UNIVERSIDADE DE CABO VERDE
Scientia via est
www.unicv.edu.cv
FICHA TÉCNICA
Título
Dissertações em Segurança Pública
Autores
Alberto Barbosa, Antonio Varela, Augusto Teixeira e Emanuel Vaz
Colecção
Vol.1
Concepção Gráfica
GCI - Gabinete de Comunicação e Imagem da Uni-CV
Coordenação Editorial
DSDE – Elizabeth Coutinho
Edições Uni-CV
Praça Dr. António Lereno, Caixa Postal 379-C
Praia, Santiago, Cabo Verde
Tel (+238) 334 0441 - Fax (+238) 261 2660
Email: edicoes@adm.unicv.edu.cv
Copyright
Marcelo Galvão-Baptista / Arlindo Mendes / Elizabeth Coutinho / Universidade de Cabo
Verde
ISBN
Praia, março de 2016
978-989-8707-24-6
ÍNDICE
INTRODUÇÃO: O Mestrado em Segurança Pública da Universidade de
Cabo Verde: Um Caso de Cooperação Internacional Sul-Sul ................ 6
Marcelo Galvão-Baptista; Arlindo Mendes; Elizabeth Coutinho ...................................6
Estado e Polícia: A Institucionalização da Segurança Pública em
Cabo Verde (1870 – 2000) ............................................................................ 23
Alberto Lopes Barbosa Júnior .....................................................................................23
Capítulo I
As Raízes da Polícia em Cabo Verde ...................................................... 30
Capítulo II
A Independência e a Construção do Estado ........................................ 77
Capítulo III
A Transição Democrática ......................................................................... 89
Narcotráfico Transnacional: O Impacto nos Dados Criminais em Cabo
Verde como País de Trânsito de Drogas ................................................. 124
António Varela ..........................................................................................................124
Capítulo I
As Rotas do Narcotráfico Internacional............................................... 142
Capítulo II
A Rota da Costa Ocidental Africana ..................................................... 151
Capítulo III
Cabo Verde como País de Transito de Cocaína................................... 162
3.1 – Contextualização ............................................................................. 162
Capítulo IV
Os Impactos da Criminalidade em Cabo Verde ................................... 189
O Movimento Migratório da CEDEAO para Cabo Verde nos Anos 2006
a 2010: Perfil de Imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal e
Relação Imigração-Criminalidade nesse Período ................................223
Augusto Andrade Mendes Teixeira ...........................................................................223
Capítulo I
Introdução..................................................................................................227
Enquadramento Teórico, Problema, Justificativa e Objectivos ......227
Capítulo II
Metodologia de Recolha e Tratamento de Dados...............................258
1 - Ambiente ..............................................................................................258
Capítulo III
Resultados e Discussão ..........................................................................266
1 - Investigação Documental Preliminar ..............................................266
Custos, Evolução e Percepção da Sociedade Praiense sobre a
Problemática da Violência e Criminalidade ..........................................325
Emanuel de Nascimento Furtado Vaz .......................................................................325
Capítulo I
Introdução..................................................................................................327
Capítulo II
Aspéctos Teóricos dos Custos da Violência e Criminalidade ..........344
Capítulo III
Visão Geral Sobre a Metodologia Aplicada à Pesquisa ..................354
Capítulo IV
A Pesquisa: Resultados e Discussão ...................................................359
Capítulo V
Aspectos Conclusivos ............................................................................394
APRESENTAÇÃO
A presente publicação, para além de constituir um produto académico do
Mestrado em Segurança Pública, realizado com a parceria da Universidade Federal do Pará, também representa uma oportunidade de reforço das relações que
se têm desenvolvido entre as duas universidades envolvidas, os investigadores e
professores das duas instituições.
A internacionalização da Universidade de Cabo Verde tem sido construída
através de programas de formação e capacitação, envolvendo a mobilidade entre
docentes e estudantes de universidades brasileiras, com estadias académicas na
Uni-CV e da nossa Universidade para diversas universidades do Brasil. Trata-se
de experiências importantes que contribuem para a consolidação das parceiras
mas também para o reforço da credibilidade internacional da própria Universidade de Cabo Verde e das instituições parceiras.
A questão da segurança pública é muito atual e domina os discursos políticos, assumindo igualmente um lugar preponderante nos anseios, pensamentos
e inquietações da população residente nos principais centros urbanos caboverdianos, mas também constitui uma variável muito importante no desenho das
políticas e investimentos no setor do turismo em Cabo Verde.
A perceção da insegurança reforça-se com o aumento das estatísticas da criminalidade e com a ênfase que a comunicação social dá aos fenómenos criminais
que ocorrem na cidade. Nem sempre há uma correlação direta entre a perceção
espacial de insegurança e a intensidade real da criminalidade. Para além da comunicação social, o efeito multiplicador que o sentimento de insegurança transmitido por vítimas do crime provoca nos familiares, vizinhos e amigos. Leva
à intensificação do que Tuan (1980) designou de topofobia, ou seja, a criação
de imagens negativas associadas a determinados locais da cidade onde ocorrem
crimes.
A topofobia é uma variável determinante na escolha dos locais de frequência
e residência na cidade, condicionando a estrutura sócio-funcional da cidade e
influenciando os valores fundiários.
Aos olhos da sociedade, o Estado e a polícia são os únicos responsáveis e
responsabilizáveis pela segurança pública, o que constitui uma visão deturpada
que merece ser descontruída para que realmente haja um envolvimento de todos
os atores da cidade, tando atores formais (com responsabilidades institucionais
no setor), como atores não formais (sem responsabilidade institucional mas com
responsabilidade moral e cívica sobre a segurança pública). Estes últimos desempenham um papel muito importante no reforço do controlo social, fundamental
para a redução das oportunidades de crime. Trata-se da sociedade civil, concretamente das famílias, dos vizinhos, das instituições religiosas, associações de
moradores, etc.
A presente publicação contém artigos diversos, que resultam da investigação
desenvolvida por professores e mestrandos do Mestrado em Segurança Pública
da Uni-CV, com a parceria da Universidade do Pará. A diversidade de temas
abordados contribuirá certamente para esclarecer muitas das dúvidas e mal entendidos sobre a segurança pública e o papel dos diferentes atores.
Aos leitores ficam aqui registados os votos de uma excelente leitura e de que
os conhecimentos e experiências aqui disponibilizados pelos autores sejam úteis.
Professora Doutora Judite Nascimento
Reitora
INTRODUÇÃO
O MESTRADO EM SEGURANÇA PÚBLICA DA
UNIVERSIDADE DE CABO VERDE: UM CASO DE
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL SUL-SUL
Marcelo Galvão-Baptista1; Arlindo Mendes2; Elizabeth Coutinho3
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A COOPERAÇÃO
INTERNACIONAL
Segundo Panizzi, apud Gazzola e Almeida (2006), um dos importantes aspectos da cooperação internacional tem a ver com o fato de “proporcionar condições de diálogo e trabalho visando a exploração de fronteiras do conhecimento”
(p. 61), algo que é compatível com a ideia de universalidade, subjacente à concepção de universidade e que abarca os três pilares, tradicionalmente tidos como
sendo o ensino, a pesquisa e a extensão.
Esses pilares envolvem um conjunto de ações cuja realização plena pode ancorar-se na cooperação internacional, especialmente no mundo global, como é
1. Doutor em Educação (Metodologia de Ensino) pela Universidade Federal de São Carlos (UF Car)/S.
Paulo. Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, no Curso de Psicologia e no Programa
de Pós-Graduação em Defesa Social e Mediação de Conflitos da Universidade Federal do Pará (UFPA),
instituição onde cursou Bacharelado, Licenciatura e Formação de Psicólogo.
Membro da Casa Brasil-África e Assessor de Relações Internacionais na PROINTER da referida universidade. Membro da Cátedra Amílcar Cabral da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) onde prestou
colaboração no âmbito da cooperação com a UFPA.
2. Doutor em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Pau (França). Professor da Universidade de
Cabo Verde onde, além de pesquisador na área de sua formação, foi Presidente do Conselho Diretivo do
Departamento de Ciências Sociais e Humanas e Diretor do Mestrado em Segurança Pública – Gestão de
Defesa Social e Mediação de Conflitos.
3. Mestre em Ciências Sociais, pela Universidade de Cabo Verde e pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Brasil. Autora de estudos técnicos sobre administração e planeamento da educação. Foi, entre
outros, Diretora do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, Oficial de Programas
das Nações Unidas em Cabo Verde, Administradora-Geral da Universidade de Cabo Verde e, atualmente,
exerce funções de Direção dos Serviços de Documentação e Edições da Uni-CV.
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o de hoje, em que só faz sentido o compartilhamento de recursos humanos e
materiais em torno da produção e do consumo do conhecimento.
Na concepção de Moura, apud Gazzola e Almeida (2006), “a cooperação
está na base de todo o trabalho universitário” (p.77), “não está mais confinada
aos muros de um laboratório ou de uma instituição, mas se abre e se alarga a uma
escala planetária” (p. 78). É parte integrante da missão das instituições de ensino superior e repleta de desafios, nomeadamente no que respeita à mobilidade
docente e discente, à pesquisa (investigação) colaborativa e ao desenvolvimento
curricular (ensino e aprendizagem) relativamente à montagem de projetos de pesquisa e pós-graduação conjuntos, levando ao desejado e necessário conhecimento
mútuo; à relação com o outro (alteridade); à busca e identificação de interesses
comuns; ao desenvolvimento e transformação da realidade; à geração de sistemas
de conhecimento e ao seu compartilhamento ou transferência nos espaços em
cooperação (PEDROSA, 2013)4.
Ainda, conforme Pedrosa, a cooperação internacional é uma exigência que as
universidades se impõem como um fator de qualidade da formação que empreendem, demanda enfrentar dificuldades, tais como as descontinuidades decorrentes
de mudanças de governação das instituições, os entraves burocráticos com reflexos na mobilidade de gestores, pesquisadores e estudantes, etc., e desafios, sendo
um deles alusivo ao fomento da mobilidade internacional que tem no domínio
da língua inglesa, como língua de ciência, a sua implicação. O êxito da cooperação internacional depende, dentre outros aspectos, da garantia de condições
necessárias e suficientes, a exemplo do respeito ao apoio institucional em termos
do seu efetivo envolvimento como retaguarda, mas sem prejuízo das iniciativas
individuais (que muitas vezes são bem sucedidas, espontâneas e depois levam à
oficialização posterior das ações) e do acolhimento e envio, ou seja, reciprocidade
– o fato de as instituições receberem os atores cooperantes das suas parceiras e de
enviarem os seus atores às instituições parceiras.
4. Essa análise da cooperação internacional no contexto universitário foi tecida pelo ex-Ministro da Educação
de Portugal e ex-Reitor da Universidade de Aveiro, Professor Júlio Pedrosa, em sua intervenção no XXIII
Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), ocorrido de 9 a 12 de junho de
2013, em Belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais, sob o lema: Cooperação e desenvolvimento nos países de língua portuguesa – o papel das universidades.
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A COOPERAÇÃO BRASIL - ÁFRICA DE LÍNGUA
PORTUGUESA: BREVE HISTÓRICO
A aproximação Brasil-África não é uma realidade apenas dos dias atuais,
embora seja recente o seu reforço, como assegura Saraiva (2012): “As 37 embaixadas e missões permanentes brasileiras na África no ano de 2011, quando
tínhamos apenas 17 no início do século XXI, evidenciam, para o mundo, que o
Brasil voltou à África” (p. 13). Também, os vínculos do Brasil com a África “não
são tão novos”. “(...) do século XVI ao XVIII, os dois lados do ‘mar tenebroso’,
na linguagem das caravelas, foram envolvidos na lógica do comércio atlântico de
escravos, mas também de bens e serviços, política e ideias” (p. 13).
As relações do Brasil com a África, da segunda metade do século XX aos dias
de hoje, entendidas como sendo o atlantismo, sofreram transformações dignas de
nota, na análise do autor:
O atlantismo foi transmutado pelo discurso culturalista. Moveu-se da economia
do tráfico de pessoas para a cultura afro-brasileira. Ao longo da segunda metade do
século XX migrou para a geopolítica. Era o atlantismo de Golbery do Couto e Silva
e sua concepção dos círculos concêntricos e do Atlântico Sul como uma ameaça
comunista. Depois vieram os atlantismos da diplomacia e do comércio. Preside hoje
o atlantismo da estratégia Sul-Sul das relações internacionais do Brasil, porém social
e cooperativa (SARAIVA, 2012, p. 14-15).
Essas transformações, segundo Saraiva, refletem “novos conceitos”, no início
do século XXI. Por meio dos movimentos dinâmicos da política externa do Brasil
e de uma pauta comercial de produtos variados, o país “tem aproveitado possibilidades na brecha africana” (SARAIVA, 2012, p. 24).
O ponto de partida da parceria Brasil-África, quanto ao estabelecimento da
aproximação atlântica, remonta à década de 1960. É o que afirma este autor:
O início da década de 1960 é chave para o reencontro do Brasil com a África. O presidente Quadros restaurou ideias do segundo governo de Vargas acerca da dimensão
estratégica do relacionamento com a África. Quadros iniciou, de fato, a dimensão
africana da política externa brasileira. A ruptura foi fundamental para a compreensão de um novo paradigma na relação entre brasileiros e africanos. A aproximação
atlântica foi estabelecida (SARAIVA, 2012, p. 18).
Nas duas décadas seguintes, a parceria teve uma motivação fortemente comercial. “Os cruzamentos transatlânticos desenhados nas décadas de 1970 e
1980 voltaram-se para as possibilidades comerciais entre africanos e brasileiros”
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(SARAIVA, 2012, p. 21).
A inserção internacional do Brasil nas relações com a África surgiu, gradualmente, como uma “noção de responsabilidade no Atlântico Sul e não apenas
afirmação do país no contexto do pós-guerra” (p. 1 7). Essa motivação, de acordo
com Saraiva (2012), “levaria aos conceitos de paz e cooperação, embora apenas
consolidados em forma de iniciativa política nos anos de 1980, quando da aprovação, na ONU, da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPACAS)” (p.
17-18).
Mas um dos sentidos da cooperação Brasil-África tem a ver com a construção
de “identidades múltiplas”, segundo o autor (SARAIVA, 2012, p. 17), dando
ânimo aos movimentos da diplomacia e das transações comerciais, envolvendo
também as sociedades civis organizadas.
A COOPERAÇÃO BRASIL-PALOP NO CONTEXTO
UNIVERSITÁRIO: O MESTRADO EM SEGURANÇA PÚBLICA
COMO UM CASO DE PARCERIA ENTRE UNI-CV E UFPA
A aproximação do Brasil aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) é documentada como um empreendimento marcante nos anos de
1970, especificamente 1975, em que as ex-colônias de Portugal, Cabo Verde em
particular, ascenderam à Independência. Referindo-se à relação com Angola,
logo após a sua emancipação, relação essa como ato político que se entendeu
como tendo motivação econômica, Saraiva (2012) afirma: “O reconhecimento
do novo governo angolano em 1975 foi garantia de porta aberta em Angola para
investimentos brasileiros” (p. 22).
A relação com outros países africanos já se dava bem antes de 1970 e os
seus efeitos sobre a cooperação acadêmica, assim como aquela envolvendo as excolónias portuguesas, na década referida, tiveram nos protocolos assinados com
o Brasil as suas bases para apoio à formação de estudantes, tanto de graduação
quanto de pós-graduação. É isso que pode explicar, em parte, o fato de poucas
universidades brasileiras, em termos relativos, terem parcerias com suas
congêneres africanas e vice-versa. Dois casos merecem ser citados: a Universidade
Federal do Pará – que, atualmente, tem apenas relações de cooperação forte com
a Universidade de Cabo Verde e um protocolo com a Universidade Técnica de
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Moçambique, no conjunto das instituições de ensino superior dos PALOP – e
a Universidade Federal do Rio Grande do Sul cuja cooperação é intensa com
aquela universidade pública cabo-verdiana.
Posteriormente, sucessivos governos, de José Sarney, Lula e Dilma Rousseff,
incentivaram ações cooperativas com a África de expressão oficial portuguesa,
catalisadas pela CPLP. É nesse quadro que se compreende a existência de bases
jurídicas sólidas, como os acordos de cooperação assinados pelo Brasil e por esses
países, que permitiram o arranque dos intercâmbios e a sua materialização.
A parceria entre a Universidade de Cabo Verde e a Universidade Federal do
Pará, materializada no Mestrado em Segurança Pública, entre outras ações, é um
caso específico de cooperação, no âmbito universitário entre o Brasil e os PALOP. Essa parceria, que abrange outras importantes realizações, traduz-se também como especial no conjunto das instituições académicas brasileiras de caráter
público e as dos países da África de língua oficial portuguesa. É uma parceria que
se pode considerar como especial por ser estratégica, na ótica da UFPA, como se
verá adiante.
Nos anos de 1970, os esforços para a cooperação com o sistema de ensino superior público de Cabo Verde, deram-se no sentido de manifestação de interesse,
de intenções, ancoradas na administração superior da UFPA através de trocas
de missivas e mensagens com autoridades do Ministério da Educação daquele
país. As intenções foram reforçadas em visitas de cortesia a Cabo Verde, geraram
aceitação plena, expressa na forma de assinatura de um protocolo da universidade
com a Direção-Geral do Ensino Superior de Cabo Verde, naquela década, embora sem resultados palpáveis, até finais de décadas posteriores, mais precisamente,
no ano de 2009. Esse foi o ano-marco da aproximação entre a UFPA e a recémcriada Uni-CV, quando se iniciou a concretização da cooperação prevista no
protocolo, abrindo caminho para um conjunto de ações, continuadas, nos anos
seguintes, de 2010 a 2013. Isso, em virtude da disponibilização pela Reitoria de
um docente (o professor Marcelo Galvão) para prestar colaboração à universidade pública cabo-verdiana por quatro anos. Tal decisão possibilitou um conjunto
de atividades na Uni-CV. Descreve-se, a seguir, a trajetória do Mestrado em
Segurança Pública, desde a concepção do plano de estudos até às defesas do primeiro conjunto de dissertações que fundamentam a organização e a publicação
deste livro.
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A Origem do Projeto do Curso
O projeto do referido mestrado foi da autoria do Prof. Daniel Chaves de Brito (UFPA), adaptado para a realidade de Cabo Verde pelo Prof. Marcelo Galvão
(também da UFPA – Galvão, 2009), tendo como uma das referências um plano
estratégico do Ministério da Administração Interna do citado país (Cabo Verde,
2009), instituição que acabou por co-financiar o curso. A proposta do mestrado
esteve em sintonia com a demanda daquele ministério com o propósito de prover
a formação de dirigentes do sistema de segurança pública como um todo, na
expectativa de que a gestão de defesa social e a medição de conflitos tivessem em
conta a observância dos direitos humanos e os pressupostos governativos de um
Estado democrático, como Cabo Verde.
A Grade Curricular: Aspectos de Base e Efeitos Esperados
Para atender ao objetivo do curso, elaborou-se a grade curricular com conteúdos disciplinares que habilitassem os discentes não apenas para interpretarem
os dilemas e os avanços do policiamento e da segurança pública numa sociedade
democrática e respeitando o estado de direito, como também para realizarem a
integração da análise institucional e utilizarem a tecnologia da informação na
sua atuação profissional de modo mais eficiente, primando pela inteligência. A
habilitação para a elaboração de diagnósticos e formulação de políticas de gestão
voltadas para a defesa social e indução do desenvolvimento de uma nova mentalidade de mediação de conflitos foi outro aspecto do currículo.
Houve, ainda, a preocupação com estudos dos novos direitos, estudos na
área da antropologia das diferenças, a análise das implicações sociais, políticas e
económicas resultantes do acelerado processo de globalização e seus efeitos sobre
a segurança pública.
Programou-se o curso para que gerasse conhecimentos novos, principalmente sobre conflitos sociais e violência em Cabo Verde, em consonância com explicações históricas desses fenómenos e o levantamento dos fatores de sua etiologia,
manutenção e seus efeitos sobre a segurança interna, na perspectiva de contribuir
para a proposição de programas e políticas sociais que os levassem em conta pelos
órgãos governamentais vocacionados para a área.
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O Corpo Docente
Atuaram no curso os seguintes professores doutores, os quais, na maioria,
também foram orientadores dos mestrandos: pela UFPA, Daniel Chaves de Brito, Jaime Luiz Cunha de Souza, Luís Fernando Cardoso e Cardoso, Edson Marcos Leal Soares Ramos. Pela Uni-CV, José Carlos dos Anjos (docente da UFRGS,
cooperante com a Universidade de Cabo Verde), Miriam Steffen Vieira, Arlindo
Mendes e Roselma Évora.
Os professores doutores Wlson Barp e Sílvia Almeida, da UFPA, colaboraram na realização de um workshop internacional, descrito adiante, como atividade do mestrado, na Uni-CV, e na orientação de discentes.
O professor doutor Marcelo Galvão Baptista (da UFPA) foi quem propôs a
realização desse mestrado na Uni-CV e que, com a participação de José Carlos
dos Anjos, fez a divulgação do projeto no Ministério da Administração Interna
de Cabo Verde e também coordenou o curso, de 2010 a 2013, além de orientar
um aluno, nesse período, quando esteve prestando colaboração a essa universidade pública cabo-verdiana, amparado por um protocolo de cooperação com a
universidade de origem.
Temáticas das Disciplinas Ministradas e das Pesquisas
Realizadas
Estas foram as temáticas das disciplinas ministradas:
Esfera Pública, Ética, Direitos Humanos e Mediação Social;
Estado e Gestão Participativa de Defesa Social;
Metodologia da Pesquisa e Formulação de Projetos;
Teorias Sociais do Direito e da Cidadania;
Teorias Sociais do Crime e da Violência;
Estatística e Metodologias Informacionais Aplicadas ao Estudo da Segurança Pública;
Movimentos Sociais e Conflitos Ambientais em Cabo Verde.
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Outras temáticas fizeram parte da formação, ou seja, foram contempladas
nas pesquisas dos mestrandos, constituindo duas disciplinas relacionadas ao projecto de dissertação e ao seu desenvolvimento, a saber:
A Segurança Pública na Transição Democrática em Cabo Verde;
O Impacto do Narcotráfico Transnacional nos Dados Criminais dos Países de Trânsito de Drogas: O Caso de Cabo Verde;
O Movimento Migratório da CEDEAO para Cabo Verde nos Anos
2006 a 2010: Perfil de Imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal
e Relação Imigração-Criminalidade nesse Período;
Análise Estatístico-Espacial da Violência Urbana: Uma Visão da Diferenciação Social do Espaço na Zona Norte da Cidade da Praia;
Análise do Abandono Escolar para a Prevenção da Delinquência Juvenil
na Cidade da Praia;
Criminalidade Violenta e Sentimento de Insegurança: O Caso da Ci
dade da Praia;
Custos, Evolução e Percepção da Sociedade Praiense sobre a Problemática da Violência e Criminalidade;
Violência Urbana na Ilha de Santiago: Os Impactos da Delinquência
Urbana na Cidade da Praia - Estudo de Caso;
Cárcere e Punição: As Políticas de Ressocialização da Cadeia de São
Martinho-Praia Cabo Verde;
Polícia e Sociedade: Representações Sociais da Segurança em Cabo Verde;
Delinquência Juvenil e Criminalidade na Cidade da Praia. Uma Pesquisa em Torno do Fenómeno “Thug” e Violência Urbana;
Dissensos Conceptuais do Plano Estratégico de Segurança Interna (PESI
2009/ 2011) e suas Implicações;
A Violência Doméstica na Cidade da Praia – Zonas da Achada de Santo
António e Tira Chapéu.
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Workshop Internacional para Apoio ao Exame de Qualificação
Foi realizado o workshop internacional Segurança Pública e Violência
na Sociedade Contemporânea, entre 25 e 27 de Abril de 2011. Houve sessões
envolvendo os seguintes temas:
Os Desafios da Segurança Pública no Brasil;
Os Usos das Metodologias Informacionais nas Práticas Policiais;
Os Modelos de Segurança Pública do Brasil e de Cabo Verde;
Violência e Conflitos Sociais em Múltiplas Perspectivas.
Discutiu-se a respeito da influência da sociedade global nas questões da segurança pública, diferenciando as formas de controle social no passado e na modernidade, bem como a visão que se tinha do criminoso no período pós-Segunda
Guerra, com a noção de reabilitação. Discorreu-se sobre a nova maneira de encarar o controlo, a partir da década de 1970, em que se preconizava que o criminoso
fosse neutralizado e se dava mais atenção à vítima. Mencionou-se o fato de se
constatar que o crime não acontece em função de fatores momentâneos, mas que
a violência “veio para ficar”, que é mundial e corriqueira, e que isso não mudará
com mudanças económicas, ao mesmo tempo em que o Estado reconhece que
ele, isoladamente, não tem como resolver o problema.
Falou-se de mitos associados à morte: o bíblico, quando Adão perdeu o paraíso e, portanto, a segurança, passando a sentir medo; e o de povos indígenas
da Amazónia que concebem a morte não como punição ou vingança, assim vista
pela cultura judaico-cristã, mas como equívoco. Considerou-se que, ao longo da
história, o sacrifício para aplacar os espíritos tem sido substituído pelo sistema
criminal e que o contrato social é um limite da liberdade em favor da segurança.
Mencionou-se que num mundo em constante transformação, rápida e, por
vezes, radical, com reivindicações contraditórias entre os diferentes grupos sociais, as instituições estão desprovidas de meios para resolver os problemas, em
particular os afetos à segurança. Referiu-se à crença de que o direito de todos será
respeitado nesse contexto, não obstante ser impossível a antecipação aos riscos e
perigos do quotidiano.
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Tratou-se da pertinência de haver coleta e tratamento de dados relacioanados
a pesquisas em segurança pública, com o recurso às técnicas da Estatística, de
forma a se poder, após determinado tempo e com um conjunto de informações,
apresentar previsões. Salientou-se que, para a polícia, o conhecimento em Estatística é de extrema utilidade, no sentido de servir de base para a elaboração
e execução de políticas públicas para o setor, contemplando decisões práticas e
adequadas, a exemplo do efetivo policial a ser considerado e da determinação dos
locais e horários de ocorrência de crimes, a partir do seu mapeamento propiciado
por bancos de dados devidamente estabelecidos.
No workshop também houve discussões sobre modelos, ou paradigmas de
segurança pública, com a ressalva à possibilidade de coexistência de vários deles.
Contextualizou-se a realidade brasileira que contempla 52 tipos de polícia, enquadrados em paradigmas diversos (de segurança nacional, de segurança pública
e de segurança cidadã, dentre outros), e mencionou-se o Programa Nacional de
Direitos Humanos que remete a novas leis que têm a segurança pública como
referência.
A segurança pública e a violência na sociedade contemporânea foram ainda
aspectos discutidos no evento, com menção ao Estado penal e ao aumento do
número de presos em todo o mundo. Ponderou-se sobre o fato de a redução da
criminalidade não ser considerada necessariamente como consequência do aumento da riqueza, por ocorrer tanto entre os que possuem bens quanto entre os
destituídos deles. E apresentou-se o conceito de marginalidade avançada, com as
dinâmicas macroeconómica, política, económica e espacial.
Mereceu também análise a violência sexual, com base numa investigação
realizada no Brasil, a partir de denúncias feitas numa Delegacia de Mulheres, e
que teve como foco as negociações de categorias jurídicas em torno da temática, ou seja, o processo de enquadramento legal deste tipo de violência a partir
do acompanhamento de atendimentos policiais e análise dos registos. Frisou-se
ainda a mudança da maneira como são encarados os crimes contra a mulher. E,
sobre Cabo Verde, abordou-se a questão dos valores da família em oposição ao
direito individual e à naturalização da violência contra a mulher.
O workshop constitui uma excelente oportunidade de apoio aos mestrandos,
no sentido de que pudessem desenvolver as pesquisas de suas dissertações, além
de estabelecer contatos com os respectivos orientadores in loco para esse fim.
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Também, os professores que realizaram o evento aproveitaram a sua estada na
Uni-CV para participarem das sessões de defesa dos projetos dos discentes que
estavam aptos aos exames de Qualificação ao Mestrado.
As Dissertações Defendidas: Objetivos e Resultados5
Alberto Barbosa Junior investigou em sua dissertação o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde no período de 1870 a 2000.
Buscou as raízes desse processo e o acompanhamento do seu desenvolvimento. A
dissertação enquadra-se na pesquisa conceitual que, sendo dessa natureza, guiou
a coleta e a análise de dados com base em fontes documentais.
O autor considerou na pesquisa as transformações que avaliou como mais
importantes, na organização policial no período do estudo, tendo sido o ano-limite inferior desse período marcado pela nomeação de uma comissão para
estudar e propor ao governo da província a criação do primeiro Corpo de Polícia
Civil da Cidade da Praia (evento antes e depois do que diversos atores sociais, a
exemplo das forças armadas, hoje, partilhavam a manutenção da ordem pública)
e o ano-limite superior, o marco do fim da II Legislatura da II República.
Barbosa analisou o processo de criação, organização e funcionamento das
instituições responsáveis pela segurança pública, tendo como enquadramento o
contexto político, económico e social da época e levando em conta os fatores
que influenciaram esse processo, sendo um deles a série de revoltas populares e
de levantamentos sociais, além da teorização a respeito da polícia e segurança
pública, o uso legítimo da força, o surgimento e o controlo dos sistemas policiais
e a transição democrática.
Por fim, o autor questiona o papel e a amplitude da transição democrática
para a geração de um modelo novo de segurança pública em Cabo Verde.
A investigação de António Varela envolveu como temática o Narcotráfico
transacional: o impacto nos dados criminais em Cabo Verde como país de trân5. Houve a previsão inicial de publicação, neste Volume 1, de outras dissertações defendias (dos mestres
Bernardo Ulisses Monteiro, Manuel Cabral e João Cícero Gertrudes); porém, pelo fato de não ter sido
possível obter feedback, a tempo, dos orientadores para as correções finais, esses trabalhos poderão constar
do próximo volume.
Optou-se por considerar a versão do texto aprovada pelo orientador. Assim, nem sempre os textos apresentam o mesmo padrão, a exemplo do título de tabelas e gráficos.
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sito de droga, aludindo às ações criminais6 em Cabo Verde, país que tem sido
utilizado como um dos corredores de passagem, quase que obrigatória, de drogas,
o caso da cocaína, da América Latina para a Europa. Sem dúvida, segundo o autor, este tipo de tráfico “tem influenciado o comportamento dos dados criminais
do país (…) como o roubo, a posse de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de
capitais”.
O trabalho implicou um exaustivo e detalhado levantamento de dados sobre
drogas, as rotas internacionais do tráfico de cocaína não só em direção à Europa,
mas também ao mercado dos Estados Unidos da América e a outros destinos.
Neste sentido, dir-se-ia que a investigação sobre esta temática é sempre um desafio complexo, arriscado e melindroso, o que não deixa de impor uma ação
sistémica, cuidadosa e concertada. Não é por acaso que, para Varela, “as autoridades policiais nacionais, muitas vezes em articulação com autoridades de outros
países, permitem traçar a rota desde a origem da droga na América Latina (Brasil,
Argentina, Venezuela), quer por via aérea, utilizando voos comerciais que ligam
semanalmente Fortaleza, no Brasil, à cidade da Praia, em Cabo Verde, quer por
via marítima, através de diversos tipos de embarcações”.
A dissertação de Varela revela que as “rabidantes7, consideradas como “correios” ou “mulas,” que se deslocam ao Brasil, em viagem de negócios, têm sido
utilizadas pelos chamados barões para o transporte, por via área, de drogas para
Cabo Verde, em troca de certa compensação financeira8. Ainda, mostra-se pioneira e permite circunscrever as circunstâncias em que o país passou a figurar-se
na rota do narcotráfico transnacional e a sua conexão com as principais tipologias
dos crimes organizados transnacionais.
Ademais, há que considerar que a abordagem deste assunto expressa forte
bravura e alta tenacidade pelo autor. Pois, para além do fato de as fontes se mostrarem difíceis em termos de acessibilidade, elas se afiguram de uma abordagem
6. Aliás, embora não se tenham dados suficientemente seguros que permitam conhecer os reais contornos e
motivações dos horríveis crimes que vêm sendo praticados, nos últimos tempos, em Cabo Verde, a verdade
é que a percepção geral que deles se tem é que há uma forte ligação entre o mundo de drogas e crimes
organizados.
7. Pessoas que se dedicam às pequenas atividades comerciais, ou seja, vão comprar os seus produtos nos
países estrangeiros e vendam-nos em Cabo Verde, mediante certa margem de lucro.
8. Essas pessoas chamadas de “mulas”, quando apanhadas pela Polícia Federal brasileira cumprem as suas
penas em cadeias do Brasil, mas muito dificilmente denunciam os seus patrões. Aliás, na maioria das vezes,
nem sequer os conhecem.
17
arriscada e de uma perspectiva fragmentada.
O autor, por munir-se de conhecimentos na área do Direito e utilizar-se de
sua experiência investigativa e prerrogativas de oficial da Polícia Nacional, conseguiu fazer deslocarem-se, ao centro de gravidade, discussões de caráter científico/
académico relacionadas à problemática do crime organizado que tem vergastado,
principalmente na última década, os cidadãos cabo-verdianos, apoquentando a
sociedade cabo-verdiana e condicionando, sobremaneira, a vida quotidiana das
pessoas.
A investigação de Varela deve ser continuada, para aprofundamento. Fornece
importantes subsídios e pistas para facilitar a atuação de diversos organismos
comprometidos com o processo de combate a este flagelo que é o narcotráfico
transnacional organizado.
A investigação de Emanuel de Nascimento Furtado Vaz teve como título
Custos, evolução e percepção da sociedade Praiense sobre a problemática da violência e criminalidade. O objetivo do trabalho foi conhecer e analisar os custos
da violência e da criminalidade em Cabo Verde no período de 2006 a 2010, seu
peso orçamental, principais tendências e os reais desafios para o Estado e para a
sociedade da capital.
O autor constatou que, durante o período em análise, foi constante a tendência de aumento dos custos com a violência e a criminalidade, mas que não se
configurou proporcional ao aumento dos custos de investimento e de funcionamento das instituições estudadas, apesar de que de ambos os lados a tendência
tenha sido de crescimento anual.
Vaz assegura que o Estado tem consciência de que gasta e deve gastar sempre
para combater os males sociais existentes no país, nomeadamente aqueles relacionados com a violência e o crime. Porém, afirma que nem o Estado, muito menos
as famílias e particularmente pessoas individuais sabem quanto gastam ou qual
lhes é o custo implicado pela violência e o crime. A população não quer disponibilizar seu tempo nem dinheiro em soluções de combate ao crime e à violência,
por avaliar, equivocadamente, não correr os riscos decorrentes desses males ou
que os riscos estão sob seu controlo.
Segundo o autor, não obstante os esforços do Estado em direcionar investimentos para as áreas de segurança pública, para fazer face às muitas dificuldades
sociais existentes, e principalmente para conter a violência e a criminalidade que
18
se intensificam em Cabo Verde, especialmente na cidade da Praia, não se constata nos resultados do estudo a diminuição do sentimento de insegurança da
população.
Vaz considera pertinente que o Estado pugne para vencer os desafios impostos pela modernização e pela globalização que demandam a especialização
de suas instituições em questões da segurança pública. Estas, segundo o autor,
devem agir de forma coordenada quanto às estratégias, recolha e tratamento de
informações para a melhor tomada de decisões, em particular no que concerne
ao direcionamento de investimentos para áreas estratégicas e de maior interesse.
Augusto Teixeira estudou o movimento migratório da CEDEAO para Cabo
Verde, especificamente de cidadãos da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, nos anos
de 2006 a 2010, com o objetivo geral de caracterizar o perfil desses imigrantes e
correlacionar imigração e criminalidade no período.
O autor traçou em sua pesquisa o seguinte perfil dos imigrantes: predominantemente masculinos e jovens; renda familiar inferior à de cabo-verdianos
quando considerados em circunstância similar; solteiros, em sua maioria; escolaridade ao nível do secundário; inserção na economia informal e sem segurança
social. Também, Teixeira verificou serem eles maioritariamente cristãos, o que,
para o autor, desmistifica a avaliação de que os muçulmanos constituem ameaça
para Cabo Verde.
Dificuldades de natureza económica nos países de origem constituíram a
principal razão para a imigração e este fator, aliado à impossibilidade de esses cidadãos irem a outro país, tornou-se decisivo para permanecerem em Cabo Verde.
Teixeira apontou na pesquisa que a solidariedade de parentes ou amigos no
país de acolhimento, ou uma eventual rede social de apoio foi o que mais pesou
na organização da emigração.
Augusto Teixeira verificou no estudo que a maioria dos imigrantes expressou
sofrer discriminação por parte dos cabo-verdianos, não obstante ter respondido
que ocupa o tempo livre com eles, os tem como amigos e sente-se satisfeita em
Cabo Verde onde decidiu permanecer.
O autor não obteve uma correlação significativa entre imigração e criminalidade em Cabo Verde envolvendo os imigrantes do estudo, de 2006 a 2010. Este
resultado indicou não haver contribuição da presença desses africanos do con19
tinente para o incremento da criminalidade e, por conseguinte, da insegurança
interna nesse período.
Teixeira destaca em seu trabalho a necessidade de os serviços governamentais
cabo-verdianos reverterem a inconsistência de dados estatísticos sobre o fluxo migratório, em particular, de cidadãos da CEDEAO para Cabo Verde, a pertinência
de estes serem sensibilizados sobre os limites da livre circulação prevista na legislação, bem como da regulamentação dos aspectos fundamentais concernentes ao
referido fluxo migratório.
Os trabalhos descritos espelham a importância dos temas abordados e dos
resultados obtidos, refletindo os esforços dos autores e o empenho dos seus orientadores em honrar seu compromisso com o curso do mestrado. Aposta-se no sentido de servirem de estímulo aos demais mestrandos para levarem a bom termo
as dissertações ainda em curso.
O SIGNIFICADO DO MESTRADO PARA AS RELAÇÕES DE
COOPERAÇÃO ENTRE A UNI-CV E A UFPA
O Mestrado em Segurança Pública contemplou a mobilidade de professores
da UFPA para a Uni-CV, o que se verificou de forma frequente, com o seu engajamento na docência e orientação de discentes, viabilizando a formação de sete
mestres de um total de 15, devendo haver 100% das defesas até o fim deste ano9.
Espera-se que sejam ultrapassados todos os constrangimentos à oferta de
uma segunda turma para que se dê continuidade a essa pós-graduação que já se
mostrou relevante para a Uni-CV, por ser uma formação em que foram produzidos conhecimentos passíveis de gerar novos conhecimentos para alimentarem o
ensino e a extensão numa área vital que é a segurança pública.
A formação que o mestrado propiciou pode ser tomada como uma das realizações enquadradas na cooperação Sul-Sul com o suporte de duas universidades
fortemente comprometidas com o apoio aos governos dos respectivos países no
delineamento de políticas sociais no domínio da segurança pública. Espera-se
também que o prosseguimento do mestrado e a realização de outras ações agen-
9. O ano em questão referia-se ao de 2014, quando se esperava realizar a publicação deste obra.
20
dadas para o futuro, que se crê breve, fortaleçam cada vez mais a cooperação
com a UFPA, auxiliando o Governo de Cabo Verde na concretização da política
de melhoria não somente da qualificação dos profissionais de segurança interna
como também na luta contra os males que se traduzem em violência e crime,
pela investigação científica de suas causas e variáveis mantenedoras, conduzindo,
assim, à tomada de medidas efetivas para o seu controle, evitando os seus nefastos
efeitos.
21
REFERÊNCIAS
CABO VERDE, 2009. Plano Estratégico de Segurança Interna 2009-2011.
Praia: Ministério da Administração Interna, 2009.
GALVÃO, M. Projecto de Mestrado em Segurança Pública – Gestão de Defesa
Social e Mediação de Conflitos. Reitoria da Universidade de Cabo Verde. Cidade da Praia: Uni-CV, 2009 (Projeto adaptado do original de Daniel Chaves de
Brito).
MOURA, J. B. “A cooperação como fundamento do trabalho universitário”.
Em GAZOLA, A. L. A. e ALMEIDA, S. G. (Orgs.). Universidade, cooperação
internacional e diversidade. Belo Horizonte: Editora UFGM, 2006, p. 61-68.
PANIZZI, W. M. “Cooperação internacional: solidariedade e diálogo entre
iguais”. Em GAZZOLA, A. L. A. e ALMEIDA, S. G. (Orgs.). Universidade,
cooperação internacional e diversidade. Belo Horizonte: Editora da UFGM, 2006,
p. 61-68.
PEDROSA, J. Comunicação apresentada no XXIII Encontro da Associação
das Universidades de Língua Portuguesa, na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
SARAIVA, J. F. S. África parceira do Brasil atlântico: relações internacionais
do Brasil e da África no início do século XXI. Belo Horizonte: Fino Traço Editora,
2012.
22
ESTADO E POLÍCIA: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA
SEGURANÇA PÚBLICA EM CABO VERDE (1870 –
2000)1
Alberto Lopes Barbosa Júnior
RESUMO
Esta dissertação propõe-se estudar o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, tentando encontrar as suas raízes e acompanhar o
seu desenvolvimento, tendo como referência as mais importantes transformações
ocorridas na organização policial no período que vai de 1870, ano em que foi nomeada uma comissão para estudar e propor ao governo da província a criação do
primeiro Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, até 2000, ano que marca o fim
da II Legislatura da II República. Ela investiga e procura conhecer o processo de
criação, a organização e o funcionamento das instituições encarregues da garantia
da segurança pública, enquadrando-o no contexto político, económico e social que
marcou a época. Ela busca identificar fatores que influenciaram esse processo e
teoriza temas como a polícia e a segurança pública, o uso legítimo da força, o surgimento e o controlo dos sistemas policiais e a transição democrática. Finalmente,
ela questiona se e em que medida a transição democrática contribuiu para a emergência de um novo modelo de segurança pública.
Palavras-chave: Polícia. Segurança Pública. Uso Legítimo da Força. Transição Democrática. Sistemas Policiais e Accountability.
1. Dissertação defendida no dia 10/12/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores João Lopes
Filho (Uni-CV), como Presidente, José Moniz (Uni-CV) e Daniel Chaves de Brito (Orientador – UFPA).
23
STATE AND POLICE: THE INSTITUTIONALIZATION
OF PUBLIC SECURITY IN CAPE VERDE (1870 2000)
ALBERTO LOPES BARBOSA JÚNIOR
ABSTRACT
This dissertation proposes to examine the process of institutionalization of public safety in Cape Verde, trying to find their roots and monitor its development,
taking as reference the most important changes in police organization from 1870,
when a commission was nominated to study and to propose to the government of
the province the creation of a Civil Police Body, to 2000, the year that marks the
end of the Second Legislature of the II Republic. It investigates and demands to
know the process of creation, organization and the functioning of institutions responsible for the public security and put it in political, economic and social context
that marked the season. It seeks to identify factors that influenced this process and
theorizes themes such as the police and public safety, the legitimate use of force, the
emergence and control of police systems and the democratic transition. Finally, it
questions whether and to what extent the democratic transition contributed to the
emergence of a new model of public safety.
Keywords: Police. Public Safety. Legitimate Use of Force. Democratic Transition. Police Systems and Accountability.
24
INTRODUÇÃO
“Um país sem polícia é um grande navio sem bússola e sem timão”
Alexandre Dumas
Aquando do seu achamento em 1460, as ilhas de Cabo Verde eram desabitadas. O processo de povoamento começou em 1462 e a ilha de Santiago foi a
primeira a ser habitada. Dado à posição estratégica que Cabo Verde ocupa no
atlântico, na rota da navegação marítima, floresceu nessa ilha um importante
centro urbano – Ribeira Grande de Santiago, que viria a desempenhar um importantíssimo papel no comércio, na navegação marítima e na rota de escravos
para o continente americano.
A história de Cabo Verde é marcada por crises cíclicas (seca, pragas, fome)
que assolaram as ilhas com alguma regularidade, sendo de interesse para este trabalho as conhecidas fomes das décadas de 1920 e de 1940 e a estiagem da década
de 1960. O governo colonial nunca conseguiu implementar medidas que impedissem a morte de milhares de pessoas e a emigração forçada de outros tantos2.
Constituindo a agricultura o principal modo de vida dos cabo-verdianos, a
situação de seca que afeta diretamente grande parte da população, os abusos dos
proprietários das terras e, em alguns casos, o agravamento da carga fiscal em momentos de aperto ou de insuficiente produção agrícola são, entre outros, fatores
frequentemente associados a conhecidas revoltas e levantamentos populares nas
ilhas de Santiago, S. Vicente e Santo Antão, com realce para as primeiras quatro
décadas do século passado. Estas revoltas3 puseram amiúde, a nu, a fragilidade
das instituições encarregues da manutenção da ordem pública, do mesmo passo
que a sua inexistência ou o seu reduzido efetivo disperso pelas ilhas, não permitiam responder às exigências cada vez maiores. Esta situação de precariedade não
passava despercebida aos poderes coloniais que, a braços com dificuldades orça-
2. História Geral de Cabo Verde, Vol. 1, pag. 15 a 17.
3. As revoltas mais importantes encontram-se referenciadas nas pág. 37 e 38.
25
mentais, a muito custo iam conseguindo remediar a situação, com a agravante de
não disporem de força permanente em todas as ilhas.
De cada vez que a tensão social aumentava ou acontecia uma rebelião, o
governo da província procedia a uma reorganização da força de ordem para,
no final, tudo permanecer como antes, havendo casos em que os salários ou as
ajudas de custo atribuídas aos membros do corpo policial e da tropa,4 sofreram
aumentos de 200%, para serem de novo reduzidos em momentos de acalmia. É
neste mar de dificuldades, com avanços e recuos que a polícia cabo-verdiana navegou até a década de 1960, período em que rebentou a guerra colonial e a polícia
conheceu um nível mais elevado de organização, com representação ainda que
frágil, em todas as sedes de concelho da província. Mas as mudanças de fundo
na estrutura organizativa e na cobertura do território nacional ocorreram verdadeiramente no período pós-independência nacional, com destaque para os anos
de 1975 e 1984, durante a primeira república e para os de 1992 e 1998, depois da
transição democrática.
O objetivo desta pesquisa é estudar o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, tendo como referência as mais importantes
transformações ocorridas na organização policial no período que vai de 1870,
ano em que foi nomeada uma comissão para estudar e propor ao governo da província a criação do primeiro Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, até 2000,
ano que marca o fim da II Legislatura da II República. Ela investiga e procura
conhecer o processo de criação, a organização e o funcionamento das instituições
encarregues da garantia da segurança pública, bem como compreender o seu enquadramento no contexto político, económico e social que marcou a época. Ela
questiona, finalmente, se e em que medida a transição democrática contribuiu
para a emergência de um novo modelo de segurança pública.
Para a concretização desse objeto de estudo foi utilizado o método de pesquisa qualitativa do tipo desenvolvimentista, bibliográfico e histórico, tendo-se
procedido a aturada pesquisa documental e bibliográfica com o intuito de reunir
elementos factuais sobre o processo de institucionalização da segurança pública
em Cabo Verde. Procurou-se, igualmente, com recurso à bibliografia assinada
pelos mais destacados autores desta área, mas também a estudos e trabalhos académicos correlacionados, fazer o enquadramento teórico de importantes temas
4. Também aos funcionários públicos, de um modo geral.
26
como o Estado e a sua função no domínio da segurança, o uso legítimo da força,
a segurança pública, a transição democrática e os sistemas policiais.
Em Cabo Verde, as razões da criação de um corpo policial não diferem daquelas que universalmente se apresenta como fator comum – a criminalidade.
Ao longo do período em estudo, Cabo Verde passou por três momentos históricos durante os quais, foram tomadas importantes decisões que marcaram,
cada um a seu modo, o processo de criação e consolidação por que passou a
instituição policial.
Durante o primeiro período (1872 a 1910), em que vigorou o regime monárquico, o Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia era uma instituição débil,
com jurisdição apenas sobre o território municipal da Praia e com um reduzido
número de efetivos. O melhor que se pode fazer foi criar um corpo de polícia
também para a cidade do Mindelo5 , com as mesmas carências e limitações já
conhecidas.
No segundo período (1910 a 1964), que decorre da implantação da república
até o eclodir da guerra colonial, a polícia conheceu várias medidas de reorganização motivadas por revoltas e levantamentos populares e por razões orçamentais,
sendo certo que as mais importantes tiveram lugar nas décadas de 1930 e 1960.
E o terceiro período (1975 a 2000), que decorre da proclamação da independência ao ano em que terminou a II Legislatura do II Governo Constitucional
da II República, foi um período de construção de uma polícia para responder
às exigências de um país independente. Foi neste período que aconteceram as
mais importantes transformações no enquadramento legal, na organização e no
funcionamento da polícia.
É sobre este período de pouco mais de um século que incide este trabalho.
Ele está estruturado em três capítulos, que permitem compreender o processo de institucionalização da segurança pública em Cabo Verde e analisá-lo à luz
do pensamento científico.
O primeiro capítulo intitulado “As raízes da polícia cabo-verdiana”, investiga e procura identificar as raízes da polícia cabo-verdiana para compreender o
processo do seu nascimento e evolução, sem perder de vista o contexto político,
5. Decreto nº 2, de 24 de dezembro de 1896, publicado no Boletim Oficial nº 7, de 13 de Fevereiro de 1897.
27
económico e social da época em que esse processo ocorreu.
Este capítulo, que se subdivide em três partes, dedica a primeira, sob o título
“O exército miliciano e os oficiais camarários”, ao período que antecedeu a criação do primeiro Corpo de Polícia em Cabo Verde, procurando conhecer as organizações, entidades e instituições que intervinham na manutenção da ordem,
quais as suas atribuições específicas, como se articulavam e de um modo geral
conhecer os mecanismos de garantia da ordem pública nesse período.
A segunda parte sob o título “Criação e evolução do corpo da polícia civil da
cidade da Praia”, é dedicada ao estudo do processo de criação, organização e funcionamento da polícia durante o período coberto pelo estudo. Ela visa conhecer
em detalhe os fundamentos da criação do Corpo de Polícia Civil da Praia e as
mutações por que passou durante o período em análise e compreender as motivações, o sentido e o alcance dessas mutações.
Na terceira parte sob o título “Referências na criação da polícia em Cabo
Verde“, o foco do estudo é concentrado na análise do conteúdo dos regulamentos, procurando identificar aproximações ou influências de outras organizações
policiais na criação e consolidação do modelo de polícia cabo-verdiana. Faz-se
um paralelo com a polícia do Reino, e vai-se buscar, como referência, a caracterização de outras polícias continentais europeias, da “nova polícia” londrina, da
americana e brasileira feita por conhecidos autores estudiosos desta matéria.
O segundo capítulo intitulado “A independência e a construção do Estado”,
é dedicado ao período da independência nacional e está dividido em duas partes. Na primeira com o título “Construção do Estado e seus reflexos na polícia“,
analisa-se o contexto político em que nasceu a República de Cabo Verde, identificam-se os traços marcantes do regime político instituído à luz do posicionamento
ideológico do partido que conduziu a luta armada para a independência e todo o
processo que desembocou na proclamação da independência e procura-se identificar reflexos ou influências do modelo de Estado construído na organização
policial.
Na segunda parte, intitulada “A segurança pública nos programas de governo”, analisa-se o conjunto dos programas de governo aprovados durante as cinco
legislaturas que cobrem o período pós-independência e busca-se compreender
como os governos olhavam para a segurança pública e quais as medidas que se
propunham materializar para cumprir a função segurança do Estado.
28
O terceiro capítulo, intitulado “A transição democrática”, está também dividido em três partes. A primeira sob o título “Enquadramento teórico”, discute o
tema da transição democrática, tendo como referência conceituados autores sobre
a matéria. Procura-se analisar os tipos de transição democrática, identificar aquele que se aplica ao nosso caso e identificar os elementos que devem fazer presença
no processo de construção da democracia.
A segunda parte, sob o título “Surgimento e controlo dos sistemas policiais”,
é dedicada ao surgimento e controlo dos sistemas policiais. Nela são discutidos
aspetos relativos ao surgimento e controlo dos sistemas policiais, trazendo a abordagem dos principais estudiosos da matéria, especificamente no que respeita aos
fundamentos da criação das instituições policiais e à disputa desse controlo entre
órgãos administrativos locais e centrais.
Na terceira e última parte, sob o título “Policia e segurança pública”, procura-se definir o conceito de polícia e debate-se o papel do Estado enquanto entidade que detém o monopólio do uso legítimo da força, procurando-se compreender
o verdadeiro sentido desta prerrogativa do Estado. Debate-se ainda o binómio
segurança e liberdade evidenciando-se a fragilidade da fronteira que separa uma
da outra, o que implica a constante procura do equilíbrio entre uma e outra.
A concluir o presente trabalho são apresentadas as considerações finais.
29
CAPÍTULO I
AS RAÍZES DA POLÍCIA EM CABO VERDE
1.1 - O EXÉRCITO MILICIANO E OS OFICIAIS CAMARÁRIOS
Do seu achamento em 1640 até o ano de 1872, não se conhece qualquer sinal
da existência de uma organização que se dedicasse, em exclusivo, à manutenção da
ordem pública na vila da Ribeira Grande de Santiago, o principal centro urbano
das ilhas de Cabo Verde e um dos primeiros erguidos pelo império português em
África, na época em análise, nem em qualquer outro ponto do arquipélago. A
garantia da ordem era tarefa repartida entre um exército miliciano que ao mesmo
tempo se dedicava à defesa da vila contra a invasão dos corsários, e oficiais camarários com destaque em primeiro lugar para os “juízes ordinários” encarregues de
“… administrar a justiça (em primeira instância) entre vizinhos, e julgar as causas
dos navegantes e do mar…”6 e com competência para manterem a ordem pública
e fiscalizar a execução das posturas camarárias e as leis do Reino7 , depois para
os “juízes vintenários” que julgavam as pequenas causas entre grupos de vinte
fogos, para além de velarem pela ordem pública e segurança dos povos e dos bens,
promoverem a vigilância, medidas sanitárias e policiamento,8 e os meirinhos da
serra9 , estes com a função específica de fazer a “caça e captura dos escravos fujões”.
Tão longe quanto esta pesquisa permitiu alcançar, foi a Portaria nº 81, de 12
de abril de 1864, assinada pelo Governador-geral, Carlos Augusto Franco, que
aprovou o primeiro regulamento de patrulha da cidade da Praia, que cometia esta
missão ao batalhão de artilharia de primeira linha que a cumpria diariamente en-
6. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 241.
7. Idem.
8. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 241 a 242.
9. Para contextualizar o surgimento e o papel do “meirinho da serra”, vide História Geral de Cabo Verde,
Vol. II, p. 275 a 290. Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura – Editorial Verbo – 13º Vol.,
“… na perspetiva histórica, Meirinho era um juiz régio, encarregado de dar execução às sentenças do soberano. De origem visigótica e leonesa, o nome maiorinus de onde derivou o meirinho, designava aquele
que detinha a “maioria” dos poderes. Atribui-se a sua instituição a Bermudo II. Em território português
surgem os meirinhos no Sec. XI, como magistrados de grande prestígio, com jurisdição sobre territórios
determinados …”.
30
tre as nove horas da noite e o raiar do dia, para atender “… á necessidade urgente
de provêr á segurança pública e de obstar à continuação de alguns roubos, que
ultimamente aqui tem tido logar a despeito dos poucos recursos de que dispõe o
governo … “10 .
Tenha-se presente a importância e o papel que a câmara e a milícia tiveram
no processo de afirmação da elite11 cabo-verdiana. Com efeito, estas duas instituições funcionaram como,
[…] um instrumento de solidariedade que permitiu à elite cabo-verdiana,
apesar de existirem no seu seio divergências de interesses pontuais, unir-se, mobilizar-se, resistir e lutar contra o esvaziamento dos seus privilégios, prerrogativas e
honrarias; contra as vexações dos governadores e ouvidores; contra a prepotência
dos feitores das companhias de comércio; contra os ataques dos piratas como
elemento fundamental para a protecção dos portos das ilhas […]12
Como poder político e militar legitimaram a “nobreza concelhia” enquanto
único representante dos interesses de todos os vizinhos e interlocutor privilegiado
da coroa, exercendo controlo sobre os moradores através dos poderes judiciais
que detinham e “disciplinando o povo miúdo por meio da milícia”13 .
Na procura do seu espaço na sociedade da época, não restava à elite caboverdiana outro caminho senão exercer funções concelhias, o que não era possível
sem antes integrar a milícia. A chefia da milícia era algo cobiçado, pois, para
além de assegurar um cargo vitalício, conferia poder e influência na sociedade,
comparáveis com os do clero.
Tendo, embora, como objeto de estudo a análise da relação entre as elites
intelectuais e o nacionalismo em Cabo Verde, José Carlos dos Anjos escreve que,
10. Para contextualizar o surgimento e o papel do “meirinho da serra”, vide História Geral de Cabo Verde,
Vol. II, p. 275 a 290. Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura – Editorial Verbo – 13º Vol.,
“… na perspetiva histórica, Meirinho era um juiz régio, encarregado de dar execução às sentenças do soberano. De origem visigótica e leonesa, o nome maiorinus de onde derivou o meirinho, designava aquele
que detinha a “maioria” dos poderes. Atribui-se a sua instituição a Bermudo II. Em território português
surgem os meirinhos no Sec. XI, como magistrados de grande prestígio, com jurisdição sobre territórios
determinados …”.
11. Segundo Iva Cabral, in História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 235 “ … Utilizamos aqui o conceito de
elite no sentido de “/…/ uma fracção da população onde se concentram poderes, autoridade e influência
/…/” apresentado por Guy Chaussinand Nogaret (direcção de), Histoire des Elites en France du XVIe au
XXe Siècle – L’honneur – Le Mérite – L’Argent, Editions Tallandier, Paris, 1991, pp. 11 a 13 …”.
12. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 236.
13. Idem.
31
[…] até fins do século XIX, a sociedade colonizada cabo-verdiana se estruturava sob a dominação racial de uma minoria branca sobre a maioria negra
da população; em fins do século XX Cabo Verde é uma sociedade estruturada
sob a dominação de elites que, pela manipulação dos códigos político-culturais
ocidentais, fazem a mediação entre o sistema internacional e a população local.
Desaparecem internamente as contraposições assentadas em critérios raciais e/ou
étnicos, ao mesmo tempo em que se reforçam as distâncias culturais, não mais
diferenciando grupos étnicos, mas criando elites destacadas pelo desempenho e
manipulação dos códigos dominantes ocidentais […] (Anjos, 2003, p. 582).
Embora num contexto de dominação racial de uma minoria branca, as elites “cabo-verdianas” do século XVI procuraram, pelo desempenho de cargos,
designadamente nas milícias e nos órgãos camarários, o domínio dos “códigos
dominantes” para elevarem o seu estatuto social e dele tirar benefícios, designadamente transformando-se em interlocutores privilegiados, da coroa e do Reino,
exatamente pelo domínio dos “códigos” a que se refere José Carlos dos Anjos
(2003).
Para que se alcance e se compreenda a natureza e os traços marcantes do
exército miliciano de então, bem como do surgimento dos meirinhos, figura que,
aliás, já existia no Reino, e se conclua da inexistência de uma força policial nas
ilhas, a História Geral de Cabo Verde (SANTOS, 2002, pp. 42, Voll. III), ao se
referir à fuga de escravos enquanto traço estrutural da sociedade escravocrata,
realça que a fuga torna-se um problema central na agenda de preocupações dos
proprietários fundiários (grandes e pequenos), mas não só a deles. E explica que,
[…] o fugitivo gera em grande parte da sociedade preocupações económicas
(subtração da força de trabalho), de segurança (assaltos e ataques), sociais (estímulo à fuga dos companheiros em cativeiro) e, por fim, políticos (o perigo de
uma tomada de poder). Por isso a sociedade cedo põe de pé mecanismos e expedientes de repressão do fenómeno […] (SANTOS, 2002, p. 42).
A preocupação com a fuga faz todo o sentido se se considerar que o controlo
sobre a força de trabalho dos fujões, assente maioritariamente na coerção e na
ameaça, revestiu-se, no seculo XVIII de uma importância transcendente dado
a uma aguda crise de mão-de-obra que atingiu o setor da agricultura comercial
de Santiago. Assim se compreende que os forros, os fujões e os “viventes sobre
si próprios” passassem a ser vistos como um imenso e alternativo reservatório de
32
força de trabalho a controlar. E a razão de ser desse controlo parece encontrar
explicação no facto da fuga, em si mesma, representar não apenas a privação de
mão-de-obra para os senhores de escravos mas, sobretudo, a “violação da ordem
natural das coisas”14 , assumindo características geográficas (refúgio nos espaços
serranos), sociais (condutas insubordinadas) e culturais (novos padrões de cultura).
Para caracterizar a regularidade e o alcance dos “mecanismos e expedientes”
antes referidos, enfatiza-se que,
[…] Estes começam a ter um caracter excepcional e extraordinário. De início não eram mais do que organizações espontâneas dos proprietários de terras,
incentivadas e com o beneplácito do aparelho administrativo régio. Recordemos,
por exemplo, que, em 1528, o almoxarife Rodrigo Óbidos recompensava a 300
reais cada escravo que alguém capturasse […] (SANTOS, 2002, p. 42).
No que se refere à eficácia de tais “mecanismos e expedientes”, escrevem os
autores da História Geral de Cabo Verde (SANTOS, 2002, p. 43), que.
[…] dada uma provável ineficácia deste expediente e face à intensidade crescente do fenómeno (fuga), cria-se, em 1534, o ofício de meirinho da serra. Apesar
do carater oficial do cargo, este permanece, tanto pelo financiamento como pelo
recrutamento, largamente na dependência dos grandes agricultores … O meirinho era pago a meias pela Feitoria Real e pelo Conselho da Câmara, ou, então, na
ausência de receitas deste, directamente pela contribuição do povo […].
O meirinho da serra era auxiliado por dois homens que ficaram conhecidos
como “homens do meirinho” e tinham como missão primordial, a “caça e a captura de fujões”.
Face à grande resistência dos fujões, assentados em zonas de difícil acesso e
organizados em grupos dispersos, as tentativas de recaptura e punição levadas
a cabo pela milícia da terra (dirigida sempre por grandes terratenentes, quase
todos eles coronéis e capitães) não surtiram o efeito desejado e em 1733, dois
séculos depois da criação dos meirinhos da serra, o Governador-Geral das ilhas
expõe de forma clara a baixa eficácia do seu aparelho militar que, enfrentando
graves problemas orçamentais, com elevado absentismo e eivada de contradições
14. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 240 a 242.
33
sociais entre o nível cimeiro e o de base e composto basicamente por “… pretos
forros, na maioria pequenos camponeses, cuja condição social se aproximava da
dos negros fujões das montanhas, as milícias formavam uma organização heterogénea…” onde a multiplicidade de interesses dos atores que a integravam “…
frena e bloqueia o processamento de ordens repressivas…”, ou seja, “ … como os
que hão-de fazer as execuções são parentes, compadres e amigos, uns dos outros
é mais dificultoso prender…” (Santos, 2002, p. 43).
A mesma situação era descrita em 1731 pelo ouvidor José da Costa Ribeiro
que dizia numa carta enviada ao Rei,
[…] Além dos furtos de que não fazem escrúpulo, as mortes são, e os delitos
inumeráveis; tiram-se devasas mas não se prende criminoso algum, porque como
os que hão-de fazer estas diligências são outros da sua cor, preto não prende preto
e nesta forma serão mais de 300 criminosos […]
Refere a Historia Geral de Cabo Verde15 , citando Foucault, na sua reflexão
sobre o poder que nos ensina que o poder é um dado eminentemente relacional.
Na verdade, segundo Foucault, “… o poder não se funda em si mesmo e não se
dá a partir de si mesmo…” (FOUCAULT, 2008), o que coloca os terratenentes
numa encruzilhada. Por um lado “… os terratenentes escravocratas só podem
empreender o projecto de reescravização dos fujões, o que inclusive passava por
ações de recaptura, se dispuserem de recursos repressivos organizados e operacionais…” e, por outro, precisam da participação ativa de indivíduos que, maioritariamente, pertencem à mesma condição social dos que devem ser recapturados e
reescravizados e, por isso não se mostram disponíveis para tal empreendimento.
As secas cíclicas e as mortes a elas associadas contribuíram para o declínio dos terratenentes que encontraram no contrabando, uma forma de atenuar
a situação. A grande quantidade de enseadas e de portos naturais que a ilha de
Santiago oferece, proporcionava condições ótimas para o desenvolvimento do
contrabando e a fiscalização estava condenada ao fracasso já que os latifundiários, que eram coronéis, capitães e sargentos-mores, sabiam que não havia meios
suficientes para contrapor àquela prática.
Em 1740, o ouvidor-geral das ilhas informava a Coroa que tinha conhecimento que capitães de navios ingleses andavam a negociar (urzela e panos) no
15. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 46.
34
Tarrafal e na Praia Formosa, na costa leste da ilha de Santiago e que enviou para
o local alguns oficiais que, recebidos a tiro “de artilharia com balas e mais armas
de fogo”, puseram-se em fuga. Era percetível uma cumplicidade entre as populações, membros das milícias e comerciantes estrangeiros.
Dava-se conta que os próprios oficiais estavam envolvidos nesse negócio com
navios ingleses, designadamente na vila da Praia de Santa Maria, o mais frequentado dos portos cabo-verdianos de então.16
A realidade que nesta matéria se vivia na vila da Ribeira Grande foi transportada para a vila da Praia de Santa Maria surgida em 1615, “… quando se deu
início ao povoamento de um planalto situado perto de uma praia (praia de Santa
Maria) que oferecia boas condições para navios…”.
De porto clandestino, bom refúgio para os que se furtavam ao pagamento
das taxas aduaneiras na então capital, Ribeira Grande, a localidade foi progressivamente adquirindo características de uma vila com a gradual fuga das populações da Ribeira Grande, aquando do declínio desta última, processo que
culminou, em 1770, com a passagem oficial da capital da vila da Ribeira Grande
para a da Praia de Santa Maria.17
A transferência da capital para a Praia acontece num momento em que o
exército miliciano se encontra enfraquecido e desacreditado perante as autoridades pelo envolvimento dos seus oficiais em práticas de contrabando.
Para além das milícias, tinham também responsabilidade em matéria de segurança pública, um conjunto de oficiais camarários cujo enquadramento resulta
de certa transposição do modelo existente no Reino para as ilhas de Cabo Verde,
com elementos colhidos e adaptados, segundo se acredita, da ilha da Madeira.
Segundo Ângela Domingues18 , o primeiro documento encontrado e que se
refere ao município em Cabo Verde, já como instituição conhecida, data de 1497.
A implantação, evolução e competências da câmara refletida na orgânica municipal, davam conta de um conjunto de oficiais que integravam o senado camarário,
com atribuições diversas, incluindo a matéria de garantia da ordem pública, e que
16. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 40 a 66.
17. Dados do site oficial da Câmara Municipal da Praia: http://www.cmp.cv/Autarquia/tabid/58/language/
pt-PT/Default.aspx, acessado em 15.05.2012.
18. História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 41 a 68.
35
podem ser elencados do seguinte modo: os juízes ordinários, juntamente com os
vereadores, o procurador, o tesoureiro e o escrivão.
Eram, no entanto, os juízes que se destacavam nesse elenco. Os juízes ordinários (dois na Ribeira Grande, dois na vila da Praia e um na ilha do Fogo)
eram encarregues da administração da justiça (em primeira instância) entre os
vizinhos19 e de julgar as causas dos navegantes e do mar. Encarregavam-se ainda
de manter a ordem pública e de fiscalizar a execução das posturas camarárias e
das leis do Reino.
A par dos juízes ordinários existiam os juízes vintenários que julgavam pequenas causas entre grupos de vinte fogos. Cabia-lhes velar pela ordem pública,
segurança dos povos e dos bens, promovendo vigilância, medidas sanitárias e
policiamento.20
Os vereadores eram magistrados que se dedicavam, essencialmente, à “ordem
administrativa local”. Tinham como função “o carrego de todos regimento da
terra e das obras do concelho e aos quais competia tudo poderem saber, e entender, porque a terra e os moradores della bem possão viver”.
Os vereadores eram, por sua vez, auxiliados por outros oficiais camarários
dos quais se destaca; os “almotacés”, estes encarregues da “… inspecção dos pesos
e medidas,… do saneamento urbano e da vigilância das construções privadas e
obras públicas…”, os alcaides que “…estabeleciam com os meirinhos, o policiamento do núcleo habitacional e que tinham capacidade para prender os infractores, guardar os presos e constranger ao pagamento de dívidas…” e os “quadrilheiros”21 que tinham a missão de “… fazer o policiamento das ruas, evitar desordens
19. “Vizinhos” era a designação que recebiam “ … os naturais de uma povoação que detinham alguma dignidade ou ofício régio ou senhorial e que vivesse no lugar ou no termo, que casasse com mulher da terra
e ai residisse e tivesse a maior parte do seu património messe local durante, pelo menos, quatro anos…”.
Em contrapartida, os “moradores” eram aqueles indivíduos que possuíam um elevado estatuto que lhes
permitia comerciar com a costa oeste africana. (História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 63).
20. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 238 a 243.
21. “… Os “quadrilheiros”, o primeiro corpo de agentes policiais, foi criado por D. Fernando I, com um
efetivo de 20 elementos, tendo recebido um Regimento, datado de 12 de Setembro 1383, que refere no seu
preâmbulo a grande criminalidade que grassava na cidade de Lisboa. Recrutados à força, entre os homens
mais fortes fisicamente ficavam subordinados à edilidade, por três anos consecutivos, e obrigados por juramento a terem as suas armas (uma Vara, que devia estar sempre à porta de cada um deles, a qual representava o sinal de Autoridade para prenderem e conduzirem o criminoso perante a Justiça dos Corregedores…).
In site oficial da PSP: http://www.psp.pt/Pages/apsp/historia.aspx?menu=1&submenu=4
36
e furtos e prender os homiziados…”22 .
No Reino, e assim também em Cabo Verde, os corpos de polícia eram auxiliados por outras autoridades locais.
É importante aqui recordar que a estrutura de base do poder local português
foi delineada no Código Administrativo aprovado em 1836, no contexto de um
Estado emergente da revolução liberal e ainda com traços do antigo regime. Mas,
antes do Código Administrativo, pelo Decreto Nº 25 de 26 de novembro de
1830, foram instituídas as Juntas de Paróquia com o argumento de que era
[…] necessário para o bom regimento e polícia dos povos que haja em todas
as Paróquias alguma autoridade local…uma Junta nomeada pelos vizinhos, encarregada de promover e administrar todos os negócios que forem de interesse
puramente local […].
Tais Juntas funcionavam na dependência do “Regedor” que detinha competências de natureza administrativa e “um longo rol de competências policiais”,
onde despontavam desde a manutenção da ordem pública na Paróquia à prisão de
pessoas culpadas, passando pela vigilância sobre os ladrões e salteadores e sobre
estalagens, tabernas e mais casas públicas, fazendo com que nelas fossem observados os Regulamentos de Polícia e as Posturas Municipais23 .
O “Regedor”, que também chegou a ser designado “Comissário”24 , detinha
competência própria ou delegada e exercia primordialmente funções de natureza
policial com o objetivo de manter a ordem pública, procurando prevenir e reprimir a criminalidade e a vadiagem, atuando também na investigação de crimes,
tarefas em que era coadjuvado pelos seus Cabos.
Cada “Comissário” era apoiado por “Cabos de Polícia”, um por rua, obrigados a relatar ao respetivo Comissário “…todos os acontecimentos do dia e noite
antecedentes...”25 .
22. História Geral de Cabo Verde, Vol. I, p. 67.
23. Vide, Bonfim - Séc. XIX: A regedoria na segurança urbana – Maria José Moutinho Santos - Professora
Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
24. Foram várias as revisões do Código Administrativo, sofrendo a figura do Regedor alterações diversas,
tanto na designação como no seu estatuto, mas mantendo-se a substancia das suas competências.
25. Vide, Bonfim - Séc. XIX: A regedoria na segurança urbana – Maria José Moutinho Santos - Professora
Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
37
Aos “Cabos” estavam reservadas competências no domínio da polícia preventiva, razão pela qual deveriam ser escolhidos entre os cidadãos “mais autorizados”
de modo a assegurar, por sua influência e superioridade junto dos vizinhos, “…
o respeito e obediência em suas admoestações, conselhos e ordens em tudo o que
respeitasse à manutenção do socego, ordem e segurança pública e individual...”26 .
Se teoricamente o perfil dos “Cabos” era traçado com as preocupações atrás
referidas, a realidade era, porém, bem outra. Eram homens de trabalho, de diversas profissões, “… muitas vezes gente rude, que, sem remuneração alguma, se
prestava a rondar de noite, a patrulhar feiras e arraiais, a prender criminosos e
desertores, a escoltar presos...”27 .
Estas duas figuras, “Regedor” e “Cabo da Polícia”, este mais conhecido em
Cabo Verde por “Cabo Chefe”, desempenharam um importante papel enquanto autoridades locais e auxiliares das forças públicas na manutenção da ordem.
Enquanto o Regedor desempenhava as suas funções nas sedes dos concelhos, o
Cabo Chefe era o representante da autoridade administrativa e policial nos povoados e era munido de uma espada que simbolizava o poder real a que serviam.28
No seu trabalho sobre “O poder local e a divisão administrativa em Cabo
Verde no pós-independente”, Eurico Pinto Monteiro29 escreve:
[…] Em ordem a incrementar a participação popular na gestão dos assuntos
públicos, que era mais directa, concreta e eficaz quanto menor fosse a sua área de
jurisdição, e a integrar o grave vazio administrativo que emergiu com a supressão,
em 1975, dos cargos de regedor e de cabo-chefes, foram instituídas, em 1979,
como órgãos de base de poder local, as Comissões de Moradores, com actuação
nos povoados e bairros [...].
26. Idem.
27. Idem.
28. A título meramente ilustrativo, nos concelhos do interior da ilha de Santiago, quando alguém cometia
uma infração num povoado qualquer e, por uma razão ou outra, via-se o cabo chefe impedido de o escoltar
até o posto policial da sede do concelho, ele entregava a espada ao próprio prevaricador que fazia às vezes
grandes percursos a pé, para fazer a entrega da espada à autoridade policial. Era também usual o cabo
chefe designar um acompanhante que, empunhando a espada, conduzia o prevaricador ao posto policial.
Constituía um verdadeiro sacrilégio não fazer a entrega da espada.
29. Poder Local e Divisão Administrativa em Cabo Verde no Pós-Independente (1975-1990). Comunicação
apresentada no Colóquio Internacional: “Descentralização e Divisão Administrativa: Que Modelo para
um Pequeno Estado Arquipelágico como Cabo Verde”. Eurico Pinto Monteiro exerceu, entre outros, o
cargo de Diretor-Geral da Administração Interna (1977 a 1984).
38
Não obstante as pesquisas levadas a cabo, não foi possível precisar a data exata da introdução destas autoridades locais (regedor e cabo da polícia) no sistema
administrativo cabo-verdiano. Pode-se, no entanto, confirmar, que já em 1853
correram autos em processo de querela em que é querelante o Ministério Público
e o querelado o Regedor da Paróquia da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da ilha do Fogo, Sebastião da Maia30 . Em 1910, a Imprensa Nacional de
Cabo Verde dava à estampa a brochura intitulada “Instruções para os Regedores
e Cabos de Polícia da Província de Cabo Verde”,31 que vem confirmar a presença
das referidas autoridades locais na administração cabo-verdiana e clarificar o seu
papel e definir o quadro das suas atribuições.
Da consulta destas instruções fica-se a saber, de entre outras matérias, que em
cada paróquia havia um regedor nomeado pelo Governo da Província sob proposta do Administrador do Concelho,32 que a nomeação era feita pelo período de
um ano, recaindo sobre residentes na paróquia há mais de um ano que sabiam ler,
escrever e contar, que o regedor não vencia ordenado, mas tinha direito a emolumentos conforme uma tabela aprovada, que não era magistrado administrativo,
mas exercia as funções de administração pública que lhe fossem delegadas pelo
administrador do concelho, com prévia autorização do governo da província – as
competências delegadas no domínio da segurança pública são permanentes – e
que detinha um leque variado de atribuições enumeradas em trinta e sete itens,
que respeitam às áreas da ordem publica, da policia económica e sanitária, dos
costumes, dos registos, da estatística, do senso populacional e administrativas.
Alguns anos mais tarde, a publicação do Decreto nº 25.204, de 1 de abril de
1935 que aprova o quadro do serviço administrativo da colónia de Cabo Verde
estabelece, na parte relativa aos serviços locais e, no que tange à remuneração dos
regedores (e cabos chefes), que devem existir,
[…] 31 regedores de freguesia e os cabos chefes julgados indispensáveis, devendo em regra haver um em cada povoação, com os auxiliares necessários, que
se denominarão guardas administrativos … mas é gratuito e obrigatório o exercício dos cargos de regedor de freguesia, cabo chefe e guarda administrativo […].
30. Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, Caixa 1775, data inicial 1853, data final 1854, ARM2, 1
cm, Originais manuscritos.
31. Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, Imprensa Nacional, 1910.
32. Mais tarde o regedor e o cabo da polícia passaram a ser nomeados pelo Administrador do Concelho.
39
Em relação aos cabos da polícia as referidas instruções definem-nos como
ajudantes dos regedores, propostos por estes e nomeados pelo Administrador do
concelho, de entre indivíduos de até 50 anos, que exerciam tais funções de forma
obrigatória até um ano, não podiam ser obrigados a prestar serviço fora da sua
freguesia, a sua nomeação só podia ser feita em janeiro de cada ano e ninguém
podia ser nomeado dentro de 15 dias antes das eleições para deputados.
Outra autoridade local, situada a um nível muito superior ao do regedor e
do cabo da polícia, aliás, com competência para a nomeação destes, com amplos
poderes e atribuições no domínio da segurança pública e que merece ser referido,
é o Administrador do Concelho que surgiu em Portugal com a reforma administrativa protagonizada por Rodrigo da Fonseca em 1835, em substituição do
Provedor. De natureza liberal e descentralizadora visava, a um tempo, reforçar o
poder deliberativo camarário e frenar a reforma centralista de 1832, levada a cabo
por Mouzinho da Silveira.
Nomeado pelo governador da província, o Administrador do Concelho encabeçava a câmara municipal e acumulava os cargos de chefe das obras públicas,
comissário de polícia, conservador dos Registos civil e predial, diretor dos serviços de economia, para além de juiz de instrução criminal com competência
para proferir sentenças que implicassem prisão até seis meses. Nos concelhos do
Sal, Boavista e Maio, conforme o Decreto nº 25.204 de 1 de abril de 1935, os
administradores do concelho agregaram ainda à sua longa lista, atribuições nos
domínios da fazenda, das alfândegas e da marinha.
Como se pode verificar, um grupo diferenciado de oficiais camarários tinham atribuições no domínio da ordem pública, cabendo, no entanto, à milícia,
a intervenção repressiva por excelência. A milícia, instituição criada em 1570
com o Regulamento dos capitães-mores, manteve-se em atividade no Reino e nos
territórios ultramarinos durante quase três seculos, sendo extinta pela revolução
liberal de 1830.33
33. História Geral de Cabo Verde, Vol. III, p. 246.
40
1.2 - CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL
DA CIDADE DA PRAIA
Sendo insuficiente o efetivo do batalhão de artilharia de primeira linha que
se ocupava do policiamento noturno da cidade da Praia que se via a braços com
outras tarefas diárias, que como atesta a Portaria nº 81, de 12 de abril de 1864,
“ … Não sendo possível, em presença do diminutíssimo número de soldados
promptos … e do muito sobrecarregados que se acham os soldados com o serviço
diário, de que apenas folgam meio dia … estabelecer um serviço efetivo de polícia nesta cidade …”, decidiu o governador geral Caetano Alexandre de Almeida
e Albuquerque, através da Portaria nº 194 de 26 de julho de 187034 , nomear
uma comissão presidida por Wenceslau Frederico do Quental e Silva, presidente
da câmara municipal da Praia e integrada pelo bacharel Alfredo Troni e pelo
cidadão António Júlio Pardal, encarregada “… de estudar e propor … um regulamento para o referido corpo de polícia, tendo em vista o quanto convém que
aquelle serviço se faça com a maior economia para o município…”, para satisfazer
as exigências do serviço público na capital da província.
Passados dois anos e meio sobre a data da nomeação da referida comissão,
foi publicada, em 24 de dezembro de 1872, a Portaria nº 43335 , dando conta da
criação de “… um corpo de polícia civil no concelho da cidade da Praia de S.
Thiago …”.
O Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia nasce marcado por dois imperativos que se confrontam. De um lado, o aperto financeiro que então se vivia e
que se evidencia na orientação emitida pelo governador-geral “… com a maior
economia para o município…” e, de outro, as “… exigências do serviço público…” melhor desenvolvidas e clarificadas no preâmbulo da Portaria nº 433 que
nomeia a comissão, explicitando que,
[…] Exigindo o grau de desenvolvimento e de progresso que há atingido esta
cidade da Praia de S. Thiago que n’ella se organize um serviço policial em harmonia com esse estado de adiantamento, e destinado a velar pela ordem e segurança
públicas, e pelo cumprimento das prescrições policiaes em vigor o Governador
34. In Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde, de 1870. Não se fazia, na época, a numeração
dos Boletins Oficiais. As matérias são localizadas pela data ou pela ordem numérica das Portarias.
35. In Boletim Oficial do Governo da Província de Cabo Verde, de 1872.
41
Geral da Província, ouvido o Conselho do Governo, há por conveniente determinar … a criação de um corpo de polícia civil […].
A mesma Portaria aprovou o “Regulamento para o serviço do Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia” que estabeleceu que o administrador do concelho
seria o “chefe geral” do Corpo de Polícia Civil, este constituído por dois Chefes
de Esquadra e por vinte e quatro guardas, recrutados entre “praças do batalhão
de primeira linha aquartelado n’esta cidade”, escolhidos pelo governador geral.
Aos chefes de esquadra exigia-se que soubessem ler, escrever e contar e competia-lhes,
[…] Cumprir na parte que lhes respeitar, e transmittir aos guardas as ordens
e instrucções que para tal fim houverem recebido do seu chefe, a quem darão
parte das faltas de serviço cometidas pelos guardas […] Visitar frequentes vezes,
tanto de dia como de noute, os differentes distritos policiaes para verificar se os
guardas que estão sob as suas ordens cumprem cabalmente as obrigações de serviço […] Explicar aos guardas as suas attribuições e deveres afim de que eles nem
deixem de cumprir estes e nem exorbitem d’aquellas por motivo de ignorância;
e dar parte ao chefe geral dos que por falta de intelligencia não poderem desempenhar bem o serviço, para que sejam substituídos […] Dar ao chefe geral uma
parte diária dos acontecimentos que tiverem ocorrido na cidade e que tiverem
relação com o serviço policial, apontando as providencias que houverem adoptado, e relatando circumstanciadamente os factos criminosos com indicação dos
nomes e moradas das pessoas que acerca d’elles poderem depôr […] Responder
pelo asseio e boa ordem da estação policial […] Abster-se de usar da força e da
authoridade inherente às suas funções, devendo evitar as maneiras asperas e as
palavras ultrajantes, que poderiam fazer diminuir a consideração e a confiança
que a policia deve inspirar, e fazendo compreender ao povo que a sua presença
no meio d’elle tem unicamente por fim a conservação da ordem, e a segurança
individual e da propriedade […]
A abstenção do uso da força era também aplicável aos guardas a que o Regulamento já não exigia o “saber ler, escrever e contar”. As obrigações dos guardas
estendiam-se por oito artigos, subdivididos em mais vinte e três alíneas. A sua
obrigação principal era,
[…] rondar de dia e de noute, durante as horas de serviço que lhes competirem, as ruas, praças, largos e travessas dos seus districtos cumprindo as instru42
ções e ordens que houverem recebido dos seus superiores, evitando pendencias e
escândalos, e protegendo eficazmente a segurança das pessoas e da propriedade,
e os demais direitos dos cidadãos […].
O referido regulamento, constituído por sete capítulos, para além de estabelecer as atribuições dos chefes de esquadra e dos guardas, define a organização e
o funcionamento dos serviços policiais, bem como o uniforme e o armamento.
O corpo da polícia estava dividido em duas esquadras de doze guardas cada,
comandadas, cada uma delas, por um chefe de esquadra e o serviço era dividido em “ordinário” e “extraordinário”. O uniforme era fornecido pelo “conselho
administrativo do Batalhão de caçadores nº 1 e pago pelo desconto de 50 réis
diários feito a cada praça até total pagamento do seu respectivo débito”. Tanto
os chefes de esquadra como os guardas eram obrigados a comparecer ao serviço,
mesmo se para tal não estivessem escalados, salvo se estivessem “doentes ou no
goso de licença”. As licenças eram gozadas com ou sem perda de vencimento
e eram concedidas pelo chefe geral até oito dias, e pelo Governador-geral, por
período superior. O corpo da polícia civil deveria ter uma estação assinalada
com uma inscrição colocada acima da porta: “Estação de polícia da cidade da
Praia”. Como armamento quotidiano, os chefes de esquadra e os guardas usavam
o “traçado”36 . As armas de fogo eram usadas apenas “quando as circunstâncias
o exigirem”.
O último capítulo do regulamento tratava das penas aplicáveis aos chefes
de esquadra e guardas pelas infrações cometidas, penas que consistiam em “reprehensão em particular, ou em frente da esquadra, segundo a gravidade do caso,
serviço de castigo, suspensão de exercício e vencimento e demissão”.
A criação e a organização do Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia, pela
Portaria nº 433, de 24 de dezembro de 1872, do Governador-geral da Província, só foram aprovadas pelo Decreto sem número, de 13 de agosto de 1873,
assinada pelo então “ministro e secretário d’estado dos negócios estrangeiros, e
interino dos da marinha e do ultramar”, João de Andrade Corvo em cujo artigo
3º estabelecia de forma clara que os chefes de esquadra e os guardas não podiam
ser perturbados no seu trabalho e que “os insultos, actos de desobediência ou de
resistência aos seus mandatos serão punidos na conformidade da lei penal como
36. Traçado ou terçado é, segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira, uma espada de folha larga e curta. Um
facão.
43
praticados contra magistrados administrativos ou judiciais”.
Criado que foi um corpo para o policiamento na cidade da Praia, surgiu, em
1878, como atesta a Portaria nº 61, de 18 de fevereiro, a primeira manifestação
de preocupação com o das restantes ilhas do arquipélago que, no dizer do então
Governador-geral Vasco Guedes de Carvalho e Menezes, onde
[…] o policiamento não é desempenhado com a indispensável vigilância e a
precisão necessária, sendo insuficientíssimos para o fazerem os pequenos destacamentos do batalhão de caçadores 1, que por ellas se acham espalhados; os quaes,
sobre não satisfazerem ao fim para que se destinam, vão por outro lado influir
perniciosamente na economia e disciplina do corpo, assim extraordinariamente
desfalcado; Attendendo a que é d’urgencia providenciar a tal respeito; pois que da
perfeita segurança da vida e da propriedade dos cidadãos, depende essencialmente a prosperidade da comunidade: […],
Cria uma comissão para estudar e propor ao governo,
[…] O modo mais conveniente e económico de se levar á execução de pequenos corpos de polícia ou de guardas municipais nas ilhas do archipelago, para
sustentação dos quais, como é de razão, deverão concorrer as câmaras respectivas
[…].
Não se conhece qualquer proposta apresentada pela comissão criada em
1878, sabendo, contudo, que no ano seguinte, pela Portaria nº 102, de 7 de abril
de 1879, foram criadas, a título provisório, duas companhias de polícia militar
para guarnição da ilhas do arquipélago, sendo uma para Sotavento e outra para
Barlavento. Morria, assim, a primeira tentativa de criação de corpos de polícia ou
mesmo de guardas municipais nas demais ilhas do arquipélago.
Mal tinha saído esta portaria, uma reorganização já vinha a caminho. A 7
de outubro de 1880, o Visconde de S. Januário, ministro e secretário de estado
dos negócios da marinha e ultramar, num relatório endereçado ao Rei D. Luis I,
publicado no Boletim Oficial nº 48, de 27 de novembro do mesmo ano, propõe
a extinção do Corpo da Polícia Civil da Praia e a criação, em seu lugar, de duas
Companhias de Polícia, militar e civil, sendo uma sediada na Praia e outra no
Mindelo, argumentando nos seguintes termos:
[…] Senhor. – A carta de lei de 11 de Março do anno próximo passado que
organizou a nova província da Guiné portugueza, determinou que o batalhão de
44
caçadores Nº 1 da companhia da áfrica ocidental passasse a ter o seu quartel em
Bolama com o fim de guarnecer aquella província e que forças do regimento de
infantaria do ultramar fossem fazer o serviço na de Cabo Verde em substituição
do aludido batalhão … Effectivamente este corpo está já em Bolama, mas nunca
se chegou a mandar para Cabo Verde força nenhuma … ou porque só muito
mais tarde voltou um dos seus batalhões do destacamento em que se achava, ou
porque se obtemperou á representação do governador geral de Cabo Verde, que
entende que a sustentação d’aquella força fazia elevar a despesa respectiva sem
necessidade absoluta […].
Reconhecendo, embora, a necessidade da existência de uma força pública capaz de assegurar a execução das ordens das autoridades e manter a segurança dos
cidadãos, não deixa o Visconde de se referir que ela não precisava ser numerosa
“… atendendo não só ao essencial preceito de uma bem entendida economia, mas
ainda a que a índole pacífica dos habitantes do archipelago não exige pomposos
aparatos militares …”.
Os brandos costumes dos habitantes constituíam razão bastante para que a
força pública não fosse numerosa e pesasse menos no orçamento da província que
se via a braços com dificuldades orçamentais. A transferência do batalhão para a
província da Guiné disponibilizava recursos financeiros suficientes para cobrir as
despesas decorrentes da criação das duas companhias já referidas, cujo orçamento anual era de “28:595$810 réis”, dando lugar a uma poupança de “13:127$792
réis”37.
Compreendido o seu alcance e pertinência, a proposta mereceu acolhimento
pelo que o Visconde de S. Januário determinou que “ … o serviço de polícia militar e civil da província de Cabo Verde será desempenhado por duas companhias
denominadas “Companhias de Polícia de Cabo Verde … terão a numeração 1ª
e 2ª …”.
A 1ª Companhia, com quartel na cidade da Praia contava com 143 efetivos e
a 2ª, com quartel na cidade do Mindelo, contava com 111 efetivos. A escala hierárquica que compreendia, no sentido ascendente, espingardeiro ou coronheiro,
corneteiro, soldado, cabo, 2º sargento, 1º sargento, alferes, tenente e capitão, era
bem melhor estruturada que aquela prevista no Corpo de Polícia Civil da Praia
37. O que corresponderia, na moeda atual, a 13.128$00 (treze mil, cento e vinte e oito escudos), aproximadamente.
45
que apenas contemplava os guardas e os chefes de esquadra e deixava perceber o
carater essencialmente militar das duas companhias.
A definição do recrutamento, do uniforme e do regulamento de funcionamento das companhias foram deixados ao critério do Governador-geral, que
nomeou, pelo Diploma Legislativo nº 338, de 15 de novembro de 1880, uma
comissão para elaborar “… com urgência o regulamento … para o recrutamento
das duas companhias …” e pelo Diploma Legislativo nº 339, da mesma data,
uma comissão para “… levar a efeito um regulamento sobre a organização dos
diversos serviços de polícia…”.
Entre 1880 e 1900 a reorganização mais importante ocorreu por via da Portaria nº 19, de 21 de fevereiro de 1897, que aprovou o Regulamento para o Corpo
de Polícia Civil da Província de Cabo Verde, criado pelo Decreto nº 2, de 24
de dezembro de 1896. Este regulamento esboça uma tentativa de integração do
território da província, não criando unidades territoriais, mas prevendo a possibilidade do serviço policial ser prestado “… dentro da província e em qualquer
ponto dentro d’ella …”. Os administradores dos concelhos da Praia e de S. Vicente eram considerados comissários de polícia, coadjuvados por chefes de secção
e estes por chefes de esquadra que ajudavam na instrução dos guardas. Ainda
na linha do regulamento de 1872, os chefes de esquadra, assim como todos os
empregados da polícia deviam “ … abster-se de abusos de força e de autoridade
inherente ás suas funções, evitando as maneiras asperas e ultrajantes …”.
O regulamento tratava ainda do serviço de polícia, do armamento e do uniforme, da administração e contabilidade e da disciplina. Trazia como anexo uma
minuta de um contrato de prestação de serviço por três anos que era assinado
pelo interessado e pelo administrador na presença de duas testemunhas.
Chama a atenção o artigo 48º desse regulamento, cujo conteúdo estabelecia
que “ … os actos dos agentes da polícia civil que perturbarem os cidadãos no
exercício da liberdade individual, que a lei garante, são considerados como abusos
de autoridade …”
Outra reorganização, no mesmo sentido da anterior, teve lugar em 1908,
com a aprovação da Portaria nº 97, de 11 de abril de 1908, que determinou a
entrada em vigor do Regulamento do Corpo de Polícia Civil da Cidade do Mindelo. Nesta data, os corpos de polícia civil da Praia e do Mindelo, haviam sido
fundidos num único corpo, desta feita, com sede na cidade do Mindelo. A esta
46
reorganização seguiu-se um período de alguma acalmia. A queda da monarquia
(1910) não produziu efeitos imediatos na organização da polícia em Cabo Verde.
Esse efeito veio a ser sentido, com vigor, a partir de 1918 e início da década de
1920, na linha, aliás, do que vinha acontecendo no Reino, para adaptar a organização aos novos tempos e desafios.
A primeira reorganização da polícia na era pós-monárquica ocorreu no ano
de 1918, quando pela Portaria nº 484, de 27 de dezembro, foi publicada a “Reorganização dos serviços militares e de policiamento na Província de Cabo Verde”
aprovada em sessão do Conselho do Governo de 1 de maio de 1918. Esta reorganização consistia na extinção “dos Corpos de Polícia civil da Praia e do Mindelo,
do Corpo de Guardas da Alfandega do Circulo Aduaneiro de Cabo Verde e o
Corpo de Guardas de Saúde da Província de Cabo Verde”, e na criação, em seus
lugares, do denominado “Corpo de Policia e Guarnição”, cujos regulamentos
ficaram a cargo do governo da província, mas baseados nos dos corpos ora extintos. Do leque do efetivo do “Corpo de Polícia e Guarnição”, composto por
271 homens, contavam-se o comandante, com o posto de capitão, o tenente, o
alferes, o 1º sargento, o 2º sargento, o 1º cabo europeu, o 1º cabo indígena, soldados para o serviço de infantaria e de policiamento, o corneteiro, o 2º sargento
serralheiro/espingardeiro, o 2º sargento correeiro/seleiro, o 1º sargento ferrador, o
1º cabo ferrador e “solípedes, em número de oitenta”. Esta medida reorganizativa
tinha como propósito fundir numa só força os diferentes corpos então existentes,
dando à organização nascente, funções de carater militar, policial, aduaneiro e
sanitário, cobrindo o território do arquipélago.
Três anos volvidos, a Portaria Provincial nº 25838 , de 4 de outubro de 1921,
reconhecia que “… os serviços de policiamento urbano a cargo do Corpo de
Polícia e Guarnição não eram desempenhados como é necessário que sejam …”,
gerando queixas e reclamações, que o processo de recrutamento das praças para
o serviço militar não se harmonizava com as normas aplicáveis a polícias, e mais
importante ainda, que a polícia devia estar sob a imediata dependência de autoridade administrativa, e desanexava o serviço de policiamento urbano do referido
Corpo de Polícia e Guarnição, criava em cada uma das cidades da Praia e do
Mindelo um Corpo de Policia Civil, que passava a funcionar “sob as ordens e
instruções dos respectivos administradores do concelho”.
38. Na mesma data e por razões idênticas, a Portaria nº 259 mandava desanexar o serviço de fiscalização.
47
Os corpos ora criados reger-se-iam pelo Regulamento do Corpo Policial do
Mindelo que acompanhou a reforma de 1908 e passariam a contar com as categorias de comissário, comandante, escrivão, guardas de 1ª e de 2ª classe, num
total de 45 efetivos na Praia e 48 no Mindelo.
Seguiram-se as reorganizações ditadas pelos Diplomas Legislativos nº 19, de
16 de janeiro de 1923, nºs 71 e 72, de 25 de julho de 1923, nº 43, de 14 de maio
de 1924 e nº 31, de 1 de setembro de 1926.
As reorganizações levadas a cabo em 1923 aconteceram em ambiente de crise
orçamental aguda que atingiu o arquipélago, em consequência da seca e da fome
que assolaram a província39 . Esta situação de crise transparece no teor de alguns
Diplomas Legislativos aprovados entre janeiro e julho desse ano.
Assim, a reorganização ditada pelo Diploma Legislativo nº 19, já referido,
visava suprimir os lugares de comandantes da polícia e de escrivães existentes
desde a reorganização de 1921, passando esses cargos a ser desempenhados por
“chefes” agora criados. O cargo de comissário passou a ser desempenhado pelo
administrador do concelho. Esta reorganização nada de melhor trazia para a
polícia, já que apenas se traduzia na supressão de cargos melhor remunerados
e na criação de outros cuja remuneração permitia alguma poupança. A escala
hierárquica passou a ser constituída, na escala ascendente, por guardas de 2ª e de
1ª classes, cabos e chefe.
O Decreto Legislativo primeiro nº 39, de 26 de janeiro de 1923 é mais elucidativo e realça no seu preâmbulo que,
[…] Tendo-se tornado insustentável a situação económica do funcionalismo
desta província, em consequência da sempre crescente carestia de vida; Sendo,
portanto, de urgente necessidade e justiça melhorar os vencimentos desses funcionários, tanto mais que se vai estabelecendo o seu exodo à procura de melhores
situações […].
A gravidade da situação pode ser compreendida pela leitura do artigo 1º
desse Diploma Legislativo que dispõe que “…É aumentado em 200% o actual
subsídio eventual dos militares do exército e funcionários civis em serviço nesta colónia…”, o mesmo acontecendo aos militares reformados. Estes aumentos,
39. António Carreira, no livro – Cabo Verde – Aspectos sociais. Secas e fomes do século XX, Ulmeiro, Lisboa, 1984, p. 124, refere que a fome de 1921 dizimou 17.571 almas.
48
embora em menor escala, foram tornados extensivos aos polícias civis dos corpos
de polícia civil da Praia e do Mindelo, pelo diploma Legislativo nº 71, de 25 de
julho, de 1923.
As melhorias salariais levadas a cabo foram, todas elas, concretizadas, por
via da abertura de créditos orçados em 400.000$, tendo parte das receitas, sido,
obtida por via do aumento das taxas aduaneiras em 60%40 .
Boa fonte de receitas eram as companhias inglesas que se instalaram em S.
Vicente. A primeira companhia com depósito de carvão de pedra “East India”
estabeleceu-se em Mindelo em 1838, seguindo-se-lhe a “Royal Mail” em 1850,
a “Patent Fuel” em 1851, a “Visger & Millers”, ligada depois à “Millers &Nephews” em 1863/70, Cory Brothers & Co. em 1875, seguindo-se a “Companhia
de S. Vicente de Cabo Verde”. Em 1885 surgiu a “Wilson & Sons” e em 1886 foi
inaugurado o Cabo Submarino entre Cabo Verde e as restantes colónias portuguesas em África (RAMOS, 2003) e a influência dos ingleses em S. Vicente são
bem retratados no dizer do professor e antropólogo Brito Semedo que transcreveu, uma passagem do romance Capitão-de-Mar-e-Terra, do escritor cabo-verdiano Teixeira de Sousa, publicado em 1984,
[…] cujo pano de fundo da estória se situa nos anos 30 e 40 do século passado, criou uma personagem, Walter – necessariamente um nome inglês, no original “uolta” – que, a páginas tantas e apesar da origem do seu nome, ironiza essa
mania de se copiar tudo dos ingleses, dizendo o seguinte:
“Os Ingleses puseram aqui o seu padrão de vida, que toda a gente adoptou
para se guindar socialmente. Desde o gim ao tabaco amarelo, ao críquete, ao
smoking, ao golfe, ao footing, há todo um conjunto de hábitos e preferências que
o Mindelense superestima por provir do Reino Unido. Até se caga à inglesa, em
latas com areia no fundo e areia ao lado” (1984:166) […].41
O desenvolvimento do Mindelo colapsou por conta da mudança dos ingleses
para as Canárias e Dakar que, entretanto, se tornaram portos francos, e a situação reinante em matéria de segurança pública nos principais centros urbanos
da província requeria cuidados particulares. O declínio das atividades do Porto
Grande de S. Vicente em consequência, também, da substituição de embarcações
40. Decreto Legislativo nº 40, de 26 de fevereiro de 1923, in Boletim Oficial nº 30, de 28 de julho de 1923.
41. http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/search?q=S.+VICENTE&Submit=OK
49
movidas a carvão pelas movidas a óleo, gerou uma drástica redução na demanda
de navios ao porto e com ela um aumento dramático do desemprego42 e da criminalidade, a ponto do governo, pela mão do seu Encarregado H. Owen Pinto,
assinar o Decreto Legislativo nº 32, de 28 de setembro de 1926 que preambulava:
[…] Tendo-se notado um certo progresso na prática de furtos, tanto na cidade do Mindelo como na da Praia desde que no cinematógrafo começou a exibição
das fitas chamadas “policiais”, em que se ensina a prática dos mais audaciosos
roubos e dos mais engenhosos processos para adquirir o alheio, por meios ilícitos;
Considerando que o cinematógrafo é um meio muito melhor de propaganda
do que os jornais, que só servem a quem sabe ler, ao passo que para aprender no
outro, basta ter olhos; mas,
Considerando que o mal que aquele espetáculo faz pode ser compensado pelos ensinamentos que se tiram de fitas instrutivas, de viagens, industriais e outras
do mesmo género, quando as fitas sejam escolhidas;
Considerando que a proibição de se exibirem tais films não só é de grande
conveniência para a grande população escolar de qualquer das duas cidades, mas
ainda de interesse geral;
[…] É proibida na província a exibição de fitas cinematográficas chamadas
“policiais”, quando os films se tornem escola de banditismo, competindo à autoridade administrativa local a devida fiscalização, ficando os infractores desta
disposição incursos na pena de desobediência […].
É neste contexto de aumento da criminalidade urbana que os Corpos de
Polícia Civil das cidades da Praia e do Mindelo são reorganizados por força do
Diploma Legislativo nº 31, de 1 de setembro de 1926 que, no essencial melhora o
quadro salarial, extingue o lugar de chefe criado pela reforma de 1923. É, porém,
no capítulo do recrutamento que o diploma é inovador. Introduz a exigência
da certidão de instrução primária para a nomeação para guardas de 1ª classe e
categorias superiores, a prova de idoneidade para o exercício de funções policiais
e o saber falar regularmente o inglês. Para incentivar a filiação, foi “… fixada a
quantia anual de 2.400$ para ser distribuída em 6 prémios de 400$ respectivamente a 1 cabo e 2 guardas de cada um dos Corpos de Policia Civil… que mais
42. Há registo de 2.000 desempregados no período inicial dos anos 20.
50
se distinguirem no serviço e que tenham exemplar comportamento…”.
Mas o que terá movido o governo da província a endividar-se para proceder
a aumentos salariais em contexto de crise?
Uma explicação poderá ser encontrada na linha de argumentação utilizada
para explicar a razão de ser do Decreto Legislativo nº 72, de 25 de julho do
mesmo ano de 1923, que estabelece que o governo, “… considerando necessária
a manutenção de um pequeno número de polícias civis nas sedes dos diferentes
concelhos da província, a bem da regularidade do serviço …” determina a criação, a título provisório, de “… um número indispensável de polícias civis nas
sedes de concelho …”. Tal medida, de carater provisório, sublinhe-se, é acompanhada da dotação de uma verba de 13.000$, também pela abertura de crédito,
para o pagamento dos salários dos polícias destacados. A criação de “um número
indispensável de polícias civis“ faz-se por via de novos recrutamentos e não por
destacamento de forças localizadas na Praia ou em Mindelo o que induz o raciocínio de que a situação era de tal modo preocupante que o governo decidiu
manter os efetivos com que já contava e proceder a um recrutamento adicional
para marcar presença efetiva nas sedes dos demais concelhos da província. Esta
medida preventiva, uma iniciativa inédita, encontra justificação na necessidade
de prevenir eventuais alterações da ordem pública que, não obstante poderem
ser localizadas, continham o potencial de provocar efeito de contágio que a crise
muito bem favorecia.
Estas medidas extraordinárias de incremento de despesas com as forças policiais, com recurso à abertura de crédito, foram implementadas ainda em 1927.
O Decreto Legislativo nº 52 de 26 de julho de 1927, acrescenta um dado
novo à situação anterior, ao referir, no seu preâmbulo, duas medidas: por um
lado, a necessidade de “… dotar os Corpos de Policia Civil com as verbas precisas
para fardamento, a fim de os cabos e guardas poderem prestar em regulares condições de asseio e decência, como é indispensável, o serviço especial de que estão
incumbidos …” e, por outro, à necessidade de “… aumentar com mais vinte o
número de guardas de 2ª classe destinados aos serviços rurais e florestais …”. Os
vinte guardas seriam admitidos em regime de assalariamento e teriam o mesmo
vencimento e o mesmo fardamento que os do Corpo de Polícia Civil da Praia.
Este recrutamento enquadrava-se, alegadamente, no âmbito da implementação do Diploma Legislativo nº 39 de 15 de julho, de 1927 que aprovou o “Regu51
lamento dos Serviços Agrícolas e Florestais” com o intuito de garantir a plantação de árvores em todo o arquipélago. Não passa, no entanto, despercebido que
no seu Capítulo VIII, sob a epígrafe “Auxílio das autoridades” impunha às autoridades civis e militares, o dever de prestar “… o necessário auxílio aos mestres e
guardas, para a regularidade do serviço de polícia e manutenção da ordem …”.
A década de 1920 é conhecida na história de Cabo Verde por episódios de
fome e de nula ou reduzida pluviosidade, razão pela qual se torna difícil aceitar
que a plantação de árvores tenha sido o móbil do recrutamento de mais vinte
guardas e o fardamento de todo o efetivo do Corpo de Polícia, orçado em “
43.000$”, verba disponibilizada através da abertura de crédito.
Conhecido que é o papel dos chamados “guardas rurais” na manutenção da
ordem, considerados amiúde “mais ferozes” que os da polícia, é claro que por
detrás da sua criação está a necessidade de manter elementos da força de ordem
o mais próximo possível de potenciais zonas de conflito – zonas agrárias com
potencial florestal.
O Governo tinha amargas recordações das revoltas populares que, até 1923,
tinham abalado a província. Cada uma delas com a sua motivação e complexidade, as revoltas identificadas tinham no seu epicentro, conflitos em torno da terra
e sua exploração económica – posse, impostos, rendas, colheita. São historicamente conhecidas em Cabo Verde as seguintes revoltas populares:
• De 27 de dezembro de 1811, que tinha como fundamento a recusa do pagamento do imposto criado para suportar a milícia em Santiago;
• Da Ribeira de Engenhos, Santiago (janeiro de 1822), em que os camponeses se
opuseram ao pagamento de impostos e tendo como ideia subjacente a construção da ”confederação brasílica ”43 ;
• Da Praia, (março de 1835), em que 225 deportados da Ilha de S. Miguel – Açores, ensaiam um protesto contra as autoridades portuguesas e partem para a ilha
Brava fugindo da perseguição que lhes é movida;
• Do Monteagarro – Praia (dezembro de 1835) em que os escravos marcharam sobre a Praia para matar “todos os brancos donos de terras” e fugir para a Guiné;
• Da Achada Falcão, Santiago (1841), com o levantamento de camponeses contra
os morgados, exortando a população ao não pagamento das rendas aos proprietários e reivindicando para si a posse das terras;
43. Ver pag. 50.
52
• Do Paúl, Santo Antão (1894), em que mais de mil pessoas protestaram contra
injustiças e vexames e contra a excessiva contribuição predial e ocuparam a Praça do Concelho, a Câmara Municipal e várias repartições públicas na Ribeira
Grande, durante cinco dias;
• De Ribeirão Manuel, Santiago (fevereiro de 1910), em que as populações se
levantaram contra as autoridades na sequência da prisão de um grupo acusado
da apanha de sementes de purgueira, levantamento que estendeu o seu âmbito
contra o pagamento das rendas aos morgados.
• Da Achada Portal, Tarrafal de Santiago (1920?), como reação à opressão tributária44 ;
Estes dados demonstram, de forma inequívoca, a preocupação do governo
provincial de implementar medidas que acautelassem, a retoma da onda de revoltas, embora sem o efeito desejado já que são conhecidas três revoltas em S. Vicente, posteriores a 1923. Trata-se da revolta que ficou conhecida como “revolução
d’Rufino” ocorrida em janeiro de 1929, em que populares resolveram emboscar
o comandante da polícia local Rufino, conhecido pelos seus excessos e agressões
à população, a revolta ainda de 1929, que juntou trabalhadores, professores e estudantes contra o desemprego e a célebre revolta do Capitão Ambrósio, de 1934,
contra a fome, imortalizada nos versos de Gabriel Mariano45 .
Estas reorganizações, cada uma com a sua motivação específica, aconteceram, com alguma frequência, durante os anos cinquenta, mas não pararam nas
décadas seguintes, intensificando-se nos meados dos anos setenta, no quadro das
medidas de preparação do processo de independência.
A adequação da organização policial aos novos desafios sempre esbarrou num
obstáculo omnipresente – os limitados recursos. É nessa linha que para fazer face
a “ … um quadro económico complicado e dependente de factores externos e climáticos, independentes dos homens e da acção administrativa local, essa previase insuficiente para assegurar a posição financeira da colónia…”, o governador da
44. O Louvor do Encarregado do Governo da Província, H. Owen Pinto, com data de 3 de Janeiro de 1927,
“ … aos Comandos Mixto de Artilharia e de Infantaria Indígena, do Corpo de Policia Civil, e bem assim
a todas as praças subordinadas a êsses comandos e pelos tripulantes do vapor Três Marias, quando da
diligencia ao Portal, para onde seguiram a fim de manter a ordem, que tinha sido alterada em virtude
da população daquela localidade ter impedido o cumprimento de um mandado do Poder Judicial …”,
encontra-se publicado no Boletim Oficial nº 2, de 8 de Janeiro de 1927, o que leva a crer que a revolta se
deu em 1926, por não fazer sentido publicar um despacho de louvor sete anos depois do acontecimento
que lhe deu origem.
45. Poeta e escritor cabo-verdiano (1928-2002). Poema “Capitão Ambrósio” de 1975.
53
província Amadeu Gomes de Figueiredo, consciente de que o “… agravamento
da situação económica das actividades do arquipélago vinha incidindo asperamente na sua posição orçamental …” fez aprovar, em 10 de agosto de 1936, o
Diploma Legislativo nº 533-A, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 1937,
com o objetivo de reduzir os gastos da administração com o pessoal, por via da
reestruturação dos serviços e da adoção de medidas de austeridade. Era momento
de se proceder de forma inversa daquela que ocorreu na década anterior.
Explicando algumas das medidas propostas no referido diploma e que abrangem um leque diversificado de serviços públicos, os “Serviços de Segurança Pública” mereceram as observações seguintes:
[…] O policiamento dos territórios da colonia, à-parte os concelhos da Praia
e de S. Vicente – onde existem Corpos de Policia Civil –, estava confiado a guardas administrativos. Pelo § 1º do Decreto nº 25.204, de 1 de Abril de 1935, o
exercício deste cargo foi considerado gratuito e obrigatório – o que equivale dizer
que não é possível manter tais funções. Esta circunstância evidenciou a necessidade de se estabelecer em toda a colonia um Corpo de Policia, sob um comando
único, o qual fará a sua distribuição consoante as necessidades averiguadas de
jurisdição. Possivelmente, melhor estudadas as condições do meio, à organização
ora remodelada serão estabelecidas funções de policia rural e de guarda fiscal,
cuja falta, dia a dia, se vem evidenciando. Os encargos da remodelação, considerando a compensação de 63.000$ que tanto era a despesa com os antigos guardas
administrativos, reduzem-se a 10.680$ […].
É neste contexto que surge uma medida de reorganização dos “Serviços de
Segurança Pública” de extraordinário alcance, com reflexos positivos no futuro
desses serviços e no processo de integração do território da colónia – o alargamento da jurisdição da polícia a todo o território cabo-verdiano.
Já não se trata da medida de carater provisório contida no Decreto Legislativo nº 72, de 25 de julho do mesmo ano de 1923, visando a “… manutenção
de um pequeno número de policias civis nas sedes dos diferentes concelhos da
província, a bem da regularidade do serviço …” mas sim de algo de outro fôlego,
de natureza institucional e permanente que se contrapunha aos paliativos encontrados para fazer face à crise das revoltas dos anos anteriores. Um verdadeiro
“upgrade” na organização e implantação territorial da polícia que, ainda nos anos
trinta se via a braços com revoltas populares, desta feita na ilha de S. Vicente.
54
Esta medida reorganizativa encontra-se plasmada no Diploma Legislativo nº
533-A, de 1 de abril de 1936, em cujo artigo 8º se pode ler:
[…] São remodelados os serviços de Segurança Pública integrando-se os dois
Corpos de Policia Civil da Praia e de S. Vicente, num Corpo de Policia de Cabo
Verde com jurisdição em toda a colónia […].
Recorde-se que o Corpo de Polícia Civil da cidade da Praia criado em 1872
tinha a sua jurisdição sobre o território municipal da Praia e que os dois Corpos
de Polícia ora remodelados tinham jurisdição sobre os concelhos da Praia e de S.
Vicente, respetivamente.
O comando do novo Corpo de Polícia é atribuído ao Chefe da Repartição
Militar46 , serviço que funcionava na dependência direta do Governador, a quem
foi concedido um prazo até 1 de dezembro do mesmo ano, para apresentar ao
Governo da Colónia, para aprovação, o regulamento privativo dos seus serviços.
O mesmo diploma fixa um quadro de efetivos composto por 2 chefes de polícia com o posto de comissários, 5 cabos de polícia, 8 guardas de 1ª classe e 93
guardas de 2ª classe, num total de 108 efetivos47 , e as respetivas remunerações
e subsídios.
Com base no mandato recebido, o Chefe da Repartição Militar e Comandante do Corpo de Polícia de Cabo Verde, capitão de infantaria Vasco Ramos
de Figueiredo, faz publicar o Regulamento Geral do Corpo de Polícia de Cabo
Verde, aprovado e posto em execução pela Portaria nº 1.226, de 12 de dezembro
de 193648 .
Mais minucioso e muito mais evoluído que o anterior, este regulamento é
composto por onze capítulos repartidos por noventa e oito artigos. É, na verdade, uma espécie de Estatuto Orgânico-Disciplinar do Corpo da Polícia de Cabo
Verde, pois, os seus diferentes capítulos tratam de matéria relativa à organização
e funcionamento dos serviços, às atribuições de todas as categorias funcionais,
46. Uma espécie de Casa Militar da Presidência da República da atualidade.
47. Conforme o Relatório do Comando-Geral da POP para o ano de1979, quatro anos depois da Independência Nacional, o número total de efetivos da polícia em Cabo Verde era de 264, sendo 3 Comissários,12
Chefes de Esquadra, 10 Subchefes, 23 Agentes de 1ª Classe e 216 de 2ª Classe.
48. Não deixa de ser curioso que o Diploma legislativo nº 542, de 28 de novembro de 1936, reduz as ajudas
de custo dos polícias e o nº 543, dos militares, num período de alguma acalmia associado ao alargamento
da jurisdição do Corpo de Polícia de Cabo Verde a todo o território provincial. Caso para se dizer que
depois da tempestade, vem a bonança.
55
incluindo do comandante e dos comissários, dos chefes de polícia, dos cabos
e arvorados e dos guardas, do alistamento e promoções, da disciplina, do seu
processo e da competência disciplinar, dos serviços policiais, sua classificação e
execução, da administração e contabilidade e dos uniformes, distintivos e armamentos.
O uniforme continua a ser distribuído gratuitamente, tendo sido aprovada
uma tabela que estabelecia as peças a receber por cada elemento da corporação,
bem como o prazo da respetiva duração.
A par do uso obrigatório do apito, os comissários e chefes de polícia podiam
usar espada e pistola, enquanto os cabos e guardas podiam usar, pistola, espingarda com sabre-baioneta e metralhadora ligeira.
A filosofia e a organização do Corpo de Polícia de Cabo Verde nascem do
modelo encontrado para a metrópole que também passou por reorganizações intensas a partir da queda da monarquia. Na verdade, a extinção do Corpo de Polícia Civil da metrópole ocorreu em 1923, dando lugar ao nascimento do Corpo da
Polícia de Segurança Publica (PSP), transformada em Comando-Geral da PSP
em 1935. É esta organização que empresta os seus fundamentos à organização da
polícia cabo-verdiana datada de 1936.
Em 30 de setembro de 1931, devido a um “facto anormal” sucedido na corporação, o administrador do concelho de S. Vicente, tenente de cavalaria Luís
Ferreira Pinto, dissolveu o Corpo de Polícia Civil do Mindelo. Num artigo publicado no “Notícias de Cabo Verde” de 3 de outubro de 1931, o referido administrador explica os motivos de tal medida,
[…] A causa imediata é uma insubordinação. Notei que, não obstante haver
um polícia exclusivamente encarregada de acompanhar um indivíduo que a câmara gratifica pela apanha de cães vadios, estes continuam pululando, como se
caça não lhes fosse dada. Resolvi, pois, rapidamente dizimar esta praga. Para isso
apresentei aos polícias uma sugestão: o guarda que desse caça a três cães, teria
direito a um dia de licença, à gratificação de um escudo e à participação na multa
aplicada ao dono do cão reclamado […]49 .
A “sugestão” não foi bem recebida e os guardas não a acataram porque tal
49. Artigo intitulado “Dissolução da Polícia Civil do Mindelo”, publicado no número do “Notícias de Cabo
Verde”, de 30 de outubro de 1931.
56
facto os vexaria e continuaram a desobediência mesmo depois do administrador
ter instruído o sargento Ribeiro que,
[…] ministrasse uma teoria aos polícias recomendando-lhes ponderação e
dizendo-lhes que podiam proceder à apanha dos canídeos mesmo de noite, a
horas que não seriam incomodados pela vista de transeuntes … Em face dessa insubordinação determinei a dissolução … demitindo todos aqueles que se
manifestaram contra a ordem dada. A vigilância da cidade está sendo feita por
soldados do corpo de artilharia indígena […]50 .
Prosseguindo na justificação, o administrador adiantou as causas remotas:
[…] 1ª não terem sido militares a maior parte dos polícias … contrariando
o regulamento … 2ª o saber ler e escrever, circunstância que não se verifica em
muitos deles. Disto resulta o imperfeito conhecimento das suas obrigações […]51 .
Conclui o administrador dando conta que já tomou medidas no sentido da
“… abertura de nova inscrição a fim de se fazerem nomeações que obedeçam o
mais possível ao regulamento …”.
Este trecho deixa perceber o grau de indisciplina que reinava no seio da corporação, indisciplina essa motivada, na ótica do administrador, pelas causas antes transcritas.
Assim se compreende que a reorganização introduzida pelo Decreto Legislativo nº 1.226, de 12 de dezembro de 1936, tenha prestado atenção particular à
disciplina e ao processo de alistamento e promoções.
No tocante à disciplina, as penas vão da admoestação à expulsão, passando
pela repreensão, pela prestação de serviço obrigatório, pela detenção e pela despromoção, consoante os casos. Já no que se refere ao alistamento e promoções
o Regulamento Geral em análise diferencia o alistamento das promoções e cria
uma consistente organização da carreira.
Assim, o alistamento de guardas de 2ª classe passou a ser feito de entre praças licenciadas do exército e a seu pedido, desde que preenchessem os seguintes
requisitos:
50. Idem.
51. Idem.
57
[…] a) Terem menos de 21 anos de idade; b) Terem bom comportamento
militar e civil; c) Saberem ler, escrever e contar; d) Possuírem robustez necessária
em relação à altura; e) Possuírem a altura mínima de 1,65 m […].
O pedido de alistamento dos candidatos a guardas de 2ª classe era manuscrito pelo próprio candidato, o que na prática funcionava como um autêntico
exame de redação.
O provimento dos guardas de 1ª classe e dos cabos era precedido de concurso
entre candidatos do escalão precedente, por ordem de classificação e os chefes e
os comissários eram recrutados de entre os sargentos e os oficiais subalternos do
exército, respetivamente.
Os guardas, os cabos e os chefes eram todos assalariados.
Até aqui todas as normas disciplinares aplicáveis à polícia encontravam-se
inseridas no corpo dos regulamentos de organização e funcionamento. Foi pela
Portaria nº 4.213, de 16 de fevereiro de 1952 que surgiu o primeiro Regulamento
Disciplinar para o Corpo de Polícia de Cabo Verde, publicado em diploma autónomo. Inspirado no regulamento disciplinar da PSP da metrópole, estendia-se
por 88 artigos, divididos em números e alíneas e consagrava como penas disciplinares, para além das previstas no regulamento anterior, as seguintes: Censura;
Multa correspondente aos vencimentos de 1 a 20 dias; Prisão disciplinar até 60
dias; suspensão até 60 dias; inatividade de 1 a 365 dias; reforma compulsiva; e
demissão.
O mesmo diploma inova e introduz as classes de comportamento, bem como
os prémios, louvores e recompensas que evoluem de mera referência ao louvor
e promoção, passando pelo elogio, pela dispensa de serviço e pela licença com
vencimento e com prejuízo para o serviço.
Com o mesmo sentido de organização e inspirado igualmente na fonte já referida, é publicado em 4 de dezembro de 1951, pela Portaria nº 4.159, o Plano de
Uniformes, revisto mais tarde, em 1956, pela Portaria nº 4.962, de 3 de março.
Tem vida efémera o regulamento disciplinar de 1952, que cede lugar, assim
como o regulamento geral de 1936, a um novo Regulamento Geral do Corpo da
Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde52 , aprovado pela Portaria nº 4.993,
52. É a primeira vez que o Corpo de Polícia de Cabo Verde é designado Corpo de Poliícia de Segurança
58
de 12 de maio de 1956. Esta portaria traz para o corpo do regulamento geral
toda a matéria antes contida no regulamento disciplinar de 1952, sem quaisquer
alterações, particularmente no que respeita às penas e recompensas. A novidade
deste diploma situa-se, sobretudo, no nível da organização. Para além de dimensionar a corporação a uma companhia, cria a estrutura do Comando, os comissariados comandados pelos administradores dos concelhos e que se subdividem
em esquadras, postos policiais e destacamentos e as secções de viação e trânsito.
No rol das atribuições, surge pela primeira vez referência específica à polícia de
investigação criminal.
Ainda no que tange à disciplina, as alterações mais significativas ocorreram
só em 1964, pelo Decreto nº 45.524, de 3 de janeiro, que aprovou o “Regulamento Disciplinar dos Corpos de Polícia de Segurança Pública do Ultramar”, diploma que teve uma vigência de apenas três anos, tendo sido revogado pelo Decreto
nº 48.190, de 30 de dezembro de 1967, que entrou em vigor em 1 de janeiro de
1968, em todo o território ultramarino e vigorou em Cabo Verde até a sua revogação pelo Decreto-Lei nº 48/89, de 26 de junho que aprovou o Regulamento
Disciplinar das Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP).
A aprovação do Estatuto do Corpo de Polícia de Segurança Pública, pelo Diploma Legislativo Ministerial, de 5 de setembro de 1962, tem o condão de voltar
a unificar os comandos do corpo da polícia e da guarda fiscal “… por motivos de
economia e melhor rendimento dos respetivos serviços …”. Este corpo de polícia
unificado é concebido como “ um organismo militarizado, directamente dependente do Governo da Província”, com a missão de assegurar de um modo geral
“a tranquilidade e a ordem pública e a prevenção e repressão da criminalidade”.
A sua organização compreende o comando e as polícias divisionárias, sendo
uma para a região de barlavento e outra para a de sotavento, na dependência
das quais funcionavam os comissariados, comandados pelos administradores dos
concelhos. Pela primeira vez surgem na estrutura orgânica os serviços técnicos,
que se ocupavam da instrução, das operações, das transmissões e do material.
O quadro do pessoal era composto por 213 efetivos, distribuídos por diferentes categorias cuja novidade eram os 1º e 2º subchefes de esquadra e os subchefes
ajudantes. O provimento dos guardas era feito por concurso e eram nomeados
Pública de Cabo Verde.
59
provisoriamente por cinco anos, sendo dois por tirocínio e três por recondução
mediante a exigência de bom comportamento. Findos os cinco anos os guardas
eram nomeados definitivamente desde que possuíssem boa informação de serviço
e bom comportamento.
Em termos de organização geral do corpo policial este regulamento representa, em muitos aspetos, certo retrocesso em relação ao de 1956.
Com a aprovação da Portaria nº 6.822, de 17 de janeiro de 1964, a Polícia
de Segurança Pública de Cabo Verde viria a adotar um novo Regulamento Geral
que passou a representar a mais evidente absorção/transposição das normas vigentes para a sua congénere da metrópole, cujos regulamentos serviram de modelo e de fonte, conforme a informação nº 46/63 do Comando do Corpo de Polícia
de Segurança Pública de Cabo Verde que capeou a proposta de regulamento
submetida à apreciação do Governo da Província. Esta é, sem dúvida, a mais
profunda reorganização da polícia ocorrida até então e aquela que melhor retrata
uma aproximação ao modelo policial vigente na metrópole.
É este regulamento, um verdadeiro estatuto orgânico da polícia de Cabo
Verde que vigorou até 1984, ano da aprovação do primeiro Estatuto do Pessoal
das Forças de Segurança e Ordem Pública, pelo Decreto-Lei nº 43/84, de 5 de
maio, organização que sucedeu, no Cabo Verde independente, o Corpo de Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde. Vigorou com um pequeno ajuste em
1973 e outras medidas de adequação ao processo de ascensão à independência
em 1975 e 1976, processo de ajustes que se prolongou ainda nos primeiros anos
pós-independência.
Os anos de 1960 são marcados pelo arrebentamento da guerra colonial portuguesa em África – Angola em fevereiro de 1961; Guiné em janeiro de 1963;
Moçambique em setembro de 1964. Nesta sequência, em 1966, por razões cuja
compreensão não é difícil, o governo da metrópole decide reforçar o controlo
sobre as forças policias, pela integração, em comissão de serviço, de elementos
da PSP portuguesa na de Cabo Verde. Alias, havia uma experiência anterior de
destacamento de elementos da PSP da metrópole para Cabo Verde, como evidencia o Decreto nº 19.872, de 6 de junho de 1931, do governo português, que
destacava 1 chefe, 2 subchefes e 38 guardas para que “ … sobre os deportados
políticos a quem foi fixada residência no arquipélago de Cabo Verde, se exerça
especial vigilância, confiando-se êsse encargo a funcionários policiais especializa60
dos e absolutamente idóneos …”.
Se o regulamento já previa, na linha de todos os que antecederam o de 1964,
a nomeação para as categorias de oficiais e comandantes, apenas oficiais militares, surge agora a ocupação de boa parte dos cargos das chefias intermedias por
subchefes da PSP da metrópole, chegando mesmo a haver a colocação de agentes.
Este facto explica a inexistência de oficiais cabo-verdianos na polícia, por
ocasião da conquista da independência, já que os indígenas, por mais mérito que
possuíssem, com muito custo chegavam à categoria de chefe, posto situado entre
o subchefe ajudante e o comissário, no limiar do grupo de oficiais e último grau
a que podiam almejar.
Dois meses depois da independência, o Decreto nº 15/75, de 13 de setembro,
estabelece a divisão do território nacional para efeito de segurança e ordem pública, tendo sido criados três Agrupamentos, sendo o primeiro sediado na Praia,
abrangendo as ilhas de Santiago, Maio, Fogo e Brava, o segundo, com sede na
cidade do Mindelo, abrangendo as ilhas de S. Vicente, Santo Antão e S. Nicolau,
e o terceiro com sede nos Espargos, na ilha do Sal, cobrindo, para além desta, a
ilha da Boavista.
No nível da Direção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP) foram criados os Departamentos de Polícia Económica e Fiscal, Regulamentação,
Arquivo Geral, Segurança Nacional; Investigação Criminal, Polícia de Fronteiras
e Polícia de Ordem Pública. Cada Departamento era dirigido por um Chefe de
Departamento e o Diretor Nacional era assistido por dois adjuntos.
Face à necessidade da criação de condições institucionais para a concretização do processo de ascensão à independência conduzido por um Governo de
Transição, em resultado do acordo assinado em 19 de dezembro de 1974, em Argel, entre o governo português e o PAIGC, (Partido Africano da Independência
da Guiné e Cabo Verde), o Decreto nº 9/75, de 17 de fevereiro introduz várias
alterações ao Estatuto do Corpo da PSP de Cabo Verde aprovado pelo Diploma
Legislativo nº 10, de 5 de setembro de 1962.
Novas alterações tiveram lugar, em 1976, desta vez ao Regulamento Geral do
Corpo da PSP da Província de Cabo Verde de 1964, na perspetiva de adequar o
processo de recrutamento à nova realidade de país independente, o que aconteceu pela Portaria nº 11/76, de 24 de abril. É, no entanto, a Portaria nº 12/76, da
mesma data, que cria, na dependência direta do Diretor Nacional de Segurança
61
e Ordem Pública, a Escola de Polícia, batizada com o nome de “Daniel Monteiro”53 , “ … que funcionará onde e quando as circunstâncias aconselharem…”. A
primeira formação de agentes da Polícia de Ordem Pública ocorreu no centro de
formação político-militar situado no ex-campo de concentração do Tarrafal54 ,
na ilha de Santiago.
A 15 de novembro de 1974, o pessoal da Polícia de Segurança Pública de
Cabo Verde, reunido em assembleia geral, aprova uma moção de afastamento dos
quadros da polícia colonial portuguesa e o comando é assumido, pela primeira
vez na sua história, por um oficial cabo-verdiano55 . Para marcar este histórico
acontecimento, pelo Decreto nº 185/90, de 29 de dezembro, foi instituído o dia
15 de novembro, como o Dia da Policia de Ordem Pública.
Com a Independência Nacional começou um intenso processo de formação
de quadros no âmbito da cooperação bilateral com Portugal, Argélia, Cuba, ex-RDA, ex-URSS, mais tarde alargado à França, Espanha, RFA e USA.
As alterações mais significativas ocorridas na polícia nos anos que se seguiram
à Independência tiveram lugar depois do golpe militar de novembro de 1980, na
Guiné Bissau. Com efeito, o golpe de estado pôs termo ao projeto de unidade da
Guiné e Cabo Verde e o tom do discurso político emergente desse acontecimento
ditou a necessidade de uma melhor organização para o setor da segurança interna nacional, tendo sido criado o Ministério do Interior em 1981. A designação
53. Jovem combatente da liberdade da pátria, falecido nas vésperas da Independência Nacional, na ilha de
S. Nicolau.
54. “ O Campo de Concentração do Tarrafal foi formalmente instituído pelo regime fascista português, no
Tarrafal da Ilha de Santiago, em 23 de Abril de 1936, sob o nome de Colónia Penal de Cabo Verde. Criado
à imagem dos campos de concentração nazis, a “Colónia Penal” do Tarrafal ou “campo da morte lenta”,
nome por que ficou conhecido …, visava então aniquilar física e psicologicamente os opositores portugueses à ditadura fascista de Salazar … . Durante os cerca de 18 anos que durou o seu funcionamento,
estiveram detidos no campo, arbitrariamente e sem qualquer direito de defesa, um total de mais de 360
prisioneiros antifascistas portugueses.
Em Janeiro de 1954, o campo foi encerrado graças à luta das forças antifascistas em Portugal e à pressão
internacional, na esteira da vitória aliada na II Guerra Mundial. ... A luta contra as forças nacionalistas
impele o poder colonial fascista a reutilizar o Campo de Concentração do Tarrafal a partir de 1961, com
o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado desta vez a encerrar no seu isolamento os militantes da luta anticolonial de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Durante 13 anos, até à data do seu
encerramento definitivo, no dia 1 de Maio de 1974, … manteve presos, … mais de 220 combatentes da
luta pela independência das colónias portuguesas.” Documento do Simpósio Internacional sobre o Campo
de Concentração do Tarrafal, realizado de 29 de Abril a 1 de maio de 2009. http://www.fmsoares.pt/aeb/
dossiers/dossier15/09
55. A 15 de novembro de 1974, o Comando da Polícia de Segurança Pública de Cabo Verde foi assumido pelo
Comandante das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) Timóteo Tavares.
62
Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP) foi adotada no âmbito do Estatuto
do Pessoal aprovado em 1984 que, nos seus elementos essenciais, estatuía no seu
artigo 1º que,
[…] O pessoal do quadro das FSOP constituí um corpo militarizado destinado a garantir a ordem e a tranquilidade pública, a assegurar, em coordenação
com outras autoridades competentes, a prevenção e a repressão da criminalidade,
a prevenir e a combater a prática de crimes contra a segurança do Estado […].
Dispunha ainda o mesmo Estatuto que a disciplina no seio das FSOP seria
regida por regulamento próprio a aprovar, o que veio a concretizar-se em 1989,
através do Decreto-Lei nº 48/89, de 26 de junho.
No que se refere à ação social no seio da polícia cabo-verdiana, a primeira
instituição a cumprir esse papel foi o Cofre de Auxílio, criado em 1952 pela
Portaria nº 4234, de 26 de abril, assinada pelo então Governador Carlos Alves
Roçadas. Em 1972, através do Diploma Legislativo nº 15/72, de 14 de julho, o
Cofre de Auxílio cedeu lugar à Obra Social da Polícia de Segurança Pública de
Cabo Verde, tendo o seu Regulamento sido aprovado pela Portaria nº 52/75, de
21 de junho de 1975. Em 1989, pelo Decreto nº 38/89, de 3 de junho, a Obra Social passa a designar-se Serviço de Apoio Social das FSOP para, em 1998, passar
a designar-se Serviço Social da Polícia de Ordem Pública, pelo Decreto-Regulamentar nº 5-C/98, de 16 de novembro.
1.3 - REFERÊNCIAS NA CRIAÇÃO DA POLÍCIA EM CABO
VERDE
Cabo Verde viveu (e vive) um pouco na encruzilhada do mundo, sofrendo
ao longo de séculos influências externas dos mais diferentes quadrantes. Muito
se tem falado no processo do povoamento, na língua, na cultura musical e na
dança e no regime alimentar. A recente elevação da Cidade de Ribeira Grande
de Santiago, também conhecida como Cidade Velha, a Património Mundial faz
jus a esta realidade.
Mas, existem outros aspetos dessa influência externa que vêm sendo trazidos
a lume em trabalhos académicos que merecem ser realçados. Um deles prende-se
com relatos que associam o ideário de revoltas populares, designadamente a da
Ribeira dos Engenhos da ilha de Santiago, ocorrida no ano de 1822 e a da Acha63
da Falcão, também em Santiago, em 1941, a correntes liberais independentistas
vinculadas ao Brasil56 .
Segundo Eduardo Adilson Camilo Pereira57 ,
[…] Christianno José Senna Barcellos, em seu Subsídios para a História de
Cabo Verde e Guiné, procura destacar a importância das ideias liberais, principalmente a de garantir o livre acesso às terras e o próprio contexto da independência do Brasil como condicionantes da “desordem” nos Engenhos (1822)
e Achada Falcão (1841). Barcellos inclusive chama a atenção para o projeto de
constituição de um partido pró-Brasil que tinha como objetivo unir as ilhas de
Cabo Verde ao Brasil … Seriam sobretudo os degredados, com os seus “maus
exemplos” os propagadores de ideias liberais que tiveram um papel fundamental
na eclosão desses movimentos […].
Continuando com Eduardo Adilson Camilo Pereira, também
[…] os administradores coloniais Henrique Galvão e Carlos Selvagem …
ao analisarem as revoltas dos Engenhos (1822) e de Achada Falcão (1841), dão
ênfase ao projeto separatista do arquipélago em relação a Portugal, bem como ao
plano da constituição de uma “Confederação Brasílica”58 , abrangendo o Brasil,
Cabo Verde, Angola e Moçambique […].
Face a esta permeabilidade à influência externa a que Cabo Verde de forma
tão evidente esteve e está exposto, e sendo uma parcela do Reino onde existia
uma força policial mais antiga e melhor estruturada, faz todo o sentido questionar como e em que medida essa influência se manifestou na criação e organização
da polícia do arquipélago e quais são as referências no processo de criação da
56. Vários autores cabo-verdianos têm feito referência a esta matéria (Christianno José Senna Barcellos,
António Carreira, Elisa Andrade, Manuel Brito Semedo, entre outros).
57. Tese de doutoramento em História Social apresentada ao Departamento de História da USP, em 2010.
58. Também Leonel Cosme, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em “Relações históricas
do Brasil com Angola”, […] destaca o impacto positivo de determinadas idéias e expressões políticas e culturais brasileiras como motivadoras do processo revolucionário angolano […] e […] recorda o movimento
separatista conhecido como Confederação Brasílica, apoiado num pretenso partido brasileiro, deflagrado
entre 1822 e 1823, com a presença de pessoas influentes das cidades de Benguela e Luanda, que tinha por
objetivo o rompimento das ligações com Portugal e uma associação com o Brasil […]. Por fim, mostra
como o Brasil, depois de Getúlio Vargas, começou a agir de maneira a contrariar os interesses do governo
Salazar, principalmente a partir de 1959, com a acolhida dada a Humberto Delgado, a Henrique Galvão,
em 1961, e aos africanos que buscavam exílio. Até o ponto de o governo militar brasileiro reconhecer
apressadamente o novo Estado de Angola, em 1975, antecipando-se, inclusive, a Portugal […]. In “Brasil:
Perspectivas internacionais, de Amós Nascimento, Editora Unimep, 2002”.
64
polícia cabo-verdiana.
Para responder a esta pertinente questão, impõe-se conhecer o percurso das
instituições policiais do Reino e das principais instituições policiais europeias
que influenciaram a sua criação, organização e desenvolvimento, sem pôr de lado
importantes pistas que podem ser encontradas no diploma de criação e no Regulamento do Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia, de 1872, primeiro
instrumento legal que dá corpo à polícia em Cabo Verde.
Política e administrativamente subordinada ao Reino e governada por uma
elite destacada do Reino para o efeito, seria natural encontrar-se na criação do
Corpo de Polícia Civil da Praia a reprodução do “modelo de polícia”59 vigente
no Reino.
Pesquisas realizadas nesse sentido indicam que se é certo que se descortina
uma forte influência do modelo de polícia do Reino, não é menos verdade que,
também são identificadas aproximações ao modelo de polícia londrino, quanto
mais não seja no enunciado das suas atribuições. E essa aproximação parece mais
evidente e exposta no caso cabo-verdiano do que no do Reino.
Tomando a mesma referência temporal, confirma-se que no ano de 1867, por
decreto do Rei D. Luis I, de 2 de julho, foram criados o Corpo de Polícia Civil
de Lisboa e o Corpo de Polícia Civil do Porto. Cada corpo era chefiado por um
comissário-geral subordinado diretamente ao respetivo governador civil do distrito e, por intermédio dele, ao ministro do Reino. Cada corpo era composto por
divisões, subdivididas em esquadras e estas em postos. As divisões eram chefiadas
por comissários, as esquadras por chefes de esquadra e os postos de polícia por
cabos de secção.
Ao longo da década de 1870 foram criados, com a mesma designação e organização, os corpos de polícia civil das demais capitais de distrito.
Ressalta à vista que entre os Corpos de Policia Civil de Cabo Verde e do Reino existem semelhanças evidentes, a saber:
• Desde logo, na designação – são ambos Corpos de Polícia Civil;
• Na jurisdição sobre cidades – Praia, Lisboa, Porto e outras capitais de distrito;
59. Como “modelo de polícia” queremos significar a missão, os princípios e valores, a organização e os padrões de atuação do corpo policial.
65
• Na cadeia de chefia:
• Na Praia a chefia era exercida pelo administrador do concelho que era o chefe
geral do corpo e que respondia perante o governador-geral;
• No Reino a chefia competia ao comissário-geral que respondia perante o governador civil e este perante o Ministro do Reino.
• Na estrutura hierárquica aparece, nos dois casos, a designação de chefe de esquadra e guardas, com sentido idêntico;
• Nos dois casos, os guardas detêm um leque diversificado de atribuições.
Outros princípios comuns podem ser observados na burocratização da polícia. A esse respeito, importa recordar que Max Weber (1946) considera a burocracia como um sistema organizacional que estabelece relações (hierárquicas)
entre uma autoridade, constituída legítima e legalmente, e seus subordinados.
Um dos aspetos da burocratização da polícia prende-se exatamente com a profissionalização dos seus membros.
Nessa linha, Francis Cotta (2006) refere que,
[…] a polícia moderna poderia ser caracterizada por possuir um corpo profissional separado do exército e das instituições judiciárias, uniformizado, armado,
equipado e com a responsabilidade de patrulhar as cidades, prevenindo e reprimindo os atos considerados ilegais […] (COTTA, 2006, p. 29).
Se é certo que as características comuns atrás indicadas evidenciam a reprodução do modelo de polícia do Reino, existe, no entanto, um aspeto diferenciador que merece ser realçado e aprofundado e que se prende com o tom autoritário
retratado pelas atribuições da polícia no Reino e que no caso cabo-verdiano, pelo
menos na formulação, deixa perceber uma abordagem diferente.
A compreensão deste pormenor torna-se mais clara se se tiver em conta as características diferenciadoras da polícia continental europeia, da londrina, aquela
influenciadora direta da organização policial existente no Reino.
Francis Cotta (2006) escreve que a ideia de polícia como força pública seria
uma concepção resultante das mudanças ocorridas em França, com a revolução
de 1789. Na sequência dessa revolução, a Assembleia Constituinte aprovou em
26 de agosto de 1789 e votou definitivamente a 2 de outubro, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. O seu artigo 12º estabelecia que “A garantia
dos Direitos Humanos e os dos Cidadãos requer uma força pública; esta força
66
é, portanto, instituída em benefício de todos, e não para a utilidade particular
daqueles a quem ela é confiada.” (COTTA, 2006, p. 29).
Com base nesta importante regra, foi constituída a Gendarmerie Nationale
francesa para garantir, contra qualquer outra força, os direitos do homem e do
cidadão, não podendo ser instrumento de informação do poder e nem ser usada
contra adversários do poder constituído. Todavia, conforme Monjardet, “ … a
polícia é totalmente para servir e recebe sua definição – no sentido de seu papel
nas relações sociais – daquele que a instrumentaliza, podendo servir a objetivos
diversos…”. (MONJARDET, apud COTTA, 2006, p. 29,30).
Realça ainda o mesmo autor que ao se desviar do seu objetivo inicial, a força
pública francesa torna-se os “olhos, ouvidos e braços do soberano”, e que a polícia
francesa constituiria, supostamente, “uma polícia autoritária, preocupada com
a segurança das instituições do Estado, e sujeita a um rígido controle central”.
Procurando uma explicação para o abandono do princípio consagrado no
Artigo 12º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já citado, o
francês Jean-Claude Monet, estudioso desta matéria, refere-se ao relacionamento
entre a polícia e os cidadãos nos termos seguintes:
“… São os choques provocados pela industrialização e pelo desenvolvimento
dos conflitos sociopolíticos que vão deteriorar as relações entre a polícia e as camadas operárias urbanas e dar às policias da Europa hábitos ásperos, dos quais
terão dificuldade em se desfazer...” (MONET, 2006, p. 69).
A imagem desta polícia autoritária e desviada dos seus objetivos é descrita de
forma irónica como uma ameaça à liberdade aos olhos dos ingleses e fica definitivamente caracterizada e resumida na afirmação de Monet, citando o Jornal
londrino Daily Universal Register, de 1785 que noticiava que,
[…] Nossa Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia
francesa; muitos estrangeiros nos declaram que preferiam deixar o seu dinheiro
nas mãos de um ladrão inglês a suas liberdades nas mãos de um tenente de polícia … a polícia à moda francesa constituiria, segundo os ingleses, uma ameaça à
democracia […]. (MONET, 2006, p. 48).
A omnipresença da polícia francesa, transformada nos “… olhos, ouvidos e
braços do soberano …” com toda a sua carga autoritária, pode ainda ser identificada na escrita do jornalista Paul-Luis Courrier, que em 1822 se queixava numa
67
“… petição em favor dos aldeões impedidos de dançar …”, afirmando que “…
não mais havia festas campestres sem que se vissem os violinistas arrastar guardas
no seu encalço …” e enfatizando,
[…] os guardas se multiplicaram em França muito mais que os violinos …
Nós os dispensaríamos das festas nas aldeias e, para dizer a verdade, não fomos
nós que os pedimos; mas o governo está em toda a parte hoje, e essa onipresença
se estende até nossas danças, onde não se dá um passo do qual o prefeito não
queira ser informado, para prestar contas ao ministro […] (Monet, 2006, p. 17).
Tenha-se ainda presente que em Portugal, a anteceder os Corpos de Polícia
Civil, existiu a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino (1760 a 1833).
Criada em 1760, nasceu das necessidades estruturais da centralização do Estado
pombalino, associado a um processo de reformas subsequentes ao terramoto de
1755.
Era um órgão central de polícia com funções de coordenação e poderes alargados nas áreas judicial, policial e de assistência social e chefiado por um Intendente-Geral que era um verdadeiro Ministro da Polícia, como o existente em
França.
O Alvará, com força de lei, de 25 de junho de 1760 para além de criar a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino, regulamentou as suas atribuições
destacando-se, a fiscalização dos corregedores e ministros criminais, a prevenção
e repressão da delinquência criminal, a superintendência do controle da população móvel e de estrangeiros. Mais tarde, essas atribuições foram estendidas à
proteção da pessoa do soberano e da sua família, à vigilância de espiões e ao combate às ideias liberais consideradas subversivas, oriundas da Revolução Francesa.
Mais concretamente, a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino
detinha, entre outras, as seguintes atribuições:
[…] Evitar delitos; conservar a boa ordem, a abundância, a limpeza, o culto
exterior da religião, o bom regímen dos banhos públicos, dos teatros, e das casas
de jogos permitidos, evitar a prostituição dos costumes; manter a salubridade o
ar, as obrigações dos artistas; […] dar método aos taberneiros, às casas de pasto,
marchantes, e mercadores de vinho, etc; a polícia dos mercados públicos, dos
incêndios, dos perigos eminentes dos edifícios, da reedificação, e entretenimento
das calçadas, da limpeza das ruas, dos aductos, dos chafarizes […]; a polícia das
carruagens públicas e particulares, dos caleceiros, e carreiros, dos barqueiros, das
68
estradas; prevenir os crimes, e descobrir os agressores deles, os vagabundos; os
mendicantes; […] os comerciantes, que compram jóias e efeitos preciosos; a polícia das casas de educação da Casa Pia; a polícia relativa á medicina, à cirurgia, às
farmácias; das regras para conter os corpos dos fabricantes, comerciantes, e artífices; a polícia dos pesos e das medidas, das feiras e mercados; […] de socorrer os
velhos […]; de recolher as mulheres infelizes que se acharem com enfermidades
venéreas para se curarem; e do mais que deriva destes artigos […].60
Deve aqui ser referido que no início do seculo XVIII, o conceito português
de polícia não designava um corpo específico responsável pela manutenção da
ordem, como no caso francês. A polícia seria entendida como a “… ordem estabelecida para a segurança e comodidade pública dos habitantes …” ou como a “…
a boa ordem que se observa e as leis que a prudência estabeleceu para a sociedade
nas cidades …”. Este conceito, que sofreu variações ao longo do tempo, tinha as
suas raízes mergulhadas na teoria corporativa da sociedade, que via o conflito
como enfermidade a ser tratada para a conservação da saúde do corpo social
(COTTA, 2006, p. 31).
Esta matriz marcadamente autoritária foi transitando de uma organização
policial para outra e os Corpos de Polícia Civil não fugiram à regra.
Cabe aqui lembrar que a criação dos Corpos de Polícia Civil de Lisboa e do
Porto em 1867 estava inserida num amplo conjunto de reformas, abrangendo
o ensino público, a mendicidade e beneficência e a adoção de um novo Código
Administrativo. O modelo adotado procurava seguir as principais características
da Metropolitan Police de Londres, criada em 1829 e alargado a todo o território
em 1856, mas no fundo, tão simplesmente pretendia-se copiar para Portugal a já
respeitada figura do Bobby. Tratava-se de um corpo de homens, dependente da
autoridade civil, pago e fardado para percorrer durante as vinte e quatro horas
do dia as ruas da cidade executando um conjunto de tarefas que oscilava entre a
prevenção da criminalidade e a supressão de “… escândalos a que o baixo povo
está habituado …”61 . Note-se que uma das tarefas especificamente recomendadas consistia em “… impedir que as mulheres públicas façam má vizinhança ou
60. Extrato do Alvará de 1760, conforme publicado no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa: http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3848.pdf
61. Dissertação de mestrado em sociologia apresentado por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema
“A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”.
69
causem escândalo …”.62
Por se tratar de mera imitação, mais da forma do que do conteúdo, os Corpos
de Polícia Civil não conseguiram cumprir os objetivos para que foram criados e
como resultado do poder discricionário detido pelo polícia, a imagem pública
oscilou entre extremos, o que valeu, alguns anos depois, em 1872, nas Farpas de
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, uma caracterização que ia do polícia “…
aquele de quépi e espada, que quando não namora medita, e quando não medita
namora …”, ao hábil Antunes,
[…] Um solitário bípede representando uma instituição, [que] corre, busca,
vigia, oculta-se, espiona, captura, repreende, admoesta, ameaça, condena; ele é a
ordem, é a força, é a lei, a justiça, o direito. Interroga, inquire, investiga: pergunta
a este por que motivo está parado, àquele qual a razão secreta que o determina a
passear, corre atrás de um que se lhe torna suspeito por tomar um cabriolé à hora,
regressa perseguindo outro que subiu à imperial de um ónibus; manda Pulquéria
para o Aljube [estabelecimento prisional em Lisboa]; aprisiona Pedro no Governo
Civil [local onde se situava o Comissariado Geral da Polícia e onde ficavam os
presos]; sepulta Paulo na esquadra policial, e vai continuando sempre a correr e a
suar atrás do resto da sociedade que Antunes odeia porque ela anda à solta. Uma
vez por mês Antunes descansa dois minutos – um minuto para ler a portaria de
louvor que lhe é dirigida, outro minuto para cortar os calos – e recomeça com
novo brio […].63
Os termos em que esta caracterização é feita oferecem ocasião para uma breve reflexão sobre o que efetivamente distingue, de um modo geral, a polícia da
europa continental da londrina.
Portugal, inserido como está na Europa continental, construiu instituições
policiais que sempre transportaram consigo características marcantes das restantes polícias continentais, todas elas, por sua vez, fortemente influenciadas pelos
modelos alemão e francês que lhes serviram de referência.
62. Extrato do Regulamento do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, citado na Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, Ano 2, Versão 2.0, de Fevereiro de 2008.
63. QUEIROZ, Eça de, ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes, Estoril: Principia, 2004 [1872], pág. 365. Citado na Revista do Núcleo da Antropologia Urbana da
USP, Ano 2, Versão 2.0, de Fevereiro de 2008.
70
Recordemos uma vez mais o francês Jean-Claude Monet, (2006) que ao se
referir ao relacionamento entre a polícia e os cidadãos, afirma que as relações
entre a polícia e as camadas operárias urbanas se deterioram em consequência
dos choques resultantes da industrialização e dos conflitos sociais e políticos,
adquirindo as polícias europeias, por via disso, “hábitos ásperos”, dos quais terão
dificuldade em se desfazer.
Também no caso brasileiro, um exemplo da exportação dos “hábitos ásperos”
antes referidos e que situa a polícia como instituição que representa o resultado
da correlação de forças políticas existentes na própria sociedade, pode ser descortinado na seguinte afirmação que postula, que,
[…] No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena
classe dominante, da grande classe de excluídos, sendo que foi nessa perspetiva
seu desenvolvimento histórico. Uma polícia para servir de barreira física entre os
ditos “bons” e “maus” da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor
físico e da coragem inconseqüente; uma polícia que atuava com grande influência
de estigmas e de preconceitos […] (SANTOS, 2004, p. 121).
Segundo Cândido Gonçalves,64 em 1913 o americano Raymond B. Fosdick,
que investigava para um centro de higiene social com o objetivo de observar as
práticas de administração e os estilos de atuação das forças policiais europeias,
estudou in loco as polícias de vinte e uma cidades europeias de seis países: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Áustria – Hungria, Bélgica e Holanda. A conclusão de que diferentes comunidades implementavam diferentes modelos de polícia
e de policiamento pode à primeira vista parecer uma evidência, mas os dados e
indicações fornecidos pelo autor tornaram este estudo um marco na investigação
das organizações policiais urbanas.
Ainda conforme este trabalho académico,
[…] Em 1915, como resultado desta investigação, era publicado o livro European Police Systems, que até aos anos 1970 permaneceu como um dos mais
completos trabalhos comparativos das polícias europeias. Um dos aspectos mais
64. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o titulo “A construção de uma polícia urbana
(Lisboa, 1890- 1940)”.
71
relevantes deste estudo é a bifurcação que estabelece entre dois modelos de polícia. O modelo inglês, civil e respeitador das liberdades individuais, e o modelo
da Europa continental, militar (especialmente na Alemanha) e caracterizado por
uma acção paternalista. Enquanto “the Englishman wants to mind his own business, to look is own safety, to guard his own rights, to use his own judgement,
(…) the German seems to require constant direction […].65
É este modelo autoritário continental de organização da polícia que foi transposto para o Reino e, depois, para Cabo Verde. O interessante deste processo de
criação do Corpo de Polícia Civil da Cidade da Praia é o facto de, fugindo completamente à linha autoritária identificada na organização da polícia do Reino, o
regulamento conter formulações que se aproximam mais da conceção londrina
de polícia do que da continental.
Assim, no Capítulo II, sob a epígrafe Dos Chefes de Esquadra, o referido
regulamento estabelece no seu Artigo 3º que eles têm como atribuição,
[…] Explicar aos guardas as suas atribuições e deveres, afim de que elles nem
deixem de cumprir estes nem exorbitem d’aquellas por motivo de ignorância; e
dar parte ao chefe geral dos que por falta intelligencia não poderem desempenhar
bem o serviço, para que sejam substituídos […].
Este artigo revela uma clara preocupação com o conhecimento das normas
aplicáveis e necessários ao bom cumprimento das atribuições dos guardas e, a um
tempo, com a sua postura e correção. Tratava-se, afinal, de assegurar os requisitos pessoais e institucionais dos guardas enquanto condição indispensável para
granjear o respeito, a estima e a confiança da população, como, aliás, se refere o
artigo seguinte.
Do mesmo passo, reza o Artigo 6º do mesmo Capítulo, que os chefes de
esquadra devem,
[…] Abster-se de abusar da força e da autoridade inherente ás suas funções,
devendo evitar as maneiras asperas e as palavras ultrajantes, que poderiam fazer
diminuir a consideração e a confiança que a policia deve inspirar, e fazendo compreender ao povo que a sua presença no meio d’elle tem unicamente por fim a
conservação da ordem, e a segurança individual e da propriedade […].
65. Idem.
72
Os artigos citados revelam aspetos que, contrariamente ao que seria de esperar, considerando a relação de subordinação política em que Cabo Verde se
encontrava face ao Reino, não se vislumbram nos textos legais que estruturam
a polícia do Reino na época. A análise destes dois artigos estruturantes das atribuições dos chefes de esquadra deixa-nos compreender que na criação do Corpo
de Polícia Civil da Praia, pelo menos na formulação de princípios, importantes
aspetos ligados à organização e à profissionalização são tidos em conta. Um conjunto de exigências é colocado aos membros desse Corpo, podendo ser destacado
o profissionalismo e o bom desempenho, a salvaguarda da imagem e da credibilidade, a disciplina e a responsabilização (accountability), a manutenção duma
relação “amistosa” com o povo de quem deve merecer consideração e confiança.
Mas abster-se do abuso da força, evitar as maneiras ásperas, inspirar confiança e merecer a consideração, bem como assumir o papel de mediador social,
como prescreve o artigo 6º já citado, eram exigências que apenas são compreensíveis no campo da utopia, já que a realidade social vivida se inseria num contexto colonial, de dominação, onde os extratos sociais mais baixos não tinham
quaisquer direitos e os guardas, oriundos dos mesmos extratos desprivilegiados,
eram iletrados, recrutados por alistamento e integrados num Corpo com sérios
problemas disciplinares.
À semelhança do que aconteceu no Reino, tratava-se efetivamente de uma
mera imitação do bobbie inglês, mais da forma do que do conteúdo. Construir
uma polícia preventiva, reconhecida pela população, mas na ausência de um governo representativo, era empreendimento claramente votado ao fracasso. Tanto
assim é que, depois de 1872 até os nossos dias, as formulações contidas nos artigos citados nunca mais foram retomadas.
De todo o modo, fica o registo de que o Regulamento do Corpo de Polícia
Civil da Praia de 1872 procurou absorver as três características principais presentes na organização da “nova polícia” londrina que lhe serviu de inspiração e
referência – uma força pública, profissional e preventiva.
No dizer de Batitucci (2010), considerada a primeira polícia moderna num
país com governo representativo, a característica de modernidade da polícia londrina estava associada à definição do seu papel como uma polícia preventiva e,
portanto, não prioritariamente voltada para a implementação da Lei, por meio
da repressão dos comportamentos desviantes. Estas duas ideias – um governo
73
representativo e uma polícia preventiva – implicariam a necessidade de que a polícia deveria em primeiro lugar obter e, então, utilizar a aceitação e concordância
voluntária das pessoas para a sua autoridade, e que o policiamento efetivo, nestes
termos, requereria um consenso genérico de que o poder que a polícia representa
e o poder que ela exerce são minimamente legítimos (MILLER, 1999, apud BATITUCCI, 2010, p. 31).
Argumenta ainda o autor que isso foi possível para a “nova polícia” em virtude de um projeto institucional cuidadoso, voltado especificamente para a ideia de
que a polícia foi concebida, pelo menos em parte, como uma força direcionada
para a construção de uma mediação política entre o povo e as elites. Neste sentido, a polícia deveria,
[…] prevenir o crime, sem recorrer de forma repressiva à sanção legal e procurando evitar a intervenção militar em distúrbios domésticos (tais como em motins e revoltas populares); gerenciar a ordem pública de forma não violenta, com a
aplicação de recursos violentos apenas como última possibilidade para conseguir
obediência e concordância; minimizar e mesmo reduzir, se possível, a divisão ou
separação entre a polícia e o público, e demonstrar eficiência através da ausência
de crime ou desordem, e não através da ação policial voltada para este fim. […]
(MANNING, 1997, p. 86-93, apud BATITUCCI, 2010).
A Polícia Metropolitana de Londres introduziu vários elementos que fizeram
parte, daí por diante, da ideia moderna de policiamento, como sejam “um sentido de missão”, que está relacionado com a noção de prevenção, consubstanciada
na “estratégia de patrulha preventiva”; “uma estrutura organizacional definida”,
em regra baseada na estrutura das forças armadas – sistema de comando e disciplina; e a “presença contínua na comunidade” através da patrulha preventiva em
tempo integral. (WALKER, 1992, p. 5, apud BATITUCCI, 2010)
Para que se alcance verdadeiramente a essência do “projeto institucional cuidadoso” de que nos dá conta Manning, é importante reter que o processo de
“amadurecimento institucional da polícia londrina”, na primeira metade do século XIX, resultou, por um lado da “pacificação das relações sociais” na sociedade
inglesa, isto é, da incorporação das classes trabalhadoras no processo político –
pela conquista do direito ao voto e à representação parlamentar, principal fonte
de resistência à organização policial – e, por outro, de “políticas e estratégias
organizacionais deliberadas”, desenvolvidas no sentido de dotar a polícia de con74
dições institucionais para a conquista de legitimidade social por meio, especialmente, dos seguintes elementos:
[…] organização burocrática: a nova polícia seria organizada por princípios
de uma hierarquia burocrática, com uma cadeia de comando em linhas quasemilitares; regras e regulamentos governavam vários aspetos da vida do policial
(uso do uniforme, hábitos de higiene, formas de tratamento de populares e superiores hierárquicos, horários de trabalho, etc.) e não só aqueles relacionados à sua
atividade de patrulha; a adesão a estes regulamentos era inculcada por meio de
formação e treinamento;
mandato da lei: a forma como a polícia atuava na manutenção da ordem e
no reforço do sistema legal era, ela mesma, submetida a um conjunto de regras e
procedimentos que visavam restringir a liberdade de ação do policial;
estratégia do uso limitado da força: o grosso dos policiais não portava armas,
estando limitados a um bastão de madeira, sendo que mesmo o seu uso era restrito, determinado apenas como último recurso;
neutralidade política: considerado um dos elementos mais importantes, indicava que a polícia deveria apresentar uma imagem de neutralidade política diante
das agudas divisões de classe da sociedade inglesa, procurando a imparcialidade
na ação, que deve ser orientada por princípios genéricos (para tanto, se proibia o
voto aos policiais – política que perdurou até 1887);
accountability: a despeito de não haver controle formal por nenhum corpo
eleito, entendia-se que a polícia era accountable à lei, em virtude de que suas
ações eram revistas pelas cortes, mas, especialmente, à população, através de um
processo de identificação entre a polícia e as classes populares, incentivado por
estratégias deliberadas de recrutamento e seleção, que buscavam os policiais entre
a massa das classes populares;
espírito público: incentivado por meio do cultivo deliberado da noção de que
o policial é um servo da população;
primazia da prevenção: determina a concentração da força nas atividades
de patrulha ostensiva uniformizada, visível (e controlável) pela população, em
detrimento das atividades de investigação, usualmente desenvolvidas em segredo;
efetividade: observada pelo desenvolvimento progressivo de indicadores e
critérios que procuravam validar a busca do oferecimento de um serviço de qua75
lidade. […] (Walker, 1992, p. 5, apud Batitucci, 2010).
No mesmo sentido, considera Bayley (2001), que a “nova polícia” representou
um passo importante na construção das três características essenciais da polícia
moderna:
[…] ela é pública, pois representa a total transferência da segurança de uma
comunidade de sistemas privados ou quase privados para o Estado; é especializada no sentido de que desenvolveu uma missão específica voltada exclusivamente
para a prevenção e repressão de crimes; e, finalmente, caminha na direção da profissionalização, dado que inaugura instrumentos organizacionais especificamente
direcionados para a qualidade e o desempenho no exercício de suas funções. […]
(BAYLEY, 2001, P. 64-65).
Em resumo, o desenho institucional da Polícia Metropolitana de Londres
constituiria doravante referência incontornável no desenvolvimento da polícia
como instituição, no mundo ocidental, privilegiando a neutralidade política, o
desenvolvimento de um sentido profissional baseado nos critérios de admissão
e treinamento, a regularidade procedimental e a adesão ao mandato da lei e o
desenvolvimento de um espírito público por parte do policial, através da sua
identificação simbólica com a população e com a sua missão.
Também, os Estados Unidos compartilham desta tradição com os ingleses,
especialmente no que se refere à ideia de que a autoridade governamental e, por
consequência, a autoridade policial devem ser limitadas em virtude das necessidades de proteção dos direitos individuais.
A construção do consenso social sobre a legitimidade da polícia na sociedade
inglesa resultou, parcialmente, de políticas organizacionais específicas, desenvolvidas para retirar a polícia do debate político, procurando a criação de critérios
universais de ação.
76
CAPÍTULO II
A INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO
ESTADO
2.1 - A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E SEUS REFLEXOS NA
POLÍCIA
Os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas em África surgiram nos anos 50 do século passado66 . Influenciados por outros movimentos
similares, localizados no continente africano ou fora dele, encontraram apoios
significativos em países recém-libertados e nos países do então chamado “bloco
de leste”. Em plena guerra fria, líderes africanos progressistas posicionaram-se
claramente contra o regime de exploração a que os seus povos estavam submetidos pelas potências colonizadoras e lideraram um processo que culminou, nos
anos 60, com o surgimento de vários Estados africanos independentes67 . O caso
das ex-colónias portuguesas em África revestiu-se de características particulares.
No que se refere à Guiné-Bissau e Cabo Verde, sob a liderança de um movimento
de libertação comum, recusada que foi a sua proposta à potência colonizadora
para a abertura de um processo negocial visando a ascensão à independência,
outra solução não restou senão conquistá-la pela força das armas, desencadeando
uma luta armada que se prolongou por mais de uma década e de que saíram
vitoriosos. O recurso à luta armada como única via para a conquista da independência é realçada por Amilcar Cabral (CABRAL, 1974, p. 15), quando escreve:
[…] Como as nossas propostas não tiveram aceitação favorável, nem da parte
do Governo português, nem da parte da O.N.U., as forças patrióticas do nosso
país passaram a uma acção generalizada contra as forças colonialistas em Janeiro
de 1963 […].
66. No caso que aqui nos interessa, importa realçar que o Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC), foi criado em setembro de 1956.
67. A década de 1960 ficou conhecida como a “década da independência da Africa”, já que 33 países africanos
alcançaram a independência. As principais potências colonizadoras eram: França, Reino Unido, Portugal,
Bélgica, Itália e Espanha.
77
A vitória militar iminente viria, por um lado, precipitar o processo de mudança de regime na metrópole68 , por conta da “revolta dos capitães” liderada por
elementos progressistas que derrubaram o regime fascista de Salazar/Caetano,
processo que ficou conhecido como a “revolução dos cravos” e, por outro, reforçar a legitimidade política dos movimentos nacionalistas representativos dos
povos das ex-colónias, que souberam tirar proveito das condições políticas objetivas para imporem um/seu sentido ao processo de descolonização, face a uma
potência colonizadora fragilizada e, também ela, a braços com um processo de
mudança de regime.
É, pois, no contexto de tensão entre os dois grandes blocos de então, o chamado período da “guerra fria” que, em 5 de julho de 1975, Cabo Verde conquistou a sua independência.
Assim se compreende que o processo de construção do Estado independente
e das suas instituições fundamentais tenha sido marcado por uma certa carga
ideológica transportada pelos ventos que então sopravam a favor da emancipação
dos povos coloniais. O Estado de Cabo Verde foi edificado sobre um sistema de
partido único que vigorou de 5 de julho de 1975 até 13 de janeiro de 1991, data
da realização das primeiras eleições multipartidárias.
O período que vai da independência até janeiro de 1991, data da realização das primeiras eleições livres, é chamado de primeira república, caracterizada
pela existência de um regime de partido único que, não obstante a realização de
eleições periódicas, não permitia a existência de listas concorrentes, enquanto o
período posterior a janeiro de 1991, é chamado de segunda república que é caracterizada pela existência de um regime democrático, com eleições concorrenciais,
seja para os órgãos municipais, como para o parlamento e para a presidência da
república.
O Estado de Cabo Verde, foi construído de modo a retratar a linha ideológica do PAIGC, partido que conduziu o processo de libertação através de uma luta
armada, reconhecido por todas as instâncias internacionais como o único e legitimo representante do povo cabo-verdiano e que negociou com a potência colonial
o reconhecimento do Estado da Guiné-Bissau e a afirmação do direito do povo
68. As consequências de uma vitória militar por parte dos movimentos nacionalistas das ex-colónias portuguesas em África foram previstas por Amilcar Cabral (CABRAL, 1974), quando disse que […] Estamos
certos de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal. […]
78
cabo-verdiano à autodeterminação e independência e acabou por integrar, sem a
concorrência de quaisquer outros partidos, o governo de transição, que conduziu
o processo de eleição da Assembleia Constituinte que por sua vez proclamou a
independência nacional em 1975.
Outro aspeto a considerar, é que o PAIGC já tinha proclamado a independência da Guiné em setembro de 197369 , antes da queda do fascismo em Portugal, e detinha uma experiência de cerca de uma década de um modelo de gestão
das “zonas libertadas” baseado numa ampla participação popular em todos os
domínios da vida social, incluindo a defesa e a segurança.
A representação do Estado era redutora, significando mais a criação pelo
partido de mais um instrumento para melhorar a condução da luta do que propriamente uma entidade com as funções que se lhe reconhece. Daí que o partido
se confundia com o Estado na sua ação quotidiana. Os mesmos dirigentes que
estavam à frente da organização e direção da luta junto das populações enquanto
partido, também tinham funções a nível das instituições do Estado recém-criado, havendo, por isso, espaço suficientemente largo para interpretações, compreensões e ações menos adequadas.
É este modelo de organização, assente numa “intimidade” extrema entre o
partido e o Estado, que reflete e é reflexo da já referida linha ideológica que enformava o PAIGC e que o seu discurso político nunca disfarçou, que é trazido e
instalado em Cabo Verde. Um modelo típico dos regimes de partido único.
A primeira lei aprovada pela Assembleia Nacional Popular, Assembleia Constituinte eleita a 30 de junho de 1975, por sufrágio direto, universal e secreto foi a
Lei sobre a Organização Politica do Estado (LOPE)70.
O preâmbulo da LOPE considerava a necessidade de “… instituir órgãos do
poder do Estado e uma orgânica jurídico-política, indispensáveis à governação
e administração do país até que seja adoptada a Constituição da República …”,
69. Esta opção política fundava-se no pressuposto de que nas “zonas libertadas”, controladas pelo PAIGC,
tinham sido criados os serviços e instituições essenciais à existência e funcionamento de um Estado independente. Daí a tese de que, na realidade, a Guiné-Bissau era um Estado em que parte do seu território era
ocupada por uma força estrangeira. Esta decisão teve um alcance político e diplomático muito importante
dado ao número de estados que reconheceram a independência da Guiné-Bissau e ao maior isolamento a
que conduziu Portugal no plano internacional.
70. Aprovada a 5 de julho de 1975, na Primeira Sessão da Assembleia Nacional Popular, para vigorar até a
aprovação da Constituição, que deveria ocorrer nos 90 dias subsequentes.
79
para de seguida dar lugar a um corpo de vinte e três artigos dos quais se destacam
apenas dois.
O artigo 1º estabelecia que,
[…] A Soberania do Povo de Cabo Verde é exercida no interesse das massas
populares, as quais estão estreitamente ligadas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo verde (PAIGC), que é a força política dirigente da nossa
sociedade […],
e o artigo 22º consagrava que
[…] A legislação portuguesa em vigor nesta data mantém transitoriamente
a sua vigência em tudo o que não for contrário à soberania nacional, à presente
Lei, às restantes leis da República e aos princípios e objectivos do P.A.I.G.C. […].
A LOPE consagrava, assim, o regime de partido único.
A Constituição da República, aprovada em setembro de 198071 limitou-se a
absorver o princípio já consagrado no artigo 1º da LOPE.
A Constituição de 1980 refletia o regime autoritário no seu célebre artigo 4º
que consagrava o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC) – mais tarde Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) – como “… força política dirigente da sociedade e do Estado …”, a quem
competia “… estabelecer as bases gerais do programa politico, económico, social,
cultural, de defesa e segurança a realizar pelo Estado…”.
Como consequência desta norma constitucional e no que se refere concretamente à Polícia de Ordem Pública (POP), instituição que corporizava os objetivos nacionais em matéria de segurança pública, traços do regime autoritário
foram reproduzidos no Estatuto do Pessoal das Forças de Segurança e Ordem
Pública72 (FSOP), que no artigo 11º, alínea a) estabelecia que os oficiais, subchefes e agentes das FSOP tinham como um dos deveres, “… respeitar e defender os
princípios do Partido Africano da Independência de Cabo Verde, força dirigente
da sociedade e do Estado.” Do mesmo modo a alínea f) do artigo 12º estabelecia
que constituía dever dos oficiais “zelar pela educação e preparação político-ideo-
71. Constituição da Republica de Cabo Verde, aprovada a 5 de setembro de 1980.
72. Aprovado pelo Decreto-Lei nº 43/84, de 5 de maio de 1984, publicado no Boletim Oficial nº18, da
mesma data.
80
lógica e técnico-profissional do efetivo sob as suas ordens”.
Centrando a análise na POP, enquanto principal agente encarregue da garantia da segurança pública, o modelo organizativo herdado do governo colonial
manteve-se praticamente o mesmo durante os primeiros nove anos da independência. A POP era um corpo autónomo, com carreira própria e unidades espalhadas por todo o território nacional e completamente separado do Departamento de Segurança que respondia pela segurança interior do Estado. Tanto a POP
como o Departamento de Segurança funcionavam na dependência de um órgão
superior único, a Direção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP).
Foi o golpe de estado ocorrido na Guiné-Bissau em novembro de 1980 que, como
já foi dito, motivou a primeira grande reorganização do setor da segurança interna, dando lugar, com a criação do Ministério do Interior em 1981, ao surgimento
das FSOP. Com esta medida deu-se a unificação do quadro do pessoal da POP
com o do Departamento de Segurança, a unificação das patentes e carreiras,
mantendo-se as forças em estruturas de comando independentes mas complementares. E é neste contexto que em 1984 é aprovado o Estatuto do Pessoal das
FSOP, que vigorou até 1992.
Mas, no período que vai da independência à criação do Ministério do Interior, não era a POP a única força encarregue da segurança pública. Assumindo
a POP o seu papel enquanto instituição responsável, em primeira linha, pela
garantia da segurança pública, ela contava com a colaboração das “milícias populares” enquanto força complementar, seja para a POP em tempo de paz, seja
para as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), em tempo de guerra.
A organização e o funcionamento das milícias populares conheceram algum esmorecimento nos dois últimos anos da década de 1970 e, é no ponto 5. da Resolução Geral do Congresso Constitutivo do PAICV encerrado a 20 de janeiro de
1981 que se inscreve “… O reforço dos órgãos de defesa e segurança nacional e
a reactivação das Milícias Populares …” como uma das medidas a implementar
nos anos seguintes.
As milícias populares eram constituídas por homens e mulheres, em regime de voluntariado, que recebiam um treinamento militar básico e uniforme e
funcionavam sob o comando das forças armadas apoiadas por coordenadores de
bairro. Recebiam armamento em função das missões que tinham a cumprir. Do
seu seio saiam elementos que recebiam uma formação policial também básica
e assumiam o patrulhamento dos seus bairros residenciais. Sob a coordenação
81
da POP, participavam também na segurança de eventos desportivos, culturais
e políticos e apoiavam os órgãos de justiça e a própria POP nas notificações e
garantiam a segurança nos julgamentos levados a cabo pelos Tribunais de Zona,
vulgarmente conhecidos por tribunais populares.
Contrariamente ao que é comumente veiculado, as milícias populares não
surgiram com o objetivo específico de reforçar a POP na garantia da segurança
pública e por via disso como máquina repressiva. Na verdade elas nasceram antes
da independência, mais concretamente no período de transição para a independência, não só como instrumento do PAIGC para assegurar o equilíbrio de forças
com o governo português, já que não era possível a constituição de forças armadas regulares numa situação em que esse partido não detinha o poder politico
em Cabo Verde, fora do quadro da independência, portanto, mas também como
mecanismo de resposta a correntes que defendiam que o governo português não
deveria reconhecer ao povo de Cabo Verde o direito à autodeterminação e independência, com o argumento de que o palco da luta armada tinha sido a GuinéBissau ou que cabo Verde não tinha futuro como país independente e, por isso,
deveria manter-se na dependência de Portugal.
A esse propósito declarou Mario Soares73 :
[…] o arquipélago teria muito a ganhar em ter evitado a separação em relação
a Portugal. Eu sempre achei que Cabo Verde não deveria ter sido independente,
não assisti à independência de Cabo Verde por isso mesmo […] Cabo Verde não é
propriamente África porque Cabo Verde é um arquipélago do norte do Atlântico
e que há uma relação que deveria ter sido mais explorada entre os três arquipélagos existentes que são Europa, ou seja, Açores, Madeira, depois Canárias e podia
ser Cabo Verde. […]74
Depois da independência nacional as milícias populares ficaram organicamente integradas no Comando Geral das FARP e Milícias e funcionaram na
lógica da participação popular nos assuntos da defesa e segurança interna. Foram
73. Então Ministro dos Negócios Estrangeiros e membro da delegação de Portugal às negociações com o
PAIGC para a independência. Mais tarde Primeiro Ministro e Presidente de República de Portugal.
74. Declarações produzidas por Mário Soares no colóquio “Vozes da Revolução: Guerra Colonial e Descolonização”, realizado no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), 30 anos depois
da independência de Cabo Verde. Sendo o seu autor membro da equipa negocial portuguesa, não restam
dúvidas de que havia correntes, designadamente em Portugal, contra o processo de independência. http://
www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1546049&seccao=CPLP, de 16 de Abril de 2010.
82
extintas logo após o início da I Legislatura da II República.
2.2 - A SEGURANÇA PÚBLICA NOS PROGRAMAS DE
GOVERNO
De 1975 a 2000, período abrangido por este capítulo, decorreram cinco legislaturas75 , em Cabo Verde. Todos os governos foram empossados e levaram o seu
mandato até o fim e, à exceção do I Governo da I Legislatura, todos os restantes
apresentaram um programa de governo, discutido e aprovado pelo parlamento.
Na I Legislatura, o discurso do Primeiro-ministro na tomada de posse do governo foi considerado o programa de governo para essa legislatura. As referências
à segurança pública foram muito genéricas, sem deixarem, no entanto, de referir
a necessidade de se organizar o setor e de lhe disponibilizar os meios necessários
ao seu bom funcionamento.
Como já se disse em outro ponto deste trabalho, já no processo de transição
para a independência, o Regulamento Geral da PSP de Cabo Verde começou a
sofreu alterações de modo a criar as condições institucionais para o efeito, processo que prosseguiu depois da independência, apenas para adequar uma ou outra
situação à nova realidade política. No geral, toda a legislação herdada do regime
colonial em matéria de organização e funcionamento da polícia, manteve-se em
vigor desde que, segundo a Lei sobre a Organização Política do Estado (LOPE),
não contrariasse os princípios e objetivos do PAIGC. Legislação nacional relativa
à organização e funcionamento da POP só começou a ser publicada, a partir de
maio de 1984.
Foi, efetivamente, o Programa do Governo para a II Legislatura (1981-1985)76
que se referiu de forma expressa à matéria em análise, no capítulo dedicado à Defesa e Segurança Nacional, começando por condicionar a realização dos objetivos
económicos, sociais e culturais estabelecidos à existência de “sossego e paz e se
garanta a defesa e a segurança do regime”. Reconhecia o programa, decorridos
cinco anos sobre a proclamação da independência, a necessidade de “… uma
acção vigorosa no sentido do aperfeiçoamento, da organização e funcionamento
75. Em Cabo Verde uma legislatura tem a duração de cinco anos.
76. Grafedito – Praia Cabo Verde – 1981.
83
dos serviços que se encarregam da defesa e segurança nacionais …” bem como
do reforço dos “… organismos estatais encarregados da ordem pública e da segurança interna …”, preconizando as seguintes medidas:
[…] melhoria da sua capacidade de intervenção, proporcionando-lhes os
meios indispensáveis; melhoria das instalações e condições de trabalho; elevação
do nível politico-cultural e técnico dos seus membros, a fim de facilitar e melhorar as suas relações com a população; aprofundar no seu seio o sentido de responsabilidade e de respeito pelos direitos dos cidadãos, conjugados com a necessidade
da defesa intransigente das instituições nacionais […].
Ressalvando que a ação desses setores deverá ser exercida no “… quadro estrito da legalidade constitucional, com o objetivo exclusivo de defender o país
…” concluía o referido programa a abordagem da questão da segurança pública
alertando para a necessidade de “… um trabalho sério no sentido de uma maior
aproximação entre FARP/POP e também para o reforço da ligação POPULAÇÃO/FARP/POP …”.77
Merecem destaque as referências à necessidade de melhorar a relação entre
a polícia e os cidadãos e do respeito dos direitos dos cidadãos no quadro do que
estabelecia a constituição.
O Programa de Governo para a III Legislatura, mais desenvolvido e objetivo,
traz inovações em relação ao precedente, apresentando-se como um verdadeiro
programa de atividades para o setor da segurança e ordem pública (1986/1990)78
, refere-se, pela primeira vez, à prevenção de crimes e estabelece como principais
orientações, à opção por ações de caráter eminentemente preventivo, ao respeito
pela lei e pelos direitos dos cidadãos, à progressiva especialização dos serviços que
integram as FSOP, ao prosseguimento do esforço de modernização e de preparação técnica, à promoção de maior aproximação entre o agente e a população e
à melhoria das condições de vida e de prestação de serviço do pessoal das FSOP.
A partir destas orientações, elenca um conjunto de ações a desenvolver, onde se
destacam a criação de novas unidades policiais, a aprovação de diplomas legais
que regulamentam a atividade das FSOP, a participação das milícias populares
na manutenção da ordem pública e a organização da proteção civil.
77. Grafedito – Praia Cabo Verde – 1981.
78. Edição do Gabinete do Primeiro Ministro – Grafedito – Praia – 1986.
84
Um pouco mais ousado, mas ainda assim de forma tímida, o Programa de
Governo para a III Legislatura, de 1986/1990, realça a opção por ações de carácter eminentemente preventivo, o respeito pela lei e pelos direitos dos cidadãos, a
especialização dos serviços e a criação de um quadro legal, dentro do qual deverão mover-se os órgãos que intervêm na garantia da segurança pública.
Particularmente, nas duas primeiras legislaturas da I República, o enfoque
principal era a instituição policial, a sua organização e os meios indispensáveis
ao seu bom funcionamento. Já na última legislatura da I República é notória a
preocupação com o cidadão e o seu envolvimento no processo de garantia da segurança pública, posicionando-se o programa pela autonomização da segurança
pública face à defesa nacional, merecendo os dois temas tratamento em subcapítulos diferentes.
De um modo geral, os três programas de governo da I República focalizam
mais a melhoria da organização e a dotação de meios para o funcionamento das
forças de segurança, em detrimento do delinear de um modelo de segurança pública a construir. Limitam-se a elencar um conjunto de ações a desenvolver pelo
Estado no sentido de reforçar os organismos encarregados da ordem pública e da
segurança interna. É caso para se dizer que os programas de governo apresentam
uma excessiva concentração sobre matérias a incorporar em políticas de segurança pública do que em políticas públicas de segurança.
Praticamente, no final da legislatura e, no âmbito da criação das condições
para a realização de eleições livres, foram suprimidos da constituição os artigos
que impediam o alcance desse objetivo e, em consequência, foi aprovado um
conjunto de leis – sobre o direito à greve, de reunião, associação e manifestação,
dos partidos políticos, direito de oposição, etc.
É, de facto, nas legislaturas pós-transição democrática que se regista uma
maior extroversão da segurança pública, consubstanciada na diversificação do
leque de matérias consideradas mais pertinentes, na publicação de diplomas importantes para a organização e funcionamento do setor, numa maior interação
com a sociedade e, em suma, num conjunto de reformas, anunciadas umas e
concretizadas outras.
Com a I Legislatura da II República deixaram de existir as FSOP e a POP
voltou a ser uma instituição autónoma, com carreira e regulamentos próprios,
com novo uniforme e novas patentes e insígnias. Foi nesse período que se apro85
vou o novo Estatuto do Pessoal e o novo Regulamento Disciplinar e introduzido
o lema “Ao serviço da comunidade”. Consolidou-se a organização e o funcionamento do Corpo de Intervenção, foram criadas novas unidades policiais e construídos alguns edifícios para albergar os serviços da POP em alguns concelhos.
A nova Constituição da República aprovada em 1992, para além de introduzir um leque variado de novos direitos dos cidadãos, dedicou o seu artigo 266ª
à polícia, estabelecendo que ela tem por função “… defender a legalidade democrática garantir a segurança interna, a tranquilidade pública e os direitos dos cidadãos …” e condicionando a aplicação das medidas de polícia aos princípios da
“legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade”. (CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA DE CABO VERDE, 1992).
O Programa do Governo em análise anunciava a necessidade da inversão do
quadro atual da atividade policial ultrapassando-se “... o divórcio acrimonioso
entre a comunidade e a Polícia, pois só assim esta poderá ganhar a confiança e
consideração dos cidadãos e dignificar-se...”, ao mesmo tempo em que preconizava que a polícia de segurança pública devia ser,
[…] o mais rapidamente possível integrada nas comunidades onde presta
serviço, como forma de cumprir cabalmente a sua importante missão de garantir
a segurança dos cidadãos e dos seus bens e, mais facilmente, passar a ser vista e
encarada pela sociedade como dela fazendo parte. […]79
De entre as medidas mais importantes anunciadas neste programa de governo destacam-se as seguintes:
[…] Desmilitarização da policia de segurança publica, transformando-a num
serviço civil com estatuto especial; Municipalização gradual da polícia; Dignificação da instituição policial; Prioridade à segurança pública de pessoas e bens,
privilegiando uma filosofia de prevenção; Despolitização da polícia de segurança
pública; Incentivo à criação de empresas de segurança privada […]
Já o Programa do Governo da II Legislatura da II República, também melhor
estruturado que o da legislatura anterior, manteve a linha das reformas anteriormente iniciadas e introduziu elementos novos de grande alcance para o futuro do
setor. Pela primeira vez surge um discurso em que a segurança nacional é vista
79. Votado pela Resolução nº6/II/91, de 8 de Agosto. In B.O. Nº31, Suplemento.
86
como um sistema.
Dizia o programa que o Governo propugnava,
[…] uma profunda reforma na área da segurança e ordem pública, com o
propósito de criar um efectivo e eficiente sistema nacional de segurança que garanta uma intervenção eficaz dos diferentes órgãos encarregados de velar pelo
correcto exercício das liberdades democráticas, pela ordem e a tranquilidade públicas e pela segurança física e psíquica dos cidadãos, do Estado e dos titulares de
cargos públicos e do património privado e público […]
A concretizar o sentido da reforma anunciada propunha-se o governo fazer
aprovar,
[…] uma lei de Segurança Nacional, prevendo, designadamente, um órgão
consultivo e de coordenação em matéria de segurança nacional, de carácter intergovernamental, pluridepartamental e multisectorial, na dependência do Primeiro-Ministro. […].
É, neste contexto, que o Decreto-Lei nº 15/96, de 20 de maio, cria, pela
primeira vez, o Conselho Nacional de Segurança (CONSEG), definindo-o como
órgão consultivo do Governo e de “coordenação e articulação na organização
do sistema nacional de segurança e na concepção, planeamento, execução, seguimento, controlo e avaliação de programas, projectos e acções em matéria de
segurança nacional”. Os sucessivos governos acolheram sempre, na sua orgânica,
o Conselho Nacional de Segurança, sem que na prática este importante órgão
assumisse, verdadeiramente, o papel que lhe estava reservado.
A II Legislatura da II República foi um período sem precedentes no processo
de institucionalização da segurança pública em cabo Verde, período durante o
qual se aprovou uma enorme quantidade de diplomas legais referentes à segurança pública. Foram aprovados e publicados, praticamente, todos os regulamentos
decorrentes do Estatuto do Pessoal e do Regulamento disciplinar revistos em
1998. Algo, igualmente, inovador foi a publicação dos Códigos de Honra e Ético,
regulamentos que vêm pautar a prestação do pessoal da POP segundo padrões
internacionais. No entanto, o que sobrou em quantidade, faltou em qualidade,
dado às condições em que os diplomas foram preparados, desgarrados da realidade nacional, sem qualquer envolvimento direto da instituição policial e num
lapso de lapso de tempo recorde.
87
Considerando as duas primeiras legislaturas da II República, ficaram por
concretizar importantes medidas anunciadas, algumas das quais nunca foram
verdadeiramente explicadas.
A título de mero exemplo, nunca se explicou o sentido e o alcance da medida
de “municipalização da polícia” do mesmo modo que não se conhece as linhas
orientadoras da reforma da área da segurança e ordem pública. Ainda hoje não
existe em Cabo Verde um verdadeiro sistema de segurança interna.
Um dado a considerar, finalmente, é a distância que separa o discurso político vertido nos sucessivos programas de governo, da elaboração e implementação
de políticas públicas de segurança e o resultado que elas, de facto, produziram.
Com efeito, muito pouco daquilo que tem sido anunciado é, efetivamente,
concretizado. Cada legislatura apresenta-se quase que como um recomeço. Vários
fatores poderão ser considerados como condicionantes da concretização das medidas anunciadas. Um deles que salta à vista prende-se com a instabilidade orgânica
que a área da segurança interna tem vivido ao longo dos sucessivos governos da
independência a esta parte. Não é por acaso que os momentos em que os governos
dedicaram maior atenção à segurança pública coincidem com a existência de um
departamento governamental autónomo que responde unicamente por este setor
– Ministério do Interior na I República, e Secretaria de Estado da Administração
Interna na II. Os períodos em que o setor da segurança pública esteve associado a
outras áreas da governação, representam decadência – Defesa ou Forças Armadas
na I República, Presidência do Conselho de Ministros e Justiça na II República.
A instabilidade orgânica já referida abriu portas para uma drástica redução
dos recursos humanos especializados no domínio da segurança pública, a nível
ministerial, com assinaláveis reflexos na conceção e concretização de políticas
públicas para o setor. Os quadros civis foram-se tornando cada vez mais escassos,
chegando mesmo a desaparecer, obrigando os responsáveis por este setor a fazer
recurso a quadros policiais, estes treinados para tarefas completamente diferentes.
Não constitui novidade de que um dos fatores críticos de sucesso de qualquer
empreendimento está associado, sobretudo, à qualidade dos recursos humanos
disponíveis.
88
CAPÍTULO III
A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA
3.1 - ENQUADRAMENTO TEÓRICO
Os anos 80 do século passado foram marcados por profundas transformações na correlação de forças entre os blocos já referidos, tendo-se chegado mesmo
ao desmoronamento do chamado bloco de leste, com o desmembramento da exURSS, a queda do muro de Berlim e a mudança de regime nos Estados do Pacto
de Varsóvia. Os processos de transição política concentraram-se, sobretudo, nos
países do Leste Europeu, da América Latina e da África.
Esse fenómeno global que começou em meados dos anos 70 e a que Huntington (1994, p. 30) designou de “Terceira onda de Democratização”, também influenciou Cabo Verde dando lugar, em janeiro de 1991, à realização das primeiras
eleições livres e à mudança do regime político.
O Dicionário Político (BOBBIO, 1998) define Regime Político80 como o “
conjunto das instituições que regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem
como a prática dos valores que animam tais instituições.”
A mudança do regime político precipitou uma série de outras mudanças nas
instituições que “regulam a luta pelo poder e o seu exercício”.
Sendo certo que não compete à polícia legislar ou estabelecer os mecanismos
procedimentais e de regulação da luta pelo poder, não deixa, igualmente, de
ser verdade que ela desempenha um papel vital enquanto mediador social e na
garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, criando ou preservando as condições necessárias para que os partidos políticos e os cidadãos em
80. “Regime Político. I. DEFINIÇÃO. — Por Regime político se entende o conjunto das instituições que
regulam a luta pelo poder e o seu exercício, bem como a prática dos valores que animam tais instituições.
As instituições constituem, por um lado, a estrutura orgânica do poder político, que escolhe a classe dirigente e atribui a cada um dos indivíduos empenhados na luta política um papel peculiar. Por outro, são
normas e procedimentos que garantem a repetição constante de determinados comportamentos e tornam
assim possível o desenvolvimento regular e ordenado da luta pelo poder, do exercício deste e das atividades
sociais a ele vinculadas”.
89
geral possam exercer o seu direito de participar na vida política da nação e na
construção da vontade política nacional, num clima de paz e de tranquilidade.
A transição para a democracia, a mudança de um Estado totalitário para um
Estado de direito democrático também implicou transformações no domínio da
segurança, matérias que serão retomadas mais adiante.
Sem prejuízo da influência do movimento global em prol da democratização,
ÉVORA (2004) considera que Cabo Verde é um caso típico de transição iniciada
pela elite autoritária mas que adquire uma dinâmica diferente com o surgimento
da oposição.
Ao abordar os processos de transição, Huntington (1994, p.124-163) identifica três tipos de transição política: o primeiro é a transição por transformação
ou reforma e nele são os próprios detentores do poder no regime autoritário que
tomam a frente para transformá-lo num regime democrático, o que exige que o
governo seja mais forte do que a oposição. O segundo tipo é a transição por substituição ou rutura que se caracteriza por um processo diferente da transformação.
Neste caso os elementos dominantes no governo são conservadores e, por isso,
opositores à mudança de regime. É a oposição quem lidera o processo de mudança política, já que não há reformadores no interior do regime autoritário ou se
existem têm muito pouca força. A democratização resulta de um ganho de força
da oposição e de uma perda de força do governo. O terceiro tipo é a transição por
transtituição. Neste caso a democratização é resultado de ações combinadas dos
detentores do poder e da oposição. Regista-se um equilíbrio de forças entre os reformistas e os conservadores no seio do governo que faz com que ele se disponha
para negociar uma mudança de regime.
Segundo ÉVORA (2004), no caso cabo-verdiano, a transição foi uma mistura de transformação com transtituição.
[…] Foi em parte um processo de transformação ou de desligamento voluntário, pois foram os líderes do regime do partido único que iniciaram o processo
de mudança. Mas também a transição seria um pouco de transição por transtituição, porque a oposição teve um papel importante na definição das regras
do processo de mudança que acabaram por dar um novo rumo às reformas empreendidas pelos líderes autoritários […] (ÉVORA, 2004, p. 24).
O discurso político que hoje se faz em Cabo Verde e mesmo referências
oriundas de diversas fontes (União Europeia, União Africana, ONGs, organis90
mos internacionais de cooperação), vão no sentido de considerar que o nosso
processo de construção de um regime político democrático é irreversível. Esta
constatação não exclui, no entanto, a necessidade da consolidação desse regime.
A esse propósito escreve Évora (2004):
[…] Pelo menos formalmente, o primeiro governo eleito democraticamente
em Cabo Verde fez grandes mudanças, estabelecendo na Constituição direitos
antes desconhecidos pelos cabo-verdianos. Também aboliu algumas instituições
do regime anterior, como é o caso da polícia política. Em termos de políticas
públicas, as maiores mudanças se deram no plano económico com o início do
processo de privatização. Contudo, mesmo tendo o MpD vencido duas eleições
consecutivas, o governo daquele partido fez muito pouco para iniciar o processo
de consolidação democrática.
O processo cabo-verdiano estagnou-se pelo facto de os novos actores políticos
não terem conciliado os aspectos formais com a prática democrática. Faltou-lhes
interiorizar os princípios democráticos e, por causa disso, deram prova de uma
certa continuidade com o regime anterior. […]. (ÉVORA, 2004, p. 121-122):
E arremata Évora (2004), considerando que para que se iniciasse o processo
de consolidação do regime democrático em Cabo Verde seria necessária uma
experiência de transferência de voto, o que veio a acontecer dez anos após as
primeiras eleições, em 2001, acarretando a alternância no poder, com a oposição
(PAICV) a ser governo e o partido que antes governou a ser oposição.
A constatação de Évora (2004) encontra respaldo também em Pinheiro
(1997) que, analisando o caso brasileiro no tocante à consagração de direitos na
Carta Magna, considera que,
[…] A nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, conseguiu incorporar muitos dos direitos individuais que foram violados sistematicamente no
período da ditadura militar. Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal
foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são considerados crimes.
[…] (PINHEIRO, 1997, p. 43).
Ao se referir à construção do regime democrático, Pinheiro (1997), afirma
que, […] Não basta haver eleições e falar em democracia – é preciso que o cidadão seja envolvido e que se sinta parte do processo […] O problema é que instalar
um governo civil eleito democraticamente não necessariamente significa que as
91
instituições do Estado irão operar democraticamente. Guilhermo O’Donnel refere-se a essa passagem como a “primeira transição” – sair de um regime autoritário para um governo eleito – e a “segunda transição” como a institucionalização
das práticas democráticas em todos os níveis do Estado. Em muitos países pósditaduras que não têm uma longa tradição democrática, a “segunda transição”
ficou imobilizada por inúmeros legados do passado autoritário. Essa continuidade sugere que os regimes autoritários do passado e os novos governos civis
democraticamente eleitos são expressões diferenciadas de um mesmo sistema de
dominação da mesma elite. […] A democratização política não ataca as raízes das
formas sociais de autoritarismo, ou “o autoritarismo socialmente implantado”. As
práticas autoritárias profundamente enraizadas nas novas democracias permeiam
tanto a política como a sociedade.
As práticas autoritárias persistem ao nível da macropolítica, por exemplo em
instituições do Estado como a polícia. […] As instituições do estado encarregadas de garantir a lei e a ordem são em larga escala disfuncionais.
No entanto, apesar desse avanço, os pobres continuam a ser as principais
vítimas da violência, do crime e das violações dos direitos humanos. […] (PINHEIRO, 1997, p. 47).
Ainda sobre estas duas questões vitais – a construção da democracia e o real
envolvimento dos cidadãos nesse processo – numa análise mais ampla que se
estende à América Latina, Costa (2004) realça que,
[…] Contrariando as expectativas, as transições políticas na América Latina
na década de 1980 não promoveram o estabelecimento de regimes efetivamente
democráticos, isto é, de acordo com o Estado de Direito. De um modo geral, as
relações entre algumas instituições estatais e a sociedade, em especial os segmentos mais pobres, continuam sendo marcadas pelo exercício arbitrário e muitas
vezes ilegal do poder.
Embora vários países tenham estabelecido em suas constituições uma série
de direitos individuais, políticos e sociais, tem-se assistido na região a eloqüentes
violações desses direitos. Tal situação levou alguns estudiosos a usar a expressão
“democracia sem cidadania” para descrever alguns dos regimes vigentes na região. […] (COSTA, 2004, p. 65).
Os textos citados deixam compreender a complexidade do processo de construção da democracia que, longe de ser obra acabada, requer um empenhamento
92
e um envolvimento permanente dos cidadãos que deverão ser, afinal, os destinatários de todas as políticas públicas desenvolvidas. Essa complexidade reflete-se
de forma amplificada quando se trata de instituições como a polícia, órgão especializado do Estado para o uso legítimo da violência.
Na linha do pensamento de Pinheiro (1997), a Constituição cabo-verdiana
de 1992 consagra um conjunto de novos direitos, contidos sobretudo no Capítulo I do Título II, de entre os quais se pode destacar o direito à vida e à integridade
física e moral, à liberdade e à segurança pessoal, à inviolabilidade do domicílio, à
expressão e informação, à liberdade de associação, de reunião e de manifestação,
etc. Sabendo que não basta consagrar direitos para que eles sejam respeitados,
em Cabo Verde, assim como no Brasil e em outras novas democracias latino-americanas, assegurar a liberdade e a justiça para todos, continua a ser um desafio
a vencer. Assim se compreende o conjunto de reformas que os governos tentam
implementar para fazer face a problemas complexos como o combate à criminalidade, à impunidade e a outros males a eles associados. No dizer de Costa
(2004) e referindo-se à América Latina, “… a legitimidade desses regimes está
seriamente comprometida por não terem êxito em fazer cumprir suas próprias
leis e os acordos internacionais …”. Outra consequência não menos gravosa associada à incapacidade de cumprir e fazer cumprir a lei é a crescente dificuldade em
mobilizar apoio popular para as reformas pretendidas.
Será que da transição democrática surgiu em Cabo Verde uma nova polícia?
Ou terá havido o que poderíamos chamar de solução de continuidade, com mudanças que incidiram mais sobre o quadro legal e que reduzido impacto tiveram
sobre a ação quotidiana, mais sobre a forma do que sobre o conteúdo, o que se
reflete num dado modelo de policiamento e num dado relacionamento com a
sociedade?
Merece aqui lembrar Costa (2004) quando diz que,
[…] A (re)introdução de eleições livres e a conseqüente ampliação do processo político não preenchem por si mesmas os requisitos da democracia: é imperativo que esses fatores sejam complementados por mecanismos de controle e
responsabilização da ação do Estado. Aqui reside a especificidade da atividade
policial num regime democrático: a necessidade de controlar o uso da força. Essa
peculiaridade tem suscitado o debate sobre a necessidade de desmilitarizar as
polícias. Embora concordemos com a tese de que a separação clara entre polícia
93
e exército é requisito fundamental para o emprego democrático das forças policiais, cremos que é necessário aprofundar o debate, pois desmilitarizar as polícias
significa muito mais que mudanças nos uniformes, insígnias e hierarquias. […]
(COSTA, 2004, p. 68-69).
Nesta linha, Weber (1946) considera a burocracia como um sistema organizacional que estabelece relações (hierárquicas) entre uma autoridade, constituída
legítima e legalmente, e seus subordinados e reconhece essa mesma burocracia
como grande elemento estruturador da sociedade (sob o princípio da racionalidade moderna). Não obstante, alerta que a democracia deve opor-se à burocracia
como tendência para uma casta de mandarins, distanciada das pessoas comuns
pelo treinamento especializado, certificados de exames e ocupação de cargos.
Numa referência à legitimidade do uso da força e ao estabelecimento de limites legais ao seu uso Weber (1946) destaca que,
[…] todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na
extensão com que a empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações
politicas. Essas diferenças têm um papel específico na determinação da forma e
destino das comunidades políticas. […] (WEBER, 1946, p. 187).
para mais adiante considerar que,
[…] A lei existe quando há uma probabilidade de que a ordem seja mantida
por um quadro específico de homens que usarão a força física ou psíquica com
a intenção de obter conformidade com a ordem, ou de impor sanções pela sua
violação. A estrutura de toda ordem jurídica influi diretamente na distribuição
do poder, econômico ou qualquer outro, dentro de sua respetiva comunidade.
Isso é válido para todas as ordens jurídicas e não apenas para a do estado. […]
(WEBER, 1946, p. 211).
Discutindo a questão do estabelecimento de limites ou restrições no exercício
do poder, o que inclui o uso legítimo da força, Costa (2004), ao caracterizar um
regime político, defende que,
[…] Um regime político pressupõe um conjunto de práticas e instituições
que moldam a disputa pelo poder e limitam seu exercício. O regime democrático
é aquele que proporciona as seguintes condições: expressiva competição entre
indivíduos e grupos pela ocupação dos postos de direção política; participação
na escolha dos representantes e programas políticos, o que significa que nenhum
94
grupo pode ser excluído das eleições e do debate político; e restrições impostas
pela sociedade ao exercício do poder pelas autoridades. […]. (COSTA, 2004, p.
68).
Em Cabo Verde, a Constituição da República consagra, no Capítulo II do
Título II, sob a epígrafe, “… Direitos, liberdades e garantias de participação política e de exercício de cidadania …” vários artigos (55º, 56º e 57º) que asseguram
as duas primeiras condições referidas por Arthur Costa (2004).
Assim, o artigo 55º estabelece no seu nº 1 que todos os cidadãos “… têm
o direito de participar na vida política directamente e através de representantes
livremente eleitos …”, o 56º assegura a todos os cidadãos “… o direito de aceder,
em condições de igualdade e liberdade, às funções públicas e aos cargos electivos,
nos termos estabelecidos por lei …” e o artigo 57º garante a todos os cidadãos
“… o direito de constituir partidos políticos e de neles participar, concorrendo
democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder
político, nos termos da Constituição e da lei...”
No que tange à nossa discussão sobre o estabelecimento de limites ao uso
legítimo da força, estabelece o artigo 244º, nº 2 da nossa Lei Magna que, as
medidas de polícia obedecem aos princípios da legalidade, da necessidade, da
adequação e da proporcionalidade, espelhando bem a imposição de limites ao
exercício do poder como refere Arthur Costa (2004).
É, exatamente, nesta matéria que encontramos fragilidades no sistema democrático construído em Cabo Verde. O controlo externo das atividades da polícia,
é ainda incipiente. Não obstante prever a nossa Constituição, desde 1992, a figura do Provedor de Justiça, as forças políticas nacionais, designadamente os com
assento parlamentar, não conseguiram ainda o consenso necessário à nomeação
do seu titular.
No plano infraconstitucional merecem destaque, entre outras, as medidas
legislativas relativas à despartidarização e à desmilitarização da polícia, à submissão dos seus agentes ao foro comum, pondo termo ao regime do foro militar
vigente, à definição de uma nova nomenclatura, esta mais civilista, à introdução
de novas patentes, novo uniforme e novas insígnias. Porém, mudanças na forma
de conceber e materializar o trabalho policial, na formação dos seus agentes, na
montagem da sua estratégia de intervenção, no seu dispositivo de forças e em
outros aspetos operacionais ficaram muito aquém das expectativas.
95
3.2 - SURGIMENTO E CONTROLO DOS SISTEMAS
POLICIAIS
O surgimento dos sistemas policiais, tal como os conhecemos hoje, tem sido
objeto de uma longa e antiga discussão. Na impossibilidade de se apresentar
uma resposta categórica sobre o que terá impulsionado os poderes públicos a
criar instituições policiais, tem-se avançado um conjunto de explicações. Estas
explicações convergem no que diz respeito à não identificação de um fator isolado
como origem das instituições policiais e no que se refere ao entendimento de que
o surgimento e o aperfeiçoamento de instituições policiais foram propiciados por
mudanças sociais ocorridas.
David Bayley, assumindo uma posição mais radical e rejeitando explicações
como a criminalidade, a industrialização, a urbanização ou o crescimento da
população como fatores diretos, considerou que o aparecimento das instituições
policiais contemporâneas estaria relacionado com transformações ocorridas na
organização dos poderes políticos e nas resistências populares a uma maior capacidade governativa81 .
O recurso ao crime enquanto explicação natural para o surgimento das instituições policiais parece fazer convergir tanto os sociólogos como historiadores,
sobretudo se se tiver em conta que, a partir do século XIX, a criminalidade é
encarada como problema social central.
O aparecimento de instituições policiais resulta da resposta do Estado no
sentido de prevenir e punir as ações criminosas. Este é “… o principal fio condutor nos estudos para justificar a existência de polícias (EMSLEY, 1996; BAYLEY,
2006 [1985]; CAIN, 1973) …”82 , a ponto de os discursos e representações sobre
a polícia e o policiamento tenderam ao longo do tempo a classificar a investigação
criminal como o verdadeiro trabalho policial, ofuscando um conjunto de outras
atribuições não menos importantes desenvolvidas pelas polícias.
Realça Bendix que a institucionalização de modernas organizações policiais
aconteceu no âmbito de um movimento mais amplo de emergência de um Esta-
81. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema
“A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”.
82. Idem.
96
do centralizado e que a organização da administração reflete o grau de entendimento resultante das negociações empreendidas entre os poderes central e local,
enquanto Albert Reiss afirma que “… No Séc. XX a organização policial evoluiu
em resposta às mudanças verificadas na tecnologia, na organização social e no
controlo político em todos os níveis da sociedade...” (REISS, 2003) .
Por sua vez, Paulo Sérgio Pinheiro (2008), escreve que,
[…] Não há um modelo único de estrutura policial. Analisando os processos
de criação das atuais instituições policiais francesas, inglesas, alemãs e italianas,
David Bayley constata que elas surgiram junto com o processo de estabelecimento dos Estados modernos. Constata também que as mudanças sociais e econômicas constituíram um importante vetor para a criação dos novos sistemas policiais
[…]83 ,
E conclui, citando Bayley, afirmando que,
[…] as profundas diferenças entre as estruturas policiais analisadas foram
conseqüências da forma como se deu a distribuição de poder nesses Estados. Ou
seja, a variedade nessas estruturas policiais é muito mais função da estrutura política existente do que da necessidade de controle da criminalidade […]84 .
No que respeita ao controlo sobre a Polícia, ele foi sofrendo modificações,
assumindo em diversas ocasiões uma partilha de poder entre os dois níveis de
administração. Ao longo dos últimos dois séculos, no entanto, o governo central
tomou progressivamente o comando total dos serviços policiais. Esta situação
verificou-se em primeiro lugar nas cidades maiores, sobretudo as capitais políticas. A ideia do poder político central controlar a direção da polícia consolidou-se
ao longo do século XIX. A disponibilização por parte deste de maiores recursos
financeiros e, a partir do início do século XX, de um saber técnico que emergia
com a profissionalização, ajudou o poder central a sobrepor-se ao municipal. Para
além disso, a centralização era vista como um meio eficaz de eliminação das influências políticas e de corrupção em geral no trabalho policial.85
Mas, convém notar que para lá da dependência ou independência da polícia
83. Melo, vol. 8, nº 48, fev./março 2008.
84. Idem.
85. Dissertação de mestrado em sociologia apresentada por Cândido Gonçalo Rocha Gonçalves, ao Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em 2007, sob o tema
“A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940)”.
97
em relação a estes dois níveis de poder, informalmente, apesar da centralização
generalizada, as instituições e os políticos locais continuaram a exercer influência
sobre as políticas relativas à polícia e, consequentemente, sobre o estilo de policiamento praticado.
No caso inglês, continuando com Gonçalves,86 que traz a propósito autores
como Emsley, Snyder, Miller e outros, a polícia, controlada pelo Estado central
através do Home Office, era totalmente independente das instituições municipais, que apesar de contribuírem com uma parte do financiamento não tinham
poder para influir nos destinos da organização.
Ainda, segundo o mesmo trabalho académico,
[…] o caso alemão é paradigmático da dicotomia central/local e de como a
estruturação do modelo policial se fez através de processos de conflito e negociação, (Reinke, 1991; Spencer, 1992; Ludtke, 1989). Um pouco à imagem da confusa história nacional alemã, a relação entre instituições policiais civis estatais,
militares estatais e civis municipais processou-se em constantes avanços e recuos
até uma certa estabilização no tipo civil estatal, no início do século XX. Outro
facto característico da polícia alemã é a forte militarização mesmo quando se trata de instituições formalmente civis, “the policeman’s background was military,
his overall appearance and habit was military, hierarchical structures within the
police were military, and finally, the policeman’s attitudes and behavior toward
the public were military” (REINKE, 1991, p. 55- 56) [...]87
Segundo a mesma fonte, também a França apresenta particularidades no que
tange o controlo da polícia. O modelo conhecido em Paris e outras capitais era
diferente do encontrado no resto do país. A Prefecture de Police funcionava na
dependência do Lieutenant Generale, e em 1829 foram criados na Prefrecture
os Sergents de Ville, que, à semelhança de Londres, constituíam uma patrulha
policial civil.
Realça que nas cidades com mais de 5.000 habitantes existiam os Commissaire de Police que ora eram nomeados pelo governo, ora eleitos localmente.
Este posto funcionava como etapa de transição dos seus titulares para polícias
profissionais.
86. Idem.
87. Idem.
98
[…] A força comandada por estes homens dependia do município. Apesar de,
à semelhança da restante Europa, a evolução ter ido no sentido da centralização,
os municípios mantiveram até bem dentro do século XX uma influência considerável sobre os serviços policiais. O resto do País era policiado pela Gendarmerie.
Esta força militar, que descendia da Maréchaussée criada no século XVII, tinha
como objectivo manter as estradas seguras, protegendo os viajantes e o correio.
Os guardas, continuando responsáveis pelas estradas, alargaram competências
no sentido de um policiamento mais geral para todo o espaço rural […]88
Por sua vez, o modelo policial americano, edificado no poder dos municípios,
é caracterizado por Albert Reiss no seu trabalho sobre a organização da polícia
nos Estados Unidos da América.
Algo diferente das suas congéneres europeias, as primeiras polícias urbanas
americanas inspiravam-se, de início, nas suas congéneres britânicas. Caracterizadas por um alto nível de politização, a polícia era consensualmente aceite como
instrumento da força política que dominava a administração municipal. A questão de controlo central ou local coloca-se de forma distinta e é reflexo do modelo
político americano onde a “… história da polícia urbana no começo do século
XX … tão intimamente ligada à história política das cidades … dificulta a determinação das mudanças peculiares à organização policial …” e se traduz num “…
grande número de organizações policiais politicamente autónomas, com jurisdições sobrepostas …”, no dizer de Reiss (2003).
A corrupção era endémica na organização política e na “máquina política”
e escândalos de corrupção municipal e policial abalaram frequentemente os departamentos policiais onde vigorava o sistema de “apadrinhamento” em que os
chefes das polícias eram designados pelos responsáveis políticos locais, estando,
por isso, sujeitos aos seus pedidos de lealdade e desempenho.
A grande fragmentação das organizações policiais é outro elemento destacado por Reiss que esclarece que,
[…] nos Estados Unidos, a responsabilidade do policiamento é dividida entre os governos federal, estadual e local, mas a maior parte da proteção policial
cabe aos governos locais. Em 1988, 77% dos 784.371 empregados na protecção
policial eram dos governos locais, 15% eram dos estaduais e 8% do federal. As
88. Idem.
99
municipalidades respondiam por mais de ¾ desse policiamento e os condados
por cerca de 24% […] (REISS, 2003, p. 76).
Se os governos locais dispõem de tão forte representação a nível do policiamento público, fácil é compreender a inevitabilidade da fragmentação do policiamento daí resultante.
Reiss (2003) explica, ainda, que os motivos da fragmentação podem ser encontrados no “… sistema de aplicação da lei que é fragmentado …”, já que o
sistema federativo deixou o policiamento a cargo dos Estados que tinham larga
tradição de ligação às autoridades locais e aos seus desejos de um policiamento
local, com características locais. Na medida em que se criava mais um condado
(county), distrito (township) ou municipalidade (municipality), estes indicavam/
empregavam alguém para se encarregar do policiamento. Os governos locais espalharam-se à volta das cidades principais e a expansão destas e de suas jurisdições policiais estava sufocada por um anel de comunidades políticas suburbanas,
tendo, cada uma delas, criado o seu próprio departamento de polícia enquanto
crescia. Exemplo paradigmático é o de New Jersey que, não obstante ser um Estado altamente urbanizado, tinha em 1988, 486 departamentos de polícia.
Dado à preponderância dos pequenos departamentos de polícia, surgem, episodicamente, pressões para juntá-los com outros maiores, em busca de maior
coordenação entre eles e em prol do desenvolvimento de um sistema mais integrado de policiamento, no interesse da eficiência, da economia administrativa e
da tomada de decisões profissionais. Ainda, conforme Reiss (2003), ao contrário
do que ocorreu na Inglaterra, nos Estados Unidos, “… reunir a polícia local num
só sistema regional ou estadual de policiamento constitui uma maldição para os
eleitores…” na medida em que “… a descentralização do poder, da autoridade e
da tomada de decisões nas organizações, está de acordo com os ideais de governo
democrático e continua sendo a conceção dominante do policiamento…”, por
arreigadas tradições locais de governo e a crença de que o controlo da polícia é
ingrediente essencial do governo local.
Tenha-se, finalmente, presente, que o policiamento estadual nos Estados
Unidos não surgiu antes do começo do século XX.
Estudos mais recentes comprovam que a questão do controlo das polícias
pelo Estado central ou por autoridades constituídas de nível local passou por
processos mais negociais que conflituosos, com avanços e recuos, desembocando
100
em soluções de compromisso e divisão de poderes.
A construção do Estado moderno remeteu a polícia para um modelo institucional funcionalmente mais circunscrito. O conceito de Estado que aqui se
emprega alinha com o pensamento de Paulo Sérgio Pinheiro que afirma,
[…] Nós entendemos por Estado um “empreendimento político de caráter
institucional” desde que e conquanto sua direção administrativa reivindique com
sucesso a aplicação do monopólio da coerção física legítima. O Estado portanto
será uma comunidade humana que detém, com sucesso, o monopólio do uso
legítimo da força física sobre um território dado. A violência da qual fala Weber
não é cega nem ilegítima mas torna-se legítima precisamente porque ela é organizada (podendo ser chamada de coerção, como o faz Kelsen). […]89
O amplo mandato policial detido pelo Estado contemporâneo foi progressivamente sendo distribuído por um número variável de agências policiais especializadas em certas funções. Na linha do conceito de “burocratização” ensinada
por Weber, entramos num processo de “profissionalização” com reflexos marcantes no campo organizacional assente na apropriação de tecnologias que, como
escreve Reiss, produziram o seu maior impacto na “solidificação da centralização burocrática do comando e do controle”, mas produzindo, em contrapartida,
como consequência, o afastamento da polícia das comunidades.
Dúvidas não restam, no entanto, que a intervenção do Estado central a nível
local utilizou a polícia como os dos seus instrumentos privilegiados.
3.3 - POLÍCIA E SEGURANÇA PÚBLICA
A polícia é, no mudo contemporâneo, um instrumento privilegiado criado
pelo Estado para operacionalizar o mandato do uso legítimo da força, tarefa
assumida no quadro do processo de transferência do poder de agir em nome da
coletividade, para uma entidade representativa e que se assume como promotora
do bem comum.
Não obstante o muito que se tem escrito sobre o sentido epistemológico da
palavra polícia, designadamente, nas sociedades medievais e, sem que se perca
89. Paulo Sérgio Pinheiro in “ O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf
101
de vista o papel e a evolução organizativa e conceitual que a instituição “polícia”
conheceu até os nossos dias e, sem que se esqueça que as instituições policiais modernas nascem do roteiro das precedentes, interessa focalizar o presente estudo
sobre modelos mais recentes, e lembrar, uma vez mais, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão.
Proclamada no fulgor da Revolução Francesa, realça a necessidade de uma
força pública instituída em benefício de todos para a garantia dos direitos do homem e do cidadão e cuja utilização em proveito daqueles a quem é confiada é interdita. É sobre esta força pública, fruto de um conceito mais recente e moderno
do que aquele que se conhece das sociedades medievais que se quer incidir. Uma
força, inicialmente, vocacionada para assegurar a harmonia entre os pactuantes,
garantir a proteção integral da vida e o bem-estar geral de todos, instituída em
benefício de todos, cuja apropriação individual ou grupal estava interdita e desenhada para ser mediadora social e que, gradualmente, deixa a roupagem original
para se erigir, nos Estados autoritários, numa máquina repressiva brutal, principal violadora dos direitos e garantias que devia salvaguardar, distante e temida
pelas populações e instrumentalizada por uma elite dominante.
Tal como definido por Weber, o Estado é aqui referido enquanto comunidade humana que detém, com sucesso, o monopólio do uso legítimo da força
física dentro de determinado território e cuja natureza se desdobra nos elementos
essenciais que o constituem - autoridade e legitimidade. Autoridade que deve ser
aceite pelo conjunto das pessoas, por toda a população e ao mesmo tempo reconhecida como legítima para que os dominados obedeçam. São estas, no entendimento de Weber, as condições básicas para a existência de um Estado.
Sem qualquer referência aos elementos essenciais que dão corpo ao Estado, referidos por Weber, Rousseau na sua teoria do “Pacto Social”, considera a
necessidade da congregação da força e da liberdade de cada homem, enquanto
instrumentos primeiros de sua conservação. Reconhecendo a dificuldade que tal
congregação encerra, realça que essa mesma dificuldade consiste em,
[…] Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força
comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se
a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como
102
anteriormente. […].90
Ciente da necessidade de transformação dessa “força em direito e a obediência em dever”, já que o mais forte nunca o é suficientemente para sempre, Rousseau resume o “Pacto Social” do seguinte modo:
[…] Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob
o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro
como parte indivisível do todo […].91
Prosseguindo com este raciocínio, vale bem trazer a esta discussão Sílvia Ramos92 que escreve que,
[…] os diálogos sobre violência, segurança pública e polícia são nada menos
do que nosso reencontro tardio com a opção pelo pacto civilizatório, que troca
o mundo de todos contra todos, pelo mundo onde delegamos ao Estado, e mais
especificamente às forças policiais, o direito ao uso legítimo da força em nome de
todos. Ou seja, em nome da Lei que regula as relações no mundo dos humanos e
o difere do mundo dos animais, onde vigora a lei do mais forte, do mais violento,
do mais ameaçador. […] (RAMOS, 2009, p. 56).
Segundo Costa (2004), (mas também Weber) o traço definidor das instituições policiais é a possibilidade do uso legítimo da força. Entretanto, essa possibilidade não confere às polícias total liberdade para decidir quando cabe ou não o
recurso à violência — o que adquire particular importância num regime democrático, por se tratar exatamente dos limites ao exercício do poder.
Apesar de amplamente debatida, uma destrinça clara entre o uso legítimo da
força e violência policial não é consensual, já que a noção de violência varia de
uma sociedade para outra. Aquilo que para uma dada sociedade constitui violência, não tem que ser visto da mesma forma por uma outra.
Segundo Michaud (1989), Nieburg define violência como “uma ação direta
ou indireta, destinada a limitar, ferir ou destruir as pessoas ou os bens”. Por sua
vez, Graham e Gurr escrevem que,
90. file:///C|/site/livros_gratis/contrato_social.htm (9 of 72) [4/1/2002 14:09:38]
91. Idem
92. Cientista social e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, RJ.
103
[…] a violência se define, no sentido estrito, como um comportamento que
visa causar ferimentos às pessoas ou prejuízos aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos considerar tais atos de violência como bons, maus, ou nem um
nem outro, segundo quem começa contra quem. […] (MICHAUD, 1989, p. 10).
O próprio Michaud (1989), procurando encontrar uma definição que dê conta tanto dos estados quanto dos atos de violência, escreve que,
[…] há violência quando numa situação de interação um ou vários atores
agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos em uma
ou varias pessoas em grau variável, seja na sua integridade física seja na sua integridade moral, em suas posses ou em suas representações simbólicas ou culturais.
[…]. (MICHAUD, 1989, p.p. 10 e 11).
No concernente à violência policial, para Costa (2004), pelo menos três interpretações dominantes são identificadas, associadas às perspetivas jurídica, sociológica e profissional.
Assim como cada uma dessas interpretações define de forma diferente a violência policial, também são distintos os mecanismos de controlo da atividade
policial.
Enquanto a interpretação jurídica destaca os papéis dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, enfatizando a atuação dos tribunais e do ministério público na punição dos atos ilegais dos agentes policiais, a interpretação sociológica
realça que tal controle deve ser feito por órgãos externos através dos quais a sociedade possa estabelecer os limites legítimos do uso da força policial e, por último,
a interpretação profissional coloca o ponto no treinamento e na organização das
forças policiais. Apesar das diversidades dessas três interpretações, nem as suas
definições de violência policial nem os mecanismos de controlo por elas prescritos são mutuamente excludentes.
Paulo Sérgio Pinheiro para além de alertar que a violência de que fala Weber
não é cega nem ilegítima, mas que ela se torna legítima precisamente porque ela
é organizada (podendo ser chamada de coerção, como o faz Kelsen), esclarece
ainda que da análise da coerção exercida pelo Estado, pode-se constatar que ela
tem a seguinte particularidade:
[…] como o Estado não é um ser real, não pode executar nenhum ato de
coerção, seja física ou de outra espécie porque ele não pode ele mesmo agir de
104
alguma maneira. A afirmação de que o Estado age pela coerção é somente uma
forma de falar que corresponde na realidade a muitas situações diferentes. Primeiramente ela completa e prolonga a ficção pela qual alguns atos de coerção
física cometidos por homens/mulheres são considerados como desempenhados
pelo Estado. É essa ficção que o direito chama de “imputação” […] O Estado
exerce assim a coerção por intermédio de homens, que são considerados como
órgãos do Estado. […]93
Ele não deixa, no entanto, de referir os atos de coerção cometidos por indivíduos que não têm a qualidade de órgãos do Estado. Esses atos, que não serão
imputados ao Estado, mas aos próprios indivíduos, são entretanto autorizados ou
mesmo prescritos pelo Estado. É o caso da legítima defesa em que “… os indivíduos estão autorizados a desempenhar atos de violência física, em certas situações, em certas condições e numa certa medida determinados pelo direito …”.94
Na mesma linha, escreve Monjardet que, “… Para entender-se a polícia, a
importância a ser conferida à força física foi contestada por dois motivos: a polícia
não tinha o monopólio da força, nem esta era, além disso, seu meio de ação mais
significativo …” e traz para a discussão as objeções de Bourdieu a tal afirmação,
fazendo notar que,
[…] em lugar algum, a polícia detém o monopólio, no sentido estrito do termo, do uso regrado da coação física. São detentores dela igualmente os guardas
de prisão […] os funcionários de certos serviços hospitalares, a autoridade militar
em relação aos seus membros […] a autoridade parental é acompanhada de um
direito de coação sobre os menores […] enfim, tanto no direito inglês como no
francês e muitos outros, todo o cidadão dispõe não apenas do direito da legítima
defesa, mas ainda deve deter o autor de um crime flagrante (artº 73º do CPP)95
[…] Não existe, portanto, monopólio policial da violência legítima […] (MONJARDET, 2003, p.p. 25-26).
O mesmo autor explica ainda que o que distingue os exemplos anteriores da
força pública é o “alvo”. Enquanto nos exemplos o “… alvo do recurso legal à
força é exclusivo e precisamente delimitado – o pai apenas sobre os seus filhos, o
93. Paulo Sérgio Pinheiro in “ O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf
94. Idem.
95. Também o Artigo 265º, nº1 do Código de Processo Penal de Cabo Verde.
105
guarda de prisão apenas sobre os detentos, etc. …”, o “… alvo policial, ao contrário é indeterminado, ou seja, potencialmente infinito. …”
Daí que,
[…] O monopólio não é necessário se a polícia detém força suficiente para
regular o emprego que dela fazem os outros detentores. […] a força pública é calibrada de tal maneira que possa vencer qualquer outra força “privada”. E se caso
falhar nisso, todas as legislações, sem exceção, preveem o recurso às forças armadas para – nesse caso – “ajudar” a polícia e, na prática, elas mesmas se tornarem,
momentaneamente, polícia. De tal modo que toda manifestação de força policial
é sempre suscetível de escalada, até o ponto em que seja atingido o quantum de
força requerido, seja qual for. […]. (MONJARDET, 2003, p. 26).
E conclui, desmistificando o conceito muito badalado, mas irrefletido, de
que o bobby inglês anda desarmado, afirmando que ele,
[…] se faz obedecer certamente pelas virtudes de sua autoridade pessoal, mas
igualmente porque o público sabe, da maneira mais segura, que ele é parte integrante de uma organização que, por sua vez, é fortemente armada. O que significa que a ameaça da força desempenha o mesmo papel que a força em si. […].
(MONJARDET, 2003, p. 27).
e assente na asserção de que “… a violência, como poder, funciona melhor
como ameaça …”, já que ela expõe “… os limites da polícia, a dependência do
individual em relação aos outros…”, definindo a polícia, como “… a instituição
encarregada de possuir e mobilizar os recursos de força decisivos, com o objetivo
de garantir ao poder o domínio (ou a regulação) do emprego da força nas relações
sociais …”. (MONJARDET, 2003, p. 27)
Do mesmo modo, ressalta Pinheiro que existem numerosos atos do Estado
que não são atos de coerção física, mas que prescrevem ou autorizam o emprego
da força, como, por exemplo, uma ordem dada à polícia, para explicar que,
[…] Monopólio significa não o exercício exclusivo da violência mas o direito exclusivo de prescrever e em conseqüência proibir ou permitir a violência (a
função ideal do monopólio é a ausência de toda violência efetiva). Monopólio é
portanto o direito exclusivo de definir e de distinguir por meio de prescrições e
de autorizações a coerção legítima e a coerção ilegítima. A afirmativa de que o
Estado exerce a coerção física é portanto uma simples metáfora segundo a qual
106
os órgãos do Estado têm o poder de prescrever ou de autorizar atos de coerção. É
esse poder de prescrever que se chama em definitivo de “poder de coerção”, ainda
que ele não seja em si mesmo um ato de coerção física. […]96
Prosseguindo com Pinheiro, ele considera o equilíbrio entre as duas funções
do Estado o ponto crucial desse monopólio, a saber: a função para os que controlam o Estado e para os membros da sociedade regulada pelo Estado, ou seja,
o grau de pacificação interna. Evidencia-se, deste modo, a dupla face da função
do Estado que, por um lado, enquanto detentor do monopólio da violência, deve
impor limitações aos seus poderes e ações e, por outro lado, como guardião da
ordem pública, deve ser o protetor e o garante de todas as liberdades.97
O grande dilema que fica por resolver é que a simples fixação de limites aos
poderes e ações do Estado e o estabelecimento de um quadro legal que garanta
todas as liberdades aos cidadãos, não bastam por si sós. O sistema social subjacente não muda pela mera consagração, ainda que constitucional, de direitos e
a américa latina apresenta casos paradigmáticos nesse sentido. A esse propósito,
tenha-se em conta, ainda com Pinheiro que,
[…] as práticas autoritárias dos governos não foram mudadas pela mudança
política ou por eleições. Por essa razão há um dramático gap entre as cartas de
direitos e o mundo real dos procedimentos jurídicos e o funcionamento da lei,
expresso pelas práticas incrustadas nas instituições judiciais (como a polícia, os
tribunais, o ministério público) refletindo claramente as cruéis realidades das
sociedades latino-americanas e brasileira. Os sistemas jurídicos são ao mesmo
tempo um instrumento e um reflexo da sociedade, e portanto da desigualdade
social. A análise dos processos de consolidação democrática, constatada a discrepância entre a letra da lei e as práticas no sistema jurídico, à luz dessas terríveis
realidades, deve abandonar a velha mistificação que pretende que o direito se
situa fora e acima da sociedade e das realidades sociais, que ele teria sua essência
própria, sua lógica autônoma, sua existência independente […]98
Assim, o Estado não pode pretender-se democrático se as práticas do governo
e de seus agentes não respeitarem os requisitos da democracia. O Estado não
96. Paulo Sérgio Pinheiro in “O controle do arbítrio do estado e o direito internacional dos direitos humanos”. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16102-16103-1-PB.pdf
97. Idem.
98. Idem.
107
pode pretender ser democrático se não consegue implementar o acesso efetivo da
população aos direitos fundamentais.
Retomando a organização policial propriamente dita e a sua ação quotidiana
em prol da segurança pública, é sabido que a moderna organização policial burocrática nasceu na Inglaterra, no séc. XIX, sob o fundamento e propósito primeiros de defender a elite das cidades, das ameaças do crescimento da criminalidade
e de distúrbios e desordem urbana, que as “classes perigosas” representavam para
a sociedade.
Retomando Reiss (2003), a evolução do processo de burocratização da polícia em resposta às mudanças verificadas, designadamente, na tecnologia e a
nível da própria sociedade, produziu impacto na solidificação e na centralização
burocrática do comando e do controle e completou a separação da polícia das
comunidades em termos organizacionais.
Compreende-se, assim, que Bayley tenha referenciado uma manchete da revista Newsweek de janeiro de 1985, que dizia,
[…] “Existe algo de novo nas ruas de Brooklin. A polícia voltou a fazer patrulha a pé” – a nova popularidade da patrulha a pé significa um movimento maior
de afastamento do controlo reativo do crime para aproximar-se das estratégias
positivas de prevenção do crime. […] (BAYLEY, 2001, p.p. 223).
Considerando a necessidade da conjugação de forças internas e externas no
processo de mudança das estruturas policiais nos Estados Unidos, Goldstein
(2003) enfatiza o papel das lideranças, sem deixar de se referir ao papel igualmente importante desempenhado pelos sindicatos de polícia, pela mídia, pelos
municípios e pelo próprio governo – estadual e federal. Realça que as mudanças
mais profundas e as melhor sucedidas contaram com uma forte participação e
envolvimento das chefias e conclui que o processo de mudança não constitui
simplesmente uma estratégia a seguir por um administrador no seio da sua organização, mas, antes, requer a ação de várias forças importantes da sociedade com
interesse vital na ação da polícia.
Analisando o caso brasileiro, Santos (2004), considera que o processo de redemocratização no Brasil, iniciado na década de 80 vem provocando, em especial
nas corporações policiais, transformações que decorrem do questionamento da
sociedade sobre a real função da polícia num Estado de Direito Democrático.
No início dos anos 90, as corporações policiais cujas práticas foram enrijecidas
108
durante o período ditatorial iniciaram um processo de substituição do modelo
histórico do sistema policial, dado às transformações ocorridas na sociedade brasileira, com destaque para o crescimento de práticas democráticas e o fortalecimento da cidadania. O descompasso entre as mudanças sociais e politicas e a pratica policial produz uma crise nas policias brasileiras – não uma crise de dentro
para fora das corporações, mas, sim o inverso, da relação sociedade-Estado. Em
consequência da falta de sintonia entre o avanço social e a prática policial, a crise
é ampliada pela ausência de um processo dinâmico e otimizado, capaz de fazer
funcionar um sistema de segurança pública para a realidade brasileira.
Assim, considera Santos (2004) que é preciso (re)construir os valores democráticos na sociedade para a convivência em um Estado Democrático de Direito.
E as políticas públicas de segurança devem estar fundamentadas nesses valores, para a efetiva consolidação da democracia no país. Evidentemente, a polícia
apresenta-se, nesse contexto, como instituição importante e fundamental para a
consolidação da democracia. A persistência de violações de direitos humanos no
âmbito das instituições responsáveis pelo controle da violência e distribuição da
justiça tem por denominador comum a impunidade.
Neste contexto, Silva Melo (2008) considera que a instituição policial assume um importante papel,
[…] não só pelo seu papel constitucional de manutenção da ordem pública,
mas também por ser um agente produtor de violência. Os policiais, enquanto
atores que desempenham a função profissional de zelar pela segurança pública,
são fundamentais tanto na produção da letalidade - quando confrontam a criminalidade, assim como na reversão desses índices negativos e na constituição
de uma institucionalidade fundada nos direitos humanos. […] (SILVA MELO,
2008, p. 132).
Retomando a ideia da conjugação de forças internas e externas no processo
de mudança nas estruturas da polícia defendida por Goldstein (2003) e a necessidade de sintonia entre o avanço social e a prática social referenciada por Santos
(2004), a democratização ocorrida em Cabo Verde, enquanto manifestação de
avanço social, influenciou, no sentido positivo, senão a essência, pelo menos a
roupagem exterior do que poderia ser um novo conceito de polícia. O que acaba
de ser dito pode ser verificado, por exemplo, na introdução, com a democratização do país, do lema da Polícia de Ordem Pública “Ao Serviço da Comunidade”.
109
Sem se pretender aqui analisar, se esse lema se traduziu em prática consolidada, a verdade é que ele contém uma mensagem forte que marca um ponto
de viragem na conceção do papel que à polícia está (deve estar) reservada numa
sociedade democrática, ou seja, o papel de uma instituição que tem por objetivo
assegurar o livre exercício dos direitos dos cidadãos, direitos esses constitucionalmente protegidos99 .
Mas, o livre exercício dos direitos pressupõe, por um lado, a liberdade para o
efeito e, por outro, a necessária segurança para que a liberdade seja efetiva.
Para Bauman (2003), a segurança e a liberdade são dois valores igualmente
preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada
até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e
liberdade mais visível e mais difícil de consertar.
Há boas razões para conceber o curso da história como pendular, mesmo
que em relação a certos aspetos pudesse ser retratado como linear: a liberdade e a
segurança, ambas igualmente urgentes e indispensáveis, são difíceis de conciliar
sem atrito — e atrito considerável na maior parte do tempo. Estas duas qualidades são, ao mesmo tempo, complementares e incompatíveis; a chance de que
entrem em conflito sempre foi e sempre será tão grande quanto a necessidade de
sua conciliação. Embora muitas formas de união humana tenham sido tentadas
no curso da história, nenhuma logrou encontrar solução perfeita para uma tarefa
do tipo da “quadratura do círculo”.
A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto
esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem liberdade
equivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser
afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança,
acaba por ser uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância torna a vida
em comum um conflito sem fim, pois a segurança sacrificada em nome da liber-
99. O artigo 30º da CR, sob a epígrafe Direito à liberdade e segurança pessoal estabelece que todos os cidadãos têm direito à liberdade e segurança pessoal e que ninguém pode ser total ou parcialmente privado da
liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de atos puníveis por lei
com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança prevista na lei.
110
dade tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da
segurança tende a ser a liberdade dos outros. (BAUMAN, 2003, p. 24).
Para Soraya LUNARDI100 , o objetivo do Estado não é só garantir a segurança ou a liberdade, mas manter o complexo e delicado equilíbrio de ambas,
justificando sempre sua atuação e as restrições impostas às liberdades.
Esta autora considera que independentemente desse problema de equilíbrio
entre a segurança e os demais direitos,
[…] devemos destacar a unilateralidade do conceito de segurança, que, no
senso comum e na mídia, relaciona-se quase exclusivamente com a violência urbana e as ameaças terroristas. Esse conceito é discriminatório, selecionando como
destinatários-beneficiários da segurança grupos sociais privilegiados, tendo seu
patrimônio e incolumidade física protegidas pelo Estado contra riscos de agressão externa ou em razão da criminalidade violenta. Tal conceito de segurança
não abrange os grupos socialmente inferiorizados, que não se preocupam de maneira prioritária com a segurança patrimonial e sim com aspectos materiais de
satisfação de suas necessidades humanas […] (LUNARDI, 2009, p. 263).
Prossegue a mesma autora que para evitar essa “unilateralidade”, é necessário
que o conceito seja redimensionado,
[…] pensando na segurança não somente em termos de confronto entre defensores da ordem e agressores, mas também em termos de políticas públicas de
garantia dos direitos sociais. O desempregado se sente tanto inseguro quanto o
rico empresário que teme os “bandidos”. Mas quando os políticos e jornalistas
lamentam a insegurança e clamam por políticas “tolerância zero” contra os que
ameaçam, não se referem à insegurança dos desempregados nem pedem “tolerância zero” para os empresários que os demitiram. Nessa perspectiva, a segurança
relaciona-se com o bem estar, dando base a uma série de exigências relativas às
principais causas de insegurança: desemprego, acidentes, deterioração do meio
ambiente, falta de alimentação adequada e, em geral, não satisfação de necessidades humanas, materiais e imateriais. […][…] (LUNARDI, 2009, p. 264).
Referindo-se à “dependência conceitual da segurança”, realça ainda a autora
100. LUNARDI, Soraya Gasparetto – Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Pós-Doutora pela Universidade de Athenas – Grécia. Coordenadora e professora do Mestrado em
Direito da UNIMAR. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Docente da Instituição Toledo de Ensino
de Bauru.
111
que a segurança é um direito à proteção por meio de normas e ações do poder
público contra atos não apenas dos particulares, como também do próprio poder
público nos casos de violação ou ameaça de violação dos direitos pessoais, o que
revela que,
[…] a segurança não possui conteúdo próprio. É um direito de segundo grau,
“acessório” ou “secundário”. Quando pensamos no conceito de segurança, temos
sempre em mente outro direito ameaçado ou violado, integridade física, saúde,
patrimônio, privacidade, alimentação ou qualquer outro. Mas, em todos os casos, a segurança se refere à satisfação de outro direito. Por isso, foi sugerido não
se referir ao “direito à segurança” e sim às condições fáticas e jurídicas (políticas
públicas e existência de normas jurídicas) que permitem garantir a “segurança
dos direitos”. […][…] (LUNARDI, 2009, p. 266).
Finaliza a autora evidenciando a clara necessidade da adoção de um conceito holístico de segurança que evite a discriminação de grupos sociais ou que
privilegie certos direitos e introduz uma referência a autores que consideram a
segurança humana como conceito que abrange reivindicações e políticas públicas voltadas a evitar todas as situações de insegurança de indivíduos ou grupos,
independentemente de sua causa e arremata que,
[…] Nessa ótica, a segurança se define como situação na qual um direito é
garantido de maneira permanente e em um nível satisfatório. Sente- se inseguro
quem, em razão de uma crise econômica, não tem certeza se receberá o salário
no final do mês (insegurança causada pela falta de regularidade, impedindo a
satisfação permanente), assim como quem recebe salário que não atende às suas
necessidades básicas (insegurança causada pelo nível insuficiente de satisfação do
direito). […][…] (LUNARDI, 2009), p. 265).
Para Anderson Alcântara Silva Melo (SILVA MELO, fev./março 2008), a
Segurança Pública é um tema complexo que possui caráter interdisciplinar, pluridimensional, multicausal e multifatorial, pelo que, é necessário buscar novas
possibilidades de respostas à criminalidade, em outras áreas, negando o tradicional modelo centrado basicamente no controle formal da criminalidade difusa ou
organizada.
No mundo de hoje estamos constantemente a ser confrontados com mudanças que ocorrem em todos os planos da nossa vida. No que se refere à criminalidade, ela assume dimensões transnacionais, pelo que a sua manifestação
112
acontece em todo o lado e sob as mais diversas formas. A este propósito, vale a
pena considerar o que diz Anthony Giddens,
[…] vivemos num mundo de transformações, que afetam quase tudo o que
fazemos. Para o melhor ou para o pior, estamos a ser empurrados para uma ordem global que ainda não compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já
se fazem sentir em nós. […] (GIDDENS, 2010, p. 19).
Cabo Verde, país aberto ao mundo e com uma diáspora espalhada por diferentes latitudes, não está imune às influências, positivas e negativas, que a nova
ordem global referida por Giddens (2010) traz consigo. É incontornável a necessidade da elaboração e implementação de políticas públicas ativas que respondam
aos desafios atuais e futuros que o desenvolvimento do país coloca, designadamente no domínio da segurança pública.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluído o presente trabalho, os dados recolhidos e a argumentação produzida permitem, tecer as considerações finais que se seguem:
Na linha do que aconteceu na europa e nos Estados Unidos, a criação de um
Corpo de Polícia Civil para a Cidade da Praia, em 1872, perseguia o objetivo
primordial de conter o aumento da criminalidade, considerando que o reduzido
efetivo militar disponível não satisfazia as exigências do serviço público na capital da província. O nascimento do referido corpo de polícia ocorreu, por um
lado, num contexto de dificuldades orçamentais, tema central no processo de
institucionalização da segurança pública em Cabo Verde, e por outro, num clima
de certo idealismo refletido, aliás, no Regulamento do Corpo de Polícia Civil,
procurando trazer para uma arena de relações sociais profundamente desiguais
e marcadas pelo traço da colonização, formulações e representações que nem no
Reino tinham sido acolhidas no plano jurídico-formal.
Antes e depois da criação do Corpo de Policia Civil da Cidade da Praia, a
manutenção da ordem pública é uma atividade partilhada por vários atores sociais: a milícia e o batalhão de artilharia (leia-se hoje forças armadas) que depois
passou a ser uma força complementar, como atesta a sua presença em todas as
revoltas populares; os oficiais camarários – juízes ordinários e vintenários, meirinhos da serra; os administradores do concelho, regedores e cabos de polícia; e o
chefe da Repartição Militar do governo da província, enquanto comandante da
força pública.
Um dado completamente novo que o trabalho introduz é o de que as revoltas
populares e os levantamentos sociais ocorridos em Cabo Verde, impulsionaram a
reorganização dos corpos de polícia, acelerando o processo de institucionalização
da segurança pública, com destaque para a temática da integração do território
nacional101 .
No período pós-independência o processo de institucionalização da segurança pública foi profundamente marcado pelo golpe de estado de novembro de
1980, na Guiné-Bissau, pela abertura política declarada em 1990 a que se seguiu
101. Ver Anexo 1.
114
a revisão da constituição e a aprovação de um vasto pacote legislativo para assegurar as condições para a realização de eleições livres e democráticas e a transição
democrática efetivada em 1991.
A natureza do Estado que surgiu da independência influenciou profundamente a organização e o funcionamento da polícia em Cabo Verde. A Lei sobre a
Organização Política do Estado (LOPE) e, mais tarde, a Constituição da República continham normas que sustentavam o regime de partido único e essas normas foram integradas nos instrumentos legais organizativos e de funcionamento
da polícia.
A par das dificuldades orçamentais antes referidas, outro elemento comum
presente nas reorganizações da polícia estudadas é o seu caracter conjuntural,
comandado pelo ritmo de transformações sociais ocorridas na sociedade caboverdiana.
Uma discussão em torno da democracia, da transição democrática e do surgimento de modelos de polícia e o seu controlo, com referência sobretudo às
experiências estudadas por autores brasileiros, americanos e europeus, permitiu
interpretar os programas de governo aprovados para as cinco legislaturas que
ocorreram entre 1975 e 2000, sendo três na primeira república e duas na segunda
e o sentido das medidas reorganizativas adotadas, e concluir que, não obstante
as insuficiências que persistiram, a democratização do país influenciou, positivamente, o modelo de organização e de funcionamento da segurança pública em
Cabo Verde.
O quadro constitucional e legal conheceu um importante desenvolvimento,
foi incorporado um leque variado de direitos dos cidadãos, foram consagrados
constitucionalmente os princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, balizadores da aplicação das medidas de polícia, a polícia é declarada “ao serviço da comunidade” e manteve-se independente das forças armadas,
regendo-se por instrumentos próprios, os seus membros foram sujeitos ao foro
comum e intensificou-se e densificou-se o discurso político em torno da segurança pública que passou a ser considerada vantagem comparativa no processo de
desenvolvimento do país.
Como já se referiu antes, a realização de eleições democráticas periódicas, a
consagração de um leque variado de direitos no texto constitucional e a definição e regulamentação do quadro legal aplicável à polícia não significam, por si
115
sós, que a sua prática quotidiana seja democrática e respeitadora dos princípios e
direitos anunciados.
É importante e imprescindível que sejam desenvolvidas e aplicadas políticas
públicas que coloquem o cidadão como ator e principal e destinatário de tais
políticas, tarefa que é da inteira responsabilidade dos poderes públicos.
116
ANEXO 1
REVOLTAS/MOVIMENTOS
SOCIAS/ANO
MEDIDAS ADOTADAS
Revolta do Paúl, ilha de Santo AnAprovação do Decreto nº 2, de
tão – 1894
24 de dezembro de 1896 que criou o
Corpo de Polícia Civil da Província
de Cabo Verde, cujo Regulamento foi
aprovado pela Portaria nº 19, de 21 de
fevereiro de 1897. Este regulamento
esboça uma tentativa de integração
do território da província não criando
unidades territoriais, mas prevendo a
possibilidade do serviço policial ser
prestado “… dentro da província e em
qualquer ponto dentro d’ella …”.
Revolta de Ribeirão Manuel, ilha
Aprovação da Portaria nº 484, de
de Santiago – 1910
27 de dezembro de 1918, que dita a
“Reorganização dos serviços militares e de policiamento na Província
de Cabo Verde ”, consistindo esta na
extinção “dos Corpos de Polícia Civil da Praia e do Mindelo, do Corpo
de Guardas da Alfândega do Círculo
Aduaneiro de Cabo Verde e o Corpo
de Guardas de Saúde da Província de
Cabo Verde”, e na criação, em seus lugares, do denominado “Corpo de Polícia e Guarnição” que passou a contar
com um efetivo de 271 homens. O
efetivo dos Corpos de Polícia Civil da
Praia e do Mindelo eram, em 1908, de
45 e 48 homens, respetivamente.
117
Revolta da Achada Portal, TarraAprovação da Portaria Provincial
fal de Santiago – 1920
nº 258, de 4 de outubro de 1921, que
reconhecia que “… os serviços de policiamento urbano a cargo do Corpo
de Polícia e Guarnição não eram desempenhados como é necessário que
sejam …”.
“Revolução d’Rufino” e revolta
Com o declínio das atividades do
de trabalhadores, professores e estu- Porto Grande de S. Vicente o desemdantes contra o desemprego, ilha de S. prego e a criminalidade conheceram
Vicente – 1929
um aumento dramático, dando lugar
a mais uma reorganização dos Corpos
de Polícia Civil das cidades da Praia
e do Mindelo, por força do Diploma
Legislativo nº 31, de 1 de setembro de
1926. O Decreto Legislativo nº 52 de
26 de julho de 1927, mandou aumentar em mais vinte o número de guardas de 2ª classe destinados aos serviços rurais e florestais com o mesmo
vencimento e o mesmo fardamento
que os do Corpo de Polícia Civil da
Praia. Com o agravamento da situação foi aprovado o Decreto Legislativo
nº 32, de 28 de setembro de 1928 que
proibia a exibição de filmes chamados
“policiais”, por se tornarem escola de
banditismo.
118
Revolta do Capitão Ambrósio
O endividamento orçamental
contra a fome, ilha de S. Vicente – ocorrido nesta década de grande crise
1934.
originou mais uma medida reorganizativa da polícia, com a aprovação Diploma Legislativo nº 533-A, de 10 de
agosto de 1936, com entrada em vigor
em 1 de janeiro de 1937, desta feita
com o intuito de reduzir os custos de
funcionamento.
Desencadeamento da luta armada
Aprovação da Portaria nº 6.822,
de libertação nacional na Guiné-Bis- de 17 de janeiro de 1964, adotando
sau – 1963
um novo Regulamento Geral da Policia, a mais evidente absorção/transposição das normas vigentes para a sua
congénere da metrópole, criando as
condições para a absorção, em comissão de serviço, de elementos da PSP
portuguesa, na linha da experiência
tida, em 1931, com o destacamento de
elementos da PSP da metrópole para
garantirem a guarda dos deportados
políticos.
Independência Nacional
Estruturação do Ministério da
Defesa e Segurança Nacional, surgimento da Polícia de Ordem Pública,
divisão do território nacional para
efeitos de segurança e ordem pública.
Golpe de estado na Guiné-Bissau,
Criação do Ministério do Interior
em novembro de 1980
em 1981 e reorganização dos serviços
de segurança e ordem pública, surgindo as Forças de Segurança e Ordem
Pública (FSOP)
119
Abertura política - 1990
Transição democrática
120
Revisão da constituição e aprovação de um vasto pacote legislativo para
assegurar as condições para a realização de eleições livres e democráticas e
a transição democrática.
Separação da Ordem Pública da
Segurança do Estado e adoção de um
substancial pacote legislativo
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123
NARCOTRÁFICO TRANSNACIONAL: O IMPACTO
NOS DADOS CRIMINAIS EM CABO VERDE COMO
PAÍS DE TRÂNSITO DE DROGAS1
António Varela
RESUMO
Este trabalho teve como objectivo analisar se a condição de Cabo Verde,
enquanto país de trânsito inserido numa das rotas internacionais do tráfico de
cocaína da América Latina em direcção à Europa, tem influenciado o comportamento dos dados criminais do referido país, concretamente no que se refere aos
crimes conexos ao tráfico de estupefacientes, como o roubo, a posse de arma de
fogo, o homicídio e a lavagem de capitais. Após uma breve descrição das rotas
internacionais do tráfico de cocaína em direcção aos seus principais mercados os Estados Unidos da América e a Europa - sempre a partir da América do Sul, e
com passagem pela África Ocidental, o estudo centra-se nos impactos na criminalidade interna em Cabo Verde, tendo em conta esse tráfico, abordando ainda
os meios e estratégias de se fazer chegar e escoar a droga do país e a sua tendência
evolutiva actual. As respostas dos agentes policiais e judiciais ao questionário
utilizado na pesquisa permitiram demarcar o período a partir do qual o país
passou a estar na rota do narcotráfico transnacional, bem como, quando e que
mudanças terão ocorrido, em termos criminais, em decorrência desse facto. Foi
igualmente possível identificar a origem e o destino final da cocaína que transita
por Cabo Verde, a tendência que se verifica actualmente e as estratégias utilizadas
pelos traficantes para ludibriar as autoridades. O estudo aborda ainda, os indícios
da existência do crime organizado transnacional no país, apresentando as suas
principais caracteristicas, os campos de actuação e o modus operandi.
Palavras chave: Crime Organizado Transnacional. Tráfico de Drogas. Cocaína.
1. Dissertação defendida no dia 10/12/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores António
Tavares de Jesus (Uni-CV), como Presidente, Crisanto Barros (Uni-CV) e Daniel Chaves de Brito (Orientador – UFPA). O trabalho teve apoio do Ministério da Administração Interna de Cabo Verde (MAI).
124
TRANSNATIONAL DRUG TRAFFICKING: THE
IMPACT ON CRIME DATA IN CAPE VERDE AS DRUG
TRANSIT COUNTRY
ABSTRACT
This study aimed to examine whether the condition of Cape Verde, as a transit country inserted in one of the international routes of cocaine trafficking from
Latin America towards Europe, has influenced the behavior of criminal data of
that country, in particular as regards related crimes to drug trafficking, such as
robbery, firearm possession, murder and money laundering. After a brief description of international cocaine trafficking routes towards its major markets - the
United States and Europe - always from South America, and passing through
West Africa, the study focuses on the impact on domestic crime in Cape Verde,
given that trafficking also addressing the means and strategies to do arrive and
transport the drug in the country and its current evolutionary trend. The responses of police and judicial questionnaire used in the survey allowed demarcate the
period from which the country has to be on the route of transnational drug trafficking, as well as when and what changes have occurred in criminal terms, as a
result thereof. It was also possible to identify the origin and the final destination
of the cocaine transiting Cape Verde, a trend that is currently happening and the
strategies used by traffickers to deceive the authorities. The study also addresses,
evidence of the existence of transnational organized crime in the country, with
its main characteristics, the fields of action and the modus operandi.
Keywords: Transnational Organized Crime. Drug Trafficking. Cocaine.
125
INTRODUÇÃO
“O crime organizado cresce no mesmo ritmo que a economia globalizada e é
mais estreitamente associado à economia legal do que se imagina”.
Juan Carlos Garzón
“El crimen organizado ha abandonado la marginalidad y se ha instalado en
el corazón de nuestros sistemas políticos y economicos”.
Jean- François Gayraud
A presente Dissertação tem por finalidade analisar a correlação existente entre o narcotráfico internacional que passa por Cabo Verde e as implicações desse
fenómeno nos dados criminais do país.
Cabo Verde é tradicionalmente conhecido por ser um país seguro, de paz,
tranquilidade e “morabeza”2, características sócio-antropológicas e políticas que,
adicionadas às condições naturais de sol e praia ao longo do ano, o fazem um país
com potenciais para atrair visitantes de todas as latitudes do globo.
Entretanto, esse panorama vem mudando, em decorrência do clima de insegurança que vem tomando conta do país nos últimos tempos, ameaçando um
dos principais activos de que o país dispõe para competir no cenário internacional do turismo.
Com uma situação geográfica privilegiada, à entrada do continente africano
e a meio percurso da América do Sul para a Europa, Cabo Verde teve o seu papel
definido desde a época dos descobrimentos, a partir do século XV, servindo sempre como entreposto avançado nas rotas marítimas a caminho do novo mundo.
Citado em diversas obras3 da história mundial, pelo importante papel desempenhado enquanto porto de reabastecimento no cruzamento dos continentes, Cabo Verde passou agora a ser referenciado também em relatórios produzidos
2. Morabeza, expressão tipicamente cabo-verdiana, usada para traduzir a afabilidade e amabilidade, características peculiares do povo das ilhas.
3. História Geral de Cabo Verde, Volume 1, sob a coordenação de Luis de Albuquerque e Maria Emília Madeira - Lisboa e Praia, 1991, Instituto de Investigação Científica Tropical e Direcção Geral do Património
Cultural de Cabo Verde, 1991; Cabo Verde – Formação e extinção de uma sociedade escravocrata de
António Carreira - Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972.
126
pelas agências internacionais4 que se ocupam do fenómeno do tráfico transnacional de estupefacientes5, entendido aqui como o tráfico de substâncias ilícitas,
entorpecentes, realizada entre nações, ou seja, através das fronteiras dos Estados-Nações, como sendo um país que tem sido utilizado pelas organizações criminosas6, para fazer chegar à Europa, mercado consumidor por excelência, grandes
quantidades de drogas ilícitas, principalmente a cocaína.
Das origens aos destinos, as drogas ilícitas não seguem necessariamente as rotas mais directas, entrando neste cálculo outros factores, para além da geografia,
para que percorram, com sucesso, todo o seu trajecto, furtando-se ao controlo
das autoridades. Estados fracos, nesses casos, são os mais visados.
Conforme revela o Relatório da ONUDC (2008), embora a cocaína não seja
produzida em África, o rápido aumento de apreensões dessa droga mostra a importância crescente do continente, especialmente a África Ocidental (ver Mapa
1), como placa giratória do tráfico da cocaína da América Latina para a Europa.
Mapa 1 -Países da Áfríca Ocidental
Fonte: imagem da internet
No caso de Cabo Verde, as apreensões efectuadas pelas autoridades policiais
4. UNODC, World Drug Report, 2010; United States Department of State, International Narcotics Control
Strategy Report, March 2011.
5. O debate sobre o conceito de narcotráfico será apresentado a seguir ainda nesta introdução no referencial
teórico.
6. O debate sobre o conceito de organizações criminosas será apresentado a seguir.
127
nacionais, muitas vezes em articulação com autoridades de outros países, permitem traçar a rota desde a origem da droga na América Latina (Brasil, Argentina,
Venezuela), quer por via aérea, utilizando voos comerciais que ligam semanalmente Fortaleza, no Brasil, à cidade da Praia, em Cabo Verde, quer por via marítima, através de diversos tipos de embarcações.
Pela via aérea,destaca-se o serviço dos “correios” ou “mulas” que, sob a capa
de comerciantes, conhecidos como “rabidantes”, deslocam-se ao Brasil para
aquisição de mercadorias a serem revendidas em Cabo Verde, trazendo também
quantidades significativas de cocaína, acomodadas entre as bagagens, colados no
próprio corpo sob a roupa, ou ainda, de forma mais perigosa, ingeridos sob a forma de cápsulas, o que, em situações limite, poderá levar alguns transportadores
à morte.
Com alguma frequência, esses comerciantes são presos nos controles aleatórios efectuados pelas autoridades policiais. Quando conseguem entrar com a
droga no país, geralmenteela é entregue a alguém que terá a missão posterior de o
reencaminhar à Europa, também por via aérea, nos voos comerciais diários com
destino a Portugal, sobretudo, mas também a Holanda, França, Espanha e Itália.
O Relatório Mundial sobre Drogas da ONUDC (2010)revela que o consumo de cocaína tem diminuído significativamente nos Estados Unidos, nos últimos anos, e que um dos motivos para a violência associada às drogas no México é
o facto de os cartéis estarem a lutar por um mercado que está diminuindo.
Entretanto, observa-se uma mudança nomercado consumidor, tendo o problema atravessado o Atlântico, com destino à Europa.
Na última década, o número de usuários de cocaína, na Europa, duplicou,
passando de 2 milhões, em 1998, para 4.1 milhões, em 2008. Nesse ano, o mercado europeu (estimado em US$ 34 bilhões) chegou a ser quase tão valioso quanto o mercado norte-americano (US$ 37 bilhões), segundo o Relatório Mundial
sobre Drogas (2010)7.
A mudança na demanda acarretou uma mudança nas rotas do tráfico, com
uma quantidade crescente de cocaína sendo traficada dos países andinos para a
Europa, via África Ocidental.
7. Este relatório pode ser encontrado em www.onudc.org, A sua referência completa consta na bibliografia.
128
Essa rota, conhecida das autoridades nacionais e internacionais, integra os
países da África Ocidental (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau), que recebem a
droga directamente da América Latina, por via aérea, para, posteriormente, ser
encaminhada para Cabo Verde em voos comerciais e, finalmente, seguir para o
mercado europeu, uma vez mais servindo-se de “correios”, cidadãos nacionais ou
estrangeiros (ver Mapa 2).
Particularmente a partir dos anos 90, a região da África Ocidental, da qual
Cabo Verde faz parte, passou a estar na mira das autoridades mundiais, que têm
seguido de perto as rotas e o “modus operandi” das organizações criminosas, que
passaram a utilizar essa região como rota para o escoamento das suas “mercadorias”, principalmente com destino ao mercado europeu.
Tanto assim é, que o Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki Moon,
na sua mensagem para o dia internacional contra o tráfico e o abuso de drogas,
a 26 de Junho de 2010, afirmou o seguinte: “tendências recentes preocupantes,
em partes da África Ocidental e da América Central, mostram como o tráfico de
drogas pode ameaçar a segurança e até mesmo a soberania dos Estados”8.
Países da região, como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Guiné Conakry,
Serra Leoa, Libéria, Benin, Gâmbia, Mali e outros, que têm em comum a vulnerabilidade das suas instituições, tendo alguns, até bem pouco tempo, enfrentado
guerras civis devastadoras, são referenciados como pontos de passagem da droga
para o mercado europeu.
Segundo o Relatório da ONUDC (2008), Le Trafic de Drogue Comme Menace À La Sécurité en Afrique de L’Ouest, pelo menos 46 toneladas de cocaína
foram apreendidas em rota para a Europa, via África Ocidental, desde 2005.
Cabo Verde, como um país de dimensões reduzidas (4.033 km2), distribuídos por 10 ilhas, e com uma população de 480.000 habitantes, segundo dados do
Censo do ano 2010, está longe de constituir um mercado consumidor atractivo.
Apesar da sua exiguidade territorial habitável, o país possui uma Zona Económica Exclusiva (ZEE)9 bastante grande, sendo que parcelas importantes da
8. http://www.unodc.org/southerncone/pt/frontpage/2010/06/26-mensagem-do-dia-internacional-contrao-trafico-e-o-abuso-de-drogas-pensar-a-saude-e-nao-as-drogas.html. Acessado em 02-07-12
9. A zona económica exclusiva de Cabo Verde é muito superior às reduzidas dimensões da sua plataforma
territorial, 734.265 km2, para apenas 4.033 km2, respectivamente. Ou seja, a dimensão marítima do
arquipélago é 182 vezes, superior à área terrestre.
129
costa das suas ilhas não são objecto de controlo e fiscalização por parte do Estado, tendo em conta os limitados recursos humanos e materiais de que dispõe.
As ligações aéreas comerciais semanais com a América Latina, aliadas às ligações diárias com vários destinos na Europa, tornam Cabo Verde elegível aser um
dos países de trânsito e transbordo de produtos estupefacientes.
Embora reconhecidamente um país de trânsito, tendo em vista que não
possui condições mínimas para produzir internamente drogas ilícitas, nomeadamente a cocaína, principal produto destinado a abastecer o mercado europeu,
há sinais de que parte dessa droga fica no país, destinado a abastecer o pequeno
mercado local que foi criado a partir do estabelecimento dessa rota, da qual o
país faz parte.
Paralelamente, como suporte a essa rota de transporte de substâncias ilícitas com destino à Europa, estabeleceram-se no país segmentos de organizações
criminosas, que servem de apoio logístico para essas operações, encarregues de
receber a “mercadoria” vinda da América Latina, de tratar do seu armazenamento local e de providenciar, posteriormente, o seu escoamento para o destino final.
São utilizados os mais diversos meios para o transporte da droga,como o
recrutamento de “mulas” ou “correios”10,geralmente, estes, através da via aérea,
aproveitando-se do facto do cidadão cabo-verdiano ser, na sua essência, um migrante, ou, pela via marítima, socorrendo-se das embarcações de transporte de
mercadorias ou ainda das de recreio e lazer que sulcam os nossos mares.
Esses dois factores novos na realidade cabo-verdiana - a existência de um
mercado local de consumo e o estabelecimento de tentáculos de organizações criminosas - levaram-nos a perceber que, combinados,alteraram radicalmente os dados da criminalidade no país, em decorrência directa ou indirecta das suas acções.
O Relatório da UNODC, World Drug Report 2010, foca a influência desestabilizadora do tráfico de drogas nos países de trânsito. Ele mostra como o
10. “Mulas” ou “Correios” – designação dada às pessoas recrutadas pelas organizações criminosas, com o
único propósito de transportarem a cocaína de um país para outro, fazendo-se passar por simples passageiro em viagem de negócios ou férias, tentando, desse modo, fugir do controlo das autoridades alfandegárias
e policiais. Essas pessoas normalmente desconhecem os verdadeiros donos da droga que transportam,
tendo em conta que o contacto estabelecido com elas é feito exclusivamente através de intermediários. São
autênticos prestadores de serviço para a organização que os contrata. Assumem o transporte da droga por
sua conta e risco. Em caso de detenção em flagrante, no transporte da droga, assumem as consequências,
sem conhecer efectivamente o destinatário final do produto.
130
subdesenvolvimento e a fragilidade dos governos atrai o crime, ao mesmo tempo
que o crime aprofunda a instabilidade.
Embora a problemática do tráfico internacional de estupefacientes não seja
novidade no cenário académico mundial, desconhece-se a existência de um estudo semelhante ao que se propõe aqui efectuar, no que diz respeito, concretamente, ao caso de Cabo Verde, analisando desde os motivos da sua “eleição” como
país de trânsito, passando pelas rotas de que faz parte, com particular enfoque
na análise da evolução dos dados da criminalidade e procurando estabelecer uma
correlação com o narcotráfico, a partir do período em que o país passou a constar
das rotas do narcotráfico transnacional, visando demonstrar as alterações ocorridas em relação ao período anterior.
No nosso estudo, após uma abordagem preliminar do referencial teóricoassociado ao tema, que busca a apresentação de um conceito de crime organizado
transnacional, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, faremos uma
breve incursão pelas rotas internacionais do narcotráfico, particularmente as rotas da cocaína (alvo da pesquisa), desde a sua origem, nas superfícies de cultivo
na região andina, passando pelos países de trânsito, até os principais mercados
mundiais.
Analisaremos de forma mais pormenorizada os dados estatísticos de Cabo
Verde, referentes a apreensões de cocaína, fornecidos pela Policia Judiciária, da
criminalidade interna conexa ao tráfico de drogas, cedidos pela Polícia Nacionale
os dos presos por tráfico de estupefacientes, disponibilizados pela Direcção Geral
dos Serviços Penitenciários.
A partir de um questionário,apresentado em entrevistas semi-estruturadas,
aos agentes envolvidos no combate ao tráfico de estupefacientes da Polícia Judiciária, da Polícia Nacional, do Ministério Público e da Magistratura Judicial,
analisaremos a opinião das autoridades no que respeita ao início da passagem da
cocaína por Cabo Verde, as rotas e os meios utilizados, bem como os impactos
do narcotráfico nos dados da criminalidade do país11.
Para se ter uma ideia da dimensão do fenómeno a nível mundial, no final
do milénio, a Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a estimar que a
indústria das drogas gerava um movimento de capital em torno de 400 bilhões
de dólares anuais, cifra equivalente a cerca do dobro da renda da indústria farma11. Conforme o questionário apresentado no anexo III.
131
cêutica mundial ou a dez vezes o total de toda a assistência oficial dessa organização para o desenvolvimento.12
Em geral, pouco se conceptualiza sobre o termo narcotráfico, tendo em conta
a sua complexidade.
De acordo com Santana (1999) os critérios são diversos, polémicos e pouco
esclarecedores, sobretudo quando se encontram impregnados deuma série de cargas ideológicas.
Dentro das correntes que se dedicam ao estudo das drogas, existem dois
enfoques:um encarregue de pesquisar os consumidores, qualificados de fármacodependentes e outro que aponta para a análise do narcotráfico, considerando-o
uma simples delinquência.
A crítica a esses enfoques parte do facto de ambos apresentarem preconceitos,
ao identificar o normal com o permitido pelas autoridades e reduzir o tráfico
aaspectos legais.
Gómezjara e Mora (1992) assinalam que, nessa percepção das drogas, os enfoques mais significativos ficam excluídos, como o da cultura da droga – médica
e não médica.
De outra perspectiva, Villar (1989) aponta que o narcotráfico se trata de “um
mercado que integra a demanda à oferta de narcóticos”.
Por sua vez, Salazar (1989) assinala que o narcotráfico não era, nemé, apenas
uma actividade de “máfias”. É antes uma actividade “agroindustrial-comercial e
financeira que, por sua integração vertical e seu alcance planetário, se assemelha
cada vez mais a uma empresa transnacional do que a uma família do crime organizado.”
Na perspectiva de Procópio Filho e Costa Vaz (1997, p.86):
As estruturas do narcotráfico e sua operação respondem tanto a estímulos de mercado, em sua dimensão transnacional e global, como a factores e circunstâncias de
ordem doméstica e mesmo local que definem o modo de inserção de um país no contexto do narcotráfico internacional e as condições específicas de seu funcionamento.
12. Programa das Nações Unidas para a Fiscalização Internacional das Drogas UNDCP, 1998, p.3.
132
Na sua noção mais divulgada, o narcotráfico é identificado como a maior
empresa transnacional dedicada ao tráfico de drogas ilegais, que não paga impostos e gera os maiores lucros, ou em outras palavras, é uma expressão da face
oculta do capitalismo neoliberal donosso tempo.
De acordo com Castells (2000), a indústria do narcotráfico possui cinco importantes características:
Está direccionada à demanda e à exportação, tendo como grande mercado os
Estados Unidos, apesar do grande crescimento de abastecimento para a Europa
Ocidental e partes mais ricas da Ásia;
Aindústria é totalmente internacionalizada, com uma divisão bastante rigorosa da mão-de-obra entre os diferentes locais do processo produtivo;
“O componente essencial de toda a indústria da droga é o sistema de lavagem
de dinheiro”;
“O cumprimento de todo o conjunto de transacções é assegurado por meio
do uso de violência em um nível extraordinário.” Toda a importante organização
criminosa possui uma rede de assassinos, em muitos casos, profissionais;
“A indústria da droga precisa da corrupção e da penetração no meio institucional para poder funcionar em todas as etapas do sistema”. É necessário corromper e/ou intimidar pessoas essenciais para o esquema funcionar (policias, juízes,
políticos, banqueiros, etc.).
Convém referir que o comércio ilícito de drogas pode ou não ser exercido por
grupos organizados (ZALUAR, 2004; MINGARDI, 2007; OLIVEIRA, 2007).
Entretanto, seria interessanteperceber as razões que justificam a existência de
tantos consumidores de estupefacientes, principalmente da cocaína, dando origem a um mercado tão importante e que movimenta milhões de dólares anualmente, o que torna essa actividade ilícita bastante atraente para os traficantes.
A cocaína é um alcalóide extraído da coca, planta originária dos Andes, cujo
uso é extremamente antigo, conhecida nas sociedades pré-colombianas, nas quais
a coca desempenhava as funções de planta medicinal, de droga estimulante, de
objecto de ritual e de imposto obrigatório, dependendo, cada um destes diversos
usos, da qualidade do produto.
133
Quais as razões que justificam a existência de tantos consumidores de estupefacientes a ponto de tornar esse negócio ilícito tão lucrativo e em função disso,
tão atraente ao crime organizado transnacional?
Os estupefacientes em geral, com maior ou menor rapidez, criam uma certa
dependência física e psicológica, tornando os seus usuários reféns do mesmo.
Não é por acaso que Freud situava os estupefacientes num lugar tão bom entre “os demolidores de preocupações” dos quais o homem tem necessidade. Com
base na sua experiência pessoal, Freud usou a cocaína durante algum tempo, de
forma experimental, antes de passar a aplicá-la nos seus pacientes como medida
terapêutica para diversos males que eles padeciam.
Conforme escreveu Freud em “Malaise dans la civilization” (1929, p.18):
O sofrimento ameaça-nos por três lados: no nosso corpo que, destinado à decadência e à dissolução, não pode realmente passar sem sinais de alarme que são a dor e a
angústia; do lado do mundo exterior, que dispõe de forças invencíveis e inexoráveis
de se levantar contra nós e de nos aniquilar; finalmente a terceira ameaça provém das
nossas relações com os outros seres humanos. O sofrimento resultante desta fonte
é-nos talvez mais penoso do que qualquer outro.
Na actualidade, estas três motivações podem ser aplicadas às razões que explicam a permanente procura de estupefacientes por parte dos consumidores,
formando assim um mercado que os traficantes procuram abastecer a todo o
custo, com garantia de um alto grau de rentabilidade, tendo em conta que esses
consumidores estarão sempre dispostos a qualquer tipo de sacrifícios para adquirir o produto em função da dependência criada.
Nesse sentido, a droga serve para aliviar a dor – física e psíquica - e a angústia
que, no caso das toxicodependências, constitui o motivo essencial de uma diversidade de prescrições de psicotrópicos (ansiolíticos, antidepressivos, antiasténicos,
etc.).
Proteger-se do mundo exterior que “se levanta contra nós”, não sem evocar as
tentativas, por vezes desesperadas, de escapar às condições de vida que os nossos
guetos modernos oferecem, onde as perspectivas de futuro são tanto mais sombrias quando à pobreza se juntam o insucesso escolar, o desemprego e a precariedade dos vínculos sociais para indivíduos muitas vezes arrancados das suas raízes.
Para afastar a ameaça que vem das nossas relações com os outros, as quais se
sabe que dependem essencialmente das experiências precoces, da qualidade dos
134
primeiros vínculos e, depois, dos afastamentos que permitirão investir noutros
objectos e tecer, com eles, relações satisfatórias. As perturbações destes primeiros
vínculos e a sua tradução na evolução de um indivíduo formam o terreno onde se
vai enraizar toda a psicopatologia.
Estas três ordens de origens dos nossos sofrimentos (que mantêm ligações
estreitas entre si) são os três tipos de co-factores que encontramos na origem das
toxicodependências modernas porque as drogas têm a propriedade, real ou ideal,
de dar resposta a todas as espécies de angústias e de necessidades, conforme a
acepção de Morel, Herve e Fontaine (1998).
Uma noção bastante polêmica, mas que é salutar apresentar uma reflexão,é
a noção de crime organizado.É importante, sobretudo no que diz respeito ao
conteúdo das divergências que são visualizadas entre os autores que tratam desse
tema.
Apesar de existir pouca divergência em se estabelecer o que faz uma determinada prática ilícita ser transnacional ou não, ainda paira muita polémica no
tocante àexacta definição do conceito de crime organizado, tratando-se de um
debate de várias décadas que se encontra inacabado e distante de atingir um consenso (Giraldo e Trinkunas, 2007, p. 351).
Quanto à definição de transnacional, ela é traduzida literalmente, ou seja, o
acto que é realizado entre nações, ultrapassa as fronteiras de um único EstadoNação soberano, denotando, desta forma, o movimento físico de objectos, incluindo populações humanas, de informações e ideias e, finalmente, de dinheiro
e créditos (Evans e Newnham 1998, p. 541-542).
A maioria dos estudiosos concorda que o crime organizado pode diferir em
sua estrutura, tamanho, forma de organização e ramo de actividade. Entretanto,
existe um núcleo comum em suas características que fornece um indicador seguro e abrangente deste fenómeno, que pode ser extraído através da análise dos
diversos conceitos propostos (ALBANESE, 2007, p. 03-04).
Das diversas definições propostas, destaca-se a formulada por Cressey (1969,
p. 72), onde o crime organizado é apresentado como sendo uma organização
voltada para a maximização dos lucros, com a venda de bens e serviços ilícitos.
Portanto, o crime organizado é a actividade praticada por um grupo de pessoas engajadas em determinados empreendimentos ilícitos, onde posições especí135
ficas são previamente definidas na organização para cada participante, contando
com os executores, corruptores e corrompidos (CRESSEY 1969, p. 319).
O aspecto tradicional do crime organizado é a sua estrutura rígida, com a
disciplina dos seus integrantes, aliada a uma hierarquia em graus, com o isolamento dos líderes, mas com a possibilidade de ascensão dos seus integrantes
(CRESSEY, 1969, p. 313).
As posições na hierarquia e a divisão do trabalho podem ser estipuladas por
relações de parentesco, amizade ou habilidade, mas sua permanência é assegurada pelo empenho em manter a integridade da organização (ABADINSKY, 2007,
p.04-06; GAMBETTA, 1993, p. 75-76; JOHANSEN e LAMPE, 2002, p. 0709).
Mais tarde, o crime organizado passa a ser identificado como uma organização empresarial (ABADINSKY, Wtura mais enxuta, mais especializada, isto
é, desprovida dos princípios das organizações mafiosas vinculadas por um rígido
código de honra (ALARCHI, 1988, p. 57-58, BUSCHETTA, 1999, p. 37-40 e
GAMBETTA, 1996, p. 75-76).
Tais características são afastadas, sendo o crime organizado reconhecidocomo pequenas empresas lícitas que desenvolvem suas actividades, seguindo uma
dinâmica comercial, com a utilização dos avanços tecnológicos e desenvolvimento de relações através de redes sociais (GIRALDO e TRINKUNAS, 2007, p.
350-352).
A construção do conceito de crime organizado deve ser realizada de forma a
identificar todos os possíveis arranjos, evitando-se a imprecisão, conforme aponta
Petrus van Duyne (1996), através de um criterioso trabalho de revisão da literatura.
Na busca de elementos para a compreensão do fenómeno, Mingardi (1996,
p. 69) conseguiu elencar quinze características comuns do crime organizado. São
elas: i) práticas de actividades ilícitas; ii) actividade clandestina; iii) hierarquia
organizacional; iv) previsão de lucros; v) divisão do trabalho; vi) uso da violência;
vii) simbiose com o Estado; viii) mercadorias ilícitas; ix) planeamento empresarial; x) uso da intimidação; xi) venda de serviços ilícitos; xii) relações clientelistas;
xiii) presença da lei do silêncio; xiv) monopólio da violência e xv) controle territorial.
136
Não havendo um consenso sobre o conceito de crime organizado,existeuma corrente doutrinária que procura se valer da definição dada pela Convenção
de Palermo sobre criminalidade transnacional: “…grupo estruturado de três ou
mais pessoas, existente há algum tempo e actuando concertadamente, com o
propósito de cometer uma ou mais infracções graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material”13.
As Nações Unidas (2002), por meio de um estudo empírico, apresentaram
as diversas características do crime organizado: tem estrutura/hierarquia; é composta por, no mínimo, dois membros, chegando certas organizações a ter mais de
cem componentes; actua de modo local ou internacionalmente; seus integrantes
fazem uso da corrupção perante o poder estatal e suas acções ilícitas penetram
na economia legal.
Segundo Adriano Oliveira(2004)14, a construção do conceito do que é o crime organizado não é fácil. Do ponto de vista desse autor, devem ser analisados os
aspectos económicos e institucionais. Nesta perspectiva, é extremamente importantetentar descobrir quais são as características – que estão no âmbito económico e institucional – que permitem que um grupo de indivíduos que pratica actos
ilícitos possa ser classificado como organização criminosa. De entre essascaracterísticas, devem ser observados o modus operandiutilizados pelos seus agentes
na prática dos actos criminosos, as estruturas de sustentação e ramificações do
grupo, as divisões de funções no interior do grupo e o seu tempo de existência.15
Seguindo o raciocínio, o autor propõe que as organizações criminosas devem
ser analisadas também por meio de suas dimensões de actuação. Ou seja, existem
organizações que actuam apenas a nível local, sem conexão com outros grupos
no âmbito nacional ou internacional. Por outro lado, existem organizações que
13. GOMES, Luiz Flávio. Definição de crime organizado e a Convenção de Palermo. Disponível em: http://
www.lfg.com.br. Acessado em 18-07-12.
14. Adriano Oliveira, doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é vice-coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas (NIC) na mesma instituição. Autor
da Tese de doutorado, “As peças e os mecanismos do fenómeno tráfico de drogas e o crime organizado”,
apresentado ao programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Pernambuco em 2006. Autor de diversos artigos sobre o crime organizado,
publicados em revistas académicas e jornais.
15. OLIVEIRA, Adriano. Crime Organizado é possível definir? Disponível em:http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm. Acesso em 18/04/2012.
137
são nacionais ou transnacionais, as quais criam uma cadeia de iteração nas esferas local, nacional e internacional. Os poderes económicos e político devem ser
analisados também por meio dessas dimensões, conclui.
Ainda nesta perspectiva,uma organização criminosa é aquela formada por
mais de um indivíduo e é criada para maximizar e distribuir benefícios entre
os envolvidos, e seu grau de poder e organização deve ser avaliado e aferido no
âmbito do grau de cooperação/apoio que conquista do Estado. Nesse sentido,
quanto mais um grupo criminoso conquista actores do Estado – que facilitam
suas actividades criminosas e, por consequência, lhe dão apoio -, mais poder ele
conquista, sendo que é o esse mesmo Estado que tem a função coercitiva de enfrentar os grupos criminais organizados (OLIVEIRA, 2007, p.108).
Após a revisão da literatura especializada, o autor apresenta a sua tese do
que seria crime organizado,defendendo queo crime organizado caracteriza-se por
ser um grupo de indivíduos que tem as suas actividades ilícitas sustentadas por
actores estatais (por meio do oferecimento de benesses ou actos de cooperação),
onde os sujeitos criminais desenvolvem acções que exigem a presença do mercado
financeiro, para que isso possibilite, às vezes, a lavagem de dinheiro, e consequentemente, a lucratividade do crime. Por fim, são grupos que relativamente actuam
por um considerável período de tempo, tendo as suas funções estabelecidas, com
hierarquia, para cada membro.
Elemento fundamental a se ter em conta no estudo das organizações criminosas é o facto de que nem todas possuem os mesmos poderes. Determinadas
organizações possuem um maior poder de influência e, consequentemente, um
sustentáculo mais rígido, ou seja, mais difícil de ser combatido do que outras,
nos âmbitos económico e institucional. Além disso, a lavagem de dinheiro não
é praticada por todasas organizações criminosas,isto é,os lucros obtidos por determinadas organizações podem ser baixos, o que não originaria margens para
esquemas de lavagem de dinheiro16.
Em Cabo Verde, a par da ausência de qualquer discussão científica sobre o
conceito de crime organizado17, assiste-se, igualmente, a uma dificuldade prática
16. OLIVEIRA, Adriano. Crime Organizado é possível definir? Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm.Acesso em 18/04/2012.
17. Em Cabo verde, não poucas vezes faz-se referência ao crime organizado, principalmente pelos órgãos de
comunicação social, quando se está perante delitos praticados por grupos de jovens delinquentes, enraí138
da aplicação das penas previstas no artigo 291º do Código Penal, quepune os
fundadores, os dirigentes e os membros de uma organização criminosa. Esse
constrangimento decorre do facto de que, em nenhum momento,o legislador
apresenta o conceito de “organização criminosa” que pretende punir, o que, em
regra, dificulta a decisão judicial condenatória, por não serem expressos os elementos caracterizadores de uma organização criminosa, limitando o artigo do
citado código a estipular: “quem fundar organização ou grupo, cuja finalidade
seja dirigida à prática de crimes, será punido com pena de…”.
A interpretação resultante do artigo do código penal citado demonstra, precisamente, a inexactidão dos conceitos utilizados, atribuindo-se o mesmo significado para organização criminosa ou grupo criminoso, todos punidos com a
mesma moldura penal, quando, pelos objectivos, características, modus operandi
e efeitos nocivos à sociedade são distintos e deveriam ter um tratamento diferenciado pelo legislador, mormente no que toca à resposta sancionatória por parte
do Estado.
As recentes discussões que começam a aflorar na sociedade cabo-verdiana
sobre a criminalidade, uma das nossas principais preocupações contemporâneas,
revelam o fraco rigor científico na abordagem do tema “crime organizado”, na
maioria das vezes confundindo-o com grupos ou gangs que se dedicam à delinquência juvenil ou a furtos e roubos na via pública, sendo que, nesses casos, tratase de mera reunião de indivíduos para a execução de actos criminosos, enquanto
o crime organizado tem como algumas das suas características a continuidade e
a liderança, por exemplo.
Tampouco existe doutrina interna fundamentada ou jurisprudência firmada
a respeito, dando razão à afirmação de Sartori (1997), de que não é possível analisar um objecto ou fenómeno social sem definir seu significado mínimo.
Feitos esses esclarecimentos metodológicos e conceptuais pensamos que seja
possível apresentar o quadro desta questão dentro dos objetivos deste trabalho.
Para descrever as rotas e as formas de actuação das organizações criminosas transnacionaisactuantes no país, na actividade tráfico de drogas, bem como
os impactos dessa actuação nos dados da criminalidade em Cabo Verde, este
trabalho está dividido em seis capítulos. No primeiro capítulo, apresenta-se o
zando no espírito das pessoas a ideia de que crime organizado e delinquência juvenil são sinónimos.
139
embasamento teórico do tema, com as principais discussões sobre o conceito
de crime organizado transnacional, os enfoques de diversos autores e das instituições internacionais. No mesmo capítulo, fazem-se ainda breves referências
aos motivos da permanente procura dos consumidores pela cocaína, finalizando
com uma apreciação de como o tema tem sido tratado pelo ordenamento jurídico
cabo-verdiano.
No segundo capítulo, descrevem-se as principais rotas do narcotráfico internacional, a partir das regiões produtoras da cocaína na América do Sul, em
direcção aos Estados Unidos da América e à Europa. Analisam-se as variações
ocorridas nos últimos anos, em termos de quantidades estimadas da produção
de cada um dos países produtores (Bolívia, Colômbia e Peru) e faz-se uma breve
descrição da violência que assola os países de trânsito, como o México.
No terceiro capítulo, aborda-se a rota da África Ocidental, apontando os motivos que determinaram a sua entrada nas rotas do narcotráfico internacional, as
estimativas do volume de cocaína que circula anualmente pela região, as estratégias e meios utilizados pelas organizações criminosas e as ameaças que representa
para a região, tanto do ponto de vista da segurança como dos riscos aos Estados
de Direito, tendo em conta o seu enorme poderio financeiro, em contraposição
às fragilidades estruturais desses países.
No quarto capítulo, fala-se de Cabo Verde, enquanto país de trânsito de droga, começando com um enquadramento geográfico, político e sócio-económico,
as fragilidades do país que são exploradas pelas organizações criminosas e as suas
formas de actuação, pelas vias aérea e marítima. Analisam-se as novas tipologias
criminais surgidas no país, em decorrência directa do narcotráfico, como os casos
de homicídio por encomenda e lavagem de capitais, descrevendo as suas principais características e os seus impactos na sociedade cabo-verdiana. Apresentam-se alguns exemplos de operações policiais que tiveram êxito no combate ao
narcotráfico transnacional operando em Cabo Verde. Faz-se o enquadramento
das principais organizações criminosas desmanteladas no país, tendo em conta os
critérios de território de actuação, o seu poder económico, as suas relações com o
poder institucional e o poder de acção que dispõem, conforme o modelo que será
apresentado no capítulo próprio.
No quinto capítulo, apresentam-se os dados criminais do país, com destaque
aos crimes conexos ao tráfico de drogas, como são os casos de roubo, posse de
140
arma de fogo, homicídio e lavagem de capitais, tanto em termos quantitativos,
de acordo com os registos anuais, bem como a apreciação qualitativa das autoridades quanto à evolução desses crimes, tendo por base comparativa dois períodos
distintos, o antes e o depois da observação da passagem da cocaína pelo país.
Ainda neste capítulo, analisa-se a evolução dos presos por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, delineando a sua tendência e estabelecendo uma
comparação com os presos por outros tipos de crimes.
E, finalmente, apresenta-se a conclusão, parte que contém a síntese do caminho percorrido, a metodologia, os resultados do estudo feito e as consequências
do narcotráfico transnacional para a sociedade caboverdiana.
141
CAPÍTULO I
AS ROTAS DO NARCOTRÁFICO INTERNACIONAL
Neste capítulo, propõe-se apresentar as principais rotas do tráfico internacional de estupefacientes(ver mapa 2), com particular ênfase da cocaína, tendo em
conta que esta é a principal droga que passa pela rota cabo-verdiana do narcotráfico transnacional.Sendo assim, constitui o foco principal da preocupação da
sociedade e autoridades nacionais.
Existem várias rotas transnacionais de estupefacientes, dependendo do produto comercializado, seja ela, a cocaína, a cannabis,as anfetaminas,o ópio ou a
heroína, citando-se apenas as mais referenciadas a nível mundial, ou ainda,consoante a região ou país de produção e o mercado consumidor final.
1.1 – A Rota America do Sul- EUA
No que diz respeito à cocaína, ela étradicionalmente produzida na região
andina, mais concretamente nas vastas extensões agrícolas da Colômbia, do Peru
e da Bolívia.
A partir desses países da América do Sul, a cocaína é distribuída aos mais diversos
destinos, mas sobretudo para os dois grandes mercados mundiais, os Estados Unidos
e a Europa, conforme se pode observar no mapa abaixo, espelhando os principais
fluxos de transporte de cocaína, desde a sua produção até ao mercado final:
Mapa 2- Principais fluxos globais da cocaína
Fonte: ONUDC: World Drug Report 2010.
Apesar da concentração da produção nessa região, ela vem sofrendo algumas
alterações em termos da extensão da área cultivada da planta da coca e da quantidade do produto final, o que tem afectado, consequentemente, as rotas utilizadas
e o abastecimento dos mercados consumidores.
Estima-se que a superfície total dedicada ao cultivo da coca diminuiu 5%,tendo como comparação os anos de 2008 e 2009, passando de 167.600 hectares para
158.800 hectares, explicada, fundamentalmente, pela redução da produção na
Colômbia que não foi totalmente compensada pelo aumento da produção no
Peru e na Bolívia.
Entre 2000 e 2009, a superfície cultivada na Colômbia diminuiu 58%, ao
mesmo tempo em que o cultivo no Peru aumentou 38% e na Bolívia cresceu
112%.
Em 2009, a Colômbia possuía uma superfície total cultivada de 43%, o Peru
de 38% e a Bolívia de 19%.
A Figura 1, abaixo, representa as estimativas da produção de cocaína em cada
um dos países produtores, na América do Sul, no ano de 2007, elaborado pelo
ONUDC, onde se pode constatar a liderança da Colômbia na produção, sendo
responsável por mais da metade da produção mundial, com 61%, seguido de
longe pelo Peru, com 29%, e pela Bolívia, com apenas 10% do total:
Bolívia
10%
Colômbia
61%
Peru
29%
Fonte: Relatório Mundial sobre a Droga 2008
143
Figura 1 - Partes potenciais de produções globais nacionais de cocaína em 2007
Os Estados Unidoscontinuamainda a ser o maior mercado consumidor, apesar da contínua diminuição da demanda, conforme as estimativas comparativas
feitas em 1982, onde 10,5 milhões de pessoas haviam consumido no ano anterior,
enquanto, em 2008, os números apontavam para apenas 5,3 milhões, conforme
apresentado pelo ONUDC, no Informe Mundial sobre as Drogas (2010).
Essa redução poderá ser explicada por diversos factores, tais como o aumento
da prevenção, as novas terapiase o estabelecimento de tribunais especializados
em drogas. Além desses factores, a partir da segunda metade de 1980, a cocaína/
crack se transformou numa droga altamente estigmatizada.
A diminuição registada mais recentemente, a partir de 2006,acredita-se estar
relacionada com a oferta, devido à escassez da cocaína no mercado, agravadapor
uma redução dos níveis de pureza.
São múltiplas as razões dessa escassez verificada no mercado dos Estados
Unidos, desde as rotas que foram afectadas pela violência dos cartéis no México
à diminuição da produção na Colômbia, principal abastecedor desse mercado.
Análises forenses da cocaína nos Estados Unidos comprovam que cerca de 90%
da droga é proveniente da Colômbia, o que leva a inferir que a produção do Peru
e da Bolívia destina-se à Europa e à América Latina.
Geralmente, a cocaína é transportada da Colômbia para o México ou para a
América Central pela via marítima, por traficantes colombianos, e dali, pela via
terrestre, para os Estados Unidos e para o Canadá, nesses casos, por traficantes
mexicanos.
O México é um importante produtor e fornecedor de heroína, metanfetaminas e cannabis para o mercado norte-americano, e o mais importante país de
trânsito da cocaína vendida nos Estados Unidos.
Desde que o governo norte-americano teve êxito, no final dos anos 80, em
diminuir o volume de drogas que chegava ao seu território pela rota do Caribe,
da Colômbia a Miami, o México se converteu no território mais importante de
trânsito de drogas para o mercado norte-americano, o que intensificou o problema do narcotráfico no país, a ponto de transformá-lo na fonte de violência de
maior impacto político no México.
144
De acordo com o Departamento de Estado, 90% de toda a cocaína que entra
nos Estados Unidos chega através do México,pela fronteira terrestre com o Texas,
preferencialmente, e, em menor escala, pela Califórnia e pelo Arizona ou ainda
pelas suas águas territoriais.
Um pequeno número de organizações de tráfico de drogas mexicanas controlam as mais significativas operações de distribuição de droga na fronteira, tendo expandido o seu domínio sobre o mercado norte-americano, em detrimento
de outras organizações criminosas, em especial das colombianas (US STATE
DEPARTMENT, 2010).
A partir da Colômbia, segundo as estimativas dos Estados Unidos, 70% da
droga segue pelo Pacífico, 20% pelo Atlântico e 10% pela Venezuela e pelo Caribe, conforme citado pelo ONUDC no World Drug Report (2010).
Nessa rota marítima da Colômbia até ao México, tem-se utilizado diversos tipos de embarcações, inclusive pequenos submarinos, com capacidade para
transportar de 2 a 9 toneladas de cocaína.
As autoridades colombianas comunicaram a apreensão de 198 toneladas de
cocaína em 2008, sendo 58% no Pacifico e 31% no Atlântico.
À medida que o Governo da Colômbia aumenta o controlo sobre o seu território, os traficantes começam a utilizar, cada vez mais, outros países da região,
para o trânsito da droga, nomeadamente a Venezuela e o Equador.
Recentemente, a Venezuela passou a ser um importante ponto de transbordo
da cocaína, com destino à Europa e aos Estados Unidos. Da Venezuela, a cocaína
segue viagem, por via aérea, com trânsito pela República Dominicana, Honduras, México e outros países do Caribe e América Central.
Grande parte da cocaína transportada desde a Colômbia destina-se aos Estados Unidos e ao México, ficando, no entanto, alguma parte para o mercado local
desses países de trânsito.
Os cartéis mexicanos emergem nos últimos anos como os principais organizadores do envio da droga para os Estados Unidos, substituindo, em grande
medida, os antigos cartéis colombianos, aproveitando-se da enorme comunidade
mexicana residente e marginalizada nos Estados Unidos, dispostos a assegurar a
distribuição interna da cocaína. Os principais cartéis mexicanos que disputam
esse apetecível e concorrido mercadosão: o Cartel de Tijuana, o Cartel do Golfo,
145
o Cartel de Juárez e o Cartel de Sinaloa. Nos últimos anos, esses cartéis têm
formado alianças entre si, delimitando as suas áreas de actuação, diminuindo,
assim, os confrontos entre eles e aumentando a sua capacidade de reacção às
investidas das autoridades, embora continuem actuandocomo organizações independentes.
O mapaseguinteapresenta as delimitações das áreas de domínio e influência
dos diferentes cartéis mexicanos, elaborado pelo U.S Drug Enforcement Administration.
Mapa 3 - Mapa das áreas de actuação dos cartéis do México
Fonte: U.S. Drug Enforcement Administration (DEA)
1.2 – A Rota Mexicana e a Violência
Nos últimos anos, tem-se assistido aos esforços do Governo do México, na
tentativa de fechar esse corredor da droga para os Estados Unidos, recorrendo
às Forças Armadas, em detrimento das forças policiais, tidas como corruptas e
146
infiltradas pelo narcotráfico.
Entretanto, esse enfrentamento militar com os diversos cartéis tem intensificado a onda de violência que assola o México, fazendo aumentar, extraordinariamente o número de homicídios ligados ao narcotráfico.
Entre 1990 e2007, no período anterior, portanto, ao início da guerra contra
o narcotráfico, o México experimentou um declínio de 39% no número absoluto
de mortes causadas por homicídios, que caíram de 14.520, em 1990, para 8.868,
em 2007. Em oposição a essa tendência, em apenas um ano, 2008, última data
para a qual há estatísticas oficiais, houve um aumentode 58% de casos de homicídios no país, totalizando 14.007 mortes violentas, das quais, mais de um terço
éresultado da violência decorrente do narcotráfico, proporção cuja tendência é
de aumento,se se manter o ritmo actual da campanha contra os cartéis (POLANSKA, 2010).
Esse exemplo recente do México, que frequentemente é noticiado nos meios
de comunicação social, espelha claramente os impactos negativos que o narcotráfico internacional pode ter nas estatísticas criminais nos países de trânsito da
droga.
Em contrapartida a essa diminuição nos Estados Unidos, no segundo maior
mercado mundial da cocaína, a Europa, regista-se o inverso, com a duplicação do
número de consumidores, que passou de 2 milhões, em 1998, para 4,1 milhões,
em 2008, aproximando assim, nesse ano, esses dois mercados em termos dos valores(34 milhões de dólares para a Europa e 37 milhõespara os Estados Unidos).
Essa apreciação deriva dos dados resultantes das apreensões de cocaína, tanto
nos Estados Unidos como na Europa, demonstrando claramente essa tendência
inversa nos dois mercados finais, conforme representado na Figura 2, abaixo:
147
Fonte: ONUDC – Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008
Figura 2 - Apreensões globais de cocaína feitas na América do Norte e Europa
Centroeste
Essas mudanças ocorridas, tanto nas regiões de produção como nos mercados de consumo, aliadas aos esforços das autoridades na interceptação de estupefacientes, durante o seu transporte, contribuíram também para a alteração das
rotas do tráfico internacional da cocaína.
De igual forma, devido à crescente importância do mercado europeu, com
o enorme aumento do consumo, associado ao apertado controlo das autoridades
dos Estados Unidos e da América Central, começa-se a verificar uma deslocalização da rota do narcotráfico, agora com maior fluxo em direcção à Europa, com
passagem pela África Ocidental.
1.3 - A Rota América do Sul-Europa
A segunda grande rota internacional da cocaína é a da região andina, em
direcção à Europa.
A União Europeia concentra cerca de 90% dos 4,5 milhões de consumidores
de cocaína da Europa. Dentro da Europa, o maior consumidor é o Reino Unido,
seguido da Espanha, Itália, Alemanha e França, conforme estimado pela ONUDC no seu Informe Mundial sobre las Drogas (2010).
148
A cocaína segue para a Europa, principalmente pelo mar, em contentores de
mercadorias e, por via aérea, através dos “correios” ou “mulas”.
Segundo a Organização Mundial das Alfândegas, 69% do total da cocaína
apreendida pelas autoridades alfandegárias, com destino à Europa, estavam a
bordo de embarcações, escondidas entre as mercadorias ou na estrutura das embarcações18.
Existem dois pontos principais de entrada da cocaína na Europa: no sul, a
Península Ibérica, formada por Espanha e Portugal, e, no norte,a Holanda e a
Bélgica.
Factores geográficos e os laços históricos e culturais que ligam a Península
Ibérica à América Latina e,no caso dos Países Baixos,onde se situamos maiores
portos da Europa, configuram as razões que explicam a preferência dos traficantes por essas portas de entrada no continente.
Esses países, juntos, representam 70% das apreensões da cocaína na Europa
(dados de 2008), apesar deo seu consumo ser apenas ¼ de toda a Europa19.
A cocaína comercializada na Europa vem maioritariamente da Colômbia,
apesar do aumento da produção no Peru e na Bolívia. Das apreensões feitas pela
Espanha, em 2008, 81% era originária da Colômbia e dos países vizinhos (Venezuela, Equador e Panamá).
Em 2002, o Reino Unido comunicou que 90% da cocaína apreendida tinha
como país de origem a Colômbia.Entretanto, a maior parte da cocaína destinada
a esse país transita por outro país europeu, em vez de ser enviada directamente,
eventualmente devido à maior capacidade das autoridades do Reino Unido para
detectar a droga à entrada dos portos e aeroportos do país.
Segundo o Centro de Análise Marítimo e Operacional do Tráfico de Drogas(MAOC, 2009), 51% dos navios interceptados no Atlântico, no período de
2006 a 2008, eram originários da Venezuela. As remessas directas da Colômbia
representavam apenas 5% do total.
Ainda segundo dados do MAOC, nos últimos anos, a maioria das interceptações se deu em embarcações de recreio na travessia do Caribe para a Eu-
18. Organização Mundial das Alfândegas, Customs and Drugs Report 2008, Bruxelas, Junho de 2009.
19. OEDT/Europol, Cocaine: A European Union perspective in the global context, Abril de 2010.
149
ropa(43%), seguidas das remessas em navios de mercadorias (39%) e em outros
navios a motor (12%). Registou-se apenas um caso de uso de submarinos em
direcção à Europa,detectado na Galícia, norte da Espanha, em 2006.
A via aérea também é bastante utilizada para o envio da cocaína da América
do Sul para a Europa, a partir de diferentes países como o Brasil, a Argentina,
o Uruguai ou ainda do Caribe, Antilhas Holandesas, República Dominicana e
Jamaica.
O tráfico da cocaína para a Europa é dominado por grupos colombianos do
crime organizado, em articulação com grupos criminosos que actuam em países
como Espanha, Itália e Holanda.
Devido ao reforço da fiscalização das costas dos Açores, Madeira e Canárias,
portas de entrada da navegação vinda da América do Sul na Europa, e às várias
apreensões de droga efectuadas naquela zona, os traficantes tiveram que procurar novas rotas, que, embora não sejam directas, oferecem maiores garantias de
sucesso na operação.
1.4 – A Rota Africana
A partir de 2004, ganham importância as remessas feitas via África, principalmente via África Ocidental,como se verá no próximo capítulo.
150
CAPÍTULO II
A ROTA DA COSTA OCIDENTAL AFRICANA
A África Ocidental20 só muito recentemente entrou, em grande escala, na
rota do tráfico da cocaína da América do Sul para a Europa.Os motivos do surgimento dessa rota e a sua crescente importância para o crime organizado transnacional é o que iremos analisar neste capítulo.
De acordo com os dados divulgados pela ONUDC, desde meados da década
de 90, os países da região da África Ocidental têm servido de trânsito para a cocaína, com destino à Europa, e as apreensões nos últimos anos demonstram que a
actividade tem vindo a crescer, conforme evidenciam os dados que apresentamos
e analisaremos mais adiante neste capítulo.
Na África Ocidental, encontram-se identificados dois centros–chave de
transbordo da cocaína: um na Guiné-Bissau e Guiné-Conacry, que se estende
a Cabo Verde, Gâmbia e Senegal, e outro na Baía do Benim, que se estende ao
Ghana e à Nigéria.
Um conjunto de factores externos, tais como a diminuição drástica do consumo da cocaína nos Estados Unidos, o aumento do cerco aos traficantes na
rota da América do Sul para os Estados Unidos, tanto nos países produtores,
como nos de trânsito, e, no destino final, a localização estratégicaem relaçãoaos
países produtores e a proximidade em relação à Europa (é a região mais próxima,
a seguir ao Magrebe), bem como a crescente importância do mercado europeu
determinada pelo aumento do consumo, motivaram a adopção dessa nova rota.
Além desses, factores endógenos, comuns aos países da região oeste-africana,
como:a) a existência de Estados fracos, instáveis21 e com guerras civis prolonga20. África Ocidental é aqui entendida como o conjunto formado pelos 15 países que compõem a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental – CEDEAO – Benin, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa
do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra
Leoa e Togo.
21. Nos últimos 20 anos, apenas Cabo Verde, Gana e Senegal não sofreram golpes de Estado. Ver “L’Environnement de Securité et le Processus de Construction de la Paix en Afrique de l’Ouest”, documento de
trabalho do Escritório das Nações Unidas para a África Ocidental (UNOWA), Dakar, Março de 2007,
151
das, onde proliferam armas ligeiras ea corrupção é generalizada; b) funcionários
públicos mal remunerados;c) meios de investigação inexistentes, ultrapassados ou
deficientes;d) fraca capacidade punitiva;e) enormes parcelas do seu território sem
ou com controlo bastante precário por parte das autoridades, deixando-as entregues, por vezes, a grupos armados ou milícias locais, associado a um enorme crescimento demográfico na região, superior à média mundial22, não acompanhado
de um crescimento económico adequado;f) uma economia baseada sobretudo
na informalidade, com elevadas taxas de desemprego, principalmente na camada jovem, ecom populações vivendo em situação de extrema pobreza 23;g) fortes
ligações aos países europeus, seus antigos colonizadores, onde existe uma grande
comunidade de conterrâneos, disponível para realizar a actividade de venda no
varejo, determinaram que essa região fosse escolhida para o trânsito da cocaína
da América do Sul com destino à Europa, principalmente aos países do Sul da
Europa, Espanha e Portugal.
Vindas da América do Sul, em grandes embarcações mercantis, a cargo de
traficantes oriundos da América Latina, principalmente da Colômbia, do Brasil e
da Venezuela, as toneladas de cocaína são transferidas já próximas da costa africana para pequenas embarcações de pesca, que se encarregam do desembarque
nas pouco vigiadas praias das ilhas e do continente.
Pela via aérea, partindo de países como a Venezuela, Colômbia e Brasil,
aviões privados de pequeno porte são utilizados pelos cartéis para transportar
cerca de 500 kg de cocaína pura, fazendo-se valer das redes de pistas clandestinas
de aterragem disseminadas no coração das florestas ou localizadas no meio do
deserto, sendo que, no sentido inverso, essas avionetas regressam com os fundos
resultantes da venda da droga.
disponível na Internet em www.un.org/unowa/. Acessado em 6/07/2011.
22. Conselho de Segurança das Nações Unidas: Rapport do Secrétaire Général sur le Bureau des Nations
Unies pour l’Afrique de l’Ouest, pp. 2-5, NY, 30 Junho 2008.
23. O índice de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
coloca 12 dos 15 países da CEDEAO no grupo dos 31 Estados mais pobres do mundo. Num universo de
177 países analisados, que não inclui a Libéria por falta de dados actualizados, o Togo aparece no lugar
147 da tabela, a Gâmbia em 155, o Senegal em 156, a Nigéria em 159, a Guiné em 160, o Benim em 163,
a Costa do Marfim em 164, a Guiné-Bissau em 173, o Burkina Faso em 174, o Mali em 175, a Serra Leoa
em 176 e o Níger em 177. As excepções à realidade dos países de baixo desenvolvimento humano na África
Ocidental são Cabo Verde (106) e o Gana (136).
Há registo, igualmente, da utilização de aviões de grande porte, como foi o
caso doBoeing 727, encontrado abandonado no deserto no norte do Mali, em
Outubro de 2009.
Outro método utilizado,também conhecido das autoridades da região, é o
air-drop, em que a cocaína transportada em aeronaves e devidamente acondicionada, é lançada ao mar, acompanhada de bóias sinalizadoras, para depois ser
recolhida por barcos de pesca industrial, que munidos de GPS e das coordenadas
do local aonde a carga foi lançada, têm o trabalho facilitado.
As apreensões feitas pelas autoridades da região da África Ocidental e pelos
países europeus indicam haver dois fluxos diferentes de traficantes de cocaína em
direcção à Europa.
A primeira é dominada pelas redes sul-americanas, que transportam grandes
quantidades de droga e precisam do apoio logístico por parte dos africanos para
receberem, armazenarem, distribuírem e a reenviarem para a Europa. Normalmente, o pagamento ao serviço prestado é feito com parte da droga transportada,
o que gera o segundo fluxo de remessas para o continente europeu, agora feita
por nacionais da região e normalmente em voos comerciais, utilizando os chamados “correios” ou “mulas”, com distribuição assegurada na Europa pela rede de
emigrantes africanos aí estabelecidos. Neste caso, a rede parece ser menos rígida
e a estrutura menos hierarquizada, composta por poucos elementos, apenas os
essenciais para o serviço de “correio” e da distribuição no varejo junto aos consumidores.
Além de garantir esse segundo fluxo de remessa para a Europa, parte da
droga recebida em pagamento pelo suporte logístico local, é destinada ao abastecimentodo pequeno mas crescente mercado local de consumo.
Conforme se pode constatar na Figura 3, a seguir, o mercado de consumidores de cocaína nos países da sub-região da África Ocidental é ainda bastante
insignificante, em comparação com outras drogas, como é o caso, por exemplo,
da cannabis, muito mais barata,influenciado, sobretudo, pelo fraco poder aquisitivo da sua população, que não possui recursos para a compra da cocaína, tendo
em conta o seu alto valor no mercado mundial e local.
153
Fonte: Relatório Mundial de Droga 2008
Figura 3 - Prevalência anual do uso da droga por adulto (15-64), vários anos
Muitas vezes, os traficantes regionais enviam vários “correios” num mesmo
voo para a Europa, sabendo à partida, que as autoridades não dispõem de meios
para fiscalizar todos os passageiros, assumindo assim um risco calculado de que
alguns poderão, eventualmente, ser interceptados e a droga apreendida.
Prova disso é que, a partir de 2004 e até 2008, a Interpol registou a interceptação de 1357 “correios”nos voos da África Ocidental com destino à Europa,
conforme relatadono relatório produzido pela ONUDC (2008).
Em 2006, as autoridades holandesas, detiveram 32 pessoas num único voo.
Essas pessoas tinham saído da Guiné-Bissau, com trânsito em Casablanca, no
Marrocos, numa tentativa de dissimular o ponto de embarque, já referenciado
pelas autoridades europeias, a partir do qual a atenção no controlo deverá ser
sempre reforçada.
Em 2007, outros 22 “correios” foram detidos na Holanda, num voo proveniente do Mali e com escala em Tripoli, na Líbia.
Dados da Polícia Federal do Brasil24, importante país de trânsito na Amé24. Indiciamento de Estrangeiros nos Crimes Relacionados com o Tráfico Ilícito de Entorpecentes pela Polícia Federal – Brasília, Janeiro de 2012
154
rica do Sul, referentes aos anos 2000 a 2009, demonstram que foram detidas
pessoas transportando cocaína de praticamente todos os países da CEDEAO,
distribuídas da seguinte forma: Nigéria-205; Gana-30; Guiné-Bissau-29; Cabo
Verde-25; Guiné-Conakry-14; Costa do Marfim-10; Benin-3; Gâmbia-3; Serra
Leoa-3; Burkina Faso-2; Mali-2; Senegal-1; Togo-1.
Em termos de quantidade de cocaína apreendida pelas autoridades nos aeroportos europeus, proveniente da África Ocidental, o destaque vai claramente
para Senegal e Nigéria, como principais países de origem.Entretanto, há registos
significativos, repartidos por todos os demais países da região, conforme se pode
observar na Figura 4.
Fonte: ONUDC, Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008
Figura 4 - Volume de cocaína apreendida nos voos para a Europa com
proveniência do país de embarque (Janeiro 2006-Maio 2008)
Pressupõe-se que as maiores apreensões nesses países estejam ligadas ao facto
dos seus aeroportos serem os de maior volume de tráfego aéreo da região para a
Europa, com movimento superior a um milhão de passageiros por ano.
Da mesma forma, a maior proporção de “correios” nigerianos, detidos na
posse de cocaína,pode ser explicada pela percentagem que a população representa
na região. Os “correios” nigerianos representam 57% do total de “correios”da
155
região detidos, enquanto, em termos da população efectiva da África Ocidental,
representam 53% do total de acordo com o estudo apresentado pelaONUDC
(2008).
A maior parte dos “correios” detidos, provenientes de voos do Senegal, era
originária da Nigéria (29%), de Cabo Verde (22%) e da Guiné-Bissau (15%).
Em relação ao destino principal da droga que transita pela África Ocidental,
os dados das apreensões indicam que o Reino Unido e a Espanha são os principais destinatários, o que vem coincidir com os dois maiores mercados consumidores da Europa, com a particularidade de que a Espanha é,ao mesmo tempo, o
principal ponto de entrada da cocaína no Continente e uma importante redistribuidora da cocaína no resto da Europa.
Em Espanha, cerca de 80% da cocaína apreendida estava na posse de nacionais da Nigéria, da Guiné-Bissau, do Mali e de Cabo Verde.
Em Portugal, os nacionais da África Ocidentalpresos por tráfico de drogas,
representam dois terços de todos os presos por esse crime, sendo maioria os naturais de Cabo Verde (52%) e os da Guiné-Bissau (12%), conforme se pode observar na Figura 5.
Fonte: ONUDC, Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008
Figura 5 - Nacionalidade de pessoas detidas em Portugal por tráfico de cocaína em
2007 (oito grupos nacionais no topo da lista de traficantes estrangeiros de drogas)
156
Essa proporção elevada de cabo-verdianos presos por tráfico de drogas em
Portugal poderá ser explicada, essencialmente, pelos vínculos históricos e culturais existentes entre esses países de língua oficial portuguesa, que possuem ligações diárias por via aérea, o que tem estimulado o envio de cocaína através
dos “correios” a partir de Cabo Verde, resultando em detenções nos aeroportos
portugueses, e a existência de uma grande comunidade instalada naquele país
europeu vivendo em condições degradantes e de extrema pobreza, sendo que
muitos se dedicamà distribuição de drogas no mercado varejista, por vezes em
articulação com os outros membros da rede actuantes em Cabo Verde.
Da análise dos dados das apreensões de cocaína feitas no território europeu, tendo em conta a sua proveniência, estima-se que 27% do total, que é de
146 toneladas, tenha transitado pela África Ocidental, o que, traduzido em valores monetários, ascende ao montante de 1,8 mil milhões de dólares, segundo a
ONUDC (2008).
No caso particular da Guiné-Bissau, os traficantes locais fazem-se valer ainda da chamada “Licença Conexa de Pesca”, que é a autorização oficial que permite aos barcos de pesca industrial laborar em cooperação com as embarcações
de pesca artesanal, onde aqueles fazem a recolha da cocaína em alto mar, fazem
o transbordo para estes, que se encarregam do desembarque nas várias praias das
ilhas, sem qualquer controlo das autoridades.
A saída da droga para a Europa, a partir da África Ocidental, faz-se, de entre
outras formas, através da rota do Sal e da rota da Seda.
A Rota da Seda é uma rota ancestral que atravessa a África de Oestea Este.
Em África, a rota tem o seu término na Eritreia e na Somália. A partir daí, a droga entra no Golfo de Áden, passando depois para o Afeganistão e para a Rússia,
seguindo para o mercado europeu.
Essa rota é usada no sentido inverso para o tráfico da heroína, que vem do
Afeganistão e atravessa a África de Este a Oeste, em trânsito para os Estados Unidos, depois de passar pela Guiné-Conacry, onde existem fábricas de precursores
químicos para seu processamento.
A Rota do Sal éo nome por que era designada antigamente a rota terrestre
utilizada para a circulação de bens, sobretudo o sal, entre o norte da África e o
sul da Europa. Os países que fazem parte deste circuito são o Níger, o Mali, a
Mauritânia e o Marrocos. A chamada rota do Sal foi reactivada recentemente,
157
com o objectivo de fazer a droga entrar na Europa, a partir do sul da Espanha. O
transporte da droga, de Marrocos para o sul da Espanha, é assegurado por barcos
de pesca industrial.
A droga que circula na rota do Sal é proveniente da América do Sul e é transportada por cargueiros russos com grande autonomia de voo. Esses aparelhos
aterram, na maior parte das vezes, em zonas desérticas do Mali, da Mauritânia
e do Níger, onde fazem o desembarque da droga. A partir daí,ela é redistribuída
com destino ao Senegal, Guiné-Conacry, Gâmbia e Guiné-Bissau. A parte destinada à Europa é, na maioria das vezes, encaminhada em colunas de camiões para
o Marrocos, sob forte dispositivo de segurança dos traficantes da região.
Com base em dadosdo documento acima citado, da ONUDC (2008), das
apreensões feitas na Europa e onde foi possível determinar a origem da droga,
calcula-se que 27%, ou seja, cerca de 40 toneladas da cocaína consumida anualmente nesse continente transita pela África Ocidental.
Segundo a Europol25, a maioria da droga que tem como destino a Europa
vem da África Ocidental pela via marítima, sendo que a partir da América do
Sul existem três rotas principais: a do norte, que sai das Caraíbas via Açores em
direcção a Portugal e Espanha; a rota central, da América do Sul via Cabo Verde
ou Madeira e ilhas Canárias até a Espanha; e, mais recente, a rota da África, partindo da América do Sul para a África Ocidental e daí para a Espanha e Portugal.
Ultimamente as autoridades na região começaram a observar o estabelecimento de uma nova rota da droga a partir da Guiné-Bissau em direcção à África
Austral, tanto pela via aérea, com escala em São Tomé e Príncipe e tendo por
destino Angola, como pela via marítima, rumo aos portos do mesmo país.
Em resumo, pode-se verificar que todos os países da região da África Ocidental encontram-se afectados pelo tráfico da cocaína proveniente da América do
Sul e com destino à Europa.
Os traficantes internacionais da cocaína encontraram, nas fraquezas e debilidades dos Estados da região, a sua própria força para actuarem livremente numa
actividade capaz de gerar rendimentos que, nalguns casos, chega a ser superior
ao PIB desses países.
25. https://www.europol.europa.eu/content/publication/octa-2008-eu-organised-crime-threat-assessment-1461.
158
Os Estados da região não têm conseguido enfrentar o problema, na maioria
dos casos, por absoluta falta de recursos.
Como se pode observar na Figura 6, a seguir exposta, o valor estimado da
cocaína que circula na região da África Ocidental chega a ser superior ao produto
interno bruto (PIB) de alguns países pertencentes à CEDEAO, como é o caso da
Guiné-Bissau, da Gâmbia, de Cabo Verde e da Serra Leoa, dados preocupantes
que revelam a dimensão do problema para toda a região de uma forma geral e
com particular relevância para esses países, que terão maiores dificuldades em
fazer face às consequências nefastas do trânsito e do consumo da cocaína.
A desproporção entre os grandes fluxos financeiros gerados pelo tráfico transnacional e as débeis economias formais desses países é reveladora da verdadeira
dimensão do problema para a África Ocidental.
Fonte: ONUDC,Tráfico de droga como uma ameaça à segurança na África Ocidental, Outubro 2008
Figura 6 - PIB dos países da África Ocidental em 2005 (excepto Nigéria) estimado
em relação ao valor da quantidade total de cocaína que transita pela região para
a Europa
Em alguns países, onde, pela debilidade do próprio aparelho do Estado, o
narcotráfico já conseguiu penetrar nas suas estruturas civis e militares, por meio
da corrupção, não sendo poucos os casos de altas autoridades dos Governos desses paísesserem referenciados como pertencentes ou facilitadores de organizações
criminosas do narcotráfico na região e, nos casos mais manifestos, a comunidade
internacional chega a apelidá-los de “Narco-Estados”.
O trânsito da cocaína criou uma rede de traficantes locais, que prestam apoio
logístico às redes sul-americanas,sendo que estas dispensam parte da droga para
159
o pagamento do serviço prestado, dando origem a uma nova rede de traficantes
de cocaína, composta exclusivamente por africanos da região, com uma estrutura
mais leve e simples e com um modus operandi diferente da rede que a impulsionou.
Os traficantes africanos, além de suprir as necessidades do consumo local,
que não pode ser considerada ainda um grande mercado, tendo em conta o fraco poder aquisitivo da região (embora esteja em crescimento) encarregam-se de
recrutar “correios” para o transporte da cocaína nos voos comerciais para a Europa, onde conta com a sua rede de distribuidores, composta pelos emigrantes
africanos aí residentes.
A Figura 7 representa a quantidade de cocaína apreendida pelas autoridades
europeias e que transitaram pelo continente africano, a partir do ano 2005 até
o ano de 2007, tendo -se registado três mil e setecentos quilos (3700), em 2005,
seguido de um aumento considerável em 2006, atingindo-se o volume de nove
mil oitocentos e cinquenta e dois quilos (9852), para no ano seguinte, 2005, os
valores conhecerem uma redução drástica para quatro mil novecentos e cinquenta quilos (4950). Não nos é possível determinar com objectividade os motivos de
tão grande oscilação das quantidades de cocaína apreendida pelas autoridades
europeias num intervalo tão curto de tempo, devendo-se considerar as hipóteses
de mudança do modus operandi das redes internacionais do tráfico de estupefacientes, as apreensões terem ocorrido noutras paragens, designadamente nos
países de trânsito, ou eventual diminuição momentânea do fluxo para a Europa.
Fonte: ONUDC, Tráfico de Droga como uma Ameaça à Segurança na África Ocidental, Outubro 2008
160
Figura 7 - Volume total de cocaína ligada à África (acima de 100 kg apreendida por
autoridades na Europa
Os dados apresentados e analisados neste capítulo comprovam a realidade
actual do conjunto dos países que compõem a África Ocidental, no que respeita
a situação de vulnerabilidade a que se encontram face às grandes redes do tráfico
transnacional de cocaína.
A utilização da região como rota marítima e aérea para a Europa é relativamente recente, mas os números das apreensões de cocaína,as detenções dos
traficantes e os avultados montantes envolvidos,indicam a crescente importância
desse corredor africano, tendo em conta que as organizações criminosas encontraram um conjunto de condições propícias para a implantação e florescimento
das suas actividades.
A comunidade internacional, principalmente as Nações Unidas, através do
seu Escritório sobre Drogas e Crime, ONUDC, tem insistentemente alertado
para a ameaça que o tráfico de drogas representa para a África Ocidental, constituindo-se em verdadeiro atentado aos Estados de Direito e à segurança na região,
tendo em vista o seu enorme poderio económico face aos Estados institucionalmente frágeis e permissíveis à corrupção, pelo que urge juntar esforços para o seu
combate eficaz, sendo indispensável o recurso a cooperação com outros países e
organizações internacionais para o efeito.
161
CAPÍTULO III
CABO VERDE COMO PAÍS DE TRANSITO DE
COCAÍNA
3.1 – CONTEXTUALIZAÇÃO
Cabo Verde é um arquipélago de origem vulcânica, formado por dez ilhas,
sendo que uma é inabitada, e cinco ilhéus. Situado a 455 quilómetros da costa
ocidental africanae, aproximadamente, a 1400 km a Sudoeste do arquipélago
das Canárias, no Atlântico Norte, entre o Trópico do Câncer e o Equador, mais
precisamente entre as latitudes norte 17º 12´.5 e 14º 23´, e a longitude 22º 44´e
25º 22´, oeste de Greenwich, ver mapa 4 abaixo.
É constituída por dez ilhas agrupadas em duas regiões: regiãode Barlavento
(Santo Antão, São Vicente, S. Nicolau, Sal, Boavista e Santa Luzia que não é
habitada) e região de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava).
Tem uma superfície de 4.033 Km2 e uma população de aproximadamente
491.875 habitantes26. A língua oficial é o português, sendo que a língua materna
é o crioulo, a mais usada pela população na comunicação informal. Ex-colónia
portuguesa, tornou-se independente em 1975 e, até 1990, viveu sob o regime político uni-partidário. A partir dessa data, a Constituição da República consagrou
Cabo Verde como um Estado de Direito Democrático, com um sistema de governo de separação e equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania
e um poder judicial forte e independente.
Os órgãos de soberania de Cabo Verde são o Presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais, de acordo com o disposto no artigo
119º da Constituição, que espelham os três poderes do Estado: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial.
O Presidente da República é o garante da unidade da Nação e do Estado, da
26. Instituto Nacional de Estatística, Censo 2010.
162
integridade do território, da independência nacional e vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais.
A Assembleia Nacional é a assembleia que representa todos os cidadãos cabo-verdianos, eleitos por sufrágio directo e universal, por um mandato de cinco
anos.
Assumidamente assente nos princípios da soberania popular, o Governo é
sustentadopor uma maioria parlamentar, sendo o órgão que define, dirige e executa a política geral interna e externa do país e é, também, o órgão superior da
Administração Pública.
Por seu turno,os Tribunais têm por objecto dirimir conflitos de interesses
públicos e privados, reprimir a violação da legalidade democrática e assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Cabo Verde, em 2011, apresentava umPIB per capita de US$ 3.79727 e uma
média de crescimento económico de 4,15%, entre 2000 e 2009, sendo este considerado superior à média africana 28.
A moeda em circulação é o escudo caboverdiano (CVE), que tem paridade
fixa com o Euro, graças ao Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e
Cabo Verde, assinado em 1998, sendo que cada euro equivale a 110,265 CVE29.
A taxa de inflação situou-se em 4,5%em 2011, contra 2,1% em 2010.Entretanto, as estimativas apontam para o intervalo de 3,5% a 4,5%, em 2012, conforme as previsões do Banco de Cabo Verde30.
27. Dados do Banco Mundial http://data.worldbank.org/country/cape-verde Acessado em 12-07-12
28. Dados da UNICEF http://www.unicef.org/infobycountry/capeverde_statistics.html#73. Acessado em
12-07-12
29. O Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde foi aprovado pela Resolução n.81/V/98,
de 11 de Maio, publicado no B.O. n.º 18, I Série.
30. Disponível em www.bcv.cv. Acesso em 12-07-12.
163
Mapa 4 -Localização geográfica da República de Cabo Verde
Fonte: imagem da internet31 http://www.africa-turismo.com/mapas/cabo-verde.htm
A situação de Cabo Verde, em relação ao narcotráfico internacional, merece
uma análise particular, em virtude do cenário globalmente diferente, em comparação aos demais países da CEDEAO.
A maior parte das condições referidas no capítulo anterior, propiciadoras ou
facilitadoras do crime organizado internacional, não se aplica, pelo menos de
forma tão clara, ao caso de Cabo Verde. As condições políticas, culturais, sociais
e económicas são substancialmente diferentes.
A autoridade do Estado não é questionada, embora persistem as suas carências, em termos de recursos necessários para fazer face ao desafio de assegurar
uma cobertura em todo o território nacional, no que respeita ao controlo efectivo
da sua ampla zona económica exclusiva (ZEE), bem como de todas as costas das
suas ilhas e ilhéus.
31. http://www.africa-continent.com/cape-verde.htm Acesso em 04-07-12.
As instituições da República funcionam normalmente, as eleições sucedem-se
sem sobressaltos32, com alternância do poder entre as principais forças políticas.
A população do arquipélago é de apenas 480.000 habitantes, repartidos por
9 ilhas, não se observando a explosão demográfica registada na região.Pelo contrário, dados dos censos da população demonstram a tendência inversa, ou seja, a
taxa de natalidade tem sofrido uma redução gradual ao longo dos últimos anos,
partindo-se de 29,2% em 2000, para 25,7% em 200933, isso em consequência de
programas adoptados pelos sucessivos governos, visando o planeamento familiar
e o controlo da gravidez, principamente a de adolescentes, com a massificação dos
métodos anti-concepcionais e a distribuição gratuita de pílulas e preservativos.
A economia do país é menos informal do que a dos demais países da CEDEAO, centrada mais no turismo e na prestação de serviços, com uma taxa de
desemprego de dez por cento (10%)34.
Apesar de algumas denúncias e poucos casos provados de corrupção, esta está
longe de ser um problema alarmante na sociedade cabo-verdiana, sendo um comportamento reprovável, de forma geral, por toda a sociedade, segundo o estudo
realizado pela Afrosondagem (2007).
Em CaboVerde, não se registou, até hoje, qualquer conflito armado que pudesse criar um clima de instabilidade e propiciasse a proliferação de armas ligeiras, condições ideais para as organizações criminosas se instalarem e desenvolverem as suas actividades ilícitas.
Apesar desse cenário diferente, Cabo Verde também faz parte da rota da cocaína, da África Ocidental para a Europa, funcionando, para o crime organizado,
como uma plataforma de entrada, armazenagem e posterior reenvio para Europa
de estupefacientes provenientes da América Latina.
A escolha de Cabo Verde prende-se, essencialmente, com a sua localização
estratégica, no oceano Atlântico, a meio percurso para a Europa, com ligações
32. O Índice da Democracia 2011, da “Economist Intelligence Unit”, coloca Cabo Verde entre os 26 países
mais democráticos do mundo.http://www.sida.se/Global/About%20Sida/S%C3%A5%20arbetar%20vi/
EIU_Democracy_Index_Dec2011.pdfhttp://www.sida.se/Global/About%20Sida/S%C3%A5%20arbetar%20vi/EIU_Democracy_Index_Dec2011.pdf
33. Fonte: Instituto Nacional de Estatística – Projecções Demográficas de 2001 a 2020.
34. Fonte: Instituto Nacional de Estatística – Censo 2010.
165
directas, marítima e aérea, com a Península Ibérica, que é o principal ponto de
entrada da cocaína no continente europeu, o que lhe confere a missão de plataforma de apoio avançado na rota atlântica.
A sua vocação secular para aprestação de serviços à navegação aérea e marítima nas rotas comerciais entre os continentes; oprestígio internacional que gozava
até um passado recente, tendo em conta que só nos últimos anos o país começou
a constar do rol dos países de trânsito do narcotráfico internacional,e asflexibilidadesconsulares namobilidade/circulação de pessoas e bens para a Europa, são
factores que, conjugados, contribuíram para que o país se tornasse um ponto de
referência na rota da cocaína.
Os dados das apreensões da PolíciaJudiciária35 cabo-verdiana,que serão
apresentados no decorrer da nossa análise,permitem estabelecer o circuito da
droga, desde a sua origem, na América do Sul, até o seu destino final na Europa.
As apreensões de droga feitas à entrada do país são, na sua larga maioria,
oriundas da América do Sul, sendo mais frequentesdo Brasil.
Da mesma forma que nos outros países da CEDEAO, distinguem-se, também aqui, as duas modalidades características do narcotráfico na região, ou seja,
o efectuado em grandes remessas, controladopelos traficantes sul-americanos associados aos nacionais, e o pequeno tráfico, chefiado pelos traficantes locais.
O modus operandipraticado em relação ao arquipélago também é semelhante ao dos demais países da sub-região africana, tanto pela via marítima como
pela aérea.
3.2 – VIA MARITIMA
Pela via marítima, as apreensões têm sido efectuadas, sobretudo, em embarcações de recreio que aportam nas ilhas, originários da América Latina, visando
35. A Polícia Judiciária é o organismo nacional de prevenção e investigação criminal, auxiliar da admnistração da justiça e organizado na dependência hierárquica do membro do Governo responsável pela área
da justiça. Ela possui a competência exclusiva para a realização de actos ou diligências de investigação de,
entre outros crimes, os de organização e associação criminosas, relativos a estupefacientes e substâncias
psicotrópicas, lavagem de dinheiro e de outros produtos ou bens, conforme disposto no Decreto Legislativo 4/93 de 12 de Maio, Lei Orgânica da Polícia Judiciária, e na Lei nº 30/VII/2008 que aprova a Lei de
Investigação Criminal.
166
o reabastecimento de combustível e de alimentos, na sua trajectória no Atlântico,
rumo aos mares da Europa, ou ainda através do transbordo feito em alto mar
para pequenas embarcações pesqueiras que se encarregam do seu transporte para
as ilhas, onde serão armazenados, reembalados e direccionados para a Europa.
Em Cabo Verde, causou estupefacção na população nacional, quando, em
1989, deu-se a primeira grande apreensão de cocaína, num iate (o Good Luck)
proveniente do Brasil, e que tinha como destino final a Espanha, transportando
500 kg de cocaína acondicionados no casco da embarcação e cuja tripulação era,
na sua totalidade, colombiana.
Actualmente, os grandes carregamentos de cocaína deixam a América do Sul,
a bordo de navios mercantes ou de recreio, e já próximos da costa das ilhas é feito
o transbordo para pequenas embarcações, que fazem o transporte até as praias
não vigiadas, como é exemplo a recenteapreensão,pela polícia judiciária nacional,
no dia 08 de Outubro de 2011, de mais de uma tonelada e meia (precisamente
1501,3 kg) de cocaína, com alto grau de pureza, após o seu desembarque numa
das praias da ilha de Santiago, tendo os traficantes utilizado uma embarcação
semi-rígida, moderna e veloz, com potência três vezes superior às das autoridades
marítimas, adquirida, pelo que consta, especificamente para essa operação.
Da praia de desembarque da cocaína até o local de armazenamento, num
bairro residencial da cidade da Praia, foram utilizadas várias viaturas, inclusive
com recurso a mecanismos de contra-vigilância, evitando serem seguidos pelas
autoridades policiais.
Segundo estimativas das autoridades nacionais, o valor da droga apreendida,
no mercado europeu seria de, aproximadamente, sessenta milhões e quarenta
mil euros (€60.040.000), equivalente a seis bilhões, seiscentos e vinte milhões,
trezentos e dez mil e seiscentos escudos cabo-verdianos (6.620.310.600$00).
Esse montante étrinta e duas vezes superior ao orçamento da própria polícia
judiciária, para o ano de 2011, que era de apenas duzentos e seis milhões, cinquenta e quatro mil e oitenta e sete escudos (206.054.087$00)36, o que equivale,
aproximadamente, a um milhão, oitocentos e sessenta e oito euros (€1.868.000).
Em termos proporcionais, o orçamento da Polícia Judiciária, entidade de in-
36. Orçamento Geral do Estado de Cabo Verde para o ano 2011.
167
vestigação,encarreguedo combate ao crime de tráfico de estupefacientes e responsável por essa mega apreensão, era de apenas 3% do valor de mercado da droga
apreendida, o que revela a disparidade de meios existente entre as autoridades e
as organizações criminosas actuantes no país.
Para além da droga,foram também apreendidas,várias armas, como pistolas
e metralhadoras,uma grande quantidade de munições, dinheiro, em moeda nacional e estrangeira, modernos meios de comunicação via satélite e equipamentos
de visão noturna.
Nessa operação, denominada “Lancha Voadora”, foram detidas três pessoasem flagrante delito, apontadas como sendo os proprietários da cocaína apreendida e membros da associação criminosa que efectuava o tráfico internacional
de estupefacientes, actuando no triângulo América do Sul - África Ocidental
- Europa, com a intenção directa de obter avultados proventos monetários, os
quais eram depois integrados no sistema financeiro Cabo-Verdiano pelos próprios membros e através das empresas por eles criadas, com recurso a sofisticados
métodos de lavagem de capitais.
Na sequência da apreensão da droga, além dos detidos em flagrante,foram
deduzidas acusações contra quinze pessoas singulares e cinco pessoas colectivas, pelos crimes de tráfico de estupefacientes agravado, associação criminosa,
lavagem de capitais agravado, detenção e depósito de armas de guerra e ainda
falsidade de interveniente processual.
As investigações das autoridades nacionais, em concertação com outras
agências de investigação internacionais, conseguiram estabelecer as relações e
os contactos entre os elementos dessa organização no país epessoas referenciadas
noutros países como sendo suspeitos de tráfico internacional de cocaína, tanto na
América do Sul como na Europa.
O rol de activos inscritos em nome do líder e demais membros da organização ou de suas empresas é enorme, incluindo bens imóveis, como apartamentos,
condomínios, terrenos em diversas ilhas do país, bens móveis, como viaturasdiversas e embarcações, valores avultados em contas bancárias e vários títulos
obrigacionistas de empresas nacionais.
Essa organização criminosa, entretanto desmantelada pelas autoridades nacionais, apresenta as principais características apontadas pelas diferentes correntes teóricas que procuram definir e caracterizar o crime organizado, quais sejam,
168
a hierarquização da organização, a divisão especializada de tarefas, o planeamento empresarial, a intenção duradoura das suas actividades, a transnacionalidade
da prática criminosa,a penetração nos serviços do Estado, a previsão de lucros e
a existência de um esquema sofisticado de lavagem de capitais, com recurso ao
sector imobiliário, à comercialização de veículos de luxo, a empresas offshore, ao
mercado financeiro convencional (banca comercial e bolsa de valores) e a instituições financeiras internacionais (bancos offshore)37.
A organização em análise,a melhor estruturada até então conhecida pelas
autoridades nacionais, poderia ser enquadrada, conforme o modelo desenvolvido
por Adriano Moreira(ver Quadro 1),em termos das dimensões das organizações
criminosas actuantes na actividade de tráfico de drogas, como sendo, do ponto
de vista territorial, de dimensão “Macro”, por envolver diversos países da América
Latina, África, Médio Oriente e Europa; igualmente de dimensão “Macro”, no
que respeita ao poder económico, tendo em conta as grandes somas de dinheiro
que movimentava e com recurso a paraísos fiscais; do ponto de vista do poder
institucional, tem uma dimensão “Macro”, por ter angariado actores institucionais relevantes; e, finalmente, quanto ao poder de acção, de dimensão “Macro”,
tendo em conta que desenvolvia as suas actividades nos mais diferentes países.
37. Bancos offshore são instituições financeiras que operam fora dos limites territoriais onde estão instalados,
ou seja, são interditadas de realizar operações com residentes. Geralmente beneficiam de regimes fiscais favoráveis instituidos na região onde se encontram, de baixa incidência tributária ou até inexistente, as regras
de sigilo bancário são muito rigorosas, o que justifica que seja muito utilizado para a lavagem de capitais.
A maior parte das operações desenvolvidas nesses centros são aplicações financeiras.
169
Quadro 1 - Características das dimensões das organizações
criminosas
Atividade: tráfico de drogas
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm
170
É de se salientar que as organizações criminosas não têm, todas elas, o mesmo
poder e campos de actuação, sendo que as que possuem um poder de influência
maior são as mais difíceis de combater, no âmbito económico e institucional38.
Ainda pela via marítima, as autoridades nacionais têm efectuado apreensões
de cocaína em contentores com fundo e/ou tecto falsos, no costado de embarcações de recreio, escondida em motores de camiões a bordo de embarcações,
estes últimos, supostamente, a serem enviados para a Europa como sucata para
reciclagem.
Servem para ilustrar esses casos, 508 quilos de cocaína apreendidos pela Polícia Judiciária, no Porto da Praia, no dia 16 de Março de 2007, no tecto falso de
um contentor-frigorífico, que serviu para trazer frutas de Portugal e seria utilizado no sentido inverso para transportar a droga. Foram detidas quatro pessoas
tidas como os proprietários da droga, conforme apurado e exposto no relatório da
Polícia Judiciária remetido ao Ministério Público para acusação.
Da mesma forma, a operação “Ferro-Velho”, da Polícia Judiciária, apreendeu
no Porto da Praia, no dia 06 de Outubro de 2008, 171 kg de cocaína, escondidos
dentro de motores de camiões, no momento do seu embarque para Portugal.
Nessa operação, foram detidas três pessoas. Atribuiu-se à traição ocorrida dentro
dessa organização, a ocorrência de três homicídios na cidade da Praia, nos dias
seguintes à apreensão da droga, tendo por vítimas dois eventuais donos da droga
e uma testemunha, factos constantes do relatório da Policia Judiciária remetido
ao Ministério Público para acusação.
Em Setembro de 2010 um iate, o “Tortuga”, foi capturado próximo das águas
de Cabo Verde, por um barco da armada espanhola, e foi conduzido até à ilha
de São Vicente, onde, da busca efectuada pela polícia judiciária local, resultou a
apreensão de vinte e cinco quilos (25kg) de cocaína, escondidos na caixa submersado porta-leme do veleiro.
O iate saíra do Brasil (América do Sul) e tinha como destino as ilhas Canárias (Europa), sendo que a sua tripulação era composta por dois cidadãos da
Lituânia, que viriam a ser condenados pelo tribunal de São Vicente, no mês de
Fevereiro de 2012, a dez (10) anos de prisão, conforme noticiado pelo jornal
38. http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm.Acessado em 03-07-12.
171
on-line, “asemana”, citando a sentença do tribunal da comarca de São Vicente39.
Posteriormente, em sede de recurso, o Supremo Tribunal de Justiça viria a
atenuar a pena aplicada, fixando-a em sete anos e seis meses de reclusão, para
cada um dos traficantes40.
3.3 - VIA AÉREA
Pela via aérea, o crime organizado utiliza voos privados, que fazem, sobretudo, escalas técnicas de reabastecimento de combustível nos aeroportos cabo-verdianos, antes de seguirem viagem para a Europa, como foi o caso do avião
“Challenge 04”, interceptado no dia 02 de Janeiro de 2011, no aeroporto El Prat,
em Barcelona, Espanha, com 900 kg de cocaína, após escala técnica feita em
Cabo Verde e cuja tripulação era composta por três argentinos.
Ainda por via aérea, são frequentes as apreensões de cocaína feitas,principalmente,na possedos “correios”, vindos do Brasil nos voos semanais que ligam o
nordeste brasileiro à cidade da Praia.
Por vezes, deixam a droga nas ilhas, para depois ser enviada ao mercado
final. Depois de armazenada pelos grupos locais de apoio logístico, a droga é
dissimulada das mais diversas formas e encaminhada ao seu destino final.
Parte de uma rede de tráfico internacional de cocaína baseada em Cabo Verde, desmantelada pelaPolícia Judiciáriaem Julho de 2004, numa outra grande
operação denominada “Voo da Águia”,que se dedicava à recepção da cocaína
vinda da América do Sul e aoseu envio para a Europa, revelou que a droga vinha
por via marítima, era desembarcada na ilha de São Vicente e depois seguia por
via aérea para a cidade da Praia e, pela mesma via, para a ilha do Sal, de onde, à
época dos factos, partiam os voos comerciais para a Europa, principalmente, para
Portugal, Holanda, Itália e Espanha.
No total foram presas dez pessoas, incluindo os “correios” e os donos dos
202 quilos de cocaína apreendidos, quando pretendiam fazer a ligação entre a
39. http://asemana.publ.cv/spip.php?article73016&ak=1. Acessado em 09-07-12.
40. http://noticiasdonorte.publ.cv/6295/stj-reduz-pena-dos-lituanos-para-sete-anos-e-seis-meses/ Acessado
em 19-10-12.
172
ilha de São Vicente, local do desembarque da droga vinda da América Latina, e
a cidade da Praia, ponto a partir do qual a cocaína deveria seguir em direcção ao
continente europeu.
Outra importante organização criminosa que se dedicava ao tráfico de estupefacientes para a Europa foi desmantelada pela polícia judiciária, em Julho de
2005, na sequência da detenção de três “correios” transportando três malas com
sessenta quilos de cocaína.
Contavam com a colaboração passiva de alguns agentes da polícia nos postos
de scanner no aeroporto da ilha do Sal, recrutados pela organização e mediante
a recompensa de quatrocentos mil escudos (400.000$00) por cada mala de cocaína que se deixasse passarpelo serviço e controlo de bagagens na fronteira. Os
“correios” eram instruídos pela rede a não despacharem as malas com a droga
no serviço de “check in” do aeroporto, tendo em conta que já estaria garantida
a sua passagem, sem problemas, como bagagem de mão, no serviço de scanner,
tornando patente a perspectiva evidenciada por Oliveira (2004) de que o crime
organizado se caracterizapor envolver um grupo de indivíduos que tem as suas
actividades ilícitas sustentadas por atores estatais (por meio do oferecimento de
benesses ou actos de cooperação)41.
O serviço de “correio” para a Europa era assegurado, inicialmente, por tripulantes de cabine de umacompanhia aérea nacional42, mediante o pagamento de
trezentos mil escudos (300.000$00), por cada quilo transportado para a Europa.
Esses funcionários serviam ainda de informantes da rede, fornecendo detalhes
dos aeroportos na Europa nos quais o sistema de controlo e segurança era menos eficaz, o que permitiria a introdução da droga nesse continente com menos
riscos, conforme os factos relatados e dados como provados no Acordão n.º 98/
2010 do Supremo Tribunal de Justiça.
Com base em informações desses funcionários, o aeroporto de Bergamo43 na
Itália começou a ser explorado pela rede, por ser um destino com um sistema de
controlo mais facilitado, sendo difícil ser detectada a droga transportada.
41. http://www.espacoacademico.com.br/034/34coliveira.htm. Acesso em 03-07-12
42. Preferiu-se omitir o nome da companhia aérea.
43. O Aeroporto de Bergamo (oficialmente Aeroporto Internacional Orio al Serio) está 45 quilómetros a
nordeste de Milão, perto da cidade de Bergamo. Em 2005, Bergamo recebeu quase 4,5 milhões de passageiros.
173
Para tal, a partir do ano 2005, a rede passou a recrutar “correios” estrangeiros,
de nacionalidade portuguesa, espanhola, francesa e alemã, os quais, a pretexto
de visitarem o país como turistas, regressavam à Europa transportando,cada um
deles, entre quinze (15) e vinte (20) quilos de cocaína, contando sempre coma conivência dos agentes policiais no serviço de fronteira do aeroporto internacional
da ilha do Sal que faziam parte da organização criminosa, conforme o Acordão
n.º 98/2010 do Supremo Tribunal de Justiça.
Numa única viagem, um “correio” conseguia, através desse esquema, introduzir na Holanda, por exemplo, vinte (20) quilos de cocaína, transportados em
malas do tipo “carry on”.
Chegado à Europa, a missão estaria concluída, mediante a entrega do produto a outro elemento da rede, de quem apenas levavam um número de telefone
para contacto.
O dinheiro arrecadado com a venda da droga na Europa era enviado para
Cabo Verde, por vezes através dos próprios “correios”, sendo empregue na aquisição de lotes de terreno, apartamentos, automóveis, bem como na construção
de edifícios, recorrendo a empresas de fachada pertencentes aos membros da organização criminosa, conforme os factos relatados e dados como provados, no
Acordão n.º 98/ 2010 do Supremo Tribunal de Justiça.
O esquema utilizado pela organização começou a ruir quando três “correios”
estrangeiros foram interceptados pela polícia judiciária, ao tentarem embarcar
com sessenta quilos de cocaína com destino a Bergamo – Itália. As investigações
prosseguiram, valendo-se inclusive da cooperação judiciária internacional, até à
prisão efectiva do líder e demais membros da organização criminosa.
Com a condenação definitiva dos membros da rede, pelo Supremo Tribunal
de Justiça, com penas de prisão efectiva entre dez e vinte anos de reclusão, foram
declarados perdidos a favor do Estado todos os bens móveis e imóveis, bem como
os saldos das contas bancárias a eles pertencentes, que terão sido adquiridos com
os proventos da prática criminosa, conforme proferido no Acordão n.º 98/2010.
Essa organização criminosa apresentava, igualmente, as principais características apontadas pelas diferentes correntes teóricas que procuram definir e
caracterizar o crime organizado, vale dizer, a hierarquização da organização, a
divisão especializada de tarefas, o planeamento empresarial, a transnacionalidade
da prática criminosa, a penetração nos serviços do Estado, a previsão de lucros e
174
a existência de um processo de lavagem de capitais, com recurso ao sector imobiliário e ao mercado financeiro.
Nos voos comerciais, à entrada no país, principalmente na ligação Fortaleza
(Brasil) -Cidade da Praia, mas também à saída para a Europa, tem-se apreendido cocaína, dissimulada na bagagem dos “correios”, em fundo falso de malas,
entre objectos de vestuário e calçados, em capas de livros, em latas de conserva
de atum, dissolvida em produtos de higiene bucal, colada ao corpo, no ânus, na
vagina, de entre outras formas, factos suficientemente provados nos vários processos instruídos e julgados na comarca da Praia.
3.4 -“CORREIOS”
Os “correios” são, em regra, jovens desempregados,cuja faixa etária se situa
entre os 23 e os 30 anos, ou pessoas que alegam passar por dificuldades financeiras ou com familiares doentes (normalmente, pais ou filhos),que são aliciados
com a promessa de ganhar uma soma considerável de dinheiro, fazendo apenas
uma viagem,transportando a droga.Não conhecem o verdadeiro “dono” da cocaína, apenas os intermediários e, mesmo estes, normalmente usam nomes falsos,
o que torna difícil identificá-los, sendo, na sua maioria, nigerianos e senegaleses
residentes em Cabo Verde, de acordo com o perfil traçado numa investigação
do jornal ASemana, com recurso a entrevistas aalguns presos por transporte de
cocaína e auma Magistrada do Ministério Público44.
Esse intermediário paga-lhes a passagem aérea, os custos dealojamento e alimentação no Brasil, dando-lhes ainda algum dinheiro para comprarem roupas,
objectos de decoração, produtos de beleza e outros objectos nos quais possam
dissimular a droga.
No Brasil, ficam hospedados em hotéis, na cidade de São Paulo, e aguardam
o contacto de outro intermediário, o qual também desconhecem, e que lhes entregará a droga para transportarem.
Não há um preço fixo estipulado pelo serviço do “correio” da droga, havendo relatos de presos45, aos quais foram prometidos desde duzentos mil escudos
44. http://asemana.publ.cv/spip.php?article71587&ak=1. Acesso em 09-07-12.
45. http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article71587&ak=1. Acesso em 04-01-2012.
175
(200.000$00) até quinhentos mil escudos (500.000$00), o equivalente a um
montante aproximado entre os 1800 e 4500 euros, entrando na determinação do
preço a pagar, a experiência do “correio” no transporte de drogas e o grau de vulnerabilidade psicológico e financeiro em que a pessoa se encontra no momento
da abordagem para realizar o serviço.
Conhecem-se casos pontuais, envolvendo “correios” recrutados entre assistentes de bordo de umacompanhia aérea nacional para o transporte da cocaína,
de Cabo Verde para a Europa, designadamente Portugal e Holanda, contando
com as facilidades, inerentes à profissão, no serviço de controlo dos aeroportos, e
ainda com a complacência de alguns agentes policiais do serviço de emigração e
fronteiras, corrompidos pelas redes do narcotráfico.
Serve para ilustrar, a detenção de um assistente de bordo de uma companhia
aérea nacional, na posse de dois quilos (2kg) de cocaína, ocorrida a 3 de Agosto
de 2006, no aeroporto da Praia, antes de descolar viagem em direcção à Amsterdão, Holanda.
Esse mesmo indivíduo viria a ser assassinado a 6 de Dezembro de 2007,
dentro da sua cela, na cadeia de S. Martinho, enquanto aguardava o julgamento
preventivamente, suspeitando-se que a sua morte tenha sido “queima de arquivo”, tendo em conta que se predispôs a colaborar com a justiça no sentido de
identificar os outros elementos da organização.
Na sua maioria, os “correios” detidos nas fronteiras nacionais são cidadãos
cabo-verdianos, mas encontram-se também pessoas de outras nacionalidades,
como portugueses, brasileiros, angolanos, nigerianos e bissau-guineenses.
Nos últimos anos, tem-se registado uma mutaçãono modus operandi do
transporte executado pelos “correios”, que passaram a trazer quantidades menores de cocaína, optando-se por aumentar o número de pessoas que efectuam o
transporte, em função das medidas de controlo mais apertadas das autoridades
aeroportuárias, diminuindo o risco de sofrerem grandes perdas com a detenção
de um único “correio”.
176
De 2005 a 2011, foram detidos 713 “correios” de droga em Cabo Verde,
tanto à entrada como á saída do país46.
Conforme se pode observar no Quadro2, abaixo, os números das detenções
têm sofrido grandes oscilações ao longo do período (2005 a 2011), explicadas
pela disponibilidade de recursos materiais e humanos, postos à disposição da
Polícia Judiciária, vistas as grandes carências de meios que essa polícia científica
ainda enfrenta, enquanto entidade competente para realizar revistas dos passageiros e respectivas bagagens nos aeroportos do país; pela eficácia na troca de informações com os serviços de inteligência policiais de outros países envolvidos;e
ainda, na sequência de mudanças do modus operandi realizadas pelos transportadores da droga, sendo certo que é necessário algum tempo para as autoridades
conhecerem as novas tendências de dissimulação utilizadas pelos transportadores
de droga a cada momento.
Quadro 2- Número de detenções efectuadas, por tráfico de
droga, no período 2005-2011
Fonte: Polícia Judiciária de Cabo Verde
46. Dados dos Relatórios anuais da Polícia Judiciária de Cabo Verde.
177
A Figura 8 representa, graficamente, as oscilações ocorridas nas detenções
de passageiros transportando cocaína proveniente da América do Sul, principalmente do Brasil, e na saída do país com destino à Europa, durante o período de
2005 a2011, nos aeroportos da cidade da Praia e da ilha do Sal.
Fonte: Polícia Judiciária de Cabo Verde
Figura 8 - Evolução do número de “correios” detidos, 2005-2011
O elevado valor da cocaína, no mercado europeu, compensa eventuais perdas
decorrentes da prisão de alguns “correios”. O quilo da droga, vendido a mil e quinhentos euros (€1.500) num país produtor, como a Bolívia, por exemplo, chega a
valer quarenta mil euros (€40.000) do outro lado do Atlântico, sofrendo, assim,
um agravamento de 2567% no seu preço inicial, comprovando que são os traficantes, e não os produtores, os principais beneficiados com esse negócio ilícito.
3.5 - HOMICÍDIOS
Tem-se atribuído a disputas entre organizações rivais e, principalmente, a
traições ocorridas dentro de uma mesma organização, como dívidas contraídas
e não pagas entre os membros, ou ainda, casos de furto de drogas para benefício
particular em detrimento do colectivo, algumas dezenas de homicídios que têm
acontecido nos últimos anos no país, principalmente na cidade da Praia, e em
menor escala, nas ilhas de S. Vicente e do Fogo.
178
Os homicídios relacionados com o crime de tráfico de drogas fogem do padrão “comum” dos demais homicídios que vêmocorrendo, geralmente,emconsequência de brigas entre conhecidos, por motivos passionais, em situações que
configuram o latrocínio ou na sequência da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas.
Os homicídios ligados ao tráfico de estupefacientes,geralmente, são cometidos “por encomenda”, ou seja, o mandante contrata ou manda contratar uma
terceira pessoa para executar o crime, que, em regra, é perpetradoem plena via
pública, sendo a vítima atingida por vários disparos de armas de fogo de grandecalibre,manifestamente interditos a civis, e dificilmente são conhecidos os seus
autores, tanto pelo “profissionalismo” empregado na execução, como pelo medo
que se apodera das eventuais testemunhas oculares do crime, que recusam a prestar o seu depoimento relativo ao ocorrido.
“Homicídios por encomenda” ou na terminologia de Barreira (1998), crimes
de pistolagem. Embora com motivações diferentes, os crimes de pistolagem abordado pelo autor de “Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário
brasileiro” têm, historicamente, duas grandes causas, o voto e a terra, enquanto
os homicídios por encomenda, objectos de análise neste estudo, cobrem apenas
os marcadamente associados ao tráfico de drogas.
Apesar disso, algumas características são comuns a essas realidades tão diferentes, para que esses homicídios possam ser considerados “por encomenda”
ou de “pistolagem”, como o facto de serem cometidos por um terceiro, que ofaz
em troca de pagamento em dinheiro ou por uma dívida moral ou económica,
havendo, portanto, um mandante da acção que é quem paga pelo serviço (BARREIRA, 1998).
Normalmente, nessa relação entre o mandante e o executante, há um actor,
elo fundamental, que concorre directamente para o sucesso desse tipo de delito,
o “agenciador” ou “corretor” da morte, ou seja, o intermediário. É este actor que
arquitecta o crime, prepara psicologicamente o pistoleiro e dá cobertura judicial,
no caso de ele ser levado a julgamento conforme relata Lima (2009)47.
Existe uma relação de lealdade entre o “pistoleiro” e o mandante, que faz com
que aquele não denuncie este, em caso da sua prisão, levando a que a justiça não
47 http://www2.forumseguranca.org.br/node/22736/. Acesso em 09-07-12
179
consigaprender, julgar e condenar os mandantes desse tipo de crime, centrandose apenas no “pistoleiro”, ficando o mandante e o intermediário sem qualquer
punição, na perspectiva de Lima (2009), analisando a obra de Barreira (1998).
Em Cabo Verde, apesar de ser um fenómemo bastante recente e, essencialmente, ligado ao tráfico de drogas, não há relatos de homicídios por encomenda
associados a actividades políticas ou pela disputa da terra, como referido por Barreira (1998).Os casos de conhecimento público, em fase de investigação criminal
ou já julgados e condenados pelos tribunais, apontam que o perfil do “pistoleiro”
em Cabo Verde é,geralmente, um jovem cidadão cabo-verdiano, deportado dos
Estados Unidos da América pela prática de crimes violentos, ou, ainda, cidadãos
estrangeiros recrutados e enviados ao país pororganizações criminosas, com a
única finalidade de cometer o homicídio, conforme as informações prestadas,em
conversa com o Director Nacional Adjunto da Polícia Judiciária.
A opção por esses criminososéjustificada pela perícia técnica que possuem,
fruto de vivências noutras realidades, habituados a esse tipo de fenómeno, garantindo-se, deste modo, por um lado, a eficácia da execução e, igualmente importante, por outro lado, dificultando a descoberta da identidade dos envolvidos
(executante, intermediário e mandante).
É interessante observar ainda que, de acordo com o descrito por Barreira
(1998), a figura do “pistoleiro”, que antes agia apenas no campo, passou a ocupar
os espaços urbanos, pelo aumento da demanda por seus serviços e pelas várias
possibilidades proporcionadas por esses ambientes, como a facilidade para fugas,
utilização de motos e capacetes que, além da agilidade na fuga, servem de disfarce, dificultando a identificação dos autores dos crimes, sendo que há relatos
do mesmo modus operandi em crimes de homicídio ligados ao tráfico de drogas,
praticados em Cabo Verde.
Do ponto de vista da ciência jurídica, convem realçar que, tanto o “crime de
pistolagem” no Brasil como o “homicídio por encomenda” em Cabo Verde, não
são assim designados pelos códigos penais dos dois países, sendo apenas figuras
linguísticas constituídas culturalmente48.
O código penal pátrio reconhece o crime de homicídio mediante paga ou recompensa ou sua promessa como agravante do crime de homicídio, em razão dos
48 http://www.apavv.org.br/artigos/art31.htm. Acesso em 09-07-12
180
meios ou motivos para o seu cometimento, previsto no seu artigo 123º, evidenciando, assim, a existência de, pelo menos, dois agentes da acção: o mandante,
que paga ou promete pagar, e o executante, que cumpre e recebe a sua recompensa pelo crime praticado.
Normalmente, a vítima é seguida durante algum tempo pelo seu algoz,de
maneira a este conhecer as suas rotinas e vulnerabilidades, certificando-se do
momento mais propício para consumar a execução, sem risco de falha.
Quando esse tipo de homicídio acontece, gera comoção na sociedade, tendo
em conta o modus operandi que os seus autores usam, não importando que seja
praticado à luz do dia e em plena via pública, sempre com extraordinária violência.
3.6 - LAVAGEM DE CAPITAIS
Simultaneamente ao tráfico de estupefacientes, há sinais do desenvolvimento
de uma economia paralela em Cabo Verde, através de esquemas de lavagem de
capitais, envolvendo a criação de empresas de fachada, cujo principal objectivo
é, a dissimulação dos proventos do crime, sabendo-se que o êxito de qualquer
actividade do crime organizado depende, em grande medida, do seu sucesso em
ocultar as origens dos fundos e em “lavar” os rendimentos, utilizando, para tal,
os sistemas financeiros nacional e internacional.
Tradicionalmente, define-se a lavagem de dinheiro como um conjunto de
operações, por meio das quais os bens, direitos e valores obtidos com a prática
de crimes são integrados no sistema económico-financeiro, com a aparência de
terem sido auferidos de maneira lícita.
O Grupo de Acção Financeira (GAFI)49, reconhecido como a organização
internacional que estabelece os padrões normativos, em forma de recomendações
aos Estados, para a constituição e reforço dos seus sistemas preventivos e repressivos à lavagem de capitais, apresenta, de forma sintética, o conceito de lavagem
de capitais como sendo “a utilização e transformação de produtos do crime para
dissimular a sua origem ilícita, com o objectivo de legitimar os proventos resul49. O Grupo de Acção Financeira (GAFI) é um organismo intergovernamental criado em 1989, com o
objectivo de elaborar normas e de promover a aplicação eficaz de medidas legislativas, regulamentares
e operacionais em matéria da luta contra a lavagem de capitais e financiamento do terrorismo e outras
ameaças à integridade do sistema financeiro.
181
tantes da actividade criminosa50.
A “lavagem”, ou a ocultação de bens, direitos e valores, constitui uma ameaça
grave aos Estados, pelos efeitos macroeconómicos nocivos que pode causar, com
a súbita migração de capitais, pelas distorções que provoca no mercado, eliminando a livre e sã concorrência, e também por nutrir o submundo que, através
docrime, corrói e desmoraliza as instituições democráticas.
Actuando em diversos sectores da economia nacional, como a construção civil, o turismo, o imobiliário, a restauração, a diversão nocturna, de entre outros,
essas empresas desvirtuam o mercado, com a prática de uma concorrência desleal
em relação aos demais operadores, pois a elas não interessa muito mais do que
dar uma aparência lícita ao elevado lucro obtido com o tráfico de estupefacientes,
afastando, o mais possível, a ligação entre esses valores e o crime praticado.
Tem-se verificado a prática da lavagem de capitais em Cabo Verde em todas as suas três fases clássicas: a Colocação ou Placement, quando o dinheiro
proveniente da actividade ilícita é depositado junto das instituições de crédito,
preferencialmente nos bancos, muitas vezes recorrendo-se ao Smurfing, técnica
segundo a qual uma grande soma em dinheiro é dividida em parcelas pequenas
para ser depositada sem levantar suspeitas;seguida da fase da Ocultação,Transformação ou Layering,evidenciado por um emaranhado de complexas transacções
financeiras,em que esses montantes são transferidos para outras contas do depositante ou para outros clientes no mesmo banco ou em bancos diferentes ou, ainda,
transferidos para o exterior,dificultando,ao máximo,o seu rastreamento por parte
das autoridades;e, finalmente, na fase da Integração ou Integration, quando o
dinheiro é reintroduzido no sistema económico-financeiro, através da aquisição
de bens móveis e imóveis, eliminando o rasto originariamente ilícito, consoante
os dados do Relatório de Actividades da Unidade de Informação Financeira de
2011.
Completando-se essas três etapas, o crime organizado terá realizado, com
sucesso, a sua actividade e atingido a sua finalidade máxima de obter enormes
proveitos, por meio de práticas delituosas e com elevados prejuízos para toda a
sociedade.
50. GAFI, Perguntas Frequentes, O que é lavagem de capitais? http://www.fatf-gafi.org/fr/pages/foireauxquestionsfaq/blanchimentdecapitaux/. Acesso em 15-05-12.
182
Estima-se que essa economia paralela movimentou em Cabo Verde, durante
o ano de 2010, um valor aproximado de 1,88 mil milhões de escudos, equivalente
a 1,52% do PIB51, e, em 2011, um montante aproximado de 5,36 mil milhões
de escudos, o correspondente a 4% do PIB nacional52, conforme se pode observar na Figura 9, evidenciando uma tendência para o crescimento do peso dessa
actividade, no todo da economia cabo-verdiana, trazendo, atrelado a si, todas as
consequências nefastas que a lavagem de capitais acarreta para uma sociedade53.
Fonte: Unidade de Informação Financeira
Figura 9 - Montantes envolvidos nas COS
Assiste-se actualmente, na sequência das grandes apreensões de droga, ao
empenho das autoridades nacionais no desmantelamento dessas organizações
criminosas, com enfoque na recuperação dos bens adquiridos pelos seus membros nos esquemas de lavagem decapitais, conforme espelhado no Quadro 3,
abaixo, sendo que a soma total desses activos ilícitos, no período em referência
(2004 a 2011), ultrapassa os dez milhões de euros, (€10.000.000), valor bastante
considerável numa pequena economia como a de Cabo Verde.
51. Fonte: Relatório da Unidade de Informação Financeira de 2010.
52. Fonte: Relatório da Unidade de Informação Financeira de 2011.
53. O Produto Interno Bruto, estimado, de Cabo Verde em 2011 foi de 133,115 mil milhões de CVE.
183
Quadro 3- Apreensão de activos ilícitos no âmbito do combate
ao tráfico de drogas e lavagem de capitais
Fonte: Direcção Nacional da Polícia Judiciária
O valor das apreensões feitas pelas autoridades representa quase seis por cento (6%) do Orçamento do Estado cabo-verdiano para 2012. As investigações em
curso já permitiram a apreensão, em dinheiro, de meio milhão de contos (4,5
milhões de euros) e o congelamento de bens no valor de um milhão de contos
(9,06 milhões de euros).54
Foram declarados revertidos, em definitivo, a favor do Estado, bens avaliados
no montante de dois milhões de contos (18,1 milhões de euros).
O Quadro 4 reflecte as apreensões de cocaína feitas pela Polícia Nacional e
pela Polícia Judiciária, a partir do ano de 1990 até o de 2011, com a ressalva de
que, em alguns anos nesse intervalo, não há registos das apreensões feitas.
A oscilação é bastante grande no período em referência,explicada pelas mesmas razões das oscilações referentes às detenções dos traficantes, tais como a
maior ou menor disponibilidade de recursos materiais e humanos postos à disposição da Polícia Judiciária,a eficácia na troca de informações com os serviços
de inteligência policiais de outros países envolvidos,conforme os acordos de cooperação existentes, ou ainda as mudanças do modus operandidas organizações
criminosas nos meios de transporte ou de dissimulação da droga, sendo certo que
é necessário algum tempo para as autoridades conhecerem as novas tendências e
a partir daí traçar novas estratégias de prevenção e combate.
54. Declarações da Ministra da Administração Interna de Cabo Verde, disponível em: http://www.asemana.
publ.cv/spip.php?article75440&ak=1#ancre_comm. Acesso em 24/04/12.
184
O destaque vai claramente para o último ano, 2011, onde o volume apreendido ultrapassa uma tonelada e meia (1.532 kg), sendo 1501 kg numa única apreensão.
Quadro 4 - Cocaína apreendida em Cabo Verde
Anos
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
TOTAL
Cocaína apreendida KG
540
40
?
0
?
89.459
2.779,69
80.915,24
2.108,57
6.963,48
6.970
?
41.820
16.350
333.670
156.821
43.257,01
534.763,63
195.541,34
34.572,29
65.295
1.532.791,54
3.144.658,08
Fonte: Polícia Judiciária
Além dessas apreensões de cocaína efectuadas em Cabo Verde pelas autoridades policiais nacionais, o país tem sido, igualmente, referenciado em apreensões
feitas em diversas regiões do globo, como rota de passagem da droga, confirmando a sua condição como país privilegiado de trânsito de estupefacientes oriundos
da América do Sul.
Dados compilados pela ONUDC e reflectidos no Quadro 5, abaixo, servem
para ilustrar essas referências, tendo sido apreendidas grandes quantidades de
drogas em países tão distantes como por exemplo a Austrália, em 2001, tendo a
embarcação passado por Cabo Verde antes de rumar para o porto de destino em
Dulverton Bay, tendo a bordo 938 kg de cocaína.
185
Quadro 5 - Apreensões de droga em embarcações com ligação a Cabo
Verde,2000-2007
Fonte: ONUDC 2012.
186
Como foi demonstrado neste capítulo, com base em consultas a processos
judiciais, a notícias dos jornais e em entrevistas aos responsáveis pelas operações
policiais e judiciais, foi possível precisar a rota transnacional de tráfico de cocaína
de que Cabo Verde faz parte, com origem na América do Sul, com destaque para
o Brasil, transitando pela África Ocidental e com destino final a Europa.
Com base nas mesmas fontes, apresentamos os principais meios e estratégias
utilizados pelos narcotraficantes para introduzir a droga no país, bem como no
seu reenvio para o destino final.
Socorrendo-se de alguns casos exemplares de operações policiais de desmantelamento de organizações criminosas actuantes no país, descrevemos as suas
formas de actuação, tanto pela via aérea como pela marítima, o papel desempenhado pelos chamados “correios” de droga, o surgimento dos homicídios por encomenda, destacando-se as principais diferenças que apresentam em relação aos
homicídios ocasionais que ocorrem no país e a implementação de uma indústria
de lavagem de capitais, que se encontra actualmente em pleno florescimento e
que periga a sustentabilidade da economia legal.
Finalmente, apontamos os sinais que o Estado de Cabo Verde tem dado no
combate ao crime organizado, evitando que o país se torne em porto seguro para
as organizações criminosas transnacionais.
187
CAPÍTULO IV
OS IMPACTOS DA CRIMINALIDADE EM CABO
VERDE
Neste capítulo, procederemos à análise dos dados criminais do país, a partir
do ano 2000, marco da Paralelamente, analisaremos os resultados do inquérito
efectuado junto das autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade no
país, quais sejam, a Polícia Nacional, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e
os Juízes criminais.
Na sequência da aplicaçãodo questionário submetido a essas autoridades,estes começaram por determinar o período a partir do qual o país começou a
observar o trânsito transnacional da cocaína e, com base nesse momento, fizeram uma apreciação da tipologia e frequência dos crimes praticados antes desse
período e as alterações ocorridas posteriormente, sob o impacto dessa exposição
do arquipélago ao narcotráfico transnacional.
A nossa análise incidirá sobre a evolução dos crimes apontados como conexos
ao tráfico de estupefacientes, tais como o roubo, a posse ilegal de arma de fogo,
o homicídio e a lavagem de capitais.
Dos vinte e um (21) inquiridos, a maioria, que representa 57% do total, considera que o crime de tráfico de estupefacientes/cocaína começou a ser observado
em Cabo Verde no período anterior a 1990 e que os seus efeitos práticos só se
vieram a verificar, com maior predominância, no período entre 1990 e 1995.
Em entrevista concedida no dia 04 de Agosto de 2005 ao Voice of América55,
o então Director Nacional da Polícia Judiciária, Virgílio Varela, apontava o início do consumo e do tráfico de drogas em Cabo Verde para essa mesma época,
corroborando as respostas agora obtidas, afirmando que:
O consumo da cannabis terá começado nos anos 70 e o consumo da heroína e da
cocaína nos finais dos anos 80, princípio da década de 90. É evidente que há gente
a vender, por isso é que a policia judiciária, para além do combate ao grande tráfico,
55. www.voanews.com/portuguese/archive/2005-08/2005. Acesso em 15-03-2010.
188
tem apostado também na repressão do tráfico interno, desse pequeno tráfico que é
também o principal responsável pelo aumento dos crimes contra a propriedade, nomeadamente furtos e roubos, e acaba também por induzir a um aumento da situação
de insegurança.
Respondendo detalhadamente aos impactos do tráfico de estupefacientes nos
dados da criminalidade interna, os inquiridos consideram que, apesar de já existirem alguns sinais dos efeitos do crime de tráfico de drogas em 1990, os seus
efeitos, nomeadamente nos crimes de homicídio simples e qualificado, tinham
pouca predominância, ou seja, eram menos frequentes e, após esse período, passou a ser moderada ou frequente, conforme demonstram os gráficosda Figura
10, sendo a imagem V3a percepção das autoridades,referente ao período antes
da passagem da cocaína pelo país e a imagem V6 já sob a influência do crime do
tráfico transnacional.
Esses gráficos foram elaborados com recursoao conhecido softwareSPSS e
com base no cruzamento das respostas dadas pelas autoridades inquiridas.
189
Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário
Figura 10 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de homicídio,
antes e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde
Relativamente ao crime de posse ilegal de arma de fogo, o mesmo já se notava
com alguma frequência antes de 1990, tornando-se muito frequente após esse
período.
Em relação ao crime de furto qualificado, que já no período antes de 1990
demandavaalguma atenção, apesar de moderada, no período após 1990 tornou-se muito preocupante, passando a ser muito frequente a prática desse tipo de
crime contra a propriedade.
Quanto aos crimes de roubo e roubo qualificado, verifica-se o mesmo fenómeno, em que no período anterior a 1990 já apresentavam alguma preocupação,
com incidência moderada e alguma frequência, respectivamente,passandoa acontecer com frequência ou muita frequência após essa data.
190
O aumento registado nos chamados de crimes violentos, conexos ao tráfico
de estupefacientes, estará ligado, principalmente, ao mercado consumidor, embora de dimensões reduzidas, entretanto formado pela passagem da cocaína por
Cabo Verde, tendo em conta que parte da droga é utilizada para pagamento do
serviço prestado pelos locais.
Os consumidores ávidos para saciarem o vício e sem meios financeiros que
os permitem fazê-lo socorrem-se de outros meios, como o roubo, para obterem o
valor necessário para adquirirem a droga.
O estudo sobre a criminalidade em Cabo Verde - II Fase, realizado pela
CCCD, em parceria com a ONUDC (2009), indicou que a população cabo-verdiana elege o consumo de drogas como a segunda maior causa da criminalidade
no país.
Os inquiridos nesse estudo entendem que as principais causas da criminalidade no país são as seguintes: desemprego (42%); consumo de drogas (39%);
pobreza (23%); problemas familiares (15%) e deficitde educação (19%).
Esse mesmo estudo revela que, dos crimes que causam maior ameaça no
bairro dos inquiridos, o tráfico de drogas vem em segundo lugar, com 26%, logo
a seguir ao homicídio, com 45%.
Os crimes de homicídio estarão ligados a conflitos que ocorrem dentro das
organizações criminosas, principalmente por traição entre os seus elementos que,
com alguma frequência, se apropriam de parte da droga armazenada ou não
conseguemsaldar as suas dívidas para com a organização.
Outro crime conexo ao tráfico de estupefacientes é a lavagem de capitais que,
com base nas respostas das autoridades ao inquérito, era inexistente ou desconhecido em Cabo Verde, antes de 1990. Após a observação do crime de tráfico
de drogas, este fenómeno passou a ser frequente ou muito frequente, de acordo
com as respostas obtidas e que se constatam da análise dos gráficos da Figura 11,
sendo a imagem V3 correspondente ao período antes do trânsito da cocaína por
Cabo Verde e a imagem V6 relativa ao período actual.
191
Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário
Figura 11 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de lavagem de
capitais, antes e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde
192
Aos mesmos inquiridos, foi perguntado sobre a tendência que se tem verificado em relação ao crime de tráfico de drogas no país. A maioria, ou seja 52,4%,
entende que tem aumentado e 42,9% acha que tem estabilizado, restando apenas
4,8% que acredita ter diminuído.
Respondendo sobre a tendência que se tem verificado em relação aos crimes
conexos ao tráfico de drogas, a larga maioria dos inquiridos, 76,2%, entende que
têm aumentado nos últimos anos.
A Figura 12 reflecte essa constatação, exemplificado com o crime de roubo
que, de acordo com as autoridades entrevistadas, antes da entrada do país na rota
do narcotráfico transnacional tinha uma tendência moderada, representada na
imagem V3 e, actualmente, influenciada por esse crime, para além de outros factores, apresenta-se de forma frequente ou muito frequente, conforme a imagem
V6.
193
Fonte: Elaborado a partir das respostas das autoridades ao questionário
Figura 12 - Apreciação das autoridades sobre a evolução do crime de roubo, antes
e depois do trânsito da cocaína por Cabo Verde
194
Essa percepção das autoridades policiais e judiciais é corroborada pelos dados quantitativos das estatísticas criminais do país, que demonstram tendência
para um aumento dos crimes correlacionados com o tráfico de estupefacientes,
como são os casos de roubo, homicídio e posse de arma de fogo. Esses crimes têm
crescido, ao longo dos últimos dez anos, a um ritmo muito superior à média dos
demais crimes não directamente correlacionados com o tráfico de estupefacientes, conforme representado nafigura abaixo. Enquanto os crimes correlacionados
com o tráfico de estupefacientes cresceram a partir do ano 2000 de forma acentuada, sofrendo oscliações frequentes e com picos em determinados períodos,
os outros crimes não directamente correlacionados com o tráfico seguiram uma
tendência mais constante, com poucas oscilações ao longo do período em análise
(ver Figura 13).
Fonte: Elaborado a partir dos dados dos Relatórios da criminalidade no país, cedidos pela Polícia Nacional
Figura 13 - Evolução dos crimes conexos ao tráfico e de outros crimes
Ligados ao consumo de estupefacientes, ou seja, ao mercado local, aumentaram os crimes de furto e roubo, claramente para a obtenção de meios para o sustento do vício, enquanto, em decorrência da actividade logística das organizações
criminosas, proliferaram os homicídios por encomenda, motivados por disputas
internas ou entreestruturas concorrentes, crimes esses com enorme impacto no
sentimento de insegurança da sociedade, tendo em conta o “modus operandi”
que é utilizado.
195
Estudos já realizados noutros países apontam neste mesmo sentido, como
assinala Zaluar (2004, p. 61):
Se a justiça não pode ser accionada por causa da ilegalidade do empreendimento,
as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafectos e rivais, para
dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre
comparsas e policiais, garantindo a impunidade.
Nesta mesma perspectiva, escreve Beato (2001, p.2):
Existem várias maneiras pelas quais os crimes podem estar associados à questão das
drogas. A primeira delas está relacionada com os efeitos das substâncias tóxicas no
comportamento das pessoas. Outra forma de associação decorre do fato de tais substâncias serem comercializadas ilegalmente, gerando então violência entre traficantes,
corrupção de representantes do sistema da justiça criminal e acções criminosas de
individuos em busca de recursos para a manutenção do vício.
Quanto à proveniência da cocaína que passa por Cabo Verde há uma unanimidade dos inquiridos, vale dizer, 100% responderamque a origem é a América
Latina. Entretanto, 19% apontaram ainda a África como procedência de alguma
droga/cocaína que circula pelo país.
Em relação ao destino final da cocaína que é apreendida no território nacional, 100% dos inquiridos responderamque se destinava a outros destinos, mais
precisamente àEuropa.
As respostas de forma unânime a essas duas questões, aliadas aos dados das
apreensões decocaína pelas autoridades nacionais, confirmam a rota da América
Latina para Europa, com passagem por Cabo Verde, bem como outra que chega
ao país após passar pela costa ocidental africana, também em direcção ao continente europeu.
Os inquiridos, da mesma forma, responderam unanimemente, pela negativa,
ou seja, 100% disseram que não, quando questionados se Cabo Verde dispõe de
um mercado interno que justifique as grandes apreensões de cocaína.
Assim sendo, facilmente se pode concluir que as grandes quantidades de drogas ilícitas que têm sido apreendidas nos portos e aeroportos nacionais à entrada,
não se destinavam ao consumo interno, conclusão que, aliás, é corroborada pelas
grandes apreensões igualmente feitas pelas autoridades cabo-verdianas à saída do
país, tanto pela via aérea como pela marítima, conforme comprovam os dados
estatísticos da Polícia Judiciária cabo-verdiana.
196
Questionados sobre os meios de transporte utilizados para fazer chegar a
cocaína aopaís, a maioria, 76,2%, entende que é a conjugação de meios aéreo e
marítimo, 28,6% dos inquiridos acham que é por via aérea, e 23,8% pensam que
é por via marítima. Em relação à saída da droga do país, 66,7% entendem que é
pela combinação de meios aéreo e marítimo, 33,3% pensam que é por via aérea e
23,8% acham que é por via marítima.
As respostas obtidas dos inquiridos, no que se refere aos meios de transporte
utilizados pelos traficantes para fazer chegar e escoar a droga do país, vãoao encontro aos registos das apreensões de cocaína que têm sido feitas, tanto quando
transportados pela via aérea como pela via marítima.
Quanto às estratégias utilizadas pelos traficantes para ludibriar as autoridades na introdução da droga no país, numa pergunta com respostas múltiplas,
95,2% optaram por assinalar “dissimulado no meio da bagagem”, 85,7% indicaram o“organismo”, 85,7% apontaram “ocultado no corpo”, 76,2% indicaram
“em contentores” e 33,3% anotaram “outras” estratégias. Na saída da droga do
país, os inquiridos indicaram “dissimulado no meio da bagagem” 95,2%, no
“organismo” 66,7%, “ocultado no corpo” 81%, “emcontentores” 81% e 23,8%
apontaram “outras” estratégias.
Respondendo à pergunta se o tráfico de drogas em Cabo Verde poderá ser
atribuída ao crime organizado, todos os inquiridos (100%) responderam afirmativamente, tendo-se apurado,igualmente,a mesma percentagem em relação
àquestão se acreditam que existam, no país, grupos ou elementos que façam parte
de organizações criminosas internacionais.
Perguntados se ocorreu no país,nos últimos anos, algum crime de homicídio ligado a disputas entre organizações criminosas rivais, 100% dos inquiridos
responderam afirmativamente e, destes, 90,5% apontarama “traição” ocorrida
dentro de uma organização criminosa, como motivo para o crime de homicídio.
Esse posicionamento dos inquiridos encontra respaldo na literatura especializada, conforme assinalada anteriormente por alguns autores, no sentido de que
a variedade sistémica da violência associada à droga interessa-nos mais de perto,
em razão de implicar guerras por territórios entre traficantes rivais, agressões e
homicídios no interior da hierarquia de vendedores, como forma de reforço dos
códigos normativos, roubos de drogas por parte dos traficantes, com retaliações
violentas de outros traficantes e de seus patrões, eliminação de informantes e
197
punições por vender drogas adulteradas ou por não conseguir quitar débitos com
vendedores (GOLDSTEIN, 1987, apud HUNT, 1990).
As organizações criminosas são cada vez mais violentas, lutam entre si, em
domínios de pontos de venda e do medo como prática para a sua manutenção. O
mundo da droga é muito rentável, traficantes ganham muito, mas, normalmente,vivem pouco (ROSA, 2003).
Este tipo de violência decorre por não haver formas legais de resolução de
conflitos entre traficantes e usuários. Daí muitos estudos ressaltarem que, mais
do que o uso, é a venda de drogas que está associada aos homicídios (CHAIKEN
e CHAIKEN, 1990; ZALUAR, 1984).
Quanto à questão se o tráfico de drogas tem contribuído para o aumento da
prática de outros crimes, os inquiridos foram unânimes, todos responderam que
sim, ou seja, 100% e, destes, 95,2% concordam que tem havido muitas condenações pela prática do crime de tráfico de drogas em Cabo Verde.
Aliás, essa correlação entre o tráfico de drogas e o aumento da prática de outros crimes tem sido alvo de estudos noutras paragens, como no Brasil, por exemplo, país cujas grandes metrópoles urbanas têm assistido a um incremento do
consumo e da distribuição da cocaína desde o início dos anos 80eonde a questão
do mercado informal de drogas ganhou relevância, pelo facto de lhe ser imputada
a principal responsabilidade pelo notável aumento da violência nas grandes cidades, especialmente no Rio de Janeiro, desde o final dos anos 70 (MISSE, 1995).
Diversas formas de associação entre crimes predatórios e drogas têm sido estudadas na literatura. Normalmente, relacionam a afinidade entre o uso de drogas e a propensão para cometer crimes, formas de financiamento da dependência,
crises de abstinência, formas de resolução de conflitos extra-legais e necessidade
de armas caras para tais fins (JOHNSON et al., 1990).
A corrupção policial, o mercado da droga, a presença de quadrilhas e a desigualdade social são apontados como os principais influenciadores das práticas
criminosas,assevera Zaluar (2002).
Ainda, segundo Beato e Reis (1999), o temor apresentado pela população, no
que diz respeito à violência associada ao tráfico de drogas não é de todo infundado. Dados dos municípios de Minas Gerais, Brasil, demonstram que a incidência
de ocorrências relacionadas a drogas (uso e venda) mantém importante correla198
ção com o número de crimes violentos56.
Muitos usuários esgotam rapidamente seus recursos legais para consumo de
drogas, recorrendo depois a diversas modalidades de delitos para levantar recursos, tais como assalto a transeuntes, a ônibus, a postos de combustíveis ou a casas
lotéricas (BEATO, 2001).
Nessa mesma perspectiva escreve Adorno (2002, p. 7-8).
Cada vez mais, o crime organizado segundo moldes empresariais e com bases transnacionais vai-se impondo, colonizando e conectando diferentes formas de criminalidade (crimes contra a pessoa, contra o património, contra o
sistema financeiro, contra a economia popular). Seus sintomas mais visíveis
compreendem emprego de violência excessiva mediante uso de potentes armas de fogo.
Estes dados quantitativos e qualitativos vão de encontro ao estudo realizado
pela Afrosondagem (2007), tendo-se apurado que, em 1996, foram registados
28 crimes por cada 1.000 habitantes, a nível nacional. Passados 11 anos, esse
número aumentou para 38 ocorrências por 1.000 habitantes. Conclui o mesmo
documento que, se tivermos em conta as taxas de crescimento médias anuais
entre 1996 e 2007, facilmente se constata que a taxa de crescimento média anual
da criminalidade está a crescer e é mais do dobro da taxa de crescimento média
anual da população. Esta tem estado a crescer à taxa de 2,17%, contra 5,10% do
crescimento das ocorrências criminais, razão pela qual as ocorrências criminais
quase 36% nesse período.
4.1 – OS PRESOS POR TRÁFICO DE DROGAS EM CABO
VERDE
Neste ponto,faremos um estudo dos dados referentes aos presos nas duas
cadeias centrais do país, a cadeia da Ribeirinha, em São Vicente, e a cadeia de
São Martinho, na cidade da Praia, incidindo sobre a análise da evolução dos
presos por tráfico de estupefacientes, em comparação com o total da população
carcerária dopaís, nesse mesmo período, incluindo a variante por sexo do preso.
A opção por analisar apenas os presos nessas duas cadeias centrais, apesar
56. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2001000500017&script=sci_arttext. Acesso em 10-0712
199
da existência de cadeias regionais nas outras ilhas, prende-se ao facto de que os
condenados por tráfico de estupefacientes, da cocaína no caso concreto, são todos
sentenciados com penas de prisão efectiva superior a dois anos, o que pressupõe o
encarceramento numa das cadeias centrais existentes no país57.
A análise é feita a partir de dados oficiais recolhidos junto da Direcção Geral
dos Serviços Penitenciários, entidade estatal responsável pela centralização das
estatísticas prisionais a nível nacional, tendo por ano base o ano 2000, data a
partir da qual existem dados oficiais eque abarcamo período até o ano de 2011.
No ano 2000, numa população carcerária nacional de quinhentos e setenta
e seis indivíduos (576), somente cinquenta e seis (56) estavam presos pela prática
do crime de tráfico de estupefacientes, conforme representado na Figura 14, sendo cinquenta e quatro (54) homens e duas (2) mulheres.Os presos por tráfico de
estupefacientes representavam, nessa data, apenas 9.72% do total de presos em
Cabo Verde.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 14 - Total de Presos por tráfico a nível nacional
57. Decreto-Lei n.º 25/88, de 26 de Março - Artigo 116º 1. As Cadeias Centrais são os estabelecimentos
prisionais destinados à execução de quaisquer medidas de liberdade de duração superior a dois anos e de
prisão preventiva. 2. As Cadeias Centrais são as cadeias civis situadas nas sedes das Regiões Judiciais da
Praia e S. Vicente.
200
A Figura 15 mostra que os números relativos aos presos por tráfico de estupefacientes foram aumentando,gradativamente, ao longo dos anos seguintes,
tendo atingido 141indivíduos no ano de 2004, para um total de 858 presos, o que
representa 16,43% do total. Nesse ano, a análise por sexo indicava 119 homens e
22 mulheres encarcerados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, de
acordo com a figura abaixo. O crescimento registado entre o ano base (2000) e o
ano de 2004 foi de 151,79%.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 15 - Total de presos por tráfico a nível nacional, de acordo com o sexo
A tendência crescente manteve-se nos anos seguintes, até se registar uma
aceleração mais acentuada a partir do ano 2006, quando o número de presos por
tráficoera de 157 indivíduos num total de 882 presos, ou seja, 17, 8%.
Verifica-se, assim, que já em 2007 o total de pessoas presas por tráfico de
estupefacientes era de 214, numa população carcerária composta por 962 indivíduos, o que corresponde a 22,25% do total.
No ano imediatamente a seguir, em 2008, atingiu-se o pico do período em
análise, com 249 indivíduos presos por tráfico de estupefacientes, do total de 995
pessoas presas a nível nacional, alcançando a maior percentagem do período em
estudo, 25,03%, ou seja, os presos por tráfico de estupefacientes correspondiam
a ¼ da população carcerária do país.Nos anos seguintes, registou-se uma ligeira
redução da proporção, fixando-se em 19,19% no último ano de observação, 2011,
201
conforme se pode observar na Figura 16 infra.
Esse percentual elevado de presos por tráfico de estupefacientes nas cadeias
centrais do país é comparável, por exemplo, com os dados do Brasil, importante
país de trânsito, além de mercado consumidor, onde, de acordo com os dados doSistema Integrado de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), enquanto a população carcerária como um todo aumentou
1,7 vezes (de 294 mil para 514 mil), entre os anos de 2005 e 2011, a quantidade
de presos por tráfico cresceu quase quatro vezes (de 32 mil para 125 mil)58.
No Brasil, 24% dos presos cumprem pena por tráfico de drogas, segundo os
dados de 2011 do Depen, órgão do Ministério da Justiça.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 16 - Evolução percentual dos presos por tráfico de estupefacientes emCabo
Verde
Esse pico de prisões por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, no ano de
2008, conforme mostra a figura acima, poderá ser parcialmente explicado pelo
extraordinário reforço das autoridades de combate ao tráfico de estupefacientes,
ocorrido em 2007, tendo como exemplo a polícia judiciária, que teve o seu efectivo de pessoal de investigação aumentado em 100%.
58. http://w w w1.folha.uol.com.br/cotidiano/1089429-trafico-de-drogas-e-motivo-de-24-das-prisoes-do-pais.shtml
202
Aliado ao factor acima exposto, o aumento de prisões por tráfico de estupefacientes poderá também ser explicado pelo reforço da cooperação internacional
do país com as agências internacionais de prevenção e combate ao tráfico de
estupefacientes, como é o caso do programa integrado de combate à droga e
crime (Programa Cave Intercrin), assinado, em 2005, entre oGoverno de Cabo
Verde eo Escritório Regional do ONUDC, que incluía, entre outros projectos, o
Projecto ANTRAF (Antitráfico).
O projecto ANTRAF tem como objectivo de longo prazo reforçar as capacidades das agências de aplicação da lei na luta contra o narcotráfico e o crime
organizado.
De modo global, o projecto visa reforçar as capacidades das agências de aplicação da lei na luta contra todas as formas de crime organizado.
Para atingir este objectivo de longo prazo, foram fixados os seguintes objectivos imediatos:a) Reforçar o controlo das fronteiras através do aumento das
capacidades de mobilidade, comunicação e inteligência; b) Reforçar as capacidades de prevenção e reacção, em matéria de manutenção da ordem, através do
aumento das capacidades de patrulha e comunicação; c) Reforçar as capacidades
de detecção e interdição das agências de aplicação da lei, através de currículos
actualizados, ministrados por treino assistido por computador.
Ainda no aspecto da cooperação internacional e institucional, através do
Projecto de Combate ao Tráfico de Drogas por Via Aérea (AIRCOP)59, foram
criadas equipas conjuntasde fiscalização nos aeroportos nacionais, composta pela
Polícia Judiciária, Polícia Nacional e pela Direcção-Geral das Alfandegas,permitindo uma actuação planeada e concertada entre essas instituições,aumentando
significativamente a capacidade de detecção do tráfico da droga nos aeroportos
nacionais.
Nos anos subsequentes, registaram-se ligeiras descidas no número deindivíduos presos por tráfico de estupefacientes,em relação aos restantes presos, fixan-
59. AIRCOP- Projecto de combate ao tráfico de drogas por via aérea, desenvolvido e financiado pelo Canadá,
União Europeia, Organização Mundial das Alfândegas e a INTERPOL e gerido pela ONUDC.O objectivo geral é a construção de capacidades de interdição de drogas em 10 aeroportos internacionais, seleccionados na África Ocidental, Marrocos e Brasil. O projecto visa estabelecer Forças Tarefa de Interdição
nos Aeroportos (JAITF) e conectá-los às bases de dados das agências internacionais de aplicação da Lei e
redes de comunicação, para permitir a transmissão em tempo real, para outros aeroportos internacionais,
de informação operacional destinado a interceptar carregamentos ilícitos.
203
do-se em 207 indivíduos, em 2009, o que equivale a 19,27%numtotal de 1109,
236 indivíduos,em 2010, equivalente a20,77% numtotal de 1136 e 217 indivíduos, ou seja, 19,19% do total de 1131 em 2011, conforme se pode observar na
Figura 17 a seguir.
De acordo com os dados da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários (ver
Figura 17), enquanto a população carcerária, como um todo, aumentou 1,9 vezes
(de576 para 1131) entre os anos de 2000 e 2011, a quantidade de presos por tráfico cresceu quase quatro vezes,de 56 para 217 encarcerados.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 17 - Total de presos por tráfico de estupefacientes e por outros crimes
Da análise dos dados específicos de presos, por sexo, merece comentário particular o facto de que o peso de mulheres presas por tráfico de estupefacientes
representava, nos últimos quatro anos em análise, mais de 70% da população
carcerária feminina, conforme reflectido na Figura 18,a seguir apresentada. Esse
facto poderá ser explicado pelo aumento considerável de mulheres detidas na
posse de cocaína,à entrada do país, nos voos comerciais vindos de Fortaleza, Brasil, como “correios” de droga, pois, elas têm sido mais aliciadas do que os homens
para o transporte a partir deste país aonde se deslocam para adquirir mercadorias
para revenda em Cabo Verde.
Retomando-se a comparação com os dados das penitenciárias brasileiras, no
que respeita ao sexo dos presos, a proporção de mulheres presas por tráfico de estupefacientes nas cadeias cabo-verdianas é muito superior ao rácio observado no
204
Brasil, referentes ao ano de 2009, onde as mulheres presas por tráfico de drogas
representam a metade (50%) do total das mulheres presas60.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 18 - Percentagem de mulheres presas por tráfico de estupefacientes
Ainda assim, da análise dos dados acumulados ao longo do período, dos
presos por tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, os homens constituem a
grande maioria, numa proporção de 83% do total, sendo as mulheres de apenas
17% do total (ver Figura 19).
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 19 - Percentagem dos presos por tráfico de estupefacientes por sexo
Os dados referentes aos presos nas duas cadeias centrais de Cabo Verde, durante o período em estudo, entre os anos 2000 e 2011, revelam, de forma inequí-
60. http://idpc.net/pt/alerts/2012/05/trafico-e-motivo-de-24-das-prisoes-no-brasil.
205
voca, um dos efeitos imediatos do tráfico de estupefacientes em Cabo Verde, que
é o extraordinário aumento da população carcerária do país. A variação registada
nos presos por tráfico de estupefacientes,entre o ano base (2000) e o ano de maior
incidência (2008), ou seja, em apenas oito anos, foi de 344,64%, enquanto a evolução dos presos por outros delitos é muito menos acentuada, não se registando
grandes oscilações ao longo do período, atingindo o valor mais elevado no ano
de 2010, com apenas 97,22%, conforme reflectido na Figura 20, onde se pode
observar que houveas duas evoluções e tendências díspares.
Fonte: Elaborado a partir dos dados da DGSP
Figura 20 - Evolução comparativa de presos por tráfico de estupefacientese por
outros crimes
O aumento considerável e crescente, a partir do ano base, dos presos por
tráfico de estupefacientes, em comparação com o total de presos pela prática
de todos os demais crimes previstos no código penal e outras legislações penais
avulsas, é, ao mesmo tempo, revelador do crescimento do fluxo de passagem da
cocaína por Cabo Verde, vinda da América do Sul, principalmente em direcção
à Europa, bem como das medidas adoptas pelas autoridades nacionais,em articulação com outros países e organismos internacionais interessados na prevenção e
no combate ao tráfico de estupefacientes.
A análise feita neste capítulo, a partir dos dados dos serviços penitenciários,
revela uma das consequências directas do impacto do narcotráfico transnacional
nos dados criminais do país, que é o aumento excepcional da população carce206
rária, com particular incidência na população carcerária feminina, com significativos prejuízos para o Estado de Cabo Verde, que é obrigado a disponibilizar
uma fatia maior dos seus parcos recursos financeiros para o orçamento do sistema
penitenciário nacional, o que no limite, irá repercutir nos impostos a serem pagos
pela totalidade dos contribuintes, em virtude da necessidade de construção e ou
ampliação de prisões, recrutamento de mais agentes prisionais e os equipamentos
respectivos, bem como do aumento das despesas de funcionamento desse sector.
CONCLUSÃO
Este estudo partiu da hipótese inicial de que Cabo Verde estaria inserido
numa das rotas do narcotráfico,dominada pelas organizações criminosas transnacionais, e que essa condição de país de trânsito da cocaína, tendo em conta
que não é produtor nem mercado consumidor final, estaria a influenciar os dados
criminais do país, mais precisamente dos crimesdirectamente conexos ao tráfico
de estupefacientes.
Iniciamos o estudo com recurso ao referencial teórico, procurando apresentar as principais correntes doutrinárias na busca de um conceito abrangente para
“organização criminosa”,visando abarcar todas as suas perspectivas de estudo.A
partir dessas propostas de conceito, procuramos, com base em algumas operações da Polícia Judiciária, enquadrar a actuação de determinadas organizações
criminosas a operar no país, na modalidade de tráfico de estupefacientes, tendo
em conta os critérios de território de actuação, o seu poder económico, as suas
relações com o poder institucional e o poder de acção de que dispõe.
Nessa perspectiva, ficou demonstrado que as organizações criminosas actuantes em Cabo Verde, na actividade tráfico de estupefacientes, não têm todas
a mesmadimensão, poder económico e poder de influenciação junto ao Estado.
Foi possível identificar organizações criminosas que se enquadram no nível mais
elevado da escala que determina o grau de influência e acção dessas organizações,
tida como referência neste estudo.
Da recolha e análise dos dados da criminalidade interna, junto da Polícia
Nacional, das apreensões de cocaína, junto da Polícia Judiciária, e dos dados das
207
penitenciárias centrais do país, junto da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários, foi possível acompanhar a evolução da passagem da droga por Cabo Verde
e examinar o comportamento dos crimes conexos ao tráfico de estupefacientes,
quais sejam, o roubo, a posse de arma de fogo, o homicídio e a lavagem de capitais.
De acordo com o resultado apurado através dos dados disponíveis sobre a
criminalidade interna, os processos judiciais consultados, transitados em julgado
e os ainda em curso, pelas respostas das autoridades ao questionário durante as
entrevistas, é possível afirmar que o estudo, ora concluído, confirmou a hipótese
inicialmente formulada, ou seja, verificamos que os crimes conexos ao tráfico de
drogas têm evoluído de forma diferente em relação aos demais crimes. Os crimes
conexos ao tráfico têm tido um crescimento muito superior e com maiores oscilações dentro do leque dos crimes previstos no ordenamento jurídico nacional,
estes, que de uma forma geral, têm tido uma evolução coerente com o crescimento da população e os outros indicadores sociais e económicos do país.
O crime de roubo poderá estar a reflectir, para além de outros factores, o
comportamento ligado ao mercado local de consumo, visto ser necessário obter
recursos financeiros para a aquisição da droga e satisfaçãodo vício dos dependentes químicos da cocaína, sendo que, normalmente, os usuários não dispõem
de meios financeiros de forma permanente, acabando por ser impelidos para a
prática do crime, como meio de alcançar seus objectivos.
Contribuiu, de forma significativa, para o aumento dos números dos homicídios em Cabo Verde, as mortes ligadas às organizações criminosas, ou seja, os
homicídios por encomenda, cujas características diferem substancialmente dos
homicídios ocasionais que acontecem no país, no que tocaao tipo e calibre da
arma de fogo utilizado na execução, na extrema violência empregada, no local da
prática do crime, no perfil “profissional” do executor, na existência de um mandante e de um intermediário, que completam o modus operandi.
Em relação à lavagem de capitais, processo que completa as actividades de
uma organização criminosa, com a obtenção de avultados rendimentos, os dados apontam para um crescimento extraordinário desse crime em Cabo Verde,
envolvendo somas consideráveis em dinheiro, bens móveis e imóveis, que tem
vindo a estender a sua influência junto de alguns agentes do Estado, por meio
da corrupção ou atraindo-os para o seio da organização, minando desta forma,
208
os princípios e regras do Estado de Direito consagrado na Constituição e demais
Leis da República.
O estudo demonstrou, pela análise dos dados dos serviços penitenciários,
que a população prisional tem crescido grandemente, influenciada,especialmente, pelo número de presos por tráfico de estupefacientes. Merece destaque, neste
particular, a manifesta desproporcão existente entre ospresos por tráfico, na população prisional feminina, e os presos pelos demais crimes, onde aquelas representam mais de 70% do total nos últimos quatro anos.
Os dados quantitativos desses crimes conexos ao tráfico de drogas foram
corroborados pelas respostas dadas pelas autoridades nacionais de combate ao
crime, testemunhando esse crescimento excepcional em relação aoquadro dos
demais crimes.
Além disso, foi possível precisar a rota cabo-verdiana do narcotráfico transnacional, desde a sua origem, na América Latina, com maior preponderância
do Brasil, tanto pela via marítima como pela aérea, os mecanismos utilizados
pelos traficantes para o transporte da droga até Cabo Verde, o seu desembarque
e armazenamento no país e as diversas formas de o fazerem escoar do país em
direcção ao seu mercado final, a Europa.
Mereceu destaque a figura do “correio” da droga, passageiro que aceita deslocar-se até ao Brasil para receber a cocaína e transportá-la até Cabo Verde ou,
no seu escoamento para a Europa, principalmente para Portugal, Itália, Espanha
e Holanda. Ficou traçado o perfil das pessoas que aceitam transportar a droga,
as condições em que o fazem, bem como as estratégias que utilizam para tentar
driblar o controlo das autoridades alfandegárias e policiais.
Por outro lado, o estudo demonstrou o forte empenho das autoridades nacionais na definição de políticas e acções, visando o enfrentamento do crime organizado transnacional em articulação com outros Estados e instituições ou agências
internacionais, o que se tem traduzido em apreensões de grandes quantidades de
cocaína em trânsito por Cabo Verde, na detenção de vários “correios” transportando drogas, na prisão de traficantes pertencentes às organizações criminosas e
no confisco de grandes somas de activos ilícitos pertencentes aos mesmos.
209
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Janeiro, RJ: Lúmen Júris, 2003.
SANTANA, Adalberto. A globalização do narcotráfico. Revista Brasileira
de Política Internacional, Brasília, v. 42, n. 2, Dezembro, 1999.
211
SUÁREZ SALAZAR, Luis. Conflictos sociales y políticos generados por la
droga, em: Nueva Sociedad, Caracas, n. 102, Julho-Agosto, 1989.
WERNER, Guilherme Cunha. O crime organizado Transnacional e as
Redes criminosas: Presença e influências nas Relações Internacionais contemporâneas. São Paulo, 2009.
TRIVIÑOS, Augusto N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a
pesquisa qualitativa em educação: 1.ed. São Paulo: Atlas, 1987.
UNODC, World Drug Report 2010.
ZALUAR, Alba. Violência: questão social ou institucional? In: OLIVEIRA,
Nilson. Insegurança Pública: Reflexões sobre a Criminalidade e a Violência
Urbana. São Paulo, SP: Ed. Nova Alexandria, 2002.
ZIEGLER, Jean. Os senhores do crime. Rio de Janeiro: Record, 2003.
212
ANEXO
213
ANEXO -QUESTIONÁRIO
Agradeço desde já a vossa disponibilidade para responder ao questionário
abaixo, parte integrante da Dissertação de Mestrado em Segurança Pública.
As respostas às questões, pela sua extensão e acuidade, serão tratadas com
confidencialidade e anonimato.
1) Em que altura começou a ser observado, em Cabo Verde, o crime de tráfico de drogas?
Após
Ο
2005
2000 Ο
2005
1995 Ο
2000
A nte rior a Ο
1990
1990 Ο
1995
2) Quais eram os principais crimes praticados antes dessa época (sendo o 1
o menos frequente e o 5 o mais frequente)?
Tipos de crimes
1
2
3
4
5
Crimes Contra Pessoas
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Crimes Contra Propriedades
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
3) Indique a relevância detalhada, para cada um dos delitos em Cabo Verde,
antes da data dos registos do crime de tráfico de drogas (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente).
Crimes Contra Pessoas
1
2
3
4
5
Homicídio simples
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Homicídio qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Homicídio negligente
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
214
Abuso sexual de menores
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Agressão sexual
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Sequestro
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Maus tratos a menores
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Maus tratos ao cônjuge
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Ameaça
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Exibicionismo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Rixa
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Ofensa corporal
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Posse ilegal de arma de fogo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Posse de arma branca
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Desobediência
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Injúria
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Briga
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Crimes Contra Propriedades
1
2
3
4
5
Incêndio
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Abuso de confiança
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Furto simples
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Furto qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Roubo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Roubo qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Burla
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
215
Dano
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Introdução em casa alheia
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Uso de veículo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Lavagem de Capitais
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
4) Em que altura se verifica a ocorrência de crimes que poderão estar relacionados com a prática do tráfico de drogas?
Após
Ο
2005
2000
Ο
2005
19 9 5
Ο
2000
19 9 0
Ο
1995
Anterior a Ο
1990
5) Quais os crimes que poderão estar relacionados com o tráfico de drogas
(sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente)?
Tipos de crimes
1
2
3
4
5
Crimes Contra Pessoas
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Crimes Contra Propriedades
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
6) Indique o co-relacionamento de cada um dos delitos com o tráfico de
drogas em Cabo Verde (sendo o 1 o menos frequente e o 5 o mais frequente).
Crimes Contra Pessoas
1
2
3
4
5
Homicídio simples
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Homicídio qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Homicídio negligente
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
216
Abuso sexual de menores
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Agressão sexual
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Sequestro
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Maus tratos a menores
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Maus tratos ao cônjuge
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Ameaça
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Exibicionismo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Rixa
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Ofensa corporal
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Posse ilegal de arma de fogo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Posse de arma branca
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Desobediência
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Injúria
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Briga
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Crimes Contra Propriedades
1
2
3
4
5
Incêndio
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Abuso de confiança
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Furto simples
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Furto qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Roubo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Roubo qualificado
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Burla
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
217
Dano
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Introdução casa alheia
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Uso de veículo
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Outros crimes
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
Lavagem de Capitais
Ο
Ο
Ο
Ο
Ο
7) Qual a tendência que se tem verificado em relação ao crime de tráfico de
drogas no país?
Tem aumentado
Ο
Tem diminuído
Ο
Tem estabilizado
Ο
8) Qual a tendência que se tem verificado em relação aos crimes conexos ao
tráfico de drogas?
Têm aumentado
Ο
Têm diminuído
Ο
Têm estabilizado
Ο
9) Na sua opinião, de onde provêm a droga/cocaína que é apreendida em
Cabo Verde?
América do Norte
Ο
América Central
Ο
América do Sul
Ο
Europa
Ο
África
Ο
Ásia
Ο
218
10) Pela sua percepção, indique se a droga apreendida:
Destina-se ao mercado local
Ο
Outros destinos
Ο
11) Acha que existe um “mercado interno” que justifique as grandes apreensões de droga/cocaína em Cabo Verde?
Sim
Ο
Não
Ο
Não sabe
Ο
12) Qual seria o destino da droga caso não fosse apreendida em Cabo Verde?
América do Norte
Ο
América Central
Ο
América do Sul
Ο
Europa
Ο
África
Ο
Ásia
Ο
13) Quais são os meios de transporte utilizados para fazer chegar a droga/
cocaína ao país?
Aéreo
Ο
Marítimo
Ο
Combinação de aéreo e marítimo
Ο
14) Quais são os meios de transporte utilizados para fazer escoar a droga/
cocaína do país?
Aéreo
Ο
Marítimo
Ο
Combinação de aéreo e marítimo
Ο
15) Que estratégias são utilizadas para tentar ludibriar as autoridades na introdução da droga no país?
Dissimulado no meio da bagagem
Ο
No organismo
Ο
219
Ocultado no corpo
Ο
Contentores
Ο
Outros *
Ο
* Caso tenha respondido “outros”, por favor cite uma ou outra estratégia que
no seu entender possa suscitar relevância para o estudo.
16) Que estratégias são utilizadas para tentar ludibriar as autoridades para
fazer escoar a droga do país?
Dissimulado no meio da bagagem
Ο
No organismo
Ο
Ocultado no corpo
Ο
Contentores
Ο
Outros *
Ο
* Caso tenha respondido “outros”, por favor cite uma ou outra estratégia que
no seu entender possa suscitar relevância para o estudo.
17) A actividade “ tráfico de drogas” em Cabo Verde poderá ser atribuída ao
“crime organizado”?
Sim
Ο
Não
Ο
Não sabe
Ο
18) Acredita que exista em Cabo Verde grupos ou elementos que façam parte
de “organizações criminosas internacionais”?
Sim
Ο
Não
Ο
Não sabe
Ο
19) Pensa ter ocorrido no país, algum crime de homicídio, ligado à disputa
entre “organizações criminosas” rivais?
Sim
220
Ο
Não
Ο
Não sabe
Ο
20) Se respondeu “Sim” na pergunta anterior, qual seria a sua percepção em
relação aos motivos?
Disputa de território
Ο
Traição
Ο
Outros motivos
Ο
21) Pensa que o tráfico de drogas tem contribuído para o aumento da prática
de outros crimes?
Ο
Sim
Ο
Não
Ο
Não sabe
22) Tem havido muitas condenações pela prática do crime de tráfico de drogas em Cabo Verde?
Ο
Sim
Ο
Não
Ο
Não sabe
Caracterização:
Nome (opcional) ____________________________________________
__________________
M
Ο
F
Ο
Sexo
20-30
Ο
Ο
30-40
40-50
Ο
50-60
20-30
Ο
Ο
Mais de 60
Ο
Idade
0-10
Ο
10-20
Ο
Mais de 30
Ο
Tempo de serviço
Profissão/Cargo_____________________________________________
Muito obrigado pela sua colaboração!
221
CUSTOS, EVOLUÇÃO E PERCEPÇÃO DA
SOCIEDADE PRAIENSE SOBRE A PROBLEMÁTICA
DA VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE9
Emanuel de Nascimento Furtado Vaz
RESUMO
Este trabalho tem por objectivo conhecer e analisar os custos da violência e
da criminalidade em Cabo Verde no período de 2006 a 2010, o seu peso orçamental, as principais tendências e os reais desafios gerados para o Estado e para a
sociedade Praiense. Com base na metodologia de Contagem utilizada em vários
estudos sobre os custos da violência e do crime se fez a medição dos custos neste
caso. Ao analisar os dados constata-se que a violência e o crime têm um custo
significativo para o Estado e para a sociedade. Ou seja, ela tem em média um
peso orçamental de 5.29 % durante o período em estudo. No entanto, apesar de
haver a tendência anual para o aumento dos gastos com a segurança, constata-se
paralelamente um aumento do sentimento de insegurança, a perda de bem-estar
e uma fragilidade emocional por parte da população. Na pesquisa os praienses
mostraram-se insatisfeitos com o nível de segurança do bairro onde residem,
tendo apontado como causas a fraca cobertura policial e o deficiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos, e evidenciado a violência e a
criminalidade como constituindo o mais sério problema das suas comunidades,
seguidas da iluminação pública e do abastecimento de água. Entretanto, estes
factores constituem um verdadeiro desafio a ser enfrentado e combatido, pela
busca de apoio nos modernos modelos de gestão da segurança pública como:
a cooperação institucional e o cruzamento informacional, orientando os fracos
recursos disponíveis para programas específicos e prioritários, debelando, assim,
os males sociais existentes.
9. Dissertação defendida no dia 15/01/2013 perante o Júri formado pelos Professores Doutores José Carlos
dos Anjos (Uni-CV), como Presidente, César Monteiro (Uni-CV) e Sílvia dos Santos Almeida (Orientadora – UFPA). O trabalho foi co-orientado pelo Prof. Doutor Marcos L. S. Ramos (UFPA) e teve apoio
do Ministério da Administração Interna de Cabo Verde (MAI).
Palavras-Chave: Violência e Criminalidade. Custos. Segurança Pública.
ABSTRACT
This work aims to understand and analyse the costs of violence and crime in
Cape Verde for the period from 2006 to 2010, its budgetary weight, main trends
and the real challenges for the State and Praia society. Based on the methodology of Counting used in various studies of the costs of violence and crime it was
made the measurement of costs in this case. By analysing the data we can notice
that violence and crime are a significant cost to the State and society. That is,
it has on average a budgetary weight of 5.29% during the period under study.
However, despite the annual trend for increased security expenses, we can notice
alongside an increased feeling of insecurity, loss of wellbeing and an emotional
fragility by part of the population. In the research the citizens of Praia were dissatisfied with the level of security of the neighbourhood where they live, pointing
as causes: poor police cover; deficient judicial system’s involvement in conflict
resolution; and highlighting the violence and criminality as being the more serious problem of their communities followed by public lighting and water supply.
However, these factors constitute a real challenge to be faced and fought, seeking
support in modern public safety management models as: the institutional cooperation and informational cross, orienting the weak resources we have for specific
programmes and priorities, therefore overcoming existing social ills.
Keywords: Violence and Crime. Costs. Public Safety.
223
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
“Eduquem as crianças de hoje e não será preciso castigar os homens de amanhã”
Pitágoras (500 A.C.)
1.1 - Aspectos Gerais
Neste mundo moderno, ou pós-moderno2, se quiser, o papel do Estado no
controle social vem sendo confrontado com inúmeras questões relacionadas com
a forma como a democracia estabelece para resolução de problemas de segurança
pública, que muitas vezes no acto da sua prática, fere as regras dos direitos humanos que por seu turno desempenham um papel fundamental na luta pela forma
de estar numa sociedade e pela liberdade individual e colectiva.
Alguns males do regime autoritário estão atrelados ao regime democrático,
proporcionando o desencadear de vários esforços no sentido de poder se encontrar soluções plausíveis para resolver o problema. Assim, as transições políticas
por si só não constituem a verdadeira democracia. Os diversos problemas que se
enfrentam hoje em democracia, são diluídos e transformados em consequências
com as quais é cada vez mais difícil se conviver.
Adorno (2002) aponta várias causas da existência desse mundo violento e criminoso e explica como o sistema de justiça criminal está em crise. Vários estudos
reconhecem a incapacidade do sitema de justiça criminal, apontando primeiramente para as agências policiais, depois para o ministério público, em seguida
para os tribunais e enfim para o sistema pinitenciário em conter a onda de violência e crime no Estado democrático. Acredita-se que esta incapacidade resulta
do não acompanhamento da evolução da qualidade da violência e do crime pelo
sistema de justiça. Há um aumento do fosso entre a evolução da criminalidade e
da violência e a capacidade do Estado de impor a lei e ordem.
224
Então, o Estado, como guardião da defesa social, perde muitas vezes o controlo da democracia, surgindo livremente na sociedade novas formas de resolução de conflitos que, muitas vezes, não se coadunam com o ideal defendido por
alguns estudiosos. Eis então que aparece o dilema entre a “Lei e Ordem”10 para
o Estado. Pois, de entre vários problemas sociais existentes como a pobreza e o
desemprego, aparecem a violência e a criminalidade como um assunto preocupante e cheio de controvérsias que vem afectando directamente a forma de estar
dos indivíduos na sociedade.
Pesquisas realizadas em várias paragens do mundo, concretamente no continente Americano, em particular no Brasil, apontam que a violência e a criminalidade afectam o bem-estar da sociedade, seja na perda precoce de vidas humanas,
como na redução de qualidade de vida, seja ainda na perturbação à eficácia e eficiência económicas. Pois, o fenómeno da criminalidade consiste em um problema social, pelo facto de afectar “directamente a qualidade e a expectativa de vida
das populações” (ARAÚJO e FAJNZYLBR, 2001, apud SPINDOLA, 2009, p.
14) e um problema económico porque, de um lado, a sua intensidade está associada às condições económicas e, de outro, limita o potencial de desenvolvimento
das economias. Consequentemente, a criminalidade é um problema político já
que as acções necessárias para combater o crime envolvem a participação activa
dos governos e a alocação de recursos públicos escassos em detrimento de outros
objectivos de políticas públicas importantes.
Estudos mundiais apontam que as acções planejadas de enfrentamento ao
crime concentram suas estratégias na perspectiva de entender e neutralizar as investidas criminosas, do agente activo do facto delituoso. Por outro lado, a prática
de policiamento ostensivo10 é admitida como necessária para prevenir e reprimir
o crime, ficando as medidas educativas e reparadoras de condutas, que exigem
um tempo mais longo para a obtenção de resultados, sob a responsabilidade de
órgãos governamentais ou não, constituídos para esse fim.
Soares (2007, p. 78) defende que o desespero provocado pela crise económica
10. O dilema da Lei e Ordem é várias vezes estudado por Adorno (2003) de entre outros autores. Ele evidencia a autoridade do Estado quando num determinado momento é solicitado o uso da força ligítima para
impor a ordem social e ao mesmo tempo é-lhe imposto o seguimento dos direitos individuais e colectivos.
Por exemplo, o estado muitas vezes é chamado atravez das instituições policiais a impor a ordem, por
exemplo, no caso de ribeliões. A lei não permite rebeliões, mas também não permite o uso desmedido da
força, massacre ou tortura para conter o problema. Então, daí o dilema.
225
que tem como consequências o desemprego em massa, desigualdades sociais e
também os desesperos provacados pelos desastres naturais, funciona como vector
facilitador de práticas criminosas, constituindo o alvo da avaliação da problemática da política da segurança pública. Pois, quanto maiores as desigualdades
sociais, maior a diferença de renda, menor a punição e, consequentemente, maior
o número de crime por causa da recompensa.
Por outro lado, a punição não é considerada em si elemento inibidor do crime, apesar de ter também um custo para o criminoso. O exemplo internacional
de reconhecida validade é o caso da Colômbia-Bogotá. Ficou claro que a conjugação do rigor nas penas aos programas de melhorias sociais, como a inclusão
social, a melhoria de transporte público, escolas, bibliotecas públicas etc., pode
fazer a fiferença.
É certo que não se deve estabelecer a ligação da pobreza à violência, mas
sim, da exclusão social à violência. Entretanto, a ausência de políticas sociais de
segurança, a falta de acesso à justiça, entre outros, tem reflexos na exclusão social
e, consequentemente, na violência e no crime, resultando este fenómeno como
forma e meio de resolução de conflito e daí o aparecimento das instituições de
mediação de conflitos, por exemplo.
1.2 - Breve Retracto da Trajectória Recente da Violência e
Criminalidade em Cabo Verde e na Praia em Particular
Em Cabo Verde não há muitos registros de estudos relacionados com a violência e a criminalidade. Todavia, nos últimos tempos, o assunto tem vindo a
ser muito falado, muito mediatizado, devido ao aumento significativo dos casos
no país de violência e criminalidade, com maior intensidade na capital, adicionandos a vários tipos de custos que nem sempre são levados em consideração.
Porém, tanto em Cabo Verde como em outras partes do mundo, as instituições
responsáveis pela segurança pública direcionam tendenciosamente seus esforços
em combater a criminalidade, tendo em atenção o delinquente e um determinado tipo de crime, na tentativa de entender quais as suas motivações.
Hoje, na capital caboverdeana, defronta-se, por exemplo, com vários movimentos de grupos denominados “tugs”, perpectuando ondas de violência e crime,
pondo em causa a própria segurança publica. Estes movimentos não constituem
um problema recente e não são uma novidade na cidade da Praia. Tem-se como
226
referência das acções de violência o ano de 1980, envolvendo os grupos chamados
“piratinhas” que atacavam as pessoas e subtraíam pequenos bens, causando medo
e mal estar à sociedade. Já nos anos 1990 apareceram os chamados “netinhos de
vóvó” que, de forma semelhante, gerando nas autoridades a busca de novas formas de combater a delinquência juvinil que se viveu na época.
1.2.1 - A delinquência Juvinil no Centro das Atenções
Segundo os dados do senso 2010, a cidade da Praia alberga 130.271 mil pessoas, das quais os jovens formam a maioria, totalizando 58.664 mil. O desemprego é um dos problemas sociais existentes, o que acaba por afetar, sobretudo,
os jovens com idade entre os 15 aos 24 anos como sendo os mais afectados, sendo
quase 25,1% deles do meio urbano e 25% na capital. Entrentanto, o desemprego
do sexo masculino é de 10,1% e do sexo feminino é de 12,7%.
Lima (2010) destaca algumas instituições que em Cabo Verde tiveram um
papel importante para conter os jovens dos males sociais existentes e também
como uma forma de controle social. Sobressai, nesse sentido, o papel da Igreja
Católica, da OPAD-CV (Organização dos Pioneiros do Abel Djassi-Cabo Verde) e da JAAC-CV (Juventude Africana Amilcar Cabral-Cabo Verde). Contudo,
depois da fragilização da igreja e do fim das organizações referidas, houve uma
ruptura entre os discursos dos jovens e as políticas sobre as várias necessidades e
oportunidades, destacando-se a educação, a formação e o emprego.
Os anos de 1990 a 2000 foram marcados pelo facto de a juventude ter contribuído para o surgimento de inúmeros problemas, levando os governos a darem mais atenção à elaboração de projectos de políticas de controlo das acções
juvenis que começaram nos protestos, nas reinvindicações até à delinquência.
Como exemplos, mencionam-se os protestos no ano de 1992 contra as políticas
educativas do então governo e contra as provas de acesso ao ensino superior em
2000. Hoje, verifica-se a união cada vez maior dos jovens em pequenos grupos,
perpetuando ondas de violência muitas vezes justificadas pelas disigualdades sociais existentes, a dificuldade de acesso aos recursos, em função também das chamadas redes de compadrios derivadas em algum momento de militância política.
Lima (2010) salienta o perigo da estigmatização e criminalização dos bairros
periféricos da cidade da Praia e dos jovens que ali vivem. Pois, a discriminação
desses bairros e desses jovens leva-os a formarem grupos, com objectivos, de entre
227
outros, de reivindicar, muitas vezes em forma de violência, a sua inclusão como
contribuintes do desenvolvimento urbano.
Sobre este assunto, é evidenciado como a classe dominante discriminou a
classe dominada em vários momentos da história das ilhas, levando a açoites no
pelourinho, a prisões e desterros. Assim, surgiram vários movimentos de revoltas
contra a escravatura, contra os morgados, desencadeando a distribuição de terrenos etc. Porém, é notável que o novo Estado construído após a independência
de Cabo Verde, levou o poder a concentrar-se nas mãos de certa elite burocrática, proporcionando uma distribuição de recursos de forma deficitária e contribuindo, assim, para o aumento da distância entre os possuidores de riqueza e os
destituídos dela. Com efeito, o movimento atual da delinquência juvinil fez com
que problema da violência se tornasse uma incógnita, levando as pessoas a se
perguntarem se não se está perante uma nova forma de reinvendicar a distibuição
equitativa de recursos e oportunidades (LIMA, 2010).
1.2.2 - As Bases de Dados Existentes
As principais fontes de dados existentes sobre a violência e criminalidade em
Cabo Verde são a PN (Polícia Nacional), através da DOIP (Divisão de Operações e Informação Policial); a PJ (Polícia Judiciária); o MJ (Ministério da Justiça), sobre julgamentos, condenações e prisões; a Afrossondagem, a UNODC
(Escritório das Nações Unidas para a Droga e Crime) e a CCCD (Comissão de
Cordenação e Combate à Droga), dentre outras.
Contudo, verifica-se que não há um tratamento dos dados de forma adequada, o que impossibilita informação precisa sobre a violência e o crime no país.
Por exemplo, não há conhecimento de cruzamento dos dados entre todas estas
instituições. Ao que parece, existe um registo de forma isolada dos dados das
ocorrências, muitas vezes com atraso, por exemplo, pela PN, o que deficulta o seu
tratamento em tempo real.
Por outro lado, muitas queixas registadas na Polícia Judiciária, por exemplo,
não são da mesma forma registadas na Polícia Nacional e vice-versa. Muitos casos
de violência e crime não dão entrada ou não são do conhecimento da Polícia.
Não se tem um gabinete permanente de pesquisa de vitimação, assunto abordado eventualmente por instituições como a Afrossandagem, ou a Comissão de
Coordenação e Combate a Droga e a UNODC. Será de todo importante ter um
228
gabinete permanente de registo, tratamento e estudo dos casos da violência e
crime, constituindo, assim, um importante meio para traçar objectivos e difinir
planos para combeter esse fenómeno.
Entretanto, noticiários da grande mídia revelam a racionalidade na escolha
pela carreira no mundo da violência e crime. Quando se pensa em custo/benefício, pode-se entender o porquê da investida na prática do crime. Em contrapartida, as instituições que lidam com a segurança em Cabo Verde, como, por
exemplo, o Ministério da Justiça, o Ministério da Administração Interna entre
outros, têm buscado avanços com recurso à ciência e tecnologia como elementos
que agregam valor e que poderão ajudar na superação das investidas do mundo
violento e criminoso.
Em suma, a Polícia caboverdeana e as demais instituições envolvidas no processo da segurança pública, deverão estar sintonizadas com as mudanças conjunturais pelas quais passam as sociedades modernas, o caso da sociedade Praense,
aceitando, assim, os desafios nos diversos campos de sua atuação, incorporando
os avançados meios tecnológicos disponíveis para tornar as suas estruturas e os
seus serviços actualizados e compatíveis com as demandas da complexa área da
segurança pública, que o aumento populacional e a sua complexa distribuição
exigem.
É o que se pode ver nos dados do Censo 2010, na Tabela 1.1, que aponta para
uma população residente de 491.875 mil habitantes neste ano. Precebe-se uma
variação de 242% e 13% em comparação com os anos de 1900 e 2000 em que
havia a população era de 143.929 e de 432.625, respectivamente. Da totalidade
populacional, mais da metade reside na ilha de Santiago e desta metade 131.719
habitantes vivem na capital/Praia, representando 27% da população total. Com a
mesma tendência, a maioria desta população vive no meio urbano, representando
62% do total e os restantes 38% se encontram no meio rural.
229
Tabela 1.1- Evolução da População Residente em Cabo Verde por Ilha Concelho
(1900/2010)
Meio de
residência/
Concelho
2010
491.875
2000
434.625
1990
341.491
1980
295.703
1970
-
-
-
-
-
-
150.599
234.368
303979
Meio
Rural
-
-
-
-
-
-
190.892
200.257
187896
Santo
Antão
-
35.977
28.379 33.953
44.623
43.321
43.845
47.170
43.915
Ribeira
Grande
-
19.766
15.444 17.246
22.873
22.102
20.851
21.594
18.890
Paúl
-
5.845
6.024
8.000
7.983
8.121
8.385
6.997
Porto
Novo
-
10.366
7.565 10.683
13.750
13.236
14.873
17.191
18.028
São
Vicente
-
15.848
19.576 20.705
31.578
41.594
51.277
67.163
76.140
São
Nicolau
-
14.846
10.366 13.866
16.308
13.572
13.665
13.661
12.817
Ribeira
Brava
-
-
-
-
-
11465
11556
11.794
7.580
Tarrafal
de S.
Nicolau
-
-
-
-
-
2107
2109
1.853
5.237
Sal
--
5.370
270.999
1960
199.902
1950
149.984
1940
Meio
Urbano
Cabo
Verde
181.740
143.929
1900
Ano
1.121
1.838
2.608
5.505
5.826
7.715
14.816
25.779
Boavista -
2.779
2.985
3.263
3.569
3.372
3.452
4.209
9.162
Maio
-
2.237
1.924
2.680
3.466
4.098
4.969
6.754
6.952
Santiago -
77.382
59.397 88.587 128.782
Tarrafal
18.840
13.222 19.140
230
-
26.251
145.957 175.691
24.202
11.626
236.627 274.044
17.792
18.565
Santa
Catarina
-
26.848
19.428 30.207
41.462
41.012
41.584
50.024
43.297
Santa
Cruz
-
13.486
9.568 14.368
21.158
22.995
25.892
33.015
26.617
Praia
-
18.208
17.179 24.872
39.911
57.748
71.276
São Domingos
-
-
-
-
-
11117
11.526
13.320
13.808
São Miguel
-
-
-
-
-
12349
13.786
16.128
15.648
S. Salvador do
Mundo
-
-
-
-
-
8315
9130
9.172
8.677
S. Lourenço
dos Órgãos
-
-
-
-
-
6722
7885
7.781
7.388
Ribeira
Grande
de Santiago
-
-
-
-
-
6321
6527
7713
8.325
Fogo
-
23.022
30.978
33.902
37.421
37071
Mosteiros
-
-
-
-
-
7427
8.331
9.535
9.524
São Filipe
-
-
-
-
-
19851
25.571
27.886
22.248
Santa
Catarina
do Fogo
-
-
-
-
-
3700
4481
4.796
Brava
-
6.985
6.975
6.804
5.299
5.995
8.528
17.582 25.615
7.937
8.625
29.412
7.756
106.348 131.719
Fonte: INE - Recenseamento da População (1900-2010)
231
As tendências do crescimento da população residente são visíveis e as tendências
do aumento da criminalidade no país são por demais evidentes. Isto, segundo o
estudo sócio-económico sobre armas ligeiras e de pequeno calibre em Cabo Verde
realizado pela Afrossondagem em 2008. Pois, da análise das ocorrências registadas,
mostrou-se que entre 1996 a 2007, houve um aumento de menos 11 mil para quase
19 mil casos. Constatou-se, entretanto, que entre essas ocorrências, em 2007 o número de actos registados contra pessoas era de 9.854, (52%) e contra a propriedade
era de 8.942 (48%). Ou seja, vê-se claramente a predominância de actos contra as
pessoas em todos os 11 anos do período analisado, conforme pode ser visto na Figura 1.1 a seguir.
Figura 1.1: Crimes contra Pessoas e contra Propriedade no Período de 1996 a 2007Cabo Verde
Fonte: Afrossondagem
Nesta mesma pesquisa (Afrossondagem, 2008), constatou-se que em 1996 ocorreram 28 crimes registados por cada 1000 habitantes a nível nacional. Enfatiza-se
que, passados 11 anos, esse número aumentou para 38 ocorrências por 1000 habitantes. Ou então, houve um acréscimo de 36% nas ocorrências registadas. Os dois
anos constituem duas referências importantes, pois 1996 foi o ano em que houve
menos ocorrências per capita e 2007 foi o segundo ano em termos de ocorrências per
capita, ultrapassado ligeiramente por 2006.
232
Ainda, verificou-se que, se levadas em conta as taxas de crescimento médias
anuais entre 1996 e 2007, facilmente se constata que a taxa de crescimento média
anual da criminalidade está a crescer mais do dobro da taxa de crescimento média anual da população. Esta última tem estado a crescer a uma taxa de 2,17%
contra 5,10% do crescimento das ocorrências criminais, razão pela qual as ocorrências criminais cresceram quase 36% neste período. Um dado importante é
a constatação de que a criminalidade contra a propriedade está a crescer, em
média anual, de 6,46% contra 4,02% de crescimento da criminalidade contra as
pessoas. Isto é, em média ocorreram neste período 15.501 registos de crimes na
Polícia, dos quais, 6.454 contra a propriedade e 9.047 contra as pessoas.
Por outro lado, considera-se que naturalmente a criminalidade tem ainda um
perfil muito diferenciado consoante a ilha. Ao analisar os dados se percebeu que
os dois períodos diferentes no tempo apontam para que na ilha de Santiago se
regista a metade das ocorrências. A ilha de Santiago, juntamente com Sal e São
Vicente, representam cerca de 80% das ocorrências em 2001 e 74% em 2005.
E a tendência anual é para um aumento constante se forem levados em conta os
dados dos anos subsequentes.
Conforme a Tabela 1.2, abaixo, pode-se constatar que, de fato, a tendência
criminal é maioritária nos principais centros urbanos. Isto se justifica talvez por
serem os centros urbanos os lovais onde existe a maior aglomeração populacional
e por eventualmente haver maiores disputas de interesses. O número de crimes
na Praia que em 2006 era de 3646 casos, quase duplicou em 2009, passando a
ser de 6695 casos. O mesmo acontece com os outros centros urbanos, obrigando,
entretanto, as autoridades a saírem às ruas para conter a onda de violência que se
vive. A imagem da Tabela 1.2 ilustra essa situação.
233
Tabela 1.2 - Crimes contra Pessoas e contra Propriedade em Cabo Verde por Concelho, de 2006 a 200
Concelho
Paul
Ribeira Grande
Porto Novo
São Vicente
S.Nicolau (R.Brava e
Tarrafal)
Sal
Boavista
Maio
Praia
Ribeira G.Santiago
São Domingos
S.L.Orgãos
S.S.Mundo
Santa Catarina
Tarrafal
Calheta
Santa Cruz
São Filipe
Cova Figueira
Mosteiros
Brava
Total
2006
370
431
393
1173
2007
300
334
375
1261
2008
262
357
243
1620
2009
289
413
342
2168
2010
243
558
455
2359
1005
311
253
3.646
279
1447
237
245
5749
337
1377
344
270
6458
270
1308
530
242
6695
338
1792
783
406
7685
211
57
225
35
289
75
328
121
475
46
74
109
170
1155
453
255
624
1093
101
827
410
181
417
754
93
968
416
168
407
963
92
796
744
242
486
932
146
1103
565
264
681
1381
339
559
12599
91
237
376
13949
140
253
384
15448
135
350
294
16840
188
455
345
20604
328
Fonte: Divisão de Operações e Informações Policiais-Polícia Nacional
No que toca ao sentimento/percepção de insegurança vale a pena frisar que
num estudo da UNODC/CCCD, concluiu-se que 42% dos inqueridos receiam
que as suas casas possam ser assaltadas nos próximos 12 meses. Os resultados
deste inquérito ultrapassam os 50% na Praia, Boa Vista e S.Vicente. Pois, sabe-se,
entretanto, que em 2002 a criminalidade ocupava o sétimo lugar na hierarquia
dos problemas sociais em Cabo verde e em 2008, exponencialmente, ocupou o
terceiro lugar ao nível nacional e o segundo lugar na Praia, tendo ultrapassado o
234
problema da pobreza. Facto este confirmado numa da pesquisa de campo no âmbito dp presente trabalho realizada em 2011 na Praia em que 67,84% dos praienses responderam existir a possibilidade de serem vítimas de violência e crime.
Da mesma forma, o QUIBB-2007 (Questionário Unificado dos Indicadores
Básicos de Bem-estar), realizado pelo INE (Instituto Nacional de Estatística)
demonstra que os agregados familiares opinaram que para melhorarem as suas
condições/níveis de vida nas suas zonas, as autoridades devem priorizar a criação
de empregos, o acesso à saúde e a garantia de maior segurança. Estes factores
interligam-se hierarquicamente e representam os principais problemas sociais
existentes no país.
Com isto, esforços que vêm sendo incrementados na execução de acções nessa esfera devem começar desde o campo social, passando pelo económico até
se efectivarem no campo político, como forma de prevenção e controlo do acto
delituoso, o que pode possibilitar aos integrantes das instituições de segurança
pública melhoria qualitativa no desempenho de sua missão constitucional, seja
quanto às suas acções preventivas no campo do policiamento ostensivo, visando
atender os reclames da sociedade por uma atuação mais sintonizada com a contemporaneidade dos serviços dessa natureza, seja nas acções repressivas.
Consultando o mapa das despesas de funcionamento e de investimento da
Câmara Municipal da Praia para 2011, verifica-se que 2% do seu total, correspondem aos investimentos em ordem pública e protecção civil, representando
um valor de 59.715.238,54 (cinquenta e nove milhões setecentos e quinze mil
duzentos e trinta e oito escudos e cinquenta e quatro centavos). Por outro lado,
para o funcionamento da Guarda Municipal, recentemente criada, conta-se com
um orçamento de 67.181.544,94(sessenta e sete milhões cento e oitenta e um mil
quinhentos e quarenta e quatro escudos e noventa e quatro centavos) com um
peso de 2,2% no orçamento. Isto é, em relação ao ano anterior (2010), houve
uma variação de 85,3%, que correspondeu ao valor de 36.259.745,00 (trinta e seis
milhões, duzentos e cinquenta e nove mil, setecentos e quarenta e cinco escudos)
respectivamente.
Contudo, endo em atenção o plano de actividades da Câmara Minicipal
durante os três últimos anos, ou seja, 2009, 2010 e 2011, quando se observa o
mapa do subprograma Promoção de Segurança e Autoridade Municipal, verifica-se uma diminuição anual do orçamento. Este subprograma contou com um
235
orçamento de 68.500.000,00 (sessenta e oito milhões e quinhentos mil escudos)
em 2009, diminuindo para 55.464.564,00 (cinquenta e cinco milhões, quatrocentos e sessenta e quatro mil quinhentos sessenta e quatro escudos) em 2010 e
43.000.000,00 (quarenta e três milhões de escudos) em 2011.
A referida diminuição orçamental poderá não estar adequada às mudanças
conjunturais e àquelas que estão a se verificar nos actos de violência e crime no
município, podendo afectar directamente a prevenção e a luta contra esses males.
Em suma, as acções de prevenção e luta contra este problema devem contar com
uma entrega maior das autoridades municipais, conjugando seus esforços aos de
outros orgãos de segurança pública, no sentido de orientarem suas estratégias
para campos e programas prioritários de prevenção e combate ao fenómeno.
Este trabalho objetivou desenvolver um estudo sobre a violência e a criminalidade, na expectativa de obtenção de novas formas e modelos de prevenção e
combate ao fenómeno da violência e criminalidade, que constituem um problema
social preocupante, contribuindo para reduzir as assimetrias de desenvolvimento, assegurar a eficiência e a eficácia na alocação dos recursos públicos e privados.
O estudo do custo da criminalidade permite analisar o custo/benefício e o
custo/efectividade para a orientação sobre a alocação de recursos públicos para
programas mais necessitados.
1.3 - Justificativa e Importância da Pesquisa
Há argumentos favoráveis à relevância de se estimar os custos sociais da violência e criminalidade. Primeiramente, permite identificar a importância da violência como uma questão da política social; em segundo lugar, permite dar um
primeiro passo para a alocação de recursos entre problemas sociais alternativos e
a questão de segurança pública de forma mais estrita; e por último, possibilita a
alocação e orientação de recursos públicos para programas específicos voltados a
questão de segurança pública de forma eficiente e eficaz (Bourguignon e Morrison, 2000, apud Cerqueira et al., 2007).
Quando se pensa em nível macro, este estudo se justifica por possibilitar saber se mais recursos económicos devem ser direcionados no combate à violência
e criminalidade. Da mesma forma, no campo micro-económico, justifica-se por
revelar qual será a alocação óptima de recursos entre os vários tipos de políticas e
236
programas, tanto de de natureza preventiva como repressiva.
Em suma, é justificável a estimação dos custos da criminalidade não apenas
pela análise de seu resultado global, mas também pelo estudo de sua composição.
Pois, é importante para a sociedade na medida em que saberá quais são as principais formas de perdas económicas que a violência lhe impõe. A violência acarreta
custos em segurança para a sociedade que, em princípio, deveriam ser cobertos
pelo Estado. Cabe a este oferecer a segurança como um serviço gratuito.
A implementação de uma determinada forma da segurança pode proporcionar externalidades positivas, por um lado, e a contratação de serviços de segurança pode, por outro lado, provocar externalidades negativas. Como exemplo de
externalidade positiva tem-se: a construção de uma guarita em um imóvel, o que
eleva a segurança de todas as casas próximas. Mas, a instalação de um alarme residencial, por sua vez, não oferece protecção adicional às casas vizinhas. Nos casos de externalidade negativa, a segurança de um indivíduo ou de um património
particular eleva o risco de vitimização do restante da população. A migração de
criminosos entre cidades e estados corrobora a hipótese de que prover segurança
para uma determinada região pode aumentar a criminalidade em outras áreas.
Dessa forma, somente uma política integrada e ampla de combate à violência
produziria resultados socialmente vantajosos.
O Estado pode estar fracassado relativamente à disponibilização de recursos,
motivando os agentes privados a contratarem, por exemplo, as empresas privadas de vigilância e protecção. Então, a privatização dos serviços de protecção
que pode ter origem na não distribuição equitativa da segurança por parte do
Estado expõe indivíduos com menor renda a riscos maiores, fazendo com que
os resultados insatisfatórios das políticas públicas afectem de maneira desigual
os indivíduos.
Numa perspectiva diferente, aponta-sea possibilidade de uma melhor alocação de recursos para a segurança sem sobrecarregar a sociedade, o que ocorre num Estado de direito democrático consolidade, em que são asseguradas as
condições para que os direitos, liberdades e garantias sejam respeitados e haja
respeito ao exercício da cidadania e da actividade empresarial, com a celeridade
crescente da justiça.
237
1.4 - Situação Problema
Cabo Verde, um país situado nas encruzilhadas do Atlântico, dispondo de
fracos recursos e exposto a várias influências da globalização. A sua capital, Praia,
é o lugar que alberga o maior número de habitantes do país, 130.271, segundo os
dados do Censo 2010, vem convivendo diariamente com o aumento da violência
e criminalidade, com causas e consequências merecedoras de estudo.
Os custos derivados deste problem têm efeitos directos sobre acções do Estado, das famílias e das vítimas. Quer isto dizer que, de ano para ano poderá
haver um maior dispêndio de recursos financeiros pelo Estado e pelas famílias
envolvendo o sistema de saúde, a justiça e até a previdência social. Socialmente,
observa-se o consumo de determinados bens a diminuírem, passando a haver
menos procura pelas actividades de lazer, inibição de turismo interno e externo,
perda na acumulação de capital, retardando, em certa medida, o desenvolvimento sustentável.
É considerado crítico o turismo interno em vários espaços e localidades de
diversas zonas da Praia, o que torna indesejável a frequência de muitas pessoas
a esses lugares. Para complicar, a falta de um sistema de segurança pública que
monitorasse a violência e a criminalidade, nesses espaços, a exemplo do “sistema
de geo-referenciamento”11.
Tulio Kahn (1999) demonstrou, em seu estudo, que a violência e a criminalidade reflectem-se directamente no turismo, tanto interno como externo. Também, este problema gera um custo alto tanto para o país como para as pessoas,
individualmente, sendo a segurança um bem desejado por todos. Assim, o estudo
aponta que a insegurança afecta as decisões da população local, no caso de São
Paulo e Rio, que deixa de viajar para determinadas cidades, de morar em certas
vizinhanças, de estacionar os carros numa determinada rua. Então, é notável
a preocupação da população em reorganizar a via e os negócios em função da
violência. Daí que, à medida que vêm aumentando os casos de violência e criminalidade numa determinada região ou lugar, diminui a atractividade turística do
espaço levando à desistência de investimento em negócios. Contudo, em Cabo
11. Entende-se aquo o sistema de georeferenciamento como sendo a forma de geração de informação geográfica conhecida num dado sistema de referência, pela obtendo de coordenadas do ponto do mapa a ser referenciado, conhecidas como ponto de controle, oferecendo uma feição física completamente identificável.
238
verde não se conhece nenhum estudo que estabelece ligação directa entre o aumento da violência e a diminuição de turismo, mas, a tendência mundial aponta
para este facto ser verdadeiro.
Por outro lado, as empresas vêem os seus negócios diminuírem, tendo que
arcar com os custos de protecção dos mesmos, aumentando, assim, os preços dos
seus bens e serviços, gerando, entretanto, a diminuição desses negócios. No caso
mais extremo onde a criminalidade domina, não haverá ambiente propício ao
nascimento de outras empresas e negócios e os que já existem são obrigados a se
deslocalizarem, implicando, assim, outras perdas.
Consequentemente, as inúmeras dificuldades económicas e naturais existentes no país obrigam o investimento na prevenção como meio importante para
alcançar a desejada atracção turística, atracção de investimento externo, entre
outros factores que são indispensáveis para a alavancagem económica e o desenvolvimento sustentável.
Assim sendo, urge dispensar esforços no estudo desta problemática que na
consciência de muitos ainda não se reflectiu. Pois, saber qual é o custo da violência e criminalidade no município da Praia foi preocupação deste trabalho. E da
mesma forma, saber como e onde os recursos deverão ser alocados e para quais
programas alternativos deverão ser direcionados constituem os desafios para se
combater o fenómeno. Na verdade, as externalidades negativas12 resultantes da
violência e criminalidade são malefícios que podem afectar o desenvolvimento da
sociedade cabo-verdiana.
1.5 - Hipótese Básica do Trabalho
Neste trabalho parte-se da hipótese de que é por meio do orçamento
estatal e familiar que se obtêm recursos para prevenir e combater a violência e
a criminalidade na Praia, considerando os resultados positivos da políticas de
combate ao fenómeno no município.
12. Na literatura, as externalidades negativas podem os ser gastos somados às despesas correntes de instituições públicas e privadas que são transferidos para as famílias na forma de aumento do preço dos bens,
diminuindo, assim, os negócios e proporcionando a perda do bem-estar social.
239
1.6 - Objetivo Geral
O objetivo geral da pesquisa foi conhecer e analisar os custos da violência
e criminalidade em Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, bem como o seu
peso orçamental, as principais tendências e os reais desafios para o Estado e para
a sociedade praiense.
1.6.1 - Objetivos Específicos
Os objetivos específicos foram:
i.
Conhecer e analisar os custos da violência e criminalidade, sua evolução e seu
peso (valor) no orçamento do estado no período de 2006 a 2010.
ii. Estudar e analisar em que medida a violência intencional contra terceiros (incluindo roubo e furto) constitui um problema de segurança pública e um desafio a vencer.
iii. Estudar, analisare avaliar a percepção da população Praiense a cerca de segurança.
240
CAPÍTULO II
ASPÉCTOS TEÓRICOS DOS CUSTOS DA
VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE
2.1 - INTRODUÇÃO
A violência e a criminalidade constituem um assunto que acompanha a sociedade na sua evolução desde o seu aparecimento até os dias actuais. Entretanto, o
crime em si deve ser pensado e combatido não só a curto e médio prazo com algumas acções repressivas, mas sim, dando maior ênfase em longo prazo, gerando
as diversas técnicas de combate existentes. Com isto, deve-se focar nas acções de
prevenção, inclusão e desmarginalização dos indivíduos, ajudando-os a conhecer
e a usar as condições de subsistência existentes de forma digna e aceitável, evitando, assim, a degradação e a desestruturação familiar.
Vários autores defendem que as acções de controle e prevensão devem ocorrer
na família, começando na infância. Essa consciência é também partilhada em
Cabo Verde, observando as acções de algumas instituições governamentais e não
só, que lidam com a questão problemática da infância. É o que se pode perceber
nas acções do programa Nacional de Educação Profissional desenvolvidado pela
IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional), do programa do ICCA
(Instituto Caboverdeano da Criança e do Adolescente) e do Plano Nacional de
Combate a Violência Baseada no Género de 2005 a 2009, do ICIEG (Instituto
Caboverdeano para a Igualdade e Equidade do Género) (2006), da Lei sobre a
VBG (Violência Baseada no Género) etc.
2.2 - COMO SE DEFINE A VIOLÊNCIA E O CRIME
Segundo Bronkhorst e Fay (2003), para Organização Mundial da Saúde
(OMS), a violência nada mais é do que a utilização intencional da força ou do
poder físico, quer seja por ameaça, contra si mesmo, ou outra pessoa ou um gru241
po que resulte ou possa resultar, em ferimentos, morte, dano psicológico, mau
desenvolvimento ou privação.
Assim, pode ser dividida a violência em três amplas categorias:
i.
“Violência autodirigida” que inclui dano físico causado a si próprio. Esta categoria é subdividida em comportamento suicida e autoflagelo;
ii. “Violência interpessoal” que se relaciona com ferimentos ou danos causados
por um indivíduo a outro, parente (violência doméstica) ou não (violência comunitária);
iii. “Violência colectiva” que focaliza actos danosos cometidos por um grupo. Tais
actos podem ter motivações políticas, económicas ou sociais.
Ressalva-se, todavia, que nem toda violência pode ser considerada como crime. Conforme o Código Penal Cabo-verdiano, encontram-se visíveis vários tipos
de crimes dos quais se destacam os seguintes: crimes contra a vida, contra a integridade física e psíquica, contra a liberdade das pessoas, crimes sexuais, crimes
contra a dignidade, crimes contra o património etc.
De forma conservadora, estudiosos da questão da violência e crime apontam
duas abordagens simples do problema. Uma, segundo a “Lei e Ordem”, que considera sua aplicação com maior rigor e outra que procura “Razões de Fundo” e se
preocupa em resolvê-las prevenindo e reduzindo as acções de violência e crime.
No entanto, a conjugação das duas abordagens tem tido resultados melhores.
Em Cabo Verde, nos últimos tempos, vêm surgindo diversas formas de violência, com mais ênfase à violência interpessoal. Nesta parte pode-se destacar a
violência doméstica contra a qual tem havido uma batalha satisfatória, tanto na
parte de produção de leis punitivas como na parte de apresentação de programas
específicos para o combate a esse mal. É o que se pode constatar no Plano Nacional de Combate á Violência Baseada no Género (PNCVBG) realizado pelo
ICIEG (Instituo Caboverdeano para a igualdade e equidade do Género) e da Lei
que estabelece as medidas destinadas a prevenir e reprimir o crime de Violência
Baseada no Género, VBG (CABO VERDE, 2011).
A violência comunitária, que gera a preocupação dos cidadãos em contê-la,
não foi ainda alvo de programas específicos de grande relevância como a Lei da
VBG e o PNCVBG, para fazer face ao seu combate. De realçar que a violência
comunitária é tida hoje como um factor de instabilidade, de insatisfação populacional e de perda de bem-estar social, o que poderá traduzir-se numa questão
de caos social na capital do país. Posto isto, é preciso haver formas de controlo
social aceitável, através de estudos, de programas e meios adequados, assim como
noutras paragens do mundo, para que se possa ter e viver uma vida sã e próspera.
2.3 - ESTUDOS E EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS
No mundo actual, o problema da violência e do crime constitui uma das
maiores preocupações da sociedade, ultrapassando o desemprego e a inflação, os
juros e impostos. E cunho social cujo enfrentamento é grande desafio.
Fajnzylber e Araujo Jr.(2001) apontam para pesquisas realizadas em vários
continentes como Estados Unidos, Europa e América Latina nos meados dos
anos noventa, clarificando que a maioria das populações avaliam a violência e
crime como sendo os problemas mais sérios do seu tempo, o que não é supresa
nos dias de hoje.
Nos anos noventa, por exemplo, na maior parte dos países Europeus, as taxas
de homicídios não superavam o patamar de 5 por 100 mil habitantes, o que representava, segundo Fajnzylber (2001), menos da metade da taxa corespondente
nos Estados Unidos e menos do que a quarta parte das taxas de vários países da
América Latina. O continente americano é o que apresenta as taxas mais altas
de homicídios no mundo. E o Brasil e o México, não obstante serem, no referido
continente, os países com ausência de conflitos armados, apresentam uma taxa
de 25 homicídio por 100 mil habitantes, revelando assim, um verdadeiro caos na
sociedade mundial.
O Quadro 2.1, a seguir, demonstra o exemplo de mapeamento da violência utilizado na América Central para monitorar esse problema na região. Nela
está referida a violência por tipo, considerando as categorias, os perpetradores
e as suas manifestações, o que leva à reflexão sobre como será perigoso não dar
atenção a um ou outro tipo de violência, pelo fato de que ela possa assumir uma
escala maior em outras regiões, implicando soluções mais complexas. Isto no
pressuposto de que o conhecimento das diversas formas de violência existentes
num determinado local e num dado momento poderá então apontar para a busca
das melhores práticas e meios para enfrentá-las e combaté-las de forma eficaz e
eficiente.
243
Quadro 2.1 - Mapa dos Tipos de Violência na América Central
Direcção
primária do
contínuo da
violência
Categoria
de violência
Violência instituPolítica/ ins- cional do Estado e
titucional
outras instituições
Incluindo o sector
privado
Violência
Institucional
do Estado
resultando
em falta de
confiança na
polícia e no
Instituciojudiciário
nal/
económica
Crime organizado
Interesses de negócios
Manifestações
Direcção secundária do
Execuções
extrajudiciais contínuo da
pela polícia ‘Faxina’ social violência
de gangues e crianças moradoras de rua conduzida pelo
Estado ou comunidade LinVi o l ê n c i a
chamento
social intraIntimidação e violência como
-lares resulmeio de se resolver disputas
ta na saída
económicas Sequestro Assalde casa dos
to a mão armada Tráfico de
jovens, que
drogas Actividades de conficam expostrabando de carros e outros
tos a vários
Tráfico de armas de pequeno
tipos de
porte Tráfico de prostitutas e
riscos ligaemigrantes com destino aos
dos à violênEUA
cia das ruas
Violência colectiva por espaço, roubo, furto
Económica
Social
Gangues (Maras)
Económica
Delinquência/ roubo Furto de rua, roubo
Económica
social
Crianças moradoras
de rua (meninos e
meninas)
Pequeno furto
Social
Violência doméstica
entre adultos
Abuso físico e psicológico
Homem-mulher
Social
Abuso de crianças:
meninos e meninas
Abuso físico e sexual
Social
Social
244
Tipos de violência
por Perpetradores
e ou vítimas
Conflito inter-geracional entre
pais e filhos (jovens, Abuso físico e psicológico
adultos e idosos )
Violência gratuita/
cotidiana
Falta de cidadania em áreas
como trânsito, brigas de bar
e confrontações de rua.
Fonte: Guia de prevenção do crime e da violência em áreas urbanas de América Latina LCSFP-World Bank-Adaptado em Moser 1999/2000
Neste estudo a preocupação com os problemas de segurança é motivada em
larga medida por razões estritamente económicas, visto que há elevados custos
económicos para fazer frente ao combate do fenómeno da violência e da criminalidade. Araújo e Fajnzylber (2001) demostraram que estimativas conservadoras
desses custos chegam a ser de 5% do PIB nos Estados Unidos e na América Latina, representando o valor das vidas perdidas 2% deste total do PIB e a mesma
grandeza dos gastos efetuados nos sistemas de segurança pública e privada. Pois,
se se contabilizarem os custos intangíveis como a redução na qualidade de vida,
perdas dos dias de trabalho, o desincentivo ao investimento etc, decorrentes desta
problemática, certamente os valores percentuais seriam maiores.
Assim, a implementação de políticas públicas que diminuam a violência e
aumentem o sentimento de segurança, como recomendam algumas pesquisas, é
tida como tarefa imprescindível para aumento do bem-estar social, contribuindo, assim, para assegurar que a democracia seja a forma de regime político mais
sustentável no mundo e que seja o regime que
gere um ambiente propício
ao crescimento e desenvolvimento económico.
Daí os vários feitos no estudo e consecução de políticas que visam satisfazer
os interesses sociais, permitindo uma visão clara dos aspectos indesejáveis e uma
visão clara do caminho a trilhar. Um destes estudos com o qual este trabalho se
relaciona, tem como objetivo avaliar os custos da criminalidade. O Instituto Superior de Estudos da Religião, ISER (1998), estudou os custos da criminalidade
dividindo-os em seguintes categorias:
i.
Custos de atenção à vítima, incluindo aqueles relacionados com os cuidados prestados no lar, ambulatorial e hospitalar;
ii. Custos considerados intangíveis, associados ao sofrimento físico emocional da vítima e de seus familiares e amigos;
iii. Custos económicos relativos às perdas de produção e renda por parte
das vítimas;
iv. Custos legais, judiciais e com o aparato da segurança;
v.
Custos das perdas materiais decorrentes da violência: veículos, infra-estrutura etc.
O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) definiu duas ênfases
245
possíveis a serem usadas para estudar o custo da criminalidade: uma é o “enfoque
parcial” e a outra é o “enfoque global” (BUVINIC e MORRISON, 2001, apud
TEIXEIRA e SERRA, 2007 p.27).
Segundo o estudo, o enfoque parcial é utilizado quando é impossível a implementação do enfoque global, seja pela falta de dados ou complexidade da metodologia ou quando requer ressaltar um impacto específico da violência. Como
exemplo, apontam-se os trabalhos realizados pelo Centre de Rechercehs Sociologiques sur le Droit (CESDIP, 1970) et les Instituitiones Pénales, relativos à
valoração da vida humana, tendo como base as perdas na produção diferenciadas
por idade, sexo e ocupação dos indivíduos.
Já o enfoque global tem como objectivo estimar a totalidade dos custos da
violência. Foram desenvolvidas três metodologias pelo BID: a de contagem, a de
preços hedônicos e a de valoração contingente. Cada uma destas metodologias
possui vantagens e desvantagens. A metodologia de contagem consiste em especificar determidadas categorias de custos e somar os custos identificados para
cada categoria. Tem como principal vantagem a possibilidade de sua utilização
quando se tem informação apenas para algumas categorias de custo da violência.
E, como principais desvantagens há a arbitrariedade embutida na construção de
uma categoria e o risco de se inserir o mesmo custo em duas categorias diferentes,
ou seja, a dupla contagem.
A metodologia de contagem é bastante usada na medição dos custos da violência e crime. Esses custos estão categorizados na Figura 2.1, a seguir:
• Custos diretos - abrangem o valor dos bens e serviços utilizados para combater
e prevenir a violência, o tratamento de suas vítimas e a prisão e julgamento dos
criminosos.
• Custos não monetários - incluem impactos na saúde e a consequente queda
na expectativa de vida das vítimas da violência, seja através de homicídios ou
invalidez permanente.
• Efeitos multiplicadores económicos - implicam por um lado uma menor acucmulação de capital humano, menor produtividade do trabalho e menor taxa de
participação no mercado de trabalho. E por outro lado, implica a diminuição da
capacidade de investimento e poupança.
• Efeitos multiplicadores sociais - incluem a transmissão da violência entre gerações, privatização das funções policiais, erosão do capital social, queda na
qualidade de vida do cidadão e menor participação do indivíduo nos processos
246
democráticos.
Figura 2.1 - Categorização dos Custos de Violência
Efeitos multiplicadores economicos
Custos directos
Custo total da Violência
Custos
não-monetários
Efeitos multiplicadores sociais
Fonte: Buvinic e Morrison (2001)
Teixeira e Serra (2007), num estudo de custo de criminalidade em Curitiba (Brasil), utilizando a metodologia de contagem, concluíram que os gastos e
perdas decorrentes da criminalidade equivaleram a 2,26% do PIB do Município
em 2002, repartidos em encargos públicos, privados e perdas sociais. A parte
destinada aos encargos públicos que foi de 1,4% do PIB originou-se dos impostos
e taxas pagos pela população e que são alocados em segurança pública em vez
de serem alocados para outras áreas consideradas prioritárias, como a educação
e saúde. Então, há uma dupla tributação sobre o indivíduo, que tem que pagar
os impostos para a manutenção da segurança pública e também efectuar gastos
privados para se previnir do crime.
Existe ainda o cálculo de anos de vida perdidos ou prejudicados, que é considerado uma importante ferramenta da metodologia de contagem, por procurar
medir o total de anos perdidos de vida saudável comprometidos em virtude de
doenças ou outros males. Segundo os estudos sobre o assunto, a forma mais utilizada de mensurar estes custos é chamada Disability Adjusted Life Year (DALY),
que é uma medida de tempo de vida prejudicado ou perdido em virtude da morte
precoce.
247
Rondon e Andrade (2003) desenvolveram a metodologia de preços hedónicos
que estima a disposição dos indivíduos em pagar por uma redução da violência
a partir de uma amostra com valores de preço de imóveis. Esta metodologia
assume como pressuposto que o preço do imóvel é determinado tanto pelas características físicas do bem (área, tamanho do lote, acabamento, etc.), quanto
pelas características de sua localização (existência de ruas pavimentadas, acesso a
postos de saúde, acesso a escolas, nível de criminalidade, etc.) Ou seja, esta metodologia usualmente é utilizada para mensurar preços dos bens que não existem
num mercado directo. Pode-se apontar o caso de ar, poluição sonora, segurança
etc. Então, a partir do uso desta metodologia consegue-se chegar ao preço que
um idivido pagaria indirectamente pelo uso ou consumo do bem.
A técnica hedónica consiste em uma regressão na qual o preço do imóvel
é a variável explicada e as características deste são as variáveis explicativas. Os
parâmetros estimados pela regressão hedónica representam o preço implícito de
cada uma das características do bem imóvel. Esta metodologia tem como desvantagem a requisição de uma grande quantidade de dados sobre preço de imóveis que contenha informações sobre cada imóvel da amostra assim como de sua
localização.
Num estudo da estimação dos custos de criminalidade no município de Belo
Horizonte, por meio da metodologia de preços hedónicos, calcularam os valores
de alugueis de imóveis, concluindo, como a maioria dos correctores sabe: “Pois,
os valores de imóveis variam consoante variar a taxa de criminalidade. A segurança de um bairro é um dos principais definidores do preço do imóvel” (RONDON e ANDRADE, 2003, p. 22).
Exemplificou-se, no estudo, que uma família de classe média que residia num
apartamento de três quartos e um banheiro no centro, receberia implicitamente
um acréscimo mensal de renda de R$ 70,00 (setenta reais) caso o nível de crime
fosse reduzido à metade naquela Unidade de Planejamento.
Já Araújo e Ramos (2009) demonstraram, com o mesmo objectivo, o método
de valoração contingente, que tem como meta estimar a disposição da população
em pagar para uma queda na violência, tendo como pressuposto que a violência
é um bem comercializável. Esta metodologia consiste em seleccionar aleatoriamente uma amostra da população em determinada localização e fazer entrevistas
com indivíduos seleccionados.
248
Então, a cada indivíduo entrevistado, é dado tanto um conjunto de medidas
para diminuir a violência em seu bairro, como o preço que terá de ser pago para a
implementação de cada política. Desse modo, o entrevistado escolherá a medida,
ponderando o custo que terá que suportar com o benefício de viver num bairro
mais seguro. Esta metodologia tem como desvantagem a sensibilidade da amostra seleccionada em relação à distribuição da renda entre os indivíduos. Pois,
indivíduos mais ricos tendem a estar dispostos a gastar mais dinheiro para viver
em bairros mais seguros.
Os autores, num exemplo da utilização desta metodologia, estimaram a perda de bem-estar provocada pela criminalidade na cidade de João Pessoa (Paraíba, Brasil), concluindo que o sentimento de insegurança das famílias, devido à
criminalidade, pode ser avaliado de maneira conservadora, em R$ 5,00 (cinco
reais), sendo a maior estimativa de R$ 59,35 (cinquenta e nove reais e trinta
e cinco centavos). De acordo com essas estimativas, calcula-se que a perda de
bem-estar agregada anual associada ao sentimento de insegurança seja de R$ 6.5
24.727,01 (seis milhões, quinhentos e vinte e quatro mil, setecentos e vinte e sete
reias e um centavo), considerando a estimativa mais conservadora, sendo a maior,
da ordem de R$ 104.864.863,52 (cento e quatro milhões, oitocentos e sessenta
e quatro mil, oitocentos e sessenta e três reais e cinquenta e dois centavos) para a
cidade de João Pessoa.
Numa perspectiva diferente da análise dos custos do crime aparece outro
tipo de classificação que é: Custos Sociais e Custos Externos. Um custo externo é
aquele imposto por uma pessoa sobre outra, sendo que a vítima não aceita voluntariamente este consequência negativa. Como oposição ao custo externo o custo
social tem como referência a sociedade e não o indivíduo na consideração das
perdas decorrentes da criminalidade. Os custos sociais são aqueles que reduzem
o bem-estar agregado à sociedade (COHEN, 2001, apud BORILI e SHIKIDA,
2009, p.5).
Da mesma forma, apresenta-se outra teoria onde a vítima é vista como objecto de estudo. É a teoria do estilo de vida. Essa teoria sustenta que os factores que
mais influenciam o risco de vitimação dos indivíduos são: a exposição, a proximidade da vítima do agressor, a capacidade de proteção e, por fim, os atractivos
das vítimas e a natureza dos delitos (BEATO, 2004, apud BORILI e SHIKIDA,
2009, P.5).
249
Neste contexto, a análise económica do crime é baseada fortemente na relação
delito-punição como determinante da taxa criminal, em que a eficácia policial e
judicial se relaciona com a possibilidade de os benefícios da actividade criminosa
suplantarem seus custos e compensarem o risco estipulado (BECKER, 1968)13,
Muito bem desenvolvida esta abordagem, até hoje é tomada como uma das
maiores bases teóricas quando se pensa deselvolver estudos relacionados com a
economia do crime, da segurança e da violência. Para Becker, todas as pessoas
são potencialmente criminosas, pois elas estão igualmente sujeitas ao raciocínio
económico de comparação entre ganhos e custos esperados. Isto é, custos tidos
como prováveis das acções criminosas. Da mesma forma, ele admite que a indústria do crime é uma indústria como qualquer outra e sua existência e crescimento
ou não resultam do mercado. Pois, as pessoas escolhem como alocar seu tempo
e seus talentos entre actividades legais e ilegais guiadas pelas expectativas de retorno líquido.
13. Gary Becker é sociólogo e economista da Universidade de Chicago (vencedor do Prémio Nobel de Economia de 1992). O trabalho original mencionado aqui intitula-se Crime and Punishiment: an economic
approach.
250
CAPÍTULO III
VISÃO GERAL SOBRE A METODOLOGIA
APLICADA À PESQUISA
3.1 - METODOLOGIA APLICADA À PESQUISA
O objectivo desta dissertação foi conhecer e analisar o custo da violência e
criminalidade em Cabo Verde, seu peso no orçamento do Estado e seus reais
desafios para a sociedade da cidade da Praia. Daí que tenha sido preciso coletar
os dados pela Metodologia de Contagem. Sendo assim, optou-se por desenvolver
a tipologia inédita de classificação de custos, dividindo-os em exógenos e endógenos, o que, entretanto, implicou a necessitade prévia de uma tipologia prévia
de custos (RONDON, 2003).
Desta forma, como custos exógenos, tomam-se alguns gastos efectuados directamente pelos agentes, públicos e privados no combate ao crime durante os
últimos cinco anos (2006 a 2010). Exemplificando, tomam-se os gastos previstos
no orçamento das diversas instituições envolvidas na luta contra violência e criminalidade em Cabo Verde, como a Polícia Nacional, a Polícia Judiciária, a Comissão de Coordenação e Combate à Droga, e gastos com o Sistema de Justiça.
Também, somam-se os gastos previstos no Programa Plurianual de Investimentos Públicos (áreas relevantes da degurança pública em estudo), como a área de
Justiça, Protecção e Integração Social e, por último, a área de Segurança que dá
maior enfase a luta contra a droga.
Rondon (2003) define custos endógenos como sendo os resultados da acção
do crime dos quais os prejuízos advenientes são controlados indirectamente pelo
Estado e os indivíduos. Como exemplo destes custos, programou-se estudar o
número de furtos e roubos na Capital, Praia, o custo de tratamento hospitalar
das vítimas de violência e criminalidade, os gastos com encarceramento e, por
fim, somar a renda potencial das vítimas fatais da violência e criminalidade. Pelo
facto de que não está ainda fixado um salário mínimo em Cabo Verde, então
251
se considerou tomar como base da soma a estimativa do salário médio dos trabalhadores da Administração Pública, do sector privado e das casas de famílias
Cabo-verdianas (trabalho doméstico), conforme o Estudo Sobre a Criação do
Salário Mínimo em Cabo Verde, realizado em 2009 pela UNTC-CS (União
Nacional dos Trabalhadores de Cabo Verde - Central Sindical). Daí, conhecendo
o número de vítimas fatais da violência e crime (VC), seria estimado o montante
que ganhariam durante o período de análise se não tivessem sido vítimas fatais
da violência e crime.
Posto isto, vê-se que na determinação dos custos exógenos levam-se em conta
os gastos que antecedem a acção criminosa. E consequentemente, na determinação dos custos endógenos, vê-se que são gastos contabilizados pós-acontecimento
da acção criminosa.
Na verdade, o estudo de Rondon sustenta que a divisão dos custos em exógenos e endógenos procura deixar em evidência a dicotomia activo-passivo do agente não criminoso diante dos prejuízos do crime. Conclui-se, então, que os custos
exógenos são aqueles que os agentes escolhem assumir diretamente, sendo essa
escolha em grande medida influenciada pela taxa pesada de violência. Porém, os
agentes possuem autonomia para decidir o montante dos recursos que pretendem
destinar à segurança. Por outro lado, os custos endógenos serão determinados
pelo nível de violência. Pois, o custo de tratamento hospitalar provocado pela
violência intencional, classificado de endógeno, por exemplo, acarretaria outro
custo adicional se a vítima não fosse atendida atempadamente.
Igualmente, classificando os custos desta forma, consegue-se perceber a relação entre as perdas difinidas previamente pelos agentes e as perdas que são
resultado directo da acção do crime. Portando, os custos exógenos são tidos como
objecto para diminuir os custos endógenos. Sustenta-se, ainda, que a alocação
óptima de recursos é aquela em que o aumento marginal dos gastos exógenos
produz uma redução marginal equivalente nos custos endógenos.
3.2 - AMOSTRAGEM DAS INFORMAÇÕES
Para buscar informações sobre a população praense, realizou-se uma pesquisa amostral estratificada proporcional ao número de moradores por Bairro (os
cinco mais populosos), com uma margem de erro de 7,90%, resultando então em
252
161 entrevistas, valor este considerado recomendável (BOLFARINE e BUSSAB,
2005). As entrevistas foram feitas com indivíduos escolhidos aleatoriamente em
cinco dos Bairros mais populosos da capital, conforme Tabela 3.1, apresentada
a seguir.
Tabela 3.1 - Quantidade Populacional, Peso e Amostra Estudada
Bairro
Peso (n)
População*
Amostra (n)
Achada Grande Frente
0,1718
6810
28
Achada Santo António
0,3152
12496
50
Palmarejo
0,1104
4375
18
Ponta D’água
0,1470
5827
24
Achadinha
0,2556
10134
41
Total
1,0000
39642
161
Fonte: População do Censo 2000
Assim, por meio do questionário que pode ser visto no apêndice, foi desenvolvida a pesquisa dividindo-o em três blocos de questões. No primeiro bloco
foram realizados questões de carácter socioeconómico e demográfico, tomando
como o exemplo: sexo, idade, escolaridade, ocupação profissional, bairro de residência, etc. O segundo bloco de perguntas buscou obter informações sobre o sentimento de insegurança dos indivíduos, como também a percepção deles relativa
à criminalidade no município. Foram aplicadas questões, do tipo: se o indivíduo
se sente seguro em andar na rua durante a noite, como classifica a segurança em
seu bairro, se acompanha programas policiais, se faz gastos privados com segurança como seguros, se tem medo da polícia, etc. (MELLO e ALI, 2004, apud
ARAÚJO e RAMOS, 2009, p. 588).
No terceiro e último bloco de perguntas, buscou-se saber, em termos monetários, se havia a perda do bem-estar social derivada da criminalidade. Foram considerados sectores de serviços de segurança ou acções para prevenir a
violência, como: 1-No sector de Justiça, a construção de Centros Alternativos
Descentralizados para resolução de disputas (espaço, lugar, terreno, etc.); 2-No
sector de Serviços Sociais, a criação de Serviços Comunitários Integrados (centro
de recreação) com o objectivo de reunir, falar, controlar os adolescentes de alto
risco. 3-Por fim, no sector da Sociedade Civil, com a Capacitação das ONG´s
253
para cooperar e monitorar os esforços da reforma da Polícia.
Com esta pesquisa, buscaram-se também subsísdios para estudar e analisar
em que medida a violência intencional contra terceiros, incluindo roubo e furto,
constituia um problema público e um desafio a combater.
3.3 - VARIÁVEIS
Para a obtenção dos dados explorados foram realizadas recolhas de dados orçamentais, das contas do Estado e observações directas. Com o mesmo objectivo,
a partir de um questionário com três blocos de perguntas referido anteriormente,
foi possível obter os demais dados. Entretanto, várias dificuldades encontradas na
recolha de informações não constituíram entrave para a consecução dos objectivos traçados inicialmente.
Apresentam-se, a seguir, os dados pela representação gráfica e tabular, para a
visualização dos resultados.
3.4 - ANÁLISE DESCRITIVA DOS DADOS
Após a coleta dos dados, fez-se a sua análise e interpretação. Programou-se
a apresentação dos resultados sob a forma de gráficos ou tabelas, conforme evidencia a estatística discritiva. É assente que em estudos de metodologias informacionais aplicadas à segurança pública, as tabelas fornecem ideias mais precisas e
possibilitam uma ispecção mais rigorosa aos dados enquanto os gráficos são mais
indicados em situações que objectivam uma visualização mais rápida e fácil a
respeito das variáveis às quais os dados se referem (RAMOS, 2010).
Neste trabalho, a estatística descritiva é feita a partir de gráficos e tabelas.
Pois, os gráficos são uma forma de apresentação visual dos dados. Normalmente,
contêm menos informações do que as tabelas, mas são de mais fácil leitura. O
tipo de gráfico depende da variável em questão; neste caso, utilizaram-se gráficos de barras, de colunas e de setores (pizza). Segundo Murteira e Black (1993),
quando se consideram variáveis que seguem uma série histórica utilizam-se gráficos de linhas ou de colunas, enquanto que em casos de variáveis de séries específicas ou geográfica usam-se gráficos em barras ou de setores.
254
Antes da análise dos resultados preliminares que se encontram espelhados
na Tabela 4.1, seria necessário conhecer como foi o acesso aos números que ela
apresenta. Por exemplo, para se ter os números do quadro de investimento fez-se consulta às contas do Estado do período de 2006 a 2010, no Programa
Plurianual de Investimentos Públicos, captando investimentos previstos em áreas
relevantes da segurança pública. Isto é, são investimentos escolhidos livremente
pelo Estado, como meio estratégico para o aumento da segurança, da confiança
e desenvolvimento do país, os quais também são almejados pelos cidadãos como
factor de estabilidade e de garantia dos seus direitos.
As áreas de destaque são: a Justiça, a Segurança a Protecção e Integração
Social. Como mostra a Tabela 4.1 (Capítulo 4), nestes três compactos de investimentos os itens de maior destaque foram: a Eficiência na Justiça, a Prevenção
e Combate a Droga, a Promoção de Apoio às Iniciativas Locais e de Desenvolvimento Comunitário etc. Neste trabalho, esses itens exemplificados foram
destacados mais na análise porque foram contemplados com Orçamento de Investimento durante todo o período de análise. Ou seja, durante os cinco anos
(2006 a 2010).
Para se ter os números do Orçamento de Funcionamento foram consultados
os orçamentos anuais das diversas forças intervenientes na área de segurança em
Cabo Verde, como por exemplo: a Polícia Judiciária, a Polícia Nacional e Comissão de Coordenação e Combate a Droga etc.
Tendo os números todos, fizeram-se as contas utilizando as devidas fórmulas
para se chegar ao peso e à variação orçamental a que cada área ficou sujeita. O
messo procedimento foi utilizado nas áreas dos investimentos. De igual modo, é
apresentado o orçamento executado e o seu percentual. Também este foi tido em
consideração, a partir da consulta das contas do Estado durante todo o período
em análise.
255
CAPÍTULO IV
A PESQUISA: RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 - INTRODUÇÃO
Neste capitulo apresentam-se os resultados da análise das contas do Estado relativas ao período em estudo, considerando exatamente os orçamentos de
investimento e de funcionamento das áreas institucionais escolhidas ligadas à
segurança pública. Também, se apresentam os resultados de uma pesquisa amostral de percepção da população praiense sobre a segurança, que serviu de base
para analisar as principais tendências e os reais desafios para o Estado e para a
sociedade, espelhando assim, alguns possíveis caminhos que podem ser seguidos
para fazer face ao problema de violência e crime.
4.2 - CUSTOS (INVESTIMENTOS E ORÇAMENTOS) EM
SEGURANÇA PÚBLICA E TENDÊNCIAS
A Tabela 4.1 demonstra o orçamento de investimento e de funcionamento
das diversas áreas que, de uma maneira ou outra, lidam com a questão de segurança pública no país em milhões de Escudos de Cabo Verde (ECV), do ano de
2006 a 2010. As referidas áreas institucionais foram escolhidas intencionalmente
por se destacarem mais, de entre outras que também pugnam pelo combate à
insegurança e pelo bem-estar social. As instituições que constituem os órgãos
de controle social, legitimado pelo Estado, enfrentam diariamente situações difíceis, as quais, em certa medida, são merecedoras de sérias críticas por parte da
população, contribuindo assim, para repensar a forma como serão alocados os
recursos para a segurança pública e quais os programas são mais merecedores de
investimentos e em que medida o orçamento deve aumentar ou diminuir.
Tabela 4.1 - Orçamento de Programas Plurianuais de Investimentos em Diversas
Áreas da Segurança Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010
256
JUSTIÇA
Eficiência da Justiça
Melhoria da Prestação dos Serviços de Registo e
Notariado e Identificação
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça
E Ao Direito
Subtotal
SEGURANÇA
Melhoria da Segurança dos Transportes
Rodoviários
Redução dos Riscos de Catástrofes Naturais
Luta Contra A Droga
Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária
Subtotal
PROTEÇCÃO E INTEGRAÇÃO SOCIAL
2006
354.708.633,00
2007
103.779.721,00
2008
765.116.791,00
2009
254.382.171,00
2010
201.739.800,00
12.180.000,00
25.000.000,00
14.200.000,00
51.400.000,00
184.525.332,00
62.218.823,44
429.107.456,44
97.598.868,00
226.378.589,00
101.281.000,00
880.597.791,00
46.292.496,00
352.074.667,00
48.766.000,00
435.031.132,00
15.145.303,00
129.893.366,00
129.893.366,00
93.881.254,00
100.000.000,00
193.881.254,00
150.100.000,00
75.331.770,00
225.431.770,00
267.325.193,00
267.325.193,00
Melhoria das Condições de Trabalho e das
Relações Entre os Parceiros Sociais
391.024.190,00
406.169.493,00
5.425.476,00
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupo alvo
395.950.120,00
Promoção e Apoio às Iniciativas Locais e de
Desenvolvimento Comunitário
80.540.437,99
Capacitação Institucional, Orgânica E Técnica Do
Sector
1.102.650,00
Protecção dos Direitos das Crianças e
Adolescentes
109.686.939,00
Subtotal 587.280.146,99
TOTAL GERAL
1.146.280.969,43
373.549.388,00
393.881.640,00
484.270.591,00
602.856.684,00
25.507.443,00
20.700.000,00
21.000.000,00
38.339.397,00
78.051.727,00
477.108.558,00
897.368.401,00
49.442.978,00
464.024.618,00
1.570.054.179,00
69.185.570,00
574.456.161,00
1.193.856.021,00
94.428.572,00
741.050.129,00
1.582.250.754,00
Fonte: Programa Plurianual de Investimentos, 2011
4.2.1 - Análise do Orçamento de Investimento
Em termos de investimentos, a consulta e a análise do quadro orçamental
neste período de tempo, permitem constatar que houve uma tendência de crescimento ao longo do período, começando com um total de 1.146.280.969,43
ECV em 2006, chegando aos 1.582.250.754,00 ECV em 2010. A figura 4.1
demonstra isso visivelmente.
Figura 4.1 - Evolução do Orçamento de Investimento das Diversas Instituições de
Segurança Pública em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise
257
É possível, entrentanto, observar a existência de vários outros programas nos
quais não houve investimentos contínuos ou durante o período do estudo. Por
exemplo, na área de Protecção e Integração Social, encontra-se o investimento no
programa Capacitação Institucional Orgánica e Técnica do Sector, que só recebeu investimento no primeiro ano de análise (2006). A partir dali não se reservou
nunhuma parcela de investimento nesse programa. Não se sabe exatamente o
porquê dessa paragem. Entretanto, deve sempre análisar se a estratégia benefício/
custo na implementação de um programa de prevenção e combate ao crime é
eficiente em termos económicos (CERQUEIRA et al., 2007).
Se for o contrário, poderá estar ali a raíz de alguns problemas que se encontram hoje nas instituições do Estado, o que reflete, consequentemente, na
sociedade em forma de males sociais. Por exemplo, quando numa instituição do
Estado, e não só, se depara com um atendimento público dificitário, uma fraca
qualificação técnica do pessoal e um serviço no seu todo com muitas lacunas, isto
acaba por constituir um entrave ao desenvolvimento, criando suspeições e conspirações, desenbocando muitas vezes em conflitos sociais e ambientais, pondo
em causa o bem-estar e a segurança em geral.
Também, existem programas que ao longo do período de análise sofreram
mudanças de nomes e de áreas de actuação institucional. Ou seja, trata-se da
mesma questão, mas que tem sido denominada de forma diferente de ano para
ano. É o caso, por exemplo, do “programa correcional”14, Luta Contra Droga
(2006 a 2008) que se passou a ser chamado de Prevenção e Combate à Droga
(2010). Na verdade, trata-se da mesma questão e tomou-se consciência de que a
luta contra qualquer coisa, nesse caso contra droga, começa na prevenção.
Com a Figura 4.2 mostra, apesar de esse crescimento ser importante, não se
constata um aumento proporcional de investimento de ano para ano. Ou seja,
há uma variação orçamental decrescente na maior franja do período (2008 a
2010) e até num certo ponto negativo. Pois, se em 2008 o investimento total
teve uma variação positiva de 74,96%, relativamente ao ano de 2007, já em 2009
caiu negativamente para -23,96%, em relação a 2008, oscilando para 32,53 em
2010. Este abrandamento ou oscilação anual em termos de investimento pode
ser explicado por uma variação negativa na área da Justiça nos anos de 2007 e
2009, correspondendo a -47,24 e -60,02%, respectivamente, conforme mostra o
14.
quadro A1 do Anexo.
Figura 4.2 - Variação Percentual do Orçamento de Investimento das Diversas
Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde, no Príodo de 2006 a 2010
Fonte: Gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise
Pelo quadro A1, A2 e A4 do anexo, também é possível observar que a variação negativa deve-se ao facto de que nos anos de 2007, 2009 e 2010 houve um
investimento menor em relação aos respectivos anos anteriores na área Reforma e
Administração da Justiça. Área esta que em 2008 sofreu um boom em termos de
investimento, cerca de seis vezes maior de aposta no sector em relação ao à do ano
anterior, correspondendo a 765.116.791,00 ECV (Tabela 4.1). Carinhosamente,
esta veio a ser chamada em 2009 e 2010 de Eficiência na Justiça, conforme o
orçamento do Estado do período, sofrendo, no entanto, uma consequente diminuição orçamental, cujo total era de 254.382.171,00 ECV em 2009, para um
total de 201.739.800,00 ECV em 2010, respectivamente.
Contudo, a variação percentual positiva de investimento também se constacta noutros campos. É o que se pode perceber na área da Segurança, que apesar
de em 2007 tenha tido uma variação de 49,26%, já em 2008 teve uma variação
menor, de 16,27%, chegando a variar em 2010 em 51,94% em relação à do ano
de 2009. O contrário se deu no sector da Protecção e Integração Social, no qual
houve uma variação negativa nos dois primeiros anos, passando, no entanto, para
uma variação positiva nos dois últimos anos, representando os 23,80% e 29,00%
respectivamente.
Por outro lado, ao analisar a estrutura orçamental dos sectores em estudo,
observa-se que os orçamentos de investimento previstos nas instituições tomadas
como referências têm uma estrutura significativa. Pois, constata-se que ao longo
259
do período em análise o sector com maior peso de investimento é o da Protecção
e Integração Social. Este teve uma estrutura média acima dos 45%, durante o período em análise, atingindo o ponto mais baixo em 2008, com peso de 29,55%.
Este resultado deve-se ao facto de em 2008 ter havido um menor investimento
no programa Protecção dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme se
pode ver no Quadro A3 (anexo).
Ainda, por meio do Quadro A1 e A2 (ver anexo), verifica-se que no campo
da Segurança, os anos de 2009 e 2010 são aqueles com uma estrutura maior, representando 22,39% e 25,67%, respectivamente. Este facto deve-se a um maior
investimento no programa de Prevenção e Combate a Droga que é considerado
importante na questão de segurança em todos os domínios.
Analisando a parte de execução orçamental (Quadro A6, anexo) que foi obtido a partir das contas do Estado e que constitui a fonte base de toda a informação, pode-se verificar que tanto do lado de investimento como do lado
de funcionamento, o orçamento previsto não foi executado a 100%. Ou seja,
durante todo o período de análise o orçamento previsto foi sempre maior que o
orçamento executado. Isto demonstra algum respeito pelos princípios dos três E´s
de execução orçamental (a Economia, a Eficiência e a Eficácia)15.
4.2.1 - Análise do Orçamento de Funcionamento
A Tabela 4.2, a seguir, demonstra o orçamento de funcionamento das diversas instituições ligadas à segurança pública em Cabo Verde no periodo de 2006
a 2010. Nela se pode verificar que ao longo do período do estudo houve uma
tendência de crescimento orçamental. Ou seja, em todas as instituições estudads
viu-se o orçamento aumentando gradualmente de ano para ano. Esta graduação
anual poderá ser explicada pelas novas necessidades anuais das extruturas, derivadas de motivos económicos, como a inflação, ou para cobrir as despesas de
aquisições de novos equipamentos e, por outro lado, pelo recrutamento de novo
pessoal etc. A Figura 4.3 demonstra esse aumento instantaneamente.
15. O princípio da economia determina que os recursos devam ser disponibilizados em tempo útil, nas quantidades e qualidades adequadas e ao melhor preço. O princípio da eficiência visa a melhor relação entre os
meios utilizados e os resultados obtidos. O princípio da eficácia visa a obtenção dos objectivos específicos
fixados, bem como dos resultados esperados.
260
Tabela 4.2 - Orçamento de Funcionamento das Diversas Instiuições de Segurança
Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010
INSTITUIÇÕES
Polícia Judiciária
Polícia Nacional
Comissão de C. C. a Droga
Estado Maior das Forças Armadas
Supremo Tribunal De Justiça
Procuradoria Geral Da Répública
TOTAL
2006
2007
2008
2009
2010
100.889.107,00
143.677.816,00
147.960.271,00
168.414.684,00
201.926.047,00
1.091.335.544,00 1.358.489.250,00 1.412.597.149,00 1.566.795.664,00 1.724.173.033,00
11.250.044,00
13.023.803,00
13.804.540,00
15.975.649,00
15.647.481,00
592.631.877,00
645.819.599,00
631.461.716,00
648.987.331,00
680.496.692,00
25.507.576,00
43.768.201,00
43.718.893,00
48.038.880,00
55.394.704,00
25.420.352,00
27.399.252,00
28.375.968,00
52.161.535,00
48.456.905,00
1.847.034.500,00 2.232.177.921,00 2.277.918.537,00 2.500.373.743,00 2.726.094.862,00
Fonte: Orçamento de Funcionamento das Instituições 2011
Figura 4.4 - Evolução do Orçamento de Funcionamento das Diversas Instituições de
Segurança Pública em Cabo Verde no Período de 2006 a 2010
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do estado para o período em análise
Analisando o orçamento de funcionamento, Tabela 4.2, é possível observar
que os sectores que teveram um crescimento com maior grau de notabilidade foram os policiais. O principal destaque vai para a Polícia Judiciária, que comparado com as outras forças intervenientes no processo de segurança e de investigação
criminal, plasmado no quadro em análise, viu o seu orçamento variando com
maior grau de positividade. Ou seja, se em 2007, teve uma variação de 42,41%
em relação à de 2006, já em 2010 viu o seu orçamento variar 19,90% em relação
ao ano de 2009, tendo a variação maior que todas as outras forças de segurança.
Entretanto, não significa que tem o maior orçamento. Neste caso, a Polícia Nacional domina. Por exemplo, em 2010, o orçamento da Polícia Nacional (PN) foi
de 1.724.173.033,00 ECV, que é 8,5 vezes maior que a Polícia Judiciária (PJ) que
foi de 201.926.047,00 ECV. Contudo, a variação anual do orçamento da PN é
menor que o da PJ.
261
De ressalvar que estas instituições trabalham em larga escala para conter a
violência e crime tanto na sua prevenção como na sua repressão. Na verdade,
a prevenção situacional do crime é uma abordagem que visa reduzir as oportunidades para que o delito ocorra, admitindo a hipótese de que o potencial
perpetrador é influenciado e induzido pelas oportunidades ambientais existentes
(CERQUEIRA Et. al., 2007)
Na Figura 4.5, a seguir, pode-se constactar que a variação no orçamento de
funcionamento, tem uma tendência que é um pouco diferente do orçamento
investimento. Ou seja, verifica-se uma variação positiva ao longo do período de
estudo. Contudo, assim como do lado do orçamento de investimento, este facto
não significou um aumento anual na mesma proporção do lado do orçamento
de funcionamento. Houve sim, uma variação positiva, mas com tendências decrescentes.
Figura 4.5 - Variação Percentual do Orçamento de Funcionamento das Diversas Instituições de Segurança Pública em Cabo Verde, no Período de 2006 a 2010
Fonte: Gerado a partir dos dados das contas do estado para o período em análise
Por exemplo, a variação total do orçamento de funcionamento do ano de 2007
foi de 20,85% em relação ao ano de 2006, correspondendo a 2.232.177.921,00
ECV. Esta variação deve-se ao aumento orçamental na Policía Judiciária e no Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, em 2008 só teve um aumento de 2,05%
em relação ao ano de 2007, correspondendo a 2.277.918.537,00 ECV. Este fraco
aumento orçamental de 2008 em relação ao de 2007 é explicado pela variação
262
negativa dos orçamentos do Estado Maior das Forças Armadas e do Supremo
Tribunal de Justiça, que foram de -2,22% e -0,11%, respectivamente. Contudo,
desde 2007 o orçamento de funcionamento nunca mais chegou aos 20% de aumento, estando no último período de análise (2010) em 9.03%.
Tendo em atenção a análise da estrutura do orçamento de funcionamento,
encontram-se os sectores de maior destaque, dentre os quais a Polícia Nacional e
as Forças Armadas. A PN, relativamente ao total do orçamento dos sectores em
estudo, apresenta uma estrutura acima dos 60% durante quase todo o período de
análise, atingindo o seu ponto alto em 2010, com 63,25%. Este peso deve-se ao
aumento das despesas com o pessoal e com a aquisição de bens e serviços. Esta
constatação também se encaixa nas Forças Armadas que alcanço aprsentou a
sua estrutura orçamental em 2006 e que foi de 32,09%, chegando em 2010 aos
24,96%, significando, mesmo assim, uma estrutura maior do que a da maioria
das Instituições estudadas.
4.2.2-Análise dos Custos da Violência e Criminalidade
A Tabela 4.3 mostra que durante o período em análise houve sempre uma
tendência de aumento dos custos com a violência e criminalidade. A figura 4.6
demonstra visivelmente o ocorrido.
Tabela 4.3: Mapa Custo da Volência e Criminalidade em Cabo Verde, no Período de
2006 a 2010
CUSTOS EXÓGENOS
ÁREAS RELEVANTES
Periodo
Orçamento Investimento
2006
2007
2008
Estrutura/Peso
Variação Percentual(%)
2009
2010
2007
2008
2009
2010
2006
2007
2008 2009
Justiça
429.107.456,44
226.378.589,00
880.597.791,00
352.074.667,00
435.031.132,00
-47,24
288,99
-60,02
23,56
37,43
25,23
56,09
29,49
Segurança
129.893.366,00
193.881.254,00
225.431.770,00
267.325.193,00
406.169.493,00
49,26
16,27
18,58
51,94
11,33
21,61
14,36
22,39
29,55
48,12
Protecção e integração Social
SUBTOTAL
Orçamento Orgânica
Polícia Judiciária
Polícia Nacional
Comissão de C. C. a Droga
Estado Maior das forças armadas
Supremo Tribunal De Justiça
Procuradoria Geral Da Répública
587.280.146,99
477.108.558,00
464.024.618,00
574.456.161,00
741.050.129,00
1.146.280.969,43
897.368.401,00
1.570.054.179,00
1.193.856.021,00
1.582.250.754,00
2006
2007
2008
2009
2010
-18,76
-21,71
2007
-2,74
74,96
2008
23,80
-23,96
2009
29,00
32,53
2010
51,23
53,17
100,00
100,00 100,00 100,00
1
2006
2007
2
2008 2009
100.889.107,00
143.677.816,00
147.960.271,00
168.414.684,00
201.926.047,00
42,41
2,98
13,82
19,90
5,46
6,44
6,50
6,74
1.091.335.544,00
1.358.489.250,00
1.412.597.149,00
1.566.795.664,00
1.724.173.033,00
24,48
3,98
10,92
10,04
59,09
60,86
62,01
62,66
5,99
15,73
15,77
2
11.250.044,00
13.023.803,00
13.804.540,00
15.975.649,00
15.647.481,00
-2,05
0,61
0,58
0,61
0,64
592.631.877,00
645.819.599,00
631.461.716,00
648.987.331,00
680.496.692,00
8,97
-2,22
2,78
4,86
32,09
28,93
27,72
25,96
25.507.576,00
43.768.201,00
43.718.893,00
48.038.880,00
55.394.704,00
71,59
-0,11
9,88
15,31
1,38
1,96
1,92
1,92
1,23
1,25
2,09
25.420.352,00
27.399.252,00
28.375.968,00
52.161.535,00
48.456.905,00
7,78
3,56
83,82
-7,10
1,38
SUBTOTAL
1.847.034.500,00
2.232.177.921,00
2.277.918.537,00
2.500.373.743,00
2.726.094.862,00
20,85
2,05
9,77
9,03
100,00
100,00 100,00 100,00
1
TOTAL CUSTOS EXÓGENOS
2.993.315.469,43
3.129.546.322,00
3.847.972.716,00
3.694.229.764,00
4.308.345.616,00
4,55
22,96
-4,00
16,62
4,83
5,00
4
-
-
-
Tratame nto Hospitalar das Vítimas da
Violê ncia e Criminalidade
Núme ros de Furtos e Roubos
Custos Com Encarce rrrame nto
Re nda Pote ncial das Vítimas Fatais da
Violê ncia e Criminalidade
5,27
4,79
CUSTOS ENDÓGENOS
ÁREAS RELEVANTES
-
-
-
-
187.288.750,00
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
161.000.000,00
169.000.000,00
181.000.000,00
198.000.000,00
210.000.000,00
4,97
7,10
9,39
6,06
91,23
92,81
92,68
92,40
15.481.206,00
13.099.482,00
14.290.344,00
16.275.114,00
12.702.528,00
-15,38
9,09
13,89
-21,95
8,77
7,19
7,32
7,60
91,34
SUBTOTAL CUSTOS ENDÓGENOS
176.481.206,00
182.099.482,00
195.290.344,00
214.275.114,00
409.991.278,00
100,00
100,00 100,00 100,00
1
TOTAL CUSTO Exógeno e Endógeno
3.169.796.675,43
3.311.645.804,00
4.043.263.060,00
3.908.504.878,00
4.718.336.894,00
4,48
22,09
-3,33
20,72
0,28
0,29
0,27
0,28
0
62.024.699.719,00
62.555.553.210,00
72.982.808.218,00
77.106.500.308,00
86.616.444.502,00
0,86
16,67
5,65
12,33
5,11
5,29
5,54
5,07
5
SOMA TOTAL ORÇAMENTO
INVESTIMENTO E ORGÃNICA
3,18
7,24
9,72
Fonte : Relatorio de Contas do Estado, 2011
263
Figura 4.6 - Evolução dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo Verde, no
Período de 2006 a 2010
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise
Entretanto, somando e dividindo os números percentuais, pode-se dizer que
durante o período em estudo os custos da violência e crime têm um peso orçamental que rondam em média os 5,29% (Figura 4.7). Contudo, a Figura 4.7.1
mostra a variação dos custos que não se apresentou de forma diferente. Ou seja, a
vairação foi positiva relativamente aos dois primeiros anos, caiu para -3,33% em
2009 e foi de 20,72% em 2010. A variação de 20,72%. A variação negativa em
2009 é explicada por um menor investimento no sector da Justiça, mais concretamente no ítem eficiência na justiça.
Figura 4.7 - Estrutura/Peso dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo
Verde, no Período de 2006 a 2010
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise
264
Figura 4.7.1 - Variação dos Custos de Violência e Criminalidade em Cabo Verde, no
Período de 2006 a 2010
Fonte: Gráfico gerado a partir dos dados das contas do Estado para o período em análise
Por outro lado, ainda no Tabela 4.3, pode-se constatar que os custos exógenos
decorrentes da VC têm um peso no orçamento estatal cuja média é de 4,97%.
No ano de 2006 o seu peso era de 4,83% e no ano de 2010 passou para 4,97%.
Em números monetários tem-se um total de 2.993.315.469,43 ECV de custos em
2006 e 4.308. 345.616,00 ECV em 2010. Estes montantes foram saídos do orçamento do Estado, do lado de investimento e do lado funcional/orgânico para os
programas e serviços que relacionam directamente com a questão de segurança
pública. Por outro lado, há os custos endógenos, cujo peso médio é de 0,32%. É
de realçar que a contabilização deste custo é que se revelou mais difícil por haver
falta de registo de dados ou falta de informação.
Contudo, a metodologia utilizada no presente estudo é facilitadora porque
por meio dela, embora não haja dados palpáveis ou suficientes para a elaboração
da contagem, esta pode ser feita com base nos dados disponíveis. Ou seja, a falta
de dados durante o período não impossibilita a contagem dos custos decorrentes
da violência e crime. É o que se pode perceber no Quadro 4.1. O Custo de Tratamento Hospitalar não aparece porque não se tem registo no hospital da Praia do
número de entrada de vítimas de violência e crime e nem o registo de quanto que
se gasta para o seu tratamento, embora se tenha uma tabela de preço de cuidados
intensivos publicada no Boletim Oficial (número 11, I Série de 20 de Março de
2007).
Isto constitui uma das falhas verificadas que se traduz num desafio a vencer.
Pois, o registo e o tratamento das informações das ocorrências, poderão ser dos
265
mais modernos meios de auxílio à prevenção e combate ao fenómeno da violência
e crime. O mesmo se pode dizer em relação ao Número de Furtos e Roubos. Os
dados da Polícia merecem outro tipo de tratamento, fazendo, entretanto, outro
tipo de cruzamento. Os registos da Polícia de Ordem Pública e da Polícia Judiciária, por exemplo, não são trabalhados conjuntamente, então a questão é quais
utilizar. O ideal, e também um desafio, seria ter um centro comum de tratamento dos dados, facilitando assim a informação e a sua consequente divulgação para
uma maior prevenção e uma maior satisfação por parte do Estado e da sociedade
em geral, sendo esta última a parte que sofre mais na pele com a insegurança.
4.3 - RESULTADOS DA PESQUISA AMOSTRAL SOBRE A
PERCEPÇÃO DA SEGURANÇA PELA POPULAÇÃO
Para a obtenção dos dados que permitiram analisar a percepção populacional
sobre os gastos na prevenção e combate à violência e criminalidade no Município
da Praia e seus reais desafios, conforme se fez a descrição no capítulo 3, Tabela
3.1, foi preciso desenvolver uma pesquisa piloto envolvendo uma amostra considerável, tomando cinco dos bairros tidos como mais problemáticos e mais populosos da capital, segundo os dados do senso 2000. Assim, efectuou-se a análise
dos dados do questionário aplicado, esclarecendo como a população Praiense
opinou sobre a violência e criminalidade que a envolve.
4.3.1 - Análise e Avaliação da Percepção da Segurança
Poucos problemas sociais conseguem mobilizar tanto a opinião pública como
a violência e criminalidade. Este problema social pode afectar qualquer pessoa,
independentimente de sexo, idade, religão ou status social. Como se constatou
anteriormente, os custos daí advinientes são cada vez maiores, com seus reflexos
directos no modo de ser e de estar das populações que, com receio de serem vítimas, adoptam comportamentos defensivos, adquirindo vários sistemas de segurança pessoal para o efeito. O exemplo marcante pode ser a colocação de grades
nas portas e janelas das casas, aquisição de cães de guarda, segurança privada,
alarmes etc. A insegurança, reflectida nas medidas referidas, tomdaspela população para o seu enfrentamento, recomenda que seja agendada a discussão a respeito desse grave problema social em Cabo Verde e na Praia em particular. Daí a
266
necessidade de de estudo e análise do perfil populacional e saber em que medida
e para onde direcionar a atenção por forma a minimizar o problema.
A Tabela 4.4 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia em
2011, por bairro/zona. Percebe-se que a maior parte da população reside no bairro de Achada Santo António (ASA), com 31,39%; em seguida, os residentes em
Achadinha, com 24,42%, e os residentes no bairro de Palmarejo, com 11,63%.
A Figura 4.7.2 apresenta esses dados visualmente. Estas zonas foram escolhidas
precisamente por serem mais populosas e se revelarem mais problemáticas em
termos de violência e criminalidade nos últimos tempos.
Tabela 4.4 - Percentual de Moradores Entrevistados na Cidade de Praia, em 2011, por
Bairro/Zona
Bairro/Zona
Percentual
Asa
31,39
Achadinha
24,42
Achada Grande
16,86
Ponta Dágua
15,70
Palmarejo
11,63
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.7.2 - Percentual de Moradores Entrevistados na Cidade de Praia, em 2011,
por Bairro/Zona
267
Fonte: Pesquisa própria
A maioria dos residentes é do sexo masculino (Tabela 4.5 e Figura 4.8). É provável que a população feminina esteja mais exposta aos movimentos da violência
e, consequentemente, às suas mazelas. Por exemplo, segundo os dados registados
na Polícia Nacional em 2010, dos catorze casos esclarecidos de homicídio, todos
foram do sexo masculino. Entretanto, é verificada a mesma tendência nos outros
tipos de crimes ou outros tipos de violência. Ou seja, na sua maioria, o género
masculino é o que tem maior percentagem de participação (ver Figura 4.8).
Tabela 4.5 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Gênero
Gênero
Percentual
Masculino
59,30
Feminino
40,70
Total Geral
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.8 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Gênero
Fonte: Pesquisa própria
Conjugada ao género encontra-se a faixa etária da polulação. Por meio da
Figura 4.9 pode-se observar que a maior parte dos residentes encontra-se na faixa
etária dos 23 a 28 anos, com 27,49%, seguida da faixa etária dos 17 aos 22 anos,
representando 22,81%. No meio da tabela se encontram os da faixa etária de 41
a 46 anos de idade, representando 6,43%, e na cauda da tabela os da faixa etária
de 71 aos 75 anos de idade, representando 0,58%.
268
Figura 4.9 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Faixa Etária
Fonte: Pesquisa própria
Importa ressalvar que na população em estudo não aparece nenhum caso de
fraca ou ausência de instrução escolar. A maior parte da população tem um bom
nível de escolaridade, ou seja, igual ou superior ao terceiro ciclo, representando
mais de 33% da amostra. A Tabela 4.5.1 demonstra isso vissivelmente. Entretanto, as percentagens restantes correspondem aos que têm outros níveis de escolaridade, ou seja, curso médio ou superior.
Tabela 4.5.1 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Escolaridade
Escolaridade
Percentual
1° Ciclo
10,47
2° Ciclo
25,58
3° Ciclo
30,23
Total
66,28
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.9.1 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Escolaridade
Fonte: Pesquisa própria
269
Contudo, neste estudo os praienses, na maioria, revelaram que se encontram desempregados, totalizando 41,86%, trazendo à baila um dos principais
problemas sociais existentes em Cabo Verde, o desemprego (Ver Figura 4.9.2).
Não estando empregada a maioria dos moradores, consequentemente não possui
vencimento, o que a torna mais vulnerável à violência e criminalidade. E os funcionários públicos que representam 34,88% dos inquiridos devem ser portadores
de boas práticas, ajudando, assim, no combate às falhas existentes.
Figura 4.9.2 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Ocupação
Fonte: Pesquisa própria
4.3.2 - Nível de Segurança do Bairro
A Tabela 4.6 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia, em
2011, por nível de segurança. Nela, pode-se verificar que os moradores, na maioria, afirmam que o bairro de sua residência possui um nível médio de segurança,
com 43,02%, seguido dos que afirmaram ter um nível baixo de segurança, com
37,21% (Ver Figura 4.10).
270
Tabela 4.6 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Nível de SeP
gurança
Nível de Segurança
Percentual
Não possui segurança
18,02
Baixo
37,21
Médio
43,02
Alto
1,75
Total
100
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.10 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Nível de
Segurança
Fonte: Pesquisa própria
Uma análise mais profunda indica que a maioria da população atribuiu nota
negativa à segurança do seu bairro. Ou seja, somados os que disseram que não
possuem segurança e os que responderam que o nível de segurança é baixo, verifica-se que 55,23% da população estão de acordo que a segurança do seu bairro é
de nível negativo. Portanto, esta revelação constitui um desafio a enfrentar e um
problema social a combater.
271
4.3.3 - Problema Mais Sério da Comunidade
A Tabela 4.7 apresenta o percentual dos problemas mais sérios enfrentados
pela comunidade na cidade da Praia em 2011, o que é evidenciado pela Figura
4.11. A maior parte dos moradores diz que o problema mais sério da sua comunidade é a violência e criminalidade, representando 49,12% seguido de iluminação
pública, com 31,58%. No último lugar se afigura o problema das drogas, com
0,59%.
Tabela 4.7 - Percentual dos Problemas Apontados pela Comunidade de Praia – 2011
Problema da Comunidade
Percentual
Violência e criminalidade
49,12
Iluminação pública
31,58
Abastecimento de água
12,28
Transporte público
3,51
Esgoto sanitário
2,92
Drogas
0,59
Total
100,00
Fonte: pesquisa própria
Figura 4.11 - Percentual dos Problemas Apontados pela Cmunidade de Praia – 2011
Fonte: Pesquisa própria
272
As respostas da população da Praia indicam o quanto é preocupante vivenciar a violência e criminalidade e não ter meios mais eficazes e eficientes de as
combater ou minimizar, embora haja um dispêndio considerável de recursos para
o efeito. Há uma boa parte do orçamento do Estado e também doorçamento das
famílias que é gasta nas acções de prevenção e combate à violência e crime.
Mesmo esse esforço do Estado, não se está a verificar uma tendência de diminuição do fenómeno em qeustão. Num estudo recente da Afrossondagem (2012)
sobre a percepção da segurança na capital do país, revelou o quanto a população
está preocupada com a questão da insegurança. Entretanto, há que se perguntar:
será que os investimentos para a prevenção e combate à violência e crime estão
sendo usados da forma mais apropriada? Será o assunto é discutido de forma
consciente e aberta? Não está claro e é necessário desmistificar o que está por
trás do aumento dos casos de violência e criminalidade e porquê a população
responde que ela é o problema mais sério ao seu redor. Numa sociedade aberta e
democrática deve-se trabalhar para encontrar formas abertas e democráticas de
desvendar os problemas sociais.
4.3.4 Satisfação com o Atual Sistema de Sgurança do Bairro
A insatisfação com a segurança resulta dos vários problemas existentes e
apontados anteriormente. A Tabela 4.8 representa o percentual de moradores da
cidade da Praia, em 2011, por satisfação com o actual sistema de segurança do
bairro. Nela, pode-se verificar que a maioria dos moradores afirma que não está
satisfeita com o atual sistema de segurança do bairro, representando 86,55%. A
Figura 4.12 permite visualizar isso.
Tabela 4.8 - Percentual de Moradores da Cidade de Praia, em 2011, por Satisfação
com o Atual Sistema de Segurança do Bairro
Satisfeito
Percentual
Não
86,55
Sim
13,45
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
273
Figura 4.12 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por satisfação
com o atual sistema de segurança do bairro
Fonte: Pesquisa própria
Neste contexto pode-se associar a não satisfação dos moradores com a perda
de bem-estar, representando a maioria da população, 86,55%, sendo uma percentagem muito expressiva. Isso é devido ao aumento significativo da violência e
criminalidade, podendo corresponder a um verdadeiro custo social.
Cohen (2001) define os custos sociais do crime como sendo aqueles que reduzem o bem-estar da sociedade. E neste aspecto, é exemplificado como uma perda
social o tempo gasto pelo criminoso em actividades ilegais. Este tempo gasto
poderia ser utilizado em outra actividade de forma legal.
Assim sendo, constata-se que hoje na capital caboverdeana não se vive com
amesma tranquilidade de outrora. A representatividade percentual da insatisfação dos moradores demostra essa intranquilidade e põe em evidência a busca de
novas formas de convivência com o intuito de colmatar ou satisfazer o bem-estar
individual e social que a população merece.
4.3.5 - Motivo da Não Satisfação com o Atual Sistema de
Segurança do Bairro
A Tabela 4.9 apresenta o percentual de moradores da cidade da Praia, em
2011, por motivo da não satisfação com o atual sistema de segurança do bairro.
Nela, se pode constatar que 46,36% dos entrevistados responderam que a fraca
cobertura policial constitui o principal motivo da sua não satisfação com o actual
sistema de segurança do bairro, aparecendo em segundo lugar, com 27,15%, o
dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos. Da mesma
forma e ocupando uma posição de destaque, os moradores responderam que não
estão satisfeitos com o actual sistema de segurança porque existe falta de postes
274
de iluminação pública, representando 0,66%. A Figura 4.13 apresenta esses resultados visualmente.
Tabela 4.9 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por motivo da não
satisfação com o actual sistema de segurança do bairro
Motivo
Percentual
Fraca cobertura policial
46,36
Dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos
27,15
Fraco envolvimento dos moradores
23,18
Falta da uma esquadra policial
1,33
Confiança dos moradores
0,66
Falta de postes de iluminação
0,66
Não existe sistema de segurança no bairro
0,66
Total
100,00
Fonte: Pesquisa Própria
Figura 4.13 - Percentual de moradores da cidade de Praia, em 2011, por motivo da
não satisfação com o atual sistema de segurança do bairro
Fonte: Pesquisa própria
A população praiense demonstrou na sua resposta que é na Polícia é que se
encontra a maior quota de responsabilidade no que toca ao sistema de segurança.
275
A população carece de algumas informações e formações sobre a segurança pública. Existe a tendência de sempre se imputar a maior responsabilidade à Polícia
quando se fala em conter a criminalidade. Estudos mundiais comprovam a imputação dessa responsabilidade à Polícia. Contudo, vários estudos demonstram
que a resolução do problema da segurança pública não é uma responsabilidade
exclusiva da polícia. O necessário é que entre a sociedade, o governo e todas as
instituições criem cinergias e políticas comuns repartindo as responsabilidades
para que na sua implementação haja um monitoramento fiável e, ao final, um
sistema de avaliação rigoroso capaz de corrigir as falhas dectetadas. No caso da
Polícia poderá existir registos de dados administrativos, económicos e pesquisas
de vitimação etc.
Cerqueira (2008), num estudo sobre a taxa de criminalidade, concluiu apontando três elementos para explicar de onde vem a hiper-criminalidade no Brasil.
Primeiramente, aparece a transição democrática; em segundo lugra, a disigualdade e exclusão socioecónomica, destacando a implementação de medidas severas
de punição na condução sob efeito de álcool. E em terceiro lugar, a falência do
sistema de segurança pública, mais concretamente no sistema policial onde há
persistência do modelo tradicional de polícia, orientado para o incidente, caracterizado, dentre outros aspectos, pelo corporativismo exarcerbado, visão muito
militarizada, abismo entre a polícia e a comunidade, inércia de funcionamento,
falta de planejamento e orientação para a investigação técnica, além da subvalorização social e econômica do policial.
No caso de Cabo Verde, bom seria dar mais ênfase à questão tradicional
do modelo de policiamento, actualizando-o em certo momento para o sistema
moderno, funcionando não tão somente de forma reactiva e para o incidente,
mas sim, pensando e actuando nos problemas mais persistentes ou em causas do
delito. O modelo de policiamento orientado para as comunidades é um exemplo
a seguir (Reiner, 2004).
4.3.6 - Vítimas de Violência
A Tabela 4.10 apresenta o percentual de moradores vítimas de violência. Por
meio dela, verifica-se que a maioria dos moradores nunca foi vítima de violência, com 74,42%, e os que foram vitimados representam 25,58%. A Figura 4.14
evidencia essas informações. Pois, sobre este aspecto pode-se dizer que se está
276
perante aquilo que várias vezes perturba o estado de espírito da população, que
é o sentimento de insegurança. Nas respostas anteriores se pode perceber qual o
nível de criminalidade existente, qual o nível e as causas da insatisfação da população, quais os reiais e os mais sérios problemas com os quais convive a sociedade
praiense. Porém, a maioria respondeu não ser vítima de violência. Talvez seja
violência directa.
Tabela 4.10 - Percentual de moradores da Praia vítima de violência em 2011
Vítima de violência
Percentual
Sim
25,58
Não
74,42
Total
100,00
Fonte: Pesquisa Própria
Figura 4.14 - Percentual de moradores da Praia vítima de violência em 2011
Fonte: Pesquisa própria
O motivo da preocupação por parte das pessoas centra-se na possibilidade de
elas serem vítimas da violência e crime. Percebe-se que apesar de nunca sofrerem
qualquer tipo de atentado, têm a consciência de que a qualquer momento isto
pode acontecer, dada a onda de violência e crime que se faz sentir ao seu redor. A
Tabela 4.11 apresenta o percentual da variável possibilidade de ser vítima. Nela,
verifica-se que a maioria dos entrevistados aceitou existir a possibilidade de ser
vítima de violência, com 67,84%. A Figura 4.15 evidencia essas informações.
277
Tabela 4.11 - Percentual de Moradores por Possibilidade de Ser Vítima de VC - Praia
2011
Possibilidade de ser vítima
Percentual
Sim
67,84
Não
32,16
Total
100,00
Fonte: Pesquisa Própria
Figura 4.15 - Percentual da variável possibilidade de ser vítima da VC – Praia 2011
Fonte: Pesquisa própria
4.3.7 - Tipos de Violência
Entretanto, dos vários tipos conhecidos de violência, alguns foram destacados pela população como sendo os mais frequentes e os que mais a afectam ou
podem afetá-la. Esta variável é apresentada em percentual na Tabela 4.12. Nela,
verifica-se que a maioria dos moradores foi vítima de “roubo”, com 59,52%, em
seguida, de “caço bodi”, com 28,57%, e por último de “violência física”, com
2,3%.
Os tipos de violência e respectiva porcentagem, na capital do país, nos últimos anos, estão apresentados na Figura.
278
Tabela 4.12 - Percentual de moradores de Praia em 2011, por tipo de violência
Tipo de violência
Percentual
Roubo
59,52
Caço bôdi
28,57
Agressão
4,76
Ataque dos tugs
4,76
Violência Física
2,38
Total
100,00
Fonte: Pesquisa Própria
Figura 4.16 - Percentual de moradores de Praia em 2011, por tipo de violência
Fonte: Pesquisa própria
O custo do crime, como no caso do roubo de bens, é definido como sendo
aquele imposto a uma pessoa, de forma não voluntária e que acarreta consequências negativas para ela. Para uma melhor compreensão, o custo do crime é
exemplificado com o valor dos bens roubados que se trata de uma transferência
de recursos entre indivíduos numa sociedade. Ou seja, o bem roubado nunca sai
de circulação, mas é transferido de um indivíduo para outro (COHEN, 2001).
Porém, um custo externo poderá ser também considerado um custo social,
a exemplo de um acidente de trânsito, correspondendo ao valor das avarias nos
veículos mais o custo com tratamento das vítimas e o valor associado à dor, sofrimento, perda do rendimento do trabalho e, eventualmente, de vidas. Os crimes
279
envolvendo o roubo à mão armada, o ataque de grupos etc, constituem um verdadeiro custo para a sociedade.
4.3.8 - Sentimento de Segurança
A partir dos factos ocorridos, vê-se, entretanto, que o lado sentimental de
insegurança da população é notável e revela-se preocupante. A Tabela 4.13 e a
Figura 4.17 referem-se à avaliação do sentimento de segurança, tendo em conta
a variável “sentir seguro em andar na rua”. A maioria da população praiense respondeu que não se sente segura em andar na rua, representando 77,33%.
Tabela 4.13 - Percentual de Moradores que se sentem seguro em andar na Rua - Praia
2011
Sente Seguro
Percentual
Não
77,33
Sim
22,67
Total
100,00
Fonte: Pesquisa Própria.
Figura 4.17- Percentual de Moradores que se sentem seguros em andar na Rua - Praia
2011
Fonte: Pesquisa Própria
280
Da mesma forma e, para confirmar a tendência, aparece a variável “evitar
cruzar com as pessoas”. A maioria dos residentes mostrou na sua resposta que
evita se cruzar com certas pessoas ao andar na rua, representando 73,26%, conforme a Tabela 4.14 e a Figura 4.18. As ilações que se podem tirar destes comportamentos é que, se se pensar noutras variáveis, como a possibilidade de ser vítima
da violência e crime, confirma-se a razão para os moradores agirem desta forma.
Ou seja, como a maioria acha e sente que existe a possibilidade de ser vítima,
então não se comportaria de forma diferente.
Tabela 4.14 - Percentual de Moradores que evitam cruzar com certas pessoas na rua Praia 2011
Evitam cruzar com pessoas
Percentual
Sim
73,26
Não
26,74
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.18 - Percentual de Moradores que evitam cruzar com certas pessoas na rua Praia 2011
Fonte: Pesquisa Própria.
Igualmente, como não se sentem seguros em andar na rua ou na vizinhança
e evitam cruzar com certas pessoas ao andarem na rua, os moradores mostraram
que também têm reservas sobre a decisão de frequentarem alguns espaços e luga281
res nas suas zonas. É o que se pode verificar na Tabela 4.15, sobre a varável “qual
lugar evita ir”. Nela se pode perceber que nos quatro primeiros postos encontram-se os nomes de destaque nas quatro zonas mais populosas da capital. São
os lugares com seguintes nomes: “Baixo” em Achada Grande Frente, “Achadinha
Cima” em Achadinha, “Casa Lata” em Palmarejo e “Brasil” na zona de Achada
Santo António. No entanto, em todas as zonas existem lugares que os moradores
revelaram não gostarem de frequentar por serem lugares de alto risco de violência
e criminalidade.
Tabela 4.15 - Percentual de Moradores por lugar aonde evita ir (10 maiores Percentuais) - Praia 2011
Lugar
Percentual
Baixo (Achada Grande Frente)
9,30
Achadinha Cima
6,40
Casa lata (Palmarejo)
5,81
Brasil (Achada Santo António)
4,65
Bagdá (Ponta Dágua)
3,49
Todas
3,49
Cutelo Babosa (Achadinha)
2,91
Meio Achada Santo António
2,91
Ponta tchitcharo (Achadinha)
2,91
Pinga Pinga (Ponta Dágua)
2,33
Fonte: Pesquisa Própria
Apesar de os moradores, na maioria, terem respondido que nunca foram
vítimas de violência e crime, deve haver um trabalho de fundo com o intuito
de esclarecer a falta de percepção desse problema por parte da sociedade. Se os
moradores apontam o fenómeno como o principal problema do bairro, evitam ir
a certos locais, cruzar com certas pessoas e sentem que existe a possibilidade de
serem vítimas a qualquer momento, então é porque de alguma forma estão sendo
vítimas, o que deve ser clarificado.
282
4.4 - Perspectivas e Desafios do Combate à Violência e Crime
na Praia e em Cabo Verde
Como se pode perceber, os resultados desta pesquisa revelam a existência de
diversos problemas sociais na cidade da Praia, fazendo com que os efeitos nefastos deles resultantes atrapalhem o real desempenho da população, levando as
autoridades a repensarem a maneira mais segura de desenvolver projectos e programas para fazer face ao combate do fenómeno da violência e crime. O aumento de sensação de insegurança na capital do país, derivada de novas formas de
violência e crime, novos contornos da globalização, leva a pensar e lutar cada vez
mais pela busca de novas formas de previnir e combater aos desafios impostos,
fazendo face às exigências da sociedade que ora se vê confrontada com a moderna
forma de viver e de conviver.
Na verdade, uma das maiores bases de combate à violência e crime é a prevenção. Ou seja, em relação à violência e criminalidade, a prevenção pode significar intentar ou formar acções antes que elas ocorram minimizando seus efeitos,
ou mesmo, para que elas não ocorram, eliminando os principais e potenciais
focos (LELLO e LELLO, 1986).
Como se sabe, Cabo Verde é um país de fracos recursos, tanto naturais como
económicos. A sua situação geográfica, ora chamada de geo-estratégico, tem facilitado a sua integração regional e mundial, captando alguns benefícios económicos e sociais, mas também, conhecendo e convivendo com vários malefícios
da conhecida globalização.
Naturalmente, não se convive com alguns males facilitadores de insegurança, a exemplo de tornados, enchentes, ciclones entre outros, que ao acontecerem
dão lugar a saques e pilhagens, no país como acontecem noutras paragens do
mundo. Contudo, a seca natural com a qual se convive anualmente poderá transformar-se num elemento facilitador de insegurança, com reflexos econômicos
na sociedade, podendo provocar, de entre vários males sociais, o desemprego, a
busca de outras fontes de renda muitas vezes de forma ilícita, complicando ainda
mais a segurança pública.
O investimento na educação, que é visto como um caminho a trilhar para
o desenvolvimento da sociedade e do país, também traz as suas preocupaçãoes,
sob a forma de globalização da sociedade de conhecimentos, colocando desafios
a entrentar em termos de segurança. Por exemplo, o ambiente de intenso de283
senvolimento tecnológico faz com que na escola, em casa, na rua se reproduza
a chamada pirataria, de variadas formas, com a reprodução de discos, de livros,
ilicitamente, levando ao empobrecimento da cultura e dos artistas e desincentivando a luta para o bem-estar individual e social.
Face ao aparecimento destes males sociais, torna-se coerente trabalhar novas
formas de enfrentá-las e combaté-las. Se não, pode-se estar adiante da ploriferação de insegurança, pondo em causa o desenvolvimento da sociedade. Hoje, a segurança é considerada não só uma matéria do governo e do Estado, mas também
uma preocupação da sociedade.
Um estudo realizado no Brasil, sobre a política nacional de segurança pública, aponta que uma das formas de combater a violencia e crime é a tealização da
reforma das instiuições de segurança pública, destacando a Polícia e o Judiciário,
que deverão investir na formação, na capacitação e treinamento, na valorização e
gestão de conhecimento (SOARES, 2007).
No caso de Cabo Verde, vive-se na Polícia uma das reformas que é a criação
da Polícia Nacional. Uma decisão boa, mas que carece de uma visão mais alargada de gestão da segurança pública. Em várias paragens do mundo a coordenação,
a unificação das forças de segurança é tida como um dos dasafios importantes
a conseguir, sem descurar os direitos humanos e a eficiência policial. As críticas
à actuação da Polícia poderão ser minimizadas quando observadas as modernas
formas de gestão policial e da segurança pública.
Soares (2007) refere-se a esta ideia, evidenciando a criação de um gabinete de
estudo, ou uma secretaria de segurança pública, envolvendo os vários actores sociais, políticos e económicos. Isto porque a segurança pública é hoje uma questão
transversal. Pois, criada a referida secretaria, ela terá como acções: a melhoria
do sistema prisional, sendo que, no caso de Cabo Verde, já se existe consciência
a esse respeito; a criação de centros comunitários, tendo programas locais de
desenvolvimento, em relação à qual também existe consciência de que é uma
boa alternativa (o exemplo de Safende, bairro considerado como sendo um dos
bairros mais problemáticos em termos de violência e crime).
Na verdade, o investimento em programas comunitários de combate à violência e crime não deve ser uma tarrefa só do Estado ou do governo. A sociedade
em geral deverá apoiar esta estratégia. Porém, não é o que se constatou nesta
pesquisa, como se pode ver na Tabela 4.16 (a variável disponibilidade em pagar
284
para alguma quantia em dinheiro para a implementação de programas de combate à violência). Observa-se que 27,65% dos entrevistados estão dispostos a não
pagar nenhum escudo para a implantação de programas de combate à violência e
crime. Os restantes entrevistados responderam que pagam alguma quantia para
essa finalidade (Ver também a Figura 4.19).
Tabela 4.16 - Percentual de moradores por valor disposto a pagar para a implantação
de programas de combate à violência – Praia 2011
Valor Disposto a Pagar
Percentual
Nenhum escudo
27,65
5 escudos
1,18
10 a 50 escudos
21,76
50 a 100 escudos
18,82
100 a 500 escudos
15,88
500 a 1000 escudos
14,71
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 4.19 - Percentual de moradores por valor disposto a pagar para a implantação
de programas de combate a violência – Praia 2011
Fonte: Pesquisa própria
285
De forma semelhante, a população demonstra o nível de confiança que tem
na decisão de disponilizar ou não recursos para implementação de políticas de
combate à violência e crime. A Tabela 4.17 apresenta o percentual da variável “nível de confiança da resposta”, verificando-se que uma boa parte dos entrevistados
tem nível de confiança de 75% a 100%, representando 33,33% do total. A Figura
20 evidencia essas informações.
Tabela 4.17 - Percentual de moradores por nível de confiança da resposta
Nível de confiança da resposta (em %)
Percentual
0 a 25
22,62
25 a 50
22,02
50 a 75
22,02
75 a 100
33,33
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 20 - Percentual de Moradores por nível de confiança da resposta
Fonte: Pesquisa própria
Talvez, os moradores da cidade da Praia necessitem de mais informações para
clarificar as suas ideias, levando-os a refletirem conscientemente como e quando
se deve dispendiar recursos, ou como se consege gastar para ter alguns benefícios, o que é de todo importante para minimizar a problemática existente. Todos
querem segurança, mas existe dificuldade em disponibilizar esforço tanto fisico
286
como psicológico e muito menos esforço económico, para driblar estes problemas
sociais, principalmente a onda de violência no país. Este é um dos desafios importantes a vencer: incutir nas pessoas o contributo que podem dar, começando
pela família, vizinhança e amigos.
É importante mencionar a questão da auto-protecção que constitui também
uma verdadeira arma de luta contra a violência. Os moradores poderão investir
na cultura de paz, de solidariedade, de tolerância como forma de se protegerrm
das mazelas que podem aparecer, obrigando as pessoas ao redor a terem também
essas atitudes.
A Tabela 4.18 apresenta o percentual da variável “despesas de auto-proteção”,
não só aquelas referidas mas as despesas em termos económicos. Verifica-se que
a maioria, ou seja, 61,40% dos entrevistados, não pagaria nenhum escudo pela
auto-proteção. A Figura 21 evidencia essas informações.
Tabela 4.18 - Percentual da Variável Despesas de Auto-Proteção
Despesas de Auto Proteção
Percentual
Nenhum $
61,40
0 a 25.000$
18,42
25.000 a 50.000$
12,28
Maior que 50.000$
7,89
Total
100,00
Figura 21 - Percentual da variável despesas de auto-proteção
Fonte: Pesquisa própria
287
Por outro lado, quando perguntados se alguma vez se sentiram psicologicamente afectados pela violência, verifica-se que os moradores, na maioria, responderam que não, revelando quase uma autêntica desatenção relativamente aos
problemas que os afectam. Ou seja, as respostas equivalem a dizer que os moradores não se sentem seguros em andar na rua onde moram e na vizinhanca, ou
que existe a possibilidade de eles serem vítimas de violência, mas que, entretanto,
isso não os afecta psicologicamente, o que é uma contradição.
A Tabela 4.19 apresenta o percentual de moradores “vítimas afetadas psicologicamente pela violência”. Ao analisá-la, verifica-se que a maioria dos entrevistados, 93,57%, respondeu que não foi afetada psicologicamente pela violência
e a Figura 22 evidencia essas informações. A análise dessas respostas à luz das
anteriores mostra que, no fundo, a violência e a criminalidade afectam, sim, os
moradores, apesar de terem respondido negativamente.
Tabela 4.19 - Percentual de Moradores afetados ou não psicologicamente pela violência
Vítimas afetadas psicologicamente pela
violência
Percentual
Sim
6,43
Não
93,57
Total
100,00
Fonte: Pesquisa própria
Figura 22- Percentual de Moradores afetados ou Não psicologicamente pela violência
Fonte: Pesquisa própria
288
Entretanto, de entre outros dasafios que esta sociedade atravessa hoje aponta-se a convivência com a droga em associação a vários tipos de crimes, com
destaque para a chamada “lavagem de capital”. O caso de maior realce e mais
mediatizado até o momento é o que foi apelidado de “Operação lancha voadora”.
Nesta acção houve a apreensão de uma boa quantidade de droga, de várias pessoas, de viaturas, de dinheiro etc. Diz-se então que tornar o dinheiro adquirido
de forma obscura e muitas vezes ilícita num dinheiro aparentimente limpo, tem
reflexos de forma rápida na sociedade, sob a exibição de bens, e gera influências
para outras práticas negativas. Uma solução possível de combate a este fenómeno
poderá ser a criação de um laboratório contra lavagem de capital, como existe em
várias paragens do mundo.
Zavataro e Durante (2007) traçaram uma linha diferente, num estudo sobre
“os limites e desafios da evolução da gestão da segurança pública”, evidenciando
a importância do uso de indicadores de avaliação de desempenho para monitorar
as acções dos gestores públicos. Muitas vezes as decisões dos gestores públicos
são tomadas com base em questões pessoais, sem a mínima preocupação com
os resultados almejados pela própria adminstração pública. E isto constitui um
verdadeiro problema a enfrentar e um desafio a vencer.
O cuidado com as diferenças educacionais e sociais entre a elite política e a
restante população deverá ser uma preocupação constante. A postura de o estado
garantr à elite toda a mordomia, muitas vezes sem se lembrar da classe social mais
desfavorecida, poderá levar ao enfurecimento dos menos poderosos, dos mais
pobres, conduzindo-os a aceitarem as ofertas da globalização como a droga, a
falsa religião, a entrada no mundo do crime só para poderem vingar a diferença
imposta pelo estado. No entanto, há de se ter cuidados nestes casos.
Para isso, há que existir princípios de estruturação das organizações públicas
e privadas, estabelecendo regras com rigor e efectividade. Da´a pertinência de alguns princípios tidos como basilares dessa estruturação que é o da “continuidade
e da erradicação patrimonial”. De entre vários, há que considerar a impessoalidade e a neutralidade do corpo dos funcionários no sentido de separação entre o
ocupante e o cargo, implicando que o burrocrata deva agir não como pessoa, mas
como ocupante do cargo. Aponta-se ainda, a valorização da selecção meritocrática dos funcionários e da profissionalização da carreira administrativa (BRESER,
2001, apud DURANTE e ZAFATARO, 2007).
289
Da mesma forma, verifica-se entre os funcionários públicos devem existir
normas e regras para garantir que estes defendam o interresse do público não
apenas de alguns consumidores preferenciais, devendo também, desenvolver capacidades e habilidades gerenciais para actuarem como administradores, como
produtores, como inovadores e como mediadores.
Nesse âmbito é importante a questão da “Continuidade”. Alguns avanços
da gestão da segurança pública muitas vezes passam por sérios problemas de
continuidade quando ocorrem mudanças de contextos de gerência política em
Segurança Pública. Isto é, verifica-se que as mudanças de gestão constituem um
sério problema quando não se considera o princípio de continuidade. A continuidade refere-se às políticas devidamente estudadas e comprovadamente viáveis
e de necessidade extrema. A sua não implementação pode pôr em causa o cabal
funcionamento da instituição (ZAFATARO, 2007).
Como exemplo de avanços apontam-se factos de extrema relevância, como o
caso do uso de sistemas informáticos para registo de ocorrências, atendimento,
despacho de viaturas, administração de recursos humanos e materiais, administração financeira etc. Também como medida de precaução e prudência, consudera-se que em nenhuma gestão de segurança pública se deve, por exemplo, criar
condições novas para funcionamento duma estrutura institucional sem que haja
um estudo de causa/efeito ou benefício da criação destas condições.
Um exemplo é a administração de um hospital em que se privegia a pintura
das paredes das salas e a criação de melhores condições de trabalho do pessoal
mas em que se verifica o aumento contínuo do número de óbitos de pacientes.
Quer isto dizer que a gerência do hospital não está a se preocupar com a causa dos
óbitos, mas sim em atender os meios físicos para o desenvolvimento do trabalho
dos funcionários. Este facto reflecte muito menos do que a morte ou o óbito
registado naquele hospital com implicações negativas sobre a segurança pública.
A resolução da questão de segurança pública é hoje transversal e impõe a
busca de suas causas em tempo oportuno para se conseguir encontrar e utilizar
instrumentos facilitadores da sua gestão. Na verdade, a violência e criminalidade
são apontadas como algo que às vezes ultrapassa o controle das autoridades e não
são determinadas pelo que os agentes de combate fazem ou pelo número dos
agentes disponíveis, mas sim, por outros factores de maior importância (económicos, sociais etc.).
290
CAPÍTULO V
ASPECTOS CONCLUSIVOS
Pode-se dizer que durante o período a que o presente estudo se propôs conhecer e analisar os custos da violência e da criminalidade em Cabo Verde houve constantemente a tendência de aumento das mesmas. Comparandos os dois
orçamentos, vê-se que o aumento desses custos não se mostrou proporcional ao
aumento dos custos de investimento e de funcionamento das instiuições estudadas, não obstante a tendência de crescimento anual de ambos.
Somando e dividindo os números percentuais, pode-se afirmar que, no período de 2006 a 2010, os custos da violência e crime estudados tiveram um peso
orçamental que rondam em média os 5,29%. Ou seja, em números monetários, a
média do periodo é de 3.830.309.462,29 ECV. No primeiro ano o custo total era
de 3.169.796.675,43 ECV, chegando no último ano a ser de 4.718.336.894,00
ECV.
Dividindo-os em aqueles que o Estado escolhe gastar livremente – “custos
exógenos” – e em aqueles que são resultados da acção do crime – “custos endógenos” – pode-se constactar que os custos exógenos decorrentes da violência e crime
tiveram um peso no orçamento estatal cuja média é de 4,97%. Ou então, no ano
de 2006 o seu peso era de 4,83% e no ano de 2010 passou para 4,97%. Visto
em números monetários, tem-se um total de 2.993.315.469,43 ECV de custos
em 2006 e 4.308. 345.616,00 ECV em 2010. Estes montantes foram saídos do
orçamento do estado, do lado Investimento para programas correcionais e de
desenvolvimento e, do lado Funcional/Orgânica para os programas situacionais
ou serviços que relacionam directamente com a questão de segurança pública.
Por outro lado, hpá os custos endógenos, cujo peso médio é de 0,32% durante o
periodo. De realçar que a contabilização deste custo é que se revelou mais difícil
por haver falta de registo de dados ou falta de informação.
Assim, o registo e o tratamento de informações constituem constrangimentos, impondo desafios das consequências da violência e criminalidade que devem
ser enfrentadas e resolvidas. Pois, parecem ser procupantes, visto que, determi291
nados custos delas decorrentes, ainda não poderão ser contabilizados. Como
exemplo, apontam-se os custos para correcção dos danos. Ou seja, custos de
tratamento hospitalar e custos com furtos e roubos. Associado a estes, também
outros custos poderiam ser estimados, pois, como foi visto na revisão bibliográfica, são de difícil mensuração. É o caso da dor, do sofrimento das vítimas e de
seus familiares, considerados custos intangíveis.
Assim sendo, vê-se que o Etado conscientemente sabe que gasta e deve gastar
sempre para combater os males sociais existentes no país, nomeadamente sobre a
questão da violência e crime. Pois, saber onde, em que programas investir e qual o
seu custo/benefício deverá ser a preocupação de todos. Porém, mesmo o Estado,
muito menos as famílias e particularmente pessoas individuais, sabem quanto
gastam ou qual é o custo que a violência e crime têm para eles.
Algumas pessoas têm a consciência de que devem esforçar-se conjuntamente
com as instituições do Estado, fazendo a parte que lhes cabe para conter a onda
da violência que se vive na Praia. É o que se percebeu na pesquisa, quando foi
perguntado à população se está disposta a disponibilizar meios monetários para
a implementação de programas de combate à violência e crime na Praia, tendo
27,65% respondido negativamente, isto é, que tem a não a intenção de disponibilizar nenhum escudo para implementação destes programas. Os restantes
responderam que, de alguma forma, querem disponibilizar recursos para fazer
face ao problema.
Considera-se aqui a questão do risco real e do risco percebido. Ou seja, a população não quer disponibilizar seu tempo nem dinheiro em soluções de combate
ao crime e à violência. Conscientemente e com um bom nível de confiança mostrou reservas em disponibilizar dinheiro ou accões em programas comunitários
e outros de combate ao problema social existente, alegando não ter isco ou que
controla esse risco. Entretanto, só consegu, por exemplo, perceber o perigo real, a
partir do momento em que pensar ou decidir sair ou andar na rua.
Então, uma das respostas foi: “Não dá para andar em certas ruas porque
posso ser assaltado”. Na verdade, nessa situação a população consegue ver o real
risco e perceber o problema e toma a decisão. Daí que o importante seria não
esperar pela ocorrência dessa dituação para se decidir, mas sim estar apto a tomar
a decisão mesmo dentro de casa, desenvolendo acções de carracter intrafamiliar
e intracomunitária.
292
Por outro lado, a imaginação geral leva muita gente a crer que a solução
está, por exemplo, em ter mais policiais nas ruas. Ou seja, quanto mais polícias,
melhores as soluções para a questão da violência e da criminalidade. Mas, na
prática isso não se verifica, pois o próprio agente detentor de poder legítimo da
força, exercndo-o em nome do Estado, assume posturas equivocadas gerand mais
violência. Ou seja, o próprio agente da lei cuja função primordial é proteger a todos, encontra-se, muitas vezes, em situações adversas geradoras de criminalidade,
levando ao que foi chamado de violência difusa.
Há necessidade de racionalizar, repartir as intervenções e usar as novas tecnologias, visto que o problema da violência e criminalidade não está a diminuir,
mas, pelo contrário, a crescer continuamente, constituindo uma preocupação
permanente para as famílias e instituições, principalmente policiais.
Reiss (2003) recomendou a necessidade de se redimensionar as novas tecnologias sociais, dando maior ênfase nas pesquisas de soluções de problemas, nas
engenharias das relações sociais e técnicas organizacionais para administrar os
problemas humanos.
O Estado ou o governo não quer abrir mão da posição que lhe dá o poder sem
muita responsabilização, através dos complexos modelos de mediação que lhe
asseguram o controle e o protegem da responsabilização. Lembra-se que perante
a proliferação de instituições e processos de policiamento a questão de responsabilização pode agudizar-se. Então há necessidade de esclarecer as evidências para
que se minimize o se resolva o problema na sua globalidade.
É notável o sentimeneto de insegurança que se vive no país, principalmente
na Capital, e é também visível o esforço que vem sendo feito por parte governo
para combater a onda de violência e crime, através das suas instiuições de segurança pública, investindo em áreas estratégicas e disponibilizando orçamentos
anuais para o efeito. Por exemplo, a lei sobre a VBG (violência baseada no gênero), muito falada e mediatizada, na atuaçidade, constitui um dos esforços na
busca de novos modelos de gestão de conflitos intrafamiliares. O certo é que se
deve melhorar a implementação desta lei de modo a não chocar com interreses
particulares e, assim, gerar mais violência.
Apesasar do esforço do Estado em direcionar investimentos para as áreas de
segurança pública, para fazer face a inúmeras dificuldades sociais existentes, e
principalmente para conter as ondas de violência e ciminalidade em Cabo Verde
293
e com maior intensidade na Cidade da Praia, não se constata nos resultados a
diminuição do sentimento de insegurança da população. A sociedade praiense
tem-se queixado, cada vez mais, do medo, tanto no ambiente familiar como fora
dele, evitando frequentar certos lugares, curzar-se com determinadas pessoas,
não sentindo, enfim, segura em andar na rua, o que indica estar insatisfeita com
a segurança do seu bairro.
Essa realidade exige haver mais empenho por parte do Estado e mais acções
em adquirir melhores meios, melhores conhecimentos, realizar mais pesquisas e
implementar programas que vão ao encontro dos reais problemas relacionados
com a segurança pública, a exemplo da violência e do crime, para a sua minimização.
É preciso que o Estado lute e vença os desafios impostos pela modernização e pela globalização, especializando as suas instituições voltadas para a segurança pública, coordenando estratégias, unificando a recolha e tratamento das
informações, para uma melhor tomada de decisão com direcionamento de investimentos para áreas estratégicas e de maior interesse.
5.1 - SUGESTÕES
Dentre os vários meios de estudo sobre a problemática da violência e criminalidade pode-se destacar a criminologia moderna, demonstrando que se deve
combater o crime na sua prevenção conhecendo as suas raízes e suas causas, deixando de direcionar responsabilidades para partes específicas como a polícia ou o
infrator. Entretanto, se destaca três formas de prevenção: a primária a secundária
e a terciária (BIROL, 2007).
Como a prevenção primária é ressalvada a educação, a habitação, o trabalho,
a inserção do homem no meio social e a melhoria na qualidade de vida.
Na secundária se destaca a política legislativa penal, a ação policial, políticas
de ordenamento urbano, controle dos meios de comunicação etc.
A terciária tem já o destinatário identificado que é o recluso, o condenado,
buscando assim prevenir através da sua ressocialização.
Então, como exemplo de programas de prevenções primárias destaca-se a
prevenção sobre as áreas geográficas identificando o crime como sendo um pro294
duto social de urbanismo, levando o ser humano a comportar-se de uma determinada forma por estar moldado por vetores socio-ambientais. Daí deve surgir
a intervenção dos poderes públicos em programas de reordenação urbana como
as infra-estruturas para desportos e recreação e para organização da vizinhança.
De forma semelhante exemplifica-se com programas de reflexão sobre valores comportamentais. Destaca-se que a criança e o adolescente apreendem-se
conforme o ambiente em que se encontram. Então, há necessidade de diminuir o
facto de as pessoas conviverem com certas práticas de certas pessoas, levando-os a
adotar um certo comportamento social, visto a partir das suas práticas e atitudes
comportamentais, esses muitas vezes negativos. O exemplo pode ser, programas
interventivos no aspecto de reconhecimento (controle da ira, autocontrole para se
conhecer, aprendisagem moral e desenvolvimento do empatia social).
Mais um programa de prevenção, seria a prevenção de delito político social
como as desigualdades sociais, conflitos não resolvidos etc. Aqui é introduzida
a teoria de anomia de Durkhein, que aponta para o crime como sendo fruto
de estimulação de desejos, decorrentes da constante modernização social. Aí, o
indivíduo como não pode estar sem o que fazer busca preencher o tempo ou o
espaço vazio, mostrando que o desejo do homem é sempre maior que os recursos
disponíveis, motivando-o para a delinquência por causa da impossibilidade de
atingir certas metas. Um exemplo de programas para esses casos pode ser o de
ensinamento de ser bom pai, (incluindo o estabelecimento de limites, mediação
e resolução não violenta de conflitos), capacitando as suas habilidades sociais.
Outro especto de destaque vai para a instituição policial que quando se fala
em aumento ou diminuição da violência e criminalidade, esta aparece como principal actor. E mesmo no nosso estudo deteta-se que uma boa parte dos investimentos foi para as áreas policiais. Assim sendo, se espera sempre mais da polícia,
desde sua acção de prevenção como em outros campos. Por exemplo, é mostrada
a necessidade de trabalhar a cultura de medo da polícia que existe quando se fala
na prevenção da vítima. Isto é, o atendimento à vítima de violência e crime deve
constituir um auxílio desejoso e motivador. A maneira como atende as necessidades das vítimas revela como a organização está operando, se cumpre as suas
responsabilidade essenciais ou se está a justificar a sua estrutura organizacional e
suas estratégias operacionais.
Então, o atendimento passa a ser um dos fatores de práticas de aumento ou
295
diminuição de número de crime. Um mau atendimento nos órgãos policiais pode
ser motivo de grandes frustrações levando as vítimas muitas vezes a desistirem de
registar as ocorrências em muitos casos. A vítima deve ser vista pela polícia como
um aliado e não como um suspeito em certos casos (JORGE e LIMA, 2003,
apud BORILLI, 2007).
A existência de cresce, berçário ou espaço adequado para criança vítimas
diretas ou indiretas, da violência e crime, são medidas que tornariam o ambiente das esquadras mais aconchegantes. A assistência social, psicológica e jurídica
também pode ser imprescindível. Tomando estas medidas haveria uma consequente melhoria de serviço prestado pela polícia, aumentando a confiança da
população, fazendo com que haja uma maior denúncia de crimes e uma maior
colaboração na investigação, diminuindo assim a impunidade.
Por outro lado se encontra a questão das leis. Elas devem ser produzidas a
partir de critérios científicos e testes com grupo de controle, disseminação do seu
conteúdo observando assim, a sua eficácia social. Entre os crimes de menor relevância buscar a conciliação entre a vítima e o agressor através de mediação entre
as partes proporcionando a ambos a oportunidade de se refletir sobre o assunto
ou o caso, restaurando a harmonia social desejado. Este para dizer que os tribunais não devem preocupar só com o fim do processo mas sim com a conciliação
das partes.
Em Cabo Verde a violência e criminalidade têm sido circunscritos aos órgãos
executivos, como o Ministério e Administração Interna e Justiça onde se limita a
delegar e dirigir esforços aos órgãos policiais, (a Polícia Nacional e a Judiciária).
Na verdade, a atuação da polícia e extremamente importante. Contudo, o esforço
para o controlo da violência requer uma posição estratégica global do governo
deixando de direcionar a responsabilidade unicamente ao aparato policial. Os
esforços entre as partes como a educação, saúde, desporto, promoção social, associações de classes, órgãos de justiça, entidades académicas e comunitárias poderá
conduzir aos pontos de cooperação e de conflitos, resolvendo o problema de aplicação de recursos que são cada vez mais escassos.
Da mesma forma a eficácia da polícia poderá ser obtida pelo estudo e análise
das estatísticas oficiais, baseadas nos registros de factos ocorridos sobre violência e crime nas esquadras policiais, nos tribunais e noutros locais de registo da
problemática. Enfim, tendo uma fonte de tratamento de dados, com recursos
296
humanos qualificados facilita no diagnóstico de problema, permitindo fugir de
possíveis erros principalmente quando o trabalho de diagnóstico é voltado para o
exterior. Alguns expedientes de marketing ocasionados por algumas chefias das
polícias como a criação de novas unidades especiais, mudando algum visual das
polícias sem diagnóstico e sem avaliação de impactos, aplicando amplas e espalhafatosas operações, podem desembocar em verdadeiro arbítrio.
Algumas estratégias improvisadas várias vezes aplicadas nas operações policiais em Cabo Verde e muitas vezes na Cidade da Praia, aparentam ser inúteis
e perniciosos. Gasta-se recursos, desgasta as actividades de prevenção, não evita
o crescimento da violência e agrava a violência policial. Estas complicações são
explicadas pela avaliação incorreta e incompleta de diagnósticos, que muitas vezes são voltadas só para o ambiente externo onde as variáveis são incontroláveis,
esquecendo de diagnosticar variáveis controláveis do ambiente interno que constitui uma força para influenciar o ambiente externo (BEATO FILHO, 1999).
Há que existir a vontade, a determinação dos chefes de serviços públicos,
tomando decisões difíceis deixadas pelos seus antecessores. Decisões que resolvem problemas, deixando de apenas cumprir as rotinas do cargo. Decisões por
exemplo, como os que vão de encontro aos princípios de austeridade e finalidade
de aplicação de recursos escassos, como estruturas inúteis que desviam esses recursos, unificação dos bancos de dados, principalmente quando se trata de dados
criminais etc.
Em fim, há que ter mais atenção em temas de administração e técnicas gerenciais, que num ou noutro momento só são accionadas quando se dá um escândalo na imprensa. Da mesma forma, estender a eficácia no uso económico
de recursos para todas as áreas, deixando de aplicar a eficácia, por exemplo, só
quando se fala em combustíveis. Há que ter mais atenção à questão de avaliação
de desempenho, mais atenção ao desenvolvimento institucional e alguns programas de maior qualidade como, a adesão aos modernos serviços oferecidos pelos
sistemas informacionais.
Por outro lado e respeitando o princípio de igualdade entre os seres humanos,
isto vendo para as instituições policiais, deve se dar a mesma importância entre
os postos de hierarquia policial e as funções policiais. O pessoal de policiamento,
muitas vezes passa por momentos de regime disciplinar opressivo, onde a possibilidade de infringir as normas e regulamentos são maiores. Daí pode haver
297
uma deficiente prioridade na alocação de recursos escassos, lavando o pessoal a
sentir-se desprestigiado, sem autonomia para planear, apresentando fraca criatividade, inexistência de iniciativa e alguma motivação para o abandono ou se não
a descontracção.
Assim, o tratamento dos recursos humanos que é o principal insumo numa
sociedade, numa organização, principalmente a organização policial, deve estar no centro das melhores atenções, proporcionando a eficácia e a eficiência na
orientação dos recursos disponíveis atingindo, entretanto, os melhores e desejosos resultados.
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300
APÊNDICE
301
Curso de M e strado e m Se gurança Pública:Ge stão de De fe sa Social e M e diação de Conflitos
Unive rsidade de Cabo Ve rde
e
Unive rsidade Fe de ral do Pará
Que stionário da captação da de sposição a pagar para uma re dução da violê ncia e
criminalidade na cidade da Praia
Bairro/Zona______________
Data____/____/_____
Que stionário nº_____
BLOCO I-AS PÉCTOS S ÓCIO-ECONÓMICOS E DEMOGRÁFICOS
01-Sexo
Feminino
Masculino
02-Idade:__________
03-Estudou até que ano de escolaridade? 1˚Ciclo
2˚Ciclo
4-Qual a sua ocupação?
5-Qual é o seu salário mensal em escudosCV?
Própria
Alugada
8-Possui seguro patrimonial e de Carro?
4˚Ciclo
Aposentado/Pensionista
Funccionário Privado
16.000 a 30.000
60.000 a 120.000
Menor que 16.000
6-Número de membros da família:_______
7-Moradia?
3˚Ciclo
Desempregado/Inativo
Funicionário Público
Autónomo/profissional Liberal
30.000 a 60.000
Maior que 120.000
Nenhum escudos
Outra _________________
Sim
Não
BLOCO II- CAPTAÇÃO DE S ENTIMENTO DE INS EGURANÇA DOS INDIVÍDUOS
1-Como considera o nível de segurança em seu bairro?
Alto
Médio
Não possui segurança
Baixo
2-Você está satisfeito com a actual sistema de segurança do seu bairro?
Sim
Não
2.2-Se não,porqué?
Fraca cobertura policial
Fraco envolvimento dos moradores
Dificiente envolvimento do sistema judicial na resolução de conflitos
Outros____________________________________________________
2.1-Em sua opinião qual é o problema mais sério da sua comunidade?
Iluminação pública
Abastecimento de água
Vioência e Criminalidade
Transporte colectivo
Esgoto sanitário
Outro____________
4-Sente-se seguro em andar na rua/vizinhança ao escurecer?
Sim
Não
5-Evita cruzar com algumas pessoas quando andar sozinho?
Sim
Não
6-Evita ir certos locais na tua zona?
Sim
Não
6.1-Se sim, indica o nome de local___________________
7-Alguma vez já foi vítima de violência e criminalidade?
Sim
Não
7.1-Se sim, qual?________________________________________________________________
7.2-Alguma vez sentiu psicologicamente afectado por causa da Violência e Crime?
7.3-Acha que existe possibilidade de seres vítima na zona onde moras?
8-Interessa por alguma notícia da Polícia?
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Não
8.1-Se sim. Quais?_______________________________________________________________
9-Tem medo da Polícia?
Sim
Não
9.1- Se sim, porquê?_____________________________________________________________
BLOCO III-CAPTAÇÃO EM TERMOS MONETÁRIOS DA PERDA DE BEM ES TAR
AS S OCIADO A VIOLËNCIA CRIMINALIDADE(VC)
1-Alguma vez a sua casa foi assaltada?
sim
não
2-Sim sim, quantifica em termos monetários o valor do prejuíso.__________________
NENHUM $
2.1-Quantifica em termos monetários(escudos) as despesas efectuado na
0 a 25.000$
autoprotecção (grades alarmes, blindados) na casa/apartamento onde moras.
25.000 a 50.000$
M AIOR q. 50.000$
2.2-Alguma vez pagou processos judiciais por causa da violência e crime? Sim
Não
2.3- Se sim, quantifica em valor monetário._______________________________
Programas de combate a VC a serem implementadas.
I- No sector da Justiça, ter centros alternativ os , descentralizados para resolução de disputas de
(espaço, terreno, lugar) etc.;
II-No sector de Serv iços Sociais, ter Serv iços Comunitários Integrados (Centro de Recreação);
III-No sector de sociedade Civ il, Capacitação das ONG´s para cooperar e monitorar os esforços
de reforma da polícia.
1-Quanto você estaria disposto a pagar a mais na sua conta de telefone para que os programas
acima sejam implementadas?
Nenhum escudo
10 a 50 escudos
50 a 100 escudos
100 a 500 escudos
500 a 1000 escudos
Outras contrinuições:_____________________________
2-Qual o nível de confiança relativo a sua resposta anterior em %?
MUITO OBRIGADO!!!
302
ANEXOS
303
Anexo A1 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2010.
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Justiça
Total
Executado
%
Eficiência da justiça
Melhoria da prestação dos serviços de registo e
notariado e identificação
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E
Ao Direito
Total Geral……
201.739.800,00
190.857.550,00
94,61
184.525.332,00
147.246.356,00
79,80
48.766.000,00
435.031.132,00
338.103.906,00
77,72
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Segurança
Total
Executado
%
Melhoria da segurança dos transportes rodoviários
Prevenção e combate à droga
Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária
Total Geral……
15.145.303,00
391.024.190,00
14.924.718,00
315.603.506,00
98,54
80,71
406.169.493,00
227.788.041,00
56,08
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Protecção e integração Social
Total
Executado
%
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupos Alvo
Melhoria das condições de trabalho e das relações
entre os parceiros Sociais
Promoção e apoio às iniciativas locais e de
desenvolvimento comunitário
Protecção dos direitos das crianças e adolescentes
Total Geral……
602.856.684,00
600.981.889,00
99,69
5.425.476,00
5.354.758,00
98,70
38.339.397,00
94.428.572,00
741.050.129,00
38.339.301,00
69.660.815,00
714.336.763,00
100,00
73,77
96,40
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2010
304
Anexo A2 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2009.
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Justiça
Total
Executado
%
Eficiência da justiça
Melhoria da prestação dos serviços de registo e
notariado e identificação
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E
Ao Direito
Total Geral……
254.382.171,00
150.580.230,00
59,19
51.400.000,00
38.199.890,00
74,32
46.292.496,00
352.074.667,00
33.560.305,00
222.340.425,00
72,50
63,15
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Combate À Criminalidade E À Droga E
Preservação Da Segurança
Total
Executado
%
Luta Contra A Droga
Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária
Total Geral……
267.325.193,00
221.125.680,00
82,72
267.325.193,00
221.125.680,00
82,72
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Protecção e integração Social
Total
Executado
%
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupos Alvo
Promoção e apoio às iniciativas locais e de
desenvolvimento comunitário
Protecção Especial A Crianças E Adolescentes Em
Risco
Total Geral……
484.270.591,00
475.529.087,00
98,19
21.000.000,00
19.899.553,00
94,76
69.185.570,00
574.456.161,00
51.222.212,00
546.650.852,00
74,04
95,16
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2009.
305
Anexo A3 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2008.
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema
De Justiça
Total
Executado
%
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E
Ao Direito
Reforço Da Administração Da Justiça
Melhoria da prestação dos serviços de registo e
notariado e identificação
Total Geral……
101.281.000,00
765.116.791,00
51.100.797,00
324.847.614,00
50,45
42,46
14.200.000,00
880.597.791,00
375.948.411,00
42,69
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Combate À Criminalidade E À Droga E
Preservação Da Segurança
Total
Executado
%
Luta Contra A Droga
Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária
Total Geral……
150.100.000,00
75.331.770,00
225.431.770,00
122.818.444,00
122.818.444,00
81,82
0,00
54,48
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Protecção, Inserção E Integração Social
Total
Executado
%
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupos alvo
Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De
Desenvolvimento comunitário
Protecção Especial A Crianças E Adolescentes Em
Risco
Total Geral……
393.881.640,00
393.004.154,00
99,78
20.700.000,00
20.632.732,00
99,68
49.442.978,00
464.024.618,00
40.289.596,00
413.636.886,00
81,49
89,14
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2008.
306
Anexo A4 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2007.
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema
De Justiça
Total
Executado
%
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E
Ao Direito
Reforço Da Administração Da Justiça
Melhoria da prestação dos serviços de registo e
notariado e identificação
Total Geral……
97.598.868,00
103.779.721,00
37.534.258,00
34.729.721,00
38,46
33,46
25.000.000,00
226.378.589,00
22.000.000,00
94.263.979,00
41,64
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Combate À Criminalidade E À Droga E
Preservação Da Segurança
Total
Executado
%
Luta Contra A Droga
Reforço E Modernização Da Polícia Judiciária
Total Geral……
93.881.254,00
100.000.000,00
193.881.254,00
93.625.883,00
85.356.008,00
99,73
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Protecção, Inserção E Integração Social
Total
Executado
%
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupos alvo
Protecção dos Direitos das Crianças e Adolescentes
Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De
Desenvolvimento comunitário
Total Geral……
373.549.388,00
78.051.727,00
373.548.434,00
100,00
25.507.443,00
477.108.558,00
25.507.443,00
399.055.877,00
100,00
83,64
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2007.
307
Anexo A5 : Quadro Orçamento Programa Plurianual de Investimentos Públicos em Cabo Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2006.
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Melhoramento Do Funcionamento Do Sistema
De Justiça
Total
Executado
%
Direitos Humanos E Garantia Do Acesso À Justiça E
Ao Direito
Reforço Da Administração Da Justiça
Melhoria da Prestação dos Serviços de Registo e
Notariado e Identificação
Total Geral……
62.218.823,44
75.288.784,17
354.708.633,00
193.866.540,00
12.180.000,00
659.630,00
429.107.456,44
269.814.954,17
121,01
54,66
5,42
62,88
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Combate À Criminalidade E À Droga E
Preservação Da Segurança
Total
Executado
%
Luta Contra A Droga
Total Geral……
129.893.366,00
129.893.366,00
37.576.159,50
37.576.159,50
28,93
28,93
Programa plurianual de Investimentos Públicos(áreas relevantes da Segurança pública em estudo) ano de 2010
Protecção, Inserção E Integração Social
Total
Executado
%
Capacitação Institucional, Orgânica E Técnica Do
Sector
Desenvolvimento De Uma Capacidades De
Intervenção Para Grupo alvo
Promoção E Apoio Às Iniciativas Locais E De
Desenvolvimento
Protecção dos Direitos das Crianças e Adolescentes
Total Geral……
1.102.650,00
1.042.114,52
395.950.120,00
320.899.960,00
80.540.437,99
98.271.768,41
109.686.939,00
587.280.146,99
97.950.447,88
420.213.842,93
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2006.
308
94,51
81,05
122,02
89,30
71,55
Anexo A6 : Quadro Orçamento Investimento e de Funcionamento em Cabo
Verde( areas relevantes da Segurança Pública em Estudo) durante o ano de 2006
a 2010.
ORÇAMENTO INVESTIMENTO
ÁREAS RELEVANTES
Orçamento Investimento
2006
Variação Percentual(%)
2007
2008
2009
2010
Estrutura
2007 2008 2009 2010 2006 2007 2008 2009 2010
Orçamento Executado
2006
2007
2008
Percentual Executado
2009
2010
2006 2007 2008 2009
Justiça
429.107.456,44
226.378.589,00
880.597.791,00
352.074.667,00
435.031.132,00 -47,24 288,99 -60,02 23,56 37,43 25,23 56,09 29,49 27,49 331.680.243,17
252.280.941,00
375.948.411,00
312.135.770,00
364.005.468,00
77,30 111,44
Segurança
129.893.366,00
193.881.254,00
225.431.770,00
267.325.193,00
406.169.493,00 49,26 16,27 18,58 51,94 11,33 21,61 14,36 22,39 25,67 37.576.159,50
85.356.008,00
282.818.444,00
221.125.680,00
227.788.041,00
28,93
477.108.558,00
464.024.618,00
574.456.161,00
741.050.129,00 -18,76 -2,74 23,80 29,00 51,23 53,17 29,55 48,12 46,84 420.213.842,93
331.680.243,17
413.636.886,00
546.650.852,00
714.336.763,00
71,55
69,52
89,14
95,16
669.317.192,17 1.072.403.741,00
1.079.912.302,00
1.306.130.272,00
68,87
74,59
68,30
90,46
Protecção e integração Social
SUBTOTAL
587.280.146,99
1.146.280.969,43
897.368.401,00 1.570.054.179,00 1.193.856.021,00 1.582.250.754,00 -21,71 74,96 -23,96 32,53 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 789.470.245,59
Orçamento Funcionamento
Polícia Nacional
Comissão de C. C. a Droga
88,66
82,72
ORÇAMENTO FUNCIONAMENTO
AREAS RELEVANTES
Polícia Judiciária
42,69
44,02 125,46
100.889.107,00
143.677.816,00
147.960.271,00
168.414.684,00
Variação Percentual(%)
201.926.047,00
Estrutura
Orçamento Executado
42,41 2,98 13,82 19,90 5,46 6,44 6,50 6,74 7,41 99.195.064,00
105.391.723,00
Percentual Executado
124.640.466,00
166.087.609,00
173.446.025,00
98,32
73,35
84,24
98,62
1.091.335.544,00 1.358.489.250,00 1.412.597.149,00 1.566.795.664,00 1.724.173.033,00 24,48 3,98 10,92 10,04 59,09 60,86 62,01 62,66 63,25 993.499.432,00 1.231.821.241,00 1.271.870.524,00
1.383.838.593,00
1.568.754.719,00
91,04
90,68
90,04
88,32
11.250.044,00
13.023.803,00
13.804.540,00
15.975.649,00
15.647.481,00
15,77 5,99 15,73 -2,05 0,61 0,58 0,61 0,64 0,57
6.293.994,00
11.412.077,00
11.491.507,00
13.323.418,00
14.247.397,00
55,95
87,62
83,24
83,40
Estado Maior das forças armadas 592.631.877,00
645.819.599,00
631.461.716,00
648.987.331,00
680.496.692,00
8,97 -2,22 2,78 4,86 32,09 28,93 27,72 25,96 24,96 580.713.596,00
611.482.981,00
592.167.330,00
636.669.948,00
654.182.428,00
97,99
94,68
93,78
98,10
Supremo Tribunal De Justiça
25.507.576,00
43.768.201,00
43.718.893,00
48.038.880,00
55.394.704,00 71,59 -0,11 9,88 15,31 1,38 1,96 1,92 1,92 2,03 25.507.576,00
22.789.318,00
27.381.262,00
39.722.208,00
34.184.373,00 100,00
52,07
62,63
82,69
Procuradoria Geral Da Répública 25.420.352,00
27.399.252,00
28.375.968,00
52.161.535,00
48.456.905,00
26.717.943,00
26.951.164,00
44.248.760,00
SUBTOTAL
1.847.034.500,00 2.232.177.921,00 2.277.918.537,00 2.500.373.743,00 2.726.094.862,00
20,85 2,05 9,77 9,03 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 1.730.630.014,00 2.009.615.283,00 2.054.502.253,00
7,78 3,56 83,82 -7,10 1,38 1,23 1,25 2,09 1,78 25.420.352,00
2.283.890.536,00
2.483.870.696,00
39.055.754,00 100,00
TOTAL GERAL
2.993.315.469,43 3.129.546.322,00 3.847.972.716,00 3.694.229.764,00 4.308.345.616,00
-0,86 77,01 -14,20 41,56 200,00 200,00 200,00 200,00 200,00 2.520.100.259,59 2.678.932.475,17 3.126.905.994,00
3.363.802.838,00
3.790.000.968,00 162,57 164,62 158,50 181,80 173,
93,70
97,51
94,98
84,83
90,03
90,19
91,34
Fonte. Elaboração Própria a partir de Contas do Estado do ano de 2006 a 2010
309
O MOVIMENTO MIGRATÓRIO DA CEDEAO
PARA CABO VERDE NOS ANOS 2006 A 2010:
PERFIL DE IMIGRANTES DA GUINÉ-BISSAU,
NIGÉRIA E SENEGAL E RELAÇÃO IMIGRAÇÃOCRIMINALIDADE NESSE PERÍODO1
Augusto Andrade Mendes Teixeira
RESUMO
Entre os anos 2006 e 2010 houve um crescente fluxo migratório de cidadãos
da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) para Cabo Verde, em situação regular
e clandestina, de forma incisiva em relação ao de imigrantes dos demais países da
CEDEAO. Os dados oficiais sobre o número desses imigrantes são inconsistentes
e os serviços responsáveis não têm podido acompanhar a entrada e permanência
desses imigrantes, devido à inexistência de condições para o efeito. Ademais,
desconhece-se o perfil desses imigrantes. O senso comum associa o aumento da
criminalidade por parte de cidadãos africanos, em particular os considerados
no estudo, com o aumento da imigração. O objectivo geral da investigação foi
caracterizar o perfil dos imigrantes desses países, de 2006 a 2010, e correlacionar
a imigração e a criminalidade no período. Participaram imigrantes em situação
de liberdade e os reclusos na Cadeia central da Praia (CCP) ou Cadeia de São
Martinho. Fez-se a análise de documentos jurídicos relativos ao estrangeiro no
território nacional e outros respeitantes à circulação de pessoas na CEDEAO,
e acedeu-se a um conjunto de publicações sobre a insegurança, violência, criminalidade e imigração. A recolha de dados ocorreu na Direcção de Estrangeiros e Fronteiras da Polícia Nacional, na Procuradoria-Geral da República e nos
serviços penitenciários da CCP do Ministério da Justiça. De um universo de 3
475 imigrantes, constituiu-se uma amostra de 180, sendo 60 de cada um dos
1. Dissertação defendida no dia 12/03/2012 perante o Júri formado pelos Professores Doutores José Carlos
dos Anjos (Uni-CV), como Presidente, Clementina Baptista Furtado (Uni-CV) e Marcelo Galvão Baptista (Orientador – Uni-CV). O trabalho teve apoio do Ministério da Administração Interna de Cabo
Verde (MAI).
310
países. Desses imigrantes, 20 eram reclusos na CCP. Para o perfil dos imigrantes,
elaborou-se um questionário para as entrevistas e que teve em conta o idioma
da nacionalidade dos participantes. Recorreu-se ao coeficiente de correlação de
Pearson para verificar a eventual correlação linear entre imigração e criminalidade referidas. Constatou-se que os imigrantes são predominantemente masculinos
e jovens, com uma renda familiar inferior à de cabo-verdianos em circunstância
similar. São maioritariamente solteiros, com escolaridade ao nível do secundário,
inseridos na economia informal e destituídos da segurança social. Eles são, na
maioria, cristãos, o que desmistifica a avaliação de que os muçulmanos constituem ameaça para Cabo Verde. Dificuldades económicas nos países de origem
motivaram de forma mais premente a imigração e em conjunto com a impossibilidade de irem a outro lugar foram decisivos para os imigrantes permanecerem
em Cabo Verde. A ajuda de parentes ou amigos no país de acolhimento foi o que
mais pesou na organização da emigração, sugerindo existir, para isso, uma rede
social de apoio. A maioria é discriminada e maltratada pelos cabo-verdianos,
não obstante ocupar o tempo livre com eles, tê-los como amigos e estar satisfeita com a vida no país. Não se obteve correlação significativa entre imigração e
criminalidade em Cabo Verde envolvendo os imigrantes, no período do estudo,
indicando não contribuírem no incremento da criminalidade e, por conseguinte,
na insegurança interna. Destaca-se a necessidade de os serviços governamentais
reverterem a inconsistência de dados estatísticos sobre o fluxo migratório, em
particular, de cidadãos da CEDEAO para Cabo Verde, a pertinência de estes
serem sensibilizados sobre os limites da livre circulação prevista na legislação,
e a pertinência de regulamentação dos aspectos fundamentais concernentes ao
referido fluxo migratório.
Palavras-chave: Movimento Migratório. Relação Imigração-Criminalidade. Rede de Apoio Social. Integração de Imigrantes na CEDEAO.
311
THE MIGRATORY MOVEMENT FROM ECOWAS
TO CAPE VERDE FROM 2006 TO 2010: GUINEABISSAU, SENEGAL AND NIGERIA IMMIGRANTS’
PROFILE AND RELATIONSHIP BETWEEN
IMMIGRATION AND CRIME DURING THIS PERIOD
ABSTRACT
Between 2006 and 2010 there has been an increasing of legal and illegal
entrance of citizens from Guinea-Bissau, Nigeria and Senegal (GNS) in Cape
Verde, comparing with other immigrants from other ECOWAS countries. Due
to the lack of conditions, the official information about the number of these
immigrants does not present any consistency and the department responsible
for this area has not been able to monitor the entry and stay of these immigrants. Furthermore, Cape Verde institutions do not known the profile of these
immigrants. People in general associates the increase of crime rate with African
citizens living in Cape Verde, particularly those considered in this survey, as
well as the increase number of immigration. The main aim of this paper is trying to characterize the profile of immigrants of these countries from 2006 to
2010, and the relationship between immigration and crime in this period. We
worked with immigrants in conditionals and with the inmates of Central Prison of Praia also known as São Martinho Penitentiary. We did a detailed legal
analysis of documents concerning to the foreigners living in Cape Verde and
other papers relating to the movement of people within ECOWAS states, and
we got official information about insecurity, violence, crime and immigration.
We also collect information of these immigrants at the Border and Immigration
Department of Cape Verde National Police, the Attorney General’s Office and
the Penitentiary Services of Ministry of Justice. Among the 3,475 immigrants
chosen, 180 of them were used as sample, taking into consideration 60 immigrants from different countries. Among these immigrants, 20 were inmates at
São Martinho Penitentiary. We prepared an immigrants’ profile questionnaire
for further interviews, taking into account the language and the nationality of
312
the participants. We also took the Pearson correlation coefficient to check the
possible linear relationship between immigration and crime reported. We realized that immigrants are predominantly male and young people, and they have
a family income below, comparing to the Cape Verdeans’ salary in similar circumstance. Most of them are singles, with the secondary schooling level. They
are integrated into the informal economy and deprived from any social security.
They are mostly Christians, which explains the assumption that Muslims can
be a threat to Cape Verde security. The economical difficulties in their homelands are the main reason that most press them for immigration as well as the
difficulties to get to other countries makes them stay in Cape Verde. The help of
relatives or friends from the host country was what had the strong impact on the
organization of emigration, leading to the existence of a social support network.
Although most Cape Verdeans get well along with these immigrants and have
them as friend, and are satisfied with what they do in this country, the majority
of them are discriminated and mistreated by Cape Verdeans. We did not find any
significant connection between immigration and crime in Cape Verde involving
immigrants, during the survey period, which indicates that these latters did not
have any influence in the increasing of criminality and the internal insecurity.
The study highlights the need for the government services to work out in order to
change the inconsistency of statistics on migration, particularly with ECOWAS
citizens in Cape Verde, taking into account the relevance of these institutions
being sensitized about the limits of free movement under the legislation, and the
regulation of key aspects related to that migration.
Keywords: Immigrants. Immigration-Crime Relationship. Social Support
Network. Integration of Immigrants in ECOWAS.
313
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
ENQUADRAMENTO TEÓRICO, PROBLEMA,
JUSTIFICATIVA E OBJECTIVOS
Neste Capítulo introdutório, apresenta-se a questão da migração tratada na
literatura, em termos de sua caracterização em âmbito nacional e internacional,
e quanto aos factores que lhe são determinantes. Apresenta-se a questão legal da
migração e do controlo de fronteiras e de estrangeiros, a relação migração-crime
ou criminalidade e segurança, bem como a perspectiva jurídica e sociológica
do crime. Descreve-se, finalmente, o movimento migratório da CEDEAO para
Cabo Verde no período delimitado para o estudo, tendo em conta a situação da
imigração e as condições que lhe são favorecedoras, bem como as suas consequências.
1 - ENQUADRAMENTO TEÓRICO
1.1 - O Fenómeno Migratório: Caracterização e Factores de
Ocorrência
Migração é movimentação de pessoas de um lugar para outro. A migração
pode ser interna, entendida como movimentação de cidadãos dentro de um país,
muitas vezes, das áreas rurais para as áreas urbanas, ou internacionais, quando há
movimentação de pessoas entre países diferentes.
As migrações internacionais são definidas como deslocações de pessoas de
um Estado para outro, com a mudança do lugar de residência e de estatuto jurídico, não sendo as migrações temporárias tidas em conta, tais como o turismo ou
as migrações ligadas a um trabalho sazonal (Boniface, 2005).
Levitt e Jaworsky, 2007, citados por Dias e Gonçalves (2007) afirmam que
na história da humanidade sempre existiram deslocações de pessoas ou grupos
dentro dos países e para fora destes e que, no entanto, as necessidades e as motivações deste fenómeno têm sofrido alterações associadas às rápidas mudanças
ambientais, demográficas, socioeconómicas e políticas.
A migração, segundo Dias e Gonçalves (2007), pode ser motivada por vários
factores, de entre os quais se destacam as catástrofes naturais; as causas económicas de que são exemplos a pobreza, a diferença de recursos entre os vários países,
a aspiração a melhores condições de vida e a globalização da economia; os factores políticos e religiosos relacionados com guerras e conflitos que têm surgido
um pouco por todo o globo. Ainda, factores relacionados com o estado de saúde
dos indivíduos, segundo a World Healt Organization 2003, citada por Dias e
Gonçalves (2007), podem levar os migrantes a procurarem melhores condições
noutras paragens mais evoluídas.
Como fenómeno socioeconómico, a migração, no entender de Dias e Gonçalves (2007), pode ser considerada como um contributo indispensável para o
progresso e para a simplificação do problema demográfico que ocorre nos países
desenvolvidos. Isso, em decorrência do significativo envelhecimento populacional e baixa taxa de natalidade, além de que, nesses países, a população imigrante,
geralmente constituída por pessoas em idade activa, ou seja, em condições do
exercício de qualquer actividade económica, contribui com mão-de-obra nas diversas actividades económicas geradoras de rendimentos muitas vezes relegadas
pelos trabalhadores nos países de acolhimento. Por outro lado, nos países em
desenvolvimento, onde os aspectos demográficos têm outras características, com
grande percentagem de população jovem, a migração surge, como um refúgio
contra a pobreza ou solução de problemas de outra natureza, nomeadamente
catástrofes naturais, conflitos bélicos, políticos, étnicos e religiosos.
A Organização Internacional das Migrações (OIM) reconhece que a migração é uma característica integrante do mundo contemporâneo Dados do Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas (DAES-NU,
2009) permitem estimar que o número total de migrantes internacionais era cerca de 214 000 000 de pessoas em 2010, tendo pemaneceido reltivamente estável
entre os anos 2005 e 2010, em proporção ao conjunto da população no âmbito
global, com apenas um aumento de 0,1%, ou seja, de 3,0% para 3,1%.
A OIM considera que o aumento dos fluxos migratórios tem sido bastante
315
regular nos últimos decénios, alcançando a cifra dos 191 000 000 em 2005 e que,
se o aumento continuar no mesmo ritmo dos últimos 20 anos, prevê-se que para
o ano 2050 o contingente das migrações internacionais em todo o mundo poderá
alcançar a cifra de 405 000 000. A OIM adianta, ainda que, segundo o PNUD
(2009), as migrações internas somam cerca de 740 000 000 de pessoas, das quais
o número total de migrantes em todo o mundo aproxima-se a 1 000 000 000.
A migração internacional, conforme a mesma fonte, é um processo que envolve uma variedade muito maior de grupos étnicos e culturais em que se destaca
uma maior afluência de mulheres que emigram por conta própria ou como chefes
de famílias. Nesse processo, observa-se que o número de pessoas a viverem e a
trabalharem no estrangeiro em situação irregular também continua a aumentar,
com um crescimento considerável de migração temporária e migração circular.
Ainda, segundo o PNUD, os locais onde os migrantes vivem (e que têm
como alvo) também estão mudando. Actualmente, pouco mais de metade da
população vive em áreas urbanas. O DAES-NU (2010) aponta que, em 2050,
quase 70% da população viverão em áreas urbanas, haverá inversão dos estilos de
vida em todo o mundo em mais de um século e que, em 1950, o percentual era de
apenas 30%. Essas previsões têm implicações para os movimentos de migração
interna e da coesão social, como a tendência de concentração dos imigrantes em
áreas urbanas. Os novos destinos dos trabalhadores migrantes serão as economias
emergentes da África, Ásia e América Latina, o que não apenas destaca a importância crescente da migração Sul-Sul, como também a necessidade de haver
mais investimentos na gestão das migrações nessas regiões. Os novos padrões
de migração afectam também a composição étnica dos Estados e a questão da
integração e da coesão social de como mudar os padrões de mobilidade humana.
Embora a crise económica mundial tenha diminuído o ritmo da migração,
em muitas partes do planeta, é esperado um aumento mundial da força de trabalho, de três mil milhões actualmente, para mais de quatro mil milhões em 2030,
o que, segundo o Banco Mundial 2007, representa uma taxa de aumento ainda
mais rápido do que o crescimento da população global. Em 2025, os jovens que
entrarão no mercado de trabalho nos países em desenvolvimento superarão a actual força de trabalho nos países industrializados (PNUD, 2009). As projecções
para a força de trabalho dos países desenvolvidos indicam que ela permanecerá
em cerca de seiscentos milhões de pessoas, em 2050, enquanto que a força de
trabalho dos países menos desenvolvidos vai aumentar de dois mil e quatrocentos
316
milhões de pessoas, em 2005, para três milhões, em 2020, e três mil e seiscentos milhões, em 2040. Por outro lado, muitos países em desenvolvimento são
caracterizados por estruturas etárias mais jovens e uma população em rápido
crescimento, o que provavelmente levará a exigências de maior acesso aos mercados de trabalho no mundo desenvolvido e nas economias emergentes. Em 2025,
os países com 60% ou mais da população com menos de 30 anos de idade serão
quase que exclusivamente subsaarianos.
É nos Estados Unidos da América, conforme a mesma fonte, que vive o maior
número de migrantes. Por outro lado, seis dos dez países que abrigam o maior
número de populações nascidas no estrangeiro se encontram na Europa (França,
Alemanha, Federação Russa, Espanha, Ucrânia e Reino Unido).
O Relatório da Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais (2005)
avalia as migrações internacionais como sendo um fenómeno dinâmico e em expansão, e indica que o número de migrantes internacionais duplicou nos últimos
25 anos, apesar de a proporção da população mundial como um todo continuar
a ser relativamente modesta, ou seja, cerca de três por cento. As migrações internacionais afectam os países em todos os níveis de desenvolvimento económico e
em todas as correntes ideológicas e culturais. Hoje, partem e chegam migrantes
em praticamente todos os países do mundo, faco que torna cada vez mais difícil
manter a distinção que tradicionalmente se fazia entre países de origem e países
de trânsito e de destino.
Ainda, conforme o mesmo Relatório, ao longo dos últimos 30 anos, a proporção de residentes nascidos no estrangeiro a viver nos países industrializados
tem vindo, de um modo geral, a aumentar, enquanto que na maioria dos países
em desenvolvimento se tem mantido estável, ou mesmo diminuído em certa medida. Cerca de 60% de todos os migrantes registrados encontra-se actualmente
nos países mais prósperos e os restantes 40% estão nas regiões em desenvolvimento. Aapesar desta tendência, grande número de pessoas continua a efectuar
migrações Sul-Sul, deslocando-se de um país em vias de desenvolvimento para
outro. Informa o Relatório que, de acordo com os dados estatísticos mais recentes
da ONU, a Ásia tem cerca de quarenta e nove milhões de migrantes, a África
dezasseis milhões e a Região da América Latina e Caraíbas seis milhões.
317
1.2 - A Questão Legal da Migração
A migração pode ser regular ou irregular, dependendo da situação em que os
imigrantes se encontrem nos países de acolhimento.
A migração é regular quando os imigrantes cumprem as leis de imigração
dos países de acolhimento, ou seja, quando são portadores de uma autorização
de residência válida. O mesmo termo é designado por Trindade (1995) como
emigração legal, no sentido de percurso pelo qual se dá início e se desenvolve um
movimento migratório individual com total conhecimento e controlo por parte
das autoridades competentes, tanto no país de origem como país de acolhimento,
em cumprimento de todas as fases do referido percurso2.
A OIM (2009) admite ainda não haver consenso internacional na utilização
de algumas expressões relacionadas com a migração, variando de país para país.
Indica, como exemplo, as gradações existentes entre as migrações: ilegal, irregular, clandestina e migrantes indocumentados, expressões frequentemente usadas
sem grande precisão e como sinónimas.
Para a OIM, migração ilegal leva à consulta da definição da migração irregular, como sendo migração internacional à margem do quadro legal do país de
origem, de trânsito ou de destino e aponta que não existe uma definição universalmente aceite sobre a migração irregular. Numa perspectiva do país de destino,
trata-se da entrada, permanência e do trabalho ilegal, com a implicação de que,
segundo a lei de imigração, o migrante não disponha de autorizações necessárias
ou de documentos requeridos para a entrada, residência e trabalho. No país de
origem, a irregularidade verifica-se logo que uma pessoa ultrapassa uma fronteira
internacional sem passaporte ou documento de viagem válido, ou não cumpre as
2. Trindade (1995) designa por percurso migratório – ou itinerário migratório – o conjunto de passos dados por um indivíduo migrante, ou de acções ou situações vividas por ele. A fase inicial seria a intenção
de partir, radicando-se esta num conjunto de causas de partida, seguida dos preparativos de partida,
traduzindo-se esta na obtenção de documentação e bilhetes de viagem, bem como no desvencilhar dos
compromissos imediatos no país de origem. A terceira fase seria a da viagem propriamente dita, com uma
fase transitória que seria a da primeira instalação no país de destino, durante a qual vão decorrer múltiplos
passos de estabelecimento de residência, de procura ou de iniciação no novo emprego ou actividade. Inserção seria a fase que representa a estabilização das características essencialmente transitórias da primeira
instalação e que vai constituir a parte principal da estada no país receptor. Segue-se a fase de fixação se
eventualmente o migrante pretender adquirir a nacionalidade do país de acolhimento, consagrado por um
acto formal de naturalização.
318
exigências administrativas para deixar o país. Há, entretanto, uma tendência à
restrição do uso da expressão “migração irregular” nos casos de tráfico de pessoas
e no tráfico ilícito de migrantes.
Em suma, a OIM considera a migração ilegal como sinónima de migração
em situação irregular, mas com a ressalva de que aquela expressão tem um carácter estigmatizante, a ponto de contradizer o espírito dos instrumentos internacionais da protecção dos direitos humanos. Assim, é de se evitar, segundo essa
Organização.
A OIM define a migração clandestina como uma forma de migração secreta
ou encoberta, com violação das exigências em matéria de imigração e que pode
ocorrer quando um estrangeiro viola os regulamentos de entrada de um país ou
ainda, mesmo que tenha entrado legalmente, quando nele permanece em violação dos regulamentos de imigração.
Quanto à expressão migrante indocumentado, a OIM considera-a como relativa ao trabalhador migrante indocumentado ou ainda trabalhador migrante em
situação irregular. É todo o trabalhador migrante, ou um membro da sua família,
que não está autorizado a entrar, permanecer ou trabalhar num Estado.
No ordenamento jurídico de Cabo Verde3 a migração é irregular quando
ocorre a entrada irregular de pessoas e a sua permanência no país de acolhimento
para além do tempo de estadia constante do visto ou da prorrogação deste, ou
do prazo da autorização de residência, ou ainda quando há situações em que a
revalidação da autorização de residência é recusada.
De acordo com a legislação em vigor em Cabo Verde, é considerado estrangeiro não residente “aquele que não esteja legalmente autorizado a residir
em Cabo Verde ou que se encontre em situação de irregularidade” (Cabo Verde, 1997, p. 324). Para o efeito, considera-se imigrante ilegal todo o cidadão estrangeiro que tenha entrado indocumentado ou com documentos falsos e assim
permaneça em território nacional; tenha permanecido no país após o termo de
validade do respectivo visto de entrada ou autorização de residência, ou após ter
sido expulso do território nacional por autoridade competente.
Entretanto, Trindade (1995) refere-se à expressão imigrante ilegal com o sen-
3. Artigo 68º do Decreto-Legislativo 6/97 de 06 de Maio.
319
tido de emigração clandestina, quando o pressuposto da emigração legal não é
total ou parcialmente respeitado.
É comum que os imigrantes indocumentados sejam tratados como imigrantes ilegais. Machado (1992) admite que quando um estrangeiro é considerado
ilegal, trata-se de uma forma de rejeição das “diferenças diferentes”, isto pelo
facto de haver legislações que explicitamente fazem referência ao estrangeiro que
se encontre em situação irregular como sendo imigrante ilegal.
Kynlicka (2006) questiona o facto de alguém ser tratado como ilegal e afirma que normalmente as condutas são ilegais quando reportam, por exemplo,
a produtos em que as mercadorias são obtidas a partir de práticas criminosas.
Tratar as pessoas como ilegais, segundo o autor, pelo simples facto de entrarem
num país diferente, é algo que constitui uma das maiores aberrações cometidas
em nome da lei.
A PICUM (2007)4, no que se refere ao tratamento correcto que se deve dar
aos estrangeiros, considera que definir um indivíduo ou um grupo como “ilegal”
é uma forma de não reconhecimento da sua natureza humana, com a violação do
seu direito natural de ser reconhecida como pessoa perante a lei. Outra razão seria a conotação do termo “ilegal” com a criminalidade, pois a permanência num
país sem os documentos exigidos não é considerada infracção penal na maioria
dos países, mas sim, uma infracção administrativa.
A problemática da migração irregular é vista actualmente como um fenómeno global que atinge a maioria dos países desenvolvidos e aqueles em vias de
desenvolvimento. Acredita-se que ainda não foram encontrados os mecanismos
suficientes para impedir totalmente o movimento migratório mundial.
Castells (2000) avança que nos fins do século XX a população de imigrantes
4. Platform for International Cooperation on Undocumented Migrants (PICUM) ou Plataforma para a Cooperação Internacional sobre Migrantes Indocumentados. É uma organização não-governamental que tem
como objectivo promover o respeito aos direitos humanos dos imigrantes na Europa. PICUM também
busca o diálogo com organizações e redes com preocupações semelhantes em outras partes do mundo.
A PICUM promove o respeito aos direitos sociais básicos dos migrantes sem documentos, tais como o direito à saúde, o direito à moradia, o direito à educação e formação, o direito a um mínimo de subsistência,
o direito à vida familiar, o direito à moral e integridade física, o direito à assistência jurídica, e o direito a
condições de trabalho justas.
A PICUM tem a sua sede em Bruxelas, Bélgica, e funciona como uma rede de cerca de 2.400 organizações
da sociedade civil e indivíduos que operam na maioria dos Estados-membros da União Europeia.
320
era estimada entre 130 milhões e 145 milhões de pessoas que viviam fora do seu
próprio país, números esses referentes à migração legalizada. Entretanto, o alto
número de migrantes não documentados era estimado em muitos milhões.
Uma parte significativa da imigração internacional, segundo o autor, é consequência de guerra e catástrofes, especialmente na África, onde, na década de
1990, houve um movimento de quase 24 milhões de refugiados.
Outra explicação, segundo Castells (2000), relativa ao aumento dos fluxos de
imigração e que teria provocado reacções xenofóbicas, essencialmente na Europa
ocidental, é a transformação da configuração étnica das sociedades ocidentais.
Isso porque muitos daqueles que são chamados de imigrantes, nasceram de facto,
nos seus países de imigração, sendo então considerados, em fins da década de
1990, cidadãos de segunda classe pelas barreiras à naturalização. O autor menciona a situação dos turcos na Alemanha e dos coreanos no Japão como exemplos
do rótulo “imigrante” utilizado como senha para designar as minorias discriminadas.
Estudos internacionais, mais precisamente, da OIM (2010), indicam que o
número de imigrantes irregulares vai continuar a aumentar, dado que a oferta de
trabalho no país de origem é maior do que a demanda nos países de acolhimento
e que os canais de imigração legal são a excepção e não a regra geral.
A experiência das questões migratórias no Brasil nos anos de 1980 a 1993,
relatadas na obra “Migração, Condições de Vida e Dinâmica Urbana” (Patarra e
cols., 1997), comporta um conjunto de modelos vivenciais dos fluxos migratórios internos e externos, assemelhando-se um pouco àquilo que tem ocorrido em
Cabo Verde a partir dos anos de 1990. No caso brasileiro, foi considerado um
período explosivo da imigração italiana para aquele país e que viria a ser travado
com legislações próprias que proibiam a imigração italiana para o Brasil.
Castles e Miller (1993) apresentam como exemplos as expulsões em massa
na Nigéria, no período de 1983 a 1985, como os mais significativos em termos
de pessoas deslocadas, cerca de dois milhões; e a fuga forçada da Mauritânia por
parte de dezenas de senegaleses, em 1989, ao mesmo tempo em que muitos mauritanos tiveram de fugir do Senegal.
Na Nigéria, conforme Castles e Miller (1993), o emprego tecnicamente ilegal
de estrangeiros, principalmente da CEDEAO, foi encarado benignamente pelo
governo nigeriano durante o período de expansão económica nos meados da
321
década de 1970, em que muitos ganenses entraram naquele país e encontraram
trabalho na construção civil e nos serviços. A maioria dos ganenses não entendeu
as limitações à livre circulação de pessoas no seio da CEDEAO, assumindo que
o acordo lhes oferecia estadia ilimitada e acesso ao emprego na Nigéria. Sucedeu,
porém, que a desaceleração da economia nigeriana, combinada com a instabilidade de governo e mesmo a deterioração das relações entre Nigéria e Gana,
estiveram na origem das expulsões massivas de imigrantes irregulares no período
de 1983 a 1985, sendo a maioria de cidadãos ganenses.
Outra situação, apresentada por Trindade (1995), e que, entretanto, a autora
entende ser um pouco diferente de clandestinidade, é a que tem relação com a
permissão de entrada de estrangeiros no país, cujos motivos alegam ser de turismo, negócios ou visita a familiares, mas com exclusão explícita da autorização
para o trabalho ou exercício de actividade profissional permanente. Inúmeros são
os casos dessa ténue clandestinidade que se pode verificar em Cabo Verde, um
pouco dispersa por todas as ilhas, sobretudo de cidadãos estrangeiros dos países
da CEDEAO (Guiné-Bissau, Senegal, Nigéria), países da Europa (Portugal, Espanha, Itália) e da Ásia (China).
Consequentemente, quando uma pessoa viola os motivos que ela sustentou
para a sua entrada e permanência no país, ultrapassando, nesse caso, o prazo que
lhe foi concedido para a estada, entra automaticamente em situação de clandestinidade.
A imigração clandestina, segundo a OIM, é migração internacional definida
pela lei do país de origem, de trânsito ou de destino. Essa Organização considera
que a noção de clandestinidade evoca a condição dos migrantes irregulares forçados a viver à margem da sociedade. Existe ainda a imigração clandestina seja no
caso de entrada irregular no território de um Estado, seja no caso de permanência
no mesmo para além do prazo de residência, ou mesmo de subtracção à execução
de uma medida de afastamento.
A imigração clandestina constatada ultimamente em Cabo Verde envolveu
centenas de cidadãos desprovidos de qualquer tipo de documentação e que entraram no país depois de terem viajado em pirogas ou cayucus (embarcações tradicionais da costa do Senegal, que permitem o transporte de grande quantidade
de pessoas). Esses imigrantes eram oriundos do continente africano e em maioria da CEDEAO e o seu desembarque foi constatado em várias zonas costeiras
322
do arquipélago, fora dos postos fronteiriços marítimos habilitados para o efeito.
Outras embarcações foram encontradas vazias, pressupondo inicialmente que
os seus ocupantes teriam desembarcado sem serem detectados pelas autoridades
policiais e/ou pelas populações locais.
A exploração da imigração clandestina é uma das faces mais cruéis de organizações clandestinas vitimando populações humanas em busca de melhores
condições de vida wm outros países (emprego, trabalho, acesso aos serviços de
saúde e outros benefícios da assistência governamental). As actuais barreiras controladoras de imigrantes nas fronteiras favorecem o surgimento dessas organizações clandestinas que prometem e nem sempre cumprem o acordo seja de entrada
ilegal, seja da condição de vida prometida.
A Constituição de Cabo Verde, no Artigo 12º, e o Direito Internacional estabelecem alguns princípios em matéria de estatuto e tratamento de estrangeiros,
que têm de ser observados no regime jurídico do estrangeiro, assumindo-se assim
como um Estado de Direito Democrático que pugna pelos direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos e pela defesa da dignidade da pessoa humana como valor
absoluto. O país tem um sistema político assente no princípio da democracia
pluralista, com equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania, um
poder judicial independente e um poder local com autonomia.
A Constituição da República de Cabo Verde estabelece como princípio fundamental a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem
social ou situação económica, raça, sexo, religião, convicções políticas ou ideológicas e condição social, e assegura o pleno exercício por todos os cidadãos das
liberdades fundamentais.
Nos termos da lei, a todos é garantido o direito de acesso à justiça, à defesa,
à informação jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
Os estrangeiros e apátridas gozam dos mesmos direitos, liberdades e garantias e estão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos cabo-verdianos, com
excepção dos direitos políticos e dos direitos e deveres reservados constitucionalmente aos cidadãos nacionais.
Cabo Verde assegura, nos termos da Lei Fundamental, um conjunto de garantias próprias de um Estado de Direito integral, de que são exemplos os seguintes princípios: direito à liberdade e livre expressão, liberdade de culto, liberdade
323
de imprensa, limites à duração temporal das penas, intransmissibilidade da responsabilidade penal, a não retroactividade da lei penal, o contraditório no processo criminal, a inviolabilidade do domicílio e a protecção dos dados pessoais.
O Decreto-Legislativo N.º 6/97, de 5 de Maio, regula a situação jurídica do
estrangeiro no território nacional, estabelecendo os direitos, garantias e deveres,
o regime de entrada, permanência e saída, a expulsão e a extradição dos estrangeiros, em conformidade com as disposições constitucionais e as convenções internacionais em matéria de estrangeiros, no que respeita à defesa da comunidade
residente, quando estão em causa problemas de criminalidade e defesa da saúde
e da ordem públicas e segurança nacional.
Cabo Verde, sendo terra de emigrantes, abriu-se ao mundo em termos de cidadania, concedendo nacionalidade aos que se ligam ao seu território e aceitando
que os cabo-verdianos adquiram a nacionalidade de outro país sem perderem a
sua nacionalidade de origem.
A lei garante o direito de asilo5 no território cabo-verdiano aos estrangeiros
ou apátridas perseguidos por motivos políticos ou seriamente ameaçados de perseguição, estando estabelecido um regime jurídico para esse efeito, incluindo-se
o estatuto dos refugiados.
1.3 - O Controlo de Fronteiras e de Estrangeiros
O controlo das fronteiras e dos cidadãos estrangeiros no território de Cabo
Verde é uma incumbência da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras6 que está
integrada na Policia Nacional de Cabo Verde.
O enquadramento legal dessa matéria é definido pelo Decreto-Legislativo n.º
6/97, de 5 de Maio, designado por ser Situação Jurídica do Estrangeiro no Território Nacional, e que, neste trabalho, passa a designar-se por Lei de Estrangeiros.
Este regime legal substituiu uma lei que vigorava sobre esse assunto desde o ano
de 1990. Tratou-se de uma adequação dos termos legais à nova realidade de Cabo
Verde, decorrente da aprovação da nova Constituição da República em 1990, e
5. Lei nº 99/V/99, de 19 de Abril – Estabelece as bases do regime jurídico do asilo e estatuto dos refugiados.
6. Artigo 43º da Orgânica da Polícia Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39/2007, de 12 de Novembro.
324
da necessidade de integrar na lei algumas disposições de convenções internacionais, como os relacionados com a revisão ao Tratado da CEDEAO (em 1993).
A revisão da Lei de Estrangeiros foi, contudo, limitada, mantendo-se a estrutura do diploma legal anterior e os seus princípios fundamentais, circunscrevendo-se à modificação e reformulação pontual de algumas disposições e ao aditamento de preceitos impostos pela introdução de novas matérias. São exemplos
disso, a inclusão do preceito constitucional de que os estrangeiros autorizados
a residir no país ou que tenham solicitado asilo apenas podem ser expulsos por
decisão judicial (em decorrência do artigo 36º da CRCV); a garantia do direito
de recurso por parte dos cidadãos expulsandos; a proibição da expulsão colectiva;
a exigência de que os estrangeiros façam prova da posse dos meios económicos e
de subsistência para entrarem e permanecerem no país.
A Lei de Estrangeiros de 1997 sofreria depois alterações muito pontuais, mas
sem que afectassem a sua estrutura e os seus preceitos fundamentais, enquadrando
a realidade resultante do desenvolvimento turístico de Cabo Verde, o que levou a
criar a possibilidade de concessão de vistos nas fronteiras e a isentar de visto os visitantes em turismo de cruzeiro (Decreto Legislativo n.º 3/2005, de 01 de Agosto).
Quanto ao conteúdo, a Lei de Estrangeiros de Cabo Verde regula a situação
jurídica do estrangeiro no território cabo-verdiano, estabelecendo os seus direitos, garantias e deveres, para além do regime de entrada, permanência, saída,
expulsão e extradição.
Como princípio geral, a lei estabelece que os estrangeiros residentes legalmente ou que se encontrem em Cabo Verde, usufruem os mesmos direitos e garantias e
estão sujeitos aos mesmos deveres que o cidadão cabo-verdiano, com excepção dos
direitos políticos e outros expressamente reservados por lei aos cidadãos nacionais.
Depois de enumerar os direitos, deveres e garantias do cidadão estrangeiro, a
lei estabelece as condições para a sua entrada no território nacional, os documentos habilitantes, os tipos de visto necessários para esse efeito, as condições para a
sua emissão, a validade e a sua eventual prorrogação.
A lei confere ao cidadão estrangeiro a possibilidade de estabelecer residência
em território nacional, desde que esteja munido de visto de residência ou requeira
a conversão do visto temporário em visto de residência, e depois solicite a concessão de autorização de residência junto da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras.
Para tal intento, o estrangeiro terá que reunir um conjunto de condições habili325
tantes que a lei estabelece.
Definem-se, na lei, os períodos de validade das autorizações de residência, os
procedimentos e as condições para a sua revalidação e os fundamentos para a sua
eventual revogação ou retirada.
A Lei de Estrangeiros define ainda as condições através das quais se fará
o controlo da permanência dos estrangeiros no território nacional, isto é, pelo
registo dos que são titulares de autorização de residência e da comunicação do
boletim de alojamento relativo a todos os estrangeiros albergados no território
nacional.
No que se refere à saída de estrangeiros de Cabo Verde, a lei estabelece que
pode ser voluntária ou coactiva, assível esta última de assumir a forma de recusa
de entrada ou de decisão administrativa ou judicial. A lei proíbe a expulsão colectiva e impede que o expulsando seja enviado para país que o persiga por razões
políticas, religiosas ou raciais.
A lei enquadra a recusa de entrada como uma saída coactiva e estabelece que
o procedimento de recusa de entrada não pode carecer de processo.
São definidos os fundamentos da expulsão administrativa e da expulsão judicial, e os termos em que os respectivos processos devem ser organizados. A lei
estabelece a possibilidade de expulsão por pena acessória, no âmbito de um processo criminal, e define os critérios para a aplicação dessa medida.
A mesma lei incorpora os termos em que se efectua a extradição de cidadãos
nacionais e estrangeiros, seja na sua forma activa, seja na forma passiva.
A Lei de Estrangeiros está regulamentada, em alguns dos seus aspectos,
através de legislação dispersa, nomeadamente diversos decretos regulamentares
e portarias que definem procedimentos a tomar na concessão e revalidação de
autorizações de residência, na concessão de vistos, quantificação dos meios de
subsistência, aprovação dos modelos de boletim de alojamento e boletim de embarque/desembarque.
Relevante para o controlo das fronteiras é ainda o Regime Jurídico dos Postos
Habilitados de Fronteira, definido pelo Decreto-Lei n.º 46/99, de 26 de Julho, o
qual estabelece esses postos, as condições de encerramento e abertura de outros,
as obrigações das empresas e agentes das companhias aéreas, de navegação e dos
comandantes dos navios, bem como as infracções e sanções por violação das
326
normas legais estabelecidas. Este diploma legal é, sobretudo, pertinente para o
controlo da fronteira marítima, ao impor aos agentes e comandantes dos navios a
obrigação de comunicação prévia das chegadas e partidas, bem como as listagens
de tripulantes e passageiros.
O controlo das fronteiras e da permanência de estrangeiros no território de
Cabo Verde, anteriormente referido, é uma incumbência da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (DEF), a qual está integrada na Polícia Nacional.
A Polícia Nacional (PN) é uma estrutura orgânica recente, resultante de uma
reforma no sistema de segurança interna de Cabo Verde, levada a efeito no ano de
2005. Ao ser criada, a PN integrou a Polícia de Ordem Pública, a Guarda Fiscal,
a Polícia Marítima e a Guarda Florestal que assim ficaram reunidas num único
corpo policial.
A principal missão da PN (artigo 2º da Lei Orgânica) é defender a legalidade
democrática, prevenir a criminalidade e garantir a segurança interna, a tranquilidade pública e o exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos
cabo-verdianos, encontrando-se ainda no âmbito da sua missão principal a responsabilidade pelo controlo das fronteiras aéreas e marítimas.
As competências da PN espraiam-se por variados domínios, dentre os quais a
prevenção e o combate ao tráfico de pessoas e imigração clandestina, assim como
o controlo das fronteiras aéreas e marítimas.
A PN é uma polícia hierarquizada, havendo na sua organização geral uma
direcção nacional e comandos regionais, estando implantada em todo o território
de Cabo Verde.
A estrutura da PN compreende a Direcção de Estrangeiros e Fronteiras –
DEF (artigo 43º), subordinada a um Director e sob a coordenação directa do
Director Nacional Adjunto para a Área Operativa. As competências da DEF são:
a emissão de documentos de viagem, o controlo da entrada e saída de pessoas
nos postos de fronteira e o controlo da estadia e permanência de estrangeiros no
território nacional.
A DEF abarca a Divisão de Estrangeiros e a Divisão de Fronteiras. A Lei
Orgânica da PN não esclarece quais as competências de cada uma destas duas
divisões na estrutura da DEF, porém, em termos daquilo que é prática, à Divisão
de Estrangeiros cabe a emissão de documentos e a actividade de fiscalização e
327
expulsão de cidadãos estrangeiros do território nacional, enquanto à Divisão de
Fronteiras cabe o controlo de pessoas nas fronteiras marítimas e aéreas.
Os comandos regionais da PN têm na sua estrutura (artigo 61º) um Serviço
de Emissão de Documentos e Fronteiras, o qual reúne as competências da DEF.
Porém, os comandantes regionais dependem administrativa, funcional e hierarquicamente do Director Nacional da PN, embora devam desenvolver, nos termos
da Lei Orgânica, a sua actividade em estreita articulação com os serviços centrais
competentes em razão da matéria, como é o caso dos assuntos relacionados com
as competências da DEF (artigo 63º).
Em consequência do facto de os Comandos Regionais dependerem directamente da direcção da PN, os mesmos não possuem departamentos da DEF
devidamente estruturados, embora garantam respostas às exigências respeitantes
ao controlo fronteiriço, controlo de estrangeiros e emissão de documentos.
Assim, a DEF garante uma estrutura própria, em meios, competências e missões, unicamente na ilha de Santiago, onde se situa a capital do País, a cidade
da Praia. É a partir daí que são emanadas directivas e normas de procedimentos
e é feito o acompanhamento da acção desenvolvida nos comandos regionais, no
tocante ao controlo das fronteiras, emissão de documentos e actividade de fiscalização e afastamento de estrangeiros.
A CEDEAO, de que Cabo Verde é membro, possui disposições específicas
quanto à circulação de pessoas, direito de residência e estabelecimento. Todavia,
a CEDEAO deixa aos Estados membros a competência para a regulação de aspectos fundamentais quanto ao regime de entrada e permanência e à concessão
do direito de residência a estrangeiros dos Estados membros, no pressuposto de
que existem questões de soberania e razão de Estado que impedem a devolução à
comunidade do poder de regulação exaustivo dessa matéria.
1.4 - MIGRAÇÃO, CRIME/CRIMINALIDADE E SEGURANÇA
1.4.1 - O Crime na Perspectiva Jurídica
Em termos jurídicos, crime é toda a conduta tipificada como tal, antijurídica
(ou ilícita) e culpável, praticado por um ser humano; em sentido vulgar, o crime
328
é entendido como sendo um acto que viola a lei.
Portanto, no sentido formal, crime é uma violação de lei penal incriminadora. No conceito material, é entendido como uma acção ou omissão que se
proíbe e se procura evitar, recorrendo-se para o efeito à ameaça com pena, porque
constitui ofensa, esta entendida como um dano ou perigo a um bem jurídico
individual ou colectivo.
Segundo Figueiredo Dias (2007), o crime, além do seu aspecto material, é
em parte produto da sua definição social produzida pelas instâncias formais7 e
informais8 do controlo social.
1.4.2 - O Crime na Perspectiva Sociológica
Para Durkheim (1894), o crime, como todo o fenómeno social, é um acontecimento, ou seja, um facto que ocorre no transcurso da vivência do ser humano,
surpreendendo e modificando a sua trajectória aparentemente esperada. Daí que
o crime não possa ser estudado de forma isolada, mas sim levando em conta o
comportamento da pessoa humana que o comete em sua real convivência colectiva.
Durkheim descreve o crime como um fenómeno normal, por não conservar
características específicas de determinadas sociedades, mas sim, por acontecer
em todas elas, sob as mais diversas formas conhecidas. Para o autor, não existe,
pois, nenhuma sociedade imune de práticas criminosas, dependendo, contudo da
maneira como esses actos são qualificados.
O autor evidencia, entretanto, que o facto de se admitir o crime como um fenómeno normal não significa que ele seja inevitável, mas sim um factor de saúde
pública, uma parte integrante de todas as sociedades saudáveis.
Segundo Durkheim, em torno das sociedades saudáveis o crime pode ser
caracterizado como um acto que ofende certos sentimentos colectivos. Também,
para que numa dada sociedade os actos considerados criminosos deixem de ser
cometidos, seria necessário que os sentimentos feridos fossem reconhecidos em
todas as consciências individuais, sem excepção, e com um grau de força neces7. Legislador, Polícia, Ministério Público, Juiz
8. Família, Escolas, Igrejas, Clubes, Vizinhos
329
sário para conter os sentimentos conflituantes. Supondo então que essa condição
poderia ser efectivamente realizada, o crime não desapareceria de todo, mas mudaria apenas de forma, pela mesma razão que, esgotando-se as fontes da criminalidade, abrir-se-iam de imediato novas formas de criminalidade.
Para Durkheim, portanto, o crime é necessário e relaciona-se com as condições fundamentais da vida social e com a evolução normal da moralidade e da lei.
Castells (1996) considera a antiguidade da prática do crime a par da própria
humanidade. Para o autor, entretanto, o crime global, bem como a formação de
poderosas redes de organizações criminosas e seus comparsas com actividades
compartilhadas em dimensão mundial, constituem um fenómeno recente que
afecta a economia no âmbito nacional e internacional, abrangendo ainda a política, a segurança e, em última análise, as sociedades em geral.
A par do tráfico de drogas e contrabando de armas, como crimes relacionados à imigração e os que mais representam um mercado de alto valor, Castells
(1996) inclui o contrabando de imigrantes ilegais no rol das operações a que se
pode atribuir um valor agregado, precisamente por ser proibido num determinado meio institucional.
Ressalta ainda Castells (1996) que o controlo das fronteiras, cada vez mais
rigoroso incita ao contrabando de imigrantes ilegais e que estes, enquanto potenciais vítimas das organizações criminosas, não constituem apenas fonte de lucro
proveniente dos pagamentos efectuados para as viagens, mas sim, muitos desses
imigrantes ilegais são sujeitos nos países de acolhimento a trabalhos em regime
de escravidão para poderem pagar as dívidas contraídas, acrescidas de juros elevadíssimos.
Castles e Miller (1993) fazem uma comparação dos movimentos migratórios
em todo o mundo, afirmando que é possível identificar algumas tendências gerais, propensas de evidenciar tais movimentos nos próximos 20 anos.
Os autores descrevem a primeira tendência como sendo a globalização da
migração, em que cada vez mais os países são afectados por movimentos migratórios ao mesmo tempo. Realçam ainda o facto de haver aumento das diversidades
das áreas de origem, de modo que os países, na maioria, se vêem confrontados
com a participação em larga escala na defesa dos direitos económicos, sociais e
culturais.
330
A segunda tendência tem a ver com o inevitável crescimento dos movimentos
migratórios, ou seja, a aceleração da migração, e consequentemente o aumento
das dificuldades das políticas governamentais dos países atingidos.
A terceira tendência é a diferenciação da migração, entendida como tendência em que não se vislumbra apenas um tipo de imigração nos países de acolhimento, mas sim uma vasta gama, tais como migrações de trabalho, de refugiados
ou mesmo de permanência permanente. As correntes migratórias que inicialmente começam com um determinado tipo de movimento muitas vezes desembocam
em outras formas, isto em parte condicionado pelos esforços dos governos para
conter ou controlar o fluxo de imigração. Um dos grandes obstáculos para essa
diferenciação, segundo Castles e Miller (1993), tem a ver com as medidas de
política nacional e internacional a serem adoptadas pelos governos dos estados
atingidos.
A feminização da migração é a quarta tendência no processo dos movimentos
migratórios. Os autores em referência realçam o importante papel que as mulheres desempenham em todas as regiões e consequentemente em todos os tipos
de migração. Afora disso, Castles e Miller (1993) destacam a figura feminina no
historial passado das migrações em que apenas se enquadravam as mulheres na
categoria de reagrupamento familiar. As migrações das mulheres trabalhadoras
cabo-verdianas para a Itália, a par das Filipinas para o Oriente Médio, é um
exemplo de rede à margem da dominação construída das migrações predominantemente masculinas no âmbito global.
1.5 - MIGRAÇÃO E SEGURANÇA
Castles e Miller (2009) abordam as preocupações recentes sobre o impacto
da migração em questões de segurança e soberania nos países de acolhimento, o
que, de certa forma, ocorre no contexto cabo-verdiano, na qualidade de um dos
países emergentes nas questões de imigração. Tendo isso em conta e considerando como exemplos países que enfrentaram no passado as mesmas vicissitudes, os
autores citados analisam até que ponto a imigração ilegal maciça e descontrolada
pode devastar o país de acolhimento, a ponto de pôr em causa a sua segurança
nacional.
331
A relação entre migração, especificamente, imigração e segurança é implicada, necessariamente, pela relação entre imigração e crime ou criminalidade.
Fraga (2001) afirma que a emigração, por si só, não constitui uma ameaça
para a segurança e que numa sociedade que defende a igualdade não se podem
deixar de fora os imigrantes quando se desenvolve a segurança social e, aponta,
contudo, alguns aspectos que contribuem para a definição de um possível clima
de violência e consequentemente responsáveis pela ameaça a segurança, tais como
a existência de grandes comunidades culturalmente distintas e não integradas, o
fenómeno de crescimento urbano descontrolado, o consumo e tráfico de drogas,
entre outros (p. 52).
O sociólogo Zigmunt Bauman (Bauman, 2005) retrata a situação da insegurança moderna, afirmando que ela é caracterizada em suas várias manifestações
pelo medo dos crimes e dos criminosos e ressalta que a suspeita crescente por causa da xenofobia recai sobre o que poderá ser designado como complô estrangeiro
e o sentimento de rancor em especial sobre os imigrantes.
A CMMI9 (2005), relativamente às políticas voltadas com o desenvolvimento, direitos humanos e segurança, é categórica em que, efectivamente, a relação
entre as migrações e a segurança permitiu aumentar as preocupações ao nível internacional. Reporta, pois, o referido relatório aos incidentes recentes envolvendo
actos de violência cometidos por imigrantes, que: “[...] levaram à percepção de
que existe uma relação estreita entre as migrações internacionais e o terrorismo
internacional” (p. 8).
Para Tavares (2007), o fenómeno da emigração tem assumido nos últimos
tempos uma proporção elevada, tendo como motivo principal a complexidade
dos problemas que se colocam aos países africanos a sul do Sahara, marcados
pelas instabilidades regionais, o que constitui “[…] potencial risco à segurança
regional e internacional, pela eventual conexão com a delinquência internacional,
o narcotráfico e o terrorismo internacional” (p. 99). Ainda, conforme o autor, as
péssimas condições económicas e de segurança vividas nesses países propiciam o
tráfico de seres humanos que escapa na sua maioria ao controlo das autoridades
estatais de cada um dos eventuais países implicados, incidindo tal tráfico funda9. Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais. Foi criada em Dezembro de 2003 pelo Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, e é constituída por 19 membros independentes.
332
mentalmente nas mulheres e crianças com a finalidade de serem exportadas para
o continente europeu.
O aumento do número de imigrantes em Cabo Verde, registado a partir dos
anos de 1990, vem sendo associado empiricamente (pelo senso comum) à prática
de crimes antes não conhecidos no país. Com isso, crimes como os de tráfico de
drogas e de pessoas, burlas, falsificações têm sido atribuídos aos imigrantes, sobretudo os oriundos da África Ocidental. Os mandjakus10 são em boa parte vistos
em Cabo Verde, de forma comum (Cabral e Furtado, 2008), como os causadores
e os principais instigadores de práticas criminosas. Assim, “[ …] perante a subida
do crime organizado e do tráfico de droga, o Governo questiona o protocolo de
livre circulação a que aderimos em 1982, à luz de certas decisões […] da carta de
Abuja” (p. 107), a par com os nacionais (cabo-verdianos) repatriados de alguns
países da Europa e dos Estados Unidos da América por cometimento de crimes
(MNECC, 2003), o que “vem constituindo motivo de preocupação” (p. 5). Esses
imigrantes têm sido, portanto, objecto de uma percepção negativa no país.
Não obstante essa percepção negativa a respeito desses imigrantes e, por conseguinte, a respeito da insegurança, dados recolhidos por Afrobárometro (2008)
revelam que no âmbito nacional apenas 3% dos cabo-verdianos identificam os
imigrantes africanos como os principais responsáveis pela criminalidade, considerando que este valor é muito baixo quando se constata que o cidadão comum
tende a considerar os imigrantes africanos como parte importante do problema
da criminalidade.
Geralmente nos países em que a imigração tende a aumentar, sempre que há
ondas de criminalidade os imigrantes são os primeiros a serem acusados, segundo
Guia (2010), e com uma forte contribuição da comunicação social em propalar
sentimentos de insegurança baseados em casos pontuais relativos a determinados
tipos de criminalidade.
A questão das relações entre a imigração e a criminalidade não é actual. Há
registos, já no início do século XX, de diversos estudos a apresentarem razões
explicativas para as possíveis relações entre estes dois fenómenos que tendem a
ombrear-se mutuamente no processo actual de globalização, marcado cada vez
10. Mandjakus são todos os africanos, todas as gentes pretas que vêm de África: xenofobia e racismo em Cabo
Verde – titulo da Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, de Eufémia Vicente Rocha, apresentada no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade de Cabo Verde em 2009.
333
mais por maiores fluxos migratórios nos últimos tempos.
Guia (2012) afirma que os estudos sobre a relação entre imigração e criminalidade apontam maioritariamente para uma relação indirecta entre ambas,
embora existam teorias que associam certas nacionalidades a determinados tipos
de crime, em determinados países. A ligação entre os dois fenómenos surgiu na
sequência de estudos sobre a pobreza e a criminalidade (Tonry, 1995, citado por
Guia, 2012), baseados em pressupostos de conflito cultural (Sellin e Sutherland,
1938, citados por Guia 2012) e de desorganização social (Shaw e Mckay, 1942,
citados por Guia 2012), e em pressupostos de privações económicas, de desigualdade no acesso ao mercado laboral e à justiça, e de xenofobia (Baganha, 1996;
Bianchi, Buonanno e Pinotti, 2008; Cunha, 2008; Tonry, 1995 e 2004; Tournier, 1996; Seabra e Santos, 2005 e 2006; Wacquant, 1998a, 1999, citado por
Guia, 2012).
Do universo dos estudos sobressaem os da grande metrópole norte-americana, por parte dos pesquisadores da Escola de Chicago11, dos quais as temáticas
mais bem estudadas foram sobre as variadas formas de criminalidade e o fenómeno da imigração.
Trindade (2005) realça que uma característica comum entre os trabalhos dos
pesquisadores da Escola de Chicago foi “a preocupação em estudar a dinâmica
dos processos sociais associados à concentração das comunidades de imigrantes
em meio urbano” (p. 95).
A obra de William Thomas e Florian Znaniecki “The Polish Peasant in Europe and América” é considerada, segundo Trindade (2005), como um estudo
extraordinário acerca dos imigrantes polacos que, à época, constituiam o maior
e o mais diversificado grupo étnico entre os vários grupos de imigrantes que residiam nos subúrbios de Chicago. Isso, pelo facto de o estudo ter constatado que
a desagregação na instituição familiar era acompanhada por um elevado índice
de criminalidade.
11. A Escola de Chicago surgiu nos Estados Unidos, na década de 1910, por iniciativa de sociólogos americanos, professores do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago e teve um papel relevante na
história da criminologia, ao emergir a questão da desorganização social e da ecologia criminal (arquitectura criminal). Essa escola foi responsável por um estudo mais detalhado a respeito de fenómenos sociais
que ocorriam na parte urbana das metrópoles, devido ao aumento da imigração para o Centro e Sul dos
Estados Unidos. Houve um aumento populacional na cidade de Chicago de forma repentina e a cidade
não estava preparada para receber todas essas pessoas, ou seja, não havia estrutura para manter o mesmo
padrão de vida existente na cidade (Trindade, 2005).
334
A conclusão a que chegaram os dois pesquisadores, Thomas e Znaniecki,
segundo Trindade (2005), é que a causa da criminalidade entre os imigrantes
polacos residentes nos bairros degradados de Chicago “estava associada a um
processo de desintegração dos mecanismos de coesão social” (p. 96), isto é, que
a criminalidade estava associada às condições sociais de existência e não a características individuais dos imigrantes polacos, e ainda, à crise da instituição
familiar, gerando assim comportamentos anómicos.
Como já foi mencionado, em Cabo Verde o senso comum relaciona a imigração de cidadãos da África Ocidental, sobretudo da CEDEAO, à criminalidade. Esta associação está baseada em alguns comportamentos, hábitos e práticas
ligados às actividades de comércio informal desses imigrantes africanos. Eles são
vistos como violadores das normas municipais locais e como um incómodo para
os turistas: “as vendas feitas na rua e que importunam os turistas não são de locais, mas de emigrantes, sobretudo senegaleses e alguns guineenses” (Norinha,
2010, p. 12).
Num artigo publicado num dos periódicos nacionais, A Nação, sob o título
“Cabo Verde face ao desafio da imigração”, Carvalho (2009)12 apresenta elementos de análise de possíveis causas de surgimento de focos criminais relativos à
entrada massiva e descontrolada de imigrantes em Cabo Verde. Para isso, o autor
questiona “se estará Cabo Verde a preparar-se devidamente para enfrentar os
desafios que a imigração vai colocar” (p. 30), desafios esses relacionados com o
problema de a ordem social interna do país poder ser abalada por grupos de imigrantes que, por diversas vezes, têm-se confrontado com as autoridades policiais.
Chegou a haver necessidade mesmo da intervenção governamental em algumas
das inúmeras situações de desacatos por parte de imigrantes estrangeiros em
Cabo Verde. Por exemplo, em 18 de Março do ano 2005, A Semana”13 noticiou
as reacções do Primeiro Ministro face a uma manifestação ilegal de cidadãos da
Guiné-Bissau na capital do país. Ele disse: “Não vamos tolerar desacato às autoridades” e “A polícia está a tomar medidas e aqueles que prevaricaram serão necessariamente punidos e os ilegais serão imediatamente repatriados do país” (p. 7).
12. Jornal “A Nação”, Praia, edição de 30/01/2009.
13. A reacção do Governo deveu-se a uma manifestação ilegal de imigrantes guineenses da Guiné-Bissau e ao
apedrejamento do Palácio do Governo por esses mesmos imigrantes.
A reacção do Governo deveu-se a uma manifestação ilegal de imigrantes guineenses da Guiné-Bissau e ao
apedrejamento do Palácio do Governo por esses mesmos imigrantes.
335
Também Carvalho (2009) questiona a respeito do aparecimento de obstáculos deliberados às tentativas de legalização dos imigrantes da sub-região, manifestações xenófobas dissimuladas, nestes termos: “Porque não preparar-se para o
inevitável fenómeno da chegada de imigrantes?” (p. 30).
Rosa (2005) manifesta a sua preocupação com o reforço da segurança interna
de Cabo Verde, num ambiente de constante agravamento das fracturas sociais,
religiosas e talvez étnicas.
1.6 - O MOVIMENTO MIGRATÓRIO DA CEDEAO PARA CABO
VERDE
1.6.1 - Situação da Imigração
A importância numérica do fluxo migratório da CEDEAO para Cabo Verde
é difícil de quantificar, devido à absoluta liberdade de circulação no país dos
cidadãos originários dessa comunidade, sendo apenas visível o aumento de movimentos em determinados centros populacionais do arquipélago (Praia, Assomada, Mindelo, Sal, Boavista) nas actividades da construção civil, em vendas
ambulantes, na prostituição turística, etc.
Esse fluxo migratório envolve tanto a imigração regular como a clandestina.
Relativamente à imigração clandestina em Cabo Verde, são muito incertas as
estatísticas, tendo em conta os recursos materiais e humanos de que dispõe o
país. Associa-se a isso tudo, a manifesta falta de sensibilidade política no tratamento das questões relacionadas às migrações, sobretudo na sub-região da África
Ocidental que abrange Cabo Verde, face às más interpretações, por parte de
imigrantes, do Tratado e dos diversos Protocolos sobre a livre circulação e fixação
de residência entre os países membros da CEDEAO.
Segundo a DEF (2009), no período compreendido entre os anos 2005 e
2009, 966 estrangeiros africanos de diversas nacionalidades entraram irregularmente em Cabo Verde, por via marítima, foram detectados em 10 pirogas, e ainda mais quatro embarcações foram encontradas vazias, duas na ilha de Santiago
e as outras nas ilhas de Santo Antão e São Nicolau.
336
Não há dados fiáveis sobre o número de imigrantes em situação irregular em
Cabo Verde; contudo, estima-se que o número varia de 15 mil a 20 mil imigrantes ilegais, tratando-se, na maioria, de pessoas que permaneceram para além do
tempo permitido, provindas das regiões da CEDEAO. Também, há a considerar
o facto de nunca ter ocorrido no país qualquer regularização extraordinária em
relação aos estrangeiros ilegais.
Segundo notícia publicada no jornal A Semana (2010), o governo criou recentemente uma unidade para controlar a imigração ilegal, pois reconhece que
Cabo Verde tem imigrantes em todas as ilhas e em diversos sectores e que existe
um déficit na gestão de estrangeiros, o que gera embaraços para a administração
pública. Além de que existem estrangeiros residentes no país há mais de dez anos
sem qualquer autorização de residência e inclusive crianças nascidas de países
estrangeiros em situação ilegal.
É visível o aumento diário do número de africanos no país, provenientes da
CEDEAO, especialmente do Senegal, da Guiné-Bissau e da Nigéria, e ainda
o facto de a entrada desses cidadãos, legalmente, se efectuar por via aérea e no
principal posto fronteiriço que tem ligação com a África, ou seja, o então denominado Aeroporto Internacional da Praia. “Por dia, do total de cidadãos que
entram legalmente em Cabo Verde por via aérea, quinze acabam por permanecer
no território em situação irregular” (Cabo Verde, 2009, p. 36), isto é, após o
esgotamento do período de estadia autorizado ao abrigo das disposições sobre a
Livre Circulação de Pessoas nos Protocolos da CEDEAO.
1.6.2 - Condições Favorecedoras da Imigração e Suas
Consequências
Cabo Verde, ao contrário do que se esperava, passou a ser um país de imigração. Entretanto, tradicionalmente foi um fornecedor de mão-de-obra para
diferentes latitudes do mundo ao longo da sua história e nos últimos tempos
passou a ser não só um degrau, mas também um país de destino de fluxos que
movimentam milhares de africanos, anualmente, em busca de melhores condições de vida (Nogueira, 2008).
Outro polo de atracção de imigrantes tem sido o desenvolvimento do turismo. Estima-se que 60% do PIB cabo-verdiano estão directa ou indirectamente
ligados à indústria deste sector que evoluiu a partir do ano 1992.
337
[…] o arquipélago árido, está a ser transformado numa estância turística de segmento médio e médio/alto. As grandes operadoras europeias estão muito activas e vários
grupos hoteleiros estão presentes no arquipélago (Norinha, 2010, p. 12).
Apesar do impacto negativo que a actual crise financeira mundial teve na
economia internacional afectando Cabo Verde, sobretudo os sectores ligados ao
turismo e à imobiliária turística, segundo Ferreira (2010), os indicadores estatísticos nacionais registaram um aumento positivo de entrada de turistas.
De acordo com o mesmo autor, Cabo Verde foi considerado um dos dez
países mais reformadores do mundo, o que despertaria mais interesse, tanto das
pessoas que o querem conhecer como de investidores.
Cabo Verde, país considerado de rendimento médio14 desde o ano 2008, é
um dos membros da CEDEAO com as seguintes particularidades: é o menor da
sub-região, simultaneamente em superfície e em população; possui o maior PIB
(produto interno bruto) per capita da região e ocupa ainda a posição mais elevada
em IDH (índice de desenvolvimento humano).
Outros fatores, tais como a estabilidade social, econômica e política, contribuíram de forma decisiva para os níveis de desenvolvimento que o país alcançou
desde a sua independência, o que converteu Cabo Verde num ponto de destino
e acolhimento de fluxos migratórios massivos oriundos principalmente de vários
países da subregião.
De acordo com o PESI, a situação de Cabo Verde quanto à sua localização,
favorecendo as rotas atlânticas do tráfico, elegeu o país como plataforma giratória
da droga com destino à Europa. Esta pode ser tomada como uma das condições
estimulantes à imigração irregular/ilegal de cidadãos da CEDEAO, eventualmente relacionada com a criminalidade, no que respeita ao tráfico de drogas.
Outra condição pode estar relacionada com a proximidade geográfica de
Cabo Verde com os países da África Ocidental.
14. A ONU determinou, em 2004, que a partir de 01 de Janeiro de 2008, Cabo Verde passaria à categoria
de países de rendimento médio. Para que tal alteração seja aprovada, os Países Menos Avançados (PMA)
deverão cumprir dois dos três critérios de elegibilidade estabelecidos pela ONU. Cabo Verde conseguiu
satisfazer dois critérios para deixar a categoria dos países menos avançados, o do rendimento per capita e
o índice de desenvolvimento humano, não tendo conseguido contudo, atingir o terceiro critério, o índice
de vulnerabilidade económica.
338
Além disso, podem ser consideradas condições favoráveis, segundo o PESI:
a fragilidade do controle das águas territoriais; a inexistência do controlo do espaço aéreo; o débil controlo nas fronteiras marítimas; a extensão de costa não
vigiada e de fácil acesso; o considerável nível de pobreza e a desigualdade social; a
inexistência de estratégias políticas em matéria de segurança, entre outras. Esses
factores dificultam muito o combate à criminalidade organizada, sobressaindo o
tráfico de drogas e a rede de imigração clandestina (Cabo Verde, 2009).
Em Cabo Verde, o fenómeno da imigração irregular tornou-se, ultimamente,
uma preocupação nacional e uma boa parcela da classe intelectual local já não
vê com bons olhos os sinais de crescimento desenfreado de certa categoria de comunidades estrangeiras no país, mais precisamente, imigrantes provenientes da
CEDEAO. Outra condição favorecedora da imigração irregular/ilegal tem a ver
com a liberdade de circulação no espaço da CEDEAO.
A livre circulação de pessoas e bens ao abrigo do Tratado Revisto da CEDEAO é o principal motivo da concentração de imigrantes ilegais em Cabo
Verde. Sem dúvida que a livre circulação de pessoas constitui um elemento importante para o comércio transfronteiriço. Entretanto, se tal é possível entre os
restantes países membros da CEDEAO, ligados entre si por fronteiras terrestres,15
o mesmo já não é o caso de Cabo Verde devido à sua insularidade. Os comerciantes daqueles países, em relação a Cabo Verde, enfrentam sérios problemas de
transporte, por um lado devido ao elevado custo das tarifas aéreas16, aliado às exigências fronteiriças de entrada17 e, por outro, à inexistência de ligações marítimas
entre Cabo Verde e os países mais próximos e com fronteiras marítimas como são
os casos de Senegal e Guiné-Bissau.
E, como consequência da livre circulação, pode-se apontar o problema de
desemprego. Os noventa dias de permanência autorizada não são respeitados e o
15. São Domingos, localidade da Guiné-Bissau com cerca de 75 000 habitantes, dista 22 kms de Ziguinchor,
capital da região de Ziguinchor, a principal cidade da área de Casamansa com uma população de mais de
230 000 habitantes e, uma viagem de carro entre as duas cidades dura cerca de 30 minutos com o custo de
1 000 FCA o equivalente a 167$00 ECV.
16. Custo das viagens Dakar/Praia/Dakar, cerca de 36 000$00 ECV, o equivalente a 215 000 FCA.
17. Apresentação de uma caução de 20 000$00 por cada entrada e 10 000$00 por cada dia de permanência
(Portaria nº 49/99 de 04 de Outubro).
339
que se verifica na realidade é que Cabo Verde não se encontra em condições de
garantir a permanência desses cidadãos no país nos termos definidos pela CEDEAO (CEDEAO 1990), no concernente aos direitos de residência e estabelecimento,18 isto devido, sobretudo, às fragilidades económicas do país ultimamente
agravadas pelos efeitos colaterais da crise financeira mundial. Todos os países da
CEDEAO têm o problema de desemprego.
Rosa (2005, p. 4), manifestando a sua preocupação quanto à chegada massiva e descontrolada dos cidadãos comunitários ao arquipélago, aludiu que, se
parte desses cidadãos pretende fazer de Cabo Verde um trampolim para outras
paragens, a maioria vem, hoje, com a intenção de permanecer.
[…] face às dificuldades naturais de integração, optam por se constituir em núcleos
ou comunidades fechadas, por vezes um pouco refractários aos hábitos e costumes
das gentes das ilhas. Começam os nossos irmãos do continente a fazer algo muito
natural que é a reunificação familiar mas necessitam de ser orientados para que os
seus filhos ou educandos integrem o sistema de ensino legal. Os efeitos conjugados
da não integração, a marginalização e a própria auto-segregação constituirão, a médio e longo prazo, fonte de graves preocupações para a sociedade cabo-verdiana e as
suas autoridades.
No Plano Estratégico de Segurança Interna de Cabo Verde, PESI 2009-2011
(Cabo Verde, 2009), no que tange à criminalidade organizada, admite-se que a
África Ocidental é hoje o centro por excelência do tráfico de drogas, a partir da
América do Sul para a Europa. Também, que a pobreza, a fraqueza institucional,
a instabilidade e a corrupção que se alastram na maioria dos países da África Ocidental criam para os traficantes as condições ideais para a diminuição do risco e
a obtenção de lucros elevadíssimos.
Lobo (2010, p. 24) relaciona o problema desse desenvolvimento com a persistência da pobreza e afirma:
[…] o principal problema de desenvolvimento identificado em Cabo Verde no domí-
18. “Direito de Residência” significa o direito de um cidadão nacional de um Estado Membro de residir num
Estado Membro que não o seu Estado de origem e que emite um cartão de residência ou licença que pode
permitir ou impedir de ter emprego.
“Direito de Estabelecimento” significa o direito concedido ao cidadão nacional do Estado Membro para se
fixar ou estabelecer noutro Estado Membro que não o de origem, e de ter acesso a actividades económicas,
de cumprir essas actividades assim como estabelecer e gerir empresas e particularmente companhias, sob
as mesmas condições como definidas pela legislação do Estado Membro de Acolhimento para os seus
próprios cidadãos.
340
nio social é o da persistência da pobreza, nomeadamente das mulheres, num contexto
de repartição espacial desequilibrada, com tendência ao seu agravamento nos meios
urbanos, em resultado de uma forte pressão demográfica sobre os recursos disponíveis.
A realidade cabo-verdiana não permite albergar um número incontrolado
de imigrantes, pela simples razão de o país não se encontrar num nível de desenvolvimento que permita a satisfação plena das necessidades básicas dos seus
nacionais (alto índice de desemprego, problemas de saneamento, habitação, entre
outros).
A Direcção de Estrangeiros e Fronteiras admite a existência de redes operativas de tráfico de imigrantes em Cabo Verde, sendo a sua maioria do Gana e presume haver outras redes no Senegal, na Mauritânia e Nigéria (Cabo Verde, 2009).
Entretanto, alguns comportamentos, hábitos e práticas ligados às actividades
de comércio informal dos imigrantes africanos, sobretudo da CEDEAO, além
de violarem as normas municipais locais, são vistos como um incómodo para os
turistas: “as vendas feitas na rua e que importunam os turistas não são de locais,
mas de emigrantes, sobretudo senegaleses e alguns guineenses” (Norinha, 2010,
p. 12).
Monteiro (1997) afirma que numa sociedade de acolhimento, para além do
imigrante se apresentar como um recurso em termos de capacidade de trabalho e
mesmo como um agente de inovação, a sua presença pode constituir motivos de
receios, pelo facto de poder subtrair uma parte do bem estar nacional, constituindo a sua presença um perigo para a estabilidade e a ordem social. O autor destaca
o facto de o imigrante ser objecto de representação no imaginário colectivo como
um parasita social que vive de “expediente”, alimentando a economia formal e
actividades ilícitas (p. 60).
O mesmo autor responsabiliza os imigrantes de países da CEDEAO pela
introdução de drogas no país:
Originários, maioritariamente, da Nigéria, Guiné-Bissau e Senegal […] instalados
particularmente na periferia das duas cidades (Praia e Mindelo) […] são (alguns
deles), dizíamos nós, responsáveis, em parte, pela introdução regular e disseminação
de drogas no território nacional, como sejam, a cocaína, o base, a heroína e o haxixe,
chegando mesmo a constituir uma franja importante de estrangeiros detidos por
tráfico de drogas nas prisões cabo-verdianas, de acordo com fontes policiais. (Monteiro, 2001, p. 124).
341
E, paralelamente ao aumento desses crimes, tem-se verificado uma avalanche dos acontecimentos sociais actuais em Cabo Verde, marcado pelo clima de
insegurança propalado sistematicamente pelos principais meios de comunicação
do país:
Vendedores ambulantes, oriundos do Senegal e residentes na ilha do Sal, entraram
em choque com a Polícia nessa ilha, causando o maior reboliço público no passado
sábado. O balanço é uma viatura da POP com vidros partidos, a Esquadra apedrejada, e 28 imigrantes detidos. O caso, que está a suscitar preocupações, chama a
atenção para o problema da livre circulação de pessoas e bens, no espaço CEDEAO,
em Cabo Verde (A Semana, 2004, pág. 8)
Esses problemas impõem discussões sobre a facilitação de entradas de estrangeiros no âmbito do acordo entre os membros da CEDEAO de que Cabo Verde
faz parte.
2 - PROBLEMA E JUSTIFICATIVA
A ausência de dados oficiais consistentes, relacionados com o número de
imigrantes da CEDEAO em Cabo Verde, em particular da Guiné-Bissau, do
Senegal e da Nigéria (GNS), configurou-se como um dos aspectos do problema
deste estudo e, assim, motivou a busca da constituição do perfil desses imigrantes
em termos do levantamento de dados cujo tratamento permitiria caracterizá-lo.
Uma análise preliminar de dados estatísticos (apresentados no Capítulo 3) sobre
o fluxo migratório de cidadãos da CEDEAO mostrou que esses três países referidos são os mais expressivos quanto à contribuição para a entrada regular de seus
cidadãos em Cabo Verde, relativamente à imigração dos cidadãos dos outros países-membros dessa organização. Este facto levou à decisão pela escolha dos imigrantes de GNS como participantes do estudo para a caracterização do seu perfil.
Considerou-se importante, para a caracterização do perfil desses imigrantes, determinar um primeiro conjunto de variáveis relativas à sua identificação e
daquelas respeitantes à sua situação socioeconómica, especificadoras do género,
faixa etária, estado civil, religião, grau de escolaridade, renda familiar, local da
residência e tempo de permanência em Cabo Verde.
A determinação dessas variáveis tinha a sua relevância no facto de que permitiria contribuir para o conhecimento dos imigrantes, em virtude de ser um
problema, como é mencionado na literatura e constatado na organização dos da342
dos oficiais sobre a imigração dos africanos, em geral, residentes em Cabo Verde.
Considerou-se importante determinar um segundo conjunto de variáveis que
diziam respeito às possíveis razões explicativas da imigração dos cidadãos desses
três países, o que possibilitaria saber as circunstâncias em que a imigração teve
a sua origem no período a que se refere o estudo. O conhecimento dessas razões
poderia corroborar em parte as explicações apontadas na literatura para esse fenómeno ou contribuir para ampliar o leque de factores para o mesmo.
Foi tido como importante o levantamento de um terceiro conjunto de variáveis sobre as relações sociais entre os imigrantes e com os nacionais, e sobre como
os imigrantes percebem e expressam a sua relação com o crime. Essa importância
teve como justificativa a necessidade de verificar as formas e o grau de integração
desses imigrantes em Cabo Verde.
Considerou-se, finalmente, a importância da avaliação da evolução da imigração e da criminalidade no país, na perspectiva de correlação dos dois fenómenos, no período do estudo. Isso possibilitaria apontar se um possível aumento
do fluxo migratório de cidadãos da GNS teria sido acompanhado do aumento
da criminalidade, para avaliar, em termos de precisão estatística, a consistência
ou inconsistência da análise empírica e de afirmações identificadas na literatura,
com a sua eventual conotação preconceituosa, de que essa imigração é maléfica e
ameaçadora para Cabo Verde, isto é, geradora de insegurança interna.
Delimitou-se o período da imigração como o compreendido entre os anos
2006 e 2010, tendo em vista que esse limite temporal permitiria o levantamento de dados significativos sobre o fluxo migratório desses imigrantes como base
para a análise das variáveis que levariam à constituição do seu perfil, bem como
da relação entre imigração e criminalidade. Também, porque esse período seria
suficiente para permitir a realização do estudo sem comprometer a sua exequibilidade.
343
3 - OBJECTIVOS
3.1 - Objectivo Geral
Um aspecto do objectivo geral do estudo foi caracterizar o perfil dos imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) em Cabo Verde no período
de 2006 a 2010. Outro aspecto foi correlacionar a imigração e a criminalidade
no período referido.
3.2 - Objectivos Específicos
Foram estabelecidos os seguintes objectivos específicos da investigação:
Realizar o levantamento de dados de identificação dos imigrantes e dados
referentes à sua situação socioeconómica, especificadoras do género, faixa etária,
estado civil, religião, grau de escolaridade, renda familiar, local da residência e
tempo de permanência no país de acolhimento;
(2) Verificar as razões da imigração;
(3) Analisar a forma de ocorrência das relações sociais entre os imigrantes e
com os nacionais, e como percebem e expressam a sua relação com o crime.
(4) Verificar a evolução da imigração e da criminalidade em Cabo Verde, na
perspectiva de correlação de ambas no período de 2006 a 2010.
Para o alcance dos objectivos do estudo fez-se necessário delinear estratégias
de procedimento que constituíram os passos metodológicos descritos no Capítulo 2, a seguir. Essas estratégias foram condicionadas pela natureza da investigação e pelo papel institucional do autor, na tentativa de evitar a sua eventual
interferência nos resultados.
344
CAPÍTULO II
METODOLOGIA DE RECOLHA E TRATAMENTO DE
DADOS
1 - AMBIENTE
1.1 - Ambiente de Recolha de Dados sobre a Permanência de
Cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde
A Polícia Nacional, através da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (Divisão
de Estrangeiros e Divisão de Fronteiras), foi o local onde se fez a recolha de dados
relativos à movimentação dos cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde, nos portos
fronteiriços.
O facto de o autor ser um quadro da Polícia Nacional, com funções na Direcção de Estrangeiros e Fronteiras, facilitou a obtenção dos dados referentes à movimentação dos cidadãos da CEDEAO nos principais postos fronteiriços do país
(entradas e saídas) no período de 2006 a 2010, com destaque para os três países
em estudo (Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal), bem como as situações relativas às
saídas coactivas, à luz do Decreto-Lei número 6/97 de 5 de Maio.
Na Divisão de Estrangeiros, sector da DEF encarregado do controlo da estadia e permanência de cidadãos estrangeiros no território nacional, conseguiu-se
obter os dados relativos à situação de regularidades de estrangeiros através das
autorizações e vistos de residência e às duas restantes situações de saídas coactivas
dos estrangeiros de Cabo Verde, a saber: as expulsões administrativas e judiciais.
1.2 - Ambiente de Recolha de Dados sobre Processos Crimes
nos Tribunais da Cidade da Praia
A Procuradoria-Geral da República foi o local de recolha de dados sobre os
processos crimes nos Tribunais da cidade da Praia.
345
A Procuradoria-Geral da República forneceu dados relativos aos processos
crimes que deram entrada nesses tribunais nos períodos solicitados para o presente estudo (de 2006 a 2010). Dos registos processuais, incidiu-se sobre os tipos
de crime mais frequentes e que de uma forma empírica são atribuídos aos cidadãos estrangeiros e entre estes e os naturais dos países membros da CEDEAO.
Embora os dados não diferenciassem as nacionalidades infractoras, permitiram
uma comparação com os dados obtidos no estabelecimento prisional da ilha de
Santiago – Cadeia Central da Praia (CCP) - e definir quais os crimes a que foram
condenados os estrangeiros que se encontravam no referido presídio, com destaque para as nacionalidades objecto do presente trabalho.
1.3 - Ambiente de Recolha de Dados sobre a População
Prisional
Os dados sobre a população prisional foram obtidos no Ministério da Justiça
através dos serviços Penitenciários, directamente no estabelecimento prisional da
CCP.
O Director daquele estabelecimento permitiu o acesso e o manuseio directo
das fichas individuais do total dos reclusos e ex-reclusos. Foram 90 horas de
trabalho no local, na organização e actualização informática dos dados dos reclusos e ex-reclusos, bem como a entrega e recolha dos formulários utilizados nas
entrevistas efectuadas aos reclusos da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, com o
apoio directo das assistentes sociais em serviço naquele estabelecimento prisional.
Houve apoio de um colega do Curso e outros colegas da Polícia Nacional, um
dos quais era estudante de uma instituição de ensino superior de Portugal que se
encontrava de férias naquela ocasião.
A Cadeia Central da Praia19 situa-se no Concelho da Praia, na localidade São
Martinho a aproximadamente seis quilómetros da capital. Ocupa uma superfície
de 10 km2 e é o único estabelecimento prisional do referido concelho, além de
ser uma das duas maiores instituições prisionais do país.
19. Conhecida também por “Cadeia de São Martinho” devido à localidade existente ainda com este nome
–“Prisão de Achada Bombena”, onde se encontra situada.
346
A Cadeia comporta actualmente dois complexos prisionais com capacidade
para receber cerca de 900 reclusos.
O complexo número um comporta quatro sectores (duas preventivas e duas
para as condenações), com a capacidade para 300 reclusos, sendo um dos sectores
destinado às reclusas, com capacidade para 100 reclusas.
O complexo número dois comporta seis sectores com a capacidade para 600
reclusos.
A população prisional em Cabo Verde é bastante jovem, segundo afirmação
do Director Geral dos Serviços Penitenciários e de Reinserção Social20, e abarca
a faixa etária dos 16 aos 30 anos. Perante o facto, o Director acrescentou que o
Regulamento Interno do funcionamento das cadeias prevê a separação dos reclusos não apenas em função dos critérios tradicionais como sexo, natureza do crime
ou situação prisional, mas também em função da idade. Daí que os reclusos com
idade entre os 16 e 21 anos têm uma situação diferente e são , por isso, colocados
em espaços diferentes.
Na CCP, o percentual de presos, na faixa etária dos 16 aos 35 anos é de 75%
num total de 829 nacionais e estrangeiros detidos, no período de 2006 a 2010.
Existe nesse estabelecimento prisional um centro de formação profissional,
um espaço onde funcionam oficinas de mecânica, serralharia e artesanato, o que,
segundo o Director, permitirá educar e capacitar a grande maioria dos reclusos
que se encontram em idade activa os quais, após o cumprimento das penas, poderão integrar o mercado de trabalho no quotidiano da vida social fora do ambiente
prisional.
A Cadeia dispõe de uma área irrigada de quatro mil metros quadrados para a
produção hortícola e pecuária e uma estufa de 600 metros quadrados, financiada
por uma ONG espanhola e que funciona num sistema de rega gota-a-gota, o que
permite a produção agrícola necessária para a alimentação dos reclusos.
É garantida na Cadeia a liberdade religiosa aos reclusos. Há um número
significativo de confissões religiosas que celebram cultos, proporcionando-lhes
assim intervenções pontuais de cariz espiritual.
20. Fidel Tavares (2011). “Humanização, segurança e sustentabilidade dos estabelecimentos prisionais são os
maiores desafios”. Entrevista ao Jornal Expresso das Ilhas em Junho, 6.
347
A Cadeia conta com um serviço clínico composto por um médico e um
enfermeiro, duas psicólogas e dois assistentes sociais que garantem a assistência
médica e a reeducação prisional dos reclusos na CCP.
A CCP é um estabelecimento que exige alto grau de segurança pela natureza de alguns criminosos ali encarcerados por prática de crimes violentos, como
homicídios e tráfico de drogas. Assim, o acesso a esse estabelecimento é condicionado e sujeito a requisitos de segurança na portaria principal (revista geral).
Para o desenvolvimento deste trabalho foi feito um levantamento da realidade imigratória em Cabo Verde referente a cidadãos dos três países (Guiné-Bissau,
Nigéria e Senegal), os quais, conjuntamente com Cabo Verde, pertencem à CEDEAO. Como já foi referido anteriormente, o senso comum associa o aumento
da instabilidade social, manifestada na criminalidade em Cabo Verde, com o
aumento da imigração de cidadãos dos países da CEDEAO.
Fez-se análise de documentos jurídicos nacionais, sub-regionais e internacionais que abordam as questões relacionadas com os estrangeiros, nomeadamente a
lei que regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional, o Tratado
da CEDEAO, os Protocolos Adicionais sobre a livre circulação de pessoas entre
os Estados-membros dessa comunidade regional, as diferentes normas internacionais no que se refere aos diversos acordos entre Cabo Verde e os países na
matéria de circulação de pessoas.
Acedeu-se aos arquivos e às notícias dos órgãos de comunicação social tanto
nacionais como internacionais, bem como a revistas e outras publicações, cujas informações foram percebidas como contribuindo para propagar sentimentos de insegurança baseados em acontecimentos pontuais sobre violência relacionada com
a imigração e o crime. Esse recurso permitiria entender qual a interligação entre o
fenómeno imigratório e a criminalidade, designadamente o tráfico de drogas, as
redes de imigração clandestina, o tráfico de pessoas, a exploração sexual e outros.
2 - PARTICIPANTES
A população-alvo do estudo compreendeu os cidadãos estrangeiros provenientes
dos países-membros da CEDEAO no período de 2006 a 2010, sendo, dentre estes,
mais representativos os da Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria, em termos de residência
em Cabo Verde, segundo os dados da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras.
348
3 - PROCEDIMENTO
3.1 - Determinação da Amostra
Recorreu-se a 180 imigrantes, 60 de cada um dos países objecto do presente
estudo (GNS) nos quais estavam incluídos 20 presos na CCP. Assim, a amostra
envolveu tanto os imigrantes desses países, em situação de liberdade, como também os reclusos. A amostra constitui 5,2% do total de imigrantes desses países
residentes em Cabo Verde, ou seja, 3 475, no período do estudo.
3.2 - Categorização dos Participantes Reclusos
Com base nos dados dos imigrantes regulares no país, deu-se destaque aos
que constituem a população prisional da CCP, por tipo de crimes bem como as
penas acessórias de expulsão judicial, tendo como referências a nacionalidade, o
sexo e a faixa etária dos mesmos.
Tamém deu-se destaque, no seio dos imigrantes irregulares, ao número de
condenados por prática de crimes e aprisionados na Cadeia referida, bem como
às medidas de expulsão judicial e às expulsões administrativas por entrada e permanência irregular, atendendo às referências: tipo de crime, nacionalidade, sexo
e faixa etária.
3.3 - Modelo para Processamento de Dados dos Reclusos
O Director da Cadeia disponibilizou a sala de reunião do estabelecimento
para a realização de actividades relacionadas com o estudo. O pessoal da Secretaria da Cadeia permitiu o acesso aos computadores para a extracção dos ficheiros
com parte dos dados dos reclusos. Em conjunto, acordou-se um modelo único
para o processamento dos dados.
Feito o modelo, recorreu-se às pastas com as fichas dos reclusos e, uma por
uma, foram verificadas, inseridas e completadas as informações em falta no ficheiro informático adoptado para os respectivos dados.
Por motivos profissionais, não eram possíveis as deslocações em dias úteis
para a CCP, o que então ocorreu aos sábados, domingos e dias feriados. O início
349
dos trabalhos geralmente era entre 8H30 e 9H00 e o final variava entre 16H00
e 17H00.
3.4 - Escolha e Organização do Tipo de Entrevista
Por ser uma das formas mais utilizadas na recolha de dados subjectivos, optou-se para o presente trabalho pelo recurso às entrevistas estruturadas, por permitirem a verificação e o aprofundamento de aspectos importantes e elucidadores
da realidade socioeconómica e cultural desses imigrantes em Cabo Verde. Para
as entrevistas utilizou-se um questionário composto por 32 perguntas, dividido
em quatro partes distintas e interligadas entre si (ver anexo 1). Os questionários
foram preparados tendo em conta o idioma de nacionalidade dos participantes
do estudo: português para os imigrantes da Guiné-Bissau, francês para os do
Senegal e inglês para os da Nigéria.
A primeira parte do questionário foi composta por 10 perguntas sobre os
dados pessoais de cada entrevistado, com a preocuapção também de que caracterizassem o seu perfil socioeconómico.
A segunda parte era relativa ao processo de chegada do estrangeiro a Cabo
Verde, com cinco questões relacionadas com o período de permanência e os motivos que estiveram presentes na escolha de Cabo Verde como país de imigração.
A terceira parte, com sete questões, reflectia as preocupações sociais dos imigrantes em Cabo Verde, para a verificação do seu grau de integração na sociedade
de acolhimento. As questões referiam-se ao nível de satisfação, inter-relacionamento com os cabo-verdianos e os demais estrangeiros, e existência ou não de
benefícios de protecção e segurança social no país.
A última parte, com 10 questões, dizia respeito a eventuais conflitos, bem
como suas causas, envolvendo o relacionamento dos imigrantes com as autoridades policiais, o trato social com os cabo-verdianos e as possíveis situações
conducentes a actos discriminatórios, etc.
3.5 - Estratégia de Recolha de Dados
Para a realização das entrevistas, contou-se com a colaboração directa de um
imigrante da Serra Leoa, professor universitário em exercício na ilha de Santiago,
350
bem integrado na realidade de Cabo Verde. Houve ainda valiosas colaborações
de estudantes universitários tanto nacionais como estrangeiros.
Essa estratégia para as entrevistas mostrou-se adequada porque permitiu uma
maior liberdade das pessoas emitirem respostas, em razão do anonimato, evitando, assim, a presença do autor como entrevistador, pelo facto de este ser afeto à
Polícia Nacional, com funções na DEF ao longo da carreira.
3.6 - Medida da Correlação Linear de Pearson
Aplicou-se um instrumento estatístico para verificar a eventual existência
e o grau de correlação linear – correlação de Pearson (r) – entre o aumento da
imigração de cidadãos da GNS e aumento da criminalidade em Cabo Verde, no
período delimitado para o estudo.
Segundo Ramos, Almeida e Arauújo (2013, p. 24), numa obra sobre controle
estastítico, frequentemente procura-se, em trabalhos científicos, verificar se existe
relação entre duas ou mais variáveis, por exemplo, entre o peso e a idade das pessoas, ou entre o consumo das famílias e sua renda. Nestes casos, a verificação da
existência e do grau de relação entre variáveis é o objecto de estudo da chamada
correlação linear de Pearson (r).
O instrumento de medida da correlação linear é dado pelo coeficiente de
correlação de Pearson. E pode ser calculado a partir da fórmula a seguir:
n
(xi
x )( yi
y)
i =1
r=
n
(xi
x)
2
i =1
n
( yi
y)
2
i =1
ou
n
n
n
xi y i
i =1
r=
2
i
n
x
i =1
i =1
2
n
n
xi
i =1
n
xi
yi
i =1
n
y
i =1
2
n
n
2
i
yi
i =1
351
onde x e y são as médias de X e Y, respectivamente.
De acordo com Ramos et al. (2013, p. 24), este coeficiente mede o grau de
relação entre as variáveis em termos quantitativos. E seu valor varia na faixa de -1
≤ r ≤ +1, onde r = +1 significa que os pontos desenhados no diagrama de dispersão estão perfeitamente alinhados numa recta que passa por eles com inclinação
positiva. O valor de r = 0 significa que não existe grau de relação linear entre as
variáveis analisadas e r = -1 indica que a relação é negativa.
A escala de valores entre as variáveis X e Y, mostrada na Figura 1 abaixo,
ilustram quando não há correlação entre elas, quando existe, e em que grau.
Figura 1 – Escala de Correlação entre as Variáveis X e Y.
i) Valores de r acima de 0,90 ou abaixo de -0,90 indicam uma forte correlação;
ii) Valores de r que vão de 0,50 a 0,90 ou de -0,50 a -0,90, indicam correlação moderada;
iii) Valores de r de 0 a 0,50 e de -0,50 a 0,00, indicam fraca correlação.
O procedimento de recolha dos dados, conforme já descrito, determinou a
obtenção dos resultados do estudo, apresentados e discutidos no próximo Capítulo.
352
CAPÍTULO III
RESULTADOS E DISCUSSÃO
1 - INVESTIGAÇÃO DOCUMENTAL PRELIMINAR
De acordo com o Censo realizado em 2010 pelo Instituto Nacional de Estatística, observou-se que dos 491 683 residentes, 14 373 são estrangeiros (2,9%
da população). Destes, 10 306 são africanos (71,7%). Os efectivos da CEDEAO
são um total de 8 783 (61,1%). Quanto às nacionalidades, a Guiné-Bissau com
5 544 efectivos é a que apresenta maior percentual (28,6%), seguida do Senegal
com 1 634 (11,4%), Nigéria com 740 (5,1%) e Guiné-Conacri com 456 (3,2%).
Os dados actuais da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras (DEF) até Dezembro de 2010 apontam o número de 6 246 cidadãos da CEDEAO residentes
legalmente em Cabo Verde, sendo 62,56% portadores de Autorização de Residência, 36,13% de Vistos Ordinários e 1,31% de Vistos de Residência (Figura 2).
Os imigrantes da Guiné-Bissau foram os primeiros a chegar a Cabo Verde
após a independência em 1975, o que, segundo Delgado (2011), tem a ver com o
nível de desenvolvimento que gradualmente se ia verificando no decurso dos anos
e consequentemente o aumento do PIB, em detrimento dos outros países vizinhos da África Ocidental, marcados por fragilidades económicas e instabilidades
sociais, políticos e religiosas.
Mientras tanto, y después de la independencia en 1975, el país se desarrolló, consiguiendo aumentar considerablemente su Producto Interior Bruto y mejorar sus índices de desarrollo humano. Una de las consecuencias de esta evolución fue la llegada
de una oleada de inmigración de países vecinos de África Occidental, en especial de
Guinea-Bissau y de otros países marcados por economías deprimidas e inestabilidad
política crónica, así como procedente de la antigua potencia colonizadora, Portugal
(Delgado, 2011, p. 123).
353
Figura 2 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes em Cabo Verde por tipo
de documento de residência (Ano 2010).
A Figura 3 apresenta a quantidade de autorizações de residência concedidas
aos cidadãos dos três países mais representativos da CEDEAO em Cabo Verde
nos anos de 2006 a 2010. Nela, verifica-se que a Guiné-Bissau é o país cujos
cidadãos obtiveram maior quantidade de autorizações concedidas, ou seja, 917,
durante o período de 2006 a 2010, seguida de Senegal, com 637.
A lei cabo-verdiana sobre os estrangeiros estabelece um conjunto de requisitos legais para a obtenção da Autorização de Residência e de entre estes exige
que os documentos emitidos nos países de que o estrangeiro é nacional, sejam
devidamente traduzidos em português, língua oficial em Cabo Verde. Daí, o factor linguístico beneficiar os cidadãos estrangeiros da Guiné-Bissau e a justificar
a sua maior representatividade em termos de imigrantes em Cabo Verde, apesar
de Gomes (2010) ter apontado ineficácia das autoridades cabo-verdianas, devidas
a razões burocráticas, na dificuldade de obtenção da legalização. Outro factor a
beneficiar esses cidadãos é ainda a existência de graus de parentesco não muito
distante entre os cidadãos dos dois países que remontam à época dos descobrimentos.
Em relação aos detentores de Vistos de Residência, os três países já referidos
ocupam as seguintes posições: Senegal, Guiné-Bissau e Nigéria, com, respectivamente, 68,7%, 12% e 9,6% do total. Dos detentores de Visto Ordinário, os mesmos países continuam na linha de frente com a seguinte ordem: Guiné-Bissau,
Senegal e Nigéria, com, respectivamente, 42,3%, 38,9% e 11,6%.
354
A ordem do percentual de residência conseguida através deste trabalho, relacionada com esses países, é confirmada por Graça (2007). Os guineenses, senegaleses e nigerianos são as comunidades estrangeiras do continente africano com
maior expressão numérica e, inclusive, constituem quase a metade do total dos
estrangeiros legais a residirem no país.
Figura 3 - Quantidade de autorizações de residência concedida aos três países
mais representativos da CEDEAO em Cabo Verde nos anos de 2006 a 2010.
A ilha de Santiago é a que conta com a maior percentual dos cidadãos dos
países da CEDEAO legalmente residentes. Representam 85,94% do total, que
corresponde a 3 412 residentes, conforme a Figura 4.
Figura 4 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes em Cabo Verde (2010).
355
De entre os residentes na ilha de Santiago, ao nível dos Concelhos, é a Praia
que alberga 87,16% do total, com 2 974 portadores de Autorização de Residência
(Figura 5). A ordem dos três países da CEDEAO mais representativos ao nível
nacional em termos de portadores de autorização de residência mantém-se na
capital do país; isto é, Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria, com, respectivamente,
40,32%, 27,24% e 22,49% do total dos residentes.
Figura 5 - Percentual de cidadãos da CEDEAO residentes na ilha de Santiago
(2010).
O sexo masculino é o mais representativo no âmbito do Concelho da Praia,
com os homens a representarem 88,4% e as mulheres 11,6% do total. Essa percentagem feminina mantém-se igual no âmbito nacional, do conjunto dos cidadãos residentes no país, subindo para 24,3% em relação a todas as nacionalidades
residentes em Cabo Verde. Na Nigéria, as mulheres representam 47,4% dos imigrantes, segundo os dados do Observatório ACP (2010).
Considerando os três países da CEDEAO mais representativos no Concelho
da Praia, em relação ao sexo, o Senegal conta com a maior percentual de mulheres, isto é, 12%, seguido de Guiné-Bissau, com 11,7%, e por fim a Nigéria, com
11,1%.
No âmbito da sub-região da África Ocidental, as mulheres representam
46,5% de todos os imigrantes, tendo-se verificado aumentos ligeiros em termos
absolutos e relativos nos últimos 10 anos, segundo os dados do Observatório
ACP (2010). Entretanto, o número de mulheres migrantes permanece abaixo do
valor global de 49%, potencialmente indicando factores sociais e culturais que
favorecem a migração masculina.
No que diz respeito à distribuição por sexo, realça o documento que a proporção de mulheres imigrantes altamente qualificadas de países da África Ocidental aumentou 180% entre 1990 e 2000, fenómeno que pode ser explicado em
parte por um aumento rápido das taxas de escolarização para as mulheres em
relação aos homens. Além disso, aponta que a demanda por mão-de-obra feminina nos sectores de cuidados, a reunificação familiar e as mudanças culturais e
sociais são susceptíveis de ter permitido uma maior percentagem de mulheres a
deixar o seu país de origem.
Quanto ao movimento migratório de Cabo Verde pelo mundo, segundo
Grassi e Évora (2007), verificou-se um aumento da feminização nos últimos anos,
representando as mulheres na diáspora um número crescente dos imigrados.
O caso da Itália é considerado por Monteiro (1997) um exemplo característico e fundamental em que há a presença de uma componente exclusivamente
feminina, atingindo valores à volta dos 91,5%. Esses dados são corroborados por
Castells e Miller 1993. Para eles, no que concerne à feminização da migração,
desde os anos de 1960 as mulheres têm desempenhado um papel importante na
migração laboral. Apontam como exemplo o movimento das mulheres migrantes
cabo-verdianas para a Itália.
Lobo (2012) distingue os movimentos migratórios em relação ao género,
apesar de acreditar que o movimento de mulheres pode apresentar as mesmas
lógicas e características do movimento masculino. A diferença consiste no facto
de serem as mulheres, segundo a autora, mais fiéis do que os homens no envio de
remessas, ou seja, acima de 50% do que ganham, para as famílias nos países de
origem. Dai que muitos países incentivam as suas mulheres a emigrarem em busca de trabalho devido ao impacto significativo das remessas não apenas nos familiares em directo, mas também com influência directa do PIB nacional, podendo
assumir valores acima dos 10%, segundo Tolentino, Rocha e Tolentino (2010).
Monteiro (1997) apresenta valores das remessas dos imigrantes cabo-verdia357
nos em Itália para Cabo Verde, como sendo um total de dois mil e duzentos
milhões de ECV, do ano 1991 a 1996, o que se deveu, segundo o autor, ao facto
de se situar a imigração feminina cabo-verdiana naquele país em 91,5%. Isso “dá
a dimensão do contributo dessa comunidade essencialmente feminina na edificação e consolidação económica do país” (p. 338).
1.1 - Estrangeiros Expulsos
Em Cabo Verde, a imigração irregular não constitui ilícito criminal, sendo os
imigrantes detectados em tal situação apenas submetidos a uma detenção administrativa e reencaminhados para o país de origem. A OIM (2009), em similitude
com a posição de Cabo Verde, confirma não ser a imigração irregular considerada crime na maioria dos países.
Assim, de acordo com os dados da Divisão de Estrangeiros, ver Tabela 1,
foram expulsos de Cabo Verde nos anos de 2006 a 2010, 1 239 cidadãos estrangeiros, sendo 195 por processos administrativos e 44 por decisão judicial. Notase que em igual período Portugal efectuou 3 918 expulsões, dos quais 938 por
decisão Judicial e 2 980 por processos administrativos.
Segundo Guardiola (2008), os estrangeiros em África, legais ou ilegais, têm
sido ciclicamente vítimas de violência, massacre e expulsões em massa em vários
países. No caso concreto dos países do grupo GNS, Guardiola aponta as expulsões efectuadas pelo Gana, em 1969 como sendo de cerca de 250 000 imigrantes
de entre os quais os cidadãos da Nigéria. A Nigéria expulsou de 1983 a 1985 dois
milhões de imigrantes de nacionalidade ganesa. Em 1986 foram expulsos 160
000 mauritanos do Senegal e 70 000 senegaleses da Mauritânia, por causa de
confrontos étnicos entre os dois países. Durante a guerra civil, ocorrida na Costa
do Marfim de 1999 a 2008, muitos senegaleses foram alvos de perseguição e
consequentemente expulsos daquele país.
358
Tabela 1 - Quantidade e percentual de cidadãos estrangeiros da GNS e de outros
países da CEDEAO expulsos de Cabo Verde, nos anos de 2006 a 2010.
Ano
Nacionalidade
2006
2007
2008
2009
2010
Total
Percentual
Guiné-Bissau
3
5
28
3
6
45
18,8
Senegal
2
9
34
26
5
76
31,8
Nigéria
1
12
40
19
15
87
36,4
Outros países
3
6
14
5
3
31
13,0
Total
9
32
116
53
29
239
100,0
Cabo Verde não exige visto de entrada aos cidadãos da CEDEAO, mas estes
terão que provar, à entrada, possuírem os meios de subsistência necessários para
o período de permanência desejada bem como outros definidos pela legislação
interna, no que se refere ao fluxo migratório de estrangeiros. Caso tal não se
verifique, é ordenada a expulsão do país por razões administrativas ou judiciais.
Como se pode verificar na Figura 6, a Nigéria é o país de nacionalidade da maior
parte dos estrangeiros expulsos de Cabo Verde no período de 2006 a 2010, com
36,40%, seguido de Senegal, com 31,80%.
Casos de expulsões de cidadãos da GNS têm-se verificado um pouco por
todo o mundo; assim, em apenas dois anos, 2006 e 2007, segundo a OIM (2009),
9 246 cidadãos de Senegal foram expulsos dos países da União Europeia em situação de irregularidade, com as percentagens maiores provenientes da Espanha
e Itália.
359
Figura 6 - Percentual de estrangeiros da GNS e outros países da CEDEAO expulsos
de Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, por país.
A Figura 7 indica que, em função da situação da irregularidade, o Senegal é
o país de origem da maior parte de pessoas expulsas, com 38,74%. Verifica-se que
a Nigéria se destaca como o país de origem de pessoas expulsas, em decorrência
do tráfico de drogas e falsificação de documentos, abrangendo 73,68% e 75%,
respectivamente.
Em Cabo Verde, o senso comum avalia que, em relação aos cidadãos da
GNS, os senegaleses são considerados pacíficos, pelo que se vê na vida quotidiana
na cidade da Praia, a maioria desses imigrantes a se dedicar ao professorado tanto
nos estabelecimentos públicos como privados no âmbito do secundário e universitário; ao comércio informal, sobretudo ambulante, de artigos diversos; aos
serviços de alfaiate, sobretudo no grande mercado de sucupira e nos subúrbios da
capital; aos serviços de sapateiro. Entretanto, é-lhes atribuída a responsabilidade
dos crimes de receptação de metais preciosos, sobretudo ouro, e ainda a busca
intensa desse metal directamente nas pessoas que se deparam nas ruas e nos
domicílios.
Os cidadãos da Guiné-Bissau são tidos também por pacíficos, ocupando-se
nas obras de construção civil, como trabalhadores, e ainda nos serviços de vigilância das obras em construção, bem como nos edifícios residenciais e comerciais
360
na cidade da Praia. Gomes (2010) confirma que a maior parte dos empregadores
em Cabo Verde manifesta uma visível preferência pelos trabalhadores da Guiné-Bissau, não apenas por afinidades históricas, como também pela dinâmica laboral e espirito de entrega desses trabalhadores.
Tal pacificidade não é vista nos cidadãos da Nigéria, a quem são atribuídos
os crimes relacionados com substâncias psicotrópicas e estupefacientes, e burla. A
maioria das vítimas de burla confessa ter sido enganada pelos nigerianos, sobretudo, na multiplicação de notas de dinheiro nacional e de dólares americanos. No
quotidiano da vida desses cidadãos na capital do país, verifica-se que se dedicam,
sobretudo, ao comércio de vendas de peças de viatura e na reparação de aparelhos
electrodomésticos. Por outro, são os próprios cidadãos nigerianos a aceitarem o
facto de representarem a nacionalidade que mais crimes comete em Cabo Verde
(Figura 33). Das 81 respostas às entrevistas, 18 foram dos próprios cidadãos da
Nigéria, 32 e 31 dos cidadãos da Guiné-Bissau e Senegal, respectivamente.
Motivo de Expulsão
Irregular
20,94
Tráfico Drogas 7,89
Falsificacão de Docum entos
29,32
38,74
73,68
75,00
10,99
5,26
13,16
25,00
Guiné Bissau
Nigéria
Senegal
Burla
Outros
0,00
100,00
66,67
Restantes
33,33
50,00
100,00
Percentual
Figura 7 - Percentual de estrangeiros da GNS e de outros países da CEDEAO
expulsos de Cabo Verde, no período de 2006 a 2010, por motivo de expulsão.
361
1.2 - VISÃO GERAL DO CRIME NO CONCELHO E NA
CADEIA CENTRAL DA PRAIA
Do total das acusações efectuadas pelo Tribunal da Comarca de 1ª Classe na
Capital do país, nos anos 2006 a 2010, num total de 3 560, como indicado na
Tabela 2, sobressaem os crimes contra a propriedade (1 753), seguidos das ofensas
corporais (505) e em terceiro plano o crime de tráficos de estupefacientes (385).
Em Portugal, segundo Guia (2008), num total de 453 cidadãos cabo-verdianos imigrantes presos naquele país em 2005, verifica-se que o principal crime é
relativo ao tráfico e outros crimes relacionados com drogas em número de 314, o
que corresponde a 69,3%.
A população prisional em Portugal até 31 de Dezembro do ano 2010, segundo DGSP (2010), era de 11 613 pessoas tanto portugueses como estrangeiras.
Cabo Verde aparece com o número de 713 presos e os do grupo GNS, a GuinéBissau com 227 e a Nigéria com 39, não aparecendo o Senegal na lista dos presos.
Tabela 2 - Movimento Processual na Comarca de 1ª Classe da Praia (Acusados) - Ano 2006 a 2010.
Anos
Espécie de crimes
Total
2006
2007
2008
2009
2010
Ofensas corporais
92
125
72
72
144
505
Homicídios
36
38
30
24
50
174
Crimes contra
propriedade
261
380
431
311
370
1.753
Crimes sexuais
35
43
25
15
40
158
Crimes contra a honra
12
27
10
5
6
60
1
5
1
3
69
79
16
37
19
24
23
119
Falsificação
23
21
6
4
2
56
Estupefacientes
71
85
70
73
95
385
Crimes contra a ordem
pública
Danos (acidente de
viação)
362
Diversos
52
112
63
23
8
258
Total
599
873
727
554
807
3.560
Fonte: Relatórios de Actividades do Ministério Público Procuradoria Geral da República
A seguir, apresenta-se uma visão geral do crime na CCP.
Deu entrada no estabelecimento prisional da CCP na capital do país 829
cidadãos condenados judicialmente, sendo o maior percentual respeitante aos
cidadãos de Cabo Verde com 87,82% do total, logo seguido dos naturais da Nigéria com 5,91%, conforme indicado na Tabela 3.
Tabela 3 - População Prisional na Cadeia de Central da Praia - Ano 2006
a 2010.
País
Guiné Conakry
Mali
Serra Leoa
Gana
Senegal
Guiné-Bissau
Restantes Países
Nigéria
Cabo Verde
CEDEAO
Total
2006
2007
2008
1
Anos
2009 2010 Total
1
2
4
4
72
6
82
2
5
11
120
13
138
1
2
3
1
8
5
180
13
201
3
5
8
175
11
191
2
4
8
21
181
28
217
1
1
1
2
5
12
30
49
728
71
829
Percentual
0,12
0,12
0,12
0,24
0,60
1,45
3,62
5,91
87,82
100,00
Fonte: Estabelecimento Prisional da Cadeia central da Praia
A Figura 8 apresenta a quantidade de reclusos da GNS e de Cabo Verde na
CCP. Houve um total de 794 presos, destacando-se os reclusos de Cabo Verde
(728), em seguida os da Nigéria (49), da Guiné-Bissau (12) e do Senegal (5).
363
Figura 8 - Quantidade de Reclusos da GNS e de Cabo Verde na Cadeia Central da
Praia, no período de 2006 a 2010.
Conforme se pode constatar na Figura 9, no período de 2006 a 2010, houve
um aumento de cerca de 250% de condenados que foram colocados na CCP. De
82 em 2006, passou a haver 218 presos em 2010, tendo-se verificado um ligeiro
decréscimo do ano 2008 para 2009, na ordem dos 5,5%.
Figura 9 - Evolução geral dos reclusos na Cadeia Central da Praia, no período de
2006 a 2010
364
A Tabela 4 apresenta as condenações por tipo de crime dos reclusos na CCP
no período de 2006 a 2010. Pode-se verificar que o percentual maior das condenações foi de 87,82 e se refere aos cidadãos de Cabo Verde, logo seguido dos cidadãos da Nigéria, com 5,91%. De realçar que os crimes em que mais se destaca
o envolvimento da GNS no período em referência é o tráfico de drogas em que
houve 50 condenações, sendo 39 casos referentes aos cidadãos da Nigéria, nove
casos aos cidadãos da Guiné-Bissau e apenas dois casos aos naturais de Senegal.
Tabela 4 - Reclusos Por Tipo de Crime na Cadeia Central da Praia - Anos
2006 a 2010.
País
Cabo
Verde
BU
TD
CS
FA
FU
HO
OF
RO
OU
Total
Percentual
5
111
79
5
32
176
48
233
39
728
87,82
2
0,24
12
1,45
Gana
2
GuinéBissau
9
Guiné
Conakry
1
1
0,12
Mali
1
1
0,12
Nigéria
39
49
5,91
Senegal
2
5
0,60
1
0,12
3,62
1
1
1
1
1
3
2
1
Serra
Leoa
1
Outros
Países
1
15
5
GNS
0
50
2
1
1
4
Total
7
180
86
6
33
183
1
3
1
3
5
1
30
2
3
3
66
50
241
43
829
100
Legenda: BU – Burla; TD – Tráfico de drogas; CS – Crimes sexuais; FA – Falsificação;
FU – Furto;
365
HO – Homicídio; OF – Ofensas Corporais; RO – Roubo; OU – Outros.
Como monstra a Tabela 5, a maioria do total dos reclusos na cadeia de central
da Praia no período em referência é do sexo masculino, repesentando 94,45%.
As reclusas representam apenas 5,55%. A mesma situação se verifica para o caso
das reclusas da GNS.
Tabela 5 - Reclusos por sexo na Cadeia Central da Praia - Ano 2006 a 2010.
Países
Cabo Verde
Sexo
M
F
690
38
Gana
2
Guiné-Bissau
10
Guiné Conakry
1
Mali
Total
728
2
2
12
1
1
1
1
49
Nigéria
48
Senegal
5
5
Serra Leoa
1
1
Outros países
26
4
30
GNS
63
3
66
Total
Percentual
783
46
829
94,45
5,55
100
Verifica-se na Tabela 6 que do total de 829 reclusos é na faixa etária dos 22
aos 35 anos que se situam os reclusos das diversas nacionalidades que se encontram na CCP com um percentual de 63,09; em seguida, a faixa etária dos 16 aos
21 anos com um percentual de 16,77. E ainda se pode verificar que o total das
reclusas, em número de 46, corresponde a 5,55% do total da população prisional
no período referido.
366
Tabela 6 - Reclusos por faixa etária na Cadeia Central da Praia - Ano 2006
a 2010.
Faixa Etária
Países
A
M
Cabo Verde
CEDEAO
Outros Países
GNS
Total Geral
Total p/faixa
Percentual
B
F
136 2
1
1
137
139
16,77
2
M
422
53
19
50
494
523
63,09
F
24
2
3
2
29
C
M
F
84 7
12 1
5 1
11
101 9
110
13,27
D
M
48
1
2
2
51
F
5
1
6
57
6,88
Legenda: A (16 a 21 anos); B (22 a 35 anos); C (36 a 50 anos); D (> 50
anos).
2 - O PERFIL DOS IMIGRANTES DA GNS
2.1 - Dados Pessoais
A Figura 10 revela que os entrevistados dos três países considerados no estudo (GNS) são na maioria masculinos (percentual médio de 81%), contra uma
minoria de mulheres (percentual médio de 19%). Esses resultados, pelo menos no
que se refere a Guiné-Bissau, são confirmados pelo trabalho de Gomes21 (2010),
o qual mostra que a maior parte dos imigrantes guineenses que procuram Cabo
Verde é jovem do sexo masculino com uma representação de 78,8%. No âmbito mundial, a Comissão Internacional sobre as Migrações Internacionais, 2005,
afirma que 48,6% dos migrantes internacionais são mulheres e que cerca de 51%
delas vivem em países desenvolvidos, sendo os restantes 49% localizados em países em desenvolvimento.
21. Inquérito realizado no mês de Outubro de 2009, na cidade da Praia a 80 imigrantes da Guiné-Bissau,
sendo 63 homens e 17 mulheres.
367
Figura 10 – O género dos entrevistados dos três países em percentual.
Na Figura 11, apresenta-se a distribuição da amostra dos entrevistados por
faixa etária. Ao examinar-se a Figura, verifica-se uma predominância de indivíduos entre os 25 e 34 anos de idade, com uma representação de 50%, seguida de
indivíduos entre os 35 e 44 anos, correspondendo a 30,36%. O mesmo não se
verifica, por exemplo, nos países da União Europeia (UE), em 2010. Segundo os
dados oficiais da Eurostat22 (2011), a mediana da idade da população dos nacionais de países terceiros residentes na UE era de 34,4 anos.
Figura 11 - Percentual dos entrevistados por faixa etária.
22. O Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat) é a organização estatística da Comissão Europeia que produz dados estatísticos para a União Europeia e promove a harmonização dos métodos estatísticos entre os estados-membros.
368
Na Figura 12 distribuem-se os entrevistados por faixas de renda familiar.
Verifica-se, pois, que é na faixa dos 10 000 escudos a 25 000 escudos (ECV) que
se situa a renda familiar mais elevada, ou seja, de 49,33%, dos entrevistados.
A remuneração mínima na Administração Pública em Cabo Verde, segundo
a UNTC-CS (2009) é de 13 745 escudos e o salário médio líquido estimado em
32 300 escudos. Não há nenhum salário mínimo para os trabalhadores do sector
privado, havendo trabalhadores que ganham 6 000 escudos por mês, como é o
caso dos empregados das lojas chinesas (A Semana, 2010).
O Minimum-Wage.org23 (2009) define a taxa de salário mínimo de Senegal
em 209 francos CFA por hora, nacionalmente a todos os funcionários (públicos
e privados). A multiplicar a quantia de 209 por 8 horas normais de serviço diário
obter-se-á a quantia de 1 672 e este valor multiplicado por 30 dá 50 160 francos
CFA, o equivalente a 8 700 escudos cabo-verdianos. A taxa de salário mínimo
estabelecida pela Nigéria é de 18 000 nairas por mês, o equivalente a 9 000 escudos cabo-verdianos, mas nem sempre obedecida por algumas empresas do sector
privado. Em relação à Guiné-Bissau não há definição de salário mínimo.
Figura 12 - Percentual de faixa da renda familiar.
23. Mínimum-Wage.org é um site de serviço público gerido e mantido por Marathon Studios Enterprises
cuja missão é fornecer informações sobre o salário mínimo a nível mundial.
369
Os entrevistados são, na maioria, solteiros com uma representação percentual de 60,12% (Figura 13). Os casados representam 31,79%. Esses resultados
confirmam os de Gomes (2010), em relação aos imigrantes guineenses residentes
na Praia. Demonstram que 81,3% desses imigrantes são solteiros e 16,3% casados, num universo de 80 inquiridos.
A CIMI24 (2010) afirma que se, aparentemente, o grosso dos imigrantes em
Cabo Verde é constituído por homens solteiros, é previsível que muitos desses
imigrantes venham a fixar residência definitiva em Cabo Verde, constituindo família ou fazendo trazer cônjuges. Efectivamente, no universo dos entrevistados,
os 60,12% correspondem a 88 indivíduos do sexo masculino que são solteiros e
16 do sexo feminino, verificando-se na prática alguns casos desses imigrantes a
coabitarem com as mulheres cabo-verdianas e adquirindo filhos em regime de
união de facto.
O relatório final da CIMI (2010) confirma que, ao nível da imigração em
Cabo Verde, as imigrantes do sexo feminino alegam terem vindo ao país a pedido do esposo que aí se encontrava e que uma boa parte dos imigrantes do sexo
masculino casados tem esposa e filhos a viverem no país de origem.
Figura 13 - Percentual de entrevistados por estado civil.
24. Comissão Interministerial para o estudo e proposição das bases da política de imigração.
370
Analisando o nível de escolaridade dos entrevistados (Figura 14), constata-se
uma maior percentual de imigrantes com o ensino secundário, de 64,56% (soma
dos sete a doze anos de escolaridade), seguido do ensino primário com 20,26%
(soma dos quatro a sete anos de escolaridade) e nível universitário com 15,18%
(soma entre a frequência e o grau universitário). Costa (2009) afirma que um
fraco nível de escolaridade dos imigrantes condiciona a sua integração profissional e social nos países de acolhimento, isto por apresentarem fracas experiências
profissionais e sociais, o que não facilita processos de mobilidade profissional e
social ascendente. Daí ser o nível da escolaridade um elemento determinante
para a integração no mercado de trabalho, mas também a qualidade da integração social e económica.
Figura 14 - Percentual de entrevistados por grau de escolaridade.
O sector terciário, como mostra a Figura 15, é o que apresenta maior percentual de profissão exercida em Cabo Verde pelos entrevistados (58,89), seguido do
sector secundário com 30%. Do total de entrevistados, 11,11% encontravam-se
presos da Cadeia Central da Praia. Dos 3 938 cidadãos estrangeiros da CEDEAO residentes em Cabo Verde até Dezembro do ano 2010, segundo os dados
da DEF, 3 353 deles enquadram-se no sector terciário, abrangendo a área de
comércio com 2 211 indivíduos, 562 no sector secundário, maioritariamente na
área de construção civil e como vigilantes e, apenas 23 no sector primário.
371
Figura 15 - Percentual de entrevistados por sector de actividade.
Segundo Gomes (2010), houve um aumento acelerado dos imigrantes guineenses em Cabo Verde, e sendo na sua maioria jovens dedicando-se à prática do
comércio informal e como mão-de-obra acessível na construção civil. Acrescenta
ainda que as mulheres que vêm ao encontro dos maridos se dedicam normalmente ao comércio informal.
Furtado (2011), relativamente ao enquadramento dos cidadãos da GNS em
Cabo Verde, diz que o sector da construção civil é preenchido, sobretudo, pelos guineenses. Os senegaleses estão representados no comércio (artesanato). Os
nigerianos estão também no comércio (fornecimento e reparações de diversos
aparelhos electrónicos).
A INE (2009) revela que aproximadamente de 32 mil pessoas em Cabo Verde trabalham no sector informal, com 24 060 Unidades de Produção Informal
(UPI) em que mais de 60% se encontram localizadas na ilha de Santiago. É a
própria INE a reconhecer que se o sector informal é considerado uma bola de
oxigénio para o emprego, tal não é o caso no que diz respeito à sua contribuição
nas receitas do Estado.
Gomes (2009) considera a economia informal como sinónima de economia
subterrânea, um fenómeno que não é exclusivo dos países subdesenvolvidos, mas
que tende a ser uma espécie de regra, consubstanciada em inúmeras práticas que
englobam tudo o que é produzido nos sectores primário, secundário ou terciário,
sem conhecimento da estrutura governamental e impossibilitando a arrecadação
372
de impostos e os encargos sociais dos trabalhadores. De notar que 49,72 e 17,71%
dos entrevistados no presente trabalho, Figura 31, declararam não beneficiarem
da segurança social em Cabo Verde e o desejo de fazerem parte dela, presumindo-se, por conseguinte, estarem integrados no sector informal da economia.
O mesmo autor refere ainda que a economia informal em Cabo Verde teve
crescimento a um ritmo acelerado com a chegada dos imigrantes chineses e africanos, espalhados por todos os cantos do país e, sobretudo, nos últimos, como
vendedores ambulantes.
O comércio, segundo a UNTC-CS (2010), mantém uma posição importante
em termos económicos, apesar de já não ser hoje o principal sector de contribuição para o produto interno bruto (PIB) e para o emprego. É que a maioria dos
imigrantes da CEDEAO é composta de praticantes do comércio informal, via
essa que permite integrarem-se na lista dos principais beneficiários da fuga ao
fisco. É visível na capital do país um grande número de cidadãos da CEDEAO a
deambular pelas ruas do Plateau e em todos os subúrbios da capital na venda de
produtos diversos.
A construção civil é predominante tanto no caso dos entrevistados como no
caso dos estrangeiros residentes da CEDEAO em Cabo Verde até Dezembro do
ano 2010. A construção civil, segundo a UNTC-CS (2010), tem uma participação económica idêntica à do comércio, assumindo-se também como um importante setor empregador. Contudo, é um sector caracterizado por baixos níveis de
habilitações de uma mão-de-obra maioritariamente masculina e com uma taxa
de assalariamento relativamente baixa. Das informações obtidas da Empresa de
Construção Civil Maltauro Spa – Sucursal de Cabo Verde, soube-se que o salário
mensal dos imigrantes varia consoante a especialidade: um engenheiro recebe até
400 000 escudos; um mecânico, até 130 000 escudos; um electricista e servente,
até 70 000 escudos; um ajudante serralheiro, até 50 000 escudos; um pedreiro,
até 30 000 escudos; um servente de 22 000 até 25 000 escudos e um guarda, até
10 000 escudos.
A maioria dos entrevistados disse professar a religião cristã, indicada pelo
percentual de 58,33%, sendo que os restantes 41,67% informaram professar a
religião muçulmana (Figura 16). Os dados ainda apontam que todos os cidadãos
nigerianos entrevistados, residentes em Cabo Verde, expressaram professar a fé
cristã. Dos cidadãos de Senegal, 56 disseram que são muçulmanos e quatro cris373
tãos, e dos cidadãos da Guiné-Bissau, 39 informaram ser cristãos e 21 muçulmanos. No perfil dos inquiridos no estudo de Gomes (2010), na análise da amostra
num universo de 80 guineenses, 51,3% alegaram professar a fé cristã, indo ao
encontro no percentual conseguido no presente estudo.
Figura 16 - Percentual de respostas sobre a religião professada.
Dos países da GNS, constatou-se que, no Senegal, a religião dominante é o
Islã, representando 94% da população total, o que coincide com o percentual
da amostra dos imigrantes senegaleses residentes em Cabo Verde. Na Nigéria,
as duas religiões repartem-se em 50,5% para os muçulmanos, 48,2% para os
cristãos e 1,3% de religiões tradicionais africanas. Na Guiné-Bissau nota-se uma
grande diferença entre as duas religiões, 38% de muçulmanos e 8% de cristãos,
sendo os restantes 54% considerados afectos às crenças tradicionais africanas
(animismo). Apenas na Nigéria é que se verificam confrontos religiosos entre as
duas maiores representações religiosas, sendo os muçulmanos a maioria a querer
implantar a lei islâmica – Sharia, como principal fonte de legislação no país. No
Senegal, segundo Martinuz (2012), há referências de um islamismo muito dialogante em relação aos cristãos e na Guiné-Bissau, apesar da pobreza a da instabilidade politica, existem óptimas relações entre cristãos e muçulmanos.
Em Cabo Verde a liberdade de religião é garantida pela Constituição; “é
inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, todos tendo o direito
de, individual ou colectivamente, professar ou não uma religião, ter uma convicção religiosa da sua escolha, participar em actos de culto e livremente exprimir
a sua fé e divulgar a sua doutrina ou convicção, contanto que isso não lese os
direitos dos outros e o bem comum.” (Número 1 do artigo 48º da CRCV).25
As crenças religiosas existentes no país são respeitadas pelo Governo de Cabo
25. Constituição da Republica de Cabo Verde. 1ª Revisão Ordinária – 1999. Edição 2000.
374
Verde que, no seu Programa para a VII Legislatura 2006 – 2011, se compromete
a dar uma especial atenção ao desenvolvimento do país e que, para o efeito, a capacitação dos recursos humanos interpela todos os sectores e áreas de actividade,
de entre os quais, as confissões religiosas. “[...] Da parceria social, através do apoio
às iniciativas privadas a todos os níveis […] o Governo considera imprescindível
o papel de outros parceiros, nomeadamente as igrejas, as ONGs e as OSCs”26 (p.
40).
Segundo Nogueira (2010), todos os que imigram levam consigo a sua cultura e acabam sempre por imprimir elementos dela aos locais de acolhimento.
Referindo-se a Cabo Verde, indica a existência de mesquitas e as datas do Islão
devidamente assinaladas.
Carvalho (2010) alude a novos caminhos da religião em Cabo Verde, constituindo por vezes motivo de espanto. Refere-se, pois, a algumas das diversas
igrejas que recentemente passaram a fazer parte do universo da cidade da Praia.
A maioria dos cabo-verdianos professa a fé cristã e o senso comum conecta a imigração, sobretudo da CEDEAO, aos praticantes da fé muçulmana. Tal
evidência assume contornos extremos na sociedade cabo-verdiana a ponto de se
chegar a situações de se aceitar a existência de organizações islâmicas radicais em
Cabo Verde. A Nação 2012 noticiou a existência de uma associação da comunidade islâmica (ACI) em Cabo Verde, já reconhecida pelo Estado de Cabo Verde,
com cerca de cinco mil muçulmanos, todos imigrantes residentes no país, sendo
na sua maioria cidadãos do Senegal e da Guiné-Bissau. Entretanto, a facção radical islâmica noticiada pelo mesmo semanário denominada “Tabligh Jamaat”,
poderá representar um perigo para a ACI, uma vez que poderá inverter os valores
islâmicos defendidos pela mesma e processar o recrutamento de novos seguidores
que podem incluir não somente os imigrantes da costa africana, mas também a
camada jovem cabo-verdiana.
Para Monteiro (1997), a identidade religiosa ajuda no fortalecimento dos laços de solidariedade de todo o grupo imigrado de uma forma significativa e que
a existência no seio de uma comunidade imigrada de serviços ou estruturas religiosas reflecte estabilidade ou continuidade do grupo étnico.
Gomes (2010) refere a presença muçulmana dos guineenses no bairro de
26. ONGs – Organizações Não Governamentais. OSCs – Organizações da Sociedade Civil
375
Tira-Chapéu na Praia, sendo estes provenientes do interior da Guiné-Bissau, de
regiões onde predomina a prática daquela religião. Refere ainda, que por força
da natureza idiossincrática daquele segmento de imigrante, por sinal flexível e
afável, as relações sociais entre os mesmos se operam de forma mais pacífica e
conciliatória. A escolha do bairro teve por finalidade garantir o afastamento de
grupos de imigrantes da mesma nacionalidade que professam a religião cristã,
evitando dessa forma choques entre as duas religiões por práticas tradicionais de
foro religioso e possíveis influências de uma sobre a outra. Para além do bairro
Tira Chapéu, cita ainda mais duas localidades no Concelho da Praia onde há
uma forte presença muçulmana, o de Safende e o de Achada Grande, que compreendem locais de cultos religiosos muçulmanos designados por mesquita, que
é um espaço considerado vital para garantir a integração dos imigrantes dessa
religião muçulmana na Praia.
A CIMI (2010, p. 76) considera que “de uma forma geral a convivência religiosa (islamita e cristã) na vizinhança próxima de Cabo Verde é pacífica”. Receia,
entretanto, que tal convivência possa vir a ser contaminada pelas rivalidades integristas de outras paragens. Observa-se, pois que essas paragens se circunscrevem
mesmo ao seio da CEDEAO, envolvendo países como a Nigéria onde ocorrem
violentos confrontos entre as duas religiões. Outras preocupações ainda observadas pela CIMI têm a ver com a possibilidade de estabelecimento de alianças
entre a alta criminalidade organizada (terrorismo e tráficos) e consequentemente,
de os movimentos extremistas aproximarem-se das comunidades muçulmanas já
visíveis em Cabo Verde.
A Figura 17 indica que a maioria dos cidadãos estrangeiros entrevistados
reside no Concelho da Praia, ou seja, 77,78%. Os que residem em outros Concelhos da Ilha de Santiago constituem 13,33% e os que residem nas outras ilhas
de Cabo Verde constituem 8,89%. Os 22,22% dos entrevistados residentes fora
do Concelho da Praia justificam-se pelo facto de a maioria dos estrangeiros residentes em Cabo Verde estar integrada nas actividades do sector terciário, como
se depreende da Figura 15, e, consequentemente, uma movimentação constante
das pessoas quer pelo interior da ilha de Santiago quer para as outras ilhas em
actividades de negócios.
376
Figura 17 - Percentual de respostas sobre local de residência.
2.2 - Processo de Chegada a Cabo Verde
A análise da Figura 18 permite observar que os diversos motivos da imigração apresentados pelos cidadãos da GNS entrevistados. A procura de melhores
condições de trabalho constitui 28,65% das respostas e dificuldades económicas nos países de origem foram apontadas por 28,65% dos entrevistados. O conhecimento do país e o reagrupamento familiar posicionaram-se com 13,48%
e 12,36%, respectivamente. O conflito no país de origem foi considerado um
motivo, com uma pequena percentagem de respostas, 5,06%. A necessidade de
estudar foi referida com 3,93%.
A OIM (2005) afirma que as pessoas geralmente decidem imigrar pela necessidade de fugir às limitações e inseguranças com que se deparam no seu país
de origem e porque consideram que existem melhores condições e oportunidades
noutro sítio. Cabo Verde, em termos estatísticos, apresenta melhores indicadores
salariais em relação aos países da GNS. O salário mínimo do país, de 12 000 escudos, estabelecido pela Minimum Wage-org, é superior ao do Senegal que é de
8 700 escudos e ao da Nigéria que é de 9 000 escudos. Não há qualquer referência
ao salário mínimo da Guiné-Bissau.
Quanto ao Produto Interno Bruto (PIB per capita) relativo ao ano 2010,
apenas o da Nigéria, 2 500 biliões de dólares, ultrapassa o de Cabo Verde que é
de 1 938 biliões de dólares. O Senegal e a Guiné-Bissau apresentam os valores de
377
1 900 biliões de dólares e 1 100 biliões de dólares, respectivamente.
Gomes (2010) sustenta que, para além das fragilidades de subsistência para
os guineenses no seu país, a principal causa da imigração para Cabo Verde devese à procura de melhores condições de vida, provocadas pelas sucessivas instabilidades políticas e económicas na Guiné-Bissau, sobretudo na década de 1990.
Trindade (1995), em relação às razões que levam uma pessoa a deixar o seu
próprio país por tempo longo ou indeterminado, afirma que a emigração representa, em geral, uma experiência radical e frequentemente dolorosa, de rotura
com o quotidiano conhecido, em favor de um espaço geográfico, social e culturalmente estranho; de um novo emprego, quiçá de uma nova profissão. A decisão
de partir, segundo a autora, não afecta apenas o emigrante, mas sim, toda a sua
componente familiar.
Os factores que estão na base na decisão de migrar podem ser diversos. Pattara, Baeninger, Bogus e Jannuzz (1987) assinalam os principais motivos e algumas das suas variações, de acordo com o período da migração, local de destino
e quantidade de movimentos migratórios. Determinar-se-iam com base nesses
motivos dois grandes momentos relacionados com a decisão de migrar: um primeiro momento, marcado por factores de maior peso decisório (profissionais,
familiares e de moradia) e um segundo momento marcado por factores essenciais
para uma normal integração no país de acolhimento (conhecimento anterior do
local, maior acesso à infra-estrutura e serviços, segurança e qualidade de vida e
custo de vida mais baixo).
Silva (2011) aponta três factores impulsionadores da imigração da CEDEAO
para Cabo Verde, sendo o primeiro a visão do país como um ponto de passagem
para outros destinos cobiçados pela imigração, a Europa e os Estados Unidos da
América; o segundo factor associa-se à ilusão dos imigrantes que, ao julgarem
terem chegado às ilhas europeias das Canárias, se vêm confrontados com as de
Cabo Verde e por fim aqueles que se resignam com a sorte e procuram ali melhores condições de vida.
Entretanto, Furtado (2010) é peremptória ao afirmar, em relação aos imigrantes da GNS na ilha de Boavista, que eles procuram Cabo Verde como país
de acolhimento para fugirem ao crime de guerras, guerrilhas e insegurança que
se vive na sub-região da CEDEAO e com o objectivo de encontrarem paz e tranquilidade.
378
Figura 18 - Motivos relacionados com a imigração.
A Figura 19 mostra que 38,37% dos entrevistados afirmaram ter organizado por iniciativa própria a decisão de emigrar para Cabo Verde, ao passo que
28,49% afirmaram tê-lo feito através de amigos e igual percentagem respondeu
que o fez com a ajuda de parentes em Cabo Verde. Uma ínfima parte (0,58%)
alegou ter contado com o apoio religioso, ou ter organizado a emigração como
turista (0,58%). Outras formas foram apontadas por 3,49% dos entrevistados.
É notável que a influência religiosa é inexpressiva no processo decisório da
escolha de Cabo Verde como país de acolhimento (0,58%).
Figura 19 – Forma de organização da emigração.
379
Dos entrevistados, 79,14% responderam que tinham alguém conhecido em
Cabo Verde quando emigraram (Figura 20). Este resultado vai ao encontro do
percentual de respostas referentes a parentes e amigos em Cabo Verde (56,98%)
como apoiantes à decisão de emigrar (Figura 19). São resultados indicadores de
que os laços de conhecimento facilitam e suavizam a vida do imigrante num
espaço que lhe é estranho. Situações do tipo acontecem frequentemente no Aeroporto da Praia. Um estrangeiro que chega pela primeira vez a Cabo Verde
é submetido a um conjunto de questões nas formalidades fronteiriças, para se
assegurarem as reais intenções do visitante. Estando um familiar ou algum conhecido no Aeroporto à sua espera, esse visitante sente-se mais à vontade e com
menos probabilidade de lhe ser negada a entrada no país.
Figura 20 - Existência ou não de pessoas conhecidas em Cabo Verde quando
ocorreu a emigração.
Relativamente ao tipo de pessoas conhecidas em Cabo Verde quando ocorreu
a emigração (Figura 21), 51,97% dos entrevistados afirmaram ser um familiar e
48,03% disseram ser um amigo. De entre os três países da GNS o Senegal é que
teve mais respostas em relação aos conhecimentos através dos familiares com
um percentual de 42,4%, seguido da Guiné-Bissau com 31,8% e Nigéria com
25,8%. Dos conhecimentos através dos amigos, destaque para os cidadãos da
Guiné-Bissau com 44,3%, seguidos dos da Nigéria com 34,4% e Senegal com
21,3%.
380
Figura 21 - Tipo de pessoas conhecidas em Cabo Verde.
Como mostra a Figura 22, a maioria dos entrevistados, 73,97%, afirmou
ter amigos em Cabo Verde e 26,03% a afirmaram não ter amigos no país. Os
cidadãos da Guiné-Bissau afirmaram ter mais amigos em Cabo Verde (36,1%),
seguidos dos da Nigéria, com 34,3%, e dos do Senegal, com 29,6%.
Figura 22 - Existência ou não de amigos em Cabo Verde.
381
2.3 - Grau de Integração
A busca de oportunidade de trabalho em Cabo Verde (Figura 23) foi um
dos motivos pela decisão de permanecer no país com o maior percentual de respostas (58,82%) dos entrevistados. Este resultado está em conformidade com os
motivos alegados como tendo sido decisivos para deixarem o país de origem (ver
Figura 18). Das respostas afirmativas em relação à oportunidade de trabalho,
sobressaem as dos cidadãos de Senegal com 42%, seguidas das respostas dos
cidadãos da Guiné-Bissau com 36% e da Nigéria com 22%.
A impossibilidade de ir a outro lugar, apontada pelos entrevistados (59,1%,
de respostas dos nigerianos; 31,8% dos guineenses; 9,1% dos senegaleses) obriga
uma boa parte dos imigrantes a resignarem e a ter de ficar em Cabo Verde até
conseguirem a nacionalidade cabo-verdiana para, com mais facilidade, tentarem a emigração para Europa ou para os Estados Unidos da América. Valentin
(2011) revela o caso de um cidadão da Guiné-Bissau residente em Cabo Verde
que num período de dois anos tentou quatro vezes alcançar as ilhas Canárias em
viagens através de “cayuco”27, tendo sido em todas as tentativas interceptado por
autoridades marítimas de Cabo Verde. O imigrante conta ainda que o custo das
viagens era de 3 000 euros por cabeça e que poucos são os sub-saharianos que
procuram Cabo Verde como destino final de imigração. Pelo menos oito em cada
10 têm intenção de continuar a viagem para a Europa ou os Estados Unidos da
América.
Situação idêntica aconteceu com os imigrantes cabo-verdianos em Senegal a
partir de 1910, referido por Graça (2007), em que os cabo-verdianos que passaram a aportar a cidade de Dakar, tinham em mente atingir a França. Em termos
de números, segundo o autor, havia em 1976 cerca de onze mil cabo-verdianos
no Senegal, cuja integração social pode ser considerada fácil. O autor afirma que
a maioria dos descendentes das primeiras correntes migratórias integrou-se a tal
ponto que se identifica actualmente mais com senegaleses do que com cabo-verdianos.
27. Barco longo e estreito, parecido com uma canoa, entalhado a partir de um único tronco de árvore. A lotação varia de 45 a 65 pessoas. Existem casos em que foram detectados cayucos com 230 imigrantes ilegais
na ilha de Santa Cruz de Tenerife – Ilhas Canárias, em Setembro de 2008. Em Cabo Verde a maior lotação
foi detectada em 2008 no cayuco Okomafo Jesus, com 130 imigrantes ilegais.
382
Figura 23 - Razões pela decisão de permanecer em Cabo Verde.
Dos entrevistados, 46,63% (Figura 24) afirmaram que estão satisfeitos com
a sua vida em Cabo Verde, avaliando-a como normal e 34,27% disseram que
não estão satisfeitos, considerando má e péssima a sua vida no país. Dos restantes entrevistados, 19,10% dividiram o nível de satisfação entre bom e excelente.
Os cidadãos de Senegal são os que mais se manifestaram inconformados com o
nível de satisfação em Cabo Verde, com um percentual de 65,6% de respostas a
situarem a sua vida como má e péssima; em seguida, os cidadãos da Nigéria com
18% e os da Guiné-Bissau com 16,4%.
Figura 24 – Percentual de respostas sobre o nível de satisfação em Cabo Verde
383
A língua crioula é considerada a mais utilizada pelos entrevistados, com um
percentual de 61,31% de respostas, como se pode ver na Figura 25. Dos cidadãos
da GNS falantes do crioulo de Cabo Verde, Senegal apresenta uma percentual de
35,7%, seguido da Guiné-Bissau com 34,4% e Nigéria com 29,9%.
A língua como um dos elementos da ordem social e cultural, a par dos costumes, valores e alimentação, é vista em muitos trabalhos como uma importante
ferramenta de interacção humana (Trindade 1995). A cultura subjectiva, ou seja,
os valores e as normas culturais, contribui para modelar as diferentes formas
de interacção entre os imigrantes e os cabo-verdianos. A língua privilegiada, no
caso dos imigrantes guineenses, é o crioulo, segundo Gomes (2010), apesar de
existirem outras línguas na Guiné-Bissau. O crioulo guineense, por apresentar
certa semelhança com o crioulo de Cabo Verde, sobretudo a variante da ilha de
Santiago, não coloca constrangimentos em termos comunicacionais para os imigrantes da Guiné-Bissau, o que, segundo o mesmo autor, representa o principal
factor de integração desses imigrantes em Cabo Verde.
Verifica-se no quotidiano da sociedade cabo-verdiana que o crioulo de Cabo
Verde, sobretudo na capital do país, é facilmente assimilado pelos imigrantes
do Senegal e da Nigéria. Oliveira (2010) esclarece que, do ponto de vista da
sociedade de acolhimento de um migrante, pode correr-se o risco de este ser
marginalizado por não entender ou falar a língua do país acolhedor. Contudo,
segundo a autora, na maioria das vezes, grande parte dos migrantes fala mais
do que uma língua por ser natural de país multilingue, ou porque, devido ao
processo de migração, ter contacto com outras línguas nos países de origem.
Entende-se esse facto, para o caso dos imigrantes senegaleses, uma vez que existe
uma comunidade significativa de cabo-verdianos a residirem no Senegal e ainda
o facto de ter sido o primeiro país africano a receber imigrantes de Cabo Verde,
devido às medidas restritivas do governo americano no início do século XX,
segundo Graça (2007).
384
Figura 25 – Percentual de respostas língua utilizada em Cabo Verde.
A quase totalidade dos entrevistados, isto é, 90,97%, disse compreender e
falar o crioulo de Cabo Verde (Figura 26).
A língua, segundo Monteiro (1997), pode relevar-se como um importante
factor de inserção social no país de acolhimento e ao mesmo tempo um valioso
instrumento de trabalho. Depreende-se que o facto de que a quase totalidade dos
cidadãos da GNS entrevistados utilizar no dia-a-dia o crioulo, que é também a
língua mais utilizada em Cabo Verde apesar de não ser a língua oficial, é uma
prova evidente da inserção dessas comunidades na sociedade cabo-verdiana.
Figura 26 - Percentual de entrevistados que falam/compreendem o crioulo de
Cabo Verde.
385
A ocupação do tempo livre é conforme Monteiro (1997), outra componente
fundamental para a análise da dinâmica integrativa do imigrante numa determinada sociedade de acolhimento. A Figura 27 mostra que 72% dos cidadãos da
GNS afirmaram que ocupam frequentemente o seu tempo livre com os patrícios
e 25,71% afirmaram que raramente ocupam esse tempo. De entre os cidadãos da
GNS entrevistados, 34,1% das respostas sobre a ocupação frequente do tempo
livre com patrícios foram dos guineenses e nigerianos em conjunto e 31,7% foram dos senegaleses. Dos que raramente afirmaram a ocupação do tempo, o percentual de 40%, foi dos entrevistados do Senegal, seguido dos da Guiné-Bissau e
Nigéria com 35,6% e 24,4%, respectivamente.
Gomes (2010) refere que a comunidade guineense tem diversas formas de
ocupar o tempo livre, o que acontece aos sábados e domingos com encontros
na sede de associação onde se divertem com músicas, jogos e pratos típicos. Os
mais jovens deleitam-se com treinos matinais de futebol, considerado como uma
riqueza cultural, pois permite o reforço dos laços de amizade e de solidariedade.
Figura 27 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com seus
patrícios.
386
Dos entrevistados, 51,80% afirmaram que frequentemente ocupam o seu
tempo livre com os cabo-verdianos; 36,75% disseram que raramente o fazem
e 11,45% expressaram que nunca ocupam o seu tempo livre (Figura 28). Dos
cidadãos entrevistados que afirmaram a ocupação do tempo livre com os cabo-verdianos, os da Guiné-Bissau é que apresentaram o maior índice percentual, de
39,5%, seguido dos da Nigéria e do Senegal com, respectivamente, 36% e 21,4%.
Dos cidadãos de Senegal, 52,6% afirmaram que nunca ocupam o tempo
livre com os cabo-verdianos, seguido dos da Guiné-Bissau, com 26,3%, e os da
Nigéria, com 21,1%.
Gomes (2010) afirma que a maioria dos cidadãos da Guiné-Bissau inqueridos
no seu trabalho alegou sentir-se integrada na sociedade cabo-verdiana e alegou o
convívio, emprego, a existência de amigos e namoradas como factores positivos e
facilitadores da integração.
Figura 28 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com caboverdianos.
Quanto à ocupação do tempo livre com outros estrangeiros (Figura 29),
42,94% dos entrevistados responderam que isso é frequente, 42,35% disseram
que raramente ocorre e 14,71% responderam que nunca chegaram a realizar tal
ocupação. Dos que nunca ocupam o tempo livre com outros estrangeiros, destacaram-se os cidadãos de Senegal com 52% de respostas em relação aos da Nigéria
com 28% e os da Guiné-Bissau com 20%.
Para Monteiro (1997), a comunidade cabo-verdiana em Roma caracteriza-se
como uma comunidade fechada a ponto de ela não manter relações nem com ou387
tros imigrantes e nem mesmo com os de origem africana. Esclarece, entretanto,
o autor que tal fechamento da comunidade em Roma ou ainda em outras regiões
é comum a outras comunidades estrangeiras. Uma série de factores está ligada
a esse não relacionamento e até mesmo esse fechamento, como a inserção num
mercado de trabalho discriminatório e a inserção numa sociedade estranha.
Figura 29 - Percentual de respostas sobre a ocupação de tempo livre com outros
estrangeiros.
A Figura 30 mostra que 75,90% dos entrevistados afirmaram ter amigos
cabo-verdianos,16,26% alegaram não ter amigos e 7,83% manifestaram o desejo
de ter amigos cabo-verdianos. Dos que afirmaram ter amigos cabo-verdianos,
os cidadãos da Nigéria representam 38,9%, seguidos dos da Guiné-Bissau com
34,9% e dos de Senegal com 26,2%.
Figura 30 - Percentual de respostas sobre a existência ou não de amigos caboverdianos.
388
Como se pode ver na Figura 31, 49,72% dos entrevistados alegaram não
beneficiar de protecção ou segurança social em Cabo Verde, 32,57% afirmaram que beneficiam dela e 17,71% manifestaram o desejo de obter os benefícios
referidos. Estes resultados levam à sua relação com os apresentados na Figura
33. Constata-se que apenas 37,57% dos entrevistados se encontram na situação
de regularidade quanto à permanência no país. Os restantes 64,43% estão em
situação não definida, isto por serem temporários os casos dos vistos e indecisão
face aos pedidos de residência. Tal situação gera uma figura virtual de irregularidade desses estrangeiros, o que segundo Costa (2008), pode condicionar a
possibilidade dos principais visados de respeitar algumas leis, como será o caso,
por exemplo, da obrigação de efectuar descontos para o fisco ou para a segurança
social. Daí o percentual de 67,43% dos entrevistados terem respondido não beneficiarem da segurança social e o desejarem.
No estudo do Silva 28 (2010) verifica-se que o percentual é elevado naquilo
que considera como sendo “falhas de protecção social” (p. 144), isto é, 85% dos
imigrantes em Cabo Verde a não beneficiarem de protecção social, recorrendo
os mesmos, em situação de doenças, aos próprios meios ou ainda à solidariedade
de famílias e patrícios. Alude aos imigrantes da GNS organizados em pequenas
associações mutualistas de solidariedade social ao nível das comunidades, através
de uma participação mensal, permitindo assim a garantia de um mínimo de
segurança social.
Figura 31 - Percentual de entrevistados que beneficiam de protecção ou
28. O universo dos entrevistados de Silva (2010) resume-se a 57 entrevistas realizadas, sendo 36 na Praia, 11
no Sal e 10 em Boavista, 7 a empresas de construção e 6 a associações de imigrantes.
389
segurança social em Cabo Verde.
2.4 - Relações de Conflito
A Figura 32 mostra que 63,64% dos entrevistados expressaram ter sido vítimas de actos discriminatórios por parte dos cabo-verdianos e 36,36% responderam que não. Os cidadãos da Nigéria foram os que mais afirmaram ter sido
vítimas de actos discriminatórios por parte dos cabo-verdianos, 42,2%, seguidos
dos cidadãos do Senegal com 33% e dos da Guiné-Bissau com 24,8%.
Figura 32 - Percentual de entrevistados vítimas de actos discriminatórios por
parte dos cabo-verdianos.
A Figura 33 aponta que 61,99% dos entrevistados afirmaram ter já presenciado actos discriminatórios em Cabo Verde e 38,01% afirmaram o contrário. Dos
que afirmaram ter presenciado actos discriminatórios, os da Nigéria apresentam
um percentual de 39,6%, seguido dos de Senegal com 33% e dos da Guiné-Bissau com 27,4%.
Figura 33 - Percentual de respostas sobre actos discriminatórios presenciados em Cabo Verde.
No que se refere à situação de estadia em Cabo Verde (Figura 34) verifica-se
que o percentual dos entrevistados portadores de autorização de residência é de
37,57%. Os entrevistados a aguardarem a autorização de residência constituem
27,17%.
390
Os cidadãos estrangeiros em Cabo Verde, segundo a CIMI (2010), falam de
dificuldades na obtenção e apresentação de documentos exigidos para a autorização de residência, de acordo com o decreto regulamentar 11/99 de 9 de Agosto29,
e reconhecem que de facto a lista de documentos é extensa, o que dificulta aos
imigrantes toda a documentação exigida.
Figura 34 - Percentual de respostas sobre a situação em Cabo Verde.
Dos entrevistados, 63,31% consideraram que os cabo-verdianos tratam
mal os cidadãos da CEDEAO, 19,53% avaliaram que os tratam com respeito e
17,16%, com simpatia (Figura 35). Dos que avaliaram que são maltratados pelos
cabo-verdianos os cidadãos da Nigéria apresentaram um percentual de 40,2%,
seguidos dos de Senegal com 35,5% e da Guiné-Bissau com 24,3%. A Guiné-Bissau destaca-se entre os três países da GNS com um percentual de 45,2% de
respostas sobre tratamento com respeito e simpatia aos cidadãos da CEDEAO,
seguida de Senegal com 32,3% e Nigéria com 22,6%.
Os cidadãos da Guiné-Bissau, segundo Gomes (2010), consideram que são
tratados de forma razoável pelos cabo-verdianos com um percentual de 46,3%
de respostas, indo ao encontro dos resultados da presente pesquisa, com uma
29. Documentos exigidos para a obtenção de autorização de residência: Requerimento dirigido ao Director
da Polícia Nacional; registo criminal do país de origem traduzido e visado nos serviços consulares; registo
criminal em Cabo Verde; certificado de cadastro policial; atestado médico passado pela delegacia de saúde;
atestado de residência passado pela Câmara Municipal; comprovativo da proveniência de meios de subsistência; certificado internacional de vacina; documentos comprovativos das condições de alojamento em
Cabo Verde; 3 fotografias a cores tipo passe; fotocópia do passaporte nas páginas que contém identificação,
vistos válidos e carimbos de entrada; impressos e 5 guias modelo B.
391
diferença apenas de 1,1%.
Figura 35 - Percentual de respostas sobre como os cabo-verdianos tratam os
cidadãos da CEDEAO.
A maioria dos entrevistados (67,47%) admitiu nunca ter tido conflito com
algum cabo-verdiano, sendo que 32,53% alegaram ter tido conflitos (Figura 36).
Dos que admitiram não ter tido conflitos, a Guiné-Bissau apresentou 38,4%,
de respostas, seguida da Nigéria com 33% e de Senegal com 28,6%. Os entrevistados do Senegal lideram o grupo da GNS com 44,4% de respostas sobre a
existência de conflitos com cabo-verdianos, seguidos dos da Nigéria com 29,6%
e da Guiné-Bissau com 25,9%.
Figura 36 -Percentual de respostas sobre existência de conflito com algum caboverdiano.
392
Em relação a possíveis conflitos com outros cidadãos da CEDEAO (Figura
37), 89,44% dos entrevistados admitiram não ter tido conflitos e apenas 10,56%
admitiram a sua existência. Dos que admitiram ter conflitos, o Senegal lidera
com 58,8%, de respostas, seguida de Guiné-Bissau com 35,3% e Nigéria, com
5,9%.
Figura 37 - Percentual de respostas sobre existência de conflito com algum cidadão
estrangeiro da CEDEAO.
A maioria dos entrevistados afirmou que os policiais da Cidade da Praia tratam os cidadãos da CEDEAO de forma péssima ou má (54,27%), como mostra
a Figura 38. Além disso, observa-se que 40,24% afirmaram que o tratamento
dos policiais é normal. Somente 5,49% afirmaram que o tratamento pode ser
considerado bom ou excelente.
Figura 38 - Percentual de respostas sobre a forma como a autoridade policial trata
os cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde.
393
O percentual dos entrevistados que afirmaram não ter sido vítimas de crimes
em Cabo Verde é de 61,18% (Figura 39). O percentual dos que afirmaram ter
sido vítimas é de 38,82%.
Figura 39 - Percentual de entrevistados que foram vítimas de algum crime em
Cabo Verde.
A análise da Figura 40 mostra que 77,24% dos entrevistados disseram não
ter presenciado crimes cometidos em Cabo Verde e 22,76% alegaram tê-los presenciado, sendo os criminosos na sua maioria cidadãos cabo-verdianos, representando 28,6%, da Guiné-Bissau e da Nigéria em igual representação com 3,6%.
Figura 40 - Percentual de entrevistados que responderam ter presenciado algum
crime em Cabo Verde.
394
Dos entrevistados, 64,29% (Figura 41) apontaram a Nigéria como o país
cuja nacionalidade é tida como a mais praticante de crimes em Cabo Verde. Os
demais países do grupo GNS e Cabo Verde apresentam uma média percentual
de 11,3%.
Figura 41 - Percentual de respostas sobre imigrantes que mais crimes cometerem
em Cabo Verde.
3 - CORRELAÇÃO IMIGRAÇÃO/CRIMINALIDADE
Um dos objectivos do presente trabalho foi verificar se existe correlação entre
a imigração dos cidadãos da GNS e a criminalidade envolvendo esses cidadãos
no Concelho da Praia, no período de 2006 a 2010. Para isso, recorreu-se à análise
de correlação por este ser um método estatístico amplamente utilizado para os
estudos do grau de relacionamento entre duas variáveis.
Referiu-se que o senso comum em Cabo Verde avalia que os imigrantes da
CEDEAO contribuíram para o aumento da criminalidade no país. Afirmam Levin e Fox (2004) que o simples facto de se constatar a existência de uma relação
entre duas variáveis não diz muito sobre o grau de associação, ou correlação entre
ambas, e que muitas relações são estatisticamente significantes, mas expressam
pouco uma correlação perfeita.
395
A análise da correlação que tem em conta as variáveis imigração e criminalidade, indicando como variam em conjunto, é uma forma de medir a intensidade
e a direcção linear ou não linear das duas variáveis. Isso permite ter um indicador
que atende à necessidade de se estabelecer a existência ou não de uma relação
entre as varáveis imigração e criminalidade.
A Tabela 7 mostra a correlação (r) e o nível descritivo (p) entre a quantidade
de imigrantes de Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal em Cabo Verde e a quantidade
de crimes praticados por pessoas desses países, no período de 2006 a 2010.
Tabela 7 - Correlação (r) e Nível Descritivo (p) entre Número de Emigrantes
em Cabo Verde e o Número de Crimes Cometidos por Infractores de Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal, no Período de 2006 a 2010.
Logo, pode-se observar que não existe correlação estatisticamente significativa entre a quantidade total de imigrantes e a quantidade total de crimes, no
período em estudo, pois o nível descritivo p = 0,981 > 0,05 (5%).
Além disso, pode-se observar que não existe correlação estatisticamente significativa entre a quantidade de imigrantes de Guiné-Bissau (mais expressivos
em relação aos da Nigéria e Senegal) e a quantidade de crimes praticados por
infractores deste país, pois o nível descritivo p = 0,326 > 0,05 (5%).
Ainda, observa-se que quando comparada a quantidade de imigrantes de
Guiné-Bissau com o total de crimes cometidos por imigrantes dos três países em
análise, também não existe correlação estatisticamente significativa, pois o nível
descritivo p = 0,534 > 0,05 (5%).
Finalmente, vê-se o mesmo comportamento quando analisadas as relações
envolvendo Nigéria e Senegal, isto é, também não foram observadas correlações
estatisticamente significativas entre a quantidade de imigrantes e quantidade de
crimes ocorridos no período do estudo.
396
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objectivo geral deste estudo foi caracterizar o perfil dos cidadãos imigrantes da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal (GNS) e correlacionar a imigração e a
criminalidade envolvendo esses cidadãos, no período de 2006 a 2010. Considera-se que o procedimento no âmbito da metodologia utilizada permitiu o alcance
desse objectivo. Na implementação da metodologia, durante a recolha de parte
dos dados pessoais e criminais dos reclusos que passaram pela Cadeia central
da Praia, ficou patente a necessidade da organização e actualização dos dados
estatísticos, como recomenda a investigação científica. Assim, na recolha, fez-se
a organização e actualização desses dados. Esse procedimento pode ser tomado
como uma importante contribuição que o estudo propiciou.
Ainda, verificou-se o problema da falta de dados estatísticos consistentes sobre o fluxo migratório, particularmente, de cidadãos da CEDEAO para Cabo
Verde quer como imigrantes em situação regular, quer em situação clandestina.
É necessário que os serviços governamentais responsáveis estejam munidos de recursos tecnológicos adequados e de recursos humanos preparados para a solução
do problema. No que tange aos recursos tecnológicos, aponta-se, como exemplo,
a disponibilidade de uma base de dados efectiva sobre a circulação de pessoas nos
espaços comuns da referida Organização e que seja compartilhada pelas autoridades competentes.
É fundamental que os Estados membros da CEDEAO tomem providências
para a sensibilização de seus cidadãos sobre os limites da livre circulação prevista
na legislação, nomeadamente o Tratado Revisto e os diversos Protocolos, o que
poderá resultar no controle da imigração irregular e suas consequências. Ademais, é pertinente regulamentar os aspectos fundamentais concernentes ao regime de entrada, permanência e concessão do direito de residência a estrangeiros da
CEDEAO, conforme o estabelecido no artigo 68º do referido Tratado.
O estudo indicou que, apesar de a Nigéria ocupar o terceiro lugar em termos
de imigração legal em Cabo Verde, é o país que se destaca, quer quanto à população prisional na Cadeia Central da Praia, quer no que respeita a expulsões. Esta
constatação dá suporte à avaliação do senso comum de que os nigerianos são os
que mais crimes cometem em Cabo Verde.
397
A maioria dos entrevistados, ou seja, quase 57%, afirmou ter organizado a
emigração através de familiares e amigos em Cabo Verde, 38,37% alegaram que
o fizeram por iniciativa própria e 79,14% afirmaram ter conhecidos em Cabo
Verde, o que constituiu um factor determinante da sua decisão de emigrar. Essa
forma de organização da emigração, isto é, através do amparo de familiares e
amigos no país de acolhimento, pode levar à dedução da existência de uma eventual rede social, em Cabo Verde, de apoio aos emigrantes da CEDEAO. Rocha
(2009) refere, nesse particular, àqueles que apostam na emigração como um suporte que podem encontrar através de uma rede social de amigos, familiares e
compatrícios.
Entende-se que as facilidades de circulação entre os países da CEDEAO permitem que uma parte desses cidadãos escolha Cabo Verde, por motivos diversos,
como ponto inicial da sua aventura emigratória. Além de o país oferecer melhores oportunidades de trabalho, estrategicamente oferece oportunidades para
conquistas de outros espaços (a Europa e os Estados Unidos da América) onde
os imigrantes encontram melhores condições de vida. Este facto é reconhecido
por Gonçalves (2010) para quem, Cabo Verde, nos últimos anos, tem o ónus de
lidar com o problema de imigrantes da costa africana, sobretudo clandestinos,
que visam apenas alcançar a Europa, recorrendo a documentos falsos e falsificados. Todos os estrangeiros clandestinos detectados são reencaminhados para os
respectivos países de origem, o que acarreta a Cabo Verde enormes custos financeiros com as viagens, normalmente realizadas por via aérea.
Constatou-se que 50% dos entrevistados se situam na faixa etária de 25 a 34
anos, com um maior percentual do sexo masculino, de 81% em média, relativamente ao sexo feminino, e uma taxa elevada de solteiros. Portanto, esses imigrantes constituem uma população bastante jovem, em idade economicamente activa
para o trabalho que eles verbalizaram exercer em Cabo Verde, ou seja, o comércio
informal e a construção civil.
A taxa de escolaridade dos entrevistados é relativamente baixa, o que condiciona, por um lado, a sua integração laboral e social e, por outro, os torna mãode-obra de fácil exploração, implicando a sua não integração no sistema de segurança social do país. Vale frisar que apenas 32,57% dos entrevistados afirmaram
beneficiar de protecção ou segurança social em Cabo Verde.
A taxa de escolaridade alia-se ao facto de a maioria dos cidadãos da GNS se
398
encontrar em situação irregular, o que os obriga a aceitarem receber um salário
inferior ao mínimo estipulado para os cabo-verdianos em condições idênticas.
Tudo isso limita a renda familiar dos cidadãos desses países. Essa renda, como o
estudo mostra, situa-se entre 10 000 escudos e 25 000 escudos (ECV), um valor
superior ao salário mínimo praticado tanto no Senegal como na Nigéria. Na
Guiné-Bissau, a situação é ainda mais gritante, onde, segundo Gomes (2010), “o
desemprego, os conflitos civis e político-militares, ausência de propriedades produtivas, baixos salários, aumento demográfico, etc.” acarretam a sua precariedade
económica.
Este estudo revelou que a maioria dos imigrantes da GNS professa a fé cristã,
com destaque para a Nigéria. Como se referiu, para o senso comum cabo-verdiano, as religiões não cristãs, sobretudo o islão, representam ameaça para o país.
Verificou-se, entretanto, que o percentual dos que professam a fé islã, 41,67%, é
inferior ao dos que professam a fé cristã e que há o registo de óptimas relações entre ambas as religiões na Guiné-Bissau e no Senegal, bem como em Cabo Verde.
Desmistifica-se, assim, a avaliação de que praticantes da fé islã são uma ameaça
para Cabo Verde.
Dos entrevistados, 63% em média responderam ser discriminados e maltratados pelos cabo-verdianos. Não obstante, 65,7% avaliaram estar satisfeitos com
a vida em Cabo Verde; 51,80% afirmaram ocupar o tempo livre com os caboverdianos e 75,90% disseram ter laços de amizade com eles.
Não foi possível obter uma correlação estatisticamente significativa entre a
evolução da imigração e a evolução da criminalidade em Cabo Verde envolvendo
os cidadãos da GNS, no período delimitado para o estudo. De acordo com Guia
(2012), a relação entre os dois fenómenos é tida como maioritariamente uma
relação indirecta. Assim, mesmo que houvesse uma correlação significativa, em
termos estatísticos, entre esses fenómenos, esse facto, se existisse, não implicaria
tomar o primeiro como causa do segundo. Uma eventual correlação poderia,
isso sim, apontar a pertinência da busca, em estudos posteriores, de variável ou
variáveis relevantes interpostas entre os dois fenómenos, demonstrando um papel
indirecto do incremento do fluxo migratório sobre o aumento da criminalidade.
Pelo exposto, desconstrói-se o posicionamento do senso comum, referido no
estudo, de que os imigrantes da CEDEAO contribuíram e contribuem para o aumento da criminalidade no país. Essa atitude tem forte conotação discriminató399
ria e preconceituosa e é um factor negativo, passível de comprometer a necessária
integração económica e sociocultural dos imigrantes africanos, como um todo,
e daqueles que compõem os países da CEDEAO, particular e especificamente os
da Guiné-Bissau, Nigéria e Senegal que participaram neste estudo.
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405
ANEXO – MODELO DE QUESTIONÁRIO EM
PORTUGUÊS UTILIZADO NA ENTREVISTA
406
Este inquérito destina-se a preparação de uma tese em Mestrado em Segurança
Pública: Gestão de Defesa Social e Mediação de Conflitos que trata da imigração
de cidadãos da CEDEAO em Cabo Verde.
O preenchimento do Inquérito é voluntário e todos os dados recolhidos são
anónimos e confidenciais.
Grato pela sua colaboração
DADOS PESSOAIS
1) Nacionalidade: ( ) Guiné-Bissau
( ) Senegal
( ) Nigéria
( ) Outro:____________
2) Idade: ( ) 15 a 24
( ) 25 a 34
( ) 35 a 44
( ) 45 a 54
( ) 55 a 64 ( ) ≥ 65
3) Gênero: (
) Masculino
( ) Feminino
4) Estado Civil: ( ) Solteiro(a)
(
) União de Facto
( ) Separado(a) ( ) Casado(a) ( ) Divorciado(a)
5) Grau de Escolaridade: ( ) 4 anos
( ) 10 a 12 anos
( ) Viúvo(a)
( ) 5 a 6 anos
( ) Frequência Universitária
( ) 7 a 9 anos
( ) Grau Universitário
( ) Sem Resposta
6) Renda Familiar:
( ) Menos de 10.000$
( ) 10.000$ a 25.000$
( ) 25.000$ a 50.000$ ( ) 50.000$ a 100.000$
200.000$
( ) Mais de 200.000$
( ) 100.000$ a
7)Profissão:_____________________________________________________
8) Religião:_____________________________________________________
407
9) Residência:_____________________________________________
10) Trabalho Actual:_______________________________________
CHEGADA
11) Há Quanto Tempo Está Em Cabo Verde?
( ) Menos de 6 meses
( ) De 3 a 5 anos
( ) De 6 meses a 1 ano
( ) Mais de 5 anos
( ) De 1 a 2 anos
( ) Não Sabe/Não Respondeu
12) Por Que Deixou O Seu País de Origem?
( ) Dificuldades Económicas/ Falta de Trabalho
( ) Desejo de Conhecer a Realidade Cabo-verdiana
( ) Estudo
( ) Reagrupamento Familiar
( ) Esperança de Encontrar um Trabalho Melhor
( ) Conflitos no País de Origem ( ) Sim Quais?___( ) Não
13) Como Organizou a Sua Emigração em Cabo Verde?
( ) Sozinho
( ) Atráves de Amigos Que já Viviam em Cabo Verde
( ) Atráves de Parentes Que já Viviam em Cabo Verde
( ) Atráves de Instituição Religiosa
( ) Através de Intermediários do Seu Pais Mediante Pagamento
( ) Através de Intermediários Cabo-verdianos Mediante Pagamento
( ) Como Turista, Marítimo
14) Quando Veio Para Cabo Verde já Tinha Algum Conhecido?
( ) Não
408
( ) Sim
14.1 Se sim, quem: ( ) Familiar
( ) Amigo/Conhecido
( ) Outro:_____________
15) Tem Algum Amigo Cabo-verdiano? ( ) Sim
( ) Não
( ) Quero Ter
SOCIABILIDADE
16) O Que Levou a Ficar em Cabo Verde?
( ) Oportunidade de Trabalho ou de Negócios
( ) Acompanhamento de Pessoa de Família
( ) Impossibilidade de Ir Para Onde Gostaria
( ) Outro:__________________________
17) Em relação ao Nível de Satisfação, Como está a Sua Vida em Cabo Verde?
( ) Péssima
( ) Má
( ) Normal
( ) Bom
( ) Excelente
18) Que Língua Utiliza em Cabo Verde?
( ) Francesa
( ) Inglesa
( ) Crioula
( ) Portuguesa
( ) Outra:____________
19) Fala/Compreende o Crioulo de Cabo Verde?
( ) Compreende, Mas Não Fala ( ) Compreende e Fala
( ) Não Compreende
20) Ocupação do Tempo Livre:
20.1) Com Patrícios:
( ) Frequentemente
( ) Raramente
( ) Nunca
409
20.2) Com Caboverdianos:
( ) Frequentemente
( ) Raramente
( ) Nunca
20.3) Com Outros Estrangeiros
( ) Frequentemente
( ) Raramente
( ) Nunca
21) Tem Algum Amigo Cabo-verdiano? ( ) Sim
( ) Não
( ) Quero Ter
22) Beneficia de Protecção ou Segurança Social em Cabo Verde?
( ) Sim
( ) Não
( ) Quero Beneficiar
CONFLITUALIDADE
23) Já foi Vítima de Actos Discriminatórios por Parte dos Cabo-verdianos?
( ) Sim
( ) Não
24) Já Presenciou Actos Discriminatórios em Cabo Verde?
( ) Sim
( ) Não
25) Qual a Situação em Cabo Verde?
( ) Sem Visto
( ) Visto Prorrogado
( ) Visto de Residência
( ) Autorização de Residência ( ) Pedido
Residência ( ) Outros:_____________________
26) Como os Caboverdianos Tratam os Cidadãos da CEDEAO?
( ) Com Respeito e Consideração
Respeito / Indiferentes
( ) Com Simpatia
27) Já Teve Conflito Com Algum Caboverdiano?
( ) Não
410
( ) Sim
( ) Sem
28) Já Teve Conflito Com Algum Cidadão Estrangeiro da CEDEAO?
( ) Sim
( ) Não
29) Qual a Forma Como as Autoridades Policiais Tratam os Cidadãos da
CEDEAO em Cabo Verde?
( ) Péssima
( ) Má
( ) Normal
( ) Bom
( ) Excelente
30) Você já foi Vítima de Algum Crime em Cabo Verde?
( ) Sim (
) Não (Vá para a questão 31)
31) Você já Presenciou Algum Crime em Cabo Verde?
( ) Sim (
) Não (Vá para a questão 32)
32) Os Imigrantes Que Cometem Mais Crimes são Provenientes de Qual(is)
Países da CEDEAO?
( ) Guiné-Bissau
( ) Senegal
( ) Nigéria
( ) Outro:__________________________
411