 143.929 e de 432.625, respectivamente. Da totalidade populacional, mais da metade reside na ilha de Santiago e desta metade 131.719 habitantes vivem na capital/Praia, representando 27% da população total. Com a mesma tendência, a maioria desta população vive no meio urbano, representando 62% do total e os restantes 38% se encontram no meio rural. 229 Tabela 1.1- Evolução da População Residente em Cabo Verde por Ilha Concelho (1900/2010) Meio de residência/ Concelho 2010 491.875 2000 434.625 1990 341.491 1980 295.703 1970 - - - - - - 150.599 234.368 303979 Meio Rural - - - - - - 190.892 200.257 187896 Santo Antão - 35.977 28.379 33.953 44.623 43.321 43.845 47.170 43.915 Ribeira Grande - 19.766 15.444 17.246 22.873 22.102 20.851 21.594 18.890 Paúl - 5.845 6.024 8.000 7.983 8.121 8.385 6.997 Porto Novo - 10.366 7.565 10.683 13.750 13.236 14.873 17.191 18.028 São Vicente - 15.848 19.576 20.705 31.578 41.594 51.277 67.163 76.140 São Nicolau - 14.846 10.366 13.866 16.308 13.572 13.665 13.661 12.817 Ribeira Brava - - - - - 11465 11556 11.794 7.580 Tarrafal de S. Nicolau - - - - - 2107 2109 1.853 5.237 Sal -- 5.370 270.999 1960 199.902 1950 149.984 1940 Meio Urbano Cabo Verde 181.740 143.929 1900 Ano 1.121 1.838 2.608 5.505 5.826 7.715 14.816 25.779 Boavista - 2.779 2.985 3.263 3.569 3.372 3.452 4.209 9.162 Maio - 2.237 1.924 2.680 3.466 4.098 4.969 6.754 6.952 Santiago - 77.382 59.397 88.587 128.782 Tarrafal 18.840 13.222 19.140 230 - 26.251 145.957 175.691 24.202 11.626 236.627 274.044 17.792 18.565 Santa Catarina - 26.848 19.428 30.207 41.462 41.012 41.584 50.024 43.297 Santa Cruz - 13.486 9.568 14.368 21.158 22.995 25.892 33.015 26.617 Praia - 18.208 17.179 24.872 39.911 57.748 71.276 São Domingos - - - - - 11117 11.526 13.320 13.808 São Miguel - - - - - 12349 13.786 16.128 15.648 S. Salvador do Mundo - - - - - 8315 9130 9.172 8.677 S. Lourenço dos Órgãos - - - - - 6722 7885 7.781 7.388 Ribeira Grande de Santiago - - - - - 6321 6527 7713 8.325 Fogo - 23.022 30.978 33.902 37.421 37071 Mosteiros - - - - - 7427 8.331 9.535 9.524 São Filipe - - - - - 19851 25.571 27.886 22.248 Santa Catarina do Fogo - - - - - 3700 4481 4.796 Brava - 6.985 6.975 6.804 5.299 5.995 8.528 17.582 25.615 7.937 8.625 29.412 7.756 106.348 131.719 Fonte: INE - Recenseamento da População (1900-2010) 231 As tendências do crescimento da população residente são visíveis e as tendências do aumento da criminalidade no país são por demais evidentes. Isto, segundo o estudo sócio-económico sobre armas ligeiras e de pequeno calibre em Cabo Verde realizado pela Afrossondagem em 2008. Pois, da análise das ocorrências registadas, mostrou-se que entre 1996 a 2007, houve um aumento de menos 11 mil para quase 19 mil casos. Constatou-se, entretanto, que entre essas ocorrências, em 2007 o número de actos registados contra pessoas era de 9.854, (52%) e contra a propriedade era de 8.942 (48%). Ou seja, vê-se claramente a predominância de actos contra as pessoas em todos os 11 anos do período analisado, conforme pode ser visto na Figura 1.1 a seguir. Figura 1.1: Crimes contra Pessoas e contra Propriedade no Período de 1996 a 2007Cabo Verde Fonte: Afrossondagem Nesta mesma pesquisa (Afrossondagem, 2008), constatou-se que em 1996 ocorreram 28 crimes registados por cada 1000 habitantes a nível nacional. Enfatiza-se que, passados 11 anos, esse número aumentou para 38 ocorrências por 1000 habitantes. Ou então, houve um acréscimo de 36% nas ocorrências registadas. Os dois anos constituem duas referências importantes, pois 1996 foi o ano em que houve menos ocorrências per capita e 2007 foi o segundo ano em termos de ocorrências per capita, ultrapassado ligeiramente por 2006. 232 Ainda, verificou-se que, se levadas em conta as taxas de crescimento médias anuais entre 1996 e 2007, facilmente se constata que a taxa de crescimento média anual da criminalidade está a crescer mais do dobro da taxa de crescimento média anual da população. Esta última tem estado a crescer a uma taxa de 2,17% contra 5,10% do crescimento das ocorrências criminais, razão pela qual as ocorrências criminais cresceram quase 36% neste período. Um dado importante é a constatação de que a criminalidade contra a propriedade está a crescer, em média anual, de 6,46% contra 4,02% de crescimento da criminalidade contra as pessoas. Isto é, em média ocorreram neste período 15.501 registos de crimes na Polícia, dos quais, 6.454 contra a propriedade e 9.047 contra as pessoas. Por outro lado, considera-se que naturalmente a criminalidade tem ainda um perfil muito diferenciado consoante a ilha. Ao analisar os dados se percebeu que os dois períodos diferentes no tempo apontam para que na ilha de Santiago se regista a metade das ocorrências. A ilha de Santiago, juntamente com Sal e São Vicente, representam cerca de 80% das ocorrências em 2001 e 74% em 2005. E a tendência anual é para um aumento constante se forem levados em conta os dados dos anos subsequentes. Conforme a Tabela 1.2, abaixo, pode-se constatar que, de fato, a tendência criminal é maioritária nos principais centros urbanos. Isto se justifica talvez por serem os centros urbanos os lovais onde existe a maior aglomeração populacional e por eventualmente haver maiores disputas de interesses. O número de crimes na Praia que em 2006 era de 3646 casos, quase duplicou em 2009, passando a ser de 6695 casos. O mesmo acontece com os outros centros urbanos, obrigando, entretanto, as autoridades a saírem às ruas para conter a onda de violência que se vive. A imagem da Tabela 1.2 ilustra essa situação. 233 Tabela 1.2 - Crimes contra Pessoas e contra Propriedade em Cabo Verde por Concelho, de 2006 a 200 Concelho Paul Ribeira Grande Porto Novo São Vicente S.Nicolau (R.Brava e Tarrafal) Sal Boavista Maio Praia Ribeira G.Santiago São Domingos S.L.Orgãos S.S.Mundo Santa Catarina Tarrafal Calheta Santa Cruz São Filipe Cova Figueira Mosteiros Brava Total 2006 370 431 393 1173 2007 300 334 375 1261 2008 262 357 243 1620 2009 289 413 342 2168 2010 243 558 455 2359 1005 311 253 3.646 279 1447 237 245 5749 337 1377 344 270 6458 270 1308 530 242 6695 338 1792 783 406 7685 211 57 225 35 289 75 328 121 475 46 74 109 170 1155 453 255 624 1093 101 827 410 181 417 754 93 968 416 168 407 963 92 796 744 242 486 932 146 1103 565 264 681 1381 339 559 12599 91 237 376 13949 140 253 384 15448 135 350 294 16840 188 455 345 20604 328 Fonte: Divisão de Operações e Informações Policiais-Polícia Nacional No que toca ao sentimento/percepção de insegurança vale a pena frisar que num estudo da UNODC/CCCD, concluiu-se que 42% dos inqueridos receiam que as suas casas possam ser assaltadas nos próximos 12 meses. Os resultados deste inquérito ultrapassam os 50% na Praia, Boa Vista e S.Vicente. Pois, sabe-se, entretanto, que em 2002 a criminalidade ocupava o sétimo lugar na hierarquia dos problemas sociais em Cabo verde e em 2008, exponencialmente, ocupou o terceiro lugar ao nível nacional e o segundo lugar na Praia, tendo ultrapassado o 234 problema da pobreza. Facto este confirmado numa da pesquisa de campo no âmbito dp presente trabalho realizada em 2011 na Praia em que 67,84% dos praienses responderam existir a possibilidade de serem vítimas de violência e crime. Da mesma forma, o QUIBB-2007 (Questionário Unificado dos Indicadores Básicos de Bem-estar), realizado pelo INE (Instituto Nacional de Estatística) demonstra que os agregados familiares opinaram que para melhorarem as suas condições/níveis de vida nas suas zonas, as autoridades devem priorizar a criação de empregos, o acesso à saúde e a garantia de maior segurança. Estes factores interligam-se hierarquicamente e representam os principais problemas sociais existentes no país. Com isto, esforços que vêm sendo incrementados na execução de acções nessa esfera devem começar desde o campo social, passando pelo económico até se efectivarem no campo político, como forma de prevenção e controlo do acto delituoso, o que pode possibilitar aos integrantes das instituições de segurança pública melhoria qualitativa no desempenho de sua missão constitucional, seja quanto às suas acções preventivas no campo do policiamento ostensivo, visando atender os reclames da sociedade por uma atuação mais sintonizada com a contemporaneidade dos serviços dessa natureza, seja nas acções repressivas. Consultando o mapa das despesas de funcionamento e de investimento da Câmara Municipal da Praia para 2011, verifica-se que 2% do seu total, correspondem aos investimentos em ordem pública e protecção civil, representando um valor de 59.715.238,54 (cinquenta e nove milhões setecentos e quinze mil duzentos e trinta e oito escudos e cinquenta e quatro centavos). Por outro lado, para o funcionamento da Guarda Municipal, recentemente criada, conta-se com um orçamento de 67.181.544,94(sessenta e sete milhões cento e oitenta e um mil quinhentos e quarenta e quatro escudos e noventa e quatro centavos) com um peso de 2,2% no orçamento. Isto é, em relação ao ano anterior (2010), houve uma variação de 85,3%, que correspondeu ao valor de 36.259.745,00 (trinta e seis milhões, duzentos e cinquenta e nove mil, setecentos e quarenta e cinco escudos) respectivamente. Contudo, endo em atenção o plano de actividades da Câmara Minicipal durante os três últimos anos, ou seja, 2009, 2010 e 2011, quando se observa o mapa do subprograma Promoção de Segurança e Autoridade Municipal, verifica-se uma diminuição anual do orçamento. Este subprograma contou com um 235 orçamento de 68.500.000,00 (sessenta e oito milhões e quinhentos mil escudos) em 2009, diminuindo para 55.464.564,00 (cinquenta e cinco milhões, quatrocentos e sessenta e quatro mil quinhentos sessenta e quatro escudos) em 2010 e 43.000.000,00 (quarenta e três milhões de escudos) em 2011. A referida diminuição orçamental poderá não estar adequada às mudanças conjunturais e àquelas que estão a se verificar nos actos de violência e crime no município, podendo afectar directamente a prevenção e a luta contra esses males. Em suma, as acções de prevenção e luta contra este problema devem contar com uma entrega maior das autoridades municipais, conjugando seus esforços aos de outros orgãos de segurança pública, no sentido de orientarem suas estratégias para campos e programas prioritários de prevenção e combate ao fenómeno. Este trabalho objetivou desenvolver um estudo sobre a violência e a criminalidade, na expectativa de obtenção de novas formas e modelos de prevenção e combate ao fenómeno da violência e criminalidade, que constituem um problema social preocupante, contribuindo para reduzir as assimetrias de desenvolvimento, assegurar a eficiência e a eficácia na alocação dos recursos públicos e privados. O estudo do custo da criminalidade permite analisar o custo/benefício e o custo/efectividade para a orientação sobre a alocação de recursos públicos para programas mais necessitados. 1.3 - Justificativa e Importância da Pesquisa Há argumentos favoráveis à relevância de se estimar os custos sociais da violência e criminalidade. Primeiramente, permite identificar a importância da violência como uma questão da política social; em segundo lugar, permite dar um primeiro passo para a alocação de recursos entre problemas sociais alternativos e a questão de segurança pública de forma mais estrita; e por último, possibilita a alocação e orientação de recursos públicos para programas específicos voltados a questão de segurança pública de forma eficiente e eficaz (Bourguignon e Morrison, 2000, apud Cerqueira et al., 2007). Quando se pensa em nível macro, este estudo se justifica por possibilitar saber se mais recursos económicos devem ser direcionados no combate à violência e criminalidade. Da mesma forma, no campo micro-económico, justifica-se por revelar qual será a alocação óptima de recursos entre os vários tipos de políticas e 236 programas, tanto de de natureza preventiva como repressiva. Em suma, é justificável a estimação dos custos da criminalidade não apenas pela análise de seu resultado global, mas também pelo estudo de sua composição. Pois, é importante para a sociedade na medida em que saberá quais são as principais formas de perdas económicas que a violência lhe impõe. A violência acarreta custos em segurança para a sociedade que, em princípio, deveriam ser cobertos pelo Estado. Cabe a este oferecer a segurança como um serviço gratuito. A implementação de uma determinada forma da segurança pode proporcionar externalidades positivas, por um lado, e a contratação de serviços de segurança pode, por outro lado, provocar externalidades negativas. Como exemplo de externalidade positiva tem-se: a construção de uma guarita em um imóvel, o que eleva a segurança de todas as casas próximas. Mas, a instalação de um alarme residencial, por sua vez, não oferece protecção adicional às casas vizinhas. Nos casos de externalidade negativa, a segurança de um indivíduo ou de um património particular eleva o risco de vitimização do restante da população. A migração de criminosos entre cidades e estados corrobora a hipótese de que prover segurança para uma determinada região pode aumentar a criminalidade em outras áreas. Dessa forma, somente uma política integrada e ampla de combate à violência produziria resultados socialmente vantajosos. O Estado pode estar fracassado relativamente à disponibilização de recursos, motivando os agentes privados a contratarem, por exemplo, as empresas privadas de vigilância e protecção. Então, a privatização dos serviços de protecção que pode ter origem na não distribuição equitativa da segurança por parte do Estado expõe indivíduos com menor renda a riscos maiores, fazendo com que os resultados insatisfatórios das políticas públicas afectem de maneira desigual os indivíduos. Numa perspectiva diferente, aponta-sea possibilidade de uma melhor alocação de recursos para a segurança sem sobrecarregar a sociedade, o que ocorre num Estado de direito democrático consolidade, em que são asseguradas as condições para que os direitos, liberdades e garantias sejam respeitados e haja respeito ao exercício da cidadania e da actividade empresarial, com a celeridade crescente da justiça. 237 1.4 - Situação Problema Cabo Verde, um país situado nas encruzilhadas do Atlântico, dispondo de fracos recursos e exposto a várias influências da globalização. A sua capital, Praia, é o lugar que alberga o maior número de habitantes do país, 130.271, segundo os dados do Censo 2010, vem convivendo diariamente com o aumento da violência e criminalidade, com causas e consequências merecedoras de estudo. Os custos derivados deste problem têm efeitos directos sobre acções do Estado, das famílias e das vítimas. Quer isto dizer que, de ano para ano poderá haver um maior dispêndio de recursos financeiros pelo Estado e pelas famílias envolvendo o sistema de saúde, a justiça e até a previdência social. Socialmente, observa-se o consumo de determinados bens a diminuírem, passando a haver menos procura pelas actividades de lazer, inibição de turismo interno e externo, perda na acumulação de capital, retardando, em certa medida, o desenvolvimento sustentável. É considerado crítico o turismo interno em vários espaços e localidades de diversas zonas da Praia, o que torna indesejável a frequência de muitas pessoas a esses lugares. Para complicar, a falta de um sistema de segurança pública que monitorasse a violência e a criminalidade, nesses espaços, a exemplo do “sistema de geo-referenciamento”11. Tulio Kahn (1999) demonstrou, em seu estudo, que a violência e a criminalidade reflectem-se directamente no turismo, tanto interno como externo. Também, este problema gera um custo alto tanto para o país como para as pessoas, individualmente, sendo a segurança um bem desejado por todos. Assim, o estudo aponta que a insegurança afecta as decisões da população local, no caso de São Paulo e Rio, que deixa de viajar para determinadas cidades, de morar em certas vizinhanças, de estacionar os carros numa determinada rua. Então, é notável a preocupação da população em reorganizar a via e os negócios em função da violência. Daí que, à medida que vêm aumentando os casos de violência e criminalidade numa determinada região ou lugar, diminui a atractividade turística do espaço levando à desistência de investimento em negócios. Contudo, em Cabo 11. Entende-se aquo o sistema de georeferenciamento como sendo a forma de geração de informação geográfica conhecida num dado sistema de referência, pela obtendo de coordenadas do ponto do mapa a ser referenciado, conhecidas como ponto de controle, oferecendo uma feição física completamente identificável. 238 verde não se conhece nenhum estudo que estabelece ligação directa entre o aumento da violência e a diminuição de turismo, mas, a tendência mundial aponta para este facto ser verdadeiro. Por outro lado, as empresas vêem os seus negócios diminuírem, tendo que arcar com os custos de protecção dos mesmos, aumentando, assim, os preços dos seus bens e serviços, gerando, entretanto, a diminuição desses negócios. No caso mais extremo onde a criminalidade domina, não haverá ambiente propício ao nascimento de outras empresas e negócios e os que já existem são obrigados a se deslocalizarem, implicando, assim, outras perdas. Consequentemente, as inúmeras dificuldades económicas e naturais existentes no país obrigam o investimento na prevenção como meio importante para alcançar a desejada atracção turística, atracção de investimento externo, entre outros factores que são indispensáveis para a alavancagem económica e o desenvolvimento sustentável. Assim sendo, urge dispensar esforços no estudo desta problemática que na consciência de muitos ainda não se reflectiu. Pois, saber qual é o custo da violência e criminalidade no município da Praia foi preocupação deste trabalho. E da mesma forma, saber como e onde os recursos deverão ser alocados e para quais programas alternativos deverão ser direcionados constituem os desafios para se combater o fenómeno. Na verdade, as externalidades negativas12 resultantes da violência e criminalidade são malefícios que podem afectar o desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana. 1.5 - Hipótese Básica do Trabalho Neste trabalho parte-se da hipótese de que é por meio do orçamento estatal e familiar que se obtêm recursos para prevenir e combater a violência e a criminalidade na Praia, considerando os resultados positivos da políticas de combate ao fenómeno no município. 12. Na literatura, as externalidades negativas podem os ser gastos somados às despesas correntes de instituições públicas e privadas que são transferidos para as famílias na forma de aumento do preço dos bens, diminuindo, assim, os negócios e proporcionando a perda do bem-estar social. 239 1.6 - Objetivo Geral O objetivo geral da pesquisa foi conhecer e analisar os custos da violência e criminalidade em Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, bem como o seu peso orçamental, as principais tendências e os reais desafios para o Estado e para a sociedade praiense. 1.6.1 - Objetivos Específicos Os objetivos específicos foram: i. Conhecer e analisar os custos da violência e criminalidade, sua evolução e seu peso (valor) no orçamento do estado no período de 2006 a 2010. ii. Estudar e analisar em que medida a violência intencional contra terceiros (incluindo roubo e furto) constitui um problema de segurança pública e um desafio a vencer. iii. Estudar, analisare avaliar a percepção da população Praiense a cerca de segurança. 240 CAPÍTULO II ASPÉCTOS TEÓRICOS DOS CUSTOS DA VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 2.1 - INTRODUÇÃO A violência e a criminalidade constituem um assunto que acompanha a sociedade na sua evolução desde o seu aparecimento até os dias actuais. Entretanto, o crime em si deve ser pensado e combatido não só a curto e médio prazo com algumas acções repressivas, mas sim, dando maior ênfase em longo prazo, gerando as diversas técnicas de combate existentes. Com isto, deve-se focar nas acções de prevenção, inclusão e desmarginalização dos indivíduos, ajudando-os a conhecer e a usar as condições de subsistência existentes de forma digna e aceitável, evitando, assim, a degradação e a desestruturação familiar. Vários autores defendem que as acções de controle e prevensão devem ocorrer na família, começando na infância. Essa consciência é também partilhada em Cabo Verde, observando as acções de algumas instituições governamentais e não só, que lidam com a questão problemática da infância. É o que se pode perceber nas acções do programa Nacional de Educação Profissional desenvolvidado pela IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional), do programa do ICCA (Instituto Caboverdeano da Criança e do Adolescente) e do Plano Nacional de Combate a Violência Baseada no Género de 2005 a 2009, do ICIEG (Instituto Caboverdeano para a Igualdade e Equidade do Género) (2006), da Lei sobre a VBG (Violência Baseada no Género) etc. 2.2 - COMO SE DEFINE A VIOLÊNCIA E O CRIME Segundo Bronkhorst e Fay (2003), para Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência nada mais é do que a utilização intencional da força ou do poder físico, quer seja por ameaça, contra si mesmo, ou outra pessoa ou um gru241 po que resulte ou possa resultar, em ferimentos, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação. Assim, pode ser dividida a violência em três amplas categorias: i. “Violência autodirigida” que inclui dano físico causado a si próprio. Esta categoria é subdividida em comportamento suicida e autoflagelo; ii. “Violência interpessoal” que se relaciona com ferimentos ou danos causados por um indivíduo a outro, parente (violência doméstica) ou não (violência comunitária); iii. “Violência colectiva” que focaliza actos danosos cometidos por um grupo. Tais actos podem ter motivações políticas, económicas ou sociais. Ressalva-se, todavia, que nem toda violência pode ser considerada como crime. Conforme o Código Penal Cabo-verdiano, encontram-se visíveis vários tipos de crimes dos quais se destacam os seguintes: crimes contra a vida, contra a integridade física e psíquica, contra a liberdade das pessoas, crimes sexuais, crimes contra a dignidade, crimes contra o património etc. De forma conservadora, estudiosos da questão da violência e crime apontam duas abordagens simples do problema. Uma, segundo a “Lei e Ordem”, que considera sua aplicação com maior rigor e outra que procura “Razões de Fundo” e se preocupa em resolvê-las prevenindo e reduzindo as acções de violência e crime. No entanto, a conjugação das duas abordagens tem tido resultados melhores. Em Cabo Verde, nos últimos tempos, vêm surgindo diversas formas de violência, com mais ênfase à violência interpessoal. Nesta parte pode-se destacar a violência doméstica contra a qual tem havido uma batalha satisfatória, tanto na parte de produção de leis punitivas como na parte de apresentação de programas específicos para o combate a esse mal. É o que se pode constatar no Plano Nacional de Combate á Violência Baseada no Género (PNCVBG) realizado pelo ICIEG (Instituo Caboverdeano para a igualdade e equidade do Género) e da Lei que estabelece as medidas destinadas a prevenir e reprimir o crime de Violência Baseada no Género, VBG (CABO VERDE, 2011). A violência comunitária, que gera a preocupação dos cidadãos em contê-la, não foi ainda alvo de programas específicos de grande relevância como a Lei da VBG e o PNCVBG, para fazer face ao seu combate. De realçar que a violência comunitária é tida hoje como um factor de instabilidade, de insatisfação populacional e de perda de bem-estar social, o que poderá traduzir-se numa questão de caos social na capital do país. Posto isto, é preciso haver formas de controlo social aceitável, através de estudos, de programas e meios adequados, assim como noutras paragens do mundo, para que se possa ter e viver uma vida sã e próspera. 2.3 - ESTUDOS E EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS No mundo actual, o problema da violência e do crime constitui uma das maiores preocupações da sociedade, ultrapassando o desemprego e a inflação, os juros e impostos. E cunho social cujo enfrentamento é grande desafio. Fajnzylber e Araujo Jr.(2001) apontam para pesquisas realizadas em vários continentes como Estados Unidos, Europa e América Latina nos meados dos anos noventa, clarificando que a maioria das populações avaliam a violência e crime como sendo os problemas mais sérios do seu tempo, o que não é supresa nos dias de hoje. Nos anos noventa, por exemplo, na maior parte dos países Europeus, as taxas de homicídios não superavam o patamar de 5 por 100 mil habitantes, o que representava, segundo Fajnzylber (2001), menos da metade da taxa corespondente nos Estados Unidos e menos do que a quarta parte das taxas de vários países da América Latina. O continente americano é o que apresenta as taxas mais altas de homicídios no mundo. E o Brasil e o México, não obstante serem, no referido continente, os países com ausência de conflitos armados, apresentam uma taxa de 25 homicídio por 100 mil habitantes, revelando assim, um verdadeiro caos na sociedade mundial. O Quadro 2.1, a seguir, demonstra o exemplo de mapeamento da violência utilizado na América Central para monitorar esse problema na região. Nela está referida a violência por tipo, considerando as categorias, os perpetradores e as suas manifestações, o que leva à reflexão sobre como será perigoso não dar atenção a um ou outro tipo de violência, pelo fato de que ela possa assumir uma escala maior em outras regiões, implicando soluções mais complexas. Isto no pressuposto de que o conhecimento das diversas formas de violência existentes num determinado local e num dado momento poderá então apontar para a busca das melhores práticas e meios para enfrentá-las e combaté-las de forma eficaz e eficiente. 243 Quadro 2.1 - Mapa dos Tipos de Violência na América Central Direcção primária do contínuo da violência Categoria de violência Violência instituPolítica/ ins- cional do Estado e titucional outras instituições Incluindo o sector privado Violência Institucional do Estado resultando em falta de confiança na polícia e no Instituciojudiciário nal/ económica Crime organizado Interesses de negócios Manifestações Direcção secundária do Execuções extrajudiciais contínuo da pela polícia ‘Faxina’ social violência de gangues e crianças moradoras de rua conduzida pelo Estado ou comunidade LinVi o l ê n c i a chamento social intraIntimidação e violência como -lares resulmeio de se resolver disputas ta na saída económicas Sequestro Assalde casa dos to a mão armada Tráfico de jovens, que drogas Actividades de conficam expostrabando de carros e outros tos a vários Tráfico de armas de pequeno tipos de porte Tráfico de prostitutas e riscos ligaemigrantes com destino aos dos à violênEUA cia das ruas Violência colectiva por espaço, roubo, furto Económica Social Gangues (Maras) Económica Delinquência/ roubo Furto de rua, roubo Económica social Crianças moradoras de rua (meninos e meninas) Pequeno furto Social Violência doméstica entre adultos Abuso físico e psicológico Homem-mulher Social Abuso de crianças: meninos e meninas Abuso físico e sexual Social Social 244 Tipos de violência por Perpetradores e ou vítimas Conflito inter-geracional entre pais e filhos (jovens, Abuso físico e psicológico adultos e idosos ) Violência gratuita/ cotidiana Falta de cidadania em áreas como trânsito, brigas de bar e confrontações de rua. Fonte: Guia de prevenção do crime e da violência em áreas urbanas de América Latina LCSFP-World Bank-Adaptado em Moser 1999/2000 Neste estudo a preocupação com os problemas de segurança é motivada em larga medida por razões estritamente económicas, visto que há elevados custos económicos para fazer frente ao combate do fenómeno da violência e da criminalidade. Araújo e Fajnzylber (2001) demostraram que estimativas conservadoras desses custos chegam a ser de 5% do PIB nos Estados Unidos e na América Latina, representando o valor das vidas perdidas 2% deste total do PIB e a mesma grandeza dos gastos efetuados nos sistemas de segurança pública e privada. Pois, se se contabilizarem os custos intangíveis como a redução na qualidade de vida, perdas dos dias de trabalho, o desincentivo ao investimento etc, decorrentes desta problemática, certamente os valores percentuais seriam maiores. Assim, a implementação de políticas públicas que diminuam a violência e aumentem o sentimento de segurança, como recomendam algumas pesquisas, é tida como tarefa imprescindível para aumento do bem-estar social, contribuindo, assim, para assegurar que a democracia seja a forma de regime político mais sustentável no mundo e que seja o regime que gere um ambiente propício ao crescimento e desenvolvimento económico. Daí os vários feitos no estudo e consecução de políticas que visam satisfazer os interesses sociais, permitindo uma visão clara dos aspectos indesejáveis e uma visão clara do caminho a trilhar. Um destes estudos com o qual este trabalho se relaciona, tem como objetivo avaliar os custos da criminalidade. O Instituto Superior de Estudos da Religião, ISER (1998), estudou os custos da criminalidade dividindo-os em seguintes categorias: i. Custos de atenção à vítima, incluindo aqueles relacionados com os cuidados prestados no lar, ambulatorial e hospitalar; ii. Custos considerados intangíveis, associados ao sofrimento físico emocional da vítima e de seus familiares e amigos; iii. Custos económicos relativos às perdas de produção e renda por parte das vítimas; iv. Custos legais, judiciais e com o aparato da segurança; v. Custos das perdas materiais decorrentes da violência: veículos, infra-estrutura etc. O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) definiu duas ênfases 245 possíveis a serem usadas para estudar o custo da criminalidade: uma é o “enfoque parcial” e a outra é o “enfoque global” (BUVINIC e MORRISON, 2001, apud TEIXEIRA e SERRA, 2007 p.27). Segundo o estudo, o enfoque parcial é utilizado quando é impossível a implementação do enfoque global, seja pela falta de dados ou complexidade da metodologia ou quando requer ressaltar um impacto específico da violência. Como exemplo, apontam-se os trabalhos realizados pelo Centre de Rechercehs Sociologiques sur le Droit (CESDIP, 1970) et les Instituitiones Pénales, relativos à valoração da vida humana, tendo como base as perdas na produção diferenciadas por idade, sexo e ocupação dos indivíduos. Já o enfoque global tem como objectivo estimar a totalidade dos custos da violência. Foram desenvolvidas três metodologias pelo BID: a de contagem, a de preços hedônicos e a de valoração contingente. Cada uma destas metodologias possui vantagens e desvantagens. A metodologia de contagem consiste em especificar determidadas categorias de custos e somar os custos identificados para cada categoria. Tem como principal vantagem a possibilidade de sua utilização quando se tem informação apenas para algumas categorias de custo da violência. E, como principais desvantagens há a arbitrariedade embutida na construção de uma categoria e o risco de se inserir o mesmo custo em duas categorias diferentes, ou seja, a dupla contagem. A metodologia de contagem é bastante usada na medição dos custos da violência e crime. Esses custos estão categorizados na Figura 2.1, a seguir: • Custos diretos - abrangem o valor dos bens e serviços utilizados para combater e prevenir a violência, o tratamento de suas vítimas e a prisão e julgamento dos criminosos. • Custos não monetários - incluem impactos na saúde e a consequente queda na expectativa de vida das vítimas da violência, seja através de homicídios ou invalidez permanente. • Efeitos multiplicadores económicos - implicam por um lado uma menor acucmulação de capital humano, menor produtividade do trabalho e menor taxa de participação no mercado de trabalho. E por outro lado, implica a diminuição da capacidade de investimento e poupança. • Efeitos multiplicadores sociais - incluem a transmissão da violência entre gerações, privatização das funções policiais, erosão do capital social, queda na qualidade de vida do cidadão e menor participação do indivíduo nos processos 246 democráticos. Figura 2.1 - Categorização dos Custos de Violência Efeitos multiplicadores economicos Custos directos Custo total da Violência Custos não-monetários Efeitos multiplicadores sociais Fonte: Buvinic e Morrison (2001) Teixeira e Serra (2007), num estudo de custo de criminalidade em Curitiba (Brasil), utilizando a metodologia de contagem, concluíram que os gastos e perdas decorrentes da criminalidade equivaleram a 2,26% do PIB do Município em 2002, repartidos em encargos públicos, privados e perdas sociais. A parte destinada aos encargos públicos que foi de 1,4% do PIB originou-se dos impostos e taxas pagos pela população e que são alocados em segurança pública em vez de serem alocados para outras áreas consideradas prioritárias, como a educação e saúde. Então, há uma dupla tributação sobre o indivíduo, que tem que pagar os impostos para a manutenção da segurança pública e também efectuar gastos privados para se previnir do crime. Existe ainda o cálculo de anos de vida perdidos ou prejudicados, que é considerado uma importante ferramenta da metodologia de contagem, por procurar medir o total de anos perdidos de vida saudável comprometidos em virtude de doenças ou outros males. Segundo os estudos sobre o assunto, a forma mais utilizada de mensurar estes custos é chamada Disability Adjusted Life Year (DALY), que é uma medida de tempo de vida prejudicado ou perdido em virtude da morte precoce. 247 Rondon e Andrade (2003) desenvolveram a metodologia de preços hedónicos que estima a disposição dos indivíduos em pagar por uma redução da violência a partir de uma amostra com valores de preço de imóveis. Esta metodologia assume como pressuposto que o preço do imóvel é determinado tanto pelas características físicas do bem (área, tamanho do lote, acabamento, etc.), quanto pelas características de sua localização (existência de ruas pavimentadas, acesso a postos de saúde, acesso a escolas, nível de criminalidade, etc.) Ou seja, esta metodologia usualmente é utilizada para mensurar preços dos bens que não existem num mercado directo. Pode-se apontar o caso de ar, poluição sonora, segurança etc. Então, a partir do uso desta metodologia consegue-se chegar ao preço que um idivido pagaria indirectamente pelo uso ou consumo do bem. A técnica hedónica consiste em uma regressão na qual o preço do imóvel é a variável explicada e as características deste são as variáveis explicativas. Os parâmetros estimados pela regressão hedónica representam o preço implícito de cada uma das características do bem imóvel. Esta metodologia tem como desvantagem a requisição de uma grande quantidade de dados sobre preço de imóveis que contenha informações sobre cada imóvel da amostra assim como de sua localização. Num estudo da estimação dos custos de criminalidade no município de Belo Horizonte, por meio da metodologia de preços hedónicos, calcularam os valores de alugueis de imóveis, concluindo, como a maioria dos correctores sabe: “Pois, os valores de imóveis variam consoante variar a taxa de criminalidade. A segurança de um bairro é um dos principais definidores do preço do imóvel” (RONDON e ANDRADE, 2003, p. 22). Exemplificou-se, no estudo, que uma família de classe média que residia num apartamento de três quartos e um banheiro no centro, receberia implicitamente um acréscimo mensal de renda de R$ 70,00 (setenta reais) caso o nível de crime fosse reduzido à metade naquela Unidade de Planejamento. Já Araújo e Ramos (2009) demonstraram, com o mesmo objectivo, o método de valoração contingente, que tem como meta estimar a disposição da população em pagar para uma queda na violência, tendo como pressuposto que a violência é um bem comercializável. Esta metodologia consiste em seleccionar aleatoriamente uma amostra da população em determinada localização e fazer entrevistas com indivíduos seleccionados. 248 Então, a cada indivíduo entrevistado, é dado tanto um conjunto de medidas para diminuir a violência em seu bairro, como o preço que terá de ser pago para a implementação de cada política. Desse modo, o entrevistado escolherá a medida, ponderando o custo que terá que suportar com o benefício de viver num bairro mais seguro. Esta metodologia tem como desvantagem a sensibilidade da amostra seleccionada em relação à distribuição da renda entre os indivíduos. Pois, indivíduos mais ricos tendem a estar dispostos a gastar mais dinheiro para viver em bairros mais seguros. Os autores, num exemplo da utilização desta metodologia, estimaram a perda de bem-estar provocada pela criminalidade na cidade de João Pessoa (Paraíba, Brasil), concluindo que o sentimento de insegurança das famílias, devido à criminalidade, pode ser avaliado de maneira conservadora, em R$ 5,00 (cinco reais), sendo a maior estimativa de R$ 59,35 (cinquenta e nove reais e trinta e cinco centavos). De acordo com essas estimativas, calcula-se que a perda de bem-estar agregada anual associada ao sentimento de insegurança seja de R$ 6.5 24.727,01 (seis milhões, quinhentos e vinte e quatro mil, setecentos e vinte e sete reias e um centavo), considerando a estimativa mais conservadora, sendo a maior, da ordem de R$ 104.864.863,52 (cento e quatro milhões, oitocentos e sessenta e quatro mil, oitocentos e sessenta e três reais e cinquenta e dois centavos) para a cidade de João Pessoa. Numa perspectiva diferente da análise dos custos do crime aparece outro tipo de classificação que é: Custos Sociais e Custos Externos. Um custo externo é aquele imposto por uma pessoa sobre outra, sendo que a vítima não aceita voluntariamente este consequência negativa. Como oposição ao custo externo o custo social tem como referência a sociedade e não o indivíduo na consideração das perdas decorrentes da criminalidade. Os custos sociais são aqueles que reduzem o bem-estar agregado à sociedade (COHEN, 2001, apud BORILI e SHIKIDA, 2009, p.5). Da mesma forma, apresenta-se outra teoria onde a vítima é vista como objecto de estudo. É a teoria do estilo de vida. Essa teoria sustenta que os factores que mais influenciam o risco de vitimação dos indivíduos são: a exposição, a proximidade da vítima do agressor, a capacidade de proteção e, por fim, os atractivos das vítimas e a natureza dos delitos (BEATO, 2004, apud BORILI e SHIKIDA, 2009, P.5). 249 Neste contexto, a análise económica do crime é baseada fortemente na relação delito-punição como determinante da taxa criminal, em que a eficácia policial e judicial se relaciona com a possibilidade de os benefícios da actividade criminosa suplantarem seus custos e compensarem o risco estipulado (BECKER, 1968)13, Muito bem desenvolvida esta abordagem, até hoje é tomada como uma das maiores bases teóricas quando se pensa deselvolver estudos relacionados com a economia do crime, da segurança e da violência. Para Becker, todas as pessoas são potencialmente criminosas, pois elas estão igualmente sujeitas ao raciocínio económico de comparação entre ganhos e custos esperados. Isto é, custos tidos como prováveis das acções criminosas. Da mesma forma, ele admite que a indústria do crime é uma indústria como qualquer outra e sua existência e crescimento ou não resultam do mercado. Pois, as pessoas escolhem como alocar seu tempo e seus talentos entre actividades legais e ilegais guiadas pelas expectativas de retorno líquido. 13. Gary Becker é sociólogo e economista da Universidade de Chicago (vencedor do Prémio Nobel de Economia de 1992). O trabalho original mencionado aqui intitula-se Crime and Punishiment: an economic approach. 250 CAPÍTULO III VISÃO GERAL SOBRE A METODOLOGIA APLICADA À PESQUISA 3.1 - METODOLOGIA APLICADA À PESQUISA O objectivo desta dissertação foi conhecer e analisar o custo da violência e criminalidade em Cabo Verde, seu peso no orçamento do Estado e seus reais desafios para a sociedade da cidade da Praia. Daí que tenha sido preciso coletar os dados pela Metodologia de Contagem. Sendo assim, optou-se por desenvolver a tipologia inédita de classificação de custos, dividindo-os em exógenos e endógenos, o que, entretanto, implicou a necessitade prévia de uma tipologia prévia de custos (RONDON, 2003). Desta forma, como custos exógenos, tomam-se alguns gastos efectuados directamente pelos agentes, públicos e privados no combate ao crime durante os últimos cinco anos (2006 a 2010). Exemplificando, tomam-se os gastos previstos no orçamento das diversas instituições envolvidas na luta contra violência e criminalidade em Cabo Verde, como a Polícia Nacional, a Polícia Judiciária, a Comissão de Coordenação e Combate à Droga, e gastos com o Sistema de Justiça. Também, somam-se os gastos previstos no Programa Plurianual de Investimentos Públicos (áreas relevantes da degurança pública em estudo), como a área de Justiça, Protecção e Integração Social e, por último, a área de Segurança que dá maior enfase a luta contra a droga. Rondon (2003) define custos endógenos como sendo os resultados da acção do crime dos quais os prejuízos advenientes são controlados indirectamente pelo Estado e os indivíduos. Como exemplo destes custos, programou-se estudar o número de furtos e roubos na Capital, Praia, o custo de tratamento hospitalar das vítimas de violência e criminalidade, os gastos com encarceramento e, por fim, somar a renda potencial das vítimas fatais da violência e criminalidade. Pelo facto de que não está ainda fixado um salário mínimo em Cabo Verde, então 251 se considerou tomar como base da soma a estimativa do salário médio dos trabalhadores da Administração Pública, do sector privado e das casas de famílias Cabo-verdianas (trabalho doméstico), conforme o Estudo Sobre a Criação do Salário Mínimo em Cabo Verde, realizado em 2009 pela UNTC-CS (União Nacional dos Trabalhadores de Cabo Verde - Central Sindical). Daí, conhecendo o número de vítimas fatais da violência e crime (VC), seria estimado o montante que ganhariam durante o período de análise se não tivessem sido vítimas fatais da violência e crime. Posto isto, vê-se que na determinação dos custos exógenos levam-se em conta os gastos que antecedem a acção criminosa. E consequentemente, na determinação dos custos endógenos, vê-se que são gastos contabilizados pós-acontecimento da acção criminosa. Na verdade, o estudo de Rondon sustenta que a divisão dos custos em exógenos e endógenos procura deixar em evidência a dicotomia activo-passivo do agente não criminoso diante dos prejuízos do crime. Conclui-se, então, que os custos exógenos são aqueles que os agentes escolhem assumir diretamente, sendo essa escolha em grande medida influenciada pela taxa pesada de violência. Porém, os agentes possuem autonomia para decidir o montante dos recursos que pretendem destinar à segurança. Por outro lado, os custos endógenos serão determinados pelo nível de violência. Pois, o custo de tratamento hospitalar provocado pela violência intencional, classificado de endógeno, por exemplo, acarretaria outro custo adicional se a vítima não fosse atendida atempadamente. Igualmente, classificando os custos desta forma, consegue-se perceber a relação entre as perdas difinidas previamente pelos agentes e as perdas que são resultado directo da acção do crime. Portando, os custos exógenos são tidos como objecto para diminuir os custos endógenos. Sustenta-se, ainda, que a alocação óptima de recursos é aquela em que o aumento marginal dos gastos exógenos produz uma redução marginal equivalente nos custos endógenos. 3.2 - AMOSTRAGEM DAS INFORMAÇÕES Para buscar informações sobre a população praense, realizou-se uma pesquisa amostral estratificada proporcional ao número de moradores por Bairro (os cinco mais populosos), com uma margem de erro de 7,90%, resultando então em 252 161 entrevistas, valor este considerado recomendável (BOLFARINE e BUSSAB, 2005). As entrevistas foram feitas com indivíduos escolhidos aleatoriamente em cinco dos Bairros mais populosos da capital, conforme Tabela 3.1, apresentada a seguir. Tabela 3.1 - Quantidade Populacional, Peso e Amostra Estudada Bairro Peso (n) População* Amostra (n) Achada Grande Frente 0,1718 6810 28 Achada Santo António 0,3152 12496 50 Palmarejo 0,1104 4375 18 Ponta D’água 0,1470 5827 24 Achadinha 0,2556 10134 41 Total 1,0000 39642 161 Fonte: População do Censo 2000 Assim, por meio do questionário que pode ser visto no apêndice, foi desenvolvida a pesquisa dividindo-o em três blocos de questões. No primeiro bloco foram realizados questões de carácter socioeconómico e demográfico, tomando como o exemplo: sexo, idade, escolaridade, ocupação profissional, bairro de residência, etc. O segundo bloco de perguntas buscou obter informações sobre o sentimento de insegurança dos indivíduos, como também a percepção deles relativa à criminalidade no município. Foram aplicadas questões, do tipo: se o indivíduo se sente seguro em andar na rua durante a noite, como classifica a segurança em seu bairro, se acompanha programas policiais, se faz gastos privados com segurança como seguros, se tem medo da polícia, etc. (MELLO e ALI, 2004, apud ARAÚJO e RAMOS, 2009, p. 588). No terceiro e último bloco de perguntas, buscou-se saber, em termos monetários, se havia a perda do bem-estar social derivada da criminalidade. Foram considerados sectores de serviços de segurança ou acções para prevenir a violência, como: 1-No sector de Justiça, a construção de Centros Alternativos Descentralizados para resolução de disputas (espaço, lugar, terreno, etc.); 2-No sector de Serviços Sociais, a criação de Serviços Comunitários Integrados (centro de recreação) com o objectivo de reunir, falar, controlar os adolescentes de alto risco. 3-Por fim, no sector da Sociedade Civil, com a Capacitação das ONG´s 253 para cooperar e monitorar os esforços da reforma da Polícia. Com esta pesquisa, buscaram-se também subsísdios para estudar e analisar em que medida a violência intencional contra terceiros, incluindo roubo e furto, constituia um problema público e um desafio a combater. 3.3 - VARIÁVEIS Para a obtenção dos dados explorados foram realizadas recolhas de dados orçamentais, das contas do Estado e observações directas. Com o mesmo objectivo, a partir de um questionário com três blocos de perguntas referido anteriormente, foi possível obter os demais dados. Entretanto, várias dificuldades encontradas na recolha de informações não constituíram entrave para a consecução dos objectivos traçados inicialmente. Apresentam-se, a seguir, os dados pela representação gráfica e tabular, para a visualização dos resultados. 3.4 - ANÁLISE DESCRITIVA DOS DADOS Após a coleta dos dados, fez-se a sua análise e interpretação. Programou-se a apresentação dos resultados sob a forma de gráficos ou tabelas, conforme evidencia a estatística discritiva. É assente que em estudos de metodologias informacionais aplicadas à segurança pública, as tabelas fornecem ideias mais precisas e possibilitam uma ispecção mais rigorosa aos dados enquanto os gráficos são mais indicados em situações que objectivam uma visualização mais rápida e fácil a respeito das variáveis às quais os dados se referem (RAMOS, 2010). Neste trabalho, a estatística descritiva é feita a partir de gráficos e tabelas. Pois, os gráficos são uma forma de apresentação visual dos dados. Normalmente, contêm menos informações do que as tabelas, mas são de mais fácil leitura. O tipo de gráfico depende da variável em questão; neste caso, utilizaram-se gráficos de barras, de colunas e de setores (pizza). Segundo Murteira e Black (1993), quando se consideram variáveis que seguem uma série histórica utilizam-se gráficos de linhas ou de colunas, enquanto que em casos de variáveis de séries específicas ou geográfica usam-se gráficos em barras ou de setores. 254 Antes da análise dos resultados preliminares que se encontram espelhados na Tabela 4.1, seria necessário conhecer como foi o acesso aos números que ela apresenta. Por exemplo, para se ter os números do quadro de investimento fez-se consulta às contas do Estado do período de 2006 a 2010, no Programa Plurianual de Investimentos Públicos, captando investimentos previstos em áreas relevantes da segurança pública. Isto é, são investimentos escolhidos livremente pelo Estado, como meio estratégico para o aumento da segurança, da confiança e desenvolvimento do país, os quais também são almejados pelos cidadãos como factor de estabilidade e de garantia dos seus direitos. As áreas de destaque são: a Justiça, a Segurança a Protecção e Integração Social. Como mostra a Tabela 4.1 (Capítulo 4), nestes três compactos de investimentos os itens de maior destaque foram: a Eficiência na Justiça, a Prevenção e Combate a Droga, a Promoção de Apoio às Iniciativas Locais e de Desenvolvimento Comunitário etc. Neste trabalho, esses itens exemplificados foram destacados mais na análise porque foram contemplados com Orçamento de Investimento durante todo o período de análise. Ou seja, durante os cinco anos (2006 a 2010). Para se ter os números do Orçamento de Funcionamento foram consultados os orçamentos anuais das diversas forças intervenientes na área de segurança em Cabo Verde, como por exemplo: a Polícia Judiciária, a Polícia Nacional e Comissão de Coordenação e Combate a Droga etc. Tendo os números todos, fizeram-se as contas utilizando as devidas fórmulas para se chegar ao peso e à variação orçamental a que cada área ficou sujeita. O messo procedimento foi utilizado nas áreas dos investimentos. De igual modo, é apresentado o orçamento executado e o seu percentual. Também este foi tido em consideração, a partir da consulta das contas do Estado durante todo o período em análise. 255 CAPÍTULO IV A PESQUISA: RESULTADOS E DISCUSSÃO 4.1 - INTRODUÇÃO Neste capitulo apresentam-se os resultados da análise das contas do Estado relativas ao período em estudo, considerando exatamente os orçamentos de investimento e de funcionamento das áreas institucionais escolhidas ligadas à segurança pública. Também, se apresentam os resultados de uma pesquisa amostral de percepção da população praiense sobre a segurança, que serviu de base para analisar as principais tendências e os reais desafios para o Estado e para a sociedade, espelhando assim, alguns possíveis caminhos que podem ser seguidos para fazer face ao problema de violência e crime. 4.2 - CUSTOS (INVESTIMENTOS E ORÇAMENTOS) EM SEGURANÇA PÚBLICA E TENDÊNCIAS A Tabela 4.1 demonstra o orçamento de investimento e de funcionamento das diversas áreas que, de uma maneira ou outra, lidam com a questão de segurança pública no país em milhões de Escudos de Cabo Verde (ECV), do ano de 2006 a 2010. As referidas áreas institucionais foram escolhidas intencionalmente por se destacarem mais, de entre outras que também pugnam pelo combate à insegurança e pelo bem-estar social. As instituições que constituem os órgãos de controle social, legitimado pelo Estado, enfrentam diariamente situações difíceis, as quais, em certa medida, são merecedoras de sérias críticas por parte da população, contribuindo assim, para repensar a forma como serão alocados os recursos para a segurança pública e quais os programas são mais merecedores de investimentos e em que medida o orçamento deve aumentar ou diminuir. Tabela 4.1 - Orçamento de Programas Plurianuais de Investimentos em Diversas Áreas da Segurança Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010 256 JUSTIÇA Eficiência da Justiça Melhoria da Prestação dos Serviços de Registo e Notariado e Identificação Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Subtotal SEGURANÇA Melhoria da Segurança dos Transportes Rodoviários Redução dos Riscos de Catástrofes Naturais Luta Contra A Droga Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária Subtotal PROTEÇCÃO E INTEGRAÇÃO SOCIAL 2006 354.708.633,00 2007 103.779.721,00 2008 765.116.791,00 2009 254.382.171,00 2010 201.739.800,00 12.180.000,00 25.000.000,00 14.200.000,00 51.400.000,00 184.525.332,00 62.218.823,44 429.107.456,44 97.598.868,00 226.378.589,00 101.281.000,00 880.597.791,00 46.292.496,00 352.074.667,00 48.766.000,00 435.031.132,00 15.145.303,00 129.893.366,00 129.893.366,00 93.881.254,00 100.000.000,00 193.881.254,00 150.100.000,00 75.331.770,00 225.431.770,00 267.325.193,00 267.325.193,00 Melhoria das Condições de Trabalho e das Relações Entre os Parceiros Sociais 391.024.190,00 406.169.493,00 5.425.476,00 Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupo alvo 395.950.120,00 Promoção e Apoio às Iniciativas Locais e de Desenvolvimento Comunitário 80.540.437,99 Capacitação Institucional, Orgânica E Técnica Do Sector 1.102.650,00 Protecção dos Direitos das Crianças e Adolescentes 109.686.939,00 Subtotal 587.280.146,99 TOTAL GERAL 1.146.280.969,43 373.549.388,00 393.881.640,00 484.270.591,00 602.856.684,00 25.507.443,00 20.700.000,00 21.000.000,00 38.339.397,00 78.051.727,00 477.108.558,00 897.368.401,00 49.442.978,00 464.024.618,00 1.570.054.179,00 69.185.570,00 574.456.161,00 1.193.856.021,00 94.428.572,00 741.050.129,00 1.582.250.754,00 Fonte: Programa Plurianual de Investimentos, 2011 4.2.1 - Análise do Orçamento de Investimento Em termos de investimentos, a consulta e a análise do quadro orçamental neste período de tempo, permitem constatar que houve uma tendência de crescimento ao longo do período, começando com um total de 1.146.280.969,43 ECV em 2006, chegando aos 1.582.250.754,00 ECV em 2010. A figura 4.1 demonstra isso visivelmente. Figura 4.1 - Evolução do Orçamento de Investimento das Diversas Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise 257 É possível, entrentanto, observar a existência de vários outros programas nos quais não houve investimentos contínuos ou durante o período do estudo. Por exemplo, na área de Protecção e Integração Social, encontra-se o investimento no programa Capacitação Institucional Orgánica e Técnica do Sector, que só recebeu investimento no primeiro ano de análise (2006). A partir dali não se reservou nunhuma parcela de investimento nesse programa. Não se sabe exatamente o porquê dessa paragem. Entretanto, deve sempre análisar se a estratégia benefício/ custo na implementação de um programa de prevenção e combate ao crime é eficiente em termos económicos (CERQUEIRA et al., 2007). Se for o contrário, poderá estar ali a raíz de alguns problemas que se encontram hoje nas instituições do Estado, o que reflete, consequentemente, na sociedade em forma de males sociais. Por exemplo, quando numa instituição do Estado, e não só, se depara com um atendimento público dificitário, uma fraca qualificação técnica do pessoal e um serviço no seu todo com muitas lacunas, isto acaba por constituir um entrave ao desenvolvimento, criando suspeições e conspirações, desenbocando muitas vezes em conflitos sociais e ambientais, pondo em causa o bem-estar e a segurança em geral. Também, existem programas que ao longo do período de análise sofreram mudanças de nomes e de áreas de actuação institucional. Ou seja, trata-se da mesma questão, mas que tem sido denominada de forma diferente de ano para ano. É o caso, por exemplo, do “programa correcional”14, Luta Contra Droga (2006 a 2008) que se passou a ser chamado de Prevenção e Combate à Droga (2010). Na verdade, trata-se da mesma questão e tomou-se consciência de que a luta contra qualquer coisa, nesse caso contra droga, começa na prevenção. Com a Figura 4.2 mostra, apesar de esse crescimento ser importante, não se constata um aumento proporcional de investimento de ano para ano. Ou seja, há uma variação orçamental decrescente na maior franja do período (2008 a 2010) e até num certo ponto negativo. Pois, se em 2008 o investimento total teve uma variação positiva de 74,96%, relativamente ao ano de 2007, já em 2009 caiu negativamente para -23,96%, em relação a 2008, oscilando para 32,53 em 2010. Este abrandamento ou oscilação anual em termos de investimento pode ser explicado por uma variação negativa na área da Justiça nos anos de 2007 e 2009, correspondendo a -47,24 e -60,02%, respectivamente, conforme mostra o 14. quadro A1 do Anexo. Figura 4.2 - Variação Percentual do Orçamento de Investimento das Diversas Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde, no Príodo de 2006 a 2010 Fonte: Gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise Pelo quadro A1, A2 e A4 do anexo, também é possível observar que a variação negativa deve-se ao facto de que nos anos de 2007, 2009 e 2010 houve um investimento menor em relação aos respectivos anos anteriores na área Reforma e Administração da Justiça. Área esta que em 2008 sofreu um boom em termos de investimento, cerca de seis vezes maior de aposta no sector em relação ao à do ano anterior, correspondendo a 765.116.791,00 ECV (Tabela 4.1). Carinhosamente, esta veio a ser chamada em 2009 e 2010 de Eficiência na Justiça, conforme o orçamento do Estado do período, sofrendo, no entanto, uma consequente diminuição orçamental, cujo total era de 254.382.171,00 ECV em 2009, para um total de 201.739.800,00 ECV em 2010, respectivamente. Contudo, a variação percentual positiva de investimento também se constacta noutros campos. É o que se pode perceber na área da Segurança, que apesar de em 2007 tenha tido uma variação de 49,26%, já em 2008 teve uma variação menor, de 16,27%, chegando a variar em 2010 em 51,94% em relação à do ano de 2009. O contrário se deu no sector da Protecção e Integração Social, no qual houve uma variação negativa nos dois primeiros anos, passando, no entanto, para uma variação positiva nos dois últimos anos, representando os 23,80% e 29,00% respectivamente. Por outro lado, ao analisar a estrutura orçamental dos sectores em estudo, observa-se que os orçamentos de investimento previstos nas instituições tomadas como referências têm uma estrutura significativa. Pois, constata-se que ao longo 259 do período em análise o sector com maior peso de investimento é o da Protecção e Integração Social. Este teve uma estrutura média acima dos 45%, durante o período em análise, atingindo o ponto mais baixo em 2008, com peso de 29,55%. Este resultado deve-se ao facto de em 2008 ter havido um menor investimento no programa Protecção dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme se pode ver no Quadro A3 (anexo). Ainda, por meio do Quadro A1 e A2 (ver anexo), verifica-se que no campo da Segurança, os anos de 2009 e 2010 são aqueles com uma estrutura maior, representando 22,39% e 25,67%, respectivamente. Este facto deve-se a um maior investimento no programa de Prevenção e Combate a Droga que é considerado importante na questão de segurança em todos os domínios. Analisando a parte de execução orçamental (Quadro A6, anexo) que foi obtido a partir das contas do Estado e que constitui a fonte base de toda a informação, pode-se verificar que tanto do lado de investimento como do lado de funcionamento, o orçamento previsto não foi executado a 100%. Ou seja, durante todo o período de análise o orçamento previsto foi sempre maior que o orçamento executado. Isto demonstra algum respeito pelos princípios dos três E´s de execução orçamental (a Economia, a Eficiência e a Eficácia)15. 4.2.1 - Análise do Orçamento de Funcionamento A Tabela 4.2, a seguir, demonstra o orçamento de funcionamento das diversas instituições ligadas à segurança pública em Cabo Verde no periodo de 2006 a 2010. Nela se pode verificar que ao longo do período do estudo houve uma tendência de crescimento orçamental. Ou seja, em todas as instituições estudads viu-se o orçamento aumentando gradualmente de ano para ano. Esta graduação anual poderá ser explicada pelas novas necessidades anuais das extruturas, derivadas de motivos económicos, como a inflação, ou para cobrir as despesas de aquisições de novos equipamentos e, por outro lado, pelo recrutamento de novo pessoal etc. A Figura 4.3 demonstra esse aumento instantaneamente. 15. O princípio da economia determina que os recursos devam ser disponibilizados em tempo útil, nas quantidades e qualidades adequadas e ao melhor preço. O princípio da eficiência visa a melhor relação entre os meios utilizados e os resultados obtidos. O princípio da eficácia visa a obtenção dos objectivos específicos fixados, bem como dos resultados esperados. 260 Tabela 4.2 - Orçamento de Funcionamento das Diversas Instiuições de Segurança Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010 INSTITUIÇÕES Polícia Judiciária Polícia Nacional Comissão de C. C. a Droga Estado Maior das Forças Armadas Supremo Tribunal De Justiça Procuradoria Geral Da Répública TOTAL 2006 2007 2008 2009 2010 100.889.107,00 143.677.816,00 147.960.271,00 168.414.684,00 201.926.047,00 1.091.335.544,00 1.358.489.250,00 1.412.597.149,00 1.566.795.664,00 1.724.173.033,00 11.250.044,00 13.023.803,00 13.804.540,00 15.975.649,00 15.647.481,00 592.631.877,00 645.819.599,00 631.461.716,00 648.987.331,00 680.496.692,00 25.507.576,00 43.768.201,00 43.718.893,00 48.038.880,00 55.394.704,00 25.420.352,00 27.399.252,00 28.375.968,00 52.161.535,00 48.456.905,00 1.847.034.500,00 2.232.177.921,00 2.277.918.537,00 2.500.373.743,00 2.726.094.862,00 Fonte: Orçamento de Funcionamento das Instituições 2011 Figura 4.4 - Evolução do Orçamento de Funcionamento das Diversas Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do estado para o período em análise Analisando o orçamento de funcionamento, Tabela 4.2, é possível observar que os sectores que teveram um crescimento com maior grau de notabilidade foram os policiais. O principal destaque vai para a Polícia Judiciária, que comparado com as outras forças intervenientes no processo de segurança e de investigação criminal, plasmado no quadro em análise, viu o seu orçamento variando com maior grau de positividade. Ou seja, se em 2007, teve uma variação de 42,41% em relação à de 2006, já em 2010 viu o seu orçamento variar 19,90% em relação ao ano de 2009, tendo a variação maior que todas as outras forças de segurança. Entretanto, não significa que tem o maior orçamento. Neste caso, a Polícia Nacional domina. Por exemplo, em 2010, o orçamento da Polícia Nacional (PN) foi de 1.724.173.033,00 ECV, que é 8,5 vezes maior que a Polícia Judiciária (PJ) que foi de 201.926.047,00 ECV. Contudo, a variação anual do orçamento da PN é menor que o da PJ. 261 De ressalvar que estas instituições trabalham em larga escala para conter a violência e crime tanto na sua prevenção como na sua repressão. Na verdade, a prevenção situacional do crime é uma abordagem que visa reduzir as oportunidades para que o delito ocorra, admitindo a hipótese de que o potencial perpetrador é influenciado e induzido pelas oportunidades ambientais existentes (CERQUEIRA Et. al., 2007) Na Figura 4.5, a seguir, pode-se constactar que a variação no orçamento de funcionamento, tem uma tendência que é um pouco diferente do orçamento investimento. Ou seja, verifica-se uma variação positiva ao longo do período de estudo. Contudo, assim como do lado do orçamento de investimento, este facto não significou um aumento anual na mesma proporção do lado do orçamento de funcionamento. Houve sim, uma variação positiva, mas com tendências decrescentes. Figura 4.5 - Variação Percentual do Orçamento de Funcionamento das Diversas Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gerado a partir dos dados das contas do estado para o período em análise Por exemplo, a variação total do orçamento de funcionamento do ano de 2007 foi de 20,85% em relação ao ano de 2006, correspondendo a 2.232.177.921,00 ECV. Esta variação deve-se ao aumento orçamental na Policía Judiciária e no Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, em 2008 só teve um aumento de 2,05% em relação ao ano de 2007, correspondendo a 2.277.918.537,00 ECV. Este fraco aumento orçamental de 2008 em relação ao de 2007 é explicado pela variação 262 negativa dos orçamentos do Estado Maior das Forças Armadas e do Supremo Tribunal de Justiça, que foram de -2,22% e -0,11%, respectivamente. Contudo, desde 2007 o orçamento de funcionamento nunca mais chegou aos 20% de aumento, estando no último período de análise (2010) em 9.03%. Tendo em atenção a análise da estrutura do orçamento de funcionamento, encontram-se os sectores de maior destaque, dentre os quais a Polícia Nacional e as Forças Armadas. A PN, relativamente ao total do orçamento dos sectores em estudo, apresenta uma estrutura acima dos 60% durante quase todo o período de análise, atingindo o seu ponto alto em 2010, com 63,25%. Este peso deve-se ao aumento das despesas com o pessoal e com a aquisição de bens e serviços. Esta constatação também se encaixa nas Forças Armadas que alcanço aprsentou a sua estrutura orçamental em 2006 e que foi de 32,09%, chegando em 2010 aos 24,96%, significando, mesmo assim, uma estrutura maior do que a da maioria das Instituições estudadas. 4.2.2-Análise dos Custos da Violência e Criminalidade A Tabela 4.3 mostra que durante o período em análise houve sempre uma tendência de aumento dos custos com a violência e criminalidade. A figura 4.6 demonstra visivelmente o ocorrido. Tabela 4.3: Mapa Custo da Volência e Criminalidade em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 CUSTOS EXÓGENOS ÁREAS RELEVANTES Periodo Orçamento Investimento 2006 2007 2008 Estrutura/Peso Variação Percentual(%) 2009 2010 2007 2008 2009 2010 2006 2007 2008 2009 Justiça 429.107.456,44 226.378.589,00 880.597.791,00 352.074.667,00 435.031.132,00 -47,24 288,99 -60,02 23,56 37,43 25,23 56,09 29,49 Segurança 129.893.366,00 193.881.254,00 225.431.770,00 267.325.193,00 406.169.493,00 49,26 16,27 18,58 51,94 11,33 21,61 14,36 22,39 29,55 48,12 Protecção e integração Social SUBTOTAL Orçamento Orgânica Polícia Judiciária Polícia Nacional Comissão de C. C. a Droga Estado Maior das forças armadas Supremo Tribunal De Justiça Procuradoria Geral Da Répública 587.280.146,99 477.108.558,00 464.024.618,00 574.456.161,00 741.050.129,00 1.146.280.969,43 897.368.401,00 1.570.054.179,00 1.193.856.021,00 1.582.250.754,00 2006 2007 2008 2009 2010 -18,76 -21,71 2007 -2,74 74,96 2008 23,80 -23,96 2009 29,00 32,53 2010 51,23 53,17 100,00 100,00 100,00 100,00 1 2006 2007 2 2008 2009 100.889.107,00 143.677.816,00 147.960.271,00 168.414.684,00 201.926.047,00 42,41 2,98 13,82 19,90 5,46 6,44 6,50 6,74 1.091.335.544,00 1.358.489.250,00 1.412.597.149,00 1.566.795.664,00 1.724.173.033,00 24,48 3,98 10,92 10,04 59,09 60,86 62,01 62,66 5,99 15,73 15,77 2 11.250.044,00 13.023.803,00 13.804.540,00 15.975.649,00 15.647.481,00 -2,05 0,61 0,58 0,61 0,64 592.631.877,00 645.819.599,00 631.461.716,00 648.987.331,00 680.496.692,00 8,97 -2,22 2,78 4,86 32,09 28,93 27,72 25,96 25.507.576,00 43.768.201,00 43.718.893,00 48.038.880,00 55.394.704,00 71,59 -0,11 9,88 15,31 1,38 1,96 1,92 1,92 1,23 1,25 2,09 25.420.352,00 27.399.252,00 28.375.968,00 52.161.535,00 48.456.905,00 7,78 3,56 83,82 -7,10 1,38 SUBTOTAL 1.847.034.500,00 2.232.177.921,00 2.277.918.537,00 2.500.373.743,00 2.726.094.862,00 20,85 2,05 9,77 9,03 100,00 100,00 100,00 100,00 1 TOTAL CUSTOS EXÓGENOS 2.993.315.469,43 3.129.546.322,00 3.847.972.716,00 3.694.229.764,00 4.308.345.616,00 4,55 22,96 -4,00 16,62 4,83 5,00 4 - - - Tratame nto Hospitalar das Vítimas da Violê ncia e Criminalidade Núme ros de Furtos e Roubos Custos Com Encarce rrrame nto Re nda Pote ncial das Vítimas Fatais da Violê ncia e Criminalidade 5,27 4,79 CUSTOS ENDÓGENOS ÁREAS RELEVANTES - - - - 187.288.750,00 - - - - - - - - - - - - 161.000.000,00 169.000.000,00 181.000.000,00 198.000.000,00 210.000.000,00 4,97 7,10 9,39 6,06 91,23 92,81 92,68 92,40 15.481.206,00 13.099.482,00 14.290.344,00 16.275.114,00 12.702.528,00 -15,38 9,09 13,89 -21,95 8,77 7,19 7,32 7,60 91,34 SUBTOTAL CUSTOS ENDÓGENOS 176.481.206,00 182.099.482,00 195.290.344,00 214.275.114,00 409.991.278,00 100,00 100,00 100,00 100,00 1 TOTAL CUSTO Exógeno e Endógeno 3.169.796.675,43 3.311.645.804,00 4.043.263.060,00 3.908.504.878,00 4.718.336.894,00 4,48 22,09 -3,33 20,72 0,28 0,29 0,27 0,28 0 62.024.699.719,00 62.555.553.210,00 72.982.808.218,00 77.106.500.308,00 86.616.444.502,00 0,86 16,67 5,65 12,33 5,11 5,29 5,54 5,07 5 SOMA TOTAL ORÇAMENTO INVESTIMENTO E ORGÃNICA 3,18 7,24 9,72 Fonte : Relatorio de Contas do Estado, 2011 263 Figura 4.6 - Evolução dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise Entretanto, somando e dividindo os números percentuais, pode-se dizer que durante o período em estudo os custos da violência e crime têm um peso orçamental que rondam em média os 5,29% (Figura 4.7). Contudo, a Figura 4.7.1 mostra a variação dos custos que não se apresentou de forma diferente. Ou seja, a vairação foi positiva relativamente aos dois primeiros anos, caiu para -3,33% em 2009 e foi de 20,72% em 2010. A variação de 20,72%. A variação negativa em 2009 é explicada por um menor investimento no sector da Justiça, mais concretamente no ítem eficiência na justiça. Figura 4.7 - Estrutura/Peso dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise 264 Figura 4.7.1 - Variação dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010 Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise Por outro lado, ainda no Tabela 4.3, pode-se constatar que os custos exógenos decorrentes da VC têm um peso no orçamento estatal cuja média é de 4,97%. No ano de 2006 o seu peso era de 4,83% e no ano de 2010 passou para 4,97%. Em números monetários tem-se um total de 2.993.315.469,43 ECV de custos em 2006 e 4.308. 345.616,00 ECV em 2010. Estes montantes foram saídos do orçamento do Estado, do lado de investimento e do lado funcional/orgânico para os programas e serviços que relacionam directamente com a questão de segurança pública. Por outro lado, há os custos endógenos, cujo peso médio é de 0,32%. É de realçar que a contabilização deste custo é que se revelou mais difícil por haver falta de registo de dados ou falta de informação. Contudo, a metodologia utilizada no presente estudo é facilitadora porque por meio dela, embora não haja dados palpáveis ou suficientes para a elaboração da contagem, esta pode ser feita com base nos dados disponíveis. Ou seja, a falta de dados durante o período não impossibilita a contagem dos custos decorrentes da violência e crime. É o que se pode perceber no Quadro 4.1. O Custo de Tratamento Hospitalar não aparece porque não se tem registo no hospital da Praia do número de entrada de vítimas de violência e crime e nem o registo de quanto que se gasta para o seu tratamento, embora se tenha uma tabela de preço de cuidados intensivos publicada no Boletim Oficial (número 11, I Série de 20 de Março de 2007). Isto constitui uma das falhas verificadas que se traduz num desafio a vencer. Pois, o registo e o tratamento das informações das ocorrências, poderão ser dos 265 mais modernos meios de auxílio à prevenção e combate ao fenómeno da violência e crime. O mesmo se pode dizer em relação ao Número de Furtos e Roubos. Os dados da Polícia merecem outro tipo de tratamento, fazendo, entretanto, outro tipo de cruzamento. Os registos da Polícia de Ordem Pública e da Polícia Judiciária, por exemplo, não são trabalhados conjuntamente, então a questão é quais utilizar. O ideal, e também um desafio, seria ter um centro comum de tratamento dos dados, facilitando assim a informação e a sua consequente divulgação para uma maior prevenção e uma maior satisfação por parte do Estado e da sociedade em geral, sendo esta última a parte que sofre mais na pele com a insegurança. 4.3 - RESULTADOS DA PESQUISA AMOSTRAL SOBRE A PERCEPÇÃO DA SEGURANÇA PELA POPULAÇÃO Para a obtenção dos dados que permitiram analisar a percepção populacional sobre os gastos na prevenção e combate à violência e criminalidade no Município da Praia e seus reais desafios, conforme se fez a descrição no capítulo 3, Tabela 3.1, foi preciso desenvolver uma pesquisa piloto envolvendo uma amostra considerável, tomando cinco dos bairros tidos como mais problemáticos e mais populosos da capital, segundo os dados do senso 2000. Assim, efectuou-se a análise dos dados do questionário aplicado, esclarecendo como a população Praiense opinou sobre a violência e criminalidade que a envolve. 4.3.1 - Análise e Avaliação da Percepção da Segurança Poucos problemas sociais conseguem mobilizar tanto a opinião pública como a violência e criminalidade. Este problema social pode afectar qualquer pessoa, independentimente de sexo, idade, religão ou status social. Como se constatou anteriormente, os custos daí advinientes são cada vez maiores, com seus reflexos directos no modo de ser e de estar das populações que, com receio de serem vítimas, adoptam comportamentos defensivos, adquirindo vários sistemas de segurança pessoal para o efeito. O exemplo marcante pode ser a colocação de grades nas portas e janelas das casas, aquisição de cães de guarda, segurança privada, alarmes etc. A insegurança, reflectida nas medidas referidas, tomdaspela população para o seu enfrentamento, recomenda que seja agendada a discussão a respeito desse grave problema social em Cabo Verde e na Praia em particular. Daí a 266 necessidade de de estudo e análise do perfil populacional e saber em que medida e para onde direcionar a atenção por forma a minimizar o problema. A Tabela 4.4 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia em 2011, por bairro/zona. Percebe-se que a maior parte da população reside no bairro de Achada Santo António (ASA), com 31,39%; em seguida, os residentes em Achadinha, com 24,42%, e os residentes no bairro de Palmarejo, com 11,63%. A Figura 4.7.2 apresenta esses dados visualmente. Estas zonas foram escolhidas precisamente por serem mais populosas e se revelarem mais problemáticas em termos de violência e criminalidade nos últimos tempos. Tabela 4.4 - Percentual de Moradores Entrevistados na Cidade de Praia, em 2011, por Bairro/Zona Bairro/Zona Percentual Asa 31,39 Achadinha 24,42 Achada Grande 16,86 Ponta Dágua 15,70 Palmarejo 11,63 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.7.2 - Percentual de Moradores Entrevistados na Cidade de Praia, em 2011, por Bairro/Zona 267 Fonte: Pesquisa própria A maioria dos residentes é do sexo masculino (Tabela 4.5 e Figura 4.8). É provável que a população feminina esteja mais exposta aos movimentos da violência e, consequentemente, às suas mazelas. Por exemplo, segundo os dados registados na Polícia Nacional em 2010, dos catorze casos esclarecidos de homicídio, todos foram do sexo masculino. Entretanto, é verificada a mesma tendência nos outros tipos de crimes ou outros tipos de violência. Ou seja, na sua maioria, o género masculino é o que tem maior percentagem de participação (ver Figura 4.8). Tabela 4.5 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Gênero Gênero Percentual Masculino 59,30 Feminino 40,70 Total Geral 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.8 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Gênero Fonte: Pesquisa própria Conjugada ao género encontra-se a faixa etária da polulação. Por meio da Figura 4.9 pode-se observar que a maior parte dos residentes encontra-se na faixa etária dos 23 a 28 anos, com 27,49%, seguida da faixa etária dos 17 aos 22 anos, representando 22,81%. No meio da tabela se encontram os da faixa etária de 41 a 46 anos de idade, representando 6,43%, e na cauda da tabela os da faixa etária de 71 aos 75 anos de idade, representando 0,58%. 268 Figura 4.9 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Faixa Etária Fonte: Pesquisa própria Importa ressalvar que na população em estudo não aparece nenhum caso de fraca ou ausência de instrução escolar. A maior parte da população tem um bom nível de escolaridade, ou seja, igual ou superior ao terceiro ciclo, representando mais de 33% da amostra. A Tabela 4.5.1 demonstra isso vissivelmente. Entretanto, as percentagens restantes correspondem aos que têm outros níveis de escolaridade, ou seja, curso médio ou superior. Tabela 4.5.1 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Escolaridade Escolaridade Percentual 1° Ciclo 10,47 2° Ciclo 25,58 3° Ciclo 30,23 Total 66,28 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.9.1 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Escolaridade Fonte: Pesquisa própria 269 Contudo, neste estudo os praienses, na maioria, revelaram que se encontram desempregados, totalizando 41,86%, trazendo à baila um dos principais problemas sociais existentes em Cabo Verde, o desemprego (Ver Figura 4.9.2). Não estando empregada a maioria dos moradores, consequentemente não possui vencimento, o que a torna mais vulnerável à violência e criminalidade. E os funcionários públicos que representam 34,88% dos inquiridos devem ser portadores de boas práticas, ajudando, assim, no combate às falhas existentes. Figura 4.9.2 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Ocupação Fonte: Pesquisa própria 4.3.2 - Nível de Segurança do Bairro A Tabela 4.6 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia, em 2011, por nível de segurança. Nela, pode-se verificar que os moradores, na maioria, afirmam que o bairro de sua residência possui um nível médio de segurança, com 43,02%, seguido dos que afirmaram ter um nível baixo de segurança, com 37,21% (Ver Figura 4.10). 270 Tabela 4.6 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Nível de SeP gurança Nível de Segurança Percentual Não possui segurança 18,02 Baixo 37,21 Médio 43,02 Alto 1,75 Total 100 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.10 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Nível de Segurança Fonte: Pesquisa própria Uma análise mais profunda indica que a maioria da população atribuiu nota negativa à segurança do seu bairro. Ou seja, somados os que disseram que não possuem segurança e os que responderam que o nível de segurança é baixo, verifica-se que 55,23% da população estão de acordo que a segurança do seu bairro é de nível negativo. Portanto, esta revelação constitui um desafio a enfrentar e um problema social a combater. 271 4.3.3 - Problema Mais Sério da Comunidade A Tabela 4.7 apresenta o percentual dos problemas mais sérios enfrentados pela comunidade na cidade da Praia em 2011, o que é evidenciado pela Figura 4.11. A maior parte dos moradores diz que o problema mais sério da sua comunidade é a violência e criminalidade, representando 49,12% seguido de iluminação pública, com 31,58%. No último lugar se afigura o problema das drogas, com 0,59%. Tabela 4.7 - Percentual dos Problemas Apontados pela Comunidade de Praia – 2011 Problema da Comunidade Percentual Violência e criminalidade 49,12 Iluminação pública 31,58 Abastecimento de água 12,28 Transporte público 3,51 Esgoto sanitário 2,92 Drogas 0,59 Total 100,00 Fonte: pesquisa própria Figura 4.11 - Percentual dos Problemas Apontados pela Cmunidade de Praia – 2011 Fonte: Pesquisa própria 272 As respostas da população da Praia indicam o quanto é preocupante vivenciar a violência e criminalidade e não ter meios mais eficazes e eficientes de as combater ou minimizar, embora haja um dispêndio considerável de recursos para o efeito. Há uma boa parte do orçamento do Estado e também doorçamento das famílias que é gasta nas acções de prevenção e combate à violência e crime. Mesmo esse esforço do Estado, não se está a verificar uma tendência de diminuição do fenómeno em qeustão. Num estudo recente da Afrossondagem (2012) sobre a percepção da segurança na capital do país, revelou o quanto a população está preocupada com a questão da insegurança. Entretanto, há que se perguntar: será que os investimentos para a prevenção e combate à violência e crime estão sendo usados da forma mais apropriada? Será o assunto é discutido de forma consciente e aberta? Não está claro e é necessário desmistificar o que está por trás do aumento dos casos de violência e criminalidade e porquê a população responde que ela é o problema mais sério ao seu redor. Numa sociedade aberta e democrática deve-se trabalhar para encontrar formas abertas e democráticas de desvendar os problemas sociais. 4.3.4 Satisfação com o Atual Sistema de Sgurança do Bairro A insatisfação com a segurança resulta dos vários problemas existentes e apontados anteriormente. A Tabela 4.8 representa o percentual de moradores da cidade da Praia, em 2011, por satisfação com o actual sistema de segurança do bairro. Nela, pode-se verificar que a maioria dos moradores afirma que não está satisfeita com o atual sistema de segurança do bairro, representando 86,55%. A Figura 4.12 permite visualizar isso. Tabela 4.8 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Satisfação com o Atual Sistema de Segurança do Bairro Satisfeito Percentual Não 86,55 Sim 13,45 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria 273 Figura 4.12 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por satisfação com o atual sistema de segurança do bairro Fonte: Pesquisa própria Neste contexto pode-se associar a não satisfação dos moradores com a perda de bem-estar, representando a maioria da população, 86,55%, sendo uma percentagem muito expressiva. Isso é devido ao aumento significativo da violência e criminalidade, podendo corresponder a um verdadeiro custo social. Cohen (2001) define os custos sociais do crime como sendo aqueles que reduzem o bem-estar da sociedade. E neste aspecto, é exemplificado como uma perda social o tempo gasto pelo criminoso em actividades ilegais. Este tempo gasto poderia ser utilizado em outra actividade de forma legal. Assim sendo, constata-se que hoje na capital caboverdeana não se vive com amesma tranquilidade de outrora. A representatividade percentual da insatisfação dos moradores demostra essa intranquilidade e põe em evidência a busca de novas formas de convivência com o intuito de colmatar ou satisfazer o bem-estar individual e social que a população merece. 4.3.5 - Motivo da Não Satisfação com o Atual Sistema de Segurança do Bairro A Tabela 4.9 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia, em 2011, por motivo da não satisfação com o atual sistema de segurança do bairro. Nela, se pode constatar que 46,36% dos entrevistados responderam que a fraca cobertura policial constitui o principal motivo da sua não satisfação com o actual sistema de segurança do bairro, aparecendo em segundo lugar, com 27,15%, o dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos. Da mesma forma e ocupando uma posição de destaque, os moradores responderam que não estão satisfeitos com o actual sistema de segurança porque existe falta de postes 274 de iluminação pública, representando 0,66%. A Figura 4.13 apresenta esses resultados visualmente. Tabela 4.9 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por motivo da não satisfação com o actual sistema de segurança do bairro Motivo Percentual Fraca cobertura policial 46,36 Dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos 27,15 Fraco envolvimento dos moradores 23,18 Falta da uma esquadra policial 1,33 Confiança dos moradores 0,66 Falta de postes de iluminação 0,66 Não existe sistema de segurança no bairro 0,66 Total 100,00 Fonte: Pesquisa Própria Figura 4.13 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por motivo da não satisfação com o atual sistema de segurança do bairro Fonte: Pesquisa própria A população praiense demonstrou na sua resposta que é na Polícia é que se encontra a maior quota de responsabilidade no que toca ao sistema de segurança. 275 A população carece de algumas informações e formações sobre a segurança pública. Existe a tendência de sempre se imputar a maior responsabilidade à Polícia quando se fala em conter a criminalidade. Estudos mundiais comprovam a imputação dessa responsabilidade à Polícia. Contudo, vários estudos demonstram que a resolução do problema da segurança pública não é uma responsabilidade exclusiva da polícia. O necessário é que entre a sociedade, o governo e todas as instituições criem cinergias e políticas comuns repartindo as responsabilidades para que na sua implementação haja um monitoramento fiável e, ao final, um sistema de avaliação rigoroso capaz de corrigir as falhas dectetadas. No caso da Polícia poderá existir registos de dados administrativos, económicos e pesquisas de vitimação etc. Cerqueira (2008), num estudo sobre a taxa de criminalidade, concluiu apontando três elementos para explicar de onde vem a hiper-criminalidade no Brasil. Primeiramente, aparece a transição democrática; em segundo lugra, a disigualdade e exclusão socioecónomica, destacando a implementação de medidas severas de punição na condução sob efeito de álcool. E em terceiro lugar, a falência do sistema de segurança pública, mais concretamente no sistema policial onde há persistência do modelo tradicional de polícia, orientado para o incidente, caracterizado, dentre outros aspectos, pelo corporativismo exarcerbado, visão muito militarizada, abismo entre a polícia e a comunidade, inércia de funcionamento, falta de planejamento e orientação para a investigação técnica, além da subvalorização social e econômica do policial. No caso de Cabo Verde, bom seria dar mais ênfase à questão tradicional do modelo de policiamento, actualizando-o em certo momento para o sistema moderno, funcionando não tão somente de forma reactiva e para o incidente, mas sim, pensando e actuando nos problemas mais persistentes ou em causas do delito. O modelo de policiamento orientado para as comunidades é um exemplo a seguir (Reiner, 2004). 4.3.6 - Vítimas de Violência A Tabela 4.10 apresenta o percentual de moradores vítimas de violência. Por meio dela, verifica-se que a maioria dos moradores nunca foi vítima de violência, com 74,42%, e os que foram vitimados representam 25,58%. A Figura 4.14 evidencia essas informações. Pois, sobre este aspecto pode-se dizer que se está 276 perante aquilo que várias vezes perturba o estado de espírito da população, que é o sentimento de insegurança. Nas respostas anteriores se pode perceber qual o nível de criminalidade existente, qual o nível e as causas da insatisfação da população, quais os reiais e os mais sérios problemas com os quais convive a sociedade praiense. Porém, a maioria respondeu não ser vítima de violência. Talvez seja violência directa. Tabela 4.10 - Percentual de moradores da Praia vítima de violência em 2011 Vítima de violência Percentual Sim 25,58 Não 74,42 Total 100,00 Fonte: Pesquisa Própria Figura 4.14 - Percentual de moradores da Praia vítima de violência em 2011 Fonte: Pesquisa própria O motivo da preocupação por parte das pessoas centra-se na possibilidade de elas serem vítimas da violência e crime. Percebe-se que apesar de nunca sofrerem qualquer tipo de atentado, têm a consciência de que a qualquer momento isto pode acontecer, dada a onda de violência e crime que se faz sentir ao seu redor. A Tabela 4.11 apresenta o percentual da variável possibilidade de ser vítima. Nela, verifica-se que a maioria dos entrevistados aceitou existir a possibilidade de ser vítima de violência, com 67,84%. A Figura 4.15 evidencia essas informações. 277 Tabela 4.11 - Percentual de Moradores por Possibilidade de Ser Vítima de VC - Praia 2011 Possibilidade de ser vítima Percentual Sim 67,84 Não 32,16 Total 100,00 Fonte: Pesquisa Própria Figura 4.15 - Percentual da variável possibilidade de ser vítima da VC – Praia 2011 Fonte: Pesquisa própria 4.3.7 - Tipos de Violência Entretanto, dos vários tipos conhecidos de violência, alguns foram destacados pela população como sendo os mais frequentes e os que mais a afectam ou podem afetá-la. Esta variável é apresentada em percentual na Tabela 4.12. Nela, verifica-se que a maioria dos moradores foi vítima de “roubo”, com 59,52%, em seguida, de “caço bodi”, com 28,57%, e por último de “violência física”, com 2,3%. Os tipos de violência e respectiva porcentagem, na capital do país, nos últimos anos, estão apresentados na Figura. 278 Tabela 4.12 - Percentual de moradores de Praia em 2011, por tipo de violência Tipo de violência Percentual Roubo 59,52 Caço bôdi 28,57 Agressão 4,76 Ataque dos tugs 4,76 Violência Física 2,38 Total 100,00 Fonte: Pesquisa Própria Figura 4.16 - Percentual de moradores de Praia em 2011, por tipo de violência Fonte: Pesquisa própria O custo do crime, como no caso do roubo de bens, é definido como sendo aquele imposto a uma pessoa, de forma não voluntária e que acarreta consequências negativas para ela. Para uma melhor compreensão, o custo do crime é exemplificado com o valor dos bens roubados que se trata de uma transferência de recursos entre indivíduos numa sociedade. Ou seja, o bem roubado nunca sai de circulação, mas é transferido de um indivíduo para outro (COHEN, 2001). Porém, um custo externo poderá ser também considerado um custo social, a exemplo de um acidente de trânsito, correspondendo ao valor das avarias nos veículos mais o custo com tratamento das vítimas e o valor associado à dor, sofrimento, perda do rendimento do trabalho e, eventualmente, de vidas. Os crimes 279 envolvendo o roubo à mão armada, o ataque de grupos etc, constituem um verdadeiro custo para a sociedade. 4.3.8 - Sentimento de Segurança A partir dos factos ocorridos, vê-se, entretanto, que o lado sentimental de insegurança da população é notável e revela-se preocupante. A Tabela 4.13 e a Figura 4.17 referem-se à avaliação do sentimento de segurança, tendo em conta a variável “sentir seguro em andar na rua”. A maioria da população praiense respondeu que não se sente segura em andar na rua, representando 77,33%. Tabela 4.13 - Percentual de Moradores que se sentem seguro em andar na Rua - Praia 2011 Sente Seguro Percentual Não 77,33 Sim 22,67 Total 100,00 Fonte: Pesquisa Própria. Figura 4.17- Percentual de Moradores que se sentem seguros em andar na Rua - Praia 2011 Fonte: Pesquisa Própria 280 Da mesma forma e, para confirmar a tendência, aparece a variável “evitar cruzar com as pessoas”. A maioria dos residentes mostrou na sua resposta que evita se cruzar com certas pessoas ao andar na rua, representando 73,26%, conforme a Tabela 4.14 e a Figura 4.18. As ilações que se podem tirar destes comportamentos é que, se se pensar noutras variáveis, como a possibilidade de ser vítima da violência e crime, confirma-se a razão para os moradores agirem desta forma. Ou seja, como a maioria acha e sente que existe a possibilidade de ser vítima, então não se comportaria de forma diferente. Tabela 4.14 - Percentual de Moradores que evitam cruzar com certas pessoas na rua Praia 2011 Evitam cruzar com pessoas Percentual Sim 73,26 Não 26,74 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.18 - Percentual de Moradores que evitam cruzar com certas pessoas na rua Praia 2011 Fonte: Pesquisa Própria. Igualmente, como não se sentem seguros em andar na rua ou na vizinhança e evitam cruzar com certas pessoas ao andarem na rua, os moradores mostraram que também têm reservas sobre a decisão de frequentarem alguns espaços e luga281 res nas suas zonas. É o que se pode verificar na Tabela 4.15, sobre a varável “qual lugar evita ir”. Nela se pode perceber que nos quatro primeiros postos encontram-se os nomes de destaque nas quatro zonas mais populosas da capital. São os lugares com seguintes nomes: “Baixo” em Achada Grande Frente, “Achadinha Cima” em Achadinha, “Casa Lata” em Palmarejo e “Brasil” na zona de Achada Santo António. No entanto, em todas as zonas existem lugares que os moradores revelaram não gostarem de frequentar por serem lugares de alto risco de violência e criminalidade. Tabela 4.15 - Percentual de Moradores por lugar aonde evita ir (10 maiores Percentuais) - Praia 2011 Lugar Percentual Baixo (Achada Grande Frente) 9,30 Achadinha Cima 6,40 Casa lata (Palmarejo) 5,81 Brasil (Achada Santo António) 4,65 Bagdá (Ponta Dágua) 3,49 Todas 3,49 Cutelo Babosa (Achadinha) 2,91 Meio Achada Santo António 2,91 Ponta tchitcharo (Achadinha) 2,91 Pinga Pinga (Ponta Dágua) 2,33 Fonte: Pesquisa Própria Apesar de os moradores, na maioria, terem respondido que nunca foram vítimas de violência e crime, deve haver um trabalho de fundo com o intuito de esclarecer a falta de percepção desse problema por parte da sociedade. Se os moradores apontam o fenómeno como o principal problema do bairro, evitam ir a certos locais, cruzar com certas pessoas e sentem que existe a possibilidade de serem vítimas a qualquer momento, então é porque de alguma forma estão sendo vítimas, o que deve ser clarificado. 282 4.4 - Perspectivas e Desafios do Combate à Violência e Crime na Praia e em Cabo Verde Como se pode perceber, os resultados desta pesquisa revelam a existência de diversos problemas sociais na cidade da Praia, fazendo com que os efeitos nefastos deles resultantes atrapalhem o real desempenho da população, levando as autoridades a repensarem a maneira mais segura de desenvolver projectos e programas para fazer face ao combate do fenómeno da violência e crime. O aumento de sensação de insegurança na capital do país, derivada de novas formas de violência e crime, novos contornos da globalização, leva a pensar e lutar cada vez mais pela busca de novas formas de previnir e combater aos desafios impostos, fazendo face às exigências da sociedade que ora se vê confrontada com a moderna forma de viver e de conviver. Na verdade, uma das maiores bases de combate à violência e crime é a prevenção. Ou seja, em relação à violência e criminalidade, a prevenção pode significar intentar ou formar acções antes que elas ocorram minimizando seus efeitos, ou mesmo, para que elas não ocorram, eliminando os principais e potenciais focos (LELLO e LELLO, 1986). Como se sabe, Cabo Verde é um país de fracos recursos, tanto naturais como económicos. A sua situação geográfica, ora chamada de geo-estratégico, tem facilitado a sua integração regional e mundial, captando alguns benefícios económicos e sociais, mas também, conhecendo e convivendo com vários malefícios da conhecida globalização. Naturalmente, não se convive com alguns males facilitadores de insegurança, a exemplo de tornados, enchentes, ciclones entre outros, que ao acontecerem dão lugar a saques e pilhagens, no país como acontecem noutras paragens do mundo. Contudo, a seca natural com a qual se convive anualmente poderá transformar-se num elemento facilitador de insegurança, com reflexos econômicos na sociedade, podendo provocar, de entre vários males sociais, o desemprego, a busca de outras fontes de renda muitas vezes de forma ilícita, complicando ainda mais a segurança pública. O investimento na educação, que é visto como um caminho a trilhar para o desenvolvimento da sociedade e do país, também traz as suas preocupaçãoes, sob a forma de globalização da sociedade de conhecimentos, colocando desafios a entrentar em termos de segurança. Por exemplo, o ambiente de intenso de283 senvolimento tecnológico faz com que na escola, em casa, na rua se reproduza a chamada pirataria, de variadas formas, com a reprodução de discos, de livros, ilicitamente, levando ao empobrecimento da cultura e dos artistas e desincentivando a luta para o bem-estar individual e social. Face ao aparecimento destes males sociais, torna-se coerente trabalhar novas formas de enfrentá-las e combaté-las. Se não, pode-se estar adiante da ploriferação de insegurança, pondo em causa o desenvolvimento da sociedade. Hoje, a segurança é considerada não só uma matéria do governo e do Estado, mas também uma preocupação da sociedade. Um estudo realizado no Brasil, sobre a política nacional de segurança pública, aponta que uma das formas de combater a violencia e crime é a tealização da reforma das instiuições de segurança pública, destacando a Polícia e o Judiciário, que deverão investir na formação, na capacitação e treinamento, na valorização e gestão de conhecimento (SOARES, 2007). No caso de Cabo Verde, vive-se na Polícia uma das reformas que é a criação da Polícia Nacional. Uma decisão boa, mas que carece de uma visão mais alargada de gestão da segurança pública. Em várias paragens do mundo a coordenação, a unificação das forças de segurança é tida como um dos dasafios importantes a conseguir, sem descurar os direitos humanos e a eficiência policial. As críticas à actuação da Polícia poderão ser minimizadas quando observadas as modernas formas de gestão policial e da segurança pública. Soares (2007) refere-se a esta ideia, evidenciando a criação de um gabinete de estudo, ou uma secretaria de segurança pública, envolvendo os vários actores sociais, políticos e económicos. Isto porque a segurança pública é hoje uma questão transversal. Pois, criada a referida secretaria, ela terá como acções: a melhoria do sistema prisional, sendo que, no caso de Cabo Verde, já se existe consciência a esse respeito; a criação de centros comunitários, tendo programas locais de desenvolvimento, em relação à qual também existe consciência de que é uma boa alternativa (o exemplo de Safende, bairro considerado como sendo um dos bairros mais problemáticos em termos de violência e crime). Na verdade, o investimento em programas comunitários de combate à violência e crime não deve ser uma tarrefa só do Estado ou do governo. A sociedade em geral deverá apoiar esta estratégia. Porém, não é o que se constatou nesta pesquisa, como se pode ver na Tabela 4.16 (a variável disponibilidade em pagar 284 para alguma quantia em dinheiro para a implementação de programas de combate à violência). Observa-se que 27,65% dos entrevistados estão dispostos a não pagar nenhum escudo para a implantação de programas de combate à violência e crime. Os restantes entrevistados responderam que pagam alguma quantia para essa finalidade (Ver também a Figura 4.19). Tabela 4.16 - Percentual de moradores por valor disposto a pagar para a implantação de programas de combate à violência – Praia 2011 Valor Disposto a Pagar Percentual Nenhum escudo 27,65 5 escudos 1,18 10 a 50 escudos 21,76 50 a 100 escudos 18,82 100 a 500 escudos 15,88 500 a 1000 escudos 14,71 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 4.19 - Percentual de moradores por valor disposto a pagar para a implantação de programas de combate a violência – Praia 2011 Fonte: Pesquisa própria 285 De forma semelhante, a população demonstra o nível de confiança que tem na decisão de disponilizar ou não recursos para implementação de políticas de combate à violência e crime. A Tabela 4.17 apresenta o percentual da variável “nível de confiança da resposta”, verificando-se que uma boa parte dos entrevistados tem nível de confiança de 75% a 100%, representando 33,33% do total. A Figura 20 evidencia essas informações. Tabela 4.17 - Percentual de moradores por nível de confiança da resposta Nível de confiança da resposta (em %) Percentual 0 a 25 22,62 25 a 50 22,02 50 a 75 22,02 75 a 100 33,33 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 20 - Percentual de Moradores por nível de confiança da resposta Fonte: Pesquisa própria Talvez, os moradores da cidade da Praia necessitem de mais informações para clarificar as suas ideias, levando-os a refletirem conscientemente como e quando se deve dispendiar recursos, ou como se consege gastar para ter alguns benefícios, o que é de todo importante para minimizar a problemática existente. Todos querem segurança, mas existe dificuldade em disponibilizar esforço tanto fisico 286 como psicológico e muito menos esforço económico, para driblar estes problemas sociais, principalmente a onda de violência no país. Este é um dos desafios importantes a vencer: incutir nas pessoas o contributo que podem dar, começando pela família, vizinhança e amigos. É importante mencionar a questão da auto-protecção que constitui também uma verdadeira arma de luta contra a violência. Os moradores poderão investir na cultura de paz, de solidariedade, de tolerância como forma de se protegerrm das mazelas que podem aparecer, obrigando as pessoas ao redor a terem também essas atitudes. A Tabela 4.18 apresenta o percentual da variável “despesas de auto-proteção”, não só aquelas referidas mas as despesas em termos económicos. Verifica-se que a maioria, ou seja, 61,40% dos entrevistados, não pagaria nenhum escudo pela auto-proteção. A Figura 21 evidencia essas informações. Tabela 4.18 - Percentual da Variável Despesas de Auto-Proteção Despesas de Auto Proteção Percentual Nenhum $ 61,40 0 a 25.000$ 18,42 25.000 a 50.000$ 12,28 Maior que 50.000$ 7,89 Total 100,00 Figura 21 - Percentual da variável despesas de auto-proteção Fonte: Pesquisa própria 287 Por outro lado, quando perguntados se alguma vez se sentiram psicologicamente afectados pela violência, verifica-se que os moradores, na maioria, responderam que não, revelando quase uma autêntica desatenção relativamente aos problemas que os afectam. Ou seja, as respostas equivalem a dizer que os moradores não se sentem seguros em andar na rua onde moram e na vizinhanca, ou que existe a possibilidade de eles serem vítimas de violência, mas que, entretanto, isso não os afecta psicologicamente, o que é uma contradição. A Tabela 4.19 apresenta o percentual de moradores “vítimas afetadas psicologicamente pela violência”. Ao analisá-la, verifica-se que a maioria dos entrevistados, 93,57%, respondeu que não foi afetada psicologicamente pela violência e a Figura 22 evidencia essas informações. A análise dessas respostas à luz das anteriores mostra que, no fundo, a violência e a criminalidade afectam, sim, os moradores, apesar de terem respondido negativamente. Tabela 4.19 - Percentual de Moradores afetados ou não psicologicamente pela violência Vítimas afetadas psicologicamente pela violência Percentual Sim 6,43 Não 93,57 Total 100,00 Fonte: Pesquisa própria Figura 22- Percentual de Moradores afetados ou Não psicologicamente pela violência Fonte: Pesquisa própria 288 Entretanto, de entre outros dasafios que esta sociedade atravessa hoje aponta-se a convivência com a droga em associação a vários tipos de crimes, com destaque para a chamada “lavagem de capital”. O caso de maior realce e mais mediatizado até o momento é o que foi apelidado de “Operação lancha voadora”. Nesta acção houve a apreensão de uma boa quantidade de droga, de várias pessoas, de viaturas, de dinheiro etc. Diz-se então que tornar o dinheiro adquirido de forma obscura e muitas vezes ilícita num dinheiro aparentimente limpo, tem reflexos de forma rápida na sociedade, sob a exibição de bens, e gera influências para outras práticas negativas. Uma solução possível de combate a este fenómeno poderá ser a criação de um laboratório contra lavagem de capital, como existe em várias paragens do mundo. Zavataro e Durante (2007) traçaram uma linha diferente, num estudo sobre “os limites e desafios da evolução da gestão da segurança pública”, evidenciando a importância do uso de indicadores de avaliação de desempenho para monitorar as acções dos gestores públicos. Muitas vezes as decisões dos gestores públicos são tomadas com base em questões pessoais, sem a mínima preocupação com os resultados almejados pela própria adminstração pública. E isto constitui um verdadeiro problema a enfrentar e um desafio a vencer. O cuidado com as diferenças educacionais e sociais entre a elite política e a restante população deverá ser uma preocupação constante. A postura de o estado garantr à elite toda a mordomia, muitas vezes sem se lembrar da classe social mais desfavorecida, poderá levar ao enfurecimento dos menos poderosos, dos mais pobres, conduzindo-os a aceitarem as ofertas da globalização como a droga, a falsa religião, a entrada no mundo do crime só para poderem vingar a diferença imposta pelo estado. No entanto, há de se ter cuidados nestes casos. Para isso, há que existir princípios de estruturação das organizações públicas e privadas, estabelecendo regras com rigor e efectividade. Da´a pertinência de alguns princípios tidos como basilares dessa estruturação que é o da “continuidade e da erradicação patrimonial”. De entre vários, há que considerar a impessoalidade e a neutralidade do corpo dos funcionários no sentido de separação entre o ocupante e o cargo, implicando que o burrocrata deva agir não como pessoa, mas como ocupante do cargo. Aponta-se ainda, a valorização da selecção meritocrática dos funcionários e da profissionalização da carreira administrativa (BRESER, 2001, apud DURANTE e ZAFATARO, 2007). 289 Da mesma forma, verifica-se entre os funcionários públicos devem existir normas e regras para garantir que estes defendam o interresse do público não apenas de alguns consumidores preferenciais, devendo também, desenvolver capacidades e habilidades gerenciais para actuarem como administradores, como produtores, como inovadores e como mediadores. Nesse âmbito é importante a questão da “Continuidade”. Alguns avanços da gestão da segurança pública muitas vezes passam por sérios problemas de continuidade quando ocorrem mudanças de contextos de gerência política em Segurança Pública. Isto é, verifica-se que as mudanças de gestão constituem um sério problema quando não se considera o princípio de continuidade. A continuidade refere-se às políticas devidamente estudadas e comprovadamente viáveis e de necessidade extrema. A sua não implementação pode pôr em causa o cabal funcionamento da instituição (ZAFATARO, 2007). Como exemplo de avanços apontam-se factos de extrema relevância, como o caso do uso de sistemas informáticos para registo de ocorrências, atendimento, despacho de viaturas, administração de recursos humanos e materiais, administração financeira etc. Também como medida de precaução e prudência, consudera-se que em nenhuma gestão de segurança pública se deve, por exemplo, criar condições novas para funcionamento duma estrutura institucional sem que haja um estudo de causa/efeito ou benefício da criação destas condições. Um exemplo é a administração de um hospital em que se privegia a pintura das paredes das salas e a criação de melhores condições de trabalho do pessoal mas em que se verifica o aumento contínuo do número de óbitos de pacientes. Quer isto dizer que a gerência do hospital não está a se preocupar com a causa dos óbitos, mas sim em atender os meios físicos para o desenvolvimento do trabalho dos funcionários. Este facto reflecte muito menos do que a morte ou o óbito registado naquele hospital com implicações negativas sobre a segurança pública. A resolução da questão de segurança pública é hoje transversal e impõe a busca de suas causas em tempo oportuno para se conseguir encontrar e utilizar instrumentos facilitadores da sua gestão. Na verdade, a violência e criminalidade são apontadas como algo que às vezes ultrapassa o controle das autoridades e não são determinadas pelo que os agentes de combate fazem ou pelo número dos agentes disponíveis, mas sim, por outros factores de maior importância (económicos, sociais etc.). 290 CAPÍTULO V ASPECTOS CONCLUSIVOS Pode-se dizer que durante o período a que o presente estudo se propôs conhecer e analisar os custos da violência e da criminalidade em Cabo Verde houve constantemente a tendência de aumento das mesmas. Comparandos os dois orçamentos, vê-se que o aumento desses custos não se mostrou proporcional ao aumento dos custos de investimento e de funcionamento das instiuições estudadas, não obstante a tendência de crescimento anual de ambos. Somando e dividindo os números percentuais, pode-se afirmar que, no período de 2006 a 2010, os custos da violência e crime estudados tiveram um peso orçamental que rondam em média os 5,29%. Ou seja, em números monetários, a média do periodo é de 3.830.309.462,29 ECV. No primeiro ano o custo total era de 3.169.796.675,43 ECV, chegando no último ano a ser de 4.718.336.894,00 ECV. Dividindo-os em aqueles que o Estado escolhe gastar livremente – “custos exógenos” – e em aqueles que são resultados da acção do crime – “custos endógenos” – pode-se constactar que os custos exógenos decorrentes da violência e crime tiveram um peso no orçamento estatal cuja média é de 4,97%. Ou então, no ano de 2006 o seu peso era de 4,83% e no ano de 2010 passou para 4,97%. Visto em números monetários, tem-se um total de 2.993.315.469,43 ECV de custos em 2006 e 4.308. 345.616,00 ECV em 2010. Estes montantes foram saídos do orçamento do estado, do lado Investimento para programas correcionais e de desenvolvimento e, do lado Funcional/Orgânica para os programas situacionais ou serviços que relacionam directamente com a questão de segurança pública. Por outro lado, hpá os custos endógenos, cujo peso médio é de 0,32% durante o periodo. De realçar que a contabilização deste custo é que se revelou mais difícil por haver falta de registo de dados ou falta de informação. Assim, o registo e o tratamento de informações constituem constrangimentos, impondo desafios das consequências da violência e criminalidade que devem ser enfrentadas e resolvidas. Pois, parecem ser procupantes, visto que, determi291 nados custos delas decorrentes, ainda não poderão ser contabilizados. Como exemplo, apontam-se os custos para correcção dos danos. Ou seja, custos de tratamento hospitalar e custos com furtos e roubos. Associado a estes, também outros custos poderiam ser estimados, pois, como foi visto na revisão bibliográfica, são de difícil mensuração. É o caso da dor, do sofrimento das vítimas e de seus familiares, considerados custos intangíveis. Assim sendo, vê-se que o Etado conscientemente sabe que gasta e deve gastar sempre para combater os males sociais existentes no país, nomeadamente sobre a questão da violência e crime. Pois, saber onde, em que programas investir e qual o seu custo/benefício deverá ser a preocupação de todos. Porém, mesmo o Estado, muito menos as famílias e particularmente pessoas individuais, sabem quanto gastam ou qual é o custo que a violência e crime têm para eles. Algumas pessoas têm a consciência de que devem esforçar-se conjuntamente com as instituições do Estado, fazendo a parte que lhes cabe para conter a onda da violência que se vive na Praia. É o que se percebeu na pesquisa, quando foi perguntado à população se está disposta a disponibilizar meios monetários para a implementação de programas de combate à violência e crime na Praia, tendo 27,65% respondido negativamente, isto é, que tem a não a intenção de disponibilizar nenhum escudo para implementação destes programas. Os restantes responderam que, de alguma forma, querem disponibilizar recursos para fazer face ao problema. Considera-se aqui a questão do risco real e do risco percebido. Ou seja, a população não quer disponibilizar seu tempo nem dinheiro em soluções de combate ao crime e à violência. Conscientemente e com um bom nível de confiança mostrou reservas em disponibilizar dinheiro ou accões em programas comunitários e outros de combate ao problema social existente, alegando não ter isco ou que controla esse risco. Entretanto, só consegu, por exemplo, perceber o perigo real, a partir do momento em que pensar ou decidir sair ou andar na rua. Então, uma das respostas foi: “Não dá para andar em certas ruas porque posso ser assaltado”. Na verdade, nessa situação a população consegue ver o real risco e perceber o problema e toma a decisão. Daí que o importante seria não esperar pela ocorrência dessa dituação para se decidir, mas sim estar apto a tomar a decisão mesmo dentro de casa, desenvolendo acções de carracter intrafamiliar e intracomunitária. 292 Por outro lado, a imaginação geral leva muita gente a crer que a solução está, por exemplo, em ter mais policiais nas ruas. Ou seja, quanto mais polícias, melhores as soluções para a questão da violência e da criminalidade. Mas, na prática isso não se verifica, pois o próprio agente detentor de poder legítimo da força, exercndo-o em nome do Estado, assume posturas equivocadas gerand mais violência. Ou seja, o próprio agente da lei cuja função primordial é proteger a todos, encontra-se, muitas vezes, em situações adversas geradoras de criminalidade, levando ao que foi chamado de violência difusa. Há necessidade de racionalizar, repartir as intervenções e usar as novas tecnologias, visto que o problema da violência e criminalidade não está a diminuir, mas, pelo contrário, a crescer continuamente, constituindo uma preocupação permanente para as famílias e instituições, principalmente policiais. Reiss (2003) recomendou a necessidade de se redimensionar as novas tecnologias sociais, dando maior ênfase nas pesquisas de soluções de problemas, nas engenharias das relações sociais e técnicas organizacionais para administrar os problemas humanos. O Estado ou o governo não quer abrir mão da posição que lhe dá o poder sem muita responsabilização, através dos complexos modelos de mediação que lhe asseguram o controle e o protegem da responsabilização. Lembra-se que perante a proliferação de instituições e processos de policiamento a questão de responsabilização pode agudizar-se. Então há necessidade de esclarecer as evidências para que se minimize o se resolva o problema na sua globalidade. É notável o sentimeneto de insegurança que se vive no país, principalmente na Capital, e é também visível o esforço que vem sendo feito por parte governo para combater a onda de violência e crime, através das suas instiuições de segurança pública, investindo em áreas estratégicas e disponibilizando orçamentos anuais para o efeito. Por exemplo, a lei sobre a VBG (violência baseada no gênero), muito falada e mediatizada, na atuaçidade, constitui um dos esforços na busca de novos modelos de gestão de conflitos intrafamiliares. O certo é que se deve melhorar a implementação desta lei de modo a não chocar com interreses particulares e, assim, gerar mais violência. Apesasar do esforço do Estado em direcionar investimentos para as áreas de segurança pública, para fazer face a inúmeras dificuldades sociais existentes, e principalmente para conter as ondas de violência e ciminalidade em Cabo Verde 293 e com maior intensidade na Cidade da Praia, não se constata nos resultados a diminuição do sentimento de insegurança da população. A sociedade praiense tem-se queixado, cada vez mais, do medo, tanto no ambiente familiar como fora dele, evitando frequentar certos lugares, curzar-se com determinadas pessoas, não sentindo, enfim, segura em andar na rua, o que indica estar insatisfeita com a segurança do seu bairro. Essa realidade exige haver mais empenho por parte do Estado e mais acções em adquirir melhores meios, melhores conhecimentos, realizar mais pesquisas e implementar programas que vão ao encontro dos reais problemas relacionados com a segurança pública, a exemplo da violência e do crime, para a sua minimização. É preciso que o Estado lute e vença os desafios impostos pela modernização e pela globalização, especializando as suas instituições voltadas para a segurança pública, coordenando estratégias, unificando a recolha e tratamento das informações, para uma melhor tomada de decisão com direcionamento de investimentos para áreas estratégicas e de maior interesse. 5.1 - SUGESTÕES Dentre os vários meios de estudo sobre a problemática da violência e criminalidade pode-se destacar a criminologia moderna, demonstrando que se deve combater o crime na sua prevenção conhecendo as suas raízes e suas causas, deixando de direcionar responsabilidades para partes específicas como a polícia ou o infrator. Entretanto, se destaca três formas de prevenção: a primária a secundária e a terciária (BIROL, 2007). Como a prevenção primária é ressalvada a educação, a habitação, o trabalho, a inserção do homem no meio social e a melhoria na qualidade de vida. Na secundária se destaca a política legislativa penal, a ação policial, políticas de ordenamento urbano, controle dos meios de comunicação etc. A terciária tem já o destinatário identificado que é o recluso, o condenado, buscando assim prevenir através da sua ressocialização. Então, como exemplo de programas de prevenções primárias destaca-se a prevenção sobre as áreas geográficas identificando o crime como sendo um pro294 duto social de urbanismo, levando o ser humano a comportar-se de uma determinada forma por estar moldado por vetores socio-ambientais. Daí deve surgir a intervenção dos poderes públicos em programas de reordenação urbana como as infra-estruturas para desportos e recreação e para organização da vizinhança. De forma semelhante exemplifica-se com programas de reflexão sobre valores comportamentais. Destaca-se que a criança e o adolescente apreendem-se conforme o ambiente em que se encontram. Então, há necessidade de diminuir o facto de as pessoas conviverem com certas práticas de certas pessoas, levando-os a adotar um certo comportamento social, visto a partir das suas práticas e atitudes comportamentais, esses muitas vezes negativos. O exemplo pode ser, programas interventivos no aspecto de reconhecimento (controle da ira, autocontrole para se conhecer, aprendisagem moral e desenvolvimento do empatia social). Mais um programa de prevenção, seria a prevenção de delito político social como as desigualdades sociais, conflitos não resolvidos etc. Aqui é introduzida a teoria de anomia de Durkhein, que aponta para o crime como sendo fruto de estimulação de desejos, decorrentes da constante modernização social. Aí, o indivíduo como não pode estar sem o que fazer busca preencher o tempo ou o espaço vazio, mostrando que o desejo do homem é sempre maior que os recursos disponíveis, motivando-o para a delinquência por causa da impossibilidade de atingir certas metas. Um exemplo de programas para esses casos pode ser o de ensinamento de ser bom pai, (incluindo o estabelecimento de limites, mediação e resolução não violenta de conflitos), capacitando as suas habilidades sociais. Outro especto de destaque vai para a instituição policial que quando se fala em aumento ou diminuição da violência e criminalidade, esta aparece como principal actor. E mesmo no nosso estudo deteta-se que uma boa parte dos investimentos foi para as áreas policiais. Assim sendo, se espera sempre mais da polícia, desde sua acção de prevenção como em outros campos. Por exemplo, é mostrada a necessidade de trabalhar a cultura de medo da polícia que existe quando se fala na prevenção da vítima. Isto é, o atendimento à vítima de violência e crime deve constituir um auxílio desejoso e motivador. A maneira como atende as necessidades das vítimas revela como a organização está operando, se cumpre as suas responsabilidade essenciais ou se está a justificar a sua estrutura organizacional e suas estratégias operacionais. Então, o atendimento passa a ser um dos fatores de práticas de aumento ou 295 diminuição de número de crime. Um mau atendimento nos órgãos policiais pode ser motivo de grandes frustrações levando as vítimas muitas vezes a desistirem de registar as ocorrências em muitos casos. A vítima deve ser vista pela polícia como um aliado e não como um suspeito em certos casos (JORGE e LIMA, 2003, apud BORILLI, 2007). A existência de cresce, berçário ou espaço adequado para criança vítimas diretas ou indiretas, da violência e crime, são medidas que tornariam o ambiente das esquadras mais aconchegantes. A assistência social, psicológica e jurídica também pode ser imprescindível. Tomando estas medidas haveria uma consequente melhoria de serviço prestado pela polícia, aumentando a confiança da população, fazendo com que haja uma maior denúncia de crimes e uma maior colaboração na investigação, diminuindo assim a impunidade. Por outro lado se encontra a questão das leis. Elas devem ser produzidas a partir de critérios científicos e testes com grupo de controle, disseminação do seu conteúdo observando assim, a sua eficácia social. Entre os crimes de menor relevância buscar a conciliação entre a vítima e o agressor através de mediação entre as partes proporcionando a ambos a oportunidade de se refletir sobre o assunto ou o caso, restaurando a harmonia social desejado. Este para dizer que os tribunais não devem preocupar só com o fim do processo mas sim com a conciliação das partes. Em Cabo Verde a violência e criminalidade têm sido circunscritos aos órgãos executivos, como o Ministério e Administração Interna e Justiça onde se limita a delegar e dirigir esforços aos órgãos policiais, (a Polícia Nacional e a Judiciária). Na verdade, a atuação da polícia e extremamente importante. Contudo, o esforço para o controlo da violência requer uma posição estratégica global do governo deixando de direcionar a responsabilidade unicamente ao aparato policial. Os esforços entre as partes como a educação, saúde, desporto, promoção social, associações de classes, órgãos de justiça, entidades académicas e comunitárias poderá conduzir aos pontos de cooperação e de conflitos, resolvendo o problema de aplicação de recursos que são cada vez mais escassos. Da mesma forma a eficácia da polícia poderá ser obtida pelo estudo e análise das estatísticas oficiais, baseadas nos registros de factos ocorridos sobre violência e crime nas esquadras policiais, nos tribunais e noutros locais de registo da problemática. Enfim, tendo uma fonte de tratamento de dados, com recursos 296 humanos qualificados facilita no diagnóstico de problema, permitindo fugir de possíveis erros principalmente quando o trabalho de diagnóstico é voltado para o exterior. Alguns expedientes de marketing ocasionados por algumas chefias das polícias como a criação de novas unidades especiais, mudando algum visual das polícias sem diagnóstico e sem avaliação de impactos, aplicando amplas e espalhafatosas operações, podem desembocar em verdadeiro arbítrio. Algumas estratégias improvisadas várias vezes aplicadas nas operações policiais em Cabo Verde e muitas vezes na Cidade da Praia, aparentam ser inúteis e perniciosos. Gasta-se recursos, desgasta as actividades de prevenção, não evita o crescimento da violência e agrava a violência policial. Estas complicações são explicadas pela avaliação incorreta e incompleta de diagnósticos, que muitas vezes são voltadas só para o ambiente externo onde as variáveis são incontroláveis, esquecendo de diagnosticar variáveis controláveis do ambiente interno que constitui uma força para influenciar o ambiente externo (BEATO FILHO, 1999). Há que existir a vontade, a determinação dos chefes de serviços públicos, tomando decisões difíceis deixadas pelos seus antecessores. Decisões que resolvem problemas, deixando de apenas cumprir as rotinas do cargo. Decisões por exemplo, como os que vão de encontro aos princípios de austeridade e finalidade de aplicação de recursos escassos, como estruturas inúteis que desviam esses recursos, unificação dos bancos de dados, principalmente quando se trata de dados criminais etc. Em fim, há que ter mais atenção em temas de administração e técnicas gerenciais, que num ou noutro momento só são accionadas quando se dá um escândalo na imprensa. Da mesma forma, estender a eficácia no uso económico de recursos para todas as áreas, deixando de aplicar a eficácia, por exemplo, só quando se fala em combustíveis. Há que ter mais atenção à questão de avaliação de desempenho, mais atenção ao desenvolvimento institucional e alguns programas de maior qualidade como, a adesão aos modernos serviços oferecidos pelos sistemas informacionais. Por outro lado e respeitando o princípio de igualdade entre os seres humanos, isto vendo para as instituições policiais, deve se dar a mesma importância entre os postos de hierarquia policial e as funções policiais. O pessoal de policiamento, muitas vezes passa por momentos de regime disciplinar opressivo, onde a possibilidade de infringir as normas e regulamentos são maiores. Daí pode haver 297 uma deficiente prioridade na alocação de recursos escassos, lavando o pessoal a sentir-se desprestigiado, sem autonomia para planear, apresentando fraca criatividade, inexistência de iniciativa e alguma motivação para o abandono ou se não a descontracção. Assim, o tratamento dos recursos humanos que é o principal insumo numa sociedade, numa organização, principalmente a organização policial, deve estar no centro das melhores atenções, proporcionando a eficácia e a eficiência na orientação dos recursos disponíveis atingindo, entretanto, os melhores e desejosos resultados. REFERÊNCIAS ADORNO, S. 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Revista de Desenvolvimemtos Económico, Ano IX, v. 9, n. 16, Dezembro de 2007, p. 26-38. 300 APÊNDICE 301 Curso de M e strado e m Se gurança Pública:Ge stão de De fe sa Social e M e diação de Conflitos Unive rsidade de Cabo Ve rde e Unive rsidade Fe de ral do Pará Que stionário da captação da de sposição a pagar para uma re dução da violê ncia e criminalidade na cidade da Praia Bairro/Zona______________ Data____/____/_____ Que stionário nº_____ BLOCO I-AS PÉCTOS S ÓCIO-ECONÓMICOS E DEMOGRÁFICOS 01-Sexo Feminino Masculino 02-Idade:__________ 03-Estudou até que ano de escolaridade? 1˚Ciclo 2˚Ciclo 4-Qual a sua ocupação? 5-Qual é o seu salário mensal em escudosCV? Própria Alugada 8-Possui seguro patrimonial e de Carro? 4˚Ciclo Aposentado/Pensionista Funccionário Privado 16.000 a 30.000 60.000 a 120.000 Menor que 16.000 6-Número de membros da família:_______ 7-Moradia? 3˚Ciclo Desempregado/Inativo Funicionário Público Autónomo/profissional Liberal 30.000 a 60.000 Maior que 120.000 Nenhum escudos Outra _________________ Sim Não BLOCO II- CAPTAÇÃO DE S ENTIMENTO DE INS EGURANÇA DOS INDIVÍDUOS 1-Como considera o nível de segurança em seu bairro? Alto Médio Não possui segurança Baixo 2-Você está satisfeito com a actual sistema de segurança do seu bairro? Sim Não 2.2-Se não,porqué? Fraca cobertura policial Fraco envolvimento dos moradores Dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos Outros____________________________________________________ 2.1-Em sua opinião qual é o problema mais sério da sua comunidade? Iluminação pública Abastecimento de água Vioência e Criminalidade Transporte colectivo Esgoto sanitário Outro____________ 4-Sente-se seguro em andar na rua/vizinhança ao escurecer? Sim Não 5-Evita cruzar com algumas pessoas quando andar sozinho? Sim Não 6-Evita ir certos locais na tua zona? Sim Não 6.1-Se sim, indica o nome de local___________________ 7-Alguma vez já foi vítima de violência e criminalidade? Sim Não 7.1-Se sim, qual?________________________________________________________________ 7.2-Alguma vez sentiu psicologicamente afectado por causa da Violência e Crime? 7.3-Acha que existe possibilidade de seres vítima na zona onde moras? 8-Interessa por alguma notícia da Polícia? Sim Sim Sim Não Não Não 8.1-Se sim. Quais?_______________________________________________________________ 9-Tem medo da Polícia? Sim Não 9.1- Se sim, porquê?_____________________________________________________________ BLOCO III-CAPTAÇÃO EM TERMOS MONETÁRIOS DA PERDA DE BEM ES TAR AS S OCIADO A VIOLËNCIA CRIMINALIDADE(VC) 1-Alguma vez a sua casa foi assaltada? sim não 2-Sim sim, quantifica em termos monetários o valor do prejuíso.__________________ NENHUM $ 2.1-Quantifica em termos monetários(escudos) as despesas efectuado na 0 a 25.000$ autoprotecção (grades alarmes, blindados) na casa/apartamento onde moras. 25.000 a 50.000$ M AIOR q. 50.000$ 2.2-Alguma vez pagou processos judiciais por causa da violência e crime? Sim Não 2.3- Se sim, quantifica em valor monetário._______________________________ Programas de combate a VC a serem implementadas. I- No sector da Justiça, ter centros alternativ os , descentralizados para resolução de disputas de (espaço, terreno, lugar) etc.; II-No sector de Serv iços Sociais, ter Serv iços Comunitários Integrados (Centro de Recreação); III-No sector de sociedade Civ il, Capacitação das ONG´s para cooperar e monitorar os esforços de reforma da polícia. 1-Quanto você estaria disposto a pagar a mais na sua conta de telefone para que os programas acima sejam implementadas? Nenhum escudo 10 a 50 escudos 50 a 100 escudos 100 a 500 escudos 500 a 1000 escudos Outras contrinuições:_____________________________ 2-Qual o nível de confiança relativo a sua resposta anterior em %? MUITO OBRIGADO!!! 302 ANEXOS 303 Anexo A1 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2010. Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Justiça Total Executado % Eficiência da justiça Melhoria da prestação dos serviços de registo e notariado e identificação Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Total Geral…… 201.739.800,00 190.857.550,00 94,61 184.525.332,00 147.246.356,00 79,80 48.766.000,00 435.031.132,00 338.103.906,00 77,72 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Segurança Total Executado % Melhoria da segurança dos transportes rodoviários Prevenção e combate à droga Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária Total Geral…… 15.145.303,00 391.024.190,00 14.924.718,00 315.603.506,00 98,54 80,71 406.169.493,00 227.788.041,00 56,08 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Protecção e integração Social Total Executado % Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupos Alvo Melhoria das condições de trabalho e das relações entre os parceiros Sociais Promoção e apoio às iniciativas locais e de desenvolvimento comunitário Protecção dos direitos das crianças e adolescentes Total Geral…… 602.856.684,00 600.981.889,00 99,69 5.425.476,00 5.354.758,00 98,70 38.339.397,00 94.428.572,00 741.050.129,00 38.339.301,00 69.660.815,00 714.336.763,00 100,00 73,77 96,40 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2010 304 Anexo A2 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2009. Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Justiça Total Executado % Eficiência da justiça Melhoria da prestação dos serviços de registo e notariado e identificação Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Total Geral…… 254.382.171,00 150.580.230,00 59,19 51.400.000,00 38.199.890,00 74,32 46.292.496,00 352.074.667,00 33.560.305,00 222.340.425,00 72,50 63,15 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Combate À Criminalidade E À Droga E Preservação Da Segurança Total Executado % Luta Contra A Droga Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária Total Geral…… 267.325.193,00 221.125.680,00 82,72 267.325.193,00 221.125.680,00 82,72 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Protecção e integração Social Total Executado % Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupos Alvo Promoção e apoio às iniciativas locais e de desenvolvimento comunitário Protecção Especial A Crianças E Adolescentes Em Risco Total Geral…… 484.270.591,00 475.529.087,00 98,19 21.000.000,00 19.899.553,00 94,76 69.185.570,00 574.456.161,00 51.222.212,00 546.650.852,00 74,04 95,16 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2009. 305 Anexo A3 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2008. Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema De Justiça Total Executado % Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Reforço Da Administração Da Justiça Melhoria da prestação dos serviços de registo e notariado e identificação Total Geral…… 101.281.000,00 765.116.791,00 51.100.797,00 324.847.614,00 50,45 42,46 14.200.000,00 880.597.791,00 375.948.411,00 42,69 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Combate À Criminalidade E À Droga E Preservação Da Segurança Total Executado % Luta Contra A Droga Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária Total Geral…… 150.100.000,00 75.331.770,00 225.431.770,00 122.818.444,00 122.818.444,00 81,82 0,00 54,48 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Protecção, Inserção E Integração Social Total Executado % Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupos alvo Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De Desenvolvimento comunitário Protecção Especial A Crianças E Adolescentes Em Risco Total Geral…… 393.881.640,00 393.004.154,00 99,78 20.700.000,00 20.632.732,00 99,68 49.442.978,00 464.024.618,00 40.289.596,00 413.636.886,00 81,49 89,14 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2008. 306 Anexo A4 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2007. Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema De Justiça Total Executado % Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Reforço Da Administração Da Justiça Melhoria da prestação dos serviços de registo e notariado e identificação Total Geral…… 97.598.868,00 103.779.721,00 37.534.258,00 34.729.721,00 38,46 33,46 25.000.000,00 226.378.589,00 22.000.000,00 94.263.979,00 41,64 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Combate À Criminalidade E À Droga E Preservação Da Segurança Total Executado % Luta Contra A Droga Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária Total Geral…… 93.881.254,00 100.000.000,00 193.881.254,00 93.625.883,00 85.356.008,00 99,73 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Protecção, Inserção E Integração Social Total Executado % Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupos alvo Protecção dos Direitos das Crianças e Adolescentes Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De Desenvolvimento comunitário Total Geral…… 373.549.388,00 78.051.727,00 373.548.434,00 100,00 25.507.443,00 477.108.558,00 25.507.443,00 399.055.877,00 100,00 83,64 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2007. 307 Anexo A5 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2006. Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema De Justiça Total Executado % Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E Ao Direito Reforço Da Administração Da Justiça Melhoria da Prestação dos Serviços de Registo e Notariado e Identificação Total Geral…… 62.218.823,44 75.288.784,17 354.708.633,00 193.866.540,00 12.180.000,00 659.630,00 429.107.456,44 269.814.954,17 121,01 54,66 5,42 62,88 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Combate À Criminalidade E À Droga E Preservação Da Segurança Total Executado % Luta Contra A Droga Total Geral…… 129.893.366,00 129.893.366,00 37.576.159,50 37.576.159,50 28,93 28,93 Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010 Protecção, Inserção E Integração Social Total Executado % Capacitação Institucional, Orgânica E Técnica Do Sector Desenvolvimento De Uma Capacidades De Intervenção Para Grupo alvo Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De Desenvolvimento Protecção dos Direitos das Crianças e Adolescentes Total Geral…… 1.102.650,00 1.042.114,52 395.950.120,00 320.899.960,00 80.540.437,99 98.271.768,41 109.686.939,00 587.280.146,99 97.950.447,88 420.213.842,93 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2006. 308 94,51 81,05 122,02 89,30 71,55 Anexo A6 : Quadro Orçamento Investimento e de Funcionamento em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2006 a 2010. ORÇAMENTO INVESTIMENTO ÁREAS RELEVANTES Orçamento Investimento 2006 Variação Percentual(%) 2007 2008 2009 2010 Estrutura 2007 2008 2009 2010 2006 2007 2008 2009 2010 Orçamento Executado 2006 2007 2008 Percentual Executado 2009 2010 2006 2007 2008 2009 Justiça 429.107.456,44 226.378.589,00 880.597.791,00 352.074.667,00 435.031.132,00 -47,24 288,99 -60,02 23,56 37,43 25,23 56,09 29,49 27,49 331.680.243,17 252.280.941,00 375.948.411,00 312.135.770,00 364.005.468,00 77,30 111,44 Segurança 129.893.366,00 193.881.254,00 225.431.770,00 267.325.193,00 406.169.493,00 49,26 16,27 18,58 51,94 11,33 21,61 14,36 22,39 25,67 37.576.159,50 85.356.008,00 282.818.444,00 221.125.680,00 227.788.041,00 28,93 477.108.558,00 464.024.618,00 574.456.161,00 741.050.129,00 -18,76 -2,74 23,80 29,00 51,23 53,17 29,55 48,12 46,84 420.213.842,93 331.680.243,17 413.636.886,00 546.650.852,00 714.336.763,00 71,55 69,52 89,14 95,16 669.317.192,17 1.072.403.741,00 1.079.912.302,00 1.306.130.272,00 68,87 74,59 68,30 90,46 Protecção e integração Social SUBTOTAL 587.280.146,99 1.146.280.969,43 897.368.401,00 1.570.054.179,00 1.193.856.021,00 1.582.250.754,00 -21,71 74,96 -23,96 32,53 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 789.470.245,59 Orçamento Funcionamento Polícia Nacional Comissão de C. C. a Droga 88,66 82,72 ORÇAMENTO FUNCIONAMENTO AREAS RELEVANTES Polícia Judiciária 42,69 44,02 125,46 100.889.107,00 143.677.816,00 147.960.271,00 168.414.684,00 Variação Percentual(%) 201.926.047,00 Estrutura Orçamento Executado 42,41 2,98 13,82 19,90 5,46 6,44 6,50 6,74 7,41 99.195.064,00 105.391.723,00 Percentual Executado 124.640.466,00 166.087.609,00 173.446.025,00 98,32 73,35 84,24 98,62 1.091.335.544,00 1.358.489.250,00 1.412.597.149,00 1.566.795.664,00 1.724.173.033,00 24,48 3,98 10,92 10,04 59,09 60,86 62,01 62,66 63,25 993.499.432,00 1.231.821.241,00 1.271.870.524,00 1.383.838.593,00 1.568.754.719,00 91,04 90,68 90,04 88,32 11.250.044,00 13.023.803,00 13.804.540,00 15.975.649,00 15.647.481,00 15,77 5,99 15,73 -2,05 0,61 0,58 0,61 0,64 0,57 6.293.994,00 11.412.077,00 11.491.507,00 13.323.418,00 14.247.397,00 55,95 87,62 83,24 83,40 Estado Maior das forças armadas 592.631.877,00 645.819.599,00 631.461.716,00 648.987.331,00 680.496.692,00 8,97 -2,22 2,78 4,86 32,09 28,93 27,72 25,96 24,96 580.713.596,00 611.482.981,00 592.167.330,00 636.669.948,00 654.182.428,00 97,99 94,68 93,78 98,10 Supremo Tribunal De Justiça 25.507.576,00 43.768.201,00 43.718.893,00 48.038.880,00 55.394.704,00 71,59 -0,11 9,88 15,31 1,38 1,96 1,92 1,92 2,03 25.507.576,00 22.789.318,00 27.381.262,00 39.722.208,00 34.184.373,00 100,00 52,07 62,63 82,69 Procuradoria Geral Da Répública 25.420.352,00 27.399.252,00 28.375.968,00 52.161.535,00 48.456.905,00 26.717.943,00 26.951.164,00 44.248.760,00 SUBTOTAL 1.847.034.500,00 2.232.177.921,00 2.277.918.537,00 2.500.373.743,00 2.726.094.862,00 20,85 2,05 9,77 9,03 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 1.730.630.014,00 2.009.615.283,00 2.054.502.253,00 7,78 3,56 83,82 -7,10 1,38 1,23 1,25 2,09 1,78 25.420.352,00 2.283.890.536,00 2.483.870.696,00 39.055.754,00 100,00 TOTAL GERAL 2.993.315.469,43 3.129.546.322,00 3.847.972.716,00 3.694.229.764,00 4.308.345.616,00 -0,86 77,01 -14,20 41,56 200,00 200,00 200,00 200,00 200,00 2.520.100.259,59 2.678.932.475,17 3.126.905.994,00 3.363.802.838,00 3.790.000.968,00 162,57 164,62 158,50 181,80 173, 93,70 97,51 94,98 84,83 90,03 90,19 91,34 Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2006 a 2010 309 O MOVIMENTO MIGRATÓRIO DA CEDEAO PARA CABO VERDE NOS ANOS 2006 A 2010: PERFIL DE IMIGRANTES DA GUINÉ-BISSAU, NIGÉRIA E SENEGAL E RELAÇÃO IMIGRAÇÃOCRIMINALIDADE NESSE PERÍODO1 Augusto Andrade Mendes Teixeira RESUMO Entre os anos 2006 e 2010 houve um crescente fluxo migratório de cidadãos da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) para Cabo Verde, em situação regular e clandestina, de forma incisiva em relação ao de imigrantes dos demais países da CEDEAO. Os dados oficiais sobre o número desses imigrantes são inconsistentes e os serviços responsáveis não têm podido acompanhar a entrada e permanência desses imigrantes, devido à inexistência de condições para o efeito. Ademais, desconhece-se o perfil desses imigrantes. O senso comum associa o aumento da criminalidade por parte de cidadãos africanos, em particular os considerados no estudo, com o aumento da imigração. O objectivo geral da investigação foi caracterizar o perfil dos imigrantes desses países, de 2006 a 2010, e correlacionar a imigração e a criminalidade no período. Participaram imigrantes em situação de liberdade e os reclusos na Cadeia central da Praia (CCP) ou Cadeia de São Martinho. Fez-se a análise de documentos jurídicos relativos ao estrangeiro no território nacional e outros respeitantes à circulação de pessoas na CEDEAO, e acedeu-se a um conjunto de publicações sobre a insegurança, violência, criminalidade e imigração. A recolha de dados ocorreu na Direcção de Estrangeiros e Fronteiras da Polícia Nacional, na Procuradoria-Geral da República e nos serviços penitenciários da CCP do Ministério da Justiça. De um universo de 3 475 imigrantes, constituiu-se uma amostra de 180, sendo 60 de cada um dos 1. Dissertação defendida no dia 12/03/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores José Carlos dos Anjos (Uni-CV), como Presidente, Clementina Baptista Furtado (Uni-CV) e Marcelo Galvão Baptista (Orientador – Uni-CV). O trabalho teve apoio do Ministério da Administração Interna de Cabo Verde (MAI). 310 países. Desses imigrantes, 20 eram reclusos na CCP. Para o perfil dos imigrantes, elaborou-se um questionário para as entrevistas e que teve em conta o idioma da nacionalidade dos participantes. Recorreu-se ao coeficiente de correlação de Pearson para verificar a eventual correlação linear entre imigração e criminalidade referidas. Constatou-se que os imigrantes são predominantemente masculinos e jovens, com uma renda familiar inferior à de cabo-verdianos em circunstância similar. São maioritariamente solteiros, com escolaridade ao nível do secundário, inseridos na economia informal e destituídos da segurança social. Eles são, na maioria, cristãos, o que desmistifica a avaliação de que os muçulmanos constituem ameaça para Cabo Verde. Dificuldades económicas nos países de origem motivaram de forma mais premente a imigração e em conjunto com a impossibilidade de irem a outro lugar foram decisivos para os imigrantes permanecerem em Cabo Verde. A ajuda de parentes ou amigos no país de acolhimento foi o que mais pesou na organização da emigração, sugerindo existir, para isso, uma rede social de apoio. A maioria é discriminada e maltratada pelos cabo-verdianos, não obstante ocupar o tempo livre com eles, tê-los como amigos e estar satisfeita com a vida no país. Não se obteve correlação significativa entre imigração e criminalidade em Cabo Verde envolvendo os imigrantes, no período do estudo, indicando não contribuírem no incremento da criminalidade e, por conseguinte, na insegurança interna. Destaca-se a necessidade de os serviços governamentais reverterem a inconsistência de dados estatísticos sobre o fluxo migratório, em particular, de cidadãos da CEDEAO para Cabo Verde, a pertinência de estes serem sensibilizados sobre os limites da livre circulação prevista na legislação, e a pertinência de regulamentação dos aspectos fundamentais concernentes ao referido fluxo migratório. Palavras-chave: Movimento Migratório. Relação Imigração-Criminalidade. Rede de Apoio Social. Integração de Imigrantes na CEDEAO. 311 THE MIGRATORY MOVEMENT FROM ECOWAS TO CAPE VERDE FROM 2006 TO 2010: GUINEABISSAU, SENEGAL AND NIGERIA IMMIGRANTS’ PROFILE AND RELATIONSHIP BETWEEN IMMIGRATION AND CRIME DURING THIS PERIOD ABSTRACT Between 2006 and 2010 there has been an increasing of legal and illegal entrance of citizens from Guinea-Bissau, Nigeria and Senegal (GNS) in Cape Verde, comparing with other immigrants from other ECOWAS countries. Due to the lack of conditions, the official information about the number of these immigrants does not present any consistency and the department responsible for this area has not been able to monitor the entry and stay of these immigrants. Furthermore, Cape Verde institutions do not known the profile of these immigrants. People in general associates the increase of crime rate with African citizens living in Cape Verde, particularly those considered in this survey, as well as the increase number of immigration. The main aim of this paper is trying to characterize the profile of immigrants of these countries from 2006 to 2010, and the relationship between immigration and crime in this period. We worked with immigrants in conditionals and with the inmates of Central Prison of Praia also known as São Martinho Penitentiary. We did a detailed legal analysis of documents concerning to the foreigners living in Cape Verde and other papers relating to the movement of people within ECOWAS states, and we got official information about insecurity, violence, crime and immigration. We also collect information of these immigrants at the Border and Immigration Department of Cape Verde National Police, the Attorney General’s Office and the Penitentiary Services of Ministry of Justice. Among the 3,475 immigrants chosen, 180 of them were used as sample, taking into consideration 60 immigrants from different countries. Among these immigrants, 20 were inmates at São Martinho Penitentiary. We prepared an immigrants’ profile questionnaire for further interviews, taking into account the language and the nationality of 312 the participants. We also took the Pearson correlation coefficient to check the possible linear relationship between immigration and crime reported. We realized that immigrants are predominantly male and young people, and they have a family income below, comparing to the Cape Verdeans’ salary in similar circumstance. Most of them are singles, with the secondary schooling level. They are integrated into the informal economy and deprived from any social security. They are mostly Christians, which explains the assumption that Muslims can be a threat to Cape Verde security. The economical difficulties in their homelands are the main reason that most press them for immigration as well as the difficulties to get to other countries makes them stay in Cape Verde. The help of relatives or friends from the host country was what had the strong impact on the organization of emigration, leading to the existence of a social support network. Although most Cape Verdeans get well along with these immigrants and have them as friend, and are satisfied with what they do in this country, the majority of them are discriminated and mistreated by Cape Verdeans. We did not find any significant connection between immigration and crime in Cape Verde involving immigrants, during the survey period, which indicates that these latters did not have any influence in the increasing of criminality and the internal insecurity. The study highlights the need for the government services to work out in order to change the inconsistency of statistics on migration, particularly with ECOWAS citizens in Cape Verde, taking into account the relevance of these institutions being sensitized about the limits of free movement under the legislation, and the regulation of key aspects related to that migration. Keywords: Immigrants. Immigration-Crime Relationship. Social Support Network. Integration of Immigrants in ECOWAS. 313 CAPÍTULO I INTRODUÇÃO ENQUADRAMENTO TEÓRICO, PROBLEMA, JUSTIFICATIVA E OBJECTIVOS Neste Capítulo introdutório, apresenta-se a questão da migração tratada na literatura, em termos de sua caracterização em âmbito nacional e internacional, e quanto aos factores que lhe são determinantes. Apresenta-se a questão legal da migração e do controlo de fronteiras e de estrangeiros, a relação migração-crime ou criminalidade e segurança, bem como a perspectiva jurídica e sociológica do crime. Descreve-se, finalmente, o movimento migratório da CEDEAO para Cabo Verde no período delimitado para o estudo, tendo em conta a situação da imigração e as condições que lhe são favorecedoras, bem como as suas consequências. 1 - ENQUADRAMENTO TEÓRICO 1.1 - O Fenómeno Migratório: Caracterização e Factores de Ocorrência Migração é movimentação de pessoas de um lugar para outro. A migração pode ser interna, entendida como movimentação de cidadãos dentro de um país, muitas vezes, das áreas rurais para as áreas urbanas, ou internacionais, quando há movimentação de pessoas entre países diferentes. As migrações internacionais são definidas como deslocações de pessoas de um Estado para outro, com a mudança do lugar de residência e de estatuto jurídico, não sendo as migrações temporárias tidas em conta, tais como o turismo ou as migrações ligadas a um trabalho sazonal (Boniface, 2005). Levitt e Jaworsky, 2007, citados por Dias e Gonçalves (2007) afirmam que na história da humanidade sempre existiram deslocações de pessoas ou grupos dentro dos países e para fora destes e que, no entanto, as necessidades e as motivações deste fenómeno têm sofrido alterações associadas às rápidas mudanças ambientais, demográficas, socioeconómicas e políticas. A migração, segundo Dias e Gonçalves (2007), pode ser motivada por vários factores, de entre os quais se destacam as catástrofes naturais; as causas económicas de que são exemplos a pobreza, a diferença de recursos entre os vários países, a aspiração a melhores condições de vida e a globalização da economia; os factores políticos e religiosos relacionados com guerras e conflitos que têm surgido um pouco por todo o globo. Ainda, factores relacionados com o estado de saúde dos indivíduos, segundo a World Healt Organization 2003, citada por Dias e Gonçalves (2007), podem levar os migrantes a procurarem melhores condições noutras paragens mais evoluídas. Como fenómeno socioeconómico, a migração, no entender de Dias e Gonçalves (2007), pode ser considerada como um contributo indispensável para o progresso e para a simplificação do problema demográfico que ocorre nos países desenvolvidos. Isso, em decorrência do significativo envelhecimento populacional e baixa taxa de natalidade, além de que, nesses países, a população imigrante, geralmente constituída por pessoas em idade activa, ou seja, em condições do exercício de qualquer actividade económica, contribui com mão-de-obra nas diversas actividades económicas geradoras de rendimentos muitas vezes relegadas pelos trabalhadores nos países de acolhimento. Por outro lado, nos países em desenvolvimento, onde os aspectos demográficos têm outras características, com grande percentagem de população jovem, a migração surge, como um refúgio contra a pobreza ou solução de problemas de outra natureza, nomeadamente catástrofes naturais, conflitos bélicos, políticos, étnicos e religiosos. A Organização Internacional das Migrações (OIM) reconhece que a migração é uma característica integrante do mundo contemporâneo Dados do Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas (DAES-NU, 2009) permitem estimar que o número total de migrantes internacionais era cerca de 214 000 000 de pessoas em 2010, tendo pemaneceido reltivamente estável entre os anos 2005 e 2010, em proporção ao conjunto da população no âmbito global, com apenas um aumento de 0,1%, ou seja, de 3,0% para 3,1%. A OIM considera que o aumento dos fluxos migratórios tem sido bastante 315 regular nos últimos decénios, alcançando a cifra dos 191 000 000 em 2005 e que, se o aumento continuar no mesmo ritmo dos últimos 20 anos, prevê-se que para o ano 2050 o contingente das migrações internacionais em todo o mundo poderá alcançar a cifra de 405 000 000. A OIM adianta, ainda que, segundo o PNUD (2009), as migrações internas somam cerca de 740 000 000 de pessoas, das quais o número total de migrantes em todo o mundo aproxima-se a 1 000 000 000. A migração internacional, conforme a mesma fonte, é um processo que envolve uma variedade muito maior de grupos étnicos e culturais em que se destaca uma maior afluência de mulheres que emigram por conta própria ou como chefes de famílias. Nesse processo, observa-se que o número de pessoas a viverem e a trabalharem no estrangeiro em situação irregular também continua a aumentar, com um crescimento considerável de migração temporária e migração circular. Ainda, segundo o PNUD, os locais onde os migrantes vivem (e que têm como alvo) também estão mudando. Actualmente, pouco mais de metade da população vive em áreas urbanas. O DAES-NU (2010) aponta que, em 2050, quase 70% da população viverão em áreas urbanas, haverá inversão dos estilos de vida em todo o mundo em mais de um século e que, em 1950, o percentual era de apenas 30%. Essas previsões têm implicações para os movimentos de migração interna e da coesão social, como a tendência de concentração dos imigrantes em áreas urbanas. Os novos destinos dos trabalhadores migrantes serão as economias emergentes da África, Ásia e América Latina, o que não apenas destaca a importância crescente da migração Sul-Sul, como também a necessidade de haver mais investimentos na gestão das migrações nessas regiões. Os novos padrões de migração afectam também a composição étnica dos Estados e a questão da integração e da coesão social de como mudar os padrões de mobilidade humana. Embora a crise económica mundial tenha diminuído o ritmo da migração, em muitas partes do planeta, é esperado um aumento mundial da força de trabalho, de três mil milhões actualmente, para mais de quatro mil milhões em 2030, o que, segundo o Banco Mundial 2007, representa uma taxa de aumento ainda mais rápido do que o crescimento da população global. Em 2025, os jovens que entrarão no mercado de trabalho nos países em desenvolvimento superarão a actual força de trabalho nos países industrializados (PNUD, 2009). As projecções para a força de trabalho dos países desenvolvidos indicam que ela permanecerá em cerca de seiscentos milhões de pessoas, em 2050, enquanto que a força de trabalho dos países menos desenvolvidos vai aumentar de dois mil e quatrocentos 316 milhões de pessoas, em 2005, para três milhões, em 2020, e três mil e seiscentos milhões, em 2040. Por outro lado, muitos países em desenvolvimento são caracterizados por estruturas etárias mais jovens e uma população em rápido crescimento, o que provavelmente levará a exigências de maior acesso aos mercados de trabalho no mundo desenvolvido e nas economias emergentes. Em 2025, os países com 60% ou mais da população com menos de 30 anos de idade serão quase que exclusivamente subsaarianos. É nos Estados Unidos da América, conforme a mesma fonte, que vive o maior número de migrantes. Por outro lado, seis dos dez países que abrigam o maior número de populações nascidas no estrangeiro se encontram na Europa (França, Alemanha, Federação Russa, Espanha, Ucrânia e Reino Unido). O Relatório da Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais (2005) avalia as migrações internacionais como sendo um fenómeno dinâmico e em expansão, e indica que o número de migrantes internacionais duplicou nos últimos 25 anos, apesar de a proporção da população mundial como um todo continuar a ser relativamente modesta, ou seja, cerca de três por cento. As migrações internacionais afectam os países em todos os níveis de desenvolvimento económico e em todas as correntes ideológicas e culturais. Hoje, partem e chegam migrantes em praticamente todos os países do mundo, faco que torna cada vez mais difícil manter a distinção que tradicionalmente se fazia entre países de origem e países de trânsito e de destino. Ainda, conforme o mesmo Relatório, ao longo dos últimos 30 anos, a proporção de residentes nascidos no estrangeiro a viver nos países industrializados tem vindo, de um modo geral, a aumentar, enquanto que na maioria dos países em desenvolvimento se tem mantido estável, ou mesmo diminuído em certa medida. Cerca de 60% de todos os migrantes registrados encontra-se actualmente nos países mais prósperos e os restantes 40% estão nas regiões em desenvolvimento. Aapesar desta tendência, grande número de pessoas continua a efectuar migrações Sul-Sul, deslocando-se de um país em vias de desenvolvimento para outro. Informa o Relatório que, de acordo com os dados estatísticos mais recentes da ONU, a Ásia tem cerca de quarenta e nove milhões de migrantes, a África dezasseis milhões e a Região da América Latina e Caraíbas seis milhões. 317 1.2 - A Questão Legal da Migração A migração pode ser regular ou irregular, dependendo da situação em que os imigrantes se encontrem nos países de acolhimento. A migração é regular quando os imigrantes cumprem as leis de imigração dos países de acolhimento, ou seja, quando são portadores de uma autorização de residência válida. O mesmo termo é designado por Trindade (1995) como emigração legal, no sentido de percurso pelo qual se dá início e se desenvolve um movimento migratório individual com total conhecimento e controlo por parte das autoridades competentes, tanto no país de origem como país de acolhimento, em cumprimento de todas as fases do referido percurso2. A OIM (2009) admite ainda não haver consenso internacional na utilização de algumas expressões relacionadas com a migração, variando de país para país. Indica, como exemplo, as gradações existentes entre as migrações: ilegal, irregular, clandestina e migrantes indocumentados, expressões frequentemente usadas sem grande precisão e como sinónimas. Para a OIM, migração ilegal leva à consulta da definição da migração irregular, como sendo migração internacional à margem do quadro legal do país de origem, de trânsito ou de destino e aponta que não existe uma definição universalmente aceite sobre a migração irregular. Numa perspectiva do país de destino, trata-se da entrada, permanência e do trabalho ilegal, com a implicação de que, segundo a lei de imigração, o migrante não disponha de autorizações necessárias ou de documentos requeridos para a entrada, residência e trabalho. No país de origem, a irregularidade verifica-se logo que uma pessoa ultrapassa uma fronteira internacional sem passaporte ou documento de viagem válido, ou não cumpre as 2. Trindade (1995) designa por percurso migratório – ou itinerário migratório – o conjunto de passos dados por um indivíduo migrante, ou de acções ou situações vividas por ele. A fase inicial seria a intenção de partir, radicando-se esta num conjunto de causas de partida, seguida dos preparativos de partida, traduzindo-se esta na obtenção de documentação e bilhetes de viagem, bem como no desvencilhar dos compromissos imediatos no país de origem. A terceira fase seria a da viagem propriamente dita, com uma fase transitória que seria a da primeira instalação no país de destino, durante a qual vão decorrer múltiplos passos de estabelecimento de residência, de procura ou de iniciação no novo emprego ou actividade. Inserção seria a fase que representa a estabilização das características essencialmente transitórias da primeira instalação e que vai constituir a parte principal da estada no país receptor. Segue-se a fase de fixação se eventualmente o migrante pretender adquirir a nacionalidade do país de acolhimento, consagrado por um acto formal de naturalização. 318 exigências administrativas para deixar o país. Há, entretanto, uma tendência à restrição do uso da expressão “migração irregular” nos casos de tráfico de pessoas e no tráfico ilícito de migrantes. Em suma, a OIM considera a migração ilegal como sinónima de migração em situação irregular, mas com a ressalva de que aquela expressão tem um carácter estigmatizante, a ponto de contradizer o espírito dos instrumentos internacionais da protecção dos direitos humanos. Assim, é de se evitar, segundo essa Organização. A OIM define a migração clandestina como uma forma de migração secreta ou encoberta, com violação das exigências em matéria de imigração e que pode ocorrer quando um estrangeiro viola os regulamentos de entrada de um país ou ainda, mesmo que tenha entrado legalmente, quando nele permanece em violação dos regulamentos de imigração. Quanto à expressão migrante indocumentado, a OIM considera-a como relativa ao trabalhador migrante indocumentado ou ainda trabalhador migrante em situação irregular. É todo o trabalhador migrante, ou um membro da sua família, que não está autorizado a entrar, permanecer ou trabalhar num Estado. No ordenamento jurídico de Cabo Verde3 a migração é irregular quando ocorre a entrada irregular de pessoas e a sua permanência no país de acolhimento para além do tempo de estadia constante do visto ou da prorrogação deste, ou do prazo da autorização de residência, ou ainda quando há situações em que a revalidação da autorização de residência é recusada. De acordo com a legislação em vigor em Cabo Verde, é considerado estrangeiro não residente “aquele que não esteja legalmente autorizado a residir em Cabo Verde ou que se encontre em situação de irregularidade” (Cabo Verde, 1997, p. 324). Para o efeito, considera-se imigrante ilegal todo o cidadão estrangeiro que tenha entrado indocumentado ou com documentos falsos e assim permaneça em território nacional; tenha permanecido no país após o termo de validade do respectivo visto de entrada ou autorização de residência, ou após ter sido expulso do território nacional por autoridade competente. Entretanto, Trindade (1995) refere-se à expressão imigrante ilegal com o sen- 3. Artigo 68º do Decreto-Legislativo 6/97 de 06 de Maio. 319 tido de emigração clandestina, quando o pressuposto da emigração legal não é total ou parcialmente respeitado. É comum que os imigrantes indocumentados sejam tratados como imigrantes ilegais. Machado (1992) admite que quando um estrangeiro é considerado ilegal, trata-se de uma forma de rejeição das “diferenças diferentes”, isto pelo facto de haver legislações que explicitamente fazem referência ao estrangeiro que se encontre em situação irregular como sendo imigrante ilegal. Kynlicka (2006) questiona o facto de alguém ser tratado como ilegal e afirma que normalmente as condutas são ilegais quando reportam, por exemplo, a produtos em que as mercadorias são obtidas a partir de práticas criminosas. Tratar as pessoas como ilegais, segundo o autor, pelo simples facto de entrarem num país diferente, é algo que constitui uma das maiores aberrações cometidas em nome da lei. A PICUM (2007)4, no que se refere ao tratamento correcto que se deve dar aos estrangeiros, considera que definir um indivíduo ou um grupo como “ilegal” é uma forma de não reconhecimento da sua natureza humana, com a violação do seu direito natural de ser reconhecida como pessoa perante a lei. Outra razão seria a conotação do termo “ilegal” com a criminalidade, pois a permanência num país sem os documentos exigidos não é considerada infracção penal na maioria dos países, mas sim, uma infracção administrativa. A problemática da migração irregular é vista actualmente como um fenómeno global que atinge a maioria dos países desenvolvidos e aqueles em vias de desenvolvimento. Acredita-se que ainda não foram encontrados os mecanismos suficientes para impedir totalmente o movimento migratório mundial. Castells (2000) avança que nos fins do século XX a população de imigrantes 4. Platform for International Cooperation on Undocumented Migrants (PICUM) ou Plataforma para a Cooperação Internacional sobre Migrantes Indocumentados. É uma organização não-governamental que tem como objectivo promover o respeito aos direitos humanos dos imigrantes na Europa. PICUM também busca o diálogo com organizações e redes com preocupações semelhantes em outras partes do mundo. A PICUM promove o respeito aos direitos sociais básicos dos migrantes sem documentos, tais como o direito à saúde, o direito à moradia, o direito à educação e formação, o direito a um mínimo de subsistência, o direito à vida familiar, o direito à moral e integridade física, o direito à assistência jurídica, e o direito a condições de trabalho justas. A PICUM tem a sua sede em Bruxelas, Bélgica, e funciona como uma rede de cerca de 2.400 organizações da sociedade civil e indivíduos que operam na maioria dos Estados-membros da União Europeia. 320 era estimada entre 130 milhões e 145 milhões de pessoas que viviam fora do seu próprio país, números esses referentes à migração legalizada. Entretanto, o alto número de migrantes não documentados era estimado em muitos milhões. Uma parte significativa da imigração internacional, segundo o autor, é consequência de guerra e catástrofes, especialmente na África, onde, na década de 1990, houve um movimento de quase 24 milhões de refugiados. Outra explicação, segundo Castells (2000), relativa ao aumento dos fluxos de imigração e que teria provocado reacções xenofóbicas, essencialmente na Europa ocidental, é a transformação da configuração étnica das sociedades ocidentais. Isso porque muitos daqueles que são chamados de imigrantes, nasceram de facto, nos seus países de imigração, sendo então considerados, em fins da década de 1990, cidadãos de segunda classe pelas barreiras à naturalização. O autor menciona a situação dos turcos na Alemanha e dos coreanos no Japão como exemplos do rótulo “imigrante” utilizado como senha para designar as minorias discriminadas. Estudos internacionais, mais precisamente, da OIM (2010), indicam que o número de imigrantes irregulares vai continuar a aumentar, dado que a oferta de trabalho no país de origem é maior do que a demanda nos países de acolhimento e que os canais de imigração legal são a excepção e não a regra geral. A experiência das questões migratórias no Brasil nos anos de 1980 a 1993, relatadas na obra “Migração, Condições de Vida e Dinâmica Urbana” (Patarra e cols., 1997), comporta um conjunto de modelos vivenciais dos fluxos migratórios internos e externos, assemelhando-se um pouco àquilo que tem ocorrido em Cabo Verde a partir dos anos de 1990. No caso brasileiro, foi considerado um período explosivo da imigração italiana para aquele país e que viria a ser travado com legislações próprias que proibiam a imigração italiana para o Brasil. Castles e Miller (1993) apresentam como exemplos as expulsões em massa na Nigéria, no período de 1983 a 1985, como os mais significativos em termos de pessoas deslocadas, cerca de dois milhões; e a fuga forçada da Mauritânia por parte de dezenas de senegaleses, em 1989, ao mesmo tempo em que muitos mauritanos tiveram de fugir do Senegal. Na Nigéria, conforme Castles e Miller (1993), o emprego tecnicamente ilegal de estrangeiros, principalmente da CEDEAO, foi encarado benignamente pelo governo nigeriano durante o período de expansão económica nos meados da 321 década de 1970, em que muitos ganenses entraram naquele país e encontraram trabalho na construção civil e nos serviços. A maioria dos ganenses não entendeu as limitações à livre circulação de pessoas no seio da CEDEAO, assumindo que o acordo lhes oferecia estadia ilimitada e acesso ao emprego na Nigéria. Sucedeu, porém, que a desaceleração da economia nigeriana, combinada com a instabilidade de governo e mesmo a deterioração das relações entre Nigéria e Gana, estiveram na origem das expulsões massivas de imigrantes irregulares no período de 1983 a 1985, sendo a maioria de cidadãos ganenses. Outra situação, apresentada por Trindade (1995), e que, entretanto, a autora entende ser um pouco diferente de clandestinidade, é a que tem relação com a permissão de entrada de estrangeiros no país, cujos motivos alegam ser de turismo, negócios ou visita a familiares, mas com exclusão explícita da autorização para o trabalho ou exercício de actividade profissional permanente. Inúmeros são os casos dessa ténue clandestinidade que se pode verificar em Cabo Verde, um pouco dispersa por todas as ilhas, sobretudo de cidadãos estrangeiros dos países da CEDEAO (Guiné-Bissau, Senegal, Nigéria), países da Europa (Portugal, Espanha, Itália) e da Ásia (China). Consequentemente, quando uma pessoa viola os motivos que ela sustentou para a sua entrada e permanência no país, ultrapassando, nesse caso, o prazo que lhe foi concedido para a estada, entra automaticamente em situação de clandestinidade. A imigração clandestina, segundo a OIM, é migração internacional definida pela lei do país de origem, de trânsito ou de destino. Essa Organização considera que a noção de clandestinidade evoca a condição dos migrantes irregulares forçados a viver à margem da sociedade. Existe ainda a imigração clandestina seja no caso de entrada irregular no território de um Estado, seja no caso de permanência no mesmo para além do prazo de residência, ou mesmo de subtracção à execução de uma medida de afastamento. A imigração clandestina constatada ultimamente em Cabo Verde envolveu centenas de cidadãos desprovidos de qualquer tipo de documentação e que entraram no país depois de terem viajado em pirogas ou cayucus (embarcações tradicionais da costa do Senegal, que permitem o transporte de grande quantidade de pessoas). Esses imigrantes eram oriundos do continente africano e em maioria da CEDEAO e o seu desembarque foi constatado em várias zonas costeiras 322 do arquipélago, fora dos postos fronteiriços marítimos habilitados para o efeito. Outras embarcações foram encontradas vazias, pressupondo inicialmente que os seus ocupantes teriam desembarcado sem serem detectados pelas autoridades policiais e/ou pelas populações locais. A exploração da imigração clandestina é uma das faces mais cruéis de organizações clandestinas vitimando populações humanas em busca de melhores condições de vida wm outros países (emprego, trabalho, acesso aos serviços de saúde e outros benefícios da assistência governamental). As actuais barreiras controladoras de imigrantes nas fronteiras favorecem o surgimento dessas organizações clandestinas que prometem e nem sempre cumprem o acordo seja de entrada ilegal, seja da condição de vida prometida. A Constituição de Cabo Verde, no Artigo 12º, e o Direito Internacional estabelecem alguns princípios em matéria de estatuto e tratamento de estrangeiros, que têm de ser observados no regime jurídico do estrangeiro, assumindo-se assim como um Estado de Direito Democrático que pugna pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e pela defesa da dignidade da pessoa humana como valor absoluto. O país tem um sistema político assente no princípio da democracia pluralista, com equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania, um poder judicial independente e um poder local com autonomia. A Constituição da República de Cabo Verde estabelece como princípio fundamental a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem social ou situação económica, raça, sexo, religião, convicções políticas ou ideológicas e condição social, e assegura o pleno exercício por todos os cidadãos das liberdades fundamentais. Nos termos da lei, a todos é garantido o direito de acesso à justiça, à defesa, à informação jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. Os estrangeiros e apátridas gozam dos mesmos direitos, liberdades e garantias e estão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos cabo-verdianos, com excepção dos direitos políticos e dos direitos e deveres reservados constitucionalmente aos cidadãos nacionais. Cabo Verde assegura, nos termos da Lei Fundamental, um conjunto de garantias próprias de um Estado de Direito integral, de que são exemplos os seguintes princípios: direito à liberdade e livre expressão, liberdade de culto, liberdade 323 de imprensa, limites à duração temporal das penas, intransmissibilidade da responsabilidade penal, a não retroactividade da lei penal, o contraditório no processo criminal, a inviolabilidade do domicílio e a protecção dos dados pessoais. O Decreto-Legislativo N.º 6/97, de 5 de Maio, regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional, estabelecendo os direitos, garantias e deveres, o regime de entrada, permanência e saída, a expulsão e a extradição dos estrangeiros, em conformidade com as disposições constitucionais e as convenções internacionais em matéria de estrangeiros, no que respeita à defesa da comunidade residente, quando estão em causa problemas de criminalidade e defesa da saúde e da ordem públicas e segurança nacional. Cabo Verde, sendo terra de emigrantes, abriu-se ao mundo em termos de cidadania, concedendo nacionalidade aos que se ligam ao seu território e aceitando que os cabo-verdianos adquiram a nacionalidade de outro país sem perderem a sua nacionalidade de origem. A lei garante o direito de asilo5 no território cabo-verdiano aos estrangeiros ou apátridas perseguidos por motivos políticos ou seriamente ameaçados de perseguição, estando estabelecido um regime jurídico para esse efeito, incluindo-se o estatuto dos refugiados. 1.3 - O Controlo de Fronteiras e de Estrangeiros O controlo das fronteiras e dos cidadãos estrangeiros no território de Cabo Verde é uma incumbência da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras6 que está integrada na Policia Nacional de Cabo Verde. O enquadramento legal dessa matéria é definido pelo Decreto-Legislativo n.º 6/97, de 5 de Maio, designado por ser Situação Jurídica do Estrangeiro no Território Nacional, e que, neste trabalho, passa a designar-se por Lei de Estrangeiros. Este regime legal substituiu uma lei que vigorava sobre esse assunto desde o ano de 1990. Tratou-se de uma adequação dos termos legais à nova realidade de Cabo Verde, decorrente da aprovação da nova Constituição da República em 1990, e 5. Lei nº 99/V/99, de 19 de Abril – Estabelece as bases do regime jurídico do asilo e estatuto dos refugiados. 6. Artigo 43º da Orgânica da Polícia Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39/2007, de 12 de Novembro. 324 da necessidade de integrar na lei algumas disposições de convenções internacionais, como os relacionados com a revisão ao Tratado da CEDEAO (em 1993). A revisão da Lei de Estrangeiros foi, contudo, limitada, mantendo-se a estrutura do diploma legal anterior e os seus princípios fundamentais, circunscrevendo-se à modificação e reformulação pontual de algumas disposições e ao aditamento de preceitos impostos pela introdução de novas matérias. São exemplos disso, a inclusão do preceito constitucional de que os estrangeiros autorizados a residir no país ou que tenham solicitado asilo apenas podem ser expulsos por decisão judicial (em decorrência do artigo 36º da CRCV); a garantia do direito de recurso por parte dos cidadãos expulsandos; a proibição da expulsão colectiva; a exigência de que os estrangeiros façam prova da posse dos meios económicos e de subsistência para entrarem e permanecerem no país. A Lei de Estrangeiros de 1997 sofreria depois alterações muito pontuais, mas sem que afectassem a sua estrutura e os seus preceitos fundamentais, enquadrando a realidade resultante do desenvolvimento turístico de Cabo Verde, o que levou a criar a possibilidade de concessão de vistos nas fronteiras e a isentar de visto os visitantes em turismo de cruzeiro (Decreto Legislativo n.º 3/2005, de 01 de Agosto). Quanto ao conteúdo, a Lei de Estrangeiros de Cabo Verde regula a situação jurídica do estrangeiro no território cabo-verdiano, estabelecendo os seus direitos, garantias e deveres, para além do regime de entrada, permanência, saída, expulsão e extradição. Como princípio geral, a lei estabelece que os estrangeiros residentes legalmente ou que se encontrem em Cabo Verde, usufruem os mesmos direitos e garantias e estão sujeitos aos mesmos deveres que o cidadão cabo-verdiano, com excepção dos direitos políticos e outros expressamente reservados por lei aos cidadãos nacionais. Depois de enumerar os direitos, deveres e garantias do cidadão estrangeiro, a lei estabelece as condições para a sua entrada no território nacional, os documentos habilitantes, os tipos de visto necessários para esse efeito, as condições para a sua emissão, a validade e a sua eventual prorrogação. A lei confere ao cidadão estrangeiro a possibilidade de estabelecer residência em território nacional, desde que esteja munido de visto de residência ou requeira a conversão do visto temporário em visto de residência, e depois solicite a concessão de autorização de residência junto da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras. Para tal intento, o estrangeiro terá que reunir um conjunto de condições habili325 tantes que a lei estabelece. Definem-se, na lei, os períodos de validade das autorizações de residência, os procedimentos e as condições para a sua revalidação e os fundamentos para a sua eventual revogação ou retirada. A Lei de Estrangeiros define ainda as condições através das quais se fará o controlo da permanência dos estrangeiros no território nacional, isto é, pelo registo dos que são titulares de autorização de residência e da comunicação do boletim de alojamento relativo a todos os estrangeiros albergados no território nacional. No que se refere à saída de estrangeiros de Cabo Verde, a lei estabelece que pode ser voluntária ou coactiva, assível esta última de assumir a forma de recusa de entrada ou de decisão administrativa ou judicial. A lei proíbe a expulsão colectiva e impede que o expulsando seja enviado para país que o persiga por razões políticas, religiosas ou raciais. A lei enquadra a recusa de entrada como uma saída coactiva e estabelece que o procedimento de recusa de entrada não pode carecer de processo. São definidos os fundamentos da expulsão administrativa e da expulsão judicial, e os termos em que os respectivos processos devem ser organizados. A lei estabelece a possibilidade de expulsão por pena acessória, no âmbito de um processo criminal, e define os critérios para a aplicação dessa medida. A mesma lei incorpora os termos em que se efectua a extradição de cidadãos nacionais e estrangeiros, seja na sua forma activa, seja na forma passiva. A Lei de Estrangeiros está regulamentada, em alguns dos seus aspectos, através de legislação dispersa, nomeadamente diversos decretos regulamentares e portarias que definem procedimentos a tomar na concessão e revalidação de autorizações de residência, na concessão de vistos, quantificação dos meios de subsistência, aprovação dos modelos de boletim de alojamento e boletim de embarque/desembarque. Relevante para o controlo das fronteiras é ainda o Regime Jurídico dos Postos Habilitados de Fronteira, definido pelo Decreto-Lei n.º 46/99, de 26 de Julho, o qual estabelece esses postos, as condições de encerramento e abertura de outros, as obrigações das empresas e agentes das companhias aéreas, de navegação e dos comandantes dos navios, bem como as infracções e sanções por violação das 326 normas legais estabelecidas. Este diploma legal é, sobretudo, pertinente para o controlo da fronteira marítima, ao impor aos agentes e comandantes dos navios a obrigação de comunicação prévia das chegadas e partidas, bem como as listagens de tripulantes e passageiros. O controlo das fronteiras e da permanência de estrangeiros no território de Cabo Verde, anteriormente referido, é uma incumbência da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (DEF), a qual está integrada na Polícia Nacional. A Polícia Nacional (PN) é uma estrutura orgânica recente, resultante de uma reforma no sistema de segurança interna de Cabo Verde, levada a efeito no ano de 2005. Ao ser criada, a PN integrou a Polícia de Ordem Pública, a Guarda Fiscal, a Polícia Marítima e a Guarda Florestal que assim ficaram reunidas num único corpo policial. A principal missão da PN (artigo 2º da Lei Orgânica) é defender a legalidade democrática, prevenir a criminalidade e garantir a segurança interna, a tranquilidade pública e o exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos cabo-verdianos, encontrando-se ainda no âmbito da sua missão principal a responsabilidade pelo controlo das fronteiras aéreas e marítimas. As competências da PN espraiam-se por variados domínios, dentre os quais a prevenção e o combate ao tráfico de pessoas e imigração clandestina, assim como o controlo das fronteiras aéreas e marítimas. A PN é uma polícia hierarquizada, havendo na sua organização geral uma direcção nacional e comandos regionais, estando implantada em todo o território de Cabo Verde. A estrutura da PN compreende a Direcção de Estrangeiros e Fronteiras – DEF (artigo 43º), subordinada a um Director e sob a coordenação directa do Director Nacional Adjunto para a Área Operativa. As competências da DEF são: a emissão de documentos de viagem, o controlo da entrada e saída de pessoas nos postos de fronteira e o controlo da estadia e permanência de estrangeiros no território nacional. A DEF abarca a Divisão de Estrangeiros e a Divisão de Fronteiras. A Lei Orgânica da PN não esclarece quais as competências de cada uma destas duas divisões na estrutura da DEF, porém, em termos daquilo que é prática, à Divisão de Estrangeiros cabe a emissão de documentos e a actividade de fiscalização e 327 expulsão de cidadãos estrangeiros do território nacional, enquanto à Divisão de Fronteiras cabe o controlo de pessoas nas fronteiras marítimas e aéreas. Os comandos regionais da PN têm na sua estrutura (artigo 61º) um Serviço de Emissão de Documentos e Fronteiras, o qual reúne as competências da DEF. Porém, os comandantes regionais dependem administrativa, funcional e hierarquicamente do Director Nacional da PN, embora devam desenvolver, nos termos da Lei Orgânica, a sua actividade em estreita articulação com os serviços centrais competentes em razão da matéria, como é o caso dos assuntos relacionados com as competências da DEF (artigo 63º). Em consequência do facto de os Comandos Regionais dependerem directamente da direcção da PN, os mesmos não possuem departamentos da DEF devidamente estruturados, embora garantam respostas às exigências respeitantes ao controlo fronteiriço, controlo de estrangeiros e emissão de documentos. Assim, a DEF garante uma estrutura própria, em meios, competências e missões, unicamente na ilha de Santiago, onde se situa a capital do País, a cidade da Praia. É a partir daí que são emanadas directivas e normas de procedimentos e é feito o acompanhamento da acção desenvolvida nos comandos regionais, no tocante ao controlo das fronteiras, emissão de documentos e actividade de fiscalização e afastamento de estrangeiros. A CEDEAO, de que Cabo Verde é membro, possui disposições específicas quanto à circulação de pessoas, direito de residência e estabelecimento. Todavia, a CEDEAO deixa aos Estados membros a competência para a regulação de aspectos fundamentais quanto ao regime de entrada e permanência e à concessão do direito de residência a estrangeiros dos Estados membros, no pressuposto de que existem questões de soberania e razão de Estado que impedem a devolução à comunidade do poder de regulação exaustivo dessa matéria. 1.4 - MIGRAÇÃO, CRIME/CRIMINALIDADE E SEGURANÇA 1.4.1 - O Crime na Perspectiva Jurídica Em termos jurídicos, crime é toda a conduta tipificada como tal, antijurídica (ou ilícita) e culpável, praticado por um ser humano; em sentido vulgar, o crime 328 é entendido como sendo um acto que viola a lei. Portanto, no sentido formal, crime é uma violação de lei penal incriminadora. No conceito material, é entendido como uma acção ou omissão que se proíbe e se procura evitar, recorrendo-se para o efeito à ameaça com pena, porque constitui ofensa, esta entendida como um dano ou perigo a um bem jurídico individual ou colectivo. Segundo Figueiredo Dias (2007), o crime, além do seu aspecto material, é em parte produto da sua definição social produzida pelas instâncias formais7 e informais8 do controlo social. 1.4.2 - O Crime na Perspectiva Sociológica Para Durkheim (1894), o crime, como todo o fenómeno social, é um acontecimento, ou seja, um facto que ocorre no transcurso da vivência do ser humano, surpreendendo e modificando a sua trajectória aparentemente esperada. Daí que o crime não possa ser estudado de forma isolada, mas sim levando em conta o comportamento da pessoa humana que o comete em sua real convivência colectiva. Durkheim descreve o crime como um fenómeno normal, por não conservar características específicas de determinadas sociedades, mas sim, por acontecer em todas elas, sob as mais diversas formas conhecidas. Para o autor, não existe, pois, nenhuma sociedade imune de práticas criminosas, dependendo, contudo da maneira como esses actos são qualificados. O autor evidencia, entretanto, que o facto de se admitir o crime como um fenómeno normal não significa que ele seja inevitável, mas sim um factor de saúde pública, uma parte integrante de todas as sociedades saudáveis. Segundo Durkheim, em torno das sociedades saudáveis o crime pode ser caracterizado como um acto que ofende certos sentimentos colectivos. Também, para que numa dada sociedade os actos considerados criminosos deixem de ser cometidos, seria necessário que os sentimentos feridos fossem reconhecidos em todas as consciências individuais, sem excepção, e com um grau de força neces7. Legislador, Polícia, Ministério Público, Juiz 8. Família, Escolas, Igrejas, Clubes, Vizinhos 329 sário para conter os sentimentos conflituantes. Supondo então que essa condição poderia ser efectivamente realizada, o crime não desapareceria de todo, mas mudaria apenas de forma, pela mesma razão que, esgotando-se as fontes da criminalidade, abrir-se-iam de imediato novas formas de criminalidade. Para Durkheim, portanto, o crime é necessário e relaciona-se com as condições fundamentais da vida social e com a evolução normal da moralidade e da lei. Castells (1996) considera a antiguidade da prática do crime a par da própria humanidade. Para o autor, entretanto, o crime global, bem como a formação de poderosas redes de organizações criminosas e seus comparsas com actividades compartilhadas em dimensão mundial, constituem um fenómeno recente que afecta a economia no âmbito nacional e internacional, abrangendo ainda a política, a segurança e, em última análise, as sociedades em geral. A par do tráfico de drogas e contrabando de armas, como crimes relacionados à imigração e os que mais representam um mercado de alto valor, Castells (1996) inclui o contrabando de imigrantes ilegais no rol das operações a que se pode atribuir um valor agregado, precisamente por ser proibido num determinado meio institucional. Ressalta ainda Castells (1996) que o controlo das fronteiras, cada vez mais rigoroso incita ao contrabando de imigrantes ilegais e que estes, enquanto potenciais vítimas das organizações criminosas, não constituem apenas fonte de lucro proveniente dos pagamentos efectuados para as viagens, mas sim, muitos desses imigrantes ilegais são sujeitos nos países de acolhimento a trabalhos em regime de escravidão para poderem pagar as dívidas contraídas, acrescidas de juros elevadíssimos. Castles e Miller (1993) fazem uma comparação dos movimentos migratórios em todo o mundo, afirmando que é possível identificar algumas tendências gerais, propensas de evidenciar tais movimentos nos próximos 20 anos. Os autores descrevem a primeira tendência como sendo a globalização da migração, em que cada vez mais os países são afectados por movimentos migratórios ao mesmo tempo. Realçam ainda o facto de haver aumento das diversidades das áreas de origem, de modo que os países, na maioria, se vêem confrontados com a participação em larga escala na defesa dos direitos económicos, sociais e culturais. 330 A segunda tendência tem a ver com o inevitável crescimento dos movimentos migratórios, ou seja, a aceleração da migração, e consequentemente o aumento das dificuldades das políticas governamentais dos países atingidos. A terceira tendência é a diferenciação da migração, entendida como tendência em que não se vislumbra apenas um tipo de imigração nos países de acolhimento, mas sim uma vasta gama, tais como migrações de trabalho, de refugiados ou mesmo de permanência permanente. As correntes migratórias que inicialmente começam com um determinado tipo de movimento muitas vezes desembocam em outras formas, isto em parte condicionado pelos esforços dos governos para conter ou controlar o fluxo de imigração. Um dos grandes obstáculos para essa diferenciação, segundo Castles e Miller (1993), tem a ver com as medidas de política nacional e internacional a serem adoptadas pelos governos dos estados atingidos. A feminização da migração é a quarta tendência no processo dos movimentos migratórios. Os autores em referência realçam o importante papel que as mulheres desempenham em todas as regiões e consequentemente em todos os tipos de migração. Afora disso, Castles e Miller (1993) destacam a figura feminina no historial passado das migrações em que apenas se enquadravam as mulheres na categoria de reagrupamento familiar. As migrações das mulheres trabalhadoras cabo-verdianas para a Itália, a par das Filipinas para o Oriente Médio, é um exemplo de rede à margem da dominação construída das migrações predominantemente masculinas no âmbito global. 1.5 - MIGRAÇÃO E SEGURANÇA Castles e Miller (2009) abordam as preocupações recentes sobre o impacto da migração em questões de segurança e soberania nos países de acolhimento, o que, de certa forma, ocorre no contexto cabo-verdiano, na qualidade de um dos países emergentes nas questões de imigração. Tendo isso em conta e considerando como exemplos países que enfrentaram no passado as mesmas vicissitudes, os autores citados analisam até que ponto a imigração ilegal maciça e descontrolada pode devastar o país de acolhimento, a ponto de pôr em causa a sua segurança nacional. 331 A relação entre migração, especificamente, imigração e segurança é implicada, necessariamente, pela relação entre imigração e crime ou criminalidade. Fraga (2001) afirma que a emigração, por si só, não constitui uma ameaça para a segurança e que numa sociedade que defende a igualdade não se podem deixar de fora os imigrantes quando se desenvolve a segurança social e, aponta, contudo, alguns aspectos que contribuem para a definição de um possível clima de violência e consequentemente responsáveis pela ameaça a segurança, tais como a existência de grandes comunidades culturalmente distintas e não integradas, o fenómeno de crescimento urbano descontrolado, o consumo e tráfico de drogas, entre outros (p. 52). O sociólogo Zigmunt Bauman (Bauman, 2005) retrata a situação da insegurança moderna, afirmando que ela é caracterizada em suas várias manifestações pelo medo dos crimes e dos criminosos e ressalta que a suspeita crescente por causa da xenofobia recai sobre o que poderá ser designado como complô estrangeiro e o sentimento de rancor em especial sobre os imigrantes. A CMMI9 (2005), relativamente às políticas voltadas com o desenvolvimento, direitos humanos e segurança, é categórica em que, efectivamente, a relação entre as migrações e a segurança permitiu aumentar as preocupações ao nível internacional. Reporta, pois, o referido relatório aos incidentes recentes envolvendo actos de violência cometidos por imigrantes, que: “[...] levaram à percepção de que existe uma relação estreita entre as migrações internacionais e o terrorismo internacional” (p. 8). Para Tavares (2007), o fenómeno da emigração tem assumido nos últimos tempos uma proporção elevada, tendo como motivo principal a complexidade dos problemas que se colocam aos países africanos a sul do Sahara, marcados pelas instabilidades regionais, o que constitui “[…] potencial risco à segurança regional e internacional, pela eventual conexão com a delinquência internacional, o narcotráfico e o terrorismo internacional” (p. 99). Ainda, conforme o autor, as péssimas condições económicas e de segurança vividas nesses países propiciam o tráfico de seres humanos que escapa na sua maioria ao controlo das autoridades estatais de cada um dos eventuais países implicados, incidindo tal tráfico funda9. Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais. Foi criada em Dezembro de 2003 pelo Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, e é constituída por 19 membros independentes. 332 mentalmente nas mulheres e crianças com a finalidade de serem exportadas para o continente europeu. O aumento do número de imigrantes em Cabo Verde, registado a partir dos anos de 1990, vem sendo associado empiricamente (pelo senso comum) à prática de crimes antes não conhecidos no país. Com isso, crimes como os de tráfico de drogas e de pessoas, burlas, falsificações têm sido atribuídos aos imigrantes, sobretudo os oriundos da África Ocidental. Os mandjakus10 são em boa parte vistos em Cabo Verde, de forma comum (Cabral e Furtado, 2008), como os causadores e os principais instigadores de práticas criminosas. Assim, “[ …] perante a subida do crime organizado e do tráfico de droga, o Governo questiona o protocolo de livre circulação a que aderimos em 1982, à luz de certas decisões […] da carta de Abuja” (p. 107), a par com os nacionais (cabo-verdianos) repatriados de alguns países da Europa e dos Estados Unidos da América por cometimento de crimes (MNECC, 2003), o que “vem constituindo motivo de preocupação” (p. 5). Esses imigrantes têm sido, portanto, objecto de uma percepção negativa no país. Não obstante essa percepção negativa a respeito desses imigrantes e, por conseguinte, a respeito da insegurança, dados recolhidos por Afrobárometro (2008) revelam que no âmbito nacional apenas 3% dos cabo-verdianos identificam os imigrantes africanos como os principais responsáveis pela criminalidade, considerando que este valor é muito baixo quando se constata que o cidadão comum tende a considerar os imigrantes africanos como parte importante do problema da criminalidade. Geralmente nos países em que a imigração tende a aumentar, sempre que há ondas de criminalidade os imigrantes são os primeiros a serem acusados, segundo Guia (2010), e com uma forte contribuição da comunicação social em propalar sentimentos de insegurança baseados em casos pontuais relativos a determinados tipos de criminalidade. A questão das relações entre a imigração e a criminalidade não é actual. Há registos, já no início do século XX, de diversos estudos a apresentarem razões explicativas para as possíveis relações entre estes dois fenómenos que tendem a ombrear-se mutuamente no processo actual de globalização, marcado cada vez 10. Mandjakus são todos os africanos, todas as gentes pretas que vêm de África: xenofobia e racismo em Cabo Verde – titulo da Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, de Eufémia Vicente Rocha, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade de Cabo Verde em 2009. 333 mais por maiores fluxos migratórios nos últimos tempos. Guia (2012) afirma que os estudos sobre a relação entre imigração e criminalidade apontam maioritariamente para uma relação indirecta entre ambas, embora existam teorias que associam certas nacionalidades a determinados tipos de crime, em determinados países. A ligação entre os dois fenómenos surgiu na sequência de estudos sobre a pobreza e a criminalidade (Tonry, 1995, citado por Guia, 2012), baseados em pressupostos de conflito cultural (Sellin e Sutherland, 1938, citados por Guia 2012) e de desorganização social (Shaw e Mckay, 1942, citados por Guia 2012), e em pressupostos de privações económicas, de desigualdade no acesso ao mercado laboral e à justiça, e de xenofobia (Baganha, 1996; Bianchi, Buonanno e Pinotti, 2008; Cunha, 2008; Tonry, 1995 e 2004; Tournier, 1996; Seabra e Santos, 2005 e 2006; Wacquant, 1998a, 1999, citado por Guia, 2012). Do universo dos estudos sobressaem os da grande metrópole norte-americana, por parte dos pesquisadores da Escola de Chicago11, dos quais as temáticas mais bem estudadas foram sobre as variadas formas de criminalidade e o fenómeno da imigração. Trindade (2005) realça que uma característica comum entre os trabalhos dos pesquisadores da Escola de Chicago foi “a preocupação em estudar a dinâmica dos processos sociais associados à concentração das comunidades de imigrantes em meio urbano” (p. 95). A obra de William Thomas e Florian Znaniecki “The Polish Peasant in Europe and América” é considerada, segundo Trindade (2005), como um estudo extraordinário acerca dos imigrantes polacos que, à época, constituiam o maior e o mais diversificado grupo étnico entre os vários grupos de imigrantes que residiam nos subúrbios de Chicago. Isso, pelo facto de o estudo ter constatado que a desagregação na instituição familiar era acompanhada por um elevado índice de criminalidade. 11. A Escola de Chicago surgiu nos Estados Unidos, na década de 1910, por iniciativa de sociólogos americanos, professores do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago e teve um papel relevante na história da criminologia, ao emergir a questão da desorganização social e da ecologia criminal (arquitectura criminal). Essa escola foi responsável por um estudo mais detalhado a respeito de fenómenos sociais que ocorriam na parte urbana das metrópoles, devido ao aumento da imigração para o Centro e Sul dos Estados Unidos. Houve um aumento populacional na cidade de Chicago de forma repentina e a cidade não estava preparada para receber todas essas pessoas, ou seja, não havia estrutura para manter o mesmo padrão de vida existente na cidade (Trindade, 2005). 334 A conclusão a que chegaram os dois pesquisadores, Thomas e Znaniecki, segundo Trindade (2005), é que a causa da criminalidade entre os imigrantes polacos residentes nos bairros degradados de Chicago “estava associada a um processo de desintegração dos mecanismos de coesão social” (p. 96), isto é, que a criminalidade estava associada às condições sociais de existência e não a características individuais dos imigrantes polacos, e ainda, à crise da instituição familiar, gerando assim comportamentos anómicos. Como já foi mencionado, em Cabo Verde o senso comum relaciona a imigração de cidadãos da África Ocidental, sobretudo da CEDEAO, à criminalidade. Esta associação está baseada em alguns comportamentos, hábitos e práticas ligados às actividades de comércio informal desses imigrantes africanos. Eles são vistos como violadores das normas municipais locais e como um incómodo para os turistas: “as vendas feitas na rua e que importunam os turistas não são de locais, mas de emigrantes, sobretudo senegaleses e alguns guineenses” (Norinha, 2010, p. 12). Num artigo publicado num dos periódicos nacionais, A Nação, sob o título “Cabo Verde face ao desafio da imigração”, Carvalho (2009)12 apresenta elementos de análise de possíveis causas de surgimento de focos criminais relativos à entrada massiva e descontrolada de imigrantes em Cabo Verde. Para isso, o autor questiona “se estará Cabo Verde a preparar-se devidamente para enfrentar os desafios que a imigração vai colocar” (p. 30), desafios esses relacionados com o problema de a ordem social interna do país poder ser abalada por grupos de imigrantes que, por diversas vezes, têm-se confrontado com as autoridades policiais. Chegou a haver necessidade mesmo da intervenção governamental em algumas das inúmeras situações de desacatos por parte de imigrantes estrangeiros em Cabo Verde. Por exemplo, em 18 de Março do ano 2005, A Semana”13 noticiou as reacções do Primeiro Ministro face a uma manifestação ilegal de cidadãos da Guiné-Bissau na capital do país. Ele disse: “Não vamos tolerar desacato às autoridades” e “A polícia está a tomar medidas e aqueles que prevaricaram serão necessariamente punidos e os ilegais serão imediatamente repatriados do país” (p. 7). 12. Jornal “A Nação”, Praia, edição de 30/01/2009. 13. A reacção do Governo deveu-se a uma manifestação ilegal de imigrantes guineenses da Guiné-Bissau e ao apedrejamento do Palácio do Governo por esses mesmos imigrantes. A reacção do Governo deveu-se a uma manifestação ilegal de imigrantes guineenses da Guiné-Bissau e ao apedrejamento do Palácio do Governo por esses mesmos imigrantes. 335 Também Carvalho (2009) questiona a respeito do aparecimento de obstáculos deliberados às tentativas de legalização dos imigrantes da sub-região, manifestações xenófobas dissimuladas, nestes termos: “Porque não preparar-se para o inevitável fenómeno da chegada de imigrantes?” (p. 30). Rosa (2005) manifesta a sua preocupação com o reforço da segurança interna de Cabo Verde, num ambiente de constante agravamento das fracturas sociais, religiosas e talvez étnicas. 1.6 - O MOVIMENTO MIGRATÓRIO DA CEDEAO PARA CABO VERDE 1.6.1 - Situação da Imigração A importância numérica do fluxo migratório da CEDEAO para Cabo Verde é difícil de quantificar, devido à absoluta liberdade de circulação no país dos cidadãos originários dessa comunidade, sendo apenas visível o aumento de movimentos em determinados centros populacionais do arquipélago (Praia, Assomada, Mindelo, Sal, Boavista) nas actividades da construção civil, em vendas ambulantes, na prostituição turística, etc. Esse fluxo migratório envolve tanto a imigração regular como a clandestina. Relativamente à imigração clandestina em Cabo Verde, são muito incertas as estatísticas, tendo em conta os recursos materiais e humanos de que dispõe o país. Associa-se a isso tudo, a manifesta falta de sensibilidade política no tratamento das questões relacionadas às migrações, sobretudo na sub-região da África Ocidental que abrange Cabo Verde, face às más interpretações, por parte de imigrantes, do Tratado e dos diversos Protocolos sobre a livre circulação e fixação de residência entre os países membros da CEDEAO. Segundo a DEF (2009), no período compreendido entre os anos 2005 e 2009, 966 estrangeiros africanos de diversas nacionalidades entraram irregularmente em Cabo Verde, por via marítima, foram detectados em 10 pirogas, e ainda mais quatro embarcações foram encontradas vazias, duas na ilha de Santiago e as outras nas ilhas de Santo Antão e São Nicolau. 336 Não há dados fiáveis sobre o número de imigrantes em situação irregular em Cabo Verde; contudo, estima-se que o número varia de 15 mil a 20 mil imigrantes ilegais, tratando-se, na maioria, de pessoas que permaneceram para além do tempo permitido, provindas das regiões da CEDEAO. Também, há a considerar o facto de nunca ter ocorrido no país qualquer regularização extraordinária em relação aos estrangeiros ilegais. Segundo notícia publicada no jornal A Semana (2010), o governo criou recentemente uma unidade para controlar a imigração ilegal, pois reconhece que Cabo Verde tem imigrantes em todas as ilhas e em diversos sectores e que existe um déficit na gestão de estrangeiros, o que gera embaraços para a administração pública. Além de que existem estrangeiros residentes no país há mais de dez anos sem qualquer autorização de residência e inclusive crianças nascidas de países estrangeiros em situação ilegal. É visível o aumento diário do número de africanos no país, provenientes da CEDEAO, especialmente do Senegal, da Guiné-Bissau e da Nigéria, e ainda o facto de a entrada desses cidadãos, legalmente, se efectuar por via aérea e no principal posto fronteiriço que tem ligação com a África, ou seja, o então denominado Aeroporto Internacional da Praia. “Por dia, do total de cidadãos que entram legalmente em Cabo Verde por via aérea, quinze acabam por permanecer no território em situação irregular” (Cabo Verde, 2009, p. 36), isto é, após o esgotamento do período de estadia autorizado ao abrigo das disposições sobre a Livre Circulação de Pessoas nos Protocolos da CEDEAO. 1.6.2 - Condições Favorecedoras da Imigração e Suas Consequências Cabo Verde, ao contrário do que se esperava, passou a ser um país de imigração. Entretanto, tradicionalmente foi um fornecedor de mão-de-obra para diferentes latitudes do mundo ao longo da sua história e nos últimos tempos passou a ser não só um degrau, mas também um país de destino de fluxos que movimentam milhares de africanos, anualmente, em busca de melhores condições de vida (Nogueira, 2008). Outro polo de atracção de imigrantes tem sido o desenvolvimento do turismo. Estima-se que 60% do PIB cabo-verdiano estão directa ou indirectamente ligados à indústria deste sector que evoluiu a partir do ano 1992. 337 […] o arquipélago árido, está a ser transformado numa estância turística de segmento médio e médio/alto. As grandes operadoras europeias estão muito activas e vários grupos hoteleiros estão presentes no arquipélago (Norinha, 2010, p. 12). Apesar do impacto negativo que a actual crise financeira mundial teve na economia internacional afectando Cabo Verde, sobretudo os sectores ligados ao turismo e à imobiliária turística, segundo Ferreira (2010), os indicadores estatísticos nacionais registaram um aumento positivo de entrada de turistas. De acordo com o mesmo autor, Cabo Verde foi considerado um dos dez países mais reformadores do mundo, o que despertaria mais interesse, tanto das pessoas que o querem conhecer como de investidores. Cabo Verde, país considerado de rendimento médio14 desde o ano 2008, é um dos membros da CEDEAO com as seguintes particularidades: é o menor da sub-região, simultaneamente em superfície e em população; possui o maior PIB (produto interno bruto) per capita da região e ocupa ainda a posição mais elevada em IDH (índice de desenvolvimento humano). Outros fatores, tais como a estabilidade social, econômica e política, contribuíram de forma decisiva para os níveis de desenvolvimento que o país alcançou desde a sua independência, o que converteu Cabo Verde num ponto de destino e acolhimento de fluxos migratórios massivos oriundos principalmente de vários países da subregião. De acordo com o PESI, a situação de Cabo Verde quanto à sua localização, favorecendo as rotas atlânticas do tráfico, elegeu o país como plataforma giratória da droga com destino à Europa. Esta pode ser tomada como uma das condições estimulantes à imigração irregular/ilegal de cidadãos da CEDEAO, eventualmente relacionada com a criminalidade, no que respeita ao tráfico de drogas. Outra condição pode estar relacionada com a proximidade geográfica de Cabo Verde com os países da África Ocidental. 14. A ONU determinou, em 2004, que a partir de 01 de Janeiro de 2008, Cabo Verde passaria à categoria de países de rendimento médio. Para que tal alteração seja aprovada, os Países Menos Avançados (PMA) deverão cumprir dois dos três critérios de elegibilidade estabelecidos pela ONU. Cabo Verde conseguiu satisfazer dois critérios para deixar a categoria dos países menos avançados, o do rendimento per capita e o índice de desenvolvimento humano, não tendo conseguido contudo, atingir o terceiro critério, o índice de vulnerabilidade económica. 338 Além disso, podem ser consideradas condições favoráveis, segundo o PESI: a fragilidade do controle das águas territoriais; a inexistência do controlo do espaço aéreo; o débil controlo nas fronteiras marítimas; a extensão de costa não vigiada e de fácil acesso; o considerável nível de pobreza e a desigualdade social; a inexistência de estratégias políticas em matéria de segurança, entre outras. Esses factores dificultam muito o combate à criminalidade organizada, sobressaindo o tráfico de drogas e a rede de imigração clandestina (Cabo Verde, 2009). Em Cabo Verde, o fenómeno da imigração irregular tornou-se, ultimamente, uma preocupação nacional e uma boa parcela da classe intelectual local já não vê com bons olhos os sinais de crescimento desenfreado de certa categoria de comunidades estrangeiras no país, mais precisamente, imigrantes provenientes da CEDEAO. Outra condição favorecedora da imigração irregular/ilegal tem a ver com a liberdade de circulação no espaço da CEDEAO. A livre circulação de pessoas e bens ao abrigo do Tratado Revisto da CEDEAO é o principal motivo da concentração de imigrantes ilegais em Cabo Verde. Sem dúvida que a livre circulação de pessoas constitui um elemento importante para o comércio transfronteiriço. Entretanto, se tal é possível entre os restantes países membros da CEDEAO, ligados entre si por fronteiras terrestres,15 o mesmo já não é o caso de Cabo Verde devido à sua insularidade. Os comerciantes daqueles países, em relação a Cabo Verde, enfrentam sérios problemas de transporte, por um lado devido ao elevado custo das tarifas aéreas16, aliado às exigências fronteiriças de entrada17 e, por outro, à inexistência de ligações marítimas entre Cabo Verde e os países mais próximos e com fronteiras marítimas como são os casos de Senegal e Guiné-Bissau. E, como consequência da livre circulação, pode-se apontar o problema de desemprego. Os noventa dias de permanência autorizada não são respeitados e o 15. São Domingos, localidade da Guiné-Bissau com cerca de 75 000 habitantes, dista 22 kms de Ziguinchor, capital da região de Ziguinchor, a principal cidade da área de Casamansa com uma população de mais de 230 000 habitantes e, uma viagem de carro entre as duas cidades dura cerca de 30 minutos com o custo de 1 000 FCA o equivalente a 167$00 ECV. 16. Custo das viagens Dakar/Praia/Dakar, cerca de 36 000$00 ECV, o equivalente a 215 000 FCA. 17. Apresentação de uma caução de 20 000$00 por cada entrada e 10 000$00 por cada dia de permanência (Portaria nº 49/99 de 04 de Outubro). 339 que se verifica na realidade é que Cabo Verde não se encontra em condições de garantir a permanência desses cidadãos no país nos termos definidos pela CEDEAO (CEDEAO 1990), no concernente aos direitos de residência e estabelecimento,18 isto devido, sobretudo, às fragilidades económicas do país ultimamente agravadas pelos efeitos colaterais da crise financeira mundial. Todos os países da CEDEAO têm o problema de desemprego. Rosa (2005, p. 4), manifestando a sua preocupação quanto à chegada massiva e descontrolada dos cidadãos comunitários ao arquipélago, aludiu que, se parte desses cidadãos pretende fazer de Cabo Verde um trampolim para outras paragens, a maioria vem, hoje, com a intenção de permanecer. […] face às dificuldades naturais de integração, optam por se constituir em núcleos ou comunidades fechadas, por vezes um pouco refractários aos hábitos e costumes das gentes das ilhas. Começam os nossos irmãos do continente a fazer algo muito natural que é a reunificação familiar mas necessitam de ser orientados para que os seus filhos ou educandos integrem o sistema de ensino legal. Os efeitos conjugados da não integração, a marginalização e a própria auto-segregação constituirão, a médio e longo prazo, fonte de graves preocupações para a sociedade cabo-verdiana e as suas autoridades. No Plano Estratégico de Segurança Interna de Cabo Verde, PESI 2009-2011 (Cabo Verde, 2009), no que tange à criminalidade organizada, admite-se que a África Ocidental é hoje o centro por excelência do tráfico de drogas, a partir da América do Sul para a Europa. Também, que a pobreza, a fraqueza institucional, a instabilidade e a corrupção que se alastram na maioria dos países da África Ocidental criam para os traficantes as condições ideais para a diminuição do risco e a obtenção de lucros elevadíssimos. Lobo (2010, p. 24) relaciona o problema desse desenvolvimento com a persistência da pobreza e afirma: […] o principal problema de desenvolvimento identificado em Cabo Verde no domí- 18. “Direito de Residência” significa o direito de um cidadão nacional de um Estado Membro de residir num Estado Membro que não o seu Estado de origem e que emite um cartão de residência ou licença que pode permitir ou impedir de ter emprego. “Direito de Estabelecimento” significa o direito concedido ao cidadão nacional do Estado Membro para se fixar ou estabelecer noutro Estado Membro que não o de origem, e de ter acesso a actividades económicas, de cumprir essas actividades assim como estabelecer e gerir empresas e particularmente companhias, sob as mesmas condições como definidas pela legislação do Estado Membro de Acolhimento para os seus próprios cidadãos. 340 nio social é o da persistência da pobreza, nomeadamente das mulheres, num contexto de repartição espacial desequilibrada, com tendência ao seu agravamento nos meios urbanos, em resultado de uma forte pressão demográfica sobre os recursos disponíveis. A realidade cabo-verdiana não permite albergar um número incontrolado de imigrantes, pela simples razão de o país não se encontrar num nível de desenvolvimento que permita a satisfação plena das necessidades básicas dos seus nacionais (alto índice de desemprego, problemas de saneamento, habitação, entre outros). A Direcção de Estrangeiros e Fronteiras admite a existência de redes operativas de tráfico de imigrantes em Cabo Verde, sendo a sua maioria do Gana e presume haver outras redes no Senegal, na Mauritânia e Nigéria (Cabo Verde, 2009). Entretanto, alguns comportamentos, hábitos e práticas ligados às actividades de comércio informal dos imigrantes africanos, sobretudo da CEDEAO, além de violarem as normas municipais locais, são vistos como um incómodo para os turistas: “as vendas feitas na rua e que importunam os turistas não são de locais, mas de emigrantes, sobretudo senegaleses e alguns guineenses” (Norinha, 2010, p. 12). Monteiro (1997) afirma que numa sociedade de acolhimento, para além do imigrante se apresentar como um recurso em termos de capacidade de trabalho e mesmo como um agente de inovação, a sua presença pode constituir motivos de receios, pelo facto de poder subtrair uma parte do bem estar nacional, constituindo a sua presença um perigo para a estabilidade e a ordem social. O autor destaca o facto de o imigrante ser objecto de representação no imaginário colectivo como um parasita social que vive de “expediente”, alimentando a economia formal e actividades ilícitas (p. 60). O mesmo autor responsabiliza os imigrantes de países da CEDEAO pela introdução de drogas no país: Originários, maioritariamente, da Nigéria, Guiné-Bissau e Senegal […] instalados particularmente na periferia das duas cidades (Praia e Mindelo) […] são (alguns deles), dizíamos nós, responsáveis, em parte, pela introdução regular e disseminação de drogas no território nacional, como sejam, a cocaína, o base, a heroína e o haxixe, chegando mesmo a constituir uma franja importante de estrangeiros detidos por tráfico de drogas nas prisões cabo-verdianas, de acordo com fontes policiais. (Monteiro, 2001, p. 124). 341 E, paralelamente ao aumento desses crimes, tem-se verificado uma avalanche dos acontecimentos sociais actuais em Cabo Verde, marcado pelo clima de insegurança propalado sistematicamente pelos principais meios de comunicação do país: Vendedores ambulantes, oriundos do Senegal e residentes na ilha do Sal, entraram em choque com a Polícia nessa ilha, causando o maior reboliço público no passado sábado. O balanço é uma viatura da POP com vidros partidos, a Esquadra apedrejada, e 28 imigrantes detidos. O caso, que está a suscitar preocupações, chama a atenção para o problema da livre circulação de pessoas e bens, no espaço CEDEAO, em Cabo Verde (A Semana, 2004, pág. 8) Esses problemas impõem discussões sobre a facilitação de entradas de estrangeiros no âmbito do acordo entre os membros da CEDEAO de que Cabo Verde faz parte. 2 - PROBLEMA E JUSTIFICATIVA A ausência de dados oficiais consistentes, relacionados com o número de imigrantes da CEDEAO em Cabo Verde, em particular da Guiné-Bissau, do Senegal e da Nigéria (GNS), configurou-se como um dos aspectos do problema deste estudo e, assim, motivou a busca da constituição do perfil desses imigrantes em termos do levantamento de dados cujo tratamento permitiria caracterizá-lo. Uma análise preliminar de dados estatísticos (apresentados no Capítulo 3) sobre o fluxo migratório de cidadãos da CEDEAO mostrou que esses três países referidos são os mais expressivos quanto à contribuição para a entrada regular de seus cidadãos em Cabo Verde, relativamente à imigração dos cidadãos dos outros países-membros dessa organização. Este facto levou à decisão pela escolha dos imigrantes de GNS como participantes do estudo para a caracterização do seu perfil. Considerou-se importante, para a caracterização do perfil desses imigrantes, determinar um primeiro conjunto de variáveis relativas à sua identificação e daquelas respeitantes à sua situação socioeconómica, especificadoras do género, faixa etária, estado civil, religião, grau de escolaridade, renda familiar, local da residência e tempo de permanência em Cabo Verde. A determinação dessas variáveis tinha a sua relevância no facto de que permitiria contribuir para o conhecimento dos imigrantes, em virtude de ser um problema, como é mencionado na literatura e constatado na organização dos da342 dos oficiais sobre a imigração dos africanos, em geral, residentes em Cabo Verde. Considerou-se importante determinar um segundo conjunto de variáveis que diziam respeito às possíveis razões explicativas da imigração dos cidadãos desses três países, o que possibilitaria saber as circunstâncias em que a imigração teve a sua origem no período a que se refere o estudo. O conhecimento dessas razões poderia corroborar em parte as explicações apontadas na literatura para esse fenómeno ou contribuir para ampliar o leque de factores para o mesmo. Foi tido como importante o levantamento de um terceiro conjunto de variáveis sobre as relações sociais entre os imigrantes e com os nacionais, e sobre como os imigrantes percebem e expressam a sua relação com o crime. Essa importância teve como justificativa a necessidade de verificar as formas e o grau de integração desses imigrantes em Cabo Verde. Considerou-se, finalmente, a importância da avaliação da evolução da imigração e da criminalidade no país, na perspectiva de correlação dos dois fenómenos, no período do estudo. Isso possibilitaria apontar se um possível aumento do fluxo migratório de cidadãos da GNS teria sido acompanhado do aumento da criminalidade, para avaliar, em termos de precisão estatística, a consistência ou inconsistência da análise empírica e de afirmações identificadas na literatura, com a sua eventual conotação preconceituosa, de que essa imigração é maléfica e ameaçadora para Cabo Verde, isto é, geradora de insegurança interna. Delimitou-se o período da imigração como o compreendido entre os anos 2006 e 2010, tendo em vista que esse limite temporal permitiria o levantamento de dados significativos sobre o fluxo migratório desses imigrantes como base para a análise das variáveis que levariam à constituição do seu perfil, bem como da relação entre imigração e criminalidade. Também, porque esse período seria suficiente para permitir a realização do estudo sem comprometer a sua exequibilidade. 343 3 - OBJECTIVOS 3.1 - Objectivo Geral Um aspecto do objectivo geral do estudo foi caracterizar o perfil dos imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) em Cabo Verde no período de 2006 a 2010. Outro aspecto foi correlacionar a imigração e a criminalidade no período referido. 3.2 - Objectivos Específicos Foram estabelecidos os seguintes objectivos específicos da investigação: Realizar o levantamento de dados de identificação dos imigrantes e dados referentes à sua situação socioeconómica, especificadoras do género, faixa etária, estado civil, religião, grau de escolaridade, renda familiar, local da residência e tempo de permanência no país de acolhimento; (2) Verificar as razões da imigração; (3) Analisar a forma de ocorrência das relações sociais entre os imigrantes e com os nacionais, e como percebem e expressam a sua relação com o crime. (4) Verificar a evolução da imigração e da criminalidade em Cabo Verde, na perspectiva de correlação de ambas no período de 2006 a 2010. Para o alcance dos objectivos do estudo fez-se necessário delinear estratégias de procedimento que constituíram os passos metodológicos descritos no Capítulo 2, a seguir. Essas estratégias foram condicionadas pela natureza da investigação e pelo papel institucional do autor, na tentativa de evitar a sua eventual interferência nos resultados. 344 CAPÍTULO II METODOLOGIA DE RECOLHA E TRATAMENTO DE DADOS 1 - AMBIENTE 1.1 - Ambiente de Recolha de Dados sobre a Permanência de Cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde A Polícia Nacional, através da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (Divisão de Estrangeiros e Divisão de Fronteiras), foi o local onde se fez a recolha de dados relativos à movimentação dos cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde, nos portos fronteiriços. O facto de o autor ser um quadro da Polícia Nacional, com funções na Direcção de Estrangeiros e Fronteiras, facilitou a obtenção dos dados referentes à movimentação dos cidadãos da CEDEAO nos principais postos fronteiriços do país (entradas e saídas) no período de 2006 a 2010, com destaque para os três países em estudo (Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal), bem como as situações relativas às saídas coactivas, à luz do Decreto-Lei número 6/97 de 5 de Maio. Na Divisão de Estrangeiros, sector da DEF encarregado do controlo da estadia e permanência de cidadãos estrangeiros no território nacional, conseguiu-se obter os dados relativos à situação de regularidades de estrangeiros através das autorizações e vistos de residência e às duas restantes situações de saídas coactivas dos estrangeiros de Cabo Verde, a saber: as expulsões administrativas e judiciais. 1.2 - Ambiente de Recolha de Dados sobre Processos Crimes nos Tribunais da Cidade da Praia A Procuradoria-Geral da República foi o local de recolha de dados sobre os processos crimes nos Tribunais da cidade da Praia. 345 A Procuradoria-Geral da República forneceu dados relativos aos processos crimes que deram entrada nesses tribunais nos períodos solicitados para o presente estudo (de 2006 a 2010). Dos registos processuais, incidiu-se sobre os tipos de crime mais frequentes e que de uma forma empírica são atribuídos aos cidadãos estrangeiros e entre estes e os naturais dos países membros da CEDEAO. Embora os dados não diferenciassem as nacionalidades infractoras, permitiram uma comparação com os dados obtidos no estabelecimento prisional da ilha de Santiago – Cadeia Central da Praia (CCP) - e definir quais os crimes a que foram condenados os estrangeiros que se encontravam no referido presídio, com destaque para as nacionalidades objecto do presente trabalho. 1.3 - Ambiente de Recolha de Dados sobre a População Prisional Os dados sobre a população prisional foram obtidos no Ministério da Justiça através dos serviços Penitenciários, directamente no estabelecimento prisional da CCP. O Director daquele estabelecimento permitiu o acesso e o manuseio directo das fichas individuais do total dos reclusos e ex-reclusos. Foram 90 horas de trabalho no local, na organização e actualização informática dos dados dos reclusos e ex-reclusos, bem como a entrega e recolha dos formulários utilizados nas entrevistas efectuadas aos reclusos da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, com o apoio directo das assistentes sociais em serviço naquele estabelecimento prisional. Houve apoio de um colega do Curso e outros colegas da Polícia Nacional, um dos quais era estudante de uma instituição de ensino superior de Portugal que se encontrava de férias naquela ocasião. A Cadeia Central da Praia19 situa-se no Concelho da Praia, na localidade São Martinho a aproximadamente seis quilómetros da capital. Ocupa uma superfície de 10 km2 e é o único estabelecimento prisional do referido concelho, além de ser uma das duas maiores instituições prisionais do país. 19. Conhecida também por “Cadeia de São Martinho” devido à localidade existente ainda com este nome –“Prisão de Achada Bombena”, onde se encontra situada. 346 A Cadeia comporta actualmente dois complexos prisionais com capacidade para receber cerca de 900 reclusos. O complexo número um comporta quatro sectores (duas preventivas e duas para as condenações), com a capacidade para 300 reclusos, sendo um dos sectores destinado às reclusas, com capacidade para 100 reclusas. O complexo número dois comporta seis sectores com a capacidade para 600 reclusos. A população prisional em Cabo Verde é bastante jovem, segundo afirmação do Director Geral dos Serviços Penitenciários e de Reinserção Social20, e abarca a faixa etária dos 16 aos 30 anos. Perante o facto, o Director acrescentou que o Regulamento Interno do funcionamento das cadeias prevê a separação dos reclusos não apenas em função dos critérios tradicionais como sexo, natureza do crime ou situação prisional, mas também em função da idade. Daí que os reclusos com idade entre os 16 e 21 anos têm uma situação diferente e são , por isso, colocados em espaços diferentes. Na CCP, o percentual de presos, na faixa etária dos 16 aos 35 anos é de 75% num total de 829 nacionais e estrangeiros detidos, no período de 2006 a 2010. Existe nesse estabelecimento prisional um centro de formação profissional, um espaço onde funcionam oficinas de mecânica, serralharia e artesanato, o que, segundo o Director, permitirá educar e capacitar a grande maioria dos reclusos que se encontram em idade activa os quais, após o cumprimento das penas, poderão integrar o mercado de trabalho no quotidiano da vida social fora do ambiente prisional. A Cadeia dispõe de uma área irrigada de quatro mil metros quadrados para a produção hortícola e pecuária e uma estufa de 600 metros quadrados, financiada por uma ONG espanhola e que funciona num sistema de rega gota-a-gota, o que permite a produção agrícola necessária para a alimentação dos reclusos. É garantida na Cadeia a liberdade religiosa aos reclusos. Há um número significativo de confissões religiosas que celebram cultos, proporcionando-lhes assim intervenções pontuais de cariz espiritual. 20. Fidel Tavares (2011). “Humanização, segurança e sustentabilidade dos estabelecimentos prisionais são os maiores desafios”. Entrevista ao Jornal Expresso das Ilhas em Junho, 6. 347 A Cadeia conta com um serviço clínico composto por um médico e um enfermeiro, duas psicólogas e dois assistentes sociais que garantem a assistência médica e a reeducação prisional dos reclusos na CCP. A CCP é um estabelecimento que exige alto grau de segurança pela natureza de alguns criminosos ali encarcerados por prática de crimes violentos, como homicídios e tráfico de drogas. Assim, o acesso a esse estabelecimento é condicionado e sujeito a requisitos de segurança na portaria principal (revista geral). Para o desenvolvimento deste trabalho foi feito um levantamento da realidade imigratória em Cabo Verde referente a cidadãos dos três países (Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal), os quais, conjuntamente com Cabo Verde, pertencem à CEDEAO. Como já foi referido anteriormente, o senso comum associa o aumento da instabilidade social, manifestada na criminalidade em Cabo Verde, com o aumento da imigração de cidadãos dos países da CEDEAO. Fez-se análise de documentos jurídicos nacionais, sub-regionais e internacionais que abordam as questões relacionadas com os estrangeiros, nomeadamente a lei que regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional, o Tratado da CEDEAO, os Protocolos Adicionais sobre a livre circulação de pessoas entre os Estados-membros dessa comunidade regional, as diferentes normas internacionais no que se refere aos diversos acordos entre Cabo Verde e os países na matéria de circulação de pessoas. Acedeu-se aos arquivos e às notícias dos órgãos de comunicação social tanto nacionais como internacionais, bem como a revistas e outras publicações, cujas informações foram percebidas como contribuindo para propagar sentimentos de insegurança baseados em acontecimentos pontuais sobre violência relacionada com a imigração e o crime. Esse recurso permitiria entender qual a interligação entre o fenómeno imigratório e a criminalidade, designadamente o tráfico de drogas, as redes de imigração clandestina, o tráfico de pessoas, a exploração sexual e outros. 2 - PARTICIPANTES A população-alvo do estudo compreendeu os cidadãos estrangeiros provenientes dos países-membros da CEDEAO no período de 2006 a 2010, sendo, dentre estes, mais representativos os da Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria, em termos de residência em Cabo Verde, segundo os dados da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras. 348 3 - PROCEDIMENTO 3.1 - Determinação da Amostra Recorreu-se a 180 imigrantes, 60 de cada um dos países objecto do presente estudo (GNS) nos quais estavam incluídos 20 presos na CCP. Assim, a amostra envolveu tanto os imigrantes desses países, em situação de liberdade, como também os reclusos. A amostra constitui 5,2% do total de imigrantes desses países residentes em Cabo Verde, ou seja, 3 475, no período do estudo. 3.2 - Categorização dos Participantes Reclusos Com base nos dados dos imigrantes regulares no país, deu-se destaque aos que constituem a população prisional da CCP, por tipo de crimes bem como as penas acessórias de expulsão judicial, tendo como referências a nacionalidade, o sexo e a faixa etária dos mesmos. Tamém deu-se destaque, no seio dos imigrantes irregulares, ao número de condenados por prática de crimes e aprisionados na Cadeia referida, bem como às medidas de expulsão judicial e às expulsões administrativas por entrada e permanência irregular, atendendo às referências: tipo de crime, nacionalidade, sexo e faixa etária. 3.3 - Modelo para Processamento de Dados dos Reclusos O Director da Cadeia disponibilizou a sala de reunião do estabelecimento para a realização de actividades relacionadas com o estudo. O pessoal da Secretaria da Cadeia permitiu o acesso aos computadores para a extracção dos ficheiros com parte dos dados dos reclusos. Em conjunto, acordou-se um modelo único para o processamento dos dados. Feito o modelo, recorreu-se às pastas com as fichas dos reclusos e, uma por uma, foram verificadas, inseridas e completadas as informações em falta no ficheiro informático adoptado para os respectivos dados. Por motivos profissionais, não eram possíveis as deslocações em dias úteis para a CCP, o que então ocorreu aos sábados, domingos e dias feriados. O início 349 dos trabalhos geralmente era entre 8H30 e 9H00 e o final variava entre 16H00 e 17H00. 3.4 - Escolha e Organização do Tipo de Entrevista Por ser uma das formas mais utilizadas na recolha de dados subjectivos, optou-se para o presente trabalho pelo recurso às entrevistas estruturadas, por permitirem a verificação e o aprofundamento de aspectos importantes e elucidadores da realidade socioeconómica e cultural desses imigrantes em Cabo Verde. Para as entrevistas utilizou-se um questionário composto por 32 perguntas, dividido em quatro partes distintas e interligadas entre si (ver anexo 1). Os questionários foram preparados tendo em conta o idioma de nacionalidade dos participantes do estudo: português para os imigrantes da Guiné-Bissau, francês para os do Senegal e inglês para os da Nigéria. A primeira parte do questionário foi composta por 10 perguntas sobre os dados pessoais de cada entrevistado, com a preocuapção também de que caracterizassem o seu perfil socioeconómico. A segunda parte era relativa ao processo de chegada do estrangeiro a Cabo Verde, com cinco questões relacionadas com o período de permanência e os motivos que estiveram presentes na escolha de Cabo Verde como país de imigração. A terceira parte, com sete questões, reflectia as preocupações sociais dos imigrantes em Cabo Verde, para a verificação do seu grau de integração na sociedade de acolhimento. As questões referiam-se ao nível de satisfação, inter-relacionamento com os cabo-verdianos e os demais estrangeiros, e existência ou não de benefícios de protecção e segurança social no país. A última parte, com 10 questões, dizia respeito a eventuais conflitos, bem como suas causas, envolvendo o relacionamento dos imigrantes com as autoridades policiais, o trato social com os cabo-verdianos e as possíveis situações conducentes a actos discriminatórios, etc. 3.5 - Estratégia de Recolha de Dados Para a realização das entrevistas, contou-se com a colaboração directa de um imigrante da Serra Leoa, professor universitário em exercício na ilha de Santiago, 350 bem integrado na realidade de Cabo Verde. Houve ainda valiosas colaborações de estudantes universitários tanto nacionais como estrangeiros. Essa estratégia para as entrevistas mostrou-se adequada porque permitiu uma maior liberdade das pessoas emitirem respostas, em razão do anonimato, evitando, assim, a presença do autor como entrevistador, pelo facto de este ser afeto à Polícia Nacional, com funções na DEF ao longo da carreira. 3.6 - Medida da Correlação Linear de Pearson Aplicou-se um instrumento estatístico para verificar a eventual existência e o grau de correlação linear – correlação de Pearson (r) – entre o aumento da imigração de cidadãos da GNS e aumento da criminalidade em Cabo Verde, no período delimitado para o estudo. Segundo Ramos, Almeida e Arauújo (2013, p. 24), numa obra sobre controle estastítico, frequentemente procura-se, em trabalhos científicos, verificar se existe relação entre duas ou mais variáveis, por exemplo, entre o peso e a idade das pessoas, ou entre o consumo das famílias e sua renda. Nestes casos, a verificação da existência e do grau de relação entre variáveis é o objecto de estudo da chamada correlação linear de Pearson (r). O instrumento de medida da correlação linear é dado pelo coeficiente de correlação de Pearson. E pode ser calculado a partir da fórmula a seguir: n (xi x )( yi y) i =1 r= n (xi x) 2 i =1 n ( yi y) 2 i =1 ou n n n xi y i i =1 r= 2 i n x i =1 i =1 2 n n xi i =1 n xi yi i =1 n y i =1 2 n n 2 i yi i =1 351 onde x e y são as médias de X e Y, respectivamente. De acordo com Ramos et al. (2013, p. 24), este coeficiente mede o grau de relação entre as variáveis em termos quantitativos. E seu valor varia na faixa de -1 ≤ r ≤ +1, onde r = +1 significa que os pontos desenhados no diagrama de dispersão estão perfeitamente alinhados numa recta que passa por eles com inclinação positiva. O valor de r = 0 significa que não existe grau de relação linear entre as variáveis analisadas e r = -1 indica que a relação é negativa. A escala de valores entre as variáveis X e Y, mostrada na Figura 1 abaixo, ilustram quando não há correlação entre elas, quando existe, e em que grau. Figura 1 – Escala de Correlação entre as Variáveis X e Y. i) Valores de r acima de 0,90 ou abaixo de -0,90 indicam uma forte correlação; ii) Valores de r que vão de 0,50 a 0,90 ou de -0,50 a -0,90, indicam correlação moderada; iii) Valores de r de 0 a 0,50 e de -0,50 a 0,00, indicam fraca correlação. O procedimento de recolha dos dados, conforme já descrito, determinou a obtenção dos resultados do estudo, apresentados e discutidos no próximo Capítulo. 352 CAPÍTULO III RESULTADOS E DISCUSSÃO 1 - INVESTIGAÇÃO DOCUMENTAL PRELIMINAR De acordo com o Censo realizado em 2010 pelo Instituto Nacional de Estatística, observou-se que dos 491 683 residentes, 14 373 são estrangeiros (2,9% da população). Destes, 10 306 são africanos (71,7%). Os efectivos da CEDEAO são um total de 8 783 (61,1%). Quanto às nacionalidades, a Guiné-Bissau com 5 544 efectivos é a que apresenta maior percentual (28,6%), seguida do Senegal com 1 634 (11,4%), Nigéria com 740 (5,1%) e Guiné-Conacri com 456 (3,2%). Os dados actuais da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (DEF) até Dezembro de 2010 apontam o número de 6 246 cidadãos da CEDEAO residentes legalmente em Cabo Verde, sendo 62,56% portadores de Autorização de Residência, 36,13% de Vistos Ordinários e 1,31% de Vistos de Residência (Figura 2). Os imigrantes da Guiné-Bissau foram os primeiros a chegar a Cabo Verde após a independência em 1975, o que, segundo Delgado (2011), tem a ver com o nível de desenvolvimento que gradualmente se ia verificando no decurso dos anos e consequentemente o aumento do PIB, em detrimento dos outros países vizinhos da África Ocidental, marcados por fragilidades económicas e instabilidades sociais, políticos e religiosas. Mientras tanto, y después de la independencia en 1975, el país se desarrolló, consiguiendo aumentar considerablemente su Producto Interior Bruto y mejorar sus índices de desarrollo humano. Una de las consecuencias de esta evolución fue la llegada de una oleada de inmigración de países vecinos de África Occidental, en especial de Guinea-Bissau y de otros países marcados por economías deprimidas e inestabilidad política crónica, así como procedente de la antigua potencia colonizadora, Portugal (Delgado, 2011, p. 123). 353 Figura 2 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes em Cabo Verde por tipo de documento de residência (Ano 2010). A Figura 3 apresenta a quantidade de autorizações de residência concedidas aos cidadãos dos três países mais representativos da CEDEAO em Cabo Verde nos anos de 2006 a 2010. Nela, verifica-se que a Guiné-Bissau é o país cujos cidadãos obtiveram maior quantidade de autorizações concedidas, ou seja, 917, durante o período de 2006 a 2010, seguida de Senegal, com 637. A lei cabo-verdiana sobre os estrangeiros estabelece um conjunto de requisitos legais para a obtenção da Autorização de Residência e de entre estes exige que os documentos emitidos nos países de que o estrangeiro é nacional, sejam devidamente traduzidos em português, língua oficial em Cabo Verde. Daí, o factor linguístico beneficiar os cidadãos estrangeiros da Guiné-Bissau e a justificar a sua maior representatividade em termos de imigrantes em Cabo Verde, apesar de Gomes (2010) ter apontado ineficácia das autoridades cabo-verdianas, devidas a razões burocráticas, na dificuldade de obtenção da legalização. Outro factor a beneficiar esses cidadãos é ainda a existência de graus de parentesco não muito distante entre os cidadãos dos dois países que remontam à época dos descobrimentos. Em relação aos detentores de Vistos de Residência, os três países já referidos ocupam as seguintes posições: Senegal, Guiné-Bissau e Nigéria, com, respectivamente, 68,7%, 12% e 9,6% do total. Dos detentores de Visto Ordinário, os mesmos países continuam na linha de frente com a seguinte ordem: Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria, com, respectivamente, 42,3%, 38,9% e 11,6%. 354 A ordem do percentual de residência conseguida através deste trabalho, relacionada com esses países, é confirmada por Graça (2007). Os guineenses, senegaleses e nigerianos são as comunidades estrangeiras do continente africano com maior expressão numérica e, inclusive, constituem quase a metade do total dos estrangeiros legais a residirem no país. Figura 3 - Quantidade de autorizações de residência concedida aos três países mais representativos da CEDEAO em Cabo Verde nos anos de 2006 a 2010. A ilha de Santiago é a que conta com a maior percentual dos cidadãos dos países da CEDEAO legalmente residentes. Representam 85,94% do total, que corresponde a 3 412 residentes, conforme a Figura 4. Figura 4 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes em Cabo Verde (2010). 355 De entre os residentes na ilha de Santiago, ao nível dos Concelhos, é a Praia que alberga 87,16% do total, com 2 974 portadores de Autorização de Residência (Figura 5). A ordem dos três países da CEDEAO mais representativos ao nível nacional em termos de portadores de autorização de residência mantém-se na capital do país; isto é, Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria, com, respectivamente, 40,32%, 27,24% e 22,49% do total dos residentes. Figura 5 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes na ilha de Santiago (2010). O sexo masculino é o mais representativo no âmbito do Concelho da Praia, com os homens a representarem 88,4% e as mulheres 11,6% do total. Essa percentagem feminina mantém-se igual no âmbito nacional, do conjunto dos cidadãos residentes no país, subindo para 24,3% em relação a todas as nacionalidades residentes em Cabo Verde. Na Nigéria, as mulheres representam 47,4% dos imigrantes, segundo os dados do Observatório ACP (2010). Considerando os três países da CEDEAO mais representativos no Concelho da Praia, em relação ao sexo, o Senegal conta com a maior percentual de mulheres, isto é, 12%, seguido de Guiné-Bissau, com 11,7%, e por fim a Nigéria, com 11,1%. No âmbito da sub-região da África Ocidental, as mulheres representam 46,5% de todos os imigrantes, tendo-se verificado aumentos ligeiros em termos absolutos e relativos nos últimos 10 anos, segundo os dados do Observatório ACP (2010). Entretanto, o número de mulheres migrantes permanece abaixo do valor global de 49%, potencialmente indicando factores sociais e culturais que favorecem a migração masculina. No que diz respeito à distribuição por sexo, realça o documento que a proporção de mulheres imigrantes altamente qualificadas de países da África Ocidental aumentou 180% entre 1990 e 2000, fenómeno que pode ser explicado em parte por um aumento rápido das taxas de escolarização para as mulheres em relação aos homens. Além disso, aponta que a demanda por mão-de-obra feminina nos sectores de cuidados, a reunificação familiar e as mudanças culturais e sociais são susceptíveis de ter permitido uma maior percentagem de mulheres a deixar o seu país de origem. Quanto ao movimento migratório de Cabo Verde pelo mundo, segundo Grassi e Évora (2007), verificou-se um aumento da feminização nos últimos anos, representando as mulheres na diáspora um número crescente dos imigrados. O caso da Itália é considerado por Monteiro (1997) um exemplo característico e fundamental em que há a presença de uma componente exclusivamente feminina, atingindo valores à volta dos 91,5%. Esses dados são corroborados por Castells e Miller 1993. Para eles, no que concerne à feminização da migração, desde os anos de 1960 as mulheres têm desempenhado um papel importante na migração laboral. Apontam como exemplo o movimento das mulheres migrantes cabo-verdianas para a Itália. Lobo (2012) distingue os movimentos migratórios em relação ao género, apesar de acreditar que o movimento de mulheres pode apresentar as mesmas lógicas e características do movimento masculino. A diferença consiste no facto de serem as mulheres, segundo a autora, mais fiéis do que os homens no envio de remessas, ou seja, acima de 50% do que ganham, para as famílias nos países de origem. Dai que muitos países incentivam as suas mulheres a emigrarem em busca de trabalho devido ao impacto significativo das remessas não apenas nos familiares em directo, mas também com influência directa do PIB nacional, podendo assumir valores acima dos 10%, segundo Tolentino, Rocha e Tolentino (2010). Monteiro (1997) apresenta valores das remessas dos imigrantes cabo-verdia357 nos em Itália para Cabo Verde, como sendo um total de dois mil e duzentos milhões de ECV, do ano 1991 a 1996, o que se deveu, segundo o autor, ao facto de se situar a imigração feminina cabo-verdiana naquele país em 91,5%. Isso “dá a dimensão do contributo dessa comunidade essencialmente feminina na edificação e consolidação económica do país” (p. 338). 1.1 - Estrangeiros Expulsos Em Cabo Verde, a imigração irregular não constitui ilícito criminal, sendo os imigrantes detectados em tal situação apenas submetidos a uma detenção administrativa e reencaminhados para o país de origem. A OIM (2009), em similitude com a posição de Cabo Verde, confirma não ser a imigração irregular considerada crime na maioria dos países. Assim, de acordo com os dados da Divisão de Estrangeiros, ver Tabela 1, foram expulsos de Cabo Verde nos anos de 2006 a 2010, 1 239 cidadãos estrangeiros, sendo 195 por processos administrativos e 44 por decisão judicial. Notase que em igual período Portugal efectuou 3 918 expulsões, dos quais 938 por decisão Judicial e 2 980 por processos administrativos. Segundo Guardiola (2008), os estrangeiros em África, legais ou ilegais, têm sido ciclicamente vítimas de violência, massacre e expulsões em massa em vários países. No caso concreto dos países do grupo GNS, Guardiola aponta as expulsões efectuadas pelo Gana, em 1969 como sendo de cerca de 250 000 imigrantes de entre os quais os cidadãos da Nigéria. A Nigéria expulsou de 1983 a 1985 dois milhões de imigrantes de nacionalidade ganesa. Em 1986 foram expulsos 160 000 mauritanos do Senegal e 70 000 senegaleses da Mauritânia, por causa de confrontos étnicos entre os dois países. Durante a guerra civil, ocorrida na Costa do Marfim de 1999 a 2008, muitos senegaleses foram alvos de perseguição e consequentemente expulsos daquele país. 358 Tabela 1 - Quantidade e percentual de cidadãos estrangeiros da GNS e de outros países da CEDEAO expulsos de Cabo Verde, nos anos de 2006 a 2010. Ano Nacionalidade 2006 2007 2008 2009 2010 Total Percentual Guiné-Bissau 3 5 28 3 6 45 18,8 Senegal 2 9 34 26 5 76 31,8 Nigéria 1 12 40 19 15 87 36,4 Outros países 3 6 14 5 3 31 13,0 Total 9 32 116 53 29 239 100,0 Cabo Verde não exige visto de entrada aos cidadãos da CEDEAO, mas estes terão que provar, à entrada, possuírem os meios de subsistência necessários para o período de permanência desejada bem como outros definidos pela legislação interna, no que se refere ao fluxo migratório de estrangeiros. Caso tal não se verifique, é ordenada a expulsão do país por razões administrativas ou judiciais. Como se pode verificar na Figura 6, a Nigéria é o país de nacionalidade da maior parte dos estrangeiros expulsos de Cabo Verde no período de 2006 a 2010, com 36,40%, seguido de Senegal, com 31,80%. Casos de expulsões de cidadãos da GNS têm-se verificado um pouco por todo o mundo; assim, em apenas dois anos, 2006 e 2007, segundo a OIM (2009), 9 246 cidadãos de Senegal foram expulsos dos países da União Europeia em situação de irregularidade, com as percentagens maiores provenientes da Espanha e Itália. 359 Figura 6 - Percentual de estrangeiros da GNS e outros países da CEDEAO expulsos de Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, por país. A Figura 7 indica que, em função da situação da irregularidade, o Senegal é o país de origem da maior parte de pessoas expulsas, com 38,74%. Verifica-se que a Nigéria se destaca como o país de origem de pessoas expulsas, em decorrência do tráfico de drogas e falsificação de documentos, abrangendo 73,68% e 75%, respectivamente. Em Cabo Verde, o senso comum avalia que, em relação aos cidadãos da GNS, os senegaleses são considerados pacíficos, pelo que se vê na vida quotidiana na cidade da Praia, a maioria desses imigrantes a se dedicar ao professorado tanto nos estabelecimentos públicos como privados no âmbito do secundário e universitário; ao comércio informal, sobretudo ambulante, de artigos diversos; aos serviços de alfaiate, sobretudo no grande mercado de sucupira e nos subúrbios da capital; aos serviços de sapateiro. Entretanto, é-lhes atribuída a responsabilidade dos crimes de receptação de metais preciosos, sobretudo ouro, e ainda a busca intensa desse metal directamente nas pessoas que se deparam nas ruas e nos domicílios. Os cidadãos da Guiné-Bissau são tidos também por pacíficos, ocupando-se nas obras de construção civil, como trabalhadores, e ainda nos serviços de vigilância das obras em construção, bem como nos edifícios residenciais e comerciais 360 na cidade da Praia. Gomes (2010) confirma que a maior parte dos empregadores em Cabo Verde manifesta uma visível preferência pelos trabalhadores da Guiné-Bissau, não apenas por afinidades históricas, como também pela dinâmica laboral e espirito de entrega desses trabalhadores. Tal pacificidade não é vista nos cidadãos da Nigéria, a quem são atribuídos os crimes relacionados com substâncias psicotrópicas e estupefacientes, e burla. A maioria das vítimas de burla confessa ter sido enganada pelos nigerianos, sobretudo, na multiplicação de notas de dinheiro nacional e de dólares americanos. No quotidiano da vida desses cidadãos na capital do país, verifica-se que se dedicam, sobretudo, ao comércio de vendas de peças de viatura e na reparação de aparelhos electrodomésticos. Por outro, são os próprios cidadãos nigerianos a aceitarem o facto de representarem a nacionalidade que mais crimes comete em Cabo Verde (Figura 33). Das 81 respostas às entrevistas, 18 foram dos próprios cidadãos da Nigéria, 32 e 31 dos cidadãos da Guiné-Bissau e Senegal, respectivamente. Motivo de Expulsão Irregular 20,94 Tráfico Drogas 7,89 Falsificacão de Docum entos 29,32 38,74 73,68 75,00 10,99 5,26 13,16 25,00 Guiné Bissau Nigéria Senegal Burla Outros 0,00 100,00 66,67 Restantes 33,33 50,00 100,00 Percentual Figura 7 - Percentual de estrangeiros da GNS e de outros países da CEDEAO expulsos de Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, por motivo de expulsão. 361 1.2 - VISÃO GERAL DO CRIME NO CONCELHO E NA CADEIA CENTRAL DA PRAIA Do total das acusações efectuadas pelo Tribunal da Comarca de 1ª Classe na Capital do país, nos anos 2006 a 2010, num total de 3 560, como indicado na Tabela 2, sobressaem os crimes contra a propriedade (1 753), seguidos das ofensas corporais (505) e em terceiro plano o crime de tráficos de estupefacientes (385). Em Portugal, segundo Guia (2008), num total de 453 cidadãos cabo-verdianos imigrantes presos naquele país em 2005, verifica-se que o principal crime é relativo ao tráfico e outros crimes relacionados com drogas em número de 314, o que corresponde a 69,3%. A população prisional em Portugal até 31 de Dezembro do ano 2010, segundo DGSP (2010), era de 11 613 pessoas tanto portugueses como estrangeiras. Cabo Verde aparece com o número de 713 presos e os do grupo GNS, a GuinéBissau com 227 e a Nigéria com 39, não aparecendo o Senegal na lista dos presos. Tabela 2 - Movimento Processual na Comarca de 1ª Classe da Praia (Acusados) - Ano 2006 a 2010. Anos Espécie de crimes Total 2006 2007 2008 2009 2010 Ofensas corporais 92 125 72 72 144 505 Homicídios 36 38 30 24 50 174 Crimes contra propriedade 261 380 431 311 370 1.753 Crimes sexuais 35 43 25 15 40 158 Crimes contra a honra 12 27 10 5 6 60 1 5 1 3 69 79 16 37 19 24 23 119 Falsificação 23 21 6 4 2 56 Estupefacientes 71 85 70 73 95 385 Crimes contra a ordem pública Danos (acidente de viação) 362 Diversos 52 112 63 23 8 258 Total 599 873 727 554 807 3.560 Fonte: Relatórios de Actividades do Ministério Público Procuradoria Geral da República A seguir, apresenta-se uma visão geral do crime na CCP. Deu entrada no estabelecimento prisional da CCP na capital do país 829 cidadãos condenados judicialmente, sendo o maior percentual respeitante aos cidadãos de Cabo Verde com 87,82% do total, logo seguido dos naturais da Nigéria com 5,91%, conforme indicado na Tabela 3. Tabela 3 - População Prisional na Cadeia de Central da Praia - Ano 2006 a 2010. País Guiné Conakry Mali Serra Leoa Gana Senegal Guiné-Bissau Restantes Países Nigéria Cabo Verde CEDEAO Total 2006 2007 2008 1 Anos 2009 2010 Total 1 2 4 4 72 6 82 2 5 11 120 13 138 1 2 3 1 8 5 180 13 201 3 5 8 175 11 191 2 4 8 21 181 28 217 1 1 1 2 5 12 30 49 728 71 829 Percentual 0,12 0,12 0,12 0,24 0,60 1,45 3,62 5,91 87,82 100,00 Fonte: Estabelecimento Prisional da Cadeia central da Praia A Figura 8 apresenta a quantidade de reclusos da GNS e de Cabo Verde na CCP. Houve um total de 794 presos, destacando-se os reclusos de Cabo Verde (728), em seguida os da Nigéria (49), da Guiné-Bissau (12) e do Senegal (5). 363 Figura 8 - Quantidade de Reclusos da GNS e de Cabo Verde na Cadeia Central da Praia, no período de 2006 a 2010. Conforme se pode constatar na Figura 9, no período de 2006 a 2010, houve um aumento de cerca de 250% de condenados que foram colocados na CCP. De 82 em 2006, passou a haver 218 presos em 2010, tendo-se verificado um ligeiro decréscimo do ano 2008 para 2009, na ordem dos 5,5%. Figura 9 - Evolução geral dos reclusos na Cadeia Central da Praia, no período de 2006 a 2010 364 A Tabela 4 apresenta as condenações por tipo de crime dos reclusos na CCP no período de 2006 a 2010. Pode-se verificar que o percentual maior das condenações foi de 87,82 e se refere aos cidadãos de Cabo Verde, logo seguido dos cidadãos da Nigéria, com 5,91%. De realçar que os crimes em que mais se destaca o envolvimento da GNS no período em referência é o tráfico de drogas em que houve 50 condenações, sendo 39 casos referentes aos cidadãos da Nigéria, nove casos aos cidadãos da Guiné-Bissau e apenas dois casos aos naturais de Senegal. Tabela 4 - Reclusos Por Tipo de Crime na Cadeia Central da Praia - Anos 2006 a 2010. País Cabo Verde BU TD CS FA FU HO OF RO OU Total Percentual 5 111 79 5 32 176 48 233 39 728 87,82 2 0,24 12 1,45 Gana 2 GuinéBissau 9 Guiné Conakry 1 1 0,12 Mali 1 1 0,12 Nigéria 39 49 5,91 Senegal 2 5 0,60 1 0,12 3,62 1 1 1 1 1 3 2 1 Serra Leoa 1 Outros Países 1 15 5 GNS 0 50 2 1 1 4 Total 7 180 86 6 33 183 1 3 1 3 5 1 30 2 3 3 66 50 241 43 829 100 Legenda: BU – Burla; TD – Tráfico de drogas; CS – Crimes sexuais; FA – Falsificação; FU – Furto; 365 HO – Homicídio; OF – Ofensas Corporais; RO – Roubo; OU – Outros. Como monstra a Tabela 5, a maioria do total dos reclusos na cadeia de central da Praia no período em referência é do sexo masculino, repesentando 94,45%. As reclusas representam apenas 5,55%. A mesma situação se verifica para o caso das reclusas da GNS. Tabela 5 - Reclusos por sexo na Cadeia Central da Praia - Ano 2006 a 2010. Países Cabo Verde Sexo M F 690 38 Gana 2 Guiné-Bissau 10 Guiné Conakry 1 Mali Total 728 2 2 12 1 1 1 1 49 Nigéria 48 Senegal 5 5 Serra Leoa 1 1 Outros países 26 4 30 GNS 63 3 66 Total Percentual 783 46 829 94,45 5,55 100 Verifica-se na Tabela 6 que do total de 829 reclusos é na faixa etária dos 22 aos 35 anos que se situam os reclusos das diversas nacionalidades que se encontram na CCP com um percentual de 63,09; em seguida, a faixa etária dos 16 aos 21 anos com um percentual de 16,77. E ainda se pode verificar que o total das reclusas, em número de 46, corresponde a 5,55% do total da população prisional no período referido. 366 Tabela 6 - Reclusos por faixa etária na Cadeia Central da Praia - Ano 2006 a 2010. Faixa Etária Países A M Cabo Verde CEDEAO Outros Países GNS Total Geral Total p/faixa Percentual B F 136 2 1 1 137 139 16,77 2 M 422 53 19 50 494 523 63,09 F 24 2 3 2 29 C M F 84 7 12 1 5 1 11 101 9 110 13,27 D M 48 1 2 2 51 F 5 1 6 57 6,88 Legenda: A (16 a 21 anos); B (22 a 35 anos); C (36 a 50 anos); D (> 50 anos). 2 - O PERFIL DOS IMIGRANTES DA GNS 2.1 - Dados Pessoais A Figura 10 revela que os entrevistados dos três países considerados no estudo (GNS) são na maioria masculinos (percentual médio de 81%), contra uma minoria de mulheres (percentual médio de 19%). Esses resultados, pelo menos no que se refere a Guiné-Bissau, são confirmados pelo trabalho de Gomes21 (2010), o qual mostra que a maior parte dos imigrantes guineenses que procuram Cabo Verde é jovem do sexo masculino com uma representação de 78,8%. No âmbito mundial, a Comissão Internacional sobre as Migrações Internacionais, 2005, afirma que 48,6% dos migrantes internacionais são mulheres e que cerca de 51% delas vivem em países desenvolvidos, sendo os restantes 49% localizados em países em desenvolvimento. 21. Inquérito realizado no mês de Outubro de 2009, na cidade da Praia a 80 imigrantes da Guiné-Bissau, sendo 63 homens e 17 mulheres. 367 Figura 10 – O género dos entrevistados dos três países em percentual. Na Figura 11, apresenta-se a distribuição da amostra dos entrevistados por faixa etária. Ao examinar-se a Figura, verifica-se uma predominância de indivíduos entre os 25 e 34 anos de idade, com uma representação de 50%, seguida de indivíduos entre os 35 e 44 anos, correspondendo a 30,36%. O mesmo não se verifica, por exemplo, nos países da União Europeia (UE), em 2010. Segundo os dados oficiais da Eurostat22 (2011), a mediana da idade da população dos nacionais de países terceiros residentes na UE era de 34,4 anos. Figura 11 - Percentual dos entrevistados por faixa etária. 22. O Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat) é a organização estatística da Comissão Europeia que produz dados estatísticos para a União Europeia e promove a harmonização dos métodos estatísticos entre os estados-membros. 368 Na Figura 12 distribuem-se os entrevistados por faixas de renda familiar. Verifica-se, pois, que é na faixa dos 10 000 escudos a 25 000 escudos (ECV) que se situa a renda familiar mais elevada, ou seja, de 49,33%, dos entrevistados. A remuneração mínima na Administração Pública em Cabo Verde, segundo a UNTC-CS (2009) é de 13 745 escudos e o salário médio líquido estimado em 32 300 escudos. Não há nenhum salário mínimo para os trabalhadores do sector privado, havendo trabalhadores que ganham 6 000 escudos por mês, como é o caso dos empregados das lojas chinesas (A Semana, 2010). O Minimum-Wage.org23 (2009) define a taxa de salário mínimo de Senegal em 209 francos CFA por hora, nacionalmente a todos os funcionários (públicos e privados). A multiplicar a quantia de 209 por 8 horas normais de serviço diário obter-se-á a quantia de 1 672 e este valor multiplicado por 30 dá 50 160 francos CFA, o equivalente a 8 700 escudos cabo-verdianos. A taxa de salário mínimo estabelecida pela Nigéria é de 18 000 nairas por mês, o equivalente a 9 000 escudos cabo-verdianos, mas nem sempre obedecida por algumas empresas do sector privado. Em relação à Guiné-Bissau não há definição de salário mínimo. Figura 12 - Percentual de faixa da renda familiar. 23. Mínimum-Wage.org é um site de serviço público gerido e mantido por Marathon Studios Enterprises cuja missão é fornecer informações sobre o salário mínimo a nível mundial. 369 Os entrevistados são, na maioria, solteiros com uma representação percentual de 60,12% (Figura 13). Os casados representam 31,79%. Esses resultados confirmam os de Gomes (2010), em relação aos imigrantes guineenses residentes na Praia. Demonstram que 81,3% desses imigrantes são solteiros e 16,3% casados, num universo de 80 inquiridos. A CIMI24 (2010) afirma que se, aparentemente, o grosso dos imigrantes em Cabo Verde é constituído por homens solteiros, é previsível que muitos desses imigrantes venham a fixar residência definitiva em Cabo Verde, constituindo família ou fazendo trazer cônjuges. Efectivamente, no universo dos entrevistados, os 60,12% correspondem a 88 indivíduos do sexo masculino que são solteiros e 16 do sexo feminino, verificando-se na prática alguns casos desses imigrantes a coabitarem com as mulheres cabo-verdianas e adquirindo filhos em regime de união de facto. O relatório final da CIMI (2010) confirma que, ao nível da imigração em Cabo Verde, as imigrantes do sexo feminino alegam terem vindo ao país a pedido do esposo que aí se encontrava e que uma boa parte dos imigrantes do sexo masculino casados tem esposa e filhos a viverem no país de origem. Figura 13 - Percentual de entrevistados por estado civil. 24. Comissão Interministerial para o estudo e proposição das bases da política de imigração. 370 Analisando o nível de escolaridade dos entrevistados (Figura 14), constata-se uma maior percentual de imigrantes com o ensino secundário, de 64,56% (soma dos sete a doze anos de escolaridade), seguido do ensino primário com 20,26% (soma dos quatro a sete anos de escolaridade) e nível universitário com 15,18% (soma entre a frequência e o grau universitário). Costa (2009) afirma que um fraco nível de escolaridade dos imigrantes condiciona a sua integração profissional e social nos países de acolhimento, isto por apresentarem fracas experiências profissionais e sociais, o que não facilita processos de mobilidade profissional e social ascendente. Daí ser o nível da escolaridade um elemento determinante para a integração no mercado de trabalho, mas também a qualidade da integração social e económica. Figura 14 - Percentual de entrevistados por grau de escolaridade. O sector terciário, como mostra a Figura 15, é o que apresenta maior percentual de profissão exercida em Cabo Verde pelos entrevistados (58,89), seguido do sector secundário com 30%. Do total de entrevistados, 11,11% encontravam-se presos da Cadeia Central da Praia. Dos 3 938 cidadãos estrangeiros da CEDEAO residentes em Cabo Verde até Dezembro do ano 2010, segundo os dados da DEF, 3 353 deles enquadram-se no sector terciário, abrangendo a área de comércio com 2 211 indivíduos, 562 no sector secundário, maioritariamente na área de construção civil e como vigilantes e, apenas 23 no sector primário. 371 Figura 15 - Percentual de entrevistados por sector de actividade. Segundo Gomes (2010), houve um aumento acelerado dos imigrantes guineenses em Cabo Verde, e sendo na sua maioria jovens dedicando-se à prática do comércio informal e como mão-de-obra acessível na construção civil. Acrescenta ainda que as mulheres que vêm ao encontro dos maridos se dedicam normalmente ao comércio informal. Furtado (2011), relativamente ao enquadramento dos cidadãos da GNS em Cabo Verde, diz que o sector da construção civil é preenchido, sobretudo, pelos guineenses. Os senegaleses estão representados no comércio (artesanato). Os nigerianos estão também no comércio (fornecimento e reparações de diversos aparelhos electrónicos). A INE (2009) revela que aproximadamente de 32 mil pessoas em Cabo Verde trabalham no sector informal, com 24 060 Unidades de Produção Informal (UPI) em que mais de 60% se encontram localizadas na ilha de Santiago. É a própria INE a reconhecer que se o sector informal é considerado uma bola de oxigénio para o emprego, tal não é o caso no que diz respeito à sua contribuição nas receitas do Estado. Gomes (2009) considera a economia informal como sinónima de economia subterrânea, um fenómeno que não é exclusivo dos países subdesenvolvidos, mas que tende a ser uma espécie de regra, consubstanciada em inúmeras práticas que englobam tudo o que é produzido nos sectores primário, secundário ou terciário, sem conhecimento da estrutura governamental e impossibilitando a arrecadação 372 de impostos e os encargos sociais dos trabalhadores. De notar que 49,72 e 17,71% dos entrevistados no presente trabalho, Figura 31, declararam não beneficiarem da segurança social em Cabo Verde e o desejo de fazerem parte dela, presumindo-se, por conseguinte, estarem integrados no sector informal da economia. O mesmo autor refere ainda que a economia informal em Cabo Verde teve crescimento a um ritmo acelerado com a chegada dos imigrantes chineses e africanos, espalhados por todos os cantos do país e, sobretudo, nos últimos, como vendedores ambulantes. O comércio, segundo a UNTC-CS (2010), mantém uma posição importante em termos económicos, apesar de já não ser hoje o principal sector de contribuição para o produto interno bruto (PIB) e para o emprego. É que a maioria dos imigrantes da CEDEAO é composta de praticantes do comércio informal, via essa que permite integrarem-se na lista dos principais beneficiários da fuga ao fisco. É visível na capital do país um grande número de cidadãos da CEDEAO a deambular pelas ruas do Plateau e em todos os subúrbios da capital na venda de produtos diversos. A construção civil é predominante tanto no caso dos entrevistados como no caso dos estrangeiros residentes da CEDEAO em Cabo Verde até Dezembro do ano 2010. A construção civil, segundo a UNTC-CS (2010), tem uma participação económica idêntica à do comércio, assumindo-se também como um importante setor empregador. Contudo, é um sector caracterizado por baixos níveis de habilitações de uma mão-de-obra maioritariamente masculina e com uma taxa de assalariamento relativamente baixa. Das informações obtidas da Empresa de Construção Civil Maltauro Spa – Sucursal de Cabo Verde, soube-se que o salário mensal dos imigrantes varia consoante a especialidade: um engenheiro recebe até 400 000 escudos; um mecânico, até 130 000 escudos; um electricista e servente, até 70 000 escudos; um ajudante serralheiro, até 50 000 escudos; um pedreiro, até 30 000 escudos; um servente de 22 000 até 25 000 escudos e um guarda, até 10 000 escudos. A maioria dos entrevistados disse professar a religião cristã, indicada pelo percentual de 58,33%, sendo que os restantes 41,67% informaram professar a religião muçulmana (Figura 16). Os dados ainda apontam que todos os cidadãos nigerianos entrevistados, residentes em Cabo Verde, expressaram professar a fé cristã. Dos cidadãos de Senegal, 56 disseram que são muçulmanos e quatro cris373 tãos, e dos cidadãos da Guiné-Bissau, 39 informaram ser cristãos e 21 muçulmanos. No perfil dos inquiridos no estudo de Gomes (2010), na análise da amostra num universo de 80 guineenses, 51,3% alegaram professar a fé cristã, indo ao encontro no percentual conseguido no presente estudo. Figura 16 - Percentual de respostas sobre a religião professada. Dos países da GNS, constatou-se que, no Senegal, a religião dominante é o Islã, representando 94% da população total, o que coincide com o percentual da amostra dos imigrantes senegaleses residentes em Cabo Verde. Na Nigéria, as duas religiões repartem-se em 50,5% para os muçulmanos, 48,2% para os cristãos e 1,3% de religiões tradicionais africanas. Na Guiné-Bissau nota-se uma grande diferença entre as duas religiões, 38% de muçulmanos e 8% de cristãos, sendo os restantes 54% considerados afectos às crenças tradicionais africanas (animismo). Apenas na Nigéria é que se verificam confrontos religiosos entre as duas maiores representações religiosas, sendo os muçulmanos a maioria a querer implantar a lei islâmica – Sharia, como principal fonte de legislação no país. No Senegal, segundo Martinuz (2012), há referências de um islamismo muito dialogante em relação aos cristãos e na Guiné-Bissau, apesar da pobreza a da instabilidade politica, existem óptimas relações entre cristãos e muçulmanos. Em Cabo Verde a liberdade de religião é garantida pela Constituição; “é inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, todos tendo o direito de, individual ou colectivamente, professar ou não uma religião, ter uma convicção religiosa da sua escolha, participar em actos de culto e livremente exprimir a sua fé e divulgar a sua doutrina ou convicção, contanto que isso não lese os direitos dos outros e o bem comum.” (Número 1 do artigo 48º da CRCV).25 As crenças religiosas existentes no país são respeitadas pelo Governo de Cabo 25. Constituição da Republica de Cabo Verde. 1ª Revisão Ordinária – 1999. Edição 2000. 374 Verde que, no seu Programa para a VII Legislatura 2006 – 2011, se compromete a dar uma especial atenção ao desenvolvimento do país e que, para o efeito, a capacitação dos recursos humanos interpela todos os sectores e áreas de actividade, de entre os quais, as confissões religiosas. “[...] Da parceria social, através do apoio às iniciativas privadas a todos os níveis […] o Governo considera imprescindível o papel de outros parceiros, nomeadamente as igrejas, as ONGs e as OSCs”26 (p. 40). Segundo Nogueira (2010), todos os que imigram levam consigo a sua cultura e acabam sempre por imprimir elementos dela aos locais de acolhimento. Referindo-se a Cabo Verde, indica a existência de mesquitas e as datas do Islão devidamente assinaladas. Carvalho (2010) alude a novos caminhos da religião em Cabo Verde, constituindo por vezes motivo de espanto. Refere-se, pois, a algumas das diversas igrejas que recentemente passaram a fazer parte do universo da cidade da Praia. A maioria dos cabo-verdianos professa a fé cristã e o senso comum conecta a imigração, sobretudo da CEDEAO, aos praticantes da fé muçulmana. Tal evidência assume contornos extremos na sociedade cabo-verdiana a ponto de se chegar a situações de se aceitar a existência de organizações islâmicas radicais em Cabo Verde. A Nação 2012 noticiou a existência de uma associação da comunidade islâmica (ACI) em Cabo Verde, já reconhecida pelo Estado de Cabo Verde, com cerca de cinco mil muçulmanos, todos imigrantes residentes no país, sendo na sua maioria cidadãos do Senegal e da Guiné-Bissau. Entretanto, a facção radical islâmica noticiada pelo mesmo semanário denominada “Tabligh Jamaat”, poderá representar um perigo para a ACI, uma vez que poderá inverter os valores islâmicos defendidos pela mesma e processar o recrutamento de novos seguidores que podem incluir não somente os imigrantes da costa africana, mas também a camada jovem cabo-verdiana. Para Monteiro (1997), a identidade religiosa ajuda no fortalecimento dos laços de solidariedade de todo o grupo imigrado de uma forma significativa e que a existência no seio de uma comunidade imigrada de serviços ou estruturas religiosas reflecte estabilidade ou continuidade do grupo étnico. Gomes (2010) refere a presença muçulmana dos guineenses no bairro de 26. ONGs – Organizações Não Governamentais. OSCs – Organizações da Sociedade Civil 375 Tira-Chapéu na Praia, sendo estes provenientes do interior da Guiné-Bissau, de regiões onde predomina a prática daquela religião. Refere ainda, que por força da natureza idiossincrática daquele segmento de imigrante, por sinal flexível e afável, as relações sociais entre os mesmos se operam de forma mais pacífica e conciliatória. A escolha do bairro teve por finalidade garantir o afastamento de grupos de imigrantes da mesma nacionalidade que professam a religião cristã, evitando dessa forma choques entre as duas religiões por práticas tradicionais de foro religioso e possíveis influências de uma sobre a outra. Para além do bairro Tira Chapéu, cita ainda mais duas localidades no Concelho da Praia onde há uma forte presença muçulmana, o de Safende e o de Achada Grande, que compreendem locais de cultos religiosos muçulmanos designados por mesquita, que é um espaço considerado vital para garantir a integração dos imigrantes dessa religião muçulmana na Praia. A CIMI (2010, p. 76) considera que “de uma forma geral a convivência religiosa (islamita e cristã) na vizinhança próxima de Cabo Verde é pacífica”. Receia, entretanto, que tal convivência possa vir a ser contaminada pelas rivalidades integristas de outras paragens. Observa-se, pois que essas paragens se circunscrevem mesmo ao seio da CEDEAO, envolvendo países como a Nigéria onde ocorrem violentos confrontos entre as duas religiões. Outras preocupações ainda observadas pela CIMI têm a ver com a possibilidade de estabelecimento de alianças entre a alta criminalidade organizada (terrorismo e tráficos) e consequentemente, de os movimentos extremistas aproximarem-se das comunidades muçulmanas já visíveis em Cabo Verde. A Figura 17 indica que a maioria dos cidadãos estrangeiros entrevistados reside no Concelho da Praia, ou seja, 77,78%. Os que residem em outros Concelhos da Ilha de Santiago constituem 13,33% e os que residem nas outras ilhas de Cabo Verde constituem 8,89%. Os 22,22% dos entrevistados residentes fora do Concelho da Praia justificam-se pelo facto de a maioria dos estrangeiros residentes em Cabo Verde estar integrada nas actividades do sector terciário, como se depreende da Figura 15, e, consequentemente, uma movimentação constante das pessoas quer pelo interior da ilha de Santiago quer para as outras ilhas em actividades de negócios. 376 Figura 17 - Percentual de respostas sobre local de residência. 2.2 - Processo de Chegada a Cabo Verde A análise da Figura 18 permite observar que os diversos motivos da imigração apresentados pelos cidadãos da GNS entrevistados. A procura de melhores condições de trabalho constitui 28,65% das respostas e dificuldades económicas nos países de origem foram apontadas por 28,65% dos entrevistados. O conhecimento do país e o reagrupamento familiar posicionaram-se com 13,48% e 12,36%, respectivamente. O conflito no país de origem foi considerado um motivo, com uma pequena percentagem de respostas, 5,06%. A necessidade de estudar foi referida com 3,93%. A OIM (2005) afirma que as pessoas geralmente decidem imigrar pela necessidade de fugir às limitações e inseguranças com que se deparam no seu país de origem e porque consideram que existem melhores condições e oportunidades noutro sítio. Cabo Verde, em termos estatísticos, apresenta melhores indicadores salariais em relação aos países da GNS. O salário mínimo do país, de 12 000 escudos, estabelecido pela Minimum Wage-org, é superior ao do Senegal que é de 8 700 escudos e ao da Nigéria que é de 9 000 escudos. Não há qualquer referência ao salário mínimo da Guiné-Bissau. Quanto ao Produto Interno Bruto (PIB per capita) relativo ao ano 2010, apenas o da Nigéria, 2 500 biliões de dólares, ultrapassa o de Cabo Verde que é de 1 938 biliões de dólares. O Senegal e a Guiné-Bissau apresentam os valores de 377 1 900 biliões de dólares e 1 100 biliões de dólares, respectivamente. Gomes (2010) sustenta que, para além das fragilidades de subsistência para os guineenses no seu país, a principal causa da imigração para Cabo Verde devese à procura de melhores condições de vida, provocadas pelas sucessivas instabilidades políticas e económicas na Guiné-Bissau, sobretudo na década de 1990. Trindade (1995), em relação às razões que levam uma pessoa a deixar o seu próprio país por tempo longo ou indeterminado, afirma que a emigração representa, em geral, uma experiência radical e frequentemente dolorosa, de rotura com o quotidiano conhecido, em favor de um espaço geográfico, social e culturalmente estranho; de um novo emprego, quiçá de uma nova profissão. A decisão de partir, segundo a autora, não afecta apenas o emigrante, mas sim, toda a sua componente familiar. Os factores que estão na base na decisão de migrar podem ser diversos. Pattara, Baeninger, Bogus e Jannuzz (1987) assinalam os principais motivos e algumas das suas variações, de acordo com o período da migração, local de destino e quantidade de movimentos migratórios. Determinar-se-iam com base nesses motivos dois grandes momentos relacionados com a decisão de migrar: um primeiro momento, marcado por factores de maior peso decisório (profissionais, familiares e de moradia) e um segundo momento marcado por factores essenciais para uma normal integração no país de acolhimento (conhecimento anterior do local, maior acesso à infra-estrutura e serviços, segurança e qualidade de vida e custo de vida mais baixo). Silva (2011) aponta três factores impulsionadores da imigração da CEDEAO para Cabo Verde, sendo o primeiro a visão do país como um ponto de passagem para outros destinos cobiçados pela imigração, a Europa e os Estados Unidos da América; o segundo factor associa-se à ilusão dos imigrantes que, ao julgarem terem chegado às ilhas europeias das Canárias, se vêm confrontados com as de Cabo Verde e por fim aqueles que se resignam com a sorte e procuram ali melhores condições de vida. Entretanto, Furtado (2010) é peremptória ao afirmar, em relação aos imigrantes da GNS na ilha de Boavista, que eles procuram Cabo Verde como país de acolhimento para fugirem ao crime de guerras, guerrilhas e insegurança que se vive na sub-região da CEDEAO e com o objectivo de encontrarem paz e tranquilidade. 378 Figura 18 - Motivos relacionados com a imigração. A Figura 19 mostra que 38,37% dos entrevistados afirmaram ter organizado por iniciativa própria a decisão de emigrar para Cabo Verde, ao passo que 28,49% afirmaram tê-lo feito através de amigos e igual percentagem respondeu que o fez com a ajuda de parentes em Cabo Verde. Uma ínfima parte (0,58%) alegou ter contado com o apoio religioso, ou ter organizado a emigração como turista (0,58%). Outras formas foram apontadas por 3,49% dos entrevistados. É notável que a influência religiosa é inexpressiva no processo decisório da escolha de Cabo Verde como país de acolhimento (0,58%). Figura 19 – Forma de organização da emigração. 379 Dos entrevistados, 79,14% responderam que tinham alguém conhecido em Cabo Verde quando emigraram (Figura 20). Este resultado vai ao encontro do percentual de respostas referentes a parentes e amigos em Cabo Verde (56,98%) como apoiantes à decisão de emigrar (Figura 19). São resultados indicadores de que os laços de conhecimento facilitam e suavizam a vida do imigrante num espaço que lhe é estranho. Situações do tipo acontecem frequentemente no Aeroporto da Praia. Um estrangeiro que chega pela primeira vez a Cabo Verde é submetido a um conjunto de questões nas formalidades fronteiriças, para se assegurarem as reais intenções do visitante. Estando um familiar ou algum conhecido no Aeroporto à sua espera, esse visitante sente-se mais à vontade e com menos probabilidade de lhe ser negada a entrada no país. Figura 20 - Existência ou não de pessoas conhecidas em Cabo Verde quando ocorreu a emigração. Relativamente ao tipo de pessoas conhecidas em Cabo Verde quando ocorreu a emigração (Figura 21), 51,97% dos entrevistados afirmaram ser um familiar e 48,03% disseram ser um amigo. De entre os três países da GNS o Senegal é que teve mais respostas em relação aos conhecimentos através dos familiares com um percentual de 42,4%, seguido da Guiné-Bissau com 31,8% e Nigéria com 25,8%. Dos conhecimentos através dos amigos, destaque para os cidadãos da Guiné-Bissau com 44,3%, seguidos dos da Nigéria com 34,4% e Senegal com 21,3%. 380 Figura 21 - Tipo de pessoas conhecidas em Cabo Verde. Como mostra a Figura 22, a maioria dos entrevistados, 73,97%, afirmou ter amigos em Cabo Verde e 26,03% a afirmaram não ter amigos no país. Os cidadãos da Guiné-Bissau afirmaram ter mais amigos em Cabo Verde (36,1%), seguidos dos da Nigéria, com 34,3%, e dos do Senegal, com 29,6%. Figura 22 - Existência ou não de amigos em Cabo Verde. 381 2.3 - Grau de Integração A busca de oportunidade de trabalho em Cabo Verde (Figura 23) foi um dos motivos pela decisão de permanecer no país com o maior percentual de respostas (58,82%) dos entrevistados. Este resultado está em conformidade com os motivos alegados como tendo sido decisivos para deixarem o país de origem (ver Figura 18). Das respostas afirmativas em relação à oportunidade de trabalho, sobressaem as dos cidadãos de Senegal com 42%, seguidas das respostas dos cidadãos da Guiné-Bissau com 36% e da Nigéria com 22%. A impossibilidade de ir a outro lugar, apontada pelos entrevistados (59,1%, de respostas dos nigerianos; 31,8% dos guineenses; 9,1% dos senegaleses) obriga uma boa parte dos imigrantes a resignarem e a ter de ficar em Cabo Verde até conseguirem a nacionalidade cabo-verdiana para, com mais facilidade, tentarem a emigração para Europa ou para os Estados Unidos da América. Valentin (2011) revela o caso de um cidadão da Guiné-Bissau residente em Cabo Verde que num período de dois anos tentou quatro vezes alcançar as ilhas Canárias em viagens através de “cayuco”27, tendo sido em todas as tentativas interceptado por autoridades marítimas de Cabo Verde. O imigrante conta ainda que o custo das viagens era de 3 000 euros por cabeça e que poucos são os sub-saharianos que procuram Cabo Verde como destino final de imigração. Pelo menos oito em cada 10 têm intenção de continuar a viagem para a Europa ou os Estados Unidos da América. Situação idêntica aconteceu com os imigrantes cabo-verdianos em Senegal a partir de 1910, referido por Graça (2007), em que os cabo-verdianos que passaram a aportar a cidade de Dakar, tinham em mente atingir a França. Em termos de números, segundo o autor, havia em 1976 cerca de onze mil cabo-verdianos no Senegal, cuja integração social pode ser considerada fácil. O autor afirma que a maioria dos descendentes das primeiras correntes migratórias integrou-se a tal ponto que se identifica actualmente mais com senegaleses do que com cabo-verdianos. 27. Barco longo e estreito, parecido com uma canoa, entalhado a partir de um único tronco de árvore. A lotação varia de 45 a 65 pessoas. Existem casos em que foram detectados cayucos com 230 imigrantes ilegais na ilha de Santa Cruz de Tenerife – Ilhas Canárias, em Setembro de 2008. Em Cabo Verde a maior lotação foi detectada em 2008 no cayuco Okomafo Jesus, com 130 imigrantes ilegais. 382 Figura 23 - Razões pela decisão de permanecer em Cabo Verde. Dos entrevistados, 46,63% (Figura 24) afirmaram que estão satisfeitos com a sua vida em Cabo Verde, avaliando-a como normal e 34,27% disseram que não estão satisfeitos, considerando má e péssima a sua vida no país. Dos restantes entrevistados, 19,10% dividiram o nível de satisfação entre bom e excelente. Os cidadãos de Senegal são os que mais se manifestaram inconformados com o nível de satisfação em Cabo Verde, com um percentual de 65,6% de respostas a situarem a sua vida como má e péssima; em seguida, os cidadãos da Nigéria com 18% e os da Guiné-Bissau com 16,4%. Figura 24 – Percentual de respostas sobre o nível de satisfação em Cabo Verde 383 A língua crioula é considerada a mais utilizada pelos entrevistados, com um percentual de 61,31% de respostas, como se pode ver na Figura 25. Dos cidadãos da GNS falantes do crioulo de Cabo Verde, Senegal apresenta uma percentual de 35,7%, seguido da Guiné-Bissau com 34,4% e Nigéria com 29,9%. A língua como um dos elementos da ordem social e cultural, a par dos costumes, valores e alimentação, é vista em muitos trabalhos como uma importante ferramenta de interacção humana (Trindade 1995). A cultura subjectiva, ou seja, os valores e as normas culturais, contribui para modelar as diferentes formas de interacção entre os imigrantes e os cabo-verdianos. A língua privilegiada, no caso dos imigrantes guineenses, é o crioulo, segundo Gomes (2010), apesar de existirem outras línguas na Guiné-Bissau. O crioulo guineense, por apresentar certa semelhança com o crioulo de Cabo Verde, sobretudo a variante da ilha de Santiago, não coloca constrangimentos em termos comunicacionais para os imigrantes da Guiné-Bissau, o que, segundo o mesmo autor, representa o principal factor de integração desses imigrantes em Cabo Verde. Verifica-se no quotidiano da sociedade cabo-verdiana que o crioulo de Cabo Verde, sobretudo na capital do país, é facilmente assimilado pelos imigrantes do Senegal e da Nigéria. Oliveira (2010) esclarece que, do ponto de vista da sociedade de acolhimento de um migrante, pode correr-se o risco de este ser marginalizado por não entender ou falar a língua do país acolhedor. Contudo, segundo a autora, na maioria das vezes, grande parte dos migrantes fala mais do que uma língua por ser natural de país multilingue, ou porque, devido ao processo de migração, ter contacto com outras línguas nos países de origem. Entende-se esse facto, para o caso dos imigrantes senegaleses, uma vez que existe uma comunidade significativa de cabo-verdianos a residirem no Senegal e ainda o facto de ter sido o primeiro país africano a receber imigrantes de Cabo Verde, devido às medidas restritivas do governo americano no início do século XX, segundo Graça (2007). 384 Figura 25 – Percentual de respostas língua utilizada em Cabo Verde. A quase totalidade dos entrevistados, isto é, 90,97%, disse compreender e falar o crioulo de Cabo Verde (Figura 26). A língua, segundo Monteiro (1997), pode relevar-se como um importante factor de inserção social no país de acolhimento e ao mesmo tempo um valioso instrumento de trabalho. Depreende-se que o facto de que a quase totalidade dos cidadãos da GNS entrevistados utilizar no dia-a-dia o crioulo, que é também a língua mais utilizada em Cabo Verde apesar de não ser a língua oficial, é uma prova evidente da inserção dessas comunidades na sociedade cabo-verdiana. Figura 26 - Percentual de entrevistados que falam/compreendem o crioulo de Cabo Verde. 385 A ocupação do tempo livre é conforme Monteiro (1997), outra componente fundamental para a análise da dinâmica integrativa do imigrante numa determinada sociedade de acolhimento. A Figura 27 mostra que 72% dos cidadãos da GNS afirmaram que ocupam frequentemente o seu tempo livre com os patrícios e 25,71% afirmaram que raramente ocupam esse tempo. De entre os cidadãos da GNS entrevistados, 34,1% das respostas sobre a ocupação frequente do tempo livre com patrícios foram dos guineenses e nigerianos em conjunto e 31,7% foram dos senegaleses. Dos que raramente afirmaram a ocupação do tempo, o percentual de 40%, foi dos entrevistados do Senegal, seguido dos da Guiné-Bissau e Nigéria com 35,6% e 24,4%, respectivamente. Gomes (2010) refere que a comunidade guineense tem diversas formas de ocupar o tempo livre, o que acontece aos sábados e domingos com encontros na sede de associação onde se divertem com músicas, jogos e pratos típicos. Os mais jovens deleitam-se com treinos matinais de futebol, considerado como uma riqueza cultural, pois permite o reforço dos laços de amizade e de solidariedade. Figura 27 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com seus patrícios. 386 Dos entrevistados, 51,80% afirmaram que frequentemente ocupam o seu tempo livre com os cabo-verdianos; 36,75% disseram que raramente o fazem e 11,45% expressaram que nunca ocupam o seu tempo livre (Figura 28). Dos cidadãos entrevistados que afirmaram a ocupação do tempo livre com os cabo-verdianos, os da Guiné-Bissau é que apresentaram o maior índice percentual, de 39,5%, seguido dos da Nigéria e do Senegal com, respectivamente, 36% e 21,4%. Dos cidadãos de Senegal, 52,6% afirmaram que nunca ocupam o tempo livre com os cabo-verdianos, seguido dos da Guiné-Bissau, com 26,3%, e os da Nigéria, com 21,1%. Gomes (2010) afirma que a maioria dos cidadãos da Guiné-Bissau inqueridos no seu trabalho alegou sentir-se integrada na sociedade cabo-verdiana e alegou o convívio, emprego, a existência de amigos e namoradas como factores positivos e facilitadores da integração. Figura 28 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com caboverdianos. Quanto à ocupação do tempo livre com outros estrangeiros (Figura 29), 42,94% dos entrevistados responderam que isso é frequente, 42,35% disseram que raramente ocorre e 14,71% responderam que nunca chegaram a realizar tal ocupação. Dos que nunca ocupam o tempo livre com outros estrangeiros, destacaram-se os cidadãos de Senegal com 52% de respostas em relação aos da Nigéria com 28% e os da Guiné-Bissau com 20%. Para Monteiro (1997), a comunidade cabo-verdiana em Roma caracteriza-se como uma comunidade fechada a ponto de ela não manter relações nem com ou387 tros imigrantes e nem mesmo com os de origem africana. Esclarece, entretanto, o autor que tal fechamento da comunidade em Roma ou ainda em outras regiões é comum a outras comunidades estrangeiras. Uma série de factores está ligada a esse não relacionamento e até mesmo esse fechamento, como a inserção num mercado de trabalho discriminatório e a inserção numa sociedade estranha. Figura 29 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com outros estrangeiros. A Figura 30 mostra que 75,90% dos entrevistados afirmaram ter amigos cabo-verdianos,16,26% alegaram não ter amigos e 7,83% manifestaram o desejo de ter amigos cabo-verdianos. Dos que afirmaram ter amigos cabo-verdianos, os cidadãos da Nigéria representam 38,9%, seguidos dos da Guiné-Bissau com 34,9% e dos de Senegal com 26,2%. Figura 30 - Percentual de respostas sobre a existência ou não de amigos caboverdianos. 388 Como se pode ver na Figura 31, 49,72% dos entrevistados alegaram não beneficiar de protecção ou segurança social em Cabo Verde, 32,57% afirmaram que beneficiam dela e 17,71% manifestaram o desejo de obter os benefícios referidos. Estes resultados levam à sua relação com os apresentados na Figura 33. Constata-se que apenas 37,57% dos entrevistados se encontram na situação de regularidade quanto à permanência no país. Os restantes 64,43% estão em situação não definida, isto por serem temporários os casos dos vistos e indecisão face aos pedidos de residência. Tal situação gera uma figura virtual de irregularidade desses estrangeiros, o que segundo Costa (2008), pode condicionar a possibilidade dos principais visados de respeitar algumas leis, como será o caso, por exemplo, da obrigação de efectuar descontos para o fisco ou para a segurança social. Daí o percentual de 67,43% dos entrevistados terem respondido não beneficiarem da segurança social e o desejarem. No estudo do Silva 28 (2010) verifica-se que o percentual é elevado naquilo que considera como sendo “falhas de protecção social” (p. 144), isto é, 85% dos imigrantes em Cabo Verde a não beneficiarem de protecção social, recorrendo os mesmos, em situação de doenças, aos próprios meios ou ainda à solidariedade de famílias e patrícios. Alude aos imigrantes da GNS organizados em pequenas associações mutualistas de solidariedade social ao nível das comunidades, através de uma participação mensal, permitindo assim a garantia de um mínimo de segurança social. Figura 31 - Percentual de entrevistados que beneficiam de protecção ou 28. O universo dos entrevistados de Silva (2010) resume-se a 57 entrevistas realizadas, sendo 36 na Praia, 11 no Sal e 10 em Boavista, 7 a empresas de construção e 6 a associações de imigrantes. 389 segurança social em Cabo Verde. 2.4 - Relações de Conflito A Figura 32 mostra que 63,64% dos entrevistados expressaram ter sido vítimas de actos discriminatórios por parte dos cabo-verdianos e 36,36% responderam que não. Os cidadãos da Nigéria foram os que mais afirmaram ter sido vítimas de actos discriminatórios por parte dos cabo-verdianos, 42,2%, seguidos dos cidadãos do Senegal com 33% e dos da Guiné-Bissau com 24,8%. Figura 32 - Percentual de entrevistados vítimas de actos discriminatórios por parte dos cabo-verdianos. A Figura 33 aponta que 61,99% dos entrevistados afirmaram ter já presenciado actos discriminatórios em Cabo Verde e 38,01% afirmaram o contrário. Dos que afirmaram ter presenciado actos discriminatórios, os da Nigéria apresentam um percentual de 39,6%, seguido dos de Senegal com 33% e dos da Guiné-Bissau com 27,4%. Figura 33 - Percentual de respostas sobre actos discriminatórios presenciados em Cabo Verde. No que se refere à situação de estadia em Cabo Verde (Figura 34) verifica-se que o percentual dos entrevistados portadores de autorização de residência é de 37,57%. Os entrevistados a aguardarem a autorização de residência constituem 27,17%. 390 Os cidadãos estrangeiros em Cabo Verde, segundo a CIMI (2010), falam de dificuldades na obtenção e apresentação de documentos exigidos para a autorização de residência, de acordo com o decreto regulamentar 11/99 de 9 de Agosto29, e reconhecem que de facto a lista de documentos é extensa, o que dificulta aos imigrantes toda a documentação exigida. Figura 34 - Percentual de respostas sobre a situação em Cabo Verde. Dos entrevistados, 63,31% consideraram que os cabo-verdianos tratam mal os cidadãos da CEDEAO, 19,53% avaliaram que os tratam com respeito e 17,16%, com simpatia (Figura 35). Dos que avaliaram que são maltratados pelos cabo-verdianos os cidadãos da Nigéria apresentaram um percentual de 40,2%, seguidos dos de Senegal com 35,5% e da Guiné-Bissau com 24,3%. A Guiné-Bissau destaca-se entre os três países da GNS com um percentual de 45,2% de respostas sobre tratamento com respeito e simpatia aos cidadãos da CEDEAO, seguida de Senegal com 32,3% e Nigéria com 22,6%. Os cidadãos da Guiné-Bissau, segundo Gomes (2010), consideram que são tratados de forma razoável pelos cabo-verdianos com um percentual de 46,3% de respostas, indo ao encontro dos resultados da presente pesquisa, com uma 29. Documentos exigidos para a obtenção de autorização de residência: Requerimento dirigido ao Director da Polícia Nacional; registo criminal do país de origem traduzido e visado nos serviços consulares; registo criminal em Cabo Verde; certificado de cadastro policial; atestado médico passado pela delegacia de saúde; atestado de residência passado pela Câmara Municipal; comprovativo da proveniência de meios de subsistência; certificado internacional de vacina; documentos comprovativos das condições de alojamento em Cabo Verde; 3 fotografias a cores tipo passe; fotocópia do passaporte nas páginas que contém identificação, vistos válidos e carimbos de entrada; impressos e 5 guias modelo B. 391 diferença apenas de 1,1%. Figura 35 - Percentual de respostas sobre como os cabo-verdianos tratam os cidadãos da CEDEAO. A maioria dos entrevistados (67,47%) admitiu nunca ter tido conflito com algum cabo-verdiano, sendo que 32,53% alegaram ter tido conflitos (Figura 36). Dos que admitiram não ter tido conflitos, a Guiné-Bissau apresentou 38,4%, de respostas, seguida da Nigéria com 33% e de Senegal com 28,6%. Os entrevistados do Senegal lideram o grupo da GNS com 44,4% de respostas sobre a existência de conflitos com cabo-verdianos, seguidos dos da Nigéria com 29,6% e da Guiné-Bissau com 25,9%. Figura 36 -Percentual de respostas sobre existência de conflito com algum caboverdiano. 392 Em relação a possíveis conflitos com outros cidadãos da CEDEAO (Figura 37), 89,44% dos entrevistados admitiram não ter tido conflitos e apenas 10,56% admitiram a sua existência. Dos que admitiram ter conflitos, o Senegal lidera com 58,8%, de respostas, seguida de Guiné-Bissau com 35,3% e Nigéria, com 5,9%. Figura 37 - Percentual de respostas sobre existência de conflito com algum cidadão estrangeiro da CEDEAO. A maioria dos entrevistados afirmou que os policiais da Cidade da Praia tratam os cidadãos da CEDEAO de forma péssima ou má (54,27%), como mostra a Figura 38. Além disso, observa-se que 40,24% afirmaram que o tratamento dos policiais é normal. Somente 5,49% afirmaram que o tratamento pode ser considerado bom ou excelente. Figura 38 - Percentual de respostas sobre a forma como a autoridade policial trata os cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde. 393 O percentual dos entrevistados que afirmaram não ter sido vítimas de crimes em Cabo Verde é de 61,18% (Figura 39). O percentual dos que afirmaram ter sido vítimas é de 38,82%. Figura 39 - Percentual de entrevistados que foram vítimas de algum crime em Cabo Verde. A análise da Figura 40 mostra que 77,24% dos entrevistados disseram não ter presenciado crimes cometidos em Cabo Verde e 22,76% alegaram tê-los presenciado, sendo os criminosos na sua maioria cidadãos cabo-verdianos, representando 28,6%, da Guiné-Bissau e da Nigéria em igual representação com 3,6%. Figura 40 - Percentual de entrevistados que responderam ter presenciado algum crime em Cabo Verde. 394 Dos entrevistados, 64,29% (Figura 41) apontaram a Nigéria como o país cuja nacionalidade é tida como a mais praticante de crimes em Cabo Verde. Os demais países do grupo GNS e Cabo Verde apresentam uma média percentual de 11,3%. Figura 41 - Percentual de respostas sobre imigrantes que mais crimes cometerem em Cabo Verde. 3 - CORRELAÇÃO IMIGRAÇÃO/CRIMINALIDADE Um dos objectivos do presente trabalho foi verificar se existe correlação entre a imigração dos cidadãos da GNS e a criminalidade envolvendo esses cidadãos no Concelho da Praia, no período de 2006 a 2010. Para isso, recorreu-se à análise de correlação por este ser um método estatístico amplamente utilizado para os estudos do grau de relacionamento entre duas variáveis. Referiu-se que o senso comum em Cabo Verde avalia que os imigrantes da CEDEAO contribuíram para o aumento da criminalidade no país. Afirmam Levin e Fox (2004) que o simples facto de se constatar a existência de uma relação entre duas variáveis não diz muito sobre o grau de associação, ou correlação entre ambas, e que muitas relações são estatisticamente significantes, mas expressam pouco uma correlação perfeita. 395 A análise da correlação que tem em conta as variáveis imigração e criminalidade, indicando como variam em conjunto, é uma forma de medir a intensidade e a direcção linear ou não linear das duas variáveis. Isso permite ter um indicador que atende à necessidade de se estabelecer a existência ou não de uma relação entre as varáveis imigração e criminalidade. A Tabela 7 mostra a correlação (r) e o nível descritivo (p) entre a quantidade de imigrantes de Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal em Cabo Verde e a quantidade de crimes praticados por pessoas desses países, no período de 2006 a 2010. Tabela 7 - Correlação (r) e Nível Descritivo (p) entre Número de Emigrantes em Cabo Verde e o Número de Crimes Cometidos por Infractores de Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, no Período de 2006 a 2010. Logo, pode-se observar que não existe correlação estatisticamente significativa entre a quantidade total de imigrantes e a quantidade total de crimes, no período em estudo, pois o nível descritivo p = 0,981 > 0,05 (5%). Além disso, pode-se observar que não existe correlação estatisticamente significativa entre a quantidade de imigrantes de Guiné-Bissau (mais expressivos em relação aos da Nigéria e Senegal) e a quantidade de crimes praticados por infractores deste país, pois o nível descritivo p = 0,326 > 0,05 (5%). Ainda, observa-se que quando comparada a quantidade de imigrantes de Guiné-Bissau com o total de crimes cometidos por imigrantes dos três países em análise, também não existe correlação estatisticamente significativa, pois o nível descritivo p = 0,534 > 0,05 (5%). Finalmente, vê-se o mesmo comportamento quando analisadas as relações envolvendo Nigéria e Senegal, isto é, também não foram observadas correlações estatisticamente significativas entre a quantidade de imigrantes e quantidade de crimes ocorridos no período do estudo. 396 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS O objectivo geral deste estudo foi caracterizar o perfil dos cidadãos imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) e correlacionar a imigração e a criminalidade envolvendo esses cidadãos, no período de 2006 a 2010. Considera-se que o procedimento no âmbito da metodologia utilizada permitiu o alcance desse objectivo. Na implementação da metodologia, durante a recolha de parte dos dados pessoais e criminais dos reclusos que passaram pela Cadeia central da Praia, ficou patente a necessidade da organização e actualização dos dados estatísticos, como recomenda a investigação científica. Assim, na recolha, fez-se a organização e actualização desses dados. Esse procedimento pode ser tomado como uma importante contribuição que o estudo propiciou. Ainda, verificou-se o problema da falta de dados estatísticos consistentes sobre o fluxo migratório, particularmente, de cidadãos da CEDEAO para Cabo Verde quer como imigrantes em situação regular, quer em situação clandestina. É necessário que os serviços governamentais responsáveis estejam munidos de recursos tecnológicos adequados e de recursos humanos preparados para a solução do problema. No que tange aos recursos tecnológicos, aponta-se, como exemplo, a disponibilidade de uma base de dados efectiva sobre a circulação de pessoas nos espaços comuns da referida Organização e que seja compartilhada pelas autoridades competentes. É fundamental que os Estados membros da CEDEAO tomem providências para a sensibilização de seus cidadãos sobre os limites da livre circulação prevista na legislação, nomeadamente o Tratado Revisto e os diversos Protocolos, o que poderá resultar no controle da imigração irregular e suas consequências. Ademais, é pertinente regulamentar os aspectos fundamentais concernentes ao regime de entrada, permanência e concessão do direito de residência a estrangeiros da CEDEAO, conforme o estabelecido no artigo 68º do referido Tratado. O estudo indicou que, apesar de a Nigéria ocupar o terceiro lugar em termos de imigração legal em Cabo Verde, é o país que se destaca, quer quanto à população prisional na Cadeia Central da Praia, quer no que respeita a expulsões. Esta constatação dá suporte à avaliação do senso comum de que os nigerianos são os que mais crimes cometem em Cabo Verde. 397 A maioria dos entrevistados, ou seja, quase 57%, afirmou ter organizado a emigração através de familiares e amigos em Cabo Verde, 38,37% alegaram que o fizeram por iniciativa própria e 79,14% afirmaram ter conhecidos em Cabo Verde, o que constituiu um factor determinante da sua decisão de emigrar. Essa forma de organização da emigração, isto é, através do amparo de familiares e amigos no país de acolhimento, pode levar à dedução da existência de uma eventual rede social, em Cabo Verde, de apoio aos emigrantes da CEDEAO. Rocha (2009) refere, nesse particular, àqueles que apostam na emigração como um suporte que podem encontrar através de uma rede social de amigos, familiares e compatrícios. Entende-se que as facilidades de circulação entre os países da CEDEAO permitem que uma parte desses cidadãos escolha Cabo Verde, por motivos diversos, como ponto inicial da sua aventura emigratória. Além de o país oferecer melhores oportunidades de trabalho, estrategicamente oferece oportunidades para conquistas de outros espaços (a Europa e os Estados Unidos da América) onde os imigrantes encontram melhores condições de vida. Este facto é reconhecido por Gonçalves (2010) para quem, Cabo Verde, nos últimos anos, tem o ónus de lidar com o problema de imigrantes da costa africana, sobretudo clandestinos, que visam apenas alcançar a Europa, recorrendo a documentos falsos e falsificados. Todos os estrangeiros clandestinos detectados são reencaminhados para os respectivos países de origem, o que acarreta a Cabo Verde enormes custos financeiros com as viagens, normalmente realizadas por via aérea. Constatou-se que 50% dos entrevistados se situam na faixa etária de 25 a 34 anos, com um maior percentual do sexo masculino, de 81% em média, relativamente ao sexo feminino, e uma taxa elevada de solteiros. Portanto, esses imigrantes constituem uma população bastante jovem, em idade economicamente activa para o trabalho que eles verbalizaram exercer em Cabo Verde, ou seja, o comércio informal e a construção civil. A taxa de escolaridade dos entrevistados é relativamente baixa, o que condiciona, por um lado, a sua integração laboral e social e, por outro, os torna mãode-obra de fácil exploração, implicando a sua não integração no sistema de segurança social do país. Vale frisar que apenas 32,57% dos entrevistados afirmaram beneficiar de protecção ou segurança social em Cabo Verde. A taxa de escolaridade alia-se ao facto de a maioria dos cidadãos da GNS se 398 encontrar em situação irregular, o que os obriga a aceitarem receber um salário inferior ao mínimo estipulado para os cabo-verdianos em condições idênticas. Tudo isso limita a renda familiar dos cidadãos desses países. Essa renda, como o estudo mostra, situa-se entre 10 000 escudos e 25 000 escudos (ECV), um valor superior ao salário mínimo praticado tanto no Senegal como na Nigéria. Na Guiné-Bissau, a situação é ainda mais gritante, onde, segundo Gomes (2010), “o desemprego, os conflitos civis e político-militares, ausência de propriedades produtivas, baixos salários, aumento demográfico, etc.” acarretam a sua precariedade económica. Este estudo revelou que a maioria dos imigrantes da GNS professa a fé cristã, com destaque para a Nigéria. Como se referiu, para o senso comum cabo-verdiano, as religiões não cristãs, sobretudo o islão, representam ameaça para o país. Verificou-se, entretanto, que o percentual dos que professam a fé islã, 41,67%, é inferior ao dos que professam a fé cristã e que há o registo de óptimas relações entre ambas as religiões na Guiné-Bissau e no Senegal, bem como em Cabo Verde. Desmistifica-se, assim, a avaliação de que praticantes da fé islã são uma ameaça para Cabo Verde. Dos entrevistados, 63% em média responderam ser discriminados e maltratados pelos cabo-verdianos. Não obstante, 65,7% avaliaram estar satisfeitos com a vida em Cabo Verde; 51,80% afirmaram ocupar o tempo livre com os caboverdianos e 75,90% disseram ter laços de amizade com eles. Não foi possível obter uma correlação estatisticamente significativa entre a evolução da imigração e a evolução da criminalidade em Cabo Verde envolvendo os cidadãos da GNS, no período delimitado para o estudo. De acordo com Guia (2012), a relação entre os dois fenómenos é tida como maioritariamente uma relação indirecta. Assim, mesmo que houvesse uma correlação significativa, em termos estatísticos, entre esses fenómenos, esse facto, se existisse, não implicaria tomar o primeiro como causa do segundo. Uma eventual correlação poderia, isso sim, apontar a pertinência da busca, em estudos posteriores, de variável ou variáveis relevantes interpostas entre os dois fenómenos, demonstrando um papel indirecto do incremento do fluxo migratório sobre o aumento da criminalidade. Pelo exposto, desconstrói-se o posicionamento do senso comum, referido no estudo, de que os imigrantes da CEDEAO contribuíram e contribuem para o aumento da criminalidade no país. Essa atitude tem forte conotação discriminató399 ria e preconceituosa e é um factor negativo, passível de comprometer a necessária integração económica e sociocultural dos imigrantes africanos, como um todo, e daqueles que compõem os países da CEDEAO, particular e especificamente os da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal que participaram neste estudo. 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Grato pela sua colaboração DADOS PESSOAIS 1) Nacionalidade: ( ) Guiné-Bissau ( ) Senegal ( ) Nigéria ( ) Outro:____________ 2) Idade: ( ) 15 a 24 ( ) 25 a 34 ( ) 35 a 44 ( ) 45 a 54 ( ) 55 a 64 ( ) ≥ 65 3) Gênero: ( ) Masculino ( ) Feminino 4) Estado Civil: ( ) Solteiro(a) ( ) União de Facto ( ) Separado(a) ( ) Casado(a) ( ) Divorciado(a) 5) Grau de Escolaridade: ( ) 4 anos ( ) 10 a 12 anos ( ) Viúvo(a) ( ) 5 a 6 anos ( ) Frequência Universitária ( ) 7 a 9 anos ( ) Grau Universitário ( ) Sem Resposta 6) Renda Familiar: ( ) Menos de 10.000$ ( ) 10.000$ a 25.000$ ( ) 25.000$ a 50.000$ ( ) 50.000$ a 100.000$ 200.000$ ( ) Mais de 200.000$ ( ) 100.000$ a 7)Profissão:_____________________________________________________ 8) Religião:_____________________________________________________ 407 9) Residência:_____________________________________________ 10) Trabalho Actual:_______________________________________ CHEGADA 11) Há Quanto Tempo Está Em Cabo Verde? ( ) Menos de 6 meses ( ) De 3 a 5 anos ( ) De 6 meses a 1 ano ( ) Mais de 5 anos ( ) De 1 a 2 anos ( ) Não Sabe/Não Respondeu 12) Por Que Deixou O Seu País de Origem? ( ) Dificuldades Económicas/ Falta de Trabalho ( ) Desejo de Conhecer a Realidade Cabo-verdiana ( ) Estudo ( ) Reagrupamento Familiar ( ) Esperança de Encontrar um Trabalho Melhor ( ) Conflitos no País de Origem ( ) Sim Quais?___( ) Não 13) Como Organizou a Sua Emigração em Cabo Verde? ( ) Sozinho ( ) Atráves de Amigos Que já Viviam em Cabo Verde ( ) Atráves de Parentes Que já Viviam em Cabo Verde ( ) Atráves de Instituição Religiosa ( ) Através de Intermediários do Seu Pais Mediante Pagamento ( ) Através de Intermediários Cabo-verdianos Mediante Pagamento ( ) Como Turista, Marítimo 14) Quando Veio Para Cabo Verde já Tinha Algum Conhecido? ( ) Não 408 ( ) Sim 14.1 Se sim, quem: ( ) Familiar ( ) Amigo/Conhecido ( ) Outro:_____________ 15) Tem Algum Amigo Cabo-verdiano? ( ) Sim ( ) Não ( ) Quero Ter SOCIABILIDADE 16) O Que Levou a Ficar em Cabo Verde? ( ) Oportunidade de Trabalho ou de Negócios ( ) Acompanhamento de Pessoa de Família ( ) Impossibilidade de Ir Para Onde Gostaria ( ) Outro:__________________________ 17) Em relação ao Nível de Satisfação, Como está a Sua Vida em Cabo Verde? ( ) Péssima ( ) Má ( ) Normal ( ) Bom ( ) Excelente 18) Que Língua Utiliza em Cabo Verde? ( ) Francesa ( ) Inglesa ( ) Crioula ( ) Portuguesa ( ) Outra:____________ 19) Fala/Compreende o Crioulo de Cabo Verde? ( ) Compreende, Mas Não Fala ( ) Compreende e Fala ( ) Não Compreende 20) Ocupação do Tempo Livre: 20.1) Com Patrícios: ( ) Frequentemente ( ) Raramente ( ) Nunca 409 20.2) Com Caboverdianos: ( ) Frequentemente ( ) Raramente ( ) Nunca 20.3) Com Outros Estrangeiros ( ) Frequentemente ( ) Raramente ( ) Nunca 21) Tem Algum Amigo Cabo-verdiano? ( ) Sim ( ) Não ( ) Quero Ter 22) Beneficia de Protecção ou Segurança Social em Cabo Verde? ( ) Sim ( ) Não ( ) Quero Beneficiar CONFLITUALIDADE 23) Já foi Vítima de Actos Discriminatórios por Parte dos Cabo-verdianos? ( ) Sim ( ) Não 24) Já Presenciou Actos Discriminatórios em Cabo Verde? ( ) Sim ( ) Não 25) Qual a Situação em Cabo Verde? ( ) Sem Visto ( ) Visto Prorrogado ( ) Visto de Residência ( ) Autorização de Residência ( ) Pedido Residência ( ) Outros:_____________________ 26) Como os Caboverdianos Tratam os Cidadãos da CEDEAO? ( ) Com Respeito e Consideração Respeito / Indiferentes ( ) Com Simpatia 27) Já Teve Conflito Com Algum Caboverdiano? ( ) Não 410 ( ) Sim ( ) Sem 28) Já Teve Conflito Com Algum Cidadão Estrangeiro da CEDEAO? ( ) Sim ( ) Não 29) Qual a Forma Como as Autoridades Policiais Tratam os Cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde? ( ) Péssima ( ) Má ( ) Normal ( ) Bom ( ) Excelente 30) Você já foi Vítima de Algum Crime em Cabo Verde? ( ) Sim ( ) Não (Vá para a questão 31) 31) Você já Presenciou Algum Crime em Cabo Verde? ( ) Sim ( ) Não (Vá para a questão 32) 32) Os Imigrantes Que Cometem Mais Crimes são Provenientes de Qual(is) Países da CEDEAO? ( ) Guiné-Bissau ( ) Senegal ( ) Nigéria ( ) Outro:__________________________ 411